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A POLÍTICA EXTERNA DA ÁFRICA DO SUL
DE 1994 AOS DIAS DE HOJE
Condicionantes internos e limites externos
Daniel Russman Gallas
Dissertação de mestrado
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Relações Internacionais
Orientador: Prof. Dr. Raul Enrique Rojo
Porto Alegre
2007
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Tese defendida por Daniel Russman Gallas e aprovada por:
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Porto Alegre, _____________________________ de 2007
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RESUMO
Este trabalho analisa a formação da política externa da África do
Sul a partir do final do regime do apartheid, em 1994, até os dias de
hoje. Através da aplicação da teoria dos jogos de dois níveis, de Robert
Puntam, buscou-se identificar os condicionantes internos e limites
externos que determinaram a linha de política externa adotada pela
África do Sul nos governos de Nelson Mandela e Thabo Mbeki. Entre os
fatores internos, a reorganização da burocracia estatal, a reformulação
do papel do Parlamento e o crescimento do partido do governo, ANC,
foram determinantes nas decisões de diplomacia da África do Sul pós-
apartheid. Externamente, a política externa do país foi limitada,
sobretudo, pelos impasses das questões regionais africanas. O impacto
dos condicionantes internos e dos fatores externos foi analisado em um
caso específico – na formação do NEPAD.
SOUTH AFRICAN FOREIGN POLICY FROM 1994 UNTIL OUR DAYS:
INTERNAL FACTORS AND EXTERNAL LIMITATIONS
ABSTRACT
This paper analyses the formation of foreign policy in South Africa
from 1994 until today. We have used Robert Putnam's theory of games
in two levels to determine the internal factors and external limits that
shaped foreign policy decisions in South Africa in the Nelson Mandela
and Thabo Mbeki years. Among the internal factors, the reorganization of
state bureaucracy, the reinvention of the role of the Parliament and the
growth of the ANC - the main political party - were key to the
development of a new foreign policy. Externally, South African foreign
policy was limited, however, by many different regional issues in Africa.
The impact of these factors was analyzed in the formation of the NEPAD.
5
Sumário
Sumário..................................................................................................................... 5
1. Introdução............................................................................................................. 6
1.1 Marco teórico.................................................................................................. 9
1.2 Metodologia.................................................................................................. 11
2. Os condicionantes internos da política externa da África do Sul....................... 14
2.1 1994 e antes: Mandela x De Klerk ............................................................... 14
2.1.2 A visão de F. W. De Klerk ........................................................................ 15
2.1.2 A visão de Mandela................................................................................... 16
2.2 A África do Sul pós-apartheid...................................................................... 18
2.2.1 Os condicionantes internos da nova África do Sul.................................... 20
2.3 Contexto interno........................................................................................... 28
3. A África do Sul e o contexto externo pós-apartheid .......................................... 30
3.1 África do Sul e o novo contexto internacionaL............................................ 30
3.1.1 Estados Unidos.......................................................................................... 32
3.1.2 ‘Dilema das duas Chinas’.......................................................................... 34
3.2 África do Sul e as instituições internacionais............................................... 36
3.3 África do Sul e os conflitos africanos........................................................... 39
4. Estudo de caso: NEPAD..................................................................................... 43
4.1 Programas Econômicos: RDP e GEAR........................................................ 46
4.2 Renascimento Africano ................................................................................ 55
4.3 NEPAD......................................................................................................... 58
4.3.1 NEPAD e os condicionantes internos........................................................ 61
4.3.2 NEPAD e os fatores externos.................................................................... 70
5. Conclusão ........................................................................................................... 79
BIBLIOGRAFIA.................................................................................................... 87
6
CAPÍTULO 1
Introdução
Em 1994, a eleição de Nelson Mandela na África do Sul colocou fim a
quase meio século de apartheid, regime de segregação racial que dividiu o país
durante grande parte da Guerra Fria. Em termos de política externa, o fim do
apartheid assinala também o término de uma fase da diplomacia sul-africana,
época em que a defesa de regimes brancos na África Austral era a principal
meta do governo. Essa postura bélica e antidemocrática, que procurava
impedir a ascensão de determinadas raças ao poder na região, acabou
isolando a própria África do Sul do sistema internacional.
É na última década do século XX que se encerra o período da África do
Sul como Estado-pária da comunidade internacional e que começa a
Renascença Africana. A nova política externa sul-africana é reconhecida por
diplomatas e estudiosos de relações internacionais como bastante distinta
daquela vigente até a década de 1990.
Um conjunto de fatores externos e internos contribuíram para o fim do
apartheid. Externamente, o colapso da União Soviética e o impacto do fim da
Guerra Fria no continente africano tornaram impossível a manutenção de um
governo cujo principal argumento de inserção na comunidade internacional
ainda era o combate ao comunismo na região. Uma vez derrubado este
argumento, pouco restou ao governo sul-africano para resistir aos apelos anti-
segregacionistas da comunidade internacional. Internamente, a explosão da
violência e a percepção da fragilidade internacional do regime do apartheid
fortaleceram grupos clandestinos que lutavam pela igualdade de direitos e por
uma democracia verdadeiramente representativa. Com o fim dos regimes
brancos na África do Sul, a partir de 1994, os governos dos presidentes Nelson
Mandela e Thabo Mbeki criaram a nova política externa sul-africana.
7
Esquematicamente, é assim que a historiografia recente consagra o
desmantelamento do apartheid e o começo de uma nova era na África do Sul.
Este trabalho tem como objetivo observar o período imediatamente
posterior ao apartheid. Diversos motivos levam-nos a nos debruçarmos sobre a
questão da política externa sul-africana pós-apartheid. Primeiro, a
singularidade do caso dentro do contexto da política internacional. Após um
longo período de isolamento no sistema internacional, a África do Sul deixou
para trás a condição de Estado-pária para assumir, em questão de poucos
anos, uma posição de liderança dentro do contexto africano. Apenas essa
condição extraordinária desperta a curiosidade científica acerca do
fenômeno a ser estudado.
O principal motivo que nos leva, no entanto, a analisar a questão da
política externa sul-africana é o recente interesse da diplomacia brasileira pelos
assuntos africanos. A partir de 2003, com a chegada de Luiz Inácio Lula da
Silva no poder no Brasil, o ministério das Relações Exteriores passou a
priorizar as relações do Eixo Sul-Sul de desenvolvimento.
1
Seis meses após
assumir a chancelaria brasileira, o embaixador Celso Amorim anunciou em
conjunto com os ministros Yashwant Sinha, de Assuntos Exteriores da Índia, e
Nkosazana Dlamini-Zuma, dos Negócios Estrangeiros da África do Sul a
criação do Fórum de Diálogo Índia, Brasil e África do Sul (Fórum do IBAS). O
Fórum surgiu após conversas entre as autoridades no encontro do G8, na
Suíça, com a meta de:
constituir um encontro pioneiro de três países com
democracias vibrantes, de três regiões do mundo em
desenvolvimento e atuantes em escala global, com o
objetivo de examinar temas da agenda internacional e de
interesse mútuo.
2
A proposta do Fórum do IBAS é formar uma associação entre países
com destacada liderança em seus respectivos continentes para tratar de
diversos temas comuns da agenda internacional, sobretudo as disputas
comerciais como, por exemplo, as negociações da Rodada Doha, de
1
Entrevista de Celso Amorim. Disponível em:
http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/grupos/ibas/entrevista.asp
2
Declaração de Brasília. Disponível em:
http://www.mre.gov.br/portugues/politica_externa/grupos/ibas/dec_brasilia.asp
8
liberalização do comércio internacional dentro do âmbito da Organização
Mundial do Comércio e as questões de segurança neste caso, o principal
interesse dos três países de ingressarem no Conselho de Segurança das
Nações Unidas.
Este trabalho tem como ponto de partida nosso interesse sobre esse
princípio das relações com a Índia e com a África do Sul. Talvez uma forma
mais relevante de entender a aproximação Índia-Brasil-África do Sul fosse
justamente estudar o fenômeno da criação do Fórum Trilateral do IBAS. O
próprio Fórum constitui um fenômeno curioso dentro das relações
internacionais, sendo uma aliança atípica entre nações que buscam
artificialmente estreitar laços tênues para formação de posições mais sólidas
em diversas instâncias multilaterais.
No entanto, na nossa avaliação, antes de se estudar o Fórum Trilateral
do Ibas seria necessário compreender melhor a política externa praticada em
cada um dos países. O Fórum do Ibas nasce de uma iniciativa das
chancelarias e das presidências dos três países. Antes de se partir para a
análise direta do mecanismo criado pelos departamentos de relações
internacionais de cada país, é preciso entender mais sobre a agenda de
política externa de cada um. Neste ponto, tanto África do Sul, Índia e Brasil são
países que recentemente passaram por processos históricos que redefiniram
suas agendas internacionais. O Brasil seguiu uma rota de redemocratização
que abriu caminho para uma nova agenda regional de cooperação dentro da
América do Sul, principalmente após a reaproximação com a Argentina, em
meados da década de 1980. A Índia saiu de um longo período de
desenvolvimento endógeno, voltado para as suas bases, para um de inserção
na economia internacional globalizada, a partir dos anos 90.
a África do Sul passou por um processo de total reformulação das
suas bases políticas internas, com o fim do apartheid. As mofidicações – dentro
e fora da África do Sul tiveram amplo impacto na política continental.
Entender a agenda da nova África do Sul e os processos que formaram as
novas diretrizes desta diplomacia é uma tarefa que requer, por si só, um
trabalho inteiro.
9
É este trabalho que nos propomos a fazer aqui. Ou seja, compreender
quais mudanças ocorreram na situação doméstica sul-africana de 1994 aos
dias de hoje. Temos como objetivo geral entender quais condicionantes
internos influenciaram na formação da nova diplomacia da África do Sul depois
de 1994 e quais limites externos o país encontrou para colocar em prática suas
novas diretrizes. Em outras palavras, buscamos compreender como surgiu a
nova África do Sul após o apartheid e que contexto internacional este país
encontrou dos anos 90 em diante.
Temos, como objetivos específicos, as seguintes metas: 1) encontrar
uma série de condicionantes internos que possam nos ajudar a explicar, de
forma ampla, a reformulação pela qual passou a política externa da África do
Sul; 2) definir, em linhas gerais, o contexto do continente africano e da política
internacional no período pós-1994; e 3) analisar como esses fatores se
combinaram no New Partnership for Africa´s Development (NEPAD), um dos
principais projetos da política sul-africana nas eras Nelson Mandela e Thabo
Mbeki.
Antes que se comece a análise do problema em questão e das suas
variáveis e hipóteses, é necessário tecer algumas considerações
metodológicas e teóricas que servirão de base científica para a investigação.
Primeiro, será explicitado o marco teórico escolhido para abordar o problema.
Por fim, serão delineados os procedimentos metodológicos, ou seja, as
ferramentas que utilizaremos para aplicar a teoria ao caso em estudo.
1.1 MARCO TEÓRICO
Para analisar a formação da política externa de um país, combinando
fatores externos com condicionantes internos, foi preciso encontrar um marco
teórico que não se restringisse a enxergar os problemas de relações
internacionais unicamente nos clássicos “níveis de análise”. É corrente, nos
estudos de relações internacionais, a utilização dos “níveis de análise”, que
mostram aos investigadores onde procurar as causas do comportamento do
10
Estado, “classificando explicações concorrentes (ou variáveis independentes)
de acordo com unidades em que são conceitualizadas”
3
.
No entanto, apenas um restrito número de problemas em relações
internacionais se permite tal tipo de análise em níveis. Estudos empíricos
formulados em apenas um nível de análise, doméstico ou internacional, têm
sido suplantados por esforços teóricos que combinem os dois planos na
mesma explicação
4
. Teorias que abarcam apenas o nível do sistema
internacional tendem a interpretar falsamente o Estado como um ente racional
e de composição unitária. Por outro lado, os marcos teóricos que se detêm
sobre aspectos da política interna de um país ignoram os condicionantes
externos que influem nas ações diplomáticas.
Um dos desafios dos atuais teóricos é encontrar um marco que não
exclua nenhum dos dois níveis de análise, e que, além disso, combine ambos
fatores para gerar explicações a cerca de um determinado fenômeno. Neste
sentido, uma importante contribuição foi a elaboração da teoria dos jogos em
dois níveis, por Robert Putnam, em 1987. Putnam argumenta que o formulador
da política externa de um determinado país busca, no exercício de sua função,
conciliar simultaneamente imperativos domésticos e internacionais.
5
Assim, a
política externa deste país é definida por um agente que atua (ou “joga”) em
dois “tabuleiros” simultâneos.
Putnam vê as relações internacionais como um jogo que é praticado nos
tabuleiros doméstico e internacional. No nível I, ou seja, no plano internacional,
os Estados atuam em relação um ao outro conforme regras de balança de
poder, semelhantes às definidas nas obras dos teóricos realistas das relações
internacionais. No nível II, o plano doméstico, acontece o que Putnam chama
de “jogo de ratificação”, ou seja, quando os governantes buscam apoio interno
para suas iniciativas internacionais. A “vitória” nos dois tabuleiros é
determinante para o sucesso da política externa de um governo, que não pode
prescindir de nenhum dos níveis.
A teoria foi elaborada por Putnam para identificar fatores que influenciam
na cooperação internacional. Ela serviu para o autor analisar a cooperação
3
Moravcsik, 1993, p. 5
4
Idem, p. 6.
5
Putnam, R. In: EVANS, 1993. p. 459
11
entre Estados Unidos e Europa. Ao ser utilizada por outros autores, no entanto,
ela não se restringiu a explicar formas de cooperação, mas foi ampliada
também para tratar de outros fenômenos no sistema internacional.
6
Acreditamos que a teoria de Putnam que combina dois tabuleiros é
adequada para um trabalho que se propõe a entender justamente
condicionantes da política interna e limites externos que formam uma
diplomacia ativa. Busca-se aqui explicar, através da aplicação da teoria dos
jogos de dois níveis, a relação entre os fatores internos e externos que atuam
na determinação da política externa sul-africana.
1.2 METODOLOGIA
Um cuidado que o pesquisador precisa ter ao utilizar o modelo de Robert
Putnam para a análise de relações internacionais é que tal marco teórico
costuma ser aplicado em casos isolados de negociação diplomática. Os
estudos que a teoria do jogo de dois níveis gerou são, em geral, análises de
episódios razoavelmente curtos, e não de formulação de política externa em
um longo período, como o que propomos aqui, ao aplicar a teoria na
observação da política da África do Sul de 1994 a 2000.
Para evitar que tal vício de escala invalide o esforço de análise empírica
do problema, é fundamental que a pesquisa científica esteja acompanhada de
rigor metodológico. A definição das dimensões certas e das variáveis
adequadas que condicionam cada uma destas dimensões é vital para o futuro
do trabalho. A metodologia científica deve ser adequada para testar se o marco
teórico consegue ou não fornecer respostas aos problemas levantados pelo
pesquisador.
No campo das ciências sociais, duas formas de se testar teorias:
experimentação e observação
7
. Experimentação, no problema aqui proposto, é
impossível para o pesquisador, que as variáveis não são controláveis e a
6
No livro Double-edged diplomacy international bargaining and domestic politics, autores testam a teoria
de Putnam em situações diversas. Há até um caso em que a teoria é usada para explicar as relações entre
Brasil e Estados Unidos em disputas no mercado de informática.
7
Van Evera, 1997. p. 27
12
pesquisa se debruça sobre fatos ocorridos. O método mais adequado que
escolhemos foi o da observação através de estudo de caso.
tempos o estudo de caso tem sido alvo de críticas dos cientistas
sociais por não oferecer métodos adequados para isolar variáveis
perturbadoras do estudo.
8
Por exemplo, um estudo de caso que se limite a
estudar o impacto de duas variáveis dependentes em um fenômeno raramente
consegue neutralizar ou isolar este fenômeno da influência de outros fatores
randômicos, que também podem ser determinantes no processo.
Essas limitações devem ser superadas pelo pesquisador ao definir
variáveis dependentes e independentes em um ambiente uniforme. Mas mais
importante para o pesquisador é que o estudo de caso oferece ferramentas
para investigação dos processos
9
. O elo causa-efeito que existe entre as
variáveis independentes e o resultado observável pelo pesquisador é dividido
em partes menores. Em cada uma dessas partes, são investigadas evidências
da relação causa-efeito.
10
Por produzir explicações singulares de análise de
caso, a investigação de processos é uma ferramenta forte do estudo de caso
para testar teorias em problemas empíricos de ciências sociais.
11
Ou, como
disse Charles Tilly ao defender a investigação de processos, as proposições
teóricas devem se basear não apenas em avaliações estatísticas, mas em
“etapas relevantes e verificáveis com diferentes níveis de relação causa-efeito,
cuja eficácia pode ser demonstrada independentemente destas etapas.”
12
Selecionados o marco teórico e a metodologia do trabalho, passa-se
para duas etapas do processo científico. Primeiro, a busca pelos casos que
melhor representem o problema a ser estudado. E, finalmente, a definição das
variáveis independentes que serão submetidas à observação do pesquisador,
para que se estabeleça uma relação causa-efeito.
Sobre os casos a serem estudados, o mais representativo esforço da
diplomacia sul-africana tem sido, desde o começo da Renascença Africana, o
New Partnership for Africa's Development (NEPAD), um plano de
8
Idem, p. 51
9
O process tracing, em inglês, consiste em investigar os diversos elos entre possíveis causas e resultados
observados. In: George, 2004. p. 6
10
Van Evera, 1997, p. 64
11
Idem. p.65
12
Tilly; GEORGE; BENNETT, 2005, p. 205
13
desenvolvimento econômico para todo o continente, elaborado pela diplomacia
de Pretoria. Por ser o principal projeto econômico sul-africano, um estudo de
caso sobre a formulação do NEPAD, com seus fatores internos e
condicionantes externos, é uma forma exemplar de se analisar a formação da
política externa da África do Sul, nos níveis diplomático e econômico.
Passamos agora à metodologia a ser utilizada neste trabalho. No
primeiro capítulo, procuramos, através de extensa revisão bibliográfica, extrair
os principais condicionantes internos que contribuíram para formação da
política externa sul-africana pós-apartheid. Consultamos mais de dez autores
que se debruçaram sobre problemas da África do Sul na última década, mas
demos especial atenção a quatro especialistas que se preocuparam com
aspectos que dizem respeito ao NEPAD, à Renascença Africana e ao
programas dos governos Nelson Mandela e Thabo Mbeki. O trabalho de James
Barber, da britânica Open University, foi especial para se compreender o
período de transição e fim do apartheid e o governo de Nelson Mandela. A obra
de Chris Alden e Garth Le Pere, da London School of Economics, foi
fundamental para entender como muitos dos condicionantes internos da era
Mandela se mantiveram influentes no governo de Thabo Mbeki. a obra de
Greg Mills, considerado um dos maiores especialistas em política externa sul-
africana, foi importante por abranger e sintetizar os principais desafios da
diplomacia de Pretória no período estudado. É da contribuição principalmente
destes autores que extraímos, através da revisão bibliográfica, variáveis que
pudessem ajudar a explicar o fenômeno pesquisado. O segundo capítulo,
também baseado em revisão bibliográfica, identifica os fatores externos da
África do Sul, ou seja, o contexto internacional que o país encontrou a partir de
1994.
No terceiro capítulo, utilizamos as variáveis definidas nos dois capítulos
anteriores e buscamos analisar como eles influíram na concepção do NEPAD.
A primeira parte do capítulo se dedica a traçar uma origem do NEPAD dentro
do governo sul-africano. Na parte final, foram consultadas fontes primárias
sobretudo imprensa, documentos e declarações oficiais para colocar as
variáveis à prova.
14
CAPÍTULO 2
Os condicionantes internos da política externa
da África do Sul a partir de 1994
2.1 1994 E ANTES: MANDELA X DE KLERK
As eleições e a posse de Nelson Mandela como presidente em 1994
trouxeram à tona uma nova África do Sul.
13
A grande transição política interna
no país, porém, começa alguns anos antes, no princípio da mesma década.
Antes de 1990, a perspectiva geral era de que o apartheid se estenderia
por anos e que a minoria branca sul-africana deixaria o poder por meio de
um golpe, provavelmente acompanhado de violência e derramamento de
sangue.
14
O regime do apartheid sob o qual os brancos se mantinham no
poder e os demais povos viviam segregados e com direitos limitados
começou formalmente no país em 1948 com a chegada do Partido Nacional
(NP, na sigla em inglês), apesar de indícios de racismo na administração da
África do Sul já poderem ser traçados na sociedade sul-africana desde o
começo da colonização holandesa e britânica no século XVII.
Em 1978, com a chegada de P.W. Botha, do NP, ao cargo de primeiro-
ministro da África do Sul, fortaleceu-se a noção de que o apartheid continuaria
vigorando no país e que só seria encerrado por meio de levantes das maiorias.
P.W. Botha, uma figura autoritária e dura, tinha como objetivo manter o controle
do governo na mão dos brancos, através de reformas políticas e incremento
nas forças de segurança.
15
O recrudescimento do apartheid veio na Estratégia Nacional Total, de
P.W. Botha, uma doutrina que combinava políticas domésticas de repressão
com intervenções militares internacionais, que o primeiro-ministro sul-
13
Davenport, 1998, p. 81.
14
Barber, 2004, p. 1.
15
Idem.
15
africano entendia que as ameaças ao domínio do NP na África do Sul partiam
não de dentro do país, como também da comunidade internacional em
especial das nações vizinhas na África Austral.
