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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
MARIA MADALENA:
LUZES E SOMBRAS NA URDIDURA
DE UMA IMAGEM
DIRCE SOCORRO GUIZZO
GOIÂNIA
2005
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UNIVERSIDADE CATÓLICA DE GOIÁS
DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA E TEOLOGIA
MESTRADO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
MARIA MADALENA:
LUZES E SOMBRAS NA URDIDURA
DE UMA IMAGEM
DIRCE SOCORRO GUIZZO
Dissertação apresentada ao Pro-
grama de Pós-graduação
stricto
sensu
em Ciências da Religião, ní-
vel de Mestrado, da Universidade
Católica de Goiás, sob a orientação
da prof
a
. Dr
a
. Ivoni Richter Reimer.
GOIÂNIA
2005
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Gratidão infinita ao Grande Espírito, sem o qual o nada seria o todo.
Gratidão reconhecida aos genitores, possibilitadores da vida biológica.
Gratidão especial à mãe, feminino doador, masculino provedor, amor.
Gratidão tardia ao João, pai de alma.
Gratidão à irmã, sempre presente, e à irmandade, de sangue ou de alma.
Gratidão aos mestres, por alumiar o caminho e viabilizar a pretensão.
Gratidão à orientadora, paciência infinda.
E, em tudo, gratidão ao Amor.
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LISTA DE SIGLAS
CNBB - Conferência Nacional dos Bispos do Brasil
dC - Depois de Cristo
EC - Era Cristã
GNT - The Greek New Testament
NTG - Novum Testamentum Graece
PT - Primeiro Testamento
SE - Sagrada Escritura
ST - Segundo Testamento
TEB - Tradução Ecumênica da Bíblia
6
SUMÁRIO
RESUMO............................................................................................................. 8
ABSTRACT......................................................................................................... 9
INTRODUÇÃO .................................................................................................... 10
I. MARIA MADALENA: SANTA PECADORA? ................................................. 17
1. Nem tudo são flores. As origens do cristianismo ...................................... 17
2. Apóstola negligenciada: doze referências bíblicas.................................... 23
3. Apóstola de primeira hora: exegese de Lc 8,1-3 ........................................ 30
3.1. Crítica textual ............................................................................................. 30
3.2. Tradução .................................................................................................... 32
3.3. Análise literária .......................................................................................... 38
3.4. Análise da redação .................................................................................... 48
3.5. Análise das formas .................................................................................... 52
3.6. Análise de conteúdo .................................................................................. 55
3.6.1. Método estruturalista ............................................................................. 56
3.6.1.1. Análise semântica ............................................................................... 56
3.6.1.2. Análise narrativa .................................................................................. 66
3.6.2. Método histórico-crítico ......................................................................... 68
3.7. Nova tradução............................................................................................. 73
3.8. Para não concluir ....................................................................................... 73
4. Apóstola vilipendiada: a construção patrística .......................................... 75
7
II. MARIA MADALENA: A SOFIA DOS ANTIGOS GNÓSTICOS ..................... 83
1. Apócrifos. O espólio dos vencidos ............................................................. 83
2. Gnosticismo. Uma teologia diferente .......................................................... 90
3. Pérolas encobertas pela poeira dos tempos .............................................. 97
4. Evangelho de Maria: dois ecos em português ........................................... 106
5. Evangelho de Maria: preciosidade gnóstica .............................................. 117
6. Evangelho de Tomé: antigo testemunho ................................................... 126
7. Evangelho de Felipe: a consorte do Senhor............................................... 129
8. Pistis Sophia: entre o feminino e o masculino ........................................... 131
9. Diálogo do Salvador: a discípula pneumática ........................................... 136
10. Textos diversos: o feminino no gnosticismo ........................................... 137
CONCLUSÃO ..................................................................................................... 140
REFERÊNCIAS................................................................................................... 148
ANEXOS ............................................................................................................. 156
8
RESUMO
GUIZZO, Dirce Socorro. Maria Madalena: luzes e sombras na urdidura de
uma imagem. Goiânia: Universidade Católica de Goiás, 2005.
O objetivo desse trabalho é demonstrar que no ocidente cristão a imagem da
conhecida personagem bíblica Maria Madalena foi alterada ao longo dos séculos
com o objetivo de descaracterizar o apostolado de mulheres, o que contribuiu para
a construção da identidade de gênero feminina marcada pela baixa auto estima e,
conseqüentemente pelo fraco empoderamento. Com a finalidade de se reconstituir
a trajetória dessa construção imagética, foram pesquisados alguns textos fundantes
do cristianismo, a literatura blica, a literatura apócrifa, e a patrística, utilizando as
chaves de interpretação preconizadas pela hermenêutica feminista, que nos per-
mite a leitura de gênero como categoria analítica de relações construídas cultural-
mente. Verificamos que se personifica, em Maria Madalena, um arquétipo feminino,
ideal bíblico a ser transportado para o concreto cotidiano, apóstola cuja importância
foi minimizada pelos autores do texto do Cânon.
Palavras-chave: Maria Madalena - Bíblia, Hermenêutica Bíblica Feminista,
Literatura Apócrifa.
9
ABSTRACT
GUIZZO, Dirce Socorro. Maria Magdalen: lights and shadows in the contex-
ture of an image. Goiânia: Universidade Católica de Goiás 2005.
The objective of this paper is to demonstrate that in the Christian occident the
image of Maria Magdalen, a well-known biblical character underwent some changes
throughout the centuries. The aim was to de-characterize the apostolic work carried
out by women, and that contributed to build the identity of the female gender,
marked by low self-esteem, and as a consequence, by weak empowerment. Aiming
at recreating the path of the construction of this image, the author researched se-
lected fundamental texts of Christianity, biblical literature, apocryphal literature as
well as the patristic literature, using interpretation keys advocated by the feministic
hermeneutics, which allows us to read gender as an analytic category of relation-
ships built on the basis of culture. It was possible to ascertain that, in Maria Magda-
len the female archetype was created, the biblical ideal that had to be transported to
the concrete aspects of daily life, an apostle whole importance was minimized by
the authors of the Canon.
Keywords: Maria Magdalen - Bible, Biblical Feministic Hermeneutics, Apoc-
ryphal Literature.
10
INTRODUÇÃO
Miriam de Magdala é uma personagem bíblica bastante conhecida no mundo
cristão, e é, com certeza, uma das personagens de interpretação mais enigmática
do Novo Testamento. Existem poucas citações diretas sobre ela na Bíblia - é nomi-
nalmente citada apenas doze vezes nos evangelhos canônicos - porém está pre-
sente, ao lado das outras Marias, nas passagens mais marcantes na vida do Cristo,
como a Paixão e a Ressurreição.
Maria Madalena, como se convencionou chamá-la em língua portuguesa,
também é personagem de diversos escritos apócrifos, nos quais é apresentada
como discípula amada de forma especial por Jesus. Dentro da tradição gnóstica
possui papel de suma importância como transmissora da Gnose, portadora da luz e
símbolo do verdadeiro adepto. Para muitas seitas cristãs originárias, Maria Madale-
na era uma Mestra e transmitia oralmente seus ensinamentos.
Essas deferências, entretanto, não são suficientes para deixá-la a salvo de
interpretações bem distintas acerca de seu papel. A própria literatura disponível ao
leigo nos faz ver que enquanto na igreja do oriente Maria Madalena é tratada como
apóstola e recebe homenagens face à sua dignificante inteireza e fidelidade a
Jesus, no ocidente, no decorrer dos séculos, a imagem inicial de discípula de Jesus
e mestra vai sendo desconstruída e paulatinamente substituída pela de prostituta e
penitente. Maria Madalena é a mulher pecadora, provavelmente prostituta, purifica-
da pelo Cristo e que, como prova de seu amor espiritual, lavou os pés do Senhor e
11
os enxugou com os próprios cabelos. Como mulher cheia de pecados representa o
arquétipo feminino tradicional, a transmissora do pecado original, que após ser cu-
rada passa sua vida em penitência e arrependimento.
Enquanto o imaginário popular ainda trabalha com a figura da Santa Maria
Madalena pecadora, penitente e arrependida, diversos autores já afirmam que
aquela que tornou-se a imagem da grande pecadora, ou, de preferência, a santa
pecadora, na verdade seria a primeira apóstola e que sua imagem foi maltratada,
caluniada e, ao mesmo tempo, "glorificada" (G. Ravasi apud Sebastiani, 1995, p.
15). Para esses estudiosos, essa discípula que ama o mestre e testemunha Sua
Ressurreição, sendo a portadora da Boa Nova, poderia ser considerada a primeira
apóstola.
É inimaginável a dimensão da importância da reconstrução da imagem do
feminino nas Escrituras. Libertando-se a mulher do estigma de pecadora, ela pode-
rá, sem a prisão da culpa, apropriar-se novamente do desejo e reconstruir os ar-
quétipos poderosos que embalaram a criação da identidade feminina. Neste reen-
contro, o feminino pode ser reabilitado e liberto, propiciando a re-aproximação e a
re-união do homem e da mulher.
Face a essa possibilidade, será analisada a construção, ao longo dos sécu-
los, da imagem de Maria Madalena, haja vista a importância dessa santa no imagi-
nário cristão ocidental. Com a finalidade de se reconstituir a trajetória dessa cons-
trução imagética, pesquisamos os evangelhos canônicos e o evangelho apócrifo
que leva o nome de Maria Madalena, bem como outros textos cristãos da antigui-
dade, verificando o perfil que nos autorizam construir.
Trabalhamos com os textos dos evangelhos, que apresentam Maria Madale-
na como fiel discípula de Jesus, companheira desde a Galiléia até a ressurreição, e
com os demais textos não-canônicos da antiguidade que acrescentam ter sido ela
12
especialmente amada pelo Mestre e ser portadora de sabedoria incomum. Mas,
apesar disso, os doutores da igreja combinaram três mulheres apresentadas em
distintas passagens bíblicas e construíram uma santa pecadora e penitente, e os
artistas e hagiógrafos deram forma a esta concepção, que se estabelece no imagi-
nário popular.
Diversos foram as obras que embasaram nossa pesquisa. De todas, pinça-
remos aquelas que mais nos auxiliaram nos momentos críticos em que parece que
nada flui, ou que o rio da inspiração flui demais, e precisamos de leme para retomar
o leito. Ressaltamos, todavia, que todos aqueles arrolados em nossa bibliografia
nos foram úteis de alguma forma.
Lemos Konings (1998) logo no início de nosso trabalho e foi uma leitura
muito proveitosa porque apresenta a história da formação da Bíblia através dos sé-
culos, inserindo-a no contexto geográfico e cultural do período de sua gênese. Para
esse autor, a Bíblia narra a história de um povo em busca de Deus, e não a história
de um povo perfeito, e portanto transmite os conceitos precários e questionáveis
desse povo, além de conter dados errôneos. Assim, os elementos que constituem a
Bíblia não escapam da imperfeição humana, tanto em matéria de ciência como de
expressão religiosa. E sendo assim, é fácil manipulá-los.
Tricca (1995) também muito nos ajudou. Publicou uma seleção de livros
apócrifos em cuja introdução, não sem ironia, relembra que muitos dos textos hoje
considerados proscritos, algum dia fizeram parte do cânon, assim como temos
outros que, antes alijados, posteriormente foram redimidos e hoje integram o Livro
dos Livros. Em deliciosa passagem arrola alguns dos pitorescos e inacreditáveis
"critérios" utilizados para a determinação da inspiração divina - ou não - dos textos,
sendo leitura muito útil para se repensar a literalidade do texto atual da Bíblia.
Tepedino e Richter Reimer foram essenciais. Elas publicaram no Brasil, na
13
primeira metade da década de 1990, dois textos básicos para o resgate de Maria
Madalena para dentro da Teologia Sistemática e Teologia Bíblica na América Lati-
na: em 1990 Ana Maria Tepedino publica As Discípulas de Jesus, enfatizando o
apostolado de Madalena (Apostola apostolorum) e sua proeminência dentre os dis-
cípulos. Ivoni Richter Reimer (1995), pela primeira vez na América Latina, parte de
originais apócrifos e traz Maria Madalena à tona na reflexão bíblica, em artigo que
resgata a presença e a importância das mulheres nas origens do cristianismo, res-
saltando os mecanismos utilizados para silenciar o apostolado de Maria Madalena.
Estudiosos como Boer (1999) demonstram que a imagem de Maria Madale-
na como personificação da atratividade feminina somente se desenvolveu a partir
do quinto ou sexto século e circulou apenas na tradição escolástica ocidental.
Para Faria (2003, 2004), estudioso dos textos apócrifos das origens do cristi-
anismo, Maria Madalena foi uma liderança apostólica nos primórdios do cristianis-
mo, mas "parte da tradição preferiu criar e difundir sua imagem como prostituta ar-
rependida" (2004, p. 12). Na mesma passagem, o autor afirma que isso teria ocorri-
do "para fazer dela um modelo de fé para aqueles que querem deixar a 'vida impu-
ra' e seguir a Jesus". Apesar da importância dessa leitura no início de nossa pes-
quisa, acreditamos que nossa hipótese avança no sentido de não ser apenas essa
a motivação dos que manipularam a imagem da Madalena.
Na tradução do apócrifo Evangelho de Maria, de Leloup (1998b), deparamo-
nos com uma Maria Madalena inteligente e decidida, dona de seu desejo, discípula
inspirada e bem amada de Jesus. Ser humano à frente de seu tempo, não se con-
formou com a situação de submissão e desprezo devotada às mulheres de sua
época. No Evangelho de Felipe descobre-se a importância que Jesus consagrava
ao relacionamento entre homens e mulheres. E não nenhuma discriminação do
feminino na relação preconizada neste Evangelho. A leitura destes textos fez-nos
14
acreditar que estávamos trilhando um bom caminho.
Muraro e Boff (2002) integram o feminino e o masculino em seu livro escrito
a duas mãos. O texto do teólogo é um erudito compêndio acerca do feminino, do
masculino e de Deus. A relação feminino/masculino é desvelada em suas nuances
sexuais biológicas, em sua construção histórico social e ontológica. A crise do pa-
radigma dominante é admitida e a teologia construída para justificar a opressão do
feminino pelo masculino é cruamente desmascarada e repudiada.
Sebastiani, em livro de 1995, admitia que fora dos círculos de estudos teoló-
gicos não eram muitos os que sabiam que Madalena não é a pecadora de que fala
Lucas e que sobre ela todo o preconceito do feminino foi despejado. E que, como
fenômeno religioso, ultrapassa os limites da individualidade na medida em que sua
imagem passa a fazer parte da experiência simbólica religiosa e a própria deforma-
ção dessa imagem pode indicar que sua figura reflete alguma exigência universal.
Campbell (1999) traça um paralelo entre mitos de diversas épocas e cultu-
ras, demonstrando as similaridades entre eles, e a esta análise não escapam os
mitos cristãos. Ele também compartilha a tese que proclama que a identificação da
mulher com o pecado, da serpente com o pecado e portanto da vida com o pecado,
é um desvio imposto à história da criação, na doutrina da Queda, segundo a Bíblia.
Utilizamos esse autor para revisitar nossa personagem tendo como chave de inter-
pretação a hermenêutica feminista, imaginando sua imagem sendo formada pelos
escritores masculinos, com olhos - e intenções - "adequados" ao seu tempo.
Schottroff (1995, p. 7) adverte que "no movimento teológico-feminista é pos-
sível observar alguns mitos históricos que, na busca pela história das mulheres,
tomaram o lugar das perguntas históricas" e acrescenta "tais mitos, obviamente,
não são verdade, são histórias falsas (geralmente não estamos conscientes de sua
inverdade)". Mas não desanima: "assim é tempo, dentro do movimento teológico-
15
feminista para se formular perguntas históricas". São perguntas dessa natureza que
serão formuladas - e respondidas - ao longo desse nosso estudo sobre o arquétipo
que se criou em torno da figura de Maria Madalena.
Schlüssler Fiorenza (1992) afirma que desde o início do movimento das mu-
lheres, a Bíblia teve relevante importância na sua luta pela emancipação. Para Ca-
dy Stanton (apud Schlüssler Fiorenza, 1992, p. 35), a Bíblia não é um livro neutro,
mas uma arma política contra a luta das mulheres. Sua linguagem androcêntrica
permite uma interpretação usada contra as mulheres. Por isso, toda passagem bí-
blica deve ser cuidadosamente analisada e avaliada.
Richter Reimer (2000, p. 21) nos orienta a expor o texto a um processo de
desconstrução e reconstrução. A autora, ao insistir na possibilidade de uma "leitura
bíblica feminista libertadora", possibilita compreender a extensão da importância da
reconstrução da imagem das personagens bíblicas femininas, cuja identidade des-
torcida serve de referência a um sem-número de mulheres, que terão sua compre-
ensão das relações vivenciais do cotidiano profundamente alterada com a reabilita-
ção da personagem hoje ainda tida como pecadora e penitente.
Com a finalidade de compreendermos se realmente ocorreu esse processo
que ao longo do tempo descaracterizou o perfil de Miriam de Magdala, recorrere-
mos à hermenêutica feminista preconizada por Richter Reimer, e começaremos
nosso trabalho com a exegese dos textos da Bíblia canônica, porque é na Bíblia
que encontramos as referências mais conhecidas. E não podemos olvidar que essa
pesquisa está sendo realizada na área de concentração Religião e Cultura e na li-
nha de pesquisa Religião e Sociedade na Literatura Bíblica. Achamos importante,
pois, comparar os versículos que mencionam o nome de Maria Madalena e também
fazermos um detalhado estudo da perícope Lucas 8,1-3, na qual se afirma que Ma-
ria Madalena, curada de sete demônios, acompanhava Jesus e os discípulos. Um
16
dos motivos de nos determos nessa perícope é porque acreditamos que a recons-
trução desse texto nos permitirá verificar em qual condição as mulheres acompa-
nhavam Jesus em seu ministério, ou seja, se em situação de apostolado ou não.
Os passos do método histórico-crítico de exegese apresentados por Wegner
(2002) serão fundamentais para nossa exegese. Concordamos com o autor, se-
gundo o qual a primeira tarefa da exegese é aclarar as situações descritas nos
textos, permitindo redescobrir o passado bíblico; a segunda, é ouvir a intenção do
texto na sua origem, e a terceira é verificar em que sentido as opções éticas e dou-
trinais devem ser reafirmadas ou revistas e relativizadas.
Para revisar - ou não - as opções que foram exercidas por aqueles que se
referiram à nossa personagem, e conseqüentemente, de alguma forma, contribuí-
ram para erigir seu perfil, utilizaremos as chaves de interpretação preconizadas
pela hermenêutica feminista, com sua clara proposta a ser seguida nessas páginas:
a função libertadora, que nos permite a leitura de gênero
como categoria analítica
de relações construídas culturalmente. Esse olhar crítico será dirigido ao cristianis-
mo e seus textos fundantes, produtos de uma cultura e história patriarcal e andro-
cêntrica, reafirmando que todo nosso estudo será embasado na pesquisa teórica,
com investigação histórico-científica das fontes. Nosso trabalho será histórico-
crítico, como claramente delineado na exegese proposta.
A dissertação será desenvolvida em dois capítulos. O primeiro tratará dos
textos canônicos e da patrística, e o segundo da literatura apócrifa.
Ainda nos valendo das lições de Schlüssler Fiorenza (1992), também temos
expectativa que nossas digressões a respeito da real importância da mulher Maria
Madalena nas comunidades cristãs originárias possam contribuir para resgatar a
dignidade de todas elas.
17
I. MARIA MADALENA: SANTA PECADORA?
1. Nem tudo são flores. As origens do cristianismo
Míriam de Magdala. O nome da mulher que viu o Cristo ressuscitado, antes
de qualquer outra pessoa. Maria Madalena, como se fixou na tradução da Bíblia em
português.
Apesar de sua importância para o cristianismo, é muito frustrante o material
que se apresenta nos textos canônicos para a pesquisa sobre Míriam de Magdala.
As raras menções ao seu nome são feitas somente nos evangelhos. E, tirando as
repetições, estas são apenas doze. Maria Madalena aparece apenas doze vezes
na Bíblia! A mulher que acompanhou Jesus pelo menos desde o início de seu mi-
nistério e falou com o ressuscitado antes de qualquer outro apóstolo é citada so-
mente doze vezes nos textos canônicos.
É óbvia a questão que se impõe: Míriam de Magdala não tinha importância
dentre os discípulos e por esta razão não mereceria maiores citações, ou sua im-
portância foi minimizada por algum motivo que ainda não sabemos? Somente a
pesquisa poderá nos ajudar a elucidar a resposta. E para isso, lançaremos mão de
todo o material que soubermos disponível, sem nenhum conceito prévio a respeito
de sua validade, pois apenas a própria pesquisa é que nos orientará acerca da cre-
dibilidade de cada fonte.
18
Para nos acercarmos dos textos que falam de Maria de Magdala com o devi-
do respeito e a necessária cautela, é importante entender o contexto da época de
Jesus para compreender o significado e a importância da literatura então produzida,
inclusive os textos apócrifos.
Da morte de Jesus até a redação dos primeiros escritos sobre ele decorre-
ram cerca de 30 anos. Muitos de seus discípulos e discípulas haviam morrido e
era essencial que fossem redigidas as memórias do que ocorrera, pois para os pri-
meiros cristãos a vida e a obra de Jesus e seus seguidores não podiam cair no es-
quecimento. Muitas pessoas em muitas comunidades dedicaram bastante tempo
para escreverem o que a tradição sobre Jesus guardou na memória. Era funda-
mental, para as comunidades cristãs, compreender quem ele era e o que pregava.
A interpretação do evento Jesus com certeza sofreu influência dos vários
movimentos filosóficos religiosos que existiam nos primeiros séculos da Era Cristã.
Esses movimentos também lançaram seus olhares para a vida e a prédica de
Jesus e o interpretaram segundo sua doutrina e, da mesma forma, também contri-
buíram para o delineamento da doutrina cristã, que se via face a face com essas
compreensões e necessitava integrá-las ou refutá-las. Nesse período surgiram dis-
putas teológicas acerca de Jesus. Assim se firma o querigma cristão e se identifi-
cam e abdicam das chamadas heresias.
Desse esforço coletivo para compreender o evento Jesus e traçar o seu perfil
surgiram vários cristianismos, ou seja, várias formas de interpretação do mesmo
Jesus. E cada um desses cristianismos originários produziu sua própria literatura,
com interpretação independente ou interdependente, de acordo com cada caso. Fa-
ria (2003, p. 10-11) nos apresenta uma classificação desses cristianismos das ori-
gens, segundo a "linha mestra de pensamento e a comunidade ou pessoa que o
representa":
19
a) Cristianismo dos ditos de Jesus (Fonte Quelle, Tomé);
b) Cristianismo da cura e do caminho (Marcos);
c) Cristianismo do Jesus Filho de Deus, Messias e seguidor do judaísmo (Mateus);
d) Cristianismo da salvação para judeus e não-judeus (Lucas);
e) Cristianismo do discurso teológico elaborado e dos sinais (João);
f) Cristianismo do Jesus histórico e revolucionário (Tiago, Tomé);
g) Cristianismo do Jesus ressuscitado e glorioso (Paulo);
h) Cristianismo do Jesus ressuscitado que mora dentro de cada um de nós de forma
integrada e que nos convoca a viver e testemunhar a harmonia (Maria Madalena);
i) Cristianismo gnóstico, que mostra Jesus, o ressuscitado que traz a salvação
(Tomé, Maria Madalena, Filipe );
j) Cristianismo da apostolicidade, que indica a organização comunitária e hierárquica
da comunidade para garantir a pregação da Boa-Nova do Evangelho (Atos dos
Apóstolos e Cartas de Paulo).
Nós somos herdeiros desses vários cristianismos. Mas o que obteve prima-
zia e se tornou oficial foi o cristianismo da apostolicidade, tornando-se assim canô-
nico. As outras correntes de pensamento, para serem aceitas e também se torna-
rem canônicas, tiveram que se adequar aos princípios da apostolicidade. Segundo
Faria (2003, p. 11), "os apóstolos foram perseguidos teologicamente e também per-
seguiram pensamentos diferentes no interior das comunidades". Ele afirma:
A escolha dos fatos a serem escritos está relacionada com a experiência da comuni-
dade que os escreve, após tê-los guardado na memória. (...)
A pregação missionária, catequética e litúrgica da paixão e ressurreição motivou a
formação dos evangelhos canônicos. (...)
Os evangelhos canônicos e as cartas são reflexos claros do cristianismo que se fir-
mou como "verdadeiro". Os evangelhos, sobretudo, ao contar a história de Jesus,
quiseram ser uma resposta ao grupo dos que pensavam que a vida terrena de Jesus
não contava. E esses se transformaram em verdadeiras obras literárias. E belezas
literárias assim tão raras podiam ser inspiradas por Deus. Os apócrifos, segundo
alguns estudiosos, desde o ano 50 da E.C., corriam por fora nessa disputa teológica
pelo perfil de Jesus. (Faria 2003, p. 12).
Uma das correntes de pensamento venceu a disputa teológica e os escritos
que se adequavam a ela se impuseram. E se tornaram oficiais, formando o cânon.
Esses serão os textos que analisaremos neste primeiro capítulo.
20
Mas os textos aceitos como canônicos são insuficientes para responder to-
das nossas perguntas. Muitos aspectos essenciais escapam de suas linhas. E
muitos desses aspectos são encontrados apenas nos textos apócrifos. Este motivo
é mais que suficiente para que nos perguntemos qual a validade dos apócrifos,
como e por quem eles foram produzidos e também com qual intenção, porque eles
talvez possam nos dar algumas das respostas que tanto buscamos. Redescobrir os
apócrifos talvez seja encontrar dados preciosos da origem da fé cristã, de outro
modo encobertos.
Os apócrifos são também uma tentativa de fazer valer a diversidade de pen-
samento que existia no início do cristianismo. Os vários pensamentos significam vá-
rias comunidades, vários pontos de vista. E isso é muito bom para o conhecimento.
No início do cristianismo, a nova entrou em contato com expressões de diferen-
tes culturas e formas de crença, originando textos escritos com dessemelhantes
orientações. Esse amálgama expressou-se livremente no seio da religião nascente.
No início da trajetória judaica e da cristã, ninguém se perguntava se o livro
usado pela comunidade era inspirado ou não. Ainda não existiam sínodos nos
quais os escritos eram proibidos ou comentados e naturalmente alguns escritos en-
contraram maior receptividade e circularam mais amplamente que outros. Listas fo-
ram compiladas. Em 367, Atanásio, arcebispo de Alexandria, coligiu a primeira lista
de textos cristãos contendo os vinte e sete livros do Segundo Testamento.
Para Trebolle Barrera (1996, p. 276),
No final do século II estava formado o "núcleo" básico do futuro cânon neotesta-
mentário. Era constituído por quatro evangelhos, treze cartas de Paulo, At, 1 Pd e 1
Jo. Os Padres do final do século II e início do III, assim como o Fragmento Muratori-
ano, conheciam este corpo de literatura cristã e o citavam como escritura canônica,
em pé de igualdade com o AT, até pouco antes as únicas Escrituras dos cristãos.
Nos dois séculos seguintes, pouco a pouco, foi havendo um consenso sobre o valor
canônico dos demais livros, de modo que nos finais do século IV o cânon neotesta-
21
mentário adquiria sua forma definitiva. A Carta de Páscoa de Atanásio do ano 367
oferecia uma lista que coincidia basicamente com as transmitidas desde àquela épo-
ca até hoje.
Faria (2003, p.23) nos lembra que antes dos cristãos os judeus também se
defrontaram com a questão da canonicidade. Eles aprovaram, por volta do ano 80 a
100 da E.C., na cidade de Jâmnia, no sul da Palestina, o cânon hebraico, com uma
lista dos 39 livros que foram considerados inspirados. Entre os cristãos, o cânon
dos livros inspirados teve que esperar longos anos para ser formado e aprovado.
No ano 150 E.C. surgiu o cânon de Marcião e no ano 200 E.C., o Muratoriano. No
século I um cânon do Segundo Testamento já era reconhecido por todos, mas so-
mente no Concílio de Trento, em 1546, é que os livros da Bíblia foram definitiva-
mente considerados inspirados e aprovados pela Igreja Católica. E muitos dos tex-
tos produzidos foram deixados à margem da lista dos inspirados.
São mais de cem os livros apócrifos do Primeiro e Segundo Testamento. En-
contrarmos tantos escritos dos cristianismos primitivos é uma prova muito concreta
da disputa teológica dos primeiros séculos do cristianismo. Os escritos seleciona-
dos e conservados pela tradição como inspirados, e portanto canonizados, foram
conservados pela própria igreja. Os outros, os não-canônicos, mantiveram-se ape-
nas em razão da persistência e resistência de algumas comunidades.
Segundo Faria (2003, p. 20), os apócrifos do Segundo Testamento também
podem ser classificados segundo as clássicas categorias de evangelhos, atos,
epístolas e apocalipses.
Se não consenso entre os estudiosos acerca da datação dos livros canô-
nicos, o mesmo se aplica à datação dos apócrifos do Segundo Testamento.
quem date, por exemplo, as parábolas do evangelho de Tomé no ano 50 E.C. e o
resto do evangelho nos anos 90, 140 ou 200. É muito difícil atestar cientificamente
22
datas precisas. Os argumentos são, muitas vezes, imprecisos e subjetivos. Pode-
mos, no entanto, considerar que a datação dos apócrifos do Segundo Testamento
vai do primeiro ao sexto séculos da Era Comum. A maioria deles, no entanto, foi
escrita entre os séculos segundo e quarto, de acordo com Faria (2003, p. 22).
Muitos dos escritos primevos encontraram lugar no Segundo Testamento
não em sua roupagem original, mas na forma apresentada quando de sua cristali-
zação no cânon, haja vista que muitos foram os caminhos percorridos até sua re-
dação final. Muitos, no entanto, perderam-se para sempre, sepultando nas areias
do tempo a sua origem e a sua mensagem. O lento emergir dos séculos foi inexo-
rável com aqueles textos considerados impróprios para figurarem na Bíblia. A sele-
ção do cânon condenou os textos rejeitados a obscuros e perdidos depósitos e ao
desgaste impiedoso dos anos.
Textos de inegável valor foram relegados ao e ao esquecimento, apesar
de sua incontestável circulação e importância em algumas das comunidades dos
cristianismos primitivos. Trebolle Barrera (1996, p. 531), com costumeira proprieda-
de, sinala: “O fato de um livro não fazer parte do cânon não significa que em seu
momento histórico não pudesse gozar de importância comparável ou inclusive su-
perior à de alguns livros canônicos”. Em um capítulo específico dedicado aos não-
canônicos, deter-nos-emos nos motivos do exílio desses textos, muitos dos quais,
apesar de sua importância, foram dados por inexoravelmente perdidos.
Mas antes de encontrá-los detenhamo-nos nos escritos canônicos, pois Te-
pedino (1990, p. 15) alerta para o papel ímpar da Bíblia na nossa formação oci-
dental:
Por isso nos parece extremamente importante estudar a S.E., porque esta não é
apenas um livro meramente religioso, mas tem dimensão cultural, social e política,
pois é uma matriz formadora da sociedade ocidental e cristã (e continua a informar a
autocompreeensão das sociedades secularizadas: européias e americanas).
23
Vejamos o que foi selecionado sobre Maria Madalena para compor o cânon.
Vamos analisar esses antigos documentos cristãos e verificar o que dizem a res-
peito de Maria Madalena. E vamos ouvir, também, os Pais da Igreja.
2. Apóstola negligenciada: doze referências canônicas
A via que traça a história bíblica de Maria Madalena é estreita. A mulher que
acompanhou Jesus desde a Galiléia e foi a primeira testemunha da ressurreição é
encontrada apenas nos quatro Evangelhos. E nestes é citada nominalmente tão-
somente doze vezes. Nenhum dos outros livros do Segundo Testamento faz qual-
quer menção a ela. Assim, a fonte canônica para esse estudo são os três evange-
lhos sinópticos (Marcos, Mateus e Lucas) e o de João.
Miriam de Magdala aparece em Mt 27,56; Mt 27,61; Mt 28,1; Mc 15,40; Mc
15,47; Mc 16,1; Mc 16,9; Lc 8,2; Lc 24,10; Jo 19,25; Jo 20,1; Jo 20,11-18. Com ex-
ceção de Lucas 8,2 (Maria Madalena, curada de sete demônios, acompanha Jesus,
juntamente com outras mulheres), ela é citada sempre nas mesmas circunstâncias,
e esta é uma das razões pela qual a perícope que contém esse versículo será deti-
damente analisada em um item à parte. Das doze citações que apresentamos aci-
ma sobre Maria Madalena, onze estão relacionadas com os eventos da Paixão.
Somente Lc 8,1-3, a apresenta em outro contexto.
Maria Madalena aparece como uma das testemunhas da Paixão. O sofri-
mento, a superação da morte e a regeneração são testemunhadas pelas mulheres
no Gólgota (em hebraico, "o lugar da caveira"), como se fossem as únicas capazes
de perceber os eventos que se desenrolavam no mundo invisível. Comecemos com
a crucifixação, ressaltando que faremos referência numérica aos capítulos e versí-
culos em que Maria Madalena aparece.
24
Marcos Mateus Lucas João
Jesus abandonado
pelos discípulos é
crucificado. "E tam-
bém estavam ali al-
gumas mulheres,
olhando de longe.
Entre elas, Maria
Madalena, Maria,
mãe de Tiago o me-
nor, e de Joset, e
Salomé. Elas o se-
guiam e serviam en-
quanto esteve na
Galiléia. E ainda
muitas outras mulhe-
res que subiram com
ele para Jerusalém"
(15,40-41).
Jesus abandona-
do pelos discípu-
los é crucificado.
"estavam ali
muitas mulheres,
olhando de longe.
Haviam acompa-
nhado Jesus
desde a Galiléia,
a servi-lo. Entre
elas, Maria Ma-
dalena, Maria,
mãe de Tiago e
de José, e a mãe
dos filhos de Ze-
bedeu" (27,55-
56).
A crucificação é
acompanhada
por todos seus
amigos e pelas
mulheres que o
acompanhavam
desde a Gali-
léia. Estas fica-
vam à distân-
cia, observan-
do.
"Perto da cruz de
Jesus, permaneciam
de sua mãe, a irmã
de sua mãe, Maria
mulher de Clopas, e
Maria Madalena.
Jesus, então, vendo
sua mãe e, perto dela,
o discípulo a quem
amava, disse à sua
mãe: "Mulher, eis o teu
filho!" Depois disse ao
discípulo: "Eis a tua
mãe!" E a partir dessa
hora, o discípulo a re-
cebeu em sua casa"
(19,25-27).
Na Bíblia do Peregrino lemos um belíssimo - e apropriado - comentário à
narração de Mc 15,40-41: "O contraste da inteireza e da fidelidade das mulheres,
colocado no final, é impressionante: "Tinham-no seguido e servido" e não o aban-
donam." Maria Madalena, desde o começo, segue e serve Jesus e não o abandona
nesse momento extremo, mesmo sabendo o que lhe poderia ocorrer, pois os roma-
25
nos não perdoavam quem auxiliasse um crucificado ou mesmo demonstrasse qual-
quer pesar ou piedade, sendo que a pessoa que o fizesse sofreria a mesma sorte.
O sepultamento também é narrado pelos evangelistas. José de Arimatéia e
Maria Madalena são as personagens principais. Um recolhe o corpo físico de Jesus
para sepultá-lo, e a outra quer prepará-lo de acordo com as tradições judaicas. Em
tradições esotéricas posteriores, ambos são tidos como os portadores do cálice sa-
grado, ou o Santo Graal, tendo José de Arimatéia levado-o à Inglaterra e Maria Ma-
dalena à França.
Marcos Mateus Lucas João
José de Arimatéia,
membro do sinédrio
e seguidor do Cristo,
reclama o corpo de
Jesus, envolve-o em
um lençol e o coloca
em um túmulo talha-
do na rocha, lacran-
do-o com uma pe-
dra. "Maria Madale-
na e Maria, mãe de
Joset, observam
onde ele fora posto"
(15,47).
