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UNIVERSIDADE ESTADUAL DA PARAÍBA
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
DEPARTAMENTO DE LETRAS
MESTRADO EM LITERATURA E INTERCULTURALIDADE
EDILANE RODRIGUES BENTO
MELANCOLIA E POESIA TECIDAS EM FLOR E ANJOS:
DIÁLOGO MELANCÓLICO ENTRE AS POÉTICAS DE
AUGUSTO DOS ANJOS E FLORBELA ESPANCA
Campina Grande
2008
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EDILANE RODRIGUES BENTO
MELANCOLIA E POESIA TECIDAS EM FLOR E ANJOS:
DIÁLOGO MELANCÓLICO ENTRE AS POÉTICAS DE
AUGUSTO DOS ANJOS E FLORBELA ESPANCA
Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Estadual da Paraíba, na linha de
pesquisa Estudos Socioculturais pela Literatura, em
cumprimento à exigência para obtenção do grau de mestre
em Literatura e Interculturalidade.
Orientador: Prof. Dr. Eli Brandão da Silva
Campina Grande
2008
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É expressamente proibida a comercialização deste documento, tanto na sua forma impressa
como eletrônica. Sua reprodução total ou parcial é permitida exclusivamente para fins
acadêmicos e científicos, desde que na reprodução figure a identificação do autor, título,
instituição e ano da dissertação.
F ICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA BIBLIOTECA CENTRAL – UEPB
B478m Bento, Edilane Rodrigues.
Melancolia e poesia tecidas em Flor e Anjos:
diálogo melancólico entre as poéticas de Augusto dos
Anjos e Florbela Espanca / Edilane Rodrigues Bento.
Campina Grande: UEPB, 2008.
123 f.
Dissertação (Mestrado em Literatura e
Interculturalidade) Universidade Estadual da Paraíba.
Orientação: Prof. Dr. Eli Brandão da Silva, Departamento
de Letras e Artes.
1. Literatura Comparada. I. Título.
22. ed.
CDD 809
EDILANE RODRIGUES BENTO
MELANCOLIA E POESIA TECIDAS EM FLOR E ANJOS:
DIÁLOGO MELANCÓLICO ENTRE AS POÉTICAS DE
AUGUSTO DOS ANJOS E FLORBELA ESPANCA
Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação em
Letras da Universidade Estadual da Paraíba, na linha de
pesquisa Estudos Socioculturais pela Literatura, em
cumprimento à exigência para obtenção do grau de mestre
em Literatura e Interculturalidade.
Aprovada em 29/02/2008, com DISTINÇÃO
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Eli Brandão da Silva / UEPB
(orientador)
Prof. Dr. Derivaldo dos Santos / UFRN
(Examinador)
Profª. Drª. Rosilda Alves bezerra / UEPB
(Examinadora)
À Maria da Paz Rodrigues de Araújo
AGRADECIMENTOS
A Deus, guia maior de toda a minha peregrinação, por está sempre me levantando e
confortando nos momentos nos quais penso ser impossível conseguir continuar a caminhada.
À minha família, pelo amor a mim dedicado e a credibilidade a mim confiada.
Ao meu orientador, Prof. Dr. Eli Brandão da Silva, pelas leituras sugeridas, por sua
orientação e apoio.
Aos membros do corpo docente do Mestrado em Literatura e Interculturalidade (MLI),
em especial, Sebastien Joachim, Rosilda Bezerra e Geralda Medeiros que contribuíram, por
meio das disciplinas e debates, para o desenvolvimento dessa pesquisa e, com seus
ensinamentos, fizeram-me reafirmar meu fascínio pela literatura.
Aos amigos do mestrado, em especial, Manuela Aguiar, Nivaldo Rodrigues, Taciano
Valério, Patrícia Germano, Socorro Almeida, Elisabete Agra, Luís Adriano Costa, Silvana
Araújo e Ruth Fernandes, pelo companheirismo.
Ao Prof. Dr. Derivaldo dos Santos e a Profª. Drª. Rosilda Bezerra, pela participação em
minha banca examinadora e pela riqueza de suas sugestões que muito contribuíram para o
aperfeiçoamento dessa pesquisa.
Ao Secretário do MLI Roberto dos Santos, pela competência em suas atividades,
facilitando nossa relação com o curso.
Aquilo que verdadeiramente é mórbido não é falar
da morte, mas nada dizer acerca dela, como hoje
sucede. Ninguém está tão neurótico como aquele
que considera ser neurótico decidir-se a pensar sobre
o seu próprio fim.
(Philippe Ariès)
RESUMO
A melancolia (ou depressão) tem sido apontada como mal do século numa época em que a
tristeza e o desencanto tomam proporções de epidemia, afetando o ser humano tanto
objetivamente quanto subjetivamente. Considerando que a literatura capta o real
transmudando-o, mas pelo fato de ela não ter uma temática específica, nela podemos
encontrar vários aspectos dessa realidade, entre os quais aspectos da existência humana e de
suas relações socioculturais. Na presente dissertação, realizamos uma leitura comparativa da
melancolia mimetizada no texto poético de Augusto dos Anjos e Florbela Espanca, à luz da
filosofia existencial de Sören A. Kierkegaard. Depreendemos os seguintes resultados: embora
os autores pertençam a culturas distintas, percebemos uma aproximação entre ambas as
poéticas no que se refere à representação da melancolia, entendida enquanto vertigem da
consciência humana de sua finitude diante do universo, o que exemplifica e atesta a
universalidade da melancolia e o poder da literatura em traduzi-la.
Palavras-chave: Poesia, filosofia, melancolia, literatura portuguesa, literatura brasileira.
ABSTRACT
Melancholia (or depression) has been singled out as the disease of the century in a period
when sorrow and disenchantment took on epidemic proportions, affecting human beings both
objectively and subjectively. Considering that literature captures the real and transforms it, it
should also be remembered that due to the fact of not having a specific theme, we can
encounter various aspects of this reality in it. Among these are aspects of human existence
and its socio-cultural relations. The present dissertation undertakes a comparative study of the
mimesis of melancholia in the poetry of Augusto dos Anjos and Florbela Espanca, from the
perspective of the existential philosophy of Soren A.Kierkegaard. As a result it was perceived
that though the writers belonged to totally different cultures, there was an approximation
between them in poetry which refers to the representation of melancholia, understood as the
vertigo experienced by the human consciousness when its finitude confronts the universe
.This fact exemplifies and attests to the universality of melancholia and the power of literature
to translate it into words.
Key words: Poetry, philosophy, melancholia, Portuguese literature, Brazilian literature.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................ 11
CAPÍTULO I
LINGUAGEM E EXISTÊNCIA HUMANA................................................. 17
1.1 O HOMEM: SER DE LINGUAGEM............................................... 17
1.2 O TEXTO POÉTICO............................................................................ 19
1.3 POESIA NA SOCIEDADE MODERNA........................................ 32
1.4 POESIA E FILOSOFIA....................................................................... 34
CAPÍTULO II
EXISTÊNCIA HUMANA E MELANCOLIA ATRAVÉS DO
TEMPO...................................................................................................................... 41
2.1 A MELANCOLIA ATRAVÉS DOS TEMPOS............................ 42
2.1.1 A Antiguidade................................................................................... 42
2.1.2 Idade Média....................................................................................... 46
2.1.3 Renascença......................................................................................... 47
2.1.4 A Modernidade................................................................................. 48
2.2 A MELANCOLIA E O EXISTENCIALISMO
KIERKEGAARDIANO.............................................................................. 49
2.3 A MELANCOLIA E A PSICANÁLISE FREUDIANA............. 56
CAPÍTULO III
MELANCOLIA E LITERATURA................................................................ 62
3.1 PRESENÇA DA MELANCOLIA NA LITERATURA............. 62
3.2 MELANCOLIA NAS POÉTICAS DE AUGUSTO DOS ANJOS E
FLORBELA ESPANCA: A RELAÇÃO VIDA E OBRA.......................... 70
CAPÍTULO IV
MELANCOLIA NA POÉTICA DE FLORBELA ESPANCA E AUGUSTO
DOS ANJOS........................................................................................................... 80
4.1 FLORBELA ESPANCA.................................................................... 80
4.2AUGUSTO DOS ANJOS................................................................... 83
4.3 FLOR E ANJOS EM DIÁLOGO MELANCÓLICO................. 86
4.3.1 Visão pessimista da condição humana................................... 86
4.3.2 A fragilidade das relações humanas....................................... 95
4.3.3 Desprezo em relação ao Ser.......................................................... 101
4.3.4 Morte enquanto única esperança............................................ 107
CONSIDERAÇÕES FINAIS.......................................................................... 115
REFERÊNCIAS BILBIOGRÁFICAS........................................................ 118
11
INTRODUÇÃO
A vida de um poeta começa em conflito com toda a existência.
(Kierkegaard)
O termo melancolia, substituído por depressão desde o século XIX, remete-nos a uma
problemática psicopatológica muito presente nos dias atuais, pois, não raro, ouvimos sobre o
tema em programas televisivos, em jornais (falados ou escritos), em revistas, nos meios de
comunicação em geral, através dos quais percebemos a gama de pessoas acometidas por esse
mal. Segundo estudiosos, a exemplo de Peres (1996) e Berger (2004) e Luckmann, estamos
vivendo nos dias atuais a democratização da tristeza em sua dimensão mais aguda. Uma
tristeza queo é mais uma forma de situar-se no mundo, porém uma característica do
homem da atualidade. A depressão é apontada como mal do século numa época em que a
tristeza e o desencanto tomam proporções de epidemia. Podemos afirmar que uma crise
sem par, tanto objetivamente quanto subjetivamente, nos tempos modernos, crise essa que,
segundo estudos recentes, surge, entre outros fatores, dos processos de modernização,
pluralização e secularização da sociedade moderna.
É dito que o problema fundamental do homem moderno é o vazio. Este, por sua vez,
viria da impossibilidade do homem moderno alcançar uma integração interior numa sociedade
totalmente desintegrada, na qual nada é seguro, nada é certo, nem presente, nem futuro.
Sabemos que, desde o final do século XIX e início do século XX, alguns estudiosos
perceberam que a desintegração da personalidade humana, que colocava de um lado os
aspectos racionais e de outro os emocionais - sendo que os primeiros sempre eram percebidos
de forma privilegiada - estavam contribuindo para que o homem caminhasse rumo ao vazio.
Homens como Henrik Ibsen, na literatura, Paul Cézanne, na arte, e Freud, na psicanálise,
proclamam que precisamos encontrar uma nova unidade em nossas existências, que a pessoa
precisa tornar-se uma unidade que “pensa-sente-quer”. Na filosofia, um dos que podem ser
chamados de profeta do século XX é o filósofo Sören Kierkegaard, no sentido que ele previu,
um século antes, a destruição de valores que ocorreriam em nosso tempo, tais como a solidão,
o vazio, enfim, o dilema que o homem enfrenta hoje.
12
Compreendemos que a literatura capta o real transmudando-o e que, como ela não tem
uma temática específica, em sua representação da realidade, nela podemos encontrar rios
aspectos dessa realidade, entre os quais, os aspectos socioculturais. Sendo assim, na presente
dissertação, fazemos uma leitura comparativa da melancolia mimetizada no texto poético de
Augusto dos Anjos e Florbela Espanca, uma vez que a ficção pode ser entendida “como
caminho privilegiado da descrição da realidade” (RICOUER, 1999, pp. 56-57), sendo a
linguagem poética, através de suas metáforas, reveladora de experiências humanas
dificilmente dizíveis em linguagem cotidiana, entendendo-se que “só a poesia tem força,
beleza e capacidade de atingir dimensões do humano que a linguagem comum dissimula”
(SILVA, 2004).
Acreditamos que a relevância do tema se dá não apenas pelo fato de vivermos hoje um
momento no qual a presença da melancolia é constante, como atestam os meios de
comunicação em geral, mas pelo fato de este ser um tema universal, uma condição existencial
humana atemporal, e por isso mesmo uma realidade sempre traduzida na arte em geral,
sempre presente na vida de artistas em todas as épocas. Na pintura, temos como exemplo
Dürer, que na obra intitulada “Melancolia”, mudou o paradigma da melancolia de entidade
médica para metáfora, além de Cranach e Beham. Na literatura, encontramos Baudelaire,
Milton, Burton, Molina, Shakespeare, Cervantes, entre outros, que representam representam,
em seus textos, aspectos melancólicos.
A universalidade do tema na arte é atestada ainda pelos estudos de Torres (2007),
segundo o qual a melancolia é um dos estados de mente que melhor se reflete na arte. O autor
discorre em seu artigo sobre uma exposição ocorrida em 2006, em Paris, que traz duzentas e
cinqüenta obras iconográficas cuja temática é a melancolia, iniciando-se na Antiguidade, com
as estátuas gregas e romanas, passando pela Idade Média, com as pinturas de el Bosco, Martin
Shongauer e Lucas Cranach; pelo Renascimento, com as obras de Durero, Hans Baldung-
Grien Giuseppe Arcimboldo, pela época das Luzes, com as obras de Watteau, Piranesi, Füssli
e Goya, entre outros, até chegar ao tempo moderno com as obras de Odilon Redon, Edvard
Munch, Auguste Rodin, Giorgio de Chirico, Edward Hopper, Otto Dix, Pablo Picasso,
Cláudio Parmiggiani entre outros, obras que, segundo o referido estudioso, nos mostram que a
melancolia nos deu de presente um amplo repertório de iconografia.
Na literatura brasileira, temos a representação da melancolia na poesia de Álvares de
Azevedo, Olavo Bilac, Drummond, Augusto dos Anjos, entre outros poetas, o que nos
13
permite afirmar que a melancolia também tem se traduzido constantemente na poética
brasileira.
Para tratar da melancolia na poesia de Augusto dos Anjos e Florbela Espanca,
selecionamos um corpus constituído por oito poemas, a saber: Os sonetos, “Psicologia de um
vencido”, “Idealismo”, “Insânia de um simples” e “Budismo moderno” do poeta Augusto dos
Anjos, todos pertencentes à obra “Eu”; Os sonetos “Minha culpa”, e “Não ser” da obra
póstuma “Charneca em Flor” e “Para quê?” e “À morte” da obra póstuma “Reliquiae”, da
poeta Florbela Espanca.
A escolha pelos dois autores se deu por acreditarmos que, tratando-se de pesquisa num
Mestrado em Literatura e Interculturalidade, seria relevante trabalhar a melancolia textual em
dois poetas de culturas distintas e, assim, estudar a universalidade do tema através da análise
intercultural. Outros fatores também contribuíram para a escolha de privilegiar a obra dos dois
poetas. No caso de Florbela Espanca, percebemos que muito se tem falado sobre sua poesia
amorosa e pouquíssima atenção se tem dado à riqueza do aspecto melancólico de sua poética,
riqueza esta que o presente estudo visa destacar/explorar. Quanto a Augusto dos Anjos,
observamos que a fortuna crítica sobre ele ainda é pequena, não em quantidade, mas em nível
de profundidade de interpretação dos poemas que “a maioria dos poemas ainda se encontra
sem interpretação completa” (ERICKSON, 2003, p. 22) e muito da crítica de Augusto não
pode ser considerada crítica no sentido profissional, pois nela a interpretação da poesia está
geralmente a serviço da biografia do poeta. Além desses fatores, temos ainda outros que nos
despertaram o interesse em trabalhar com os dois poetas, a saber:
Os poetas são cronologicamente contemporâneos;
A melancolia é temática comum na poética de ambos;
A poética de ambos é de difícil classificação na literatura, ambos são considerados
modernos cronologicamente, parnasianos quanto à forma de seus poemas, e
simbolistas quanto à temática;
Os poetas, apesar de habitarem em espaços geográficos e culturais diferentes, tratam
de forma similar a temática da “dor de existir”, o que atesta a universalidade do tema;
Florbela é considera por Dal Farra (2002) a poeta portuguesa que melhor representa a
dor cósmica;
14
Muitos são os estudos que atestam a presença da melancolia na poética de Augusto
dos Anjos, a exemplo dos estudos de Viana (1994) e (2004), Carvalho (2004) e
Bezerra (2004) e (2005).
Ambos tiveram suas obras rejeitadas pelo público e pela crítica em vida, alcançando a
fama apenas postumamente;
A poética de ambos tem sido predominantemente estudada de forma reducionista, por
uma via autobiografista, como atestam os muitos estudos que têm tomado a
melancolia textual dos autores para fazer uma análise biográfica da melancolia pessoal
apontando para uma possível consonância entre vida e obra no que diz respeito à
representação da melancolia.
Os sonetos foram privilegiados em detrimento dos poemas longos para facilitar a
leitura e não torná-la cansativa, uma vez que os poemas se apresentam no texto. No entanto,
faremos referências a alguns trechos dos poemas longos sempre que necessário. Outro fator
que contribuiu para a escolha dos sonetos foi o fato de na poética de Florbela Espanca serem
neles que a melancolia é melhor representada. Assim, julgamos mais coerente usar como
corpus de nossa análise apenas os sonetos e destes selecionamos os que julgamos mais
representativos de um sentimento melancólico.
Para fazer nossa leitura da melancolia na poética de Florbela Espanca e Augusto dos
Anjos, utilizamos enquanto embasamento teórico, a filosofia existencialista, mais
especificamente, a filosofia Kierkegaardiana. Nesse sentido, sempre que citarmos outros
autores existencialistas, a exemplo de Heidegger, o faremos com base naquilo que ele tem em
comum com a filosofia de Kierkegaard, considerado o pai do existencialismo.
A escolha da filosofia existencial de Kierkegaard foi motivada pelo fato de
percebermos que este autor trata enfaticamente as questões subjetivas que afligem a
humanidade, tais como a angústia, a ansiedade e o desespero, atentando para a importância do
reino subjetivo, que para ele era a maior preocupação do ser humano.
Sendo assim, duas obras de Kierkegaard nos servirão de embasamento para uma
melhor compreensão da melancolia: “O conceito de angústia” (1968), considerada por
Strathern (1999, p.49) como “uma das mais importantes obras de psicologia pré-freudianas” e
“O desespero humano” (2004), obra em que o autor faz uma análise da dialética do desespero
em suas múltiplas facetas, bem como da consciência humana.
15
A escolha das obras se deu pelos seguintes motivos: em primeiro lugar, porque, como
afirma Rollo May (2000), o desespero pode tornar-se depressão ou ser tomado
psicologicamente como depressão, sendo necessário conhecer melhor o significado do termo;
em segundo lugar porque, conforme observa Erickson (2003, p.25), “a angústia é uma
variedade da melancolia”, o que também nos orienta a buscar um maior conhecimento sobre
esse termo, sendo que os dois estão presentes na obra do filósofo mencionado; em terceiro
lugar, nos debruçamos sobre as obras de Kierkegaard porque ele pode ser considerado como
um dos maiores psicólogos de todos os tempos, uma vez que ele também “buscou redescobrir
as fontes dinâmicas reprimidas, inconscientes, ditas “irracionais” do comportamento do
homem, e uni-las com as funções racionais do homem” (ROLLO MAY, 2000, p.96).
Nossa análise, no entanto, não busca fazer uma leitura filosófica dos poemas, o que
buscamos é fazer um diálogo, sempre que possível, entre esses saberes, buscando deixar falar
o texto poético e observar o que de comum nós encontramos nos poemas e na filosofia
existencial. Deixamos também de lado o aspecto autobiográfico, uma vez que nosso intuito é
trabalhar apenas com a melancolia textual, pois o sujeito representa-se pela palavra
(QUEIROZ, 1999), de modo que será então a palavra o objeto de nossa leitura, aqui
representada pelos poemas selecionados. Nesse sentido, por concordar com Viana (1994), o
qual afirma que o indivíduo é poeta antes por sua linguagem que por seus conflitos,
estudaremos unicamente os textos poéticos, nos quais faremos nossa leitura da melancolia
textual.
Nosso trabalho se divide em quatro capítulos:
No primeiro, abordamos a questão da relação entre o homem e a linguagem,
embasados nos estudos de Giles (1975), Eagleton (2001), Lobato (2001) e Heidegger (2007a).
Em seguida, tratamos do texto poético considerando os estudos de Costa Lima (1966),
Ricouer (1995), Borges (2000), Aristóteles (2007) e Heidegger (2007b), bem como da função
da poesia na sociedade moderna embasados nos estudos de Eliot (s/d), Paz (1966), Santiago
(2006) e Heidegger (2007b), e das relações entre filosofia e poesia, tomando por base os
estudos de Heidegger (2006) e Nunes (2007).
No segundo capítulo, baseados nos estudos de Peres (1996), Villari (2002) e Scliar
(2003), fazemos um apanhado histórico da melancolia desde a Antiguidade até o século XIX,
passando pela filosofia existencial de Sören Kierkegaard, o qual nos ajudará a compreender a
melancolia não como uma doença mental, mas como uma condição existencial. Ainda nesse
capítulo, abordaremos o conceito de melancolia na psicanálise freudiana.
16
No terceiro capítulo, tratamos das relações entre literatura e melancolia. Nele,
apresentamos a literatura como testemunho do sentimento melancólico e tratamos ainda dos
estudos que têm tomado a melancolia textual dos poetas Augusto dos Anjos e Florbela
Espanca para, através de uma crítica biografista, apontar a poesia enquanto expressão dos
conflitos pessoais de seus autores. Neste momento nos embasaremos nos estudos de Scliar
(2003), Viana (2004), Bordini (2003), entre outros.
No quarto e último capítulo, tecemos algumas considerações acerca das obras dos
autores trabalhados (ver tópico 4.1) e em seguida temos a análise do diálogo entre as duas
poéticas no que se refere à mimetização da melancolia presente em ambas (ver tópico 4.2).
17
CAPÍTULO I
LINGUAGEM E EXISTÊNCIA HUMANA
Os limites da minha linguagem são os limites da minha mente.
Tudo o que sei é aquilo para que tenho palavras [...] Os limites
da minha linguagem significam os limites do meu mundo.
(Ludwig Wittgenstein)
Antes de tratarmos do conceito de melancolia no decorrer da história, acreditamos ser
necessário fazer algumas considerações sobre as relações entre o homem e a linguagem, a
especificidade e a importância da linguagem poética, além das relações existentes entre poesia
e filosofia.
1.1 O HOMEM: SER DE LINGUAGEM
Segundo Lobato (2001, p. 02), “a linguagem foi, sem sombra de dúvidas, um dos
principais fatores que possibilitaram a formação e desenvolvimento do homem na terra”. Para
a autora (2001, p. 04), a linguagem nasce junto com o nascimento do trabalho, surgindo
“como instrumento de comunicação na realização conjunta dos trabalhos laborais”. No
entanto, além de facilitar o desenvolvimento das atividades laborais, a linguagem, afirma a
autora: “participou da própria constituição do homem no que se refere à criação da
possibilidade da abstração necessária ao desenvolvimento da consciência, dimensão
tipicamente humana responsável direta pelo avanço da sociedade que se formava” (LOBATO,
2001, p.04)
Para analisar a dimensão da linguagem no processo de constituição do homem, Lobato
(2001) estabelece uma relação entre a linguagem, a consciência e o pensamento. Para ela
(2001, p. 07), “A consciência é o reflexo do mundo material no cérebro do homem. Ela é
produto, portanto, da atividade cerebral do homem em sua relação com o meio”. A
consciência, de acordo com a estudiosa, apresenta dois níveis, sendo o primeiro, o meio
empírico e o segundo, o abstrato. O primeiro se desenvolve a partir das sensações, percepções
e representações, enquanto o segundo, opera com conceitos, juízos e deduções, sendo nesse
nível, que
[...] Se pode caracterizar a consciência como forma especificamente humana de
refletir a realidade, que é nesse nível que o reflexo dos objetos e fenômenos da
realidade se forma como um reflexo sensível-consciente, através da abstração, um
18
novo princípio da atividade nervosa que tem sua origem no uso do sistema de signos
verbais, a linguagem humana. O homem passa então, como uso da linguagem, a
interagir com o meio sem o contato imediato com os objetos, mas num nível de
abstração que levou a formação de conceitos com os quais surge e se desenvolve a
consciência (LOBATO, 2001, p.07).
A linguagem surge, assim, como forma de comunicação entre os homens. Ainda sobre
essa função da linguagem, Bottéro (apud Arruda, 2004, p.08), afirma que o homem, “na
Mesopotâmia antiga, berço da civilização, ao perceber a necessidade de comunicar-se,
começa a criar possibilidade de entendimento entre si e os outros”. O homem mesopotâmico
“usa sinais e mensagens, traçados ou pintados no flanco dos vasos, ou ainda em pedra ou
argila, por exemplo” (ARRUDA, 2004). Arruda (2004) diz ainda que, segundo Bottéro, "se
tratava apenas de uma escrita de coisas: os significados diretos desses caracteres não eram as
palavras de uma língua, mas, em primeiro lugar e de modo imediato, as realidades expressas
por essas palavras". Percebemos, então, que em um determinado momento da humanidade o
homem teve a necessidade de comunicar-se de algum modo, assim como num determinado
momento passou a falar. Com o desenvolvimento das relações sociais decorrente do avanço
da sociedade, a linguagem foi adquirindo um grau elevado de complexidade, passando a
assumir a função de interação social, isso se deu porque:
[...] a variedade das novas atividades laborais e a divisão social do trabalho, gerando
grupos sociais com características, funções, influências e poderes diferentes,
trouxeram para a linguagem a dimensão de ação sobre o comportamento do outro
(LOBATO, 2001, p.08).
Dessa forma, a referida autora afirma que a função da linguagem vem se modificando
junto com as mudanças das atividades laborais, as quais vão se tornando mais complexas
com o passar do tempo, destacando, no entanto, que a função interativa da linguagem
aparecia desde os seus primórdios, mas dada à simplicidade das relações sociais daquele
período, sua função comunicativa apresentava maior destaque, isso porque a produção era
coletiva e a propriedade de todos, ou seja, “a ausência de conflitos sociais dava à linguagem
uma tranqüilidade de instrumento de comunicação, minimizando o seu papel de ação sobre o
comportamento do outro” (ARRUDA, 2001, p. 13), sendo que, na sociedade capitalista, o
aspecto interativo da linguagem toma maior destaque uma vez que “as profundas diferenças
sociais adquirem progressivamente formas sofisticadas de manifestação” (ARRUDA, 2001,
p.14) e a linguagem torna-se um mecanismo de dominação de classe, porque é na linguagem
que a ideologia se materializa.
19
Desse modo, percebemos, que existem diferentes concepções de linguagem, uma vez
que a linguagem modifica-se com o passar do tempo, embora a mudança na função da
linguagem não faça desaparecer sua função anterior, ou seja, a função interativa, não acaba
com a função comunicacional, mas existe paralelamente a essa.
As relações entre a linguagem e o homem, são destacadas ainda por Martin Heidegger
(2007a), o qual afirma que é na linguagem que aparece e se manifesta em sua essência aquilo
que nós somos. Sem a linguagem, o homem ficaria fechado, é ela que torna o homem um ser.
Para esse filósofo, ela pré-existe ao homem, no sentido que mundo humano onde
linguagem. Nessa mesma linha, Eagleton (2001) afirma que o ser humano não poderia possuir
significados sem possuir uma linguagem, ou seja, a idéia de um mundo natural e ordenado,
independente da linguagem, é fictícia, pois conforme afirma Garcia-Roza (1936, p.20), a
linguagem não surge um dia, ela está lá desde o começo. É apenas do lugar da linguagem que
podemos supor um mundo que lhe seja anterior, mundo dos começos, mundo
verdadeiramente tico”. Falar é fazer com que a verdade do Ser chegue, através da palavra,
até a linguagem.
Verificamos então que homem é possuído pela linguagem, uma vez que ele não fala a
não ser na medida em que é possuído pela linguagem. Falar é pertencer à linguagem. a
linguagem fala realmente, cabendo ao homem a tarefa de tirar o véu do silêncio, uma vez que
pela palavra o presente é trazido à presença, como a relação de todas as relações, como
acontecimento.
Para Giles (1975, p.294), “A linguagem é o mais perigoso de todos os bens, pois sendo
fundamentação do Ser, ela arrisca Ser, sendo o homem, de todos os entes, o homem é aquele
que mais se arrisca. O homem, porque fala...”.
Os estudos acima destacados nos permitem entender melhor a relações entre o homem
e a linguagem, no entanto, sendo o texto poético o objeto de análise de nosso trabalho,
precisamos tecer algumas considerações sobre a especificidade da linguagem da poesia e sua
função na sociedade moderna.
1.2 O TEXTO POÉTICO
O termo poesia, deriva do grego poíeses, ou latim poesis, significa fazer, criar, alguma
coisa. O pensamento estético começa pela poesia com Platão, na República, e Aristóteles na
Poética. Platão (2006), em sua República, no livro X, parte da idéia de que há um “modelo no
20
céu”, ou seja, que o real é o ideal, considerando haver três graus de realidade: a criada por
Deus, a do artífice e a do artista. Tomando como modelo a cama, ele aponta, que existem “três
formas de cama”, “uma que é a forma natural e da qual diremos, segundo entendo, que Deus a
confeccionou”, outra seria a “a que executou o marceneiro”, e outra, “feita pelo pintor”
(PLATÂO, 2006, p.295), sendo que apenas a primeira seria a cama “ideal”, enquanto o
marceneiro/o artífice, um primeiro imitador do modelo “ideal” e o pintor, um segundo
imitador, um imitador da imitação e por isso, um imitador menor .
Dessa forma, o imitador é o autor de uma produção afastada três graus da natureza.
Podendo tal idéia ser aplicada igualmente ao poeta, Platão vai afirmar que “todos os poetas
são imitadores da imagem da virtude e dos restantes dos assuntos sobre os quais compõem,
mas não atingem a verdade” (2006, p.299). A imitação está assim, longe do verdadeiro e o
poeta, por sua condição de imitador, vivendo no erro, não teria utilidade alguma na
“República Ideal” de Platão.
Aristóteles não compartilha das idéias de Platão, destacando a arte como uma
imaginação suscetível de criação, ele afirmará em sua Arte Poética (2007, p. 43) que a poesia
não tem finalidade de simplesmente narrar um acontecimento verídico, mas em sua qualidade
de artista, o poeta narra “o que poderia ter acontecido, o possível, segundo a verossimilhança
ou a necessidade”. Comparando o historiador e o poeta, Aristóteles afirma que eles diferem
entre si pelo fato de ao primeiro caber a obrigação de escrever sobre o que aconteceu e ao
segundo sobre o que poderia ter acontecido. Diante disso afirmará (2007, p. 43) que “a poesia
é mais filosófica e de caráter mais elevado que a história, porque a poesia permanece no
universal e a história estuda apenas o particular”. As idéias de Aristóteles marcam assim o
começo de uma mudança em torno da idéia errônea da arte enquanto uma simples reprodução
ou fotografia da realidade.
É necessário perceber que Aristóteles não se refere à poesia tal qual imaginamos hoje,
mas ao destacar o “narrar” ele se refere à épica, pois de acordo com Borges (2000), embora
hoje nós possamos pensar no poeta como aquele que profere notas líricas, os antigos, quando
falava de um poeta, um “fazedor”, pensavam nele também como quem narra uma história, a
exemplo de Homero na Ilíada e Odisséia ou dos quatro evangelhos, os quais o Borges
considera como “épica divina”.
Sobre a relação entre a poesia e a realidade, as afirmações de Costa Lima (1966) nos
são esclarecedoras. Esse autor (1966, p.23) afirma que a obra de arte não anula o real, antes
dele se alimenta e o suspende na obra “para enriquecê-lo com uma riqueza nova”, ou seja,
21
através da expressão artística podemos tomar maior consciência do real, é dele que a obra
parte e a ele volta. A idéia de que exprimir é tomar consciência pode ser mais bem visualizada
em Heidegger (2007b, p.27) para quem “a obra é o acontecer da verdade”. Considerando a
representação de um par de sapatos numa pintura de Van Gogh, Heidegger dirá que é na obra
que nos aproximamos da essência do Ser sapato, ou seja, é nela que acontece a verdade
através do desocultamento do Ser desse simples apetrecho. Para Heidegger (2007b, p.24) o
ente sapato enquanto um apetrecho útil, não tem nada de especial, o “Ser-apetrecho desse
apetrecho repousa na sua serventia”, no entanto, na pintura de Van Gogh, o ente sapato perde
seu caráter instrumental possibilitando assim, o desocultamento do seu Ser, pois através de
sua representação podemos perceber que:
Na escura abertura do interior gasto dos sapatos, fita-nos a dificuldade e o cansaço
dos passos do trabalhador. Na grávida gravidade rude e sólida dos sapatos está retida
a tenacidade do lento caminhar pelos sulcos que se estendem até longe, sempre
iguais, pelo campo, sobre o qual sopra um vento agreste. No couro, está a umidade e
fertilidade do solo. Sob as solas, insinua-se a solidão do caminho do campo, pela
noite que cai. [...] por esse apetrecho passa o calado temor pela segurança do pão, a
silenciosa alegria de vencer uma vez mais a miséria, a angústia do nascimento
iminente e o temor ante a ameaça da morte. (HEIDEGGER, 2007b, p.25)”
Nas palavras de Heidegger (2007b), percebemos o que significa o desocultamento do
“Ser” do ente, ou seja, é através da obra de arte que tomamos maior consciência daquilo que
ela apresenta. A arte nos faz parar por um momento e refletirmos sobre as coisas, os
sentimentos, os fatos, as idéias nelas representadas. Sabemos que não estamos diante do real,
mas é nela que percebemos melhor esse desocultamento do real de que fala Heidegger.
Da mesma forma, podemos falar que na poesia acontece esse desocultamento, pois a
poesia não é beleza, nem criação, nem imitação, mas revelação do ser, desocultamento
original, ou seja, forma do ser se revelar, no sentido de que na obra de arte acontece a
revelação ou a verdade de algo, a verdade
1
do ser. Ela é “a fundamentação do Ser em e pela
palavra” (2007b, p.37) e por isso mesmo, o mais perigoso de todos os bens que o homem
possui, pois enquanto fundamentação do Ser, ela arrisca o Ser.
Através da poesia, das imagens simbólicas presentes em suas metáforas, sentimos que
o indizível tornou-se possível, sentimos prazer e ao mesmo tempo somos chamados a refletir
sobre a realidade, percebendo que nela não se realiza a simples imitação, mas uma revelação
de algo que a simples linguagem cotidiana é incapaz de transmitir. “A poesia é uma paixão e
1
O termo “verdade” é aqui entendido de acordo Heidegger (2007a) enquanto abertura e evento do Ser.
Entendendo que o âmbito essencial da verdade não é o juízo, mas abertura que funciona como um a priori
ontológico de toda afirmação em torno da verdade.