16
A Estratégia Nacional Total,
de P.W. Botha, visava a combater os Países da Linha de Frente
17
, que
ganharam ímpeto contra os regimes de maioria branca após a leva de
descolonização de 1974, com a queda do regime salazarista em Portugal.
2.1.2 A VISÃO DE F. W. DE KLERK
A mudança de perspectiva e o princípio do fim do regime do apartheid
só começaram a surgir em 1990, com o discurso no Parlamento do novo
presidente de Estado e do NP, F. W. de Klerk, que sucedera a P.W. Botha,
afastado por problemas de saúde.
18
No pronunciamento do dia 2 de fevereiro
de 1990, De Klerk anunciou medidas radicais para acabar com o que ele
chamou de “crescente violência, tensão e conflito”. Em seu discurso, ele
conclamou os sul-africanos a “construir um consenso amplo sobre os princípios
básicos de uma nova ordem realista e democrática”. De Klerk anunciou em
seguida a libertação dos presos políticos do país e o fim do banimento aos
partidos políticos de oposição – entre eles o Congresso Nacional Africano
(ANC, na sigla em inglês), de Nelson Mandela. De Klerk disse em seu discurso:
“já é tempo para quebrarmos o ciclo de violência e avançarmos para a paz e a
reconciliação.”
19
De Klerk continuava pregando que o apartheid havia sido instituído “em
boa fé”, um discurso que agradava a parte mais conservadora do NP, mas
reconhecia que, na prática, o regime falhara. Segundo BARBER, três fatores
explicam as mudanças promovidas por De Klerk a partir de 1990. Primeiro, a
ordem interna da África do Sul era frágil, com sucessivos e violentos levantes
16
Davies, Robert; O'Meara, Dan.
17
Os Países da Linha de Frente (Front Line States, em inglês) tinham como objetivo estabelecer governos
controlados pela maioria negra no continente africano. Eram: Angola, Botsuana, Lesoto, Moçambique,
Tanzania, Zambia e Zimbábue.
18
Após as reformas constitucionais de 1984, o cargo de primeiro-ministro, ocupado na época por P.W.
Botha, foi extinto, restando apenas a função de presidente de Estado.
19
De Klerk, F W. apud Barber, 2004, p. 1.
16
contra o governo. As negociações com a maioria negra e, portanto, com o
ANC eram, para De Klerk, inevitáveis para pôr fim à violência. Segundo, a
economia do país estava estagnada, e o fim de sanções internacionais
todas condicionadas ao fim do apartheid poderia provocar a retomada do
crescimento. O terceiro fator histórico que, segundo Barber, explica as
mudanças promovidas por De Klerk é a alteração do cenário político
internacional, com o fim da União Soviética. O apoio soviético ao ANC serviu
historicamente ao governo do NP como argumento de que o apartheid ajudava
a evitar o comunismo na África do Sul. Logo, o regime de maioria branca era,
na visão ocidental, justificável sob o prisma da Guerra Fria.
20
Nove dias depois do discurso de De Klerk no parlamento, no dia 11 de
fevereiro de 1990, Nelson Mandela foi libertado da prisão, evento que atraiu
grande atenção internacional. Nos 27 anos que passou na prisão, Mandela
que fora condenado à prisão perpétua por promover violência no comando do
braço armado do ANC, o Umkhonto We Siwze (MK) havia se convertido no
mais famoso prisioneiro político do mundo.
2.1.2 A VISÃO DE MANDELA
Os anos entre 1990 e 1994 foram de recomposição do ANC, movimento
que durante os anos do apartheid havia se desestruturado e se recomposto
inúmeras vezes, com o exílio, prisão, morte e fuga dos seus principais líderes.
21
Em julho de 1991, Nelson Mandela assumiu o comando do ANC, depois
que o líder histórico da sigla, Oliver Tambo, renunciou por problemas de saúde.
Mandela conduziu o debate interno do partido, assim como as negociações da
ANC com o governo e com a comunidade internacional, sobre as questões
políticas urgentes: reforma constitucional, programa econômico, sanções
internacionais e eleições.
Em todos os campos, preponderou a preocupação do ANC e de
Mandela de assegurar o apoio internacional à causa do partido, o que ajuda a
20
Barber, 2004, p. 42.
21
Idem, p. 47.
17
explicar a renúncia do ANC a idéias e atitudes históricas, como a inclinação
socialista e o uso da violência como forma legítima de protesto. Em outubro de
1993, o partido publicou o texto “Foreign policy in a new democratic South
Africa” (“Política externa em uma nova e democrática África do Sul”) em que
declara que o futuro da diplomacia de Pretoria será determinada pela “crença
de que as relações exteriores precisam espelhar nosso profundo
comprometimento com a consolidação de uma África do Sul democrática”.
22
O período entre 1990 e 1994 foi de intensa concorrência entre o NP, de
situação, e o ANC, agora legalmente de oposição. Mais do que o mero
confronto entre dois partidos, dois modelos de renovação – representados
pelos novos líderes De Klerk e Mandela concorriam para fundar uma nova
África do Sul. Enquanto negociavam entre si para estipular os novos rumos
políticos do país, Mandela e De Klerk viajaram pelo mundo em busca de apoio
internacional para seus partidos.
Entre 1990 e 1992, Mandela visitou 49 países, dos quais 20 eram na
África. Em período semelhante, De Klerk viajou a 32 nações, sendo recebido
por chefes de governo da Grã-Bretanha e França, entre outros. Devido às
mudanças promovidas contra o apartheid, foi o primeiro presidente sul-africano
a ser recebido pelos Estados Unidos em mais de quarenta anos.
Segundo Barber, dois objetivos principais norteavam as viagens
internacionais dos líderes sul-africanos. De um lado, buscavam projetar
internacionalmente o nome dos seus partidos, assim como suas causas e suas
propostas para o país. Por outro, viam esse respaldo internacional como
elemento importante para conquistar o apoio da opinião pública sul-africana,
que estava claro que o país teria de passar por novas e democráticas eleições.
Além disso, tanto Mandela quanto De Klerk trabalhavam para arrecadar
fundos para seus partidos, prevendo a disputa eleitoral.
23
O processo de transição política entre 1990 e 1994 não foi simples e
sem choques. Duas tentativas de formar a Convenção por uma África do Sul
Democrática (CODESA, na sigla em inglês) para negociar diretamente entre
os partidos políticos o fim do sistema do apartheid fracassaram. Atos de
22
Nel e Westhuizen, 2003, p. 44.
23
Barber, 2004, p. 58
18
violência continuaram no país, como o massacre na cidade de Boipatong, em
que 46 pessoas morreram em junho de 1992. Até mesmo Mandela e De Klerk,
principais líderes do processo de reconciliação nacional, chegaram por
momentos a trocar ríspidas palavras.
24
Apesar dos contratempos, em 27 de abril de 1994, sob o controle de
uma recém formada Comissão Eleitoral Independente, o ANC derrotou, com
62% dos votos, o NP na primeira eleição livre do país livre do sistema do
apartheid, com sufrágio universal e direitos iguais para todas as raças. Em 10
de maio, o líder do ANC, Nelson Mandela, foi escolhido o primeiro presidente
negro da história da África do Sul.
2.2 A ÁFRICA DO SUL PÓS-APARTHEID
Em novembro de 1993, Mandela havia delineado os princípios que
guiariam a política externa de Pretória no caso de uma vitória do ANC nas
eleições. Os pontos básicos da diplomacia sul-africana foram explicitados em
um artigo para a revista Foreign Affairs.
Mandela escreveu:
Os pilares nos quais se basearão nossa política externa
são as seguintes crenças: (1) de que assuntos de
direitos humanos são centrais para as relações
internacionais e que uma compreensão de que eles se
estendem além do político, abraçando também o
econômico, o social e o ambiental; (2) que soluções
justas e duradouras para os problemas da humanidade
podem apenas acontecer através da promoção da
democracia em todo o mundo; (3) que considerações de
justiça e respeito por leis internacionais deveriam guiar
as relações entre as nações; (4) que a paz é a meta para
a qual as nações devem convergir, e onde isso não
acontece, mecanismos combinados e não-violentos,
incluindo regimes eficientes de controle de armas, devem
ser colocados em prática; (5) que as preocupações e os
interesses da África devem se refletir nas nossas
escolhas de política externa; (6) que o desenvolvimento
24
Durante as negociações da CODESA, De Klerk disse que o ANC não deveria participar da Convenção
enquanto mantivesse o grupo armado “privado” MK. Furioso, Mandela acusou o presidente de chefiar um
governo “ilegítimo e desacreditado”.
19
econômico depende de uma crescente cooperação
regional e internacional em um mundo independente.
25
Além de definir os direitos humanos como a base das novas relações
exteriores do país, Mandela salienta no texto a preocupação do país em se
integrar o continente africano:
A África do Sul não pode escapar de seu destino
africano. Se nós não dedicarmos nossas energias a este
continente, nós também poderíamos nos tornar vítimas
de nossas forças que arruinaram várias partes. [...] A
África do Sul exige uma prioridade especial em nossa
política externa. Nós somos parte intrínseca da África
Austral e nosso destino está ligado ao da região, que é
muito mais do que um mero conceito geográfico.
26
Apesar da preocupação explícita com os direitos humanos, a crise
econômica e os problemas comerciais ocupam grande parte do discurso de
Mandela. O então presidente do ANC diz que o país não vai ceder às pressões
do General Agreement on Tariffs and Trade (GATT)
27
para abertura imediata
da economia sul-africana ao resto do mundo. Mandela deixa claro que o ANC é
a favor do livre-comércio e da democracia, mas que uma liberalização
apressada de tarifas poderia resultar no fechamento desnecessário de postos
de trabalho.
No mesmo artigo, Mandela ressalta que os novos princípios propostos
pelo ANC são um “grave contraste à África do Sul do apartheid, que, em quase
cinco anos, conduziu de forma desastrosa as suas relações internacionais.”
28
Não os princípios eram opostos aos do regime do NP, mas também os
mecanismos internos de funcionamento da política externa. A partir de 1994, a
nova administração de Pretoria passa a se empenhar na reestruturação da
máquina diplomática governamental. Como observam Alden e Le Pere, o ANC
tem pela frente a “formidável tarefa de traduzir a vitória da diplomacia da
liberação em uma política externa pragmática e de princípios”
29
.
25
Mandela, 1993, p. 86
26
Idem.
27
O acordo do GATT, iniciado em 1948, regulou o comércio internacional até 1995, quando foi
substituído pela Organização Mundial do Comércio (OMC).
28
Mandela, 1993, p. 86
29
Alden e Le Pere, 2004, p. 16
20
Mills aponta que, no começo do governo, Mandela teve dificuldade
para conseguir transformar sua “enorme vantagem política em sucessos de
política externa”.
30
Em primeiro lugar, o ANC não conseguiu, de imediato, fazer
a transição de um movimento de liberdades civis para um partido de situação.
A distância entre os pensamentos de Mandela e os ideais que moviam o
aparato estatal também era grande.
31
Por fim, os compromissos externos
assumidos pelo ANC durante os anos de oposição ao regime do apartheid
agora pesavam na conta do partido, que passou a ter responsabilidades não
com as maiorias sul-africanas mas com toda a sociedade.
Alden e Le Pere observam que a dificuldade que os líderes mundiais
têm de definir uma política externa sem contradições e oposições faz parte da
visão atual de “interdependência complexa” das relações internacionais ou
seja, “a falta de clareza na distinção das tradicionais linhas que separam a
política doméstica dos assuntos externos”. A definição de uma linha de
diplomacia passa hoje, segundo os autores, por assuntos tão diversos, como
investimentos, migrações, energia, inflação, segurança alimentar, direitos
humanos e meio ambiente
32
. Essa “interdependência complexa” não poupou o
ANC.
No processo de exorcismo de quase quatro décadas de
'diplomacia de isolamento', o ANC subestimou
seriamente tanto o espectro como a complexidade da
estruturação institucional e da administração da máquina
de gestão da política externa do país. A diplomacia pós-
apartheid da África do Sul logo virou vítima do perene
enigma da política estrangeira: a falta de visão
coordenada.
33
2.2.1 OS CONDICIONANTES INTERNOS DA NOVA ÁFRICA DO SUL
30
Mills, 2000.
31
Idem.
32
Alden e Le Pere, 2004, p. 16
33
Idem.
21
Na nova África do Sul, não a redefinição de parâmetros e princípios,
como também o redesenho das instituições era o desafio para a área de
relações exteriores.
34
Hentz observa que o Estado sul-africano pós-apartheid é
mais aberto à influências domésticas do que o Estado dos anos do apartheid.
35
Isso ocorre, segundo Mills, porque o novo governo está mais disposto a
dialogar com a sociedade sobre a condução da administração do que os
antecessores
36
.
Diferentes autores apontam características do Estado sul-africano pós-
1994 que tiveram impacto na mudança da política externa. Procuramos aqui
sintetizar o mais precisamente possível os condicionantes internos que são
vistos como essenciais na definição da política sul-africana, através de uma
rigorosa revisão bibliográfica. Como primeiro critério para seleção dos autores,
trabalhamos apenas com cientistas que analisaram processos internos da
África do Sul no período de 1998 a 2002. Em seguida, passamos a listar quais
condicionantes eram citados por mais de um autor como essenciais.
A partir destes critérios, chegamos a quatro características da política
doméstica sul-africana: as disputas internas entre os burocratas dos diferentes
departamentos estatais e a confusão sobre o papel institucional de cada célula
governo; a maior participação do Parlamento na definição da política externa; a
maior participação da sociedade civil na definição da política externa um dos
pilares defendidos pelo ANC durante os anos do apartheid; e por fim a
importância que o gabinete da Presidência assumiu na definição da linha
diplomática do país, devido à imagem de Nelson Mandela.
Primeiro um conflito estabelecido entre os diferentes departamentos
administrativos que conduzem a política externa sul-africana. O Departamento
de Assuntos Exteriores (DFA, na sigla em inglês) sofria concorrência tanto do
Departamento de Defesa (DoD) quanto do Departamento de Comércio e
Indústria (DTI). Depois de 1994, com o fim das sanções, o DTI assumiu a
liderança no processo de atração de investimentos e promoção de acordos
bilaterais e multilaterais com países desenvolvidos. O sucesso do DTI provocou
34
Hentz, 2005, p. 150
35
Idem.
36
Mills, 2000, p. 261
22
antagonismo com o DFA.
37
Hentz concorda que “dentro do governo, o DTI
eclipsou o DFA com sua política pró-desenvolvimento”.
38
Com o DoD, a
divergência ocorria nas decisões sobre as áreas de segurança e comércio de
armas, duas facetas importantes da diplomacia sul-africana. Nos dois campos,
o DFA era com freqüência marginalizado.
Mills aponta que “poucos progressos foram alcançados” no campo da
coordenação de política de comércio exterior e de relações exteriores entre
1994 e 1999.
39
A partir de 1994, o DTI adotou duas metas para melhorar a
representação externa do departamento: reduzir custos e usar os recursos de
forma mais eficiente. Na prática, isso significou uma mudança na filosofia do
DTI durante o departamento, que funcionava no exterior como uma “unidade de
combate às sanções”.
40
A realocação de missões comerciais foi feita sem
coordenação com o DFA. Isso ocorreu porque na visão das autoridades do
DTI, o status privilegiado que o DFA gozou durante o apartheid não seria mais
justificável em um mundo pós-apartheid. Além disso, diferenças pessoais entre
os burocratas que comandavam o DTI e DFA também influíam no processo.
MILLS cita um integrante do governo sul-africano que participou das tentativas
de coordenação dos dois departamentos na época: “Os dois diretores gerais
[Rusty Evans, do DFA, e Zav Rustomjee, do DTI] se odiavam.”
41
Na prática, havia confusão sobre quais elementos dos dois
departamentos deveriam ser integrados e quais deveriam ser separados. O
DFA acreditava que o Departamento de Comércio e Investimentos sofria de
“miopia” pela forma unilateral como encarava os países (apenas de atração de
investimento, sem foco em parcerias estratégicas), sem visão política. O DFA
priorizava o estabelecimento de boas relações bilaterais, e não com um viés
meramente economicista de atração de capital estrangeiro. Já o DTI, ao reduzir
suas missões comerciais em muitos países, deixou diversas tarefas a cargo
dos funcionários do DFA no exterior. Reconhecidamente, esses funcionários
não tinham o treinamento e o conhecimento necessários no campo de
comércio exterior para conduzir as negociações. Igualmente, o DFA não
37
Idem.
38
Hentz, 2005, p. 162
39
Mills, 2000, p. 282
40
Idem.
41
Idem.
23
conseguia romper o predomínio do DoD nos assuntos de segurança e
negociação de armas.
42
Em depoimento a Mills, integrantes da cúpula do DFA
disseram ter ficado sabendo da intervenção sul-africana no Lesoto, em 1998,
“através do rádio”.
43
Concomitante a todos esse processo de competição e cooperação é
importante frisar que estava em vigor na administração sul-africana o “sunset
clause” (ou “cláusula do apagar das luzes”), um mecanismo administrativo que,
no papel, visava a proteger os funcionários públicos contratados na era do
apartheid, mas que na prática resultou na aposentadoria precoce e substituição
de muitos burocratas ligados ao NP por novos quadros formados pelo ANC, ou
com ligação ideológica a ele.
44
Sobre a atuação do Parlamento, segunda característica da nova África
do Sul, pela primeira vez o ANC tinha a maioria dentro do Congresso Nacional
266 das 400 cadeiras. Constitucionalmente, o papel do Parlamento é
expressar as visões dos partidos políticos sobre o processo de relações
exteriores e atuar como vigia dos interesses públicos, vetando ou chancelando
decisões tomadas pelo Executivo.
45
O Parlamento teve papel importante na
questão do reconhecimento diplomático da China e nas negociações de armas.
Mesmo com o controle do Executivo, é no Legislativo que o ANC usufrui
de melhores mecanismos para influir na política externa sul-africana. Hentz
escreve:
O Estado pós-apartheid tem novas dinâmicas
institucionais e novo corpo administrativo. Tanto o
NEDLAC
46
e o Parlamento influenciaram a política
comercial da África do Sul e ambos estiveram abertos a
pressões domésticas.
47
42
Idem.
43
Idem.
44
Hentz, 2005, p. 161. O autor cita que entre 30 de abril de 1996 e janeiro de 1997, 371 servidores apenas
do Departamento de Relações Exteriores (DFA) se aposentaram.
45
Alden e Le Pere, 2004, p. 17
46
O National Economic Development and Labour Council, ou NEDLAC, substituiu em 1995 o National
Economic Forum (NEC). O NEDLAC é um concerto entre governo, entidades sindicais e organizações da
sociedade civil para discutir e elaborar políticas econômicas e sociais.
47
Hentz, 2005, p. 162
24
Hentz nota também que o Parlamento sul-africano tem ligações mais
estreitas com o setor trabalhista do que com o de negócios.
48
Isso, segundo o
autor, porque o Parlamento é mais sensível às demandas populares. No caso
da África do Sul, os principais postos do Congresso relativos ao comércio
exterior no caso, as lideranças dentro do Trade and Industrial Policy Group
eram ocupados por Ben Turok e Rob Davies, dois políticos historicamente
ligados à esquerda do ANC e considerados muito próximos ao setor sindical.
Em 1996, esse viés sindical do ANC no Parlamento foi determinante na
assinatura de um acordo comercial entre a África do Sul e a União Européia.
Dentro do Parlamento, três comitês (de agricultura, comércio e indústria, e
relações exteriores) conseguiram barrar uma cláusula do acordo imposta pela
União Européia que, segundo os parlamentares do ANC, inibiria o comércio
regional sul-africano. Em 1998, o Parlamento convocou uma conferência para
discutir a negociação de novos acordos comerciais com a União Européia e
com a Southern African Development Community (SADC), com a presença dos
dois principais negociadores do Executivo, Trevor Manuel e Alec Erwin.
49
A terceira característica da nova África do Sul em relação à definição da
política externa é a maior participação da sociedade civil nas decisões. Isso
inclui um amplo espectro de instituições, desde sindicatos, organizações
comunitárias, grupos de direitos humanos e centros acadêmicos. A intenção de
atrair este amplo espectro para o processo de tomada de decisões está
explícita em uma publicação do DFA de 1999 sobre o planejamento estratégico
da política externa. No documento, os integrantes do DFA dizem que o governo
de Pretória “cria oportunidades para ONGs e para a sociedade civil entrarem
em um diálogo com o governo em determinados assuntos. E também procura
contato com ONGs e organizações de proteção de direitos civis em outros
países afins no intuito de promover nossos interesses comuns.”
50
Hughes, que analisou o papel de diferentes atores da sociedade civil na
definição da política externa sul-africana, escreve:
Um dos desenvolvimentos mais encorajadores [da era
pós-apartheid] foi o engajamento da sociedade civil na
elaboração da nova política externa da África do Sul.
48
Idem.
49
Idem.
50
Department of Foreign Affairs apud Mills, 2000, p. 296
25
Isso era manifestado em uma série de conferências,
workshops, artigos de revista e documentos de política
externa promovidos por autoridades do DFA em conjunto
com especialistas em relações internacionais do ANC,
assim como com acadêmicos locais e internacionais,
para repensar fundamentalmente o papel da África do
Sul e seu posicionamento no ambiente global, além de
iniciar o processo de formação de uma estrutura pós-
1994 da política externa sul-africana.