José de Arimatéia,
um homem muito
rico, e seguidor do
Cristo, reclama o
corpo de Jesus,
envolve-o em um
lençol e o coloca
em um túmulo seu
talhado na rocha,
lacrando-o com
uma pedra. "Ora,
Maria Madalena e
a outra Maria esta-
vam ali sentadas
em frente ao sepul-
cro" (27,61).
José de Arimatéia,
membro do sinédrio e
seguidor do Cristo,
reclama o corpo de
Jesus, envolve-o em
um lençol e o coloca
em um túmulo talhado
na rocha, lacrando-o
com uma pedra. As
mulheres que segui-
am Cristo acompa-
nharam o sepulta-
mento e observaram
onde o cadáver foi
colocado.
José de Ari-
matéia e Nico-
demus, discí-
pulos de Jesus,
reclamam o
corpo de Jesus,
envolvem-no
em um pano de
linho e o enter-
ram em um se-
pulcro no jar-
dim perto de
onde foi crucifi-
cado.
Nos fatos referentes à Ressurreição do Cristo Maria Madalena é peça-chave,
sendo testemunha do que ocorreu com o Mestre, conforme atestam os quatro
26
evangelhos. Essa passagem será objeto de muitos comentários ao longo de nosso
trabalho:
Marcos Mateus Lucas João
"Passado o Sábado,
Maria Madalena e
Maria, mãe de Tiago
compraram aromas
para ir ungi-lo."
(16,1). Ao nascer do
sol do primeiro dia
da semana vão até
o túmulo e o encon-
tram aberto. Dentro
do túmulo, um jo-
vem sentado a di-
reita e vestido com
uma túnica branca,
diz às mulheres
para não se espan-
tarem, pois Jesus
havia ressuscitado e
pede que elas avi-
sem os discípulos e
Pedro que Jesus
apareceria na Gali-
Os judeus, teme-
rosos que os se-
guidores de Jesus
roubassem seu
corpo com o intuito
de fraudar uma
ressurreição, pe-
dem a Pilatos a
guarda do túmulo.
Após o Sábado, ao
raiar do primeiro
dia da semana,
Maria Madalena e
a outra Maria vie-
ram ver o sepulcro
(28,1). Quando
chegaram, houve
um grande terre-
moto e um Anjo do
senhor, de roupa
alva como a neve,
desceu do céu e
No primeiro
dia da sema-
na, as mulhe-
res levam os
aromas para
ungirem o
corpo de
Jesus e en-
contram o tú-
mulo aberto e
vazio. Dois
homens de
veste fulgu-
rante se colo-
cam na frente
delas e anun-
ciam que
Jesus ressus-
citou. "Ao
voltarem do
túmulo, anun-
ciaram tudo
"No primeiro dia da
semana, Maria Mada-
lena vai ao sepulcro,
de madrugada, quan-
do ainda estava escu-
ro, e que a pedra
fora retirada do sepul-
cro. Corre então e vai
a Simão Pedro e ao
outro discípulo, que
Jesus amava, e lhes
diz: "Retiraram o se-
nhor do sepulcro"
(20,1-12). Os dois en-
contram o túmulo va-
zio e João crê que
Jesus ressuscitou.
Aparição a Maria Ma-
dalena: Maria chorava
fora do sepulcro e
dois anjos vestidos de
branco. Ela Jesus,
27
léia. E elas fogem
tomadas por um
estupor e não con-
tam nada a nin-
guém. "Ora, tendo
ressuscitado na
madrugada do pri-
meiro dia da sema-
na, ele apareceu
primeiro a Maria
Madalena, de quem
havia expulsado
sete demônios. Ela
foi anunciá-lo
àqueles que tinham
estado em compa-
nhia dele e que es-
tavam aflitos e cho-
ravam". (16,9)
retirou a pedra que
selava o túmulo.
Diz às mulheres
para não temerem,
pois Jesus havia
ressuscitado e
pede que elas avi-
sem os discípulos
que Jesus apare-
ceria na Galiléia.
Elas partem para
avisá-los, quando
encontram Jesus e
se jogam a seus
pés para louvá-lo.
isso aos
Onze, bem
como a todos
os outros.
Eram Maria
Madalena,
Joana e Ma-
ria, mãe de
Tiago" (24,9-
10). Os
apóstolos não
acreditaram
em suas pa-
lavras, menos
Pedro que vai
até o túmulo.
mas o confunde com
um jardineiro. Este a
pergunta porque cho-
ra, Maria, em respos-
ta, lhe pergunta se foi
ele que levou o corpo
do mestre. "Diz-lhe
Jesus: "Maria!" Vol-
tando-se, ela lhe diz
"Rabbuni!" Jesus lhe
diz: "Não me retenhas,
pois ainda não subi ao
Pai" (20,11-17). Jesus,
então lhe pede que
anuncie sua ressurrei-
ção aos discípulos.
A cena é sempre análoga: o túmulo vazio, um ou dois anjos em vestes alvas
e resplandecentes anunciam que o Senhor está vivo e pede às mulheres que con-
tem a boa nova aos demais apóstolos. Quando avisados da ressurreição, os discí-
pulos não acreditam. No evangelho de João, Maria vai até Pedro e João alertá-los
que o corpo de Jesus desapareceu. Os dois encontram o túmulo vazio, e apenas
João tem a absoluta certeza que o Cristo renasceu dos mortos, cumprindo o que
28
dissera. No evangelho de Lucas, apenas Pedro vai até o sepulcro.
De qualquer maneira, nos evangelhos sinópticos podemos notar a proemi-
nência que Maria Madalena tem sobre as demais mulheres e o fato delas serem
sendo as transmissoras da Boa Nova (Evangelho), aos demais discípulos que se
tornarão os apóstolos do Cristo.
Marcos, Mateus e João têm em comum o fato de que Jesus aparece a Maria
Madalena após a ressurreição, sendo que em Mateus está presente também Maria
mãe de Tiago. A cena em João é a mais significativa, pois o Mestre aparece a Ma-
ria que chorava a desaparição de seu corpo, sendo que esta não O reconhece.
Apenas quando O ouve pronunciar seu nome é que percebe de quem É e exclama
"Rabbuni!". Nesse momento o Cristo pede a ela que não O toque pois ainda não
havia subido até o Pai. Muitos exegetas viram no fato de Maria Madalena não ter
reconhecido o Cristo e não ter permissão para tocá-lo, a comprovação que ela, por
causa de seus pecados e de sua mente pequena, não estava preparada para rece-
ber o evangelho.
Nessas passagens verificamos com cristalina clareza que em nenhuma de-
las Maria Madalena é desmerecida. Ao contrário, ela é citada sempre em primeiro
lugar dentre as mulheres que vão ao sepulcro preparar o corpo de Jesus. As de-
mais variam de um texto a outro, sendo que, em João, ela é a única que vai até lá.
E o Cristo a encarrega de anunciar aos demais o que ela presenciou. Ele a envia
em missão. Ele a constitui Apóstola.
Camargo-Moro (2004) afirma que Hipólito, bispo de Roma (170-235 D.C),
escreveu em sua análise sobre o Cântico dos Cânticos, que Maria Madalena era a
representação da noiva no poema de Salomão. E que, para ele, o amor represen-
tado no poema era o amor espiritual de Maria por seu mestre Jesus, que buscou
por ele no sepulcro, e não o encontrando lá, consternada, acabou encontrando-o
em um jardim. Para Hipólito, ela representava a restauração do pecado de Eva. Da
29
mesma maneira que Eva tentou Adão em um jardim, e foi a causa da queda do
homem, Maria Madalena encontrou o Cristo em um jardim e foi a testemunha de
sua transformação na Divindade, abrindo o caminho de reintegração do homem ao
Adão original. Ele a chama então de "Apóstola dos Apóstolos".
Como foi, então, que de Apóstola dos Apóstolos (para Hipólito e a igreja da
qual era bispo) e de encarnação da Sofia Celestial (para os gnósticos, como vere-
mos em capítulo a seguir), Maria Madalena se tornou a prostituta de cabelos longos
que ungiu os pés do Cristo? Será que existe, em algum outro texto canônico ou em
algum texto apócrifo, qualquer referência direta sobre ela que faça alusão a esses
fatos?
Para nos auxiliar a responder, os textos canônicos ainda nos reservam uma
possibilidade: resta-nos analisar a perícope Lucas 8,1-3, que não foi objeto de nos-
so estudo comparativo no item anterior. Nesse trecho, Miriam de Magdala aparece
em um contexto anterior à Paixão, acompanhando Jesus em seu ministério. Nele,
em Lc 8,2, é noticiado que de Maria Madalena haviam saído sete demônios, corro-
borando o dito de Mc 16,9. Mateus e João não se referem ao fato, e mesmo Marcos
somente o faz no epílogo de seu evangelho. Essa é uma informação que será ana-
lisada nas linhas a seguir.
3. Apóstola de primeira hora: exegese de Lc 8,1-3
Para nosso estudo, acreditamos que a mais importante diferença existente
entre os textos dos evangelhos sinóticos é a citação que Lucas faz sobre as mulhe-
res que acompanhavam Jesus, em Lc 8,1-3, em virtude da perspectiva em que o
autor as coloca no ministério do Cristo.
30
Muitos os autores consultados para a exegese dessa perícope, com os quais
dialogamos. Nem todos são unânimes acerca de um mesmo fato; às vezes encon-
tramos mais cizânia que consenso. Isto acontece por exemplo no que se relaciona
com a datação dos Evangelhos. E tais controvérsias em nada facilitaram nosso tra-
balho; se muito acresceram aos nossos conhecimentos, também muito dificultaram
nossas decisões, que acabaram sendo escolhas, que pretendemos tenham sido as
mais abalizadas.
Face à não-uniformidade, inclusive metodológica, buscamos eleger um nor-
te. Para tanto, dentre os textos pesquisados, optamos por utilizar os passos sugeri-
dos pelo manual de Wegner, Exegese do Novo Testamento, razão pela qual nossa
seqüência resultará em itens de acordo com o referido livro, com exceção dos dois
primeiros passos, os quais invertemos, que optamos por inicialmente escolher as
variantes mais fidedignas para somente após traduzirmos o texto.
3.1. Crítica textual
Nesse primeiro momento da exegese buscamos constatar se existem dife-
renças textuais entre os diversos manuscritos e avaliar qual deles tem maior proba-
bilidade de apresentar o texto original. Não utilizaremos diretamente as cópias dos
antigos manuscritos, mas sim os textos fixados por autores notoriamente com-
petentes: a 27ª edição de Nestle-Aland do Novum Testamentum Graece (NTG), a
edição do The Greek New Testament (GNT), de K. Aland et alii, e edição bi-
língüe (grega e latina) do Novum Testamentum Graece et Latine de Augustinus
Merck S.J.
Cada um destaca diferentes variantes referentes a perícope, encontradas
31
nos versículos 2 e 3. Todas as edições, entretanto, optam exatamente pelas mes-
mas variantes, resultando em um texto rigorosamente idêntico, razão pela qual não
tivemos maiores dificuldades para decidir qual variante utilizar.
Por ser de maior interesse para nosso estudo, vamos nos deter por um mo-
mento na apreciação da única variante noticiada pelo GNT (o NTG também a apre-
senta, ao lado de outras que não esmiuçaremos; o bilíngüe não a contempla). A va-
riante que interessa encontra-se na última frase do versículo 3, cinco palavras an-
tes do ponto final, referindo-se a auto/autois, ou seja, o dativo singular "a ele" ou o
dativo plural "a eles". Como dissemos, todos os autores decidiram pela mesma
variante, e esta é o dativo plural autois, por ter o melhor testemunho. No GNT ela é
precedida pela sigla {B}, o que significa uma alta probabilidade de ser a correta,
que o texto é tido como original, mas com um certo grau de dúvida. No decorrer da
exegese veremos a importância dessa escolha em função das possibilidades que
representam.
É interessante observar que apesar dos autores supra citados terem decidi-
do pelo plural autois, várias das traduções em português escolheram o dativo sin-
gular auto, inclusive a renomada Bíblia de Jerusalém. E isso significa que, para
estes tradutores, as mulheres que acompanhavam Jesus apenas serviam a ele.
Mas vimos também que as traduções mais recentes, como a Bíblia Sagrada da
CNBB, a TEB, e a Edição Pastoral, decidiram-se pelo plural. Nessas versões, as
mulheres serviam Jesus e, no mínimo, também os discípulos que o acompanhavam
juntamente com elas.
Muito, entretanto, ainda se falará sobre esse serviço e esse acompanha-
mento; deixemos o assunto, assim, para itens mais específicos.
32
3.2. Tradução
O objetivo deste item será elaborar uma tradução do texto bíblico, para o
português, a partir do texto em grego. De início faremos uma tradução literal, a qual
burilaremos a seguir, embora não tenhamos a pretensão de apresentar aqui uma
tradução livre ou idiomática, aplicando o princípio da equivalência dinâmica. Na
verdade, nesse momento somente tentaremos manter fidelidade ao texto original.
Nossa tradução literal é a seguinte:
"E aconteceu depois disso e ele andava por cidade e aldeia proclamando e
anunciando o Reino de Deus, e os doze com ele e mulheres algumas as quais fo-
ram curadas de espíritos malignos e enfermidades, Maria a chamada Madalena, da
qual demônios sete saíram, e Joana mulher de Cuza administrador de Herodes e
Susana e outras muitas, as quais serviam a eles a partir das possibilidades delas".
Apesar de nossa tradução não estar integralmente de acordo com nenhuma
das Bíblias que pesquisamos, pois não apresenta identidade de texto com qualquer
delas, pensamos que as palavras que mais merecem nossa atenção e justificativa
são as últimas da perícope, que se referem ao serviço das mulheres: diakonun au-
tois ex ton hyparxonton autais. Vejamos o que cada uma nos traz.
Diakonun é a terceira pessoa do plural do imperfeito do indicativo ativo de
diakoneo. Estamos, portanto, diante de um verbo. Ele é assim traduzido por Taylor
(2001, p. 55): "sou servo de, sirvo à mesa, ofereço comida e bebida a; sirvo, exerço
o diaconato". Ao traduzir, optamos pelo verbo servir. Como vimos em Taylor, este
verbo pode ser utilizado na acepção de "exercer o diaconato", que defenderemos
como a correta para a exegese e a hermenêutica de nosso texto, conforme de-
monstraremos no item oportuno. Por ora, basta que a idéia esteja lançada.
Logo após, temos o pronome autois do qual nos ocupamos no item ante-
33
cedente, como sendo a variante melhor atestada. Sabemos então que, no nosso
contexto, tem o sentido de "eles" (Taylor, 2001, p. 38).
Deparamo-nos a seguir com a preposição ex. Segundo Taylor (2001, p. 66),
ela indica a origem, a fonte:
prep. com o abl., "indicando êxodo ou emissão de, ou separação de alguma coisa
com a qual houvera íntima conexão" - Thayer; § 588, 629, 634, 635, 661, do interior,
de dentro, de; por; da parte de; do partido de; o contexto revela se "ex" salienta sua
idéia normal de saída do interior para fora, ou se a idéia é de ponto de partida, ou da
superfície, sem afirmar ou negar anterior presença no interior, que geralmente é a
idéia de "apó"; usado para expressar lugar, origem, fonte, causa, estado prévio, ma-
terial, preço, dependência, tempo, sucessão e idéia partitiva (...). (sublinhamos)
Em nosso texto, acreditamos que ex seja utilizada em seu sentido comum de
origem, da direção de dentro para fora, de saída do interior para o exterior.
Finalizando, o evangelho em grego traz a expressão ton hyparchonton, que
nos remete para o genitivo plural do particípio do presente do indicativo ativo de
hyparcho. O verbo hyparcho, ainda segundo o dicionário de Taylor (2001, p. 229)
significa:
sou, estou; etim., indicava sou original ou essencialmente, subsisto, mas o uso po-
pular o tornou sinônimo de "eimi" ou "ginomai" no mais dos passos, talvez permane-
cendo a significação original em Fil. 2:6; "uparxei moi" = tenho; "ta uparxonta" as
possessões, bens, as coisas que possui alguém; "uparxein en" = haver em.
Taylor sugere que o verbo hyparcho mantém sua significação original em Fi-
lipenses 2,6. Iremos, portanto, pesquisar o versículo em busca deste significado.
Para tanto, inicialmente vejamos como o verbo se apresenta no versículo em grego:
hós en morfê theú hyparchon. Uma nota da TEB a este versículo nos informa que
Os vv. 6-11 constituem um hino que alguns crêem anterior a Paulo. As diversas eta-
pas do mistério de Cristo aí estão marcadas, cada uma numa estrofe: a preexistência
divina, o aniquilamento da encarnação, o aniquilamento (2,7) ulterior da morte, a glo-
rificação celestial, a adoração do universo, o título novo de "Senhor". Trata-se do
Cristo histórico, Deus e homem, na unidade da sua personalidade concreta, que
Paulo jamais divide, se bem que distinga seus diversos estados de existência (cf. Cl
34
1,13s).
Vejamos como nossos tradutores se desincumbiram da tarefa de verter para
nossa língua o texto de Fl 2,6a, que apresenta o verbo hyparxo.
Como primeiro exemplo, a tradução da TEB: "ele, que é de condição divina".
Em nota ao versículo, os tradutores explicam:
"Lit. achando-se em forma de Deus. Aqui e no v. 7, forma exprime mais do que uma
aparência: é a figura visível manifestando o ser profundo, ou então por alusão a Gn
1,27; 5,1, a imagem de Deus, isto é, o próprio ser de Deus em Cristo. A tradução
condição permite repetir a palavra no v. 7". (o grifo é nosso)
A Bíblia de Jerusalém usa a mesma palavra: "Ele tinha a condição divina".
Em nota, esclarece: "Lit.: "ele que se encontrava na forma de Deus", onde a palavra
"forma" designa os atributos essenciais que manifestam externamente a "natureza":
Cristo, sendo Deus, tinha por direito todas as prerrogativas divinas". (grifamos)
O mesmo texto se mantém na edição pastoral: "Ele tinha a condição divina".
A CNBB usa a palavra forma referida na nota da TEB e da Bíblia de Jeru-
salém, mantendo o mesmo sentido de condição: "Ele, existindo em forma divina".
A Sociedade Bíblica do Brasil, em uma tradução de Almeida, também opta
por forma: "pois ele, subsistindo em forma de Deus".
Pelo que verificamos, no contexto do v. 6a, tanto a palavra forma quanto a
palavra condição exprimem essencialidade, manifestação do ser profundo (nota
da TEB), atributos essenciais (nota da Bíblia de Jerusalém).
A forma de hyparcho utilizada em Fl 2,6a (hyparchon) não é a mesma de
nossa perícope. Nela, temos em 8,3 o verbo hyparcho na forma do particípio ton
hyparchonton.
Mas no volume I da Concordância Fiel do Novo Testamento (1994, p. 800),
grego-português, somos informados que ta hyparchonta é um particípio usado
35
como substantivo.
Zorell (1961, p. 1358) também nos contempla com a possibilidade do verbo
hyparcho expressar essa dimensão de essencialidade. Em seu léxico, a terceira
acepção que apresenta para o verbo se adequa perfeitamente a essa hipótese.
Verificamos, assim, de acordo com tudo que aduzimos, que é possível tradu-
zir as palavras ton hyparchonton como "condições", "formas", "essências", "atribu-
tos". Optamos pelo vocábulo "possibilidades" por acreditar que ele expressa as
demais em toda amplitude. Esse sentido é perfeitamente possível não apenas no
grego, como nos mostram as traduções de Fl 6,2a que analisamos, mas também
em nosso vernáculo. Condição é similar a possibilidade.
No nosso texto, as possibilidades estão ligadas ao serviço das mulheres.
Exprime a forma como ele é prestado: "as quais serviam a eles a partir das possibi-
lidades delas". Possibilidades como essencialidade (TEB), manifestação do ser
profundo (TEB), atributos essenciais (Bíblia de Jerusalém), modo de ser (Dicionário
Aurélio).
Resta apenas traduzir a última palavra da perícope, autais, que não oferece
maiores dificuldades, pois nos desincumbimos do masculino autois. O feminino é
um dativo que significa "a elas".
De acordo com o que produzimos em nossa tradução de cada termo da perí-
cope, apresentamos a seguinte proposta de tradução de Lc 8,1-3:
"1E aconteceu, depois disso, que ele andava por cidade e aldeia proclaman-
do e anunciando o Reino de Deus, e com ele os doze 2e algumas mulheres, as
quais foram curadas de espíritos malignos e enfermidades: Maria, a chamada Ma-
dalena, da qual sete demônios saíram; 3 e Joana, mulher de Cuza, administrador
de Herodes; e Susana e outras muitas, as quais os serviam a partir das possibilida-
des delas".
Os textos das traduções que apresentaremos aproximam-se da nossa su-
36
gestão, com exceção do final do versículo 3, como veremos. Além disso, discor-
remos acerca da escolha da variante autois apresentada em linhas volvidas, pelo
que não retomaremos a este assunto.
Tradução da Bíblia de Jerusalém
Depois disso, ele andava por cidades e povoados, pregando e anunciando a
Boa Nova do Reino de Deus. Os Doze o acompanhavam, 2assim como algumas
mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e doenças: Maria, chama-
da Madalena, da qual haviam saído sete demônios, 3Joana, mulher de Cuza, o
procurador de Herodes, Susana e várias outras, que o serviam com seus bens.
Tradução da Bíblia de Estudo Pentecostal
E aconteceu, depois disso, que andava de cidade em cidade e de aldeia em
aldeia, pregando e anunciando o evangelho do Reino de Deus; e os Doze iam com
ele, 2e também algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e
de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual saíram sete demônios; 3e,
Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes, e Suzana, e muitas outras, que o
serviam com suas fazendas.
Tradução da Bíblia de Referência Thompson
Depois disto andava Jesus de cidade em cidade e de aldeia em aldeia, pre-
gando e anunciando o evangelho do Reino de Deus. Os Doze iam com ele, 2e
também algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos malignos e de
enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual saíram sete demônios; 3Joana,
mulher de Cuza, procurador de Herodes; Susana, e muitas outras, as quais o ser-
viam com os seus bens.
37
Bíblia Sagrada da Sociedade Bíblica do Brasil
E aconteceu depois disto que andava Jesus de cidade em cidade e de aldeia
em aldeia, pregando e anunciando o evangelho do Reino de Deus, e os Doze iam
com ele, 2e também algumas mulheres que haviam sido curadas de espíritos ma-
lignos e de enfermidades: Maria, chamada Madalena, da qual saíram sete demôni-
os; 3e Joana, mulher de Cuza, procurador de Herodes; Suzana e muitas outras, as
quais lhe prestavam assistência com os seus bens.
Bíblia Tradução Ecumênica
Ora, a seguir, Jesus caminhava através de cidades e aldeias; ele proclamava
e anunciava a boa nova do Reinado de Deus. Os Doze estavam com ele, 2e tam-
bém mulheres que tinham sido curadas de espíritos maus e de doenças. Maria, dita
de Magdala, da qual haviam saído sete demônios; 3Joana, mulher de Cusa, inten-
dente de Herodes, Susana, e muitas outras, que os ajudavam com seus bens.
Bíblia Sagrada da CNBB
Depois disso, Jesus percorria cidades e povoados proclamando e anuncian-
do a Boa Nova do Reino de Deus. Os Doze iam com ele, 2e também algumas mu-
lheres que tinham sido curadas de espíritos maus e de doenças: Maria, chamada
Madalena, de quem saíram sete demônios; 3Joana, mulher de Cuza, alto funcioná-
rio de Herodes; Susana, e muitas outras mulheres, que os ajudavam com seus
bens.
Bíblia Sagrada Edição Pastoral
Depois disso, Jesus andava por cidades e povoados, pregando e anuncian-
do a Boa Notícia do Reino de Deus. Os Doze iam com ele, 2e também algumas
mulheres que haviam sido curadas de espíritos maus e doenças: Maria, chamada
Madalena, da qual haviam saído sete demônios; 3Joana, mulher de Cuza, alto fun-
38
cionário de Herodes, Susana, e várias outras mulheres, que ajudavam a Jesus e
aos discípulos com os bens que possuíam.
Sabemos que o correto seria avaliarmos cada uma das diferenças que apa-
recem nas várias versões. Entretanto, estas versões são todas muito parecidas en-
tre si, com exceção dos aspectos que já revelamos. Em face disso, optamos por
apresentar muitas versões e confrontá-las com a nossa tradução, mas focando
apenas as principais diferenças. E ao fazermos isso, vimos que a tradução que le-
vamos a efeito concentra as maiores diferenças apenas nas últimas palavras, pois
percebemos que as diversas versões estudadas decidiram-se por uma tradução no
sentido que as mulheres que seguem Jesus o servem - ou a ele e aos doze - ape-
nas com seus bens, e nosso texto não se coaduna com esta hipótese, que julga-
mos ser restritiva.
3.3. Análise literária
Nesta fase pretende-se delimitar o texto como unidade literária autônoma,
verificar sua estrutura literária, inclusive seu grau de integridade, ou seja, a coesão
interna, e o uso de fontes bíblicas e extrabíblicas.
Para tanto, precisamos perquirir acerca da gênese do texto. Começaremos
pelo provável autor. Muito se cogita acerca do(a)(s) autor(es)(as) do evangelho
atribuído a Lucas. A unanimidade se centra tão-somente no fato que seria(m)
o(a)(s) mesmo(a)(s) autor(es)(as) dos Atos dos Apóstolos. Antigas tradições e anti-
gos autores o atribuem a Lucas e a partir daí muitas especulações se sucedem: ele
seria médico, proveniente de círculos não-judeus, amigo íntimo de Paulo, compa-
nheiro de viagem do apóstolo, cristão convertido, culto, profundo conhecedor da
39
língua grega, que seria sua língua de nascimento. Infelizmente trata-se de conjetu-
ras sem muitas certezas a escudá-las. Nossa tradição cristã oficial, no entanto, fez
sua escolha: o autor do evangelho é o Lucas citado por Paulo em Cl 4,14; Fm 24; 2
Tm 4,11.
Quanto à datação, a maioria dos críticos fixa a data da composição deste
evangelho por volta dos anos 80 ou 90, mas muitos lhe atribuem uma data mais
remota, cerca de 65 aC, anterior ao cerco e destruição de Jerusalém. Aqueles que
a fixam em época mais tardia, o fazem principalmente por causa dos versículos
19,27; 19,43-44 e 21,20.24, que fariam referência à queda de Jerusalém. Os de-
mais contrapõem que estas passagens podem ter sido revistas após a queda, ou
que se tratam de acertadas previsões escatológicas.
A leitura destes versículos realmente parece nos remeter aos reais aconte-
cimentos ocorridos em Jerusalém, embora não possamos olvidar a inspiração do
Espírito Santo na lavra do evangelista, ou mesmo a revisão posterior do texto.
Como se trata de um trabalho de exegese, devemos emitir nossa opinião, a qual,
guiada pela nossa razão, nos leva a concordar com os estudiosos que fixam a data
mais recente, entre os anos 70 e 90 dC.
Não se pode afirmar com certeza o lugar onde o evangelho foi redigido. Vá-
rias são as hipóteses: Cesaréia, Acaia, Decápole, Ásia Menor, e principalmente
Roma. Apenas em um aspecto parecem ser concordes os estudiosos: o evangelho
foi escrito fora da Palestina.
Precisamos, também, delimitar a perícope. Salvo melhor e mais abalizado
juízo, não nos parece difícil precisar a delimitação exata dos parágrafos que esco-
lhemos para estudo. Os três versículos formam um conjunto harmônico, com início
e fim muito evidentes, com características distintas da perícope anterior e posterior.
Há, inclusive, uma clara mudança de gênero entre os trechos.
40
Nossa perícope foi claramente inserida entre duas falas de Jesus. O texto
inicia-se com um dito clássico de passagem: "E aconteceu, depois disso ...". E en-
cerra-se também com uma clara mudança de cenário no versículo seguinte, numa
forma também bastante utilizada pelos evangelistas: "Reunindo-se uma numerosa
multidão ...".
A cena anterior, Lucas 7,36-50, trata-se daquela na qual Jesus está na casa
de um fariseu e uma pecadora sem nome lava-lhe os pés com suas lágrimas, en-
xuga-os com seus cabelos, cobre-os de beijos e os unge com perfume, apresen-
tando-se uma oportunidade maravilhosa para uma preleção de Jesus sobre a rela-
ção entre o amor e o perdão dos pecados. O local, o cenário, as personagens, as
ações e os destinatários das palavras de Jesus estão claramente delimitados e são
distintos daqueles que se apresentarão na próxima passagem.
A perícope posterior àquela que será objeto de nossa exegese é uma fala de
Jesus, uma parábola que se inicia em Lucas 8,4. Ela também está perfeitamente
delimitada, apresentando um cenário específico, no qual são personagens a multi-
dão e os discípulos, e cuja ação - e função - decididamente a delineia em apartado
da nossa perícope.
Nosso trecho não contém uma fala direta de Jesus, como ocorre nas períco-
pes anterior e posterior, mas é uma inserção entre estas duas narrativas que têm
Jesus por personagem central e nas quais ele apresenta um ensinamento. A es-
trutura do texto é a seguinte:
v. 1: E aconteceu, depois disso, que ele andava por cidade e aldeia procla-
mando e anunciando o Reino de Deus, e com ele os doze
v. 2: e algumas mulheres, as quais foram curadas de espíritos malignos e
enfermidades: Maria, a chamada Madalena, da qual sete demônios saíram;
41
v. 3: e Joana, mulher de Cuza, administrador de Herodes; e Susana e outras
muitas, as quais os serviam a partir das possibilidades delas.
O texto pode ser dividido em três partes, estruturadas para apresentar: a) o
ministério de Jesus; b) os seguidores de Jesus, que se sucedem numa seqüência
lógica, numa unidade criada pela conjunção aditiva e (kaí); c) o serviço (a diaconia)
das mulheres.
O uso insistente e repetido da conjunção e demonstra a preocupação de se
individualizar cada um dos seguidores de Jesus e ao mesmo tempo se presta para
conectá-los. O mesmo e também conecta outros termos.
Os versículos apresentam as ações de Jesus sempre representadas por du-
as palavras do mesmo gênero, conectadas pela conjunção e: no v. 1a são dois
substantivos femininos (cidades e aldeias); no v. 1b são dois verbos, no gerúndio
em português e particípio no grego (proclamando e anunciando); no v. 2a temos
dois substantivos (espíritos malignos e enfermidades).
Os verbos utilizados na perícope são todos verbos de ação e informam que
os sujeitos andavam, proclamavam, anunciavam, curavam, saíam, serviam.
O texto também aponta para a conseqüência das ações de Jesus, com refle-
xo na vida das mulheres que foram sujeito destas curas. Jesus serviu, curando-as,
e agora elas servem.
A narração do texto é coesa e é claro o nexo que se estabelece em seu de-
correr. Lucas "amarra" bem seus versículos, apesar de admitirmos, como veremos
no tópico seguinte, que possa se tratar de uma "colagem" de diversas passagens
distintas de Marcos.
Além disso, o trecho também apresenta coerência com o restante do evan-
gelho de Lucas, pois aqui temos o cumprimento de Lc 4,43-44 e a apresentação de
personagens femininas que terão importante papel na seqüência da paixão (Lc
23,49-55; 24,1-10).
42
Na análise literária devemos responder à pergunta a respeito da fonte da pe-
rícope. A teoria mais aceita na pesquisa, atualmente, é a "teoria das duas fontes",
segundo a qual o Evangelho de Marcos, primeiro a ser escrito, serviu de fonte para
Mateus e Lucas. Estes dois ainda teriam uma segunda fonte comum, a fonte "Q",
bem como possuiriam, cada qual, uma porção de matéria exclusiva.
Wegner (2002, p. 112), fazendo eco a diversos outros autores, comenta que
o evangelista Lucas conhecido por redigir o seu evangelho por blocos, apresen-
tando alternadamente material de Mc, da fonte Q e de sua matéria exclusiva".
Em nossa análise comparativa, não encontramos em Marcos nenhuma perí-
cope completa que fosse um paralelo da que estamos estudando. Verificamos, to-
davia, existirem concordâncias de conteúdos em versículos específicos, com Lucas
juntando versículos localizados em distintas posições do Evangelho de Marcos,
para formatar sua perícope.
Em nossa perícope, o v. 1 nos informa que "E aconteceu, depois disso, que
ele andava por cidade e aldeia proclamando e anunciando o Reino de Deus, e com
ele os doze". Para melhor analisarmos seu conteúdo, iremos fracionar o versículo.
Comecemos com as primeiras palavras.
A expressão "E aconteceu, depois disso" denota tratar-se de um recurso re-
dacional denominado de ligação, utilizado pelos evangelistas para "costurar" o tex-
to, juntando os diversos trechos. Falaremos deste recurso redacional no tópico se-
guinte. Ele não afeta o conteúdo do versículo e por isso não devemos procurar por
sua fonte.
Na seqüência, informa-se que "ele andava por cidade e aldeia proclamando
e anunciando o Reino de Deus". Este trecho parece-nos que encontra fundamento
em Mc 1,38-39, apesar da relação que tem com Lc 4, 42ss. Transcreveremos os
citados versículos, utilizando a tradução da TEB:
43
38E ele lhes disse: "Vamos para outra parte, às aldeias da vizinhança, para que
também eu proclame o evangelho: pois para isso é que eu saí". 39E ele percorreu
toda a Galiléia; pregava em suas sinagogas e expulsava os demônios. (destacamos)
A redação de Mateus 4,23 e 9,35 (o evangelista praticamente repete as
mesmas palavras em ambos os versículos) é muito próxima de Marcos 1,38-39.
O primeiro versículo de Lucas, Lc 8,1, finaliza com a notícia de que "e com
ele iam os doze". Marcos também anuncia que os doze seguiam com Jesus após
informar que ele pregava por toda a Galiléia. Mas diferente de Lucas, que condensa
as duas informações em um único versículo (8,1), Marcos fala da pregação na Ga-
liléia no primeiro capítulo (1,38-39), e somente dois capítulos depois, nos versículos
3,13-19, é que anuncia a instituição dos doze. Reproduziremos os vv. 13 e 14:
15Ele sobe à montanha e chama aqueles que ele queria. Eles foram até ele, 14e
constituiu doze para estarem com ele e para os enviar a pregar, com autoridade para
expulsar os demônios.
O segundo versículo do texto de Lucas, Lc 8,2, passa a destacar as mulhe-
res que seguem com Jesus, tendo a seguinte redação: "e algumas mulheres, as
quais foram curadas de espíritos malignos e enfermidades: Maria, a chamada Ma-
dalena, da qual sete demônios saíram; 3 e Joana, mulher de Cuza, administrador
de Herodes; e Susana e outras muitas, as quais os serviam a partir das possibilida-
des delas".
Já de início, o v. 2 informa que algumas mulheres seguiam com Jesus, e que
elas "foram curadas de espíritos malignos e enfermidades", e que de Maria Mada-
lena "sete demônios saíram".
Ora, Marcos, no mesmo contexto em que fala da pregação de Jesus pela
Galiléia, nos citados vv. 1,38-39, também relata que ele expulsava demônios (v.
39) e realizava curas (v. 40-42). Há, portanto, uma concordância quanto ao conteú-
do dos textos e ao contexto.
44
A título de informação, complementa-se que Mateus é ainda mais objetivo
que Marcos: "Jesus percorria toda a Galiléia, ensinando em suas sinagogas, pre-
gando o Evangelho do Reino, e curando toda e qualquer doença ou enfermidade do
povo". E arremata, afirmando no v. 24, que Jesus curava inclusive endemoninhados
e lunáticos. Mateus praticamente se repete em 9,35, sumariando: "Jesus percorria
todas as cidades e povoados ensinando em suas sinagogas e pregando o Evan-
gelho do Reino, enquanto curava toda sorte de doenças e enfermidades". E res-
salte-se que este versículo é inserido logo após o relato da cura do endemoninhado
mudo. Ele fala em doenças, enfermidades e demônios, como Lucas. Mas Lucas
também fala nas mulheres que seguiam com Jesus.