22
um prazer” afirma Borges (2000). Concordamos com o autor quando ele afirma que a idéia
de poesia enquanto “expressão” de algo é cair no velho problema de “forma e conteúdo”. Ler
Homero não é ler poesia, pois o livro é apenas ocasião para a poesia, passar à poesia é passar
à vida, pois a vida é feita de poesia e esta pode saltar sobre nós a qualquer instante.
O livro, para Borges (2000, p.11) é apenas “um objeto físico num mundo de objetos
físicos. [...] as palavras são meros símbolos”, a poesia então é o que está por trás das palavras,
e as fazem saltar para a vida, ressuscitando-a. Segundo Borges (2000), nós sabemos tão bem o
que é a poesia que não conseguimos defini-la, tal como não podemos definir o gosto do café,
a cor vermelha, etc., assim, como diz Santo Agostinho a respeito do tempo, ou seja, que se o
não o perguntam o que é, ele sabe, mas se o perguntam, ele não sabe, da mesma maneira
Borges (2000) afirma que acontece com ele em relação à poesia. Ele contesta as palavras de
Stevenson, o qual afirma que as palavras são destinadas ao comércio habitual do dia-a-dia e o
poeta de algum modo as converte em algo mágico, pois acredita que o que o poeta faz é levar
a linguagem de volta às fontes, uma vez que as palavras começam como mágica, ou seja, as
palavras não começam abstratas, mas concretas, poéticas, citando como exemplo palavras
como “threat [ameaça] que inicialmente significava “a threatening crowd”, [uma multidão
ameaçadora].
Outra palavra que Borges (2000) usa para exemplificar o início poético da palavra é
“thunder” [trovão], fazendo um paralelo com o deus Thunor e o equivalente saxão Thor
nórdico. Sobre essa palavra, o autor nos diz que ela exprimia o trovão e o deus e que, quando
as pessoas proferiam ou escutavam a palavra “thunder”, ao mesmo tempo ouviam o grave
estrondo no céu e viam o raio e pensavam no deus. Conforme Borges (2000, p.85) “as
palavras eram envoltas em mágicas; não tinham um significado estanque”. Olhando em
retrospecto ele percebe que embora essas palavras hoje sejam abstratas, elas tiveram um
forte significado perdido com o uso corriqueiro, mas reconduzido à mágica inicial pela poesia.
Nesse sentido, todas as palavras eram originalmente metáforas, embora, segundo o autor, a
fim de entender a maioria das palavras, é preciso esquecer o fato de serem metáforas.
Fizemos até aqui algumas considerações sobre a concepção de poesia de acordo com
Platão (2006), Aristóteles (2007), Costa Lima (1966), Heidegger (2007b) e Borges (2000). No
entanto, é possível encontrar na obra poética de Augusto dos Anjos e Florbela Espanca uma
visão do fazer poético que nos possibilita tecer algumas considerações sobre a missão do
poeta na sociedade. É nesse sentido que nos voltamos para a leitura dos poemas “Ser poeta”
de Florbela Espanca e “Vencedor” de Augusto dos Anjos:
23
SER POETA
01 Ser poeta é ser mais alto, é ser maior
02 Do que os homens! Morder como quem beija!
03 É ser mendigo e dar como quem seja
04 Rei do Reino de Aquém e de Além Dor!
05 É ter de mil desejos o esplendor
06 E não saber sequer que se deseja!
07 É ter cá dentro um astro que flameja,
08 É ter garras e asas de condor!
09 É ter fome, é ter sede de Infinito!
10 Por elmo, as manhãs de oiro e de cetim...
11 É condensar o mundo num só grito!
12 E é amar-te, assim, perdidamente...
13 É seres alma e sangue em mim
14 E dize-lo cantando a toda gente!
O soneto de Florbela Espanca, pertencente à obra póstuma Charneca em Flor (1931),
nos dá uma visão grandiosa do que é ser poeta. Essa visão já é percebida nos primeiros versos
do poema, quando a poeta afirmar que “ser poeta é ser maior/Que os homens”. A idéia de
poeta acima do homens era destacada na figura do poeta arcaico designado Vates, aquele que
era possesso, inspirado por Deus. Segundo Huizinga (2007, p.135), essas qualificações
implicam que o poeta tinha um conhecimento extraordinário:
Ele é um sábio, sha’ir, como lhe chamavam os árabes. Na mitologia dos Eddas o
hidromel que é preciso beber para se transformar em poeta é preparado com o
sangue de Kvasir, a mais sábia de todas as criaturas, que nunca foi interrogada em
vão.
De acordo com a citação, podemos perceber que o poeta arcaico é considerado um ser
especial, ou como diz o poema florbeliano, um ser acima dos outros homens. O poeta era
considerado um ser divino, inspirado, sábio, e por isso mesmo, visto pela comunidade de
maneira diferenciada dos outros homens. Ele é ainda o poeta-vidente, conforme afirma
Huizinga (2007) que vai assumindo as figuras do profeta, do sacerdote, do adivinho e dele
brotam as figuras do filósofo, do legislador, do orador, do sofista e do mestre de retórica.
A figura do vates aparece no Thulr da literatura nórdica, na qual ele algumas vezes é
orador de fórmulas litúrgicas, noutras, é ator de dramas sagrados ou ainda sacerdote de
sacrifícios e feiticeiro. O Thulr, de acordo com Huizinga (2007, p.135), “é o repositório de
24
todo o conhecimento mitológico e folclore poético. Ele é o velho sábio que conhece toda a
história e tradição de um povo, que nas festas desempenha o papel de orador e é capaz de
recitar de cor a genealogia dos heróis e nobres”.
A figura do vates destacada por Huizinga (2007) nos leva a entender a visão
heideggeriana no que se refere à missão do poeta. Para Heidegger (apud GILES, 1975, p.282),
o dizer do poeta é a fundamentação da existência humana, no sentido de que “fundar é abrir o
ser, fazer aparecer o mundo, dizer a essência das coisas, nomear Deus, elementos em que se
desenvolve a existência humana”.
A missão do poeta para Heidegger (apud GILES, 1975, p.283) é então falar de Deus
sob a forma do sagrado que, para ele, é o tema da poesia autêntica. Sendo assim, o poeta é
aquele que capta os sinais e os transmite ao povo, aquele que está entre os deuses e o povo, o
que diz aos mortais as verdades essenciais. Ele é sábio, mas não enquanto detentor de
qualquer conhecimento, e sim de um conhecimento que é divino, por isso, maior que os
outros homens.
No entanto, como afirma o poema (verso 02), o poeta “morde como quem beija”.
Atentando para o uso dos vocábulos morder e beijar, percebemos que eles se opõem no
sentido de que o primeiro tem uma conotação negativa, enquanto o segundo, uma positiva. O
que eles têm em comum é o fato de que o órgão corporal de ambos é a boca. A boca morde e
beija.
Analisando o verbo morder, verificamos que ele significa tanto ferir com os dentes,
associado à idéia de mutilação, que, mordendo, arrancamos pedaços do que foi mordido,
quanto afligir, ou seja, causar aflição ou angústia. Considerando o verso, pensamos a mordida
poética enquanto desocultamento das verdades essenciais. No “dizer as verdades essências”, a
sabedoria proferida pelo poeta pode muitas vezes ir contra ao que gostaria de ouvir os
mortais, pois a verdade nem sempre é bem acolhida. A verdade pode muitas vezes machucar,
afligir, causar angústia naquele que a escuta. No entanto, na poesia, a revelação dessa verdade
é feita de maneira especial, numa linguagem “mágica” como afirma Borges (2000) que,
diferente da linguagem cotidiana a que estão acostumados os demais mortais, se apresenta de
forma agradável tal como o beijo.
É importante perceber que o beijo, segundo Chevalier e Gheerbrant (2007, p.127)
simboliza a união, a unidade, assumindo desde a Antiguidade uma significação espiritual de
união entre o humano e o divino: “o homem encontra-se, de certa maneira, no meio do beijo
25
entre o Pai e o Filho, beijo que é o Espírito Santo. Assim, pelo beijo, o homem está unido a
Deus e, assim também deificado”. Ao morder poético, entendido enquanto revelação da
verdade, une-se o significado amoroso representado pelo beijo. Temos assim uma idéia
próxima da enfatizada no cristianismo de que o pai exorta o filho que ama. Verdade e amor
caminham juntos.
O poeta é ainda representado no poema como um mendigo que dá como se fosse um
Rei. Figuras também antagônicas, o mendigo representa a abstenção total de bens matérias. É
aquele que pede, que depende da benevolência dos demais para sobreviver, é o que está à
margem da sociedade. O poeta é comparado ao mendigo, no entanto, diferente desse, no verso
Florbeliano, o poeta/mendigo é aquele que dá como se fosse um rei. Interessante perceber que
a figura do rei também está rodeada pela noção de mediador entre o divino e o humano.
Conforme Afirma Chevalier e Gheerbrant (2007, p.774-75), na significação chinesa o rei é o
“detentor do mandato celeste [...] seu papel de controle estende-se do domínio cósmico ao
domínio social”. Os autores destacam que no Islã, o nome Rei (al-Malik) é considerado um
nome divino que corresponde essencialmente à função do julgamento divino. No Egito,
também temos a idéia de relação entre o rei e a divindade representada pela figura do Faraó,
considerado segundo os autores supracitados como sendo “da mesma natureza do Sol e da
divindade” (2007, p.775).
No Antigo Testamento bíblico, observamos também a associação do rei ao divino.
Saul, primeiro rei de Israel é tido por escolhido de Deus, da mesma forma que o é seu
sucessor Davi, bem como o filho deste, Salomão, o mais sábio de todos os homens, segundo
as escrituras. São atributos do rei a essência divina e a detenção da sabedoria, tal qual o
arcaico Vates, ele é a figura que está acima dos demais mortais. O poeta, segundo o verso,
sendo mendigo, isto é, aparentemente não possuindo nada a oferecer, ao invés de pedir, é
aquele que oferece. Oferece o quê? Considerando a figura do rei, seu caráter divino e sua
sabedoria, vemos a sugestão de que o poeta é aquele que aos demais aquilo que possui
mais valor que bens materiais: a sabedoria divina, sua linguagem revela aos homens como
disse Heidegger (2007 b), as verdades realmente essenciais.
Ser poeta é ainda ter o esplendor de mil desejos (verso 05). No falar do eu-lírico,
encontramos não apenas a sua voz, mas a de toda a humanidade. Como afirma Adorno (2006,
p.67) “só entende aquilo que o poema diz quem escuta, em sua solidão, a voz da
humanidade”. No poema não estão representados unicamente os desejos, os conflitos, as
verdades, ou emoções do poeta. No fazer poético ele deixa falar “mil vozes”, sua voz é a voz
26
de sua comunidade, de sua nação, é a voz da humanidade. Como afirma o poema (verso 07), o
poeta tem dentro de si um astro que flameja, termo que exprime, mais uma vez, a associação
do poeta ao ser divino.
Os astros, de acordo com Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 95) “participam das
qualidades de transcendência e de luz que caracteriza o céu, com um matiz de regularidade
inflexível, comandada por uma razão natural e misteriosa ao mesmo tempo”. Eles são ainda
símbolos do comportamento perfeito e de uma inacessível e distante beleza. Os astros eram
divinizados na Antiguidade sendo concebidos como dirigidos por anjos.
O poeta se apresenta assim como participante dessa natureza divina ligada à idéia dos
astros, que é reafirmada ainda na associação à figura do condor (verso 08), grande ave diurna
que voa alto e que, segundo os autores Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 270), simboliza, em
todas as mitologias da cordilheira dos Andes, “o avatar do Sol”, ou seja, a transfiguração, a
metamorfose do astro solar. Importante perceber que esse astro não representa apenas a
manifestação do divino, mas muitas vezes, é considerado o próprio Deus. Ele é a fonte da luz
do calor, da vida, seu brilho manifesta as coisas, torna-as perceptíveis. O sol, afirmam os
referidos autores (2007, p.841), “nos mostra a verdade de nós mesmos e do mundo [...] é a luz
do conhecimento e a fonte de energia”. Sendo assim, o verso sugere que o poeta é aquele que
está entre a terra e o céu, pois com suas garras de condor, toma em suas mãos as coisas
terrenas, mas com suas asas, as eleva às alturas.
A imagem do condor está ainda associada à idéia de solidão e aqui podemos fazer uma
relação com o fazer poético que, afinal, é atividade solitária. É possível fazer também uma
ponte entre as garras do condor e a própria linguagem poética que, como afirma Ricouer
(1999), com sua força e beleza, revela, através de suas metáforas, as experiências humanas
dificilmente dizíveis em linguagem cotidiana. Ela diz o indizível e, como o sol, revela a
verdade. O poeta, diz o soneto, é aquele que tem sede e fome de infinito (verso 09), ora,
através de sua imaginação, em sua poesia, o poeta ultrapassa os limites de seu mundo, da
realidade finita. Sua arte é atemporal e também o torna eterno. Podemos destacar a título de
exemplo, a figura do poeta Homero. Muito pouco sabemos sobre ele e o pouco que sabemos é
incerto, no entanto, através de suas obras, tanto o poeta, quanto a história da Guerra de Tróia
tornaram-se imortais.
O poeta é apresentado ainda como sendo aquele que tem por elmo (capacete) as
manhãs de ouro e de cetim. O capacete é, segundo Chevalier e Gheerbrant (2007), o símbolo
da proteção e do poderio. A proteção está relacionada ao fato de que ele torna invisível e o
27
poderio pelo aspecto, como se observa na descrição feita por Homero (2003, p.42) do elmo de
Agamenon: “Cobriu em seguida sua fronte com um capacete de duas cimeiras, quatro copos,
ornado com crinas de cavalo, que ao oscilarem no ar, causava pavor”.
2
Sabendo que o
capacete era usado pelos guerreiros nas batalhas em tempos passados, vemos que o poema
sugere a figura do poeta enquanto um guerreiro, aquele que vive em constante batalha.
No entanto, o capacete do poeta, segundo Florbela, é a manhã de ouro e de cetim.
Símbolo da pureza, a manhã, conforme afirmam Chevalier e Gheerbrant (2007, p. 270),
representa ainda “a confiança em si, nos outros e na existência”. A idéia de pureza é ainda
reforçada no mesmo verso, pelo uso dos vocábulos “oiro” e “cetim”, ambos representam a
luz, sendo que o cetim, além de ser lustroso, representa também a maciez do algodão. É essa
manhã pura, clara e macia que serve de capacete ao poeta. Sua batalha é diferente daquela
travada pelos guerreiros de que fala Homero. É uma batalha com a imaginação e com as
próprias palavras.
A idéia de batalha com as palavras é sugerida ainda no verso 11, quando se afirma que
o poeta condensa o mundo num grito. Sabemos que o grito tem caráter paralisante, seja de
dor, de alegria, de protesto, ele paralisa seu ouvinte, chamando a atenção deste. No verso, é
sugerida a idéia de que, nele, o poeta condensa o mundo. Se pensarmos, de acordo com Pound
(1991), que a grande literatura é a linguagem carregada de sentido no seu mais alto grau e que
a poesia é a linguagem metafórica por excelência, podemos fazer aqui uma relação entre o
grito e a metáfora, pois é através da metáfora que os símbolos vêm à linguagem.
A respeito da relação entre a metáfora e os símbolos, Ricouer (1995, p.107) nos afirma
que a “metáfora é a superfície lingüística dos símbolos”, pois ela está no símbolo como sua
superfície e este está na metáfora como o seu referente extralingüístico. Na busca de traduzir a
vida, a linguagem percebe que esta é sempre mais, e que os símbolos, situando-se no limite
entre a linguagem e a vida, e busca trazer à linguagem algo de “poderoso, eficaz e forte”
(RICOUER, 1995, p. 110), retendo apenas a superfície, na qual ele se conecta com a
metáfora. O absoluto, então, se faz metáfora. Percebemos enfim que a obra poética traz à
linguagem formas de o ser humano experienciar o real que a linguagem comum geralmente
dissimula, ou que, de acordo com Ricouer (1995, p. 115), a “visão ordinária obscurece ou até
mesmo reprime”. Assim, no grito, na metáfora, o poeta consegue condensar o mundo, dizer o
indizível.
2
Tradução livre do trecho: “Cubrió em seguida su cabeza com um casco de doble cimera, quatro abolladuras y
penachos de crines de caballo, que al ondearen to alto causaba pavor”.
28
Na última estrofe, o poema possibilita ao leitor fazer uma leitura em que se manifesta
a relação íntima entre o poeta e a arte. Onde o verso diz é amar-te, lemos: é amar a arte. Ser
poeta é, segundo nossa leitura, amar a arte, de forma que ela é mesmo a alma e o sangue, ou
seja, a vida do poeta.
Vimos no poema de Espanca, a figura do poeta enquanto ser superior aos demais
humanos. No soneto, o poeta é constantemente considerado como sendo o sábio, o divino, e
ainda, o guerreiro. A relação entre o poeta e o guerreiro, pode ser melhor visualizada no
poema de Augusto dos Anjos:
VENCEDOR
01 Toma as espadas rútilas, guerreiro,
02 E à rutilância das espadas, toma
03 A adaga de aço, o gládio de aço, e doma
04 Meu coração – estranho carniceiro!
05 Não podes? Chama então presto o primeiro
06 E o mais possante gladiador de Roma.
07 E qual mais pronto, e qual mais presto assoma,
08 Nenhum pôde domar o prisioneiro.
09 Meu coração triunfava nas arenas.
10 Veio depois um domador de hienas
11 E outros mais, e, por fim, veio um atleta,
12 Vieram todos, por fim; ao todo, uns cem...
13 E não pôde doma-lo enfim ninguém,
14 Que ninguém doma um coração de poeta!
A leitura do soneto nos permite afirmar que nele é apresentado o acontecer de um
duelo. Na primeira estrofe, o eu-lírico desafia o guerreiro a domar seu coração e, para tanto, o
instiga a tomar as espadas rútilas, a adaga e o gládio, ambos de aço, todas elas armas bélicas
de alto poder destrutivo.
A espada, arma braça longa, é o símbolo guerreiro, que segundo Chevalier e
Gheerbrant (2007, p.392), possui dois aspectos: o destruidor, que pode ser positivo quando
aplicado contra as injustiças, e o construtor, pois ela “estabelece e mantém a paz e a justiça”.
Ela simboliza ainda, por sua lâmina brilhante, a luz, o relâmpago e o fogo. No livro de
Gênesis do Antigo testamento bíblico, é narrado que, após Deus ter expulsado Adão e Eva do
paraíso, “pôs querubins ao oriente do jardim do Éden e uma espada inflamada que andava ao
redor, para guardar o caminho da árvore da vida” (Gn 3:24).
Percebemos assim o alto poder destrutivo da espada, ao ser a arma escolhida para
guardar o paraíso. Na estrofe, a idéia de duelo é reafirmada através do uso do vocábulo
espada, gládio e adaga. Sabemos que a espada era a primeira e principal arma utilizada pelos
29
guerreiros nos duelos. Ela era segurada geralmente na mão direita enquanto a adaga, espécie
de punhal, o era pela mão esquerda e tinha como função cortar a espada do adversário. o
gládio, espécie de espada curta, era utilizado pelo guerreiro, quando sua espada havia sido
cortada pelo adversário ou perdida durante o duelo. O uso seqüencial dos vocábulos no poema
a idéia de movimento do combate: o adversário usou a espada, a adaga e, sendo infeliz no
uso, necessitou tomar o gládio no duelo contra o eu-lírico. No entanto, o uso dessas
poderosas armas não foi suficiente para domar o coração do eu-lírico, como sugere o primeiro
verso da segunda estrofe, no qual o eu-lírico tendo-o derrotado, pergunta: “Não podes?”.
O eu-lírico sugere então que o guerreiro, derrotado, chame outro combatente: o
primeiro e o mais possante gladiador de Roma. Percebemos mais uma vez a ousadia do eu-
lírico ao sugerir afrontar tal adversário: os gladiadores romanos eram geralmente escravos
treinados, que lutavam entre si para “alegrar” a platéia do Coliseu. Da vitória no duelo
dependia muitas vezes sua liberdade e por isso, o gladiador lutava como gigante, objetivando,
ao vencer seu adversário, obter fama e sair da difícil vida de escravo. O eu-lírico enfrenta uma
sucessão de duelos, como sugere o verso 07 da segunda estrofe e, mais uma vez, sai vitorioso,
pois nenhum dos gladiadores o pode domar e seu coração triunfava nas arenas.
De acordo com o verso nove, o combatente que sucede aos gladiadores é “um
domador de hienas”. Caçador diurno, encontrado em toda a África e na Ásia meridional,
desde o Mediterrâneo até a baía de Bengala, a hiena sempre teve uma terrível reputação.
Segundo Chevalier e Gheerbrant (2007, p.492) a hiena “se caracteriza antes de mais nada,
pela voracidade, pelo cheiro, pelas faculdades de adivinhação que lhe são atribuídas e pela
força das suas mandíbulas, capazes de moer os ossos mais duros”. Por todas essas
características, a hiena é um animal assustador. Os antigos pensavam que a sua gargalhada
durante a noite era a risada de um homem colocando armadilhas fatais aos viajantes.
Acreditavam que se a sombra de uma hiena caísse sobre a de um cão, este ficaria mudo e
paralisado. Diziam ainda que a hiena era a encarnação de espíritos de feiticeiros.
Nesse sentido, o poema sugere mais uma vez o poderio do adversário que o eu-lírico
está a enfrentar, afinal, não é qualquer homem que conseguiria domar uma hiena, além de
destemido, ele precisa de habilidades especiais para lidar com esse animal. No entanto, nem o
domador foi suficiente para domar o coração do eu-lírico. Depois dele vieram outros, como
sugere o verso 11, mas da mesma forma que o primeiro, não alcançaram vitória. Ainda nesse
verso é apresentado o último adversário do eu-lírico: um atleta. A figura do atleta representa o
ideal de perfeição humana mais especificamente da figura masculina, se pensarmos que, na
30
Grécia antiga, as mulheres eram excluídas das práticas esportivas olímpicas. O mundo grego,
de onde se origina a figura do atleta, é o primeiro a iniciar o culto ao corpo.
Na Grécia antiga, se buscava a harmonia entre a mente e o corpo, sendo o corpo
saudável, belo e forte tão valorizado quanto uma mente brilhante. A importância da força
física era destacada ainda pelo próprio lema do atletismo grego: "mais rápido, mais alto e
mais forte" ("citius, altius e fortius"). Assim como os gladiadores, os atletas gregos tinham
muitas razões para se esforçarem, objetivando a vitória nas olimpíadas, pois os vencedores
recebiam uma palma ou coroa de oliveira, além de outras recompensas de sua cidade, para a
qual a vitória representava grande glória. De volta à terra natal, eram triunfalmente acolhidos,
podendo, inclusive, receber alimentação gratuita pelo resto de suas vidas. A homenagem
podia consistir até na ereção de uma estátua do vencedor, além de poemas que poderiam ser
escritos por Píndaro, poeta rico que produziu diversas obras, destacando-se hinos em louvor
às vitórias de atletas gregos. Como podemos perceber, o atleta é, assim como os anteriores,
um difícil adversário para o eu-lírico, considerando seu vigor físico, mas assim como os
demais, o atleta não pôde domar o doração do eu-lírico.
Segundo o eu-lírico, vieram ao todo cem adversários e nenhum conseguiu domar seu
coração (versos 10 e 11). Interessante observar a simbologia do número 100. Segundo
Chevalier e Gheerbrant (2007, p.218-219) :
Esse número individualiza a parte de um todo que, por sua vez, é apenas parte de um
conjunto maior. [...] O cem é uma parte que forma um todo dentro do todo, um
microcosmo destro do macrocosmo, que distingue e individualiza uma pessoa, um
grupo, uma realidade qualquer dentro de um conjunto. E essa entidade assim
individualizada possuirá suas propriedades distintivas, que se tornarão de uma
eficácia particular dentro de um conjunto mais vasto” (negrito dos autores)
Considerando a simbologia do número 100, percebemos que ele não representa, no
poema, um número objetivo de quantidade real de adversários, mas apenas uma parte de um
todo maior. É possível afirmar que o eu-lírico trava uma batalha mais vasta, de que o número
seria apenas uma idéia aproximada. Podemos afirmar que o eu-lírico venceu todos seus
opositores, pois, como afirma nos versos 11 e 12, ninguém conseguiu domar seu coração,
“porque ninguém doma um coração de poeta”. É apenas no último verso que sabemos quem é
o eu-lírico: um poeta ou um homem que tem um coração de poeta.
A manifestação da natureza do eu-lírico um novo significado ao poema. É
necessário voltar ao início do soneto e fazer uma leitura que abarque essa nova informação.
31
Considerando o eu-lírico enquanto poeta, o soneto sugere uma batalha que é a da própria
poesia ao longo do tempo.
É necessário voltar à simbologia da espada e perceber que além dos aspectos de
destruição e construção, ela representa ainda a palavra. Segundo Chevalier e Gheerbrant
(2007, p.392):
Ela é um símbolo do Verbo, da palavra. [...] o Apocalipse descreve uma espada de
dois gumes a sair da boca do Verbo. Esses dois gumes relacionam-se com o duplo
poder [...] designa a palavra e a eloqüência, pois a língua, assim como a espada, tem
dois gumes.
A associação da espada à palavra é muitas vezes destacada no Novo testamento
bíblico. Na carta de Paulo aos efésios, este incentiva os fieis a tomar, na luta contra as astutas
ciladas do diabo, “a espada do Espírito, que é a palavra de Deus” (Ef. 6:17). Já no livro escrito
aos Hebreus, de autoria desconhecida, temos mais uma vez a relação entre a espada e a
palavra de Deus: “a palavra de Deus é viva e eficaz, e mais penetrante do que qualquer espada
de dois gumes, e penetra até à divisão da alma, e do espírito, e das juntas e medulas, e é apta
para discernir os pensamentos e intenções do coração”. (Hb. 4:12).
Ora representada pelo símbolo da espada, como nos trechos de Apocalipse e Efésios,
ora comparada à sua eficácia, como no livro de Hebreus, a palavra divina é muitas vezes
relacionadas à espada nos escritos bíblicos. Entendendo a batalha do poeta como uma batalha
com a palavra, ou como a batalha da poesia ao longo do tempo, e considerando as figuras do
guerreiro, do gladiador e do atleta, podemos interpretar o poema da seguinte maneira: a
mudança de adversário representaria a sucessão do tempo; a figura do guerreiro, relacionada
aos tempos mais remotos; a do gladiador, representaria um tempo não tão antigo quanto o
primeiro, uma vez que a figura do gladiador surge em Roma aproximadamente dois séculos
antes de Cristo e a figura do atleta representaria o presente, uma vez que, embora tendo
surgido na antiga Grécia, a figura do atleta é a única, dentre as três, que permaneceu até os
dias atuais, pois o guerreiro de espada em punho, descrito pelo soneto e o gladiador tal qual
conheceu Roma não sobreviveram ao passar do tempo.
Interpretando desse modo, podemos afirmar que o poema faz alusão à existência e luta
da poesia para permanecer ao longo do tempo. Um coração de poeta, ou seja, um sentimento
de amor, delicado e aparentemente frágil de trabalho com a linguagem no sentido de trazer a
ela, os sentimentos indizíveis, numa constante batalha contra a coisificação do mundo, sempre
32
existiu e resistiu a seguidas lutas, conseguindo permanecer, mesmo em meio às maiores
tormentas, podendo o poeta declarar-se, enfim, um vencedor.
Como sugerem os poemas, a missão do poeta está relacionada ao divino (o vates), à
sabedoria (poeta/profeta) e à luta (o guerreiro). Ele é o que anuncia as verdades essenciais,
destacando-se dos demais, por ser o mediador entre Deus e os homens. No entanto, qual seria
a missão do poeta na sociedade moderna? Na era dos grandes avanços tecnológicos, do culto
à máquina, da competitividade e valorização do lucro na sociedade capitalista, ainda há
espaço para a poesia? Sobre essas e outras questões nos debruçamos no tópico seguinte.
1.3 POESIA NA SOCIEDADE MODERNA
Com o nascimento da sociedade moderna, a situação social do poeta sofreu um grave
abalo. Segundo Paz (1976), para a burguesia capitalista, a poesia não passa de mera distração
e a inspiração e imagens poéticas são classificadas como produtos de enfermidades mentais.
A sociedade moderna tenderá a rotular e expulsar aquilo que não pode assimilar e essa
realidade será percebida em relação à poesia. Para Paz (1976, p.76) “a poesia nem ilumina
nem diverte o burguês. Por isso desterra o poeta e transforma-o em um parasita ou um
vagabundo”. O poeta passa então, pela primeira vez na história, a não conseguir viver de seu
trabalho, uma vez que esse é considerado sem valor. A afirmação “poesia não vale nada”
traduz-se precisamente por “a poesia não ganha nada” e como seu labor não tem valor para a
burguesia, pois o valor poético não podia ser convertido em dinheiro como a pintura, os cofres
burgueses são então fechados ao poeta e ele é obrigado a buscar outra ocupação, ou morrer de
fome.
Destituído de sua função de profeta, de sábio ou feiticeiro, atribuídas ao poeta arcaico,
o poeta moderno tenta fundar a palavra poética no próprio homem. Não vendo em suas
imagens a revelação de um poder estranho, a escritura poética passa a ser concebida como a
revelação de si mesmo que o homem faz de si próprio. Nesse sentido, a poesia moderna torna-
se também a teoria da poesia e o poeta desdobra-se em crítico. A missão do poeta moderno
consiste, então, “em ser a voz do movimento que diz “Não” a Deus e a seus hierarcas e “Sim”
aos homens. As escrituras do mundo novo serão as palavras do poeta revelando um homem
livre de deuses e senhores, sem intermediários diante da vida e da morte” (Paz, 1976, p. 79).
Nasce então uma íntima relação entre poesia e revolução: culto à liberdade do homem frente
às coerções religiosas e burguesas da sociedade moderna.
33
A missão do poeta passa a ser então a de estabelecer a palavra original, entendida
como sendo anterior às Bíblias e Evangelhos, palavra do homem original, que é o homem
puro, inocente. O poeta moderno propaga que a verdade não procede da razão, mas da
percepção poética, da imaginação, uma vez que nossa essência última seria o desejo de
infinito, sendo o homem imaginação e desejo. Ele profetiza a sociedade poética, na qual o
homem é livre dos dogmas da religião e se relaciona numa comunhão poética em que a
relação senhor e servo, patrão e escravo não mais subsiste.
Essa ruptura entre poesia e religião terá suas conseqüências: “também as Igrejas, como
a burguesia, expulsam os poetas”, afirma Paz (1976, p.84). O poeta moderno está condenado a
viver no subsolo da história, ele não tem lugar na sociedade, é considerado como aquele que
não trabalha nem produz e a solidão o define. A solidão é na verdade, segundo Paz (1976), a
nota dominante da poesia atual.
No entanto, mesmo em sua solidão, a voz do poeta moderno continua a anunciar um
sonho de um mundo mais humano, tal qual o poeta descrito por Elcanaã Ferraz, de que nos
fala Santiago (2006), o qual em sua mesa de trabalho corrige os “erros” da natureza e os
transforma em beleza, extraindo, da negatividade do desencanto, o encanto. Na pena do poeta,
da megalópole feia e poluída, ele extrai beleza. O poema na sociedade moderna é, como diz
Santiago (2006), a esperança, um fio de luz, a flor que nasce no asfalto, para usar uma
metáfora de Drummond. A poesia constitui-se assim, segundo Adorno (2003, p.69), como
“uma forma de reação à coisificação do mundo”. Além da função social de dar prazer, na
poesia, como afirma Eliot (s/d, p.58):
[...] existe sempre a comunicação de uma experiência nova qualquer, ou qualquer
nova apreensão do que é familiar, ou ainda a expressão do algo que
experimentamos, mas para que nos faltam as palavras, que alarga a nossa
consciência ou apura nossa sensibilidade.
As palavras de Eliot (s/d) nos reporta à afirmação de Heidegger (2007b), quando este
afirma que a arte é o acontecer, a revelação de uma verdade para a qual não tínhamos uma
expressão adequada. Diante da poesia, ficamos paralisados pela força do “grito” metafórico
que condensa o mundo, como vimos no poema de Florbela.
A poesia é a arte nacional por excelência. Isso porque, como afirma Eliot (s/d), as
pessoas encontram a expressão mais consciente dos seus sentimentos mais profundos na
poesia de sua língua, mais do que em qualquer outra parte, ou do que na poesia de outras
línguas. É nesse sentido, que Eliot (s/d) afirma que o dever do poeta é, em primeiro lugar,
34
com sua língua, numa busca de conservá-la e, seguidamente, alargá-la e melhorá-la. O
verdadeiro poeta, ao descobrir novas variantes da sensibilidade e exprimi-las, contribui para o
desenvolvimento e enriquecimento de sua própria língua. Elas podem restaurar a beleza de
uma língua e pode auxiliar no seu desenvolvimento. Nesse sentido, é necessária que uma
nação possua sempre uma literatura viva, pois caso contrário, a sua literatura passada se
tornará cada vez mais distante de seu povo, pois como afirma Eliot (s/d, p.62) “se não
continuarem a surgir do seu meio grandes autores e principalmente grandes poetas, a língua
decairá e poderá vir a ser absolvida por uma cultura mais vigorosa”.
Como vimos, podemos destacar duas funções da poesia na sociedade moderna: o fato
de nos dar prazer e a capacidade de tornar bela e auxiliar no desenvolvimento da língua de
uma nação, ou, nas palavras de Eliot (s/d, p. 65), “a função social da poesia em sentido amplo
é o facto dela afectar, proporcionalmente à sua excelência e vigor, o falar e a sensibilidade de
toda a nação”.
Uma terceira função que visamos destacar em nosso trabalho é a da poesia enquanto
meio de conhecimento do homem e do universo. Através da apresentação seja dos fatos, dos
sentimentos ou dos conflitos humanos, a poesia permite ao homem uma melhor apreensão e
reflexão de sua realidade e de sua existência, ou seja, do Ser, como em Heidegger (apud
GILES 1975), para o qual o homem moderno, apesar de cercado de conhecimentos como em
nenhuma outra época, nunca soube tão pouco a respeito de si próprio. Nesse sentido, a poesia
aparece como a revelação do Ser.
