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SADY RAUL PEREIRA
A PREMISSA DO FALO
E O CONCEITO DE CASTRAÇÃO EM FREUD
FLORIANÓPOLIS
2007
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SADY RAUL PEREIRA
A PREMISSA DO FALO
E O CONCEITO DE CASTRAÇÃO EM FREUD
Dissertação a ser apresentada como requisito
parcial à obtenção de grau de Mestre,
Mestrado em Filosofia, Área de
Concentração: Epistemologia, Universidade
Federal de Santa Catarina
Orientador: Prof. Dr. Marco Antônio
Franciotti
FLORIANÓPOLIS
2007
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ii
A PREMISSA DO FALO
E O CONCEITO DE CASTRAÇÃO EM FREUD
Banca Examinadora
Prof. Dr. Marco Antônio Franciotti - UFSC
Prof. Dr. Marcos Müller - UFSC
Profa. Dra. Maria Elisa Giusti - UFPR
Florianópolis, fevereiro de 2007
iii
Gostaria de tratar da questão do valor do conhecimento como um anjo glacial que atravessa
toda a confusão. Sem ser malévolo, mas também sem suavidade.
Friedrich Nietzsche
iv
Para a Lou
v
Agradecimentos
ao Marco Antônio Franciotti, por ter indicado caminhos, apontando
que é preciso abertura quando se trata de construir o saber
à Zaira Antonieta Belan, por ter interrogado minha relação com o
saber e se instalado como uma questão viva no meu inconsciente
à Maria Elisa Giusti, pela interlocução e pela leitura dos meus
escritos
à Arisangeli Paiva, pelas longas conversações acerca da matéria
deste trabalho
vi
SUMÁRIO
RESUMO ............................................................................................................................vii
ABSTRACT .......................................................................................................................viii
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................1
1 SOBRE O FALO E A CASTRAÇÃO ...........................................................................7
2 A PULSÃO E SEU OBJETO .......................................................................................51
3 O MITO FREUDIANO SOBRE O OBJETO ............................................................83
4 CONCLUSÃO RECALCAMENTO PRIMÁRIO, FALO E SIGNIFICAÇÃO ...118
REFERÊNCIAS ...............................................................................................................164
vii
RESUMO
O tema central da presente dissertação é a premissa da universalidade do falo e o complexo
de castração em Freud. O objetivo é formalizar sobre o modo como as operações
inconscientes se dão em função do falo e da castração. A premissa do falo é articulada à
teorização freudiana acerca da pulsão e de sua relação com a representação. A dissertação
também aborda a fantasia inconsciente, subsidiando, deste modo, considerações
metapsicológicas a propósito do simbólico. O complexo de castração é fundamentado nas
investigações em torno do afeto de angústia e na noção de objeto perdido.
Palavras-chaves: Falo; Complexo de Castração; Fantasia Inconsciente; Objeto Perdido.
viii
ABSTRACT
The present dissertation’s main theme is the phallus universal premise and the castration
complex from Freud’s point of view. The aim is to formalize how the phallus and castration
structure the unconscious thought processes. The phallus premise is articulated to Freudian
theory on the instincts and its relation to representation. The dissertation also considers the
unconscious phantasm, providing, this way, metapsychological considerations concerning
the symbolic. The castration complex is based on anguish affect investigations and also on
the lost object notion.
Key-words: Phallus; Castration Complex; Unconscious Phantasy; Lost Object.
INTRODUÇÃO
O presente estudo se propõe a investigar, na obra freudiana, a premissa em função
da qual se organizam as operações do pensamento inconsciente: a premissa do falo. Este
eixo temático coloca em destaque e exige a abordagem de um outro conceito não menos
importante: a castração. Dizendo ainda melhor sobre o objeto desta dissertação, trata-se de
buscar, no interior da obra freudiana, os elementos conceituais que fundamentam a
premissa da universalidade do falo e como esta se estrutura no inconsciente. E isso porque,
essa premissa é o ponto do qual não apenas as crianças espontaneamente partem para traçar
os seus julgamentos mais fundamentais, especialmente durante a organização fálica, mas
também o inconsciente, em seu modo próprio de articular representações e delas desdobrar
conseqüências.
As expressões mais contundentes da mencionada premissa são, de um lado, a de que
o inconsciente opera sem levar em conta o princípio da não-contradição, desconhecendo o
símbolo da negação, e, de outro lado, que o inconsciente opera de modo a afirmar a crença
na sua própria imortalidade, isto é, desconhece a realidade da morte. Esse modo de
proceder fornece respaldo à tese de que não há um signo sequer de realidade no
inconsciente, o qual desconhece a realidade exterior e atribui realidade unicamente às suas
próprias idéias.
Freud encontrou traços comuns na crença da onipotência das idéias no delírio
paranóide, no pensamento mágico das crianças e na crença dos povos primitivos de que os
acontecimentos na natureza têm íntima relação com as atividades humanas. Destarte, a
psicanálise faz notar o caráter fálico do inconsciente. Não conhecendo a negação, ele tudo
2
pode; desconhecendo a morte, é eterno; levando em conta somente a realidade de suas
idéias, tudo sabe, é onisciente.
O ponto de partida do saber freudiano sobre o inconsciente foi a formação de
sintomas, a sexualidade infantil e os sonhos. A análise desses fenômenos desembocou na
formulação da premissa fundamental da psicanálise, a saber, a divisão do psíquico em
consciente e inconsciente. Decorre dessa divisão que a premissa do falo não diz respeito
tão-somente a um tempo pretérito e ultrapassado, no qual o pensamento infantil partia para
encontrar, no campo percepto-sensorial e de maneira ainda precária, a certeza de
completude com o objeto. A mencionada premissa mostra que, mesmo nos adultos, tal
modo de pensar perdura no inconsciente, coexiste com os eventos da consciência e
manifesta-se de muitas formas, fazendo com que a vida psíquica humana seja
constantemente marcada por contradições.
Desde o seu início, a psicanálise afirma que a sexualidade desempenha um papel de
capital importância na etiologia dos sintomas neuróticos. Os sintomas carregam em seu
bojo os desejos infantis e são feitos de material próprio aos pensamentos recalcados. O
material recalcado é composto pela polimorfia perversa do desejo: as inclinações ao
canibalismo, ao incesto e ao parricídio. O inconsciente possui uma organização cujo
contorno é debitário do complexo de Édipo e do longo período da história infantil que
culmina com a experiência axial da percepção da diferença sexual anatômica.
Já em 1905, nos Três ensaios para uma teoria sobre a sexualidade, Freud
comparava a vida sexual definitiva do adulto com o final da sexualidade infantil, por volta
dos cinco anos de idade. A vida sexual infantil e a adulta aproximam-se pelo fato de que em
ambas se teria efetuado a escolha de objeto. Ambos os períodos divergiriam, porém, porque
na infância a primazia dos genitais seria precária ou inexistente. Em 1923, entretanto, Freud
3
afirma que tal opinião merece ser revista, pois descobre que a sexualidade infantil tem mais
pontos em comum com a sexualidade adulta do que antes supunha
1
. Na verdade, a
significação que os pequenos dão aos órgãos genitais na primeira infância não fica muito
atrás daquela que lhes atribuem os adultos. A diferença fundamental entre ambas as fases
reside no fato de as crianças levarem em conta tão-somente o órgão masculino. Há,
portanto, primazia do falo e não dos genitais
2
. Para ambos os sexos, o que está posto como
anterior à percepção da diferença é um juízo, uma premissa que afirma serem todos
semelhantes, possuidores do falo, da perfeição. Com a descoberta da diferença sexual
anatômica, tal ocorrência encontra seu correlato concreto no corpo, na presença do pênis. O
significado do complexo de castração apenas encontra respaldo se for considerada a
existência de uma primazia fálica como substrato.
O falo é compreendido no pensamento freudiano como um objeto que se encontra
inserido numa teoria sexual infantil, ou seja, é adscrito a um processo de pensamento que
afirma serem todos iguais e masculinos. Aqui temos a consideração freudiana de que o falo
é relativo a uma organização de ordem ideativa, simbólica, que atribui sentido, significação,
a um estado de coisas. O falo também pode ser definido como um objeto privilegiado que
dá representação e significação ao sujeito quanto ao ser. Estamos aqui, portanto, numa
trama de idéias que tem como eixo o conceito de identificação.
A perspectiva da ausência do falo dá partida, para ambos os sexos, a uma crise
subjetiva, designada por “complexo de castração”, decorrente da dessimetria entre o
pensamento e a percepção-consciência. Ocorre então que, entre dois e cinco anos de idade,
as crianças se deparam com uma percepção discrepante e constatam que o pensamento teria
1
FREUD, S. A organização genital infantil. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3). p.
2698.
2
Ibid., p. 2699.
4
levado a um engodo fundamental. Terão, a partir daí, que decidir se retificam o pensamento
ou procuram modificar a percepção. Freud nos oferece uma série de indicações sobre as
conseqüências da dessimetria existente entre o pensamento e a percepção, mas não
encontramos diretamente explicitado em seus textos o processo pelo qual a premissa do
falo vem a se estruturar primeiramente, para então desdobrar suas conseqüências.
Parece, ainda, que o falo é um objeto que, no pensamento freudiano, está
intimamente relacionado à pulsão. Enquanto conceito fundamental da psicanálise, a pulsão
consiste nesse fator que move as operações inconscientes na direção do objeto, que
supostamente propiciaria a satisfação absoluta. No caso, veremos que esse objeto está
irremediavelmente perdido e mesmo assim afirmado pelo inconsciente como passível de ser
reencontrado.
A premissa da universalidade do falo remonta à constituição do princípio mais
primitivo e basilar do funcionamento psíquico: o princípio de prazer. O assunto se agudiza
ainda mais após 1925, com o texto A negação, no qual Freud vai frisar que a realidade
exterior não é somente um conjunto de coisas submetidas à percepção: a inclinação da
consciência para perceber pressupõe uma perda ou ausência, e perceber é sempre uma
espécie de reencontro.
A noção de objeto perdido tem o estatuto de fundamentar o conceito de castração, e
a investigação em torno do assunto nos auxiliará a embasar reflexões acerca dos dois
princípios do funcionamento mental hipotetizados por Freud. Da perspectiva de reencontrar
o objeto, não há diferença essencial entre o princípio de prazer e o princípio de realidade,
pois ambos almejam o reencontro, não obstante isso ocorra por vias distintas. Mesmo a
consciência, na teorização freudiana, se apresenta em um ponto de tensionamento teórico e
suscitando indagações, uma vez que a condição para o teste de realidade está na perda do
5
objeto. Isso quer dizer, então, que o teste de realidade seria uma busca do inconsciente e
giraria em torno de um ponto pivô, que é a premissa da universalidade do falo. Já que essa
premissa se reveste de tanta importância, como é que ela mesma vem a se estabelecer no
psíquico? A presente dissertação busca responder a essa pergunta, acentuando as
observações da experiência, cujas conseqüências teóricas são expressivas.
Sendo assim, o primeiro capítulo visa esclarecer o conceito de falo e a premissa
universal do falo a partir da discussão de Freud sobre os conceitos de narcisismo, ideal-do-
eu e eu-ideal. No mesmo capítulo é abordado o complexo de Édipo, cuja estrutura gira
precisamente em torno da questão do falo. Esse capítulo também é direcionado de modo a
dar arcabouço teórico ao conceito de identificação.
O segundo capítulo versa sobre a pulsão de morte e seu objeto. Para tanto, são
tomadas algumas referências da clínica, com o objetivo de situar a problemática da
compulsão à repetição. Trata-se então de frisar que essa compulsão à repetição, posta para
comandar o circuito do princípio de prazer, orienta-se no sentido de ir ao encontro de um
objeto
impossível. O capítulo visa, com isso, apresentar a teorização freudiana a respeito de
um objeto situado mais além do princípio de prazer e que subsidia tanto o conceito de
castração quanto o de falo.
Avançando nas reflexões a propósito do objeto em torno do qual o inconsciente
opera, o terceiro capítulo comenta o paradigma do afeto em psicanálise: a angústia. A
apresentação desse tema embasa toda a teorização a respeito da premissa do falo.
No capítulo quatro, explanamos o conceito de recalcamento primário e suas relações
com o terreno das fantasias inconscientes, as teorias sexuais infantis e, por fim, a
estruturação da premissa da universalidade do falo. Com esses elementos conceituais,
6
buscamos retroagir sobre as reflexões alinhavadas nos capítulos precedentes, extrair
conseqüências e concluir.
7
Capítulo I
SOBRE O FALO E A CASTRAÇÃO
Ao examinarmos as considerações de Freud a propósito da experiência clínica, bem
como suas elaborações teóricas, verificamos que o conceito de falo, as formulações sobre a
premissa da universalidade do falo e o traumático da castração estão imbricados em uma
teia conceitual ampla, cujo cerne está constituído pelo debate em torno do narcisismo, das
investigações acerca da identificação, do ideal e, sobretudo, em torno do universo
simbólico.
O falo e a castração têm, na obra freudiana, uma interdependência tal, que, ao
trabalharmos um conceito, inevitavelmente nos aproximamos do outro. É preciso sublinhar
também que a tematização a respeito de ambos não se encontra condensada em um texto
único, mas ao longo da obra de Freud, de modo nem sempre claramente concatenado,
muitas vezes exigindo um trabalho de “garimpagem”. Com efeito, isso quer dizer que, para
situarmos a articulação teórica falo-castração, é preciso percorrer detidamente um conjunto
bastante amplo de textos, extrair as idéias que vão dando contorno formal aos conceitos e
concatená-los com os demais conceitos que gravitam ao seu redor.
O falo mantém um vínculo estreito com as elaborações atinentes à constituição do
narcisismo e à vicissitude que as identificações vão tomando na economia psíquica,
especialmente com a instauração do complexo de Édipo. Além disso, as considerações
freudianas em torno da castração sempre remetem ao corpo. Na fase fálica, ele é o cerne de
um debate intra-subjetivo que põe em relevo a diferença anatômica dos sexos. A
constatação da diferença coloca a criança diante de questões que precisará responder a
propósito da sua identidade e da escolha do objeto de desejo, meio através do qual buscará
8
a satisfação. Castração e universo simbólico são termos absolutamente interdependentes e
compõem aquilo que Freud denomina de “pai”. Totem e tabu expõe claramente isso: o livro
avança em elaborações metapsicológicas e fornece resposta para questões da clínica que
giravam em torno dos fantasmas dos neuróticos. Era imprescindível desvendar o problema
da referência simbólica derradeira, em função da qual se dão os deslocamentos do
inconsciente. Freud aqui parece apontar para o fundamento estrutural da significação dos
complexos neuróticos e desvendar o sentido da formação de sintomas. Certamente ele já
havia afirmado estar a sexualidade invariavelmente na base da formação dos sintomas, mas
ficava em aberto a pergunta a respeito do substrato último em relação ao qual a sexualidade
se referia; caso contrário, restaria concordar com a tese junguiana de complexos com
significação universal, uma espécie de platonismo psíquico. E, ao que tudo indica, Freud
rejeitava isso.
A resposta a essa questão é dada, como sabemos, em relação ao falo e, portanto, ao
pai e sua função na origem de todo o sistema simbólico. Sendo assim, Freud recorre a uma
construção mítica para explicar a fundação do sistema simbólico humano a partir de um
parricídio originário. A pré-história recontada em Totem e tabu acerca da horda primitiva é
baseada na hipótese de Charles Darwin sobre como teria sido o estado social dos homens
primitivos.
Quando levei ainda mais em conta a conjectura de Darwin de que os homens originalmente
viviam em hordas, cada um sob o domínio de um único macho poderoso, violento e
ciumento, surgiu diante de mim, de todos esses componentes, a seguinte hipótese ou,
melhor dizendo, visão. O pai da horda primitiva, visto que era um déspota absoluto,
apoderara-se para si mesmo de todas as mulheres; seus filhos, sendo-lhe perigosos como
rivais, tinham sido mortos ou afugentados. Um dia, contudo, os filhos se reuniram e se
aliaram para dominar, matar e devorar o pai, que fora seu inimigo mas também seu ideal.
9
Após o feito, foram incapazes de assumir sua herança, visto que se atrapalhavam
mutuamente.
3
Movidos pelo remorso, chegaram a um acordo entre si. O contrato se estabeleceu,
então, no sentido de se agruparem num clã de irmãos, mediante o auxílio dos ditames do
totemismo, que visava interditar a repetição de tal feito. Também passaram a abrir mão da
posse das mulheres por cuja causa haviam matado o pai. Foram então impelidos a desposar
outras mulheres, sendo essa a origem da exogamia, que se acha tão estreitamente vinculada
ao totemismo. A refeição totêmica comemorava o temível feito, decorrente do sentimento
de culpa do homem, que foi o começo, ao mesmo tempo, da organização social, da religião
e de restrições éticas.
Essa é a origem mítica do simbólico, que vem em substituição ao ato
e regula as relações dos homens entre si. E isso, evidentemente, ao custo de uma renúncia à
satisfação pulsional.
O pai, depois de morto, torna-se mais vivo que em vida. Assimilado por
identificação, torna-se, por assim dizer, ubíquo. Reinando no simbólico, representa a
autoridade, a lei e o estabelecimento de uma instância responsável por observar a distância
ou proximidade em relação ao ideal: o supereu.
O totem é o pai e as duas principais proibições de tabu que constituem seu âmago
— não matar o totem e não ter relações sexuais no laço endogâmico — coincidem com os
dois crimes de Édipo, que matou o pai e casou com a mãe, e com os dois desejos primários
das crianças, cujo recalque é insuficiente e retorna no sintoma neurótico.
O pai, ao longo de toda a reflexão freudiana, figura como o elemento separador da
unidade mãe-criança, interditando a completude da satisfação absoluta, incestuosa. Ele
3
FREUD, S. Totem e tabu. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2). p. 1838.
10
conduz à separação, a perdas e, portanto, à necessidade do luto. Com a perda, os homens
ganham o poder de articular com o universo dos símbolos e criam o código de leis que rege
a relação entre eles.
De acordo com Peres, Totem e tabu procura ir além do mito do parricídio original e
apresenta um fantasma, que por ser fundamental, antecede a tudo e descreve “um estado de
privação que se abate sobre um universo de completude, harmonia e gozo absoluto. Surge a
angústia, a falta se estabelece. Os recém-nascidos são ameaçados de morte, sendo salvos
pelo amor das mães. A sexualidade sofre um desvio, desvinculando-se da procriação.
Reduzindo a atividade sexual, o homem ganha inteligência e o poder mágico das palavras”
4
E esse fantasma que se desdobra em mito de origem será vivido no Édipo e será recontado
pelo neurótico.
A castração concerne a uma interdição ao anseio pela satisfação pulsional
desmesurada, fornecendo, desse modo, a possibilidade de a criança se desviar de tal
inclinação entrando na ordem simbólica, substituindo a coisa pela representação. Um caso
de fobia em um menino de cinco anos, nomeado de Hans, apresenta semelhanças com o
totem erguido na horda primeva. A fobia a cavalos vinha justamente simbolizar o pai
morto. Comentando a propósito da analogia, Lacan, no seminário A relação de objeto, diz o
seguinte:
O cavalo se situa aí num limite extremamente preciso, que mostra bem que esses objetos
são tomados de empréstimo a uma categoria de significantes da mesma natureza,
homogêneos àqueles que encontramos em brasões. Não é outra coisa que motiva, na
construção de ‘Totem e tabu’, a analogia entre o pai e o totem. Estes objetos têm, com
efeito, uma função bem especial, que é suprir o significante do pai simbólico. Este
significante, não vemos qual é o seu último termo, e podemos nos perguntar por que ele se
4
Peres, U. Mosaico de letras: ensaios de psicanálise. São Paulo: Escuta, 1998. p. 250.
11
reveste de tal ou tal forma. É realmente necessário que haja, naquilo que encontramos, algo
que seja da ordem do fato ou da experiência positiva, e do irredutível.
5
Lacan, como sabemos, salientou reiteradamente a idéia freudiana de que o
surgimento do Pai na vida mental está referido à passagem da criança para a ordem
civilizada, a Lei da Cultura, e esta se imiscui desde a sua perspectiva formal, com a Lei da
Linguagem. E Althusser, corroborando com Freud e Lacan, comenta no seu texto O terreno
da psicanálise que pode parecer assombroso ou arbitrário o fato de que no drama edípico
tudo se desenvolva e se materialize numa linguagem anteriormente formada. A referência
ao Édipo é praticamente centrada e ordenada em volta do significante phallus: insígnia do
Pai, do direito, insígnia da Lei, imagem fantasmática de todo o Direito.
6
Ele acrescenta
ainda:
A última etapa de Édipo, a castração, pode dar-nos uma idéia disso. Quando o filho vive e
resolve a situação trágica e benéfica da castração, aceita não ter o mesmo direito (phallus)
que seu pai, sobretudo não ter o direito do pai sobre a sua mãe, a qual se revela então dotada
do intolerável estatuto da dupla função; mãe para o filho, mulher para o pai; porém,
aceitando não ter o mesmo direito que o pai, o filho conquista a certeza de ter um dia, mais
tarde, quando se converter em adulto, o direito que lhe é então recusado por falta de
“meios”.
7
O falo é, como dissemos, um elemento simbólico e mítico, absolutamente central na
dinâmica do complexo de castração e de Édipo. Não obstante isso, o falo se constitui como
tal na vida psíquica desde os tempos mais primitivos da relação pré-edípica. E a relação
dual mãe-bebê é anterior ao efetivo surgimento do pai na vida mental. Tanto é assim, que o
complexo de castração — sublinha Freud — encontra respaldo exclusivamente se for
5
LACAN, J. A relação de objeto. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. (O seminário, livro 4). p. 234.
6
ALTHUSSER, L. et al. O terreno da psicanálise. In: ____. Psicanálise: fatores sociopolíticos. Porto: Rés,
1970. p. 33.
7
Ibid., p. 34.
12
considerada a existência de uma primazia fálica como substrato. Ele escreve: “para estimar
exatamente o complexo de castração, é necessário notar que a sua emergência se dá na fase
da primazia do falo.”
8
É clássica a afirmação freudiana segundo a qual o sentido que as crianças dão aos
órgãos genitais na primeira infância está fundamentado na primazia do falo e não dos
genitais
9
. Tanto para os meninos quanto para as meninas, trata-se de uma premissa segundo
a qual todos são possuidores do falo. Com a descoberta da diferença sexual anatômica, tal
ocorrência encontra seu correlato concreto no corpo, na presença do pênis. É sob um fundo
de presença que a falta se realiza no psíquico, ou seja, uma ausência jamais é percebida
como tal pela criança, que só toma em consideração a ausência ao relacioná-la com uma
suposta presença.
Contudo, anteriormente à fase da primazia do falo, as crianças já têm a experiência
de perdas, como o seio e as fezes. Assim, seria necessário darmos aqui um sentido mais
preciso ao complexo de castração: para Freud, essas perdas anteriores à fase fálica apenas
têm o sentido da castração a posteriori, ou seja, só depois da ameaça de castração.
De fato, em nota de rodapé ao texto A organização genital infantil, Freud afirma:
“Acertadamente já foi assinalado que a criança adquire a representação de um dano
narcisista por perda corporal por ocasião da perda do peito materno depois de mamar, da
deposição diária das fezes e, ainda, da separação do ventre materno ao nascer. Contudo,
somente cabe falar em complexo de castração quando essa representação de perda se
enlaçou com os genitais masculinos.”
10
Cabe perguntar: por quê? De acordo com Masotta,
o estabelecimento do complexo de castração se dá na confrontação da premissa do falo com
8
FREUD, S. A organização genital infantil, p. 2699.
9
Ibid., p. 2699.
10
Id.
13
a percepção da diferença sexual anatômica: “Seria o mesmo que dizer que a castração é
uma conseqüência direta do falo”
11
.
Além disso, a sustentação dessa idéia se dá, ao menos em parte, pelo sentido de
integridade a que a presença-ausência de um órgão remete. A percepção da imagem
corporal como uma unidade ou, se quisermos, a percepção da integridade corporal, para
Freud, não é um dado, mas uma aquisição, que concerne justamente ao narcisismo.
A castração é traumática, diz respeito a uma ferida no narcisismo e é exatamente por
isso que as perdas anteriores, como o seio e as fezes, só adquirem o sentido de castração
posteriormente. Tais perdas remontam a um tempo em que a integridade ou unidade
corporal ainda não se havia dado completamente. Assim, na organização genital infantil,
portanto fálica, a falta adquire realidade, e o complexo de castração se estabelece como tal
porque a premissa do falo o antecede para ser contrastada.
O eu é, antes de qualquer coisa, um ser corporal
12
, não simplesmente uma entidade
de superfície, por ter acesso direto às percepções. É a projeção de uma superfície, uma parte
do isso que foi modificada pela influência direta do mundo externo, por intermédio das
percepções.
O próprio corpo de uma pessoa e, acima de tudo, a sua superfície, constitui um lugar de
onde podem originar-se sensações tanto externas quanto internas. Ele é visto como qualquer
outro objeto, mas, ao tato, produz duas espécies de sensações, uma das quais pode ser
equivalente a uma percepção interna. A psicofisiologia examinou plenamente a maneira
pela qual o próprio corpo de uma pessoa chega à sua posição especial entre outros objetos
no mundo da percepção. Também a dor parece desempenhar um papel no processo, e a
maneira pela qual obtemos novo conhecimento de nossos órgãos durante as doenças
dolorosas constitui talvez um modelo da maneira pela qual em geral chegamos à idéia de
nosso corpo.
13
11
MASOTTA, O. O comprovante da falta. Campinas: Escuta, 1987. p. 32.
12
FREUD, S. O eu e o isso. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3). p. 2709.
13
Id.
14
Além do tato e das sensações de dor, há a apreensão da imagem corporal
circunscrita numa unidade como sendo fundamental para a constituição do eu.
A distinção entre o eu e o outro se dá especialmente em função das sensações de
prazer e desprazer. O interessante, aqui, é que Freud concebe a gênese do amor e do ódio
como determinada pelas sensações de prazer e desprazer respectivamente e, ainda,
condicionando o surgimento da sensação de mesmidade do eu e de alteridade.
A gênese do sentimento de amor se encontra na relação que o eu mantém com o
prazer
14
. Notaremos adiante que o narcisismo diz respeito ao amor, à libido que fica envolta
no eu. Assim, o eu se identifica com o prazeroso. Ele toma para si e sente como sendo de si
mesmo, a princípio, tudo aquilo que é prazer e expele, cospe, projeta o que quer que dentro
de si mesmo seja da natureza do desprazer. A respeito disso, Freud escreve, de modo mais
detalhado, o seguinte:
Assim, o ‘eu de realidade’, original, que distinguiu o interno e o externo por meio de um
sólido critério objetivo se transforma num ‘eu do prazer’ purificado, que coloca a
característica do prazer acima de todas as outras. Para o eu do prazer, o mundo externo está
dividido numa parte que é agradável, que ele incorporou a si mesmo, e num remanescente
que lhe é estranho. Isolou uma parte do seu próprio eu, que projeta no mundo externo e
sente como hostil. Após esse novo arranjo, as duas polaridades coincidem mais uma vez: o
sujeito do eu coincide com o prazer, e o mundo externo com o desprazer.
15
O eu, regido pelas sensações de prazer ou desprazer, atribui qualidades aos objetos
de acordo com uma “linguagem pulsional”
16
do tipo: “Isto vou comer” ou “isto vou cuspir”;
“isto deve estar dentro de mim” ou “fora de mim”. Essas considerações a respeito do juízo
estão presentes de certo modo em As pulsões e seus destinos — quando Freud analisa as
14
FREUD, S. Os instintos e seus destinos. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2). p.
2049.
15
Ibid., p. 20.
16
FREUD, S. A negação. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3). p. 2885.
15
antíteses do amor e relaciona-as com o surgimento do objeto na fase do narcisismo
primário, em que o mundo externo, o objeto e o odiado são, a princípio, a mesma coisa — e
são retomadas em A negação, evidenciando-se na afirmação de que o eu primitivo, regido
pelo princípio de prazer, quer introjetar em si tudo que é bom e expulsar de si tudo que é
mau.
17
É nesse sentido que, em O mal-estar na civilização, Freud diz que originalmente o
eu inclui tudo e posteriormente separa, de si mesmo, um mundo externo. E acrescenta:
Nosso sentimento presente do eu não passa, portanto, de um mirrado resíduo de um
sentimento muito mais inclusivo — na verdade, totalmente abrangente —, que corresponde
a um vínculo mais íntimo entre o eu e o mundo que o cerca. Supondo que há muitas pessoas
em cuja vida mental esse sentimento primário do eu persistiu em maior ou menor grau, ele
existiria nelas ao lado do sentimento do eu mais estrito e mais nitidamente demarcado do
adulto. Nesse caso, o conteúdo ideativo a ele associado seria exatamente o de
ilimitabilidade e o de uma comunhão com o universo.
18
Se originalmente o eu inclui tudo, posteriormente essa inclusão totalizante será
modificada pelo surgimento da alteridade, da diferença, do não-eu. Destarte, a derrocada do
império infantil, o traumático de fato, concerne à falta da mãe. Cabe lembrar que a tese
freudiana, no que tange ao incesto e à mãe, descreve uma relação de objeto fundamental,
que é originalmente relativo a uma alucinação. É precisamente sobre isso que versa a
seguinte passagem de Inibição, sintoma e angústia:
A imagem mnêmica da pessoa desejada é certamente de um investimento muito intenso e, a
princípio, provavelmente alucinatória. Mas isso não acarreta em solução alguma e é como
se este desejo se transformasse em angústia. Chegamos inclusive a ter a impressão de que
tal angústia tem toda a aparência de ser a expressão do sentimento da criança ao finalizar
seus julgamentos, como se em seu ainda precário estado de desenvolvimento não soubesse
de nada melhor para controlar seus investimentos de desejo. A angústia surge aqui como
uma reação ao fato de perceber a falta do objeto, circunstância que nos remete ao fato de
que o temor à castração tem por conteúdo a separação de um objeto muito estimado e que a
17
Loc. cit.
18
FREUD, S. O mal-estar na civilização. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3). p. 3019.
16
angústia mais primitiva — a do nascimento — surgiu ao ser verificada a separação da
mãe.
19
Essa mãe é apresentada por Freud como parte do mais primitivo na vida mental;
remonta a um estado arcaico de indiferenciação tal, que é anterior ao estabelecimento de
uma distinção entre interno e externo, eu e não-eu, sujeito e objeto.
No texto O mal-estar na civilização, temos a apresentação exemplar desse tempo
mítico. Assim, buscando fornecer explicação para um sentimento descrito pelo literato
Romain Rolland como sendo de índole oceânica uma sensação de perda das referências
pessoais e fusão com tudo que estaria na fonte e origem da necessidade humana de
religiosidade , Freud leva o leitor a uma reflexão a respeito da gênese de tal sentimento e,
concomitante a isso, da fase inicial do eu.
Normalmente, temos certeza de uma mesmidade, do sentimento do nosso próprio eu
como uma unidade que é distinta, demarcada de tudo o mais que se encontra em nosso
exterior. Entretanto, isso não é de todo verídico, pois o eu continua para dentro, sem
qualquer delimitação nítida, em uma atividade inconsciente. Ademais, há um estado que é
extraordinário, no qual o eu parece não mais se encontrar no sentido exterior, tão bem
delimitado e diferenciado: o apaixonamento. Os amantes e os poetas são testemunhas de
que na paixão a fronteira entre eu e objeto tende a desaparecer. Contra todas as provas de
seus sentidos, um homem apaixonado declara que ‘eu’ e ‘tu’ são um só e está preparado
para se conduzir como se isso constituísse um fato
20
. Há uma familiaridade intrínseca entre
19
FREUD, S. Inibição, síntoma e angústia. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3). p.
2862.
20
FREUD, S. O mal-estar na civilização, p. 3018.
17
a concepção freudiana a respeito do amor nos adultos normais e a indiferenciação própria
ao início da estruturação do aparelho psíquico.
A sintomatologia neurótica e psicótica pode apresentar estados em que as linhas
fronteiriças entre o eu e o mundo externo se tornam precárias. Há casos em que partes do
próprio corpo de uma pessoa, inclusive partes de sua própria vida mental — suas
percepções, pensamentos e sentimentos —, lhe parecem estranhas e como não pertencentes
a seu eu; há outros casos em que a pessoa confere ao mundo externo atributos que
nitidamente se originam em seu próprio eu e que por este deveriam ser reconhecidas.
Enfim, até o sentimento de nossa mesmidade é suscetível a distúrbios, e as fronteiras do eu
não são permanentes.
21
Freud infere que a sensação de identidade e de unidade não pode
estar presente na vida mental desde o seu início, mas diz respeito a um ponto de chegada no
desenvolvimento do eu.
São fatores exteriores à dinâmica intrapsíquica que levam à falência do ilimitado, e
isso se dá como condição para que o eu se estruture como tal. Posteriormente, na fase
fálica, um novo e derradeiro golpe no narcisismo estabelece a organização final.
Em Uma introdução ao narcisismo, o elemento mais importante, nesse sentido, é o
‘complexo de castração’ — nos meninos, o medo da perda do pênis; nas meninas, a inveja
do pênis —, que deve ser abordado em conexão com o efeito da restrição inicial da
atividade sexual.
22
Essa restrição se refere à coerção que inevitavelmente sofre a crença
infantil de poder ser ou ter tudo, de poder ser a perfeição e ter a satisfação absoluta de todas
as aspirações e exigências pulsionais. Trata-se, aí, de uma restrição imposta ao narcisismo
primitivo pressuposto e que está referido ao ideal; Freud o nomeia de eu-ideal (Idealich). E
21
Loc. cit.
22
FREUD, S. Introdução ao narcisismo. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2). p. 2027.
18
aqui começamos a encontrar os elementos essenciais para a compreensão do estatuto da
primazia do falo na psique infantil tal como é abordada na obra freudiana.
Esse narcisismo ensimesmado e ideal é o encontrado nas psicoses e perversões,
como veremos adiante. Entretanto, está atualizado fundamentalmente na relação dos pais
com os filhos, deixando perceber que o neurótico sempre atualiza a realidade do
inconsciente na vida cotidiana. A própria idealização que os pais fazem a respeito dos
filhos diz que ela é uma revivescência e reprodução de seu próprio narcisismo infantil, ao
qual há muito renunciaram. Assim, deixando a observação sóbria de lado e movidos pela
atemporalidade dos processos inconscientes, os pais são compelidos a atribuir todas as
perfeições ao filho, bem como encobrir e esquecer todas as faltas e defeitos dele. O
narcisismo ilimitado e francamente fálico que os pais atribuem ao filho não pára por aí: eles
se tornam propensos a suspender, em favor do filho, o funcionamento de aquisições
culturais que seu próprio narcisismo foi constrangido a respeitar e a renovar através da
criança, a reivindicação aos privilégios de há muito por eles próprios abandonados.
A criança terá mais divertimentos que seus pais; ela não ficará sujeita às necessidades que
eles reconheceram como supremas na vida. A doença, a morte, a renúncia ao prazer,
restrições à sua vontade própria não a atingirão; as leis da natureza e da sociedade serão ab-
rogadas em seu favor; ela será mais uma vez realmente o centro e o âmago da criação —
His Majesty the Baby, como outrora nós mesmos nos imaginávamos. A criança concretiza
os sonhos dourados que os pais jamais realizaram — o menino se tornará um grande
homem e um herói em lugar do pai, e a menina se casará com um príncipe como
compensação para sua mãe. No ponto mais sensível do sistema narcisista, ou seja, a
imortalidade do eu, tão oprimida pela realidade, a segurança é alcançada por meio do
refúgio na criança. O amor dos pais, tão comovedor e no fundo tão infantil, nada mais é
senão o narcisismo dos pais renascido, o qual, transformado em amor objetal,
inequivocamente revela sua natureza anterior.
23
23
Loc. cit.
19
Essa é uma apresentação da tendência totalizante contida na fantasia fálica e
exemplarmente posta por Freud ao postular o narcisismo primitivo. É partindo das
premissas desse narcisismo que o infans vai encarar a diferença sexual anatômica ao chegar
à fase da organização genital fálica.
A discussão em torno do narcisismo, apontando para a tematização da premissa da
universalidade do falo, põe em evidência, primeiramente, que Freud aborda dois
narcisismos: o primário e o secundário. O primeiro concerne ao substrato auto-erótico mais
primitivo e indiferenciado, tempo de estabelecimento do próprio princípio de prazer e que
em parte foi acima delineado; o segundo descreve o retorno dessexualizado da libido sobre
o eu e traz consigo restos de objetos abandonados sob a forma de identificações.
O termo narcisismo, como sabemos, tem a sua origem extraída da mitologia grega,
que conta sobre uma relação de encantamento de um jovem com a sua imagem especular. O
mito trata das ilusões, miragens, espelhos e, portanto, dos duplos. Ademais, seguindo o
modo freudiano de engendrar conceitos, o ponto de partida para a contemplação do tema é
a clínica, o solo psicopatológico.
No início de Uma introdução ao narcisismo, Freud evoca a descrição de uma
perversão, que Paul Näcke chama de narcisismo. Este diz respeito aos casos em que o
indivíduo toma seu próprio corpo como seu objeto sexual, contemplando-o, acariciando-o,
beijando-o até à completa satisfação.
24
Temos aí o corpo posto em proemincia. Em
seguida, vemos Freud indicar que os homossexuais são preponderantemente narcísicos: sua
escolha objetal se dá na referência à imagem especular, é uma escolha objetal narcísica.
Seguindo essa mesma consideração, no livro A formação da teoria freudiana das
psicoses, Theisen Simanke lembra que as reflexões sobre o caso Schreber remontam ao
24
FREUD, S. Indrodução ao narcisismo, p. 2017.
20
estabelecimento do mecanismo paranóico como referido à homossexualidade, pois o amor
aqui, é, pela defesa, transformado em ódio ainda, projetada no objeto, que se torna, por
assim dizer, perseguidor. A paranóia apresenta, portanto, uma estreita vinculação com a
homossexualidade e esta, com o narcisismo. Simanke comenta:
Chama a atenção, em primeiro lugar o fato de que o narcisismo é nitidamente destacado do
auto-erotismo: ambos consistem em fases distintas e sucessivas do desenvolvimento
psicossexual. Em segundo lugar, é definido em que ambos se distinguem, ou seja, o
narcisismo se caracteriza pela síntese da pluralidade de pulsões parciais em uma unidade; o
eu torna-se assim, o primeiro objeto total da criança. Como conseqüência de sua definição
como fase necessária de transição no movimento que leva ao pleno amor de objeto, o
narcisismo, como tantos conceitos freudianos, abandona o domínio exclusivo da
psicopatologia e passa a integrar o desenvolvimento normal.
25
As observações também se estendem para além da perversão, enveredando pelo
terreno das psicoses, das neuroses e são articuladas com o desenvolvimento sexual normal,
fundamentalmente nas expressões do pensamento mágico-infantil, na vaidade humana, nas
ilusões, nas escolhas de objeto de amor, no desvario e idealização dos apaixonados. Todo o
campo da fantasia está aqui incluso. Na conferência de 1916, Narcisismo e teoria da libido,
Freud se refere ao assunto nos seguintes termos:
é provável que esse narcisismo constitua a situação universal e original a partir da qual o
amor objetal só se desenvolve posteriormente, sem que, necessariamente, por esse motivo, o
narcisismo desapareça. Com efeito, tivemos de recordar, a partir da história da evolução da
libido objetal, que muitas pulsões sexuais começam encontrando satisfação no próprio
corpo da pessoa auto-eroticamente, conforme dizemos — e que essa capacidade para o
auto-erotismo é a base do atraso da sexualidade no processo de educação no princípio de
realidade. O auto-erotismo seria, pois, a atividade sexual do estádio narcísico da
distribuição da libido.