Contudo, Mc 1,38-39, apenas refere-se à atividade itinerante de Jesus e as
curas que ele realizava, ainda não fazendo qualquer menção à existência de mu-
lheres que acompanhavam Jesus. A estas o evangelista somente vai se referir no
final da vida de Jesus, no contexto de sua paixão, no penúltimo capítulo de sua
obra, em Mc 15,40-41. Quando o faz, utiliza-se da seguinte linguagem:
40Havia também mulheres que olhavam, a distância, e entre elas, Maria de Magdala,
Maria, mãe de Tiago, o Menor, e de Joset, e Salomé, 41 que o seguiam e serviam
quando ele estava na Galiléia, e várias outras, que tinham subido com ele para Jeru-
salém.
Resta cristalina a afirmação (Mc 15,41) que mulheres já acompanhavam
Jesus desde a Galiléia! Marcos refere-se a este fato somente agora no final de seu
evangelho, mas Lucas, conhecendo a redação de Marcos, desloca a informação
para o momento em que narra o início da pregação de Jesus pela Galiléia.
Mateus 27,55-56, no que parece uma dependência de Marcos, também in-
forma sobre a presença das mulheres apenas no penúltimo capítulo de seu texto,
no mesmo contexto em que Marcos o faz, e quase com a mesma redação do pri-
meiro evangelista:
45
55Estavam ali algumas mulheres que olhavam a distância; elas tinham seguido
Jesus desde os dias da Galiléia, servindo-o. 56 Entre elas achavam-se Maria de
Magdala, Maria, mãe de Tiago e José, e a mãe dos filhos de Zebedeu.
Mas Lucas, em Lc 8,2, não se limita a apenas falar das mulheres e de curas
genéricas. Ele particulariza a cura de Maria Madalena, dizendo que ela foi curada
de sete demônios. Assim, temos que dar atenção especial a esta cura, que o
próprio evangelista a destaca.
Como já visto, somente no capítulo 15 é que Marcos dá atenção às mulheres
que seguiam Jesus, alocando-as no contexto da paixão. Neste momento, ele cita
nominalmente Maria Madalena como uma das mulheres que seguem com Jesus.
No capítulo seguinte, o último de sua obra, conta no v. 9 que "Tendo Jesus
ressurgido de manhã cedo no primeiro dia da semana, apareceu primeiro a Maria
Madalena, da qual tinha expulsado sete demônios". Encontramos portanto aqui a
informação que faltava para complementar a fonte de Lucas para escrever a perí-
cope que estamos estudando.
Lucas reposicionou o texto de Marcos e livremente reescreveu as informa-
ções coletadas em diversos e diferentes versículos, condensando-as na nossa pe-
quena perícope. No tópico a seguir, que trata da análise da redação, procuraremos
analisar o porquê de Lucas ter deslocado e fundido tanto os versículos de Marcos.
Apesar das diferenças terminológicas, da não-coincidência em relação ao lu-
gar que ocupam na seqüência dos escritos e da não-coincidência entre os vários
versículos na progressão dos assuntos, acreditamos ter encontrado, em Marcos, a
fonte para quase toda a nossa perícope, haja vista as concordâncias de conteúdos
dos diversos versículos, que apenas foram rearranjados por Lucas.
Um aspecto, todavia, destoa de nossa conclusão acerca da dependência de
Lucas em relação a Marcos: Lucas não apresenta os mesmos nomes que Marcos
46
para o elenco das mulheres que acompanhavam Jesus. Os três evangelistas falam
em Maria Madalena. Em nossa investigação, deixaremos à parte o seu nome,
que é consenso entre os autores. Mas enquanto Marcos 15,40 cita nominalmente
"Maria, mãe de Tiago, o Menor, e de Joset, e Salomé", Mateus 27,56 fala em ”Ma-
ria, mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Zebedeu", e Lucas 8,3 se refere
a "Joana, mulher de Cuza, administrador de Herodes; e Susana".
Podemos, de início, perceber que estamos diante de uma fonte que não é
o evangelista Marcos, pois para ele as mulheres são Maria (mãe de Tiago e Joset)
e Salomé. Lucas fala em Joana e Susana. Estamos, portanto, a toda evidência, di-
ante de pessoas distintas, com nomes específicos e diferentes. Marcos, portanto,
não pode ser fonte dos nomes apresentados por Lucas, até porque Marcos em ne-
nhum momento cita Joana ou Susana em seu evangelho.
Em nossa análise das fontes, não cogitamos a possibilidade de Mateus ser
fonte para Lucas; preferimos filiarmo-nos à hipótese das duas fontes, como deli-
neado em linhas pretéritas. Não averiguaremos, portanto, essa possibilidade.
Qual seria, então, a fonte de Lucas? A fonte "Q", comum a Mateus e Lucas,
ou seria uma fonte de matéria exclusiva? Pensemos na possibilidade de ser a fonte
Q.
Iniciaremos nosso raciocínio lembrando-nos que a fonte Q refere-se aos di-
tos de Jesus e portanto parece-nos ser inadequada para ajustar-se à pretensão de
resolver nosso problema, pois provavelmente não traz informações a respeito dos
nomes das mulheres que o acompanharam.
Em "História do Texto da Bíblia Hebraica", o professor Valmor da Silva, na
página 6, item 9, escreveu, sobre a fonte Q: uma coleção elaborada, de ditos
ou palavras (logia) de Jesus. Provavelmente não continha nada sobre a paixão.
Reflete o ambiente da Galiléia. Apresenta-se como um evangelho radical".
47
A hipótese mais aceita é a de que a fonte Q alimentou Lucas e Mateus.
Como os nomes das mulheres estão inseridos em Mateus no contexto da paixão,
esta fonte não poderia nos ajudar, se nada contém sobre a paixão. Além disso, se a
fonte é comum a Mateus e Lucas, ambos os evangelistas deveriam apresentar o
mesmo elenco de nomes de mulheres, o que parece não acontecer. Mas perscru-
temos esta hipótese.
Mateus fala em "Maria, mãe de Tiago e de José, e a mãe dos filhos de Ze-
bedeu". Lucas, como sabemos, fala em "Joana, mulher de Cuza, administrador de
Herodes e Susana". A Maria citada por Mateus não consta de Lucas. Mas como
temos uma mulher sem nome, poderíamos presumir que haveria uma fonte comum
a Mateus e Lucas e que a "mãe dos filhos de Zebedeu" pudesse ser Joana ou Su-
sana.
É muitíssimo improvável que a "mãe dos filhos de Zebedeu" seja "Joana,
mulher de Cuza, administrador de Herodes", pois era costume referir-se a uma
mulher preferencialmente pelo nome de seu marido, e Joana está muito bem no-
meada como mulher de Cuza, e não de Zebedeu. O nome de mulher que procura-
mos, portanto, não é Joana.
Podemos também supor que a "mãe dos filhos de Zebedeu", de quem fala
Mateus, fosse a Susana de Lucas. Esta poderia ser uma hipótese factível, em ra-
zão de não termos nenhum outro nome de família acrescido ao de Susana. Mas
este mesmo fato fragiliza a hipótese, pois conhecemos o costume judaico de dis-
tinguir as mulheres pelos nomes dos homens de sua família: marido ou filhos. Se
Suzana fosse a mãe dos filhos de Zebedeu, ele ou seus filhos seriam citados junto
ao seu nome. É improvável, portanto, que Mateus e Lucas se refiram às mesmas
mulheres. Logo, não se trata da fonte Q. Se assim for, resta apenas a hipótese de
estarmos diante de uma fonte exclusiva de Lucas.
48
No tocante a Mateus e Marcos, é bastante provável que estejam falando das
mesmas pessoas. A similitude de todo o contexto de Mateus e Marcos, que se
prolonga por um longo trecho dos respectivos evangelhos, permite a suposição de
que Mateus dependa de Marcos e que a "mãe dos filhos de Zebedeu" seja real-
mente Salomé.
Segundo Mc 1,19 e Lucas 5,10, os filhos de Zebedeu são Tiago e João. Boer
(1966) diz que Zebedeu era um pescador da Galiléia, pai de Tiago e João e marido
de Salomé, e nos remete para Mc 1,19-20; Mt 27,56; Mc 15,40 e Jo 18,15. A Bíblia
de Jerusalém, em nota ao versículo de Mc 15,40, concorda com Boer, dizendo que
Salomé provavelmente é aquela a quem Mt 27,56 denomina a mãe dos filhos de
Zebedeu. A hipótese mais provável, portanto, é que os nomes das duas mulheres
citadas somente por Lucas provenham de material exclusivo deste evangelista.
Mas é interessante verificar que bem mais adiante Lucas (24.10) afirma que
as mulheres que testemunharam após voltarem do túmulo "Eram Maria Madalena,
Joana e Maria, mãe de Tiago". Aqui, para Lucas, o nome de Susana sai de cena e
entra Maria, mãe de Tiago, de quem nos falou Marcos e Mateus!
3.4. Análise da redação
Nesta etapa procuraremos captar os interesses e as características do autor
de nossa perícope, e investigar a função do nosso texto dentro do contexto da obra.
É cediço que o material bíblico provém de histórias primeiramente vividas,
depois narradas oralmente e somente após um lapso temporal, escritas. Durante a
fase de transmissão oral, as perícopes circulavam livre e independentemente. Ao
redigirem seus Evangelhos, os autores conectaram perícopes avulsas para formar
49
um conjunto harmônico, cuja forma final contemplasse o desejo e a preocupação
específica de cada evangelista.
Os evangelistas selecionaram o que lhes interessava no material que tinham
a sua disposição, com liberdade até mesmo para reescrever perícopes escritas,
alterando, omitindo ou acrescentando o que lhes parecesse importante, de acordo
com seu interesse ou da comunidade que representavam. E ao completar seu tra-
balho, em muitas ocasiões blocos inteiros existentes foram transpostos de lugar,
bem como omitidos, acrescentados ou alterados.
Segundo Wegner, uma tendência de Lucas é evitar duplicação de narrativas,
bem como a omissão de aspectos judaicos acentuados, por serem irrelevantes
para os gentios, a quem se destinava seu Evangelho. Wegner (2002, p. 135) assim
se expressa acerca desta matéria:
A seleção de material era um recurso pelo qual os evangelistas davam realce a con-
teúdos que achavam importantes para seus destinatários. A omissão de assuntos
obviamente mostrava a falta de relevância dos mesmos para o evangelista.
Lucas, p. ex., omite as seguintes histórias bem conhecidas do Evangelho de Marcos:
Mc 1.16-20 (a vocação dos primeiros discípulos), 7.24-30 (a siro-fenícia) e 14.3-9 (a
unção). Que motivos teria para fazê-Io? A razão mais provável parece ser o fato de
ter tido narrativas com temáticas bem semelhantes, provenientes de outras tradições.
Em substituição a Mc 1.16-20 tinha a tradição de 5.1-11, para Mc 7.24-30 a de Lc
7.1-10, e para Mc 14.3-9 uma outra história de unção, apresentada em 7.36-50. Na
pesquisa fala-se, por isso, que uma tendência redacional de Lc é a de "evitar dupli-
cação" de narrativas. Além disso, podem ter pesado razões de ordem teológica. A
perícope da mulher siro-fenícia fala da prioridade da missão aos judeus, enquanto
Lucas acentua, desde o início, a perspectiva universal da missão de Jesus. E por
isso que a genealogia de Jesus não remonta somente até Abraão, o pai do povo de
Israel, como em Mateus (Mt 1.2), mas até Adão, o representante de toda a humani-
dade (Lc 3.38). Na perícope da unção em Betânia, Lucas pode ter querido evitar um
mal-entendido que poderia surgir das palavras de Jesus: "os pobres sempre os ten-
des convosco" (Mc 14.7). Ora, Lucas acentua mais do que qualquer outro evange-
lista que o reino de Deus representa uma notícia alvissareira para os pobres, sinal de
que a sua libertação se aproxima (Lc 4.16-30).
Outras tradições de Marcos não incorporadas por Lucas em seu evangelho são, p.
ex., Mc 7.1-23 (prescrições de pureza), 9.9-13 (a discussão sobre a vinda de Elias) e
50
10.2-12 (a discussão sobre a prática judaica do divórcio). Por abordarem temáticas
mais concernentes ao judaísmo, estes trechos foram, provavelmente, omitidos por
não serem relevantes para os destinatários gentios, aos quais é dirigido o terceiro
evangelho.
Como pudemos verificar, a perícope Lc 7,36-50, que antecede aquela que é
objeto de nossa análise, Lc 8,1-3, é o relato de uma unção diferente daquela narra-
da por Mc 14,3-9. A unção narrada por Marcos, denominada unção de Betânia,
embora esteja ausente do Evangelho de Lucas, está presente nos de Mateus (26,6-
13) e de João (12,1-8).
Assim, o texto da perícope anterior àquela que nos ocupa não corresponde a
nenhum texto apresentado por Marcos. No entanto, é interessante ressaltar que as
perícopes subseqüentes, Lc 8,4-56, acompanham exatamente a mesma ordem das
apresentadas por Mc 4,1-43, com exceção apenas de Lc 19-21, que foi transposta
de Mc 3,31-35.
Wegner (2002, p. 137) mais uma vez apresenta um registro sobre este tema:
Os estudos redacionais dos últimos decênios mostram que esta tarefa de reagrupar
e associar peças da tradição originalmente dispersas foi realizada de maneira cons-
ciente e planejada, perseguindo objetivos específicos. O estudo do contexto das pe-
rícopes tem por objetivo descobrir por que os evangelistas reagruparam e associa-
ram as tradições da forma como o fizeram. Em muitos casos, pode-se constatar que
tanto Mateus como Lucas inseriram o material recebido seguindo a mesma seqüên-
cia que tinham em suas fontes. Em Lc 8.4-56, p. ex., a seqüência dos textos acom-
panha exatamente a mesma ordem das perícopes apresentada por Mc:
Lucas 8.4-8 8-10 11-15 16-18 19-21 22-25 26-39 40-56
Marcos 4.1-9 10-12 13-20 21-25 ------ 35-41 5.1-20 21-43
A perícope central de nosso estudo, Lc 8,1-3 trata-se de uma perícope de
conexão entre a anterior e a posterior, sendo um recurso redacional para unificar
tradições originalmente isoladas, denominado por Wegner de "perícope de ligação".
Segundo este autor, trata-se de uma "ligação que se fundamenta numa situação vi-
gente" (2002, p. 133).
51
Consoante discorremos em item anterior, Lucas pode ter utilizado também
Marcos como fonte, mas deslocou todos os versículos dos contextos apresentados
por aquele evangelista. A razão pela qual isto ocorreu relaciona-se com o projeto
da obra de Lucas, que procura escrever "de modo ordenado", e estrutura seu texto
da seguinte forma: I. Nascimento e vida oculta de João Batista e de Jesus; II. Pre-
paração do ministério de Jesus; III. Ministério de Jesus na Galiléia; IV. Subida para
Jerusalém; V. Ministério de Jesus em Jerusalém; VI. A Paixão; VII. Após a Ressur-
reição. É a busca desta seqüência lógica que provavelmente desloca a informação
a respeito do aparecimento das primeiras discípulas de Jesus para o início de seu
ministério na Galiléia, o que faz jus à realidade temporal e geográfica, sendo uma
redação mais coerente que a de Marcos.
Mas por que Lucas deslocou e fundiu os versículos de Marcos? A resposta é
simples e está aparente no próprio prólogo do evangelho lucano: este autor preten-
deu escrever uma narração ordenada. E para escrevermos com ordem, precisamos
ligar os trechos.
A passagem que estudamos está inserida no contexto para fazer a ponte
entre duas histórias e o autor aproveita a oportunidade para apresentar as mulhe-
res que seguem Jesus pela Galiléia. É um bom momento para fazê-lo, pois a nossa
perícope se insere, dentro de um contexto maior, na parte III da obra de Lucas, re-
lativa ao ministério de Jesus na Galiléia. E as mulheres se juntaram e ele nesta
fase. Esta parte inicia-se em Lc 4.14 e encerra com Lc 9.50, inclusive.
Fica bem evidente a ordem e a conexão do evangelho de Lucas, se olhar-
mos para o contexto geral da obra, pois verificaremos que a pregação de Jesus
pela Galiléia já fora antecipada em Lc 4, 43-44
52
3.5. Análise das formas
O objetivo da análise das formas é definir as características formais do texto
para determinar o gênero literário ao qual pertence, seu lugar vivencial e sua inten-
ção.
No que se refere ao gênero, Wegner (2002) faz uma distinção inicial entre
"fórmulas" utilizadas pelos textos e "formas". As primeiras são "um conjunto de pa-
lavras ou expressões comuns, cujo tamanho não excede ao de uma frase e cujo
emprego pode ser constatado em diferentes textos" e as segundas, por sua vez,
compreendem "a soma das características linguísticas, sintáticas e estruturais de
um texto, ou seja, o seu perfil linguístico" (Wegner, 2002, p. 167).
O texto em apreço utiliza, por exemplo, a palavra "doze" como uma "fórmula"
presente em diversas passagens "para caracterizar o círculo restrito de discípulos
de Jesus (Mc 3.14 par.;6.7 par.; Jo 6.70; 1 Co 15.5)" (Wegner, 2002, p. 167).
Com relação às formas, ou seja, ao estilo do texto, podemos dizer que a
nossa perícope enquadra-se no gênero maior dos Evangelhos.
No que se refere ao gênero menor, entretanto, apresentamos uma breve dis-
cussão que nos parece pertinente. Em princípio, supusemos que nossa perícope
poderia se enquadrar dentro do material discursivo, nos denominados "ditos de se-
guimento". Wegner, entrementes, alertou-nos: "Nesta categoria enquadram-se os
ditos de Jesus formulados na primeira pessoa, e não pertencentes às narrativas de
vocação" (2002, p. 203). Em sendo assim, parece-nos que nossa hipótese não se
enquadra neste gênero. Mais uma vez, o manual de Wegner (2002) nos socorre,
nas páginas 195/196, quando trata das "histórias a respeito de Jesus", que Bul-
tmann denomina de "narrativas históricas e lendas" e Dibelius apenas de "lendas",
informando que estas foram chamadas de "histórias sem forma", em razão de
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não possuírem muitas "características formais idênticas".
Wegner (2002, p. 196), citando Bittencourt, "apresenta um inventário de to-
das as narrativas que, segundo Bultmann e Dibelius, podem ser enquadradas neste
gênero" e, dentre os textos arrolados, encontra-se exatamente nossa perícope: Lc
8,1-3. Estamos, pois, segundo o mestre, diante de um gênero narrativo denomina-
do "histórias a respeito de Jesus".
Com respeito ao lugar vivencial desta perícope, apresentamos uma discus-
são nas linhas a seguir.
Para Wegner (2002, p. 172), o lugar vivencial estará sempre vinculado à si-
tuação que, pela sua repetitividade, gerou o texto. Ele esclarece o porquê citando
Jürgen Roloff:
O "lugar vivencial" é uma realidade suprapessoal. (...) O objeto da pergunta pelo lu-
gar vivencial não é a pessoa que fala como indivíduo, e, sim, a situação que caracte-
riza a fala e a escuta. E o que lamentavelmente é esquecido com freqüência é o se-
guinte: esta situação de fala e escuta representa um "lugar vivencial" na medida
em que é institucionalizada e, por isso mesmo, fundamentalmente repetitiva, sendo a
função de cada gênero precisamente a de possibilitar a repetitividade (...) Em razão
deste fato, uma situação única, na qual Jesus porventura tenha pronunciado uma pa-
rábola ou realizado uma cura, ainda não representa um "lugar vivencial". Diferente se
dá com o ensino, através do qual professores cristãos procuravam aplicar a parábola
à situação de suas comunidades, ou com a prédica missionária, na qual um missio-
nário procurava anunciar o poder de Jesus através de um milagre: nestes casos, sim,
podemos falar de "lugares vivenciais".
Complementando o texto, Wegner esclarece, na mesma página:
Apesar desta crítica, autores que ainda insistem em falar de vários lugares viven-
ciais de um texto, geralmente três: 1) o lugar de origem de um texto, ou seja, a cir-
cunstância na vida de Jesus que o gerou; 2) a situação na vida comunitária na qual
se transmitiu o texto (esta corresponde ao lugar vivencial, como definido acima) e 3)
o lugar do texto na obra literária do redator do evangelho. Esta diferenciação nos pa-
rece inadequada. Por ser a repetitividade um pressuposto básico do "lugar vivencial",
não se pode usar esta expressão para caracterizar o momento original em que um
dito foi pronunciado ou uma história foi narrada por Jesus. Mas também o lugar de
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um texto dentro de um evangelho não pode ser considerado "lugar vivencial": ele re-
flete, muito mais, a opção particular de cada evangelista, pelo que seu estudo deve
ser integrado à análise redacional. Dentro do presente manual, portanto, a expressão
"lugar vivencial" é usada sempre no sentido de caracterizar a situação geratriz do
texto que, pelas suas condições de repetitividade, imprimiu-lhe as suas formas ca-
racterísticas, enquadrando-o num certo gênero.
Se o lugar vivencial não pode se vincular ao "lugar do texto na obra literária
do redator do evangelho" mas sim à "situação na vida comunitária na qual se
transmitiu o texto", este lugar parece-nos ser indicado pelo texto de Marcos, pois,
conforme expressamos anteriormente, acreditamos que nossa perícope seja fun-
damentada em Marcos e que Lucas tenha livremente rearranjado versículos da-
quele evangelho. Foi Marcos, portanto, quem primeiramente coletou as informa-
ções e que pôde, portanto, melhor "caracterizar a situação geratriz do texto".
E Marcos coloca as mulheres no contexto da paixão. Qual seria portanto, o
lugar vivencial do relato da paixão? Ainda segundo Wegner (2002, p. 198), para
este, Dibelius propôs a pregação, Eduard Schick, o espaço após as prédicas, re-
servado para as explicações dos missionários; e Jurgën Rollof, a catequese e o
culto comunitário. Wegner concorda com este último, porque "a catequese oportu-
nizava, mais que qualquer outro lugar vivencial, o espaço adequado para transmitir
com detalhes a história salvífica de sofrimento e morte redentores de Jesus" (p.
198).
É interessante acrescentar que, segundo Wegner (2002, p. 197), Bultmann
considera a história da paixão como a única narrativa composta de uma seqüência
orgânica de textos, contendo um núcleo original posteriormente ampliado, apre-
sentando dúvidas "unicamente quanto ao estágio em que foram adicionados os
textos de Mc 15.40s, 42-47". E Mc 15.40s trata das mulheres e é base para nosso
texto.
55
Em Marcos, a intenção do texto é apresentar as mulheres que seguem com
Jesus e fazem parte de seu círculo de discípulos. E mais que isso, acreditamos que
seja também preparar para o relato da ressurreição, da qual são as primeiras tes-
temunhas.
Assim, em Lucas, o texto também apresenta as mulheres que teriam impor-
tância como testemunhas da ressurreição, mostrando-as com Jesus desde o co-
meço de sua vida pública, acompanhando-o, o que confere maior credibilidade aos
seus relatos, que se tornam testemunhas oculares das ocorrências. Não pode-
mos nos esquecer da precariedade do valor do testemunho das mulheres no tempo
de Jesus, pelo que o atestado desta convivência estreita e prolongada torna-se im-
portante.
Além disso, por ser um texto utilizado na catequese - com o que concorda-
mos - também tinha a intenção de demonstrar que as mulheres exerciam função
importante junto ao grupo de Jesus, preconizando sua diaconia nas comunidades
cristãs primitivas.
3.6. Análise de conteúdo
De acordo com Wegner (2002, p. 248), a análise de conteúdo é o "coração"
da exegese. Seu objetivo é interpretar o conteúdo do texto. Para tanto, precisamos
descobrir seu eixo (principal assunto) e estudá-lo de acordo com seu significado no
mundo contemporâneo de Jesus.
Nossa abordagem do conteúdo será efetuada em duas etapas, pois trabalha-
remos com dois métodos diferenciados, que contemplarão duas perspectivas dis-
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tintas: a primeira é a do método estruturalista e a segunda a do método histórico-
crítico convencional.
3.6.1. Método estruturalista
No método estruturalista, analisaremos o texto a partir das perspectivas se-
mântica e pragmática.
3.6.1.1. Análise semântica
Sua finalidade é estudar o sentido do texto, de suas frases e palavras. Na
análise semântica do texto buscaremos apreender o sentido como um todo. Para
isso, iniciaremos com um inventário semântico:
Personagens: Jesus, Cuza, Herodes, os doze, Deus, Maria Madalena, Joa-
na, Susana, outras mulheres.
Local: cidades e povoados.
Movimento: andar, proclamar, anunciar, curar, sair, servir.
Males: espíritos malignos, doenças, demônios.
Masculino: três nomes de homens e uma referência ao coletivo "os doze",
que resulta em quatro termos masculinos.
Feminino: três nomes de mulheres e uma referência ao plural "outras mulhe-
res", que resulta em quatro termos femininos.
Masculino/feminino: Deus.
Números: doze, sete, três, quatro.
Podemos perceber, nesse inventário, a existência das seguintes oposições
semânticas:
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HOMENS MULHERES
Jesus Maria Madalena
Cuza Joana
Herodes Susana
Os doze Outras mulheres
Deus
CAUSAS EFEITOS
Espíritos malignos, demônios Doenças
Curar Servir
Andar Sair
Anunciar Proclamar
ATIVO PASSIVO
Jesus cura Mulheres são curadas
Mulheres servem Jesus é servido
MAIOR MENOR
Cidades Povoados
Podemos, ainda montar um quadrilátero semiótico, no qual vemos que Jesus
cura as mulheres (e, ao fazê-lo, realiza um serviço!), e estas, curadas, por sua
vez servem-no. A relação de serviço e cura é dialógica. E é essa a relação dialógi-
ca que permeava a convivência do Mestre com aquelas mulheres nominadas na
perícope, inclusive Maria Madalena.
Jesus Servir
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Curar Mulheres
A estrutura do texto é paralela:
A Jesus
B anuncia, evangeliza e cura
A Os doze e as mulheres curadas
B anunciam e evangelizam
A As mulheres curadas
B servem
A perícope, portanto, fica assim:
A E aconteceu, depois disso, que ele
B andava por cidade e aldeia proclamando
e anunciando o Reino
de Deus, e com ele
A os doze e algumas mulheres, as quais foram curadas de espíritos
malignos e enfermidades: Maria, a chamada Madalena, da qual sete
demônios saíram; e Joana, mulher de Cuza, administrador de Hero
des; e Susana e outras muitas,
B (andavam por cidade e aldeia proclamando e anunciando o Rei
no de Deus)
A as quais [as mulheres]
B os serviam a partir das possibilidades delas.
A análise da semântica da palavra tem o objetivo de estudar o sentido que
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elas adquirem no texto.
Kaí e syn
A conexão entre Jesus, os doze e as mulheres é feita, em grego translitera-
do, por kaí e syn. Em português, a primeira palavra, "e", é uma conjunção aditiva, e
a segunda, "com", é uma preposição.
A esta altura da exegese, ocorreu-nos que ao fazermos o inventário semân-
tico do item anterior, não encontramos no primeiro ou no segundo versículo um
verbo aparente que determine qual é a ação dos apóstolos e nem a das mulheres.
Em grego transliterado temos "kaí oi dodeka syn auto, kaí
ginaikes tines".
O início da perícope é claro: "ele andava por cidade e aldeia proclamando e
anunciando o Reino de Deus, e os doze com ele e mulheres algumas, as quais fo-
ram curadas de espíritos malignos e enfermidades (...)".
Na primeira frase temos uma oração na ordem direta, com sujeito, verbo e
complemento: "ele andava por cidade e aldeia proclamando e anunciando o Reino
de Deus".
Na segunda oração, introduzida com a conjunção aditiva "e", não temos um
verbo aparente: "e os doze com ele". É muito importante respondermos à óbvia
pergunta: qual é o verbo oculto na frase?
A frase continua, ainda sem apresentar um verbo: "e mulheres algumas".
Após isto, temos a oração seguinte, com sujeito, verbo e objeto: "as quais fo-
ram curadas de espíritos malignos e enfermidades".
Nosso trabalho consiste em encontrarmos o verbo oculto que determina a
ação dos doze e das mulheres.
Nossos tradutores, em sua maioria, inserem o verbo "ir" na frase, embora ele
não esteja presente no original grego. A tradução fica assim para a Bíblia de Estudo
Pentecostal, Bíblia de Referência Thompson, Bíblia Sagrada da Sociedade Bíblica
60
do Brasil, Bíblia Sagrada da CNBB, Bíblia Sagrada Edição Pastoral: "e os Doze iam
com ele, e também algumas mulheres".
A Bíblia de Jerusalém muda o verbo, utilizando acompanhar: "Os Doze o
acompanhavam, assim como algumas mulheres".
A Tradução Ecumênica da Bíblia também inova: "Os Doze estavam com ele,
e também mulheres".
O que autoriza os tradutores a livremente escolherem e inserirem no texto
um verbo? Ora, uma frase tem sujeito e verbo, mesmo que algum deles esteja
oculto. E o escritor do texto sabe exatamente qual é. O trabalho de tradução deve
ser fiel ao texto e, se quiser mostrar o verbo originalmente oculto, deve buscar de-
terminar exatamente qual é.
É claro que um tradutor pode expressar suas cogitações, mas elas não po-
dem extrapolar a intenção do autor. Qual regra os tradutores utilizaram para decidir
se os apóstolos iam com Jesus, se o acompanhavam ou se estavam com ele? A de
que o texto "insinua" qualquer um destes verbos? Volvamos ao original grego e
vejamos o que podemos descobrir.
Taylor (2001, p. 106) nos alerta para a riqueza de significados de kaí e para
a conseqüente dificuldade de se apreender sua real significação:
e; também, outrossim; mesmo, até, ora, sim, de fato; repetido, ou com outra palavra
sinônima = tanto. .. como, ora. .. ora, não somente. .. mas também; ou (dío nartíron
daí trion, de duas ou três testemunhas; duas e - se houver tantas - até três t.); Thayer
acrescenta as seguintes possíveis traduções desta palavra, a mais comum no N.T., o
contexto e kdando a idéia resultante de: e em geral, e numa palavra, em resumo, e
especialmente; e assim, e portanto, e todavia; e de fato, isto é; e ainda; ainda que
(com part.) ; pois, então; kaí ... gár = e (digo assim) porque; § 757. (Uma das maiores
faltas nas versões da língua portuguesa é a freqüente omissão de traduzir kaí, por
falta de imaginação histórica para perceber e verter no vernáculo sua evidente força
variada e riquíssima no original) (destacamos)
A conjunção "kaí" aparece duas vezes no trecho que ocupa nossa análise:
61
"kaí oi dodeka syn auto, kaí
ginaikes tines". Nós o traduzimos literalmente como "e
com ele os doze e mulheres algumas".
Como se constata, kaí tanto se pode traduzir por "e", como se pode traduzir
por "também". Ambas são versões de uma mesma palavra. Então, em princípio,
somente poderíamos traduzir "e também" se tivéssemos no original grego, por
exemplo, "kaí kaí", o que não ocorre em nossa perícope.
Logo, não se justifica que alguns tradutores tenham utilizado "e" quando se
trata dos doze e "e também" quando se trata das mulheres: "e os Doze iam com
ele, e também algumas mulheres", ou pior: "os Doze o acompanhavam, assim
como algumas mulheres".
As expressões "também", "assim como", dão idéia de um apêndice. Se
existe um "também" é porque tem um precedente. Os doze são os precedentes e
as mulheres o apêndice. A mesma coisa ocorre com o "assim como", que suben-
tende a idéia de comparação com algo cujo conhecimento é antecedente.
Nenhuma dessas traduções é autorizada pelo texto. São dois "kaí" idênticos
e ponto final. O texto é o mesmo, a frase é a mesma, o contexto é o mesmo! Por-
que a tradução não seria a mesma? É importante aclararmos isso, porque esta
conjunção é elemento de ligação de Jesus aos doze e às mulheres: e os doze com
ele e mulheres algumas. Ele (Jesus) está exatamente no meio de ambos, fazendo
a ponte entre os doze e as mulheres. E ambos estão unidos a ele pelo "e" e pelo
"com".
Vejamos o que este syn nos mostra. Taylor (2001, p. 208) nos apresenta um
quadro muito elucidativo e enfático acerca do significado desta palavra:
prep. c. associativo-instrumental, expressando cooperação, intimidade, conjunção
com; a preposição "aristocrata"; geralmente não vinga, no koinê, a distinção entre
netá (justaposição) e sin (íntima comunhão) tendo esta se tornado rara e aquela a
substituído, ficando esta idéia de íntima comunhão sempre saliente em sin e muitas
62
vezes, em metá; "o sentido grego permite a idéia de mais ou de inclusive" - Souter; §
§ 629, 639, 643, 647; "indica acompanhamento e comunhão, quer de ação, quer de
crença, quer de condição, quer de experiência". (o grifo não é do original)
Que riqueza de significado! A preposição syn utilizada por Lucas expressa
cooperação, acompanhamento, intimidade, comunhão. E é uma comunhão ampla,
segundo Taylor: "indica acompanhamento e comunhão, quer de ação, quer de
crença, quer de condição, quer de experiência".
O que esta expressão indica, portanto, é que havia esta especial comunhão
entre as pessoas que estão ligadas por ela: os doze, Jesus, as mulheres. Eles
compartilhavam, segundo vimos no dicionário de Taylor, a ação, a crença, a condi-
ção, a experiência.
A idéia de adição associada ao "e" complementa a idéia de comunhão ex-
pressada pelo "com", completando-se a qualidade da ligação de Jesus com os
doze e com as mulheres: e os doze com ele e mulheres algumas. É uma ligação de
comunhão plena e ação conjunta.
Vimos que esta frase é antecedida por outra, que contém diversos verbos
expressando as ações de Jesus: "ele andava por cidade e aldeia proclamando e
anunciando o Reino de Deus". E os doze com ele e mulheres algumas.
A comunhão de ação, expressa pela preposição syn, indica que a primeira
frase exprime as ações não somente de Jesus, mas daquele grupo de pessoas co-
nectado pelo kaí e pelo syn.
Acreditamos que o(a)(s) autor(es)(as) do texto tenha usado o verbo andar no
singular apenas com o intuito de preservar o destaque dado à ação de Jesus, pri-
meiro, em função de sua atuação singular, e segundo, porque é ela que desenca-
deia as demais.
Portanto, uma tradução que expresse o sentido original da frase poderia ser
63
a seguinte: "Andavam por cidade e aldeia proclamando e anunciando o Reino de
Deus, ele, e os doze e algumas mulheres, as quais foram curadas de espíritos ma-
lignos e enfermidades (...)".
Cura
A semântica do texto Lc 8, 1-3 demonstra que as palavras-chave são cura e
serviço.
Em nosso caso, a cura é o ponto de partida para as ações posteriores das
mulheres. Seria interessante que a estudássemos com profundidade. Todavia, em-
bora sem negar a importância do conceito de cura, vamos apenas trazer alguns
elementos e depois concentrar nossos esforços no estudo da conseqüência da
cura, que é o serviço, a outra palavra-chave do texto.
O que é a cura no contexto do Novo Testamento? O que Jesus curava? Lu-
cas nos auxilia na resposta, dizendo que Jesus curava "doentes de toda espécie"
(Lc 4,40) e que "demônios também saíam" (Lc 4,41).
A TEB, em nota a Lc 4,41, afirma que "ao contrário de Mc, Lc classifica os
possessos entre os doentes (cf. v. 39; 11,14; 13,11; At 10,38; 19,12)".