1.4 POESIA E FILOSOFIA
Desde o nascimento, a filosofia nunca foi indiferente à poesia. Podemos verificar que,
inicialmente, suas relações são de desacordo. Basta recordarmos os diálogos platônicos, nos
quais observamos a discriminação da poesia pelo filósofo grego, o qual, como vimos no início
desse capítulo, afirmava ser a poesia uma mera imitação da realidade e, por isso, destituída de
valor na “República Ideal”. Na filosofia moderna, segundo Nunes (2007), prosperará o
interesse filosófico pela poesia concebida como um meio de conhecimento. No entanto, nosso
objetivo vai além da simples constatação do interesse da filosofia pela poesia, pois nosso
intuito é verificar as possíveis relações entre ambas e, nesse sentido, consideramos necessário
buscar em Heidegger a fundamentação teórica que nos permita elucidar suas relações,
iniciando com a problematização da filosofia.
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É necessário entender o que é a filosofia para Heidegger (2006, p.17):
A palavra “filosofia” fala agora pelo grego. A palavra grega é, enquanto palavra um
caminho. De um lado, esse caminho se estende diante de nós, pois ouvimos e
pronunciamos esta palavra desde os primórdios de nossa civilização. Desta maneira,
a palavra grega philosophia é um caminho sobre o qual estamos a caminho.
Conhecemos, porém, este caminho apenas confusamente, ainda que possuamos
muitos conhecimentos históricos sobre a filosofia grega e os possamos difundir.
A filosofia, de acordo com o autor, seria então um caminho para o qual estamos
sempre a caminho. Torna-se então necessário saber a que visa esse caminho: qual o objetivo
desse caminhar? Ou seja, o que busca o filósofo? Antes, porém, de responder esses
questionamentos, precisamos entender o que é o filósofo, cuja resposta encontramos na
definição etimológica do termo filosofia dada por Heidegger (2006, p.21-22):
A palavra grega philosophia remonta à palavra philósophos. Originalmente esta
palavra é um adjetivo como philárgyros, o que ama a prata, como philítimos, o que
ama a honra. A palavra philósophos foi presumivelmente criada por Heráclito. Isto
quer dizer que para Heráclito ainda não existia a philosophia. Um anér philósophos
não é um homem “filosófico”. O adjetivo grego philósophos significa algo
absolutamente diferente que os adjetivos filosófico, philosophique. Um anér
philósophos é aquele que, hòz philei sophón; que ama a sophón; philein significa
aqui no sentido de Heráclito: homologein, falar assim como o Logos fala, quer dizer,
corresponder ao Logos. Este corresponder está em acordo com o sophón. Acordo é
harmonia. O elemento específico de philein do amor, pensando Heráclito, é a
harmonia que se revela na recíproca integração de dois seres, nos laços que os unem
originalmente numa disponibilidade de um para o outro.
Considerando o trecho, entendemos que o filósofo é aquele que ama a sabedoria
(sophón), e que fala de acordo com a razão (Logos). Sabedoria (Logos) e razão (Logos) se
harmonizam através do amor (philein). Diferentemente da sabedoria sem amor, que
geralmente leva ao materialismo ou do amor sem a sabedoria, cujo fim levaria ao fanatismo,
ser filósofo significa, então, amar a sabedoria a tal ponto de viver em harmonia com seus
preceitos, diferindo igualmente do mero conhecimento da filosofia ou da história da filosofia.
Voltamos então ao nosso questionamento: o que busca a filosofia? E a resposta nos
será dada por Heidegger (2006, p.23): “a filosofia está a caminho do Ser do ente”. Ora o ente
é, na definição de Leão (1999, p.11), “tudo que de algum modo é: o homem, as coisas, os
acontecimentos”. Já o Ser é onde o ente é, sendo ele mesmo o ente, ele é o recolhimento do
ente. Para entender a diferença entre ente e Ser, tomemos um exemplo: de acordo com
Heidegger (2006) se perguntamos: que é aquilo lá longe? E obtemos a resposta: uma árvore, a
resposta consiste em darmos o nome a uma coisa que não conhecemos exatamente, estamos
36
dessa maneira nos referindo ao ente. No entanto, se questionamos: que é aquilo que
designamos árvore? Nossa reflexão se aprofunda e se relaciona àquela forma de questionar
desenvolvida por Sócrates, Platão e Aristóteles no sentido que eles perguntaram: que é o belo?
Que é o conhecimento? Que é o movimento? Tal questionamento visa ultrapassar o ente e
alcançar a essência, o Ser.
Da mesma maneira, quando nos perguntamos que é aquilo longe e nos respondem:
é um homem, a resposta nos remete ao ente, mas quando nos questionamos: que é o homem?
Buscamos ultrapassar o ente. Dessa forma, podemos afirmar que a filosofia nos ajuda a sair
do trivial, do ordinário, da aparência das coisas, nos ajudando a perceber que as coisas do
mundo podem não ser tão certas quanto se nos apresentam. É exatamente aqui que reside a
íntima relação entre filosofia e poesia: ambas buscam o Ser, ou seja, tanto na filosofia quanto
na poesia nos deparamos com um caminho que leva ao Ser, no sentido de que ambas nos
ajuda a sair do trivial, da aparência das coisas. A própria linguagem poética se constitui numa
linguagem que rompe com o trivial, com o cotidiano. É a linguagem na qual o indizível torna-
se possível.
A poesia como um caminho para o Ser é destacada por Heidegger (2007b), quando
afirma que a poesia não é beleza, nem criação, nem imitação, mas revelação do ser,
desocultamento original, ou seja, forma do ser se revelar, no sentido de que na obra de arte
acontece a revelação ou a verdade de algo, a verdade do Ser. Nesse caminho para o ser
residiria então a relação entre filosofia e poesia. Poesia e filosofia, apesar de serem atividades
diferentes, adquirem uma significação mais totalizadora, na visão de Heidegger, por serem
realizações que apontam para um núcleo único: da verdade e do Ser.
Outra relação reside na perspectiva da linguagem. Ora, de acordo com Heidegger
(2007a), é na linguagem que aparece e se manifesta a essência daquilo que nós somos, é ela
que torna o homem um Ser. O homem não possui, mas antes é possuído pela linguagem, pois
ela fala realmente, pois pela palavra o presente é trazido à presença como acontecimento.
Para o autor (2006, p.32-33), só aprendemos a conhecer e a saber, quando experimentamos de
que modo a filosofia é: “Ela é ao modo da correspondência que se harmoniza e põe de acordo
com a voz de ser do ente. Este corresponder é um falar. Está a serviço da linguagem”.
Ora, se apenas na linguagem se manifesta a essência do que somos, Poesia e Filosofia
partilham do mesmo caminho na busca do Ser: a linguagem. Ambas estão a serviço da
linguagem, conforme assinala Heidegger (2006, p.34): “Entre ambos, pensar e poeta, impera
37
um oculto parentesco porque ambos, a serviço da linguagem, intervém por ela e por ela se
sacrificam”.
No entanto, é necessário destacar igualmente as diferenças entre as duas e observar,
conforme assinala Heidegger (2006, p.34), que, entre o pensar do filósofo e o poetar do poeta,
se abre ao mesmo tempo um abismo, pois eles “moram nas montanhas mais separadas”.
O abismo entre as duas reside no modo como ambas apreendem o Ser: a Filosofia
chega ao Ser por investigação, a Poesia, por apresentação.
De acordo com Heidegger (1999, p.43), a filosofia é “a investigação extra-ordinária
do extra-ordinário”, ou seja, a filosofia é sempre uma meditação crítica, uma sistematização
racional dos problemas totais que apresenta a realidade, mas sempre um exame da razão. Ela
procura compreender a própria concepção do mundo e da vida, classificando-lhes os tipos e
descobrindo as leis de sua formação”, tal como afirma Moraes Filho (1997).
A poesia não pretende fazer uma investigação da realidade, ela não explica, nem
representa, ela apresenta. A poesia não se impõe sobre o mundo, não cria “teorias” a respeito
do mundo. Na poesia o ser não se define, ele se mostra. Muitas vezes não explicação clara
na poesia justamente porque ela mostra e, nesse mostrar das coisas, também é exibida a
obscuridade própria delas. Na poesia, as coisas não são reduzidas aos conceitos, elas não têm
de se encaixarem nas representações feitas pelo homem.
Para Paz (1976, p.50), a poesia “não alude à realidade; pretende – e às vezes consegue
– recriá-la. Portanto, a poesia é um penetrar, um estar ou ser na realidade”. Essa recriação da
realidade é possível porque quando o leitor penetra afetivamente naquilo que o poema revela,
produz uma recriação ou como diz Paz (1976, p. 50):
[...] ao falar-nos de sentimentos, experiências e pessoas, o poeta nos fala de outra
coisa: do que está fazendo, do que está sendo diante de nós. E mais ainda: leva-nos a
repetir, a recriar seu poema, a nomear aquilo que nomeia; e ao faze-lo, revela-nos o
que somos.
É possível então afirmar que na poesia ocorre a revelação da condição humana.
Revelação que não é um saber de algo ou sobre algo, pois esse tipo de saber está mais
próximo da filosofia, mas revelação no sentido de que, na poesia, nos é revelada/apresentada
uma verdade que é inerente à condição humana.
38
Considerando nosso objeto de pesquisa, ou seja, a melancolia, podemos verificar que
tanto na filosofia quanto na poesia percebemos a busca por ultrapassar a aparência do que nos
é dado, chegando á essência das coisas, ou seja, ao Ser de que fala Heidegger (2007a). No
entanto, enquanto na filosofia kierkegaardiana percebemos o conceito de melancolia como
“vertigem da consciência” através de uma meditação crítica, de uma investigação e
sistematização racional na busca por compreender, explicar e classificar as leis de sua
formação, na poesia, a melancolia não é conceituada, ela não se explica, ela se apresenta, se
revela. A melancolia se revela de diversas formas na poética de Augusto dos Anjos e Florbela
Espanca, como veremos mais detalhadamente no momento de nossa análise (capítulo IV):
a) na visão pessimista em relação a condição humana:
Sou um verme que um dia quis ser astro...
Uma estátua truncada de alabastro...
Uma chaga sangrenta do Senhor...
(Minha culpa, Florbela Espanca)
Eu, filho do carbono e do amoníaco,
Monstro de escuridão e rutilância,
Sofro, desde a epigênese da infância,
A influência má dos signos do zodíaco.
(Psicologia de um vencido, Augusto dos Anjos)
b) na consciência da fragilidade das relações humanas:
Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão!...
(Para quê?, Florbela espanca)
Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
O amor da humanidade é uma mentira.
É. È por isto que na minha lira
De amores fúteis poucas vezes falo.
(Idealismo, Augusto dos Anjos)
c) no desprezo em relação ao Ser:
Quem me dera voltar à inocência
Das coisas brutas, sãs, inanimadas,
Despir o vão orgulho, a incoerência:
– Mantos rotos de estátuas mutiladas!
(Não ser, Florbela Espanca)
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Em cismas patológicas insanas,
É-me grato adstringir-me, na hierarquia
Das formas vivas, à categoria
Das organizações liliputianas;
(Insânia de um simples, Augusto dos Anjos)
d) na representação da morte enquanto única esperança ao ser humano:
Dona Morte dos dedos de veludo,
fecha-me os olhos que já viram tudo!
Prende-me as asas que voaram tanto!
(À Morte, Florbela espanca)
Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
Minha singularíssima pessoa.
Que importa a mim que a bicharia roa
Todo o meu coração, depois da morte?!
(Budismo Moderno, Augusto dos Anjos)
Enquanto na filosofia temos o conceito de melancolia, como veremos no capítulo II
(tópico 2.2), na poesia, percebemos que ela se mostra, o que nos permite propor um diálogo
entre os dois saberes, diálogo esse, consciente das particularidades desses dois campos.
A revelação do Ser na poesia pode ser comparada à revelação do Ser do apetrecho
sapato percebida por Heidegger (2007b, p.35) ao contemplar o quadro de Van Gogh.
Observando o quadro ele afirma que:
Repentinamente deslocamo-nos para outra dimensão: a obra de arte nos revelou toda
a realidade do par de sapatos. Não se deve pensar que a pintura desses sapatos seja
uma simples descrição subjetiva, onde posteriormente surgiria seu ser instrumento, e
muito menos que ela seja uma representação intuitiva do próprio instrumento. Este
se torna presente, realiza seu aparecer através da obra e somente na obra.
É no quadro que a revelação do Ser do apetrecho sapato é possível, é como se ele
fosse um novo posto de observação, que permite aquele que o contempla apreender bem mais
que se contemplasse o próprio apetrecho. Também na poesia acorre o mesmo: através dela
observamos a linguagem, percebemos os símbolos transferidos para a linguagem em sua
sonoridade, contemplamos as palavras e, na constante busca por desvendar seus significados,
percebemos a revelação do Ser no poema.
O verdadeiro poeta e o verdadeiro filósofo, segundo Giles (1975, p.299), é o que
encontra a palavra que anuncie a verdade do Ser, sendo que “a angústia, abrindo para o
homem o abismo do nada, pode dar-lhe a ocasião de escutar esta palavra no silêncio profundo
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de si, pois o nada é o frasco do Ser”. Sobre a angústia do homem e a melancolia, falaremos no
capítulo que segue, no qual apresentaremos uma visão da melancolia através da história,
seguida da conceituação da angústia e do desespero na filosofia existencial Kierkegaardiana, e
por fim, trataremos da melancolia na perspectiva da psicanálise freudiana.
41
CAPÍTULO II
EXISTÊNCIA HUMANA E MELANCOLIA ATRAVÉS DO TEMPO
Muitas são as melancolias deste mundo. A de Saul não é a de
Hamlet, a de Lamartine não é a de Musset. Talvez as nossas,
leitor amigo, sejam diferentes uma da outra, e nesta variedade
se pode dizer que está a graça do sentimento. (Machado de
Assis)
A melancolia tem sido encarada como um estado afetivo de difícil definição e “desde a
Antiguidade até os dias atuais encontramos referências ao sofrimento humano expresso
através desse afeto, bem como a dificuldade em se definir esse estado de sentimento de
maneira satisfatória” (OLIVEIRA, 2004, p.93). A autora afirma que muitas são as linhas de
pensamento elaboradas na tentativa de comportar a resposta adequada que possa desmistificar
esse “mal estar” do devir humano. Nesse sentido, ela nos diz (2004, p.93) que a manifestação
da melancolia “tem sido objeto de estudo na medicina, motivo de reflexão para os filósofos,
inspiração para os poetas e escritores”.
Neste capítulo, faremos inicialmente um delineamento histórico da representação do
conceito de melancolia (tópico 2.1), em seguida, trataremos de entender os conceitos de
angústia e desespero na filosofia kierkegaardiana (tópico 2.2), uma vez que percebemos que
Kierkegaard tratou enfaticamente as questões subjetivas que afligem a humanidade, tais como
a angústia, a ansiedade e o desespero, atentando para a importância do reino subjetivo que,
para ele, era a maior preocupação do ser humano e, principalmente, porque, como afirma
Rollo May (2000), o desespero pode tornar-se depressão, ou ser tomado psicologicamente
como depressão, sendo necessário conhecer melhor o significado do termo, bem como o
termo angústia que, conforme Erickson (2003), é uma variedade da melancolia, o que também
nos orienta a buscar um maior conhecimento sobre esse termo. Nesse sentido, nos
debruçamos sobre as obras de Kierkegaard porque ele buscou redescobrir as fontes dinâmicas
reprimidas, inconscientes, ditas “irracionais” do comportamento do homem, e uni-las às
funções racionais do homem.
Devemos considerar ainda que o termo angústia e melancolia, muitas vezes são usados
com sentidos semelhantes. Citamos como exemplo, a comparação entre a colocação de
Machado de Assis, vista na epígrafe desse capítulo, na qual o autor discorre sobre a
42
diversidade do sentimento melancólico, citando como exemplos a melancolia de Saul e
Hamlet, entre outros, e a obra História universal da angústia (2005), do escritor W. J. Solha,
na qual percebemos que o autor também trata, em suas narrativas longas, dos inquietantes
sentimentos que afetam Saul e Hamlet, entre outros, mas usando para tanto o termo angústia,
o que atesta que os termos são usados, muitas vezes, com uma conotação semelhante, como se
fossem sinônimos, o que nos orienta a buscar uma compreensão que aponte as semelhanças e
diferenças entre os conceitos. Ainda nesse capítulo, trataremos da melancolia na perspectiva
da psicanálise freudiana (tópico 2.3).
2.1 A MELANCOLIA ATRAVÉS DOS TEMPOS
2.1.1 A Antiguidade
Para Scliar (2003), o primeiro caso de estado melancólico pode ser encontrado na
Bíblia, no Antigo Testamento, mais especificamente no livro I Samuel, escrito, segundo
Esteves (2006) no século IX a.C., na figura do primeiro rei de Israel, o rei Saul. Para Scliar
(2003, p.64) “melancólico é o adjetivo que mais comumente se aplica a ele (não porém no
texto bíblico: o termo surgiria séculos depois)”. A afirmação da presença de um estado
melancólico em Saul é enfatizada pelo autor ao considerar os episódios que marcaram a vida
do rei: Samuel, Juiz de Israel, contra a sua vontade, que preferia passar o cargo de juiz aos
seus filhos, proclama Saul rei de Israel, atendendo às exigências do povo israelita, que não
aceitava ser conduzido pelos filhos de Samuel por causa de seus maus comportamentos,
preferindo ser governados por um rei como as demais nações o eram.
Samuel, embora aborrecido com o pedido insistente do povo por ser governado por um
rei, alertando-o sobre as desvantagens que um governo real traria, lhes constituir um rei. Saul
então, é escolhido por Samuel, para ser o primeiro rei de Israel e seu longo reinado é marcado
por bem-sucedidas lutas contra os povos vizinho. No entanto, numa de suas batalhas,
desobedecendo às ordens de Samuel para que exterminasse todo o povo derrotado (os
amalequitas), Saul poupa o rei Agag e uma parte do gado amalequita, despertando assim a
fúria de Samuel. Daí então, como resultado da sua “desobediência aos mandamentos divinos”,
uma vez que, desobedecendo a Samuel, um profeta, e que por ser profeta era considerado
como aquele que transmite ao povo as palavras de Deus, um “mau espírito” de acordo com as
escrituras, enviado por Deus, apossou-se de Saul, “mau espírito” que segundo Scliar (2003),
seria visto como a melancolia de Saul, sendo que seu estado de ânimo melhora apenas quando
Davi toca cítara para o rei.
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A vinda do “mau espírito” significava ainda o afastamento do espírito de Deus, sendo
que a partir daí, Saul começa a sentir-se angustiado e diversas atrocidades acontecem em sua
vida. A angústia de Saul pode ser observada no momento em que ele busca orientação divina
antes de guerrear, e segundo as escrituras, não obtém. Tendo morrido Samuel, ele resolve
consultar uma necromante para que Samuel lhe diga o que sucederá na guerra contra os
filisteus. De acordo com o livro bíblico, I Samuel, de autoria desconhecida, o ver o espírito de
Samuel, Saul então assim se expressa: “Mui angustiado estou, porque os filisteus guerreiam
contra mim, e Deus se tem desviado de mim e não me responde mais, nem pelo ministério dos
profetas, nem por sonhos; por isso te chamei a ti” (I Sm, 28:15). No entanto, ele recebe de
Samuel a notícia de que seria derrotado e morto em batalha, o que de fato acontece, vindo
Saul a suicidar-se na batalha para não ser morto pelos inimigos. Para Scliar (2003), o “mau-
espírito” que acometeu Saul seria hoje visto como doença, mas à época a distinção não
existia, doença e punição divina se equivaliam. Como havia transgredido, Saul, segundo
Scliar (2003), atrai sobre si o anátema, daí seu sofrimento. “A transgressão causa culpa, e esta
torna o rei vulnerável ao “mau espírito”, à melancolia”, afirma Scliar (2003, p.66), por isso,
“Saul terminará a vida em desgraça”.
Encontramos ainda em Homero, no Canto VI da Ilíada, todo o sofrimento do
melancólico Bellerofonte, vítima do ódio dos deuses, condenado ao desespero, sofrimento e
solidão. Aqui, assim como no caso de Saul temos o sofrimento sendo causa da determinação
divina. Essas podem ser consideradas, de acordo com Viana (1994), como imagens míticas da
melancolia, ou seja, infelicidade humana resultantes da desgraça do homem perante os deuses.
Na antiguidade, de acordo com Peres (1996) irá dominar a teoria dos humores de
Hipócrates, apontado como o criador do conceito de melancolia. Para Hipócrates, a
melancolia está associada a bílis negra, de onde parte seu sentido literal e sendo definida
como um estado de tristeza e medo de longa duração. A bílis negra, segundo a autora (1996),
é o humor natural do corpo e pode sofrer vicissitudes, tais como deslocamentos, excessos, se
corromper ou inflamar, sendo que as diferentes doenças resultariam dessas variações e a
melancolia resultaria de uma alteração quantitativa ou qualitativa da bílis negra, de uma
alteração no equilíbrio dos humores.
É importante perceber, de acordo com Villari (2002), que a bile negra se acumula de
preferência no baço, cujo nome em inglês spleen, ainda hoje representa uma alusão ao estado
melancólico. Peres (1996), afirma existir uma correspondência entre os quatro humores, as
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quatro qualidades, os quatro elementos, dessa forma teríamos a seguinte relação, expressa na
tabela abaixo:
Humores Qualidades Elementos
Bílis negra
Bílis amarela
Sangue
Pituíta
Seco
Úmido
Quente
Frio
Água
Ar
Terra
Fogo
Peres (1996, p.15) destaca ainda “as quatro direções do espaço e as quatro etapas da
vida, formando uma teoria cosmológica coerente”. O humor melancólico, segundo Villari
(2002), era considerado o temperamento mais patológico e por isso, mais obviamente
associado à doença. Hipócrates, conforme afirma Villari (2002, p.70), “diferenciava a
melancolia endógena, em que, sem razão aparente, a pessoa torna-se taciturna e busca a
solidão, da melancolia exógena, resultante de um trauma externo”, definindo a melancolia
como sendo a perda do amor pela vida, uma situação na qual a pessoa aspira à morte como se
fosse uma bênção. Essa teoria da coerência cosmológica remonta provavelmente, segundo
Villari (2002, p.50), aos pitagóricos, nos quais “encontramos a veneração aos números em
geral, especialmente ao número quatro”.
Villari (2002) nos fala que os pitagóricos consideravam que o homem racional estaria
governado por este número e que os quatro princípios estariam localizados fisicamente no
cérebro, no coração, no umbigo e no falo. “A alma era concebida pelos pitagóricos como
sendo quadripartita e compreendia o intelecto, a opinião a percepção e o entendimento”,
(Villari, 2002, p.51). Embora a doutrina dos quatro humores vista acima não corresponda ao
pitagorismo, vemos que ele, postulando as categorias tetrádicas (terra, ar, fogo, água,
primavera, verão, outono, inverno), estabelece a base na qual posteriormente se inscreveram
os humores.
Com Empédocles, Villari (2002) nos diz que aparece a articulação da idéia pitagórica
com as quatro raízes do Todo, ou seja, as entidades cósmicas concretas (sol, terra, céu, mar),
sendo que a combinação perfeita no homem, uma vez que as substâncias possuíam igual
valor, correspondia àquela relação em que todos os elementos participariam por igual. Dessa
forma, as características particulares estariam determinadas pela prevalência de algum
elemento ou princípio, diferente em cada caso, que determinaria o caráter da cada indivíduo.
“Inaugurava-se assim a correspondência entre o macrocosmo e o microcosmo” (Villari, 2002,
p.51). A relação entre as quatro raízes e os elementos menos gerais e mais próximos do
homem (calor, frio, úmido e seco) foi feita, segundo Villari (2002), por Filistion,
45
representante da escola médica de Empédocles na Sicília. Vemos assim, que a teoria dos
humores de Hipócrates associa a teoria dos elementos de Pitágoras e Empédocles e a teoria
das qualidades de Filistion à presença dos humores, empiricamente presentes no corpo
humano, fazendo uma aproximação ou deslocamento do geral cosmológico (raízes) à
particularidade do corpo.
No entanto, é de Aristóteles o tratado que dominará a Antiguidade, e cuja penetração
se estende por mais de dois milênios. “Aristóteles, na problemata 30, transformaria a idéia de
melancolia em estado exclusivamente morboso e estabeleceria a primeira relação com o
fenômeno do gênio”, afirma Villari (2002, p.53). Aristóteles (apud Peres 1996, p.15) faz a
seguinte indagação:
Por que todos os homens excepcionais na atividade melancólica, política, artística
ou literária possuem um temperamento melancólico ou seja, atrabiliário alguns
em tal medida que até são afetados pelos estados patológicos que dele derivam?
Peres (1996) cita como portadores da natureza melancólica os heróis míticos Hércules,
Bellerofonte, Aiace e Lisandro. Ela afirma (1996, p.15) ainda que “Empédocles, Sócrates,
Platão, muitos homens ilustres e a grande maioria dos poetas são igualmente, portadores dessa
natureza”. A tese aristotélica é a de que a melancolia decorreria de uma natural predisposição,
sendo que para captar a causa, ele parte de uma analogia com os efeitos do vinho, afirmando
que as diferentes índoles dos indivíduos correspondem às diferenças de caráter provocadas
pelo vinho, podendo o indivíduo ser loquaz, agitado, de choro fácil, tanto por natureza como
por um estado de embriaguez. Assim, o vinho poderia tornar os indivíduos taciturnos ou
expansivos, mas enquanto seus efeitos seriam transitórios, a determinação pela natureza é
duradoura.
A associação do humor melancólico ao vinho é feita por Aristóteles considerando que
ambos teriam uma propriedade em comum: o fato de serem impregnados de ar. Para
Aristóteles, é o vinho, especialmente o tinto, que por conter ar, o que é demonstrando pela
espuma que ele produz, excitaria o elemento erótico. Aristóteles considera o vinho tinto um
dos mais eficazes afrodisíacos, pelo fato de acumular ar na zona erógena, vindo daí a relação
entre Dionísio e Afrodite, sendo o temperamento melancólico impregnado de ar, geralmente,
luxurioso devido ao impulso erótico ser caracterizado por uma emissão de ar. O vinho, pontua
Villari (2002), por seu aspecto semelhante ao sangue, o humor vivaz, era especialmente
recomendado como um antídoto para a bili negra na Antiguidade.
46
Peres discorre ainda (1996, p.17) sobre a constituição do humor atrabiliário na tese
aristotélica, afirmando que, para ele, o humor atrabiliário se forma naturalmente como
resultado da coesão do elemento quente com o elemento frio: “A atrabilis participa ao
máximo do elemento quente com o elemento frio, segundo uma dupla possibilidade,
semelhante a água que é fria, mas quando submetida a aquecimento pode chegar à ebulição
tornando-se mais quente que a própria chama”.
Sendo assim, se a atrabilis, fria por natureza, permanecer fria gera, entre outras coisas,
a depressão, mas quando esquenta gera estados eufóricos. Por isso, Aristóteles considera a
juventude mais eufórica e as pessoas de mais idade, mais deprimidas, ou seja, para ele a
velhice consistiria em um processo de resfriamento e o suicídio estaria ligado à perda de calor
orgânico, sendo que, quando o calor se apaga de uma maneira abrupta, a pessoa seria levada a
cometer suicídio, por isso ele considera de extrema importância o indivíduo ter bem dosada a
diversidade de calor e de frio uma vez que os melancólicos seriam pessoas excepcionais por
natureza e não por doença.
2.1.2 Idade Média
É na Idade Média que temos a associação da melancolia com o mal do amor. Nos
textos do tradutor árabe Constatinus Africanus, principal representante da escola de Salerno,
segundo Scliar (2003, p. 73), o mal do amor poderia resultar “de uma paixão não
correspondida, ou da busca de uma ideal amoroso impossível de atingir”, o que tornaria o ser
melancólico. São ainda os autores árabes que estabelecem a associação astrológica entre
humores e planetas, sendo que a melancolia estaria sob o signo de Saturno, planeta distante,
de lenta revolução. Os indivíduos nascidos sob o signo de Saturno, como também tinha
correspondência no chumbo, eram lentos e pesados.
Villari (2002, p.55), ao ressaltar a associação entre o planeta Saturno e a melancolia
nos assevera que: “o planeta Saturno e a melancolia guardavam as mesmas características:
frio e seco e a cor da bílis negra é obscura e negra; sua natureza, como a da terra, é fria e seca.
Mas também a cor de Saturno é obscura e negra, pelo que também Saturno deve ser frio e
seco por natureza”. No corpo humano, conforme afirma Scliar (2003. p.74), é Saturno quem
governa o baço, sede da bile negra, por isso a associação entre Saturno e melancolia era
inevitável, sendo que “hoje o qualitativo “soturno”, corruptela de Saturno, é sinônimo de
melancólico.
47
Sobre essa associação, Peres (1996, p.21) nos diz que a influência de Saturno não seria
exercida em pessoas vulgares, mas em seres extraordinários, logo, no mito de Cronos é que
poderíamos encontrar uma maior explicação para Saturno. Deus dos extremos, representante
da ambigüidade e dos contrários, Cronos é “Senhor da Idade de Ouro, mas também triste e
infeliz, pai de muitos filhos que são por ele devorados, mas condenado à esterilidade, sábio,
mas capaz de se deixar vencer pela astúcia mais vulgar”, estaria explicada nas antíteses de
Cronos a dualidade de Saturno, o demônio de antíteses, que, segundo a autora, é capaz de
investir a alma com preguiça, apatia, mas também com força de inteligência e de
contemplação. Vemos, assim, que enquanto na Antiguidade domina a teoria dos humores, na
Idade Média é acrescentada uma visão demonológica através da influência de Saturno.
2.1.3 Renascença
No Renascimento, é a obra de Marsilius Ficinus, “Da vita tríplice”, que traz o tema da
melancolia, atentando para o engrandecimento da alma do melancólico. Conforme Peres
(1996, p.23), o tratado de Ficinus consegue reunir quatro tradições de pensamento:
[...] a hipocrática, com a teoria dos humores, a platônica, estabelecendo a relação
entre poesia e furor, a astrológica, estabelecendo a relação entre melancolia e
Saturno e, por fim, a tese aristotélica da relação entre o gênio e a loucura. Ficinus
nos apresenta uma versão da melancolia na qual ela é ao mesmo tempo o tormento e
a grande chance para os homens de estudo
Sobre Ficinus, Scliar (2003) destaca que ele via em Saturno o planeta inspirador de
sábios e estudiosos que sofriam de melancolia por vocação e contemplação e que o trabalho
intelectual por consumir calor e umidade deixava de resto apenas frieza e secura, ou seja, a
bile negra. Temos aqui a associação entre o trabalho intelectual e a melancolia.
Na época da Reforma, o luteranismo rigoroso em suas exigências morais, segundo
Peres (1996), esvazia as ações humanas de todo seu valor, uma vez que os homens não podem
mais se justificar diante de Deus com seus esforços, méritos ou obras, mas gratuitamente, por
causa de Cristo e pela fé. As ações tornam-se sem valor, apenas a fé seria eficaz. A
desvalorização das ações, segundo Benjamim (apud PERES 1996, p.23), “instala no povo
uma estrita obediência ao dever, mas entre os grandes instalou a melancolia”, não fazendo
distinção entre as ações dos homens, se instalou um grande vazio. Nesse sentido, Peres (1996)
destaca que o próprio Lutero teria sido dominado, nos últimos anos de vida, por uma profunda
depressão. O barroco seria herdeiro dessa melancolia advinda do luteranismo: é o tempo da
fragilidade humana.
48
No Classicismo, será Foucault quem nos guiará, através de sua História da loucura, no
período compreendido entre os séculos XVI, XVII e XVIII, sendo que no século XVI tem-se
uma definição da doença a partir dos sintomas, geralmente correspondentes às idéias
delirantes sobre si. É ainda nesse culo, que, de acordo com Villari (2002), surge a
melancolia poética, considerada por Burton como uma “tristeza sem causa”, “disposição
melancólica transitória”, em oposição à “doença melancólica”. Temos assim, uma
transformação do conceito, ou seja, o indivíduo não poderia “ser melancólico”, mas “estar
melancólico”, ou transferir esse aspecto para os objetos, sendo que o predicado melancólico
passou a denotar espaços melancólicos, notas melancólicas, paisagens melancólicas, etc. No
século XVII, algumas conclusões acerca do estado melancólico são propostas, entre elas a de
que os acidentes, as condições de vida, as circunstâncias poderiam alterar as qualidades, ou
seja, um ser seco e frio poderia transformar-se em quente e úmido. Ainda no século XVII,
temos a descoberta do ciclo mania-melancolia por Willis, o qual atenta para a necessidade de
tratar a mania após a melancolia, uma vez que esta teria com aquela muitas afinidades,
afirmando que elas não seriam duas doenças, mas que se deveria procurar uma ligação entre
ambas. No século XVIII, a análise da doença dirige-se, segundo Peres (1996), para os dados
qualitativos: tristeza, solidão, amargura e inibição.
2.1.4. A modernidade
Na modernidade, segundo Villari (2002, p.66), “ocorre um corte na concepção da
melancolia como estado próprio ou interior, distanciando-se cada vez mais do ideal
hipocrático”. A melancolia torna-se, de acordo com o autor, uma forma escolhida de ser no
mundo ou uma forma de conceber a existência. Para Viana (1994), com o romantismo, a
tristeza se transforma em nostalgia, evocação dolorida, incurável, de um tempo e espaços
perdidos, daí porque o escritor romântico persegue uma infância imaginária, ideal, cujos
contornos se entrelaçam com a mãe-natureza. Ele também afirma que o que domina o escritor
romântico é “a inquietação ante o sentimento de alguma coisa perdida, de um vazio a ser
preenchido. Como o que se perdeu não retorna, o romântico assume e trata mesmo de
evidenciar o luto” (VIANA, 1994, p.35). Tal vazio resultaria do fracasso do processo
iluminista, se consideramos a perda da ilusão de futuro. No Romantismo, no dizer de Roudaut
(apud Viana, 1994, p.35), “a melancolia designa uma forma escolhida de estar no mundo; [...]
ela não é mais uma doença sofrida, porém eleita.”.
Trataremos a seguir da melancolia sob a ótica do existencialismo, mais
especificamente, na filosofia kierkegaardiana que, para Strathern (1999, p.63), pode ser
49
considerada como “um paralelo filosófico da psicanálise freudiana”. Sendo assim, duas obras
nos servirão de embasamento para uma melhor compreensão da melancolia, “O conceito de
angústia” (1968), considerada por Strathern (1999, p.49) como “uma das mais importantes
obras de psicologia pré-freudianas” e “O desespero humano” (2004), obra em que o autor faz
uma análise da dialética do desespero em suas múltiplas facetas e bem como da consciência
humana.