26
25
SIMANKE, T. R. A formação da teoria freudiana das psicoses. Rio de Janeiro: Editora 34, 1994. p. 119.
26
FREUD, S. A teoria da libido e o narcisismo. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2). p.
2381.
21
A competência da libido para aderir-se ao próprio corpo, ao eu, em vez de ser
direcionada aos objetos, levou Freud a conceber que o narcisismo pode ser um estado geral
e primitivo a partir do qual, e sem que isso implique no seu desaparecimento, surge o amor
e o investimento objetal. O eu encontra-se, na sua origem, investido de libido e é capaz de
satisfazer-se em si mesmo. O exterior como tal não desperta interesse, é indiferente, e o eu
coincide com o prazer, é um eu de prazer, um Lust-Ich, tal como já o referenciamos.
Seguindo a mesma linha de raciocínio, no Compêndio de psicanálise, Freud
comenta que a libido relaciona-se fundamentalmente com o eu, no qual, a princípio, toda a
quantidade disponível de libido é armazenada. A esse estado originário ele nomeia de
narcisismo absoluto ou primário
27
. Acrescenta ainda que esse estado perdura até o eu
começar a catexizar as idéias dos objetos com a libido, a transformar a libido narcísica em
libido objetal. Entretanto, durante toda a vida, o eu permanece sendo um grande
reservatório, do qual as catexias libidinais são enviadas aos objetos e ao qual elas são
também recolhidas, exatamente como uma ameba se comporta com os seus pseudópodos.
Quando formula sua última teoria estrutural, Freud dá mais um passo no
entendimento sobre o eu e admite que está fazendo uma mudança na sua teoria do
narcisismo: “A princípio toda a libido se encontra localizada no isso, enquanto o eu ainda
se acha em processo de formação ou ainda é fraco. O isso envia parte dessa libido para
catexias objetais eróticas; em conseqüência, o eu, agora tornado forte, tenta apoderar-se
dessa libido do objeto e impor-se ao isso como objeto amoroso. O narcisismo do eu é,
assim, um narcisismo secundário, que foi retirado dos objetos.”
28
Esse é o processo
identificatório que dará ao eu a possibilidade de se constituir como tal. A partir daí, é
27
FREUD, S. Compêndio de psicoanálise. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3). p.
3383.
28
FREUD, S. O eu e o isso, p. 2720.
22
possível a diferenciação do isso e o estabelecimento de uma relação de dependência com o
supereu, que se dá no declínio do complexo de Édipo.
A hipótese do narcisismo primário nem por isso é abandonada; é precisamente ela
que serve de estofo conceitual para grande parte das explicações em torno das psicoses e da
vida psíquica normal em seus primórdios. Trata-se, no narcisismo primário, como dissemos
anteriormente, de um tempo em que não havia diferenciação em termos de eu e de isso no
aparelho psíquico, e a satisfação pulsional se daria de maneira auto-erótica.
O traço mais destacado dessa atividade sexual é o fato de que a pulsão não está
dirigida para outra pessoa: satisfaz-se no próprio corpo, e o protótipo do auto-erotismo está
na sucção do polegar. A atividade mental predominante desse tempo é alucinatória e
fundamenta todas as produções fantasmáticas, fazendo-se manifesta, por exemplo, na
crença da onipotência do pensamento, no pensamento mágico comum aos povos primitivos,
às crianças e aos psicóticos.
O paradigma do narcisismo é o encapsulamento do dormir. Todas as noites, ao
dormir, bloqueamos toda relação com objetos do mundo exterior e produzimos um curso
alucinatório de representações, nomeadamente, o sonho. Todas essas manifestações do
narcisismo atestam para Freud a influência direta dos processos psíquicos inconscientes no
julgamento sobre a realidade da castração.
O caso do homem dos lobos, de difícil diagnóstico, aponta claramente para uma
primeira afirmação a respeito da recusa da castração como aquilo que pavimenta a
formação dos fenômenos psicóticos. O mesmo assunto já se encontra prenunciado no texto
Teorias sexuais infantis, em que Freud comenta a propósito das elaborações infantis.
Encontramos aí que a inclinação inicial do menino, em relação à constatação da diferença
sexual anatômica, é a de falsear a percepção e teorizar de acordo com as leis do princípio de
23
prazer. A primeira dessas teorias deriva do desconhecimento das diferenças entre os sexos:
consiste em atribuir a todos, inclusive às mulheres, a posse de um pênis, partindo do
narcisismo e do saber sobre o seu próprio corpo. O pênis é a principal zona erógena e o
mais importante objeto sexual auto-erótico da fase fálica, e o menino concede a ele um
valor tal que lhe é impossível imaginar uma pessoa semelhante desprovida de objeto tão
essencial.
As palavras de um menino pequeno quando vê os genitais de sua irmãzinha demonstram
que o seu preconceito já é suficientemente forte para falsear uma percepção
.
Ele não se
refere à ausência do pênis, mas comenta, invariavelmente, com intenção consoladora: ‘O
dela ainda é muito pequeno, mas vai aumentar quando ela crescer.’ A idéia de uma mulher
com pênis retorna mais tarde, nos sonhos dos adultos; o indivíduo que sonha, num estado de
excitação sexual noturna, subjuga a mulher, despoja-a de suas vestes, mas quando vai
realizar o coito vê no lugar dos genitais femininos um pênis bem desenvolvido e põe fim ao
sonho e à excitação. Os numerosos hermafroditas da Antigüidade clássica reproduzem
fielmente essa idéia generalizada na infância.
29
A denegação da percepção da falta do pênis na mulher é normal nas primeiras
constatações que os meninos fazem sobre a distinção anatômica entre os sexos. Entretanto,
a persistência nessa denegação — especialmente da castração na mãe — leva ao modo
perverso de obtenção da satisfação, e o fetichismo é aqui emblemático.
No que tange às meninas, tudo se passa, a princípio, tal como nos meninos. A
premissa do falo é a afirmação primeira, e a crença na igualdade sexual anatômica é, assim,
o fundo da presença, em função da qual a ausência irá se manifestar — o complexo de
masculinidade é essa afirmação fálica. A reação da menina diante da constatação da
diferença é que diverge da reação dos meninos. Em Algumas conseqüências psíquicas da
diferença sexual anatômica, Freud pondera a respeito:
O sublinhado é meu.
29
FREUD, S. Teorias sexuais infantis. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2). p. 1265.
24
A menina se comporta diferentemente. Faz seu juízo e toma sua decisão num instante. Ela o
viu, sabe que não o tem e quer tê-lo. Aqui, aquilo que foi denominado de complexo de
masculinidade das mulheres se ramifica. Pode colocar grandes dificuldades no caminho de
seu desenvolvimento regular no sentido da feminilidade, se não puder ser superado
suficientemente cedo. A esperança de algum dia obter um pênis, apesar de tudo, e assim
tornar-se semelhante a um homem, pode persistir até uma idade incrivelmente tardia e
transformar-se em motivo para ações estranhas e de outra maneira inexplicáveis. Ou, ainda,
pode estabelecer-se um processo que eu gostaria de chamar de ‘rechaço’, processo que, na
vida mental das crianças, não aparece incomum nem muito perigoso, mas em um adulto
significaria o começo de uma psicose.
30
O rechaço, caracterizado como comum ao modo infantil de encarar a realidade da
diferença, é também o procedimento que, se vier a preponderar para além do período
infantil, fará o sujeito desembocar em uma psicose.
Com as duas passagens supracitadas podemos notar que, se por um lado é verdade
que o princípio de realidade se dá pela constituição do eu e que este é o representante do
mundo exterior no plano psíquico, por outro, narcisismo e perda da realidade caminham
juntos. Tanto é assim que em Narcisismo e teoria da libido, Freud afirma que não se
surpreenderia de modo algum se fosse verificado que o poder de produzir efeitos
patogênicos de fato constituísse um privilégio de tendências libidinais, de forma que a
teoria da libido pudesse explicar uma gama de quadros clínicos que se estende desde as
neuroses atuais até a mais grave alienação psicótica. Em seguida, ele se pergunta: Afinal,
acaso não sabemos que uma faceta característica da libido é a sua negativa em se submeter
à realidade do universo — à Ananke?
31
E ainda mais distante da realidade está o narcisismo
primitivo, especialmente posto em evidência pela esquizofrenia, que é, sob certos aspectos,
um retorno a ele.
30
FREUD, S. Algumas conseqüências psíquicas da diferença sexual anatômica. Madrid: Biblioteca
Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2). p. 2899.
31
FREUD, S. A teoria da libido e o narcisismo, p. 2390.
25
Em Uma introdução ao narcisismo, Freud sublinha que o motivo premente para a
psicanálise se ocupar com a postulação de um narcisismo primário e normal surgiu quando
se fez a tentativa de incluir na hipótese da teoria da libido o que se havia investigado acerca
da esquizofrenia. É que os esquizofrênicos apresentam duas características básicas:
megalomania e desvios de seu interesse do mundo externo, tanto de pessoas quanto de
coisas, e assim se tornam inacessíveis ao tratamento psicanalítico.
O mesmo não se dá com as neuroses de transferência, muito embora se observe
nelas um afrouxamento do laço com a realidade. A neurose histérica e a neurose obsessiva
evidenciam que de modo algum há desligamento nas relações eróticas com as pessoas e as
coisas. O que ocorre é que o neurótico as retém na fantasia, isto é, “ele substitui, por um
lado, os objetos imaginários de sua memória por objetos reais, ou mistura os primeiros com
os segundos e, por outro, renuncia à iniciação das atividades motoras para a obtenção de
seus objetivos relacionados àqueles objetos.”
32
E isso se encontra enlaçado com a
supervalorização da realidade fantasmática. Retomando Totem e tabu, observamos a
reiteração de que, mesmo depois de ter encontrado objetos externos para a sua libido, todos
os humanos permanecem até certo ponto narcisistas. Além disso, todas as catexias de
objetos que efetuam são provenientes da libido que ainda permanece no eu, e essa mesma
libido pode novamente retornar a ele. Nos apaixonados, encontramos as mesmas condições,
só que pelo avesso: essas emanações se dão na máxima expressão do amor a si mesmo. Não
apenas isso mas também o seguinte:
Os homens primitivos e os neuróticos, como já vimos, atribuem uma alta valorização — a
nossos olhos, uma supervalorização — aos atos psíquicos. Essa atitude pode perfeitamente
ser relacionada com o narcisismo e encarada como um componente essencial deste. Pode-se
32
FREUD, S. Introdução ao narcisismo, p. 2017.
26
dizer que, no homem primitivo, o processo de pensar ainda é, em grande parte, sexualizado.
Esta é a origem de sua fé na onipotência dos pensamentos, de sua inabalável confiança na
possibilidade de controlar o mundo e de sua inacessibilidade às experiências, tão facilmente
obteníveis, que poderiam ensinar-lhe a verdadeira posição do homem no universo. Com
relação aos neuróticos, observamos, por um lado, que uma parte considerável desta atitude
primitiva sobreviveu em sua constituição e, por outro, que a repressão sexual que neles
ocorreu ocasionou uma maior sexualização de seus processos de pensamento. Os resultados
psicológicos devem ser os mesmos em ambos os casos, quer a hipercatexia libidinal do
pensamento seja original, quer tenha sido produzida pela regressão: narcisismo intelectual e
onipotência de pensamentos.
33
De fato, o tema da perda da realidade permanece ao longo do debate clínico e
teórico de Freud, perpassando textos clássicos que discorrem sobre a aderência nos
fantasmas e colocam a potência fálica de modo a obstruir ou substituir a realidade. No texto
A perda da realidade na neurose e na psicose, encontramos a afirmação de que a neurose
não nega a realidade, mas se limita a nada querer saber dela
34
— certamente pelo
recalcamento —, enquanto que a psicose se assenta em uma recusa da realidade, em uma
substituição por outra realidade, delirante ou alucinatória.
O universo da fantasia é também para a psicose a fonte de onde são extraídos os
elementos para a construção de uma nova realidade. Entretanto, o novo mundo exterior
fantástico construído pela psicose “busca colocar-se no lugar da realidade — um fragmento
diferente daquele contra o qual tem de defender-se — e emprestar a esse fragmento uma
importância especial e um significado oculto, o qual chamamos de simbólico, ainda que
nem sempre com plena exatidão.”
35
Vemos, assim, que tanto na neurose quanto na psicose
interessa a questão não apenas relativa a uma perda da realidade, mas fundamentalmente o
universo simbólico.
33
FREUD, S. Totem e tabu, p. 1804.
34
FREUD, S. A realidade perdida na neurose e na psicose. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
completas, v. 3). p. 2746.
35
Ibid., p. 2747.
27
Além de sede das ilusões e do recalcamento, o narcisismo é aquilo que da economia
libidinal, no enfrentamento com a castração, demarcará as diferenças entre neurose, psicose
e perversão. Narcisismo e perda de realidade caminham tão próximos quanto castração e
realidade. A realidade à qual Freud se refere, tomando por base a observação clínica, é a de
uma falta. Como veremos, essa falta se situa no plano da relação de objeto e seu íntimo
imbricamento com o estatuto das identificações. Em todos os casos, de alguma maneira,
encontra-se repetido o repúdio de representações que dizem respeito às perdas de objeto, e
as formas de defesa determinam, como acontecimentos subjacentes, a eclosão do fenômeno
psicopatológico específico.
Theisen Simanke comenta o papel do Édipo na determinação da psicose e frisa que
narcisismo e castração são dois conceitos estreitamente relacionados nesta questão. Afirma
então, ser necessário esclarecer o sentido e a função da castração na vida psíquica, verificar
como e por onde ela pode ser recusada no desenlace do Édipo. A castração, sob vários
aspectos pode ser considerada mais primordial e logicamente anterior ao complexo de
Édipo e na fase fálica, a percepção da diferença entre os sexos rompe com a homeostase
narcísica. “O narcisismo, mesmo abdicando-se de considerá-lo um estado puramente
anobjetal, testemunha um modo de relação com o objeto fundado na identificação, e por
isso mesmo, na identidade. O sujeito percebe o objeto parental, em sua onipotência
fantasiada, como idêntico a si mesmo, do qual extrai a sua própria onipotência narcísica.”
36
E ainda, a fantasia psicótica é fabricada praticamente com imagens acústicas de
representações de palavra alucinatóriamente revividas, impedidas de seu significado
original pelo desinvestimento de representações de coisa no inconsciente. Fica então,
indiscernível distinguir entre perceber e recordar. É que a defesa psicótica tende a extinguir
36
SIMANKE, T. R. A formação da teoria freudiana das psicoses, p. 225.
28
aquelas representações inconscientes que assinalam o ponto de inserção na realidade
insuportável ao psiquismo. E não é o caso do psicótico desconhecer a realidade da
diferença sexual, mas o fato de não ser capaz de subjetivar este conhecimento. E qualquer
movimento de confrontação com esta realidade produz, na esfera psíquica, efeitos de
desagregação
37
” E Simanke acrescenta ainda sobre o narcisismo que:
Uma das características salientadas por Freud no narcisismo, é a onipotência imaginária:
não há limites para a satisfação da pulsão. A psicose, por exemplo, como um estado
narcísico, amiúde busca a realização de desejos pela via regressiva da alucinação. A
castração, em seu significado de ruptura da situação narcísica, a partir de uma constatação
na realidade concreta, vai apresentar, daí em diante, todo limite imposto ao desejo por esta
mesma realidade, a resistência da realidade à satisfação.
38
Encontramos essa mesma idéia exposta por Cabas, quando ele diz em A Função do
Falo na Loucura, que na psicose a célula narcísica, por sinal uma célula impossível, se
fecha na relação mãe-filho e impede a presença do pai. “Deste modo, a cena fálica se fixa.
É ela que está presente na formulação psicótica. A clausura do âmbito fálico obriga o
sujeito ao delírio como única alternativa para restabelecer o equilíbrio”
39
É que o psicótico
opta por tapar o buraco que a mãe abre para a questão do pai. Assim, a loucura do psicótico
é uma “missão” que, além do mais, pretende a redenção do mundo. “Este mundo é — no
fim das contas — uma portentosa magnificação da célula narcísica que, esta sim, está
ameaçada.”
40
E essa reconstrução do mundo é posta em debate também por Lacan quando
se pergunta: “Quando o psicótico reconstrói seu mundo, o que é inicialmente investido?” E
37
SIMANKE, T. R. A formação da teoria freudiana das psicoses, p. 228.
38
Ibid., p. 226.
39
CABAS, A. G. A função do falo na loucura. Campinas: Papirus, 1988. p. 38.
40
Id.
29
responde: “são as palavras. Vocês não podem deixar de reconhecer aí, a categoria do
simbólico”
41
É com a investigação das neuroses narcísicas, especialmente a melancolia, a mais
destacada delas, que o texto freudiano estabelece a conexão entre a perda da realidade e sua
estreita relação com a perda de um objeto estimado. É exatamente a partir da observação
sobre a melancolia que a psicanálise pôde avançar no estudo sobre a identificação, sua
importância nos destinos do complexo de Édipo e na elaboração a respeito do conceito de
falo.
Mais uma vez, a teorização freudiana parte do patológico, correlaciona-o com a vida
cotidiana normal dos seres humanos e depois extrai, de ambos, os elementos que
constituem a estruturação do aparelho psíquico. Em Luto e melancolia, o correlato normal
da melancolia é o luto, assim como, no texto Adição metapsicológica à teoria dos sonhos, o
correlato normal da esquizofrenia é o sonho.
O luto se caracteriza como uma reação a uma perda de objeto — essa perda é
consciente e o sujeito atravessa um período de tempo no qual a dor é o mote quase
constante. Há uma tomada em consideração da realidade, que constata a falta do objeto
amado, exigindo que a libido se desvincule do objeto, coisa que nunca ocorre facilmente,
mesmo quando se encontra um substituto, porque o inconsciente não conhece a realidade da
morte, nem de qualquer atributo negativo e relativo a uma ausência.
Sob certas condições, porém, surge, em pessoas com “predisposição mórbida”, o
quadro melancólico no lugar do luto. Na melancolia, o sofrimento, sob a forma de tristeza e
auto-recriminação, toma a primeira linha de expressão. Trata-se aqui de uma perda
subtraída da consciência, deixando o eu imerso num estado profundamente doloroso e
41
LACAN, J. Os escritos técnicos de Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. (O seminário, Livro 1). p. 138.
30
caracterizado pelo retraimento do interesse pela realidade externa, impossibilidade de amar,
inibição de várias funções e, sobretudo, diminuição do amor próprio, que se manifesta nas
auto-recriminações severas através das quais o paciente faz-se objeto de si próprio. Em
contraste com o luto, para o qual o mundo se empobrece, na melancolia é o eu que se
empobrece. Este se julga indigno, condenável, sem valor.
42
São três as pré-condições para a constituição do quadro melancólico: perda do
objeto, ambivalência e regressão da libido ao narcisismo. O processo de adoecimento segue
uma lógica: (a) a princípio havia um enlace da libido num objeto — uma fixação; (b)
depois ocorreu uma ferida narcísica ou frustração, um desengano ou ofensa proferida e
conseqüente abalo na relação com o objeto, seguido da retirada de investimento libidinal;
(c) desinvestida e agora livre, a libido não é redirecionada para outro objeto externo, mas
retrai-se para o eu, encontrando nele uma aplicação determinada: o eu incorpora e se
identifica ao objeto perdido. No desinvestimento total do objeto, a libido regride à escolha
objetal mais primitiva, do tipo narcísico. O que ocorre, a partir disso, é uma substituição do
amor objetal por uma identificação própria do modo de satisfação oral, canibalística; trata-
se, aqui, da primeira forma ambivalente utilizada pelo eu para escolher um objeto que
almeja incorporá-lo.
Além disso, há no padecimento melancólico duas das vicissitudes pulsionais
descritas por Freud em As pulsões e seus destinos: a transformação no contrário e o retorno
em direção ao eu. A primeira alcança o fim da pulsão, que é a satisfação, e, na melancolia,
concerne à transformação da satisfação ativo-sádica em passivo-masoquista. Como
podemos notar, os traços perversos do par antitético sadismo-masoquismo fazem parte do
que há de mais próprio aqui. A segunda, por sua vez, diz respeito a uma mudança no objeto
42
FREUD, S. Luto e melancolia. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2). p. 2093.
31
da pulsão, quer dizer, o objeto é substituído pelo próprio eu. Uma vez retraído o
investimento no eu, este se encontra, por assim dizer, transformado, preservando em si
mesmo, a serviço do princípio de prazer, o objeto perdido.
Toda melancolização se liga à impossibilidade de fazer luto. É que a perda de objeto
nesses pacientes diz respeito a um objeto escolhido de acordo com o ideal, portanto de
acordo com o narcisismo primário, no qual o eu era o seu próprio ideal, como
mencionamos anteriormente. Há na melancolia uma operação reativa por parte do eu diante
da possibilidade da perda. No evitamento da angústia e da dor pela inexorabilidade da
perda, a melancolia recorre à identificação.
E ainda, tanto na depressão obsessiva quanto na melancolia, o paciente, através da
enfermidade, pode estar tentando vingar-se indiretamente do objeto que é alvo da
ambivalência de sentimentos. O investimento erótico do melancólico no objeto tem duplo
destino: (a) uma parte do investimento retroage à identificação; (b) a outra, sob o influxo do
conflito de ambivalência, regride até a fase sádica, atualiza o conflito e maltrata o objeto
odiado. O sadismo nos esclarece o enigma da tendência ao suicídio, que encontramos na
melancolia, pois o eu só pode dar-se a morrer quando há o retorno do investimento objetal e
viabiliza-se a possibilidade de o eu tratar-se como objeto. No suicídio e na paixão amorosa
(situações opostas), fica o eu igualmente dominado pelo objeto, se bem que tal domínio
ocorre de maneiras bem distintas para cada caso
43
. Num caso prepondera o ódio; no outro,
o amor.
A melancolia faz notar, no exagero, a existência do supereu como instância crítica
que se dissociou do eu e o toma como objeto. Por um lado, o eu contém o objeto perdido ou
se coloca inteiramente como tal; por outro, se estabelece como supereu, como herdeiro do
43
FREUD, S. Luto e melancolia, p. 2097.
32
complexo de Édipo, que tem como substrato mais arcaico o narcisismo primário,
especialmente no que tange à sua faceta absolutista e tirânica. Ele é resíduo, formação de
um precipitado no ego, consistente de duas identificações — com o pai e com a mãe —,
unidas uma com a outra de alguma maneira
44
. Ademais, o supereu é aquilo que restou de
vivo após o assassinato do pai da horda primeva. O pai, que era objeto da ambivalência, era
também objeto de idealização e, uma vez morto, uma vez perdido, foi devorado e passou a
reinar como um desdobramento do eu alterado por identificação. Freud comenta, em O eu e
o isso, que o supereu, contudo, não é simplesmente um resíduo das primitivas escolhas
objetais do isso:
... ele também representa uma formação reativa enérgica contra essas escolhas. A sua
relação com o eu não se exaure com o preceito: ‘Você deveria ser assim (como o seu pai)’.
Ela também compreende a proibição: ‘Você não pode ser assim (como o seu pai), isto é,
você não pode fazer tudo o que ele faz; certas coisas são prerrogativas dele.’ Esse aspecto
duplo do ideal do eu depende de sua participação anterior no complexo de Édipo, ao qual
inclusive deve sua gênese
45
.
Retornando à melancolia, que põe em destaque a fúria do supereu, a sombra do
objeto caiu sobre o eu.
46
Freud chama a atenção para o que há de essencial na
sintomatologia do melancólico. E o essencial é a sua situação psíquica: perdeu sua auto-
estima e deve ter razões para isso.
Em Psicologia das massas e análise do eu, esse mesmo ponto é retomado, e os
casos de melancolia são descritos principalmente pela cruel automutilação do eu, unida a
uma implacável autocrítica e a amargas recriminações.
47
A chave do processo patogênico
44
FREUD, S. O eu e o isso, p. 2718.
45
Id.
46
FREUD, S. Luto e melancolia, p. 2095.
47
FREUD, S. Psicología das massas e análise do eu, p. 2587.
33
encontra-se no reconhecimento de que as acusações direcionadas ao eu correspondem na
verdade a uma outra pessoa. É exatamente com essa chave que Freud encontra a abertura
não somente para o desvelamento do processo patogênico na melancolia mas também para
o conceito de identificação.
A identificação é um produto que as retiradas de investimento de objetos têm no
próprio eu, que, por sua vez, é uma instância constituída de restos de objetos abandonados.
Quando a libido é desviada do objeto, é conservada em suspenso sob condições especiais
de tensão e posteriormente é defletida sobre o eu, tornando-se, então, uma vez mais, só que
secundariamente, libido narcísica. Daí a expressão narcisismo secundário, ou seja, o retorno
dessexualizado dos investimentos objetais sob a forma de identificações.
Considerando o eu a partir de reflexões estabelecidas em O eu e o isso, observamos
que ele não é simplesmente uma porção do isso modificada pela influência do sistema
perceptivo e, assim, o representante do mundo externo na mente mas também algo que se
constitui nos moldes de um objeto. Vale dizer também que a transformação de uma escolha
objetal erótica numa alteração do eu constitui um método pelo qual o eu pode obter
controle sobre o isso, bem como aprofundar suas relações com ele. Mas tal situação tem um
preço: o eu tem de se submeter, em grande parte, às exigências do isso. “Ao assumir as
características do objeto, ele está se forçando, por assim dizer, ao isso como um objeto de
amor e tentando compensar a perda do isso, dizendo: ‘Olhe, você também pode me amar;
sou semelhante ao objeto’”
48
. O problema é que, ao se colocar desse modo, o eu também
pode se tornar alvo do ódio.
48
FREUD, S. O eu e o isso, p. 2711.
34
Esse tipo de substituição tem grande influência na determinação da forma assumida
pelo eu, dando uma contribuição essencial para a construção do que é chamado de seu
‘caráter’:
Quando acontece de uma pessoa ter de abandonar um objeto sexual, muito amiúde se segue
uma alteração de seu eu, que só pode ser descrita como instalação do objeto dentro do eu,
tal como ocorre na melancolia; a natureza exata dessa substituição ainda nos é
desconhecida. Pode ser que, através dessa introjeção, que constitui uma espécie de
regressão ao mecanismo da fase oral, o eu torne mais fácil ao objeto ser abandonado ou
torne possível esse processo. Pode ser que essa identificação seja a única condição em que o
isso pode abandonar os seus objetos. De qualquer maneira, o processo, especialmente nas
fases primitivas de desenvolvimento, é muito freqüente, e torna possível supor que o caráter
do eu é um precipitado de catexias objetais abandonadas e que ele contém a história dessas
escolhas de objeto.
49
Freud também define o termo identificação como a expressão mais remota de um
laço emocional com outra pessoa. A identificação tem papel fundamental no tempo anterior
ao complexo de Édipo. Ela é, inclusive, uma espécie de derivado da primeira fase da
organização da libido. Assim, o objeto amado e desejado é assimilado por ingestão, sendo
dessa maneira aniquilado como tal. Esse processo é análogo ao do canibal, que só devora a
quem admira. A identificação é ambivalente desde o início e segue a determinação dada
pela série prazer-desprazer, que suscita o surgimento do amor e do ódio respectivamente,
tal como já mencionamos.
No caso dos meninos, a face positiva do complexo descreve uma relação com o pai
concernente ao ser, querer ser, querer ser o ideal do eu. A criança apresenta uma ligação
especial com o pai e normalmente tende a querer se assemelhar a ele e tomar seu lugar em
tudo; vê o pai como seu ideal. E isso, diz Freud, não significa uma atitude passiva ou
feminina em relação ao pai ou aos indivíduos do sexo masculino em geral, mas uma atitude
49
FREUD, S. O eu e o isso, p. 2710.
35
tipicamente masculina. A mãe ocupa o lugar predominante daquilo que se gostaria de ter,
ou seja, a distinção depende da vinculação ao sujeito ou ao objeto do eu. E ainda:
Simultaneamente a essa identificação com o pai, ou pouco depois, o menino começa a
tomar a sua mãe como objeto de seus impulsos libidinosos. Apresenta então, portanto, dois
laços psicologicamente distintos: uma catexia de objeto sexual e direta para com a mãe e
uma identificação com o pai, a que toma como modelo. Ambos subsistem lado a lado
durante certo tempo, sem qualquer influência ou interferência mútua. Em conseqüência do
avanço irresistível no sentido de uma unificação da vida mental, eles acabam por reunir-se e
o complexo de Édipo normal origina-se de sua confluência. O menino nota que o pai se
coloca em seu caminho, em relação à mãe. Sua identificação com eles assume então um
colorido hostil e se identifica com o desejo de substituí-lo também em relação à mãe.
50
É verdade que os avatares do Édipo podem se inverter, e essa identificação ao pai se
modificar; o pai é então tomado como objeto de uma atitude feminina por parte do menino.
Nesse caso, a identificação com o pai torna-se a precursora de uma escolha de objeto
homossexual.
Evidentemente, faz parte do complexo de Édipo normal a apresentação de uma
faceta negativa, o que se lê claramente em O eu e o isso. Freud fala aí em termos de um
complexo de Édipo mais completo, o qual, positivo e negativo, é devido à bissexualidade
originalmente presente na criança. “Isto equivale a dizer que um menino não tem
simplesmente uma atitude ambivalente para com o pai e uma escolha objetal afetuosa pela
mãe, mas que, ao mesmo tempo, também se comporta como uma menina e apresenta uma
atitude afetuosa feminina para com o pai e um ciúme e uma hostilidade correspondente em
relação à mãe.”
51
De todo modo, a idéia geral de Freud, a propósito do que ocorre no
complexo de Édipo, é a de que catexia e identificação não coincidem e isso no sentido de
50
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu, p. 2586.
51
FREUD, S. O eu e o isso, 1981. p. 2713.
36
que a conclusão da questão relativa à sexualidade compreende a escolha de objeto de
desejo, o que pressupõe um sujeito e um objeto.
Em Psicologia das massas, apresenta três modos como entende a identificação: (a)
a identificação tal como ocorre na estrutura de um sintoma neurótico; (b) a identificação do
complexo de Édipo; (c) a identificação primária. Há, no Capítulo 7 desse texto, uma
abordagem importante, relativa à identificação e sua crucial participação na formação do
sintoma histérico; entretanto, não é exatamente este o nosso interesse aqui. Voltaremos,
pois, a nossa atenção para a dimensão da identificação que subsidia a reflexão para o pré-
edípico, ou seja, a identificação primária ou narcísica. Isso porque buscamos esclarecer a
raiz do conceito de falo na obra freudiana e, como vimos, é preciso que a premissa do falo
esteja posta para que o complexo de castração se dê como tal.
Para Cabas, as identificações primárias, junto com as fantasias primárias e o
recalcamento primário, configuram a matriz estrutural do inconsciente. Ele diz que, se
reunirmos arcaísmo e inobservabilidade, já que as identificações primárias não são dados
clínicos, cabe pensar que se trata de uma construção teórica semelhante à do mito da horda
primitiva. As identificações primárias são definidas como crisol ou matriz simbólica. E
acrescenta: “Tais identificações primárias estariam situadas a meio caminho entre o
simbólico e a constituição do falo. É que, à medida que essas identificações primárias são a
matriz das futuras identificações efetivas, precederiam a constituição do falo, mas seriam
posteriores ao simbólico.”
52
Evidentemente o autor se refere aqui à precedência do universo
simbólico no sentido de que a linguagem e a civilização são anteriores. A identificação
primária, diz Cabas, é uma reunião massiva da identificação e da catexia e, como efeito dos
sucessivos abandonos, ausências, frustrações, se gera um desligamento da catexia, que recai
52
CABAS, A. G. Curso e discurso da obra de Jacques Lacan, p. 183.
37
sobre o infans de acordo com o princípio de “retorno contra a própria pessoa” na dinâmica
pulsional.
53
Esse comentário corrobora o que Freud escreve em O eu e o isso:
A princípio, na fase oral primitiva do indivíduo, a catexia do objeto e a identificação são,
sem dúvida, indistinguíveis uma da outra. Só podemos supor que, posteriormente, as
catexias de objeto procedem do isso, o qual sente as tendências eróticas como necessidades.
O eu, que inicialmente ainda é fraco, dá-se conta das catexias do objeto e sujeita-se a elas
ou tenta desviá-las pelo processo de recalque.
54
Trata-se aí do recalcamento primário, que verificaremos no Capítulo 4. Não
obstante isso, a citação acima está intimamente ligada a uma outra afirmação de Freud no
mesmo texto, quando diz que os efeitos das primeiras identificações efetuadas na infância
mais primitiva serão gerais e duradouros. Esse assunto remonta à gênese do ideal do eu,
porque a psicanálise encontra nesse ideal a primeira e mais importante identificação de um
indivíduo, a sua identificação com o pai em sua própria pré-história pessoal. “Isso
aparentemente não é, em primeira instância, a conseqüência ou resultado de uma catexia do
objeto; trata-se de uma identificação direta e imediata, e se efetua mais primitivamente do
que qualquer catexia do objeto. Mas as escolhas objetais pertencentes ao primeiro período
sexual e relacionadas ao pai e à mãe parecem normalmente encontrar seu desfecho numa
identificação desse tipo, que assim reforçaria a primária.”
55
Remetendo novamente essa temática a Totem e tabu, o que se pode perceber é que o
ideal-do-eu estaria profundamente vinculado com a figura do grande pai da horda, que teria
sido internalizada após o parricídio. No caso das crianças, a castração apontaria para uma
falta relativa à própria estruturação do eu, à qual se seguiria a identificação com as figuras
53
CABAS, A. G. Curso e discurso da obra de Jacques Lacan, p. 185.
54
FREUD, S. O eu e o isso, p. 2710.
55
Ibid., p. 2711.
38
parentais, dando início à edificação do ideal-do-eu. Na primeira infância, a atribuição de
perfeição é com freqüência quase irrestrita na admiração que as crianças nutrem pelos seus
pais. E isso não concerne a uma observação circunscrita à infância, pois as figuras parentais
são remodeladas por outros, como os professores e chefes de trabalho. Em outras épocas
emerge na idolatria, qualquer que seja, na crença no mestre espiritual ou no líder do grupo,
na propaganda de mercado, para simplificar as coisas, estendendo-se pela cultura por meio
da sugestão, algo que beira a hipnose.
Aliás, é antiga a constatação freudiana que os humanos são, de modo geral, mais
inclinados a se deixar influenciar por aqueles que amam, admiram e que despontam no
horizonte com algum emblema fálico do que pela crítica e pelo intelecto. De todo modo,
Freud se dá conta de que aquilo que estava investigando a propósito da força do ideal
disseminado na civilização é sempre veiculado através da construção de significações, o
que necessariamente envolve o encadeamento e articulação das palavras. E essa observação
se voltava para a própria psicanálise, terreno que Freud queria tornar isento da sugestão.
A construção do ideal opera no sentido de manter o grupo unido através da
identificação dos membros com um ideal-do-eu encarnado no líder. Na horda primeva, após
o parricídio o pai foi divinizado.
É verdade que Freud não fez uma distinção clara entre supereu e ideal-do-eu.
Mesmo em O eu e isso, ele os usa como sinônimos, motivo por que evitamos colocar em
discussão essa diferenciação, que nos parece de fato existir. Importa, sim, para o objeto de
nossa investigação, acentuar, de momento, que o ideal-do-eu está posto em estreita relação
com o eu-ideal do narcisismo primário, que referenciamos anteriormente, e que essa relação
é dada pela falta de um objeto muito primitivo. No que tange ao ideal-do-eu, a situação é
outra porque, partindo de um eu-ideal, o que fica posto no horizonte é a ânsia por alcançar a
39
completude ou perfeição perdida. Ulteriormente, na constituição do eu, quando este
necessariamente se depara com a diferença sexual anatômica, a crença na perfeição é
colocada em questão. Na organização fálica, a incidência do complexo de castração
apresenta um caráter peculiar porque descreve a retomada de um debate em torno da falta
do objeto da satisfação e, ao mesmo tempo, um ponto de conclusão no julgamento infantil
em torno do absoluto, da totalidade.
É verdade que, na fase fálica, o corpo é posto como central a partir da constatação
da diferença sexual, mas não somente isso. Ocorre também que a afirmação do ser pela
criança é necessariamente fálica e poderia ser alegoricamente expressa do seguinte modo:
“Não sou tudo!... Então, fui tudo!... Então, quero voltar a sê-lo!” ou “Não tenho tudo!...
Então, tive tudo!... Então, quero voltar a tê-lo!”. Essas expressões servem para situar a
conclusão infantil, que segue respectivamente o seguinte percurso: parte da castração,
então demarca um tempo mítico, nomeado por Freud de eu-ideal, e, concomitantemente, o
ideal-do-eu. São as referências temporais do complexo de castração — presente e passado-
futuro — que, nesse contexto, aparecem imbricadas para que possamos situar melhor o
entendimento freudiano acerca do ideal.
A respeito da constituição do ideal e sua função no desenvolvimento do eu, Freud
escreve no texto Uma introdução ao narcisismo:
O desenvolvimento do eu consiste num afastamento do narcisismo primário e dá margem a
uma vigorosa tentativa de recuperação desse estado. Esse afastamento é ocasionado pelo
deslocamento da libido em direção a um ideal do eu imposto de fora, sendo a satisfação
provocada pela realização desse ideal.
Ao mesmo tempo, o eu emite as catexias objetais libidinais. Torna-se empobrecido em
benefício dessas catexias, do mesmo modo que o faz em benefício do ideal do eu, e se
40
enriquece mais uma vez a partir de suas satisfações no tocante ao objeto, do mesmo modo
que o faz realizando seu ideal.
56
Ocorre que a constituição do ideal do eu é concomitante à própria organização final
do eu, do narcisismo secundário. Muito embora o eu seja uma instância psíquica, que já é
diferenciada do isso anteriormente ao complexo de Édipo, só conclui seu desenvolvimento
com a instauração do supereu.
O eu, como vimos, não é algo dado, mas se desenvolve a partir de um substrato
primário, indiferenciado e auto-erótico. É preciso que algo aconteça aí, como diz Freud,
que nesse auto-erotismo “uma nova ação psíquica”
57
seja introduzida para que o eu possa se
estabelecer como uma unidade circunscrita. Essa “ação psíquica” concerne ao fracasso de
um modo alucinatório de operar com representações e ao surgimento da exterioridade, que
trataremos de apresentar mais detalhadamente no Capítulo 3.
Assim, de uma condição, quase diríamos, “insular” de indiferenciação, a alteridade
primeiramente surge através das sensações de desprazer. É somente quando o objeto passa
a ser percebido como uma integridade separada da criança que o eu pode captar a si mesmo
no outro como sendo também uma unidade. Para Freud, trata-se de uma ocorrência
concomitante à instauração, no psíquico, da imagem unificada do próprio corpo, à perda de
um estado anterior de coisas e à constituição do falo.
O ponto de partida para essas reflexões é o solo clínico e, como já acentuamos, a
tematização a respeito da falta se dá sob a forma de uma construção acerca da situação
primitiva infantil, na qual a criança se depara com outra coisa ali onde esperava encontrar a
mãe. Diante da ausência ela reage, despertando um sinal de angústia, ou seja, anuncia o
56
FREUD, S. Introdução ao narcisismo, p. 2032.
57
Ibid., p. 2019.
41
perigo da perda do objeto. A experiência infantil constitui-se de modo tal, que não pode
ainda diferenciar uma perda definitiva de uma ausência temporária. A situação na qual a
criança sente a falta da mãe não é para ela erro de interpretação, mas uma situação perigosa,
traumática se a criança experimenta, nesse momento, uma necessidade que só a mãe seria
capaz de satisfazer. Assim, pois, a primeira condição da angústia, que o próprio eu
introduz, é, antes de mais nada, a perda da percepção do objeto. A possibilidade de perder a
percepção é equiparada à perda do objeto e mais tardiamente surge o medo da perda do
amor do objeto
58
.