51
Os principais atores da sociedade civil que se engajaram na formulação
da política externa sul-africana eram organizações não-governamentais e
centros acadêmicos. Entre as entidades mais importantes estão a South
African Institute of International Affairs (SAIIA), o Institute for Global Dialogue
(IGD, antigo Foundation for Global Dialogue), o Institute for Security Studies
(ISS, antigo Institute for Defence Policy), o Centre for Policy Studies, o Centre
for International Political Studies e o African Centre for the Constructive
Resolution of Disputes. Hughes cita o caso bem-sucedido da parceria entre o
governo sul-africano e o tradicional SAIIA, fundado em 1934. A formulação do
New Partnership for Africa’s Development (NEPAD), uma das principais ações
de política externa sul-africana pós-apartheid, contou com a contribuição
intensa de técnicos do SAIIA.
52
O papel da sociedade civil organizada, porém, teve limites, como
observam outros autores
53
. Alden e Le Pere escrevem:
O setor [da sociedade civil] passou por uma profunda
transformação desde o começo da transição
democrática. O alinhamento próximo da sociedade civil
com a luta do ANC por liberalização nacional deu lugar a
um sentido de alienação e marginalização, na medida
em que o governo usurpou muitas das áreas tradicionais
e coagiu muitos dos seus talentosos integrantes [...] O
desconforto com as rotas de transformação do Estado se
aliou à percepção do governo "levado para longe" pela
globalização, levando a conclusões enormemente
51
Hughes, 2004. p. 31
52
Idem. Nos anos do apartheid, o SAIIA evitou a todo custo receber financiamento do governo federal,
por condenar o regime de segregação. A entidade ficou conhecida internacionalmente pelo lema informal
criado por um dos seus diretores, Harry Oppenheimer: “poor, but pure” (“pobres, porém puros”).
53
O papel de ONGs foi relevante em diversas situações. Não é possível aqui enumerar todos os exemplos,
pois são muitos. As ONGs participaram de negociações muito distintas, desde o engajamento sul-africano
na campanha internacional para banimento de minas terrestres até a formulação dos princípios de
participação da África do Sul em missões de paz, passando pelo já citado acordo comercial com a União
Européia. Ver Alden e Le Pere, 2004, p.18
26
exageradas sobre a escala e o papel da sociedade
civil.
54
próximo do final do mandato de Mandela, dizem os autores, é
possível perceber que os atores da sociedade civil estavam “cada vez mais
frustrados nos seus esforços de influenciar a política externa da África do
Sul”.
55
As tensões aconteciam por insatisfações com o desempenho do novo
governo, sobretudo no estabalecimento de relações diplomáticas de Pretória
com regimes considerados hostis aos direitos humanos.
Por fim, o quarto elemento novo na política externa sul-africana é a
grande sombra e estatura internacional de Nelson Mandela, relegando muitas
vezes a um segundo plano o DFA, os demais departamentos, o Parlamento e a
sociedade civil.
56
Nas palavras de Mills, a fama de Mandela era tão grande que
“a imagem da África do Sul (e sua política externa) está muito ligada ao perfil
do presidente”, e, como resultado disso, “as políticas muitas vezes seguiam-se
após seus pronunciamentos públicos, em vez de no sentido inverso”.
57
A fama
de Mandela é justificável, que muito do sucesso da transição política interna
relativamente pacífica ocorrida nos anos 90 é atribuída à sua liderança.
Por força da sua personalidade, história, reputação e do
simbolismo de sua luta pela paz e pela construção de
uma nação, Nelson Mandela foi aclamado pela
comunidade internacional como a encarnação da
imagem da política externa da África do Sul. Apesar de
Mandela ter falhado em converter seu prestígio
internacional e ascendência institucional em políticas
práticas, através da força de sua personalidade e de sua
autoridade moral ele ainda assim cumpriu um papel
fundamental em um número de intervenções de política
externa.
58
Barber descreve Mandela como um líder natural e instintivo,
competente, “mas um orador limitado, que mesmo assim conseguia passar ao
público seu compromisso pessoal, humor e charme”.
59
Ainda que com todo seu
carisma, sua presença no cenário internacional não passava sem críticas no
54
Alden e Le Pere, 2004, p. 17
55
Idem.
56
Alden e Le Pere, 2004, p. 16
57
Mills apud Alden e Le Pere, 2004, p. 16
58
Hughes, 2004, p. 15
59
Barber, 2005, p. 87
27
cenário interno. Internamente, Mandela atraía críticas de pequenos setores do
ANC, que reclamavam da tolerância excessiva do presidente com ministros
indicados por ele que não conseguiam cumprir suas tarefas. Do lado da
oposição, partidários do NP reclamavam que Mandela confundia a tarefa de
chefe de Estado com a de chefe de partido, ainda arrecadando fundos para o
ANC. Também externamente, nota Barber, por vezes Mandela exercia
influência excepcional nos foros internacionais de debate, mas acabava por
gerar uma certa frustração, criando falsas expectativas sobre a capacidade de
Pretoria de agir.
60
É de se esperar que a influência da presidência na definição da política
externa perdesse o peso excessivo, uma vez que Mandela se afastasse e
cedesse lugar a um novo líder. Ao falar sobre a influência de Mandela na
política sul-africana, Mills aponta a incerteza que a eleição de Thabo Mbeki
gerou no cenário internacional:
Que a comunidade internacional possa ter perdoado
algumas indiscrições e ter aclamado os seus sucessos
reflete a estatura de Mandela e seu papel mais amplo em
colocar um fim ao apartheid. Mas esta comunidade
internacional estaria menos inclinada a apoiar um
governo Mbeki, dado que ele não tinha tal ferramenta
formidável de política externa. Isso sublinha a
necessidade para o melhor uso das ferramentas
burocráticas e uma cuidadosa coordenação
interdepartamental na formulação e implementação da
política externa.
61
Consciente da mudança no peso da presidência sul-africana após a
saída de Mandela, Thabo Mbeki, que serviu como auxiliar da Presidência de
1994 a 1999, promoveu reformas para fortalecer institucionalmente o
Executivo. Foram extintos os antigos gabinetes do auxiliar da Presidência e do
ministro da Presidência, sendo que todas as funções e funcionários foram
repassados ao gabinete da Presidência. O número de empregados do gabinete
passou de 27, durante o governo de Mandela, para 337, no de Mbeki. Esse
grande gabinete foi estruturado em diferentes células. O núcleo mais
importante para definição da política externa dentro do Executivo passou a ser
o Policy Coordination and Advisory Service (PCAS), que monitorava de perto
60
Barber, 2005, p. 88.
61
Mills, 2000, p. 298.
28
as ações de diplomacia dos diferentes departamentos do Estado. Como
escreve Hughes:
Um dos assuntos definidores da presidência de Mbeki, e
um assunto que é central para se entender a condução
de áreas fundamentais da política externa da África do
Sul, é o fortalecimento do gabinete do presidente.
62
2.3 CONTEXTO INTERNO
Os quatro condicionantes internos apresentados na seção anterior são
resultados de uma síntese da principal literatura atual sobre a política externa
dos anos de governo de Nelson Mandela e de Thabo Mbeki, mas,
evidentemente, não se pode ignorar as outras agitações domésticas relevantes
neste período, nos campos político, social e econômico.
Politicamente, o ANC conseguiu, ao chegar ao poder, formar uma
coalizão de governo junto com os outros dois grandes partidos: o NP e o
Inkatha Freedom Party (IFP). A coalizão durou até a eleição de Mbeki, em
1999, mesmo com a defecção do NP em 1996. O Democratic Party (DP),
oposição legal ao NP durante os anos do apartheid, continuou contra o
governo. Ao sair da coalizão, o NP buscou a aproximação com o DP. O partido
não resistiu, porém, ao dano público causado pelas Comissões de Verdade e
Reconciliação
63
, que tratou de expôr os abusos cometidos pelo governo
durante os anos do apartheid
64
. Nas eleições de junho de 1999, o ANC
consolidou seu predomínio político no país, com 66% dos votos – quatro
pontos percentuais a mais do que havia alcançado em 1994. O NP, com 6,9%
dos votos, perdeu terreno para o DP (9,6%) e para o IFP (8,6%).
Socialmente, a segregação racial deixou de ser a principal preocupação
do país, dando lugar à epidemia da aids. No final dos anos 90, a África
subsaariana era responsável por 70% dos casos de aids no mundo. De
62
Hughes, 2004, p. 16
63
Liderada pelo arcebispo Desmond Tutu, a Comissão de Verdade e Reconciliação foi um grande esforço
da sociedade de fazer justiça em relação aos abusos cometidos no passado na África do Sul. Apenas até
1998, a Comissão havia ouvido mais de 21 mil testemunhas e recebido mais de sete mil pedidos de
anistia, tendo rejeitado a grande maioria. A Comissão investigou crimes cometidos por todas as partes
durante o apartheid.
64
Davenport, 1998, p. 88
29
acordo com tados do US Census Bureau de 1998, em uma década, a
expectativa de vida na África do Sul caiu de 65 para 56 anos por conta da aids,
que teria matado um milhão de pessoas nesse período. O problema
ultrapassou a esfera do governo e passou a ser objeto de preocupação de
agências mundiais de saúde.
65
No campo econômico, a reforma empreendida pelo ANC a partir de
1994 foi uma mudança drástica em relação ao que o mundo esperava do
partido. Historicamente ligado ao comunismo russo durante a época da Guerra
Fria, Mandela e seus correligionários se comprometeram com abertura de
mercados, privatizações e criação de um ambiente propício para atração de
capital estrangeiro, primeiro na forma do Reconstruction and Development Plan
(RDP), e, a partir de 1996, com a estratégia Growth, Employment and
Redistribution (GEAR).
66
Os detalhes da formulação do plano econômico sul-
africano alvo de discórdias dentro do ANC e do setor produtivo do país
serão tratados no quarto capítulo, quando analisarmos com maior atenção a
formulação do NEPAD.
Procurou-se neste capítulo mostrar um panorama do cenário doméstico
sul-africano nos anos 1990 e levantar os condicionantes internos que, neste
período, determinaram a política externa praticada por Pretória. Passaremos no
próximo capítulo a ver o cenário regional e global que a África do Sul encontrou
ao deixar o apartheid para trás, e procuraremos esboçar os limites externos
nos quais o governo esbarrou ao colocar em prática a sua diplomacia.
65
Barber, 2004, p. 136
66
Idem, p. 122
30
CAPÍTULO 3
A África do Sul e o contexto externo pós-apartheid
Após o fim do regime do apartheid, logo percebeu-se na comunidade
internacional uma mudança de atitude em relação ao regime de Pretoria. Da
condição de Estado-pária, o país passou a ser uma das mais atuantes e
observadas nações no cenário global nos anos 1990, aderindo, em poucos
anos, a diversas instituições.
Neste capítulo, vamos relatar como foi a inserção do antigo Estado-pária
no novo contexto internacional dos anos 90. Vamos começar observando como
a África do Sul estabeleceu relações com o Ocidente, sobretudo com os
Estados Unidos, uma vez que durante os anos da Guerra Fria o ANC e países
ocidentais muitas vezes estiveram em lados opostos no espectro ideológico.
Em seguida, passaremos a analisar como foi a integração da África do Sul às
novas instituições.
Por fim, passaremos para a análise da relação da África do Sul com os
conflitos nos países vizinhos. Este segmento tem especial atenção em nossa
análise, pois é no contexto regional – ou seja, dentro da África Austral que os
líderes sul-africanos vêem maior importância sobre sua atuação diplomática.
Thabo Mbeki, tanto em sua atuação como presidente como nos anos em que
foi chanceler, sempre destacou que o bem-estar sul-africano depende do bem-
estar do sul da África.
3.1 ÁFRICA DO SUL E O NOVO CONTEXTO INTERNACIONAL
No novo contexto internacional, a África do Sul pode ser considerada
uma potência média, ou seja, uma nação que – como o nome indica – age e se
31
posiciona hirarquicamente entre Estados grandes e pequenos.
67
Cooper e
outros autores elaboraram quatro critérios que definem o que são as potências
médias. São eles: a posição do Estado em relação aos demais países em
critérios facilmente quantificáveis como extensão da área, tamanho da
população, riqueza da economia, contingente militar, etc. –, a posição
geográfica do país em seu continente, a reputação da nação em relação aos
seus vizinhos e o seu comportamento perante os demais Estados.
68
Segundo Cooper, e também Barber, a África do Sul se encaixa nos
quatro critérios definidos, apesar de que, nos três primeiros, possa haver ainda
algumas dúvidas. Outros países, como Canadá e Austrália, por exemplo,
preencheriam os requisitos pensados para as “potências médias” com menores
margens de questionamento. Na questão da riqueza da economia, por
exemplo, o Produto Interno Bruto da África do Sul se aproxima do México e da
Turquia. Sua riqueza regional é similar a de uma potência média na
comparação com a África Austral. O comportamento da África do Sul a partir do
governo Mandela, dentro dos critérios apontados por Cooper, é exatamente o
de uma potência média.
O discurso de Mandela que Mills classifica de “moralista” revela que
a nova política externa sul-africana se aproxima ao conceito de potência média.
Uma primeira medida desta nova política externa foi o estabelecimento das
relações com os Estados Unidos, grande potência vitoriosa da Guerra Fria.
Em uma série de documentos políticos, o ANC
reconheceu a mudança dramática no ambiente
internacional, o colapso de seu velho aliado, a União
Soviética, e o surgimento de uma nova ordem
internacional multipolar, crescentemente dominada
politicamente pelos Estados Unidos e que se baseia
social e economicamente na hegemonia indisputada do
sistema capitalista.
69
67
Barber, 2004, p.152
68
Cooper, Higott e Nosell, 1993, p.21. Sobre o comportamento, Cooper e os demais autores explicam:
“Potências médias são definidas primordialmente pelo seu comportamento: sua tendência de buscar
soluções multilaterais para problemas internacionais, defender posições de compromisso em disputas
internacionais e abarcar noções de ‘boa cidadania internacional’.” Também Keohane possui uma
definição para as potências médias que se adequa à África do Sul: “Uma potência média é um Estado no
qual seus líderes consideram que não é possível agir eficientemente de forma solitária, mas que seu
Estado possa ter um impacto sistemico em uma organização internacional” (Keohane, 1968, p. 296).
69
Döpcke. In: Guimarães, 2000, p. 145. Os documentos ao qual Döpcke se refere são relatórios sobre
política externa publicados após congressos do partido realizados em 1992, 1993, 1994, 1996 e 1997.
32
3.1.1 ESTADOS UNIDOS
A mudança das relações entre a África do Sul e os Estados Unidos é,
em grande medida, resultado de uma reorientação da política externa de
Washington para o continente.
70
O discurso pós-Guerra Fria do presidente
americano George Bush, sobretudo sobre os assuntos africanos, encontrava
ressonância na retórica pós-apartheid de Mandela.
A nova abordagem seria traduzida em ações práticas
através de um número determinado de medidas
concretas. A primeira destas era a identificação de um
núcleo de Estados prioritários na África que eram vistos
por analistas políticos como aliados cruciais na
promoção dos interesses americanos, sendo os mais
freqüentemente citados a África do Sul, Uganda, Ruanda
e Gana. Destes, primeiro e mais importante é a relação
com a África do Sul, com o qual, nas palavras do
embaixador americano em Pretória, os Estados Unidos
estão em concordância completa em itens como
promoção da democracia, direitos humanos, resolução
pacífica de conflitos e não-proliferação de armas de
destruição de massa.
71
Já em 1994, durante visita de Mandela a Wahington, foi formada a
Comissão Binacional Estados Unidos-África do Sul. Mendonça nota que a
Comissão que é presidida pelos vice-presidentes dos Estados Unidos e da
África do Sul e possui sete níveis ministeriais, entre eles defesa, agricultura e
ciência e tecnologia é um instrumento de “prestígio, que sinaliza a
importância estratégica conferida às relações com a África do Sul colocada
em pé de igualdade com as desenvolvidas com a Rússia.”
72
Graças ao trabalho
da Comissão, a África do Sul voltou a importar equipamentos de uso militar dos
Estados Unidos, durante o processo de solução de um contensioso envolvendo
a Armscor, empresa sul-africana de armamentos. Alden, Le Pere e Mendonça
destacam também a assistência financeira à África do Sul por parte do governo
americano. Mais de metade dos US$ 100 milhões de um fundo americano
70
Alden e Le Pere, 2004, p. 356
71
Idem. p. 358
72
Mendonça. In: Guimarães, 2000, p. 65
33
destinado ao desenvolvimento da África Austral foi canalizado para a África do
Sul.
73
Duas reflexões sobre mudança nas relações entre África do Sul e
Estados Unidos são importantes. Primeiro, nota-se a partir do governo do
presidente americano Bill Clinton uma clara mudança de postura nas relações
entre os Estados Unidos e todo o continente africano - não a África do Sul.
Alden e Le Pere chamam essa mudança de postura de “passagem da
negligência para engajamento virtual”.
74
Segundo eles,
(...) mais importante, isso (a mudança da política norte-
americana) representa um esforço dos Estados Unidos
tanto para privilegiar o novo governo de Pretória, como
para, ao mesmo tempo, exercer influência sobre o
possível hegemônico africano.
75
A segunda importante reflexão sobre as novas relações entre África do
Sul e Estados Unidos é que a mudança partiu não do novo governo e das
novas possibilidades abertas pelo final do apartheid, como também de um novo
contexto pós-Guerra Fria e da necessidade americana de estabelecer novos
paradigmas de relações exteriores no continente.
A política externa americana é conhecida por insistir em
basear seu engajamento nas relações internacionais em
termos predominantemente ideológicos. A queda dos
imperativos geopolíticos bipolares, aliado ao
desaparecimento dos incentivos morais tradicionais para
ação no mundo em desenvolvimento como
colonialismo e, no caso sul-africano, apartheid –,
deixaram um vazio que não podia ser adequadamente
preenchido apenas por um a combinação de mero
humanitarismo com objetivos comerciais.
76
A nova política americana para a África passou a ser baseada
ideologicamente na expansão da democracia. BRODERICK explica a noção de
expansão da democracia dentro do governo de Bill Clinton.
O compromisso de Clinton com a expansão da
democracia como um guia de referência foi obviamente
influenciada pela visão triunfalista da democracia liberal
associada com o pensamento de Francis Fukuyama. (...)
As conclusões (desta corrente de pensamento) indicam
73
Alden e Le Pere, 2004, p. 356.
74
Idem, p. 355
75
Idem, p. 359
76
Idem, p. 357.
34
que o período pós-Guerra Fria proporciona uma
oportunidade para se exportar a “ideologia vitoriosa”, em
especial para Estados-chave, que isso vai ajudar as
regiões atingidas pela pobreza e por conflitos para
resolverem seus problemas e, conseqüentemente,
garantir a segurança da ordem internacional.
77
É como um “Estado-chave” em uma “região atingida pela pobreza e por
conflitos” que a África do Sul pós-apartheid se encaixa na política norte-
americana para a África pós-Guerra Fria.
3.1.2 ‘DILEMA DAS DUAS CHINAS’
Desde o começo, em 1994, o governo de Nelson Mandela enfrentou no
plano internacional a complicada herança diplomática dos anos do NP. Entre
as definições cobradas pela comunidade internacional estava a questão do
reconhecimento da República Popular da China ou de Taiwan
78
. Desde 1976, o
regime do NP manteve relações apenas com o segundo, negando-se a
estabelecer relações diplomáticas com Pequim. Nesse período, Taiwan tornou-
se um importante parceiro comercial sul-africano. Em 1994, a África do Sul
contava com 280 empresas originárias de Taiwan, que empregavam 45 mil
pessoas. Em 1995, Taiwan era o quinto maior importador de mercadorias
sul-africanas, com 6,4 bilhões de rands.
79
Se para o regime do NP as relações com a China comunista eram
impensáveis dentro do contexto da Guerra Fria, para Mandela e para o ANC tal
correlação não era tão evidente. Ciente de que poderia perder o
reconhecimento da África do Sul uma vez que Mandela chegasse ao poder, o
governo de Taipei passou a se preocupar com a política interna e os novos
rumos de Pretoria em 1993. Em agosto, o governo de Taiwan desembolsou
77
Broderick, 1998, p. 32
78
Desde 1949, Taiwan atua de forma independente da China. No entano, a China não reconhece a ilha
como um país separado e a classifica como “província rebelde”. Apenas 24 países no mundo mantêm
relações diplomáticas com Taiwan, que não possui assento nas Nações Unidas. A China exige que os
países com quem ela mantém relações diplomáticas não estabeleçam elos formais com Taiwan.
79
Barber, 2004, p. 107
35
US$ 10 milhões em doações para a campanha eleitoral do ANC. Naquele mês,
Mandela foi recebido com honras de Estado durante sua visita à ilha.
Segundo Barber, na chegada de Mandela ao poder havia “uma
confiança ampla” da comunidade internacional de que a África do Sul
reconheceria a China comunista, em detrimento de Taiwan.
80
A China já surgia
nos anos 1990 como um dos países de mais acelerado crescimento econômico
no mundo. Além disso, tinha assento permanente e poder de veto dentro do
Conselho de Segurança das Nações Unidas. Não foi esse, no entanto, o rumo
adotado por Pretória. Em fevereiro de 1995, o ministro das Relações Exteriores
sul-africano, Alfred Nzo, declarou que manteria relações abertas com os dois
países. Sobre a disputa entre Pequim e Taipei, Nzo declarou que “isso é um
assunto que deve ser resolvido pelos próprios chineses”.