2.2 A MELANCOLIA E O EXISTENCIALISMO KIERKEGAARDIANO
Nosso olhar agora se volta para os conceitos de angústia e desespero na filosofia do
teólogo, filósofo e escritor dinamarquês que se considerava apenas um poeta, Sören Aabye
Kierkegaard (1813-1855), atentaremos tanto para o significado apontado pelo autor sob o
significante melancolia, quanto para as aproximações entre os conceitos de angústia,
desespero e melancolia. Acreditamos de acordo com Giles (1937, p.51), que a filosofia de
Kierkegaard “interessa a todos aqueles a quem não satisfaz uma filosofia separada do drama
da existência” e que ela “responde a uma necessidade de nossa época e uma necessidade que
não é religiosa”. Sendo assim, acreditamos que entender os conceitos de angústia e
desespero na obra de Kierkegaard nos dará uma visão mais ampla para tratar da melancolia
como uma condição existencial.
O conceito de Angústia é publicado em 1844. Nele, a partir da idéia de pecado
original, Kierkegaard reflete sobre a relação do sujeito com a angústia, a partir da noção de
culpabilidade e de inocência.
Inicialmente Kierkegaard trata, na obra, do conceito de pecado original como
metáfora, ou seja, com o pecado de Adão, entra no mundo a pecabilidade. Tratar do pecado
original como sendo simplesmente o primeiro pecado ou o pecado de Adão limitaria seu
entendimento, pois, para Kierkegaard (1968, p.33) “Adão é, na verdade, ele mesmo e o
gênero humano. Por isso, aquilo que a explicação de Adão igualmente a explicação do
gênero humano, e reciprocamente”. Assim, cada indivíduo, é si mesmo e o gênero humano e,
como descendência de Adão, cada indivíduo “não significa senão a contigüidade na história
da humanidade” (1968, p.38). A diferença entre o pecado de Adão e o pecado de qualquer
outro homem consistiria no fato de que com o primeiro homem nasce a pecaminosidade e o
segundo tem a pecaminosidade como condição.
É importante observar que em Kierkegaard o pecado não está relacionado à noção de
queda, mas de salto. Tomando o mito de Adão podemos entender, de acordo com
50
Kierkegaard, que, com o pecado, ele um salto qualitativo, sendo a angústia a condição
antecipada do pecado, ou seja, imaginemos Adão (e tenhamos em mente que ele é ao mesmo
tempo ele e todo o gênero humano) no Éden, ele vive na inocência, isto é, sem pecado. No
entanto, ao saber que pode comer de todos os frutos, menos o da árvore do conhecimento do
bem e do mal, ele se angustia. Antes de continuar a história, entendamos melhor o que é
inocência e angústia para Kierkegaard. Bem, inocência é ignorância, no entender do autor
(1968, p.45), um estado no qual “existe calma e descanso”, em que não se sabe nada sobre o
bem ou o mal, mas nesse mesmo estado de inocência existe uma outra coisa: o Nada. E é esse
“nada” que nascimento à angústia, a pessoa se angustia por nada, sendo a angústia a
realidade da liberdade como puro possível.
Voltando ao Éden, vemos Adão diante da proibição, inocente, mas angustiado pela
possibilidade da liberdade, pois segundo Kierkegaard (1968, p. 48) “a proibição deixa
inquieto Adão, porque nele desperta a possibilidade da liberdade”, e uma vez que o ser
humano busca sempre conhecer o que desconhece, ou seja, sua vocação é a busca de si, do
outro e da “coisa” fora de si, a proibição angustia Adão, e tal angústia faz nascer o pecado em
Adão. A noção de salto parte da idéia de que o ser não cai, mas antes ele salta de um estado de
ignorância para um estado de conhecimento do bem e do mal.
Adão agora é conhecedor, mas é também culpado e a conseqüência de seu pecado é
mais angústia, angústia agora diferente, pois segundo Kierkegaard (1968, p.58) “é certo que o
pecado apareceu com e na angústia, porém, em contrapeso, trouxe também uma nova angústia
[...] o prosseguimento do pecado é o mesmo que uma possibilidade que nos angustia”, ou seja,
o ser agora consciente, conhecedor do bem e do mal, tem mais liberdade, mais opção (ele
deve optar por um outro) e quantitativamente, mais angústia, a conseqüência do pecado, do
conhecer, é mais e mais angústia. Dessa forma, para Kierkegaard (1968, p.57) existe “uma
variabilidade enorme da angústia nos homens posteriores a Adão”, o que permite Feijo (apud
Dantas, 2007, p. 09) afirmar que:
O homem, por sua natureza pecaminosa, posto que lhe é dado escolher, vive na
intranqüilidade. A angústia é o sentimento que ocorre diante da possibilidade,
caracterizando a situação de liberdade o homem que é livre, é livre para o pecado.
Ela surge em face do real estabelecido e do futuro. Tanto o pecado quanto a
liberdade não se dão a partir de nenhuma premissa: a liberdade é infinita e provém
do nada, e o pecado não ocorre num processo contínuo como necessidade, e sim em
salto e como possibilidade.
51
Diferentemente do medo que tem sempre um objeto determinado, a angústia, como
dissemos, é algo sem objeto assinalado ou determinado, ela é a realidade da liberdade como
puro possível, existindo de duas formas distintas: a angústia objetiva, como criação, aquela
que é o reflexo da pecabilidade no mundo inteiro, conseqüência do pecado na existência
humana e a angústia subjetiva, que estaria relacionada ao sentimento de culpa do homem,
uma vez que, segundo Kierkegaard (1968) a culpa “nasce da angústia”.
Fugir da angústia para Kierkegaard (1968) é algo negativo. Giles (1975, p.45) lança
luz sobre o porquê de ser negativo fugir da angústia: “quando o homem tem medo da angústia
na preocupação de lhe querer fugir, quando nesse mesmo receio ele volta a engolfar-se nos
cuidados da vida vulgar, esta voz o exorta a ser homem. Portanto a angústia não é para
poltrões.” Tentar fugir da angústia gera a melancolia que, conforme esse autor (1975, p.45):
“se origina quando, fugindo de si próprio e buscando perder-se nas distrações, o homem
descobre em si um resíduo de pressentimentos que lhe diz que toda sua fuga é em vão”.
O melancólico seria o ser consciente de que é em vão fugir da angústia. Ele não pode
tomar parte na vida imediata, pois ele “sente-se expulso dela e passa a arrastar, sem prazer, o
peso da própria existência. Portanto, na melancolia atua a angústia que nos espreita e arma-se
ainda nos momentos mais altos de deleite” (Giles, 1975, p.45). A melancolia seria então um
“não querer profunda e intimamente coisa alguma”.
A angústia, além de vertigem da liberdade como vimos até agora, pode ser tomada
ainda como captação do nada, ou seja, uma vez que ela é o sentimento da pura possibilidade,
nada traz de seguro, pois de acordo com Abbagnano (2007, p.63):
O homem no mundo vive de possibilidade, uma vez que a possibilidade é a
dimensão do futuro, e o homem vive continuamente debruçado sobre o futuro. Mas
as possibilidades que se apresentam ao homem não tem nenhuma garantia de
realização. Só por piedosa ilusão elas se lhe apresentam como possibilidades
agradáveis, felizes ou vitoriosas: na realidade, como possibilidades humanas, não
oferecem garantia alguma e ocultam sempre a alternativa imanente do insucesso, do
fracasso e da morte.
Se consideramos com Kierkegaard (1968), que “no possível tudo é possível”, temos
que aceitar que uma possibilidade favorável não tem maior segurança que uma possibilidade
mais desastrosa e horrível. É nesse sentido, considerando o nada da angústia, que Heidegger
irá centrar nela sua análise existencial. Para ele, na angústia o homem sente-se em presença do
nada, da impossibilidade possível da sua existência, assim, segundo Abbagnano (2007, p.63),
52
“a angústia constitui essencialmente o que Heidegger chama de ‘ser para a morte’, ou seja, a
aceitação da morte como possibilidade absolutamente própria, incondicional e insuperável do
homem”. Vemos assim, que a angústia é uma condição da existência, ou como afirma Jolivet
(1975, p.56) “existir é sofrer necessariamente a angústia [...] ligada à realidade e à
possibilidade de culpa”. Mas para esse autor (1975, p.56) existir é viver também o desespero,
pois “pelo simples fato de o indivíduo se sentir na obrigação de escolher, deve desesperar. São
muitas as vias que levam ao desespero”. O desespero é, segundo Kierkegaard (2004), a
doença mortal”, não no sentido dele morrer por desesperar, mas no sentido de que, segundo o
autor (2004, p.23):
[...] mortalmente doente é não poder morrer, mas neste caso a vida não permite
esperança, e a desesperança é a impossibilidade da última esperança, a
impossibilidade de morrer. Enquanto ela é o supremo risco, tem-se confiança na
vida. Mas quando se descobre o infinito do outro perigo, tem-se confiança na morte.
Entretanto, quando o perigo cresce a ponto de a morte tornar-se esperança, o
desespero é o desesperar de nem sequer poder morrer
O desespero é então a doença mortal que o homem experimenta diante da precariedade
da vida e da escolha de si mesmo. Conforme Dantas (2007, p.10) “como doença mortal, o
desespero nos remete à característica própria do homem”, característica que, segundo
Kierkegaard (2004) é ser uma síntese. O homem, segundo Dantas (2007, p. 19), é “uma
síntese de infinito e do finito, de temporal e de eterno, de liberdade e necessidade”. O
desespero advém então da tensão entre o finito e o infinito, do tempo e da eternidade, da
liberdade e da necessidade e ainda do sujeito consigo mesmo, ou nas palavras de Giles (1975,
p. 32), que o homem é uma síntese, ele não é auto-suficiente e “só conseguira realizar-se,
relacionando-se com o Eterno; se não consegue tal relacionamento, cai no desespero”.
Kierkegaard (2004, p.44) afirma que “vai aumentando a consciência e os seus
progressos medem a intensidade sempre crescente do desespero”, sendo assim, ele fala então
de duas formas de desespero: desespero inconsciente e desespero consciente. No primeiro
caso, temos um desespero que se ignora, ou seja, existe o desespero, pois para Kierkegaard
(2004) todos somos desesperados, o desespero é universal, mas o indivíduo não se como
desesperado porque nele os sentidos teria mais força que a intelectualidade e assim ele se
julga feliz, embora não o seja, aqui ele não se relaciona com o infinito ou com o eterno, sua
vida está totalmente ligada ao imediato.
Segundo Kierkegaard (2004, p.44):
53
Ordinariamente, quando alguém se julga feliz e se envaidece por isso, ao passo que à
luz da verdade é um infeliz, está a cem léguas de desejar que o tirem do seu erro. Ao
contrário, zanga-se, considera como seu pior inimigo aquele que o tenta, e como um
atentado e quase um crime esse modo de proceder e, como costuma dizer-se, de
destruir sua felicidade. Por quê? Porque é presa da sensualidade e de uma alma
plenamente corporal; porque sua vida conhece apenas as categorias do sentido, o
agradável e o desagradável, e descuida do espírito, da verdade [...] Que importa
então que o desesperado desconheça seu estado, se nem por isso deixará de
desesperar? Se é desvario esse desespero, a ignorância ainda o torna maior. Isto é
estar ao mesmo tempo desesperado e em erro. [...] Nesta ignorância é que o homem
tem menos consciência do seu espírito. No entanto essa ignorância é desespero [...]
Aqui, como na tuberculose, é quando o desesperado está melhor e melhor se sente, e
pode dar a impressão duma saúde florescente, que o mal é mais agudo. [...] Esse
desespero que se ignora, é a forma mais freqüente no mundo.
Assim, para o filósofo, mesmo sem ter consciência de desespero, o indivíduo é
desesperado, no entanto acredita ser feliz, mas isso seria unicamente por não ter consciência
do seu desespero e não se importar com a verdade, ligado que está à banalidade de sua vida.
Giles (1975, p.37) afirma que esse indivíduo “quer permanecer nas ilusões, se agarra nas
ilusões”, sendo essa forma de desespero, “o pior dos procedimentos, pois é o mais distante do
espírito”. o desespero consciente de sua existência se apresenta de duas formas, a saber:
desespero motivado pelo desejo de não ser si próprio ou desespero fraqueza e o desespero
motivado pelo desejo de ser si – próprio, ou desespero desafio.
O primeiro é aquele em que o ser não quer ser si - mesmo, desesperar, nesse sentido, é
tão somente sofrer e sofrer algo que é externo. Conforme afirma Kierkegaard (2004, p.52),
para o indivíduo que desespera dessa forma, “se de repente tudo mudasse, todo o mundo
exterior [..] havíamos de o ver tomar alento [...] e o nosso homem renasceria” e isso acontece
porque esse homem acredita que seu desespero é exterior, e ele deseja ser outro, ou seja,
acredita que se ele fosse outro, ocorreria uma transformação e ele sairia do seu desespero, ele
está sempre a se indagar: “e se eu fosse outro? Se arranjasse um novo eu?”, como se
mudando-se em outro todo seu sofrimento tivesse fim. Segundo Giles (1975, p.38) no
desespero da fraqueza o homem:
[...] diz constantemente que, se tivesse a inteligência de fulano de tal, as riquezas,
etc., tudo seria diferente. Se ele começar a refletir e perceber que as dificuldades m
por origem ele próprio, sentir-se-á vítima passiva dos próprios defeitos. Essa
realidade lhe pesa mais do que a própria dominação das coisas exteriores. Portanto,
procura fugir da reflexão tanto quanto possível.
54
Kierkegaard (2004) coloca ainda nesse tipo de desespero, a idéia do jovem, ligado ao
futuro e a do velho, ligado ao passado. Ambas seriam fraquezas. O jovem se desespera pelo
futuro, nutre uma ilusão de esperança, esperança de não ser ele mesmo, o velho desespera
pelo passado, numa ilusão da recordação. Para o filósofo (2004, p.57) o “fomos” tão freqüente
na boca dos velhos vale a ilusão dos novos referida ao futuro. Nuns e noutros: mentira.” O
que o homem no desespero fraqueza não percebe é que o mal não está no exterior, mas em si
mesmo, de nada adiantando ele desejar ser outro. Desesperar do exterior não reduz o mal do
desespero, mas atesta que o ser é fraco, pois não quer se si - mesmo. Segundo Huhne (apud
Dantas, 2007), o desespero decorre da consciência inexorável da luta entre a vida e a morte e
o homem que não tem consciência disso, acredita desesperar do exterior, mas essa não seria a
causa do seu desespero, pois para esse autor (2007, p.11):
Todo homem sabe que um dia vai morrer e esse é seu único e último projeto
determinante [...]. Para não enfrentar a angústia em face da morte, muitas vezes o ser
humano alega que está em desesperado seja um obstáculo, seja um fracasso, uma
frustração -, que não percebe que essa não é a causa do desespero, mas a ocasião
em que o desespero se manifesta, o desespero de ser esse eu limitado, esse eu que
não queria ser e que não posso destruir.
A morte atesta para o ser que toda sua luta é em vão, ela é, conforme Heidegger (1999,
p.180), a limitação da limitação e, diante dela, toda a instauração do vigor humano fracassa.
No entanto, acreditando que seu desespero advém de fatores externos, o indivíduo não toma
consciência que seu mal está em si mesmo, de nada adiantando o desejo de ser outro.
No segundo tipo, o desespero desafio, o homem quer ser si - mesmo. Sua consciência
de desespero aumenta progressivamente, aqui, de acordo com Kierkegaard (2004, p.65) “o
desespero tem consciência de ser um ato e não provém do exterior como um sofrimento
passivo sob a pressão do ambiente, mas diretamente do eu”.
Segundo Kierkegaard (2004, p.65):
O desespero em que pretendemos ser nós mesmos força a consciência de um eu
infinito, que nada mais é senão a mais abstrata das forças do eu [...] o desesperado
quer ser exatamente esse eu, isolando-o de qualquer relação com um poder que lhe
deu resistência, arrancando-o à idéia da existência de tal poder. Com o auxílio dessa
forma infinita o eu quer, desesperadamente, dispor de si, ou, criador de si mesmo,
fazer do seu eu o que quer ser, escolher o que admitirá ou não o seu eu concreto [...]
mete-se na cabeça do homem transformar essa totalidade para ele extrair um eu de
acordo com sua idéia [...] quer pela forma infinita, que persiste em ser, construir o
seu eu.
55
O ser que desespera de si mesmo, na busca de ser ele mesmo, designado por
Kierkegaard (2004), “o eu ativo”, no sentido que diferente do eu que não quer se si- mesmo,
ele não está na passividade da não consciência do desespero na existência, ele é aquele em
que o ser quer ser o eu de sua própria invenção. Nesse caso, o homem fecha-se dentro de si
mesmo, intricheirando-se no segredo de sua miséria e desesperado, escolhe-se. Jolivet (1975,
p.57) afirma que “nesse caso o desespero torna-se um contra Deus: desespero demoníaco que
ora é desafio, ora se apresenta como ausência de desespero”. O essencial desse desesperado é,
conforme Kierkegaard (2004, p.69), “pensar que a eternidade poderia lembrar-se de o privar
da sua miséria”. Mas esse desespero, de acordo com o filósofo, não é para qualquer um: “Este
tipo de desespero não é freqüente, heróis dessa espécie não se encontram verdadeiramente
senão entre os poetas, nos maiores, dentre eles, os quais conferem sempre a suas criações essa
idealidade demoníaca”. É por sua revolta contra a existência que esse desesperado quer ser ele
mesmo, ainda que estando consciente de sua miséria, pois, segundo Kierkegaard (2004, p.70):
“Exatamente por causa da sua revolta contra a existência, o desesperado gaba-se de possuir
uma prova contra ela e contra a sua bondade. Julga ser ele mesmo – sim, com o seu tormento!
– para por meio desse próprio tormento, protestar toda a vida.”.
Em uma ou outra forma de desespero consciente existe o pecado. Para Kierkegaard
(2004), querer ou não ser si - mesmo é pecado. E pecado não por ignorar, pois este autor vai
contra a idéia socratiana de que pecar é ignorar, pois para ele o indivíduo não peca por não
saber o que é justo, mas sabendo-o, ou pela recusa de compreender a justiça. O desespero
saudável para Kierkegaard (2004) seria aquele em que o ser se reconhece como finito e
infinito e deseja transcender ao Absoluto, penetrando no eterno e, querendo ser ele mesmo, “o
eu mergulha através de sua própria transparência no poder que o criou”. Essa fórmula seria a
definição da fé, pois para o referido autor o contrário do desespero é crer, “o contrário do
pecado não é a virtude e, sim, a fé”. Aqui a fé não significa aceitar determinada doutrina, mas
a condição em que o homem entra quando quer ser si - próprio e se torna ao mesmo tempo
transparente diante de Deus e é fundado em Deus. assim seria possível sair do desespero.
O homem necessita assim dar um salto da fé, crê mesmo que seja absurdo, aliás, crê
justamente porque é absurdo.
As idéias de angústia e desespero, colocadas por Kierkegaard (2004), nos dão uma
visão sobre a melancolia. Inicialmente, vemos que a melancolia seria a consciência de que é
em vão fugir da angústia. Sendo o melancólico aquele que não pode tomar parte na vida
imediata, por sentir-se expulso dela e por arrastar, sem prazer, o peso da própria existência.
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Considerando essa afirmação, Giles (1975, p.45) afirma que, de acordo com a filosofia
kierkegaardiana, “na melancolia atua a angústia que nos espreita e arma-se ainda nos
momentos mais altos de deleite”. A melancolia seria então um “não querer profunda e
intimamente coisa alguma”. Se entendermos, de acordo com Abbagnano (2007), que a
angústia se refere à relação do homem com o mundo e o desespero à relação do homem
consigo mesmo, podemos afirmar que no desespero a melancolia estaria relacionada a um
excesso de consciência, ou seja, o ser está consciente de seu desespero, quer ser si - mesmo,
estando muito próximo ao desespero demoníaco, ou seja, deseja ser ele mesmo e sabe-se
miserável, nutrindo uma total revolta pela existência, o melancólico é então aquele que
desespera, no sentido de que para ele, na vida, parece não haver esperança. Não à toa,
Kierkegaard (2004) se refere a esse desespero como sendo o dos poetas. Acreditamos que a
melancolia na filosofia existencial de Kierkegaard seria assim não uma doença, mas excesso
de consciência, consciência que arrasta o ser da vida imediata, sentindo-se expulso dela. A
melancolia seria, enfim, a vertigem da consciência. Observando a angústia, o desespero e a
melancolia na filosofia existencial, passemos agora à psicanálise freudiana, na qual veremos
ser traduzida a dinâmica do processo melancólico e sua relação com a angústia.
2.3. MELANCOLIA E PSICANÁLISE FREUDIANA
De acordo com Peres (1996), a primeira teorização de Freud sobre a melancolia
aparece na correspondência a Fliess, seu mais importante interlocutor no período de
nascimento da psicanálise. Nessas cartas, especialmente no “Rascunho Aque acompanha a
carta de dezembro de 1892, melancolia e depressão aparecem como sinônimos e demonstra
uma íntima relação entre a melancolia e a angústia, citando inclusive o termo “melancolia de
angústia” em uma de suas cartas. Segundo a autora (1996, p.29) é do lado das então
chamadas neuroses atuais neurastenia e neurose de angústia que o nosso autor vai iniciar
as suas especulações no campo da depressão e da melancolia”. Os sintomas apontados por
Freud nesse primeiro momento como típicos do indivíduo depressivo/melancólico, aparecem
na carta de 1894, e são: apatia, inibição pressão intracraniana, dispepsia e insônia.
No “Rascunho B”, de acordo com Peres (1996, p.29), Freud acrescenta que toda
neurastenia é marcada por “uma certa diminuição da auto confiança, por expectativas
pessimistas e por inclinação para idéias antitéticas aflitivas”. Ainda nesse rascunho, Freud
falará do melancólico como aquele que tem crises de angústia. No “Rascunho E”, Freud
analisaria a origem da angústia, concluindo que ela decorreria de um acúmulo de tensão
sexual física, de um bloqueio de descarga, segundo Freud (apud Peres, 1996, p.30), “é um
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fator físico da vida sexual que produz angústia”. Ainda nele, Freud faz uma diferença entre
melancolia e angústia, afirmando que “os melancólicos são anestésicos, não apresentam
desejo de coito, mas uma grande ânsia de amor em sua forma psíquica uma tensão erótico -
psíquica”. Assim, a angústia seria gerada pelo represamento da tensão sexual física, enquanto
a melancolia seria gerada pelo acúmulo da tensão sexual psíquica.
Conforme Peres (1996), será o “Rascunho G” que tratará unicamente do termo
melancolia e nele, Freud fala em três formas de melancolia: a melancolia genuína aguda ou
cíclica, a melancolia neurastênica e a melancolia de angústia. Na primeira, teríamos a
cessação da excitação sexual somática quando for aguda e períodos de aumento e diminuição
dessa cessação, quando cíclica, na segunda, teríamos uma redução de excitação sexual
somática e na última, ou seja, na melancolia de angústia, teríamos um desvio do grupo
psíquico, permanecendo, entretanto, a produção de excitação sexual. Segundo a autora (1996,
p.33), “essa excitação não absorvida pelo psíquico permanecerá na fronteira entre o somático
e o psíquico, pré-condição, portanto, da angústia”. O melancólico é visto por Freud, nesse
escrito, como aquele em que uma falta de excitação sexual somática, ou seja, é anestésico.
Dessa forma, Peres (1996, p.33) afirma que o psicanalista propõe, pela primeira vez, a relação
entre melancolia e o luto, afirmando que:
O afeto que corresponde à melancolia é o luto, ou seja, anseio por alguma coisa
perdida. A melancolia, portanto vincula-se a uma perda, uma perda na vida
instintiva, e Freud estabelece um paralelo com a anorexia nervosa (neurose
alimentar): a perda do apetite como a perda da libido. A melancolia pode ser
entendida assim, como a perda da libido.
Vemos assim que, inicialmente, a idéia de melancolia e angústia está relacionada por
Freud a uma perda, ou seja, um luto de ordem sexual. Será então no artigo “Luto e
melancolia” ([1917]1980) que Freud detém-se com mais precisão sobre o conceito de
melancolia. Nesse texto, Freud nos traz as características da melancolia, distinguido-a do luto.
Segundo ele ([1917]1980, p. 275), “luto é a reação à perda de um ente querido, ou de alguma
abstração que ocupou o lugar de um ente querido (país, liberdade, o ideal de alguém)” e que
após certo lapso de tempo é superado. Essa superação ocorre em pessoas em cuja estrutura
psíquica não predominância de traços melancólicos. Entretanto, em pessoas com
disposição patológica, as mesmas influências produzem melancolia em vez de luto. Vemos
aqui, que a melancolia é tomada por Freud como doença, ou seja, uma psicopatologia.
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No luto, a perda é consciente, uma vez que o sujeito sabe exatamente a causa de
seu luto, na melancolia, ela é inconsciente, pois nela não se pode ver claramente o que foi
perdido, a perda pode ser do objeto amado (que pode não ter realmente morrido, mas ter-se
perdido enquanto objeto de amor), mas o melancólico não sabe o que perdeu nesse alguém e
pode ser também uma perda ideal. O fato é que o melancólico sofre sem saber exatamente a
causa de seu sofrimento, o que agrava ainda mais seu estado melancólico. Aqui, percebemos
que a melancolia não é mais relacionada, como vimos anteriormente, ao aspecto sexual, a
perda não está mais relacionada apenas à libido, mas a algo mais amplo. Freud traz agora a
noção de perda ideal que o indivíduo não sabe explicar e quanto aos traços distintivos da
melancolia, Freud ([1917]1980, p.276) afirma que:
Os traços mentais distintivos da melancolia são um desânimo profundamente
penoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar,
a inibição de toda e qualquer atividade, e a diminuição dos sentimentos de auto-
estima a ponto de encontrar expressão em auto-recriminação e auto-envilecimento,
culminando numa expectativa delirante de punição.
A essas características acrescentamos ainda a insônia que, de acordo com Freud,
completa o quadro de delírio de inferioridade do melancólico, figurando como “superação do
instinto que compele todo ser vivo a se apegar a vida” ([1917]1980, p.278).
É importante destacar ainda que enquanto para o enlutado o mundo se torna vazio,
para o melancólico é o próprio ego que se torna vazio e assim ele passa a nutrir uma total
satisfação no desmascaramento de si mesmo, apresentando-se sempre como ser desprovido de
valor. Nesse ponto, Freud afirma que se deve acreditar no melancólico, uma vez que “apenas
ele dispõe de uma visão mais penetrante da verdade do que outras pessoas que não são
melancólicas”. Para Freud ([1917]1980, p.278-279)
Quando, em sua exacerbada autocrítica, ele se descreve como mesquinho, desonesto,
carente de independência, alguém cujo único valor tem sido ocultar as fraquezas de
sua própria natureza, pode ser, até onde sabemos, que tenha chegado bem perto de
compreender a sim mesmo; ficamos imaginando,tão somente, por que um homem
precisa adoecer para ter acesso a uma verdade dessa espécie.
Vemos então que, na teoria freudiana, o melancólico é aquele que mais se aproxima da
verdade, o que nos permite falar, como dissemos ao tratar da melancolia na filosofia de
Kierkegaard, que a melancolia está intimamente ligada à noção de excesso de consciência.
Mais uma vez, no trecho acima destacado, é reforçada a idéia de melancolia enquanto doença,
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para chegar à verdade o ser precisou adoecer. A doença estaria associada à auto acusação,
pois, para Freud, todo aquele que procede desta forma, está doente, quer diga a verdade sobre
si, quer se mostre injusto para consigo mesmo.
No entanto, nem sempre correspondência entre o grau de autodegradação e sua real
justificação, ou seja, se autodegradar não significa exatamente se mostrar como é ou como se
acredita ser. Muitas vezes, o que ocorre é o contrário, o melancólico traz para si, para seu ego,
as acusações que deveriam ser feitas ao objeto que perdeu. Na verdade, todas essas acusações
são muitas vezes aplicáveis ao objeto que perdeu, ou melhor, à Coisa, termo que, Kristeva
(1989) afirma se referir ao real rebelde à significação, não simbolizável, indizível, e que o
melancólico (para não perder) o instala em si, pois o ama, mas por também odiá-lo, o difama,
o acusa e acusa a si próprio, pois uma vez este está acoplado a ele, ele também é mau, é nulo e
busca a morte. A queixa de si, segundo Kristeva (1989), é um ódio contra o outro, mas que o
melancólico ao instalar em si passa a odiar seu próprio ego, daí a satisfação no
desmascaramento de si mesmo. Este estado deprimente revela que o indivíduo teve seu ego
ferido, vazio e, segundo Kristeva (1989, p.18), “sua tristeza é a expressão mais arcaica de um
ferimento narcísico não simbolizável, não nomeável, tão precoce que nenhum agente externo
pode ser relacionado com ele”.
Sobre a busca da morte, Freud ([1917]1980, p.284) observa que “é
exclusivamente esse sadismo, que soluciona o enigma da tendência ao suicídio, que torna a
melancolia tão interessante e perigosa”. Sobre esse ponto, Kristeva (1989, p.13) assinala que:
“para o ser falante, a vida é uma vida que tem sentido: ela constitui mesmo o apogeu do
sentido. Por isto perdendo o sentido da vida, esta se perde sem dificuldade: sentido desfeito,
vida em perigo”. A autora diz ainda que o melancólico deseja a morte, ele não tem angústia de
desintegrar-se, sua morte é uma liberação.
É fácil entender essa busca pela morte, uma vez que para o melancólico a vida
está desprovida de sentido, parece então, que a morte figura como o único meio de vencer este
mal que o devasta. Ele está assim, envolto numa pulsão de morte que o empurra para a
destruição total.
No entanto, ainda resta ao melancólico a sublimação que, de acordo com Queiroz
(1999, p.100) “é o grande triunfo do homem para burlar a melancolia, a dor da falta, que está
presente em maior ou menor grau, mas nunca está totalmente ausente de sua esfera de
cogitações”. A sublimação, segundo a autora (1999, p.100):
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[...] impulsiona o indivíduo em direção ao seu [...] único salvador: a mania,
momento de exaltação em que ele transcende limites atávicos. O ‘fazer’ é a mania
do indivíduo: Inútil, porque o supre a perda; indispensável, porque lhe suaviza a
dor.
Queiroz (1999) afirma que não haveria criação artística se não puséssemos a mão
sobre esta ferida e, engolindo as lágrimas, não seguíssemos em frente. A mania, momento de
euforia, é assim, parte da melancolia, ou segundo Freud ([1917]1980, p.286) a melancolia tem
uma “tendência em se transformar em mania”, idéia colocada por Willis no século XVII,
como vimos anteriormente. Vemos, assim, que Freud retoma muito a idéia proposta por
Kierkegaard em seu conceito de angústia e desespero, ao tratar da melancolia ligada à noção
de consciência, no entanto, a noção de doença proposta por Freud entra em choque com a
idéia de Kierkegaard, para quem a mesma pode ser considerada uma condição existencial do
ser, que angustiado/desesperado, torna-se consciente de que é em vão fugir da sua condição,
passando a não querer profunda e intimamente coisa alguma, uma vez que ele está na
desesperança, ou seja, não espera coisa alguma.
A relação entre melancolia e desespero pode ser observada ainda nos estudos de
Kristeva (1989, p.13), através dos quais percebemos que a autora trata a melancolia como um
desespero, “sombra do desespero”, no qual o ser se depara com o absurdo de sua existência,
passando a viver “uma morte viva”. A autora fala ainda da melancolia como um excesso de
consciência como vemos no trecho a seguir (1989, p.12):
Ausente do sentido dos outros, estrangeira, acidental à felicidade ingênua, eu tenho
em minha depressão uma lucidez suprema, metafísica. Nas fronteiras da vida e da
morte, às vezes tenho o sentimento orgulhoso de ser a testemunha da insensatez do
Ser, de revelar o absurdo dos laços e dos seres.
Vemos ai uma íntima relação entre a idéia de melancolia (depressão) e o conceito de
desespero de não querer ser si-mesmo proposto por Kierkegaard (2004), abordado no tópico
anterior. Kristeva (1989) falará ainda na relação entre a melancolia e a consciência do
indivíduo, de ser, de acordo com Heidegger (2007ª), um “ser-para-a-morte”, afirmando que a
dor melancólica seria “a face escondida de minha filosofia” e que sem melancolia não haveria
psiquismo, mas apenas atuação ou jogo. A relação entre desespero e melancolia é ainda
percebida quando a autora (1989, p.13) nos fala que “não existe imaginação que não seja,
aberta ou secretamente, melancólica”, afirmação muito próxima à de Kierkegaard (2004),
quanto ao desespero como sendo universal, presente em todo ser, embora muitas vezes não
seja consciente. Podemos afirmar, dessa forma, que os conceitos de angústia, desespero e
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melancolia muitas vezes se aproximam, o que veremos na análise dos poemas selecionados.
Antes, porém, de passarmos à análise dos poemas, trataremos, no capítulo seguinte, das
relações entre literatura e melancolia, no qual apresentaremos a literatura como testemunho do
sentimento melancólico e apresentaremos ainda os sentidos e formas da melancolia presentes
no texto literário.
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CAPÍTULOIII
MELANCOLIA E LITERATURA
O grande tema da literatura já não é a aventura do homem
lançado à conquista do mundo externo, mas a aventura do
homem que explora os abismos e as cavernas da sua própria
alma. (Ernesto Sábato)
Neste capítulo, trataremos da melancolia enquanto mimetizada no texto literário (ver
tópico 3.1) e dos estudos sobre a melancolia na poética de Augusto Anjos, e Florbela Espanca
(ver tópico 3.2).
3.1 PRESENÇA DA MELANCOLIA NA LITERATURA
Segundo Scliar (2003), foi no Renascimento que a melancolia passou a ser associada
ao trabalho intelectual, sendo o melancólico considerado como aquele que era capaz de
grande produção intelectual e artística. Ainda no Renascimento, vimos que Ficinus aponta
Saturno como o planeta inspirador de sábios e estudiosos, que sofriam de melancolia por
vocação e contemplação, uma vez que o trabalho intelectual, por consumir calor e umidade,
deixava de resto apenas frieza e secura, ou seja, a bile negra. Enfim, é no renascimento que
encontraremos as primeiras associações entre a melancolia e o trabalho intelectual e, segundo
Scliar (2003), nesse período a melancolia irá influenciar os artistas, através dos quais ela
passa de entidade médica, ou seja, do paradigma de doença, para o de metáfora.