Oportunamente trataremos da tematização do falo como aquilo que se erige na vida
psíquica em função de um vazio de representações. Essa concepção se encontra no texto
freudiano quando põe em discussão o afeto de angústia e afirma que este surge como
reação ao fato de perceber a falta do objeto. Para Freud a angústia de castração remete à
separação de um objeto muito estimado — a mãe.
59
Em Inibição, sintoma e angústia,
Freud observa:
a angústia de castração, que pertence à fase fálica, constitui também medo da separação e
está assim ligada ao mesmo determinante. Nesse caso, o perigo de se separar dos seus
órgãos genitais. Ferenczi traçou, de maneira bem correta, penso eu, uma nítida linha de
ligação entre esse medo e os medos contidos nas situações mais antigas de perigo. O alto
grau de valor narcísico que o pênis possui pode valer-se do fato de que o órgão é uma
garantia para seu possuidor de que este pode ficar mais uma vez unido à mãe — isto é, a um
substituto dela — no ato da copulação. (...) Pode-se acrescentar que, para um homem que
seja impotente (isto é, que seja inibido pela ameaça de castração), o substituto da copulação
é uma fantasia de retorno ao ventre da mãe. Seguindo a linha de pensamento de Ferenczi,
podemos dizer que o homem em causa, havendo tentado provocar seu retorno ao ventre da
mãe, utilizando o órgão genital dele para representá-lo, está agora [em sua fantasia]
substituindo regressivamente aquele órgão por toda a sua pessoa.
60
58
FREUD, S. Inibição, síntoma e angústia, p. 2882.
59
Ibid., p. 2862.
60
Ibid., p. 2863.
42
No seminário A relação de objeto, após dizer que o falo falta à mãe, que ele está
para além dela e de sua potência de amor, Lacan lança a pergunta: Em que momento o
sujeito descobre esta falta? Quando e como faz essa descoberta — a partir da qual ele se vê
engajado em vir, ele próprio, a substituí-la, isto é, a escolher uma outra via na redescoberta
do objeto de amor que se furta, trazendo-lhe a sua própria falta?
61
É mais ou menos pelos seis meses de idade que é possível para a criança a captura
da imagem unificada do outro e concomitantemente a de si mesma. É exatamente a captura
da imagem de totalidade integrada que organiza para ela a incompletude vivida, “a saber, o
fato de que ela está em falta. É com relação a esta imagem que se apresenta como total, não
apenas como preenchedora, mas fonte de júbilo em razão da relação específica do homem
com a sua própria imagem, que este se dá conta de que algo pode lhe faltar.”
62
Trata-se de
uma falta situável no objeto de amor e que põe em perspectiva a nostalgia por reconstruir
um passado no qual supostamente isso jamais tivesse existido e o anseio por reencontrar no
futuro essa situação mítica.
Lacan acrescenta, ainda, que Freud sempre manteve a concepção de que nenhuma
satisfação por um objeto substituto do desejado preencheria a falta na mãe. Que é somente
quando se forma a captação da imagem do objeto materno numa totalidade que este
também pode ser incompleto para a criança. É com referência a essa imagem que o sujeito
constata que alguma coisa pode faltar a ele.
Ocorre que, como já dissemos, a constatação da alteridade retira o sujeito da
indiferenciação “oceânica” — para referenciarmos mais uma vez o Mal-estar — e
61
LACAN, J. A relação de objeto, p. 179
62
Id.
43
fundamenta a possibilidade de uma unidade comparável ao eu, que terá seu arcabouço,
porque sexuado, no final do drama edípico.
Entretanto, o pensamento freudiano aponta para a situação paradoxal do eu na
economia psíquica, pois, a partir da castração e do complexo de Édipo, o eu se constitui
numa unidade e também se constitui como uma metade faltante que jamais encontra a outra
metade, que o fará uma unidade por inteiro. Em outras palavras, o eu se constitui como
unidade e ao mesmo tempo perde metade. Essa é exatamente a noção de cisão na vida
mental, que estabelece a premissa fundamental da psicanálise.
A partir dessa cisão, o que se coloca em relação ao falo é a substituição simbólica, nos
moldes indicados por Freud no texto A dissolução do complexo de Édipo, entre outros.
Trabalhando em torno do Édipo da menina, ele diz, como já mencionamos: diferentemente
do menino, que encara a castração como uma ameaça, uma possibilidade, a pequena mulher
se depara não com a possibilidade, mas com um fato consumado — seu temor será o da
perda do amor. E tratando da questão simbólica, Freud esclarece:
O complexo de Édipo da menina é muito mais simples que o do pequeno portador do pênis;
em minha experiência, raramente ele vai além de assumir o lugar da mãe e adotar uma
atitude feminina para com o pai. A renúncia ao pênis não é tolerada pela menina sem
alguma tentativa de compensação. Ela desliza ao longo da linha de uma equação simbólica
,
poder-se-ia dizer — do pênis para um bebê. Seu complexo de Édipo culmina em um desejo,
mantido por muito tempo, de receber do pai um bebê como presente — dar-lhe um filho.
Tem-se a impressão de que o complexo de Édipo é então gradativamente abandonado, de
vez que esse desejo jamais se realiza. Os dois desejos — possuir um pênis e um filho
permanecem fortemente catexizados no inconsciente e ajudam a preparar a criatura do sexo
feminino para seu papel posterior.
63
O sublinhado é meu.
63
FREUD, S. A dissolução do complexo de Édipo. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v.
3). p. 2751.
44
Notemos que o “deslizar ao longo de uma equação simbólica” diz respeito a algo
comum para ambos os sexos. Essa mesma forma de substituição de representações vai
aparecer no artigo Sobre a transformação das pulsões e especialmente do erotismo anal, no
qual Freud comenta que a encontra em manifestações do inconsciente. Especialmente nas
idéias espontâneas, fantasias e sintomas, os conceitos de fezes (dinheiro, dádiva), bebê e
pênis mal se distinguem um do outro e são facilmente intercambiáveis. Esses elementos são
com freqüência tratados no inconsciente como equivalentes e poderiam livremente
substituir um ao outro.
64
Isto se verifica com mais facilidade na relação entre ‘bebê’ e ‘pênis’. Não pode deixar de ter
significado o fato de que na linguagem simbólica dos sonhos, bem com na da vida
cotidiana, ambos podem ser representados pelo mesmo símbolo; tanto bebê como pênis são
chamados ‘o pequeno’ [‘das Kleine’]. É fato sabido que o discurso simbólico ignora com
freqüência a diferença de sexo. O ‘pequeno’, que originalmente significava o órgão sexual
masculino, pode, assim, ter adquirido uma aplicação secundária aos genitais femininos.
65
Aqui das Kleine se redobra sobre o comentário em torno do narcisismo primitivo
dos pais, revivido na idealização de His Majesty, the Baby, anteriormente referenciado.
Ocorre, assim, que a tematização a propósito do caráter simbólico das formações do
inconsciente toma ênfase já na Interpretação dos sonhos e na Psicopatologia da vida
cotidiana, estendendo-se pela obra freudiana como um todo. As passagens supra-referidas
talvez coloquem de modo mais insistente a afinidade entre a substituição simbólica e sua
relação com a questão do falo.
O falo, a premissa da universalidade do falo, assume seu primeiro delineamento na
vida psíquica infantil exatamente no mesmo ponto onde a constatação da perda da
64
FREUD, S. Sobre as transformações dos instintos. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v.
2). p. 35.
65
Id.
45
indiferenciação do narcisismo primário se dá — com a percepção da presença-ausência.
Mais adiante, na organização genital infantil, o falo é colocado em questão com a diferença
anatômica dos sexos. Se a constituição do falo é localizada precisamente na separação do
objeto materno e apresenta expressão máxima na fase fálica, isso quer dizer que a fase
fálica coloca em perspectiva e por retroação o passado. A fase fálica vem a dar a
significação ao que ficou marcado no passado, fundamentalmente o que ficou marcado de
perdas.
Reiteramos, assim, que o falo é fundamentalmente um elemento de natureza
simbólica absolutamente central na estruturação do inconsciente. E isso porque o
inconsciente freudiano não é algo pré-formado, arquetípico, mas um sistema que adquire
organização com leis próprias de operação e conteúdos fantasmáticos que, a partir do
advento do complexo de Édipo, formam a idiossincrasia do desejo para cada sujeito.
A estruturação do inconsciente também tem como fundamento a castração. O
menino abandona o Édipo em função da angústia de castração, enquanto a menina entra
nele pelo complexo de castração. Temos no Édipo o recalcamento secundário que divide o
aparelho psíquico em dois sistemas. E complexo, aqui, refere-se invariavelmente a
representações, idéias, pensamentos, fantasias e outros termos utilizados reiteradamente por
Freud para fazer seu leitor notar que essa questão se situa dentro do universo simbólico.
O falo remonta ao narcisismo primário. Resumindo, o falo concerne ao universo das
representações e tem seu fundamento no narcisismo. Poderíamos dizer que o tempo mítico
da constituição do falo coincide com a constituição do corpo e, posteriormente, com a
afirmação do ser como necessariamente sexuado.
O falo é um objeto simbólico que se erige na divisão entre o eu e a alteridade;
paradoxalmente, é na constatação da realidade da separação ou da diferença que o falo se
46
constitui como tal. E, ainda, ele se constitui, de certo modo, na perda da realidade. A
premissa da universalidade do falo parece, então, advir de uma resposta a uma realidade
(Wirklichkeit) traumática, essencialmente posta em decorrência de uma perda.
Dizer que o falo emerge precisamente na divisão, na perda da realidade, nos evoca um
dos últimos textos escritos por Freud, a saber, A divisão do eu no processo de defesa.
Logo no início, ele diz que se encontra inclinado a pensar que aquilo que tem a
expor se relaciona a algo inteiramente novo e enigmático.
66
A experiência clínica com as
rememorações dos pacientes em análise revela um procedimento comum na psique infantil,
que segue, em linhas gerais, a seguinte trajetória: o eu se encontra sob a influência de uma
exigência pulsional muito intensa, que a criança está acostumada a satisfazer. No entanto,
essa satisfação é subitamente carregada de uma significação de conteúdo assustador, de
modo que a continuação dessa satisfação resultará num perigo real quase intolerável. A
partir daí, passa a existir um conflito entre a exigência pulsional e a proibição por parte da
realidade;
fica estabelecido um dilema: o eu deverá efetivamente reconhecer o perigo real e
renunciar à satisfação pulsional ou rejeitar a realidade, de maneira a poder conservar a
satisfação. Diante disso, a criança tende a assumir uma estratégia peculiar, que Freud situa
nos seguintes termos:
Na verdade, porém, a criança não toma nenhum desses cursos, ou melhor, toma ambos
simultaneamente, o que equivale à mesma coisa. Ela responde ao conflito por duas reações
contrárias, ambas válidas e eficazes. Por um lado, com o auxílio de certos mecanismos,
rejeita a realidade e recusa-se a aceitar qualquer proibição; por outro, no mesmo alento,
reconhece o perigo da realidade, assume o medo desse perigo como um sintoma patológico
e subseqüentemente tenta desfazer-se do medo. Deve-se confessar que se trata de uma
solução bastante engenhosa da dificuldade. Ambas as partes na disputa obtêm sua cota:
permite-se que a pulsão conserve sua satisfação e mostra-se um respeito apropriado pela
realidade. Mas tudo tem de ser pago de uma maneira ou de outra, e esse sucesso é
66
FREUD, S. Divisão do “eu” no processo de defesa. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v.
3). p. 3375.
47
alcançado ao preço de uma fenda no eu, a qual nunca se cura, mas aumenta à medida que o
tempo passa. As duas reações contrárias ao conflito persistem como ponto central de uma
divisão do eu.
67
Muito embora Freud aborde aí um processo próprio da perversão e especialmente da
formação do fetichismo, nem por isso deixa de esclarecer a operação própria da inquietação
infantil, aos moldes do que fizera nos Três ensaios para uma teoria da sexualidade, quando
aproxima o modo de gozo perverso da satisfação pulsional parcial da criança. Interessa-nos
fundamentalmente, na passagem supracitada, a divisão, a localização de um acontecimento
em que uma falta é admitida e, ao mesmo tempo, negada. Nessa negação, um subterfúgio,
um artifício, é acrescentado e uma representação é presentificado.
No Capítulo 11 de Psicologia das massas e análise do eu, intitulado Uma fase do
eu, são apresentadas explanações que vêm ao encontro da idéia segundo a qual persiste no
inconsciente uma atividade paralela, separada pela divisão que o recalcamento produz.
Apesar dessa separação, a parte excluída da consciência mantém-se ativa, fazendo retornar
à consciência, de modo transfigurado, o material simbólico posto de lado. Ali Freud
escreve:
No curso de nossa evolução, efetuamos uma separação de nossa existência mental em um
eu coerente e em uma parte inconsciente e recalcada que é deixada fora dele; ficamos
sabendo que a estabilidade dessa nova aquisição se acha exposta a abalos constantes. Nos
sonhos e neuroses, o que é assim excluído bate aos portões em busca de admissão, guardado
não obstante pelas resistências, e em nossa saúde desperta fazemos uso de artifícios
especiais para permitir que o que está reprimido contorne as resistências e o recebamos
temporariamente em nosso ego, para aumento de nosso prazer. Os chistes e o humor e, até
certo ponto, o cômico em geral, podem ser encarados sob esta luz.
68
67
FREUD, S. Divisão do “eu” no processo de defesa, p. 3376.
68
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu, p. 2601.
48
Nessa cisão o falo toma a forma que o define como tal e se constitui como operante
central em toda a dinâmica do inconsciente. E isso no sentido de que é com o complexo de
Édipo que o recalcamento secundário vai se dar e demarcar efetivamente a organização do
aparelho mental em dois sistemas — cada um com leis próprias de funcionamento — e
desse modo tornar efetiva uma cisão estrutural.
Uma saída astuta da criança para não abrir mão da sua satisfação é sempre uma
descarga relativa ao complexo. E isso, como sabemos, envolve necessariamente um objeto
incestuoso, meio através do qual a pulsão busca atingir a sua meta.
A trama das representações, nesse contexto, é arranjada no terreno das fantasias e
ligada ao afeto — muito freqüentemente, o medo, ou melhor, a angústia. Freud evoca o
mito grego de Cronos para falar disso e comentar o caso de um analisante. Ele diz: “o medo
do pai silenciava sobre o tema da castração; pela ajuda da regressão à fase oral, assumia a
forma de um medo de ser devorado pelo pai. Nesse ponto, é impossível esquecer um
fragmento da mitologia grega, que nos conta como Cronos, o velho Deus Pai, engoliu os
filhos e procurou engolir seu filho mais novo, Zeus, tal como os restantes, e como Zeus foi
salvo pela habilidade de sua mãe, que, posteriormente, castrou o pai.”
69
Nesse contexto, o pequeno artigo A cabeça da Medusa
70
destaca no mito grego o
complexo de castração e sua relação ao objeto materno. Afirma que, nas representações, a
Medusa aparece com o cabelo feito de cobras, que são símbolos fálicos e também
representam a genitália feminina envolta em pêlos. Olhar nos olhos escancarados da
Medusa petrifica, tal como o menino fica aterrorizado diante da castração materna. A
Medusa apresenta a castração e vela por ela a um só tempo.
69
FREUD, S. Divisão do “eu” no processo de defesa, p. 3377.
70
FREUD, S. A cabeça de Medusa. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3). p. 2697.
49
No Capítulo 3 trabalharemos sobre a castração como algo que diz respeito à noção
de objeto perdido, desenvolvida por Freud. Por ora ressaltamos a idéia de que a
identificação é a expressão mais remota de um laço emocional com outra pessoa e que ela
tem um papel fundamental no tempo anterior ao complexo de Édipo.
É interessante também notar que, uma vez estando posta para Freud a questão da
referência simbólica derradeira, em função da qual o inconsciente procede por
deslocamento e condensação, o estatuto da significação adquire para a psicanálise uma
importância crucial, já que perpassa tanto a teoria quanto a técnica, pondo em cheque o
procedimento analítico como aquilo que deve se distanciar da sugestão. Buscando resolver
exatamente isso, Freud faz girar em torno da premissa do falo o complexo nuclear das
neuroses.
Ao final do artigo Análise terminável e interminável, no capítulo seguinte às
elaborações relativas à formação de psicanalistas, Freud acentua uma dificuldade com a
qual a clínica se depara nas análises de ambos os sexos e sublinha tal dificuldade com a
contundente expressão de repúdio à feminilidade
71
.
Entretanto, Freud lembra que, em função das investigações analíticas, resta sustentar
que no inconsciente perdura um saber estranho ao modo habitual de o eu proceder com
representações. Esse saber parece afirmar a ubiqüidade do falo e, uma vez posto em questão
pela análise, faz emergir a potência de um vazio que lhe é subjacente. A esse vazio Freud
chamou de castração e insistiu que ela é determinante no curso de uma psicanálise. Mesmo
assim, e a menos que tivesse postulado a existência de um vazio como princípio lógico
fundamental, continua em parte enigmática a sustentação de que falo-castração regem as
71
FREUD, S. Análise terminável e interminável. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3).
p. 3364.
50
operações inconscientes. O avanço, no sentido de dar contorno teórico a ambos, parece
exigir aprofundamento na teoria das pulsões, mais especificamente da pulsão de morte e,
assim, colocar em debate o estatuto do objeto da pulsão.
51
Capítulo II
A PULSÃO E SEU OBJETO
Ao longo do capítulo anterior, trabalhamos o conceito de falo, a premissa da
universalidade do falo e sua constituição no interior de um debate sobre as fantasias
inconscientes por um lado e o imbricamento existente entre os conceitos de narcisismo e
identificação por outro. Vimos também que o eu é considerado por Freud como um objeto
privilegiado na economia libidinal. É a identificação que viabiliza ao eu a possibilidade de
ele se constituir como um objeto, na exata medida em que a identificação preserva o objeto
para o id. Restou-nos uma interrogação sobre o objeto da pulsão. Por isso, este segundo
capítulo visa apresentar o conceito de pulsão de morte no contexto geral da obra freudiana,
introduzindo, assim, a problemática relativa ao objeto da pulsão. O desenvolvimento
teórico a propósito da pulsão e do objeto nos auxiliará, mais adiante, a fundamentar a noção
de trauma, do afeto de angústia e, conseqüentemente, a concepção psicanalítica da
castração e do falo. Para tanto, buscaremos colocar em primeiro plano o tema da repetição e
sua função determinante para o engendramento do conceito de pulsão de morte. Esse é o
caminho adotado por Freud, em 1914, com o texto Recordar, repetir e elaborar, cujas
observações sustentarão a sua última teoria das pulsões.
Logo no início do artigo, encontramos uma distinção entre duas modalidades de
recordação no tratamento analítico: (1) a recordação de eventos retidos na memória e nos
quais o paciente não se deteve; uma vez lembrados, ele afirma que sempre soube do
assunto, só que até então não havia se detido nele; (2) a recordação de um grupo especial de
acontecimentos não retidos na memória, que dizem respeito às experiências que o sujeito
52
não teve nem mesmo condições de esquecer, pois não haviam sido levadas ao seu
conhecimento quando ocorreram.
72
Nesse grupo se encontram fantasias, processos de
inferência, sentimentos, afetos e conexões entre pensamentos. Aqui, é impossível a
recordação, pois se trata de eventos primitivamente experimentados. Amiúde, tais eventos
não são compreendidos pelo sujeito no momento de sua ocorrência, e sim posteriormente.
Na experiência analítica, esse tipo de acontecimento tende a ser uma parte fundamental da
transferência ao analista e constitui precisamente a chamada neurose de transferência.
O termo de comparação entre os dois grupos de “rememoração”, Freud o estabelece
tendo em vista a recordação suscitada no antigo tratamento hipnótico, portanto resultado da
sugestão. Chega a dizer que deve algum tributo à técnica hipnótica por ela ter apresentado,
isolada e esquematicamente, dois procedimentos da análise: do ponto de vista descritivo, a
supressão das lacunas da recordação e, dinamicamente, o vencimento das resistências do
recalque. Foi a partir desses procedimentos que pôde criar situações mais complexas para o
tratamento, fazendo notar que o sintoma apresenta, no curso das sessões, a atualização, a
posta em cena da realidade do inconsciente.
Logo no início do seu trabalho com as histéricas, Freud se deu conta de que o
esquecimento subtraía-lhes a verdade da neurose. Ficou claro para ele que, em
transferência, algo do passado insistia em se atualizar e que este algo continha a chave para
a resolução dos sintomas. Mais tarde irá dizer que essa transferência é um fragmento da
repetição e o que se repete são os clichês da infância em seus pontos mais passionais e
determinantes para o esquecimento ou para o silêncio. A esse respeito, comenta:
72
FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2). p.
1684.
53
Com a nova técnica, o curso da análise faz-se muito mais complicado e trabalhoso; alguns
casos oferecem a princípio a serena facilidade habitual do tratamento hipnótico, ainda que
não tardem a tomar outro rumo, mas geralmente as dificuldades surgem desde o início. E
tomando em consideração este último tipo para caracterizar a diferença, podemos dizer que
o analisado nada recorda do esquecido ou recalcado, mas vive-o novamente. Não o
reproduz como recordação, mas em ato; repete-o sem saber, naturalmente, que repete.
73
O analisante se coloca em relação ao analista mostrando em ato a realidade psíquica
e não falando sobre ela, pois se trata de um evento compulsivo, coercitivo e inconsciente.
Essa compulsão de repetir substitui o impulso de recordar e faz com que atue
preponderantemente fantasias e acontecimentos pretéritos relativos ao complexo de Édipo,
tornando-os eventos atuais. Quanto maior a resistência, maior a repetição que substitui o
recordar. O manejo da transferência é o instrumento necessário para refrear a compulsão à
repetição, transformando-a num motivo para recordar e fornecendo aos sintomas um novo
significado transferencial. Nesse sentido, a repetição substitui uma neurose qualquer por
uma neurose de transferência passível de ser tratada.
Retomando essa notação freudiana, Safouan considera que isso que escapa à
rememoração e se repete é a “conexão”, pois aquilo que é importante se encontra
deslocado, por exemplo, no fracasso da pulsão epistemofílica. E no entanto, o fracasso da
pulsão epistemofílica está no princípio mesmo dessa pulsão, porque ela se sustenta na
afirmação fantasmática da presença velada do falo, lá mesmo onde ele não aparece; pois é
aí onde está ausente que o falo se afirma com todo o seu vigor.
74
Não é por acaso que, para designar essa pulsão, à qual atribui o desejo de saber, Freud fala
de Schaulust, termo que designa tanto o desejo quanto o gozo de ver. Em outras palavras,
não há um sucesso por esperar das investigações sexuais, mas em compensação, há um
gozo que seria exato chamar de “gozo de nada ver”. Donde evidencia-se que a resistência
73
FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar, p. 1683.
74
SAFOUAN, M. A transferência e o desejo do analista. Campinas: Papirus, 1991. p. 61.
54
opõe-se, muito mais que à rememoração, a que o sujeito tome conhecimento do seu
fantasma ou de sua “teoria infantil”. A paixão pela ignorância é a verdade do desejo de
saber.
75
E, de fato, é anterior ao caso Dora a observação de que a transferência, além de
servir de mola propulsora às análises, também é tomada como resistência à cura. Freud vai
se dando conta posteriormente de que, quanto mais intensos se tornam o amor e o ódio
dirigidos ao analista, tanto mais amplamente a recordação tende a ser substituída pelo agir
da repetição.
O analisante pode não lembrar que, na história do seu complexo de Édipo, se
manteve rebelde em relação à autoridade paterna e, na atualidade, repete com seu analista,
na relação transferencial, tal situação, permanecendo hostil e aferroadamente obstinado
contra a regra fundamental da associação livre. Pode ainda nada recordar do fracasso em
que redundaram suas primeiras investigações sexuais infantis e repete na transferência um
fracasso no saber de si mesmo no curso das sessões. Uma paciente, por exemplo, pode não
lembrar do amor edípico vivido em relação ao pai e revive-o com seu analista, sem sabê-lo.
Assim, o sujeito repete no presente experiências infantis passadas, de modo que, não sendo
rememorado e falado, o inconsciente se presentifica numa expressão atuada, como uma
descarga motora inconsciente.
Freqüentemente, quando comunicamos a um paciente de vida muito rica em acontecimentos
e longo histórico patológico a regra psicanalítica fundamental e esperamos uma torrente de
confissões, nos deparamos com seu asseguramento de não saber o que dizer. Cala e afirma
que nada lhe ocorre. Tudo isso nada mais é, naturalmente, que a repetição de uma atitude
homossexual que se oferece como resistência a toda recordação. Enquanto o sujeito
permanece submetido ao tratamento, não se libera desta compulsão de repetição, e
acabamos por compreender que este fenômeno constitui sua maneira especial de recordar.
76
75
Loc. Cit.
76
FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar, p. 1685.
55
Freud acrescenta ainda que, no percurso da análise, a repetição perdura e que, ao
nos atermos a tal observação, logo chegamos à conclusão de que esta é a via, talvez a única,
de ser posto em análise um material imprescindível à cura. O analisante repete sem saber
que repete, e este é o modo de rememoração mais específico da análise, pois abre a
possibilidade do aparecimento de um fenômeno estreitamente vinculado às pulsões: as
resistências, que tornam manifesto o arcabouço de uma fantasia inconsciente encenada na
concretude da relação do analisante com o seu analista. Essa modalidade da recordação só é
possível pela atualização do inconsciente em ato e não em effígie.
Aqui, o destino do afeto no processo do recalque marca um modo particular de
relação com a pulsão e adquire qualidades sensoriais, notadamente as sensações de
desprazer. Algumas vezes Freud expressou tal concepção ao afirmar que encontramos no
sintoma neurótico uma satisfação libidinal substitutiva e também uma satisfação advinda do
sentimento de culpa pelo mesmo desejo libidinoso. Faz lembrar ainda que os produtos
psíquicos têm o caráter de conterem sentidos diversos e sobredeterminados em um só
conteúdo. Além disso, é nos afetos e sentimentos que encontramos o fracasso do
recalcamento e a possibilidade de sua investigação:
Recordemos que o motivo e a intencionalidade do recalque é a de evitar o desprazer. Disso
deduzimos que o destino do montante de afeto da representação é muito mais importante
que o da idéia, circunstância decisiva para a nossa concepção do processo do recalque.
Como o recalque não consegue evitar o surgimento de sensações de desprazer ou de
angústia, podemos dizer que fracassou, ainda que haja conseguido o seu fim no que diz
respeito à idéia. Naturalmente que o fracasso do recalcamento nos interessa mais que o seu
sucesso, o qual escapa quase sempre às nossas investigações.
77
77
FREUD, S. O recalque. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2). p. 2057.
56
O destino do fator quantitativo nos afetos, principalmente na angústia, alcança
importantes desdobramentos, sobretudo no trabalho realizado pelo analisante de aperceber-
se das reações da repetição e na conscientização de seu alicerce nas resistências à regra
fundamental. Ademais, a angústia é por excelência o fato que se aproxima da força
pulsional postulada por Freud.
Mas, afinal, o que é que o paciente repete? Repete precisamente, diz-nos Freud
78
,
aquilo que incorporou ao seu ser a partir das fontes do recalcado, isto é, suas inibições,
tendências inúteis, traços de caráter patológicos; repete necessariamente fracasso e
desprazer. Há três considerações a serem feitas a partir dessa resposta freudiana: (a) o
assunto relativo à repetição, inicialmente enfatizado por Freud, retoma questões tão antigas
quanto a própria psicanálise: a teorização a respeito do conceito de trauma, justamente o
tema que inaugura as reflexões de 1920, com Mais além do princípio de prazer; (b) em
continuidade ao tema da compulsão à repetição, Freud se detém no tema da destrutividade
sob a expressão do sadismo e do masoquismo, especialmente imbricados com a consciência
moral e, portanto, com a estrutura do supereu; (c) o paciente repete um fracasso, e essa
repetição está relacionada com o conceito de castração e, desse modo, com a angústia e a
noção de “alteração do eu”, proposta por Freud. Com esses itens, estamos na trama das
observações e idéias concernentes à pulsão de morte, tal como abordaremos a seguir. Antes
disso é interessante salientarmos à luz das considerações de Moustapha Safouan, que o
fundamental no esquema da repetição é a temática da escolha de objeto. E que para se
convencer disso, basta alguém se perguntar porque a regulação gestáltica — que é
suficiente, salvo engano experimental, para guiar o instinto sexual no animal — não regula
78
FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar, p. 1689.
57
nada entre os seres humanos. O esquema aproveitável para entendermos a repetição,
“repousa na noção de um Lust ou de um gozo que se situa mais além dos limites naturais do
prazer, e que determina a repetição como repetição dos fracassos. (...) A partir daí,
apercebemo-nos que a transferência é o amor por um objeto que, para o que se refere à
gratificação dessa Lust, engana; a qual permite ao eu, segundo identificação, construir-se
como Lust-Ich, de acordo com a expressão de Freud.
79
Pondo em debate a repetição, Mezan
80
considera que ela é, exatamente, a condição
de possibilidade da pulsão, aquilo sem o que ela não poderia se reproduzir uma vez extinto
o seu ímpeto inicial. E Freud descobre que a origem, entendida como causa ante, é um
falso problema. É a clínica que lhe fornece os elementos essenciais para o desvelamento da
dimensão repetitiva. E isso porque, a repetição é também resistência e aponta inclusive para
o movimento do isso, o pólo do psiquismo em conexão mais direta com o pulsional. “A
situação analítica comprova assim o funcionamento da repetição como condição de
possibilidade da pulsão: que é a transferência senão a dissolução do passado e do presente
num gesto de amor? Não é por acaso que a situação transferencial proporciona a Freud o
exemplo mais nítido da tendência à repetição.”
81
O conceito de pulsão de morte é, antes de qualquer coisa, uma conseqüência das
investigações relativas à repetição e sua relação com a castração. Assim, de certa forma, do
ponto de vista da experiência, a pulsão foi tematizada por Freud como o elemento último
que constitui os sintomas. Evidentemente que a destrutividade teve crucial importância nas
considerações freudianas a respeito da pulsão. Contudo, é a compulsão à repetição, a
Wiederholungzwang, que desempenha um papel nodal e de abertura para a alteração na
79
SAFOUAN, M. A transferência e o desejo do analista, 1991. p. 62.
80
MEZAN, R. Freud: a trama dos conceitos. São Paulo: Perspectiva, 1998. p. 259.
81
Id.
58
teoria das pulsões. A partir de Mais além do princípio de prazer, a repetição é estreitamente
vinculada ao traumático e ao complexo de Édipo. Nesse texto, Freud diz ter concluído que
a compulsão à repetição rememora experiências do passado que não incluem possibilidade
alguma de prazer e que nunca, em tempo algum, trouxeram satisfação, mesmo para
impulsos desde então recalcados. O florescimento precoce da vida sexual infantil es
condenado à extinção porque os desejos são incompatíveis com a realidade e com a etapa
inadequada de desenvolvimento a que a criança chegou. Assim, o ápice da sexualidade
infantil chega na mais completa contradição com as expectativas montadas de acordo com
o princípio de prazer, suscitando deste modo, os mais dolorosos sentimentos. E é este
fracasso da potência fálica que o analisante repete no tratamento:
Os pacientes repetem na transferência todas essas situações indesejadas e emoções penosas,
revivendo-as com a maior engenhosidade. Procuram ocasionar a interrupção do tratamento
enquanto este ainda se acha incompleto; imaginam sentir-se desprezados mais uma vez,
obrigam o médico a falar-lhes severamente e a tratá-los friamente; (...) Nenhuma dessas
coisas pode ter produzido prazer no passado, e poder-se-ia supor que causariam menos
desprazer hoje se emergissem como lembranças ou sonhos, em vez de assumirem a forma
de experiências novas. Constituem, naturalmente, as atividades de pulsões destinadas a
levar à satisfação, mas nenhuma lição foi aprendida da antiga experiência de que essas
atividades, ao contrário, conduziram apenas ao desprazer. A despeito disso, são repetidas,
sob a pressão de uma compulsão.
82
Há também a repetição fora do tratamento analítico, na conduta humana em geral,
quando o que é posto em relevo são episódios nos quais o sujeito é levado repetidamente a
um desfecho trágico concernente ao seu destino. Esses fenômenos causam a impressão de
uma influência demoníaca regendo a vida.
82
FREUD, S. Mais além do princípio de prazer. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3).
p. 2516.
59
Freud apresenta, além disso, a observação de uma brincadeira singular de seu neto
de um ano e meio de idade. Essa brincadeira consistia em atirar um carretel amarrado a um
barbante e emitir sons de acordo com a proximidade ou distância do carretel. Assim, para
ausente, o menino pronunciava “ooh!”; para presente, “aah!”. A encenação lúdica descrevia
sistematicamente desaparecimento e retorno. Com um detalhe: assistia-se com maior
freqüência a seu primeiro ato, o “ooh!”, que era incansavelmente repetido como um jogo
em si mesmo. Freud interpreta esse movimento lúdico como ocorrendo em função da falta
da mãe, que freqüentemente se ausentava para cumprir seus afazeres. Todo o jogo, uma
realização simbólica, ou seja, cultural, era uma renúncia à satisfação pulsional expressa no
fato de não protestar quando a mãe se afastava do aposento. A esse respeito, acrescenta:
(...) é indiferente, do ponto de vista de ajuizar a natureza efetiva do jogo, saber se a própria
criança o inventara ou o tirara de alguma sugestão externa. Nosso interesse se dirige para
outro ponto. A criança não pode ter sentido a partida da mãe como algo agradável ou
mesmo indiferente. Como, então, a repetição dessa experiência aflitiva, enquanto jogo,
harmonizava-se com o princípio de prazer?
83
Tal como a repetição na transferência, como é possível uma experiência que nunca
foi prazerosa e jamais apresenta a possibilidade de vir a sê-lo, insistir em reavivar-se? E
ainda, como esclarecer os casos clínicos em que, escolhendo o sofrimento à cura, o paciente
reage negativamente ao tratamento?
Na maior parte dos casos, a compulsão à repetição não atua completamente
sozinha, mas mesclada com os propósitos do princípio de prazer. Melhor dizendo, a
compulsão à repetição e a satisfação pulsional parecem convergir intimamente. Entretanto,
a constatação de que há sonhos que contrariam a realização de desejos, cuja forma mais
83
FREUD, S. Mais além do princípio de prazer. p. 2512.
60
aguda são os sonhos traumáticos, vai abalar a tese segundo a qual o princípio de prazer
domina o curso dos eventos psíquicos.
Numa reflexão mais amadurecida, porém, seremos forçados a admitir que, mesmo nos
outros casos, nem todo o campo é abrangido pelo funcionamento das familiares forças
motivadoras. Resta inexplicado o bastante para justificar a hipótese de uma compulsão à
repetição, algo que parece mais primitivo, mais elementar e mais pulsional do que o
princípio de prazer que ela domina. Mas, se uma compulsão à repetição opera realmente na
mente, ficaríamos satisfeitos em conhecer algo sobre ela, aprender a que função
corresponde, sob que condições pode surgir e qual é sua relação com o princípio de prazer,
ao qual, afinal de contas, até agora atribuímos dominância sobre o curso dos processos de
excitação na vida mental.
84
Freud aventa a possibilidade de a repetição estar operando independentemente do
princípio de prazer. Ele vai se perguntar se não haveria algo “mais primitivo, elementar que
o reinado do princípio de prazer, uma pré-história de tal princípio”.
85
Destarte, do ponto de
vista metapsicológico, o conceito de pulsão de morte encontra-se inserido no plano de
pressupostos econômicos, direcionados a explicitar acontecimentos que, escapando às
teorizações a respeito das leis de operacionalização do inconsciente, introduzem uma
grande alteração no contexto geral dos demais conceitos.
É interessante notar que essa alteração segue, no pensamento metapsicológico, uma
rota energética peculiar e que Lacan comenta dizendo que a pulsão é pensada no interior de
uma reflexão, possível tão somente a partir do advento das máquinas da revolução
industrial. Assim, ele sustenta a tese de que o pensamento de Freud não é um humanismo,
que o homem não está exatamente no homem
86
e afirma que a máquina encarna a mais
84
FREUD, S. Mais além do princípio de prazer, p. 2517.
85
Ibid., p. 2513.
86
LACAN, J. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 96. (O
seminário, Livro 2).
61
radical atividade simbólica no homem. É na relação às maquinas que o conceito de energia
é forjado. E acerca da biologia freudiana ele diz que nada tem a ver com a biologia:
Trata-se de uma manipulação de símbolos no intuito de resolver questões energéticas, como
manifesta a referência homeostática, a qual permite caracterizar como tal, não só o ser vivo,
mas também o funcionamento de seus mais importantes aparelhos. É em torno desta
questão que gira a discussão inteira de Freud — energeticamente, o que é o psiquismo? É aí
que reside a originalidade do que em sua obra se chama o pensamento biológico. Ele não
era biólogo, não mais que qualquer um dentre nós, mas ele realçou a função energética em
toda extensão de sua obra.
Se soubermos revelar o sentido deste mito energético, veremos sair o que, desde a origem e
sem que se entendesse, estava implicado na metáfora do corpo humano como máquina.
Veremos manifestar-se aí, um certo para além da referência inter-humana, que é,
propriamente, o para além do simbólico.
87
Freud descobre o funcionamento do símbolo em estado dialético, em estado
semântico, nos seus deslocamentos... funcionando sozinhos na máquina de sonhar. Assim, a
teoria psicanalítica supõe que os processos psíquicos são regulados automaticamente pelo
princípio de prazer. O curso dos eventos psíquicos tem sua origem em tensões de natureza
desprazerosa e toma uma direção cujo resultado esperado é o de diminuir tal
tensionamento. Trata-se de evitar o desprazer e/ou levar à consecução do prazer. Quanto ao
princípio de realidade, é um princípio de prazer modificado: visa aos mesmos fins que seu
predecessor e funciona paralelamente, constituindo, desse modo, a outra faceta da divisão
psíquica. O princípio de realidade, como sabemos, faz parte da constituição do eu, está
envolvido com a função consciente e opera como um dos pólos sempre em questão no
conflito com as pulsões sexuais. É nesse conflito que entra em operação o recalcamento,
uma modalidade de defesa que também se destina à preservação dos objetivos do princípio
de prazer. Quanto ao desprazer, observa Freud:
87
LACAN, J. O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 101. (O
seminário, Livro 2).
62
A maior parte do desprazer que experimentamos é um desprazer perceptivo. Esse desprazer
pode ser a percepção de uma pressão por parte de pulsões insatisfeitas, ou ser a percepção
externa do que é aflitivo em si mesmo ou que excita expectativas desprazerosas no aparelho
mental, isto é, que é por ele reconhecido como um ‘perigo’. A reação dessas exigências
pulsionais e ameaças de perigo, reação que constitui a atividade apropriada do aparelho
mental pode ser então dirigida de maneira correta pelo princípio de prazer ou pelo princípio
de realidade pelo qual o primeiro é modificado. Isso não parece tornar necessária nenhuma
limitação de grande alcance do princípio de prazer. Não obstante, a investigação da reação
mental ao perigo externo encontra-se precisamente em posição de produzir novos materiais
e levantar novas questões relacionadas com nosso problema atual.
88
Para o exame da natureza do perigo, será considerada a diferença entre o susto, o
medo e a angústia: no susto, não há preparação alguma para o surgimento de algo perigoso,
e o fator surpresa é sua marca distintiva; no medo, há uma reação à presença de um objeto
perigoso identificado como tal; na angústia, temos uma expectativa e uma reação frente a
um perigo cujo objeto é impreciso e, como veremos posteriormente, deslinda aspectos
essenciais relativos ao traumático e à castração.