81
Por dois anos, o governo de Mandela manteve-se neutro no “dilema das
duas Chinas”. A política de reconhecimento das duas Chinas terminou em
novembro de 1996, pouco antes de a República Popular da China retomar o
controle sobre Hong Kong. No dia 28, Mandela anunciou de forma
surpreendente e sem consultas, segundo Barber e Alden e Le Pere
82
que o
país daria total reconhecimento à República Popular da China, rebaixando suas
relações com Taiwan.
A decisão não ocorreu sem conseqüências para a África do Sul,
segundo Mills.
Apesar de muitos incluindo os taiwaneses, que
presumiam que esta mudança aconteceria muito antes
com a troca do governo em 1994 verem isso como um
ato de curvação ao inevitável, a maneira na qual o
assunto foi lidado foi desastrada e mais desgastante do
que necessário para a combalida ilha Estado.
83
Barber e Alden e Le Pere vão adiante e vêem no reconhecimento da
China em detrimento de Taiwan como uma contradição na política externa com
prevalência dos direitos humanos anunciada por Mandela na chegada ao
poder. Alden e Le Pere mencionam um pronunciamento de autoridades do DFA
em dezembro de 1997, no qual a África do Sul “teria a oportunidade de discutir
80
Idem.
81
Idem.
82
Barber, 2004, p. 107 e Alden e Le Pere, 2004, p. 20
83
Mills, 2000, p. 269
36
de forma direta com Pequim questões de direitos humanos”, em decorrência da
nova relação entre os países. Em abril de 1998, em viagem a Pequim, Mbeki
não tocou no assunto dos direitos humanos. No ano seguinte, recusou-se a
receber o Dalai Lama durante uma visita do líder religioso à África do Sul.
84
Também em 1999, Mandela não fez comentários sobre direitos humanos
durante visita a China.
85
A forma como a África do Sul lidou com o “dilema das duas Chinas”
mostra como foi difícil para o ANC traduzir na prática os ideais que, de certa
forma, o ajudaram a chegar ao poder. Mandela e seu gabinete viam-se
cobrados pelas promessas e laços estabelecidos nos anos de combate ao
apartheid e no período de campanha eleitoral. Por outro lado, as necessidades
da agenda doméstica sul-africana aumento da sua influência política e militar
no continente, renascimento econômico e manutenção da ordem social interna
no país – empurravam o governo na direção de novas parcerias e novos
compromissos, que por vezes colocavam o ANC e Mandela em oposição a
antigos aliados.
3.2 ÁFRICA DO SUL E AS INSTITUIÇÕES INTERNACIONAIS
Ao final do apartheid, as instituições internacionais da África Austral se
dividiam em duas categorias: aquelas na qual a África do Sul era dominante e
as demais nas quais o país era excluído.
86
Na primeira categoria estavam a
União Aduaneira da África Austral (SACU, na sigla em inglês) e a Área
Monetária do Rand (RMA, na sigla em inglês). A SACU foi criada em 1910 e é
a instituição multilateral mais antiga do continente africano e também uma das
Uniões Aduaneiras mais antigas do mundo. É formada por África do Sul,
Botsuana, Lesoto, Suazilândia e Namíbia. A RMA (ou Common Monetary Area,
como é às vezes referida) é formada pelos mesmos países, com exceção de
Botsuana e tratada da gestão do rand nos países da União. Lesoto, Namíbia e
84
Alden e Le Pere, 2004, p. 21
85
Barber, 2004, p. 108.
86
Barber, 2004, p. 185
37
Suazilândia possuem moedas próprias, mas elas estão todas atreladas ao rand
sul-africano.
Na segunda categoria, estavam os Estados da Linha de Frente (FLS, na
sigla em inglês), a Conferência de Coordenação de Desenvolvimento da África
Austral (SADCC, em inglês) e o Mercado Comum para a África Oriental e
Austral (Comesa, em inglês). Mais do que instituições que excluíam a África do
Sul, esses organismos se colocavam como oposição ao país e ao regime do
apartheid. A FLS instituição formada por Angola, Botsuana, Lesoto,
Moçambique, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue pretendia lutar contra regimes
de segregação de negros. Foi extinta no final de 1994, tendo recebido adesão
da África do Sul naquele mesmo ano. O Comesa é uma área de preferência
comercial formada por 20 países da África. A África do Sul nunca chegou a
aderir à Comesa, e três países da África Austral Lesoto, Moçambique e
Namíbia – deixaram o tratado entre 1997 e 2004.
A SADCC foi formada em 1980 por dez Estados governados por maioria
negra.
87
Seu objetivo era promover a cooperação econômica e assegurar ajuda
financeira internacional para reduzir a dependência dos Estados em relação à
África do Sul. Com o fim do apartheid da África do Sul, os países a instituição
precisou ser reformulada para a adesão de Pretória. Segundo Barber, os
países da SADCC celebraram o fim do apartheid, embora reconhecessem que
novos e grande desafios estivessem pela frente. “No passado, eles conviviam
com um gigante maligno, agora estariam vivendo com um benigno, mas, ainda
assim, com um gigante.”
88
Em 1992, a SADCC foi dissolvida e refundada com
o nome de Comunidade de Desenvolvimento da África do Sul (SADC, em
inglês), recebendo a adesão formal da África do Sul. Na declaração e tratado
fundador da SADC, os países concordavam em
(...) buscar o desenvolvimento e o crescimento
econômico, aliviar a pobreza, melhorar os padrões e
qualidade de vida das pessoas da África Austral e apoiar
os socialmente prejudicados através da integração
regional.
89
87
Hoje a SADC é formada por 14 países: África do Sul, Angola, Botsuana, Congo, Lesoto, Madagascar,
Malaui, Maurícia, Moçambique, Namíbia, Suazilândia, Tanzânia, Zâmbia e Zimbábue.
88
Barber, 2004, p. 186
89
Declaration and Treaty of SADC. Disponível em:
http://www.sadc.int/english/documents/legal/treaties/declaration_and_treaty_of_sadc.php#article5
Acessado em fevereiro de 2007.
38
A SADC abandonava o objetivo anterior de criar um espaço alternativo à
África do Sul, mas ainda assim o governo de Pretória era visto como um certo
incômodo para a região. “Enquanto um dos princípios da SADCC era manter o
grande e velho gigante distante, na SADC o objetivo era domesticar o amigável
e novo gigante.”
90
Nas palavras de Hentz, os vizinhos da África do Sul “reconheciam o
poderio positivo do país, apesar de temerem uma predominância de Pretória.”
Esse problema de hegemonia explicava a “dificuldade matrimonial” entre a
África do Sul e a SADC.
91
O autor nota que a SADC tornou-se a âncora da
África do Sul para promover sua política de integração regional. Nas palavras
do professor David Simon, “a SADC é instituição mais bem voltada para o
desenvolvimento regional da África Austral”.
92
Devido à importância da instituição para o governo de Pretória, a
atuação da África do Sul dentro da SADC será retomada na seção seguinte
deste capítulo, quando analisarmos a relação do país com os seus vizinhos
africanos. Antes de encerrarmos esta seção sobre organizações internacionais,
cabe mencionar outros dois órgãos multilaterais que também estiveram na
agenda sul-africana: as Nações Unidas (ONU) e a União Africana (UA).
Alden e Le Pere destacam que a Organização da Unidade Africana
(OUA) instituição que precedeu a UA, antes de sua fundação em 2001 é
“notoriamente uma instituição que viveu mais do que sua utilidade”.
Isso é uma conseqüência direta da natureza fraca
íntrinseca aos Estados africanos, que não foram forjados
por etnicidades, nacionalidades ou guerra. Eles foram
simplesmente resultados do abandono de poderes
imperiais, que deixaram Estados altamente centralizados
e autoritários nas mãos de pequenos grupos de africanos
com educação ocidental, que logo correram para assumir
o poder.
93
a UA, segundo diversos autores, é uma instituição com valores
completamente opostos de sua antecessora. Ainda que com princípios de
90
Barber, 2004, p. 187
91
Hentz, 2005, p. 169.
92
Idem.
93
Alden e Le Pere, 2004, p. 63
39
difusão de princípios democráticos e desenvolvimento das regiões mais pobres
com ênfase na defesa dos direitos humanos –, a UA ainda é uma instituição
“que precisa mostrar sua eficiência.”
94
Diferentes autores apontam que a União Africana é um espaço de
diálogo importante da África do Sul com o resto do continente. A entidade teria
sido altamente influenciada pelo discurso de Thabo Mbeki de “Renascença
Africana”, que propõe que os “problemas africanos precisam ser resolvidos
pelos africanos”. Ainda assim, a UA com seus 53 países em todo o
continente não teria a importância estratégica para a África do Sul de
instituições como a SACU e a SADC, voltadas para a África Austral.
Para Mills, o mesmo ocorre com as relações da África do Sul e as
Nações Unidas. Segundo ele, a ONU “desempenha um papel pouco mais que
simbólico, apoiador e ocasionalmente de arbitragem nas ações de política
externa”.
95
Em um ambiente global assim, entidades como a SADC ou a
aliança militar ocidental OTAN teriam condições de continuar exercendo sua
influência direta nas questões regionais. Logo, essas entidades assumem para
os Estados-parte um papel estratégico mais interessante na condução da
política externa.
96
3.3 ÁFRICA DO SUL E OS CONFLITOS AFRICANOS
Nos anos pós-apartheid, a África do Sul foi chamada a exercer sua
liderança em diferentes conflitos no continente. De 1995 em diante, Mandela e
o ANC tiveram de lidar seja através de ação direta do governo, como de
participação nos fóros multilaterais com conflitos na Nigéria, Congo,
Zimbábue, Lesoto, Angola e Burundi.
94
Idem.
95
Mills, 2000, p. 321
96
Desde 1994, a África do Sul tem sido apontada por diferentes analistas como candidata a um assento
permanente no Conselho de Segurança da ONU. A vontade de Pretória foi manifestada em diferentes
ações internacionais – inclusive na formação do Fórum Trilateral Índia-Brasil-África do Sul (IBAS), de
2003. O ingresso do país, no entanto, depende mais dos procedimentos de reforma do Conselho, que tem
sido adiados indefinitivamente, do que apenas da construção de alianças entre os países.
40
em 1995, o ANC encontrava-se no mesmo dilema entre suas opções
do passado e seus novos compromissos. A maior parte dos ex-líderes
inclusive Thabo Mbeki nutria simpatia pelo regime militar que comandava o
país. No entanto, o país também se mostrava simpático à causa da oposição
pró-democracia. A escalada de violência causada pela disputa entre o ditador
Sani Abacha e o candidato da oposição Moshood Abiola fez com que Mandela
se posicionasse contra o governo nigeriano, mesmo sob as acusações de
alguns países do continente de romper uma certa “solidariedade africana”.
No Congo, a intervenção sul-africana no conflito foi mais positiva, tendo
sido importante para que se chegasse a um acordo de cessar-fogo em 2002. A
África do Sul já estava envolvida no conflito desde o seu princípio, em 1997, no
Zaire, estado que antecedeu a República Democrática do Congo. Em 1998,
Mandela tentou firmar um acordo de paz entre o líder Laurent Kabila e o
presidente Mobutu Sese Seko, no Zaire. Após o fracasso das negociações e o
golpe de Estado de Kabila, a África do Sul apoiou a decisão dos países da
SADC de enviar tropas em apoio ao presidente deposto. Em 1999,
observadores da ONU foram enviados ao Congo. O assassinato de Laurent
Kabila e a chegada de seu filho Joseph ao poder, em 2001, sinalizaram uma
mudança de clima no Congo, com concordância entre as partes envolvidas de
desarmar a disputa. Em 2002, o esforço sul-africano de mediação resultou em
um acordo de cessar-fogo e concordância na gestão coordenada do país entre
facções rivais.
No Lesoto, a atuação da África do Sul voltou a ser alvo de críticas. Em
1998, tropas da África do Sul e de Botsuana invadiram o país para reinstaurar a
ordem, depois de uma crise política e uma convulsão social. A operação teve
repercussão interna e externa muito ruim. Primeiro porque falhou em
estabelecer ordem no Lesoto e provocou um alto número de mortes. Segundo
porque a África do Sul foi criticada por incoerência. O país, que em outros
conflitos insistia na solução negociada entre as partes, não hesitou em agir
militarmente quando alguns interesses diretos estavam envolvidos.
97
97
Segundo ALDEN e LE PERE (2004, p. 24), um conflito no Lesoto poderia se estender para terras sul-
africanas. Além disso, um projeto de abastecimento de água para a África do Sul estava ameaçado devido
ao conflito.
41
As críticas mais fortes foram feitas à África do Sul durante a crise no
Zimbábue, em 2001. Um processo de reforma agrária iniciada pelo presidente
Robert Mugabe deu início a uma forte disputa, traduzida no campo político
pelos dois movimentos políticos, o situacionista Zanu-PF e o oposicionista
MDC. A opção sul-africana por uma “diplomacia silenciosa”
98
e a relutância de
Pretória de condenar as fraudes eleitorais praticada pelo governo nos pleitos
parlamentares de 2000 e presidencial de 2002 geraram pressão sobre o
presidente Thabo Mbeki. Depois de fracassadas tentativas de mediação de
Mbeki entre as partes, a África do Sul decidiu apoiar a decisão de suspender o
Zimbábue da Commonwealth. Mbeki chegou a receber pressão direta da Grã-
Bretanha e dos Estados Unidos, que ameaçaram boicotar o New Partnership
for Africa’s Development (NEPAD), principal ação sul-africana de política
externa para o continente.
99
A região da África Austral, onde se esperava que a África do Sul,
exercesse maior influência, provou-se um teste difícil para a diplomacia de
Pretória. Segundo Alden e Le Pere, a tentativa da África do Sul de
desempenhar um papel chave na resolução dos conflitos na África Austral tem
“definitivamente uma ficha confusa, de sucessos e fracassos”.
100
Para Mills,
“Pretória lutava para definir uma série consistente de prioridades externas e
uma forma de sistemática de executá-las.”
101
(...) As relações internacionais da África do Sul não eram
mais determinadas pela anormalidade do apartheid, mas
sim por um grupo de imperativos que competiam entre si
e entravam em conflito, como os que afetam diversos
Estados “normais”.
102
No primeiro capítulo, mostramos os desafios que Mandela, Mbeki e o
ANC tiveram pela frente ao herdar o Estado sul-africano do regime do
apartheid do NP. Neste capítulo, procuramos mostrar como a África do Sul
enfrentou os problemas de política externa em um novo cenário global pós-
Guerra Fria que teve grandes conseqüências para o continente africano e para
98
Idem, p. 49. Segundo os autores, o Zimbábue abrigava dezenas de negócios sul-africanos, o que teria
inviabilizado uma ruptura total de Pretória com Mugabe.
99
Idem.
100
Idem, p. 53
101
Mills, 2000, p. 255
102
Idem. p. 270
42
a África Austral, região de maior influência de Pretória. No próximo capítulo,
passaremos a analisar como a África do Sul construiu o NEPAD um de seus
mais ambiciosos projetos de política externa para a África e como os
condicionantes internos e limites externos, explorados nestes capítulos iniciais,
determinaram os rumos do NEPAD.
43
CAPÍTULO 4
Estudo de caso: NEPAD
Nos capítulos anteriores, identificamos os condicionantes internos da
política externa sul-africana, bem como o cenário internacional no qual a África
do Sul foi chamada a atuar a partir de 1994. O objetivo deste capítulo é fazer
um estudo de caso sobre o New Partership for Africa's Development (NEPAD),
um dos mais ambiciosos projetos de política externa de Pretória desde o fim do
apartheid.
Mills nota que a principal dificuldade em se avaliar a política externa nos
anos de governo de Nelson Mandela e podemos aqui acrescentar também o
período de Thabo Mbeki no poder é encontrar as medidas corretas para
julgar se houve sucesso ou insucesso.
103
Qual é a medida do sucesso da política externa da África
do Sul? É o grau no qual a África do Sul se tornou um
jogador dentro da comunidade internacional? Se foi isso,
então [a política externa de Mandela] foi um sucesso. É a
medida na qual Mandela foi recebido com capital
internacional? Então, também, foi um sucesso
estrondoso. [...] Se foi no papel que a África do Sul
desempenhou em áreas isoladas, como desarmamento
[...], então a África do Sul conseguiu desempenhar um
papel construtivo. Mas se medida em termos de fluxo
geral de investimentos estrangeiros diretos do tipo que
providenciaria benefícios para a economia sul-africana
no longo prazo e sustentaria a transição além do governo
de Mandela, então [a política externa da África do Sul] foi
um fracasso.
104
Segundo Mills, a falta de coordenação da burocracia de Pretória as
diferenças entre órgãos e gabinetes do Executivo, como vimos no primeiro
capítulo e o fracasso de traduzir o discurso de direitos humanos em política
103
Mills, 2000, p. 296
104
Idem, p. 297
44
externa também são mostras de como a nova diplomacia da África do Sul teria
falhado.
Dados os sucessos e insucessos, qual, então, seria o veredito mais
adequado para a política externa sul-africana pós-apartheid? A questão é de
difícil resposta, até mesmo para especialistas como Mills, Alden e Le Pere, que
se ocuparam dela em seus trabalhos. Não tentaremos aqui analisá-la. Nosso
trabalho limita-se tão somente a contribuir a este debate ao sintetizar
condicionantes internos e fatores externos para explicar os fundamentos do
NEPAD. Um esforço de avaliação de toda a política externa sul-africana
requereria uma análise mais ampla, da qual o NEPAD seria apenas uma parte
do objeto de estudo.
Mesmo entre os especialistas que tentaram essa análise mais ampla,
parece haver um consenso de que uma avaliação tão taxativa sobre política
externa sul-africana pós-apartheid nos termos de “bem-sucedida” ou “mal-
sucedida” – ainda não é possível.
A África do Sul conseguiu negociar de forma bem-
sucedida uma transição de um regime autoritário para
um democrático, tendo esta transição envolvido
mudanças estruturais de longo alcance na ordem
doméstica. O país respondeu e foi profundamente
modificado por forças e fatores em seu ambiente
regional, continental e global. [...] O que fez com que o
caso da África do Sul fosse tão excepcional é que, contra
todas as expectativas, a transição foi em si relativamente
pacífica e produziu um novo governo com um desejo
raramente intenso de desempenhar um papel ativo no
cenário internacional. [...] Ao mesmo tempo, a África do
Sul tentou reconfigurar sua política externa para refletir
um novo sentido da sua própria identidade como um
Estado africano de liderança, de atingir uma nova arena
para o ativismo na África continental e reconstruir um
posicionamento global entre os Estados do sul. [...] É
preciso reconhecer que essas raízes idealistas da
política externa do pós-apartheid também impõem limites
na ação e continuam em confronto com os impulsos que
refletem a posição econômica dominante da África do
Sul no continente africano. Quão longe essa agenda de
transformação direcionada às instituições regionais e
internacionais pode ser bem-sucedida quando a África
do Sul parece incapaz (ou sem vontade) de administrar
crises nas suas imediações parece crucial para entender
45
a forma que tomará política externa nos próximos
anos.
105
Se nossa análise, como a de outros pesquisadores, carece de uma
definição mais taxativa para a política sul-africana, é no último item apontado
para Alden e Le Pere que pretendemos dar nossa contribuição. A “agenda de
transformação” direcionada ao continente africano proposta oficialmente por
Pretória é exatamente o NEPAD. Ao desenharmos os condicionantes internos
que geraram o NEPAD e delimitarmos as fronteiras externas nas quais esbarra
a iniciativa, pretendemos contribuir ao debate sobre como “entender a forma
que tomará política externa (da África do Sul) nos próximos anos”.
106
A primeira parte deste capítulo será dedicada ao estudo da política
econômica adotada pela África do Sul ao final do apartheid. As decisões sobre
integração da maior economia do continente ao novo contexto internacional
são chave para compreensão da dimensão econômica da diplomacia de
Pretoria. Primeiro analisaremos as origens Reconstruction and Development
Plan (RDP), primeiro plano econômico do governo de Mandela, e do seu
sucessor o Growth, Employment and Redistribution (GEAR). Juntos, os dois
programas apontaram a forma como se daria a reinserção econômica da África
do Sul no contexto global.
Na segunda parte, analisaremos as origens do conceito de
Renascimento Africana, discurso adotado por Thabo Mbeki que delimitou
retoricamente os novos ideais da política externa de Pretória. São as idéias
expressadas dentro do Renascimento Africano, muitas delas incorporadas do
discurso humanista de Mandela, que deram forma ao NEPAD. Tanto os
programas econômicos como a retórica do governo representam os
condicionantes internos. Na terceira parte do capítulo, abordaremos o próprio
NEPAD e a forma como o programa foi introduzido e desenvolvido a partir de
2001. Por fim, observaremos os condicionantes internos que deram forma ao
NEPAD e a reação internacional ao programa, ou seja, os limites externos.
A hipótese com a qual trabalhamos aqui é que a política externa da
África do Sul pós-apartheid foi construída sob a influência dos condicionantes
105
Alden; Le Pere, 2004, p. 71
106
Idem.
46
internos listados no primeiro capítulo, mas delimitada por fatores externos,
explicitados no segundo capítulo. Segundo esta hipótese, a diplomacia de
Pretória não foi, como querem alguns autores, fruto de uma política de “falar
para a esquerda e caminhar para a direita” ou de mera submissão a interesses
de países mais ricos.