Na literatura, Scliar (2003) destaca obras como “El melancólico” de Tirso de Molina
que versará sobre a melancolia, além de numerosas peças teatrais nas quais a melancolia
figura como tema principal. Segundo o autor (2003, p.89), “entre 1500 e 1580 apenas três
referências à melancolia nas peças teatrais inglesas; de 1580 a 1620 o número sobe para
duzentos”. Tal informação nos mostra a melancolia como uma tendência da época
renascentista. Shakespeare é apontado por Scliar (2003, p.89) como um autor que captou bem
a tendência melancólica do período:
Hamlet é um personagem melancólico, desiludido com o mundo; incapaz de vingar
a morte do pai, como faria alguém “sadio”, ele é, ao mesmo tempo, dotado de uma
superior imaginação. Para Hamlet, a melancolia é uma resposta ao mundo doente do
qual ela própria se origina.
63
Obras como “Dom Quixote” refletiria a “melancolia do fidalgo”, tema comum na
época, em que a melancolia do príncipe ou do monarca era tratada em escritos como o do
médico Moisés Ben Maimom, o qual apontara a existência de uma relação entre a melancolia
e a realeza, destacando como possíveis motivos da “epidemia melancólica” entre os
monarcas, além das tremendas exigências dos cargos, os conflitos e as exigências da religião.
Em “Dom Quixote”, segundo Scliar (2003, p.90):
A aventura que o Cavaleiro da Triste Figura quer viver, a aventura mítica, não é
mais possível; o mito (ao menos em sua forma antiga) foi, como o Anjo da História,
de Walter Benjamim, arrastado do Paraíso pelo furioso vento do progresso. Agora
predomina a realidade do mundo material. Investir maniacamente contra moinhos de
vento que são máquinas, mesmo rudimentares, e, portanto, símbolo da
modernidade – não curará a melancolia. Nem mesmo representa o ideal de uma vida
aventureira, como foi a de muitos cavaleiros andantes. A aventura agora é outra, é a
aventura comercial, para a qual Sancho estaria mais bem aparelhado que o Cavaleiro
da triste Figura. Dom Quixote se refugia nos livros de cavalaria; “de pouco dormir e
muito ler se lhe resseca o cérebro”, que resultaria em fantasias doentias, capazes de
distorcer a realidade. [...] a sua “triste figura” não passa da projeção corporal do seu
temperamento: seco por dentro, seco – magro- por fora.
Vemos assim, de acordo com Scliar (2003), que as obras literárias seriam
representantes de um sentimento melancólico. No drama barroco alemão também é freqüente
a figura do príncipe melancólico. Conforme afirma Scliar (2003, p.92), Walter Benjamim
mostra como era vista a melancolia na dramaturgia barroca alemã (século XVII), afirmando
que se na Espanha, o barroco foi produto da Contra- Reforma, na Alemanha, os dramaturgos
barrocos eram luteranos e partilhavam “a crença de que a esfera secular era o campo de teste
para a existência; um estrito sendo de obediência ao dever era então imperativo moral”. Nos
homens isso produzia melancolia, e enquanto as pessoas simples, conforme Scliar (2003), se
agarravam à moralidade do cotidiano, à honestidade das pequenas coisas, para o intelectual,
isto não neutralizava o absurdo da existência. A idéia de morte enchia o intelecto de profundo
terror, de luto por um mundo esvaziado e transformado em máscara. A dramaturgia barroca
recuperaria essa máscara.
A título de exemplo, Scliar (2003) destaca como representantes de um sentimento
melancólico, as obras de Molina, Shakespeare, Cervantes, abordadas anteriormente, bem
como as obras de Milton, Burton, Baudelaire e seu Spleen (“Eu sou um cemitério”), Flaubert
e seu Madame Bovary, Gautier e seu Tristesse em mer. Será graças à influência francesa, que
a melancolia chegará ao Brasil.
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Nos poetas brasileiros, a tristeza é um tema recorrente, basta lembrarmos poetas como
Casimiro de Abreu que no poema Minha alma é triste assim se expressa: minh’alma é triste
como o grito agudo/ das arapongas no sertão deserto/ como o nauta sobre o mar sanhudo/
longe da praia que julgou tão perto”; Raimundo Correia que, evocando a África de onde
vieram os escravos, fala (em banzo) de “uma tristeza imensa, imensamente”; Álvares de
Azevedo, cujos versos falam de crepúsculos, de solidão, de saudade, da morte e Olavo Bilac,
que no soneto “Música brasileira” lembra que, atrás da cadência voluptuosa, está:
a tristeza/ dos desertos, da mata, do oceano/ bárbara pocaré, banzo africano,/ e
soluços da trova portuguesa” em acordes que são “desejos e orfandades/ de
selvagens, cativos e marujos”. É uma música feita de “nostalgias e paixões”; é
“lasciva dor, beijo de três saudades,/ flor amorosa de três raças tristes”.
Em Bilac, encontramos em forma poética, segundo Scliar (2003), o que Paulo Prado
desenvolveria em seu ensaio, ou seja, a superposição da tristeza e de volúpia, a alusão às “três
raças tristes”, à lusa, à indígena e à africana. Scliar (2003) destaca que o ensaio de Prado
apontaria a tristeza brasileira como sendo resultante de o brasileiro ser um povo que descende
de três raças tristes: os portugueses, além de outros fatores, pelo degredo, o exílio que o Brasil
representava para eles, segundo Gilberto Freire (apud Scliar, 2003, p.190): “o português, já de
si melancólico, deu no Brasil para sorumbático, tristonho”; os indígenas, pelas doenças, a
escravidão e dizimação, entre outros, trouxe um clima de total desesperança culminando em
um fenômeno de suicídio, para Scliar (2003), conseqüência da depressão; os africanos, entre
outros fatores, por terem sidos brutalmente arrancados de suas terras, transportados em
infames navios, submetidos ao humilhante trabalho escravo e pelo banzo (saudade da África).
Em Bilac, como percebemos, essa idéia já era proposta em forma poética.
Podemos destacar ainda a presença da melancolia nas obras de Machado de Assis, tais
como nos romances “Memórias póstumas de Brás Cubas” (1997, p.15), na qual o narrador
fala de uma idéia que lhe ocorreu: “a invenção de um medicamento sublime, um emplastro
anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade”, “Quincas Borba”
(2004, p.33), através do qual descobrimos que “a melancolia da paisagem está em nós
mesmos”, “Dom Casmurro” (1994), que começa melancólico no título; nos contos “Um
apólogo”, no qual o narrador fala, no final, com “um professor de melancolia”, “O delírio”, no
qual aparece a expressão “a melancolia da tarde” proferida pela Natureza, que nesse conto
fala como personagem, “Cantiga de Esponsais”, no qual mestre Romão é apresentado como
melancólico e “O alienista”, conto no qual, segundo Scliar (2003, p.213) “manifestações
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melancólicas e maníacas se alternam” nas figuras das personagens. Doutor Simão Bacamarte,
cujo estado de ânimo se alterna constantemente entre a euforia e o desânimo e de sua esposa,
dona Evarista, que cai em “profunda melancolia” ao assumir a doença do marido. Vemos,
assim, que a melancolia está representada em algumas obras de Machado de Assis, tais como
as que destacamos aqui.
A melancolia aparecerá representada ainda na obra “Triste fim de Policarpo
Quaresma”, de Lima Barreto (1997), no qual, desde o início sabemos que vamos ler um livro
amargo, seja pelo título, que representa um anticlímax, antecipando que será triste o final, seja
pelo nome da personagem, cuja amargura podemos perceber nas palavras de Scliar (2003,
p.220-221), segundo o qual:
Na botânica, “policarpoé a planta que muitos frutos, uma alusão à fertilidade
criativa. Mas em “policarpo” pode estar, associado ao poli, muito, o verbo carpir,
aludindo a um sofrimento também evocado pela Quaresma – período de meditação e
penitência -. A Quaresma nos lembra que depois da festa – e festa mais festa que
o carnaval brasileiro? – vem o sofrimento, a paixão de cristo.
A melancolia está presente em toda a vida dessa personagem, em seus sonhos
desfeitos, suas decepções, que o levaram a concluir que a pátria que desejava era um mito e
dizer ao final (1997, p.166): “o importante é que ele tivesse sido feliz. Foi? Não”.
Outras obras apontadas por Scliar (2003) como representantes de um sentimento
melancólico são os romances “Macunaíma”, de Mário Andrade, na qual, segundo o autor, a
personagem Macunaíma seria uma versão exótica, tropicalista da melancolia e “A hora da
estrela”, de Clarice Lispector, na qual vemos que a hora da estrela é a hora da morte.
A melancolia é considerada por Firmo (2004), como uma das temáticas da poética de
Mário Quintana. De acordo com esta autora, na poética de Quintana, podemos encontrar um
eu - lírico profundamente melancólico. “Os temas mais freqüentes em sua obra são a infância,
a morte, o amor, o cotidiano e o tempo.”, observa Firmo (2004, p.127). Um dos poemas
analisados pela autora é o poema “Recordo Ainda”:
Recordo ainda... E nada mais importa.../ aqueles dias de uma luz tão mansa/ Que me
deixavam, sempre, de lembrança,/ Algum brinquedo novo à minha porta.../ Mas um
dia veio um vento de Desesperança/ Soprando cinzas pela noite morta!
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Firmo (2004) destaca no poema a presença do luto que caracteriza a melancolia: o luto
pela perda da infância. O “vento de Desesperança”, pode ser interpretado como as angústias
que nos acometem com a perspectiva do futuro. Vemos então que desespero, angústia e
melancolia são sentimentos totalmente interligados, ou seja, a desesperança do eu - lírico vem
da angústia quanto à perspectiva do futuro, gerando um estado melancólico.
A melancolia aparece ainda, segundo Firmo (2004), nos textos quintanianos, como o
que segue, no qual percebemos a presença da pulsão de morte:
A Amiga
Ele chegou ao bar, pálido e trêmulo. Sentou-se.
- Por enquanto nada desculpou-se ao garçom. Estou esperando uma
amiga.
Dali a dois minutos, estava morto.
Quanto ao garçom que o atendeu, esse adorava repetir a história, mas
sempre acrescentava ingenuamente:
- E até hoje, a “grande amiga” não chegou!
Nesse texto melancolia e ironia aliam-se. Tanto o comportamento do homem como
seu estado e a frase que dirigiu ao garçom demonstram que ele encontrava-se em estado de
depressão, taciturno e que se decidira pela morte, suicidando-se no bar, sendo que a ironia
residiria na ambigüidade provocada pela metáfora que o garçom não pode decodificar, uma
vez que ele a entendeu no sentido literal, encarando a morte do homem com naturalidade,
que seria normal ocorrerem mortes em um bar.
Ainda sobre a representação da melancolia na literatura brasileira, os estudos de Viana
(2004) destaca essa presença na poética de Álvares de Azevedo, de Olavo Bilac. De fato,
percebemos a mimetização da melancolia nos autores citados pelo autor. Em Álvares de
Azevedo, mais precisamente no poema “No túmulo do meu amigo João Baptista da Silva
Pereira Júnior”, o eu-lírico afirma: “A vida é noite: o sol tem véu de sangue:/ Tateia a sombra
a geração descrida.../ Acorda-te, mortal! É no sepulcro/ Que a larva humana se desperta à
vida”, manifestando uma total descrença na vida e segurança apenas na morte. Em Bilac,
podemos destacar o soneto “Tédio” como representante de uma temática melancólica,
revelada pela busca da morte: “Oh, dormir no silêncio e no abandono,/Só, sem um sonho, sem
um pensamento/ E, no letargo do aniquilamento,/ Ter, ó pedra, a quietude do teu sono”.
Ao analisar a obra desses três poetas brasileiros, Viana (2004) conclui que há, entre
esses e outros poetas, alguns pontos em comum no que diz respeito à representação do afeto
melancólico, delineando, assim, os contornos de uma poética da melancolia, destacando, entre
eles, as características que resumimos a seguir:
67
sentimento de perda da Unidade entre o indivíduo e o cosmo: segundo o autor,
em conseqüência desse sentimento, o real se apresenta ao melancólico, como
fragmentado. Uma vez que foi rompida a Unidade que integra indivíduo e
natureza, o eu - lírico passa a ver-se como uma presa de inconciliáveis
antinomias sendo a antítese a figura típica desse tipo de sentimento.
Ambigüidade na representação da natureza: na poética melancólica, verifica-
se um desequilíbrio entre o indivíduo e a natureza, que ele tanto ama quanto
maldiz, por vê-la como mãe e madrasta, despertando nele um desejo de
vingança.
Sentimento de estar exilado e tendência à contemplação: sentindo-se sozinho,
apartado dos homens e do mundo, o melancólico é predisposto à contemplação
e a uma exacerbada consciência de si mesmo. A meditação, segundo o autor,
corresponde ao impulso que lhe é característico de sondar o micro e o
macrocosmos.
Tendência a sublimar o desejo sexual e a idealizar o objeto amoroso: essa
tendência é destacada, sobretudo, na poesia romântica, na qual a mulher
aparece como uma entidade ilusória. Viana (2004) destaca o fato de o eu -
lírico não desejar propriamente o ato sexual, mas nutrir um desejo pelo amor
em sua forma psíquica, resultando disso, o delírio, a fantasia e o excesso de
imaginação.
Angustiosa consciência da transitoriedade: na linguagem melancólica fica
evidente o desespero ante a efemeridade do mundo, levando o eu - lírico a se
fixar nos escombros e nas ruínas, que constituem indícios de uma totalidade
perdida, advindo daí o uso constante de alegorias que segundo o autor, são
representações espaciais denunciadoras da passagem do tempo. O sentimento
do efêmero assusta o melancólico e ao mesmo tempo o fascina por lhe acenar a
perspectiva da morte.
Combate entre a idéia e a forma, sentimento e expressão: presente
especialmente nos poetas simbolistas e parnasianos, que, segundo o autor,
prenunciam as reflexões metalingüísticas dos autores modernos, tal
característica aponta para uma procura, através da forma, de compensar o
sentimento de um vazio, um vácuo narcísico.
68
Disposição para o sacrifício: sobre essa característica, Viana (2004) afirma
que o melancólico, através da consciência de suas renúncias e padecimentos,
passa a ver a si mesmo como um ser de exceção, que suporta em níveis
intensos o efeito dos pecados humanos.
Desencanto conseqüente à perda da crença: é comum na linguagem
melancólica a referência do contraste entre o passado de inocência e esperança,
e um presente marcado pela perda das ilusões. Segundo Viana (2004), na
representação dessa ruptura, que o fez triste e desencantado, o melancólico
imagina ter vivido num lugar-tempo ideal (ilha, pátria, infância) do qual foi
banido pelas duras injunções da realidade, retomando o mito do paraíso
perdido.
Ainda no plano literário, o autor destaca a presença de imagens de solidão e devaneio
em que o eu - lírico se reconhece apartado do mundo e numa condição privilegiada para
refletir sobre o destino humano. O eu - lírico melancólico, segundo Viana (2004, p.12)
“recusa o comércio afetivo com as pessoas, como se isso fosse um rebaixamento, e com um ar
de superioridade prefere, a viver, contemplar o espetáculo da vida.
São ainda características desse discurso, segundo o autor, o excesso de idéias e a
repetição obsessiva de imagens e temas, o que, psicanaliticamente falando, apontaria uma
fixação por um objeto perdido que, na chamada melancolia narcísica, encontra-se no interior
do indivíduo. A angústia do melancólico seria a de não falar ou fazê-lo de maneira precária,
insuficiente, isso se daria porque, como afirma Viana (2004, p.13) “a linguagem, para ele, é o
meio de traduzir a fratura do espírito ante uma perda do Sentido Absoluto, matriz do
sentimento melancólico cristão, instalado no homem por força do pecado original.”.
Vemos aqui a associação da angústia do melancólico ao pecado original já sugerida na
filosofia kierkegaardiana, como vimos anteriormente e, nesse sentido, Scliar (2003), falará de
uma melancolia trazida aos trópicos (ao povo do sol) pelos europeus (povo do frio) junto com
a noção cristã de culpa e pecado, noção que, para o autor, inexistia ao sul do equador, motivo,
entre outros, que levaria os europeus a verem nas terras “descobertas” uma aproximação à
idéia de “Paraíso”, lugar “onde abolidos estariam o autocontrole dos instintos e a culpa”. Para
o autor (2003, p.130), sem essas noções de culpa e consciência do pecado não haveria
motivos para melancolia, pois “sem culpa, não há melancolia, não há sofrimento”.
69
A rejeição ao erotismo, uma aversão ao prazer, seria segundo Viana (2004), típico de
uma linguagem melancólica que se revelaria através da expressão de um ódio ao próprio
corpo. O autor (2004, p.14) entende da seguinte forma tal rejeição: “se o melancólico tem
culpa, seu corpo é o lugar de ele se punir.” Sendo que “No plano da representação literária, o
efeito de tal correspondência é a segmentação ou mesmo o desaparecimento do corpo
material, que ora se volatiza, na perspectiva da sublimação e da idealização, ora aparece
despedaçado, corrompido, putrefeito” (VIANA, 2004, p.14).
Viana (2004) discorre ainda sobre a íntima relação entre a melancolia e a ironia ao que
parecem ter uma base comum que, segundo ele (2004, p.14), seria “a percepção do contraste
ante a pequenez do homem e o seu desejo de transcender a si mesmo rumo a uma experiência
do Infinito.”, idéia que, segundo o autor, seria expressa na poesia através do constante
combate entre a idéia e a forma, o sentimento e a expressão, característica de muitos autores
modernos nos quais a elaboração artística adquire um estatuto de transcendência, tais como
João Cabral de melo Neto e Drummond.
A diferença apontada pelo autor, entre as duas seria apenas no sentido de que,
enquanto na expressão melancólica vemos o ser sucumbir à perda do objeto perdido, na
ironista temos uma reação do ser a ela com desdém que parece alimentar-se do próprio
fracasso. Para Viana (2004, p.14), se na melancolia o ego se reconhece vencido e tende à
autodepreciação, na ironia, embora, assim como na melancolia, haja a aspiração a um (objeto)
Absoluto que não está ao seu alcance e um ressentimento frente a uma perda, a uma falta, o
indivíduo não sucumbe ao puro auto-envilecimento, pois ele se coloca bem acima do que
denuncia ou critica. Pela ironia, segundo Viana (2004), suaviza-se a angústia.
Embora considerando essas características apontadas por Viana (2004) como típicas
de uma poética melancólica, na análise que segue não pretendemos apenas verificar a
presença de tais características, mas deixar falar o texto poético, num diálogo que livremente
convoca contribuições do existencialismo kierkegaardiano nos apontando novas formas de
perceber a representação melancólica associada às noções de angústia e desespero, situando-a
enquanto condição existencial, enquanto vertigem de consciência do Ser no mundo.
Na poética de augusto dos Anjos, tanto os estudos de Viana (1994) como os de
Bezerra (2004), entre outros, o primeiro trilhando o caminho da psicanálise e o segundo
tratando da alegoria presente nos poemas, têm apontado a presença da melancolia textual, o
que sugere a pertinência de nosso estudo. No entanto, nossa leitura da melancolia em Augusto
70
dos Anjos, buscará o diálogo entre essa poética e a filosofia existencial, o que diferencia nossa
leitura em relação aos estudos citados.
No caso de Florbela Espanca, muito se tem falado de sua poética amorosa, como
atestam os estudos de Moisés (2000, p.483), segundo o qual, embora Florbela se aproxime de
sonetistas como Camões, Bocage e Antero, deles difere “numa série de pontos (resultantes, no
geral, de ser uma mulher e, por isso, cantar apenas o Amor)”. Como percebemos pela citação,
o estudo de Moisés (2000) é bastante reducionista por não abarcar toda a riqueza da obra de
Florbela e ainda entendê-la unicamente como uma expressão dos anseios amorosos femininos,
não considerando seu aspecto mais amplo, de representação do humano. Além dele, outros
estudiosos tem destacado, ou a temática amorosa da poeta, como os estudos de Dal Farra
(1995), Ferreira (1995), ou do feminino, como atestam os estudos de Hortas (1995), sendo sua
poética melancólica pouco trabalhada. A exceção seriam alguns estudos sobre a presença da
morte em sua poética, tais como os estudos de Pereira (1995) e Dal Farra (2002).
Nesse sentido, acreditamos que nosso trabalho se diferencia dos demais no sentido de
resgatar essa poética melancólica, como vimos, ainda pouco trabalhada. No entanto, antes de
passarmos à análise dos poemas à luz da filosofia kierkegaardiana, torna-se relevante fazer
algumas considerações sobre os estudos realizados sobre a poética de ambos no que diz
respeito não apenas à mimetização da melancolia textual, mas à sua relação com a vida dos
poetas.
3.2 MELANCOLIA NAS POÉTICAS DE AUGUSTO DOS ANJOS E FLORBELA
ESPANCA: A RELAÇÃO VIDA E OBRA.
A presença da melancolia no texto poético de Florbela Espanca tem sido uma temática
pouco abordada pela crítica literária. No caso de Augusto dos Anjos, embora muito se tenha
falado da presença da melancolia em sua poética, percebemos que esta tem sido
predominantemente estudada de forma reducionista, por uma via autobiografista, os quais
tomam a melancolia textual para fazer uma análise biográfica da melancolia pessoal
apontando para uma possível consonância entre vida e obra.
No caso de Florbela Espanca geralmente, têm-se privilegiado sua poesia lírico-
amorosa, embora, no que diz respeito à presença de sentimentos melancólicos em sua poética,
assim como na maioria dos estudos sobre a poética de Augusto dos Anjos, essa seja entendida
enquanto uma representação dos conflitos pessoais da poeta. Muitos desses estudos se
constituem numa leitura psicologista, geralmente por uma via psicanalista, os quais apontam
71
uma tradução da linguagem simbólica da obra como indicativo de traumas ou neuroses de seu
autor. No entanto, segundo Bordini (2003), atenta para o fato de que vida e obra nem sempre
são consoantes e que casos suficientes na literatura para provar que a dissonância entre as
duas existe.
Se considerarmos os dois poetas aqui estudados, vemos que muitas vezes são
apontadas, em relação à presença da melancolia em suas poéticas, uma consonância entre a
obra e a vida de ambos. Em relação a Augusto dos Anjos, são muitos estudos que apontam a
consonância entre a vida e a obra do autor. Nesse sentido, Erickson (2003), concordando com
Helena, afirma que esta “tem razão em caracterizar a crítica do poeta como principalmente
biográfica” embora, segundo Erickson (2003), alguns dos estudos que Helena toma por
biográficos, a exemplo dos estudos de Houaiss, Carlos Burlamaqui Kopke, J. Escobar Farias,
Ledo Ivo e Humberto Nóbrega, contenham comentários interessantes e iluminadores que não
podem ser desprezados.
Um dos muitos estudos apontados por Erickson (2003) como bibliografia biográfica
ou psicologista de Augusto dos Anjos, ou seja, nos quais a interpretação da poesia está apenas
a serviço da biografia, é o estudo de Almeida (1962). Nesse estudo, intitulado Augusto dos
Anjos: razões de sua angústia, percebemos que o autor pretende, além de tratar da biografia
do poeta, fazer uma leitura psicológica de sua obra no intuito de “levantar a ponta da cortina
para melhor compreensão das suas mensagens de angústia”, buscando encontrar na poesia o
homem, uma vez que para ele, o eu de Augusto pode ser encontrado dentro do Eu.
Sendo assim, Almeida (1962) aponta como as razões da angústia de Augusto, ou
melhor da angústia na poética de Augusto, entre outros fatores, um drama de amor, amor não
concretizado em vida e que, pela impossibilidade de viver esse amor, o poeta teria adquirido
uma imensa angústia que poderia ser observada em sua obra. Para confirmar sua afirmação
Almeida (1962, p.24-26) destaca, entre outros, o poema “A Árvore da Serra”, no qual,
segundo o autor é nítida a alusão a um amor desejado e não vivido. Destacamos aqui esse
poema para dar uma noção mais clara das idéias colocadas por Almeida (1962).
No soneto, Augusto (sim, o homem, afinal, para Almeida (1962), não existe separação
entre o eu - lírico e o homem Augusto dos Anjos) assim se expressa:
72
A ÁRVORE DA SERRA
01 — As árvores, meu filho, não têm alma!
02 E esta árvore me serve de empecilho...
03 É preciso cortá-la, pois, meu filho,
04 Para que eu tenha uma velhice calma!
05 — Meu pai, por que sua ira não se acalma?!
06 Não vê que em tudo existe o mesmo brilho?!
07 Deus pos almas nos cedros... no junquilho...
08 Esta árvore, meu pai, possui minh'alma! ...
09 — Disse — e ajoelhou-se, numa rogativa:
10 «Não mate a árvore, pai, para que eu viva!»
11 E quando a árvore, olhando a pátria serra,
12 Caiu aos golpes do machado bronco,
13 O moço triste se abraçou com o tronco
14 E nunca mais se levantou da terra!
Considerando o poema, o autor (1962, p.26) dique eles mostram “que foi por causa
de um amor desventurado que se fez assim tão sombrio” e analisa o poema da seguinte forma:
A cena teria se passado no engenho Pau D’arco residência do poeta. O moço triste
era ele, e a namorada, a árvore da serra, que possuía a sua alma. A bem amada já
havia cedido ao amor do poeta [...] Por ser uma jovem de condição humilde, [...] o
pai austero [...] determinou [...] tirar para sempre da presença do filho aquela flor
silvestre, que o tinha preso aos seus encantos, crendo que, com o desaparecimento
do empecilho, pudesse ter uma velhice calma. [...] os versos deixam transparecer que
houve violência. Mais de uma vez fala o poeta em golpes [...] Caiu aos golpes do
machado bronco [..] A moça ao que parece era natural do brejo ou do sertão [...] de
outra forma não há sentido para o verso “E quando a árvore, olhando a pátria serra”.
Vemos assim que, para Almeida (1962), nesses poemas, Augusto falaria de um amor
proibido, e demonstraria ao leitor toda a razão de sua angústia diante da rejeição do pai pela
sua amada que, como induz o escritor, foi morta por determinação do pai que não aceitava sua
humilde condição. Toda a obra de Augusto, segundo o autor, está permeada pela dor dessa
perda, perda que causaria toda a angústia de seus versos, os quais demonstrariam seu posterior
descrédito pelo amor e ainda explicariam a constante presença da morte nessa poética.
Almeida (1962, p.33) chegar a achar “curioso que o egoísmo de uma dor sem fim não lhe
tenha feito perder o amor ao pai”, uma vez que na poética augustiana alguns sonetos são
dedicados à figura paterna.
Podemos perceber, dessa forma, que a análise proposta por Almeida (1962) reduz a
poética de Augusto dos Anjos a uma simples expressão dos conflitos de seu autor, conflitos
73
que, nesse caso, não são confirmados nem pelos textos, nem mesmo pela biografia do autor, o
que nos permite afirmar que a interpretação de Almeida (1962) é muito forçada. Ora, segundo
Chevalier e Gheerbrant (2007), a árvore é um dos temas simbólicos mais ricos e mais
difundidos, cuja simples bibliografia daria para formar um livro. Ela simboliza a vida, em
perpétua evolução e em ascensão para o céu, evocando o simbolismo da verticalidade;
simboliza a morte e regeneração, atentando assim para o aspecto cíclico da evolução cósmica;
simboliza a relação entre a terra e o céu, uma vez que suas raízes mergulham no solo e seus
galhos se elevam para o céu; é o pilar vertebral de sustentação da casa; representa a
transmissão da imortalidade, como perceptível na árvore da vida no mito do edêmico; seu
tronco, erguido em direção ao céu, simboliza a força e o poder solar, dizendo respeito ao falo,
imagem arquetípica do pai, sendo que sua derrubada representaria a castração; representa a
família (árvore genealógica), a cidade, o povo e ainda o poder do rei, figura situada entre os
deuses e os homens. Sendo assim, muitas são as possibilidades de leitura do poema,
considerando as inúmeras leituras do símbolo da árvore.
Considerando as informações de Chevalier e Gheerbrant (2007) no que diz respeito à
representação do gênero, a árvore estaria muito mais relacionada ao masculino, ao fálico, que
ao feminino cuja relação é proposta por Almeida (1962). Se é possível fazer uma ponte entre a
ficção e a confissão, seria mais relevante entender a relação da árvore enquanto símbolo da
casa, proposta pelos autores (2007, p.84), representando a “coluna vertebral” que a sustenta,
em torno da qual estaria a família. Ora, sabemos que Augusto presenciou o declínio financeiro
de sua família, os Fernandes de Carvalho, proprietários de engenhos nas várzeas da Paraíba,
devido a vários fatores como: a baixa do açúcar e da aguardente, a abolição da escravatura, a
proclamação da República e o estabelecimento da Companhia de Engenhos Centrais anglo-
holandesa, fatores esses que viriam causar o desmoronamento de todo um amplo setor da
classe latifundiária do Nordeste, agravando a miséria legendária da região.
Basta recordar que em 1982, os dois engenhos da família Fernandes de Carvalho, o
“Coité” e o “Pau D’arco”, foram hipotecados, sendo posteriormente vendidos. Dessa forma,
podemos interpretar a árvore como representação da casa onde se reúne a família, ou seja, as
propriedades da família, local onde Augusto escrevera muitos de seus poemas, onde estaria
depositada sua alma, e a derrubada como a crise financeira que culminaria com a vendas das
terras. “É preciso cortá-la”, pode ser interpretado por é preciso dela se desfazer, uma vez que
a situação financeira impedia à família continuar de posse das terras.
74
Embora não seja nosso intuito fazer uma interpretação do poema mencionado,
consideramos que essa leitura seria bem mais condizente com a biografia do poeta e nela,
poderíamos observar a relação entre a ficção e a confissão. Seria menos forçada que a leitura
de Almeida (1962) para quem o verso “E quando a árvore, olhando a pátria serra” não tem
sentido se não for relacionado à figura feminina supostamente assassinada pelo pai de
Augusto.
Ora, sabemos que a linguagem poética, através de suas metáforas pode muito bem
realizar a personificação das coisas inanimadas e, como vimos, a árvore representa uma gama
enorme de significação. A personificação do inanimado, figura de linguagem que recebe o
nome de Prosopopéia, é bastante utilizada na linguagem literária. A título de exemplo
podemos citar o poema “A cumeeira de Aroeira da casa grande” do poeta campinense
Jessier Quirino (2006) no qual, assim como em Augusto, o poeta discorre sobre o olhar da
cumeeira, aqui não lançado para a pátria serra, mas para casa-grande. No poema, é a partir do
olhar e da fala da cumeeira que é realizada uma descrição pormenorizada da casa grande:
“Oh, cumeeira de aroeira dessa casa grande/ Veja e nos mande uma visão dessa velha morada
[...] Esta é a visão daqui de cima que meu olho expande/ Eu, cumeeira de aroeira dessa casa-
grande” (2006, p.35).
Como se vê, considerar o verso “E quando a árvore olhando a pátria serra” sem
sentido, se o relacionado à jovem, é desconsiderar a multisignificação da linguagem
poética.
É se referindo a exemplos como o da leitura de Almeida (1962) que Erickson (2003)
considera ainda pouco a fortuna crítica sobre essa poética, uma vez que muito da crítica de
Augusto não pode ser considerada crítica no sentido técnico, pois nela a interpretação da
poesia está geralmente a serviço da biografia do poeta.
Acrescentamos ainda que muitos dos estudos que vêem na poética de Augusto uma
expressão de seus conflitos pessoais ou mesmo de seus males físicos ou psíquicos, não
encontram fundamento, uma vez que, segundo Erickson (2003, p.31), na biografia escrita por
Nóbrega (1994), este autor consegue “desferir golpes mortais contra a hipótese de que
Augusto dos Anjos teria sido tuberculoso ou maníaco-depressivo, [...] abrindo espaço para se
interpretar as imagens do poeta como construções imaginárias”.
Nóbrega (1994) também trará a público alguns poemas humorísticos de Augusto até
então ignorados , como o poema “Versos Carnavalescos”, no qual o poeta assim se expressa
75
nos versos iniciais: “Digno como um presidente/ - Clonesno, tangendo guisos/ Abro a válvula
dos risos/ Para alegrar toda esta gente”, demonstrando assim, outra face do poeta, a face da
alegria, desconhecida em sua obra. Percebemos, assim, que a consonância entre vida e obra,
no caso de Augusto, embora muitas vezes atestada pela crítica, não encontra suporte que a
confirme.
Quanto aos estudos sobre Florbela Espanca podemos dizer que muito se tem
falado numa consonância entre vida e obra. Autores como Moisés (2001, p.253), consideram
que sua poesia “trata-se duma poesia-confissão, através da qual ganha relevo eloqüente,
cálido e sincero, toda a desesperante experiência sentimental duma mulher.” No entanto, ao
contrário de Augusto, uma consonância entre vida e obra, em relação aos problemas
psíquicos, parece ser atestada, uma vez que, segundo Dal farra (1996, p.LI), nos anos de
1918 Florbela segue para Quefes (Algarves) e, em 1923, para Gonça (Guimarães) a fim de
tratar-se de sua doença que, de acordo com Moisés (2001, p.253), consistia em estar
“Deprimida, desiludida”, sendo que nesse momento a poeta “retira-se do convívio social”.
Após a morte do irmão Apeles Espanca, segundo Dal Farra (1998, p.LIV),
Florbela “se declara quase permanentemente deprimida, doente dos nervos, fumando em
demasia e emagrecendo sensivelmente”. Sobre a morte do irmão, a poeta diz (1996, p. LIV)
“esse horror arrasou-me, esfacelou-me”. Florbela afirma ainda ser (1996, p.XIX) “uma
revoltada Joh que está doente e tem os nervos destrambelhados”.
Segundo Dal Farra (1996, p.XIX), a poeta apenas consegue dormir à custa de
“Veronal” e “seu estado de espírito está desejoso da transformação universal pela morte”. A
autora (1996, p.LV) diz ainda que, em seu Diário do último ano”, encetado em primeiro de
janeiro de 1930, Florbela mostra o profundo estado de solidão no qual está mergulhada. A
leitura do diário e das cartas escritas pela poeta no seu último ano, organizadas por Dal Farra
(2002) deixa entrever a presença de uma doença nervosa que lhe impede de viver uma vida
social satisfatória. Florbela declara-se constantemente nervosa, com insônia, insatisfeita com
a vida, com os outros e consigo mesmo, sem condições para sair de casa e desejosa por
morrer. Numa das páginas do diário, datado de 22 de fevereiro de 1930, lemos a seguinte:
O olhar de um bicho comove-me mais profundamente que um olhar humano.
dentro uma alma que quer falar e não pode, princesa encantada por qualquer
fada. Num grande esforço de compreensão, debruço-me, mergulho os meus olhos
nos olhos do meu cão: tu que queres? E os olhos respondem-me e eu não entendo...
Ah; ter quatro patas e compreender a súplica humilde, a angustiosa ansiedade
daquele olhar! Afinal... De que tendes vós orgulho, ó gentes?