O tema do perigo surge na elaboração teórica de Freud porque a observação o fazia
notar que, no caso dos sonhos da neurose traumática, por exemplo, o sonhador é levado a
apresentar repetidamente a cena do trauma. Isso parece contradizer a tese de que os sonhos,
a serviço do princípio de prazer, são realizações de desejos. Se o fossem, tenderiam a
apresentar a cena traumática como nunca ocorrida ou tenderiam a remeter o sonhador a
uma situação em que estaria restabelecido e superado o trauma, mas tal não acontece. A
mesma consideração vale para a compulsão à repetição no tratamento que refaz eventos
passados que nunca trouxeram prazer, nos jogos infantis que encenam eventos
desprazerosos, traumáticos, e no engendramento repetido de eventos trágicos no destino da
vida humana.
88
FREUD, S. Mais além do princípio de prazer, p. 2509.
63
O trauma em questão na neurose traumática descreve a emergência abrupta,
inesperada, de um evento cujo impacto tem proporções acima da capacidade psíquica de
recebê-lo. Dado o caráter impactante do evento, Freud situa a problemática do traumatismo
numa teorização econômica dos processos psíquicos e, antes mesmo do texto de 1920,
define o trauma do seguinte modo:
Na realidade o termo ‘traumático’ não possui senão um sentido econômico, pois o
utilizamos para designar aqueles acontecimentos que, chegando à vida psíquica, em
brevíssimos instantes com um enorme incremento de energia, tornam impossível a
supressão ou assimilação da mesma por meios normais e provocam deste modo,
perturbações no aproveitamento da energia.
89
O sistema da consciência se encontra localizado numa fronteira entre excitações
exteriores e interiores. Além disso, esse sistema se distingue pelo fato de que as excitações
não fazem nele uma transformação permanente — coisa que caracterizaria a memória —,
mas se esvaem na provisoriedade processual, que é a recepção das constantes excitações.
Para tanto, a consciência e os órgãos dos sentidos a ela vinculados teriam um anteparo, um
“escudo protetor”, que possibilitaria a recepção das excitações exteriores. Essa proteção
contra os estímulos é, para os organismos vivos, uma função quase mais importante do que
a recepção desses estímulos. Tal proteção deve, sobretudo, resguardar os modos especiais
de transformação de energia contra os efeitos ameaçadores das enormes energias em ação
no mundo externo. Esses efeitos ameaçadores tendem, assim, ao nivelamento e
subseqüentemente à extinção por meio de uma derivação motora. O principal intuito da
recepção de estímulos é descobrir a direção e a natureza dos estímulos externos; para isso, é
89
FREUD, S. A fixação do trauma – o inconsciente. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v.
2). p. 2294.
64
suficiente apanhar pequenos espécimes do mundo externo, para classificá-los em pequenas
quantidades
90
— os pseudópodes da libido objetal teorizados no narcisismo.
Assim sendo, os efeitos da neurose traumática são ocasionados pela ruptura da
proteção que defende o aparelho psíquico contra as excitações exteriores. A condição mais
importante para a neurose traumática é a falta de disposição para a angústia. Como
desenvolveremos no próximo capítulo, a angústia é um afeto que opera como defesa contra
a possibilidade do trauma e, quando presente na forma de sinal de alarme, prepara o
aparelho para a iminência de um evento traumático. Deixaremos por ora o tema da
angústia; importa agora continuarmos na esteira das reflexões freudianas a respeito das
excitações endógenas e das defesas contra elas.
No sentido do interior, não pode haver esse escudo; as excitações das camadas mais
profundas estendem-se para o sistema diretamente e em quantidade não reduzida, até onde
algumas de suas características dão origem a sentimentos da série prazer-desprazer. As
excitações que provêm de dentro, entretanto, em sua intensidade e em outros aspectos
qualitativos — em sua amplitude, talvez — são mais adequadas ao funcionamento do
sistema do que os estímulos que afluem desde o mundo externo. Esse estado de coisas
produz dois resultados definidos. Primeiramente, os sentimentos de prazer e desprazer
prevalecem sobre todos os estímulos externos. Em segundo lugar, é adotada uma maneira
específica de lidar com quaisquer excitações internas que produzam um aumento demasiado
grande de desprazer; há uma tendência a tratá-las como se atuassem, não de dentro, mas de
fora, de maneira que seja possível colocar o escudo contra estímulos em operação, como
meio de defesa contra elas. É essa a origem da projeção, destinada a desempenhar um papel
tão grande na causação dos processos patológicos.
91
Há estimulações endógenas de natureza distinta, mas a estimulação interna emanada
das pulsões é o que Freud caracteriza como estímulo para o psíquico, que se faz
representado em idéias e afetos. A pulsão se diferencia de um estímulo pelo fato de surgir
de fontes de estimulação situadas dentro do corpo, de atuar como força constante e de não
90
FREUD, S. Mais além do princípio de prazer, p. 2519.
91
FREUD, S. Mais além do princípio de prazer, p. 2520.
65
se poder evitá-la pela fuga, tal como é possível fazer com um estímulo externo. Em uma
pulsão podemos distinguir a origem, o objeto e a finalidade. Sua origem é um estado de
excitação do corpo, sua finalidade é a remoção dessa excitação, que pode ser atingida no
próprio corpo, mas geralmente inclui um objeto externo, com relação ao qual a pulsão
atinge sua finalidade externa; sua finalidade interna permanece sendo a modificação
corporal que é sentida como satisfação. O objeto, seja ele fantasmático ou existente no
exterior, é aquilo através do qual a pulsão encontra a possibilidade de chegar ao seu fim. No
caminho que vai desde sua origem até sua finalidade, a pulsão torna-se atuante
psiquicamente com certa quantidade de energia que faz pressão em determinada direção;
dessa pressão deriva seu nome: Trieb.
92
A pulsão é força de trabalho para o psíquico e sua energia é caracterizada como
livremente móvel, tendente à descarga motora. A pulsão sempre se satisfaz pela via de uma
descarga. E, dado que os impulsos partem de fonte corporal e são livremente móveis,
caberia então, às camadas superiores do aparelho torná-los ligados. A ligação da energia
que aflui ao aparelho consiste na transformação do estado de livre curso para o estado de
repouso ou ligado. O malogro nessa transformação faria surgir um processo análogo ao
encontrado nos sonhos da neurose traumática que apresentam repetidamente uma cena
angustiante, levando o sonhador ao despertar. Aqui, porém, o traumático adviria de uma
fonte de estimulação interna e não mais externa; esse é, em grande parte, um aspecto
importante nas explicações a respeito da etiologia das neuroses de transferência.
Em Mais além do princípio de prazer, uma questão a que Freud procura responder
é: como a pulsão é dominada ou ligada no plano psíquico, como ela é modificada e tornada
92
FREUD, S. Angústia e vida pulsional, p. 3155.
66
representante? Como podemos notar, esta questão aponta para uma dimensão do psíquico e
outra fora do psíquico.
Deste modo, a resposta desta questão incide sobre o tema das representações
pulsionais. E não apenas isso mas também sobre as pré-condições para a constituição do
princípio de prazer. É que há um trabalho, diz Freud, que o aparelho psíquico precisa
realizar antes que o princípio de prazer possa se estabelecer como tal e aí então, passar a
dominar o funcionamento mental. Este trabalho é chamado de Bindung, ligação. Esta
ligação diz respeito à passagem de um evento que está fora do campo das representações,
para a inscrição das mesmas no plano psíquico.
O tornar “ligado” ou representado a pulsão é uma condição prévia ao
estabelecimento dos dois princípios do funcionamento mental, uma tarefa a ser cumprida
pelo aparelho psíquico ainda em fase de estruturação. A inscrição da pulsão no psiquismo
— sob a forma de representante — e sua subseqüente fixação, são pré-condições para a
existência do automatismo do princípio de prazer. Só depois de terem sido feitas essas
modificações nos investimentos — de livre para fixo ou ligado — é que se poderia impor a
primazia do princípio de prazer ou de realidade. E isso porque ambos operam a partir de
representações; o princípio de prazer, constituído de representações-de-coisa e o princípio
de realidade, levando em conta fundamentalmente, as representações-de-palavra.
A Bindung descreve uma operação que é possível em virtude do recalcamento
primário e que analisaremos no capítulo quatro. Importa de imediato frisar, que a tarefa de
ligar a dispersão pulsional, além de não estar em oposição ao princípio de prazer, pois
ocorre independente dele e sem levá-lo em conta para nada, descreve a própria pré-história
do princípio mais fundamental que regula o psiquismo. Assim, a repetição, descreve aquilo
67
que é mais próprio à pulsão e aponta para um trabalho mais primitivo, independente e
“mais além” do princípio de prazer.
E ainda, longe de ocorrer tão somente na pré-história da constituição do princípio de
prazer, esse trabalho se faz presente no fenômeno da compulsão à repetição e se atualiza de
modo absolutamente anacrônico no cotidiano da clínica. Notemos inclusive, que o
mencionado jogo do “fort-da” fala exatamente da apropriação simbólica por parte da
criança, de um acontecimento sensorialmente impactante e relativo a uma ausência. Esta
apropriação transcorre num universo de representações: “ooh!-aah!”; “fort!-da!”; “lá!-cá!”.
Este par em oposição ausência-presença repetido e insistentemente encenado,
fornece ao neto de Freud os elementos para a constituição de uma ordenação simbólica. A
pré-história do princípio de prazer, mítica certamente, concerne então, ao vazio de
representações. Cabe aqui assinalar que algumas vezes ao longo de sua teorização, Freud
diz que a pulsão de morte é silenciosa. O novo dualismo pulsional fica assim, adscrito a
Eros que está inserido no campo das representações e pulsão de morte, terreno da ausência
de representações. Tal ausência fundamenta o conceito de castração-falo e será abordada
mais especificamente no próximo capítulo ao tematizarmos a angústia.
E ainda, a respeito dessa teorização a propósito da pré-história do princípio de
prazer, Garcia-Rosa, em Acaso e repetição em psicanálise, comenta que, segundo Freud, o
que há nesse tempo mítico e primevo, anterior ao estabelecimento do princípio de prazer, é
tão somente prazer de órgão — Organlust. Anteriormente a qualquer organização do
psíquico em sistemas, as pulsões parciais se satisfazem de forma auto-erótica, sem levar em
conta as demais pulsões e sem obedecer a qualquer coisa que possa ser considerada
“princípio”. Não há nenhuma região do corpo que seja essencialmente caracterizada como
68
erógena, nem há objeto que responda especificamente pela satisfação. E ainda acrescenta o
seguinte:
O que há inicialmente é uma superfície corporal sobre a qual o diferencial prazer-desprazer
se fará com absoluta independência de qualquer princípio organizador. Assim, não é o
princípio de prazer que funda o prazer, mas o contrário, é o prazer o que se erigirá em
princípio. A passagem do prazer entendido como processo psicológico para o prazer
entendido como princípio se daria em função da ligação (Bindung), isto é, por uma
contenção ao livre escoamento das excitações, transformando o estado de pura dispersão em
estado de integração (transformação de energia livre em energia ligada). Esse estado de
pura dispersão das excitações, anterior à instauração do princípio de prazer e seu
complementar, o princípio de realidade, é evidentemente um estado hipotético e que só
pode ser pensado recorrentemente.
93
As manifestações da compulsão à repetição que ocorrem nas primeiras atividades da
vida mental infantil, bem como na neurose de transferência que se instala no curso do
trabalho analítico, apresentam em alto grau um caráter pulsional e, quando atuam em
oposição ao princípio de prazer, adquirem a aparência de uma força ‘demoníaca’. Então, a
pergunta que se impõe é: de que modo a pulsão se relaciona com a compulsão à repetição?
Como o predicado de ser ‘pulsional’ se relaciona com a compulsão à repetição?
A resposta é que a pulsão é uma tendência à reconstrução de um estado anterior. Na
metáfora de cunho metafísico que Freud apresenta no Mais além, trata-se de um empuxo,
inerente à vida orgânica, de refazer um estado que a entidade viva foi obrigada a abandonar
sob a pressão de forças externas perturbadoras, ou seja, a expressão da inércia inerente à
vida orgânica, a inclinação para retornar à quietude inorgânica.
94
Richard Wollheim faz notar que o pensamento de Freud, no que tange à repetição,
muda radicalmente em 1920:
93
GARCIA-ROZA, L. A. Acaso e repetição em psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. p. 47.
94
FREUD, S. Mais além do princípio de prazer, p. 2525.
69
Ele agora podia discernir no fenômeno da repetição, duas tendências psíquicas. Em
primeiro lugar, de que há a tentativa do psíquico para elaborar uma impressão, de modo a
dominá-la, e deste modo, posteriormente, extrair prazer dela — em outras palavras, um
trabalho que é anterior, embora não em oposição ao princípio de prazer. Em segundo lugar,
de que realmente há uma repetição “além”, isto é, inconsistente com o princípio de prazer.
Pois, se alguma medida de repetição é um elemento necessário, para ligar a energia ou a
adaptação, no entanto quando excessiva, a repetição toma um sentido de abandonar
qualquer adaptação e restabelecer posições psíquicas mais arcaicas ou menos evoluídas.
Combinando este discernimento com a hipótese de que toda repetição é uma forma de
descarga, Freud chegou à consideração de que a compulsão (como oposta à tendência) à
repetição pode ser vista como uma tentativa de restaurar um estado que é tanto primitivo
quanto marcado pelo escoamento total da energia, isto é, a morte.
A compulsão à repetição, assim, forneceu não somente a evidência da pulsão de morte, mas
uma interpretação específica para a mesma, uma interpretação expressa com outro nome: o
princípio de Nirvana.
95
Avançando nessa busca, Freud vai explorar mais detidamente um tema antigo de
sua investigação — a destrutividade —, só que agora à luz da pulsão de morte. Dez anos
depois de Mais além do princípio de prazer, encontramos no Mal-estar na civilização a
pulsão de morte como empuxo à destruição. Nesse artigo, Freud comenta inclusive que as
idéias ali desenvolvidas decorrem do que já iniciara em Mais além do princípio de prazer e
que estará tão-somente concedendo maior relevo às mudanças operadas. Freud reconhece
que não é possível ignorar a ubiqüidade da agressão e destruição não eróticas, e que, em
conseqüência, o outro não é somente um possível auxiliar e objeto erótico, mas uma
tentação — serve para satisfazer nele a agressão, explorar sua força de trabalho sem
recompensá-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, despojá-lo de seu patrimônio,
humilhá-lo, infligir-lhe dores, martirizá-lo e assassiná-lo.
96
Desse modo, a pulsão de morte
é concebida como fundamento irredutível da maldade nos humanos, é concebida como
pertencente a um princípio autônomo e originário.
95
WOLLHEIM, R. Sigmund Freud. New York: Cambridge University Press, 1990. p. 212.
96
FREUD, S. O mal-estar na civilização, p. 3046.
70
Sei que no sadismo e no masoquismo sempre vimos diante de nós manifestações do pulsão
destrutiva (dirigidas para fora e para dentro), fortemente mescladas ao erotismo, mas não
posso mais entender como foi que pudemos ter desprezado a ubiqüidade da agressividade e
da destrutividade não eróticas e falhado em conceder-lhe o devido lugar em nossa
interpretação da vida. (O desejo de destruição, quando dirigido para dentro, de fato foge,
grandemente à nossa percepção, a menos que esteja revestido de erotismo.) Recordo minha
própria atitude defensiva quando a idéia de uma pulsão de destruição surgiu pela primeira
vez na literatura psicanalítica, e quanto tempo levou até que eu me tornasse receptivo a ela.
Que outros tenham demonstrado, e ainda demonstrem, a mesma atitude de rejeição,
surpreende-me menos, pois ‘as criancinhas não gostam’ quando se fala na inata inclinação
humana para a ‘ruindade’, a agressividade e a destrutividade, e também para a crueldade.
97
A destrutividade se faz cada vez mais presente nas elaborações teóricas de Freud a
partir das investigações concernentes ao narcisismo. Esse passo foi iniciado quando a
psicanálise sondou mais detidamente o eu como responsável pelo recalque, capaz de erigir
defesas protetoras e formações reativas. Um avanço importante foi a observação da
regularidade com que a libido é retirada do objeto e dirigida ao eu, especialmente sob a
forma de identificações com o objeto de investimento. Os estudos sobre a melancolia
trouxeram forte incremento a essas investigações; também a pesquisa relativa ao
desenvolvimento libidinal das crianças em suas primeiras fases levou à conclusão de que o
eu é o reservatório originário da libido, e desse reservatório ela se estende aos objetos.
Freud também se deu conta de que o próprio eu pode se encontrar numa situação de objeto
sexual, e a libido, que assim se aloja no eu, foi descrita como ‘narcísica’.
Narcisismo e agressividade caminham juntos. Comentamos no capítulo anterior, que
Freud postulou um narcisismo primitivo, identificado ao prazer, que exclui de si toda
sensação de desprazer. O eu é relacionado ao prazer auto-erótico e, por isso, amado; tudo
que está relacionado ao desprazer é exterior e odiado. Da perspectiva do surgimento do
97
FREUD, S. O mal-estar na civilização, p. 3050.
71
objeto, o ódio é mais antigo que o amor. Antes das alterações dos anos vinte, Freud
identificava a presença de um componente sádico na pulsão sexual. Já em Os três ensaios
para uma teoria sobre a sexualidade, referia-se ao sadismo-masoquismo como estando na
base do sofrimento neurótico; mas não somente, pois a melancolia como o salientamos,
expressa exemplarmente esta questão. O aspecto mais singular desse par antitético é
constituído pelo fato de as duas formas, ativa e passiva, ou masculina e feminina,
aparecerem na mesma pessoa e a melancolia também aponta para esta observação. A
agressividade, sob a forma de perversão, pode dominar toda a atividade sexual de um
indivíduo e é observada como componente importante das ‘organizações pré-genitais’.
Em O mal-estar na civilização, Freud salienta a dificuldade de apreensão da pulsão
de morte: podemos apenas suspeitar dela, por assim dizer, como algo situado em segundo
plano, por trás de Eros, fugindo à detecção, a menos que sua presença seja traída pelo fato
de estar acoplada a Eros. E então destaca o seguinte a respeito dessa pulsão e da satisfação
narcísica:
É no sadismo — onde a pulsão de morte deforma o objetivo erótico em seu próprio sentido,
embora, ao mesmo tempo, satisfaça integralmente o impulso erótico — que conseguimos
obter um conhecimento mais claro de sua natureza e de sua relação com Eros. Contudo,
mesmo onde ela surge sem qualquer intuito sexual, na mais cega fúria de destrutividade,
não podemos deixar de reconhecer que a satisfação da pulsão se faz acompanhar por um
grau extraordinariamente alto de fruição narcísica, pois oferece ao eu a realização dos seus
mais arcaicos desejos de onipotência.
98
Dessas observações resultavam perguntas: como pode o componente agressivo, cujo
intuito é destruir o objeto, derivar de Eros? Não é admissível que esse sadismo seja uma
pulsão de morte que, sob a influência da libido narcisista, foi expulsa do eu e,
98
FREUD, S. O mal-estar na civilização, p. 3052.
72
conseqüentemente, só surgiu em relação ao objeto? Dessa perspectiva, então, Freud
considera em Mais além do princípio de prazer que, ao longo da fase oral da organização
da libido, o domínio erótico sobre um objeto coincide com a destruição deste.
Posteriormente, a pulsão sádica é isolada e, finalmente, na fase de primazia genital, assume,
na masculinidade, a função de dominar o objeto sexual até o ponto necessário à consecução
do ato sexual. Assim, o sadismo, expulso do eu, apontou o caminho para os componentes
libidinais e estes o seguiram para o objeto. Quando o sadismo não é mitigado, encontramos
intensa ambivalência de amor e ódio na vida erótica, tão característica, por exemplo, da
neurose obsessiva. As observações clínicas conduziam à concepção de que o masoquismo,
componente complementar ao sadismo, deve ser encarado como um sadismo que se voltou
para o próprio eu do sujeito. Em princípio, porém, não existe diferença entre uma pulsão
voltar-se do objeto para o eu ou do eu para um objeto, que é o ponto em que se acha em
discussão atualmente. O masoquismo, o retorno da pulsão para o eu, constituiria, nesse
caso, um retorno a uma fase anterior da história da pulsão, uma regressão.
99
A
conseqüência disso foi postular um masoquismo primário, tal como veremos a seguir.
Freud vai percebendo cada vez mais que, ao final do complexo de Édipo, há uma
instância que se destaca no seio da estruturação do eu e apresenta uma conexão bastante
importante com as questões que o levaram a formalizar o conceito de pulsão de morte. Essa
instância, que em O eu e o isso é designada por supereu, tanto influencia nas condições do
recalque quanto se fundamenta no recalcado. Foi a observação dos estados paranóides, da
melancolia e das neuroses de transferência que inicialmente propulsionou as pesquisas
sobre essa divisão no eu, que vem a cumprir funções de ideal, consciência moral, proteção,
humor e castigo. Com isso, também se observou que o supereu cumpre o papel de assinalar
99
FREUD, S. Mais além do princípio de prazer, p. 2535.
73
constantemente ao eu sua distância ou proximidade em relação ao ideal e desse modo
regula a satisfação narcísica. Relacionado com a satisfação, há um importante destino
pulsional, abordado por Freud em As pulsões e seus destinos
100
: o retorno ao próprio eu,
presente na formação dos sintomas e nas resistências do paciente.
Uma das vertentes da dupla sustentação do sintoma sempre se estabelece vinculada
a traços da polimorfia perversa infantil, na mais estreita relação com o supereu: o exercício
da crueldade. Essa singularidade é expressa no sintoma, que cristaliza a manutenção, ou
melhor, a aderência ao padecimento. Toda análise revela que, no sintoma, o eu extrai
satisfação masoquista, e assim o faz colocando-se como objeto do supereu.
Pois bem, a resistência é obstáculo ao saber do inconsciente, é obstáculo à análise, à
cura. Notemos aqui que a propensão à manutenção do sintoma é o cerne da “reação
terapêutica negativa”. Freud a define como um movimento do eu que toma a possibilidade
de desembaraçar-se do sintoma como um novo perigo e tende assim a agarrar-se à
enfermidade. Sobre isso, relata-nos o seguinte:
Acabamos por descobrir que se trata de um fator de ordem moral, de um sentimento de
culpa que encontra sua satisfação na enfermidade e não quer renunciar ao castigo que a
mesma significa. Mas este sentimento de culpabilidade permanece mudo para o neurótico.
Não lhe diz que é culpável e deste modo, o sujeito não se sente culpável, mas enfermo. Este
sentimento de culpa não se manifesta senão como uma resistência dificilmente reduzível
contra a cura.
101
A investigação a respeito dos motivos das resistências levou à constatação de uma
necessidade de punição, conduzindo a teoria ao tema do masoquismo. Na conferência de
1932, Angústia e vida pulsional, Freud refere-se às resistências e sua relação com as
100
FREUD, S. As pulsões e seus destinos, p. 2045.
101
FREUD, S. O eu e o isso, p. 2722.
74
pulsões: afirma que a importância prática dessa descoberta não é menor do que sua
importância teórica, uma vez que a necessidade de punição é o maior inimigo do
tratamento. O analisante obtém satisfação no sofrimento que está vinculado à neurose e, por
essa razão, aferra-se à condição de estar doente. Parece que esse fato, uma necessidade
inconsciente de castigo, faz parte de toda doença neurótica. E aqui são inteiramente
convincentes aqueles casos nos quais o sofrimento neurótico pode ser substituído por
sofrimento de outra espécie.
102
Como já acentuamos, há um fracasso doloroso que o paciente repete quando, em
determinados pontos do trabalho analítico, as resistências se fazem sentir em um primeiro
plano de atuação. Cabe agora frisar que o tema das resistências se encontra, no pensamento
freudiano, interligado ao mote relativo às “alterações do eu”, especialmente salientado em
Análise terminável e interminável
103
. As “alterações do eu” aparecem aí como um dos
fatores que decidem tanto pela analisabilidade quanto pela resolução da neurose
transferencial.
Além de descrever a formação do caráter do eu como se dando em função de
abandonos sucessivos de objetos sexuais, coisa que define a identificação secundária, a
expressão “alterações do eu”, Freud a emprega para expor os efeitos produzidos no eu pelas
defesas por este utilizadas com o propósito de domínio da força pulsional. Tais reações
defensivas são auxiliares na estruturação do eu, pois servem como mediadores na condução
da excitação pulsional rumo à satisfação pela descarga motora e, portanto, fazem um
trabalho necessário face à pressão das pulsões, que acima de determinado limiar de
suportabilidade poderiam ser danosas à organização desse eu.
102
FREUD, S. Angústia e vida pulsional, p. 3162.
103
FREUD, S. Análise terminável e interminável, p. 3356.
75
As defesas, porém, tendem a se incrustrar no eu e a formar modos regulares de
reações caracterológicas que se repetem, podendo, assim, como é o caso da neurose, levar o
sujeito a um enorme dispêndio dinâmico na manutenção de uma estereotipia bastante
sofrida. A construção que Freud delineia a respeito das alterações do eu procede segundo
linhas que elaboram a seguinte diretriz: sendo o eu uma parte do isso modificado pelo
sistema perceptivo, o primeiro almeja, desde o início, mediar o mundo externo com o isso,
no justo propósito de proteger o isso das restrições e exigências que lhe são externas. Mas,
percebendo pouco a pouco que a exigência de satisfação desenfreada e imediata do isso não
apenas é impossível mas perigosa — primeiramente porque não levaria à satisfação, mas a
uma alucinação, e também porque esbarraria nas exigências advindas daqueles que a
criança ama e dos quais depende —, o eu passa a utilizar-se de medidas defensivas em
relação ao isso e a tomar suas exigências como perigos externos. Sob a influência da
educação, o eu começa a trazer para dentro a luta que anteriormente travava — a serviço do
princípio de prazer — com o mundo externo e a tratar a intempestividade do isso como um
perigo.
As defesas podem se tornar perigosas quando o eu continua a servir-se delas mesmo
que se faça necessário eliminá-las. A problemática que Freud observa a respeito das
defesas, que aparecem na análise sob a forma de resistência, relaciona-se ao seu uso
continuado frente a perigos que já não mais existem na realidade: “O eu sente-se compelido
a ir buscar na realidade situações de perigo que possam servir de substitutos das antigas
situações perigosas para justificar em relação a elas os seus modos habituais de reação”
104
.
104
FREUD, S. Análise terminável e interminável, p. 3354.
76
O assunto central desse trecho é a satisfação: para o eu, é preciso que haja, a
qualquer custo, a justificativa para os seus “modos habituais de reação” — leia-se aqui
“modos fixos de obter satisfação”.
A resistência diz respeito à satisfação pulsional; como bem vimos, Freud adentra no
tema da repetição a partir da observação clínica da repetição do desprazer, do fracasso, da
formação sintomática na transferência, sobretudo pela vertente da resistência. A remissão à
necessidade inconsciente de castigo, manifestada no curso da análise pela resistência ao
tratamento, é subproduto da angústia. Esse é o viés que a observação freudiana assume
quando, a partir do acolhimento da repetição no campo de ação da cura, chega às últimas
elaborações a respeito da pulsão de morte e sua silenciosa apresentação na repetição.
Além disso, encontramos no texto O eu e o isso
que a pulsão de morte pode ter três
destinos distintos: uma parte dela pode ficar neutralizada pela sua mescla com componentes
eróticos; outra parte é orientada para o exterior como agressão; e a terceira continua
livremente seu trabalho interno, tomando o próprio sujeito como objeto
105
. Freud se
pergunta:
Como é que o supereu se manifesta essencialmente como sentimento de culpa (ou melhor,
como crítica — pois o sentimento de culpa é a percepção no eu que responde a essa crítica)
e, além disso, desenvolve tão extraordinária rigidez e severidade para com o eu? Se nos
voltarmos primeiramente para a melancolia, descobrimos que o supereu excessivamente
forte que conseguiu um ponto de apoio na consciência dirige sua ira contra o eu com
violência impiedosa, como se tivesse se apossado de todo o sadismo disponível na pessoa
em apreço. Seguindo nosso ponto de vista sobre o sadismo, diríamos que o componente
destrutivo entrincheirou-se no supereu e voltou-se contra o eu. O que está influenciando
agora o supereu é, por assim dizer, o puro cultivo da pulsão de morte e, de fato, ela com
bastante freqüência obtém êxito em impulsionar o eu à morte, se aquele não afasta o seu
tirano a tempo, através da mudança para a mania.
106
105
FREUD, S. O eu e o isso, p. 2725.
106
Ibid., p. 2724.
77
Essa terceira modalidade, de tornar “metabolizável” a pulsão, é o tema central de O
problema econômico do masoquismo.
107
Nesse artigo, de 1924, Freud retoma algumas
idéias dos Três ensaios para uma teoria sobre a sexualidade e reafirma que a excitação
sexual nasce como efeito secundário de uma gama de processos internos que, em função de
sua intensidade, sobrepassam determinados limiares de excitabilidade e então são sentidos
como tais. Todo processo de certa relevância, aliás, traz algum elemento ao movimento
libidinal
108
. Como resultado, também a dor traz conseqüências e, durante algum tempo na
infância, coexiste com a excitação da pulsão sexual, formando o substrato do masoquismo
feminino, por exemplo. Mas não apenas isso, pois o encontramos também na base do
masoquismo moral que fundamenta os tensionamentos entre o eu e o supereu, que
anteriormente relacionávamos com o “sentimento inconsciente de culpabilidade”.
Coexistindo de algum modo com a excitação da pulsão sexual, esse masoquismo,
que poderíamos conceber como condicionante da excitação sexual, embora seja transitório,
por outro lado, sobrevive no sujeito e ali se fixa a componentes libidinosos como
“masoquismo primário”:
Ainda que, não sendo totalmente exato, pode-se afirmar que a pulsão de morte que atua no
organismo — o sadismo primário — é idêntica ao masoquismo. Uma vez que a sua
principal parte fica orientada para o exterior e dirigida para os objetos. Perdura no interior,
como resíduo, o masoquismo erógeno propriamente dito, o qual chegou a ser por um lado,
um componente da libido; mas continua por outro, tendo como objeto o próprio
indivíduo.
109
107
FREUD, S. O problema econômico do masoquismo, p. 2752.
108
Ibid., p. 2754.
109
Ibid., p. 2755.
78
Desse modo, Freud acrescenta que o masoquismo seria um testemunho e uma
sobrevivência do tempo em que se formou o amálgama entre a pulsão de morte e Eros
110
.
Isto é, o masoquismo erógeno, que observamos no modo como o eu se faz objeto para a
pulsão, é um reavivamento ou, se quisermos, uma atualização do ponto em que a pulsão se
faz inscrição — na linguagem freudiana, ponto em que o livre curso da energia se faz
ligado. Trata-se aqui do engendramento do representante ideativo da pulsão. De acordo
com as reflexões de Mais além do princípio de prazer, esse processo é possível somente
com a presença do sinal de angústia. É preciso acrescentar, nesta altura de nossa reflexão,
que a temática relativa à presença-ausência do falo está conectada a essa teorização e que
trataremos de explicitá-la no Capítulo 4 ao abordarmos a noção freudiana de recalcamento
primário.
O aspecto mais importante de toda essa argumentação, para retomarmos o fio da
meada, está na observação de Freud de que o masoquismo primário se encontra em todas as
modalidades de satisfação pulsional das fases libidinais: “O medo de ser devorado pelo
animal totêmico (o pai) procede da primitiva organização oral; o desejo de ser maltratado
pelo pai, da fase sádico-anal imediatamente posterior; a fase fálica da organização introduz
no conteúdo das fantasias masoquistas, a castração”
111
. Freud, após debruçar-se
detidamente sobre seus casos clínicos, conclui que nos diversos modos de satisfação
pulsional há um masoquismo primário –— resíduo, sobrevivência e testemunho do tempo
em que se enlaçaram o desejo e a pulsão. É preciso aqui sublinhar que o masoquismo
primário em questão é observado na realidade da fantasia, mas também no afeto da
110
Loc. cit.
111
FREUD, S. O problema econômico do masoquismo, p. 2755.
79
angústia. A fantasia e a angústia parecem estar freqüentemente em mútua consonância: a
primeira emerge no sentido de dar conta da segunda.
O dualismo pulsional do último período metapsicológico apresenta, por um lado, a
pulsão sexual como situada no campo das representações (Vorstellungen) que fornecem a
matéria-prima para a realidade dos fantasmas inconscientes e, por outro, a pulsão de morte,
que se situa além do princípio de prazer, no império do silêncio de representações ou, se
quisermos, de significantes, para evocar um termo pós-freudiano a respeito do assunto. De
todo modo, a pulsão de morte é, na obra freudiana, um elemento fora do circuito das
representações operacionalizadas pelo princípio de prazer.
Ademais, são essas mesmas representações que demarcam a fronteira de
exterioridade a elas. No seminário de 1960, A ética da psicanálise, Lacan considera que a
pulsão de morte deve ser situada no âmbito histórico, uma vez que ela se articula num nível
que só é definível em função do campo das representações, da cadeia significante.
112
E isto
porque, uma vez que é uma referência de ordem, pode ser situada em relação ao
funcionamento da natureza. “É preciso algo para além dela, onde ela mesma possa ser
apreendida numa rememoração fundamental, de tal maneira que tudo possa ser retomado,
não simplesmente no movimento das metamorfoses, mas a partir de uma intensão
inicial.”
113
Lacan acrescenta ainda que:
A pulsão, como tal, e uma vez que é então pulsão de destruição deve estar para além da
tendência ao retorno ao inanimado. O que ela poderia ser? — senão uma vontade de
destruição direta se assim posso me expressar. Não dêem absolutamente relevância ao
termo de vontade. Qualquer que seja o interesse que a leitura de Schopenhauer, por sua
ressonância, pôde ter despertado em Freud, não se trata de nada que seja de uma Wille
fundamental, e é somente para fazer vocês sentirem a diferença desse registro com a
tendência ao equilíbrio que estou chamando-o assim por enquanto. Vontade de destruição.
112
LACAN, J. A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. p. 258.
113
Id.
80
Vontade de recomeçar com novos custos. Vontade de outra coisa, na medida em que tudo
pode ser posto em causa a partir da função do significante.
Se tudo o que é imanente ou implícito na cadeia dos acontecimentos naturais pode ser
considerado como submetido a uma pulsão dita de morte, é somente na medida em que há a
cadeia de significante. Efetivamente é exigível que, nesse ponto do pensamento de Freud, o
que está em questão seja articulado como pulsão de destruição, uma vez que ela põe em
causa tudo o que existe. Mas ela é igualmente vontade de criação a partir de nada, vontade
de recomeçar.
114
Retornando à observação freudiana, o analisante repete, e essa repetição traz, sob a
forma de resistência, o nódulo de uma operação do “aparelho psíquico” que busca assimilar
ao seu universo aquilo que Freud chama de “mais além do princípio de prazer”. Assim,
Freud aborda essa repetição como se apresentando no enquadramento das sessões e
trazendo o elemento mais variável da pulsão, a saber, o objeto. Mas o faz pelo avesso, ao
marcar que um objeto na experiência do sujeito toma compacidade: o eu. Lembremos que a
formalização freudiana concebe, tal como já mencionamos anteriormente, que, em
princípio, não há diferença entre uma pulsão voltar-se do objeto para o eu ou do eu para um
objeto; que o masoquismo, a volta da pulsão para o próprio eu, constitui um retorno ou uma
regressão a uma fase anterior da história da pulsão. O objeto é, portanto, o operador central
na tematização a respeito da pulsão. O que há de invariável nela é sua peremptoriedade e
sua satisfação, seja do modo que for. Todavia, para atingir seu fim, ela necessariamente o
faz por intermédio de sua relação com o objeto, e este é, a rigor, absolutamente arbitrário,
indeterminado a priori. Essa indeterminação a priori é precisamente o que constituirá a
premissa do falo, como veremos. Ainda, a falta do objeto embasa o conceito de castração e
toda a concepção de trauma, estando imbricado com a teoria da pulsão de morte.
Nos termos freudianos, a pulsão é um esforço, inerente ao organismo vivo, de
reconstrução de um estado anterior. A pulsão quer reconstruir algo anterior, mas que estado
114
LACAN. J. A ética da psicanálise, p. 259.
81
anterior é esse? A pergunta lançada por Freud é se não existem pulsões que não procurem
restaurar um estado anterior de coisas, um estado de coisas que nunca foi alcançado. A
resposta irá recair sobre a temática do objeto:
Aquilo que, numa minoria de indivíduos humanos, parece ser um impulso incansável no
sentido de maior perfeição, pode ser facilmente compreendido como resultado do recalque
da pulsão em que se baseia tudo o que é mais precioso na civilização humana. A pulsão
recalcada nunca deixa de esforçar-se em busca da satisfação completa, que consistiria na
repetição de uma experiência primária de satisfação.
Formações reativas e substitutivas,
bem como sublimações, não bastarão para remover a tensão persistente da pulsão recalcada,
sendo que a diferença de quantidade entre o prazer da satisfação que é exigida e a que é
realmente conseguida, é que fornece o fator impulsionador que não permite qualquer parada
em nenhuma das posições alcançadas, mas, nas palavras do poeta, ‘ungebändigt immer
vorwärts dringt’. O caminho para trás que conduz à satisfação completa acha-se, via de
regra, obstruído pelas resistências que mantêm os recalcamentos, de maneira que não há
alternativa senão avançar na direção em que o crescimento ainda se acha livre, embora sem
perspectiva de levar o processo a uma conclusão ou de ser capaz de atingir o objetivo.
115
O recalcado busca sem repouso a satisfação completa, a repetição de uma
experiência primária de satisfação. Analisaremos no próximo capítulo o que o texto
freudiano elabora sobre tal experiência primária de satisfação, especialmente a teorização
concernente ao objeto, o objeto perdido da satisfação absoluta que se almeja
compulsivamente reencontrar; e o impossível em direção ao qual a pulsão tende a retornar
com o intuito de reconstruir um estado anterior.
Se a pulsão visa ao estabelecimento de um estado anterior, ou seja, a satisfação
absoluta, que faria com que o aparelho psíquico ficasse livre de toda excitação, o princípio
de prazer proporciona, para a economia psíquica, o objeto. Dizendo melhor, o inconsciente,
entre tantas coisas, cumpre a função de fornecer a presença do objeto da pulsão.
Paradoxalmente, o princípio de prazer gira em torno de um objeto que se encontra excluído
O itálico é meu.
115
FREUD, S. Mais além do princípio de prazer, p. 2528.
82
de sua própria organização: o princípio de prazer tem suas operações fundamentadas numa
ausência de objeto e opera no sentido de afirmá-lo como presente. Essa é a raiz da premissa
do falo.
No que tange à pulsão, trata-se de um conceito fundamental da psicanálise, um
Grundbegriff, o ponto de chegada de uma série de investigações clínicas e especulações
teóricas. Vimos que a pulsão é uma construção teórica feita principalmente a partir de
problemas levantados em torno da compulsão à repetição. Essa compulsão remete-nos a
algo mais elementar, primitivo e pulsional que o princípio de prazer. Concebido
inicialmente como tendo o domínio sobre o curso dos processos anímicos, o princípio de
prazer agora é visto como tendência ao domínio, tendência apenas. Assim, o conceito de
pulsão de morte nos situa numa teorização do campo psicanalítico que diz respeito ao lugar
além da representação, lugar do silêncio e do acaso.
Freud afirmou que a teoria das pulsões é a nossa mitologia”
116
, e talvez essa
mitologia possa se tornar teoricamente compreensível quando abordamos o pequeno mito
freudiano a respeito do objeto, ele mesmo “mais além do princípio de prazer”. Esse é
precisamente o tema central do próximo capítulo.
116
FREUD, S. Angústia e vida pulsional, p. 3154.