107
Nem foi o NEPAD uma mera “aplicação do Consenso
de Washington na África”
108
, mas sim o esforço de traduzir a retórica do novo
governo sul-africano em ações práticas de diplomacia.
4.1 PROGRAMAS ECONÔMICOS: RDP E GEAR
Em 1994, o ANC, dentro da aliança trilateral com o Partido Comunista
(ou South African Comunist Party, SACP) e a Cosatu esboçou um programa
econômico para servir de base ao governo de Nelson Mandela. O plano
Programa de Reconstrução e Desenvolvimento (ou Reconstruction and
Development Programme, RDO, em inglês) – foi formulado dentro do âmbito do
ANC, tendo recebido forte influência de Nelson Mandela.
O RDP passou por diversos esboços. O primeiro parecia
uma planta para uma sociedade socialista, mas a cada
revisão, ela foi se afastando deste modelo, até que
Mandela, com um olho no clima internacional
preponderante, pode se certificar de que a versão final
não fizesse menções sobre nacionalismo ou contivesse
qualquer slogan marxista.
109
O RDP não entrou em detalhes sobre especificidades da política
econômica sul-africana, mas delineou diferentes metas e princípios pelos quais
o governo conduziria a economia. O RDP foi anunciado no primeiro semestre
do ano e fazia parte da campanha eleitoral de Mandela. No prefácio do
principal documento do RDP, assinado pelo próprio Mandela, o caráter
consultivo e aberto do programa é ressaltado junto aos eleitores:
Este documento é o fim de um processo e o começo de
outro. Este documento é resultado de muitos meses de
consulta dentro do ANC, seus aliados e outras
107
Bond, 2006, p. 17
108
Idem, p. 103
109
Barber, 2004, p. 76
47
organizações de massa da ampla sociedade civil. [...] O
RDP não foi feito por especialistas apesar de muitos e
muitos especialistas terem participado no processo
mas sim pelas exatas pessoas que serão responsáveis
pela sua implementação. É o produto da consulta,
debate e reflexão sobre o que precisamos e sobre o que
é possível. [...] Com este documento, nós vamos agora
consultar mais amplamente para nos certificarmos de
que todas as visões estarão disponíveis no processo de
construção de políticas. [...] O ANC e seus aliados têm
princípios e políticas com os quais estamos
profundamente comprometidos, mas não vamos fechar
nossos ouvidos para outros pontos de vista. [...] A
democracia terá muito pouco conteúdo e, de fato, terá
uma vida breve se nós não conseguirmos lidar com
nossos problemas sócio-econômicos dentro de uma
economia em expansão e crescimento.
110
O programa delimita seis princípios fundamentais para o sucesso da
economia sul-africana: um programa sustentável e integrado, um processo
dirigido pelo e para o povo, a garantia de segurança e paz para todos, a noção
de construção de uma nação, a ligação entre reconstrução e desenvolvimento
e, por fim, a democratização da África do Sul.
111
O ANC propõe cinco formas
de ação: atender demandas básicas da população (como saúde, habitação e
infra-estrutura, entre outros itens), desenvolver os recursos humanos do país,
construir uma economia, democratizar o Estado e a sociedade e implementar o
RDP.
112
O RDP possui algumas mensagens que foram mantidas em planos
posteriores e que expressam bem a nova política externa de Pretória. Primeiro,
o compromisso integral com a democracia. “Sem uma democratização
severa, os recursos e potenciais do nosso país e do nosso povo não vão estar
disponíveis para um programa coerente de reconstrução e desenvolvimento”,
afirma o documento.
113
Mais do que a mera defesa da democracia, o ANC
afirma que “o elo entre democracia e desenvolvimento funcionará como
pavimento para uma nova ordem democrática”.
114
110
The Reconstruction…, 2007.
111
Idem.
112
Idem.
113
Idem.
114
Idem.
48
O ANC é explícito no documento ao comentar o tipo de integração que a
economia sul-africana deve ter ao resto do mundo, um discurso de certa forma
surpreendente para aqueles que acompanharam a tradição socialista do
partido.
Na economia mundial, a demanda por matérias-primas,
incluindo minerais, não cresceu de forma rápida e há
uma intensa competição na produção de mercadorias
manofaturadas. O General Agreement on Trade and
Tariffs (Gatt) foi recentemente atualizado para que se
atinja substanciais reduções de níveis tarifários. Nossa
economia deve se adaptar a essas pressões se
quisermos manter o crescimento econômico e continuar
desenvolvendo um grande setor doméstico de
manufaturação que faça ótimo proveito de nossas
próprias matérias-primas e minerais.
115
Apesar, de como Barber apontou, a versão final do documento do RDP
não conter “slogans marxistas”, trechos que deixam aberta a possibilidade
de revisão de privatizações de estatais realizadas no passado. O ANC também
não se absteve de dar, no documento, a sua visão sobre o cenário econômico
internacional.
Uma proposta central neste capítulo é que nós não
podemos construir uma África do Sul isolada dos seus
vizinhos na África Austral. Tal caminho não beneficiaria
ninguém no longo prazo. Se a África do Sul tentar
dominar os seus vizinhos, ela vai restringir o crescimento
deles, reduzindo o seu potencial enquanto mercados,
piorando o desemprego deles e causando o aumento da
imigração para a África do Sul. Se procurarmos
cooperação mútua, podemos desenvolver um amplo e
estável mercado oferecendo emprego estável e padrões
comuns de trabalho em todas as áreas. As pressões da
economia mundial e as operações de organizações
internacionais, como o Fundo Monetário Internacional
(FMI), o Banco Mundial e o Gatt, afetam nossos vizinhos
e a África do Sul de formas diferentes. No caso dos
nossos vizinhos, eles foram pressionados a implementar
programas com efeitos adversos no nível de emprego e
nos padrões de vida. É essencial que cooperemos para
desenvolver estratégias eficientes para todos os países
da África Austral.
116
115
Idem.
116
Idem.
49
No capítulo sobre Indústria e Comércio, o RDP fala em “reestruturar as
relações com países vizinhos da África, que respondem por 20% das nossas
exportações”.
117
Grande parte do programa econômico, no entanto, ainda é
voltada para enfrentar as diferenças de renda entre brancos e negros, que em
1994 constituia o principal tema da campanha eleitoral.
O RDP foi implantado na chegada de Mandela ao poder. Um ministério
especial para o programa foi criado dentro do governo, a cargo de Jay Naidoo.
A reação geral ao RDP foi diversa.
118
Fora do ANC, houve quem expressasse
dúvidas e preocupações com o programa, sobretudo com algumas metas
quantificadas do RDP como a promessa de resdistribuição de 30% da terra
do país, criação de meio milhão de postos de trabalho e eletrificação de 2,5
milhões de casas. As críticas mais severas vieram do SACP, partido comunista
aliado ao ANC. O secretário-geral da sigla, Charles Nqakula, acusou empresas
privadas de usarem o RDP como “programa de relações públicas” para
atraírem capital estrangeiro para a África do Sul, agravando ainda mais o
problema da distribuição de renda no país.
119
Apesar das críticas, Barber aponta que o RDP ganhou amplo apoio da
sociedade.
120
Em seu primeiro discurso no Parlamento, Nelson Mandela
ressaltou que o RDP precisava estar ancorado em disciplina fiscal e monetária,
acompanhados de esforços públicos e privados para atração de investimento
externos e privados.
121
Essa orientação para o mercado do RDP foi bem-
recebida por investidores, mesmo que o programa tenha, no longo prazo,
falhado em concretizar todos os seus objetivos.
Políticas macroeconômicas têm a tendência de serem
orientadas para o mercado, com ênfase em
privatizações, desregulação e liberalização do comércio.
A política fiscal tem sido predominantemente
conservadora e disciplinada, enquanto a política
monetária continua sob o domínio de um banco central
independente. O governo embarcou em uma
reconstrução ambiciosa e em um programa de
desenvolvimento que falharam largamente nos seus
117
Idem.
118
Barber, 2004, p. 77
119
Idem, p. 78
120
Idem, p. 77
121
Idem.
50
objetivos, mas que ainda levaram a avanços
consideráveis dos serviços sociais.
122
Ainda assim, o RDP acabou fracassando e no dia 28 de março de 1996
o ministério especial do programa foi fechado. O principal motivo alegado por
Pretória foi a burocracia complicada de administração conjunta da verba entre
governo federal e departamentos.
123
Autores como Barber também alegam
uma disputa política entre Jay Naidoo e Thabo Mbeki.
124
A verba do ministério
– mais de 10 bilhões de rands (cerca de 2,5 bilhões de dólares) – foi repassada
ao Tesouro, que teria condições de implementar programas com maior
eficiência. O fechamento do ministério do RDP foi, segundo a revista The
Economist, uma “grande confissão de fracasso”.
125
Era para ter sido o New Deal da África do Sul. O
"programa de desenvolvimento e reconstrução",
conhecido por todos como RDP, era a grande idéia do
African National Congress (ANC), o seu plano para
melhorar a vida da grande maioria negra. Ele prometeu
um milhão de casas, água encanada para um milhão de
pessoas e eletricidade para 2,5 milhões; e tudo isso em
apenas cinco anos. [...] O governo insiste que os
objetivos do RDP não foram abandonados, apenas
absorvidos. O dinheiro irá para o orçamento de outros
ministérios, que o gastarão. Ainda assim, em sua curta
vida, o RDP passou a representar um importante
simbolismo, uma tradução dos sonhos da Carta de
Libertade do ANC, de 1955, em um terreno de
realidade.
126
O fim do RDP constituiu, segundo Alden e Le Pere, uma mudança de
foco dentro da política praticada pela África do Sul. O RDP, com seu foco em
“redução da pobreza e combate às desigualdades que afetavam mais
fortemente os atingidos pelo apartheid”, foi substituído por um programa
voltado para reformas econômicas estruturais, com “reformas fiscais, remoção
de controles de câmbio, disciplina monetária, privatização de bens estatais,
122
The Economist, 1998.
123
South..., 1996, p. 27
124
Barber, 2004, p. 122
125
South..., 1996, p. 27
126
Idem.
51
flexibilização do mercado de trabalho, redução de tarifas e desenvolvimento de
habilidades.”
127
Três meses após o fechamento do ministério do RDP, o governo
anunciou o plano Crescimento, Emprego e Redistribuição ou Growth,
Employment and Redistribution, que forma a sigla GEAR (acrônimo que
significa “engrenagem” ou “mecanismo de direção”, em inglês). Enquanto o
RDP fora formado em um amplo debate dentro do ANC, ainda que com forte
influência de Nelson Mandela na redação final, o GEAR foi produto de uma
discussão restrita aos ciclos mais restritos do partido, que incluíam Thabo
Mbeki e o ministro das Finanças, Trevor Manuel.
128
Como nota uma análise da
agência jornalística All Africa sobre o GEAR, o programa do governo, apesar
de se propor como uma versão integrada de toda a administração em
consonância com a sociedade, “na verdade expressa apenas a visão do
Departamento de Finanças e de um punhado de economistas”
129
.
Os objetivos do GEAR seguem sendo os mesmos do RDP: criar uma
economia competitiva com expansão dos postos de trabalho, redistribuir renda
com mais oportunidades para os mais pobres, prover a sociedade de serviços
básicos, como educação e saúde, e criar um ambiente de segurança para os
negócios.
130
Também a exemplo do RDP, o programa possui metas numéricas
para a economia.
A estratégia desenvolvida prevê um ritmo de crescimento
de seis por cento ao ano e a criação de 400 mil
empregos por ano até o ano 2000, concentrando a
capacidade de construção para atingir as demandas da
competitividade internacional.
131
Porém, ao contrário do programa antecessor, que apenas estabelecia
metas e princípios a serem cumpridos pelo governo, o GEAR é explícito em
formular receitas para a economia. Um dos pontos essenciais do GEAR é o
combate à inflação.
O perigo de um incremento na taxa de inflação,
reforçado pela espiral salário-preço, é uma ameaça
127
Alden e Le Pere, 2004, p. 28
128
Barber, 2004, p. 122
129
Growth..., 1998.
130
Growth..., 1996.
131
Idem.
52
constante para a expansão antecipada pela estratégia.
Para conter as pressões inflacionárias, será necessária
uma implementação coordenada de medidas
complementares de estabilização: aceleração da
liberalização das tarifas, redução mais drástica de
déficits, política monetária mais rígida e, acima de tudo,
aumentos salariais relacionados a aumentos de
produtividade. Tomadas em conjunto, estas medidas
segurariam a taxa de inflação abaixo da barreira dos
10% ao longo do período, e manteria a vantagem
competitiva da depreciação.
132
O programa incluía também a “redução do déficit orçamentário das
despesas do governo, reforma no sistema tributário com reorganização do
gasto público, redução da inflação, abertura da economia para competição
internacional e mais acesso a novos mercados”.
133
O GEAR foi recebido, tanto
por críticos como pela classe empresarial, como um programa de adequação
da África do Sul aos princípios do Fundo Monetário Internacional (FMI), de
reformas estruturais liberais e privatizações.
Do lado dos críticos, como a Cosatu, o GEAR era conservador e
tendencioso em favor do setor privado.
134
O jornalista Hein Marais, crítico do
governo do ANC, notou que o GEAR chocou muitas pessoas no ANC por
“favorecer os grandes negócios às custas da classe trabalhadora, ao promover
arrochos salariais e reduções nos gastos públicos”. O programa seria um ajuste
auto-imposto às exigências de reforma feitas pelo FMI.
135
O Partido Comunista Sul-Africano e o [sindicato]
COSATU querem mais gastos do Estado, são críticos do
zelo "Thatcherita" do governo na questão da redução do
déficit orçamentário e não gostam da política de
Crescimento, Emprego e Redistribuição do GEAR, que é
a incorporação das estratégias ortodoxas de livre
mercado agora perseguidas pelo ANC.
136
A classe empresarial, mais entusiasmada com o GEAR, também viu os
ajustes promovidos pelo GEAR como um passo em direção a reformas
promovidas pelo FMI, ainda que feitas de forma “disfarçada” pelo governo de
Pretória.
132
Idem
133
Idem
134
Barber, 2004, p. 123
135
Idem
136
Survey…, 1998, p.8
53
Privatização é um palavrão em Pretória. Mas isso não
impediu o governo do ANC de - para usar seus
eufemismos preferidos - reestruturar, corporatizar e
comercializar uma lista crescente de empresas estatais.
A relutância em aceitar dispositivos pelo que são,
enquanto seguem adiante de qualquer forma, reflete as
pressões conflitantes que sofre o governo.
137
Diante das reações diversas, os principais líderes do ANC se
mantiveram impassíveis em relação ao GEAR. Mandela disse que a nova
política não era negociável, enquanto Mbeki rejeitou o argumento de que o
programa favorecia uma minoria privilegiada às custas da maioria,
classificando o GEAR como uma forma de atingir “as metas gêmeas de
crescimento e eqüidade”.
138
Trevor Manuel disse que o GEAR era uma
estratégia integrada, “e não um milagre de sete dias (...) é uma tentativa de
transformar o governo e não será implementada em apenas um mês”.
139
Não entraremos em detalhes sobre os sucessos e fracassos do GEAR,
assim como também não fizemos isso com o RDP. O importante nos
programas, para nossa análise, é mostrar como a África do Sul passou a
enfrentar, no governo de Nelson Mandela, os problemas relativos à
economia. A visão de Pretória não ficou baseada apenas nas tradições e nos
ideais históricos do ANC, tendo incorporado e reagido à pressão de
empresários locais e investidores internacionais. Dois aspectos devem ser
salientados sobre o GEAR. Primeiro, é interessante notar que um núcleo menor
de tomadores de decisão concentrou as decisões tomadas sobre a economia.
Fontes primárias e secundárias de pesquisa confirmam que Nelson Mandela,
Thabo Mbeki e Trevor Manuel tiveram grande participação na formulação das
metas, princípios e procedimentos definidos dentro do GEAR. Na gestão
econômica do governo Mandela, pelo menos, o ANC teve reduzida
participação.
O segundo aspecto é sobre o impacto dessas decisões na política
externa sul-africana. Analistas de relações internacionais viram no RDP e
sobretudo no GEAR uma nova forma de agir internacionalmente surgindo
dentro do governo de Pretória. Muitas das possíveis incompatibilidades que
137
Idem, p.9
138
Barber, 2004, p. 123
139
Sound…, 1996, p. 6
54
havia no amplo discurso de Mandela como as dicotomias entre a busca pela
redução de desequilíbrios sociais e a necessidade de crescimento de todos os
setores da economia, o combate à inflação e a busca por uma economia mais
dinâmica e acelerada, ou até mesmo a divisão entre direitos humanos e
interesses econômicos passaram a ser lidadas com clareza. O GEAR, com
sua linguagem clara e pouco ambígua, optou por um programa de liberalização
da economia e combate da inflação.
Para Alden e Le Pere, a nova linguagem e as novas metas do GEAR
representam uma mudança de política externa na África do Sul.
A mudança do RDP para o GEAR teve implicações
importantes para a política externa da África do Sul,
que acertar os “fundamentos econômicos” deveria
melhorar a competitividade global e a eficiência
exportadora, assim como inspirar confiança entre
investidores estrangeiros. A África do Sul sob Mbeki
decidiu se engajar mais seriamente e vigorosamente
com as forças da globalização como meio de melhorar o
crescimento econômico, gerar emprego e atacar as
desigualdades.
140
Segundo os autores, o GEAR ajuda a redefinir a política externa sul-
africana na medida em que combina preocupações distintas, como a criação de
riqueza e o estabelecimento de condições de segurança. A política de direitos
humanos segue como parte importante do discurso de Nelson Mandela, mas a
experiência acumulada no governo como a questão da Nigéria e da China
provou ao ANC que “a retidão dos princípios e as inclinações idealistas são,
por vezes, difícil de se manter”.
141
Hentz identifica que:
A política regional da África do Sul representa uma
tentativa de agradar todo círculo político. Ela conseguiu
aplacar as ânsias do grande negócio e dos investimentos
estrangeiros (muito graças ao plano do GEAR) sem
aceitar os seus planos para uma arquitetura regional.
142
O impacto do GEAR na política externa sul-africana interessa nossa
análise por mostrar os rumos e decisões que o governo passou a tomar a partir
do governo de Nelson Mandela. Também durante o governo de Mandela,
140
Alden e Le Pere, 2004, p. 28
141
Idem, p. 29
142
Hentz, 2005, p. 184
55
começou a ganhar força o conceito de Renascimento Africano, cujo principal
formulador foi Thabo Mbeki, como veremos na próxima seção.
4.2 RENASCIMENTO AFRICANO
A primeira menção a um renascimento africano foi feita em discurso de
Nelson Mandela em junho de 1994 durante a 30ª Reunião de Cúpula da
Organização da Unidade Africana (OUA). Na ocasião, a África do Sul passou a
ser o 53º país a ingressar na entidade, depois de um longo período de
exclusão devido ao apartheid. Ele culpou muitos dos problemas enfrentados
pelos governos africanos ao legado da colonização européia, mas também
chamou os líderes do continente a assumirem responsabilidade por más
gestões. Mandela disse:
Nós certamente precisamos encarar o assunto
diretamente, que onde há algo errado na maneira na
qual nós nos governamos, precisamos dizer que a culpa
não está nas nossas estrelas, mas sim em nós mesmos,
que somos mal-governados. A África clama por um novo
nascimento. Nós precisamos, além disso, dizer que não
obstáculo grande suficiente para nos impedir de fazer
surgir este Renascimento Africano. Nunca acontecerá
novamente isso de nosso país tentar dominar outro
através do uso da força das armas, do poderio
econômico ou da subversão. Nossa política será a
promoção da paz, de igualdade entre parceiros.
143
Mandela voltou a falar em Renascimento Africano dois anos depois, no
dia 12 de julho de 1996, em discurso no Parlamento britânico.
Tão importante quanto qualquer outra pedra fundamental
é o fato de que somos um país africano. Com todas as
nossas cores e raças combinadas em uma nação, nós
somos um povo africano. Os sucessos que nós
procuramos, nós precisamos alcançar na política, na
economia, no desenvolvimento social. São os sucessos
que precisam se tornar parte do Renascimento
Africano.
144
143
Dowden, 1994, p. 12
144
'TO CLOSE…', 1996, p. 7
56
A mensagem positiva no discurso de Mandela passou a ser usada
também para combater a onda de “afro-pessimismo” que tomou conta do país.
O jornal britânico The Independent, escreveu em editorial sobre o que chamou
de "novo sopro" no continente:
Nos olhos dos "afro-pessimistas", o continente inteiro
está condenado a um ciclo infinito de corrupção,
autoritarismo, fome e guerra. [...] Mas, mais importante
ainda, a África do Sul está agora sentindo e afirmando
sua liderançam continental. Esta posição não mais é
contestada. Os outros grandes países africanos - Sudão,
Argélia, Zaire e Nigéria - estão todos em guerra ou em
caos e nenhum pode sequer começar a concorrer com a
força econômica da África do Sul ou com a imagem
positiva que o presidente Mandela deu ao seu país.
145
O presidente executivo de Mandela, Thabo Mbeki, tornou-se o principal
interlocutor do discurso do Renascimento Africano. em 1996, o sucessor de
Mandela havia se mostrado um opositor do afro-pessimismo. Em discurso no
Parlamento sul-africano em maio de 1996, no encerramento da Assembléia
Constituinte, Mbeki fez um famoso discurso no qual declarou oito vezes: “eu
sou um africano”.
