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Essas mesmas questões e ambigüidades parecem impor-se também quando
tomamos contato com a correspondência que Rosa estabelece com seus tradutores
224
. Do
meu ponto de vista, aquele tradutor com quem Rosa pôde corresponder-se de forma mais
aberta e solta foi, sem dúvida, Edoardo Bizzarri (ROSA, 2003a). Ao adentrar os meandros
dos seus processos de criação, Rosa fala abertamente de duas marcas desses processos – a
conexão com realidades “metafísicas” e o trabalho árduo e metódico com a língua e o texto;
assim como, analogamente, aponta duas “origens” para GSV:
[...] e Você já tem trabalho demais com o diabo do livro
225
, que, como Você vê, também
foi um pouco febrilmente tentado arrancar de dois caos: um externo, o sertão primitivo e
mágico; o outro, eu, o seu Guimarães Rosa, mesmo, que abraça Você, grata e
afetuosamente [...] (ROSA, 2003a: 87 – grifos meus)
226
224
No caso, foram consultadas as obras que publicaram o conjunto das correspondências entre Rosa e seu
tradutor italiano Edoardo Bizzarri (ROSA, 2003a), bem como com seu tradutor alemão Curt Meyer-Clason
(BUSSOLOTTI, 2003). Busquei elementos também em sua correspondência com William Agel de Mello (ROSA,
2003b), que abordava a tradução de sua obra para o espanhol. Cabe salientar que, diante de tantos aspectos
passíveis de serem apreendidos a partir do contato com tal correspondência, focalizei as referências que Rosa
fazia acerca de seus processos de criação.
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Quando Rosa fala sobre a origem de GSV e cita “o diabo do livro” me remete aos depoimentos presentes no
making off de Outras Histórias, dirigido por Pedro Bial. O poeta Haroldo de Campos, referindo-se às relações
entre o demo e o processo de criação de Rosa, afirma: “[...] ele [Rosa] estava falando do processo de composição
dos textos dele, em particular do Grande Sertão. Ele diz assim: ‘Quando ele vem, o texto, eu fico louco, rolo no
chão, luto com o demo de madrugada no meu escritório e depois, naquele contexto, naquele impacto, eu
escrevo. Naquele impulso eu escrevo.’ [...] Quando ele falava do demo não era uma metáfora, era uma coisa que
ele trazia realmente presencialmente, quase encarnava, ressuscitava um demo.” (transcrição minha). Benedito
Nunes, ao discorrer acerca das relações de Rosa com o demo, e referindo-se ao seu processo de criação, diz que:
“[...] o Sertão o levava até mesmo, enquanto estava escrevendo, a gritar, a dançar em movimento contínuo pela
sala. Não parava. [o entrevistador pergunta: Sozinho?] Sozinho.” (transcrição minha). Já o escritor Paulo
Dantas relata o episódio em que procura por Rosa no Itamaraty e ele não estava no gabinete. Estava andando,
quando viu que “[...] ele trazia um crucifixo com um rosário no pescoço e rezava igual a um beato, já de si
tomado por um transe” (transcrição minha). Paulo Dantas já havia feito alusão a esse mesmo tipo de
acontecimento em Sagarana emotiva (1975), livro em que publica as memórias construídas no contato com
Rosa, bem como parte de sua correspondência com o autor de GSV. Rosa haveria lhe confidenciado que GSV
teria sido escrito em apenas sete meses e a partir de um meio pouco ortodoxo: “– Os caboclos ‘baixaram’ em
mim... Só escrevo altamente inspirado, como que ‘tomado’, em transe. Aquele livro me cansou fisicamente.
Acabei extenuado. Deu-me, porém, um enorme prazer. Sensação igual só senti ao escrever Miguilim. Foi outro
‘clarão’ que recebi na vida.” (ROSA apud DANTAS, 1975: 28). Referindo-se ainda ao “tom mediúnico” da
inspiração de Rosa, Paulo Dantas diz que Rosa não tinha preconceitos com essa “modalidade artística de
inspiração”, considerando que “sonhava” antes com suas histórias. Diante do pedido de Dantas, para que tais
fenômenos fossem melhor explicados, Rosa promete dizer tudo um dia, em um prefácio ainda por ser escrito –
ao que Dantas comenta que, em Tutaméia, o autor “não disse tudo, mas ensejou muita coisa” (DANTAS, 1975:
43).
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Em correspondência endereçada a Bizzarri, datada de 21 de novembro de 1963.