83
Capítulo III
O MITO FREUDIANO SOBRE O OBJETO
A referência direta ao mito não surge unicamente em Angústia e vida pulsional, mas
encontramo-la ao longo de toda a elaboração teórica de Freud. Em 1932, buscando
responder à pergunta de Einstein sobre o que poderia ser feito para proteger a humanidade
da maldição da guerra, Freud comenta as descobertas da psicanálise acerca da pulsão de
morte e situa a mitologia como elemento constituinte da própria construção do
conhecimento científico: “Talvez ao senhor possa parecer serem nossas teorias uma espécie
de mitologia e, no presente caso, mitologia nada agradável. Todas as ciências, porém, não
chegam, afinal, a uma espécie de mitologia como esta? Não se pode dizer o mesmo,
atualmente, a respeito da sua física?”
Idêntica posição epistemológica se acha presente em Análise finita e análise
infinita, texto no qual Freud evoca a feiticeira de Goethe e afirma: “sem uma especulação e
uma teorização — quase diria fantasmatização (Phantasieren) — metafísicas, não daremos
um passo.”
117
De acordo com Paul-Laurent Assoun, a última definição da atividade
metapsicológica coincide com a atividade da fantasmatização. Ele acrescenta ainda que,
não obstante isso, “se o trabalho freudiano de racionalidade não pode reduzir-se a um banal
racionalismo aplicado, precisamos evitar reduzir a episteme que ela decididamente engaja
ao estatuto puro e simples de um fantasma como outro qualquer”.
118
O tratamento teórico
117
FREUD, S. Análise terminável e interminável, p. 3345.
118
ASSOUN, P.-L. Introdução à epistemologia freudiana. Rio de Janeiro: Imago, 1983. p. 103.
84
da psicanálise se alimentaria, pois, de uma lógica do inconsciente cuja raiz seria o
Phantasieren.
Levando em conta a pequena digressão a propósito da teorização nessa ponta
extrema da atividade metapsicológica, o presente capítulo discorrerá a respeito da
construção de um mito sobre o objeto. Sendo assim, trabalharemos inicialmente o
paradigma do afeto em psicanálise, com o fito de introduzirmos elementos conceituais
concernentes ao estatuto do objeto da pulsão — um objeto perdido, como veremos.
Trataremos de retroagir a algumas elaborações iniciais do pensamento freudiano e
apresentaremos um mito a respeito do início da vida mental como fundado em uma
alucinação. Essa alucinação fundamental embasa a noção de “objeto perdido”, bem como o
próprio princípio de prazer, colocando em perspectiva seu “mais além”. Desse modo,
articularemos, oportunamente, essas reflexões com o pivô em torno do qual o inconsciente
opera, ou seja, a ausência do falo.
Aos poucos, vamos encontrando no texto de Freud mais dados para a idéia afirmada
no primeiro capítulo — sobre o falo como um elemento de natureza simbólica que faz
emergir a presença diante de um vazio de representações. A premissa da universalidade do
falo aponta para um arranjo simbólico próprio às operações dos pensamentos inconscientes
e descreve a propensão destes para fazer proliferar representações, precisamente na medida
em que se aproximam da falta do objeto, ou seja, da castração. Tal situação é sinalizada no
eu com o afeto de angústia. De fato, em A cabeça da Medusa, Freud aborda a situação do
horror contido na angústia, expresso no mito grego pelo olhar da cabeça decapitada da
Medusa. O horror diante da falta suscita a emergência da produção fantasmática:
85
Decapitar = castrar. O terror da Medusa é assim um terror de castração ligado à visão de
alguma coisa. Numerosas análises familiarizam-nos com a ocasião para isso: ocorre quando
um menino, que até então não estava disposto a acreditar na ameaça de castração, tem a
visão dos órgãos genitais femininos, provavelmente os de uma pessoa adulta, rodeados por
cabelos, e, essencialmente, os de sua mãe.
Os cabelos na cabeça da Medusa são freqüentemente representados nas obras de arte sob a
forma de serpentes e estas, mais uma vez, derivam-se do complexo de castração. Constitui
fato digno de nota que, por assustadoras que possam ser em si mesmas, na realidade, porém,
servem como mitigação do horror, por substituírem o pênis, cuja ausência é a causa do
horror. Isso é uma confirmação da regra técnica segundo a qual uma multiplicação de
símbolos de pênis significa castração.
119
A multiplicação de símbolos fálicos diz respeito à falta de um objeto de grande
valor. Estamos aqui no tema da angústia. Entre 1919, com o texto O estranho, e 1925, com
Inibição, sintoma e angústia, Freud modifica a sua concepção sobre a angústia. Em linhas
gerais, anteriormente concebia a angústia como resultado de uma transformação direta da
libido em virtude do processo de recalcamento, e a afetação pela angústia recebia uma
formalização particularmente detalhada no contexto econômico da metapsicologia. A
vicissitude do fator quantitativo da representação pulsional admitia três variações: a pulsão
poderia manter-se reprimida, não deixando desse modo nenhum vestígio; poderia surgir sob
a forma de emoções e sentimentos quando enlaçada a representações e adquirindo um
caráter qualquer; poderia ser transformada diretamente em angústia.
120
Dado que o recalque
incide sobre o representante ideativo da pulsão, a quota de afeto permaneceria desligada
temporariamente das idéias e se constituiria como um afeto, um quantum sem
representação, suscitando intenso desprazer.
Ao aprofundar sua compreensão da angústia, Freud passa a considerá-la como a
razão pela qual o eu opera com o recalque. Depois de realizar mais observações sobre o eu
e formular sua segunda teoria do aparelho psíquico, sublinha que o eu é a sede da angústia.
119
FREUD, S. A cabeça da Medusa, p. 2697.
120
FREUD, S. O recalque, p. 2054.
86
O primeiro passo da exposição metapsicológica, Freud o dá na reavaliação do processo do
recalcamento.
121
Esse processo tem como finalidade impedir uma descarga pulsional
originada no isso. No entanto, sendo um acontecimento que ocorre no eu, qual a natureza
de tal poder sobre um movimento pulsional? O eu não apenas tem acesso à motilidade
seu núcleo é a consciência — como, acima de tudo, se utiliza de força emprestada de outras
instâncias.
Discorrendo sobre recalcamento, Mezan lembra que neste processo, o eu se alia ao
supereu contra o isso. É dessa aliança que advém a eficácia do recalque, pelo menos o de
tipo secundário.
122
“por outro lado, se reprimir é exilar, não deixa de ser verdade que o
impulso reprimido goza do “privilégio da extraterritorialidade”, desenvolvendo-se e
ramificando-se fora do controle do ego”
123
O desejo recalcado, sob a forma de sintoma, pode se opor ao eu e se fazer manifesto
de todo modo, exigindo a satisfação negada. Assim, o eu precisa renovar o sinal de
desprazer e retomar mais uma vez o processo de recalque, num movimento indefinidamente
sem começo nem fim. Freud analisa tal situação teórica e decide pela anterioridade da
angústia. Como optar então pela antecedência da angústia em relação ao recalque? Freud
responde que essa seqüência causal não necessita de esclarecimento econômico algum. A
angústia não é criada novamente no recalque, mas é reproduzida como um estado afetivo
em conformidade com uma imagem mnêmica já existente. O que há aqui é uma repetição.
Ele acrescenta que,
121
FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia, p. 2837.
122
MEZAN, R. Freud: A trama dos conceitos, p. 307.
123
Id.
87
se formos adiante e indagarmos da origem dessa angústia — e dos afetos em geral —
estaremos deixando o domínio da psicologia pura e penetrando na fronteira da fisiologia. Os
estados afetivos encontram-se incorporados à vida anímica como precipitados de
acontecimentos traumáticos primitivos e são revividos como símbolos mnêmicos, em
situações análogas aos ditos antiqüíssimos acontecimentos.
124
Esses antiqüíssimos acontecimentos da angústia primitiva concernem a um tempo
mítico, estando profundamente relacionados à repetição, tal como vimos no capítulo
anterior, e à falta do objeto da satisfação, que abordaremos ainda neste capítulo.
As considerações de Mezan sobre os mencionados “acontecimentos primitivos”
apontam para a repetição. Ele argumenta que “é a repetição que funda o processo do
desenvolvimento da angústia, a partir das similaridades percebidas entre determinada
situação e seu modelo primordial.”
125
Outro comentário da angústia que retoma a repetição e acrescenta elementos
interessantes é feito por Maria Inês França, ao relacionar a angústia com a sensação de
estranhamento ou sensação do sinistro, abordada por Freud no texto O estranho. Ela diz
que a estranheza revela o percurso de uma subjetividade na qual ocorre a vivência
angustiante da impressão da ausência-presença do objeto. O que fica indicado na sensação
de estranhamento é também o surgimento da alteridade na vida psíquica, de modo que,
então, o familiar é o estranho. Levando em conta a compulsão à repetição, a autora, para
subsidiar essas idéias, escreve o seguinte:
Em “Para Além do Princípio de Prazer” a compulsão à repetição implica o funcionamento
pulsional em um “eterno retorno”, como algo mais primitivo que o princípio de prazer. Há
um retorno a um ponto de partida. Ou seja, sempre há algo referido à perda primordial que
diz respeito a um ponto de origem que faz repetir. É neste sentido que “o retorno ao
inorgânico” em Freud não tem fundamento natural. O retorno fala de uma intensidade que
124
FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia, p. 2837.
125
MEZAN, R. Freud: A trama dos conceitos, p. 308.
88
força a descarga radical da pulsão e cria rupturas. Estas rupturas são produzidas pela pulsão
de morte. É a repetição de um silêncio, de uma ausência, de um universo vazio que está na
origem mítica do sujeito (...) Assim, a pulsão de morte pode ser traduzida como força
constante disruptora, moção sem sentido, cujo correlato, o desamparo, tem como efeito-
afeto a angústia, a angústia como ruído do real, como manifestação de uma verdade
indizível. Este ruído remete ao objeto como “pura perda”, que é também potência de
satisfação.
·126
Freud destaca duas formas através das quais as pulsões se fazem presentes no plano
psíquico: pelo representante ideativo ou pelo afeto que descreve o caráter intensivo da
pulsão e aparece nos seus textos, inseridos em uma perspectiva de aumentos e diminuições
de quantidades energéticas, por um lado, e, por outro, relacionado a aspectos qualitativos,
especialmente pela série prazer-desprazer. Não podendo ser inconsciente, o afeto é um
evento sempre sentido como tal e topicamente ocorre no eu. E ainda, na metapsicologia
freudiana, as emoções e sentimentos são resultantes de um arranjo estabelecido entre idéias
e afetos, que tomam as mais idiossincráticas nuances. No texto O recalque, Freud, ao
abordar o assunto, afirma que relacionava o processo do recalcamento ao destino de um
representante pulsional, entendendo por este último uma idéia, ou grupo de idéias,
catexizadas com uma quota definida de energia psíquica proveniente de uma pulsão.
Permanecia, portanto, a necessidade de esclarecer o destino do afeto nesse processo:
A observação clínica nos obriga a dividir aquilo que até o presente consideramos como
sendo uma entidade única, de vez que essa observação nos indica que, além da idéia, outro
elemento representativo da pulsão tem de ser levado em consideração, e que esse outro
elemento passa por vicissitudes de recalque que podem ser bem diferentes das
experimentadas pela idéia. A expressão quota de afeto tem sido freqüentemente adotada
para designar esse outro elemento do representante psíquico. Corresponde à pulsão na
medida em que este se afasta da idéia e encontra expressão, proporcional à sua quantidade,
em processos que são sentidos como afetos. A partir desse ponto, ao descrevermos um caso
de recalque, teremos de acompanhar separadamente aquilo que acontece à idéia como
resultado da repressão e aquilo que acontece à energia pulsional vinculada a ela.
127
126
FRANÇA, M. I. Psicanálise, estética e ética do desejo. São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 52.
127
FREUD, S. O recalque. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2). p. 2057.
89
Não existem afetos inconscientes da mesma forma que existem idéias inconscientes
e a rigor, a antítese consciente-inconsciente não se aplica à pulsão.
128
Pode, entretanto,
haver estruturas afetivas no sistema inconsciente, que, como outras, se tornam conscientes.
A diferença decorre do fato de que idéias são catexias — basicamente de traços de memória
—, enquanto que os afetos e as emoções correspondem a processos de descarga, cujas
manifestações finais são percebidas como sentimentos
129
, diz Freud no texto O inconsciente.
Entendemos que tais “processos de descarga” são, na obra freudiana, sinônimos de
satisfação pulsional. Além disso, e como bem o situa Paul-Laurent Assoun, por trás do
afeto, suspeita-se, é a sombra do Corpo que vamos encontrar. E tanto isso é verdade, que o
afeto, sob um dos seus aspectos, dá para a psique, avesso da vida representacional e evoca
por outro lado as potências do Corpo, verdadeiro desafio à metapsicologia.
130
“O afeto vem
mesmo do corpo — ele exprime, nesse sentido, algo do fundo corporal da pulsão; mas é a
título de “móvel” que adquire uma significação psíquica de pleno direito.”
131
Descritivamente, a angústia apresenta uma síntese fisiológica com um espectro
bastante amplo de manifestações e uma intensa produção imaginária de contornos
dramáticos ou catastróficos. Esses eventos tendem para processos de descarga de excitações
e atribuem à angústia um lugar bem específico na economia dos afetos. Há sempre a
expectativa relativa a um perigo iminente, sendo-lhe ainda característica uma sensação de
falta e imprecisão de seu objeto.
Esse afeto estranho é muito bem caracterizado por Assoun em Metapsicologia
freudiana, que diz ser a indeterminação exatamente o que empresta à angústia seu caráter
128
FREUD, S. O inconsciente, p. 2068.
129
Id.
130
ASSOUN, P.-L. Metapsicologia freudiana. Rio de Janeiro: Zahar, 1996. p. 151.
131
Ibid., p. 153.
90
discrepante no cotejo dos demais afetos. Trata-se aí de um afeto paradoxal, que é sentido
sem ser claramente definido, mas exatamente por isso um “afeto puro”, já que algo de sua
essência se desvela assim. O sujeito angustiado seria presa do afeto em si; e com razão, pois
aí ele tropeça no ponto em que há uma disjunção entre a idéia inconsciente e o afeto. Há aí
uma forma endógena do medo, já que dirigida a um perigo propriamente interno. Assoun
continua:
O afeto, neste sentido, seria este vivido oriundo da transformação da angústia, espécie de
angústia subjetivada em “percepção”. Nisso se avalia que a angústia, longe de ser uma
patologia do afeto pura e simples, abre caminho para a essência do afeto. Com efeito, pode-
se dizer que a angústia é a “marca de fábrica” inconsciente do afeto e por isso mesmo o
virtual “equivalente geral” de todo afeto: “É possível que todo o desenvolvimento do afeto
proceda diretamente do sistema inconsciente, e nesse caso tem sempre o caráter de angústia,
contra a qual são trocados todos os afetos realçados”
. Existe aí uma espécie de valor
comum a todo afeto, de vez que ele é suscetível, numa espécie de equivalente psíquico da
“forma mercadoria”, de ser trocado por angústia. A angústia, nisso tudo, é o afeto menos
específico e o que nos faz tocar mais de perto essa “essência” não encontrável no afeto, já
que é o denominador comum de todo afeto, sua realidade inconsciente.
132
Sendo o perigo considerado originalmente como de natureza interna e inclusive
servindo de condição e preparação para que um perigo exterior seja percebido como real,
foi necessário retornar à clínica e à trama dos conceitos para verificar o que estaria como
anterior à própria angústia
133
, com o fito de esclarecer a natureza do perigo em questão.
Destarte, foi justamente na investigação sobre o que está posto no fundo da angústia que
Freud desenvolveu uma série de considerações relevantes a respeito do conceito de trauma.
Discorrendo sobre a angústia num trabalho intitulado Os destinos da angústia na
psicanálise freudiana, Zeferino Rocha comenta que a angústia de perder o objeto materno é
Aqui Assoun remete seu leitor ao texto O inconsciente, de Freud.
132
ASSOUN, P.-L. Metapsicologia freudiana, p. 160.
133
FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia, p. 2876.
91
uma modalidade da angústia de separação que surge na mente infantil somente quando a
criança já é capaz de investir a mãe como objeto de amor, mas ainda não sabe fazer a
distinção entre uma ausência temporária e uma perda definitiva:
No começo, para ela só existe o que pode ser visto, tocado, sentido e ouvido. Quando a mãe
não está ao alcance dos seus sentidos, é como se tivesse desaparecido e a criança imagina
que a perdeu. Freud diria: a perda da percepção (Wahrnehmungsverlust) equivale a uma
perda do objeto (Objektverlust). Neste caso, o que estaria em jogo não seria propriamente
uma situação de perigo, mas uma situação traumática, especialmente se, ao constatar a
ausência da mãe, a criança sente uma necessidade que a mãe deveria satisfazer.
Enquanto a criança não tiver um eu suficientemente constituído, ela viverá as ausências da
mãe como uma perda de objeto e será dominada por uma angústia automática totalmente
incapaz de controlar. (...) Temos um magnífico exemplo do trabalho de controle da angústia
da perda do objeto materno no jogo de carretel de linha, que Freud presenciou, um dia em
que observava seu neto brincar, e que nos apresenta no livro Além do Princípio de
Prazer.
134
Três situações tornam compreensível o motivo das angústias primitivas na vida
infantil: quando a criança percebe-se só, a escuridão e o deparar-se com a presença de
alguém estranho em vez de alguém que lhe seja familiar. Nas três situações, o ponto
comum é a falta de um objeto amado. A tese freudiana aqui é a de que esse objeto tão
fundamental, que vai ficar posteriormente ancorado na mãe, é originalmente relativo a uma
alucinação. Sendo assim, cabe aqui retomar a passagem de “Inibição, Sintoma e Angústia”
já colocada no primeiro capítulo desta dissertação
:
A imagem mnêmica da pessoa desejada é certamente de um investimento muito intenso e, a
princípio, provavelmente alucinatória. Mas isso não acarreta em solução alguma e parece
como se este desejo se transformasse em angústia. Chegamos inclusive a ter a impressão de
que tal angústia tem toda a aparência de ser a expressão do sentimento da criança ao
finalizar seus julgamentos, como se em seu ainda precário estado de desenvolvimento não
soubesse de nada melhor para controlar seus investimentos de desejo. A angústia surge aqui
134
ROCHA, Z. Os destinos da angústia na psicanálise freudiana. São Paulo: Escuta, 2000. p. 115.
Vide páginas 15/16.
92
como uma reação ao fato de perceber a falta do objeto, circunstância que nos remete que o
temor à castração tem por conteúdo a separação de um objeto muito estimado e que a
angústia mais primitiva — a do nascimento — surgiu ao ser verificada a separação da
mãe.
135
A angústia, diz-nos Freud, tem o caráter de reação face à percepção da falta e, no
desdobramento de idéias aqui apresentado, refere-se a percepções inclusas no transcorrer de
uma alucinação. O temor à castração está fundado num fantasma que põe em destaque o
tema da separação de um objeto. Mesmo a angústia mais primitiva, a do nascimento, não
surgiu na época do nascimento, mas posteriormente, quando um objeto muito estimado já
existe no psíquico.
Mais uma vez, Freud aplica ao contexto das suas explanações a noção de
posterioridade, Nachträglichkeit. É a posteriori que se dá a significação originária de um
evento. Não se dá de antemão, mas constitui-se numa história em que há experiências reais
e fantásticas, a partir de inúmeros registros: inscrições, imagens, subsídios simbólicos sem
qualquer significação a princípio, mas que se interligam retroativamente e assim adquirem
um contorno de significação — um acontecimento primitivo passa a existir como tal e a ter
valor de impacto sobre o sujeito.
Esse impacto relativo à perda do objeto está imbricado com o fator econômico que
participa decisivamente para a constituição do núcleo do perigo. A tese é explicitada nos
termos de um processo de deslocamento que se inicia quando a criança tem o registro de
que um objeto exterior — apreensível pela percepção — possa extinguir a recordação de
uma angústia primitiva de separação. Tal angústia primitiva teria ocasionado uma grande
perturbação econômica, cujo efeito é doloroso e tomado, portanto, como perigoso. O
135
FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia, p. 2862.
93
procedimento no sentido de tentar extinguir esse perigo está em deslocar o conteúdo do
perigo da situação econômica para a condição determinante de tal situação, isto é, a perda
do objeto. O perigo é, então, a ausência da mãe e, quando o bebê se dá conta disso, emite
um sinal de alarme antes que chegue a se estabelecer a temida situação econômica.
136
No item B do apêndice do texto Inibição, sintoma e angústia, verificamos que é
decisivo o primeiro deslocamento da situação de cataclisma econômico para a expectativa
de tal situação. Os deslocamentos se sucedem ao longo da história do desenvolvimento
libidinal, até estabelecerem uma marca particular na assim denominada fase fálica. A partir
do complexo de Édipo, toda angústia é de castração e concerne a um desamparo.
No que tange ao fator econômico a respeito da angústia, sublinhado por Freud,
trata-se das magnitudes de excitação pulsional, que, sem possibilidade de domínio e ação
eficaz para descarga, se elevam na proporção do extremo desprazer, da dor. A tese do
desamparo psíquico, paralelo ao desamparo biológico, se sustenta nessa base, e é a noção
de desamparo que fundamenta a teoria do trauma. Assim, de um estado de dispersão e
instabilidade no interior do psiquismo primitivo ocorre um deslocamento de investimentos
para o objeto da satisfação; a partir daí, estando esse objeto ausente, configura-se a situação
de desamparo.
A falta do objeto é, portanto, a matriz de um alerta que antecipa vividamente o
perigo, no sentido de reduzir a dor a um mero sinal de sua possibilidade. A angústia é uma
produção reativa do eu, que irrompe como alerta de perigo, para servir de referência à
experiência dolorosa da falta do objeto. Há, por um lado, uma expectativa do trauma e, por
outro, uma reprodução mitigada desse trauma.
136
FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia, p. 2863.
94
Na perspectiva freudiana, o perigo tem seu fundamento naquilo que se constitui a
princípio como uma exterioridade ao sujeito. Dado que, na fase autoerótica de estruturação
da libido, é impossível o discernimento entre um perigo real exterior e um interno de
natureza pulsional, ambos se constituem como uma só exterioridade. No evento traumático
do desamparo, a situação é coincidente tanto num caso como no outro — o desamparo
motor encontra sua expressão no desamparo psíquico.
137
O mesmo ocorre com a dor, pois,
além de certo limite de suportabilidade, é indiferente se há ou não erro de interpretação a
respeito de qual é a exterioridade em questão. De todo modo, no que tange a esse assunto,
parece-nos que Freud indica que se trata de uma exterioridade ao campo das
representações. Daí o aspecto “marginal” do afeto, tal como Assoun acertadamente se
refere e acrescenta que Freud ressalta constantemente seu poder de resistência.
138
Assoun
também comenta que o afeto se define por essa pressão sobre o sistema consciente, onde
ele se faz admitir sob a forma de um certo “vicariato”. “Tal é o estatuto “meta-psicológico
(e de certa forma “meta-físico”) do afeto: estirado entre a virtualidade inconsciente e o
afloramento consciente”
139
Neste sentido, a angústia é uma espécie de som resposta de algo
que se origina no isso e que surge no eu, tal como Inês França a situa.
140
É que a angústia supõe que se estabeleça a presença ou ausência de algo e sinaliza o
perigo, como vimos. E essa sinalização é, poderíamos dizer, da ordem de um saber. “O
estabelecimento desse saber inclui o efeito da ameaça inquietante e permanente que indica
os limites da realidade psíquica, onde em um “vivido” nenhuma subjetivação é possível. É
aí que a angústia como resposta, adquire sua dimensão fundante, a dimensão de efeito-
137
FREUD, S. Inibição, sintoma e angústia: complemento ao tema da angústia, p. 2880.
138
ASSOUN, P.-L. Metapsicologia freudiana, p. 164.
139
Id.
140
FRANÇA, M. I. Psicanálise, estética e ética do desejo, p. 25.
95
lembrança de uma impressão”
141
Para a autora, é necessário aqui, a subversão da noção de
lembrança. O lembrar uma impressão quer dizer que um sinal percebido adquiriu a
importância efetiva de um trauma. Trata-se então, do sinal resposta que se deixa tocar,
emocionar, mas não dizer. A angústia é, deste modo, som em silêncio da palavra, é umbral
de um lugar impenetrável. E é sobre isso precisamente que Lacan discorre em A ética da
psicanálise, quando diz:
A direção na qual envereda o pensamento freudiano é sempre a de colocar o afeto na
rubrica de sinal. Que Freud tenha chegado a colocar, no termo da articulação do seu
pensamento, a angústia na cota do sinal, já deve ser para nós, suficientemente significativo.
Mas o que buscamos está para além da organização do Lust-Ich, uma vez que está ligado,
num caráter fenomenal, ao maior ou menor investimento do sistema das
Vorstellungsrepräsentantzen, ou seja, dos elementos significantes do psiquismo.
142
Vale lembrar que, após 1920, com o conceito de pulsão de morte, o aparelho
psíquico é mais explicitamente caracterizado como tendo que lidar com uma força
pulsional que não se faz representar. O isso como pólo pulsional é relacionado a uma
exuberância de excitações que ultrapassa o registro do inconsciente. Mas qual a relação
existente entre a ausência de representações ideativas e o tema da falta do objeto que
vimos abordando ao tecer considerações a respeito da angústia e do traumático?
Precisamos adentrar nas reflexões iniciais de Freud e extrair delas os fundamentos a
respeito do objeto. Isso porque as ponderações a propósito da angústia, especialmente em
Inibição, sintoma e angústia, retroagem a idéias desenvolvidas em 1895 no Projeto de
uma psicologia para neurólogos e na Interpretação dos sonhos, de 1900. Especialmente
nesse período inicial, as inquietações sobre os casos clínicos levaram-no a buscar
141
FRANÇA, M. I. Loc. cit.
142
LACAN, J. A ética da psicanálise, p. 130.
96
fundamentação teórica para o funcionamento do aparelho psíquico a partir de um jogo de
distribuição de quantidades ao longo de substratos identificados como neurônios.
Na concepção de Freud, tanto a estrutura quanto o desenvolvimento e a função
desse aparelho têm como ponto de partida um “princípio de inércia”, que descreve uma
tendência reflexa dirigindo-se ao zero da excitação, ao alívio completo pela descarga
motora. Tal alívio suscitaria a satisfação. Esse ponto de partida oferecia quesitos para
começar a pensar um pólo receptor de estímulos e outro de derivação ou escoamento
desses estímulos. A função primária de tendência à inércia estabelece o norteamento para
que a excitação retorne a um estado anterior ao seu próprio aparecimento.
Contudo, o princípio de inércia fixa os termos de uma direção que é transgredida
numa postergação curiosa, porque é no propósito mesmo de acabar com a excitação
endógena que a tendência originária à inércia é adiada. Frente às necessidades vitais
inadiáveis, a fuga é ineficaz e impele o organismo a uma multiplicação de meios para o
escoamento. Assim, a noção de um princípio de funcionamento, em referência às
quantidades de excitação, é concebida a partir de um nível tolerável e mínimo para a
defesa contra a própria excitação.
Sendo a fuga ineficaz face às necessidades vitais (estados de urgência da vida), a
conseqüência é uma alteração interna que conduz ao choro, à inervação muscular ou a
expressões de emoções sem alívio em relação ao crescente incremento da tensão interna.
Freud, no Projeto, salienta que o bebê humano não pode, por si mesmo, levar a cabo uma
ação que extinga um estado de necessidade. Para tanto é imprescindível a assistência de um
outro: a criança chama a atenção de uma pessoa sobre o estado em que se encontra
“mediante a condução de descarga pela via de uma alteração interna (o choro, por
exemplo). Essa via de alteração interna adquire a importantíssima função secundária da
97
comunicação com um semelhante, e o desamparo originário do ser humano converte-se,
assim, na fonte primordial de todas as motivações morais.”
143
A situação de desamparo diante do crescente aumento da estimulação advinda do
interior do corpo e requerendo alívio, que necessariamente é promovido através de
assistência externa (geralmente pela mãe), estabelece uma experiência que acarreta uma
importante conseqüência: trata-se de um acontecimento descrito num pequeno mito de uma
“experiência primária de satisfação”
144
, no qual Freud introduz uma noção bastante original
de objeto.
Esse mito trata de um princípio da vida mental como vinculado a satisfação de
necessidades vitais, como, por exemplo, a primeira experiência de saciação da fome. Da
experiência de satisfação, o que perdura é um registro; ou, na linguagem do Projeto,
estabelece-se uma conexão entre duas imagens mnêmicas — a imagem do objeto da
satisfação e a imagem da descarga suscitada pela ação específica. Lacan comenta essa ação
específica dizendo que quando Freud traça o esboço daquilo que pode representar o
funcionamento normal do aparelho, ele fala de algo correspondente a uma satisfação. “Há
um grande sistema por trás dessa spezifische Aktion, pois ela não pode corresponder senão
ao objeto reachado. Esse é o princípio da repetição em Freud (...) A essa spezifische Aktion
faltará sempre alguma coisa.”
145
Explicitemos , pois, o mito, retornando ao Projeto.
Com o reaparecimento de um estado análogo ao anterior à satisfação, o aparelho
psíquico, dado seu estado primitivo de operação, tende a orientar-se automaticamente pelos
registros recém-adquiridos, uma vez que não lhe é possível discernir entre a representação e
143
FREUD, S. Projeto de uma psicologia para neurólogos, p. 229. (Obs.: encontramos afirmação quase
idêntica em A interpretação dos sonhos, p. 689).
144
Ibid., p. 29.
145
LACAN, J. A ética da psicanálise, p. 56.
98
sua existência na realidade exterior. Sendo assim, o movimento operado é no sentido de
acionar ou investir as duas imagens, situação que produz uma experiência bem semelhante
à percepção da satisfação.
Efetivamente, o que acontece é uma alucinação, decorrente de uma identidade de
percepção, que proporcionará intenso incremento do desprazer, em função do aumento da
excitação e nenhum alívio por meio de uma ação específica. Esse é o fundamento do norte
regressivo de orientação da libido: o rumo dos processos psíquicos primários que procura
encontrar uma satisfação sem que um objeto real precise existir. Trata-se de um empuxo
que se instaura pela insistência em reproduzir uma experiência impossível. Os sonhos
continuam todas as noites esse modo primitivo de processamento. Na Interpretação dos
sonhos, essas mesmas idéias do Projeto reaparecem precisamente quando Freud busca
abordar a natureza do desejo inconsciente. Assim, as conseqüências da vivência de
satisfação são postas nos termos de uma imagem mnêmica [que] fica associada, daí por
diante, ao traço mnêmico da excitação produzida pela necessidade.
Em decorrência do vínculo assim estabelecido, na próxima vez em que essa necessidade for
despertada, surgirá de imediato uma moção psíquica que procurará recatexizar a imagem
mnêmica da percepção e revocar a própria percepção, isto é, restabelecer a situação da
satisfação original. Uma moção dessa espécie é o que chamamos de desejo; o
reaparecimento da percepção é a realização do desejo, e o caminho mais curto para essa
realização é a via que conduz diretamente da excitação produzida pelo desejo para uma
completa catexia da percepção. Nada nos impede de presumir que tenha havido um estado
primitivo do aparelho psíquico em que esse caminho era realmente percorrido, isto é, em
que o desejo terminava em alucinação. Logo, o objetivo dessa primeira atividade psíquica
era produzir uma “identidade perceptiva” — uma repetição da percepção vinculada à
satisfação da necessidade. A amarga experiência da vida deve ter transformado essa
atividade primitiva de pensamento numa atividade secundária mais conveniente. O
estabelecimento de uma identidade perceptiva pela curta via da regressão no interior do
aparelho não tem em outro lugar da psique o mesmo resultado que a catexia dessa mesma
percepção desde o exterior. A satisfação não sobrevém e a necessidade perdura.
146
146
FREUD, S. A interpretação dos sonhos, p. 689.
99
Mas, retornando ao Projeto, o malogro na realização alucinatória de desejos, no
despertar da dor, dá outro curso ao processo: uma defesa contrária ao alucinar a satisfação e
o seu objeto. A dor põe em funcionamento todos os sistemas do aparelho psíquico.
Primeiro, porque ela é sentida como desprazer pelo sistema perceptivo e, segundo, porque
ela cria no sistema de memória uma conexão entre a tendência à descarga e a imagem do
objeto que causa a dor. A experiência de satisfação e a experiência de dor vão determinar
dois resíduos: os desejos e os afetos. “O desejo resulta numa atração positiva para o objeto
desejado, ou mais precisamente, por sua imagem mnêmica; a experiência da dor leva à
repulsa, à aversão por manter catexizada a imagem mnêmica hostil. Eis aqui a atração de
desejo primária e a defesa [rechaço] primária.”
147
Como podemos notar, a experiência de
satisfação e a experiência de dor determinam dois resíduos: a atração de desejo primária e a
defesa primária, respectivamente.
É pela experiência de investimento na lembrança da satisfação que a ausência do
objeto se presentifica, sem levar em conta os signos provenientes da percepção e sem saber
se as possibilidades de satisfação existem ou não na realidade. Contudo, perdura, na atração
desiderativa, o indicativo de que o objeto inexistente sempre está ao alcance. O objeto
assim concebido se constitui como a marca da esperança de um encontro com o absoluto e
a um só tempo a ausência mais radical dessa mesma possibilidade. A apreensão do caráter
paradoxal relativo ao objeto é importante para que possamos fundamentar grande parte das
elaborações de Freud sobre o modo de funcionamento próprio aos pensamentos
inconscientes.
A idéia segundo a qual o objeto da defesa é o mesmo da atração desiderativa
estabelece um modo peculiar de operação do processo primário, isto é, designa que há uma
147
FREUD, S. Projeto de uma psicologia para neurólogos, p. 232.
100
propensão dos investimentos inconscientes a orientarem-se para um ponto do qual
irremediavelmente se desviarão antes de alcançá-lo. Dito em outras palavras, o momento do
desvio dos investimentos em direção ao objeto é, ao mesmo tempo, o início da atração de
desejo. E isso porque perdura na atração de desejo a evidência de que o objeto encontra-se
ao alcance imediato. Assim, os investimentos próprios ao processo primário procuram
reinvestir na imagem do objeto, mas, sendo desviados antes mesmo de alcançarem o dito
fim, é no próprio desvio que se dá o ponto seguinte, onde os investimentos sofrem empuxo
ao objeto, que é, então, afirmado como possível de ser encontrado. Desse modo, a atração
de desejo é substituída pelo rechaço primário, e o contrário também é verdadeiro. O resíduo
dessa operação é um objeto perdido.
Com efeito, o objeto, impossível de ser reencontrado, perde-se no inalcançável e,
paradoxalmente, a atração de desejo afirma sempre o contrário, pondo em perspectiva a
possibilidade do encontro. A atração de desejo primária sendo substituída pelo rechaço
primário, bem como o segundo pelo primeiro e assim infinitamente, faz com que o objeto
em questão esteja ao alcance e não esteja ao alcance. Isso evidentemente cria uma lacuna e
deixa o objeto excluso de toda uma organização. E assim a busca é o único movimento, e o
encontro derradeiro jamais se torna efetivo. Esse é o fundamento do que o inconsciente
passa a afirmar como premissa: a premissa da existência do objeto.
Sobre esse assunto, encontramos no Projeto de 1895 o delineamento do que Freud
concebe como “a coisa”
148
, um objeto teoricamente forjado que dará suporte
metapsicológico às formulações a respeito dos pensamentos inconscientes.
A especulação a respeito da “coisa” se desdobra a partir de uma concepção que
afirma ser o eu, a princípio, incapaz de discernir a priori se o objeto da satisfação está ou
148
FREUD. S. Projeto de uma psicologia para neurólogos, p. 237.
101
não no mundo exterior. O eu se encontra numa situação de completo despreparo para
distinguir a fonte de estimulação que exige apaziguamento e terá que efetuar uma operação
para diferenciar entre a percepção e a representação do objeto da satisfação. Uma vez que o
sistema sensório-perceptual também fornece representações, faz-se imprescindível o
discernimento entre uma representação perceptiva e uma representação recordada, o que
ocorre fundamentalmente por meio da experiência de dor. “É a inibição pelo eu que
proporciona um critério de diferenciação entre a percepção e a recordação. A experiência
biológica ensinará então a não iniciar a descarga enquanto não haja chegado o signo de
realidade e a não ativar com tal fim, acima de determinada medida, o investimento de
recordações desejadas”
149
Assim, quando o eu se encontrar premido pelo desejo, no instante
de surgir um signo de realidade proveniente da percepção, poderá viabilizar a descarga em
direção à ação específica, ou seja, reduzir o nível de pressão na fonte de onde ela emana.
No item 16 do Projeto, Freud postula que, durante o processo de desejar, a inibição
por parte do eu produz uma catexia moderada do objeto desejado, que permite reconhecê-lo
como ausente na percepção e evitar a alucinação. No que tange às situações de presença ou
ausência do objeto e suas implicações com o investimento na recordação e na percepção,
Freud, frisando que as catexias perceptivas são sempre relativas a complexos de imagens,
hipotetiza três possibilidades. Na primeira situação, há a recordação produzida pelo
investimento de desejo que coincide com a percepção; na segunda, a representação da
recordação coincide parcialmente com a representação da percepção; no terceiro caso, a
recordação e a percepção nada têm de coincidentes.
Tomemos de início a primeira e a terceira variante. No caso da primeira, quando as
duas catexias coincidem inteiramente, temos o encaminhamento de uma situação que
149
FREUD. S. Projeto de uma psicologia para neurólogos, p. 236.
102
proporcionaria a satisfação ideal pela via de uma ação específica. Trata-se, é claro, de
situação ideal, que não corresponde a algo possível de ocorrer. A terceira situação seria a de
não haver coincidência alguma entre a percepção e a recordação. Nesse caso, haveria um
movimento no sentido de estabelecer um critério para distinguir entre a representação e a
percepção, encaminhando o processo de catexias em direção à recordação.
Em relação ao segundo caso, crucial para a nossa abordagem a propósito da “coisa”,
Freud descreve o seguinte: a catexia de desejo está presente e, ao seu lado, uma percepção
que corresponde parcialmente a ela. Tal situação acarreta um necessário julgamento
concernente à identidade ou diferença entre os dois complexos de imagens. No caso de
haver semelhança sem identidade, o eu procurará inibir as catexias a fim de não desdobrar
um processo alucinatório que desemboque na dor. O esquema de Freud fica deste modo
circunscrito: a catexia de desejo se relaciona com o neurônio A (a coisa) + o neurônio B (o
predicado), e a catexia perceptiva, com os neurônios A (a parte constante do complexo
perceptivo) + C (a parte variável do complexo).
O neurônio A se mantém como uma estrutura fixa e idêntica a si própria, que orienta
e, no entanto, é subtraída da operação. Permanece concomitantemente como objeto de
atração e de rechaço, forçando a distinção entre a percepção e a recordação. O eu segue
então trilhamentos associativos da parte variável do complexo perceptual — o neurônio C
— buscando B. O esquema diz respeito a um julgamento e é assim descrito:
caso o
neurônio A coincida (nas duas catexias) e, no entanto, o neurônio C seja percebido em lugar
do neurônio B, a atividade do eu deverá seguir as conexões desse neurônio C. Mediante
uma estimulação quantitativa que percorre essas conexões, novas catexias surgem, até que
se encontre acesso para o neurônio B faltante. Invariavelmente passar a existir a
representação de uma imagem motora interposta aos neurônios C e B. Quando essa imagem
103
motora é ativada de novo pela consumação real de um movimento, fica constituída a
percepção do neurônio B e, ao mesmo tempo, a identidade visada.
Freud cita então o seguinte exemplo: a imagem mnêmica desejada pelo bebê é a do
seio materno com o mamilo visto de frente, mas a primeira percepção obtida é uma visão
lateral do mesmo objeto, sem o mamilo.