Os relatos de cura no Novo Testamento são abundantes. E os evangelistas
atestam que Jesus cura toda sorte de doenças, enfermidades e tormentos (Lc 8,2;
Mc 3,10; Mt 4,23-24; 8,16-7; 9,35; 15,30). Os textos citados demonstram que ele
cura o ser humano em todos os seus aspectos. São reintegrados o nível físico (en-
fermidades diversas), mental e psicológico (endemoninhados, possuídos, enfraque-
cidos, humilhados etc), econômico, social e afetivo (pela reinserção dos curados na
convivência familiar e comunitária e devolvendo-lhes a dignidade) e espiritual/alma
(nascer de novo para o Reino).
64
Serviço
Em nossa perícope, a partir da cura nasce a ação reflexa que se irradia para
as extremidades do texto: começo do primeiro versículo (por terem sido curadas, as
mulheres acompanham Jesus), em seu ministério no final do último versículo (por
terem sido curadas, as mulheres servem como diáconas).
Para nosso texto, o serviço (diaconia) é conseqüência da cura. Essa conclu-
são não é isolada. Ela tem fundamentos idênticos em um conhecido episódio: a
cura da sogra de Pedro. Nele, o serviço como resultado da cura está muito bem
explicitado (Mt 8,15; Mc 1,31; Lc 4,39). Vamos transcrever o próprio Lucas, em ver-
são da Bíblia Tradução Ecumênica:
Levantando-se da sinagoga, ele entrou na casa de Simão. A sogra de Simão estava
acometida de febre alta, e eles rogaram-lhe que fizesse algo por ela. Jesus se incli-
nou sobre ela, repreendeu a febre, e esta a deixou; e levantando-se imediatamente,
ela se pôs a servi-los.
A palavra que melhor expressa esse serviço é diaconia, pois deriva do verbo
utilizado em nosso texto grego, diakoneo. dissemos que em nosso texto o verbo
está declinado na terceira pessoa do plural do imperfeito do indicativo ativo: diako-
nun. Também informamos que Taylor (2001, p. 55) nos oferece as seguintes op-
ções de tradução: "sou servo de, sirvo à mesa, ofereço comida e bebida a; sirvo,
exerço o diaconato".
Ao traduzirmos, optamos pelo verbo servir, em razão da construção da frase
em grego, que traz um pronome agregado ao verbo. Em português, o verbo servir é
intransitivo e também tem muitos significados. Nossa tradução literal fica assim: as
quais serviam a eles (aitines diakonun autois). Para não ofender a gramática e me-
lhorar a frase sem modificar-lhe o sentido, substituímos o pronome pessoal eles
pelo pronome os: as quais os serviam.
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No Novo Testamento, mulheres e homens servem. Muitos são os versículos
que utilizam o verbo diakoneo para se referir ao serviço prestado ora por homens,
ora por mulheres, ou ambos (Rm 16,1-3; 1 Tm 3,8-13). E este serviço alcança a
dimensão do diaconato.
Em Lc 8,1-3 podemos dizer que Jesus exerce o diaconato quando proclama
e anuncia o Reino e cura as mulheres. Jesus literalmente afirma, em Lc 22,27, que
serve. Jesus veio para servir e não para ser servido (Mc 10,45; Mt 20:28). Até os
anjos servem (Mc 1:13, Mt 27:55)! E o verbo é o nosso conhecido diakoneo.
Não podemos, então, pensar em encerrar esse serviço na estreita idéia re-
ducionista de um simples servir apenas com bens materiais, palpáveis. Seria me-
nosprezar demasiadamente as possibilidades do servidor.
E em nossa perícope, ao ato de servir ainda se ajuntam as palavras ex ton
hyparchonton autais, que já analisamos anteriormente, e que traduzimos por "a
partir das possibilidades delas". Assim, diakonun autois ex ton hyparchonton autais
significa que as mulheres "os serviam a partir das possibilidades delas".
Isso significa que o serviço era uma entrega de tudo que aquelas mulheres
possuíam em sua essência: seus bens materiais e imateriais, suas posses palpá-
veis e impalpáveis, as coisas do mundo e do espírito.
A última frase do texto deixa claro que este serviço era dirigido "a eles". Mas
quem são "eles"? Apenas Jesus e os doze? O contexto é que tem o direito de ver-
dadeiramente nos indicar a amplitude em que o serviço se expressará.
E como vimos, Jesus, e os doze e as mulheres juntos andavam, anunciavam
e proclamavam o Reino de Deus, e portanto o serviço delas "a eles" compreendia
todas estas ações. Logo, os beneficiados eram Jesus e os apóstolos e todos
aqueles que partilhavam destas ações, seja como sujeito ativo [(Jesus, os doze,
outros(as) apóstolos(as)] anunciando e proclamando junto com as mulheres, seja
como sujeito passivo (a comunidade) recebendo este anúncio e esta proclamação.
66
3.6.1.2. Análise narrativa
Agora, na análise narrativa, estudaremos as seqüências de ações, os agen-
tes e as relações entre eles. Através da definição dos pontos nodais nos conscien-
tizaremos das alternativas inerentes às ações, que poderiam ter um curso diferente.
A análise dos vetores demonstrará as relações entre os agentes.
Pontos nodais
- Quanto a Jesus
curava
proclamava -------- não curava
Jesus ------- andava ------ não proclamava
não andava
- Quanto às mulheres
serviam
anunciavam----------não serviam
andavam-----não anunciavam
Mulheres ----curadas ----- não andavam
não curadas
Atores/vetores
Jesus tem função extremamente ativa no texto, exercendo seu ministério. As
mulheres também têm esta mesma função ativa, cabendo-lhes o serviço de tam-
bém anunciar e proclamar o Reino. É muito nítida a reciprocidade entre a cura e o
serviço das mulheres: Jesus as curou e agora elas servem.
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Ao fazermos a análise semântica e narrativa de acordo com o método es-
truturalista, deparamo-nos com aspectos muito interessantes.
Curadas é a 30ª palavra do texto grego de nossa perícope, que tem exatas
62 palavras no total! São três versículos, e o centro deles é a cura das mulheres,
atestada no segundo versículo. Centro geográfico e ideológico da perícope.
A partir da cura nasce a ação reflexa que se irradia para as extremidades do
texto: no começo do primeiro versículo, por terem sido curadas, as mulheres acom-
panham Jesus, anunciando e proclamando o Reino de Deus e no final do último
versículo, por terem sido curadas, agora servem (diaconia).
O coração do primeiro versículo é o anúncio do Reino de Deus e o do tercei-
ro e último é o diaconato. Assim, a partir do centro do v. (cura), que é também o
centro da perícope, são conectados o e o vv. As mulheres que foram curadas
anunciam o Reino de Deus e exercem o diaconato.
E para que a perícope tenha vida, a relação entre os três versículos tem que
ser harmoniosa, pois todos estão conectados pelo centro, que é seu coração. E
efetivamente o é, pois toda a perícope é construída sobre esta idéia de harmonia,
como estamos vendo.
No primeiro versículo, conjugando o feminino e o masculino está Deus, que é
exterior e interior, fonte de todas as possibilidades do ser e do não-ser, cujo Reino
é anunciado por homens e mulheres.
No segundo versículo estão as curas realizadas por Jesus pelo poder de
Deus, e estas são integrais, compreendendo a totalidade das necessidades interio-
res e exteriores apresentadas a Jesus por homens e mulheres.
No terceiro versículo, no âmago da diaconia, está o serviço exterior e interior,
realizado a partir das possibilidades plenas da essência, que irmana homens e
mulheres.
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Deus/Jesus (v.1) é pleno como a cura (v.2) e o serviço (v.3) são plenos. Os
versículos se complementam e completam.
No texto, como um todo coerente e interdependente, a integralidade do Deus
do v. 1 se expressa na totalidade da cura realizada pelo Jesus Salvador no v. 2 e
somente pode se coadunar com a idéia de diaconia se esta for expressa como pos-
sibilidade integral (total) de serviço a partir da essência, como nossa tradução do v.
3. Somente desta forma vemos evoluírem as notas harmônicas do texto em sua
completude.
A perícope é toda harmoniosa. Sob qualquer aspecto que a analisemos, en-
contraremos uma estrutura de sentido que se completa.
Quando analisamos a ligação de Jesus aos doze e às mulheres, vimos que
Jesus está exatamente no meio de ambos, conectando o feminino e o masculino (e
os doze com ele e mulheres
algumas). Jesus/Deus, feminino e masculino.
E para concluir nossa idéia de complementariedade e circularidade podemos
afirmar que em nossa perícope se apresentam os fatos que constituem um resumo
do duplo ministério de Jesus: ensinar e curar. Isto é importante. Mas mais ainda,
a perícope também mostra que, como conseqüência destes atos, Jesus habilita
apóstolos/apóstolas, discípulos/discípulas, diácono/diáconas, para também ensinar
e curar e manter vivo o anúncio e proclamação do Reino de Deus. É a expansão e
a vida do cristianismo. A perícope apresenta sua semente e vislumbra sua consu-
mação. É o círculo que se mostra, agora em forma de espiral.
3.6.2. Método histórico-crítico
Para a análise segundo esse método, necessitamos identificar o eixo do
texto, interpretar seus dados a partir da realidade e contexto da época de Jesus e
aclarar a opção e a intenção do texto.
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O eixo do nosso texto é o fato que entre os discípulos de Jesus existem al-
gumas mulheres que têm função em seu ministério. Este fato, que hoje poderia pa-
recer comum, contrasta não com a praxe rabínica do tempo de Jesus, mas tam-
bém com o papel social da mulher da época. Jeremias (1983, p. 492) explica qual
era a posição da mulher no serviço litúrgico e como testemunha:
No serviço litúrgico a mulher comparecia somente para escutar. Não se nega que,
em época muito antiga, tenham-se chamado mulheres para ler a Torá; na época
tanaíta, porém, esse costume tinha caído, e não eram mais solicitadas para tal mis-
ter. O ensino também lhes era vedado. Em casa, à mesa, não pronunciavam a n-
ção e não tinham o direito de prestar testemunho, pois, consideravam-nas mentiro-
sas, conforme interpretação de Gn 18,15. Aceitava-se seu testemunho somente em
casos excepcionais precisos, e, nos mesmos casos, aceitava-se o testemunho de um
escravo pagão; por exemplo, para o novo casamento de uma viúva contentavam-se
com o testemunho de uma mulher acerca da morte do primeiro marido.
A situação da mulher na legislação religiosa de modo geral é expressa, e da
melhor maneira, pela fórmula constantemente repetida: "mulheres, escravos (pa-
gãos) e filhos (menores)"; como o escravo não-judeu e o filho menor, a mulher
conta com um homem superior a ela, como senhor; tal fato limita igualmente a sua
liberdade no serviço divino. Por esse motivo, do ponto de vista religioso, acha-se
inferior ao homem. Jeremias (1983, p. 493) continua sua explanação na página se-
guinte, referindo-se especificamente ao judaísmo do tempo de Jesus:
A tudo que foi dito, acrescentemos o fato de não faltarem sobre a mulher opiniões
desdenhosas; é impressionante o quanto essas superam os julgamentos favoráveis
que, no entanto, não lhes faltam. É característica a alegria ao nascer um menino, en-
quanto o nascimento de uma menina é acompanhado de indiferença, até mesmo de
tristeza. Temos a impressão de que o judaísmo do tempo de Jesus também alimen-
tava pouca consideração para com a mulher; situação comum no Oriente, onde ela é
valorizada antes de tudo pela sua fecundidade e vê-se afastada tanto quanto possí-
vel do mundo exterior, submissa ao poder do pai ou do marido, e onde, do ponto de
vista religioso, não é igual ao homem.
Wegner (2002, p. 262), em um item específico em que trata da questão rela-
tiva à importância dos dados sociais para a análise histórico-crítica, brinda-nos com
70
a seguinte reflexão sobre Mc 15.40s, que sustentamos ser um paralelo da nossa
perícope:
Em Mc 15.40s menciona-se o fato de que Jesus, durante seu ministério itinerante na
Galiléia, era acompanhado por várias mulheres. Este fato, interpretado unicamente à
luz de nossa experiência atual, poderia nos parecer normal. O conhecimento do es-
paço reservado para as mulheres na época de Jesus, contudo, nos revela que na
Palestina nenhum rabino se fazia acompanhar por mulheres. Visto por esta ótica, o
movimento de Jesus pode ser considerado como de ruptura frente aos padrões soci-
ais do seu tempo.
A afirmação acima sintetiza maravilhosamente os textos que relatam a vida
das mulheres palestinas no tempo de Jesus, bem como os comentários que en-
contramos em diversas Bíblias sobre o trecho analisado.
A Bíblia Sagrada, tradução da CNBB, em comentário de rodapé a Lc 8,1-3,
afirma que "Jesus rompe a barreira da dominância masculina tradicional na religião
judaica".
A Tradução Ecumênica da Bíblia, também em comentário de rodapé a Lc
8,2, ressalta esse fato: "A presença das mulheres em volta de Jesus, confirmada
por Mateus, 27,55 e Mc 15,41, é um fato excepcional no mundo palestinense (cf. Jo
4,27)".
A edição pastoral da Bíblia Sagrada traz o seguinte comentário de nossa pe-
rícope: "Jesus continua sua missão, e vai formando uma comunidade nova, a partir
daqueles que são marginalizados pela sociedade do seu tempo, como eram as
mulheres. Elas também são parte integrante do grupo que acompanha Jesus".
Lancellotti e Boccali, em seus comentários ao Evangelho de Lucas, no trecho
pertinente a nossa perícope, afirmam:
2. algumas mulheres: admitindo-as em seu séquito e como discípulas (cf. 10,38-42;
Jo 4,7-26), Jesus queria resgatar a mulher daquela posição social inferior, não so-
mente social mas também espiritual e moral em que se achava presa no mundo anti-
go, inclusive judaico. Com Jesus a mulher assume todas as responsabilidades da
pessoa humana, em plena igualdade com o homem.
71
Jeremias (1983, p. 494) sintetiza muito bem a relevância do conhecimento
da situação da mulher nos tempos de Jesus, para se proceder a uma exegese e
hermenêutica conscientes:
Somente a partir desta perspectiva da época é que podemos apreciar devidamente a
posição de Jesus em face da mulher (Lc 8,1-3): Mc 15,41 e par. (cf. Mt 20,20) falam
das mulheres que acompanhavam Jesus; trata-se de um fato sem precedente na
história da época. O Batista pregou às mulheres e batizou-as; Jesus altera consci-
entemente os costumes, deixando que algumas o sigam. Por assim proceder é que
exige dos discípulos a atitude de pureza que supera qualquer desejo: "Quem olhar
para uma mulher [casada] com desejo libidinoso cometeu adultério com ela em
seu coração" (Mt 5,28). Jesus não se contenta de elevar a mulher acima do nível em
que a tradição a mantinha; enquanto Salvador, enviado a todos (Lc 7, 36,50), coloca-
a em pé de igualdade com o homem (Mt 21,31-32).
O estudioso ressalta muito bem: a tradição mantinha a mulher em condição
de inferioridade. Jesus trata a mulher como um ser igual ao homem. E isto é uma
grande novidade para o seu tempo. Nossa interpretação é realizada sob a ótica
dessa mudança de paradigma. E por isso centramos nossa pesquisa no que acre-
ditamos ser o aspecto essencial: o fato de, para a época de Jesus, ser incomum
que mulheres acompanhassem os rabinos e exercessem a diaconia. Desta forma,
pareceu-me importante priorizar a verificação dos termos "cura" e "servir".
vimos que o verbo servir é tradução do grego diakoneo, encontrado em
muitos versículos do Novo Testamento, e traduzido ora com o sentido de servir, ora
com o de prestar assistência, ora com o de ministrar, ora com o de exercer o diaco-
nato. Quando o termo grego é diakonia, da mesma raiz, quase invariavelmente é
traduzido por ministério, sendo que em poucos versículos se opta pelo termo servi-
ços. As passagens de Marcos e Mateus correlatas a Lc 8,1-3, as quais já estuda-
mos em itens pretéritos, também expressam o mesmo diakoneo.
A nossa perícope utiliza a conjugação diakonun, que é a terceira pessoa do
plural do imperfeito do indicativo ativo de diakoneo. Nas Bíblias em português, em
72
todos os textos (Lucas, Mateus e Marcos) os tradutores escolheram verbos e ex-
pressões que têm o significado de "servir" ou de "ajudar".
Também escolhi a versão servir. Mas diferi das traduções que apresentei no
que se refere ao âmago do serviço. Elas traduzem esta parte da perícope como
sendo um serviço com bens materiais, com o que discordamos.
Em Lc 10,38-42 vemos muito bem a distinção entre as duas posturas, embo-
ra, por ser óbvio, admitamos que seja circunstancial e que os papéis ali representa-
dos sejam apenas as duas faces de uma mesma moeda, que muito bem expres-
sam as duas polarizadas faces da diaconia. Para ser um serviço integral, ambas se
complementam, como sugerido em nossa perícope.
E como vimos em outros tópicos, a diaconia destas mulheres curadas por
Jesus era integral: elas andavam com ele e com os apóstolos pregando, anuncian-
do, servindo. O serviço era a resposta delas ao milagre com o qual Jesus as pre-
senteara ao curá-las.
Logo após o verbo diakoneo, Lucas particulariza a condição em que este
serviço é prestado. Para tanto, utiliza-se das palavras gregas diakonun autois ex
ton hyparchonton autais.
fundamentamos, em um dos tópicos iniciais de nossa exegese, nossa
discordância quanto a interpretação restrita aos bens materiais, que não se coadu-
na com o sentido mais antigo e amplo de hyparcho. Em nossa tentativa de traduzir
esta palavra, acreditamos que o melhor termo indica a condição que a pessoa pos-
sui, o que ela tem de possibilidades internas e externas, não apenas o que ela pos-
sui de bens, que indica tão-somente suas possibilidades materiais.
Servir com as suas condições é servir com a totalidade de suas possibilida-
des, com a integralidade de sua essência (cf. Fl 2,6a, onde condição está relacio-
nada com essência), é muito diferente de servir com suas posses.
73
Podemos, portanto, inferir que esta passagem, ao contrário do que se tradi-
cionalmente aceita, diz que as mulheres que seguiam Jesus eram diáconas e ser-
viam Ele e os doze com a integralidade do seu ser, com a totalidade da sua essên-
cia, e, por conseqüência, com todos os seus bens tanto materiais quanto imateriais.
3.7. Nova tradução
De acordo com tudo que se expendeu em linhas pretéritas, apresentamos
nossa nova proposta de tradução para a perícope, norteando-a pelo princípio da
equivalência dinâmica e considerando todas as descobertas feitas ao longo da
exegese:
"1E aconteceu em cidades e aldeias da Galiléia, Jesus e com ele os doze 2e
algumas mulheres andavam proclamando e anunciando o Reino de Deus, as quais
foram curadas em sua totalidade, Maria a chamada Madalena, livrada de posses-
são diabólica, 3Joana mulher de Cuza administrador de Herodes e Susana e outras
muitas, que serviam Jesus, os apóstolos e a comunidade, com todas suas condi-
ções materiais e imateriais."
3.8. Para não concluir
Iniciamos nossa exegese informando que a perícope a ser estudada possuía
peculiaridades que nos auxiliaram a pesquisa acerca da construção da imagem de
Maria Madalena e fizemos referência explícita ao fato dela afirmar que de nossa
personagem saíram sete demônios. Admito que durante a exegese fiquei tentada a
aprofundar a pesquisa a respeito dos demônios dos quais Maria Madalena foi li-
74
berta, mas aprendemos com os mestres que nem sempre nossos interesses coin-
cidem com a orientação do texto a ser interpretado e em nossa exegese percebe-
mos que os eventos centrais eram a cura e a diaconia.
A referência aos demônios dos quais Maria Madalena foi libertada, entre-
mentes, foi utilizada para a criação da Madalena prostituta, eterna penitente arre-
pendida. Assim, achamos importante incluir alguns ainda que parcimoniosos co-
mentários a respeito do tema.
A Tradução Ecumênica da Bíblia, em comentário a nossa perícope, explica o
número sete:
"A idéia de que vários demônios podem possuir a mesma pessoa se encontra tam-
bém em 8,27.30 e 11,26. Isso deve ser uma representação judaica para significar o
poder da influência de Satanás sobre o possesso (sobretudo com o número sete
que significa a plenitude). Para Maria de Magdala, Lc não esclarece se se trata de
doença ou de possessão, nem se ela é a pecadora de 7,36-50 como às vezes se
pensou". (o destaque não consta do original)
Lancellotti e Boccali, em seus comentos ao trecho pertinente a nossa períco-
pe, afirmam que "o número sete significa particular intensidade da presença diabó-
lica" (p. 98). Mas nesse mesmo comentário encontramos uma informação muito in-
teressante: "Madalena: (...) Com toda probabilidade não é a pecadora anônima da
narração precedente, pois jamais no Evangelho a possessão diabólica é apre-
sentada como condição pecaminosa". (o destaque é nosso)
Camargo-Moro vai além e, como veremos no capítulo referente aos apócri-
fos, encontra uma explicação gnóstica para os demônios:
Os "sete demônios" citados no versículo de Lucas com certeza não se referem a
enfermidades ou coisas malignas, mas sim aos sete defeitos capitais, as influências
astrais, dos quais Maria Madalena se libertou quando seguiu o caminho do Cristo.
Nesse sentido, ela representa a purificação alcançada pelo trabalho espiritual, condi-
ção para que depois possa receber a Gnose e transmiti-la ao mundo. Ela não é a
"nascida Virgem", mas a "tornada Virgem". É a Alma purificada para seu retorno à
Divindade.
75
Devemos concluir, então, que o ponto nodal da nossa perícope não é ape-
nas a cura das mulheres de "espíritos maus e de doenças", mas trata-se sim de
uma cura de todos os males, de uma cura integral em todos os níveis, de uma mu-
dança de paradigmas, da libertação total que somente o Cristo pode trazer.
Não estamos tratando, portanto, de uma devassidão moral ou de um caso de
prostituição como uma parte da igreja ocidental irá querer nos fazer crer a partir do
quinto século. Ao contrário disso, vimos que na tradução proposta para Lc 8,1-3
nossa personagem, liberta, exerce um nobilíssimo papel naquela comunidade de
cristãos originários. E antes disso analisamos todos os demais versículos bíblicos
que a ela se referiam e nenhum deles nos autorizou a fazer sequer uma única su-
posição que maculasse seu perfil. Como, então, essa imagem de pecadora se for-
ma? Tentemos responder a seguir.
4. Apóstola vilipendiada: a construção patrística
Desde a época de Gregório Magno a igreja ocidental, na tradição, na liturgia,
nas lendas, na arte e na devoção popular, identifica Maria Madalena com Maria de
Betânia, irmã de Lázaro e Marta, e também com a anônima “grande pecadora”.
Não era esta, no entanto, a imagem de Maria Madalena assumida pelas co-
munidades cristãs primitivas e, desde o início, pela Igreja Ortodoxa. Para eles, ela é
a Apóstola, discípula do Cristo, testemunha de sua Paixão e Ressurreição. Assim,
para a igreja oriental Maria Madalena sempre foi - e assim permaneceu - uma dis-
cípula especial do Cristo.
Também para as comunidades cristãs gnósticas Maria Madalena era especi-
al: era a encarnação da Sabedoria Celeste (sofia, em grego). O gnosticismo era um
76
movimento religioso (não uma religião única e identificável) e filosófico, amplo (po-
pular em todo o mundo greco-romano, nos séculos I e II), multifacetado e difuso
(permeando muitas outras religiões e filosofias). Apesar de poderem diferir em al-
gumas preferências ou avaliações subjetivas sobre importâncias relativas, os gnós-
ticos caracterizavam-se basicamente por clamarem possuir ou procurarem algum
tipo de conhecimento secreto (gnose) sobre a natureza do universo e da existência
humana.
A tênue fronteira entre o cristianismo e a gnose levou ao enfrentamento entre
as doutrinas cristãs-gnósticas e os pais da igreja. Lohse (2000, p. 243) destaca:
Desde a época da Igreja primitiva, o fenômeno do gnosticismo é altamente discutido.
Os padres da Igreja polemizavam tenazmente contra os gnósticos, que defendiam
uma doutrina antimundana, uma especulação mitológica e, muitas vezes, uma ética
libertina. Acusavam-nos de separar o Deus do Antigo Testamento do Pai de Jesus
Cristo e de falsificar a pregação cristã. O gnosticismo parecia ser um grupo de heré-
ticos que devia ser afastado da Igreja.
O cristianismo "oficial" nascente entrou em franco conflito com o gnosticismo.
Quanto mais Maria Madalena era reverenciada pelas comunidades gnósticas, mais
a igreja de Roma a transformava no epíteto da mulher caída. De mensageira do
evangelho ela vai se tornando o símbolo da mulher que a sociedade da época
adotava: do século III em diante, as mulheres não tem participação ativa na co-
munidade cristã sob o domínio de Roma, e esta passa a se basear em um triunvi-
rato masculino de bispos, sacerdotes e diáconos. Elas estão marcadas pelo pecado
original e são exemplos de impureza. Apenas Maria, a mãe de Jesus, tem o seu
status inalterado, passando a englobar em si todas as características positivas dos
mistérios femininos.
E a imagem de pecadora vai se consolidando, amalgamando dois ou três
personagens bíblicos femininos diferentes no perfil de Maria Madalena. Vejamos,
77
então, como se deu a junção da imagem de Maria Madalena com a pecadora sem
nome apresentada em Lc 7,36-50, as irmãs de Betânia de Lc 10,38-42, e a mirrófo-
ra citada por Jo 11, 1-2.
Em Lucas 7,36-38 temos a descrição da cena em que uma mulher lava os
pés de Jesus na casa de um fariseu:
"Um fariseu convidou-o a comer com ele. Jesus entrou, pois, na casa do fariseu e re-
clinou-se à mesa. Apareceu então uma mulher da cidade, uma pecadora. Sabendo
que ele estava à mesa na casa do fariseu, trouxe um frasco de alabastro com perfu-
me. E ficando por detrás, aos pés dele, chorava; e com as lágrimas começou a ba-
nhar-lhe os pés, a enxugá-los com os cabelos, a cobri-los de beijos e ungi-los com o
perfume".
O fariseu acha estranho um profeta se deixar tocar por uma pecadora, porém
Jesus conta a parábola do credor, para provar que quem tem mais pecados, mais
merece ser perdoado. Cristo diz que a mulher ama mais porque deve mais, e seu
amor a salva.
Primeiramente é imprescindível verificar que em nenhum dos versículos des-
se trecho o nome de Maria Madalena é citado. Porque, então, haveria de ser ela a
personagem dessa perícope? Seu nome somente vai aparecer na perícope se-
guinte, exatamente aquela que foi objeto de nossa detalhada exegese: Lc 8,1-3.
Em segundo lugar, ressaltemos o fato que, nenhum momento, o texto diz
tratar-se de uma prostituta, mas de uma pecadora. Este termo pode ser utilizado
para qualquer pecado moral, não necessariamente um pecado "da carne". Por traz
da afirmação de que era uma prostituta temos um preconceito e um fato histórico.
Um preconceito, quando se presume que o pecado da mulher deveria estar ligado
ao sexo; um fato histórico porque, dentre os judeus daquela época, apenas as
prostitutas usavam seus cabelos soltos. As demais mulheres usavam seus cabelos
presos em sinal de respeito, e não os exibiam em público. A conseqüência disso
78
seria que apenas uma prostituta soltaria seus cabelos para lavar os pés do Cristo.
Acreditamos ser essa a origem dos longos cabelos na hagiografia e na iconografia
da Madalena!
Em Lc 10,38-42 vemos que Marta e Maria moram em Betânia e recebem
Jesus quando Este vem ao povoado. Enquanto Marta se ocupa dos afazeres da
casa, Maria fica aos pés do Mestre ouvindo-O. Quando Marta reclama, Jesus lhe
diz que ela se inquieta e se agita com muitas coisas, sem perceber que apenas
uma coisa é necessária, e que Maria escolheu a melhor parte. Durante muito tempo
esse texto foi utilizado pela igreja para distinguir as duas formas de adoração a
Deus: a operativa e a contemplativa. O que percebemos porém, é que o nome de
Maria Madalena não foi mencionado no texto e que, ao contrário dela e de outras
mulheres discípulas que seguiam o Cristo ajudando-o no ministério, Marta e Maria
de Betânia parecem ser discípulas que o Mestre encontrava quando ia à cidade
delas.
A associação de Maria de Betânia (Lc 10,38-42) com a pecadora sem nome
(Lc 7,36-50) se deu através de João: "Havia um doente, Lázaro, de Betânia, povoa-
do de Maria e de sua irmã Marta. Maria era aquela que ungira o senhor com l-
samo e lhe enxugara os pés com seus cabelos". (João 11,1-2).
Também em João 12,1-8 vemos que, seis dias antes da páscoa, Jesus vai a
Betânia. Lá, em um jantar, enquanto Marta e Lázaro servem, Maria unge os pés do
senhor com perfume e os enxuga com os cabelos. É então admoestada por Judas
por causa do preço do perfume e Jesus diz-lhe para deixá-la em paz.
A mesma história é contada em Mateus, porém com outra personagem femi-
nina, dessa vez não nomeada, e em outra circunstância: "Estando Jesus em Betâ-
nia, em casa de Simão, o leproso, aproximou-se dele uma mulher trazendo um
frasco de alabastro de perfume precioso e pôs-se a derramar sobre a cabeça de
79
Jesus, enquanto ele estava à mesa" (Mt 26,6-7).
Os discípulos ficam indignados pelo desperdício. Jesus então os adverte
para não a aborrecerem, pois sempre terão os pobres consigo e Ele um dia irá em-
bora: "Derrubando este perfume sobre o meu corpo, ela o fez para me sepultar. Em
verdade vos digo que, onde quer que venha a ser proclamado o evangelho, em
todo o mundo, também o que ela fez será contado em sua memória" (Mt 26,12-13).
A conexão com Maria Madalena mirrófora então estava feita. Se ela foi até o
sepulcro para ungir o corpo do Senhor; se em João e Mateus está escrito que a
mulher que ungira Jesus durante a ida à Betânia seria lembrada por ungi-lo, prepa-
rando-o para a morte futura, e se a mulher que lhe lavou os pés em Lucas também
O ungira, então todas são a mesma pessoa: Maria Madalena era também Maria de
Betânia e era a prostituta do texto de Lucas.
E nem precisamos volver à discussão acerca dos sete demônios da Madale-
na, utilizada para corroborar essa tese, pois já ultrapassada no item anterior.
Em si, essa associação em nada desmerece o nome de Maria Madalena,
pois todas essas mulheres possuem um papel edificante e de profundo amor ao
Cristo, seja quais forem suas origens, suas estórias, suas dores, suas culpa. Todas
as cenas narradas são de devoção ao Senhor. O ponto nodal da questão é que não
se trata das mesmas personagens. E todas elas sofrem o reflexo dessa adultera-
ção, pois perdem suas estórias singulares e suas identidades individuais, fundindo-
se numa única personagem fictícia.
A partir do século IV a vinculação entre elas ficou mais forte, quando a vir-
gindade passa a ser encarada pela igreja não mais apenas no seu aspecto espiri-
tual, mas principalmente no aspecto sico. Maria, mãe de Jesus, torna-se então o
paradigma da perfeição espiritual, e Maria Madalena um exemplo de mulher porta-
dora de pecado, necessitando portanto de eterna penitência.
80
Desde então o celibato começa ser cada vez mais exigido do clero. O Concí-
lio de Elvira, em 305, instruiu todos aqueles que participassem do cerimonial do al-
tar a manterem total abstinência de suas esposas. Em 325, o Concílio de Laodicéia
proibiu as mulheres de servirem como sacerdotes e de possuírem paróquias, e em
425, o Concílio de Cartago, que contou com a presença de Agostinho, decretou que
todo o alto clero deveria se separar de suas esposas, sob pena de perder seus di-
reitos sacerdotais.
Este ponto de vista não era corroborado, porém, pela igreja do oriente. Vári-
os escritores orientais saudaram o papel de Madalena durante os fatos da Páscoa,
vendo-a como uma mulher honrada e não como Eva amaldiçoada.
Camargo-Moro (2004), em sucinta e esclarecedora retrospectiva, relembra
os escritos de diversos patriarcas orientais: Cirilo de Alexandria, mesmo sendo ár-
duo acusador dos gnósticos nestorianos, em 444 dizia que as mulheres eram du-
plamente honorificadas: porque através de Maria Madalena, sua representante, to-
das as mulheres foram perdoadas pela transgressão de Eva; e porque uma mulher
foi testemunha da ressurreição. Proclus, patriarca de Constantinopla, em 446, tam-
bém afirma que as mulheres foram escolhidas para avisar os apóstolos, para serem
honorificadas. Gregório de Antióquia, em 593, as chama de as "primeiras apósto-
las"; e Modestus, patriarca de Jerusalém, em 630 acreditava que Maria Madalena
havia morrido virgem e mártir, e fora líder das discípulas.
A mesma autora pontua também que no ocidente grassava a confusão, e
que Agostinho era um dos poucos a encará-la como a mulher mais importante dos
evangelhos, separando-a das demais personagens femininas, em seu escrito "A
Harmonia dos Evangelhos". Em Liber de vita eremítica ad sororem, Agostinho diz o
seguinte sobre o Noli me Tangere no evangelho de João (2004, p. 59):
"Mas por que, ó Jesus amável, rejeitas desta maneira dos teus santíssimos e dese-
81
jabilíssimos pés aquela que te ama? Que palavra dura! Ele diz: Não me tocar. Mas
por que, Senhor? Por que não deveria tocar aqueles teus pés tão desejados, por
mim transpassados pelos pregos e cobertos de sangue? Não deveria tocá-los, não
deveria beijá-los? Ou talvez é menos amigo porque mais glorioso? E Ele: Não me to-
car. Não temas; esta alegria não lhe é tirada, mas postergada: no entanto, e
anuncia a meus irmãos que ressuscitei. Ela corre depressa, desejosa de voltar".
Ainda Camargo-Moro (2004) afirma que era, porém, do interesse da igreja de
Roma cada vez mais expansionista, caracterizar a necessidade de se combater o
pecado, principalmente o que grassava nas terras consideradas pagãs. O Papa
Gregório I (540-604 D.C.), em cujo pontificado a Inglaterra foi convertida ao cristia-
nismo, utilizou muito esse conceito como forma de justificar o trabalho da Igreja
nesses países, e como forma de mostrar que as mazelas do mundo eram causadas
pelos pecados dos homens. Dessa maneira, apenas a Igreja Católica de Roma se-
ria a portadora da salvação. Foi em um sermão seu para o povo de Roma, que
passava por enormes dificuldades devido à fome, à guerra e à peste, que ele utili-
zou o exemplo de Maria Madalena como a prostituta que se arrependeu, e por
isso foi curada, passando o resto da vida em penitência. Esse exemplo foi utilizado
como forma de demonstrar que o povo necessitava de e penitência. Foi nesse
sermão que Gregório pontificou que Maria Madalena, Maria de Betânia e a pecado-
ra de Lucas eram a mesma mulher. Maria Madalena perdeu então, sua posição de
Apóstola dos Apóstolos, e se tornou o exemplo da perdição do mundo.
A partir do século X, inúmeras "Vidas" de Maria Madalena foram escritas.
Camargo-Moro (2004, p. 60) cita Honório de Autun e seu Speculum Ecclesiae, um
trabalho centrado sobre o pecado, a misericórdia divina e a penitência, que a des-
creve como uma adúltera, que se tornou uma meretriz, sendo salva apenas pela
clemência de Jesus. Tanto ele como Gregório Magno a descrevem como escrava
da luxúria, ao contrário de Marta, sua irmã. Após a morte do Cristo, Maria passaria
o resto de sua vida em penitência, morando em uma gruta.