76
Nesse último ano de vida, Florbela “vive e retirada... deixando-se rodear tão-
só pelos seus livros, flores e cão”, como afirma Dal Farra (1996, p.XIX), vindo a suicidar-se,
ritualisticamente na madrugada do dia oito de dezembro (momento em que faz 36 anos), em
Matosinhos, com uma dose letal de Veronal (medicamento que usava para dormir). Dal farra
afirma que, embora a versão oficial fosse a de morte natural, “o atestado de óbito apontava
como causa mortis um ‘edema pulmonar’”, a causa verdadeira teria sido velada pela família,
o que é fácil de ser entendido pelos seguintes fatos: “uma família católica, interdição da
palavra suicídio na imprensa, receio de falatório” (Dal Farra, 1996, p.XIX). Segundo a
autora, o fato de seu último marido ser médico teria ajudado no encobrimento da verdadeira
causa da morte da poeta.
Como podemos perceber, esses estudos têm apontado para uma consonância
entre a vida e a obra de Florbela Espanca, no entanto, não é nosso intuito, nesse trabalho,
fazer uma análise da vida dos poetas ou de possíveis relações entre suas vidas e suas obras.
Nesse sentido, é importante destacar que a leitura da obra de Florbela mostra que a autora
não tratou de exprimir apenas sentimentos que podem ser considerados melancólicos, mas
variados temas, como a religiosidade, o amor, o fazer poético, o erotismo, entre outros, o que
nos permite afirmar que, embora se considere que uma consonância entre a melancolia
textual e a real da poeta, como apontam os estudos de Dal farra (1996) e Moisés (2000), sua
obra é bem mais ampla e nosso estudo tomará apenas um dos muitos temas, apenas uma das
muitas faces encontradas nessa obra.
Em Florbela, percebemos que se em alguns sonetos como os que analisamos
nesse trabalho o eu-lírico se coloca sempre de forma negativa diante da vida, do amor, e de
si próprio, em outros, ocorre exatamente o contrário, ou seja, uma exaltação da vida, do amor
e de si como atestam os sonetos “O nosso mundo”, “Amar!” e “Versos de Orgulho”, entre
outros. Sendo assim, nossa análise parte da noção proposta por Heidegger (2007b) de que a
poesia não é beleza, nem criação, nem imitação, mas revelação do ser, desocultamento
original, ou seja, forma do ser se revelar, no sentido de que na obra de arte acontece a
revelação ou a verdade de algo, a verdade do ser.
Obviamente, não podemos desconsiderar que a consonância entre vida e obra é
muitas vezes atestada. Conforme afirma Santiago (2006), é possível haver o processo de
transferência da experiência pessoal para o outro através da palavra poética. O autor
demonstra como essa transferência é perceptível na poética drummondiana. Da mesma
77
maneira Cândido (2006), ao analisar o romance de Graciliano Ramos, pressupõe que
nessa obra uma pesquisa progressiva da personalidade, quase sempre com manipulação
ficcional de elementos autobiográficos, o que levou o romancista a ir passando para o relato
direto de sua própria vida, ou seja, o romancista, da ficção passa para a autobiografia quando
a ficção já não lhe bastava para exprimir-se. O trânsito do ficcional para o autobiográfico se
torna mais evidente no romance “Infância”, pois conforme afirma o autor (2006, p.90),
“infância é autobiografia tratada literariamente”.
No caso de Florbela Espanca, Junqueira (2003) ao analisar sua prosa, seu Diário
e contos e algumas cartas pessoais, observa haver em sua obra uma “estética da
teatralidade”, no sentido de que muito de sua vida presente nos contos e muito de ficção
em seu Diário, o que leva a autora afirmar sobre Florbela (2003, p.115) que assim “como um
camaleão, ela é capaz de mudar de cor instantaneamente para impedir que a retenham no
‘tecido incolor de sua vida medíocre’”.
De fato, é possível verificar na prosa de Florbela inúmeros momentos em que a
ficção cede lugar à confissão. O livro de contos “A máscara do destino”, escrito após a morte
de seu irmão Apeles Espanca, piloto-aviador da Aviação Naval, morto quando o hidroavião
que pilotava se despenhou no Rio Tejo, além de ser dedicado a ele: “Ao meu querido irmão,
ao meu querido morto” diz a dedicatória, traz, em todos os contos, uma constante obsessão
pela morte representada pelas personagens que parecem viver apenas sua função, sendo que
o conto intitulado “O aviador”, Florbela faz uma alegoria da morte de Apeles, em que seu
acidente é iluminado através do mito de Faetonte.
Na obra poética, Florbela dedica ainda visivelmente ao irmão o soneto: In
memorian”, no livro Charneca em Flor. No entanto, não é apenas em relação ao irmão que
percebemos a presença da confissão na obra de Florbela. No conto “À margem dum soneto”
da obra Dominó Preto, é nítida, logo no início do conto, a relação entre a protagonista e a
pessoa de Florbela. Nele, temos um enredo simples: numa noite de novembro, num frio luar
de inverno, uma poetisa recebe em casa um visitante a quem confessa ter terminado o soneto
com que vai fechar seu livro de versos. A poetisa ler então o soneto ao visitante que repete
incessantemente sua última estrofe: “Ó pavoroso mal de ser sozinha!/ Ó pavoroso e atroz mal
de trazer/ Tantas almas a rir dentro da minha!”
Ora, soneto mencionado pela poetisa, personagem do conto, é mesmo soneto
intitulado “Loucura”, pertence à coletânea de poemas “Reliquiae” (1931, obra póstuma) de
Florbela Espanca, o que nos leva a inferir que ela fala de si própria.
78
Em Augusto dos Anjos, também podemos afirmar que em muitos momentos é
perceptível a construção de uma ponte entre a vida e a obra, bastar destacar os sonetos I”,
“II” e “II”, todos dedicados à figura paterna, bem como o soneto “Ricordanza della mia
gioventú”, no qual o autor recorda a figura de sua ama-de-leite Guilhermina.
Destaca-se ainda na obra poética de Augusto dos Anjos uma visível relação entre sua
concepção negativa do destino humano e as influências, entre outras, da filosofia de Spencer,
de Shopenhauer e do materialismo de Haeckel. Doutrinas das quais Augusto provavelmente
trava conhecimento a partir de 1903, quando ingressa na Faculdade de Direito do Recife,
onde, de acordo com Fonseca (2006), imperava o movimento intelectual conhecido como
Escola de Recife, movimento de ampla repercussão que reuniu pensadores, estudiosos,
juristas, sociólogos e poetas voltados ao debate de mais variados temas dentro de suas
respectivas áreas.
Da filosofia de Spencer viria o conceito de que a ciência é incapaz de apreender o
incognoscível; de Haeckel, o materialismo impregnou o pensamento de Augusto com a idéia
da morte como um fenômeno físico-químico e de Shopenhauer a influência se no sentido
de colocar a essência do mundo tendo como base a vontade do homem, chegando dessa
forma, a uma visão negativa do processo social e do destino dos homens.
Para Gullar (1978), embora o Nordeste de Augusto dos Anjos não conhecesse nem as
conquistas científicas nem os avanços sociais e econômicos contra os quais se insurgiam
aquelas filosofias, na dialética da cultura dependente, elas se tornam, para o poeta, a
expressão do desmoronamento do seu mundo pré-industrial. Segundo esse autor (1978, p.17),
“De fato, na realidade que o rodeava marcada pela miséria física e social das famílias
falidas, dos caboclos e negros famintos, do tio louco a vagar pelos matos – era difícil
descobrir argumentos para contestar o niilismo que aprendera nos livros. Pelo contrário, tudo
o confirmava. Pode-se afirmar que, o conhecimento dessas doutrinas, oferecia a Augusto uma
explicação para aquele mundo que se deteriorava lhe permitindo emprestar as dimensões de
tragédia universal, tragédia essa que seria perceptivelmente mimetizada em sua obra poética.
Vemos assim que é sempre possível traçar um paralelo entre vida e obra. No entanto,
não é nosso objetivo nesse trabalho apontar, nos poemas selecionados, as relações entre a
ficção e a confissão, mas antes, perceber a revelação do Ser na poesia o como ser
individual, particular e sim como revelação do Ser enquanto existente, do Ser universal.
Nesse sentido, ao fazer a leitura da mimetização da melancolia na poética de Augusto dos
Anjos e Florbela Espanca, acreditamos, de acordo com Costa Lima (1966), que embora o
pessoal possa ser matéria da poesia, esta não se confunde com a expressão de queixas
79
pessoais. Dessa forma, acreditamos que os poetas falam não de si ou de seus conflitos
existenciais particulares, mas das experiências e conflitos humanos que são universais e
ultrapassam o tempo e o espaço. Por isso, nossa análise busca ultrapassar a questão da
melancolia pessoal e delinear os elementos presentes unicamente na poética dos autores, ou
seja, nossa proposta é fazer uma leitura da melancolia textual, como veremos no próximo
capítulo.
80
CAPÍTULO IV
MELANCOLIA NA POÉTICA DE
FLORBELA ESPANCA E AUGUSTO DOS ANJOS.
Será audácia, aos olhos de muitos, afirmar-se que toda grande
poesia constitui um escândalo. Talvez nem toda a grande
poesia o seja; mas constitui-o, ou melhor, deve constituí-lo, a
que nasce da angústia, da insolubilidade dos grandes problemas
do homem. (Adolfo Casais Monteiro)
Neste capítulo analisaremos a poética de Florbela Espanca e Augusto dos Anjos,
observando as aproximações e divergências entre eles no trato com a representação da
melancolia. Antes, porém, de passarmos à análise dos poemas, faremos algumas
considerações sobre a obra de Florbela Espanca a Augusto dos Anjos, destacando seus
estilos, influências e seu lugar no contexto do Modernismo.
4.1 FLORBELA ESPANCA
No início de sua composição, a predileção poética de Florbela Espanca (1894 -1930)
recai sobre as quadras em redondilha maior como atesta a obra “Trocando olhares” (1915-
1917). Nesse início, segundo Dal Farra (1996, p.XXVIII), Florbela “adota para si as trovas
de cunho lírico-amoroso. Precisamente as que retêm resquícios das cantigas d’amigo e
d’amor medievais, pendendo para as ditas de desgraça”, sendo que nas cantigas d’amor,
Florbela transforma as prerrogativas masculinas em femininas, atestando o verdadeiro agente
da vassalagem, ou seja, a mulher. Em seguida, alcança o soneto decassílabo que predominará
em sua poesia, como atestam as demais obras da autora e que, segundo Moisés (2001,
p.255), demonstram “influência sensível dos sonetos anterianos”.
A introdução do ‘tu’ no coração do poema, tornando-o uma comunicação direta com
o outro e conferindo à obra um caráter dialógico lugar, posteriormente, ao ‘eu’ que
desloca a atenção sobre si mesmo e atrai para si o mundo ao redor, como afirma Dal Farra
(1996, p. XXVIII). Os poemas selecionados para a análise demonstram bem essa inserção do
‘eu’ nos poemas de Florbela.
A temática de sua obra gira em torno do gênero lírico que Maia (1996, p.192) tem
como característica da inspiração “nos temas fundamentais do homem (amor, morte, tempo,
81
natureza, perda, criação), o poeta fala de si próprio, exprimindo sentimentos íntimos.” Em
Florbela temos: o erotismo, o sonho como registro de capturação do real, exaltação da morte,
escolha de ambientes noturnos, o culto literário da dor, da solidão, e o narcisismo. Estes
últimos, muito provavelmente, influências de Antonio Nobre, poeta simbolista português,
compositor de versos nos quais predominavam certo pessimismo, muito querido por
Florbela, a quem ela dedicou um soneto intitulado “A Anto” no seu manuscrito “Trocando
olhares”, no qual diz: “Poeta da saudade,/ ó meu poeta qu’rido/[...] ó Anto! Eu adoro os teus
estranhos versos” . Além da aproximação entre Florbela e Antonio Nobre, Nogueira (1995)
destaca ainda as aproximações entre a poética de Florbela e a de autores como Antero de
Quental, e seu contemporâneo, Mário de Sá-Carneiro.
Dal Farra (1996) destaca que durante a vida Florbela não alcança o reconhecimento.
Seus dois livros publicados em vida: Livro de Mágoas” (1919) e “Livro de Sóror Saudade”
(1923), passam desapercebidos pela crítica, sendo que o jornal lisboeta católico acusou seu
“Livro de Sóror Saudade” de “revoltadamente pagão” e o artigo terminava dizendo: “Com
pesar afirmo que é um livro mau o seu, um livro desmoralizador” (1996, p. X). Como
percebemos, sua obra recebe um frio acolhimento por parte da crítica pelos seus estranhos
versos e pela sua condição feminina. Sua obra ficou de certo modo marginalizada, mas isso
não importava muito a Florbela que, como destaca Dal Farra (1996), afirmava sentir horror a
tudo o que era muito popular.
No entanto, a atitude da crítica mudaria muito após sua morte. Dal farra (1996,
p.XVI) nos dirá que Guido Batelli, o professor com quem Florbela deixara o manuscrito
“Charneca em Flor”, publica-o em 1931 e, manipulando o suicídio da poeta, usando-o como
isca de vendagem, consegue uma extraordinária façanha: “Em pouco mais de uma semana a
edição de janeiro de 1931 se esgota, e outra e mais outra” (1996, p. XVII).
Estimulado pelo ocorrido, inédito na história da impressa portuguesa, Batelli publica
tudo o que encontra sobre Florbela ainda nesse mesmo ano: “Reliquiae” (poesia), “As
máscaras do destino” (contos) e sua correspondência com Júlia Alves e com ele próprio. No
entanto, tempo depois, segundo Dal Farra (1996), descobrir-se-á que muito da obra de
Florbela foi distorcida por Batelli. A autora afirma (1996, p. XVIII) que “quase quarenta
anos depois, quando, em 1979, Augustina Bessa-Luís toma conta do espólio de Florbela,
encontrado na biblioteca pública de Évora, é que pela primeira vez os disparates
perpectrados por Batelli vêm finalmente à luz”. Tais disparates consistiam entre outros no
fato de Batelli ter retirado trechos das obras e amenizado outros das cartas que Florbela o
82
escreveu para dar uma visão moralizante da poeta e tornar sua obra vendável. Será
Augustina quem lançará em 1987 o “Diário do último ano” e em 1982 o livro de contos
“Dominó Preto”, ambos pela Bertrand.
Dal Farra (1996, p. XXVI) destaca ainda os estudos que José Régio, poeta
modernista, mentor do presencismo português, fará da obra de Florbela, o qual afirma que
sua obra é “literatura viva”, sendo o primeiro a elevar sua obra a estatuto literário, bem como
um poema de Fernando Pessoa encontrado em seu espólio e, “À memória de Florbela
Espanca” dirigido que incitando-a a dormir e a encontrar finalmente paz na sepultura,
identifica-a como “Alma sonhadora/Irmã gêmea da minha”.
Sua obra hoje, embora não figure na maioria dos manuais de nível médio e nos de
nível superior, ainda que ocupe um pequeno espaço, é considerada uma das melhores da
literatura feminina portuguesa. Segundo Moisés (2001, p.255) “em matéria poética expressa
em vernáculo, outra voz feminina igual não se ergueu até hoje”.
O autor a classifica, de acordo com a cronologia de sua obra, entre os modernistas
portugueses. No entanto, a coloca juntamente com Aquilino Ribeiro num período que chama
de “Interregno” (período entre o Orfismo e o Presencismo português). Tal classificação se dá
pelo fato desses autores não terem um vínculo maior com as tendências realmente
modernistas. A inserção de Florbela nesse Interregno” se pela sua temática um tanto
simbolista como foi mencionada e sua estética parnasiana observada pelo uso constante
dos sonetos decassílabos, a exemplo dos sonetos anterianos, características que a afasta das
tendências exclusivamente modernistas. No entanto, segundo Moisés (2001), dada a
notoriedade de sua obra, Florbela não poderia deixar de figurar na antologia do autor.
Saraiva e Lopes (1979), classificam a obra de Florbela num período de transição entre o
simbolismo e o modernismo, destacando ainda os aspectos românticos e parnasianos de sua
obra. Além dessas características, Nogueira (1995, p.72) destaca a presença de certo
“exagero barroco” na poética de Florbela Espanca.
Quanto à classificação da obra de Florbela entre o Simbolismo e o Modernismo, a
qual considera que sua obra ficou presa por um último fio ao século XIX, Junqueira (2003)
chama a atenção para o fato de que uma justa crítica literária não deveria deslocar a obra de
Florbela para os fins do século XIX, arrancando-a do século XX em que a poeta de fato
viveu e em que, à margem das vanguardas literárias, produziu uma obra que em muitos
aspectos mantém com as obras dos modernistas grande afinidade.
83
Junqueira (2003) destaca ainda que o fato de Florbela não ter reparado nas novidades
das vanguardas literárias de sua época não pode ser considerada uma falta que a desabone,
pois além do círculo de intelectuais que de fato se davam conta da revolução modernista ser
bem restrito, os próprios modernistas não se fizeram muito conhecidos na época em a poeta
viveu. A veracidade das afirmações de Junqueira (2003) é fácil de ser confirmada, basta
lembrar-nos de que Florbela faleceu em 1930 e Fernando Pessoa apenas atingiu um mais
amplo público leitor a partir da publicação de seu primeiro livro, “Mensagem” (1934).
Junqueira (2003) ainda destaca que o fato de Florbela ter vivido quase sempre
confinada em meios provincianos (Vila Viçosa, Évora, Alentejo, Esmoriz, Matosinhos),
vivido em Lisboa apenas entre os anos de 1917-1923, de onde se afastava constantemente
para tratamento de saúde, seria outro fator decisivo para que a poeta não tivesse tomado
maior conhecimento das novidades das vanguardas modernistas. No entanto, mesmo que
Florbela tivesse residido mais perto dos focos da revolução modernista, provavelmente, não
lhe seria permitido participar ativamente do movimento, pois como bem ressalta Junqueira
(2003), na geração dos modernistas não há mulheres.
Para Saraiva e Lopes (1979), Florbela é uma das mais notáveis personalidades líricas
isoladas por sua obra demonstrar a intensidade de um transcendido erotismo feminino sem
precedentes na literatura portuguesa. A lírica de Florbela Espanca, segundo os autores (1979,
p.1016), precede e estimula um muito recente movimento de emancipação literária da
mulher. Diferentemente de Moisés (2000) que aponta a poética florbeliana como
exclusivamente feminina e amorosa, os autores (1979, p.1016) destacam a presença, nessa
poética, da expressão de uma “imensa frustração, não só feminina como masculina”, diante
de uma opressiva tradição patriarcal.
4.2 AUGUSTO DOS ANJOS
Embora Augusto dos Anjos (1884 1914) tenha publicado, à semelhança de
Baudelaire, com “Flores do Mal” apenas um livro, intitulado “Eu” (1912), segundo Moisés
(2004), é possível delinear uma evolução na carreira do poeta considerando os títulos
adicionados à edição de 1971, referentes a poemas dispersos em jornais entre 1900 e 1941, e
as 67 novas composições recolhidas em jornais e revistas da época e que, embora a maioria
desses poemas não apresentem as datas da composição, segundo Moisés (2004, p.436), “os
recursos expressivos, o tom, a imagética, enfim, tudo sugere tratar-se, na maior parte dos
adendos, de poemas escritos antes de Eu”. O autor fala, baseado nessas peças possivelmente
anteriores ao “Eu”, numa primeira fase da poética augustiniana, na qual é patente o impacto
84
do Simbolismo, sendo nítida a influência da figura maior dessa escola, o poeta Cruz e Sousa
(1861- 1898). Nessa fase, o autor destaca que Augusto está voltado mais para temas abstratos
que existenciais, ainda sonhador, lírico, a entoar uma “Ode ao Amor”, num idealismo vago,
romântico, que lhe sugere imagens lineares, canhestras.
Sobre essa primeira fase, Magalhães Júnior (1978) também destaca a aproximação da
poética de Augusto com a dos simbolistas, cujas figuras principais, Cruz e Sousa e Alphonsus
de Guimarães, tinham versos constantemente transcritos na imprensa da Paraíba. Magalhães
Júnior (1978), destacando a influência simbolista na poética de Augusto, fala da aproximação
entres os temas: o isolamento, o exílio, a peregrinação, a maldição, o tédio, o sonho, a
contemplação, entre outros; o vocabulário: expressões como Claustro, Sigilo, Silente, Monja,
Funéreos, Mistérios, etc. e o uso de iniciais maiúsculas em certas palavras abstratas. Nessa
fase inicial, Magalhães Júnior (1978) destaca ainda, na poética de Augusto, a presença de uma
lírica religiosa, em poemas como “Amor e crença”: “Sabes quem é Deus?/ Esse infinito e
santo/ Ser que preside e rege os outros seres,/ Que os encantos e a força dos poderes/ Reúne
tudo em si, num encanto?...“; de uma lira cívica, em “Ave libertas”: “Ao clarão irial da
madrugada,/ Da liberdade ao toque alvissareiro./ Banhou-se o coração do Brasileiro/ Nem
efeito eflúvio de luz auroreada...” e de uma rica amorosa, em poemas como “Ariana” : “Ela
é o tipo perfeito de ariana./ Branca, nevada, púlbere, mimosa,/ A carne exuberante e capitosa/
Trescala a essência que de si dimana...”, todos compostos em 1901.
Considerando essa primeira fase, Magalhães Júnior (1978) afirma que se poderia
classificar a poética de Augusto dos Anjos como simbolista, no entanto, a “poesia madura”
do poeta presente na obra “Eu”, apesar da permanência de influências simbolistas, revela-se
de uma admirável originalidade que, de acordo com Moisés (2002, p.340), é revelada pelo
“caldeamento heteróclito”, de uma obra onde “desembocam alguns dos principais veios
filosóficos, científicos e estéticos que percorrem na literatura européia, e a brasileira, no
transcurso do século XX”, como a poesia da decomposição de Baudelaire, a poesia do
cotidiano e expressionista de Cesário verde, a identificação da vontade-de-viver como a raiz
de todas as dores da filosofia de Schopenhauer, a teoria evolucionista de naturalistas como
Darwin e Haeckel e o impacto da poesia científica, da parnasiana.
Nessa poética, Bosi (2006, p.291) afirma que encontramos formas bastante pessoais,
como o uso do vocábulo científico que “são termos que definem toda a estrutura da vida
(vocabulário físico, químico, biológico) e que exprimem o asco e o horror ante essa mesma
85
existência imersa no Mal” bem propícios ao “poeta do cosmos em dissolução, ao artista do
mundo podre”.
Nessa “fase madura” de Augusto dos Anjos, Moisés (2004) cita ainda a influência de
Antonio Nobre, no que diz respeito ao constante embate entre o Espírito e a Matéria e, ao
contrário de Bosi (2006), que mesmo percebendo a originalidade de Augusto, o classifica
dentro da escola simbolista, o autor prefere situar a poética de Augusto dos Anjos no período
intitulado belle époque, momento de transição entre o Realismo oitocentista e o
Modernismo, destacando-o junto com outros autores, como os romancistas Graça Aranha,
Lima Barreto, Monteiro Lobato e os poetas Raul de Leoni, Martins Fontes, Gustavo
Teixeira, entre outros, como representantes de um nova arte, precursora da arte moderna, daí
porque alguns autores preferem usar a denominação “Pré-modernismo” ao tratar da
classificação das obras de tais escritores.
Percebemos, assim, que a tentativa de classificar satisfatoriamente a poética de
Augusto dos Anjos numa escola literária é fadada ao fracasso, embora divergindo na
inserção do poeta quanto à escola em que melhor ele se filia, todos os autores de antologias
literárias, a exemplo de Massaud Moisés, Alfredo Bosi, Antonio Cândido, entre outros, são
unânimes em afirmar que a originalidade da obra de Augusto dos Anjos não permite uma
classificação satisfatória.
No entanto, a originalidade do poeta será destacada apenas depois de sua morte, pois
no momento de sua primeira publicação, no ano de 1912, custeada por ele e seu irmão
Odilon, com 58 poemas e uma tiragem de mil exemplares, a poesia de Augusto “ficou
praticamente incógnita e desconhecida pela crítica indiferente. Não causou, naquele
momento, nem notoriedade e muito menos escândalo”, afirma Melo Filho (1994, p.15).
Segundo o autor, Augusto foi, nesse primeiro momento, desprezado por um vasto segmento
da intelectualidade brasileira que o entendia o gosto macabro dos seus temas ou o
linguajar pretensioso de suas estrofes, tidas como pseudo-científicas e mais apropriadas a um
livro de medicina legal. Apenas quando da segunda edição do “Eu”, em 1920, seis anos após
a morte do poeta, é que Augusto passou a ser um poeta respeitado, conhecido e admirado,
sendo que nos últimos setenta anos, seu único livro vendeu cerca de quatrocentos mil
exemplares, ao longo de trinta e nove edições consecutivas, praticamente um recorde em
livros brasileiros de poesia. Sobre os aspectos estruturais característicos da poética de
Augusto dos Anjos, o autor destaca as rimas perfeitas, decassílabas, sonoras e harmoniosas,
o uso constante de sonetos e uma cadência própria de um gênio rústico da poesia métrica,
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numa linguagem renovadora e revolucionária, com uma teatralidade musical e uma nova
estética no sentido antes proposto por Massaud, ou seja, nova por desembocar alguns dos
principais veios filosóficos, científicos e estéticos que percorrem na literatura européia e a
brasileira, no transcurso do século XX.
Alguns dos temas destacados na sua “poética madura” são a cosmogonia, o
luto/perda, a morte e a melancolia, sobre este último nos debruçaremos na análise que segue.
4.3 FLOR E ANJOS EM DIÁLOGO MELANCÓLICO
Debruçamos-nos, a partir de agora, na obra poética de Augusto dos Anjos e Florbela
Espanca, no intuito de analisar a presença da melancolia mimetizada no texto poético
propondo um diálogo entre as duas poéticas e a filosofia kierkegaardiana.
4.3.1. Visão pessimista da condição humana:
MINHA CULPA
01 Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem
02 Quem sou? Um fogo-fátuo, uma miragem...
03 Sou um reflexo... um canto de paisagem
04 Ou apenas cenário! Um vaivém
05 Como a sorte: hoje aqui, depois além!
06 Sei lá quem sou? Sei lá! Sou a roupagem
07 Dum doido que partiu numa romagem
08 E que nunca mais voltou! Eu sei lá quem!
09 Sou um verme que um dia quis ser astro...
10 Uma estátua truncada de alabastro...
11 Uma chaga sangrenta do Senhor...
12 Sei lá que sou?! Sei lá! Cumprindo os fados,
13 Num mundo de maldades e pecados,
14 Sou mais um mal, sou mais um pecador...
No poema “Minha culpa”, acima transcrito, (verso 01), o eu - lírico afirma
insistentemente não saber bem algo, o que é verificado pela repetição “Sei lá!, sei lá!”. Logo
em seguida, (verso 02), o leitor pode apreender de que o eu-lírico fala, ou seja, ele se refere à
eterna questão existencial “Quem sou eu?”. Esse “eu” nos é percebido não como um
indivíduo particular, mas como o “eu” humano. Entendemos, em sintonia com a filosofia
kierkegaardiana, que cada indivíduo é ele mesmo e o gênero humano, cada um de nós não
significa senão a contigüidade na história da humanidade. Consideramos, dessa forma, que o
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“eu” pode ser considerado como um “eu” universal e não particular. Entendemos esse “eu”,
enquanto o gênero humano.
O eu-lírico se questiona repetidamente sobre quem ele é (como atestam, além do verso
02, os versos 06, 08 e 12). Logo em seguida (verso 02), o eu-lírico aponta possíveis respostas
a seu questionamento, descrevendo-se, respectivamente, como sendo:
1. “fogo-fátuo” (verso 1): Ou seja, petulante; presunçoso.
2. “uma miragem” (verso 1): Uma ilusão de ótica. O ser não existe de fato, é apenas
refração de luz.
3. “um reflexo,” (verso 3): apenas imitação, efeito da luz (idéia de inexistência real)
4. “um canto de paisagem” (verso 3) ou apenas fragmento de uma paisagem (idéia de
incompletude).
5. “apenas cenário” (verso 4): O eu-lírico não é agente, mas apenas lugar onde se
representam cenas, ações. É inerte.
6. “roupagem de um doido que partiu numa romagem e nunca mais voltou” (versos 7, 8 e
9). Imagem horrenda esta com a qual o eu-lírico se identifica. Como não estaria suja,
rasgada, enfim, maltrapilha a roupagem de um doido a peregrinar sem nunca mais
voltar, que caminhou sem nunca trocá-la.
7. “Sou um verme que um dia quis ser astro” (verso 9): Percebemos, neste verso, que o
eu-lírico se descreve como sendo um verme, ou seja, uma pessoa vil, desprezível, mas
este verme de agora desejou ser astro. No entanto, foi apenas um desejo, desejo não
realizado, pois o que figura na realidade é apenas o verme, essa figura horrenda.
8. “estátua truncada de alabastro” (verso 10): mais uma vez, temos a idéia de mutilação,
de incompletude. Truncar é mutilar, omitir parte importante de algo (uma obra/ estátua
no caso). O eu - lírico sente-se mutilado, falta-lhe algo importante que foi cortado. Ele
não é mais o que fora outrora.
9. “chaga sangrenta do Senhor” (verso 11): Temos aqui uma imagem contundente e feia
do modelo perfeito (Senhor). O eu-lírico se descreve como sendo uma chaga
sangrenta, ou seja, a pior imagem do ser perfeito.
88
10. “Sou mais um mal” (verso 14): Aqui ele diz ser mais um mal em meio a tantos outros.
Num mundo cheio de maldades (verso 13), o eu - lírico não poderia ser diferente. Ele
é, assim, mais um a multiplicar a maldade sobre a terra.
11. “sou mais um pecador” (verso 14): Ou seja, mais um que transgride (preceitos
religiosos). Ele é um ser defeituoso, censurável, impuro, como todos os pecadores.
Nas onze descrições presentes no poema, nenhuma é positiva, todas são negativas,
todas empobrecem o eu - lírico, todas o diminuem a nada. Atentando para essas descrições
feitas pelo eu - lírico, percebemos neste uma total diminuição dos seus sentimentos de auto-
estima.
Tais descrições, feitas pelo eu lírico, atestam a angústia diante da fragilidade do ser
humano, fragilidade representada pelas cinco primeiras metáforas do poema: sou fogo-fátuo,
miragem, reflexo, canto de paisagem, cenário. A consciência de simples fragilidade vai
cedendo lugar a descrições mais grotescas, tais como: “sou a roupagem dum doido que partiu
numa e nunca mais voltou” (a roupa, sem dúvida totalmente manchada, rasgada) e sou “uma
estátua truncada de alabastro”, que transmitem a idéia de mutilação do ser, de mancha,
mácula.
Em apenas um verso, temos uma definição positiva, representada pela palavra “astro”,
mas que figura apenas enquanto um desejo: “Sou um verme que um dia quis ser astro” (verso
09).
Atentando para a simbologia do verme, segundo Chevalier e Gheerbrant (2007), vemos
que ele representa a vida que renasce da podridão e da morte. A associação do verme à figura
humana é destacada pelos autores (2007, P.943) quando afirmam que “na Gylfaginning
irlandesa, os vermes nascidos no cadáver do gigante Ymir, por ordem dos deuses, adquirem a
razão e a aparência humana”.
O verme enquanto vida ligada á terra, se opõe ao astro.
Sabemos que por verme são denominadas todas as larvas de muitos insetos sem patas,
que por isso, se arrastam ao chão. Já os astros, como observam Chevalier e Gheerbrant (2007,
P. 95) “participam das qualidades de transcendência e de luz que caracteriza o céu, com um
matiz de regularidade inflexível, comandada por uma razão natural e misteriosa ao mesmo
tempo”. Eles são ainda, como destacamos no primeiro capítulo ao tratar do poema “Ser
89
poeta”, símbolos do comportamento perfeito e de uma inacessível e distante beleza. Sabemos
que astros eram divinizados na Antiguidade, sendo concebidos como dirigidos por anjos.
Na antítese proposta pelos vocábulos verme/astro, podemos perceber a angústia do eu -
lírico diante da consciência da finitude do ser e de saber-se, como aponta Kierkegaard (2007),
uma síntese do finito e infinito, do tempo e da eternidade: o verme aponta a finitude do ser,
propõe a imagem do ser ao chão, enquanto o astro aponta a busca pelo infinito, imagem do ser
mais alto, mais além.
A identificação do eu-lírico florbeliano com o verme é presente ainda em poemas
como “Mendiga”, no qual, após se referir a um passado de glória que fora roubado, passa a
expressar toda sua revolta diante da vida presente: “Agora vou andando e mendigando, / Sem
que um olhar dos mundos infinitos / veja passar o verme rastejando.” Nesses versos, o eu-
lírico afirma ter sido esquecido até mesmo por Deus, aqui representado pela expressão “olhar
dos mundos infinitos”. Nem o divino passar o verme rastejante. Essa seria uma expressão
de total abandono, pois na tradição cristã, o homem é aconselhado a suportar o sofrimento do
mundo, lembrando-se que o Senhor sempre está ao seu lado e, mesmo se todos o abandonar, o
Senhor não o fará. Nesses versos, temos a negação dessa crença. Vemos aqui, a outra face do
desespero consciente onde o ser quer ser ele mesmo, desespero que se torna um contra Deus.
Para Kierkegaard (2004), o ser que assim se desespera pensa que a eternidade bem que
poderia lembrar-se de o privar de sua miséria. Na sua revolta contra a existência, o ser se gaba
de possuir uma prova contra a existência e sua bondade.
No verso onze, vemos a identificação do ser com a pior imagem do divino, que é a
imagem do divino mutilado, demonstrada pela metáfora “chaga sangrenta do Senhor”. Temos
aqui uma referência à idéia cristã das chagas de Cristo que redimem a culpa do ser humano
pelo pecado. A idéia do pecado é colocada ainda na última estrofe, quando esse se diz ser
“mais um mal, mais um pecador” num mundo onde existem maldades e pecados.
Percebemos, então, a melancolia relacionada à idéia de culpa, como atesta o título do poema
“Minha culpa”, culpa pela consciência de ser mal, de ser pecador, ou pela consciência de que,
estando num mundo onde maldades e pecados, sempre uma possibilidade de ser mais
um mal, mais um pecador.