Na memória da criança há uma experiência, casualmente adquirida no ato de mamar,
segundo a qual a imagem frontal se converte em lateral mediante determinado movimento
da cabeça. A imagem lateral agora percebida conduz à imagem do movimento da cabeça;
um teste experimental mostra que o equivalente desse movimento deve ser executado para
se obter a percepção da imagem frontal.
Por enquanto, ainda não há muito julgamento nisso; mas trata-se de um exemplo da
possibilidade de chegar, pela reprodução das catexias, a uma ação que já é uma das
ramificações acidentais da ação específica. Não resta dúvida de que o elemento subjacente a
essa migração ao longo dos neurônios facilitados é a Q proveniente do ego catexizado, e de
que essa migração não é regida pela facilitação, e sim por um objetivo. Que objetivo é esse
e como pode ser alcançado?
150
O objetivo, continua Freud, é retornar ao neurônio B faltante e suscitar a sensação
de identidade. O neurônio C opera alterando a solicitação do encontro de B até que a
diferença seja substituída pela semelhança. Aí então o juízo pára e dá-se o início da
descarga pela via da ação — em outros termos, a satisfação. O objetivo de toda essa
operação é lidar com a diferença entre o complexo de imagens de desejo e o complexo
perceptual, tornando a diferença mais próxima de uma semelhança.
O elemento que comanda a operação de possibilitar a semelhança entre os
complexos A+B e A+C é A, a “coisa”, um resíduo que escapa ao juízo. No caso do exemplo
do mamilo, acima destacado, o A não é nenhuma das imagens em quaisquer dos ângulos da
visão, mas, ao mesmo tempo, designa o que existe de comum a todas as representações
150
FREUD. S. Projeto de uma psicologia para neurólogos, p. 238.
104
perceptuais do seio. No caso, a “coisa” é o que há de comum entre a catexia de desejo e
todas as representações perceptuais do objeto seio.
A “coisa”, como o inassimilável, irrepresentável e excluído do pensamento, parece
estar numa relação muito estreita com o que alinhavávamos acima a respeito do objeto
paradoxal do desejo e do rechaço primários, ressignificando o pequeno mito a respeito da
“experiência primária de satisfação”, uma alucinação fundamental que subsidia as reflexões
freudianas a respeito do objeto como perdido. Temos aqui o pivô em torno do qual o
princípio de prazer passa a operar — melhor dizendo, a própria constituição do princípio de
prazer, que passa a se dirigir a um absoluto inalcançável.
Para Lacan, com esse campo do das Ding somos lançados para algo que até mesmo
se encontra bem além do âmbito do afeto. Trata-se aí, de um “registro em que existe, ao
mesmo tempo a boa vontade e a má vontade, esse volens nolens que é o verdadeiro sentido
dessa ambivalência que se apreende mal quando é abordada no nível do amor e do ódio.” É
até mesmo a preferência pela má vontade no nível da reação terapêutica negativa, que
Freud encontra o campo de das Ding. É como um paradoxo ético que o campo de das Ding
é reencontrado no final, e que Freud aí nos designa o que na vida pode preferir a morte.
151
Freud manteve ao longo de toda a sua obra a idéia de um aparelho psíquico que se
ampara sobre uma realidade absolutamente frágil, precária porque se estrutura sobre uma
alucinação. No texto Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental, ele
retorna até as linhas de pensamento desenvolvidas no Projeto e na Interpretação dos
sonhos, textos nos quais afirmou que o estado de repouso psíquico foi originalmente
perturbado por exigências imperiosas de necessidades internas. Quando isso se deu,
observa Freud nos Dois princípios, o pensado (desejado) ficava representado de maneira
151
LACAN, J. A ética da psicanálise, p. 131.
105
alucinatória. Foi a frustração na ausência da satisfação ansiada pela criança que levou o
aparelho a abandonar essa tentativa de satisfação por meio da alucinação. Em vez disso, o
aparelho psíquico precisou representar as circunstâncias reais no mundo externo e
empenhar-se por efetuar modificações na realidade. Um novo princípio de funcionamento
mental foi assim introduzido; o que se apresentava na mente não era mais o agradável, mas
o real, mesmo que pudesse ser desagradável. O estabelecimento do princípio de realidade
trouxe consigo conseqüências importantíssimas.
152
Entretanto, não é unicamente o princípio de prazer que opera em torno do objeto
perdido. O fundamento mesmo do que é exterior ao sujeito, a base de toda alteridade e do
princípio de realidade, pressupõe tal perda. Verificamos isso no texto A negação:
... a antítese entre subjetivo e objetivo não existe a princípio. Constitui-se tão logo o
pensamento possua a faculdade de fazer-se de novo presente, por meio da imagem outrora
percebida, sem que o objeto tenha que continuar existindo fora. A primeira e mais imediata
finalidade do exame de realidade, não é, pois, encontrar, na percepção real, um objeto
correspondente ao imaginado, mas voltar a encontrá-lo, convencer-se de que ainda existe. A
outra contribuição à separação entre o subjetivo e o objetivo provém de uma outra distinta
faculdade do pensamento. A reprodução como imagem nem sempre é a sua repetição exata
e fiel, mas pode ser modificada por omissão e alterada pela fusão de distintos elementos. O
exame de realidade deve, então, comprovar até onde alcançam tais deformações. Mas
descobrimos, como condição do desenvolvimento do exame de realidade, a perda de objetos
que um dia encontraram satisfação real.
153
Originalmente orientado de modo a alucinar, o aparelho psíquico, para não perecer,
deve incessantemente reformular, reencontrar a busca em direção ao objeto. Esse é o
elemento de base que subsidia até mesmo a inclinação do princípio de realidade para o
mundo exterior e para a diferenciação entre o representado e o percebido. Tal como ficou
enfatizado na passagem supracitada do texto A negação, inclusive no caso do exame de
152
FREUD, S. Os dois princípios do funcionamento mental, p. 1638.
153
FREUD, S. A negação, p. 2885.
106
realidade, a sua primeira e mais imediata finalidade não é encontrar, na percepção real, um
objeto correspondente ao imaginado, mas voltar a encontrá-lo, convencer-se de que ainda
existe. O exame de realidade parte da premissa da existência do objeto. A respeito desse
objeto, Lacan ainda diz o seguinte:
É por sua natureza que o objeto é perdido como tal. Jamais ele será reencontrado. Alguma
coisa está aí esperando algo melhor, ou esperando algo pior, mas esperando. O mundo
freudiano, ou seja, o da nossa experiência comporta esse objeto, das Ding (a Coisa),
enquanto o Outro absoluto do sujeito que se trata de reencontrar. Reencontramo-lo no
máximo como saudade. Não é ele que reencontramos, mas suas coordenadas de prazer; é
nesse estado de ansiar por ele e de esperá-lo que será buscada, em nome do princípio de
prazer, a tensão ótima abaixo da qual não há mais nem percepção nem esforço.
No final das contas, sem algo que alucine enquanto sistema de referência, nenhum mundo
da percepção chega a ordenar-se de maneira válida, a constituir-se de maneira humana. O
mundo da percepção nos é dado por Freud como que dependendo dessa alucinação
fundamental, sem a qual não haveria nenhuma atenção possível.
154
Levando especialmente em consideração o que vimos até aqui acerca do objeto, “a
coisa”, e sua especial função para as vicissitudes do aparelho psíquico, há duas
decorrências a destacar:
(A) A construção freudiana aponta para indícios de um objeto que se situa excluído
da organização inconsciente e, no entanto, causa suas operações. Trata-se de um objeto que,
na referência às marcas de satisfação, precipita-se para fora do aparelho psíquico, formando
uma exterioridade interna, em torno da qual o princípio de prazer opera.
(B) É em função desse objeto perdido (“a coisa”
155
) que o inconsciente afirma a
premissa da existência do objeto. A partir dessa idéia, trabalharemos, no próximo capítulo,
a fundamentação da premissa da universalidade do falo.
154
LACAN, J. A ética da psicanálise, p. 69.
155
FREUD, S. Projeto de uma psicologia para neurólogos, p. 237.
107
A reflexão a respeito do objeto perdido se dá no interior de um contexto teórico que
aborda o campo das representações ideativas. Garcia-Roza menciona algumas passagens
desse texto em que Freud se refere ao objeto perdido e sua relação com as representações:
Em três momentos do Projeto, Freud faz uma clara referência a uma divisão de complexos
perceptivos num componente não assimilável (Ding) e num componente conhecido do eu
através da sua própria experiência. Se remontarmos a um texto mais antigo, sua monografia
sobre a afasia, datado de 1891, vamos novamente encontrar uma referência preciosa à
ilusão das representações-objeto (Sachevorstellungen) de serem uma “coisa(Ding).
Nos textos acima citados, o que fica claro é a afirmação de que no nível das Vorstellungen
algo permanece de não assimilável, de excluído da organização psíquica, ou, melhor ainda,
de um “interior excluído” em torno do qual a organização psíquica se faz.
156
Lacan chama a atenção para esse texto, frisando que as representações
(Vorstellungen) são concebidas por Freud como algo essencialmente decomposto. Trata-se
dos representantes ideativos da pulsão que se fazem expressos no aparelho psíquico e
gravitam em torno de um vazio central. Em torno desse vazio — jamais atingido ou
apreendido como tal — foi construída a filosofia do Ocidente e também a fantasia.
157
Das
Ding é, no ponto inicial, tanto lógica quanto cronologicamente, aquilo que se constitui
como a exterioridade em torno da qual gira todo o movimento das representações,
governado pelo princípio de prazer.
Fica assim estabelecida uma orientação ao aparelho, uma busca que encontra
satisfações vinculadas à relação com o objeto
158
, as quais se modalizam de acordo com o
princípio de prazer. Essa lei fixa uma quantidade de excitação que não pode ser
ultrapassada sem transpor o limite da polaridade prazer-desprazer. Lacan observa ainda que
156
GARCIA-ROZA, L. A. O mal radical em Freud. Rio de Janeiro: Zahar, 1990. p. 88.
157
LACAN, J. A ética da psicanálise, p. 79.
158
Ibid., p.77.
108
A admissão da quantidade é regulada — a coisa é metaforicamente articulada por Freud,
mas quase como se fosse ao pé da letra — pela dimensão das vias de condução, pelo
diâmetro individual daquilo que o organismo pode suportar. O que ocorre para além do
limite? A impulsão psíquica nem por isso tornou-se capaz de ir mais longe em direção à sua
meta — mas antes, justamente, ela se espalha, se difunde no organismo psíquico, a
quantidade se transforma em complexidade. Numa espécie de expansão da zona iluminada
do organismo neurônico, ela vai acender mais longe, aqui, acolá, segundo as regras do
trilhamento associativo, constelações de Vorstellungen que regulam a associação de idéias,
Gedanken inconscientes, segundo o princípio de prazer.
159
A “coisa” não concerne ao domínio das representações, mas diz respeito a um vazio
dessas representações. O objeto perdido da alucinação fundamental forma uma espécie de
exterioridade primordial, em torno da qual passam a gravitar as representações.
Ana Beatriz Freire comenta tanto o texto freudiano quanto o lacaniano
160
e assinala
que Das Ding é aquilo que está fora da realidade, fora do significante, mas demarca a
relação possível entre as palavras e as coisas; está situada numa relação com o princípio de
prazer, enquanto relacionada com as representações de coisa e com o princípio de
realidade, na medida em que este se encontra ligado às representações de palavra. Trata-se
da representação que, articulando-se com o “bom” e o “mau”, orienta o sujeito para um
prazer direto ou adiado. E ainda, essa ordem da representação, onde se opera o bom ou o
mau, é um indício daquilo que orienta o sujeito em busca de um estado eleito, estado de
desejo, de espera de um objeto qualquer, regulamentado por das Ding, mesmo sendo ela o
impossível.
Das Ding também está relacionada com a própria constituição do narcisismo,
entretanto, como aquilo que se subtrai à imagem na qual o sujeito pensa, julga se
reconhecer, identificando-se com a imagem de seu semelhante. Freire comenta que:
159
Loc. cit.
160
FREIRE, A. B. Por que os planetas não falam? : o real na psicanálise e o real na ciência moderna. Rio de
Janeiro: Revinter, 1997. p. 162.
109
o vacúolo que se produz dessa imagem especularmente unificada, assim como a defasagem
entre as associações perceptivas, isto é, essa não identidade entre representações, é o que
revela a persistência de uma constância, de uma alteridade absoluta com a representação
chamada das Ding. Enquanto lugar definido por falha, defasagem, fração, das Ding é o
buraco causal de que fala Lacan em toda a sua obra. Pode ser considerado o objeto perdido
por Freud, o Outro absoluto em termos de Lacan, ou o que ele irá chamar mais tarde,
substituindo o modelo mecânico do Projeto pelo modelo topológico, o objeto a, à medida
que ele é o vacúolo ao redor do qual giram os movimentos de significantes — seja sob a
forma de alucinações ou de formações do inconsciente.
161
Comparados com esse tempo mítico, o complexo de castração e o complexo de
Édipo são tardios e se situam no contexto de acontecimentos simbólicos que retroagem ao
mais elementar da constituição psíquica. Nessa retroação, eles conferem contornos de
sentido, de interpretação ao mais primitivo. No caso da castração, a constatação da falta do
objeto faz a criança teorizar ou, se quisermos, fantasiar a questão relativa à falta pelo seu
avesso, isto é, afirmando a presença. E assim o faz colocando seu próprio corpo no centro
da teoria.
O que fundamenta essa teoria é a pergunta pelo ser. A questão do ser não é um
interesse puramente abstrato para as crianças, mas concerne invariavelmente à diferença
sexual anatômica, e a resposta recai sobre o tema do masculino e do feminino —
posteriormente, do homem e da mulher.
No pensamento de Freud sobre a sua clínica, encontramos um aspecto relevante que
afirma estar a angústia imbricada com a questão concernente ao ser. Essa reflexão apresenta
o modo como se estabelece a premissa do falo, que fundamenta o desdobramento do
complexo de castração.
161
FREIRE, A. B. Por que os planetas não falam? : o real na psicanálise e o real na ciência moderna. Rio de
Janeiro: Revinter, 1997. p. 163.
110
Dois meses antes de sua morte, Freud anota esquematicamente o seguinte sobre a
identificação e o ‘ser’: “Ter e ser na criança. A criança prefere expressar a relação objetal
mediante a identificação: eu sou o objeto. O ter é posterior, e volta a recair no ser uma vez
perdido o objeto. Modelo: o peito materno. O peito é uma parte de mim, eu sou o peito.
Mais tarde, apenas: eu o tenho quer dizer eu não o sou”.
162
A criança se estrutura de tal modo que o falo se impõe como central. O falo, aqui,
diz respeito a um elemento de natureza simbólica que vem a representar para o sujeito, ser
ele mesmo o objeto. Temos aqui a afirmação do ser vindo a situar a criança como antípoda
da falta do objeto: “o objeto não está perdido, eu sou o objeto”. Nessa perspectiva, trata-se
de ser um objeto que primeiramente venha a preencher uma falta na mais primitiva
alteridade do sujeito, a mãe.
Destarte, o juízo do infans contradiz a sua percepção. Contradiz a percepção porque
esta apresenta as perdas e a constatação da falta. Entretanto, sua ilusão nos revela a pré-
condição daquilo lhe é verdadeiramente próprio. Ou seja, salienta que há ausência de um
símbolo do objeto perdido no inconsciente. E no lugar dessa ausência a criança faz existir
seu próprio corpo. Identifica-se ao falo, e assim o objeto não fica faltando. A presença do
objeto marca a existência da criança, e a percepção da falta assegura a iminência do seu
não-ser.
O texto A negação, dentre tantas idéias, subsidia o debate atinente à percepção da
diferença anatômica entre os sexos. Lemos aí que o juízo de existência se fundamenta na
relação entre a representação e a percepção. Freud diz que a primeira e mais imediata
finalidade do exame de realidade não é a de encontrar na percepção real um objeto
correspondente ao imaginado, mas voltar a encontrá-lo, convencer-se de que ele ainda
162
FREUD, S. Conclusões, idéias, problemas, p. 3431.
111
existe.
163
Desse modo, no que tange ao falo, não entra em questão se ele existe ou não
existe, porque a premissa já está posta. Perceber é reencontrar, o que pressupõe o corte
representado pela perda — paradoxal, certamente — de um objeto nunca havido.
Não obstante isso, e retomando o primeiro capítulo desta dissertação, algo torna
possível a não-perda do objeto: a identificação, que preserva o objeto para o isso. A
identificação é, ainda, a forma mais primitiva de relação com o objeto; na fase oral
primitiva não é nem mesmo possível diferenciar um investimento objetal de uma
identificação.
164
Ela é necessariamente relativa ao fálico e justamente por isso Freud aponta
como enigmática a constituição da sexualidade feminina, intimamente associada ao objeto e
à passividade. E a passividade extrema descreve um traço característico fundamental do
desamparo no trauma.
O desamparo encontra solução na relação objetal, e a criança expressa a relação
objetal mediante a identificação: eu sou o objeto.
165
O objeto materno é uma parte da
criança, ela é o objeto. Isso nos situa na reiterada observação freudiana de que é realmente
traumática a constatação da falta no objeto materno. Mais do que a ameaça de castração
para o menino, por exemplo, é a descoberta da castração na mãe que se impõe como
traumática. A falta na mãe situa o sujeito infantil diante de sua frágil identificação ao falo:
se a mãe não tem, a criança não é.
O falo tem na obra freudiana o estatuto de objeto cujo cerne é simbólico. Ele é
aquilo que, segundo Lemaire, se constitui como o significante da identidade possível.
“Toda separação, perda ou corte, mesmo a da parturição e, sobretudo ela, remete ao Fálus.
É preciso entender o Fálus no sentido de cravelha mestra, da articulação que não se deixa
163
FREUD. S. A negação, p. 2885.
164
FREUD. S. O eu e o isso, p. 2710.
165
FREUD, S. Conclusões, idéias, problemas, p. 3431.
112
apreender, nem na figura anatômica do sexo masculino, nem na do sexo feminino, mas
quando muito, como cópula. É ainda, poder-se-ia dizer, o traço da união na evanescência de
sua ereção. O Fálus é o significante da identidade possível.”
166
Trata-se de um elemento simbólico que se apresenta diante de uma ausência, seja de
representações, seja da falta na mãe e assim por diante. De todo modo, a proximidade em
face de tal ausência foi sublinhada como vindo a suscitar um acontecimento na expressão
dos afetos, especialmente um afeto sem representação: a angústia.
A angústia descreve um sinal de perigo, mas ela é apotropaica e envolve um
desprazer que espontaneamente leva ao recalcamento. O afeto aqui faz notar que a
articulação fantasmática tem como função primordial elidir a falta do objeto — tal qual a
visão da cabeça da Medusa, que paralisa de terror, como Freud bem expressa: “Eis aqui
confirmada a regra técnica segundo a qual a multiplicação dos símbolos fálicos significa a
castração.”
167
Traz em seu bojo ocorrências imaginárias de conteúdo aterrador e, no
entanto, mantém preservada a presença do objeto: “ele é medonho, mas existe”. Assim, a
falta passa ao largo. É essa a estratégia do princípio de prazer.
A relação entre a angústia e a falta do objeto da pulsão, como salientamos
anteriormente, suscita a reflexão teórica acerca do afeto como o outro modo de a pulsão se
fazer representada na vida mental. O movimento do inconsciente diante da proximidade da
ausência de representações é tecer uma fantasia que forneça representação, vale dizer,
presença na ausência. Cabe aqui lembrar que no inconsciente não existe sequer um “signo
166
LEMAIRE, A. Jacques Lacan: uma introdução. Rio de Janeiro: Campus, 1986. p. 194.
167
FREUD, S. A cabeça da Medusa, p. 2696.
113
de realidade” e sua realidade é fundada na fantasia.
168
Entre a percepção e a consciência se
interpõe a realidade do fantasma.
A produção fantasmática confere à força pulsional um caráter perigoso, um
contorno assustador, apresentado por Freud já em 1915, em O recalque. Nesse texto, ele diz
que a clínica analítica tem observações importantes para a compreensão dos efeitos do
recalque nas psiconeuroses. A psicanálise nos revela:
que o representante pulsional se desenvolve mais livre e profusamente quando lhe é retirada
a influência consciente. Ele prolifera na escuridão, por assim dizer, e assume formas
extremas de expressão, que uma vez traduzidas e apresentadas ao neurótico irão não só lhe
parecer estranhas, mas também assustá-lo, mostrando-lhe o quadro de uma extraordinária e
perigosa força da pulsão. Essa força enganosa da pulsão resulta de um desenvolvimento
ilimitado da fantasia.
169
Essa é uma tese vivamente operante em pontos bem avançados do pensamento
freudiano, já citados no capítulo anterior, a respeito do masoquismo: “O medo de ser
devorado pelo animal totêmico (o pai) procede da primitiva organização oral; o desejo de
ser maltratado pelo pai, da fase sádico-anal imediatamente posterior; a fase fálica da
organização introduz no conteúdo das fantasias masoquistas, a castração”
170
. O contorno
assustador que a força pulsional adquire advém da fantasia, tão marcante quanto a cabeça
decapitada da Medusa.
Encontramos essa tematização também no texto O estranho, de 1919, que versa
sobre a angústia e o fantasma. Evocando cenas de mutilação — membros arrancados, a
cabeça decepada, a mão cortada pelo pulso, como num conto fantástico de Hauff, pés que
dançam por si próprios, como no livro de Schaeffer —, Freud diz que essa espécie de
168
FREUD, S. Carta nº 69, p. 3578.
169
FREUD, S. O recalque, p. 2055.
170
FREUD, S. O problema econômico do masoquismo, p. 2755.
114
apresentação sinistra origina-se da proximidade ao complexo de castração. E mesmo com
relação à idéia de ser enterrado vivo por engano, considerada por muitos como a coisa mais
aterrorizante de todas, a psicanálise afirma ser essa fantasia uma transformação de outra
fantasia, que originalmente nada tinha de assustador, mas caracterizava-se por certa lascívia
— a fantasia da existência intra-uterina, ou seja, de inclinação ao incesto. Freud prossegue:
Há mais um ponto de aplicação geral que gostaria de acrescentar, embora, estritamente
falando, tenha sido incluído no que já foi dito acerca do animismo e dos modos de ação do
aparato mental que foram superados; mas penso que merece destaque especial. Refiro-me a
que um estranho efeito se apresenta quando se extingue a distinção entre fantasia e
realidade, como quando algo que até então considerávamos imaginário surge diante de nós
na realidade, ou quando um símbolo assume as plenas funções da coisa que simboliza, e
assim por diante. É esse fator que contribui não pouco para o estranho efeito ligado às
práticas mágicas. Nele, o elemento infantil, que também domina a mente dos neuróticos, é a
superenfatização da realidade psíquica em comparação com a realidade material — um
aspecto estreitamente ligado à crença na onipotência dos pensamentos.
171
Freud encontrou traços comuns na crença da onipotência das idéias no delírio
paranóide, no pensamento mágico das crianças e na crença dos povos primitivos de que os
acontecimentos na natureza têm íntima relação com as atividades humanas, traços que nos
fazem notar o caráter fálico do inconsciente, que, levando em conta somente a realidade de
suas idéias, tudo sabe, é onisciente.
Quando a fronteira entre a realidade psíquica e o princípio de realidade se faz menos
nítida, tal caráter fálico inconsciente se manifesta com maior força na vida anímica e passa
também a ser detectado no mundo exterior. Aí, um símbolo adquire as funções da coisa que
simboliza. Freud faz a mesma observação para a atividade intelectual: no artigo O
inconsciente, relaciona a atividade filosófica com o pensamento dos esquizofrênicos,
dizendo que, ao pensarmos em abstrações, há sempre o risco de chegarmos a “negligenciar
171
FREUD, S. O estranho. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3). p. 2499.
115
as relações de palavras com as apresentações inconscientes da coisa, e não se pode negar
que o conteúdo do nosso filosofar começa então a adquirir uma semelhança indesejável
com a expressão e o conteúdo do trabalho mental dos esquizofrênicos. Podemos, por outro
lado, tentar uma caracterização da modalidade de pensamento do esquizofrênico dizendo
que ele trata as coisas concretas como se fossem abstratas.
172
Sinteticamente falando, o
que ocorre é que a catexia da representação de palavra faz parte da primeira das tentativas
de cura que dominam o quadro clínico da esquizofrenia. Essas tentativas são dirigidas para
a recuperação do objeto perdido e pode ser que, para alcançar esse propósito, enveredem
por um caminho que conduz ao objeto através de sua parte verbal, vendo-se então
obrigadas a se contentar com palavras em vez de coisas.
173
No encaminhamento das idéias deste capítulo, buscamos fundamentar a potência ou
o aspecto fálico dos pensamentos inconscientes como resultantes da relação com a falta do
objeto. Parece que a realidade fantasmática inconsciente é engendrada por representações
que venham, na antítese, fazer a presença do objeto, exatamente na proximidade da sua
ausência. Essa ausência relativa ao objeto perdido aparece no texto freudiano ligada com a
noção de “umbigo do sonho”:
Nos sonhos melhor interpretados, podemos ver-nos obrigados a deixar nas trevas
determinado ponto, pois observamos que constitui um foco de convergência das idéias
latentes, um nó impossível de desatar, mas que, no entanto, não trouxe outros elementos
para o conteúdo manifesto. Isto é o que podemos considerar como o umbigo do sonho, ou
seja, o ponto pelo qual encontra-se conectado com o desconhecido. As idéias latentes
descobertas na análise não chegam nunca a um limite e temos que deixá-las perderem-se
por todos os lados no tecido reticular do nosso mundo intelectual. De uma parte mais densa
deste tecido eleva-se logo o desejo do sonho.
174
172
FREUD, S. O inconsciente, p. 2082.
173
Id.
174
FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 1). p.
666.
116
Temos aqui o lugar de onde emerge o desejo. O umbigo dos sonhos, o ponto pelo
qual a atividade dos pensamentos inconscientes encontra-se ligado com o “desconhecido”,
caracteriza-se por ser o foco de convergência dos elementos que se aproximam da
apreensão daquilo que não é assimilável e, portanto, jamais se inscreve no campo das
representações. Os elementos que gravitam à volta do umbigo dos sonhos são precisamente
o material do recalcamento originário, que trabalharemos no próximo capítulo. Além dessa
fronteira, a apreensão do “desconhecido” ocorreria sem a intermediação da representação,
ou seja, o traumático. Notemos que Freud designa ser o umbigo o ponto em que o sonho
está ligado ao desconhecido, e não o próprio desconhecido. Essa é a báscula em que a
pulsão se faz representar em inscrições que tomarão as mais diversas vicissitudes, e os
pensamentos inconscientes serão “pulverizados” por todos os lados “no tecido reticular do
nosso mundo intelectual”, fazendo emergir, da parte mais densa desse tecido, o desejo.
O desejo, que surge no sonho, é o empuxo para o encontro do objeto da satisfação.
Contudo, estando este último inteiramente fora de alcance, a fantasia alucinatória fabricada
no sonho descreve uma sucessão de cenas cuja característica é representar o desejo como
realizado numa alucinação. De qualquer forma, o trabalho do sonho progride e se constitui
numa fantasia que dá expressão ao impulso inconsciente — uma fantasia realizadora de
desejo que se exterioriza no sistema pré-consciente.
A determinação inconsciente de apresentar o desejo como realizado e, desse modo,
estabelecer a presença de uma falta constitutiva, que indefinidamente desloca o encontro
com o objeto, não é exclusividade dos processos oníricos. Tal acontecimento renova-se
também nos processos da vigília. Isso ocorre porque o inconsciente traça suas
combinatórias simbólicas, por meio de deslocamentos e condensações, em função do que
117
lhe falta e não apresenta resolução em si mesmo para realizar-se. Portanto, terá que buscar
tal realização manifestando-se em outro lugar e é precisamente isso que forma a base sobre
a qual se assentam o complexo de castração e o complexo de Édipo, que, sabemos, têm
como nódulo central a construção de um mito.
Retornando ao texto Teorias sexuais infantis e que abordamos no primeiro capítulo,
relembramos que há uma teorização, encontrada com regularidade nas crianças, que versa
sobre a igualdade do corpo das pessoas. Todos os seres são possuidores de um órgão fálico.
O menino, enquanto só conhece o próprio corpo, não consegue conceber um ser desprovido
de tão importante órgão. Ao tomar conhecimento do corpo das mulheres, passa a cogitar a
possibilidade de castração. Embora Freud aponte o menino como sendo o principal sujeito
de tal teoria, ele lembra o fato de que a menina também não espera tamanha desigualdade e
se decepciona com o próprio corpo. Assim, sentindo-se vítima de uma desvantagem e
invejando o masculino, a menina culpa a mãe por tê-la desprovido de pênis. É preciso frisar
que as teorias sexuais infantis, tal como o engendramento de mitos, são concebidas pela
psicanálise como o esforço por tematizar através de recursos pautados pelo princípio
fundamental de regulação dos processos psíquicos, que é o princípio de prazer. Tal recurso
recebe de Freud um nome: fantasia. A teoria, a fantasia sexual infantil é uma tentativa de
dar arcabouço simbólico àquilo que escapa ao modo habitual de captura de representação
pelo princípio de prazer. E, dado que o princípio de prazer não tem apreensão da ausência,
da falta, da negatividade, ele tece uma presença fantástica no exato ponto onde a ausência
se faz presente. Esse é o tema central do próximo capítulo, que versará sobre o
recalcamento primário e o fantasma inconsciente.
118
Capítulo IV
CONCLUSÃO
RECALCAMENTO PRIMÁRIO, FALO E SIGNIFICAÇÃO
Acabamos de dizer, ao final do capítulo anterior, que as teorias sexuais infantis,
assim como as construções míticas, revelam um tratamento simbólico fundado em recurso
próprio ao princípio de prazer. A seguir apontamos para a fantasia como sendo aquilo que
fornece o contorno simbólico para o que se encontra fora do campo da representação, o
mais além do princípio de prazer.
O núcleo de uma neurose sempre contém elementos extraídos de teorias infantis, até
mesmo porque o complexo de Édipo é em grande parte constituído por elas. No texto
Teorias sexuais infantis, Freud comenta três teorias infantis e um problema teórico que os
adultos apresentam para as crianças. Esse problema advém da explicação de que as crianças
vêm ao mundo trazidas por cegonhas. Uma vez que as crianças não acreditam nessa
explicação, ela não se constitui em teoria, mas num problema a ser eliminado. A primeira
teoria sexual é a de que todas as crianças têm o mesmo sexo. A segunda teoria diz respeito
à falta de conhecimento da vagina, levando o infans à crença de que os bebês nascem pelo
tubo intestinal e, sendo assim, os homens também podem dar a luz a bebês. A terceira
teoria diz respeito ao casamento. As crianças olham para o casamento como uma forma de
amor e principalmente de poder, em que o mais forte manda e o mais fraco obedece. A
diferença sexual não é, portanto, concebida tão-somente como diferença, mas uma
diferença que envolve uma valoração em termos de mais e menos, melhor e pior.
119
Além disso, tal como Godino Cabas acertadamente arrazoa, Freud denominou as
fantasias de “teorias”, de modo a sublinhar que não se trata de um produto qualquer do
inconsciente, mas de uma resposta a um enigma formulado pela existência de funções
díspares: disparidade que, em princípio e aparência, se apresenta à criança como
contradição. São as funções da mãe, do pai e a função de mediação, e esses enigmas se
apóiam nas pulsões, passam a intervir em termos da oposição entre o registro anal e o
peniano, por exemplo. O autor inclusive toma a observação freudiana que certa patologia
masculina divide a mulher, de maneira a produzir, por um lado, um objeto sexual denegrido
e propriamente genital; por outro, um objeto sexual idealizado e referenciado na mãe. A
cisão responderia, portanto, ao dilema formulado entre a pulsão genital e uma tendência
carinhosa.
175
Cabas assim complementa:
A rigor, a investigação freudiana nos mostra que se pode fazer uma história do fantasma e
que esta é absolutamente congruente com a história do sujeito. Não pode ser de outro modo,
posto que as fantasias seriam uma tentativa de representar a condição do homem, que, à
medida que se via desenvolvendo numa circunstância particular, particulariza essas
condições numa história concreta. Primeira premissa: os fantasmas são uma representação
da condição universal do homem. Segunda premissa: como o sujeito se realiza em uma
circunstância particular, os fantasmas se subjetivam.
Assim sendo, o fantasma é histórico ao mesmo tempo que ilusório. Precisamente por ser
ilusório, aparece como subjetivo; e, por ser histórico, aparece na dependência de um
universal, portanto, simbólico: dupla vertente, que, definitivamente, rege toda a formação
do inconsciente.
176
O universo simbólico infantil é revestido por um aspecto fálico peculiar, que é
apoiado pelo fato de os pais serem autoridades e, assim, serem idealizados como fonte de
todo saber. Nesses primeiros anos a tendência é a criança se identificar ao progenitor do
mesmo sexo, procurando ser de acordo com os atributos que admira em seu pai e/ou sua
175
CABAS, A. G. Curso e discurso da obra de Jacques Lacan, p. 42.
176
Ibid., p. 49.
120
mãe. Entretanto, não tarda a encontrar defeitos nesses objetos tão grandiosos e acaba por
colocar sob suspeita as qualidades extraordinárias e incomparáveis que lhes atribuíra. Para
manter essa atitude crítica, utiliza seu novo conhecimento — de que existem outros pais,
que em certos aspectos são preferíveis aos seus. Posteriormente e mesmo já afastado dos
seus pais, o neurótico refaz antigos laços num “romance familiar”, e o romance infantil
raramente é recordado conscientemente, mas suscetível de ser revelado pela psicanálise
quando a fantasia se dá a ser decifrada pelo analisante. Sobre a fantasia, Freud comenta:
Essa atividade emerge inicialmente no brincar das crianças e depois, mais ou menos a partir
do período anterior à puberdade, passa a ocupar-se das relações familiares. Um exemplo
característico dessa atividade imaginativa está nos devaneios que se prolongam até muito
depois da puberdade. Se examinarmos com cuidado esses devaneios, descobriremos que
constituem uma realização de desejos e uma retificação da vida real. Têm dois objetivos
principais: um erótico e um ambicioso — embora um objeto erótico esteja comumente
oculto sob o último. No período já mencionado, a imaginação da criança entrega-se à tarefa
de libertar-se dos pais, que desceram em sua estima, e de substituí-los por outros, em geral
de uma posição social mais elevada.
177
A retificação da realidade faltante — já que se dá uma vez detectada as imperfeições
dos pais — se reveste de atributos eróticos, especificamente fálicos. Comentamos, no final
do Capítulo Três, que o caráter fálico dos pensamentos inconscientes resulta da relação com
a falta do objeto; que, na proximidade da ausência, a fantasia inconsciente é articulada em
termos de representações que, por antítese, tornem presente o objeto. Sinalizamos também
que a questão do objeto é central na tematização da pulsão. E isso porque o objeto é o meio
pelo qual a pulsão se satisfaz; entretanto, ele é forçosamente indeterminado, ou melhor,
perdido.
Tal indeterminação a priori é precisamente o que serve de base tanto para o
177
FREUD, S. A novela familiar do neurótico. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2). p.
1362.
Vide páginas 79-81.
121
narcisismo quanto para a constituição da premissa do falo. Essa mesma idéia já estava
contida no Capítulo Dois, quando apresentávamos a relação entre a repetição e a falta do
objeto e frisávamos a repetição no âmbito transferencial. Dizíamos, então, que a repetição
coloca, no curso das sessões, um procedimento próprio aos processos inconscientes, no
sentido de elaborar o traumático e, portanto, o elemento mais variável da pulsão, ou seja, o
objeto. Evocamos inclusive a noção freudiana de “umbigo do sonho”: o ponto pelo qual a
atividade dos pensamentos inconscientes encontra-se muito próximo do inassimilável e que
não se inscreve no campo das representações, compelindo o aparelho psíquico a proceder
com a repetição. Salientamos que as representações constituintes da borda do “umbigo dos
sonhos” são o material do recalcamento primário e, daí, pontuamos que, para além dessa
fronteira, está o traumático.
A tematização acerca do recalque primário surge com maior ênfase na teoria
freudiana, em concomitância com as elaborações sobre os pontos de fixação da libido,
apontando para o fato que, no trajeto que vai da fonte à finalidade, além de a pulsão ser
representada, há determinado grupo de representações que adquirem privilégio de
expressão.
O início de A dinâmica da transferência é exemplar para evidenciarmos a utilização
da noção de “fixação” para subsidiar as reflexões acerca da experiência. Freud começa o
artigo dizendo que o tema da transferência, tão dificilmente esgotável, já foi abordado, do
ponto de vida descritivo, por W. Stekel; agora se trata de saber por que a transferência
necessariamente surge nas análises e como é que chega a desempenhar um papel tão
importante
178
. E então prossegue, evocando ao leitor suas construções sobre a etiologia do
178
FREUD, S. A dinâmica da transferência. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2). p.
1648.
122
sintoma, em que o fator “disposição por fixação da libido” desempenha importante papel
nas “séries complementares”. Essa disposição por fixação da libido resulta da ação conjunta
dos acontecimentos pré-históricos e dos acontecimentos da primeira infância,
principalmente o que estruturou no complexo de Édipo
179
. Tal composição determina e fixa
os fins da vida libidinal dos sujeitos, as condições que haverão de mobilizar as paixões e as
pulsões a serem satisfeitas. Decorre da fixação da libido um ou vários clichês que
orientarão as buscas do sujeito, mas somente uma parcela da libido assim fixada fica
dirigida para a realidade exterior e à disposição da função consciente. À outra parte é
subtraído, por veto do eu, o acesso à consciência, difundindo-se em fantasmas. Decorre
disso que, não encontrando sua satisfação por meio de objetos na realidade, a libido
encontrará algum modo de fazer-se representar na relação com pessoas que lhe apareçam
no horizonte. Assim, é provável que o investimento libidinal insatisfeito fique de antemão
inclinado a se orientar para o analista. Esse investimento se enlaçará a um dos clichês dados
no sujeito, isto é, incluirá o psicanalista numa das “séries” psíquicas que o paciente formou
até então.
180
O mecanismo da transferência fica, portanto, explicado na sua referência à
disposição da libido que permaneceu aderida às marcas infantis.
O termo “fixação” encontra-se, na obra de Freud, usado de forma bastante
abrangente, e seu emprego mais regular aparece nas formulações acerca da formação de
sintomas. Tanto ali quanto na estruturação do complexo de Édipo está subjacente certa
ordenação de fases que acentuam modalidades peculiares de satisfação pulsional. E o
neurótico dá privilégio a um modo de satisfação, ao procurar responder suas questões mais
179
FREUD, S. Vias de formação do sintoma. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2). p.
2353.
180
FREUD, op. cit., p. 1649.
123
inquietantes relativas à angústia de castração, coisa que o predispõe para o recalque e
conseqüentemente para uma satisfação pela via sintomática.
Além disso, a “fixação” é considerada com relevância tanto específica quanto
crucial nas formulações a respeito do recalcamento primário e, portanto, no quadro
específico da teorização sobre o sistema inconsciente. Na primeira vez em que Freud
adentra em considerações sobre a pré-condição ao recalque propriamente dito, ele a
concebe vinculada à noção de “fixação”. Trata-se do artigo Considerações psicanalíticas de
um caso de paranóia o caso Schreber, no qual encontramos a seguinte argumentação a
propósito do recalque:
A primeira fase consiste na “fixação”, premissa e condição de todo recalque. O fato da
fixação pode ser definido ao dizermos que uma pulsão, ou uma parte de uma pulsão, não
segue a evolução prevista como normal, permanecendo em função de tal inibição evolutiva,
em estado infantil. A corrente libidinosa de que se trata, conduz-se no que tange aos
produtos ulteriores como uma corrente recalcada e pertencente ao sistema inconsciente. Já
dissemos que tais fixações das pulsões constituem a disposição às enfermidades posteriores
e podemos acrescentar que envolvem, antes de tudo, a determinação do desenlace da
terceira fase do recalque.