82
A pesquisadora também ressalta uma questão óbvia: o problema de ajustar
o fato de Maria ser denominada através de duas cidades diferentes: Magdala e
Betânia. Esse problema foi resolvido no século XII, quando Jacopo de Varazze
(2003, p. 534), em seu Legenda Áurea, diz que ela era oriunda de uma família rica
de Betânia, que morava em um castelo chamado Magdala. Com a morte dos pais,
Marta teria herdado a vila de Betânia e ela o castelo, daí o seu nome.
Assim, uma mulher é esculpida utilizando-se numerosas páginas do Evan-
gelho que se referem a pessoas diferentes: a anônima pecadora que unge os pés
de Cristo com óleo perfumado; Maria de Magdala, fiel aos pés da cruz, a primeira
testemunha da Ressurreição no dia da Páscoa, e por fim, Maria irmã de Lázaro,
que João sobrepõe à protagonista da unção. A Igreja oriental sempre sustentou a
existência de três personagens independentes, mas a tradição ocidental as fundiu,
cosendo com um único fio alguns quadros da vida de Jesus. Mas os estudiosos
confrontam esta fusão e a crítica abriu o livro sagrado para atribuir a cada figura a
sua identidade.
Embora a maioria dos estudiosos do Novo Testamento esteja, muito tem-
po, concorde com a posição da Igreja oriental, que distingue as três mulheres, esta
identificação ainda perdura no imaginário popular e essa visão destorcida que per-
corre os séculos, para muitos chega até nossos dias. Assim, Maria Madalena, uma
das mais importantes figuras femininas dos evangelhos, uma das mais conhecidas
mulheres do imaginário cristão, tem o significado de seu papel e de sua obra adul-
terado dentro da tradição cristã católica ocidental.
Uma parcela da cristandade, todavia, jamais admitiu essa incoerência. Além
da igreja ortodoxa oriental, também os gnósticos nunca aceitaram esse vilipêndio.
Para eles, Maria Madalena era a discípula perfeita, a encarnação da Sabedoria, a
companheira do Senhor. E como o Segundo Testamento nos fala tão pouco de Ma-
83
ria Madalena, essa Maria que descobrimos Apóstola, vejamos também o que os
apócrifos gnósticos têm para nos mostrar.
II. MARIA MADALENA: SOFIA DOS GNÓSTICOS
1. Apócrifos. O espólio dos vencidos
pouco mais de dois séculos as areias do deserto começaram a devolver
alguns papiros de outrora.Talvez desejosas de nos dar respostas, ou talvez porque
o tempo tivesse se completado, abriram-se antigos escaninhos e não mais pararam
de vir a lume textos dos cristãos de épocas remotas. Em vários desses códices Ma-
ria Madalena aparece como personagem. Em alguns, Maria Madalena fala.
Inúmeros estudiosos têm se debruçado sobre os escritos milenares ora des-
cobertos, não raro embasbacados pela enorme variedade dos textos, vários deles
em muito diferentes daqueles que se encontram na Bíblia cristã. Muitos textos eram
até então desconhecidos; de outros se sabia da existência tão-somente por refe-
rências expressas em escritos da antiguidade que sobreviveram; de alguns se
conheciam pequenos excertos ou cópias com redações pouco ou muito diferencia-
das. Diversas são as origens dos textos encontrados e muitos foram os caminhos
84
trilhados até a redação cuja leitura hoje nos é permitida. Infelizmente, nunca pode-
remos afirmar que temos em mãos um texto de um testemunho original. Mesmo
assim trata-se de pérolas de valor inestimável.
Por obra e graça dessas descobertas, inúmeros são os textos dos primórdios
do cristianismo que hoje conhecemos. E os conteúdos dos pergaminhos que estão
vindo à tona são muito diversos. E eles nos falam de muitas coisas. Em face desta
variedade, o interesse por cada manuscrito é desigual. Alguns foram bastante
estudados; outros carecem de pesquisas mais acuradas. Dentre os últimos, encon-
tra-se um papiro com nome de mulher: Evangelho de Maria. Não somente um novo
evangelho. Mas um evangelho com denominação feminina. E até então desconhe-
cido. E mais: este evangelho fala da alma, do espírito, do nous. É algo novo. E fala
pela boca de uma mulher. De Maria Madalena. A par do evangelho, encontramos
também outros textos que falam de Míriam de Magdala.
São os textos apócrifos (do grego apokryphos ou "oculto") que menciona-
mos. Em alguns casos, podem ser mais antigos que os canônicos. Eles têm um
texto mais livre e sofreram menos censura e acabamento no decorrer dos anos.
Não são reconhecidos pela igreja católica e foram banidos pelo concílio de Nicéia
em 325.
Os estudiosos não são unânimes na apreciação dos textos apócrifos do Se-
gundo Testamento. Faria (2003, p. 19) diz que, para uns, eles são simplesmente a
expressão da piedade popular sobre Jesus, produzida no segundo século do cristi-
anismo, e nada acrescentam àquelas conservadas nos textos canônicos; ao contrá-
rio, eles deturpam o sentido exato dos dados. Para outros, alguns textos apócrifos,
como por exemplo parte do evangelho de Tomé, datado no ano 50 da Era Comum,
poderiam nos aproximar mais da mensagem de Jesus, isto é, sem a interpretação
85
da comunidade. E mesmo que não fossem datados do primeiro século, esses tex-
tos conservam dados importantes da memória popular sobre Jesus e seus seguido-
res/as.
Discussões entre estudiosos da Bíblia sobre a importância dos apócrifos não
faltam e as opiniões vão de um extremo ao outro. Para compreendermos os dife-
rentes enfoques e suas acaloradas justificativas, bem como para apreciarmos sua
validade, é necessário conhecermos o percurso histórico dos apócrifos e a pesqui-
sa atual sobre eles.
Não é simples definir o termo grego "apócrifo" (apókryphos). Segundo os
estudiosos, apócrifo é tradução do substantivo hebraico ganûz, que designa os li-
vros não usados na liturgia. Mas o termo é utilizado em uma acepção muito mais
vasta. De acordo com Faria (2003, p. 18),
historicamente, muitas foram as definições do termo apócrifo, a saber:
. algo precioso e, por isso, mantido em segredo;
. texto não usado oficialmente na liturgia das primeiras comunidades cristãs;
. texto conservado escondido por ter conteúdo não aceito;
. texto de origem desconhecida;
. texto falso ou falsificado no conteúdo ou título;
. livros de uso restrito por leitores de uma determinada corrente de pensamento;
. textos não inspirados e, por isso, não canônicos;
. livros parecidos com os considerados canônicos, mas com estilos literários diver-
sos;
. textos que complementam o conteúdo, o sentido dos escritos canônicos, isto é, os
escritos considerados inspirados e que, por isso, fazem parte da Bíblia. Esses textos
podem, até mesmo, oferecer dados esquecidos ou pontos de vista diferenciados dos
que permaneceram oficiais.
A multiplicidade de textos que cabem no conceito por si demonstra a ri-
queza com que nos deparamos nos escritos apócrifos. Muitas obras fantásticas fo-
ram escritas sobre Jesus e seu movimento. Mas a disputa teológica necessitava
impor a visão dominante e então a tradição arvorou-se o direito de considerar al-
gumas obras como inspiradas e outras não. Estas foram chamadas de apócrifas e
86
não raro perseguidas como heréticas.
Muitas, e diversas, foram as motivações desses escritos, pois cada autor, e
cada comunidade, tinham sua própria visão do evento Jesus. Faria (2003, p. 24)
enumera algumas motivações específicas para os escritores considerados apócri-
fos:
a) o desejo de ampliar as informações sobre a pessoa de Jesus;
b) a necessidade de sanar a curiosidade dos cristãos sobre a vida de Jesus, de Ma-
ria, de José, dos apóstolos;
c) a tentativa de fazer valer a diversidade de pensamento que existia no início do
cristianismo;
d) exagerar na narrativa de fatos reais da vida de Jesus e de seus seguidores para,
com isso, enaltecer ou desmerecer o papel exercido por um ou outro personagem do
seu movimento.
Para Faria (2003, p. 28), os evangelhos apócrifos podem ser divididos em
dois grupos: o primeiro, preocupa-se com o Jesus ressuscitado e glorioso que apa-
rece aos discípulos e discípulas para dar-lhes as instruções e ensinamentos que
eles deveriam anunciar; o outro tem a intenção de contar a história de Jesus, mui-
tas vezes de forma bem fantasiosa. Esses exageros são creditados a uma fé pie-
dosa e devem ser compreendidos no âmbito da popular. Faria (2003, p. 30) assi-
nala que o apenas os evangelhos apócrifos devem ser compreendidos sob essa
ótica de interpretação, mas também outros textos e livros canônicos do Segundo
Testamento. Ele cita o italiano Luigi Moraldi, estudioso dos apócrifos, que afirma:
Depois da redescoberta da literatura apócrifa, alguns estudiosos apresentaram a hi-
pótese segundo a qual uma parte da literatura apócrifa do Novo Testamento seria
superior aos livros canônicos, e os evangelhos apócrifos mais antigos seriam os ins-
piradores dos evangelhos canônicos. Uma reação, talvez excessivamente violenta,
contra essa posição teve, ao menos em parte, o efeito de desprezar toda a literatura
apócrifa. Hoje se verifica a volta a uma posição equilibrada.
É certo que devemos ser cautelosos ao nos aproximarmos de um texto. De
qualquer texto. Mas devemos também ser abertos em relação ao que vamos en-
87
contrar. Heidegger (1997) afirma que devemos dialogar com o texto e nos alerta
para nossos conceitos prévios. Gadamer (2002, p. 73) nos ensina a dar o devido
"valor à figura vinculante" da tradição. Com relação aos textos não-canônicos, o
próprio Faria (2003, p. 24) afirma: "Com o passar dos anos, muitos apócrifos foram
desprezados por grupos e pessoas importantes das comunidades e, por isso, mui-
tos deles seguiram o caminho da separação do pensamento oficial das Igrejas".
É um contra-senso, todavia, simplesmente renegar os apócrifos, sem sequer
lhes dar ocasião de se expressarem. Eles representam o pensamento de uma parte
da primitiva - no sentido de primeira origem - cristandade, mesmo que contenham
passagens para nós inverossímeis. porque eles não entraram no cânon não
deixam de ser inspirados. Todo texto que fala de Jesus, seja ele canônico ou apó-
crifo, merece ser abordado e interpretado de forma crítica, responsável, respeitosa.
Fazendo eco a inúmeras vozes que hoje se levantam, Faria (2003, p. 25) é
taxativo em defesa da legitimidade e da importância do conhecimento dos textos
apócrifos, utilizando para tanto os seguintes argumentos:
a) os apócrifos devem ser analisados no contexto das comunidades que procuravam
definir os critérios da inspiração. Não são uma corrente à parte que procura dividir a
comunidade pela diversidade de sua visão sobre os personagens bíblicos;
b) os apócrifos ajudaram a construir a literatura cristã nos seus vários gêneros literá-
rios;
c) a Igreja primitiva deve muito ao esforço dos cristãos em escrever sobre as diver-
sas maneiras de viver e compreender Jesus e sua mensagem na Igreja nascente.
Por esse motivo, mais que considerar os apócrifos falsos, vale a pena lê-los com um
olhar crítico e ecumênico;
d) os apócrifos elucidam a devoção popular a Maria e José, bem como ajudam a eli-
minar preconceitos criados historicamente em relação a Maria Madalena;
e) os apócrifos gnósticos de Nag Hammadi nos possibilitam conhecer a gnose e sua
relação com as origens do cristianismo. Os gnósticos influenciaram na formação da
teologia do cristianismo emergente. O evangelho de João tem indícios claros de pen-
samento gnóstico. O evangelho de Maria Madalena tem pontos comuns com o evan-
gelho de João, mas não foi considerado inspirado.
88
A apaixonada opinião de Faria (2003, p. 19) acerca da importância dos apó-
crifos no mínimo nos faria pensar:
Nós preferimos considerar os apócrifos como preciosidades mantidas em segredo
que nos revelam dados importantes, os quais complementam a história dos cristia-
nismos de origem. O estudo dos apócrifos, sobretudo os do Segundo Testamento,
nos permite compreender o esforço dos primeiros cristãos para seguir a Jesus, o
que, certamente, não deixou de ocasionar dificuldades no relacionamento entre as li-
deranças.
Faria (2003, p.27) ainda nos alerta para o paralelo entre o período de produ-
ção da literatura apócrifa e a rabínica:
Os apócrifos do Segundo Testamento, considerando-se as controvérsias entre os
estudiosos, podem ser datados desde o ano 50 ao ano 600 da E.C. Esse fato coloca
a literatura apócrifa em relação à literatura rabínica (séc. II ao VI E.C.). Os rabinos de
linha farisaica, facção que subsistiu à guerra do ano 70 contra os judeus, procuraram
reformular o judaísmo. Sem templo, Jerusalém destruída, a Torá na diáspora uniu o
povo judeu. A literatura oral judaica foi colocada por escrito no tratado que levou o
nome de Mishná, por volta do ano 220 da E.C. Os cristãos, de origem judaica ou
não, por sua vez, foram sedimentando a em Jesus como releitura da Torá. A lite-
ratura apócrifa cristã surge também nesse contexto.
Trebolle Barrera (1996, p. 593) concorda com esta datação:
Quando são escritos os livros do NT, a Torá escrita e a Torá oral não tinham alcan-
çado ainda o ponto de cristalização definitiva. A grande liberdade com que o NT faz
uso do AT corresponde melhor a esta etapa do judaísmo que à da época rabínica
posterior. Os primeiros cristãos utilizavam os princípios e métodos da exegese judai-
ca, com uma única diferença, embora determinante: a leitura "cristológica" do AT.
Referindo-se ao entrelaçamento temporal na produção da obras canônicas e
as apócrifas, Trebolle Barrera (1996, p. 274) afirma:
A discussão das questões relativas ao cânon do NT ficou freqüentemente nas mãos
dos estudiosos de patrologia, história da teologia e história da Igreja. O biblista ou o
teólogo do NT consideravam, em geral, terminada sua tarefa quando, desde a pers-
pectiva histórica, se chegasse ao estudo da última obra incorporada no corpus neo-
testamentário (a segunda Carta de Pedro), ou quando desde o ponto de vista teoló-
89
gico chegassem ao momento crítico da "morte do último apóstolo", momento em que
a Escritura cederia lugar para a Tradição da Igreja como a uma nova fonte de revela-
ção. Este hiato temporal entre escritos neotestamentários e escritos dos Padres
apostólicos, entre época apostólica e época "subapostólica", é absoIutamente artifi-
cial, da mesma forma que o corte literário entre literatura canônica e literatura apó-
crifa.
O mesmo autor acentua que o descobrimento da biblioteca gnóstica de Nag
Hammadi reavivou o interesse pelo estudo do cânon do Segundo Testamento as-
sim como a descoberta de Qumrã reavivou o interesse pelo cânon do Primeiro
Testamento e, conseqüentemente, pela literatura apócrifa. Ele admite que "põe-se
hoje maior acento na pluralidade e na diversidade de escritos que compõem o NT,
tanto em sua estrutura como em sua formação diacrônica e em seu significado te-
ológico" (Trebolle Barrera, 1996, p. 275).
Ele também assevera que esses descobrimentos mudaram a perspectiva
histórica a partir da qual se estudava o cânon neotestamentário, que deixa de ser
centrada nas decisões conciliares sobre a lista dos livros canônicos e deve ser diri-
gida para o lento processo desse estabelecimento, situado dentro do contexto de
formação da teologia cristã e da história da Igreja nos primeiros séculos.
Citando Käsemann, Trebolle Barrera (1996, p. 275) vincula a questão do câ-
non e conseqüentemente, dos apócrifos, a um aspecto essencial da definição do
ser cristão:
Finalmente, a questão do cânon converteu-se numa questão crucial da teologia
atual, decisiva, para nada menos que uma definição do ser cristão em geral e do
modo de ser cristão próprio de cada uma das grandes confissões e igrejas cristãs
(Käsemann). Os problemas históricos aparecem deste modo intimamente relaciona-
dos com os teológicos.
A pesquisa atual sobre os textos não-canônicos nos desautoriza nos acer-
carmos deles com conceitos prévios desairosos. Devemos respeitá-los como porta-
dores de mensagens que, se não representavam as idéias da corrente vencedora
90
no embate teológico dos primórdios do cristianismo, nem por isso deixaram de ex-
pressar as idéias de inúmeras comunidades dos cristianismos originários. Portanto,
se os escritos apócrifos têm algo a nos dizer sobre Maria Madalena, iremos ouvi-
los.
2. Gnosticismo. Uma teologia diferente
O delineamento do perfil de Maria Madalena na literatura apócrifa não pode
deixar de ser estudado à luz do gnosticismo, que a esmagadora maioria dos es-
critos da biblioteca apócrifa que se refere a ela são oriundos dessa corrente de
pensamento filosófico-religioso, na qual Maria de Magdala aparece em refulgente
roupagem.
Para Leloup (1999, p. 10), “a gnose é a dupla lucidez em relação à condição
humana, dupla consciência que contempla, em um único olhar, o absurdo e a gra-
ça”. Na mesma página, complementa, com a costumeira veia poética: “Os gnósti-
cos afirmavam a possibilidade de uma integração de nossas polaridades masculi-
nas e femininas em um homem total que ama, não a partir de suas carências, mas
a partir de sua plenitude”.
Lohse (2000, p. 243) diz que "por muito tempo, os estudiosos consideraram
o gnosticismo como fenômeno intra-eclesial, nascido do encontro entre o cristia-
nismo primitivo e o mundo helenístico, pertencente à história das seitas cristãs".
Mas isso não corresponde ao que hoje se sabe. Ele próprio continua:
o gnosticismo não pode ser considerado exclusivamente como uma formação religio-
sa dentro da história da Igreja antiga, mas representa um movimento do mundo he-
lenístico, amplamente ramificado. Esse movimento aceita influências de diversas re-
ligiões e correntes espirituais, difundindo-se antes e durante o cristianismo primitivo.
Logo depois, vinculou-se de múltiplas maneiras a elementos cristãos, levando à for-
mação de número maior de comunidades cristãs-gnósticas.
91
Trebolle Barrera (1996, p. 645-646) ecoa esta mesma amplitude, e situa a
gnose em um amplo contexto, fazendo-nos compreender sua importância no siste-
ma de pensamento do mundo antigo:
Para compreender a gnose e suas origens é preciso partir de uma perspectiva mais
ampla, que abarque o âmbito global da história das religiões da antiguidade. Nesta
perspectiva hão de entrar o judaísmo, helenismo, cristianismo, samaritanismo, plato-
nismo e o mundo grego em geral, do qual faz parte o sincretismo da “antiguidade
tardia” em todas as suas formas, sem esquecer influências egípcias, persas e meso-
potâmicas.
Para Echegaray et alii (2000, p. 345), as origens do gnosticismo são anterio-
res ao cristianismo:
As religiões mistéricas prometiam ao homem a salvação mediante a iniciação; a gno-
se pretende o mesmo, porém através do caminho do conhecimento. As origens da
corrente gnóstica são certamente pré-cristãs, embora seja muito difícil estabelecer
com precisão que elementos provêm de cada uma das fontes que podem reconhe-
cer-se nos sistemas gnósticos posteriores.
Os elementos judaicos dentro de alguns dos sistemas gnósticos são evidentes, o
mesmo sucedendo com os elementos cristãos.
Lohse também admite que o gnosticismo é anterior ao cristianismo e que,
como um amplo movimento, acompanhou o cristianismo primitivo. Para ele, "o
Novo Testamento testemunho da existência de um gnosticismo pré-cristão, am-
plamente difundido" (2000, p. 257).
Faria (2003, p. 14) apresenta resumo do "modo de pensar" dos gnósticos:
. a salvação é adquirida pelo profundo conhecimento (gnose) teórico de si e, simulta-
neamente, de Deus;
. a ignorância é uma forma de autodestruição;
. a tarefa do ser humano consiste em buscar, com muito esforço, a gnose;
. ao gnóstico, para obter a salvação, basta conhecer e crer que o Filho de Deus veio
a este mundo;
. para ser perfeito o homem precisa fundir sua alma com a divindade e nisto consiste
a gnose;
. a natureza divina de Cristo transcende o sofrimento;
. o sofrimento não tem sentido;
92
. o ser humano sofre não por causa do pecado, mas por sua ignorância;
. a alma é prisioneira da matéria;
. quem recebe o espírito comunica-se diretamente com Deus;
. a libertação do ser humano ocorre não por processos históricos, mas de forma inte-
rior;
. as mulheres atuavam no movimento gnóstico como mestras, profetisas, sacerdoti-
sas.
Dando a devida importância ao tema, Trebolle Barrera (1996, p. 642-648)
dedica todo um capítulo de seu livro para explicar as conexões da literatura gnósti-
ca com a judaica, denominando-o O Gnosticismo e a interpretação gnóstica da Bí-
blia”. Por estar intrinsecamente vinculado ao nosso estudo, resumiremos seu arra-
zoado, que cobre sete páginas, aos próximos seis parágrafos, focando nos aspec-
tos que mais nos interessam.
Conexões da literatura gnóstica com a judaica e em especial com o AT de-
ram fundamento à tese da origem judaica da gnose. Os autores dos primeiros tex-
tos gnósticos eram, conforme esta tese, intelectuais judeus dissidentes, abertos às
correntes do sincretismo helenístico. Segundo Harnack, o gnosticismo foi o resulta-
do de uma intensa helenização ou “mundanização” do cristianismo.
A tendência atual orienta-se, ao contrário, para a tese que a origem e desen-
volvimento da gnose foram independentes do cristianismo. Os descobrimentos de
Nag Hammadi puseram fim à idéia de que o gnosticismo tinha sido no início uma
heresia cristã. Pode-se afirmar que o cristianismo e o gnosticismo são religiões in-
dependentes, enraizadas as duas numa terceira, o judaísmo, e que o cristianismo
esteve a ponto de ser engolido pelo gnosticismo.
A gnose e o cristianismo eram irreconciliáveis. Contudo, na busca de uma
forma superior de conhecimento e sobretudo de uma interpretação correta da Es-
critura, quer dizer, pneumática, a gnose encontrou no cristianismo um terreno pro-
pício para a sua expansão. O gnosticismo era uma nova religião de caráter sincre-
93
tista, integrava elementos provindos do cristianismo, judaísmo, neoplatonismo, reli-
giões mistéricas, etc.
A gnose por si só, desprovida de sua união com o cristianismo em expansão,
não teria tido o êxito que teve nem teria mostrado tanto interesse pelo AT e pelo ju-
daísmo. O fator judeu no nascimento da gnose é mais indireto que direto; está
bastante condicionado pela missão cristã. O judeu-cristianismo pode desempenhar
o papel de catalisador e de intermediário entre as tradições judaicas e cristãs, por
um lado, e o gnosticismo, por outro.
Os gnósticos rejeitaram o Deus do Primeiro Testamento e por isto não viam
inconvenientes em inverter totalmente o sentido dos seus textos, apresentando
como bom o que o este Testamento tinha de mal. A utilização gnóstica do PT pode
revestir-se de formas bem variadas. Eles estabelecem uma diferença entre um
Testamento e outro: interpretam o Primeiro de modo literal, para melhor ressaltar o
mal que encontram nele, e interpretam o Segundo mediante a alegoria, da qual fa-
ziam amplo uso, para que as doutrinas gnósticas resultem compatíveis com os
textos cristãos canônicos.
Sebastiani (1995, p. 56) esmerou-se no estudo das relações entre a gnose e
Maria de Magdala. Aprofundando-se no tema, proclama:
No conjunto, os escritos sagrados da Gnose (cujo conhecimento recebeu uma con-
tribuição decisiva pela descoberta e publicação dos rolos de Nag Hammadi) revelam
uma elevada qualidade cultural e ascético-mística. Atestam também como era pro-
funda a experiência espiritual desta "lasca nobre, mas enlouquecida da cristandade"
(G. Ravasi). Muitos deles afirmam apresentarem tradições sobre Jesus que ficaram
secretas, escondidas à maioria dos fiéis, à Grande Igreja, que no II século começou
a ser chamada igreja "católica", isto é, universal. Em todos os escritos da gnose, Ma-
ria de Magdala é sempre vista intérprete ou reveladora da doutrina gnóstica (“a mu-
lher que conhecia o todo”, no Diálogo do Salvador) e como um modelo de gnóstico
perfeito, que sabe elevar-se até a plenitude da visão e do amor espiritual.
Boer (1999, p. 107), ao explanar sobre gnose, utiliza detalhada descrição
94
construída por Pheme Perkins, com base em treze trabalhos pertencentes ao gêne-
ro gnóstico:
O diálogo gnóstico consiste em um discurso de revelação estruturado por elementos
narrativos. Na introdução, o narrador fala em termos gerais sobre o lugar da revela-
ção (normalmente uma montanha, por exemplo, Monte das Oliveiras), o tempo (nor-
malmente após a ressurreição) e os receptores (em quase todos os casos são no-
mes conhecidos do Novo Testamento). O Salvador aparece para eles no momento
em que são perseguidos, proclamam o evangelho ou refletem sobre as palavras de
Jesus. Eles estão ansiosos, aflitos e confusos ou imersos na oração. O Salvador in-
troduz a si mesmo com a declaração "Eu sou", torna claro o propósito de sua vinda e
repreende os discípulos pela falta de fé.
Depois, segue-se propriamente o discurso de revelação, através das questões colo-
cadas pelos discípulos. O conteúdo da proclamação é freqüentemente formado por
informações sobre a origem do cosmos, redenção e o verdadeiro ensinamento cris-
tão (ou seja, gnóstico): por exemplo, sobre batismo, crucificação e interpretação das
escrituras (normalmente do Novo Testamento). Sem dúvida, a maior parte do discur-
so de revelação concentra-se nas questões sobre redenção.
Ao final, é dado aos discípulos a tarefa de passar o que foi aprendido para aqueles
que são merecedores ou para proteger a revelação contra aqueles que a disputam. A
reação deles é de gratidão e júbilo.
Dentre as idéias centrais da gnose, Echegaray et alii (2000, p. 346) assinala
a concepção de uma divindade completamente transcendente, compreendendo
uma polaridade masculino-feminina e reunida num matrimônio divino, que forma o
deus desconhecido, continuamente gerador e pertencente ao reino da luz. Junto a
esta idéia da atividade, temos o mito da Sofia, criadora do cosmos, através de uma
falta que produz o Demiurgo, o criador da realidade pervertida e chefe dos Arcon-
tes, que controlam os planetas e pertencem ao reino das trevas. Fundamental no
pensamento gnóstico é a idéia de dualismo, tanto na contraposição luz-trevas como
na oposição alma-corpo ou espírito-matéria e a idéia de que o homem faz parte da
deidade. Segundo uma forma de mito, a alma origina-se nas esferas celestes, po-
rém é enganada pela libido e cai através das sete esferas celestes, cada qual ar-
rancando-lhe uma de suas propriedades, até ela se encerrar no corpo que lhe serve
95
de cobertura. Ligada a estas concepções está a idéia central do salvador: pode ser
uma realidade celeste, um personagem do passado ou inclusive uma pessoa viva.
O salvador possibilita o retorno à pátria celeste, revelando a "gnosis", conhecimento
secreto transmitido pelos deuses e conservado na tradição esotérica.
Em uma belíssima imagem, Lohse (2000, p. 244) classifica a gnose de "es-
tranha formação caleidoscópica que une idéias iranianas, babilônias, egípcias e ju-
daico-veterotestamentárias com o pensamento da filosofia grega, representando
um sincretismo multicolorido".
Para Lohse (2000, p. 263-265),
os escritos neotestamentários comprovam com certeza o enfrentamento entre o
gnosticismo e o querigma cristão, em vários lugares, na segunda metade do século I
d.C. O nascimento da doutrina simoníaca na Samaria, encontrada pouco depois
também em Roma, os primórdios do movimento batista dos mandeus, o fenômeno
do entusiasmo soberbo nas comunidades de Corinto e Filipos e o conflito com dou-
trinas gnósticas na Ásia Menor e na Síria ainda pertencem ao século I d.C. Embora
não se disponha de informações sobre a origem e o estabelecimento das primeiras
comunidades cristãs no Egito, deve-se supor, com muita probabilidade, a chegada
da missão cristã primitiva ao Egito, na segunda metade do século I d.C. No século II
d.C., existia ali um número considerável de grupos cristãos-gnósticos. Torna-se difícil
determinar, a respeito destes, a diferença entre doutrina gnóstica e confissão ortodo-
xa. A abrangente biblioteca de textos cristãos-gnósticos descoberta em Nag-
Hammadi, em 1945-1946, dá testemunho de que as fronteiras religiosas entre ambos
eram muito tênues.
O enfrentamento do pensamento gnóstico foi crucial para o pensamento
cristão. Lohse (2000, p. 265), com a costumeira propriedade, assim se detém nessa
questão:
O encontro com o gnosticismo obrigou a um discernimento e a uma decisão sobre a
expressão objetivamente correta da mensagem cristã. Era necessário pregar na for-
ma de palavras e idéias correntes para tornar o Evangelho compreensível, como
resposta às questões abertas dos homens sobre o sentido da vida e da redenção.
Mas o uso dessas palavras e idéias não deveria resultar em uma modificação ou fal-
sificação do querigma cristão. Nas situações concretas, era difícil dizer de antemão
como alguém podia tornar-se judeu para os judeus e grego para os gregos sem afe-
96
tar a verdade do Evangelho. Muitas vezes, isso podia ser decidido após longa e,
de vez em quando, penosa reflexão. O desafio do gnosticismo exigia da Igreja primi-
tiva um esforço intenso para a correta compreensão e interpretação da mensagem
de Cristo, devidas a todos os homens - judeus e gregos.
Refletindo acerca da relação entre a gnose e o cristianismo, Trebolle Barrera
(1996, p. 614) assevera:
“A gnose influiu no judeu-cristianismo ou na gnose judeu-cristã, porém também em
sentido inverso o judeu-cristianismo influiu no desenvolvimento da gnose. O judeu-
cristianismo foi o elemento catalisador para o transvase de tradições judaicas e cris-
tãs ao gnosticismo.”
Para Faria (2003, p. 14), o gnosticismo era um movimento cristão de resis-
tência à institucionalização do cristianismo:
O gnosticismo foi um movimento de resistência aos cristãos que se organizavam em
uma instituição eclesial. Esta se arvorava o poder divino para direcionar o movimento
de Jesus. Um gnóstico, por acreditar na presença divina em si mesmo, não poderia,
é claro, acreditar em uma instituição humana, terrena. Assim, os gnósticos tinham
como objetivo, entre outros, ser uma alternativa à institucionalização do cristianismo.
Para um gnóstico, não havia necessidade da mediação de uma instituição eclesiásti-
ca para entrar em contato com Deus. Cada fiel poderia comunicar-se diretamente
com ele. O primado de Pedro foi, por isso, contestado e não aceito por eles. O Pri-
meiro Concílio de Constantinopla (381 E.C.) condenou o gnosticismo como movi-
mento herético (Faria, 2003, p. 15).
Como vimos, o gnosticismo realmente enfrentou o cristianismo, mas ele foi
muito mais que um movimento cristão de resistência do primeiro século.
Como um movimento filosófico-religioso com idéias diferenciadas, o gnosti-
cismo realmente foi combatido pela teologia cristã que se impôs. Mas isso não si-
gnifica que seus escritos sejam destituídos de valor ou que não expressem idéias
generalizadas entre os cristãos da época. E é com essa consciência que os esta-
mos estudando.
Lohse (2000, p. 264), ao se referir a um hinário gnóstico composto no século
II d.C., intitulado "Odes de Salomão", diz que ele "mostra de maneira impressio-
97
nante como a espiritualidade gnóstica podia se realizar e se expressar em uma
profunda e verdadeira vida de fé".
Apesar de severamente refutado, o gnosticismo sobreviveu à passagem dos
séculos. Boer (1999, p. 110), no entanto, alerta que a palavra gnose, hodierna-
mente, vincula-se somente em parte com as características específicas da gnose
antiga, que era o dualismo radical, a hostilidade com relação à matéria. E acres-
centa: “A gnose moderna é caracterizada pela noção de holismo: tudo está conec-
tado com tudo mais e existe a harmonia suprema” (1999, p. 110).
Gnose, hoje, é ao mesmo um conceito religioso e psicológico. A partir desta
visão, o significado da vida aparece como uma transformação e uma visão interior,
um processo ligado ao que hoje se conhece como psicologia profunda. O desejo
desse "conhecimento" seria uma nostalgia das origens e procede do anelo humano
de alcançar a Unidade, do desejo de fusão do homem com o Ser, do qual acredita
ter sido originado. É, no fundo, uma tentativa de compreensão das relações entre o
homem e a divindade. Significa percepção interior, processo intuitivo de conhecer-
se a si mesmo. E, para os gnósticos, conhecer-se no nível mais profundo é simul-
taneamente conhecer Deus, que na linguagem junguiana é o Self, a imagem de
Deus em nós, a finalidade do processo de individuação.
Para Jung (1996), a gnose é um conhecimento psicológico, cujos conteúdos
provêm do inconsciente. A gnose teria chegado às suas percepções através de
uma concentração da atenção sobre o chamado "fator subjetivo" que consiste, em-
piricamente, na ação demonstrável do inconsciente sobre a consciência. Ele enten-
de que assim se explicaria o surpreendente paralelismo da simbologia gnóstica
com os resultados a que chegou a psicologia profunda.
98
3. Pérolas encobertas pela poeira dos tempos
De acordo com Boer (1999, p. 80), em 1773 foi encontrado o primeiro dos
textos gnósticos antigos que vieram a lume nos três últimos séculos, o Códice
Askewianus, contendo os escritos Pistis Sophia (o nome é grego e significa e
Sabedoria, em português). Em 1896 apareceu o Papiro Berolinensis, contendo o
Evangelho de Maria. Foram descobertos o Evangelho de Pedro em 1886, a Carta
dos Apóstolos em 1895 e Manichaean Psalter em 1930. Também apareceram duas
ordens eclesiásticas, a Ordem Apostólica da Igreja (primeira edição, 1843) e os En-
sinamentos Católicos dos Santos Apóstolos (primeira edição, 1854). Foram encon-
tradas ainda muitas versões dos Atos de Felipe.
Em 1945 e 1947 foram descobertas duas importantes bibliotecas, com inú-
meros livros e fragmentos apócrifos, uma em Nag Hammadi e outras em Qumran.
Não devemos confundir a descoberta dos textos em Nag Hammadi, no Alto Egito,
no ano de 1945, com os escritos de Qumran, descobertos dois anos depois, em
1947.
Em Nag Hammadi, no Egito, foram descobertos textos apócrifos de cunho
gnóstico relacionados com o Segundo Testamento. Eles foram conservados em
uma urna de argila contendo papiros considerados heréticos pelo Concílio de Ni-
céia (325 E.C.). Foi o bispo Atanásio de Alexandre quem ordenou, em 367 E.C.,
que esses textos de tendência herética fossem queimados. Essa ordem não foi se-
guida pelos monges de Nag Hammadi, os quais esconderam preciosidades apó-
crifas gnósticas ao do rochedo alto e íngreme chamado Djebel-el-Târif (Faria,
2003, p. 27). vieram à tona códices como o Evangelho de Tomé, o Diálogo do
Salvador, o Evangelho de Felipe, a Sabedoria de Jesus Cristo e o Primeiro e Se-
99
gundo Apocalipse de Tiago. Desses escritos, o Evangelho de Maria, o Evangelho
de Tomé, o Evangelho de Pedro, a Carta dos Apóstolos e o Diálogo do Salvador
são provavelmente os mais antigos, provenientes de antes de 150 E. C.. Os outros
escritos acredita-se que sejam da segunda metade do segundo e do terceiro sécu-
lo; os Atos de Felipe, do quarto século.