Ora, para Kierkegaard (1968), o pecado nasce da angústia e é sempre gerador de mais
angústia. É a angústia que origem ao pecado, angústia entendida enquanto consciência da
realidade como puro possível. A possibilidade de liberdade, de busca do que é desconhecido,
90
estava presente no ser inocente, ou seja, ignorante, desconhecedor e é justamente ela, ao
deixar o homem inquieto, que origina o pecado.
a angústia gerada pelo pecado, gera uma intranqüilidade que se caracteriza por uma
nova noção de possibilidade de pecar, de conhecer que necessita escolher entre o bem e o mal,
mas saber-se livre para pecar, fazendo surgir mais e mais angústia. Lembremos que pecado
aqui não significa queda e sim “salto”, pois, como afirma o filosofo, pecar é conhecer, e
conhecer que se é culpado, pois, se com o primeiro homem surge o pecado no mundo, aqueles
que o sucederam tem o pecado como condição.
O eu-lírico se reconhece pecador, culpado, miserável. Podemos dizer que ele se
desespera, no sentido que ele toma consciência da precariedade de sua condição humana, mas
não um desespero-fraqueza, onde o ser deseja ser um outro, acreditando que seu desespero
advém do exterior, mas um desespero-desafio, que conforme Kierkegaard (2004), consiste em
ter consciência de que ele tal desespero vêm de sua própria condição, é algo interior. O eu-
lírico aceitou sua condição, entricheirou-se dentro de sua miséria e escolheu-se. Ele é o que
Kierkegaard (2004) denomina “eu-ativo”, distante que está da passividade da não consciência
de sua miséria.
Assumir sua condição e afirmar: “eu sou”, ainda que seja um ser miserável, é uma
postura positiva, uma vez que fugir do desespero é inútil, pois todos somos desesperados,
embora nem todos saibam. Sendo assim, ao assumir sua precariedade, o indivíduo estaria
mais próximo da verdade, pois, nesta compreensão, seria aquele que não tem consciência de
seu desespero e se julga feliz é porque não se importa com a verdade e se agarrou às ilusões,
ligado que está na banalidade de sua vida.
Essa postura diante de si mesmo não é, segundo o filósofo, para qualquer um. Na
verdade, ele denomina “heróis” os que assim procedem, pois conseguem chegar mais próximo
da verdade, assumem sua condição de ser uma ntese entre o finito e o infinito e escolhem,
apesar de tudo, ser eles mesmos.
A idéia de culpa por ser o que é pode ser relacionada ainda a uma consciência de que
sua existência real é de sua inteira responsabilidade. O ser não se coloca como um “coitado”
diante das maldades do mundo, mas como aquele que pode ser e é mais um mal, mais um
pecador.
Na poética augustiana, também podemos perceber a mimetização dessa consciência da
precariedade humana consciente de sua miséria, como atesta o soneto que segue:
91
PSICOLOGIA DE UM VENCIDO
01 Eu, filho do carbono e do amoníaco,
02 Monstro de escuridão e rutilância,
03 Sofro, desde a epigênese da infância,
04 A influência má dos signos do zodíaco.
05 Profundissimamente hipocondríaco,
06 Este ambiente me causa repugnância...
07 Sobe-me à boca uma ânsia análoga à ânsia
08 Que se escapa da boca de um cardíaco.
09 Já o verme – este operário das ruínas –
10 Que o sangue podre das carnificinas
11 Come, e à vida em geral declara guerra,
12 Anda a espreitar meus olhos pra roê-los,
13 E há de deixar-me apenas os cabelos,
14 Na frialdade inorgânica da terra!
Assim como o “eu” florbeliano, aqui também entendemos que ele representa não o
“eu” particular, mas o universal, interpretado como representando a humanidade. Esse Eu”
que representa ele mesmo e o gênero humano, já que cada um de nós, na esteira de
Kierkegaard (2004), não significamos senão a contigüidade na história da humanidade
Neste soneto, o eu-lírico diz ser filho do amoníaco e do carbono (verso 01), o que
mostra a característica típica da poética de Augusto dos Anjos que se refere ao uso dos
vocábulos científicos. Ao dizer-se filho dos elementos químicos carbono e amoníaco, o eu-
lírico chama a atenção para a composição química do ser humano, demonstrando a
semelhança entre o ser humano e os seres inanimados no que se refere ao material orgânico
que o compõe.
É sabido que o carbono é encontrado em todas as matérias orgânicas e se apresenta em
diferentes graus de pureza. Como formas puras é encontrado no grafite onde se apresenta na
cor preta e no diamante, no qual é incolor, porém extremamente brilhante. O carvão também é
outra fonte de carbono, formado dos restos dos vegetais que, milhões de anos atrás foram
enterrados e submetidos à fermentação anaeróbica até transformar-se em carvão. O carbono é
de vital importância para a composição da matéria viva. Encontrado na atmosfera em forma
de CO2 (gás carbônico), é absorvido através das plantas na realização da fotossíntese. Após
compor a matéria orgânica, retorna à atmosfera através das excreções dos animais, da morte
dos mesmos, onde por ação dos decompositores ocorrerá a produção de CO2 e da queima de
combustíveis, como lenha, carvão, petróleo e derivados. Percebemos, assim, o porquê do eu-
92
lírico se dizer filho do carbono, dada sua importância para a vida orgânica. O ciclo do carbono
estando ligado à respiração das plantas para chegar aos organismos e das excreções e morte
dos seres orgânicos para retornar à atmosfera, remete-nos ao ciclo da vida humana.
Outra característica do carbono que merece atenção é o fato de ele ser escuro na grafite
e incolor (assim como o amoníaco) e brilhante no diamante. Considerando essas informações,
vemos que o eu-lírico nos remete para os contrastes da vida humana, idéia reafirmada quando
se apresenta como um “monstro de escuridão e rutilância” (verso 02) que representa mais uma
antítese, o ser é um monstro escuro e brilhante ao mesmo tempo.
A figura do monstro, segundo Chevalier e Gheerbrant (2007), assume uma simbologia
dual, uma negativa e outra positiva. No pólo negativo, os autores destacam a figura do
monstro como símbolo das forças irracionais, “ele possui as características do disforme, do
caótico, do tenebroso, do abissal. O monstro aparece, portanto, como desordenado, destituído
de proporções, ele evoca o período anterior à criação da ordem” (2007, p.615). Ele é o que
espalha terror em toda parte onde aparece.
Associado ao vento e a água, especificamente à água subterrânea, os autores destacam
que o domínio do monstro é o reino subterrâneo. Também o homem, nasce do vento (sopro) e
da água, o que permite uma relação entre ambos, no sentido de que cada homem comporta seu
próprio monstro, com o qual deve lutar constantemente.
No pólo positivo, o monstro é o símbolo da ressurreição, pois ele devora o homem a
fim de lhe provocar um novo nascimento, conforme afirmam os autores (2007, p.615): “todo
homem atravessa o seu próprio caos antes de poder estruturar-se, a passagem pelas trevas
precede a entrada da luz”. A título de exemplo, os autores destacam a figura da personagem
bíblica Jonas. Designado por Deus para pregar aos habitantes de Nínive e exortá-los contra
suas maldades, Jonas foge para a cidade de Társis a bordo de um navio. No mar, Jonas é
lançado neste por seus companheiros de viagem motivados pelo temor dos ventos e
tempestades que acreditavam, haver sido mandados por Deus devido à desobediência de
Jonas. Este então é engolido por um monstro marinho e, de suas entranhas, ora, prometendo
cumprir sua missão, é poupado e lançado em terra, indo então a Nínive levar a palavra
designada por Deus, o que resultou na conversão dos habitantes daquela cidade. O monstro
marinho, representa assim, a ressurreição no sentido de que após sair de suas entranhas, Jonas
foi modificado.
93
O monstro participa então dos dois pólos, positivo e negativo, “escuridão e rutilância”,
como expressa o eu-lírico augustiano. O homem/monstro é também uma síntese: representa a
escuridão e a luz, o finito e o infinito. A figura do monstro representa ainda, em concordância
com o pensamento de Chevalier e Gheerbrant (2007, p.616), a imagem da angústia que, tal
como o monstro sai das regiões mais subterrâneas, o monstro sai dos antros sombrios, e a
angústia, dos subconscientes.
Dizer-se “monstro” é tomar consciência da miséria da condição humana. Temos aqui o
desespero consciente, desespero-desafio que busca não iludir-se, mas encarar sua condição,
constituindo assim o “eu-ativo”, próximo daquilo de que fala Kierkegaard (2004).
A idéia de relação homem/monstro ainda está presente em outro poema da poética
augustiniana: “Eu sou um ser monstruoso”, afirma o eu-lírico no soneto “Noli me tangere”
(Não me toques).
O eu-lírico afirma ainda (verso 03), sofrer “desde a epigênese da infância”, ou seja,
desde o início de sua constituição, quando ele é uma célula ainda sem estrutura, “a influência
dos signos do zodíaco”. O eu-lírico vê-se influenciado por um mal, por um poder que
dirige o seu destino contra o qual nada se pode fazer. Ele se diz profundissimamente
hipocondríaco, ou seja, sofrer ferozmente de uma afecção mental em que preocupação
excessiva com a própria saúde, na qual, por efeito de sensações subjetivas, julga-se preso a
condições mórbidas inexistentes. Percebemos que o eu-lírico sente terror pela idéia de ser
carbono, amoníaco e sofrer uma influência má, como se observa quando ele afirma que “esse
ambiente me causa repugnância”, a repugnância leva a subir à boca “uma ânsia análoga à
ânsia que se escapa da boca de um cardíaco” (versos 07 e 08).
A repugnância do eu-lírico pode ser relacionada à sua consciência de ser-para-a-morte,
consciência revelada nas duas últimas estrofes, quando ele afirma que o verme que come o
sangue podre das carnificinas e declara guerra a toda a vida, anda a espreitar seus olhos para
roê-los e deixará apenas seus cabelos na frialdade inorgânica da terra.
Assim como em Florbela, temos, no poema de Augusto, a figura do verme. Aqui,
porém, ele não é associado ao homem, mas ao seu destino. Em Florbela, o homem é um
verme. Aqui, verme é o destino do homem. O terceto augustiano traz à mente as palavras da
personagem John Keating (Robin Williams), professor de Literatura no filme “A Sociedade
dos Poetas Mortos”, ao afirmar para seus alunos que o ser humano é na realidade, “comida
para minhocas” e nada mais.
94
O verme representa todo o miserável destino humano, ele é o “operário das ruínas”,
seu trabalho consiste em comer o podre sangue das carnes em decomposição declarando
guerra à toda a vida. Não há como escapá-lo.
Vemos, aqui, que o eu-lírico sofre com a perspectiva da morte. Ele pensa na nulidade e
contrastes da vida humana e se desespera frente à idéia de que seu ser será totalmente
decomposto por vermes, e que, ao fim, restará dele apenas os cabelos. O ser se desespera no
sentido de não ter esperança de um outro final para sua vida. O desespero de saber que um dia
vai morrer e que esse é seu único e último projeto determinante, pois conforme Giles (1975),
todo ser que pensa estar desesperado por um fracasso qualquer, uma frustração, não percebe
que a causa real de seu desespero é a consciência de ser limitado, de ser-para-a-morte.
A melancolia se apresenta como a consciência de que o ser não pode fugir do seu
destino final, ou, como destaca Kierkegaard (1968), ela aponta ao ser que toda sua fuga é em
vão. O eu-lírico, melancólico, consciente de sua finitude, sente o peso de sua existência. A
morte atesta que todas as possibilidades da vida humana não têm garantia de realização e
uma por uma ilusão o ser pode se debruçar para o futuro na espera que o possível seja
agradável ou feliz.
Segundo Heidegger (1999), a única coisa diante da qual a instauração do vigor
humano fracassa imediatamente é diante da morte, pois ela limita toda limitação. Em meio a
essas incertezas, a morte se apresenta como única certeza, desastrosa e horrível, do ser. Essa
seria então a “psicologia de um vencido”, do ser que se sabe insignificante frente a seu destino
de mortal e que nada pode fazer para mudá-lo.
Nas duas poéticas, aqui representadas pelos poemas “Minha culpa” de Florbela
Espanca e “Psicologia de um vencido” de Augusto dos Anjos, percebemos que o ser humano
é sempre descrito como um ser miserável, inferior. Em Florbela, no poema mencionado, o eu-
lírico se diz apenas “fogo-fátuo”, “reflexo”, “miragem”, “verme”, roupa rasgada, suja,
“estátua truncada”, “mal”, “pecador”. Em Augusto, o ser é o filho do carbono, do amoníaco, o
monstro. Em ambas as poéticas, a melancolia se relaciona à profunda consciência da finitude
humana.
No entanto, embora a idéia de diminuição do ser seja nítida nos dois poemas,
percebemos também algumas distinções. O eu-lírico florbeliano, muito se questiona antes de
afirmar quem é (“Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem Quem sou?”), enquanto o eu-lírico augustiniano
é direto (Eu, filho do carbono...”); em Florbela, a miséria está relacionada à culpa, relação
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percebida pela constante idéia de mácula: “roupa dum doido”, “pecador”, enquanto em
Augusto percebemos que a miséria está relacionada não à culpa, mas à própria natureza de
que se constitui o homem: carbono, amoníaco, termos científicos, uma constante presença na
poética de Augusto, que apontam para a própria finitude humana enquanto ser orgânico.
O eu-lírico augustiniano expressa ainda toda a angústia diante de perspectiva de morte:
enquanto o eu-lírico florbeliano se iguala ao verme, no primeiro, o verme é o seu único e certo
destino. É o verme que assinala o quanto é o fugir da angústia, é inútil se iludir, pois do
destino final, não se pode escapar.
Consciente de sua miséria existencial, o melancólico percebe que o exterior é, assim
como seu “eu”, desprovido de valor, nem mesmo o amor, considerado o maior dos
sentimentos, assume, nas poéticas aqui analisadas, uma conotação positiva.
4.3.2 A fragilidade das relações humanas
O amor, na poética melancólica de Florbela Espanca, figura sempre como algo não
realizado, ou então, como uma vaidade, uma mentira, como vemos no poema a seguir.
Para quê?!
01 Tudo é vaidade neste mundo vão...
02 Tudo é tristeza, tudo é pó, é nada!
03 E mal desponta em nós a madrugada,
04 Vem logo a noite encher o coração!
05 Até o amor nos mente, essa canção
06 Que o nosso peito ri à gargalhada,
07 Flor que é nascida e logo desfolhada,
08 Pétalas que se pisam pelo chão!...
09 Beijos d’amor! Pra quê?!...Tristes vaidades!
10 Sonhos que são logo realidades,
11 E que nos deixam a alma como morta!
12 Só acredita neles quem é louca!
13 Beijos d’amor que vão de boca em boca
14 Como pobres que vão de porta em porta!...
Na primeira estrofe vemos o desencanto do eu - lírico pelo mundo externo ao afirmar
(verso 01, grifo nosso) que “Tudo é vaidade nesse mundo vão”. Podemos, aqui, fazer um
diálogo entre o poema de Florbela e o livro bíblico “Eclesiastes”, de autoria atribuída ao rei de
Israel Salomão, escrito, segundo Stamps (2002), em 935 a.C. No texto bíblico, o autor,
considerado o mais sábio rei de Israel, discorre sobre a nulidade da vida terrena, afirmando
96
que atentou para todas as obras que se fazem debaixo do sol, como a busca dos prazeres,
riquezas, sabedoria, e viu que tudo era vaidade e aflição de espírito.
A palavra vaidade aparece trinta e sete vezes nesse livro, referindo-se a todo o fazer
humano diante da vida, sendo que o autor (9: 6-10) ao perceber a fugacidade dos bens
terrenos, incita seus leitores a usufruir em vida dos frutos de seu trabalho, comer com alegria
seu pão, beber com bom coração seu vinho, gozar a vida com a mulher que se ama, pois essa
seria sua porção nesta vida, e fazer tudo o que vier à mão para fazer, conforme suas forças,
uma vez que na sepultura, para onde o ser humano vai, não há obra, nem indústria, nem
ciência, nem sabedoria alguma.
É a consciência da morte que faz com que o autor afirme que tudo é vaidade: a morte
torna o humano igual aos animais (3:20), o sábio igual ao tolo (2:14-16), nela, todos se
igualam, não adiantando de nada nutrir uma ilusão diante da vida terrena, o que leva o autor
a desencantar-se com a busca pela sabedoria e afirmar, ao final, que a mocidade deve se
preparar para a velhice a para a morte, lembrando-se de seu Criador, a quem dará contas de
tudo o que fizer sob o sol, quer seja bom, quer seja mal. No capítulo 12 desse livro de
Salomão, temos uma das mais belas alegorias alusiva ao envelhecimento e a morte do ser
humano. É possível perceber uma aproximação entre o primeiro verso do poema e o
Eclesiastes, em ambos, percebemos a mimetização da melancolia, que, como afirma
Kierkegaard, atua até mesmo nos momentos de mais alto deleite apontando à consciência que
tudo é vão.
No segundo verso, o eu-lírico afirma que tudo “é tristeza, pó, nada”. Ora, a consciência
da vaidade dos bens terrenos leva o eu - lírico a perceber que tudo é triste, tudo é pó, ou seja,
se nada tem consistência durável, uma vez que tudo é pó, consequentemente, não alegria
que dure, mas apenas tristeza. Nesse verso, encontra-se a antítese mais forte do poema: Tudo
é nada.
Nessa afirmação, percebemos que o eu - lírico se refere à inconstância dos bens do
mundo: tudo começa, mas tudo acaba, ou seja, nada dura para sempre e se não dura, é vão, é
vaidade, é tristeza, logo é essa consciência que impede o eu-lírico de tomar parte em sua vida
imediata e o melancólico passa a não querer profunda e intimamente coisa alguma.
A idéia de inconstância dos bens terrenos fica nítida no trecho: “mal desponta em nós a
madrugada, vem logo a noite encher o coração” (versos 03 e 04). A madrugada, período entre
zero hora e o amanhecer, é um momento de transição que, ao mesmo tempo em que anuncia a
97
chegada de um novo dia, atesta o final do dia anterior. Segundo o eu - lírico, mal a madrugada
desponta, vem logo a noite, ou seja, mal nasce a expectativa quanto a um novo dia, este logo
se acaba. Podemos fazer aqui uma relação entre o dia e o nascimento (sabemos que a
expressão “dar à luz”, é muito utilizada para se referir ao nascimento), o princípio de todas as
coisas, o dia simboliza, em sintonia com Chevalier e Gheerbrant (2007, p.336), “o nascimento
e o crescimento, o desabrochar da vida plena”.
a noite, segundo os autores (2007, p.640), mantém íntima relação com o caos, a
angústia e a morte. A associação da noite à morte pode ser percebida, uma vez que a noite e
sua escuridão trazem conotações que se referem ao fim, fim do dia, fim da vida. Os versos 03
e 04 revelam então a fugacidade da vida, que, mal desponta, se vai. Esse, como vimos, é o
verdadeiro motivo do desespero humano, saber que é um ser-para-a-morte, como afirma
Heidegger.
Nem mesmo as relações com os demais seres humanos dão ao eu-lírico um sentimento
de satisfação, de alegria, de prazer, pois para ele até o amor é uma mentira (verso 05). De
acordo com Chevalier e Gheerbrant (2007), para o eu individual seguindo a evolução análoga
a do universo, o amor é a busca de um centro unificador que permitirá a realização da síntese
dinâmica de suas virtualidades. Na medida em que é união, e não apenas aproximação, o
amor, segundo os autores, é fonte ontológica de progresso, mas isso apenas acontece se dois
entes se entregam e se abandonam para se reencontrarem um no outro, pois, caso contrário,
pode ser tornar princípio de divisão e de morte. É o que acontece quando um tenta destruir o
valor do outro na tentativa de escravizá-lo.
O amor ainda é apontado pelos autores como aquele que zomba dos humanos:
Simbolizado pela figura da criança ou do adolescente alado, ele representa tanto a eterna
juventude do sentimento profundo quanto a irresponsabilidade, que “o amor zomba dos
humanos que caça, por vezes mesmo sem os ver, os quais cega ou inflama” (CHEVALIER E
GHEERBRANT, 2007, p.46). A idéia de cegueira pode ser relacionada à falta de
consciência, de clareza, de razão. A frase “o amor é cego”, corriqueiramente utilizada,
transmite essa conotação de amor em oposição à razão.
Na poética florbeliana, o amor é uma “flor que é nascida e logo é desfolhada” (verso
07). A metáfora amor = flor nos remete ao mesmo tempo para o encantamento diante da
beleza e para a certeza de que ambos são passageiros. Segundo Chevalier e Gheerbrant
(2007), na mitologia celta, o deus Lan Ts’ai ho, é muitas vezes representado carregando um
98
cesta de flores a fim de melhor estabelecer o contraste entre a sua própria imortalidade e a
efêmera duração da vida, da beleza e dos prazeres terrenos.
O eu-lírico florbeliano ao associar o amor à figura da flor que logo é desfolhada,
aponta para sua efemeridade, pois esta, assim como tudo na vida, tem curta duração, ela nasce
e logo morre. Assim como as pétalas da flor são pisadas ao chão, pondo fim a toda sua beleza,
o amor acabado perde todo seu encantamento.
Quanto aos beijos de amor, o eu - lírico se pergunta “Pra quê?” (verso 09). Este
expressa nesse verso um total desdém pelo beijo. O beijo representa a união, não apenas entre
o homem com o divino, como vimos no capítulo primeiro, mas entre dois entes. Chevalier e
Gheerbrant (2007) destaca que no Zohar, acredita-se que, sendo pela boca que são dados os
beijos de amor, unindo inseparavelmente espírito a espírito, pois da boca também sai o sopro
do espírito: aquele cuja alma sai ao beijar adere ao outro espírito, a um espírito do qual ele
não se separa mais” (p.128).
No entanto, para o eu-lírico florbeliano, os beijos também são vaidades, pois num
momento são sonhos e logo depois realidades (verso 10) e a realidade para o eu - lírico, como
já verificamos, é tristeza, vaidade, nada.
Apenas uma louca acreditaria neles (nos beijos), mas o eu - lírico, consciente dessa
verdade, não pode mais se enganar com tal vaidade, não pode se iludir. Esses beijos vão de
boca em boca como pobres de porta em porta (verso 13), ou seja, este ato, muitas vezes
concebido como ato de amor que deveria ser dedicado exclusivamente à pessoa amada com a
qual estaria para sempre unido, é, para o eu – lírico, tão comum quanto os pobres pedindo em
cada porta. Sempre haverá mais uma porta onde pedir, sempre haverá mais uma boca a beijar.
Entendemos, de acordo com Kierkegaard (1968), que o melancólico sente-se apartado
da vida imediata, não podendo dela tomar parte. Ele nutre uma total revolta contra a
existência. Ele protesta toda a vida. A melancolia atua justamente enquanto percepção de que
é em vão fugir de sua angústia: Diante da fugacidade dos bens terrenos, melhor é não desejar
coisa alguma.
O efêmero que assusta o melancólico, ao mesmo tempo o fascina por lhe acenar a
perspectiva da morte. Podemos falar em doença no sentido kierkegaardiano, que entende o
desespero como “doença mortal”, mas não uma doença da qual se morre e sim uma doença da
qual não se pode morrer e que atesta que na vida não há esperança de morrer.
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Conforme Kierkegaard (2004), quanto mais consciência o indivíduo tem, mais
desesperado ele será. Vemos no poema, mais uma vez, a presença de um desespero-desafio,
no qual o indivíduo protesta toda a vida. A melancolia se apresenta no poema enquanto
consciência de que tudo é ilusão, tudo é vaidade. Consciência que faz o ser arrastar, sem
prazer, o peso de sua própria existência.
Na poética augustiana, também está presente essa recusa ao amor, como atesta o
soneto que segue:
IDEALISMO
01 Falas de amor, e eu ouço tudo e calo!
02 O amor da humanidade é uma mentira.
03 É. È por isto que na minha lira
04 De amores fúteis poucas vezes falo.
05 O amor! Quando virei por fim a amá-lo?!
06 Quando, se o amor que a Humanidade inspira
07 É o amor do sibarita e da hetaíra,
08 De Messalina e de Sardanapalo?!
09 Pois é mister que, para o amor sagrado,
10 O mundo fique imaterializado
11 - Alavanca desviada do seu fulcro –
12 E haja amizade verdadeira
13 Duma caveira para outra caveira,
14 Do meu sepulcro para o teu sepulcro?!
No soneto “Idealismo”, percebemos que inicialmente o eu-lírico se dirige a uma
segunda pessoa, como sugere o uso do verbo falar conjugado na segunda pessoa do singular
(verso 01). O verso sugere que essa segunda pessoa tem falado de amor ao eu-lírico e que, ao
ouvi-la, o eu-lírico diz que cala. O silêncio do eu-lírico diante da segunda pessoa, é justificado
em seguida, quando este afirma que “o amor da humanidade é uma mentira” (verso 02), ou
seja, não acreditando na verdade do amor, o eu-lírico prefere calar diante da segunda pessoa,
afinal, o que dizer a alguém que acredita em algo em que o eu-lírico pensa ser apenas uma
mentira? O poeta elege o silêncio como resposta à oratória mentirosa da humanidade sobre o
amor.
O amor da humanidade, para o eu-lírico, é uma mentira e, por isso, em sua lira, ele
afirma que de amores teis, ou seja, insignificantes, poucas vezes fala (verso 04) e sugere
não saber quando um dia irá amá-lo (o amor) (verso 05), pois, para ele, o amor que a
humanidade inspira é apenas o amor carnal, como atestam os versos 07 e 08 nos quais o eu
lírico afirma que o amor da humanidade é:
100
a) O amor do sibarita: pessoas dadas à indolência ou à vida de prazeres físicos, alusão
aos antigos habitantes de Síbaris, antiga cidade grega do sul da Itália, famosos pelas riquezas
e voluptuosidade;
b) O amor da hetaíra: mulher dissoluta, nome dado à cortesã, prostituta elegante e de
aparência muito distinta na antiga Grécia;
c) O amor da Messalina: mulher lasciva, dissoluta em excesso, alusão à mulher de
Cláudio I (10 a.C. – 54 d.C.), imperador de Roma, famosa pela devassidão;
d) O amor de Sardanapalo: homem que vive na devassidão, como Sardanapalo,
personagem lendário (séc. IX a.C.) que, segundo a tradição clássica, teria sido rei da Síria.
Enfim, o amor humano para o eu-lírico é o sexo. Sexo, que segundo Chevalier e
Gheerbrant (2007, p.832): “simboliza a busca da unidade, a diminuição da tensão, a realização
plena do ser. Por isso, muitos poemas místicos adotam a linguagem erótica para tentar
expressar a inefável união da alma com o seu Deus.”
No entanto, na poética augustiana, ele é concebido como uma prostituição, uma
mácula, conforme aponta Viana (1994, p.73), ao afirmar que nessa poética:
[...] a prostituição acaba transcendendo a figura da prostituta e definindo a própria
sexualidade humana. Na ótica do eu-lírico, todo sexo é prostituição – como efeito da
nossa natureza heterogênea, ambígua; ou como decorrência dessa anomalia, no
homem, que é o instinto [...] pelos instintos, o homem abdica da possível grandeza e
desce não apenas ao animal, mas ao bestial.
O eu-lírico, assim, desacredita do amor humano que ao final é sexo, sexo entendido
enquanto devassidão.
Para ele, é necessário que para o amor sagrado, o mundo fique imaterializado (versos
09 e10), ou seja, não materializado na forma carnal. O eu-lírico sugere, na última estrofe,
haver amizade verdadeira de uma caveira para outra caveira, de seu sepulcro para o sepulcro
da segunda pessoa com quem fala, ou seja, apenas na morte, quando todos os desejos,
inclusive os sexuais, cessam, pode haver possibilidade de existir uma verdadeira amizade,
sem interesses algum, sem pretensões sexuais entre duas pessoas.
O eu-lírico rejeita, assim, qualquer idealismo em relação ao amor humano, sua
consciência das imperfeições humanas o leva à descrença na existência de um amor humano
que não seja maculado.
101
Ainda em poemas como “Versos de amor”, percebemos o eu-lírico augustiniano
rejeitar aquilo que o poeta erótico e a maioria dos humanos chamam amor: O amor, poeta, é
como uma cana azeda, / A toda boca que o não prova engana/ [...]/ Quis saber o que era amor
[...] E hoje, que, em fim, conheço o seu conteúdo, / Pudera eu ter, eu que idolatro o estudo, /
Todas as ciências menos esta ciência!”. O eu-lírico rejeita as aparências ilusórias do amor
carnal, sua visão sobre o amor é diferente da visão egoísta relacionada ao contato físico. No
mesmo poema, o eu-lírico afirma que é bem diferente o que ele chama amor:
[...] Porque o amor, tal como eu o estou amando, / É Espírito, é éter, é substância
fluída, / É assim como o ar que a gente pega e cuida, / Cuida, entretanto, não o estar
pegando! / É a transubstanciação de instintos rudes, / Imponderabilíssima e
impalpável, / Que anda acima da carne miserável / Como anda a garça acima dos
açudes”.
O amor se coloca assim, acima dos desejos carnais, considerados maculados pelo eu-
lírico. Percebemos, dessa forma, que, tanto na poética de Florbela Espanca, quanto na de
Augusto dos Anjos, é constatada uma total descrença quanto ao amor humano. Em Florbela,
no soneto “Para quê?”, vemos que o eu-lírico afirma que “até o amor nos mente”, pois
igualmente a tudo na vida, é transitório, passageiro, igual a uma flor.
Em Augusto, no soneto “Idealismo”, o eu-lírico afirma que o amor humano é uma
mentira, preferindo falar pouco sobre ele em sua lira. Florbela destaca a efemeridade do amor
humano, a banalidade dos beijos, destacando-os como bens vãos, assim como tudo na vida.
Em Augusto, o amor é relacionado ao sexo, e esse é considerado pelo eu-lírico como algo
maculado, pervertido, nada diferenciando da prostituição.
A melancolia, constituindo-se enquanto consciência de que é em vão fugir da
angústia, ou seja, a consciência de que tudo é ilusão, tudo é vaidade e que faz o ser arrastar,
sem prazer, o peso de sua própria existência. Logo, a única forma que se apresenta ao ser para
fugir dessa melancolia seria se despir do Ser, pois, sem consciência, não angústia, nem
melancolia. Desse modo, o eu-lírico busca um passado mítico, pré-consciente ou,
simplesmente, deseja não ser, como podemos observar no poema que segue.
4.3.3 Desprezo em relação ao Ser
O desencanto frente à miserável condição humana leva o eu-lírico a desejar
desprender-se de tal condição, como podemos perceber no soneto que segue:
102
Não ser
01 Quem me dera voltar à inocência
02 Das coisas brutas, sãs, inanimadas,
03 Despir o vão orgulho, a incoerência:
04 – Mantos rotos de estátuas mutiladas!
05 Ah! Arrancar às carnes laceradas
06 Seu mísero segredo de consciência!
07 Ah! Poder ser apenas florescência
08 De astros em puras noites deslumbradas!
09 Ser nostálgico choupo ao entardecer,
10 De ramos graves, plácidos, absortos
11 Na mágica tarefa de viver!
12 Ser haste, seiva, ramaria inquieta,
13 Erguer ao sol o coração dos mortos
14 Na urna de oiro duma flor aberta!...
No soneto acima transcrito, o eu - lírico exprime o desejo de “voltar à inocência das
coisas brutas, sãs, inanimadas” (versos 01 e 02). O eu-lírico manifesta um imenso desejo de
retornar a um estado inorgânico. Tal desejo nos remete a um desencanto conseqüente à perda
da crença que, segundo Viana (2004), é percebida pela constante referência a um contraste
entre um passado de inocência e esperança e um presente marcado pela perda das ilusões.
O melancólico imagina, assim, segundo Viana (2004), ter vivido num lugar-tempo
ideal do qual foi banido pelas duras injunções da realidade, retomando o mito do paraíso
perdido. É nesse sentido, que analisamos tal poema, tomando como ponto de partida o mito
do paraíso perdido. Perceba-se que o eu-lírico deseja “voltar à inocência”. Entendendo, com
Kierkegaard (1968), que inocência é ignorância, vemos então o ser desejoso de voltar a um
estado no qual nada conhece, idéia reafirmada pelos versos (05 e 06), no qual ele deseja
“arrancar às carnes laceradas seu mísero segredo de consciência”, os quais atestam a
insatisfação do ser diante da consciência, do conhecimento, próprio do ser humano.
Se considerarmos que foi por ter se alimentado da “árvore do conhecimento do bem e
do mal” que, segundo o mito bíblico, o homem foi expulso do paraíso, podemos inferir que o
desejo do eu-lírico é se livrar desse conhecimento. Ora, de acordo coma filosofia
kierkegaardiana, é justamente esse conhecimento que produz a culpa, sem ele não haveria
discernimento.
Antes do pecado, havia, no entendimento de Kierkegaard (1968), calma e descanso.
Existia também a angústia, mas apenas enquanto inquietação pela possibilidade da liberdade.
Após o salto, após tornar-se conhecedor, o homem adquire mais angústia e sente-se culpado e
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a culpa gera cada vez mais angústia, pois ele agora sabe, conhece o bem e o mal, e precisa
escolher. A consciência tem seu preço: angústia.
Como existir é também viver o desespero, pois o homem não esperança diante de
sua finitude que aponta a ele que tudo é em vão ele tem então três escolhas: negar seu
desespero acreditando-se feliz, aceitar ser ele mesmo, ou negar seu eu buscando ser um outro.
Negar o desespero é, como afirma Kierkegaard (2004), algo negativo. Todos somos
desesperados, embora muitos não saibam ou não desejem nele refletir, entregando-se a
banalidade da vida, sem preocupar-se com a verdade.
A busca por fugir do desespero acreditando que ele é exterior, também é algo negativo.
É uma ilusão querer ser um outro eu, pois o desespero é interior. Por isso Kierkegaard (2004)
afirma que a idéia do jovem ligada ao futuro e a do velho ligada ao passado como momentos
de ausência de desespero é uma mentira, pois este sempre está presente. Como o verdadeiro
desespero humano é saber-se finito ou, nas palavras de Heidegger, ter consciência de que é
um ser-para-a-morte, o desespero está sempre presente.
A única forma de livrar-se do desespero é não existir enquanto vida consciente. Por
isso, o eu-lírico deseja retornar à inocência, à ignorância, que apenas as coisas “brutas e
inanimadas” podem ter.
O ser deseja se despir de um orgulho vão. Afinal, ter orgulho de quê, de ser humano e
ter consciência? Por que sentir orgulho, se é justamente essa condição que o faz sentir-se
angustiado diante da finitude do ser humano? Não, o eu-lírico deseja ser “apenas florescência
de astros em puras noites deslumbradas” (versos 07 e 08), ou um “nostálgico choupo” de
ramos “graves” (pesados profundos, intensos), “plácidos” (calmo, tranqüilo), “absortos”
(concentrado)” (versos 09 e 10), ou ainda “ser haste”, parte de um vegetal a que estão seguros
as folhas, as flores, os frutos: caule, tronco, vergôntea, pedúnculo, de uma planta, etc., ser
“seiva” (líquido que circula pelas diversas partes dos vegetais), “ramaria inquieta” (conjuntos
de ramos de uma árvore), ou seja, seres sem consciência, simples, únicos considerados sãos
pelo eu-lírico.
