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> Revista Veja, Edição 2073
A neutralidade como dever
"A pesquisa CNT/Sensus publicada nesta edição corrobora esse quadro: só 18% dos professores da escola pública
dizem que seu discurso em sala de aula é politicamente neutro. Setenta e quatro por cento escolhem ‘formar cidadãos’
como missão do professor – apenas 8,4% dizem que é ‘ensinar a matéria’. Os resultados são praticamente idênticos
nas escolas particulares"
Gustavo Ioschpe
Sabendo que, em uma população de
190 milhões de habitantes, temos
mais de 50 milhões de alunos no
ensino básico e aproximadamente
100 milhões de pais desses alunos e
apenas 2 milhões de professores, e
sabendo que vivemos em uma
democracia, a pergunta que se impõe
a todo professor, diretor, secretário
municipal, estadual ou ministro da
Educação do país de agora em diante
é: como se pode justificar que uma
minoria imponha sobre a maioria a
sua visão da educação? Em uma
sociedade democrática, quem decide
que tipo de educação será oferecido
no sistema público: o público ou as
corporações do setor? Como se
justifica que professores e
administradores escolares ditem uma
política educacional à revelia dos
desejos expressos da sociedade
brasileira? A educação para a
cidadania não pressupõe, afinal, o
respeito à vontade coletiva e a
valorização da sabedoria popular?
Quando se discutem as razões pelas
quais nosso sistema escolar não
consegue ensinar a maioria dos
alunos a ler e a escrever ou a realizar
operações aritméticas simples,
muitos supostos fatores vêm à baila:
o salário dos professores, a condição
da infra-estrutura das escolas, o
descaso da sociedade etc. Essa
análise parte do pressuposto de que
todos os atores do processo
educacional estão engajados no
mesmo projeto, o que não é verdade.
Seguimos ignorando um problema
que me parece cada vez mais crucial:
o ensino acadêmico é percebido
pelos nossos professores como uma
tarefa desimportante do processo
educacional. Quando instado, em
pesquisa da Unesco, a apontar as
finalidades mais importantes da
educação, o professorado brasileiro
disse o seguinte: com 72% dos
votos, a campeã foi "formar cidadãos
conscientes". A segunda mais
lembrada foi "desenvolver a
atualizados e relevantes" (17%). No
mesmo levantamento, 73% dos
professores concordaram com a
afirmação que segue: "O professor
deve desenvolver a consciência
social e política das novas
gerações". Cinqüenta e cinco por
cento rejeitam a idéia de que "a
atividade docente deve reger-se pelo
princípio da neutralidade política".
Mais de 75% dos professores acham
que a igualdade é um valor superior
à liberdade. A pesquisa CNT/Sensus
publicada nesta edição corrobora
esse quadro: só 18% dos professores
da escola pública dizem que seu
discurso em sala de aula é
politicamente neutro. Setenta e
quatro por cento escolhem "formar
cidadãos" como missão do professor
– apenas 8,4% dizem que é "ensinar
a matéria". Os resultados são
praticamente idênticos nas escolas
particulares.
É triste constatar que o pendor
atingiu o nível de formação de
políticas públicas e, como tal, virou
uma questão sistêmica. Na avaliação
que o MEC faz dos livros didáticos
que serão escolhidos para todas as
escolas do país, a obra ganha pontos
se mostrar preocupação com a
questão da cidadania. Não apenas na
área de humanas, mas também em
ciências e matemática. Na avaliação
de livros didáticos de ciências do
ensino fundamental, por exemplo, há
seis itens. Um deles é "cidadania e
ética". Lá está dito que o livro deve
incentivar a "valorização do debate
sobre direitos do trabalhador e do
cidadão" e que se deve atentar "à
relação entre conhecimento popular
e científico, com respeito e
valorização de ambos". Não sei
muito bem o que isso quer dizer,
mas imagino que, se perguntarem a
um aluno numa prova a razão da
existência das chamadas "estrelas
cadentes", ele tirará 10 se responder
que é para atender aos três desejos
cada um é sua prerrogativa individual,
sujeita apenas à interferência dos pais.
Não é para ser condenada ou legitimada
na escola. Mesmo que os pais não
pratiquem sua prerrogativa, isso não dá
ao professor o direito de se assenhorear
da tarefa. Não acredito que a maioria
dos professores brasileiros, com seu
baixo preparo intelectual, tenha
condições de oferecer ao aluno a
exposição complexa e multifacetada
que as questões inerentes à formação da
cidadania exigem. Vira panfletagem.
Também não acredito no poder do
discurso dissociado da prática. Se essas
razões são válidas para qualquer tipo de
escola, creio que as regras devessem ser
ainda mais rigorosas para as escolas
públicas, nas quais o aluno não tem
condições de optar por escola diferente.
Aqui o texto de referência é de Max
Weber, em "Wissenschaft als Beruf" (A
Ciência como Vocação). Falando sobre
o dever de neutralidade dos professores
universitários – creio que não lhe
passaria pela cabeça que pudesse
ocorrer como no Brasil de hoje a
politização de alunos de 10 anos de
idade –, Weber disse: "Só se pode
exigir do professor que tenha a
integridade intelectual para ver que
uma coisa é declarar fatos, determinar
as relações matemáticas ou lógicas ou a
estrutura interna de valores culturais;
outra coisa é responder a questões sobre
o valor da cultura e seus componentes
individuais e como alguém deve agir na
comunidade cultural e em associações
políticas. Se ele perguntar por que não
deve lidar com os dois tipos de
problema em sala de aula, a resposta é:
porque o profeta e o demagogo não
pertencem ao espaço acadêmico. (...)"
Uma discussão político-ideológica
profícua pressupõe a igualdade de
poder entre os participantes. A relação
professor-aluno é totalmente
assimétrica: se o aluno questionar as
convicções de seu mestre, correrá o
risco de sofrer represálias, enquanto o
oposto é impossível. Pela mesma razão
que o estado é laico, as aulas do estado