146
Ao chegar à Presidência do ANC, em dezembro do ano
seguinte, uma das principais tarefas prometidas por Mbeki foi “conciliar as
relações com o ocidente com o sonho de um Renascimento Africano, atingido
nada mais do que o renascimento econômico social e espiritual da África”
acabando com “a reputação do continente de lata de lixo mundial”.
147
A
iniciativa deu origem ao Instituto do Renascimento Africano, lançado em
Pretória em 1999 por Thabo Mbeki com o objetivo de “popularizar e avançar
nos objetivos do Renascimento Africano”, que são “uma proposição
fundamental de que os povos da África compartilham um futuro em comum”.
148
Na verdade, o próprio ocidente acabou incorporando o Renascimento
Africano de Pretória. Durante uma viagem de 12 dias por seis países africanos
do presidente americano Bill Clinton disse, em Gana: “Meu sonho para esta
viagem é que juntos possamos fazer o que precisa ser feito para que daqui a
cem anos seus netos e os meus possam olhar para trás e dizer que este foi o
145
PRETORIA..., 1997, p. 4
146
RANDS..., 1996, p. 12
147
Braid, 1997, p. 18
148
MBEKI, 1999
57
começo de um Renascimento Africano.”. A visita de Clinton demonstrou que as
preocupações da Casa Branca estavam em consonância com a política externa
de Pretória em pelo menos três itens: promover a democracia, melhorar o
comércio e o desenvolvimento e aprimorar a capacidade do continente em lidar
com seus próprios problemas de segurança. Na ocasião, Clinton também
anunciou um pacote de ajuda ao continente para questões de saúde, comércio,
investimentos, educação e segurança alimentar e estabeleceu um fórum
permanente Estados Unidos-África.
149
Uma das principais características do conceito de Renascimento
Africano é sua ambigüidade, já que não há uma definição singular para o
termo, embora ele seja usado em diversos discursos diferentes induzindo uma
noção de que os africanos são responsáveis pelos problemas do continente.
“Definições de Renascimento Africano e seus significados operacionais são
amplos e vagos, desde o ponto de vista analítico ao filosófico.”
150
Nas palavras
de Barber:
A visão de renascimento de Mbeki foi construída em
cima de uma visão idealizada tanto sobre o que viera
como do que estava por vir. Ela oferece uma visão; uma
nova esperança para o continente. No entanto, enquanto
ela possa servir para inspirar, suas implicações nas
políticas são incertas. A sua ambigüidade é tanto sua
força quanto sua fraqueza. É uma força na medida em
que ajuda a agregar uma variedade de apoiadores e
inspirar pessoas, independente dos motivos de Mbeki. É
uma fraqueza pois sua imprecisão falhou em oferecer um
rumo administrativo e político claro.
151
O conceito permitiu que a África do Sul “pregasse uma mistura de
valores no nível doméstico e os promovesse pelo continente” ao mesmo tempo
em que “compatibilizava ideais e políticas ocidentais com aspirações da
sociedade africana pós-colonial”.
152
O conceito de Renascimento Africano, o Redistribution and Development
Programme e o Growth, Employment and Redistribution serviram de base para
o New Partnership and Development Programme (NEPAD), proposta sul-
149
'CLINTON...', 1998, p. 7
150
Mills, 2000, p. 312
151
Barber, 2004, p. 127
152
Idem.
58
africana para combater as mazelas do continente.
153
O NEPAD suas origens,
implementação e crítica – será abordado na próxima seção.
4.3 NEPAD
O NEPAD, muitas vezes visto pela comunidade internacional meramente
como um plano de ação sul-africano para o continente, é, na verdade, fruto de
um esforço diplomático de toda a África. É bem verdade que Pretória lidera a
iniciativa no continente, o plano que foi apresentado em julho de 2001 durante
a 37ª Cúpula da OAU já era uma combinação de esforços de diversos países.
A primeira resposta do governo Thabo Mbeki às mazelas do continente
foi o Millennium Africa Programme (MAP), apresentado em janeiro de 2001 em
Davos, na Suíça, no Fórum Econômico Mundial, a reunião de líderes globais
dos setores privado e público. Sob clara influência do conceito de
Renascimento Africano, o MAP propõe ações para “criação da paz, segurança,
estabilidade e promoção de governança democrática; investimento em pessoas
através de uma estratégia de desenvolvimento humano abrangente; melhorias
no desenvolvimento de infra-estrutura, especialmente transporte e energia; e
mobilização de recursos domésticos e estrangeiros de financiamento para
desenvolvimento”
154
.
Pouco depois do lançamento do MAP, o presidente de Senegal,
Abdoulaye Wade, lançou o Plano Ômega, visto por muitos como uma
alternativa semelhante, porém proposta por países africanos de língua
francesa. As diferenças ou semelhanças entre os dois planos levaram
África do Sul e Senegal a sintetizar e conciliar suas visões em um terceiro
plano chamado New African Initiative (NAI).
O NAI passou a ser então discutido no âmbito da Organização para a
Unidade Africana (OUA), sob o comando de Mbeki e dos presidente da Nigéria,
Olusegun Obasanjo, e da Argélia, Abdelaziz Bouteflika. Mbeki ocupava a
presidência do G77 grupo de países em desenvolvimento que buscam
convergências de interesses no âmbito das Nações Unidas enquanto
153
Abraham, 2003
154
Alden e Le Pere, 2004, p. 61
59
Obasanjo e Bouteflika lideravam, respectivamente, o Movimento dos Países
Não-Alinhados e a OUA. De acordo com Alden e Le Pere, foi sob “os auspícios
da OUA, que o projeto do NAI pareceu gozar de credibilidade e apoio dos
líderes africanos, algo que Mbeki não conseguira fazer com seu discurso de
Renascimento Africano”.
155
Na apresentação do NAI em uma reunião de chefes de Estado da OUA
em Lusaka, no Zâmbia, em julho de 2001, a proposta já havia recebido adesão
de Egito, Senegal, Nigéria e Argélia. Apesar de o foco do encontro no Zâmbia
ser a extinção da OUA e a criação da Unidade Africana, os líderes também se
ocuparam da proposta sul-africana e senegalesa, estabelecendo uma
Comissão de Chefes de Estado e de Governos para Implementação do NAI.
Três meses depois, os principais chefes de Estado da iniciativa se reuniram em
Abuja, na Nigéria, para discutir as diretrizes do NAI e redigir um esboço de
documento final. Foi na mesma ocasião, em outubro de 2001, que os líderes da
Comissão Econômica para a África e representantes do G8 concordaram em
substituir rebatizar o NAI como New Partnership for Africa’s Development.
Foi no encontro em Abuja que se desenhou a estrutura do NEPAD. O
principal órgão criado na época foi um novo comitê de implementação, que se
reuniria três vezes ao ano para redigir um relatório a ser apresentado na OUA.
O órgão seria amparado por um comitê de direcionamento, com representantes
pessoalmente indicados pelos cinco presidentes dos países proponentes
(Argélia, Egito, Senegal, Nigéria e África do Sul). Além disso, haveria uma
secretaria permanente do NEPAD na África do Sul. Alden e Le Pere observam
que as duas reuniões de formulação do NEPAD refletem em grande medida os
interesses de Pretória na condução da política africana:
Com um secretariado composto em grande parte por
protegidos de Thabo Mbeki, como [o empresário e
político] Wiseman Nkuhlu, muito da estrutura
administrativa e do material apresentado pelo NEPAD
refletia os interesses da política externa da África do Sul
a união das estruturas de “governança integrada”, as
preocupações macroeconômicas do GEAR e o pomposo
vocabulário do Renascimento Africano. A longa trajetória
percorrida por Thabo Mbeki, desde a articulação do
Renascimento Africano até o estabelecimento do
155
Idem.
60
NEPAD, era apenas o começo de um processo que
necessitava do engajamento com os países do G8.
156
A participação de países ricos era um dos pontos fundamentais do
projeto de Mbeki. Seria impossível fundar uma New Partnership for Africa’s
Development sem “novas parcerias” para o desenvolvimento da África. Para
captar esses parceiros, o NEPAD propõe um modelo semelhante ao adotado
pelos países industrializados da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE). O sistema funcionaria com a formação
de grupos de doadores de recursos, que por um determinado período
patrocinariam projetos de desenvolvimento em determinados países ou regiões
africanas. O objetivo da iniciativa era gerar no curto prazo investimentos
estrangeiros diretos na África. Além de participar do monitoramento das
atividades patrocinadas, os doadores de recursos contariam com um
mecanismo de “peer review” (ou “revisão por terceiros”), semelhante ao
adotado pela OCDE, que contaria com a submissão voluntária dos governos
africanos a revisões periódicas de grupos de auditoria, que avaliariam o grau
de transparência e governança dos processos.
Outro desafio ao NEPAD era a possível resistência de países ricos em
apoiarem uma iniciativa composta por governos diversos, alguns frontalmente
opostos ao ocidente, como a Líbia. Enquanto a África do Sul buscava
amadurecer a idéia do NEPAD nas discussões multilaterais da África, todos os
países do continente discutiam o fim da Organização da Unidade Africana
(OUA) e o relançamento da entidade como União Africana (UA). Nos
bastidores, Líbia e África do Sul se colocavam em lados opostos nesta
discussão. Mais do que isso, criavam um ambiente de tensão sobre a liderança
da UA. Mbeki teria o direito de se tornar o primeiro secretário-geral da UA,
que a cúpula de lançamento da organização aconteceria na África do Sul.
Segundo Alden e Le Pere, no entanto, o presidente da Líbia, Muammar al-
Gaddafi, era frontalmente contra a medida, pois via na África do Sul uma
ameaça a sua liderança no continente.
157
Essa tensão com a Líbia, segundo os
autores, explica o esforço empreendido pela África do Sul para criar uma
156
Alden e Le Pere, 2004, p. 62
157
Idem, p. 64
61
estrutura burocrática para o NEPAD que independesse da UA. Desta forma, o
programa poderia receber fundos e ser gerido sem causar desconfiança ou
temor entre os investidores internacionais.
A aceitação internacional ao NEPAD, no entanto, foi dúbia. Alden e Le
Pere destacam que a resposta do G8 e de outros países industrializados ao
programa foi “positiva na retórica, mas frustrantemente curta no compromisso
de recursos substantivos”
158
.
Por exemplo, em um rompimento com o passado
recente, os Estados Unidos e a União Européia
prometeram aumentar a [verba para] assistência para o
desenvolvimento na Cúpula de Monterey, no começo de
2002. O primeiro-ministro britânico, Tony Blair, e o
chanceler da Fazenda, Gordon Brown, falaram
eloqüentemente sobre a necessidade de a comunidade
internacional lidar com a pobreza africana. Apesar disso,
enquanto o NEPAD foi criado para responder pelo baixo
nível de assistência estrangeira no geral e também para
criar um ambiente favorável para investimentos
estrangeiros de países da OCDE na Cúpula de
Kanakasis em 2002, o programa [NEPAD] não conseguiu
atrair mais do que US$ 1 bilhão dos US$ 64 bilhões
pedidos por líderes africanos ao G8, e sendo que muito
deste dinheiro era “investimento reciclado” de
compromissos anteriores.
159
Os autores também ressaltam que depois da cúpula de Evian, em 2003,
os esforços dos países ricos se voltaram para a reconstrução do Iraque e que
“promessas, como as feitas pelo presidente americano, George W. Bush, de
US$ 15 bilhões para o combate do HIV/AIDS na África não disfarçavam a
queda dos problemas de desenvolvimento africano na agenda dos países
ricos”. Além disso, a falta de abertura dos mercados do G8 aos produtos
agrícolas africanos colocaram ambos os lados em cantos diferentes nas mesas
de negociação da Organização Mundial do Comércio (OMC).
160
4.3.1 NEPAD E OS CONDICIONANTES INTERNOS
158
Idem.
159
Idem, p.63
160
Idem.
62
Passaremos agora à análise dos condicionantes internos da política
externa sul-africana – identificados no primeiro capítulo – e como eles se
combinaram na formação do NEPAD. Assim como foi feito no primeiro capítulo,
o impacto de cada variável na formação do NEPAD foi identificado através de
revisão bibliográfica, ora de autores que trataram diretamente dos temas aqui
discutidos, ora por consulta a documentos e fontes primárias disponíveis
publicamente.
Lembramos que eram quatro os condicionantes internos que extraímos
da análise de outros autores que caracterizam a formação da política externa
sul-africana no período pós-apartheid, sendo eles: 1) a ascendência da figura
de Nelson Mandela no cenário internacional; 2) a maior participação do
Congresso no processo de tomada de decisões; 3) a participação de outros
atores sociedade civil e 4) a burocracia (e, em algumas instâncias, disputa) de
departamentos que respondem por aspectos específicos da política externa
sul-africana, como o Department of Foreign Affairs e Department of Defense.
Começaremos analisando o primeiro item, a questão da ascendência de
Mandela sobre o cenário internacional e a forma como isso influenciou a
formação da política externa da África do Sul e mais especificamente a criação
do NEPAD. Em primeiro lugar, é preciso situar o plano: ele é posterior à era
Mandela. O plano foi lançado em julho de 2001, 25 meses após ele deixar a
Presidência. Com tradição dentro do ANC e longa história na luta contra o
apartheid, Mbeki é herdeiro direto de Nelson Mandela e foi apontado por ele
pessoalmente para ocupar a vice-presidência
161
do país, que dividiu com De
Klerk por dois anos. Em 1996, quando foi formado o governo de coalizão na
África do Sul, Mbeki tornou-se o único vice-presidente. Em 1999, foi aclamado
pelo ANC como presidente.
Mbeki herdou uma estrutura política que favorecia as decisões tomadas
pelo chefe do Executivo. Sem o mesmo carisma de seu antecessor, o novo
presidente ainda assim manteve intacta a imagem austera e engajada de
Mandela, conquistando adeptos dentro da África do Sul e no exterior. Ao final
de seu primeiro mandato, o correspondente do jornal britânico Financial Time
observou:
161
Deputy President, na terminologia política sul-africana.
63
Com um bem-sucedido primeiro mandato deixado para
trás, Mbeki está finalmente saindo da grande sombra de
Nelson Mandela. [...] Mandela, o pai da nova África do
Sul, já conquistou seu lugar na história ao convencer
seus compatriotas a abandonarem a luta violenta e a
buscar reconciliação. Mas, possivelmente, Mbeki tem
sido um administrador mais competente.
162
O diretor do Centro de Estudos Políticos de Johannesburgo observou
que Mbeki foi “mais bem-sucedido internacionalmente do que seu antecessor.
Ele conseguiu apresentar mais avanços do que Mandela jamais conseguiu”.
163
O trânsito internacional de Mbeki entre os líderes de países ricos e
industrializados e seu discurso voltado para a democracia e para a boa
governança - que contrasta com a situação de muitos países africanos
mantiveram forte a figura do presidente sul-africano como porta-voz da política
externa não da África do Sul, mas também do continente. Muito da empatia
de Mbeki é originada do conceito de Renascimento Africano, criado por ele e
de grande apelo fora do continente.
Döpcke analisa a importância do conceito e do NEPAD na imagem
internacional da África do Sul:
Com o African Renaissance e o NEPAD, os seus
inventores pretendem recuperar a iniciativa do discurso
da inserção internacional do continente, iniciativa que
tinha sido perdida nos anos 1980 junto às instituições
financeiras internacionais, aos governos ocidentais e,
também, a atores não-estatais, como as ONGs. E
conseguiram isso de forma impressionante. A ofensiva
diplomática de Mbeki catapultou o NEPAD, em pouco
tempo, aos palcos internacionais e agora influencia
profundamente o discurso internacional sobre o
continente. Ademais, o NEPAD não somente se
apresenta como proposta africana, mas também,
explicitamente, como uma iniciativa de chefes de
governo africanos, negociada com os chefes de governo
do Norte, tentando, assim, recuperar a legitimidade dos
Estados e dos seus dirigentes de conceituar e dominar o
processo político e o discurso da inserção
internacional.
164
Se Mbeki conseguiu manter em certa medida a influência internacional e
a ascendência de Mandela, domesticamente o líder sul-africano também
162
Reed, 2004, p. 2
163
White, 2004, p. 4
164
Döpcke, 2002, p. 146
64
necessitava de apoio do Parlamento. No contexto da política interna, isso
significa conquistar o controle dentro do partido do governo cuja esmagadora
influência no Congresso aumentou no período pós-apartheid. Em 1999, o
controle do ANC sobre o Parlamento cresceu de 63% para 66%. Nas eleições
parlamentares seguintes, o partido conquistou 279 vagas, controlando 69% no
Congresso.
Segundo Hughes, os antecedentes do Renascimento Africano e do
NEPAD eram defendidos dentro do ANC muito antes do lançamento do
programa.
Em termos de definição da agenda de relações
internacionais, o congresso do partido de 1997 colocou
como prioridades os desafios da globalização, das
reformas das instituições multilaterais (em especial o
Conselho de Segurança da ONU, do Fundo Monetário
Internacional e do Banco Mundial) e o desenvolvimento
da África e da África subsaariana. De interesse especial,
o congresso do ANC notou que a visão de um
Renascimento Africano, como desenhada pelo relatório
do [então] presidente do partido [Thabo Mbeki] formaria
uma ‘plataforma central para o desenvolvimento do
continante’. Essa colocação, em 1997, era precursora
do NEPAD.
165
No encontro de 2000 do Conselho Geral Nacional do partido, no entanto,
o ANC demonstrou impaciência com o governo sobre a implementação da sua
visão de Renascimento Africano em uma declaração oficial.
Apesar deste trabalho, a organização ainda não
desenvolveu um programa abrangente em nossa
abordagem sobre a África para apoiar a nossa
perspectiva de um Renascimento Africano. Parcialmente,
como resultado disso, nós não conseguimos falar com
uma voz única e coerente sobre esse assunto. E nem
conseguimos desenvolver um programa para a África no
qual todas as nossas estruturas possam se engajar. Um
esboço de Plano de Ação está sendo discutido
atualmente e deve ser finalizado em breve. o perigo
de que o Afro-pessimismo possa minar as chances reais
e positivas de desenvolvimento que estão emergindo na
maior parte dos países da África.
166
165
Hughes, 2004, p. 26
166
African National Congress, 2000.
65
No 51º Congresso Nacional, na cidade de Stellenbosch, em dezembro
de 2002, o ANC se mostrou unido em relação à estratégia do governo. O
NEPAD, lançado dois anos antes, foi destacado no encontro como a principal
estratégia do país para atacar o problema africano. Hughes nota que a postura
do ANC mudou de um encontro para o outro, passando da fase de “crítica pura,
para uma de mobilização total para a implementação do NEPAD”.
167
Dali em
diante, os documentos e declarações do ANC endossam a posição do
presidente Thabo Mbeki.
No entanto, mais importante do que as cobranças ou as manifestações
de apoio do ANC ao programa é a forma como o discurso do Renascimento
Africano é assimilada por um partido que apesar de não seguir muitos dos
preceitos da esquerda mundial – ainda possuía tradição esquerdista. Em 2000,
o ANC foi aceito pela Internacional Socialista. Döpcke analisa os paradoxos do
partido do governo:
O Congresso Nacional Africano [o ANC], segundo os
analistas de política exterior da África do Sul, teria
assumido um forte compromisso com estes valores
[democráticos, não-raciais, não-sexistas e de
prosperidade], não somente na política doméstica, mas
também, sob o manto de African Ranaissance, na
formulação dos objetivos da política exterior. Entretanto,
a mesma ambigüidade que caracteriza a política
doméstica do Congresso Nacional Africano isto é, a
tentativa de servir dois constituintes opostos: os
trabalhadores e as massas urbanas empobrecidas de um
lado e o capital e as empresas multinacionais de outro
reflete-se também no NEPAD, que mistura dois
discursos opostos: um radical e africanista e outro liberal
e globalista.
168
Se no ANC a visão é quase consensual sobre o NEPAD, é entre atores
da sociedade civil que o programa encontra maiores resistências. A visão “dos
trabalhadores e das massas urbanas empobrecidas”, as classes referidas por
Döpcke, encontra maior resistência no âmbito do Congress of South African
Trade Unions, a COSATU maior entidade sindical do país. Struman aponta
que o COSATU, enquanto voz mais forte na oposição ao NEPAD, inicialmente
167
Hughes, 2004, p. 28
168
Döpcke in: Guimarães, 2000, p. 150
66
atacou o programa por “ser orientado para fins neoliberais, como a atração de
investimento estrangeiro direto e crescimento baseado em exportações”.
169
Em julho de 2002, o Partido Comunista, partido aliado do ANC no
Congresso, também manifestou descontentamento com o NEPAD, somando
sua voz ao COSATU.
O Partido Comunista e os sindicatos também desafiaram
o presidente Mbeki e seu famoso plano de renascimento
para o continente, classificando o New Partnership for
Africa's Development (NEPAD) como "notoriamente
vago" e essencialmente uma parceria entre a elite do
continente e o ocidente.
170
Após um encontro com Mbeki, o secretário-geral do COSATU,
Zwelinzima Vavi, sinalizou uma suavização do discurso dos sindicatos em
pronunciamento no 7º Congresso Nacional da entidade:
O encontro discutiu o NEPAD. Nós concordamos que
enquanto é necessário ter uma iniciativa de
desenvolvimento continental, os programas no NEPAD
precisam ser fortalecidos. Acima de tudo, as propostas
sobre governança precisam garantir uma democracia
participatória, dando voz à maioria, o que inclui os
trabalhadores organizados. E a proposta sobre a
economia precisa procurar formas de fortalecer o poder
dos trabalhadores e dos pobres, em vez de tentar
apenas facilitar os investimentos privados e estrangeiros.