O desejo de se despir da consciência é mimetizado ainda em poemas como “Angústia”,
no qual o eu-lírico florbeliano assim se expressa: “Tortura do pensar! Triste lamento! /Quem
nos dera calar a tua voz!/ [...]/ E não se quer pensar! ...[...]”/ Ah! não ser mais que o vago, o
infinito! /Ser pedaço de gelo, ser granito, /Ser rugido de tigre na floresta!”.
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O pensar é considerado uma tortura para o eu-lírico, sendo mais proveitoso calar sua
voz. Ele deseja alcançar a ausência total de pensamento, transfigurando-se em gelo, granito,
rugido de tigre, ser o vago e o infinito. Enfim, o eu-lírico deseja não-ser.
No soneto “Desejos vãos”, o eu-lírico florbeliano exprime novamente o desejo de não
possuir consciência: “Eu queria ser a Pedra que não pensa/ [...]/ Eu queria ser a árvore tosca e
densa/Que ri do mundo vão e até a morte!”.
Também na poética augustiniana é revelado o desejo de retornar a um estado orgânico
mais simples, como atesta o soneto que segue:
INSÂNIA DE UM SIMPLES
01 Em cismas patológicas insanas,
02 É-me grato adstringir-me, na hierarquia
03 Das formas vivas, à categoria
04 Das organizações liliputianas;
05 Ser semelhante aos zoófitos e às lianas,
06 Ter o destino de uma larva fria,
07 Deixar enfim na cloaca mais sombria
08 Este feixe de células humanas!
09 E enquanto arremedando Eolo irancudo,
10 Na orgia heliogabálica do mundo,
11 Ganem todos os vícios de uma vez,
12 Apraz-me, adstrito ao triângulo mesquinho
13 De um delta humilde, apodrecer sozinho
14 No silêncio de minha pequenez!
Neste soneto, o eu-lírico afirma que em suas cismas patológicas e insanas (verso 01),
ou seja, em pensamento insistente, doentio, lhe parece agradável se diminuir, comprimir, na
hierarquia da formas vivas às organizações liliputianas, ou seja, o eu-lírico pensa
constantemente que lhe seria agradável passar da categoria humana para uma categoria mais
simples, menor, o que indica o uso do termo “liliputianas”, referência aos habitantes de
Lilipute, país imaginário do romance “Viagens de Guliver” do escritor inglês Jonathan Swift
(1667 – 1745), que tinha apenas seis polegadas de altura, ou seja, eram muito pequenos.
O desejo de passar à uma categoria mais simples que a humana é reforçado em todo o
soneto. Na segunda estrofe, observamos que o eu-lírico deseja ser semelhante aos zoófitos
(animais cujas formas recordam as das plantas, como o coral, a esponja) e às lianas
(denominação comum a diversas trepadeiras), demonstrando assim seu desejo de passar da
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categoria humana para uma categoria animal mais simples e da categoria animal para a
categoria vegetal. Ainda nessa estrofe, o eu-lírico deseja ter o destino de uma larva fria.
Sabendo que a larva é o primeiro estado dos insetos antes de saírem do ovo, observamos que
o eu-lírico deseja que seu destino seja igual ao de um inseto, deixar seu feixe de células
humanas na cloaca mais sombria, ou seja, num lugar imundo.
Na terceira estrofe, o eu-lírico afirma que enquanto todos os vícios ganem de uma
vez, imitando Eolo irancudo, ou seja, a voz estrondosa de Eolo - deus dos ventos na mitologia
grega, que em sua ira emite um barulho assustador - ele deseja apenas, diminuir-se em
triângulo mesquinho de um delta humilde, ou seja, sabendo que o termo delta se refere entre
outras coisas, a um sinal triangular, localizado nas extremidades digitais das plantas ou palma
humanas, orientador da classificação dactiloscópica dos tipos dermopapilares, percebemos
que o eu-lírico deseja ser uma categoria imensamente simplória se comparada à condição
humana. Para ele, é agradável apodrecer só no silêncio de sua pequenez.
Da mesma forma, encontramos no poema “Gemidos de arte” o desejo de se despir da
consciência, quando o eu-lírico questiona:
Ah! Por que desgraçada contingência / À híspida aresta sáxea áspera e abrupta/ Da
rocha brava, numa ininterrupta/ Adesão, não prendi minha existência?!/ Por que
Jeová, maior do que Laplace, / Não fez cair o túmulo de Plínio/ Por sobre todo o
meu raciocínio/ Para que eu nunca mais raciocinasse?!/ Pois minha mãe tão cheia
assim daqueles/ Carinhos com que guarda meus sapatos, / Por que me deu
consciência dos meus atos/ Para eu me arrepender de todos eles?!
Percebemos, assim, um desesperado desejo de despir-se da categoria humana e ser
uma criatura sem consciência. Assim como o eu-lírico florbeliano, o eu-lírico augustiniano
expressa uma total aversão diante do ser, desejoso por pertencer a um estado mais simples e
poder livrar-se de sua miserável condição humana.
Em ambas as poéticas, o eu-lírico demonstra o desejo de se despir da condição
humana e se diminuir a uma categoria mais simples. Em Florbela Espanca, no soneto “Não
ser”, percebemos que o eu-lírico exprime o desejo de retornar à inocência, das coisas “brutas,
sãs e inanimadas”. O ser deseja se despir de um orgulho vão relacionado à condição humana
e ser “apenas florescência de astros em puras noites deslumbradas” ou um “nostálgico choupo
[...] de ramos graves, plácidos, absortos”, ou ainda “ser haste, seiva, ramaria inquieta”, ou
seja, seres sem consciência, simples, únicas consideradas sãs pelo eu-lírico, desejo que,
segundo Kristeva (1989), revela uma pulsão de morte. Em Augusto, no poema “Insânia de um
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simples”, o eu-lírico afirma que, em suas cismas patológicas e insanas, lhe parece agradável
se diminuir, na hierarquia das formas vivas, à categoria das organizações liliputianas, ser
semelhante aos zoófitos, às lianas, a uma larva fria, ou seja, o eu-lírico augustiniano deseja
passar da categoria humana para uma categoria animal mais simples ou para a categoria
vegetal. Percebemos que o eu-lírico deseja ser uma categoria imensamente simplória se
comparada à condição humana. Para ele, é agradável apodrecer no silêncio de sua
pequenez. Em ambas, vemos a expressão de um desejo de simplesmente não ser.
A distinção entre a vida humana e as formas de vida mais simples consiste, entre
outros fatores, em que na vida humana encontra-se, conforme Cassirer (1977), uma nova
característica que é a marca distintiva de toda a vida humana: o sistema simbólico. Segundo
esse autor (1977, p.49) “em confronto com os outros animais, o homem não vive apenas uma
realidade mais vasta; vive, por assim dizer, uma nova dimensão da realidade. Existe uma
diferença inequívoca entre as reações orgânicas e as respostas humanas”. No caso dos outros
seres, a resposta dada a um estímulo exterior. Nos demais animais, a resposta dada a um
estímulo exterior é direta e imediata, enquanto no caso do ser humano, a resposta é sempre
diferida. Ela é interrompida e retardada por um lento e complicado processo de pensamento e
este atraso, que pode parecer uma vantagem em relação aos outros seres, é considerado por
alguns filósofos, a exemplo de Rousseau, não como aprimoramento, mas como a verdadeira
deteriorização da natureza humana.
O homem, animal simbolycum, não vive num mundo de fatos indisputáveis, ou de
acordo com suas necessidades e desejos imediatos, ele vive no meio de emoções imaginárias,
entre esperanças e temores, ilusões e desilusões, entre sonhos e fantasias. Conforme destaca
Cassirer (1977) o que perturba o homem não são simplesmente as coisas, mas as opiniões e
fantasias a respeito das coisas. Nesse sentido, nas duas poéticas ocorre a mimetização de um
desejo de superar essa condição humana, retornando a uma vida mais simples, desprovida das
complicações do pensamento. Esse desejo é verificado na busca pelo não ser.
Ora, o não-ser, conforme aponta Tillich (2001), é uma parte do nosso próprio ser. Todo
o desespero humano advém dessa consciência do seu possível não-ser. Ele surge da sempre
latente consciência de nosso próprio ter de morrer. No não-ser age um elemento assustador
que nos conscientiza de que não somos capazes de preservar nosso próprio ser. Dessa forma,
como entender o desejo do eu-lírico por não ser? De acordo com Bauman (1998, p.191) “ser
imortal é a coisa mais comum. Com exceção do homem, todas as criaturas mortais, pois
ignoram a morte”. As criaturas que o eu-lírico deseja ser: coisas brutas, sãs, inanimadas;
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florescência de astros em puras noites deslumbradas; nostálgico choupo; haste, seiva, ramaria
inquieta, em Florbela e organizações liliputianas, zoófitos, lianas, larva fria, em Augusto, são,
de certo modo, criaturas imortais, pois nelas não se encontra a consciência de mortalidade,
característica exclusiva dos seres humanos.
A expressão de busca pelo não ser é revelada ainda em poemas em que o eu-lírico fala
abertamente sobre seu desejo de morrer, como nos poemas que seguem.
4.3.4 Morte enquanto única esperança
Nas poéticas aqui analisadas, percebemos que a presença da morte se apresenta como
única esperança para o ser. Nela, cessam todos os sofrimentos:
À Morte
01 Morte, minha Senhora Dona Morte,
02 Tão bom que deve ser o teu abraço!
03 Lânguido e doce como um doce laço
04 E como uma raiz, sereno e forte.
05 Não há mal que não sare ou não conforte
06 Tua mão que nos guia passo a passo,
07 Em ti, dentro de ti, no teu regaço
08 Não há triste destino nem má sorte.
09 Dona Morte dos dedos de veludo,
10 fecha-me os olhos que já viram tudo!
11 Prende-me as asas que voaram tanto!
12 Vim da Moirama, sou filha de rei,
13 Má fada me encantou e aqui fiquei
14 À tua espera,... quebra-me o encanto!
Nesse soneto, o eu-lírico dirige-se diretamente à morte. O poema é feito para ela.
Percebemos que a palavra “morte” é sempre grafada com inicial maiúscula (versos 01 e 09),
fazendo com que o termo se destaque dos demais, atestando, assim, a força dessa palavra. A
morte é denominada “Senhora Dona Morte” (Verso 01), o que sugere um grande respeito do
eu-lírico por ela e uma consciência de que ele pertence a ela. Ela é, na verdade, sua senhora e
dona, única certeza diante de todas as possibilidades que a vida oferece, mas que, conforme a
filosofia kierkegaardiana, não tem garantia de transformar-se em realidade.
No soneto, a morte é representada de forma positiva, o que se observa quando o eu-
lírico afirma que, para ele, o abraço da morte deve ser “tão bom”, “lânguido e doce como um
doce laço” (versos 02 e 03), ou seja, na personificação da morte feita pelo eu-lírico, esta se
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apresenta de forma agradável a ele. Sendo comparada a um doce laço, o abraço da morte é
bom, lânguido, doce e ao mesmo tempo sereno e forte “como uma raiz” (verso 03).
Percebemos ainda que, para o eu-lírico, a mão da morte é capaz de sarar e confortar
qualquer mal (versos 05 e 06). Ele se refere à presença da mão da morte nos guiando passo a
passo (verso 06), ou seja, temos aqui a idéia que, a cada passo, o ser humano é guiado pela
morte, se aproxima dela, caminha para ela, ou seja, a idéia de que ao nascer começamos a
morrer. A morte é representada ainda como um estado dentro do qual não nem triste
destino, nem má sorte (versos 07 e 08), ou seja, morrendo, o ser se livra das tristezas da vida e
se liberta de seu sofrimento. Por isso pede à “Dona Morte dos dedos de veludo” (verso 09),
sinestesia de conotação agradável, para lhe fechar os olhos, pois esses “viram tudo” (verso
10) e nada parece tê-los agradado, bem como lhe prender as asas que voaram tanto, e parecem
estar cansadas.
O eu-lírico afirma ter vindo da Mourama (Moirama, terra dos moiros), onde era filha
de rei (verso 12), ou seja, vem de uma descendência de real, no entanto, uma fada a
encantou e aqui ela ficou (verso 13) à espera que a morte viesse lhe quebrar o encanto. A idéia
de ser encantado aqui é distinta da idéia geralmente difundida. Se tomarmos como base os
clássicos infantis, a exemplo de “A bela adormecida”, percebemos que estar encantada, ou
seja, sob encanto, é estar em estado de sono, sendo o sono um estado muito próximo da
morte, não à toa falamos em sono eterno para nos referir à morte.
A quebra do encanto em tais contos resulta em despertar do sono, voltando assim à
vida consciente. No poema analisado, percebemos que, diferente da idéia difundida pelos
clássicos infantis, o eu-lírico deseja que o encanto seja quebrado pela morte, o que nos induz a
entender que ele vê a vida como encantamento, desejando o sono da morte.
Ainda na poética florbeliana, a menção quanto ao desejo de morrer é expressa em
poemas como “Deixai a Morte entrar”: Deixai entrar a Morte, a Iluminada, / A que vem para
me levar. / Abri todas as portas par em par / Como asas a bater em revoada.”
Nesse poema, o eu-lírico inicia usando o verbo deixar no imperativo, que pode
indicar tanto um pedido como uma ordem. Tal pedido (ou ordem) é para que deixem “a Morte
entrar”. Observe que a palavra morte vem grafada com inicial maiúscula, fazendo com que o
termo se destaque dos demais, atestando assim a força dessa palavra, que no mesmo verso é
caracterizada como “Iluminada” (termo também grafado com letra inicial maiúscula). Temos
aqui uma inversão da idéia da morte, uma vez que esta é normalmente impregnada do símbolo
109
das trevas, da escuridão, e que, para o eu-lírico, tem outro sentido, isto é, de luz. Na leitura
dos poemas anteriores, vimos que a vida é caracterizada como triste, vã, sem valor, ou seja,
para o eu-lírico a vida é negra, enquanto a morte é a iluminada, a única a quem ele atribui
valor, única luz que lhe aparece em vida. A morte, sua morte, a que vem para ele, é desejada
ardentemente pelo eu-lírico.
A busca pela morte, conforme vimos na filosofia kierkegaardiana, atesta que o homem,
desesperado com a vida, busca a morte que se afigura como única esperança. No entanto,
embora o desespero seja considerado a “doença mortal”, o ser não pode morrer dessa doença,
pois a doença mortal é aquela na qual se vive a morte.
A melancolia é percebida nos poemas ao observarmos que o ser é consciente da
vaidade da vida e de sua condição existencial finita, incompleta, tornando-se-lhe pesada. Na
melancolia que entendemos aqui como uma vertigem da consciência, o ser passa a não desejar
profunda e intimamente coisa alguma, pois toda a vida parece sem sentido. a morte é
desejada pelo melancólico, morte que põe fim a toda sua consciência e consequentemente, a
toda sua melancolia.
Da mesma forma, encontramos na poética augustiniana esse desejo de libertar-se do
peso da miséria humana através da morte:
.
BUDISMO MODERNO
01 Tome, Dr., esta tesoura, e... corte
02 Minha singularíssima pessoa.
03 Que importa a mim que a bicharia roa
04 Todo o meu coração, depois da morte?!
05 Ah! Um urubu pousou na minha sorte!
06 Também, das diatomáceas da lagoa
07 A criptógama cápsula se esbroa
08 Ao contato de bronca destra forte!
09 Dissolva-se, portanto, minha vida
10 Igualmente a uma célula caída
11 Na aberração de um óvulo infecundo;
12 Mas o agregado abstrato das saudades
13 Fique batendo nas perpétuas grades
14 Do último verso que eu fizer no mundo!
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No soneto Budismo Moderno, o eu-lírico se dirige possivelmente a um médico, o que é
sugerido pelo o uso do termo “doutor(verso 01), e pede-lhe que corte sua “singularíssima
pessoa”. Percebemos que o eu-lírico se refere, com certo deboche, a sua pessoa, denunciado
pelo uso do superlativo sintético “singularíssima”, pois enquanto a expressão “singular” se
refere a algo raro, sem semelhante, especial, seu uso no superlativo o faz adquirir uma
conotação irônica. Em sintonia com Paiva (apud Bezerra, 2005, p.23) “um dos processos mais
primitivos e mais freqüentes de produzir o riso consiste em aumentar ou diminuir tão
extraordinariamente as dimensões duma coisa que ela passe a impressionar pela estranheza”.
Assim, ao usar o termo singular de forma negativa, podemos afirmar que o ser vê-se com
desprezo, preferindo ser cortado, mutilado, pelo médico.
O eu-lírico demonstra total desdém por sua vida, afirmando que não lhe importa que a
bicharia roa todo seu coração depois da morte (versos 03 e 04). A vida se afigura para ele sem
valor, nem mesmo a idéia de ser comido por bichos o espanta.
Para o eu-lírico, um urubu pousou em sua sorte (verso 05), ou seja, aqui temos a
sugestão de que a vida dele é infeliz, que para ele não há prazer na vida, idéia já apontada por
Bezerra (2005, p.22), ao afirmar que, neste soneto, podemos perceber que “o eu-lírico a
vida com total insignificância, marcado por uma seqüência de imagens que simbolizam
características do “negativo”, do “inferior”.
A idéia de morte, o pessimismo e a frustração perante a vida evidenciam o desapego à
matéria, daí a não preocupação com o destino do corpo. A idéia de desapego à matéria pode
ser ainda verificada no título do texto, uma vez que budismo é, segundo Hellern, Notaker e
Gaarder (2000), o nome de uma religião de origem indiana que prega, entre outras coisas, que
todo o sofrimento humano provém de seus desejos e de seu apego à vida. O título “Budismo
Moderno”, aqui concordamos com Bezerra (2005, p.22), remete-nos à ironia implícita na
“concepção de budismo enquanto reflexão espiritual, vinculada à tradição, e outra que o
amplifica numa dimensão atual, individual e pragmática”. Para a autora (2005, p.22):
“Parece que o eu-lírico sugere uma forma individual de reflexão espiritual daí, um
budismo moderno. Nisso é que reside a ironia. Ao atualizar a concepção de
budismo, ele perfilha um sistema de pensamento poético “moderno”, capaz de
acolher a mudança e o desequilíbrio; no soneto, o budismo parece ligado ao
negativo”.
111
As imagens simbólicas do negativo, do inferior, podem ser percebidas na terceira
estrofe, representadas pelos termos: diatomáceas, algas de água doce que contém cheiro
desagradável, remetendo à idéia de podridão; criptógama (vegetais inferiores como algas,
fungos, e fetos, que se reproduzem por meio de esporos ou gametas, em vez de por sementes).
O eu-lírico afirma que a cápsula criptograma das diatomáceas também se esbroa, ou seja, se
reduz a fragmentos ao contato de bronca destra forte. Da mesma maneira, o eu-lírico deseja
que sua vida seja dissolvida, igual a uma célula caída (verso 09), na aberração de um óvulo
infecundo (verso 10). A referência à célula caída é apontada por Bezerra (2005, p.23), como
uma alusão à idéia de dissolução do ser, pois sabendo que é de uma célula que todos os
organismos vivos, pluricelulares, se originam, “a célula, sendo “caída”, perde essa valor de
gênese dos organismos vivos”.
Na última estrofe, vemos, assim como Bezerra (2005), que o eu-lírico sugere que a
salvação do ser viria da matéria poética pois, para o eu-lírico, mesmo com a consciência da
realidade iminente da morte, ele remete para a idéia de continuidade através da salvação pela
palavra, pelo poético, ao sugerir o desejo de que o “agregado abstrato da saudade” (verso 12)
- verso no qual se manifesta o contraste entre os termos agregado (concreto) e saudade
(abstrato) - fique batendo nas perpétuas grades do último verso que ele fizer no mundo, ou
seja, temos aqui a idéia de eternidade conquistada pela palavra, numa alusão ao verso
perpétuo, eterno. Nele, e apenas nele, o eu-lírico permanecerá eterno.
Em ambas as poéticas ocorre a mimetização da busca pela morte, que de acordo com a
filosofia kierkegaardiana, atesta que o homem, desesperado com a vida, busca a morte que se
afigura como única esperança. A melancolia é percebida nos poemas ao observarmos que o
ser é consciente da futilidade da vida e de sua condição existencial finita, incompleta,
miserável, o que faz com que ela seja para ele um peso, do qual ele deseja desesperadamente
se livrar. Na melancolia, que entendemos aqui como uma vertigem da consciência, o ser passa
a não desejar profunda e intimamente coisa alguma, pois toda a vida parece sem sentido. a
morte é desejada pelo melancólico, morte que põe fim a toda sua consciência e
consequentemente, a todo seu desespero e insignificância, bem como a toda a sua melancolia.
A leitura da poética de Florbela Espanca e Augusto dos Anjos, à luz da filosofia
kierkegaardiana, nos permite visualisar diversas aproximações quanto à mimetização da
melancolia. O diálogo entre as duas poéticas nos permite atestar a universalidade da temática
bem como a atualidade das mesmas. Atualidade, no sentido de que os poetas apresentavam
em suas poéticas, um século, assim como teorizava o filósofo Kierkegaard, dos dilemas
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que afligem intensamente o homem moderno, tais como a angústia diante de um mundo onde
nada parece certo, seguro, culminando num sentimento melancólico de a nada querer apegar-
se; o desencanto diante das relações humanas cada vez mais banais; o desespero na busca do
conhecimento de si mesmo; a consciência da finitude e miséria humanas, entre outros.
Dessa forma, podemos afirmar que assim como a filosofia, a poesia também nos ajuda
a sair do trivial, do ordinário, da aparência das coisas, nos ajudando a perceber que as coisas
do mundo podem não ser tão certas quanto se nos apresentam. Visualizamos assim, uma
íntima relação entre as poéticas analisadas e a filosofia kierkegaardiana. No entanto, sendo a
filosofia uma meditação crítica, uma sistematização racional dos problemas totais que
apresenta a realidade, nela pudemos verificar a busca pela compreensão, explicação e
classificação da angústia, do desespero e da melancolia, enquanto que nas poéticas, não sendo
seu objetivo a definição daquilo que apresenta, não é feita nenhuma investigação em torno da
realidade, nem explicação explica, mas uma apresentação. Na poesia a melancolia não se
define, ela se mostra.
Concordamos com Peres (2003) que estamos vivendo nos dias atuais a democratização
da tristeza em sua dimensão mais aguda, uma tristeza que não é mais uma forma de situar-se
no mundo, porém uma característica do homem da atualidade. Podemos dizer, de acordo com
a autora, que a depressão é o mal do século e que a tristeza e o desencanto tomam proporções
de epidemia. Com May (1998) também entendemos que o problema fundamental do homem
moderno é o vazio, vazio que surge da impossibilidade do homem moderno alcançar uma
integração interior numa sociedade totalmente desintegrada, na qual nada é seguro, nada é
certo, nem presente, nem futuro.
Enquanto animais históricos, aqui na esteira de Eagleton (2005), estamos sempre num
processo de vir-a-ser, ou seja, estamos sempre projetados para o futuro sendo o presente
sempre parte de um projeto inacabado. O futuro, por sua vez, embora nos sugira múltiplas
possibilidades, nos revela, ao mesmo tempo, que nosso destino é a morte, que a eternidade
não é para nós. No entanto, a melancolia entendida como vertigem da consciência,
consciência de finitude humana, longe de caracterizar uma patologia do ser, pode, ao
contrário, apontar novas possibilidades de situar-se no mundo. Eagleton (2005), no rastro de
Heidegger (2007a), afirma que viver autenticamente é abarcar nossa própria nadidade,
aceitando o fato de nossa existência ser contingente, não fundamentada e não escolhida.
113
Vivemos à sombra da morte, nada, segundo Eagleton (2005), ilustra mais graficamente
quão desnecessários somos do que a nossa mortalidade. No entanto, não significa que
devemos rejeitar a idéia da morte. Para o autor (2005, p.284):
Aceitar a morte seria viver mais plenamente. Ao reconhecer que nossas vidas são
provisórias, podemos relaxar nosso apego neurótico a elas e assim vir a gozá-las
muito mais. Abraçar a morte nesse sentido é o oposto de deixar-se morbidamente
seduzir por ela. Além disso, se de fato pudéssemos manter a morte em mente, é
quase certo que agiríamos com mais virtude que agimos. Se vivêssemos
permanentemente à beira da morte, é provável que tivéssemos mais facilidade de
perdoar os inimigos e refazer nossos relacionamentos. É, em parte, a ilusão de que
vivemos para sempre que nos impede fazer essas coisas. Imortalidade e imoralidade
são aliados muito próximos [...] a morte não pode ser exatamente uma amiga, mas
também não é inteiramente uma inimiga. Como amiga, pode me esclarecer a meu
respeito, embora, como inimiga, o faça de maneiras que, na maior parte dos casos,
eu preferiria não ouvir. Pode recordar-me da minha finitude e contingência de
criatura, da natureza frágil e efêmera da minha existência, da minha carência e da
vulnerabilidade dos outros. Aprendendo com isso, podemos transformar fatos em
valores. A morte [...] pode nos sugerir algo sobre como viver.
Consciente de nossa nadidade, de que somos seres em contínua constituição e de que
logo não seremos mais, ou seremos na verdade um não-ser, poderemos viver de forma mais
plena. No sentido do que diz Gaarder (1999), é apenas quando sentimos intensamente que um
dia desapareceremos, que podemos entender exatamente o quanto a vida é infinitamente
valiosa. Quanto maior e mais clara é a face de uma moeda, tanto maior e mais clara se torna a
outra. Vida e morte são os dois lados de uma mesma coisa. Não se pode experimentar a
sensação de existir sem se experimentar a certeza de que se tem que morrer. E é igualmente
impossível pensar que se tem que morrer sem pensar ao mesmo tempo em como a vida é
fantástica.
No entanto, na modernidade, segundo Eagleton (2005), vemos duas formas de pulsões
de morte, uma na qual o ser se supervaloriza maniacamente considerando-se valioso demais
para morrer, para quem o inferno é a morte viva e que geralmente libera contra os outros essa
pulsão e outra na qual o ser nutri um prazer obsceno na destruição de si, na tentativa de
expurgar todo o valor de si. Temos, na primeira, uma rejeição pelo não-ser e, na segunda, uma
fascinação por ele, mas há um outro sentido de não-ser que é construtivo, que pode levar o ser
a passar do desespero para a esperança, a noção de não-ser como consciência da fragilidade
humana e de nossa falta de fundamento, consciência que pode opor resistência à arrogância
que gera o fundamentalismo, que me permite não me sobrepor ao meu semelhante, mas ver-
114
me como igual, além de gerar um comprometimento com a natureza aberta da humanidade,
tornando-se assim, uma fonte de esperança.
Concordamos com Eagleton (2005) quando ele afirma que enxergar o mundo
corretamente é vê-lo à luz de sua contingência. Se na sociedade moderna, uma sociedade que
negocia futuros, a ideologia está para fazer com que nos sintamos necessários, a filosofia,
segundo o autor, está por perto para nos lembrar que não o somos. Acrescentamos que a
poesia, e no nosso caso específico, a poética de Florbela Espanca e Augusto dos Anjos, ao
despertar o ser para sua nadidade, para a consciência de sua pequenez e de sua mortalidade,
assim como a filosofia, também nos permite lembrar essa verdade.
115
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso trabalho nos permitiu visualizar que a literatura, por se constituir como um
campo privilegiado da descrição do real, captando-o e transmudando-o, em sua representação
da realidade, nos possibilita encontrar diversos aspectos dessa realidade, dentre os quais os
que dizem respeito à condição humana.
No capítulo primeiro, ao tratar da linguagem e da existência humana, pudemos
perceber que é na e através da linguagem que o ser humano se diz e diz o mundo. Sem a
linguagem o homem ficaria fechado, pois ela o torna um ser. Somos seres possuídos por
ela, uma vez que não falamos a não ser na medida em que somos possuídos pela linguagem.
Falar é pertencer à linguagem. Vimos que ela pré-existe ao homem, no sentido que só
mundo humano onde linguagem, uma vez que o ser humano o poderia possuir
significados sem possuir uma linguagem. Falar é fazer com que a verdade do Ser chegue,
através da palavra, até a linguagem. Vimos ainda que a literatura não é uma mera linguagem
fictícia, no sentido de fugir à verdade, mas que ela é uma representação transmudada do real e
que, como representação, as obras literárias, contrapondo-as às científicas, nela pode-se
perceber que o que é metaforicamente verdadeiro não se opõe ao que é literalmente
verdadeiro, mas que a oposição que se estabelece é “a simples falsidade”. Vimos, com
Ricouer (1995), que representar “não é imitar no sentido de assemelhar-se a ... ou de copiar”,
pois a obra se constitui buscando apagar o mundo, mas isto apenas ocorre na medida em que
ela mesma constrói um outro mundo.
Ainda neste capítulo, percebemos que a obra poética traz à linguagem formas de o ser
humano experienciar o real que a linguagem comum geralmente dissimula, que a “visão
ordinária obscurece ou até mesmo reprime”, sendo a poesia entendida como a linguagem que
revela, através de suas metáforas, as experiências humanas dificilmente dizíveis em
linguagem cotidiana e que, no rastro de Silva (2004), “só a poesia tem força, beleza e
capacidade de atingir dimensões do humano que a linguagem comum dissimula”. Entendemos
que poesia não é beleza, nem criação, nem imitação, mas revelação do ser, desocultamento
original, ou seja, forma do ser se revelar, no sentido de que na obra de arte acontece a
revelação ou a verdade de algo, a verdade do ser. Ela é “a fundamentação do Ser em e pela
palavra”, e por isso mesmo, o mais perigoso de todos os bens que o homem possui, pois
enquanto fundamentação do Ser, ela arrisca o Ser e percebemos que o dizer do poeta é a
fundamentação da existência humana, no sentido de que “fundar é abrir o ser, fazer aparecer o
116
mundo, dizer a essência das coisas, nomear Deus, elementos em que se desenvolve a
existência humana” (GILES, 1975), e que o verdadeiro poeta é aquele que encontra a palavra
que anuncie a verdade do Ser, sendo que a angústia, abrindo para o homem o abismo do nada,
pode dar-lhe a ocasião de escutar esta palavra no silêncio profundo de si, pois o nada é o
frasco do Ser. Poesia e filosofia se relacionam exatamente no sentido de que em ambas
encontramos a busca pela revelação do Ser, embora à filosofia caiba o papel de investigação
da realidade, enquanto a poesia seja uma revelação que não é um saber de algo ou sobre algo,
pois esse tipo de saber está mais próximo da filosofia, mas revelação no sentido de que, na
poesia, nos é revelada apresentada uma verdade que é inerente à condição humana.
No segundo capítulo, buscamos apresentar os vários significados atribuídos ao
significante “melancolia” através do tempo, o que nos permitiu observar que o termo adquiriu
vários significados em distintos momentos, sendo considerado na Antiguidade como angústia
resultante de uma punição divina, como atestam os casos de Saul e Belerofonte, ou como um
temperamento patológico no qual o indivíduo perde o amor à vida e passa a buscar a morte,
sendo tal estado resultante do desequilíbrio dos humores naturais do homem, como destacada
na teoria dos humores de Hipócrates. Na Idade Média vimos a associação da melancolia ao
“mal do amor”, sendo traduzida como angústia resultante de um amor não correspondido.
Nesse período, vimos o início da associação entre a melancolia e o planeta Saturno, por serem
os dois considerados frios e secos e obscuros. Na Renascença, a idéia de melancolia esteve
associada ao trabalho intelectual. Na Modernidade, a melancolia é concebida enquanto uma
forma escolhida de ser no mundo ou uma forma de conceber a existência, forma que
considera, entre outras coisas, o vazio, a perda da ilusão de futuro resultante do fracasso do
processo iluminista.
Com Kierkegaard, entendemos a melancolia enquanto vertigem da consciência,
consciência da finitude humana, da nadidade de nossa condição existencial, consciência de
que somos seres-para-a-morte, resultando, assim, numa expulsão do ser da vida, num não
querer profunda e intimamente coisa alguma. Com Freud, vimos o termo melancolia retomar
a condição de patologia.
No terceiro capítulo, constatamos a universalidade da representação da melancolia na
obra literária, no sentido de que a obra literária, tanto a universal quanto a brasileira se
apresentam como um testemunho do sentimento melancólico, bem como o reducionismo de
muitos estudos literários que, geralmente numa linha psicologista, m apontado para a
relação entre a melancolia textual e os conflitos pessoais de seus autores.
117
No quarto e último capítulo, ao fazer a leitura da poética de Florbela Espanca e
Augusto dos Anjos, visualizamos a presença de uma mimetização da melancolia em ambas as
poéticas, além de observar vários pontos em comum entre elas no que se refere a essa
mimetização, o que atesta a universalidade da temática, figurando em poetas de culturas
distintas. Observamos ainda a representação da melancolia em ambas as poéticas, enquanto
uma vertigem da consciência, consciência da nadidade do ser, de sua finitude. Nesse capítulo,
percebemos que a melancolia, entendida como vertigem da consciência, consciência de
finitude humana, longe de caracterizar uma patologia do ser, pode, ao contrário, apontar novas
possibilidades de situar-se no mundo, uma vez que consideramos, assim como Heidegger, que
viver autenticamente é abarcar nossa própria nadidade, aceitando o fato de nossa existência
ser contingente, não fundamentada e não escolhida.
Concordando com Eagleton (2005) que enxergar o mundo corretamente é vê-lo à luz
de sua contingência, podemos afirmar que, na sociedade moderna, uma sociedade que negocia
futuros e onde a ideologia está para fazer com que nos sintamos necessários, a poesia, e no
nosso caso específico a poética de Florbela Espanca e Augusto dos Anjos, ao despertar o ser
para sua nadidade, para a consciência de sua pequenez e de sua mortalidade, está por perto
para nos lembrar que não o somos e essa constatação, longe de nos conduzir a um
pessimismo, pode nos levar do desespero para a esperança, pois a noção de não-ser como
consciência da fragilidade humana e de nossa falta de fundamento, pode opor resistência à
arrogância que gera o fundamentalismo, nos impedindo de nos sobrepor aos nossos
semelhantes, mas nos ver como iguais, mesmo nas diferenças, além de gerar um
comprometimento com a natureza aberta da humanidade, tornando-se assim uma fonte de
esperança.
118
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