Em Qumran também foram encontrados textos apócrifos, mas relativos ao
Primeiro Testamento. Situada no deserto de Judá, ao lado do mar Morto, Qumran é
a localidade onde se formou uma comunidade que praticava banhos rituais e estu-
dava a Torá. Em 1947, o jovem pastor Muhammad EdhDib, procurando uma cabra
perdida nas colinas da região do mar Morto encontrou sete jarros de cerâmica
contendo pergaminhos, nos quais estavam copiados os livros de Isaías, Habacuc e
Gênesis. Depois deste achado, as buscas prosseguiram até 1956. Ao todo são 813
papiros e pergaminhos. Os textos tratam de cópias dos livros da Bíblia, exceto o li-
vro de Ester, livros apócrifos, comentários bíblicos, tratados de liturgia e regras da
comunidade essênica que vivia no local. Os trabalhos de tradução da biblioteca de
Qumran terminaram recentemente e segundo declarações de Emmanuel Tov, da
Universidade Hebraica de Jerusalém e coordenador da última fase de tradução,
não foram encontradas referências diretas a Jesus, João Batista e aos primeiros
cristãos nos textos de Qumran (Faria, 2003, p. 26).
De todos os escritos encontrados, o que mais nos interessa é o Evangelho
de Maria. São conhecidos três manuscritos desse texto, dois em grego, do terceiro
século, e um em cóptico, do quinto século.
O primeiro texto conhecido do Evangelho de Maria está escrito em cóptico e
foi comprado por C. Reinhardt, um erudito alemão, em 1896, no Cairo, de um ne-
gociante de antiguidades. Tratava-se de um pacote de folhas de papiro em formato
100
de livro, que, embrulhado em penas, foi descoberto em um nicho na parede de um
cemitério perto de Akhmim, no Egito (Boer, 1999, p. 92). O dice contém quatro
escritos: o Evangelho de Maria, o Apócrifo de João, a Sabedoria de Jesus Cristo e
os Atos de Pedro. A descoberta foi levada para Berlim e está no Departamento de
Egiptologia do Museu Nacional sob o nome de Papiro Berolinensis 8502. O Evan-
gelho de Maria é o primeiro tratado do papiro de Berlim.
Jean Yves Leloup (1998b, p. 9) ensina-nos que o manuscrito é grafado em
cóptico saídico, do quinto século, dialeto usado pelos egípcios daquela época, últi-
ma fase dos antigos egípcios, na qual aparecem também as palavras gregas.
Como os outros escritos do papiro de Berlim, contém um certo número de emprés-
timos de dialetos e alguns erros de escrita, ou erros de transcrição. Copta vem do
árabe qibt, contração do grego Aiguptos: "Egito". Menos da metade do Evangelho
de Maria foi preservada. Dez das dezenove páginas estão perdidas. Faltam as fo-
lhas 1 a 6 e de 11 a 14. Cada página tem dimensão média de 13,5 por 10,5 centí-
metros, com 22 ou 23 linhas, e cada linha comporta em média 22 ou 23 letras (p.
8).
De acordo com o erudito em cóptico Carl Schmidt, o manuscrito teria sido re-
copiado no início do século V. A descrição papirológica do manuscrito foi feita pelo
também erudito em cóptico Walter C. Till, em continuação aos trabalhos de C.
Schmidt, em seguida completado por H. M. Schenke (Leloup, 1998b, p. 8).
Além do texto em cóptico, também foram encontrados no Egito, na antiga ci-
dade de Oxyrhynchus, fragmentos do Evangelho de Maria do começo do terceiro
século, em grego. Em 1938, C. H. Roberts descobriu que um fragmento de papiro
da coleção Rylands continha uns poucos versos do Evangelho de Maria (parte de
EvMar 10) em grego. O outro fragmento em grego do Evangelho de Maria (EvMar
17-19), também proveniente de Oxyrhynchus, apareceu em 1985 (Boer, 1999, p.
101
96).
A identidade do fragmento grego do papiro Rylands 463 com o texto copta foi
confirmada pelo professor Carl Schmidt. O fragmento foi datado do início do século
III e portanto a primeira redação do Evangelho deve ser anterior, ou seja, do decur-
so do século II. Walter Till a situa em torno do ano 150. Como os demais Evange-
lhos, tratar-se-ia, portanto, de um dos textos fundadores ou primitivos do cristianis-
mo (Leloup, 1998b, p. 9). Comparando vários manuscritos, o famoso papirólogo C.
H. Roberts também acha que a versão original do Evangelho de Maria já devia
existir na segunda metade do segundo século (Boer, 1999, p. 93).
Nos períodos romano e bizantino, a cidade de Oxyrhynchus, onde foram rea-
lizadas as descobertas dos fragmentos em grego, era a principal cidade do Egito
Central e tinha uma biblioteca pública. Os dois manuscritos em grego foram encon-
trados junto com muitos outros papiros, predominantemente em grego e latim. Ele
contém fragmentos literários, históricos, religiosos e escritos populares além de
fragmentos de cartas e documentos (Boer, 1999, p. 97). Dentre os fragmentos de
literatura religiosa encontram-se aqueles que a Igreja admite como inspirados:
fragmentos de Gênese, Êxodo, Levítico, Josué, Salmos, Eclesiastes, Amós e Tobi-
as, bem como fragmentos dos quatro evangelhos do Segundo Testamento, Atos,
Epístola de Paulo aos Romanos, Primeira Epístola aos Coríntios, Gálatas, Filipen-
ses e Primeira e Segunda Epístola aos Tessalonicenses, e ainda fragmentos das
cartas de Tiago, Pedro e Judas, Hebreus, cartas de João e Apocalipse, e aqueles
que não estão nesta lista: fragmentos de VI Ezra e Apocalipse de Baruch, Atos de
Paulo e Thecla, Atos de Pedro e Atos de João, Ovelhas de Hermas, Evangelho de
Pedro, Protoevangelho de Tiago e Sabedoria de Jesus Cristo. Foram encontradas
também citações de Jesus que sugerem o Evangelho de Tomé.
Para Boer (1999, p. 97), “este fato é um testemunho silencioso da multiplici-
102
dade existente na formação do cristianismo primitivo. Esta é a multiplicidade que
encontrou seu próprio limite antes de Oxyrhynchus”.
Boer (1999, p. 96) informa ainda que os escritos cristãos encontrados em
Oxyrhynchus, sem exceção, datam do primeiro e segundo séculos, e não são origi-
nários do Egito, sendo admissível que o Evangelho de Maria, originalmente escrito
em grego, também tenha sido elaborado fora do Egito (p. 98), embora nenhum ou-
tro manuscrito deste Evangelho tenha sido descoberto fora deste país. Além disso,
os teólogos do cristianismo primitivo não pareciam familiarizados com ele. Mas
muitos são os motivos para admitir que o Evangelho de Maria fosse considerado
leitura suficientemente importante para ser trazido de outra parte e traduzido na lin-
guagem comum egípcia. Além do mais, o Evangelho também foi lido no norte do
Egito até o quinto século e presumivelmente até mais tarde, dada a descoberta do
manuscrito cóptico no século dezenove, mais ao norte.
O Evangelho de Maria levou muito tempo para ser editado pela primeira vez,
embora o anúncio da descoberta da versão em cóptico tenha sido feito no mesmo
ano da descoberta, em 1896, por Schmidt, que trabalhou o texto para ser publica-
do. Em 1912, entretanto, uma inundação nas gráficas em Leipzig destruiu as pro-
vas. Mas um pouco antes de seu falecimento em 1938, Schmidt revisa seu trabalho
(Boer, 1999). Entre 1941 e 1943 Till estudou os textos, mas não foi possível publi-
cá-los durante a Segunda Guerra Mundial. O papiro Berolinensis 8502 somente foi
publicado integralmente em 1955, quase sessenta anos depois do primeiro anúncio
de sua existência, com tradução e comentários breves de Till (Boer, 1999, p. 93).
Em Nag Hammadi foram descobertos dois textos existentes também no Có-
dice de Berlim: o Apócrifo de João e a Sabedoria de Jesus Cristo. Este fato foi im-
portante para que o Evangelho de Maria se tornasse mais conhecido, pois em 1977
foi incluído, junto com os Atos de Pedro, em uma tradução inglesa dos textos da bi-
103
blioteca Nag Hammadi (Boer, 1999, p. 93).
A pesquisadora canadense Anne Pasquier estudou o papiro profundamente
e em 1983 publicou uma edição crítica do texto (Boer, 1999, p. 93).
As nove páginas que foram encontradas do Evangelho de Maria sempre ci-
tam "Maria" e nunca "Maria Madalena". Entretanto, a opinião dos estudiosos é que
Maria refira-se a Maria Madalena. Maria Madalena é chamada apenas de Maria no
mesmo tipo de escritos que o Evangelho de Maria e a partir deste dado conclui-se
que o Evangelho de Maria é sobre Maria Madalena. Além disso, no Evangelho de
Tomé (lògion 114) e em Pistis Sophia (36 e 72), assim como ocorre no Evangelho
de Maria, Pedro é quem se opõe ao que Maria diz, por ela ser mulher e ambos os
escritos referem-se a Maria Madalena. No Evangelho de Maria, Levi afirma que o
Redentor amava Maria "mais que nós" (EvMar 18, 14-15) e no Evangelho de Felipe
(63.32-64.5) existe declaração similar que também se refere a Maria Madalena
(Boer, 1999, p. 98).
Para melhor compreensão do Evangelho de Maria, dialogaremos também
com outros textos primitivos não-canônicos que fazem referência a Maria de Mag-
dala. Os textos canônicos e aqueles escritos que iniciam a tradição eclesiástica
foram bastante estudados. O cristianismo, nas suas origens, conheceu numerosos
evangelhos recenseados pelos seus historiadores. Os de Mateus, Marcos, Lucas e
João, que são os mais conhecidos e já foram analisados nesse trabalho, em algu-
mas Igrejas permanecem como os únicos autorizados a nos transmitirem os ecos e
as interpretações dos acontecimentos e dos ensinamentos do rabi da Galiléia, que
tiveram lugar há cerca de 20 séculos (Leloup, 1998b, p. 7).
As descobertas dos dois séculos anteriores permitem-nos enriquecer nosso
conhecimento sobre aspectos do cristianismo até então ocultados. Os Evangelhos
descobertos são atribuídos, em sua maioria, aos discípulos que conheceram Jesus.
104
Assim, ao lado dos Evangelhos de Mateus, Marcos, Lucas e João, pode-se meditar
atualmente naqueles de Felipe, de Pedro, de Bartolomeu, de Tomé (Leloup, 1998b,
p. 7). E no de Maria. Evangelho de Maria. Um evangelho onde uma mulher, Maria
Madalena, fala com autoridade sobre as coisas que ouviu de seu Salvador. Único
escrito da antiguidade no qual Maria conta a sua história, encoraja os discípulos
com sua própria fé e descreve a instrução que recebeu.
Mas Boer (1999, p. 104) nos alerta: “o primeiro contato com o Evangelho de
Maria pode ser desapontador”. E explica o porquê: “O que se pode fazer com um
Evangelho em que mais da metade está perdida?” E não apenas isto, mas ainda:
“O que se pode fazer com comentários sobre a natureza, matéria e poderes os
quais tentam manter a alma ao abrigo do divino?” E mais: “O que fazer com uma
Maria lamentosa que se defende tão pouco de Pedro e André?”.
Quando se trata de uma personagem como a que estamos estudando,
construída ao longo dos séculos com tamanha riqueza de nuances, a resposta
nunca será simples. Mas pode-se com segurança objetar a exigüidade de remis-
sões a Maria Madalena nos textos bíblicos e a conseqüente importância de qual-
quer composição literária que a contemple.
Qualquer pessoa que deseje pesquisar sobre Maria Madalena nos textos ca-
nônicos ficará desapontada com a exigüidade de referências, como vimos no capí-
tulo anterior. Fora as doze citações nos evangelhos do Segundo Testamento, nada
mais encontrará. Ao menos não em nome de Míriam de Magdala. Talvez em nome
de Maria. Mas aí estaremos em terreno bastante movediço.
O campo de pesquisa, no entanto, amplia-se consideravelmente, se decidir-
mos nos deter em outras páginas produzidas pelos autores dos primeiros séculos.
E o caminho lógico, então, será a pesquisa dos demais escritos encontrados fora
do cânon. Lilia Sebastiani (1995, p. 55), no entanto, adverte:
105
Não se pode esperar certamente da literatura apócrifa um maior acúmulo de conhe-
cimentos "históricos" a respeito de Maria de Magdala. Com efeito, é conhecida a es-
cassa historicidade dos apócrifos (muito inferior à dos Evangelhos canônicos, que
também não tem uma intencionalidade histórica no sentido moderno). Além disso, os
eventuais elementos de autenticidade histórica que se poderiam averiguar neles não
são controláveis. O que se poderia buscar na literatura apócrifa é uma comparação
de prospectivas e um aumento de conhecimentos a (sic) nível de interpretação.
Cientes dos aspectos alertados, prosseguiremos na análise.
De acordo com os antigos, Maria Madalena não seria responsável apenas
pelo Evangelho de Maria. “Ao lado do nosso Evangelho, dois outros escritos foram
colocados em nome de Míriam de Magdala: As Perguntas de Maria, mencionado
por Epifânio e O Nascimento de Maria, cujo episódio é relatado também por Epifâ-
nio”. (Leloup, 1998b, p. 10). Em nota de rodapé, Leloup informa que Epifânio men-
ciona os escritos em Panarion, XXVI, 12, 1-4, e em Panarion, XXVI, 8, 1 e 2.
Míriam de Magdala aparece em toda sua importância no primeiro destes es-
critos, As Perguntas de Maria, o qual serviu de modelo para a composição de um
segundo Perguntas de Maria, revistas e corrigidas em um sentido nitidamente dua-
lista e ascético. O original perdeu-se e é conhecido pelas citações que nos
Epifânio; mas a sua retomada dualista e ascética é conhecido desde o século XVIII
sob o título de Pistis Sophia e está desenvolvida em um volumoso manuscrito copta
da British Library, Suplemento 5114. O Nascimento de Maria também se perdeu
(Leloup, 1998b, p. 10-11).
Sebastiani (1995, p. 57), em nota de rodapé, noticia que o original do As
Perguntas de Maria era um texto gnóstico que remonta ao segundo século e devia
constar de dois diferentes escritos, o Grande e o Pequeno Perguntas de Maria.
Afirma também que embora a Antiguidade nos tenha transmitido notícia a respeito,
o texto efetivamente se perdeu. E complementa (p. 57):
Epifânio de Salamina expõe sumariamente o seu conteúdo em sua obra de exposi-
106
ção e confutação das heresias (Panárion XXVI 8, 1-3). A exposição é em chave hostil
e em tom horrorizado por causa das implicações sexuais, de que evidentemente o
autor não capta a alçada simbólica”.
Maria Madalena. Segundo Leloup (1998b, p. 10), “Aquela que, no dizer dos
outros discípulos, "viu" o Mestre ressuscitado (Jo 20,18)”. E na mesma frase emen-
da: “raros são os escritos cristãos dos primeiros séculos que não fazem menção de
seu personagem ora maximizado, ora minimizado”.
4. Evangelho de Maria: dois ecos em português
Infelizmente desconhecemos uma tradução direta do cóptico para o portu-
guês do Evangelho de Maria. Embora não seja objeto da nossa monografia um es-
tudo comparativo das diversas traduções, é óbvio que perdemos muito com as
versões sucessivas e por esse motivo julgamos interessante apresentarmos dois
diferentes trabalhos. O primeiro texto é do livro de Ester de Boer (1999, 99-103). O
texto foi traduzido pela autora para o holandês, língua original em que o livro foi pu-
blicado e então vertido para o português. O segundo é uma tradução de Jean Yves
Leloup (1998b, p. 24-41) para o francês, posteriormente vertido para o português.
Como noticiado, as páginas de 1 a 6 estão perdidas. Também desapare-
ceram as 11 a 14. Boer informa que as letras maiúsculas foram adicionadas e que
a página e número da linha são os do manuscrito. Leloup ainda acrescenta núme-
ros no início de cada linha para nos servirem de referência. Acompanhemos os
elementos que transparecem em suas páginas.
Tradução de Boer
[7]
... a matéria será então destruída ou
Tradução de Leloup
[PÁGINA 7]
1 (...) "O que é a matéria?
107
não?
O Salvador disse:
"Toda Natureza, todas as formações,
todas as criações
existem em e com uma e outra,
5 e serão dissolvidas novamente em
suas próprias raízes.
Pela Natureza da matéria é dissolvida
em coisas que pertencem somente à
sua Natureza.
Ele, que tem ouvidos para ouvir, deixe-
o ouvir.”
10 Pedro lhe disse: "Como nos con-
tou todas as coisas,
conte-nos também esta: Qual é o pe-
cado do mundo?"
O Salvador disse:
"Não pecado, mas é você que na
verdade peca
15 quando faz coisas
relacionadas com a natureza do adulté-
rio,
isto é chamado de pecado.
É por isto que o Bem vem em seu meio
para aqueles que pertencem à toda
2 Ela durará sempre?"
3 O Mestre respondeu:
4 "Tudo o que nasceu, tudo o que foi
criado
5 todos os elementos da natureza
6 estão estreitamente ligados e unidos
entre si.
7 Tudo o que é composto se decompo-
rá;
8 tudo retomará a suas raízes;
9 a matéria retomará às origens da ma-
téria.
10 Que aquele que tem ouvidos para
ouvir, ouça."
11 Pedro lhe diz: "Já que Tu te fazes o
intérprete
12 dos elementos e dos acontecimentos
do mundo, dize-nos:
13 O que é o pecado do mundo?"
14 O Mestre diz:
15 "Não há pecado
16 Sois vós que fazeis existir o pecado
17 quando agis conforme os hábitos
18 de vossa natureza adúltera;
19 aí está o pecado.
20 Eis por que o Bem veio entre vós;
21 Ele participou dos elementos de vos-
108
Natureza
para que ela seja restaurada em suas
raízes."
20 Então, ele continuou e disse:
por isto que você fica doente e mor-
re por...
[8]
[Ele que] entende, deixe-o entender
[Matéria dá origem ao sofrimento]
que não tem modelo, pois procede da
natureza oposta.
5 Desde então, ocorreu confusão em
todo o corpo.
É por isto que eu lhes disse:
"Seja um coração e seja sem misturar
porque você é um
com relação aos diferentes aspectos da
natureza.
10 Ele, que tem ouvidos para ouvir,
deixe-o ouvir."
Quando o Senhor Abençoado disse to-
das estas coisas,
abraçou a todos, dizendo:
"A Paz esteja com vocês. Traga a mi-
nha paz para fora de vocês mesmos.
15 Cuidem-se para que ninguém os
desencaminhe,
sa natureza
22 a fim de reuni-Ia a suas raízes."
23 Ele continuou e disse:
24 "Eis por que estais doentes
25 e por que morreis:
26 é a conseqüência de vossos atos;
27 vós fazeis o que vos afasta...
28 Quem puder, compreenda."
[PÁGINA 8]
1 "O apego à matéria
2 gera uma paixão contra a natureza.
3 É então que nasce a perturbação em
todo o corpo;
4 é por isso que eu vos digo:
5 'Estejais em harmonia...'
6 Se sois desregrados
7 inspirai-vos em representações
8 de vossa verdadeira natureza.
9 Que aquele que tem ouvidos
10 para ouvir, ouça."
11 Após ter dito aquilo, o Bem-Aventu-
rado
12 saudou-os a todos dizendo:
13 "Paz a vós, que minha Paz
14 seja gerada e se complete em vós!
15 Velai para que ninguém vos engane
16 dizendo:
17 'Ei-lo aqui,
109
dizendo "Olhe aqui!" ou "Olhe ali!"
Pois o Filho do homem está em seu
interior.
20 Sigam em busca dele. Aqueles que
procuram, o encontrarão.
Então e pregue o evangelho do rei-
no."
[9]
"Não declarem nenhuma outra regra
que não sejam as que
designei para vocês,
e não façam a lei como um legislador
para que vocês não sejam feitos prisio-
neiros da mesma"
5 Depois de dizer estas coisas, ele par-
tiu.
Mas eles estavam aflitos e lamentavam
muito, dizendo:
"Como poderemos ir por todas as na-
ções e pregar o
evangelho do reino do Filho do ho-
mem?
10 Se eles não o respeitaram, como
nos respeitarão?"
Então Maria levantou-se, abraçou a to-
dos e disse aos seus irmãos:
18 Ei-lo lá' .
19 Porque é em vosso interior
20 que está o Filho do Homem;
21 ide a Ele:
22 aqueles que o procuram o encontram
23 Em marcha!
24 Anunciai o Evangelho do Reino."
[PÁGINA 9]
1 "Não imponhais nenhuma regra,
2 além daquela da qual eu fui o Teste-
munho.
3 Não ajunteis leis às dadas por Aquele
que vos deu a Torá
4 a fim de não vos tornardes seus es-
cravos."
5 Tendo dito isto, Ele partiu.
6 Os discípulos estavam em aflição;
7 eles derramaram muitas lágrimas, di-
zendo:
8 "Como ir até os pagãos e anunciar
9 o Evangelho do Reino do Filho do
Homem?
10 Eles não o pouparam,
11 como eles nos poupariam?"
12 Então, Maria se levantou,
13 ela os beijou a todos e disse a seus
110
15 "Não lamentem, não se aflijam e
não formem dois corações,
pois a graça dele estará com todos vo-
cês
e irá protegê-los.
Antes, louvemos-lhe a grandeza,
pois ele nos preparou.
20 Ele fez de nós Filhos do homem."
Quando Maria disse estas palavras,
encaminhou seus corações para den-
tro, para o Bem
e eles começaram a praticar as pala-
vras do [Salvador].
[10]
Pedro disse para Maria:
"Irmã, sabemos que o Salvador a ama-
va mais
do que às outras mulheres.
Conte-nos as palavras do Salvador que
você se lembra,
5 as coisas que você sabe e nós não,
e nem as ouvimos dele."
Maria respondeu, dizendo:
"O que lhes foi ocultado, eu direi."
irmãos:
14 "Não fiqueis pesarosos e indecisos,
15 porque Sua graça vos acompanhará
e vos protegerá:
16 em vez disso louvemos Sua grande-
za,
17 porque Ele nos preparou.
18 Ele nos convida a sermos plena-
mente Humanos (Anthropos)."
19 Com estas palavras, Maria voltou
seus corações para o Bem;
20 as palavras do Mestre tomaram-se
claras para eles.
[PÁGINA 10]
1 Pedro disse a Maria:
2 "Irmã, nós sabemos que o Mestre te
amou
3 diferentemente das outras mulheres.
4 Diz-nos as palavras que Ele te disse,
5 das quais tu te lembras
6 e das quais nós não tivemos conheci-
mento..."
7 Maria lhes disse:
8 "Aquilo que não vos foi dado escutar,
111
E ela começou a dizer-lhes estas pala-
vras:
10 "Eu, ela disse, vi o Senhor em uma
visão e lhe disse:
Senhor, eu o vi hoje em uma visão.
Ele respondeu, me disse:"
"Abençoada seja, pois não vacila
15 ao me ver.
Pois, onde a mente (nous) está,
há um tesouro."
Eu lhe disse: "Senhor, agora, aquele
que tem a visão,
a vê com a alma (psyche)
ou com o espírito (pneuma)?"
O Senhor respondeu, ele disse:
20 "Ele não nem com a alma e nem
com o espírito,
mas com a mente que [está] entre os
dois
isto é [o que] vê a visão e o que é...
(páginas 11-14 estão perdidas)
[15]
a ele e o Desejo disseram:
9 eu vos anunciarei:
10 eu tive uma visão do Mestre,
11 e eu lhe disse:
12 'Senhor, eu te vejo hoje
13 nesta aparição' .
14 Ele respondeu:
15 'Bem-aventurada, tu que não te per-
turbas à minha vista.
16 Onde está o nous aí está o tesouro.'
17 Então, eu lhe disse:
18 'Senhor, no Instante, aquele que
contempla
19 Tua aparição,
20 é pela psique (alma) que ele vê?
21 Ou pelo Pneuma (o Espírito, Sopro)?'
22 O Mestre respondeu:
23 'Nem pela psique nem pelo Pneuma;
24 mas o nous estando entre os dois,
25 é ele que vê e é ele que (...)'"
[PÁGINA 15]
1 "Eu não te vi descer,
2 mas agora eu te vejo subir",
112
"Eu não o vi quando você estava a ca-
minho da terra,
mas agora o vejo, enquanto você está
a caminho do céu.
Como você pode me enganar quando
me pertence?"
5 A alma respondeu e disse:
"Eu o vi. Você não me viu,
nem me reconheceu.
Eu o servi como uma roupa e você não
me conhece."
Depois de dizer estas coisas, partiu re-
gozijando alto.
10 Novamente, veio o terceiro poder,
o qual é chamado Ignorância.
[Que] questionou a alma, dizendo:
'Onde você está indo? Pela maldade
você é mantido prisioneiro.
15 Sim, é mantido. Não julgue!'
E a alma disse:
"Por que você me julga embora eu não
tenha julgado?
Sou mantida prisioneira
porque eu não mantive prisioneiro.
20 Não sou reconhecida, mas eu reco-
3 diz a Cobiça.
4 "Por que tu mentes, que fazes parte
de mim?"
5 A alma respondeu:
6 "Eu, eu te vi,
7 tu, tu não me viste.
8 Tu não me reconheceste;
9 eu estava contigo como uma vesti-
menta,
10 e tu não me percebeste".
11 Tendo dito isto,
12 ela se foi toda contente.
13 Depois apresentou-se a ela o terceiro
clima,
14 chamado Ignorância;
15 Ela interroga a alma, perguntando-
lhe:
16 "Aonde vais?
17 Não estavas dominada por uma
inclinação?
18 Sim, tu estavas sem discernimento, e
tu estavas em servidão."
19 A alma disse então:
20 "Por que me julgas? Eu não te jul-
guei.
21 Dominaram-me, eu não dominei;
113
nheci
que o Todo está sendo dissolvido,
tanto as coisas terrenas como as coi-
sas divinas."
[16]
Quando a alma libertou-se do terceiro
poder
foi para cima e viu o quarto poder.
Este tomou sete formas.
5 A primeira são as Trevas, a segunda,
o Desejo, a terceira, a Ignorância, a
quarta é Aflição da Morte, a quinta é o
Reino da Matéria,
a sexta é o Tolo Aprendizado da Maté-
ria,
a sétima é a Sabedoria Encolerizada.
Estes são os sete [poderes] da Ira.
Eles perguntam para alma:
15 "De onde você veio, assassina de
homens?"
ou, "Onde está indo, você que se li-
berta dos lugares?"
A alma respondeu, ela disse:
"Aquele que me mantém prisioneira
22 não me reconheceram,
23 mas eu, eu reconheci
24 que tudo o que é composto se de-
comporá
25 sobre a terra como no céu."
[PÁGINA 16]
1 Libertada deste terceiro clima, a alma
continua a subir.
2 Ela se apercebe do quarto clima.
3 Este tinha sete manifestações.
4 A primeira manifestação é Treva;
5 a segunda, Cobiça;
6 a terceira, Ignorância;
7 a quarta, Inveja mortal;
8 a quinta, Dominação carnal;
9 a sexta, Sabedoria bêbada;
10 a sétima, Sabedoria astuciosa.
11 Tais são as sete manifestações da
Cólera
12 que oprimem a alma de perguntas:
13 "De onde tu vens, homicida?
14 Para onde tu vais, vagabunda?"
15 A Alma respondeu:
16 "Aquele que me oprimia foi condena-
do à morte;
114
está trespassado.
Eu me libertei dele que faz voltar
20 E meu desejo completou-se,
a ignorância morreu.
Desde o mundo, eu sou libertada atra-
vés do mundo,
[17]
e de um modelo através do modelo que
é do lado do céu.
E as algemas da inconsciência são
temporais.
5 Desta hora em diante receberei o
resto
- no tempo, do momento decisivo da
eternidade -
em silêncio."
Quando Maria falou estas coisas, ca-
lou-se,
pois foi até este ponto que o Salvador
lhe falou.
10 Então, André respondeu e disse aos
irmãos:
"Diga-me, o que (quer) dizer sobre as
coisas que ela disse?
Eu, ao menos, não acredito
17 aquele que me aprisionava não
existe mais;
18 minha cobiça então se apaziguou
19 e eu fui livrada de minha ignorância."
[PÁGINA 17]
1 "Eu saí do mundo graças a um outro
mundo;
2 uma representação se apagou
3 graças a uma representação mais ele-
vada.
4 De agora em diante eu vou para o Re-
pouso
5 onde o tempo repousa na Eternidade
do tempo
6 Eu vou para o Silêncio."
7 Depois de ter dito isso, Maria se calou.
8 É assim que o Mestre conversava com
ela.
9 André então tomou a palavra e dirigiu-
se a seus irmãos:
10 "O que pensais vós do que ela acaba
de contar?
11 De minha parte, eu não acredito
12 que o Mestre tenha falado assim;
115
que o Salvador tenha dito estas coisas.
15 Pois estes ensinamentos
parecem idéias estranhas."
Pedro respondeu e falou sobre estas
mesmas coisas.
Ele refletiu sobre o Salvador:
"Certamente ele não falou com a mu-
lher
20 sem nosso conhecimento e não
abertamente?
Vamos todos voltar e ouvi-la?
Ele a teria escolhido acima de nós?"
[18]
Então, Maria lamentou e disse a Pedro:
"Meu irmão Pedro, o que está pensan-
do?
Supõe que eu tenha inventado isto, so-
zinha,
em meu coração,
5 ou que esteja enganando o Salva-
dor?"
Levi respondeu e disse a Pedro:
13 estes pensamentos diferem daqueles
que nós conhecemos."
14 Pedro ajuntou:
15 "Será possível que o Mestre tenha
conversado
16 assim, com uma mulher,
17 sobre segredos que nós mesmos ig-
noramos?
18 Devemos mudar nossos hábitos;
19 escutarmos todos esta mulher?
20 Será que Ele verdadeiramente a es-
colheu e a preferiu a nós?"
[PÁGINA 18]
1 Então Maria chorou.
2 Ela disse a Pedro:
3 "Meu irmão Pedro, que é que tu tens
na cabeça?
4 Crês que eu sozinha, na minha imagi-
nação,
5 inventei esta visão,
6 ou que a propósito de nosso Mestre,
eu disse mentiras?"
7 Levi tomou a palavra:
8 "Pedro, tu sempre foste um irascível;
116
"Pedro, você sempre foi encolerizado.
Agora, o vejo argumentando com a
mulher
como estes adversários.
10 Se o Salvador a fez merecedora,
quem é você, de fato, para rejeitá-la?
Seguramente, o Salvador a conhecia
muito bem.
E por isto que a amava mais que a nós.
15 Antes, nos envergonhemos
e assumamos o Filho do homem per-
feito.
Vamos trazê-lo para fora de nós mes-
mos,
como ele nos ordenou.
Vamos pregar o evangelho,
sem declarar nenhuma outra regra
20 ou outra lei que não seja a que o
Salvador disse."
[19]
Quando Levi disse estas coisas, eles
começaram a seguir adiante
para proclamar e pregar.
9 vejo-te agora te encarniçar contra a
mulher,
10 como o fazem nossos adversários.
11 Pois bem! Se o Mestre tornou-a dig-
na,
12 quem és tu para rejeitá-la?
13 Seguramente, o Mestre a conhece
muito bem...
14 Ele a amou mais que a nós.
15 Arrependamo-nos,
16 e nos tornemos o Ser humano (An-
thropos) em sua inteireza;
17 Deixemo-lo lançar raízes em nós
18 e crescer como Ele pediu.
19 Partamos a anunciar o Evangelho
20 sem procurar estabelecer outras re-
gras e outras leis
21 afora aquela da qual Ele foi o teste-
munho."
[PÁGINA 19]
1 Depois que Levi pronunciou estas pa-
lavras,
2 eles se puseram a caminho para
anunciar o Evangelho.
117
O Evangelho
Segundo
Maria
3 Evangelho
Segundo
Maria
Quanta diferença entre as traduções! Mas o próprio Leloup nos faria ante-
ver essa possibilidade ao afirmar que, antes da sua, existiam duas traduções
francesas, ambas difíceis e muitas vezes contraditórias (1998b, p. 21), embora as-
severando que "a seus autores não faltaram nem ciência, nem paciência, nem co-
ragem". Acreditamos que essas qualidades também sobejaram nos dois tradutores
que escolhemos, bem como naqueles que os verteram para o português, confiando
na capacidade de exegese e hermenêutica de quem se arrolou a tarefa da tradu-
ção, mas sem perder de vista que estamos inelutavelmente sujeitos aos seus ar-
roubos, pois como bem diz Leloup, "a tradução deste texto fará também apelo à
Imaginação Criadora, para que esta não pareça totalmente hermética ou insignifi-
cante" (1998b, p. 21).
Para o que nos interessa, contudo, não temos dúvida: ambas as traduções
são de cristalina clareza ao nos apresentar a imagem de uma mulher em sua intei-
reza, corpo, espírito, alma e nous, bem amada do Senhor. O ser perfeito é uma
mulher! Essa é uma novidade muito transgressora para os padrões da época!
5. Evangelho de Maria: preciosidade gnóstica
Muitos textos apócrifos contêm idéias diferentes daquelas que posterior-
mente se tornaram generalizadas na igreja, como dissemos. Os escritos que confe-
rem à Maria Madalena um pouco mais de destaque são geralmente atribuídos à
118
tendência espiritual que a igreja apostólica sempre relutou em aceitar: o gnosticis-
mo.
Gnose é "conhecimento", "discernimento". Não se refere a conhecimento ci-
entífico, mas a conhecimento obtido por meio de revelação (Boer, 1999, p. 107).
Lohse (2000, p. 245) adverte que
não se deve entender aqui um conhecimento como na filosofia grega, adquirido por
meio da pesquisa científica e da reflexão crítica. Tampouco se refere ao saber con-
creto, que oferece uma compreensão das conexões do plano divino da história, como
na apocalíptica judaica, ou o verdadeiro conhecimento da lei divina, como na comu-
nidade de Qumrã (cf. pp. 99ss). Ao contrário, recebe-se o saber através da revela-
ção, que transmite ao homem o conhecimento de Deus.
Lilia Sebastiani (1995, p. 56) distingue os textos primitivos não-canônicos
relativos a Maria Madalena em duas categorias: na primeira, os de cunho gnóstico,
e na segunda, todos os outros, e afirma que os escritos gnósticos são mais interes-
santes, seja pela maior antiguidade, já que em muitos casos os originais remontam
ao II ou III século e podem coletar tradições ainda mais antigas, quase contempo-
râneas àquelas que confluíram nos textos canônicos do Segundo Testamento, seja
porque Madalena, considerada como a companheira de Jesus e a encarnação na
terra da Sabedoria celeste, aparece ali muito mais presente e com um papel espi-
ritualmente mais significativo.
Segundo Sebastiani (1995, p. 55-69), são gnósticos o Evangelho de Maria, o
Evangelho de Felipe, o Evangelho de Tomé, a Pistis Sophia, a Oração de Cunho
Maniqueu e A Exegese em Torno da Alma. Como apócrifo não-gnóstico cita Atos
de Pilatos (ou Evangelho de Nicodemos).
Boer (1999, p. 111) discorda. Para ela, embora “o Evangelho (de Maria)
apresente elementos inconfundíveis que podem ser interpretados em termos de
gnosticismo”, seu conteúdo pode ser colocado “dentro de um contexto de multiplici-
dade da espiritualidade cristã, ainda não cristalizada em dogmas, que eram distin-
119
tos da fé cristã do primeiro e segundo século de nossa era”.
Prosseguindo seu raciocínio, ela complementa (1999, p. 116), “não é incon-
cebível que o Evangelho de Maria tenha usado a estrutura do pensamento estóico
para tornar claro, para um grupo de leitores, predominantemente não-judeus, quem
era o Filho do homem (sic) e o que ele queria dizer”. No parágrafo imediatamente
anterior, ela cita Max Pohlenz, especialista em estoicismo, para dizer que “o conhe-
cimento estóico fazia parte do desenvolvimento geral no primeiro e segundo sécu-
lo”. E também acrescenta que
Em todos os níveis da população, os mais importantes pensamentos e terminologia
eram fortemente influenciados pelo estoicismo. Isto acontecia entre os oradores po-
pulares que, por todo mundo helenístico, solicitavam que as pessoas adquirissem
perfeição interna e padrão de moral elevado em meio às muitas mudanças.