Em nosso encontro em Durban, há duas semanas, o
presidente Mbeki respondeu às nossas preocupação
concordando com um processo de engajamento que,
esperamos, vai superar nossas preocupações sobre os
programas atuais do NEPAD e estabelecer estratégias
que realmente beneficiarão nosso povo em todo o
continente.
171
Apesar de continuar aliado ao governo, o COSATU mantém-se crítico
tanto ao NEPAD como ao GEAR, como continuou a pregar em seus
documentos internos: “A verdade, no entanto, é que nem o GEAR, nem o
NEPAD são programas de desenvolvimento. Eles são, em vez disso,
estratégias para atrair o capital estrangeiro para as nossas economias.”
172
a
voz mais atuante em favor do NEPAD na sociedade civil partiu do NEPAD
169
Struman, 2004.
170
McGreal, 2002, p. 42
171
Vavi, 2002.
172
Cosatu, 2002.
67
Business Group, uma aliança de 150 empresas multinacionais e locais,
formadas em junho de 2002 no Fórum Econômico Mundial.
173
Sobre o último dos condicionantes internos que marcaram a política
externa sul-africana no período pós-apartheid a reestruturação da burocracia
de Estado o NEPAD não sofreu resistências de instâncias como o
Department of Foreign Affairs e o Department of Defense, o que é
compreensível dado que o projeto não era de autoria de nenhum dos dois
órgãos, mas sim da Presidência, a qual os dois departamentos estão
submetidos. Ainda assim, Mbeki se viu diante de uma situação difícil
envolvendo a aplicação do NEPAD à política doméstica.
Em 2004, o vice-presidente de Mbeki, Jacob Zuma, foi mencionado em
um escândalo de corrupção envolvendo a compra de navios de guerra pelo
governo sul-africano no valor de US$ 6 bilhões. Um ano depois, o assessor
financeiro e amigo próximo de Zuma, o empresário durbanense Schabir Shaik,
foi condenado a 15 anos de prisão por corrupção devido ao caso, que
aconteceu em dezembro de 1999. Zuma não foi formalmente acusado, mas
teria recebido ilegalmente de Shaik mais de 1,4 milhão de rands (equivalente a
cerca de 190 mil dólares). O juiz do caso chegou a dizer que a relação entre
Shaik e Zuma era “informalmente corrupta”. Mbeki sofreu pressão de todos os
lados e decidiu, poucos dias após a condenação de Shaik, demitir seu vice-
presidente.
174
A saída de Jacob Zuma não foi um passo pequeno para Thabo Mbeki. O
ex-guerrilheiro de 63 anos era apontado como sucessor natural de Mbeki para
as eleições presidenciais de 2009 e contava com a simpatia de Nelson
Mandela. Figura controversa na política sul-africana, Zuma havia sido citado
pela promotoria do país em 2003, que disse ter “muitas evidências” sobre a
corrupção do vice-presidente, mas nenhuma prova suficiente para levar o caso
aos tribunais.
175
Mesmo depois de sua condenação, Zuma conseguiu manter
forte apoio das bases aliadas. Além de um nome forte da esquerda do ANC,
com apoio da ala jovem do partido, ele também contava com amplo suporte do
aliado Partido Comunista e do gigante sindicato COSATU. Mesmo após o
173
Struman, 2004.
174
Nullis, 2005.
175
Idem.
68
escândalo, ele manteve sua função como líder do partido ANC, apesar de ter
renunciado como parlamentar. Dois meses depois de sua demissão, o
COSATU organizou protestos exigindo que Mbeki restituísse o ex-vice-
presidente no cargo. Um dos argumentos do COSATU era que a sucessora de
Zuma, Phumzile Mlambo-Ngcuka, também tinha um histórico de corrupção.
176
Zuma mantém-se uma figura forte da política sul-africana e ainda pode
concorrer nas eleições de 2009. De acordo com a ECONOMIST
INTELLIGENCE UNIT:
A probabilidade é, portanto, que se o julgamento de
Zuma terminar - e ele for abslvido de todas as acusações
de corrupção - em 2007, quando o ANC eleger seu
próximo candidato á Presidência, ele conquiste a
liderança do partido e, consequentemente, todo o país.
177
Seis meses depois de sua demissão por Mbeki, o ex-vice-presidente foi
acusado de estuprar a filha de um amigo. Zuma reconheceu ter mantido
relações sexuais com ela sem proteção considerado um péssimo exemplo
em um país assombrado pela epidemia da aids - e chocou a opinião pública ao
dizer que evitou qualquer chance de contagio de HIV ao tomar “uma ducha”
após a relação. Sua absolvição em maio de 2006 aliado a rumores de que
Mbeki conspira contra ele para retirá-lo do cenário político e perpetuar-se no
poder – fortaleceram ainda mais a posição de Zuma para 2009.
178
A questão da sucessão política de Mbeki é importante para tanto para
seu legado como para o futuro do ANC.
Um dia o ANC vai enfrentar uma oposição mais forte,
talvez até dentro dos seus quadros: o partido poderá
então vir a se dividir. O melhor legado que o presidente
Thabo Mbeki pode deixar, para a África do Sul e para
todo o continente, é uma aceitação de boa-vontade de
que o ANC não é doutrinado para governar para sempre
e que uma oposição robusta é totalmente bem-vinda.
179
A decisão tomada por Mbeki em junho de 2005 teve forte repercussão
sobre o NEPAD, que um dos pilares do programa era justamente a boa
governança e combate à corrupção nas instituições sul-africanas. Em editorial,
176
Economist…, 2005.
177
Idem.
178
'The long…', 2007, p. 89
179
'Just lighten…', 2007, p. 81
69
o jornal britânico elogiou a decisão de Mbeki de demitir Zuma e ressaltou a
importância da decisão dentro da filosofia NEPAD.
Seria uma gozação da ambição de toda a África negra
de renovação se Thabo Mbeki não tivesse demitido
ontem o seu vice-presidente e aparente herdeiro, Jacob
Zuma. A África do Sul, a potência regional, é o principal
ator da New Partnership for Africa's Development
(NEPAD), a estrutura estratégica lançada pela
Organização da Unidade Africana, o órgão que
antecedeu a União Africana, em 2001. Um dos seus
princípios é justamente a boa governança, como
requisito básico para paz, segurança e desenvolvimento
político e socioeconômico sustentável. Alcançar isso
abre o caminho para outras metas do NEPAD, como
estabelecer parcerias que mudem as relações desiguais
da África com o mundo desenvolvido. E esta relação
estará no topo da agenda das nações do G8, quando
elas se encontrarem na Escócia, sob a presidência de
Tony Blair, em julho.
180
Analistas políticos foram unânimes sobre a mensagem de Mbeki aos
países africanos e aos parceiros internacionais do continente e do NEPAD.
Aubrey Matshiqi disse: "A mensagem forte de Mbeki sobre boa governança e o
combate à corrupção indicam que ele quer liderar dando exemplos." Já o
analista Xolela Mangcu ressaltou que a medida de Mbeki teve boa repercussão
entre os atores internacionais principalmente junto aos presidentes dos
Estados Unidos, George W, Bush, e o primeiro-ministro britânico, Tony Blair
mas foi mal-recebida internamente por aliados políticos como o COSATU e o
Partido Comunista. Mbeki, segundo ele, teria de pagar o preço político de
desagradar seus aliados.
181
Sinteticamente, podemos mostrar como os quatro condicionantes
internos da África do Sul contribuíram para a formação do NEPAD. Ainda que
posterior à era Mandela, o plano apresentado por Thabo Mbeki sintetizava a
imagem sul-africana projetada internacionalmente por seu antecessor e o
discurso de desenvolvimento econômico, com igualdade racial e respeito a
direitos humanos. O segundo e o terceiro dos condicionantes internos
analisados a participação maior do Parlamento na política externa sul-
africana revelam um Congresso e o maior sindicato laboral da África do Sul
180
'Mbeki's brave…', 2005.
181
'South Africa…', 2005.
70
atuando em favor do NEPAD, ainda que não incondicionalmente e com
ressalvas à condução do processo. Por último, o NEPAD não gerou conflitos
internos entre os departamentos burocráticos que conduzem a política externa
sul-africana – como as disputas comuns entre o DFA e o DoD. Mesmo assim, o
programa não ficou imune às crises da política doméstica sul-africana, como
evidenciou o episódio da demissão do vice-presidente, Jacob Zuma. Pressões
internacionais, devido aos mecanismos e ideais propostos pelo NEPAD,
forçaram Thabo Mbeki a colocar em risco parte de seu apoio dentro do ANC,
da coalizão com o Partido Comunista e dos sindicatos trabalhistas.
4.3.2 NEPAD E OS FATORES EXTERNOS
avaliamos anteriormente a forma como o NEPAD foi recebido no
âmbito internacional, em instâncias como o G8 e a UA. Entre os países ricos, o
NEPAD provocou reações positivas, sobretudo da Grã-Bretanha e dos Estados
Unidos, que concordavam com a relação que o programa faz entre
desenvolvimento econômico e democracia. A aceitação do programa entre os
países industrializados não foi incondicional e sem desconfianças, como indica
o jornal britânico The Guardian.
Blair é, afinal de contas, o melhor vendedor no ocidente
do famoso plano africano de renascimento. Apesar de
sua insistência junto a George W. Bush e junto à maior
parte dos líderes da União Européia para que apóiem a
New Partnership for Africa's Development não ter sido
um sucesso estrondoso, pelo menos o programa
continua na agenda dos países ricos.
Se entre os países do G8 e da Europa, houve aceitação com ressalvas,
na UA o programa provocou por vezes o antagonismo direto de alguns países,
como a Líbia, que buscavam conduzir o NEPAD para um rumo diferente do
Renascimento Africano proposto por Mbeki.
Nesta parte, trataremos de duas situações que surgiram como desafios
ao programa e ao governo sul-africano. Primeiro a questão da República
Democrática do Congo, uma das questões africanas que dividiu os países do
71
continente e colocou à prova a diplomacia de Pretória, despertando críticas
inclusive de aliados da África do Sul. Em seguida veremos como a África do
Sul e o NEPAD lidaram com as eleições no Zimbábue. Este item é importante
por expor contradições da política externa de Pretória exatamente na África
Subsaariana, âmbito de maior influência da África do Sul. Por fim, veremos
algumas críticas de fundo feitas ao programa, que mostram alguns dos limites
externos impostos ao NEPAD pelo cenário internacional. Estas situações
expõem, na nossa visão, os limites externos de atuação da diplomacia da
África do Sul e remetem a algumas questões já tratadas no segundo capítulo.
Em 2002, o NEPAD debruçou-se sobre a questão da República
Democrática do Congo. Depois de mais de 30 anos sob o regime de Mobuto
Sese Seko período em que o país, rebatizado de Zaire, serviu de plataforma
de combate à Angola comunista, sob a influência dos Estados Unidos a
República Democrática do Congo foi invadida em 1997 por rebeldes apoiados
pelo governo de Ruanda. A chegada de Laurent Kabila ao poder dividiu não
o país, como também os seus vizinhos africanos. De um lado, Ruanda e
Uganda financiavam os rebeldes, que tomaram a capital Kinshasa. Do outro,
Angola, Namíbia e Zimbábue apoiaram Kabila.
182
A guerra civil no Congo
tomou dimensões de conflito internacional.
A guerra arrasou os potenciais econômicos da República Democrática
do Congo, uma nação com as dimensões da Europa Ocidental dotada de
vastas riquezas minerais. Estima-se que até 2002, dois milhões de pessoas
estivessem refugiadas e vivendo em condições de extrema pobreza. De acordo
com números das Nações Unidas, ao longo de seis anos, três milhões de
pessoas teriam morrido em conflitos entre os Estados da federação. O PIB per
capita anual caiu para US$ 120 e a maior parte da população consumia menos
de dois terços das calorias necessárias para sobrevivência saudável. O país
conseguiu atingir recordes negativos inferiores aos 32 anos de regime de Sese
Seko, algo que parecia impossível até mesmo para os padrões da África
Central.
183
182
'Country profile'.
183
Clayton, 2002, p. 4
72
A República Democrática do Congo tornou-se um teste para a
diplomacia da África do Sul e para o NEPAD. Apesar do consenso na África de
que as raízes do conflito estavam no ocidente em especial na pobre
condução política feita por França, Bélgica e Estados Unidos o governo de
Pretória pregou uma “solução africana para os problemas africanos”. Em abril
de 2002, a África do Sul convocou os países envolvidos na região para
negociar a paz no Congo. O encontro foi um fracasso e levou a uma cúpula
entre presidentes de Ruanda, Uganda e Quênia, que criticaram o NEPAD como
um mecanismo ineficiente para solução do conflito.
Desde sua queda, os vizinhos do Congo - os mesmos
países que estão pregando as condições de boa
governança estabelecidas pelo NEPAD - estão fazendo
banquete na carcassa do seu vizinho. Angola, Burundi,
República Centro-Africana, Sudão, Chade, todos são
acusados de explorar o conflito [...] A razão para a
cúpula é o medo de que grande parte do dinheiro do
NEPAD seja destinado para o sul da África, devido, em
parte, aos elos da iniciativa com o presidente Mbeki, e
recursos estariam sendo insuficientes no leste e centro
da África, bem como no Cabo da África. A cúpula passou
pouco tempo discutindo o estabelecimento de formas
transparentes e responsáveis de governança aberta, o
fim dos abusos de direitos humanos, o progresso
democrático, a introdução de reformas liberais ou
políticas econômicas firmes, e como pôr fim imediato aos
conflitos da região - todas as condições fundamentais do
NEPAD.
184
A pressão sobre o NEPAD era grande, na questão do Congo, como
mostra o artigo do Financial Mail.
Quaisquer que sejam as chances de sucesso do
NEPAD, elas dependem de uma resolução do conflito na
República Democrática do Congo. Se não houver isso,
assistam ao NEPAD se esvair. Isso explica as
preocupações do presidente Thabo Mbeki.
185
Em 30 de julho de 2002, os países africanos sob o comando
novamente da África do Sul finalmente chegaram a um acordo sobre a paz
no Congo e um acordo de paz foi assinado entre o país e Ruanda. O vice-
184
Idem.
185
'Congo peace…', 2002, p. 5
73
presidente sul-africano foi rápido em indicar o NEPAD e a UA refundada como
os atores vitais no processo de paz.
O acordo entre Ruanda e Congo é uma declaração de
que, como africanos, estamos corretos em nossa
convicção de que a UA e seu New Partnership for
Africa's Development representam um novo e
extraordinário começo para um continente que, por
séculos, foi conhecido por nada além de subjugação,
humilhação e sofrimento agudo.
186
A liderança de Mbeki no continente e a força do NEPAD foram
colocadas à prova na questão da República Democrática do Congo. O acordo
não trouxe a pacificação imediata do país, mas abriu caminho para um
processo de restabelecimento da democracia, concluído em junho de 2006,
com a eleição direta de Joseph Kabila.
187
Para Mbeki e para o NEPAD, os
frutos foram maiores, segundo a revista The Economist.
E seu país está se tornando uma presença cada vez
mais constante no continente. Mbeki preside a União
Africana, a resposta da África à União Européia, e é
também o cérebro por trás da New Partnership for
Africa's Development, um plano ambicioso para atrair
mais capital e investimentos. No ano passado, a pedido
de Nelson Mandela, ele enviou o vice-presidente, Jacob
Zuma, e um batalhão de soldados para uma missão de
paz no Burundi, e ofereceu mais 1,5 mil soldados a
forças de paz da ONU no leste do Congo. Sob Mandela,
a África do Sul rompeu sua isolação na África; sob
Mbeki, ela engajou-se ativamente.
188
Mas o país que mais colocou o NEPAD a teste foi o Zimbábue, de
Robert Mugabe. Em março de 2002, em meio à violência e a fraudes, Mugabe
venceu as eleições presidenciais que, segundo o professor James Hamill, do
departamento de Política da universidade britânica de Leicester, “marcou a
longa trajetória do Zimbábue rumo ao despotismo”.
189
Apenas o segundo
presidente da história do Zimbábue, Mugabe chegou ao poder em 1980, onde
se perpetua até hoje, com mais de 80 anos. O pleito de 2002 foi o mais
controverso da história do país e um dos mais contestados do continente
africano pós-descolonização. Mugabe derrotou Morgan Tsvangirai, do
186
'Politics…', 2002. p. 5
187
Doyle, 2006.
188
'In Mandela's…', 2002, p. 43
189
'South Africa and Zimbabwe', 2002, p. 4
74
Movimento por Mudança Democrática, por 56% a 42%, em uma eleição
marcada pela violência contra os eleitores e por manipulação dos resultados.
O problema do Zimbábue enfureceu os líderes do ocidente, que
decidiram colocar a África do Sul e o NEPAD à prova. A resposta do primeiro-
ministro da Grã-Bretanha, Tony Blair, veio na cúpula dos chefes de Estado da
Commonwealth. Na ocasião, o encontro dos líderes dos países que formavam
o antigo Império Britânico decidiu formar uma comissão para analisar a
situação do Zimbábue.
Mbeki está acostumado a conseguir tudo do seu jeito,
pelo menos dentro do ANC, e de ser a pessoa mais
esperta dentro da sala. Ele ficou claramente espantado
com a recepção hostil que suas visões tiveram,
particularmente do primeiro-ministro britânico, Tony Blair,
que deixou bem claro que se Mbeki quiser que o
ocidente despeje dinheiro em seu New Economic
Programme for African Development, ele terá de
defender a democracia na África, não apenas nos países
vizinhos. Ele foi manipulado quando a Commonwealth
Heads of Government Meeting [Cúpula de Chefes de
Governo da Commonwealth, ou CHOGM] espertamente
deixou a questão [do zimbábue] para ser decidida por um
comitê de três - o primeiro-ministro da Austrália, John
Howard, o presidente da Nigéria, Olusegun Obasanjo, e
Mbeki, deixando portanto bem claro para os dois
africanos que decidam: ou Mugabe ou o NEPAD, mas
não ambos. A reação vulcânica de Mbeki no sítio do
ANC na Internet foi ira contra os defensores da
"supremacia branca", dentro da Commonwealth, que,
segundo ele, estão tentando humilhar e insultar os
negros.
190
Mbeki foi amplamente criticado tanto pela imprensa como pela
comunidade internacional por resistir em condenar Mugabe. No entanto, elos
tradicionais entre os dois países e preocupações práticas sobre o futuro
pesavam na decisão de Mbeki. Apesar de não serem próximos um do outro na
época do apartheid, Mugabe e Mbeki estão ligados à história da luta contra o
domínio branco no continente. Mugabe era um dos expoentes mais fortes dos
Estados da Linha de Frente (Front Line States). Além do elo com o ANC, uma
preocupação de ordem prática chamava a atenção da África do Sul. Um
conflito político no Zimbábue provavelmente desembocaria em uma escalada
190
Johnson, 2002, p. 7
75
de violência, levando milhares talvez milhões de refugiados diretamente
para a África do Sul.
191
Com essas considerações em mente, Mbeki partiu para a estratégia que
ficou conhecida como “quiet diplomacy” (ou “diplomacia silenciosa”). Ao lado do
presidente da Nigéria, Olusegun Obasanjo, tentou negociar diretamente com
Mugabe uma nova eleição no Zimbábue, com maior respeito a valores
democráticos. Mbeki, que ouvira promessas de Mugabe antes, saiu do
encontro em Harare sem novas garantias. Poucos dias depois do encontro,
uma nova onda de violência do governo contra os opositores do partido Zanu-
PF irrompeu no Zimbábue.
Mas, no final, Mbeki viu Mugabe solitariamente destruir o
seu sonho. Os americanos e os britânicos deixaram claro
que a África do Sul estava sendo condescendente com
Mugabe e que o NEPAD estava morto na praia.
192
No final, a África do Sul decidiu por condenar o Zimbábue no âmbito da
Commonwealth. Em termos práticos, a condenação não mudou a situação
política interna do país. Mas o governo de Pretória conseguiu realizar seu
objetivo de manter-se fiel ao discurso do NEPAD sem comprometer o apoio
dos atores africanos. Cinco anos depois, Mugabe ainda é um dos obstáculos
do Nepad, e Mbeki e sua “diplomacia silenciosa” continuam sob a pressão de
influir mais diretamente no país vizinho. Recentemente, o Zanu-PF voltou à
carga contra a oposição, promovendo atos de violência contra o principal
político anti-Mugabe, Morgan Tsvangirai. Em entrevista à agência de notícias
All Africa, Thabo Mbeki mantém a mesma linha da “diplomacia silenciosa”:
O presidente Mugabe e sua liderança dentro do partido
Zanu-PF acreditam que eles estão conduzindo um país
democrático dentro de um sistema democrático. É por
isso que você tem uma oposição eleita e observadores
eleitorais e é por isso que é possível para o [partido de
oposição] MDC conquistar Harare e Bulawayo nas
eleições municipais. O governo destas duas grandes
cidades é do MDC. Você sabe disso, e é do interesse do
Zimbábue manter um sistema democrático, que significa
que as pessoas devem se submeter de forma freqüente
e regular a eleições. E, portanto, essa noção de que
haverá uma tentativa de se manter no poder fora dos
processos políticos permitidos, eu não acredito nela.