181
Muito embora Freud não explicite nesse artigo a distinção entre fixação e recalque
primário, verificamos que, no artigo O recalque, ele não deixa dúvidas quanto a sua
distinção: “Temos fundamentos para supor uma primeira fase do recalque, um recalque
primário, no qual uma representação psíquica da pulsão tem o seu acesso à consciência
negado. Esta negativa produz uma fixação, ou seja, a representação em questão se mantém
imutável a partir deste momento, ficando a pulsão ligada a ela”.
182
E ela permanece
“imutável” operando no sistema inconsciente, conecta-se a outras representações e forma,
181
FREUD, S. O caso Schreber, p. 1521.
182
FREUD, S. O recalque, p. 2054.
124
desse modo, uma concatenação conhecida como núcleo, ao qual todos os recalcamentos
posteriores tendem a ser atraídos.
O conceito de recalque primário é um dos problemas com os quais a investigação
psicanalítica se deparou quando passou a inclinar-se mais detidamente sobre o narcisismo e
seu importante papel no recalcamento propriamente dito. A questão central que se impunha
era a seguinte: para que o eu proceda com o recalque, é imprescindível que o desejo a ser
rechaçado receba um duplo e simultâneo auxílio: por parte do pré-consciente e do
inconsciente. No sistema pré-consciente, o recalcamento comporta duas fases: (a) um
desinvestimento por parte do eu que retira a função consciente da idéia e (b) uma força
constante que inviabiliza o reaparecimento da idéia censurada.
Da perspectiva do inconsciente, é preciso que haja nele uma força de atração sobre
os pensamentos a serem recalcados. Entretanto, como sustentar que haja uma atração desses
pensamentos ao inconsciente, sem levarmos em conta um ponto de partida onde uma
representação ao menos possa permanecer inconsciente sem que seja atraída por outra? E
ainda, em se hipotetizando um recalcamento primário na origem das formações do
inconsciente, de que modo operaria, à medida que a sua incidência não seria possível
através de um investimento por parte do inconsciente?
No item IV do artigo O inconsciente
183
, Freud põe em destaque o fator quantitativo
e o procedimento defensivo diante da força pulsional que constitui o mecanismo próprio do
recalcamento originário. Assim, pensando na força permanente utilizada pelo eu para que a
representação recalcada fique mantida à distância da consciência, escreve:
183
FREUD, S. O inconsciente, p. 2069.
125
Necessitamos aqui, pois, de outro processo, que, em primeiro lugar, mantenha o recalque e,
em seguida, cuide de constituí-lo e conservá-lo; processo que não podemos encontrar senão
admitindo um contra-investimento, por meio do qual o sistema pré-consciente protege-se
contra a pressão da idéia inconsciente. Em diversos exemplos clínicos veremos como se
manifesta este contra-investimento, que se desenvolve no sistema pré-consciente, e constitui
não apenas a representação do contínuo esforço de um recalque primário, mas também a
garantia de sua duração. O contra-investimento é o único mecanismo do recalque primário.
No recalque propriamente dito, soma-se a ele a subtração de investimento.
184
Frisamos, a partir dessa citação, que, para entender o recalcamento primário,
precisamos fazer a distinção entre duas perspectivas na sua apresentação: uma temporal,
centrada numa construção mítica, e outra atemporal e fundamentalmente clínica. Da
perspectiva temporal, ou, se quisermos, diacrônica, poderíamos fazer referência ao
recalcamento primário em termos de ligação entre a pulsão e a representação, algo anterior
à própria estruturação definitiva do sistema inconsciente e, ainda, concernente à gênese do
juízo, tal como apreciaremos adiante. Da perspectiva que não leva em conta a
temporalidade, ou sincrônica, a referência fica centrada no acontecimento clínico, a saber,
na repetição na transferência. As resistências na clínica falam justamente disso e, no
entanto, elas tornam possível a análise da castração, do traumático.
Vamos nos ocupar, assim, de buscar explanações que abarquem as duas
perspectivas muito embora ambas apresentem pontos de imbricamento difíceis de separar
de forma precisa e esquemática. E, para introduzirmos o assunto, trataremos de situá-lo
sinteticamente na formação do sintoma neurótico. Cabe ressaltar primeiramente que o único
mecanismo do recalque primário é elaborado sob a rubrica que mostra seu selo de origem:
advém do interior de concepções econômicas da metapsicologia e se apresenta clinicamente
sob a forma de resistências. Dito em outras palavras, o que está subjacente às resistências é
184
Loc. cit.
126
o processo de contra-investimento, que, desse modo, não é somente a parte “visível” do
processo de recalcamento.
O contra-investimento é, na verdade, uma modalidade de investimento que consiste
na insistência em manter presentificado no eu determinadas idéias e sentimentos e, mesmo,
traços de caráter, que venham a fazer empecilho ao saber do desejo. Essa é a segunda fase
descrita por Freud a respeito do recalque. A primeira caracteriza-se pela subtração da libido
da idéia a ser recalcada
185
, como vimos anteriormente.
Vejamos como isso ocorre na histeria de angústia, tal como Freud a descreve em O
inconsciente
186
: Há uma primeira etapa na formação do sintoma que consiste no surgimento
da angústia sem que o sujeito saiba o que lhe causa temor. Determinado impulso
inconsciente, aspirando por emergir até a consciência, é rechaçado pelo eu como medida de
fuga. A idéia da qual o sistema pré-consciente retira o investimento fica, por sua vez,
investida pelo inconsciente, e o montante de afeto a ele ligado resulta num afeto sem
representação. Ao repetir-se esse processo, o eu procura evitar o desenvolvimento da
angústia, investindo numa idéia substituta, suficientemente deformada, capaz de contornar
a barreira do recalque e ao mesmo tempo mantendo vinculação com a idéia rechaçada. É
essa idéia substituta que desempenha o papel do contra-investimento no sistema pré-
consciente e conduz à segunda fase da histeria de angústia. No caso da zoofobia do
pequeno Hans, a angústia se fazia apresentar sob duas condições: primeira, quando, por
alguma razão, o desejo recalcado se intensificava; segunda, quando o menino percebia a
presença do animal temido. A primeira condição tende a ficar cada vez mais substituída
pela segunda. E, à medida que a representação do contra-investimento (o cavalo temido)
185
FREUD, S. O inconsciente, p. 2069.
186
Ibid.,p. 2070.
127
surgia por determinação associativa inconsciente, tinha participação decisiva na eclosão do
sintoma. E isso porque todas as representações que envolvem a idéia de que o cavalo pode
morder Hans encontram-se associadas a essa idéia e recebem um investimento psíquico de
extraordinária intensidade. E ainda:
Quanto mais afastados da substituição temida encontram-se os contra-investimentos
sensíveis e vigilantes, mais precisamente pode funcionar o mecanismo que há de isolar a
idéia substituta e protegê-la contra novas excitações. Estas precauções não protegem,
naturalmente, mais que contra aquelas excitações que chegam do exterior e pelo canal da
percepção à idéia substituta, mas não contra a excitação pulsional, que partindo da conexão
com a idéia recalcada chega à idéia substituta. As precauções começam sua atuação, pois,
quando a substituição apropriou-se completamente da representação recalcada, sem que
jamais se constitua numa plena garantia. A cada intensificação da excitação pulsional, a
muralha que envolve a idéia substituta tende a avançar mais. Essa construção fica também
analogamente estabelecida nas demais neuroses, e a designamos com o nome de fobia. As
evitações, proibições e características da histeria de angústia são expressões de fuga diante
do investimento consciente da idéia substituta.
187
O contra-investimento, como podemos notar, mantém afastado o pensamento
banido pelo eu. Além disso, os elementos associativamente ligados e envolvendo a idéia
substituta recebem um investimento de extraordinária intensidade afetiva no sistema
consciente, mas, da perspectiva do inconsciente, todos os elementos substitutos mantêm
relação de equivalência com os protótipos ou clichês previamente fixados. Trata-se aqui da
substituição de termos de uma língua por outros de mesmo conteúdo semântico em outra
língua.
Esses clichês, referidos por Freud aos pontos de fixação da libido, são determinados
pelo traumático
188
e se situam em relação ao recalque originário, que, como afirmamos
anteriormente, concerne a um tempo mítico, primevo, e sua teorização se encontra inserida
187
FREUD, S. O inconsciente, p. 2071.
188
FREUD, S. A fixação do trauma – o inconsciente, p. 2294.
Vide também páginas 54-56 do presente estudo.
128
numa contextualização econômica. Não podendo ter a sua origem no supereu, uma vez que
se localiza num tempo pré-edipiano, nem no sistema pré-consciente, pois sua ocorrência é
anterior à divisão do aparelho psíquico em sistemas, o recalque primário terá sua
fundamentação nos acontecimentos de ordem econômica. Nesse contexto, notamos o texto
freudiano adentrar na temática relativa à angústia, tal como podemos averiguar na
Conferência Angústia e vida pulsional:
Somente a magnitude do montante de excitação faz de uma impressão um instante
traumático, paralisando a função do princípio de prazer e dando à situação de perigo sua
significação. E se é assim mesmo que acontece, se estes enigmas ficam resolvidos com tão
sóbria explicação, por que então não há de ser possível que tais instantes traumáticos surjam
na vida anímica, sem relação alguma com as supostas situações traumáticas, nas quais a
angústia não é despertada, portanto como um sinal de uma situação de perigo anterior, mas
sim, nascendo baseada num fundamento imediato? Com efeito, a experiência clínica nos
demonstra que é exatamente isto o que ocorre. Apenas os recalques secundários mostram o
mecanismo que primeiramente descrevemos, no qual a angústia é despertada como um sinal
de uma situação de perigo anterior; os recalques primários e mais antigos nascem
diretamente de instantes traumáticos, no choque do eu com uma excitação libidinosa de
primeira magnitude, que produz por si só a angústia, ainda que em conformidade com o
protótipo do nascimento.
189
Há uma notação a ser destacada a respeito do trauma e que se encontra em conexão
com a angústia: a castração na referência à perda do objeto. Além disso, como sabemos, o
traumático está intimamente relacionado com a identificação, uma vez que esta é a mais
primitiva exteriorização de relação objetal. A identificação é também um meio que o eu
encontra para preservar o objeto; de fato, um meio suficientemente frágil que caracteriza a
situação iminente do desamparo. Assim, tanto o recalque primário quanto a angústia
originam-se da mesma situação econômica de desamparo. Contudo, o primeiro nasce
189
FREUD, S. A angústia e a vida pulsional, p. 3154.
129
diretamente do instante traumático, promovendo a reação que, sob a forma de negação, liga
a pulsão a uma representação; já a angústia é uma reação segundo uma representação dada.
O recalque primário, como dissemos, consiste numa recusa à consciência de
determinada representação pulsional. Tendo por conseqüência a fixação da representação à
pulsão, esse primitivo processo não somente é algo que tenha ocorrido em tempos de
estruturação narcísica anteriormente à cisão definitiva entre as atividades consciente e
inconsciente, mas que ocorre atualizado no cerne da experiência clínica: “Em diversos
exemplos clínicos, veremos como se manifesta este contra-investimento que se desenvolve
no sistema pré-consciente e constitui não apenas a representação do continuado esforço de
um recalque primário, mas também a garantia de sua duração”.
190
O que Freud acentua aqui
é o fato de que o recalque primário se renova constantemente na segunda fase do recalque
propriamente dito. É essa atualidade que se manifesta no uso mais ou menos continuado,
por parte do eu, de mecanismos defensivos, visando ao domínio pulsional, mas também
levando a cabo as alterações do eu e constituindo o seu caráter. Os fenômenos relativos a
essa questão foram salientados por Freud quando tratou exaustivamente da repetição na
transferência. Além disso, a descoberta feita a respeito desses eventos foi de capital
importância para a técnica psicanalítica, pois foi justamente a partir deles que Freud chegou
à constatação de que a rememoração não era o único intuito no trabalho de tornar
consciente o inconsciente. Dada a impossibilidade de recuperar, pela via da rememoração,
todos os fragmentos do passado recalcado, as construções adquirem papel crucial para as
lacunas da memória
.
A apresentação dos mecanismos defensivos na transferência evidencia os conflitos
entre o eu e a pulsão; expressa o modo como na história individual foi levado a cabo o
190
FREUD, S. O inconsciente, p. 2069.
130
domínio pulsional, mas também aquilo que acarretou na formação do caráter e manutenção
da trama identificatória. Chegamos mesmo a fazer, no Capítulo Dois, a observação segundo
a qual o analisante repete um desprazer fundamentalmente relativo ao complexo de
castração. Essa repetição aparece no trabalho analítico sob a forma de resistência, e uma
das derivações de sua investigação foi a tematização das “alterações do eu”
191
. Como já
afirmamos, essas alterações, relativas à formação do caráter do eu, são efeitos produzidos
no eu pelas defesas por ele utilizadas com a finalidade de domínio da pulsão. Em Análise
terminável e interminável, esse esforço defensivo se encontra articulado ao recalcamento
primário nos seguintes termos:
Todos os recalques se efetuam na primeira infância; são medidas primitivas de defesa,
tomadas pelo eu imaturo, débil. Nos anos posteriores, não são levados a cabo novos
recalques, mas os antigos persistem, e seus serviços continuam a ser utilizados pelo eu para
o domínio das pulsões. Os novos conflitos são solucionados através daquilo que chamamos
de ‘recalque posterior’. Podemos aplicar a esses recalques infantis nossa afirmação geral de
que os recalques dependem absoluta e inteiramente do poder relativo das forças envolvidas,
e que elas não se podem manter contra um aumento na força das pulsões.
192
As defesas, como sabemos, são auxiliares na estruturação do eu, pois colocam
refreamentos às tendências desenfreadas do isso e, desse modo, formam reações
caracterológicas regulares que tomam os mais idiossincráticos vieses para cada caso. De
todo modo, essas defesas, que aparecem na análise sob a forma de resistência, são relativas
ao saber do inconsciente. O eu sente que a proximidade desse saber significa um perigo e
acaba por encontrar na realidade situações de perigo que possam servir de substituto das
antigas situações perigosas para justificar, em relação a elas, os seus modos
193
fixos de
191
FREUD, S. Análise terminável e interminável, p. 3356.
192
Ibid., p. 3347.
193
Ibid., p. 3354.
131
satisfação, e nisso está em atuação o silêncio da pulsão de morte. Uma parcela da pulsão,
como vimos, toma o próprio sujeito como objeto
194
; os fenômenos do quadro melancólico,
bem como as várias formas de apresentação do masoquismo no sentimento inconsciente de
culpabilidade
195
, são paradigmáticos.
Entretanto, no que essas questões tão próximas com a prática psicanalítica são
articuláveis com o que vimos dizendo a respeito do recalque primário? Retornemos, pois, à
noção de contra-investimento, já que ele é o único mecanismo do recalcamento originário.
E, levando isso em conta, seria necessário pensarmos o contra-investimento em relação ao
tempo anterior à estruturação do aparelho mental em dois sistemas distintos tempo
primitivo anterior ao recalcamento secundário, no qual o contra-investimento operaria com
exclusividade e então formaria o núcleo para o qual o material do recalcamento secundário
seria atraído. Como afirmamos anteriormente, o contra-investimento diz respeito a um
investimento muito intenso em representações no pré-consciente, de modo a impedir o
surgimento da representação na consciência. Ocorre, entretanto, que agora estamos
hipotetizando uma situação na qual não haveria, a rigor, representações pertencentes ao
sistema pré-consciente e até mesmo a um tempo anterior à efetiva existência de
representações de palavra. Poderíamos assim inferir que se trata, nesse contra-investimento,
do recalcamento primário, de algo que surge consecutivamente como uma presentificação
obstinada e contumaz de determinadas representações no eu, ou naquilo que venha a
constituí-lo como tal. Seriam as identificações primárias que abordamos no Capítulo Um
Provavelmente. De todo modo, temos aqui a presentificação do objeto, tal como já o
elaboramos anteriormente quando evocávamos desde o Projeto de 1895, a noção de das
194
FREUD, S. O eu e o isso, p. 2725.
195
FREUD, S. O problema econômico do masoquismo, p. 2752.
132
Ding. Assim, estamos no tempo em que investimento objetal e identificação são
indiscerníveis, a meio caminho entre a estruturação do universo simbólico e a constituição
do falo.
É preciso destacar mais uma vez que, de acordo com a definição dada por Freud, o
recalque primário concerne a uma recusa à consciência de uma representação. Pois bem,
essa recusa corresponde ao exposto no artigo A negação, como algo mais elementar que o
uso do símbolo da negação no discurso consciente e segue um modo oral muito primitivo
de satisfação pulsional.
O juízo teria assim, uma origem mítica fundamentada no trabalho das pulsões, e o
juízo atributivo deve ter sido, a princípio, circunscrito ao prazer ou desprazer, bom ou mau.
196
O eu regido pelas sensações de prazer ou desprazer atribui qualidades aos objetos, de
acordo com uma “linguagem pulsional”
197
do tipo: “Isto comerei” ou “o cuspirei”; “Isto
deve estar dentro de mim” ou “fora de mim”. E quanto a isso, para Lacan “Há na dialética
de Freud uma primeira divisão do bom e do ruim que só pode ser concebida se a
interpretamos como a rejeição de um significante primordial”
198
.
Como já apontamos no Capítulo Um, essa “linguagem pulsional” está intimamente
relacionada com o surgimento do objeto na fase do narcisismo primário, na qual o mundo
externo, o objeto e o odiado são, a princípio, a mesma coisa. O tema é retomado em A
negação, evidenciando-se na afirmação de que o eu primitivo, regido pelo princípio de
prazer, quer introjetar em si tudo que é bom e expulsar de si tudo que é mau.
199
A
196
FREUD, S. A negação, p. 2885.
197
Id.
198
LACAN, J. As psicoses, p. 174.
199
FREUD, S. A negação, p. 2885.
133
identificação primária, tal como trabalhamos no Capítulo Um
, agora apresenta esta
vinculação ao juízo atributivo. Primeiramente a afirmação do prazer para secundariamente
a afirmação do ser. A tese original de Freud aí é a de que — contrariamente ao modo de
proceder da lógica clássica — o juízo de atribuição precede o de existência. Nessa gênese
do pensamento, então, o juízo atributivo é resultado de uma afirmação (Bejahung) e de uma
expulsão do eu (Austossung aus dem Ich).
O estudo do julgamento nos oferece, pela primeira vez, uma luz sobre a gênese da função
intelectual surgida do dinamismo dos impulsos pulsionais primários. O juízo é a evolução
adequada do processo pelo qual o eu incorporava coisas em seu interior ou os expulsava
para fora de si, de acordo com o princípio de prazer. Sua polarização parece corresponder à
antítese dos dois grupos de pulsões por nós supostos. A afirmação como substituto da união,
pertence a Eros; a negação — conseqüência da expulsão, pertence à pulsão de destruição.
200
A afirmação originária é uma inclusão, uma identificação ao prazer; ela está na
gênese do amor, tal como já dissemos, e concerne à capacidade de satisfação auto-erótica
do narcisismo primitivo. Trata-se da afirmação inaugural que se constitui como condição de
possibilidade para que algo venha a revelar o ser. Comentando o artigo em questão,
Hyppolite dirá que é importante levarmos em conta a idéia de que, neste “começo”, não
quer dizer outra coisa, no mito, senão “era uma vez...” Nessa história, era uma vez um eu
(um sujeito) para quem ainda não havia nada estranho. A distinção entre o estranho e ele
mesmo é uma operação, uma expulsão.
No começo, é indiferente saber se há ou não há. Há. “O sujeito reproduz sua
representação das coisas a partir da percepção primitiva.”
201
A negação é conseqüência de
Vide páginas 36-39.
200
FREUD, S. A negação, p. 2886.
201
HYPPOLITE, J. Comentário sobre a Verneinung de Freud, in: Lacan – Os escritos. Rio de Janeiro:
Zahar, 1998. p. 899.
134
uma expulsão que lhe antecede, e funda o que está fora da representação. O juízo de
existência opera desse modo, levando em conta o que ficou estabelecido como
representado. E o representado comporta fundamentalmente, a princípio, o atributo do bom
como idêntico a eu. O juízo atributivo delineia a lei de funcionamento do princípio de
prazer, a regulação das representações no inconsciente, de acordo com a série prazer-
desprazer. Por outro lado, o estranho, a diferença, o não-eu, ou se quisermos, o objeto
primordial, fica primeiramente fora da representação. É a coisa (das Ding) sobre a qual
dedicamos algumas reflexões no Capítulo Três.
Trata-se de uma questão do fora e do
dentro, escreve Freud, inspirando a seguinte observação de Lacan:
Em que momento, de fato, surge esta frase? — Primeiro houve a expulsão primária, isto é, o
real como externo ao sujeito. Depois, no interior da representação (Vorstellung), constituída
pela reprodução (imaginária) da percepção primária, não apenas é instaurado como
existente pelo sujeito como pode ser reencontrado (wiedergefunden) no lugar onde este
pode apoderar-se dele. É somente nisso que a operação, por mais desencadeada que seja
pelo princípio de prazer, escapa ao seu domínio. Mas, nessa realidade que o sujeito tem que
compor segundo a gama bem temperada de seus objetos, o real, como suprimido da
simbolização primordial, já está presente. Poderíamos dizer que fala sozinho.
202
No que tange ao juízo de existência, a reflexão desdobrará uma consideração em
torno de processamentos basais na constituição do sujeito e do objeto.
É no interior desse corpo primordial que Freud supõe se constituir o mundo da realidade,
como já pontuado, já estruturado em termos significantes. Freud descreve então todo o jogo
da aproximação da representação com esses objetos já constituídos. A primeira apreensão
da realidade pelo sujeito é o julgamento de existência, que consiste em dizer — Isso não é
meu sonho ou minha alucinação, mas um objeto.
203
Vide páginas 100-104.
202
LACAN, J. Resposta ao comentário de Hyppolite, p. 384.
203
LACAN, J. As psicoses, p. 174.
135
O que está na origem do juízo de existência é a relação entre a percepção e a
representação, tal como Freud o apresenta, dizendo que a antítese entre subjetivo e objetivo
só é possível a partir do tempo no qual o pensamento possa tornar novamente presente, por
meio da representação, o objeto que já não se encontra na percepção.
204
Inclusive citamos o
texto no Capítulo Três
, quando sublinhávamos que o princípio de realidade parte do
pressuposto de que o objeto é passível de ser reencontrado — o movimento é no sentido de
“voltar a encontrá-lo, convencer-se de que ainda existe”. Essa estrutura de busca, de acordo
com Freud, pressupõe que o objeto esteja de antemão perdido. E isso porque a reprodução
de uma representação no psíquico raramente é uma repetição fiel ao acontecimento
anterior; pode ser modificada por omissão de elementos ou pela fusão com outras
representações e o exame de realidade deve discernir a extensão dessas deformações. Para
Freud, a perda do objeto é condição para o desenvolvimento do exame de realidade.
205
Retornando à pergunta acima, a respeito do recalcamento originário, lembramos que
a recusa operada no recalcamento primário promove a fixação da pulsão à representação.
Agora cabe sublinhar que Freud postula uma recusa ou uma expulsão que diz respeito ao
objeto primário da satisfação e que, se a pulsão se fixa à representação, é porque o objeto
lhe falta. E o inconsciente, muito embora articule suas operações em função dessa falta,
procede pelo antípoda quando se depara com qualquer questão concernente à falta do
objeto, fazendo presente uma representação que venha a substituir a ausência. O
interessante é que, muito embora o recalcamento primário esteja, por assim dizer, na
origem da negação, o inconsciente a desconhece.
204
FREUD, S. A negação, p. 2885.
Vide páginas 98-100.
205
Id.
136
De acordo com Freud, na negativa proferida pelo analisante, temos uma aceitação
intelectual do recalcado, sem que o recalcado seja realmente considerado e, assim,
determinadas representações são manipuladas no pensamento consciente sob a condição de
não afetarem o sujeito. O analisante conta seu sonho ao analista e este lhe pergunta: o que
lhe parece mais incrível e estranho neste sonho? A resposta dirá daquilo que é mais próprio
e familiar ao inconsciente do analisante. Ou ainda, o analisante conta um sonho e diz: “Não
é a minha mãe”; Freud então assevera: “É ela, sim!”
Afirmar ou negar o que está contido nos pensamentos é uma tarefa da função do
juízo. E da perspectiva da regra fundamental na análise, negar algo em um julgamento é, no
fundo, dizer: “Isto é algo sobre o que eu, a serviço do princípio de prazer, preferiria nada
saber”. O assunto relativo à falta da negação no inconsciente percorre vários momentos da
elaboração freudiana. Em Considerações de atualidade sobre a guerra e a morte,
encontramos o seguinte: o que chamamos de nosso ‘inconsciente’ — as camadas mais
profundas de nossa mente, compostas de impulsos instintuais — desconhece tudo o que é
negativo e toda e qualquer negação; nele as contradições se fundem. Por esse motivo, não
conhece sua própria morte, pois a isso só podemos dar um conteúdo negativo.
206
Na análise, jamais encontramos um ‘não’ procedente do inconsciente. Além disso, o
reconhecimento do inconsciente, por parte do eu, nunca acontece através de uma fórmula
negativa. E Freud adenda: a prova mais contundente de que na análise chegamos à
descoberta do inconsciente se dá quando o analisante reage com as palavras: “Nunca pensei
nisso”.
207
206
FREUD, S. Considerações de atualidade sobre a guerra e a morte. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
(Obras completas, v. 2). p. 2115.
207
FREUD, S. A negação, p. 2886.
137
A ausência da negação no inconsciente se constitui num dos mais interessantes
aspectos para uma formalização lógica a propósito das operações simbólicas do sistema
inconsciente, tendo Freud assinalado que, em relação à consciência, tais operações são
diferentes por uma questão de natureza e não de grau.
No item ‘C’ do Capítulo Seis de A interpretação dos sonhos
208
, Freud dedica
significativa atenção aos aspectos propriamente lógicos do operar inconsciente. Aborda,
nesse capítulo, a questão da negação nos sonhos, a contradição, o condicional, a conjunção
e a disjunção, as relações de maior e menor, as relações de causalidade e similaridade, e
conclui que o princípio da não-contradição é estranho ao inconsciente. As representações
que se mostram contraditórias no sistema pré-consciente consciente podem, no
inconsciente, se conciliar, se condensar e adquirir um arranjo inusitado. A inaplicabilidade
do princípio da não-contradição é uma constatação derivada não somente da análise dos
sonhos: os sintomas dos neuróticos, a fala cotidiana do homem comum e as línguas antigas
o encaminhavam para essa inferência.
O tema dos pares opositivos aparece também em O duplo sentido antitético das
palavras primitivas, no qual Freud recorre aos Ensaios filológicos de K. Abel (1884), para
mostrar que a linguagem de povos antigos apresenta semelhanças com os sonhos. Tanto nas
formações do inconsciente quanto em vários exemplos do terreno da linguagem, ignora-se
o tratamento das antíteses e contradições, sendo os contrários combinados numa unidade ou
representados como uma e mesma coisa. Os sonhos, assim como as palavras, podem, além
disso, tomar a liberdade de representar qualquer elemento por seu contrário. Em algumas
línguas arcaicas, tal como o egípcio, Abel encontrou, de modo semelhante aos sonhos, o
208
FREUD, S. A interpretação dos sonhos, p. 536.
138
procedimento da utilização de uma mesma palavra para designar idéias antitéticas
209
palavras com duas significações, uma das quais é o oposto exato da outra. Freud comenta:
Suponhamos, se é que se pode imaginar um exemplo tão evidente de absurdo, que em
alemão a palavra “forte” signifique ao mesmo tempo “forte” e “fraco”; que em Berlim o
substantivo “luz” se use para significar ao mesmo tempo “luz” e “escuridão”; que um
cidadão de Munique chame cerveja de “cerveja”, enquanto outro use a mesma palavra para
falar de água: nisto é que importaria o surpreendente costume usado regularmente pelos
antigos egípcios em sua linguagem. (...) Em vista destes e de muitos casos similares de
significação antitética está fora de dúvida que numa língua, pelo menos, havia um grande
número de palavras que designavam, ao mesmo tempo, uma coisa e seu oposto. Por
surpreendente que seja, estamos diante do fato e temos de reconhecê-lo”
210
.
Fica, dessa assertiva, a pergunta sobre que tipo de operação mental é essa que
afirma algo e seu oposto. Pendemos para o entendimento de que é o caso da potência fálica
e destacaremos adiante que a questão se situa precisamente na problemática da
significação. Certamente Freud considerava que, para as suas observações clínicas, não
ocorria tão-somente a apresentação da designação de algo e seu oposto, mas também a
designação de algo e qualquer outra coisa que não a primeiramente designada. No entanto,
no caso desse artigo, ele frisa ser enigmático que uma civilização com tamanho
desenvolvimento, tal como foi a egípcia, utilizasse o recurso de dar um só e mesmo
substrato fonético às idéias mais antagônicas e de condensar em uma só representação
idéias que se excluem reciprocamente. Apresenta, ainda, como outra característica da
língua egípcia, o fato de possuir também palavras compostas nas quais dois vocábulos de
significação antitética se unem de modo a formar um composto que tem a significação de
apenas um de seus dois componentes. Assim, nessa língua há não só palavras significando
209
FREUD, S. O duplo sentido antitético das palavras primitivas. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
completas, v. 2). p. 1620.
210
FREUD, S. O duplo sentido antitético das palavras primitivas, p. 1621.
139
igualmente “forte” ou “fraco”, “comandar” ou “obedecer”, mas também compostos com
“velho-jovem”, “longe-perto”, “ligar-cortar”, “fora-dentro”, que, apesar de combinarem os
extremos de diferença, significam somente “jovem”, “perto”, “ligar” e “dentro”,
respectivamente. Nessas palavras compostas, conceitos contraditórios se ajustam de modo
inteiramente intencional, não para produzir um terceiro conceito, mas apenas para fazer
com que o composto exprima a significação de uma de suas partes contraditórias.
O sentido antitético também é encontrado nas manifestações sintomáticas, tal como
é o caso de ataques em que a enferma representa, simultaneamente, o papel de dois
protagonistas de sua fantasia inconsciente, fazendo em si mesma uma cena sexual violenta
ao segurar sua roupa contra o corpo com uma das mãos e simultaneamente arrancá-la com a
outra.
211
Na correspondência entre a peculiaridade do trabalho do sonho e as descobertas
realizadas pela filologia, Freud encontra uma confirmação de sua idéia acerca do caráter
regressivo, arcaico, da expressão de pensamentos em sonhos. Finaliza o artigo dizendo que,
na investigação psicanalítica, entenderíamos e traduziríamos melhor a língua dos sonhos se
soubéssemos mais sobre a linguagem.
212
Percebendo a insistência com que o pensamento freudiano aponta para a linguagem,
Lacan repensa a psicanálise à luz da lingüística estrutural de Saussure e Jakobson. São bem
conhecidas as reiterações lacanianas a respeito da autonomia do significante em relação ao
significado, da falta mais completa de elo natural entre conceito e imagem acústica.
Essa é uma idéia que encontramos em estado germinal no texto Sobre as afasias, de
1891, no qual Freud sustenta que a palavra é uma representação complexa, correspondendo
a ela um intrincado processo associativo no qual se reúnem os elementos de origem visual,
211
FREUD, S. Fantasias histéricas e sua relação com a bissexualidade. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
(Obras completas, v. 2). p. 1353.
212
FREUD, S. O duplo sentido antitético das palavras primitivas, p. 1624.
140
acústica e cinestésica. Quanto à significação: “Uma palavra, contudo, adquire seu
significado pela ligação com a “representação de objeto” [representação de coisa] pelo
menos se nos limitamos à consideração dos substantivos.”
213
Entretanto, tal como
afirmamos anteriormente, no inconsciente as representações de coisa são a matéria
exclusiva desse sistema. Essa idéia se encontra mais bem delineada no texto O
inconsciente, nos seguintes termos:
O que livremente denominamos de representação consciente do objeto pode agora ser
dividido na representação de palavra e na representação de coisa; a última consiste na
catexia, se não das imagens diretas da memória da coisa, pelo menos de traços de memória
mais remotos derivados delas. Agora parece que sabemos de imediato qual a diferença entre
uma representação consciente e uma inconsciente. As duas não são, como supúnhamos,
registros diferentes do mesmo conteúdo em diferentes localidades psíquicas, nem tampouco
diferentes estados funcionais de catexias na mesma localidade; mas a representação
consciente abrange a representação de coisa mais a representação da palavra que pertence a
ela, ao passo que a representação inconsciente é a representação de coisa apenas.
214
A palavra é fundamentalmente, portanto, o resto mnêmico da palavra ouvida; ela
procede primitivamente da representação de coisa, por meio de percepções acústicas. Essa é
a razão pela qual, por meio das representações de palavra, a psicanálise traduz os processos
mentais em percepções.
215
Freud chega inclusive a escrever que o sistema pré-consciente
tem sua origem no superinvestimento da representação de coisa com a representação de
palavra que lhe corresponde. E o recalcamento propriamente dito, por sua vez, negaria à
representação sua tradução em palavras. Trata-se de idéias que em O eu e o isso acentuam o
trabalho pelo avesso do recalque. Sendo assim, no que tange à pergunta sobre como tornar
consciente o inconsciente, a resposta seria: “Vinculando-se às representações verbais que
213
FREUD, S. A interpretação das afasias, Edições 70, Lisboa. Portugal, 1977, p. 71.
214
FREUD, S. O inconsciente, p. 2081.
215
FREUD, S. O eu e o isso, p. 2705.
141
lhe são correspondentes.” E isso porque essas representações de palavras são restos de
lembranças; teriam sido outrora percepções e, como resíduos mnêmicos, poderiam tornar-se
conscientes outra vez. Somente algo que já foi uma percepção pode tornar-se consciente. E
ainda, qualquer coisa proveniente de dentro, da esfera subjetiva, que procure tornar-se
consciente deve tentar transformar-se em percepções externas, o que se torna possível
mediante os tros mnêmicos.
216
O tornar consciente o inconsciente toma então uma vertente sui generis. Por isso,
faz-se necessário, aqui, um apontamento. Consideremos o sonho, caracterizado por Freud
como uma espécie de texto cifrado, cuja leitura cabe ao método analítico. Percebe-se então
que, pela via da associação livre, cada signo não remete a um sentido fixo — sabemos que
Freud afirmou estarem as formações do inconsciente sobredeterminadas, remetendo a uma
pluralidade de significações. E tal como comenta Birman, o sentido específico de cada
signo estaria na estrita dependência da combinatória com a totalidade das representações
contidas no sonho, situação que define o contexto do texto cifrado. O corolário desse
método de deciframento, diz Birman
217
, é que o sonho já é uma interpretação.
Essa singularidade do sentido pressupõe a existência de uma relação fundante entre o
sentido e a interpretação, na qual o sentido do sonho já se constitui como uma interpretação
do sujeito sobre o seu próprio desejo. O deciframento do sonho visaria explicitar essa
interpretação cifrada. Não sendo uma combinação de marcas-signo que demanda um código
exterior para que possa ser interpretado, o escrito cifrado é, além de uma interpretação já
realizada, uma combinação que se ordena por um código determinado. Nesses termos, a
interpretação psicanalítica seria a tentativa para a descoberta de um código, implicando isso
a explicitação de suas regras de funcionamento e de pontuação, do sentido particular
articulado por esse código num contexto determinado. É isso que Freud destaca quando
formula literalmente que a narrativa onírica já é uma interpretação, e que caberia ao
deciframento psicanalítico a remontagem desse processo interpretativo que se encontra
materializado nas imagens do sonho.
218
216
FREUD, loc. cit.
217
BIRMAN, J. Ensaios de teoria psicanalítica. Rio de Janeiro: Zahar, 1993. p. 105.
218
Ibid., J., p. 106.
142
Pois bem, dissemos que a psicanálise opera pelo avesso do processo de recalque
porque este transforma pensamentos absolutamente apreensíveis pela consciência e
articuláveis pelas palavras em imagem sensorial, e, no inconsciente, teríamos assim
somente as representações de coisa. Mas, nesse sentido, o que dizer acerca do recalcamento
originário?
Primeiramente, é preciso não confundir o recalque originário com o recalcado
originário. Uma coisa é o recalque, processo defensivo de domínio das pulsões cujo único
mecanismo é o contra-investimento, e outra é o material originalmente recalcado e
decorrente do primeiro. Até aqui, abordamos fundamentalmente o recalque primário, mas o
que nos diz o texto freudiano acerca do recalcado que forma o centro gravitacional para
onde os recalcamentos posteriores são atraídos?
O que está em jogo no recalcado primário são representações que jamais receberam
investimentos pelo pré-consciente. Justamente por isso, são inconscientes e dizem respeito
às inscrições realizadas anteriormente à aquisição das palavras, ou seja, são representações
de coisa apenas. De todo modo, apesar das poucas elaborações que Freud apresenta em
torno do tema, o recalcado primário parece se destacar no que Lacan retoma de Lévi-
Strauss — a função classificatória primária do pensamento selvagem — e comenta no
seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise:
Antes ainda que se estabeleçam relações que sejam propriamente humanas, certas relações
já são determinadas. Elas se prendem a tudo que a natureza possa oferecer como suporte,
suportes que se dispõem em temas de oposição. A natureza fornece, para dizer o termo,
143
significantes, e esses significantes organizam de modo inaugural as relações humanas, lhes
dão as estruturas, e as modelam.
219
Lacan se refere nessa passagem às formas elementares da constituição simbólica nos
pares opositivos e corrobora com a exposição que Freud faz em Mais além do princípio de
prazer a respeito do jogo do carretel por nós citado no Capítulo Dois.
A brincadeira do
fort-da tinha caráter de renúncia à satisfação pulsional e, sobretudo, apontava para a origem
da linguagem no par ausência-presença, marcando autonomia e distanciamento do
simbólico em relação ao vivido.
Para Serge Leclaire
220
, trata-se, aí, das marcas, da fixação que descreve a
instauração e sobretudo a persistência quase indelével da erogeneidade em um ponto do
corpo. É o que Anika Lemaire comenta sobre a tese de Leclaire, segundo a qual o
representante da pulsão, imaginário, portanto representação de coisa,
afunda-se no inconsciente sob o efeito do contra-investimento de quaisquer fonemas
elementares — o O e o A (do fort-da) são relativos a uma vivência traumática no
imaginário. Mas, ao mesmo tempo, além de terem sentido inconsciente, esses fonemas nos
parecem poder designar, no sistema inter-relacional da criança, o conceito de “partida” pela
palavra fort e o conceito de “ei-la” pela palavra da.
221
O recalcamento primário, por estar na origem da linguagem, faz a separação entre o
império do simbólico e o nada. Muito embora a brincadeira do fort-da apresente uma
relação mais direta com as representações de palavra, é importante salientar que o material
219
LACAN, J. Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 1985. p. 26. (O
seminário, Livro 11).
Vide páginas 59-60.
220
LECLAIRE. S. Psicanalisar, São Paulo: Perspectiva, 1997. p. 104.
221
LEMAIRE, A. Jacques Lacan: uma introdução, p. 165.
144
do recalcado originário não tem um conteúdo particular definido. O que lhe pode ser
adscrito como definido em seu conteúdo é a relação direta com o traumático.
O cerne desse assunto recai sobre as construções ali onde o recalcado originário se
faz polaridade de atração para novos recalques e mais uma vez incide
sobre a questão da
linguagem. Já que as representações envolvidas no processo do recalcamento primário
jamais chegaram à consciência, as ligações com as representações de palavras são possíveis
por meio de construções.