Trebolle Barrera (1996, p. 658-659) detém-se em uma explanação sobre
estoicismo, que transcrevemos:
A difusão do estoicismo no século II aC trouxe consigo novos modos de pensar. O
logos divino garantia agora a unidade e divindade do universo. A Ouranópolis, cidade
do céu, era a pátria comum onde todos os homens são iguais, desde o imperador até
o escravo. Com o estoicismo a ética do mundo antigo alcançou seu mais alto e nobre
desenvolvimento, uma ética que terminará integrada na ética cristã ou entrará em ri-
validade com esta.
Os estóicos desenvolveram mais tarde uma concepção cosmológica caracterizada
pelo panteísmo materialista: o mundo é um modo necessário de auto-realização do
divino. A razão para os estóicos não é um instrumento epistemológico, mas a subs-
tância determinista ou providencial do cosmos, que relaciona e ordena a totalidade
das coisas no próprio cosmos.
A cosmologia estóica identificava a razão divina e natureza. Em conseqüência o ho-
mem tinha a obrigação moral de conformar-se racionalmente e de cooperar inclusive
no ordenamento fatalista do universo.
Lohse (2000, p. 267) advertira que a idéia da salvação predominante no
Evangelho de Maria não era preocupação tão-somente dos judeus, mas também
do pensamento grego em geral. Todavia, o caminho de salvação que ele aponta é
120
o da gnose e não do estoicismo:
A Salvação se constituía como questão também para os gregos. A pluralidade das
idéias e dos movimentos espirituais e religiosos do mundo helenístico-romano mostra
como os homens do mundo antigo se perguntavam pelo sentido último da sua vida.
O caminho pelo qual esperavam encontrá-lo era a sabedoria. Refletindo, os filósofos
tentavam sondá-la, para formar a vida segundo sua norma. Nas comunidades dos
mistérios e nos círculos gnósticos, porém, compreendia-se a sabedoria como experi-
ência místico-estática, que arrebatava o homem através da revelação divina e trans-
formava a sua em uma vida nova, elevada da caducidade e da perdição às alturas da
luz celeste. A gnose e o conhecimento que ensinavam a compreender Deus e o
mundo, o homem e seu fado, deveriam abrir acesso à redenção e à salvação.
Em linhas gerais, podemos assim resumir o que Boer (1995, p. 116-117) es-
creve a respeito do estoicismo e o Evangelho de Maria: o estoicismo era uma ten-
dência filosófica muito influente no primeiro e segundo séculos, que via a natureza
como fundamento primitivo e divino do mundo e convidava as pessoas a viverem
de acordo com a mesma, pois o sofrimento da alma é decorrente da ausência da
natureza, e é a vontade livre da pessoa que a leva a viver de acordo com ela. Se a
matéria entrega-se a alguma coisa contrária à natureza, o Filho do homem é ne-
cessário para restaurar a ordem das coisas e assim combater o sofrimento e a
confusão. No estoicismo, a divina lei da natureza é comparada com as leis falhas
elaboradas pelos seres humanos. No Evangelho de Maria, a lei única do Filho do
homem é contraposta às outras leis e regras e é dito que não devem ser feitas ou-
tras leis diferentes das que Ele fez, para não se correr o risco de ser aprisionado
pelas mesmas. Além disso, para o estóico, o mais elevado ideal atingível era o do
sábio, o ser perfeito. E Maria Madalena o atinge em seu evangelho.
A autora afirma que o ensinamento sobre o nous, um dos temas centrais do
Evangelho de Maria, harmoniza-se com o pensamento estóico e com as explica-
ções de Philo, que tomou a si a incumbência de explicar a de Israel para o mun-
do helênico. Assim, na ótica de Boer, em função dos muitos elementos que com-
121
põem o Evangelho de Maria, é impossível estabelecer se o escrito contém de fato
uma única e determinada doutrina, seja ela gnóstica ou estóica. A autora não en-
contra nenhuma em particular. Para ela (1999, p. 133),
O Evangelho de Maria, como o conhecemos, explica para um grupo de leitores, pre-
dominantemente não judeus, a ruína da criação, a queda e a libertação da queda
pelo Salvador. Aqui, é usada a terminologia helenística. Isto não é estrutural, por-
tanto parece estar baseado em uma doutrina em particular, mais criativa, paralela ao
caminho no qual Philo utiliza o pensamento helenístico. Portanto, o Evangelho de
Maria parece ser uma tentativa de traduzir o ensinamento de Jesus para a terminolo-
gia helenística e o que aconteceu com e por ele; o Evangelho o está defendendo
uma determinada doutrina.
Boer (1999, p. 133) ainda ressalta que no “Evangelho de Maria, vemos a
célula do que se tornaria mais tarde a importante posição que Maria Madalena ocu-
pa no gnosticismo”. E complementa que “da mesma forma que as cartas de Paulo
podem ser interpretadas em termos gnósticos, também o ensinamento de Maria
Madalena permite esta abordagem”. Mas ela afirma que isso não significa que o
conteúdo do evangelho seja gnóstico, mas sim que as memórias de Maria sobre o
Salvador “pressupõem uma formação helenística”. E finaliza o raciocínio à página
135: “O Evangelho de Maria é uma retribuição helenística sobre o que era mais im-
portante para ela nos ensinamentos e figura de Jesus”.
Sebastiani (1995, p. 67), por sua vez, defende a origem gnóstica do evan-
gelho, apesar de ressaltar a desconfiança que os gnósticos tinham das "obras do
feminino":
A peculiar importância atribuída a Madalena na literatura gnóstica, apesar da grande
desconfiança com relação às "obras do feminino", isto é, as relações sexuais e a
procriação, está em relação com a igualdade que nas comunidades gnósticas se
tendia reconhecer às mulheres. Algumas correntes gnósticas afirmavam ter recebido
uma tradição secreta de Jesus através de Tiago e Maria Madalena. Principalmente, o
Deus dos gnósticos não era aquele Deus sexuado masculino que tomou conta do
imaginário religioso de homens e mulheres na religião judeu-cristã. Na oração, os
gnósticos de muitas correntes invocavam Deus como Mãe e Pai divinos. Vários es-
122
critos gnósticos, além disso, afirmam e celebram a co-presença do elemento femini-
no e do masculino no divino, celebrando Deus como "Mãe-Pai" (metropáter).
Como vimos, a catalogação da natureza filosófica ou da corrente religiosa do
evangelho de Maria não é unânime. Como veremos, entretanto, nas linhas a seguir,
a maioria dos estudiosos que se debruçaram sobre o texto o enquadram como um
escrito gnóstico. A par disso, temos também um número muito elevado de autores
que classificam todos os escritos encontrados em Nag Hammadi como uma biblio-
teca gnóstica.
Embora hoje exista um grande número de escritos sobre o evangelho de Ma-
ria, os três estudos mais conhecidos e citados pelos pesquisadores são os de
Walter Till, Anne Pasquier e Michel Tardieu (Boer, 1999; Sebastiani, 1995). O aus-
tríaco Walter Till foi o primeiro editor do evangelho; em 1955 tinha elaborado a
tradução do texto com uma pequena introdução. O primeiro comentário, entretanto,
somente apareceu em 1983 e foi feito pela canadense Anne Pasquier, como tese
de doutorado. No ano seguinte, 1984, o francês Michel Tardieu escreveu um co-
mentário não somente sobre o evangelho, mas sobre todo o Códice de Berlim.
Cada um destes autores apresenta uma perspectiva original e tem visões bem dife-
renciadas sobre a construção do evangelho de Maria, mas são concordes em um
aspecto: trata-se de um texto gnóstico.
Para Walter Till, o Evangelho de Maria originalmente consistia de dois escri-
tos que foram reunidos de maneira desordenada. O Salvador representa função
principal no primeiro trabalho e Maria, no segundo. O Evangelho de Maria inicia-se
propriamente somente quando Pedro pede que Maria conte o ensinamento que o
Salvador deu a ela e não aos outros (Evangelho de Maria 10,1). O discernimento
que ela demonstra é claramente superior ao dos apóstolos. Além disso, o autor
ressalta que o ensinamento gnóstico do Evangelho de Maria não é secreto como
123
normalmente é o caso em outros escritos gnósticos. O objetivo do Evangelho é
descrever Maria Madalena, a primeira testemunha da ressurreição, como procla-
madora do ensinamento gnóstico (Boer, 1999, p. 105).
Anne Pasquier também afirma que existiam dois escritos que foram unidos,
mas o faz de uma maneira diferente da descrita por Till, dando importância capital à
contradição de Pedro, que deixa Maria falar porque ela sabe mais que os irmãos, e
depois questiona exatamente isto. Pasquier levanta a hipótese de que toda a pas-
sagem, a partir da questão de Pedro sobre as recordações de Maria ou incluindo a
reação de André não fazia parte do Evangelho originalmente. Portanto, o diálogo
entre o Salvador e Maria sobre as visões e sobre a jornada da alma se destacam.
Desta forma, os comentários maliciosos de Pedro não são sobre as considerações,
mas sobre as palavras de Maria, quando ela se dirigia aos discípulos lamentosos.
Ele contesta sobretudo a palavra "nós" na sentença "Ele fez de nós Filhos do ho-
mem" (Evangelho de Maria 9,20). De acordo com Pedro, Maria não é Filho do ho-
mem e sim mulher (Boer, 1999, p. 105-106).
Pedro estaria representando o pensamento ortodoxo do segundo século, no
qual a aparição do Cristo ressuscitado às mulheres não teria o condão de conferir a
elas o direito de pregar a mensagem da ressurreição, e nem de exercer autoridade
na comunidade Cristã. Por outro lado, o Evangelho de Maria nos permitiria ouvir
uma voz não ortodoxa. Pedro é retratado como um oponente e sua visão das mu-
lheres seria contrária à do Salvador. O Evangelho mostra que Maria pode pregar
por si mesma somente porque tinha se tornado um Filho do homem; tinha ad-
quirido a unidade andrógina que ainda faltava nos discípulos. É propósito do Evan-
gelho usar tal argumento gnóstico na luta contra a ortodoxia. Mulheres também po-
dem exercer autoridade na comunidade cristã (Boer, 1999, p. 106).
Para Michel Tardieu, o Evangelho de Maria é uma unidade. Ele admite que o
124
texto seja composto de duas partes, mas afirma que estas são inseparáveis, pois
nem a forma e nem o conteúdo nos dão razões para admitir que dois escritos dife-
rentes tenham sido juntados em um mesmo manuscrito. Segundo este autor, há um
claro desenvolvimento na ordem das duas partes e nenhum dos assuntos discuti-
dos sugere que uma tenha sido adicionada depois. Temos o Criador e sua criação,
o pecado e suas conseqüências, salvação pela gnose e a jornada da alma após a
morte. Desta maneira, o Evangelho de Maria oferece uma curta pesquisa das dou-
trinas essenciais do gnosticismo. O evangelho teria sido escrito para enfatizar a po-
sição preeminente de Maria Madalena, que na segunda parte assume a função
principal que o Salvador teve na primeira (Boer, 1999, p. 106).
Os três autores têm diferentes percepções acerca da mensagem do Evan-
gelho de Maria; são interpretações distintas, derivadas das diferentes pressuposi-
ções sobre a estrutura do Evangelho (Boer, 1999, p. 106). Para Tardieu, o ensina-
mento gnóstico está sendo apresentado de maneira simples e atrativa; para Pas-
quier a noção de androginia é o centro do manuscrito e para Till o cerne é a salva-
ção da alma. Três investigações acadêmicas, três diferentes interpretações do
Evangelho de Maria, mas todas levando a um único resultado: o Evangelho de Ma-
ria tem caráter gnóstico.
Leloup ousa ir mais longe. Acerca dos cinqüenta e três pergaminhos que
compõem a biblioteca de Nag Hammadi, assim se expressa (1999, p. 7): “Um te-
souro de palavras, envolvido pelos séculos, envelhecido por uma terra ocre: uma
biblioteca gnóstica conservada em ânforas destinadas a fermentar o vinho doce”.
Também para Lohse (2000, p. 264), as descobertas feitas em Nag-
Hammadi, no Alto-Egito, trouxeram à luz uma grande biblioteca gnóstica. Faria
(2003, p. 20) concorda. Trebolle Barrera (1996, p. 642-643) também parece aceitar
a tese que os escritos de Nag Hammadi sejam gnósticos, pois afirma:
125
“O primeiro passo no estudo da literatura gnóstica consiste em classificar suas obras.
assim podemos saber quais textos têm origem cristã-gnóstica, quais foram cristi-
anizados e quais foram expurgados de seus elementos cristãos originais. Os textos
de Nag Hammadi admitem várias classificações, com certa margem inevitável de
subjetividade (TRÖGER): 1) por gêneros literários: diálogos, discursos de revelação,
apocalipses, narrações, florilégios, coleções de ditos, cartas, orações etc; 2) pelo
conteúdo religioso: escritos não-cristãos, não-cristão com elementos cristãos, cristia-
nizados, cristãos-gnósticos, cristãos-gnósticos em polêmica com A Grande Igreja; e
finalmente, 3) por escolas gnósticas, como as grandes correntes do valentinianismo
e o cetianismo ou outras.
Sebastiani (1995, p. 63) estuda especificamente o Evangelho de Maria e
afirma ser um escrito gnóstico. A autora concorda com Anne Pasquier no que se
refere à razão do conflito entre Maria Madalena e Pedro, o qual aparece inclusive
em muitos outros escritos do mesmo pensamento: ele representaria para os gnósti-
cos a posição dos ortodoxos (Pedro), da Grande Igreja, cuja fé também se funda no
evento de Cristo, mas sentindo-o como evento do passado e desconfiando daque-
les que vêem o Senhor em visão atual. Maria, a figura dominante - que representa
os gnósticos -, continua, ao contrário, a sentir a presença do Senhor além dos limi-
tes do espaço e do tempo.
Sebastiani (1995, p. 67) argumenta que em coincidência com a luta contra a
gnose, as comunidades ortodoxas começam a adotar o uso sinagogal de separar
as mulheres dos homens no culto. No final do século II, a participação ativa das
mulheres no culto era condenada de forma explícita, a ponto de serem tachados de
heréticos os grupos que concedem às mulheres uma certa igualdade. Depois do
século II não mais notícias de mulheres que cumpram funções de líderes nas
comunidades ortodoxas.
Em complemento, Sebastiani (1995, p. 67) grafa:
O conflito entre Maria Madalena e Pedro que aparece muitas vezes nas fontes gnós-
ticas, além de guardar sob um véu simbólico-narrativo um elemento fugidio, mas in-
controlável de autenticidade histórica, parece ter também precisas valências de natu-
reza (poderíamos dizer com Elaine Pagels) “política”.
126
Acerca ainda do mesmo parágrafo, em nota de rodapé, esclarece: “... Assim
como Maria enfrenta a Pedro, também os gnósticos que a tomam por protótipo de-
safiam a autoridade dos padres e bispos que pretendem ser os sucessores de Pe-
dro” (Pagels apud Sebastiani, 1995, p. 67).
Dentre os manuscritos encontrados em 1945 em Nag Hammadi diversos
versam sobre Maria Madalena, além do seu evangelho: o Evangelho de Felipe, o
Evangelho de Tomé, o Diálogo do Salvador e a Sabedoria de Jesus Cristo. Vere-
mos o que cada um nos diz a respeito de Míriam de Magdala, e como também nos
ajudam a construir a imagem da mulher que acompanhou Jesus desde os primór-
dios de seu ministério, permaneceu com ele até sua ressurreição, e para além dela
6. Evangelho de Tomé: antigo testemunho
O Evangelho de Tomé também foi encontrado em Nag Hammadi, mas textos
fragmentados em grego haviam sido descobertos no final do século XIX e início
do século XX. Ele teve grande importância e circulação entre as primeiras comuni-
dades cristãs, o que explica sua descoberta no Egito, apesar de escrito na Síria.
Ele “recolhe as palavras de Jesus sem se preocupar com seus milagres, nasci-
mento, morte ou ressurreição” e “tem o mesmo formato do Evangelho Q” (Vascon-
cellos; Silva, 2003, p. 298).
Faria (2003, p. 85) discute o nome do autor mencionado no cabeçalho do
evangelho: Dídimo Judas Tomé, e o faz nos seguintes termos:
Dídimo é um nome grego que significa gêmeo. Judas, segundo os textos canônicos,
é irmão de Tiago, que é irmão de Jesus (Gil, 19). Na tradição da Igreja da Síria, Ju-
das era o irmão gêmeo de Jesus. Tiago exerceu forte liderança entre os discípulos
após a morte de Jesus, e Pedro obteve a primazia do grupo. Tomé é um nome ara-
127
maico e também significa gêmeo. Desse modo, afirmar que esse evangelho tem a
autoria de Dídimo Judas Tomé significa relacionar o autor desse evangelho em grau
de parentesco com Jesus, o que confere autoridade ao texto.
Para Sebastiani (1995, p. 63), o fato dos escritos gnósticos serem atribuídos
a algum discípulo, como Maria ou Tomé, significa que, segundo a idéia gnóstica da
visão interior, as revelações foram escritas no espírito daquele discípulo e provêm
de uma comunicação direta com o Senhor ressuscitado.
O Evangelho de Tomé é uma coleção de 114 logia, sentenças ou ditos de
Jesus. São sentenças independentes, nas quais Jesus diz alguma coisa ("Jesus
disse" aparece 99 vezes) ou responde a uma pergunta (Jesus respondeu aparece
15 vezes).
De acordo com Leloup (1998b, p. 7), Foi estabelecido que algumas logia ou
“palavras nuas” deste Evangelho - e de outros mais tardios - seriam anteriores à
redação dos escritos “canônicos” e teriam sido habilmente utilizadas pelos redato-
res destes últimos”. Para alguns críticos, o cerne do evangelho seria do ano 50 EC.
Mas os estudiosos divergem quanto a datação, afirmando-a entre os anos 50 e 200
EC.
Segundo Lohse (2000, p. 263-265),
A tradição cristã primitiva, conservada em certas frases do Senhor, vincula-se estra-
nhamente, no evangelho de Tomé, a uma rejeição gnóstica explícita da criação e do
mundo. Provérbios e parábolas de Jesus são transmitidos, em várias partes do texto,
em uma forma muito próxima à redação sinótica. Entretanto, toda a coletânea de
provérbios encontra-se sob o lema: "Quem encontrar o sentido correto destas pala-
vras não saboreará a morte". Colocam-se idéias gnósticas na boca de Jesus, quando
este fala da origem celeste das almas, para onde devem retomar: "Bem-aventurados
vós, os solitários e escolhidos, porque encontrareis o reino; vós provindes dele (e,
conseqüentemente,) voltareis novamente para lá" (Pr 49). Ou se destaca, de maneira
tipicamente gnóstica, que o conhecimento correto consiste na compreensão de que a
ressurreição dos mortos se realizou definitivamente: "Seus discípulos lhe pergunta-
ram: 'Quando acontecerá a ressurreição dos mortos e quando virá o novo mundo?'
Ele lhes respondeu: O que vós esperais, veio, mas não o conheceis" (Pr 51). O
128
salvador e os salvos se tomam um: "Jesus disse: Quem bebe de minha boca, trans-
forma-se em mim. Eu, porém, me transformo nele; e a ele se revelará o que é oculto"
(Pr 108).
Mariham aparece em dois logia do evangelho de Tomé, sempre identificada,
segundo o costume gnóstico, como a "consorte do Senhor" e sua interlocutora pri-
vilegiada.
O primeiro é o logion 21, no qual Maria pergunta a Jesus a quem se asse-
melham seus discípulos e Ele responde que "Eles são semelhantes a meninos que
penetraram em um campo que não lhes pertence" (Leloup, 1999, p. 20). Para Le-
loup, Maria Madalena, a iniciada, estaria perguntando a Jesus sobre a situação dos
discípulos que o seguem ao longe, e não daqueles próximos.
O outro logion é o último do Evangelho, o 114, no qual Simão Pedro aparece
como adversário de Maria, pedindo para Jesus excluí-la do círculo de discípulos.
Respondendo, Jesus promete dar-lhe instrução especial para torná-la homem:
"Disse-lhe Simão Pedro: Maria deve afastar-se do meio de nós porque as mulheres
não são dignas da Vida. Respondeu Jesus: Eis que Hei de guiá-la para que se torne
Homem. Ela também virá a ser um espírito vivo, semelhante a vós, Homens. Com
efeito, toda mulher que se fizer Homem entrará no Reino de Deus" (Leloup, 1999, p.
41).
Segundo Sebastiani (1995, p. 59), “Neste lòghion, na verdade, as palavras
de Jesus defendem Madalena, mas reafirmam a idéia do feminino como um as-
pecto enfermo da criação”. E enfermo “porque funcional à procriação, que para os
gnósticos constitui um empobrecimento ontológico progressivo. Portanto, um as-
pecto a superar em vista da perfeita união com o divino”.
Ao comentar este logion, Leloup o entrelaça com o Evangelho de Maria, no
qual Pedro também “encarna uma atitude patriarcal e negativa em relação às mu-
lheres” (1999, p. 211). Para Leloup, no logion também “Encontramos igualmente o
tema do “Homem perfeito” que integrou nele o masculino e o feminino tarefa que
129
deve ser realizada por todos, seja qual for nosso sexo” (1999, p. 211).
Mais uma vez, é a voz de Pedro que faz eco à milenar dificuldade professa-
da em relação ao feminino. Para Leloup (1999, p. 211), “Reconhece-se, desta for-
ma, no Evangelho de Maria assim como no Evangelho de Tomé a dificuldade
sentida por Pedro para reconhecer o lugar da mulher; aliás associada ao reconhe-
cimento do lugar da gnose”.
Reimer (2000, p. 71-72) afirma que:
“Nesses “apócrifos”, Maria Madalena aparece como apóstola dos apóstolos: ela os
consola, os admoesta, faz com que saiam para anunciar o Evangelho. Temos, nes-
ses escritos, junto com os textos acima arrolados dos evangelhos sinóticos, por um
lado, o testemunho sobre a autoridade apostólica de mulheres e, por outro lado, a
oposição a esta autoridade.
Sem dúvida, isto reflete situações concretas e reais no século II, nas quais o conflito
acerca da participação de mulheres em todos os níveis eclesiais e eclesiásticos era
muito acirrado. Prova disto não são apenas esses apócrifos testemunhando a favor
do ministério de Maria Madalena e outras mulheres, mas também outros que eram
escritos exatamente para argumentar contra o sacerdócio de mulheres”.
Esse texto nos auxilia a compreender a condição da mulher na igreja e o
confronto entre a autoridade apostólica de mulheres e a oposição a esta autorida-
de, como já falamos em tópico anterior.
7. Evangelho de Felipe: a consorte do Senhor
O Evangelho de Felipe também foi encontrado juntamente com os outros es-
critos da biblioteca de Nag Hammadi.
Segundo Sebastiani (1995, p. 56), ”No evangelho de Felipe, Madalena per-
sonifica a gnose (= conhecimento = Sabedoria = Sofia), consorte do Cristo terreno,
encarnação da Sofia celeste, assim como o Cristo terreno é encarnação do Lògos
130
eterno”.
Nesse evangelho gnóstico, Maria Madalena também é tida como a "discípula
mais amada do senhor", simbolizando a importância dos mistérios divinos femininos
para a reintegração da Alma, e também porque o Cristo/Espírito "ama" nossa alma
mais do que a qualquer coisa, e deseja seu regresso ao seu seio, a fim de recons-
tituir o Ser original. O beijo na boca, que é utilizado aqui alegoricamente, representa
a recepção do Logos ou da Palavra, como diz o mesmo evangelho:
Aquele que é beijado pela boca; se o Logos tivesse saído dali se alimentaria pela
boca e seria perfeito. Os perfeitos são fecundados por um beijo e engendram. Por
isso nós nos beijamos uns aos outros e recebemos a fecundação pela graça que nos
é comum" (lòghion 31).
Ela é descrita então, como "aquela que vê", que é capaz de discernir a Luz
no escuro, e que é a Companheira de Jesus, sua Consorte. É a Sofia Celeste, que
através do casamento alquímico, é capaz de transmutar seu corpo material em um
corpo de glória, e que é preparada pela Gnose para ascender ao Reino Eterno.
O Evangelho de Felipe menciona Maria como uma das três Marias “que
sempre andaram com o Senhor”: "Eram três que acompanham sempre o Senhor:
sua mãe Maria, a irmã dela, e Madalena, que é chamada de sua companheira.
Com efeito, era "Maria" sua irmã, sua mãe e a sua consorte" (lòghion 32). Para Se-
bastiani (1995, p. 57),
Aparece aqui também a tríade feminina que, na tradição, conhece várias variantes.
Ali, é evidente um certo parentesco com Jo 19,25. Mãe, irmã e consorte do Salvador
terreno eram, para os gnósticos, uma única Maria sob diversos aspectos.
No parágrafo seguinte, a autora ressalta um aspecto muito polêmico:
O mais notável ali é o apelativo atribuído a Madalena de "companheira" ou "consorte"
(koinonòs) de Jesus. A idéia matrimonial deve ser entendida no sentido místico,
como protótipo da união perfeita entre a Sofia celeste e o Lògos. Toda a teologia do
autor deste evangelho é centrada e resumida no "mistério do quarto nupcial", sacra-
mento da reunificação do homem com a divindade. Em toda a literatura gnóstica, o
acento que recorre numa relação de amor entre Jesus e Madalena alude a uma es-
131
pecial comunhão mística (os místicos de todas as épocas, aliás, têm descrito suas
experiências unitivas em termos amorosos).
O que a designação "companheira" significa toma-se clara no lòghion 55,
quando se afirma que o Senhor a amava mais que a todos os discípulos e costu-
mava beijá-la freqüentemente:
... A companheira de Cristo é Maria Madalena. O Senhor amava Maria mais do que
todos os discípulos, e a beijou com freqüência na boca. Os outros, vendo o seu amor
por Maria, lhe disseram: 'Por que amas a ela mais do que a nós todos?" O Salvador
respondeu-lhes: 'Como não vos amo tanto quanto amo a ela?’.
Boer (1999, p. 87) adverte que “É fundamental não entender este beijo” no
sentido sexual e sim no sentido espiritual. A graça que os que se beijam trocam, faz
com que renasçam”. King (1998, p. 43), acrescenta, citando o lòghion 63:
Beijar simboliza a recepção de um ensinamento espiritual, como Jesus assinala: "[E
quando] a palavra sai desse lugar, ela é alimentada pela boca e se torna perfeita.
Pois é por um beijo que os perfeitos concebem e dão à luz. Por esse motivo também
nós nos beijamos uns aos outros. Recebemos a concepção a partir da graça que
está uns nos outros.
Sebastiani (1995, p. 57) finaliza:
Na Gnose, a relação de Jesus com Maria de Magdala era o exemplo supremo da ali-
ança espiritual em que se devia superar a dualidade sexual (sinal de divisão e de im-
perfeição), prefigurando o destino superior de união da humanidade renovada, e o
sacramento do beijo era o sinal eficaz desta aliança.
King (1998, p. 43) ainda ressalta que
Quando os outros discípulos fazem objeções ao evidente favoritismo mostrado para
com Maria, Jesus lhes diz que deveriam procurar, ao invés, ser amados como ela o
é, ou seja, deveriam procurar a perfeição espiritual que ela alcançou.
8. Pistis Sophia: entre o feminino e o masculino
A Sabedoria não chama?
132
O Entendimento não levanta a voz ?
Nos montículos, ao lado do caminho,
Em pé junto às veredas,
Junto às portas da cidade,
Gritando nos caminhos de chegada:
A vós homens eu chamo,
Dirijo-me aos filhos de Adão:
Os ingênuos aprendam a sagacidade,
Os insensatos adquiram um coração.
(Pr 8,1-5)
Iahweh me criou, primícias de sua obra,
De seus feitos mais antigos.
Desde a eternidade fui estabelecida,
Desde o princípio, antes da origem da terra.
(Pr 8,22-23)
Com essas palavras, o texto dos Provérbios se refere a Sabedoria, Cho-
ckmah em hebraico e Sofia em grego. Ainda no livro de Sabedoria, temos :
Foi ela que protegeu o primeiro homem, pai do mundo,
Que fora criado em solidão;
Levantou-o de sua queda
E lhe deu poder de tudo dominar.
Dela se afastou, em sua cólera, um injusto,
Arruinou-se em sua sanha fratricida
Por sua culpa a terra foi submersa,
E outra vez a Sabedoria o salvou,
Pilotando o justo em uma frágil embarcação.
133
(Sabedoria 10,1-4)
Nesse livro, a Sabedoria é descrita como uma emanação da glória de Deus,
o espelho imaculado de sua energia e a esposa do Senhor, e foi essa imagem que
os gnósticos tomaram para si para criar o arquétipo da Sofia.
O Pistis Sophia, escrito no século II ou III d.C, baseado nos ensinamento de
Valentiniano, descreve a queda, o arrependimento, as iniciações e a reintegração
da Sophia, o primeiro princípio feminino que emanou da Divindade, juntamente com
seu consorte masculino, o Cristo.
Desejando encontrar seu esposo, Sophia segue uma falsa luz, que ela con-
funde com a do Cristo, e que a retira do reino da Luz da mais alta esfera, o Tesouro
da Luz. Através dessa falsa Luz ela queria buscar uma maior grandeza, e como
punição ela cai pelos planos espirituais, até ficar presa no nível mais denso, sendo
constantemente vilipendiada pelos Arcontes do plano astral e pelo Autocentrado, ou
o Ego encarnado. Ela vive, então, em eterno arrependimento, clamando por ser li-
bertada através da redenção, do batismo e do perdão de Deus e a espera do seu
Salvador.
É justamente após a sua Ressurreição, quando o Cristo ainda está ensinan-
do aos Apóstolos, que Ele ouve os clamores de Sophia, e a leva, através de todos
os planos, envolta em um corpo de Luz, para o plano que lhe corresponde. Durante
esta viagem, o Cristo reorganiza o mundo astral, para que os homens não sejam
mais prisioneiros das influências dos Arcontes, e possam seguir o caminho da li-
bertação.
Pistis Sophia representa a Alma humana assediada pelas paixões e pelas
tentações do mundo material, representados no texto pelos regentes do mundo as-
tral, que querem de todas as maneiras roubar sua luz interior, pois esta é de origem
divina. Pistis Sophia, deve então, lutar contra todo o assédio dessas forças contrá-
134
rias, para que, através do seu arrependimento, pudesse encontrar seu par, o Cristo,
e retornar para o seu lugar de origem junto a Divindade.
O Pistis Sophia é composto de cinco livros, sendo que nos dois primeiros o
Cristo conta a queda de Sofia, os seus treze cantos de arrependimento, sua ascen-
são à Luz e sua reintegração ao Esposo. Durante todo o texto Jesus pede cons-
tantemente que os discípulos que sejam tocados pelo Espírito (costume dos antigos
gnósticos) dêem sua avaliação sobre o que foi exposto por Ele. Quase sempre o
discípulo avalia o ensinamento de Jesus através de um Salmo ou um Cântico, para
provar que tudo o que o Cristo fez estava escrito no Testamento. Tantos os homens
como as mulheres discípulos/as participam livremente do diálogo como Jesus. Ma-
ria Madalena é a discípula que mais interroga o Mestre, é a que melhor compreen-
de seus ensinamentos, e é em quem Ele deposita maior confiança e amor. Tanto
que chega a deixar Pedro irritado com suas intervenções constantes.
O texto é um grande tratado de doutrina gnóstica, um diálogo de revelação
de Jesus ressuscitado a um grupo que abrange os onze discípulos e quatro mulhe-
res - Maria mãe de Jesus, Maria Madalena, Marta e Salomé (Sebastiani, 1995).
"Maria, tu, a abençoada, a quem vou aperfeiçoar em todos os mistérios do
alto, fala com franqueza, tu, cujo coração está mais voltado ao reino de céu do que
todos teus irmãos" (Pistis Sophia, livro 1, cap. 17).
Neste tratado, Boer (1999) arrola diversos elogios feitos pelo próprio Senhor
a Madalena. É dito que o coração dela é mais afinado com o Reino dos Céus do
que o coração de qualquer um de seus irmãos (Pistis Sophia 17); que ela está para
ser exaltada sobre todas as mulheres (Pistis Sophia 19); que Maria Madalena ela-
bora a questão correta com precisão e propósito (Pistis Sophia 25); que no Reino
do Céu, da mesma forma que João, ela provará ser mais profunda que os outros
discípulos (Pistis Sophia 96).
135
A maioria das perguntas a Jesus é feita por Maria Madalena, que intervém
constantemente, quer para interrogar a Jesus, quer para responder às perguntas
feitas por Ele. Ela demonstra conhecimento das escrituras e das declarações de
Jesus e busca o significado independentemente. Além disso, cita Isaías e os Sal-
mos e memoriza o que Jesus diz (Boer, 1999).
Sebastiani (1995, p. 60) informa que neste texto Maria de Magdala,
Pela profundeza espiritual das perguntas e das respostas é louvada por Jesus de
uma forma muito mais solene do que qualquer outro interlocutor: "Bem-aventurada
és tu, Maria, que eu aperfeiçoarei em todos os mistérios do alto [...], tu, cujo coração
está voltado para o reino dos céus mais que todos os teus irmãos!"; "[...] Tu és a
mais feliz de todas as mulheres da terra; serás a plenitude de toda sabedoria e a
perfeição de toda perfeição". A ela Jesus se dirige diretamente como à pessoa que
pode compreender, ao passo que aos outros discípulos pede um esforço de compre-
ensão: "Muito bem, Maria: a tua pergunta é excelente, e lanças luz sobre qualquer
ponto [...]. Por isso, não vos deixarei mais nada escondido, daqui em diante, mas re-
velar-te-ei tudo com certeza e clareza. Por isso, escuta, Maria, e vós todos discípulos
procurai entender [...].
De acordo com Sebastiani (1995), muitas passagens da Pistis Sophia con-
têm evidentes reminiscências ou dos evangelhos canônicos ou da mesma tradição
oral que os alimentou; sendo que estas foram interpretadas de forma totalmente
espiritual e escatológica, ou seja, de modo diferente. Neste escrito, Madalena é a
discípula por excelência, aquela cuja fala é interpretação e revelação. Na segun-
da parte da obra, apenas Maria recebe o elogio fundamental dos gnósticos: é cha-
mada pneumática muitas vezes. Os louvores com que Jesus acolhe quase todas as
perguntas de Maria ressalta nela o crente perfeito, o pneumático: totalmente inabi-
tado e guiado pelo Espírito, já transfigurado na divindade.
Neste escrito, Pedro também demonstra sua intolerância com relação a Ma-
dalena, que é ressaltada por duas vezes. Ao comentar a primeira passagem, Se-
bastiani (1995, p. 61) afirma que
136
um curioso som de vivacidade coloquial, um tom complexamente hermético e
quase litúrgico da Pistis Sophia: o protesto de Pedro, voltado explicitamente para o
excessivo “protagonismo” da Grande Discípula, mas, sobretudo, mais veladamente
para a evidente predileção de que é feita alvo por parte de Jesus “[...] Pedro preci-
pitou-se adiante e disse a Jesus: 'Meu Senhor, nós não podemos mais suportar esta
mulher, pois nos tira a oportunidade; ela não deixou falar ninguém de nós, mas é
sempre ela a falar"'. E mais adiante: "Meu Senhor, que as mulheres cessem afinal de
perguntar, de modo que possamos também nós fazer perguntas!".