191
'Mbeki sacrificed…', 2002, p. 17
192
Idem
76
Você pode questionar se, de fato, estas eleições são
livres e justas e tudo isso. Então, a posição que todos
nós, enquanto região, tomamos é a seguinte: vamos
dialogar com o povo no Zimbábue para se certificar que
eles criem essas circunstâncias para que as eleições
sejam genuinamente livres e justas.
193
Apesar de provocarem reações distintas com a questão da República
Democrática do Congo angariando maior e o Zimbábue despertando críticas
as duas situações analisadas aqui reforçaram uma crítica comum ao NEPAD,
de que o programa seria um mero “talking shop” (ou, em tradução livre, “ponto
de discussão”), ou seja, serviria apenas para líderes africanos conversarem
sobre seus problemas, em vez de funcionar como um órgão para ações e
decisões. Até os criadores do plano concordam com essa crítica O próprio
Mbeki reconheceu isso em entrevista ao jornal britânico Financial Times, em
2005: “Nós acreditamos que tudo anda um pouco lentamente. Você descobre
depois que a capacidade para fazer um planejamento detalhado não existe, ou
é muito pequena. Então, nada acontece.”
194
O ex-presidente do Senegal,
Abdoulaye Wade, foi mais longe: “Sempre que sou perguntado sobre o que
fizemos, são reuniões, reuniões e reuniões. Vamos acelerar o
desenvolvimento dos projetos para que eu possa os ver enquanto ainda estou
vivo.”
195
Desde a sua criação, dois projetos de maior visibilidade foram
conduzidos pelo NEPAD. Um deles era a modernização e informatização de
escolas secundárias, dentro de um programa de tecnologias de informação e
comunicações. Escolas em 15 países africanos foram modernizadas com
microcomputadores, scanners, modens e outros equipamentos eletrônicos
usados na educação. Outro projeto, ainda em andamento, é a construção de
linhas de transmissão para dividir o poder hidroelétrico da República
Democrática do Congo com os demais países do continente. A medida de
integração da matriz energética, no entanto, ainda caminha lentamente.
196
O
principal atrativo do programa o sistema de peer review nunca conseguiu
obter a força imaginada inicialmente.
193
Interview with President Mbeki - From All Africa
194
Gowers; Reed; White, 2005, p. 14
195
Knipe, 2005, p. 12
196
Idem.
77
Um elemento fundamental na sua constituição é o
processo de peer review, sob o qual os países poderão
avaliar a performance um do outro. Céticos ressaltam
que os países que se candidataram para o peer review
são exatamente aqueles que têm pouco medo deste
exercício, enquanto outros que evitam o processo são
justamente os que carecem de uma avaliação.
197
O professor do Departamento de Estudos Políticos da Universidade da
Cidade do Cabo, Danga K. Mughogho, no NEPAD os mesmos erros
cometidos por outras instituições multilaterais africanas no passado:
O NEPAD é uma idéia excelente, mas seu tempo já
passou anos. Se a União Africana é o objetivo que
estamos tentando alcançar, então o NEPAD é a estrutura
que vai garantir que a União Africana não acabe como a
sua mal-sucedida antecessora. Eu prevejo um grande
problema, no entanto: o povo da África não foi
consultado sobre o que eles querem com uma União
Africana [...] Pelo mesmo motivo, os líderes da África não
receberam a permissão dos africanos comuns sobre as
suas idéias integracionistas, eu apostaria dinheiro na
previsão de que a União Africana e o NEPAD vão tomar
o mesmo rumo da Organização da Unidade Africana:
lugar algum.
198
Além das críticas sobre seus avanços tímidos, o NEPAD também era
alvo em sua concepção, acusado – principalmente entre movimentos anti-
globalização de estar ligado a organismos internacionais neoliberais, como
escreve BOND.
Críticos da esquerda alegam que o NEPAD é um projeto
subimperialista, influenciado por um time de “parceiros”
que ajudaram a desenvolvê-lo em 2000 e 2001. O
NEPAD surgiu após extenso diálogo com: 1) o
presidente do Banco Mundial e o diretor do Fundo
Monetário Internacional (FMI), em novembro de 2000 e
fevereiro de 2001; 2) executivos de grandes
multinacionais e líderes de governos de países
industrializados, durante o Fórum Econômico Mundial de
Davos, em janeiro de 2001; 3) líderes do G8, em Tóquio,
em julho de 2000, e em Gênova, em julho de 2001; e 4)
o presidente da União Européia e presidentes e premiês
de diversos países do norte, entre 2000 e 2001.
199
197
Idem.
198
Mughogho, 2003. p. 12
199
Bond, 2006, p. 104
78
Apesar das críticas, o NEPAD mantém-se firme na estrutura
organizacional regional do continente africano e ainda está no topo da lista de
prioridades da política externa sul-africana. Pretória não abandonou o discurso
do Renascimento Africano, que propõe soluções africanas aos problemas do
continente, nem desistiu de relacionar a boa governança e os preceitos
democráticos ao avanço e desenvolvimento econômico justo. Em novembro de
2006, durante o lançamento do relatório de desenvolvimento humano do
Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) na Cidade do
Cabo, Thabo Mbeki defendeu o programa.
Como sabemos, a África está trabalhando para
responder aos muitos desafios que se apresentam no
continente através do programa NEPAD, dentro do
âmbito da União Africana. O NEPAD tenta engajar
diferentes setores para mobilizar recursos externos e
internos que possam contribuir para a regeneração do
nosso continente e a expansão do espectro humano que
estas capacidades possam acarretar.
200
Como abordamos aqui, a maior parte dos condicionantes internos que
formam a política externa sul-africana estimulam a adoção do NEPAD pelo
continente. O programa sintetiza a noção de Renascimento Africano proposta
por diversos atores políticos do país, sobretudo pelo ANC e pela própria
Presidência. Fora do país, no entanto, limites externos impedem o NEPAD de
transformar-se em uma causa universal. Entre os países mais ricos,
aceitação do discurso, porém desconfiança de que possa ser colocado em
prática. Neste item, não os países do continente africano são objetos de
questionamento entre líderes dos países industrializados e possíveis
investidores internacionais, mas também a própria África do Sul, como
evidenciou o caso do Zimbábue. Além disso, o NEPAD ainda não recebeu
apoio de amplos segmentos da sociedade africana. O programa sofre
resistência de nações que possuem alguma influência regional no continente,
como a Líbia e o Zimbábue.
200
Mbeki, 2006.
79
CAPÍTULO 5
Conclusão
Procuramos demonstrar neste trabalho como se formou a política
externa da África do Sul no período que se estende do fim do apartheid aos
dias de hoje. O objetivo geral era encontrar, através de revisão bibliográfica, os
condicionantes internos e limites externos da diplomacia de Pretória no
período. Para tal tarefa, o marco teórico utilizado foi a teoria dos jogos de dois
níveis, de Robert Putnam, que associa a formação de uma política externa à
interação do Estado em dois “tabuleiros”: no nível I, o internacional, o Estado
atua conforme a balança de poderes e os preceitos da teoria realista das
relações internacionais. No nível II, o doméstico, acontece o “jogo da
ratificação”, em que o governo busca o apoio de agentes da sociedade para
suas práticas externas.
Os condicionantes internos que extraímos da revisão bibliográfica foram
quatro, Primeiro, existe a ascendência de Nelson Mandela e, posteriormente,
a grande influência do Executivo nas decisões de política internacional, uma
das heranças de Mandela no governo. Segundo, a maior participação do
Parlamento nas decisões de diplomacia do governo, com especial atenção
para o ANC partido que esteve marginalizado na era do apartheid, e que
assumiu um controle quase absoluto do Congresso a partir de 1994. Terceiro,
os setores da sociedade civil organizada também ganharam maior
responsabilidade na formulação da política externa, sobretudo setores
organizados como o laboral, na figura da Congress of South African Trade
Unions (Cosatu). Por fim, um reordenamento da burocracia estatal no
tocante às relações externas, com disputas de poder entre o Departamento de
Assuntos Exteriores (Department of Foreign Affairs, ou DFA, em inglês) e
Departamento de Defesa (DoD, em inglês).
80
No cenário externo, existe a recondução da África do Sul ao papel de
líder continental, com especial influência sobre a África Austral. O país passa a
atuar em órgão multilaterais da qual foi excluída e é chamado a agir em órgãos
como a Organização para Unidade Africana posteriormente na União
Africana –, na Southern African Development Comunity (SADC) e na união
aduaneira Southern African Customs Union (SACU), entre outros. Essa
liderança é constantemente colocada a teste nas questões centrais, sobretudo
em conflitos de segurança e de democracia, como demonstram os episódios da
República Democrática do Congo e do Zimbábue. Barber descreve o novo
mundo que a nova África do Sul encontrou:
O fim do apartheid foi visto como um triunfo do bem
sobre o mal, e, mais ainda, como um triunfo no qual a
comunidade internacional poderia dividir a glória.
Mandela reiterou este ponto ao declarar publicamente
sua apreciação do esforço internacional, e ele sublinhou
esta importância contínua em suas extensas viagens,
depois de sua libertação e como presidente do país. O
mundo que Mandela encontrou, no entanto, era muito
diferente daquele que prevaleceu durante seu longo
período na prisão, e as mudanças tiveram impacto direto
na África do Sul. [...] Na África do Sul, o primeiro impacto
causado pela mudança externa foi a criação de
condições nas quais os principais protagonistas (o ANC
e o governo branco) concluíram que seus principais
interesses seriam servidos por negociações, e não por
violência contínua. Essas visões foram reforçadas por
esperanças de uma Nova Ordem Mundial. [...] Neste
sentido, a nova África do Sul era uma filha de uma ordem
mundial em plena mudança.
201
O discurso de Mandela – que elencava, entre seis fatores, o respeito aos
direitos humanos no centro das relações internacionais e o desenvolvimento
econômico dos países da África foi colocado constantemente à prova por
aliados e rivais da África do Sul em um cenário internacional de
desconfiança.
202
Passada a enumeração dos condicionantes internos e a delimitação do
cenário externo, nosso trabalho analisou o impacto desses fatores em um
fenômeno relevante da diplomacia de Pretória. O caso escolhido foi o
lançamento do New Partnership for Africa´s Development (NEPAD). Uma das
201
Barber, 2004, p. 197
202
Mandela, 2003, p. 86
81
dificuldades deste trabalho foi a de determinar variáveis matematicamente
mensuráveis, em um tema de diplomacia baseado estritamente em ideais de
desenvolvimento e de unidade política. Foi preciso buscar em fontes primárias
como documentos, discursos e, sobretudo, recortes de imprensa as bases
para a análise dos fatores escolhidos. Buscamos verificar como a imprensa e
os documentos retrataram os condicionantes internos que levaram à criação do
Nepad e os limites externos que o programa de Pretória encontrou no momento
de sua implementação internacional. Além disso, nos baseamos na revisão
bibliográfica de especialistas que também se debruçaram sobre o tema.
Internamente, ficou evidente que a ascendência da figura de Nelson
Mandela, e posteriormente da Presidência sobre as questões de política
internacional um dos condicionantes internos levantados na revisão
bibliográfica foi de extrema importância para a fundação do NEPAD.
Evidentemente, o programa é posterior à era Mandela, logo o condicionante a
ser analisado deve ser o da herança de Mandela. Uma dessas heranças,
segundo Greg Mills e Alden e Le Pere, é o fortalecimento da Presidência nas
questões de relações internacionais. Como mostra a literatura consultada, o
NEPAD nasceu do gabinete da Presidência e de consultas feitas diretamente
por Thabo Mbeki, com pouca participação do Departamento de Assuntos
Exteriores. Essa é a principal evidência que encontramos do impacto deste
condicionante na formação do NEPAD, lembrando que por se tratar de um fator
de difícil mensuração, não é possível quantificar a importância deste
condicionante. No entanto, a ampla bibliografia– tanto nas fontes primárias,
como nas análises de especialistas indica que o NEPAD tem sua força por
sintetizar idéias criadas por Mandela e Mbeki, e que o forte simbolismo dos
dois na luta pelo apartheid e na recriação da África do Sul tem um impacto que
não pode ser desprezado na formação da diplomacia de Pretória.
Outro condicionante interno de importância que surge na formação da
diplomacia e, conseqüentemente, no NEPAD é a participação do
Congresso democraticamente eleito, o que significa na prática, uma maioria
ampla do ANC nas questões do Legislativo. O presidente do país é também o
líder do partido. A análise de documentos e pronunciamentos do partido
durante o governo de Thabo Mbeki mostra uma certa resistência e
82
desconfiança em relação ao NEPAD logo no momento de sua concepção.
Alguns autores procuram traçar, no passado do ANC, vestígios de um
esquerdismo que condenariam iniciativas supostamente pró-mercado e
neoliberais (como alega o autor Patrick Bond, por exemplo). De fato, a
composição da aliança de governo no Parlamento inclui forças de esquerda
dentro do ANC e o Partido Comunista da África do Sul (SACP, em inglês).
Estes elementos, no entanto, não chegam a formar uma maioria dentro do
ANC, que se mantém ao lado do governo nas questões do NEPAD. Logo, outro
condicionante interno analisado neste trabalho colabora com a política externa
de Pretória.
O terceiro condicionante interno analisado é um pouco mais complexo,
pois trata da participação de diversos setores da sociedade na elaboração da
diplomacia e do NEPAD. Entre os mais ativos e organizados, estão os
trabalhadores sob o manto da COSATU. Apesar de não retirar seu apoio ao
governo, o sindicato se mantém crítico ao programa. A resistência, mais
retórica do que formal, não chega a afetar a condução do programa. Por fim, o
último condicionante interno – a disputa entre burocracias estatais por poder na
formação da política externa praticamente não se presente na formação
do NEPAD, uma proposta da Presidência, que está acima de todos os
escalões.
Um episódio relevante para o NEPAD e para a África do Sul, que afeta
mais de um condicionante elencado neste trabalho, é a demissão do vice-
presidente Jacob Zuma. Como vimos, o escândalo de corrupção envolvendo o
vice de Thabo Mbeki colabora para uma maior divisão dentro do ANC e da
aliança que sustenta o governo no Parlamento. Além disso, tem repercussão
dentro da COSATU, um dos atores da sociedade civil. Mas o mais importante,
é que o programa serve para colocar pressão internacional sobre Thabo Mbeki,
que se obrigado a agir internamente. É praticamente a realização do jogo
em dois níveis, em que Mbeki precisa conduzir sua política “em dois níveis”: a
pressão no nível I de Robert Putnam, o internacional, gera uma ação no nível
II, o doméstico. Mesmo que essa ação na política interna possa comprometer,
em certa medida, “o jogo de ratificação” que funciona dentro do nível II. Como o
83
processo envolvendo Jacob Zuma ainda não foi concluído, a comunidade
internacional observa atenta as futuras movimentações.
Externamente, o NEPAD é colocado em prova por dois episódios mais
expressivos, também levantados por meio de documentos oficiais e de notícias
na imprensa. Por um lado, o teste na República Democrática do Congo, em
que a África do Sul é chamada para pôr em prática sua liderança no continente,
tarefa na qual ela apresenta relativo sucesso. O processo de pacificação no
Congo leva o país às suas primeiras eleições democráticas em mais de três
décadas. Ainda assim, o sucesso é relativo, que o país continua dividido
entre Joseph Kabila e Jean Pierre Bemba, e que a violência não tenha sido de
toda abolida.
Mais controverso, no entanto, é o papel da África do Sul frente ao
Zimbábue, de Robert Mugabe. A comunidade internacional continua colocando
pressão sobre Thabo Mbeki, e considera sua falta de ação contra Mugabe e
seu Zanu-PF um calcanhar de Aquiles da diplomacia de Pretória e,
conseqüentemente do NEPAD. Assim como no episódio envolvendo Jacob
Zuma, este caso segue em aberto.
Além dos dois limites externos apontados aqui esquematicamente o
NEPAD sofre críticas diversas. Alguns o consideram um programa neoliberal e
uma aplicação do Consenso de Washington no continente africano, como faz
Patrick Bond, que usa o termo “subimperialista” para classificar o NEPAD e a
política externa da África do Sul em geral. Essa visão, como vimos, tem
respaldo dentro de atores da sociedade civil sul-africana, bem como junto a
setores da aliança do governo no Congresso. Outros, como os líderes dos
países industrializados, vêem o NEPAD como um esforço grande de retórica,
mas de poucos resultados práticos. Apesar desta crítica, as nações do G8
seguem com apoio incondicional à iniciativa de Pretória, que o princípio de
ligação entre democracia e desenvolvimento é um dos pilares da diplomacia
européia e americana para o continente. Por fim, críticas gerais essas
inclusive aceitas e sublinhadas pelo próprio idealizador do NEPAD, o
presidente Thabo Mbeki de que o programa avança muito lentamente, e de
que não produziu projetos concretos. De fato, fora um projeto de informatização
84
de escolas e um esboço de uma matriz energética na África Central, poucos
foram os resultados do aparato burocrático montado pelos líderes africanos.
Sinteticamente são esses os resultados que este trabalho apresentou.
Grande influência de três condicionantes internos na elaboração do NEPAD – a
ascendência de Mandela (e força da Presidência nas questões diplomáticas),
participação do Congresso nas decisões e ação da sociedade civil. Dentro
destes três âmbitos, o governo Thabo Mbeki disputa o “jogo da ratificação”,
como Putnam caracterizou as ações do governo no nível doméstico.
Externamente, o NEPAD é colocado à prova tanto por países industrializados
como por nações do próprio continente africano, como levantamos nos casos
específicos já citados.
Podemos aqui, fazer eco às conclusões tiradas por outros autores sobre
a política externa sul-africana. Alden e Le Pere, que analisaram exatamente a
política externa de Nelson Mandela e Thabo Mbeki, assinalam:
Enquanto Mandela mirou em alvos específicos na
medida em que eles apareceram, a administração atual
[de Thabo Mbeki] tomou como tarefa retrabalhar as
instituições internacionais e práticas em consonância
com as novas normas de soberania que estão emergindo
principalmente do Norte. Ao mesmo tempo, a África do
Sul tenta reconfigurar sua política externa para refletir um
novo sentido de sua própria identidade como um Estado
líder na África, com objetivo de atingir uma nova arena
para seu ativismo na África continental e reconstruir a
constuição global entre os Estados do Sul. As ambições
de Pretória estão voltadas para reformar as instituições
e, finalmente, as normas que governam o sistema
internacional, enquanto afirma as posições da África do
Sul dentro desta estrutura Estado-cêntrica de
subsistemas (a África e o Sul) que é, em geral, hostil às
imposições de normas que desafiam a soberania. Esta é
a raíz dos desafios enfrentados pela diplomacia da África
do Sul.
203
Greg Mills identifica os pilares que conduzem a política sul-africana a
partir de Thabo Mbeki:
Os objetivos refletem o conceito de Thabo Mbeki de
política externa da África do Sul baseada em dois ramos
uma no mundo desenvolvido e outra no mundo em
desenvolvimento. Logo, o governo parece disposto a
ligar política exterior a necessidades e valores
203
Alden e Le Pere, 2004, p. 75
85
domésticos, com o objetivo de restruturar sua burocracia
em torno de metas definidas. [...] No caso da África do
Sul, isso parece ser alcançado com um foco em duas
áreas estratégicas: primeiro, encorajando a paz global, a
estabilidade regional e o desenvolvimento na África
Austral e, em segundo lugar, assegurando melhorias em
investimento e relações comerciais em todo o mundo.
204
Este trabalho teve como ambição traçar um período relativamente amplo
das relações exteriores da África do Sul. É importante lembrar que muitos dos
preceitos teóricos de Robert Putnam foram testados em períodos mais curtos e
em casos menos abrangentes. Esta pesquisa agregou diversos temas de
relações exteriores dentro de sua análise desde aspectos de segurança, a
comércio exterior, passando por política regional africana. De fato, um trabalho
com demarcações tão amplas sofre de limitações e carências óbvias.
Para superar essas limitações, procuramos testar a teoria de Robert
Puntam com o maior rigor metodológico possível e aproveitando a ampla
literatura disponível sobre o assunto. Se por um lado, os fatores e variáveis
foram levantados com auxílio imprescindível de levantamentos bibliográficos,
esses preceitos de outros autores foram ratificados ou confrontados com fatos
históricos – procurados em documentos, discursos e imprensa.
Este trabalho contribui tão somente como um exercício da teoria do jogo
de dois níveis sul-africano e para esquematização de diversos condicionantes e
fatores externos. Acreditamos que a partir deste levantamento, outras questões
sul-africanas possam ser observadas com maior cuidado e minúcia. Na
introdução, levantamos algumas questões que despertaram a curiosidade
científica para este trabalho entre elas a cooperação Sul-Sul e o Fórum
Trilateral Índia-Brasil-África do Sul (IBAS). Os próprios presidentes de Brasil e
África do Sul fizeram comparações entre o projeto sul-africano do NEPAD
para o continente africano e a iniciativa do Mercosul como forma de integração
e promoção de desenvolvimento na América do Sul.
205
Esperamos que esta síntese de fatores que formaram a diplomacia de
Pretória e a forma como eles influenciaram o programa New Partnership for
204
Mills, 2000, p. 302
205
MBEKI TO ATTEND…,2002, p. 12
86
Africa´s Development possam indicar referências para pesquisas que
eventualmente respondam às inquietações levantadas na introdução.
87
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