A concepção técnica de Freud aqui é a de que as construções são parte de um dos
trabalhos que o analista deve se empenhar em fazer; depois é aguardar a confirmação ou
contradição dessas construções, o que ocorre por uma via inconsciente, através de sonhos,
parapraxias e pela repetição na transferência. Assim, o analista faz a construção de um
fragmento da história do analisante e comunica a ele; constrói então um outro fragmento a
partir do novo material, lida com ele da mesma maneira e prossegue, desse modo alternado,
até o fim.
222
Em Construções em psicanálise, temos uma distinção entre interpretação e
construção:
Se nas descrições da técnica analítica se fala tão pouco sobre ‘construções’, isso se deve ao
fato de que, em troca, se fala nas ‘interpretações’ e em seus efeitos. Mas acho que
‘construção’ é de longe a descrição mais apropriada. ‘Interpretação’ aplica-se a algo que se
faz a algum elemento isolado do material, tal como uma associação ou uma parapraxia.
Trata-se de uma ‘construção’, porém, quando se põe perante o sujeito da análise um
fragmento de sua história primitiva...
223
Assoun retoma a indicação freudiana segundo a qual, na construção, vemos
operando uma atividade do analítico, de natureza ficcionante, destinada a dar estofo ao não-
222
FREUD, S. Construções em psicanálise. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3). p.
3367.
223
Id.
145
recordável. Entretanto, esse trabalho da construção é subordinado à lógica de seu objeto
no caso, o analisante, que, aliás, é o único habilitado a legitimar as construções. E a
“sanção” da construção é o próprio evento do retorno do passado na cena presente — “que
se produz ocasionalmente quando um surto de lembranças percebidas de modo quase
alucinatório (‘ecmnésico’) volta aos próprios olhos do sujeito como que para vir confirmar
em ato a veracidade da construção. É daí que a construção colhe seu ‘poder de convicção’.
Se o próprio delírio tem um núcleo de verdade histórica, a construção interpretativa conjura
sua tentação delirante pela ‘resposta do sujeito’”.
224
Além disso, a construção tem o caráter de necessidade, como Ana Costa salienta em
seu livro Corpo e escrita.
225
A autora discorre sobre a necessidade da construção, que é
baseada na compulsão à repetição, ou seja, naquilo que incide sobre o aparelho psíquico,
desde o além do princípio de prazer, do fora da representação. A construção, assim, visa à
inserção de representação que possa dar suporte simbólico e ampare os laços discursivos.
Esse caráter de necessidade ocorre tanto para a história de um indivíduo quanto para as
coletividades. Ana Costa diz ainda que o legado freudiano, no que tange à construção,
propõe a abordagem de uma verdade histórica e não de uma ficção como qualquer outra.
Lembra então que Freud elabora uma série de construções ao longo de sua obra, como o
Édipo, o Pai da horda de Totem e tabu e o Moisés egípcio. Todos têm a característica
comum de representar, ao mesmo tempo, a individualidade e a coletividade. É possível
também perceber, nas principais construções de Freud, que a constante tematização do Pai
ocupa um lugar distinto em cada uma delas. No Édipo, por exemplo, se destaca o pai rival,
compondo a organização da novela familiar. O que se destaca no Pai da horda primeva é a
224
ASSOUN, P. L. Metapsicologia freudiana, p. 70.
225
COSTA, A. Corpo e escrita. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001. p.156.
146
referência ao pai-corporal, pai-gozo, como uma anterioridade mítica, algo que precede
logicamente ao registro do pai, constituindo presença na identificação por incorporação na
festividade totêmica. E, finalmente, no Moisés, Freud discorre sobre a descendência e a
herança simbólica ligada à religião. O ponto constante em todos eles é o Pai estrangeiro,
cuja corporeidade só adquire consistência uma vez morto.
226
A questão do pai e sua relação
com o universo simbólico será retomada mais adiante, ao pormos em debate o fantasma do
Bate-se numa criança. Importa agora retornarmos à vinculação existente entre o recalque
originário e a construção.
Como o recalcado primário jamais foi consciente, também não pôde ser vinculado
às representações de palavra pré-consciente, e por isso tende a se manifestar num agir pré-
simbólico, isto é, naquilo que escapa à captação pela linguagem. Em Recordar, repetir e
elaborar, Freud, fazendo ligação com o que desenvolverá sobre a construção, observa a
respeito da recordação:
É impossível despertar a recordação de uma classe especial de acontecimentos muito
importantes, que correspondam a épocas muito antigas da infância, e vividos então sem
compreensão, mas perfeitamente compreendidos e interpretados logo em seguida pelo
sujeito. A decifração desse tipo de acontecimento é auxiliada principalmente pelos sonhos,
e a estrutura da neurose nos força a admiti-los, podendo, ademais, comprovar que uma vez
vencidas as suas resistências, o analisado não emprega contra a sua aceitação a ausência da
sensação de recordar (da sensação de que algo já nos era conhecido).
227
Segundo a indicação de James Strachey, citado pelo editor espanhol, essas palavras,
nos conduzem ao Caso do homem dos lobos. Não sem razão, pois é no minucioso estudo
desse caso que Freud irá traçar suas observações a respeito do recalque primário, sua
226
COSTA, A. Corpo e escrita, p. 158.
227
FREUD, S. Recordar, repetir e elaborar, p. 1684.
147
determinação por um evento traumático, e o desvelamento da interligação entre o recalque
primário e o trauma, principalmente a partir da análise dos sonhos.
O recalque primário, apresentado em História de uma neurose infantil o caso do
homem dos lobos, se relaciona a uma experiência que Freud chama de “cena originária”. Na
verdade, essa cena não foi evocada pelo paciente, no plano de suas recordações, mas foi
reconstruída por Freud a partir de uma série de materiais aportados às sessões ao longo do
trabalho. O elemento decisivo para a reconstrução foi o famoso sonho que o paciente teve
por volta dos três ou quatro anos de idade.
Nesse sonho, o menino está em seu quarto, deitado na cama, quando vê, à sua
frente, a janela que subitamente se abre. Então ele enxerga, para além do umbral, seis ou
sete lobos brancos com caudas de raposa e orelhas de cachorro, empoleirados nos galhos de
uma grande nogueira. Esses lobos o olham fixamente. Tudo no sonho é estático, com
exceção do abrir-se da janela. O menino acorda aterrorizado e, a partir desse dia, passa a ter
medo de ver alguma coisa aterradora em seus sonhos. Além disso, é a partir do sonho que o
menino começa a apresentar sintomas fóbicos, cujo conteúdo é ser devorado por um
lobo.
228
Através de um pormenorizado trabalho “arqueológico”, Freud chega a situar a cena
que o pequeno homem dos lobos teria presenciado com um ano e meio de idade, e que,
sendo rechaçada automaticamente antes mesmo da divisão estrutural entre o sistema
consciente e inconsciente, haveria de retornar sob a forma alucinada do sonho. Nessa cena,
o que a criança viu foi a relação sexual dos pais numa peculiar posição: more ferarum. A
cena primordial teria marcado profundamente a vida do paciente e, a partir do sonho com
os lobos, adquiriu seu valor realmente traumático.
228
FREUD, S. O caso do homem dos lobos, p. 1954.
148
E ainda, ao tomarmos todo o histórico clínico apresentado, todas as minuciosas
elaborações a respeito do caso, o exaustivo trabalho de conexões e reconstituições, a noção
de posterioridade se faz constantemente presente, fazendo notar que o recalcado originário
apenas adquire seu valor como tal a partir de uma série de eventos que se precipitam numa
articulação identificatória. É que, a posteriori, sua significação originária decorre. Não
estava dado a princípio, ou de antemão, mas constitui-se na história: as investigações
sexuais infantis do pequeno homem dos lobos, a sedução da irmã mais velha, o
exibicionismo para com a babá que o repudia ameaçando-o de castração, as provocações ao
pai com finalidade de ser castigado, o impacto da história das sete cabritinhas..., enfim, uma
gama inumerável de registros. E assim, por retroação, a partir de subsídios simbólicos, a
cena originária é reavivada num sonho em que o pequeno se vê sendo visto no seu desejo;
vê a si próprio no lugar da mãe e se horroriza diante dessa posição que o coloca diante da
questão da castração: a janela se abre, ele desperta repentinamente de um sono e vê algo. O
sonho atualiza, a posteriori, as marcas cujo efeito de impacto traumático não haviam ainda
adquirido significação, e é por isso que o sonho também situa a cena num tempo do
passado. A respeito desse evento traumático, trazido pelo sonho, Lacan comenta no
seminário Os escritos técnicos de Freud:
... o que é que se passa durante esse período, entre três anos, um mês e quatro anos? —
senão que o sujeito aprende a integrar os eventos de sua vida numa lei, num campo de
significações simbólicas, num campo humano universalizante de significações. É por isso
que, pelo menos, nessa data, essa neurose infantil é exatamente a mesma coisa que uma
Psicanálise. Desempenha a mesma coisa que uma Psicanálise, a saber, realiza a reintegração
do passado, e coloca em função nos jogos dos símbolos a própria prägung, que só é atingida
por um jogo retroativo, nachträglich, escreve Freud.
229
229
LACAN, J. Os escritos técnicos de Freud, p. 221.
149
O termo Prägung, utilizado por Lacan para designar o evento traumático
originativo, é retirado da etologia e significa “cunhagem”, vindo a enfatizar a idéia de
Freud a respeito de inscrições, imagens que adquirem seu valor de impacto sobre o sujeito
somente a partir da retroação do simbólico sobre tais inscrições. Quanto à cena primordial,
jamais poderá ser capturada pela rememoração, e, talvez, não seja necessariamente só uma
ficção. De qualquer forma, certamente não é no plano da recordação que tais cenas
transcorrem:
Quero dizer, tão-somente, que essas cenas, como a do nosso sujeito, pertencentes à tão
remota época infantil, com tal conteúdo e de tão extraordinária significação na história do
caso, não são reproduzidas como recordações, mas haverão de ser adivinhadas —
construídas — passo a passo e muito laboriosamente desde uma série de alusões e indícios.
Pois bem, não sou de opinião que estas cenas tenham de ser necessariamente fantasias
porque não sejam evocadas como recordações. Parece-me, por completo equivalente a uma
recordação o fato de que sejam substituídas — como no caso apresentado — por sonhos
cuja análise nos conduz regularmente à mesma cena; e que reproduzem, transformando-os
infatigavelmente, todos e cada um dos fragmentos do contdo da mesma. O sonhar é
também um recordar, ainda que sob as condições do estado de repouso e da produção
onírica. Por este retorno nos sonhos, quero dizer que no próprio paciente se forme uma
firme convicção que não cede em absoluto àquela fundada na recordação.
230
O material desse recalcamento fez-se acessível à experiência através dos derivados
do inconsciente que orientaram a investigação no sentido de postular protofantasmas (a
sedução, a cena primária e a castração). Tais protofantasmas não são fruto da evocação,
cuja matriz seria a rememoração, mas da construção.
O texto Construções em psicanálise expressa a complexidade de tais idéias de modo
bem mais amplo. Freud ali observa que, toda vez que um neurótico é levado, por um estado
de angústia, a esperar a ocorrência de algum acontecimento terrível, está simplesmente sob
230
FREUD, S. O caso do homem dos lobos, p. 1967.
150
a influência de uma lembrança recalcada de que algo que era, naquela ocasião,
aterrorizante, realmente aconteceu. Em seguida Freud acrescenta que adquiriríamos um
conhecimento valioso a partir de um trabalho desse tipo com psicóticos, mesmo que não
conduzisse a nenhum sucesso terapêutico. A experiência leva-o a fazer uma analogia:
Os delírios dos pacientes parecem-me ser o equivalente das construções que erguemos no
decurso de um tratamento analítico — tentativas de explicação e de cura, embora seja
verdade que estas, sob as condições de uma psicose, não podem fazer mais do que substituir
o fragmento de realidade que está sendo rejeitado no passado remoto. Será tarefa de cada
investigação individual revelar as conexões íntimas existentes entre o material da rejeição
atual e o do recalque original. Tal como nossa construção só é eficaz porque recupera um
fragmento de experiência perdida, assim também o delírio deve seu poder convincente ao
elemento de verdade histórica que insere no lugar da realidade rejeitada.
231
Repetimos então essa frase lapidar — “Será tarefa de cada investigação individual
revelar as conexões íntimas existentes entre o material da rejeição atual e o do recalque
original” — para colocar de perto a tematização freudiana a propósito do recalcamento
primário e as construções. Podemos notar nessa passagem que a rejeição diz respeito à
castração e, da perspectiva mais primitiva, está situada naquilo que abordamos do texto A
negação como o que foi expulso pelo eu e funda o que está fora da representação. É
interessante também notar que, na citação, a analogia estabelece, entre a produção delirante
da psicose e a construção, uma importante relação entre a análise dos sonhos e a
transferência. Os sonhos mais diretamente relacionados ao traumático despertam o sujeito
na angústia, trazendo repetidamente a mesma cena, e auxiliam nas construções. A análise
poderá, desse modo, reconstruir não o encadeamento dos fatos, mas o sentido deles. Aqui
fundamentalmente encontramos a realidade da fantasia inconsciente ou fantasma.
231
FREUD, S. Construções em psicanálise, p. 3373.
151
Do ponto de vista clínico, poderíamos dizer que ali onde o recalque primário é pólo
de atração para o não-saber, a psicanálise propõe a construção do fantasma. E essa
construção não é da mesma ordem que o saber recalcado, que é lido, por exemplo, no
hieróglifo onírico. Em Construções em psicanálise, Freud ressalta que, muito embora as
construções possam ter a estrutura do delírio, não deixam de ter, para o analisante, o mesmo
valor de verdade que a rememoração. A essência do delírio é a de que não somente a
loucura tem método, tal como os poetas já ressaltaram, mas também um fragmento
rechaçado de verdade históricaum resto fora do simbólico, que retorna todas as noites
nas realizações alucinatórias de desejos.
Pois bem, aquilo que do inconsciente busca manifestar-se forçando o acesso à
consciência — e de que o eu, procurando evitar o desprazer, se evade — , são os derivados
do inconsciente. Esses derivados são o resultado da negação operada no recalque primário.
Assim, aquilo que foi recalcado num primeiro tempo tende novamente a emergir sob a
forma espraiada das ramificações e então é submetido a um recalcamento secundário, que
novamente pode apresentar-se sob aspectos opostos ao recalque:
Nem sequer é certo que o recalque mantém afastadas da consciência todas as ramificações
do primitivamente recalcado. Quando tais ramificações distanciam-se suficientemente da
representação recalcada, seja por deformação, seja pelo número de elementos interpolados,
encontram então acesso livre à consciência. Isso ocorre como se a resistência do consciente
contra as mencionadas ramificações estivesse na função de sua distância do recalque
primário.
232
O recalque primário, operacionalizando a fixação da representação, constitui-se
como o núcleo das ramificações que tomam um enredamento de uma lógica própria às
232
FREUD, S. O recalque, p. 2055.
152
operações do inconsciente ao final do complexo de Édipo. O próprio Édipo seria, por assim
dizer, uma interpretação ao recalcado originário.
Na clínica freudiana, o fantasma foi recorrentemente abordado como resultado do
processo do analisante defrontar-se com o seu auto-erotismo, sua relação à satisfação
pulsional e elaborá-los. Além disso, Freud usou o termo “elaborar”, durcharbeiten, para o
trabalho de tornar conscientes e superadas as resistências. Uma vez que notou estarem as
resistências emprestando expressão à compulsão à repetição, relacionou-a com os sonhos
que trazem repetidamente o traumático e concluiu que esse material subsidia a dinâmica de
toda neurose sob transferência. Aquilo que escapa à rememoração e às palavras, o
inconsciente coloca em destaque pela via da repetição. Destarte, o fantasma apresenta a
dimensão de se encontrar incrustado e mudo na realidade da vida de vigília, das ações
cotidianas, entre a percepção e a consciência. A partir disso, a teorização incidiu sobre o
procedimento do inconsciente de cifrar o trauma e a pulsão, e seus correlatos clínicos, o
fantasma e a angústia.
O fantasma e a angústia dizem respeito à fronteira com o fora da representação; o
primeiro reporta-se a articulação simbólica derradeira que aborda o traumático — tal como
apontamos com a discussão em torno do conteúdo do recalcamento originário — e o afeto
de angústia que, estremecendo o corpo, é repetição que antecipa vivamente a falta do
objeto. Temos aqui, mais uma vez, a referência aos dois representantes pulsionais, a idéia e
o afeto, respectivamente.
A psicanálise constata o fundamento simbólico da produção fantasmática, que
fornece contorno à realidade psíquica e à fabricação da história de cada um após o
complexo de Édipo. E no que tange ao complexo de Édipo, para retroagirmos ao nosso
Capítulo Um, poderíamos agora afirmar então ser o Édipo uma interpretação ao
153
recalcamento originário. O complexo de castração e de Édipo definem uma posição
particular da criança em relação à identificação, ao sexo e ao objeto de desejo, portanto.
Ambos determinam algumas balizas essenciais, pelas quais o sujeito se orientará de modo a
delinear suas escolhas e engendrar seu destino.
Lacan diz, no seminário da Angústia, que o fantasma adquire o valor significante da
entrada do sujeito na cadeia indefinida de significações que se chama destino
233
, e que esse
fantasma está referido à entrada da criança no universo do significante. É que a psicanálise
veio também a revelar o originário incluso na fantasia de espancamento, apresentada por
Freud em Bate-se numa criança: “É surpreendente a freqüência com que as pessoas que
procuram um tratamento analítico para a histeria ou uma neurose obsessiva, confessam
haver-se abandonado à fantasia: ‘Uma criança é espancada.’”
234
Nos casos analisados, o relato de cenas violentas, fantasias recorrentes cujo cerne se
constitui numa cena na qual uma criança está sendo espancada, leva Freud a hipotetizar que
a criança em questão era, no final das contas, o próprio autor da fantasia.
235
No relato de
uma cena que descreve um algoz indeterminado e uma vítima anônima, a clínica descobre
que, para além desse resultado da censura, é a relação da criança com o pai amado que está
em questão. E a fantasia de flagelação advém da ambivalência de sentimentos em relação
ao pai, fruto da culpa pelo desejo incestuoso que sucumbe ao recalcamento. A culpa é
sempre fator que transforma o sadismo em masoquismo.
236
Tal como já assinalamos no
Capítulo Dois
237
, trata-se, aqui, da tese segundo a qual o masoquismo primário é relativo ao
tempo em que se formou a fusão entre a pulsão de morte e Eros, amálgama entre o fora da
233
LACAN, J. A angústia, p. 56.
234
FREUD, S. Bate-se numa criança. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3). p. 2465.
235
Ibid., p. 2469.
236
Ibid., p. 2471.
237
Vide capítulo II, p. 77-78.
154
representação e o significante. O fantasma masoquista se expressa, por assim dizer, na
relação entre o afeto de angústia e o enredo constituído pelo encadeamento de imagens que
formam uma cena própria de cada fase: “O medo de ser devorado pelo animal totêmico (o
pai) procede da primitiva organização oral; o desejo de ser maltratado pelo pai, da fase
sádico-anal imediatamente posterior; a fase fálica da organização introduz, no conteúdo das
fantasias masoquistas, a castração”
238
.
Uma criança está sendo espancada; Ein Kind wird geschlagen: eis aqui a
concepção segundo a qual a relação originária do sujeito com a representação passa pela
dor, o marco inaugural maciço no qual todos os falantes se encontram. No fundo, diz
Lacan, é a dor de ser — apontada por Freud como resíduo extremo da ligação entre a
pulsão e o desejo, entre pulsão de morte e Eros
239
. O Bate-se numa criança concerne à
entrada na satisfação fálica, à emergência da Vorstellung pivô, em torno do qual gira a
dialética de todo o complexo de Édipo. Lacan afirma que, mais do que o pai que espanca-
ama, além desse pai, o que está em questão nessa fantasia é o significante, que tem a função
de significar o conjunto dos significantes, autorizá-lo a existir
240
. Para Lacan, o falo entra
em jogo no sistema das representações a partir do momento em que o sujeito tem que
simbolizar, em oposição ao significante, o significado como tal, isto é, a significação; em
outros termos, o significante do significado é o falo. É um paradoxo como o de Russell,
porque na Lógica do fantasma Lacan lança o seguinte axioma: “nenhum significante pode
significar a si mesmo.”
241
238
FREUD, S. O problema econômico do masoquismo, p. 2755.
239
LACAN, J. As formações do inconsciente, p. 255.
240
Ibid., J. p. 248.
241
LACAN, J. A lógica do fantasma, p. 3.
155
O fantasma não tem nenhum outro papel senão o de um axioma e é necessário tomar
isso tão literalmente quanto possível.
242
Tal como em um sistema lógico, um axioma é
aquilo a partir do qual se pode extrair verdade ou falsidade das proposições. Um axioma é
uma frase de valor indiscutível, assim como no fantasma de Bate-se numa criança: eis aqui
uma significação irrestrita, reduzida a uma frase que resiste a ser inserida no discurso do
inconsciente e que é suporte do desejo. Na fobia este é prevenido; na histeria, insatisfeito;
na obsessão, impossível. O fantasma originário está aqui articulado numa frase, numa
gramática, que, além de afirmar a verdade da dor no sintoma, afirma a entrada da
representação na carne para engendrar o desejo. E é por isso que Lacan, em Função da fala
e campo da linguagem, diz que a linguagem não é imaterial. “É um corpo sutil, mas é
corpo. As palavras são tiradas de todas as imagens corporais que cativam o sujeito; podem
engravidar a histérica, identificar-se com o objeto do Penis-neid, representar a torrente da
urina da ambição uretral, ou o excremento retido do gozo avarento.”
243
Resulta pois, do complexo de Édipo, a Lei do universo simbólico, abordada por
Freud em Totem e tabu e comentada por Lacan:
Se Freud insistiu a tal ponto no Complexo de Édipo, que chegou a construir uma sociologia
de totens e tabus, é patentemente porque para ele a Lei está ali ab origine. Não se trata, por
conseguinte, de se colocar a questão das origens — a Lei está justamente ali desde o início,
desde sempre, e a sexualidade humana deve se realizar por meio dela. Essa lei fundamental
é simplesmente a Lei de simbolização. É isso que o Édipo quer dizer.
244
242
Ibid., p. 94.
243
LACAN, J. Função e campo da fala e da linguagem, p. 302.
244
LACAN, J. As psicoses, p. 100.
156
No que concerne ao eixo das nossas investigações sobre o falo e a castração, para
onde essa citação nos conduz? Retornemos, pois, ao nosso Capítulo Um
245
, quando
assinalávamos que uma das questões fundamentais que Freud buscava resolver era a
referência simbólica derradeira, em função da qual o inconsciente procede por
deslocamento e condensação. Dissemos inclusive, naquela ocasião, que o estatuto da
significação tem para a psicanálise uma importância crucial, já que perpassa tanto a sua
teoria quanto a sua técnica, pondo em cheque o procedimento analítico, que deve se
distanciar da sugestão. É buscando dar conta desses interrogantes que Freud faz girar em
torno do complexo nuclear das neuroses a premissa do falo. Ocorre que Freud não podia
postular um sistema de significações prévias à fala dos analisandos ou criar uma
metalinguagem sem incorrer nas sérias críticas já feitas ao procedimento por sugestão.
A sugestão apóia sua técnica na utilização de palavras e no encantamento das
imagens, estando o seu poder de alcance adscrito ao enlace amoroso. Freud se interessa por
isso e conclui que a sugestão não está restrita à hipnose, mas atua em múltiplos setores,
fazendo-se viável por meio de uma inclinação absolutamente espontânea nos humanos para
serem sugestionados. No Capítulo Quatro de Psicologia das massas e análise do eu, o foco
da discussão é colocado nas alterações psíquicas que a massa impõe ao indivíduo, tais
como a exacerbação da afetividade, a coerção intelectual e a submissão a um líder. Aqui, a
submissão se faz não por imposição, mas revela a atemporalidade do inconsciente,
inclusive abordado pelo mito da horda primeva e pela sujeição ao pai totêmico. De todo
modo, sob a influência sugestiva do grupo social, somos levados a crer, a imitar e a
vivenciar com isso fortes emoções. A sugestionabilidade seria, assim, um fenômeno
irredutível e primitivo, um fato fundamental na vida mental do homem. O essencial é que a
245
Vide página 42-45.
157
sugestionabilidade adviria da aceitação de idéias, mais precisamente, de significações. E a
base de toda essa receptividade e submissão se encontraria sob a égide do amor e do
desamparo. Entretanto, o pensamento freudiano interroga esse empuxo à sugestão, tanto na
psicologia das massas quanto na análise do eu, e coloca-o em relação ao inconsciente:
(...) a própria sugestão, que explicava tudo, era isenta de explicação. Pensando nisso, eu
repetia a velha pergunta chistosa:
Literalmente: Cristóvão carregava Cristo. Cristo sustentava o mundo inteiro. Diga-me
então: onde se apoiavam os pés de Cristóvão?
Agora, quando depois de cerca de trinta anos
de afastamento, mais uma vez abordo o enigma da sugestão, descubro que não houve
mudança na situação. Há uma exceção a ser feita a essa afirmativa, exceção que dá
testemunho exatamente da influência da psicanálise.
246
A exceção que dá testemunho da influência da psicanálise teve seu início com a
mudança ocorrida em aspectos centrais relativos ao método. Em meados dos anos de 1890,
a hipnose foi definitivamente deixada de lado. A passagem de uma forma de investigação
baseada nos procedimentos de sugestão para a livre associação de idéias constitui a
condição que o tratamento passa a fazer àquele que a ele se submete e é isso que
fundamenta o trabalho propriamente “psicanalítico”. Fica assim fundada a condição sem a
qual a investigação dos processos psíquicos inconscientes não ocorre, ou seja, aquilo sem o
que uma psicanálise não chega a se estabelecer. Destarte, a formulação de que a experiência
deve levar às últimas conseqüências o exercício da fala demarca diferenciação
não de
grau, mas de natureza metodológica. Com a regra fundamental da associação livre, estaria a
psicanálise isenta da sugestão? Pelo que indica o texto freudiano, precisamente o
estabelecimento da regra fundamental encontra subsídios da sugestão em um fenômeno: a
transferência.
246
FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v.
3). p. 2576.
158
O texto O início do tratamento traz algumas formulações de importância sobre essa
matéria. Freud diz ali que o primeiro objetivo do trabalho é ligar o paciente à cura e ao
analista; para tanto, o tempo se faz para cada um, do modo mais particular.
247
Diz também
que o principal motor da cura é o sofrimento do paciente o desejo, portanto, de se curar.
Freud então pontua a respeito da diferenciação entre o tratamento pela sugestão e o trabalho
psicanalítico:
A transferência consegue por si mesma, muitas vezes suprimir os sintomas patológicos.
Mas isto só ocorre provisoriamente, isto é, só enquanto ela existe. E isto tão somente,
constituirá um tratamento sugestivo, nunca uma psicanálise. O tratamento só merece este
nome quando a transferência empregou sua intensidade para vencer as resistências. Só
então fica resolvida a enfermidade, ainda quando a transferência seja liquidada e isso deve
realmente ocorrer.
248
Pois bem, a investigação só tem direito ao distintivo de “psicanalítico” se emprega a
intensidade da transferência para vencer as resistências, o que equivale a dizer, se propicia a
prática da regra fundamental. Na transferência, há um aspecto de sugestão imprescindível à
investigação do inconsciente: instigar o acolhimento da associação livre. Seria o único e o
restante — as interpretações e as construções do analista — conseqüência? Possivelmente.
É provável que, afora o mencionado nódulo de sugestão contido na transferência, o
desprazer proporcionado pelo sintoma e o desejo de saber, por parte do paciente, venham a
fundar a curiosidade. E isso, que deve ocorrer no paciente logo no início da sua psicanálise,
remete-nos ao primeiro parágrafo do texto O início do tratamento, no qual há uma
comparação entre uma psicanálise e o jogo de xadrez.
249
Tal como no xadrez, sabemos do
início do jogo e também do final, enquanto que todo o andamento intermediário fica
247
FREUD, S. O início do tratamento. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2). p. 1672.
248
FREUD, S. O início do tratamento, p. 1674.
249
Ibid., p. 1661.
159
baseado na particularidade de cada jogo; sem esquecermos, é claro, que esse desenrolar
intermediário transcorre na dependência de como se deu a abertura.
Quanto ao fim, é preciso: um xeque-mate no rei. Rei, no sentido em que Freud
caracteriza o Eu como numa monarquia constitucional: reina, mas não governa
250
. Rei
também no sentido do ideal, apresentado no texto O narcisismo: His Majesty, the Baby
251
.
Mas qual a conexão entre esse narcisismo que ora invocamos e a experiência simbólica em
torno do binômio falo-castração?
Dissemos, no Capítulo Um, que o falo, na obra freudiana, tem estatuto de objeto
simbólico — um elemento simbólico que se ergue diante de uma ausência que suscita
angústia. Para colocar essa idéia rente ao texto, evocamos A cabeça da Medusa, que
paralisa de terror e, no entanto, “confirma a regra técnica segundo a qual a multiplicação
dos símbolos fálicos significa a castração.”
252
Na análise, a castração concerne a um
acontecimento que está posto na mais íntima relação com a fala: descreve a afinidade do
analisante com aquilo que ele afirma e que lhe causa angústia. Assim, a experiência o situa
num acontecimento que fala da relação com o significante e com o afeto. Esse
acontecimento põe, diante do analisante, uma iniludível decisão em relação ao saber:
recalcar ou pôr em palavras o que o inconsciente aproxima dele. Se a via for a do
inconsciente, haverá de vasculhar dentro da angústia, abordando a proximidade da pulsão;
se a via for a do recalque, o inconsciente se fará expresso no sintoma.
Estamos, aqui, diante das questões postas em relação ao Édipo e às identificações,
porque estas, entre outras coisas, constituem a garantia da não-perda do objeto para o isso.
250
FREUD, S. O eu e o isso, p. 2727.
251
FREUD, S. O narcisismo, p. 2027.
252
FREUD. S. A cabeça da Medusa, p. 2696.
160
E, como sabemos, para o eu, é de fundamental importância se manter como objeto libidinal
do isso.
A clínica freudiana ensina que a questão do objeto no plano simbólico é trazida pelo
complexo de castração, que se fundamenta no real pela diferença anatômica entre os sexos.
Freud constatou que os neuróticos interpretam a diferença inserindo aí uma boa dose de
imaginário. Assim, encharcado de sentido, o menino tem suficiente razão para responder
como um ameaçado e a menina, complexada de inveja. A fase genital infantil, como vimos,
é fálica, pois parte da premissa da presença ubíqua do falo, e a ausência é então manejada
em função dessa premissa narcísica. A partir de um enigma a ser posto no registro
simbólico, qual seja, a questão da diferença, que levaria a uma destituição narcísica, o
neurótico responde com um juízo de valor: fálico ou castrado. Trata-se de uma resposta
dada em função de uma série de perdas prévias, que a relação falo-castração faz significar.
Desse modo, o complexo de castração se torna inconsciente. O inconsciente procede
impulsionado pela falta e, fundamentalmente fálico, põe como absolutamente possível o
encontro incestuoso, um gozo mais além do princípio de prazer.
O Édipo da neurose de transferência, o Édipo posto na ordem da fala demarca um
tempo sui generis — aquele que transcorre nos termos de uma atemporalidade do
inconsciente; não se dá e se dá nos moldes de um passado que se foi, cuja origem Freud
descobriu. Essa origem, entendida como causa ante, é um falso problema porque é a clínica
que fornece os elementos essenciais para o desvelamento da dimensão repetitiva. A
castração se relaciona ao tempo e demarca a questão do fálico. É preciso situar essa idéia
no contexto da ordem simbólica. Quanto a isso, Lacan sinaliza que não é o caso, em
absoluto, de um falo real, à medida que, como real, pode ou não existir.
161
... trata-se de um falo simbólico, na medida em que é da sua natureza apresentar-se na troca
como ausência, ausência funcionando como tal. Com efeito, tudo o que se pode transmitir
na troca simbólica é sempre alguma coisa que é tanto ausência quanto presença. Ele é feito
para essa alternância fundamental, que faz com que, tendo aparecido num ponto, desapareça
para reaparecer num outro. Em outras palavras, ele circula, deixando para trás de si o signo
de sua ausência no ponto de onde vem. Em outras palavras ainda, o falo em questão — nós
o reconhecemos desde logo — é um objeto simbólico.
253
Mas qual é, então, a relação entre o falo e o objeto perdido? O falo é o representante
dessa perda e põe o universo simbólico em movimento. Esse representante, originariamente
recalcado, forma o núcleo do inconsciente. E muito embora o recalcamento primário esteja
na origem da linguagem, como vimos, as representações aí envolvidas não são de palavras.
Parece que o recalque primário faz reduplicar a representação no seguinte sentido: quando
dizemos que o contra-investimento é seu único mecanismo, estamos também afirmando que
algo fica presentificado naquilo que se constitui como eu, na exata medida em que fixa a
representação à pulsão no inconsciente; trata-se, aqui, de uma apresentação simultânea da
mesma coisa, representada sob forma diferente em dois registros distintos — ligação com a
representação de coisa, por um lado, e com fonemas (fort-da), por outro, uma dupla
inscrição. É desse modo que se dá a inscrição de representações elementares no
inconsciente. A linguagem e o inconsciente teriam, assim, uma origem simultânea, e, aqui,
a representação constitui tanto o corpo que forma uma unidade, como já afirmamos no
Capítulo Um, quanto a letra. O falo, como objeto simbólico, é a representação da
identidade.
Assim, o que nos revela o analisante a propósito da castração? “Que a castração não
é, no final das contas, nada mais que o momento da interpretação da castração.”
254
Que o
falo tem a função de significante da falta-a-ser, que determina no sujeito a sua relação com
253
LACAN, J. A relação de objeto, p. 155.
254
LACAN. J. A angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005 (O seminário – Livro 10). p. 32.
162
o significante.
255
A castração é simbólica e se dá em relação ao inconsciente; refere-se
ainda a um certo fenômeno de falta, que muitas vezes aparece sob a forma imaginária.
256
A
castração nos remete sempre à falta. Mas o que está posto quando nos referimos a ela? O
que está posto aí é a falta de um objeto. “Não se trata de pão escasso, mas do bolo a que
uma rainha remeteu suas massas em tempos de fome”
257
.
Além disso, no final do artigo Análise terminável e interminável, no capítulo
seguinte às elaborações relativas à formação de psicanalistas, Freud acentua uma
dificuldade com a qual a clínica se depara na análise de ambos os sexos. e sublinha tal
dificuldade com a contundente expressão “repúdio à feminilidade”
258
. Esse repúdio é
suscitado pela angústia que o avanço do trabalho propicia. A posição de Freud sobre a
matéria é bem conhecida e se refere a um convite à fala, à regra fundamental. Já em 1916,
em uma conferência sobre a angústia, a articulação significante é posta de modo exemplar:
Freud descreve a situação de uma criança que se encontra sozinha no escuro e faz um
pedido à tia, que está no aposento ao lado: “Tia, diz-me alguma coisa, pois tenho medo”. A
tia pergunta: “Mas de que serve te falar, se de todo modo não me vês?” Então a criança
responde: “É que fica mais claro quando alguém fala.”
259
Há um buraco na linguagem, que separa o significante do significado e fundamenta
a relação entre a castração e o falo. Lemos no seminário As formações do inconsciente que
“O falo entra em jogo a partir do momento em que o sujeito aborda o desejo da mãe. Esse
falo é velado e permanecerá velado até o fim dos séculos, por uma razão muito simples: é
um significante último na relação do significante com o significado. Com efeito, há pouca
255
LACAN, J. Escritos - sobre a teoria do simbolismo de Jones, p. 717.
256
LACAN, op. cit., p. 151.
257
LACAN J. Outros escritos. Respostas a estudantes de filosofia, p. 218.
258
FREUD, S. Análise terminable e interminável, p. 3364.
259
FREUD, S. A angústia, p. 2376.
163
probabilidade de que venha a se revelar senão em sua natureza de significante, ou seja, de
que venha a revelar, ele mesmo, aquilo que, como significante, significa”.
260
Temos aqui,
portanto, que toda significação é fálica, que há falta no universo simbólico e que ninguém,
em última instância, é o falo ou tem o falo. Nem mesmo o Pai.
260
LACAN, J. As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Zahar, 1999 (Oseminário – Livro 5). p. 249.
164
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Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2).
_____. Un recuerdo infantil de Leonardo da Vinci. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
(Obras completas, v. 2).
_____. Los dos principios del funcionamiento mental. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
(Obras completas, v. 2).
_____. El doble sentido antitético de las palabras primitivas. Madrid: Biblioteca Nueva,
1981. (Obras completas, v. 2).
_____. La dinámica de la transferencia. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
completas, v. 2).
_____. La iniciación del tratamiento. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas,
v. 2).
_____. Recuerdo, repetición y elaboración. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
completas, v. 2).
_____. Observaciones sobre el "amor de transferencia". Madrid: Biblioteca Nueva,
1981. (Obras completas, v. 2).
_____. Sobre las causas ocasionales de la neurosis. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
(Obras completas, v. 2).
_____. La disposición a la neurosis obsesiva. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
completas, v. 2).
_____. Historia de una neurosis infantil. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
completas, v. 2).
_____. Tótem y tabu. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2).
_____. El tema de la elección de un cofrecillo. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
completas, v. 2).
_____. Introducción al narcisismo. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v.
2).
_____. Sobre las transmutaciones de los instintos y especialmente del erotismo anal.
Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2).
_____. Los instintos y sus destinos. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v.
2).
_____. La represión. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2).
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_____. Lo inconsciente. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2).
_____. Adición metapsicológica a la teoría de los sueños. Madrid: Biblioteca Nueva,
1981. (Obras completas, v. 2).
_____. Duelo y melancolía. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2).
_____. Consideraciones de actualidad sobre la guerra y la muerte. Madrid: Biblioteca
Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2).
_____. Lo perecedero. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2).
_____. La fijación al trauma - lo inconsciente. Lección XVIII. Madrid: Biblioteca Nueva,
1981. (Obras completas, v. 2).
_____. Desarrollo de la libido y organizaciones sexuales. Lección XXI. Madrid:
Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2).
_____. Vías de formación de síntomas. Lección XXIII. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
(Obras completas, v. 2).
_____. La teoria de la libido y el narcisismo. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
completas, v. 2).
_____. La transferencia. Lección XXVII. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
completas, v. 2).
_____. El tabú de la virgindad. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 2).
_____. Para la prehistoria de la técnica psicoanalítica. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
(Obras completas, v. 2).
_____. Los caminos de la terapia psicoanalítica. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
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_____. Pegan a un niño. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3).
_____. Lo siniestro. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3).
_____. Mas allá del principio del placer. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
completas, v. 3).
_____. Psicologia de las masas y análisis del “yo”. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
(Obras completas, v. 3).
_____. La cabeza de la Medusa. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3).
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_____. La organización genital infantil. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
completas, v. 3).
_____. Observaciones sobre la teoría y práctica de la interpretación onirica. Madrid:
Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3).
_____. El “yo” y el “ello”. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3).
_____. Esquema del psicoanálisis. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v.
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_____. Neurosis y psicosis. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3).
_____. La pérdida de la realidad en la neurosis y en la psicosis. Madrid: Biblioteca
Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3).
_____. La disolución del complejo de Édipo. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
completas, v. 3).
_____. El problema económico del masoquismo. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
(Obras completas, v. 3).
_____. El “block” maravilloso. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v. 3).
_____. Inibición, síntoma y angustia. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas,
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_____. El porvenir de una ilusión. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras completas, v.
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_____. La disección de la personalidad psíquica. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.
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_____. La angustia y la vida instintiva. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981. (Obras
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