A intransigência de Pedro é pontuada mais uma vez e merece o seguinte
comentário de Sebastiani (1995, p. 61), escrito logo abaixo do anterior:
Numa passagem análoga a essas, Maria ressalta abertamente a oposição de Pedro
em relação a ela - aliás, em relação ao gênero (ghènos) feminino em geral. "Por isso,
eu tenho medo de Pedro: ele costuma ameaçar-me e odeia nosso sexo". Jesus, en-
tão, responde que quando alguém é inspirado pelo Espírito, homem ou mulher, é
consagrado por Deus para o anúncio.
Boer também comenta as duas passagens anteriores (Pistis Sophia 36 e 72)
e informa que “Em ambos os momentos, a resposta é que é uma questão da pes-
soa na qual o espírito se manifesta. O espírito fala em Maria tanto quanto fala em
Pedro” (1999, p. 85).
Maria Madalena está confiante: “Qualquer um que estiver repleto do espírito
de vida virá à frente expor o que eu digo: ninguém estará em posição de impedir”
(Pistis Sophia, 72).
9. Diálogo do Salvador: a discípula pneumática
Neste papiro da biblioteca Nag Hammadi, Diálogo do Salvador, do século II,
Maria Madalena também aparece em um papel proeminente frente aos demais dis-
cípulos.
137
King (1998) resume os pontos mais importantes relacionados à Madalena, e
cita diversas passagens deste diálogo entre o Senhor e seus discípulos, no qual Mí-
riam de Magdala também responde com propriedade incomum a algumas pergun-
tas. O próprio Senhor, ao ouvir uma resposta, deleita-se: “Você torna clara a abun-
dância do revelador” (Diálogo do Salvador, 140, 17-19). Em outra passagem, o nar-
rador explica: “Ela disse isso como mulher que entendeu completamente" (Diálogo
do Salvador, 139, 11-13). Maria é uma discípula que compreendeu perfeitamente o
ensinamento do Senhor (Diálogo do Salvador, 142, 11-13).
Boer (1995, p. 84) relata que Maria Madalena é retratada “como alguém que
tem muita percepção do divino” e que “cita declarações sábias de Jesus”. E acres-
ce que o autor dos Diálogos escreve: "Ela articulou os conhecimentos como uma
mulher que entendeu completamente".
10. Textos diversos: o feminino no gnosticismo
Nos textos de Nag Hammadi encontramos inúmeras referências ao poder di-
vino feminino e ao papel crucial da mulher no cristianismo primitivo. Esses perga-
minhos, inclusive, referem-se ao elemento feminino como divindade, celebrando
Deus como Pai e Mãe.
Os gnósticos partiam de onde os evangelhos tradicionais, ou canônicos, ter-
minam, com histórias do Cristo espiritual aparecendo aos discípulos. E estavam
convictos que aqueles que realmente receberam o espírito podiam se comunicar
com a divindade. Essa divindade aparecia ora como o próprio Cristo, ora como cri-
ança, ora como mulher.
No livro O testemunho da verdade encontramos a narrativa do Jardim do
138
Éden do ponto de vista da serpente, que simboliza o princípio da sabedoria divina
que convence Adão e Eva a compartilhar do conhecimento, enquanto o senhor,
autoritário, os ameaçava de morte e os expulsava do Paraíso. O Jardim do Éden
gnóstico traz uma visão extremamente diferente do canônico.
Em vários textos gnósticos temos uma concepção dualista de Deus que nos
remete ao Yavé de Jó, um deus com características humanas negativas distantes
da concepção do Deus Criador, sumo Bem. A grande diferença dos cristãos orto-
doxos para os cristãos gnósticos é que, enquanto os primeiros iam cada vez mais
discriminando entre o clero (masculino) e os leigos, os gnósticos seguiam o princí-
pio de igualdade estrita: todos os iniciados, homens e mulheres, participavam de
um sorteio para padre, bispo ou profeta. Obviamente essa prática causava enorme
indignação à ortodoxia e muita perseguição.
Enquanto as tradições do mundo são ricas em simbologia feminina, o ju-
daísmo, o cristianismo e o islamismo falam de um Deus eminentemente masculino,
Pai, Senhor, Rei, Juiz... Mesmo assim, com toda essa masculinização da nova reli-
gião, a maioria dos gnósticos se opôs orando a Deus Pai, Deus Mãe: “De Ti, ó Pai,
e através de Ti, ó Mãe, os dois nomes imortais, Ancestrais do ser Divino...”..
O Apocryphon de João descreve a Mãe Divina como o terceiro elemento da
trindade, o Espírito Santo. Lembremos que em hebraico espírito é ruah, uma pala-
vra feminina. Alguns gnósticos sugeriram que a Mãe Divina, para a maioria simboli-
zada por Maria Madalena, correspondia a Sophia, Sabedoria, que em hebraico é
Chokmah, palavra feminina. Nos Provérbios lemos que “Deus fez o mundo em Sa-
bedoria...”
Há, também, muitas interpretações, não gnósticas, sobre a concepção dí-
ada de Deus, que tanto é masculino como feminino, como vimos no Gn 1, 26,27.
“Então Deus disse, Façamos o homem (Adam) à nossa imagem, como nossa se-
139
melhança...à imagem de Deus ele os criou; homem e mulher, ele os criou”.
Não podemos afirmar, porém, que todos os gnósticos defendiam e eram fa-
voráveis às mulheres, como nem todos ortodoxos as denegriam. Mas por certo hoje
sabemos mais sobre as tradições antigas relativas à Maria Madalena do que sabía-
mos cerca de dois séculos. Até então, Maria de Magdala estava confinada na
imagem que a tradição eclesiástica construiu e preservou. Mas agora podemos
afirmar que na antiguidade existiu outra imagem de Maria Madalena, a imagem da
discípula no mesmo nível que Pedro, mas com uma percepção especial.
E não apenas os antigos textos perdidos nos dão esta informação. Vascon-
cellos e Silva (2003, p. 301) afirmam que o próprio texto canônico do Segundo
Testamento atesta a presença marcante das mulheres no movimento de Jesus e
nas comunidades cristãs primitivas.
De acordo com Mattos (2002, p. 25), “O primeiro período histórico da Igreja
de Cristo foi o da Igreja apostólica, que terminou no ano 100 dC. Nele, as apóstolas
e os apóstolos de Cristo Jesus propagaram a Sua mensagem ...”. Em nota de ro-
dapé à página 24, Mattos (2002), citando Wilhelm Egger, afirma que no Segundo
Testamento o conceito da palavra “apóstolo/a” resume, entre outras, uma ou mais
das seguintes características: a) enviado/a por Cristo; b) teve comunhão com o
Jesus terreno; c) teve encontro com o Ressuscitado. Ora, Maria Madalena é a en-
carnação de todas estas possibilidades! No primeiro século portanto viveu e com
certeza pregou a mensagem do Cristo ressurrecto – a apóstola Maria de Magdala.
140
CONCLUSÃO
Auxiliar no resgate da dignidade do feminino através do resgate da imagem
de Maria Madalena é um desejo que expressamos no início dessa dissertação, haja
vista que o ideário feminino pode ser profundamente transformado com a apresen-
tação da personagem bíblica Maria Madalena sem o manto de opressão e pecado
com o qual foi recoberta ao longo do tempo. Resgata-Ia em uma dimensão mais
ampla é libertar o feminino da poeira de séculos de tirania e opróbrio.
Na reconstituição da trajetória dessa construção imagética utilizamos as
chaves de interpretação preconizadas pela hermenêutica feminista, aplicando-a a
textos fundantes do cristianismo, tanto da literatura bíblica quanto da apócrifa e da
patrística. Utilizando a leitura de gênero como uma categoria analítica de relações
141
construídas culturalmente, detivemo-nos na análise das origens do cristianismo e
percebemos que nem tudo eram flores nos cristianismos originários.
Para melhor entendermos o papel de Maria Madalena nas primitivas comu-
nidades cristãs, inicialmente buscamos as referências bíblicas à nossa personagem
e encontramos apenas doze referências canônicas, onze delas no contexto da Pai-
xão. Procedemos à exegese de Lc 8,1-3, a única que a mostra no início do ministé-
rio de Jesus, e tivemos gratas surpresas com o texto final da perícope. O resultado
do trabalho nos permite afirmar que ela exerceu um nobilíssimo papel naquelas
comunidades e que nenhum versículo blico nos autoriza a fazer sequer uma úni-
ca suposição que a macule. O que descobrimos é que Maria Madalena foi, na ver-
dade, uma apóstola negligenciada pelos autores do cânon.
Outra foi, todavia, a escolha dos(as) autores(as) da literatura apócrifa, princi-
palmente a gnóstica, que a reverenciaram como a Sophia, a Sabedoria, a Noiva, a
discípula amada.
No final do milênio anterior diversos dogmas foram rechaçados. Historica-
mente não mais se admite que a totalidade das tradições orais e escritas fidedignas
sobre o Mestre dos cristãos e seus ensinamentos estejam contidas nos limites dos
quatro Evangelhos. Quão rica foi a descoberta da imensidade da tradição escrita
sobre os ensinamentos de Yeshua!
Pergaminhos corroídos pelo tempo permitiram-nos um novo olhar sobre
o(a)s protagonistas daqueles eventos. Os textos apócrifos dos primeiros séculos
são um amálgama do pensamento de sua época e neles Jesus de Nazaré e seus
discípulos extravasam o cânone. São magníficas as páginas que irromperam aos
borbotões de antigos esconderijos, sacrários por vezes involuntários de tão precio-
sos tesouros.
Dentre eles, um texto do segundo século, dos cristianismos originários, era
142
um evangelho desconhecido cerca de cem anos. Um Evangelho em nome de
Maria. A autora pode não ser Madalena. Provavelmente ela já havia ido encontrar o
seu Salvador quando o Evangelho foi elaborado, mas ela é a figura central do es-
crito. A discípula na qual permanecem vivos os ensinamentos do seu Mestre. A
mulher que ouviu de Jesus ensinamentos que os outros primeiros discípulos des-
conheciam. Aquela que, em seu êxtase, o Cristo ressuscitado. Míriam de Mag-
dala. Para o texto canônico, apenas a primeira testemunha da ressurreição. Para
os pergaminhos apócrifos, a discípula inspirada. No cânon, uma das mulheres que
acompanhavam Yeshua. Nos papiros gnósticos, a companheira do Senhor. Sua
consorte. Koinonòs.
No Evangelho de Maria temos o retrato de uma figura muito mais importante
na igreja primitiva do que transparece na imagem canônica do Segundo Testa-
mento. Uma liderança de tamanha grandeza que gerou ciúmes entre os seus. Sua
dignidade é recuperada. Ela é uma apóstola, como os Doze. Um vigoroso retrato de
Madalena como profetisa visionária, discípula exemplar e líder apostólica, com pa-
pel proeminente entre os discípulos. As primitivas comunidades cristãs gnósticas
reverenciavam sua apostolicidade por ter sido escolhida como mensageira da Res-
surreição.
Apesar disso, Maria Madalena foi silenciada pelo apóstolo Paulo. E pelos
autores do texto canônico. Somente doze referências e ela na Bíblia. E apenas nos
quatro Evangelhos. Porque, afinal, ela não é a 12ª apóstola? Estão evidentes as
intenções misóginas e androcêntricas que irão desaguar, ao longo dos séculos, no
vilipêndio construído pela patrística no ocidente cristão, onde sua imagem foi alte-
rada com o objetivo de descaracterizar o apostolado feminino, fato que contribuiu
para a construção da identidade de gênero marcada pela baixa auto estima e, con-
seqüentemente, pelo fraco empoderamento das mulheres.
143
Maria Madalena é a Apóstola dos Apóstolos, a transmissora da Gnose, a
Companheira do Cristo, a Centelha Anímica dentro de nós, a que anseia pela sua
reunião com o Salvador. Para o Evangelho de Felipe, a consorte do Cristo na câ-
mara nupcial. Somente epítetos honrosos. Em nossa pesquisa não encontramos
nenhum fundamento plausível que ampare a pecha de prostituta impingida a Maria
Madalena. Ao contrário, tudo que vimos somente nos autoriza a reverenciar a mu-
lher que acompanhou seu Mestre e permaneceu ao Seu lado até depois do impen-
sável...
A imagem de Maria Madalena em seu evangelho é digna da práxis do Cristo.
Ali se tem um retrato que fala de liderança exercida por quem está espiritualmente
mais avançado, independentemente dos papéis sociais de gênero. Uma imagem
que demonstra que Maria de Magdala e as mulheres em geral não foram atores
marginais na formação do cristianismo. Um texto que restabelece a dignidade do
feminino. Um escrito que fala aos nossos corações como um dia falou aos cristãos
da antiguidade. Uma pérola que o inevitável conflito entre o gnosticismo e a fé
cristã no seio da igreja antiga havia relegado ao ostracismo.
A práxis do Cristo não autoriza a discriminação do feminino. Jesus rompeu
várias regras estabelecidas pela comunidade judaica, e dar um papel mais impor-
tante às mulheres dentro de seu grupo foi uma dessas rupturas. Lc 8,1-3 demonstra
que as mulheres estavam com o Mestre desde o princípio de sua missão. A Bíblia
também relata que o Cristo conversava diretamente com elas, ministrando-lhes co-
nhecimentos sagrados, tal como fez com a Samaritana, e deixava-se tocar por
aquelas consideradas impuras pelos judeus tradicionais.
Há algo que aproxima essas mulheres e permite descrevê-las a partir daquilo
que as une: o extraordinário fascínio que Jesus exerce sobre elas e o contato que
elas têm com Ele. Esse fato era realmente transgressor para a cultura da época e
144
exatamente por isso era extremamente libertário e moderníssimo: nessa sintonia as
mulheres tornam-se livres diante de Jesus e se tornam testemunhas com um ardor,
um ímpeto, um entusiasmo que valem muito mais do que quaisquer erros, culpas
ou defeitos.
Mesmo os que têm dificuldade em aceitar uma hermenêutica diferente da
tradicional têm que admitir que a práxis do Cristo não diferenciava homens e mu-
lheres. Para Ele, masculino e feminino são a mesma face de um mesmo ser: o hu-
mano.
Conforme dizia Gustav Jung (1994), a encarnação de Deus na humanidade
envolve a elevação do princípio feminino e seu retorno ao status divino ou semidivi-
no. Nesse contexto, a Virgem Maria e Maria Madalena representam os dois aspec-
tos encarnados pela Sofia dos Gnósticos, para que o Cristo pudesse se manifestar
na matéria e na alma de todos os homens: a mãe do Cristo e a noiva do Cristo. Em
Madalena eles viam ainda a possibilidade de restauração do ser andrógino original.
"Deus criou o ser humano à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem
e mulher os criou" (Gn 1,27). Se homem e mulher foram criados à imagem de
Deus, em Deus se encontra tanto o masculino quanto o feminino. Deus-Pai, mas-
culino, é também Deus-Mãe, feminino. Sendo Deus masculino e feminino, devemos
resgatar o feminino e erigi-lo à mesma dignidade do masculino para que o divino se
faça íntegro.
Jesus encarnado faz parte de um gênero, o masculino, mesmo sendo o ar-
quétipo da síntese. Assim, para que ocorra a alquimia tem que haver o hieros ga-
mos, a junção dos princípios feminino e masculino. Para tanto precisa existir um
homem e uma mulher. O hieros gamos é o casamento sagrado, o catalisador da
transmutação. É a sacralidade da união sexual.
Para determinados setores mais tradicionais da igreja cristã ocidental, en-
145
tretanto, a igualdade, com seus reflexos diretos na sexualidade e no amor erótico, é
incompatível com a espiritualidade e, portanto, a sexualidade é depreciativa e pre-
cisa de repressão.
No século III, no ocidente, sob a sombra psicológica do inconsciente coletivo,
onde, segundo Jung, ocorre a projeção dos aspectos inferiores da alma humana,
Maria Madalena se torna a impura, a incapaz, a incompetente. Essa redução do
feminino ocorre a par do início do celibato masculino. Para Qualls-Corbett, 2002, p.
194: "(...) a repressão da sexualidade pelo pai cristão manipulou a imagem de ma-
neira que Maria Madalena fosse vista como penitente, renunciando à sua sexuali-
dade".
O cristianismo havia herdado do judaísmo o Deus Pai. Pai criador, atributo
feminino, mas Pai. Por outro lado, a Deusa-Mãe havia se perdido nas brumas do
tempo. Assim, a mulher cristã ocidental ficou sem referência de divindade feminina.
"A Igreja não reconhecia os atributos da Deusa, nem a inerente natureza sexual da
mulher (ou do homem)" (Qualls-Corbett, 2002, p. 59).
O ser, no entanto, clama pela deusa, pelo feminino, pela inteireza (masculi-
no/feminino). A igreja, atenta, permite que amemos Maria, mãe de Deus.
As qualidades positivas da deusa foram integradas, até certo ponto, à figura da
Virgem Maria, particularmente em países católicos. Em países predominante-
mente protestantes, essa integração não transpareceu, e Maria foi eliminada da
vida religiosa, exceto como a mãe adoradora do presépio natalino. (Qualls-
Corbett, 2002, p. 59).
Mas mesmo na face Mãe da deusa, a Virgem Maria, a sexualidade é nega-
da, por mais esdrúxula que possa parecer essa negação da natureza ínsita do ato
sexual como precedente da maternidade. E em Maria Madalena, que poderia as-
sumir a outra face da deusa, a Amante, a sexualidade é logo tida como impura e
ela é relegada à condição de pecadora. Assim, de qualquer forma, a deusa é muti-
146
lada e não pode assumir sua plenitude.
Consoante vimos nesse trabalho, entretanto, antes do século III, mesmo
para esses setores mais tradicionais da igreja cristã ocidental, Maria Madalena era
a Apóstola dos Apóstolos. Ela personificava um arquétipo feminino: o arquétipo da
anima (irmã, igual, discípula, amante), a sóror mística (companheira, koinonòs).
Mulheres desejam que essa personificação seja transportada para o con-
creto cotidiano. Mulheres de carne e de osso querem vida plena, sexualidade ple-
na, relações plenas. Ser como Maria Madalena não é admitir ser pecadora eterna-
mente penitente e arrependida por terem expressado seu desejo de vida. Mulheres
querem ser companheiras, irmãs, iguais, discípulas, mestres, amantes, mães. E
querem que seus homens também sejam plenos.
A pesquisa mostrou que resgatar o original perfil de Maria Madalena é a
possibilidade de contatar um arquétipo feminino poderoso e transformador, a discí-
pula e a amante, faces complementares do ser, símbolo da igualdade do masculino
e do feminino. Como figura arquetípica, Maria Madalena representa a recuperação
da via feminina, ou da Sofia, como forma de reintegração à Divindade.
Reintegrados à divindade estamos mais plenos, mais prontos, mais prepara-
dos para a Vida e o Serviço.
Masculino e feminino, ativo e passivo, são processos relacionais, como vi-
mos na espiral de cura e de serviço no quadrilátero semiótico das páginas 57/58. A
relação é quádrupla e por isso mesmo favorece a transcendência de cada um dos
parceiros: homem (masculino e feminino) e mulher (feminino e masculino).
Ao fazermos a exegese de LC 8,1-3 montamos o quadrilátero semiótico das
páginas acima citadas e nele vimos que Jesus cura as mulheres (e, ao fazê-lo, rea-
liza um serviço!), e estas, já curadas, por sua vez servem-no. A relação de serviço
e cura é dialógica. E é essa relação dialógica que permeava a convivência do Mes-
147
tre com aquelas mulheres nominadas na perícope, inclusive Maria Madalena.
O mútuo serviço de homens e de mulheres era portanto uma prática do cris-
tianismo primitivo. É a essa conclusão que nosso estudo nos leva.
Essa conclusão desautoriza a utilização da figura de Maria Madalena para
justificar uma prática não-igualitária ou de exclusão, como ocorre em certas religi-
ões, igrejas e movimentos, que se apropriam da imagem para justificar a opressão.
Pesquisamos uma entidade herdeira de um dos ramos do gnosticismo, de-
nominado holismo (do grego holos), a Universidade Holística Internacional, para ve-
rificarmos se nesta se busca praticar a igualdade de direitos e deveres entre ho-
mens e mulheres. Vimos que nesta entidade dedicada à cultura de paz, com sede
em Brasília, não discriminação em razão do sexo. E o trabalho é praticado a
serviço do outro, a serviço da paz, a serviço do ser, a serviço de si mesmo, de um
melhor destino e futuro para si, para a humanidade e para o planeta. É serviço duro
e diário, criativo, exaustivo, cansativo. É construção de relações harmônicas no
hoje, com reflexos no amanhã. É trabalho educativo, mas também pão na mesa de
centenas de aprendizes que passam o dia nas escolas comunitárias gratuitas. É
práxis cristã. É a diaconia do feminino e do masculino laborando em conjunto.
Jesus e os doze e as mulheres juntos andavam, anunciavam e proclamavam
o Reino de Deus, e portanto o serviço era delas e deles e compreendia todas estas
ações, tanto dentre eles, como na relação com a comunidade. Logo, todos e todas
eram beneficiados, todos e todas eram sujeitos ativos e passivos, fazendo e rece-
bendo os mais diversos serviços, num diaconato que deve servir de exemplo e mo-
delo para os cristãos de hoje.
Nessa complementariedade e circularidade se apresentam os fatos que
constituem um resumo do duplo ministério de Jesus: ensinar e curar. Como conse-
qüência destes atos, Jesus habilita homens e mulheres para também ensinar e cu-
148
rar e manter vivo o anúncio e proclamação do Reino de Deus. O serviço de homens
e mulheres, em igualdade de condições, mas com respeito às diferenças que
mantêm a individualidade, é a expansão e a vida do cristianismo. Eis aqui apre-
sentada sua semente e vislumbra da a constante consumação da diaconia.
Em alguma parte, alguma vez, houve uma Flor, uma Pedra, um Cristal; uma Rai-
nha, um Rei, um Palácio; um Amado e uma Amada, muito tempo, no Mar,
numa Ilha, há cinco mil anos... É o Amor, é a Flor Mística da Alma, é o Centro, é o
Si-Mesmo... Ninguém entende isso, a não ser alguns poetas, somente eles me
compreenderão... (Carl Jung apud Miguel Serrano, 1970, p. 77.)
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156
ANEXOS
Apresentaremos brevíssimos exemplos da pictografia, iconografia, antologia
poética e hagiografia e a simbologia das representações artísticas mais usuais de
Miriam de Magdala.
1. Pictografia e iconografia
157
Santa Maria Madalena, 1996, Robert Lentz.
Ícone para celebrar a eleição de Bárbara Harris,
primeira mulher bispo da Igreja Anglicana. Grace Cathedral, San Francisco.
158
Domingos Vieira Serrâo, Êxtase de Maria Madalena, Séc. XVII.
159
160
161
162
2. Simbologia
Quatro são os principais símbolos associados a Maria Madalena: O Jarro, O
Crânio, o Livro e o Ovo Vermelho.
2.1. O Jarro
Este símbolo está associado à Maria Madalena em razão dela ter sido asso-
ciada às várias mulheres que ungiram o corpo do Senhor. São as mirróforas da Bí-
blia. Além disso, o Jarro nos lembra o cálice sagrado, também era representado por
uma cornucópia, que dispensava alimento espiritual à todos o que o tocassem.
2.2. O Crânio
De conotação mais hermética, o crânio pode estar ligado a diversas inter-
pretações. A mais comum delas é a de que é um símbolo de penitência, pois nos
mostra o quanto a vida é efêmera diante da certeza da morte e do quanto é neces-
sária a penitência como forma de se purificar para a vida eterna.
O crânio também está associado à ressurreição por ser um símbolo da morte
física. É o arquétipo da renovação espiritual, do abandono da vida anterior ligada ao
mundo da matéria, da renovação da natureza. Como ela foi testemunha da ressur-
reição do Cristo, foi associado à ela este símbolo.
Outra associação possível é com o nome do lugar onde o Cristo foi crucifica-
do: o Gólgota, ou "lugar das caveiras".
2.3. O Livro
163
Maria Madalena também é representada junto a um livro aberto, sobre o qual
ela medita sobre os conhecimentos deixados pelo Mestre. O Livro é a Gnose ou é o
Novo Testamento. Como principal discípula de Jesus, Madalena continua como a
portadora do Conhecimento que abre o espírito ao Espírito Divino. Ela decifra o ver-
dadeiro conteúdo e simbologia das escrituras, buscando o sentido interior da pala-
vra escrita. Além disso, para quem a como pecadora, ela permaneceria o resto
de sua vida lendo a Bíblia e meditando sobre as palavras de Jesus.
Pode ser também a representação do fato de que, à Maria Madalena, foi as-
sociado o quarto evangelho, senão como sua escritora, mas como sua inspiradora,
pois é o evangelho que mais fala do amor e do espírito. Além disso, o fato de
que o quarto evangelho foi atribuído ao "discípulo mais amado" do Cristo, epíteto
utilizado pelas comunidades cristãs primitivas mais para se referir à Maria Madalena
do que à João. Outro detalhe é que, em sua cruz, Jesus pede ao "discípulo mais
amado" que cuide e vele por sua mãe, Maria. Como sabemos pela descrição da
cena pelo próprio autor do quarto evangelho, ao redor da Cruz estavam as três
mulheres, e entre elas Madalena. Isto poderia representar que era a ela que Cristo
se dirigia, e não a nenhum outro discípulo.
2.4. O Ovo Vermelho
Diz a tradição que, após partir para a Europa, Maria Madalena conseguiu
uma audiência em Roma com o imperador Tibério César, por ser considerada uma
patrícia romana (assim como Paulo). Sua intenção era denunciar o crime cometido
pela negligência de Pilatos, e para isso contou-lhe a vida do Cristo, Sua morte e
Ressurreição. Ao terminar seu relato, ela pegou sobre a mesa de jantar um ovo
branco para ilustrar seu ponto de vista sobre a ressurreição. Ao ver isso, César re-
164
plicou que era mais fácil um ovo branco se tornar vermelho do que existir alguém
que retornou dos mortos. No mesmo instante, o ovo nas mãos de Maria se tornou
vermelho como sangue. Até hoje os cristãos ortodoxos trocam ovos vermelhos na
Páscoa para comemorar esta estória.
O ovo é o símbolo do nascimento, de tudo o que está em germe para ser ge-
rado e dar à vida. É o símbolo da unidade primordial, que trás em si o que irá ema-
nar. É a gestação do Novo Homem, símbolo da unidade da qual viemos e para qual
iremos retornar.
3. Odes à Madalena
Unge-me de Perfumes
(António Patrício, 1911)
«Gosto tanto de ti...», dizes. É pouco.
É das tuas mãos erguidas que eu preciso.
Vê bem, amor: não é orgulho louco.
Para os outros eu sou apenas riso.
Unge-me de perfumes, minha amada,
Como certa Maria de Magdala
Ungiu os pés d'Aquele cuja estrada
Só começou para além da vala.
Ama-me mais ainda, ó meu amor
Como aquela mulher ungiu o Cristo
Unge o meu corpo todo, a minha dor...
165
Ela ungiu-o p'ra o túmulo, p'ra a Cruz.
Unge-me teu, p'ra o Sol por quem existo:
Viver é ir morrendo a beijar a luz.
Maria Madalena
(Alvaro Feijó, 1937)
1. Vivendo
Túnica branca, a roçagar, silente,
as formas gráceis do seu corpo leve,
desnudo o colo dum alvor de neve,
cristal o olhar tão luminoso e ardente;
5 figura esbelta, fugidia e breve,
prendendo ao corpo dela o olhar da gente,
cedendo Amor, pedindo Amor crescente,
desnudo o colo de um alvor de neve;
vivendo a lei da Vida, como a Terra
10 que ama a semente e no seu ventre a encerra,
a alimenta, a agasalha e a reproduz,
lábios sorrindo sem esgares de pena,
Deusa de Amor – Maria Madalena
passa e, empós ela, há só rastros de luz.
2. Estiolando
Seus olhos de cristal e terciopelo
perderam já o fogo de outras eras;
166
não brilham de esperanças, nem quimeras,
não vêem mundo, que não querem vê-lo
5 Rosas das faces – frescas primaveras –
Murcharam já, por falta de seu zelo:
desgrenha-se, incuidado, o seu cabelo
como a pelagem fulva das panteras.
- Deusa de Amor – ainda e só Amor
10 a leva a extremos tais! E mergulhando em treva
o corpo grácil de infernal beleza,
misticamente, segue empós Jesus.
Bebe-lhe a voz, inunda a alma de luz
- e abafa a voz da própria natureza!
Maria de Magdala
(António de Cértima, 1928)
I
Subo atordoado a escada de jacintos.
Só penso no amor. Levo em minha mão
Inquieto e sequioso o coração
E uma grinalda em flor de terebintos
5 Sei que me esperas nua e cariciosa
Entre coxins, aromas e begónias,
Onde brilhará
Como fremente e desmaiada
Tua carne mordida de sardónias
10 Tua carne doente rosa-chá...
167
II [...]
III
Desço atordoado a escada de jacintos.
Só penso no amor. Trago em minha mão
- Em minhas mãos de gala –
Adormecido e quieto o coração
5 Mas em vez do cheirosos terebintos
... um livro de Emery
«Maria de Magdala»
Sei que ela me esperava cariciosa
Entre coxins, aromas e begónias,
10 Num quadro de Asti,
Onde brilhava, nua como rosa,
Sua carne mordida de sardónias,
Sua carne... do livro de Emery
4. Hagiografia
Santa Maria Madalena, in Legenda Áurea, de Jacopo de Varazze:
"Maria" pode ser interpretado como "mar amargo" ou "iluminadora" ou "ilumi-
nada". Por estes três significados podemos entender os três caminhos que exce-
lentemente ela escolheu, o da penitência, o da contemplação interior e o da glória
celeste. A eles referia-se o Senhor quando disse: "Maria escolheu o melhor cami-
nho, e ninguém a afastará dele". O primeiro não lho poderá ser negado em razão
168
de seu objetivo, que é a bem-aventurança, o segundo em razão da continuidade
que existe entre a contemplação em vida e a contemplação feita na pátria, terceiro
em razão da eternidade da glória celeste. Ela chama-se "mar amargo" por ter opta-
do pela ótima via da penitência, por ter derramado tantas lágrimas com as quais la-
vou os pés do Senhor. Ela chama-se "iluminadora" por ter optado pela contempla-
ção interior, por ter desejado com avidez receber aquilo que em seguida verteu em
abundância, a luz. Ela chama-se "iluminada" por ter optado pela excelente via da
glória celeste, tendo então a mente iluminada pela luz do conhecimento perfeito e o
corpo por uma luz translúcida. Ela é ainda chamada de "Madalena", que vem de
manens rea, "considerada ré"; ou Madalena pode ser interpretado como "fortifica-
da" ou "invicta" ou "magnífica", indicando as três etapas de sua vida, antes de se
converter, durante a conversão e depois de convertida. Antes de se converter era
culpada e merecia a pena eterna. Durante a conversão tornou-se "fortificada" ou
"invicta" pela armadura da penitência e por todas as excelentes armas que a peni-
tência fornece e com as quais transformou sua vida de prazeres em sacrifício. De-
pois de convertida foi "magnífica", porque aquela que abundava em erro passou a
superabundar em graça.
1. Maria, cognominada Madalena por causa do castelo de Magdala, nasceu
em família muito digna, descendente de reis. Seu pai chamava-se Ciro e sua mãe
Eucária. Junto com o irmão Lázaro e a irmã Marta ela possuía o castelo de Mag-
dala, situado em Betânia, localidade próxima a Jerusalém e a duas milhas de Ge-
nezaré, além de grande parte da cidade de Jerusalém.Quando dividiram entre si
essas posses, a Maria coube Magdala, daí ser chamada Madalena; a Lázaro, gran-
de parte da cidade de Jerusalém, e a Marta, Betânia. Como Madalena entregou-se
completamente aos prazeres corporais e Lázaro estava mais interessado na ativi-
dade militar, Marta prudente e corajosamente passou a administrar também as
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partes de seu irmão e sua irmã, entregando o necessário aos soldados, aos criados
e aos pobres.
Depois da ascensão do Senhor, os três irmãos venderam o que tinham e
entregaram todo o valor aos apóstolos. Antes Madalena era muito rica, mas como a
abundância é acompanhada pela volúpia, quanto mais percebia o esplendor de su-
as riquezas e de sua beleza mais submergia o corpo na volúpia, de modo que logo
deixou de ser chamada pelo nome, e sim por "a pecadora". Mas sabendo por inspi-
ração divina Cristo, que pregava por aqui e ali, estaria na casa de Simão, o leproso
foi até lá, mas sendo pecadora não ousou misturar-se com os justos e prostou-se
aos pés do Senhor, lavou-os com lágrimas, enxugou-os com seus cabelos e untou-
os com precioso ungüento, pois naquela região o calor do sol é tão forte que os ha-
bitantes usavam banhos e ungüentos. Logo que Simão a viu, pensou que Cristo
não era profeta, porque, se fosse,de maneira alguma permitiria ser tocado por uma
pecadora.Então o Senhor o recriminou por sua soberba e falta de justiça e perdoou
à mulher todos os pecados.
O Senhor concedeu imensos benefícios a Maria Madalena e distinguiu-a
com sinais de predileção: expulsou dela sete demônios, inflamou-a totalmente de
amor por Ele, tornou-se íntimo dela, passou a ser seu hóspede, fez dela a encarre-
gada de cuidar de suas viagens e sempre a defendeu com doçura, fosse diante do
fariseu [Simão] que, comparando-a com a irmã, tachava-a de imunda e preguiçosa,
fosse diante de Judas, que a chamava de dissipadora. Quando a viu chorar ele
mesmo não conseguiu conter as lágrimas e por amor a ela ressuscitou seu irmão,
que havia morrido quatro dias antes. Segundo Ambrósio, foi por amor a ela que li-
vrou sua irmã Marta das hemorragias que a atormentavam havia sete anos, e foi
por seus méritos que uma criada da irmã, Martila, disse as tão doces palavras:
"Bem-aventurado e digno é o ventre que o carregou".
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Ou seja, ela lavou os pés do Senhor com suas lágrimas, enxugou-os com
seus cabelos, cobriu-os com ungüento, foi a primeira que naquele tempo de graça
fez solenemente penitência, que escolheu o melhor caminho, que sentada aos pés
do Senhor escutou suas palavras, que ungiu a cabeça do Senhor, que permaneceu
junto à cruz durante a paixão do Senhor, que quis ungir seu corpo com ungüento,
que quando discípulos se afastaram do sepulcro não saiu dali, que viu Cristo res-
suscitado, tudo fazendo dela apóstola dos apóstolos.
Catorze anos depois da Paixão e Ascensão, quando fazia muito tempo
que os judeus haviam matado Estêvão e expulsado da Judéia os discípulos, estes
se espalharam pelas terras dos gentios para semear a palavra do Senhor. Naquele
tempo estava com os apóstolos o beato Maximino, um dos 72 discípulos a quem o
beato Pedro recomendou Maria Madalena. Por ocasião da dispersão evangelizado-
ra, o beato Maximino, Maria Madalena, seu irmão Lázaro, sua irmã Marta, Martila,
criada de Marta, o beato Cedônio - cego de nascimento que fora curado pelo Se-
nhor - e muitos outros cristãos foram acusados e colocados pelos infiéis em alto-
mar num navio desgovernado para que naufragassem, mas por vontade divina
acabaram chegando a Marselha.
Lá, ninguém quis hospedá-los e passaram a morar sob o pórtico do templo
local. Vendo a beata Maria Madalena que o povo afluía ao templo para imolar aos
ídolos, com tranqüilidade, rosto sereno e língua discreta, começou a pregar cons-
tantemente para afastá-los do culto aos ídolos e conduzi-los a Cristo. O povo não
sabia o que admirar primeiro, seu aspecto ou sua palavra fácil e cativante. Mas não
deve causar admiração que a palavra de Deus saísse com suave odor da boca de
quem de forma tão bonita e piedosa havia coberto de beijos os pés do Salvador.
(.......)
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