sentirem extremo prazer com Pele de Asno. Por mais encantadores que sejam, o homem
julgaria decair ao se nutrir de contos de fadas, e concordo que estes não são todos de sua
idade. O tecido de adoráveis inverossimilhanças requer mais finura, à medida que se
avança, e ainda se está à espera destas espécies de aranhas... Mas as faculdades não
mudam radicalmente. O medo, a atração do insólito, as chances, o gosto do luxo são
molas às quais não se apela em vão. Há contos a escrever para adultos, contos de fadas,
quase.
O maravilhoso não é o mesmo em todas as épocas; participa obscuramente de uma
classe de revelação geral, de que só nos chega o detalhe: são as ruínas românticas, o
manequim moderno ou qualquer outro símbolo próprio a comover a sensibilidade
humana por algum tempo. Nestes quadros que nos fazem sorrir, no entanto sempre se
pinta a inquietação humana, e é por isso que os levo a sério, que os julgo inseparáveis
de algumas produções geniais, as quais, mais que as outras, estão dolorosamente
impregnadas dessa inquietação. São os patíbulos de Villon, as gregas de Racine, os
divãs de Baudelaire. Coincidem com um eclipse do gosto que sou feito para suportar, eu
que tenho do gosto a idéia de um grande defeito. No mau gosto de minha época, procuro
ir mais longe que os outros. Para mim, se eu tivesse vivido em 1820, para mim "a freira
sangrenta", a mim, não poupar este sorrateiro e banal dissimulons de que fala o
periódico Cuisin, a mim, a mim, percorrer em metáforas, como ele diz, todas as fases do
"disco prateado". Por hoje, penso num castelo, cuja metade não está obrigatoriamente
em ruína; este cabelo me pertence, eu o vejo num sítio agreste, não longe de Paris. Suas
dependências não acabam mais e, quanto ao interior, foi terrivelmente restaurado, de
modo a nada deixar a desejar, em matéria de conforto. Junto à porta, encoberta pela
sombra das árvores, estão os automóveis, estacionados. Alguns de meus amigos aí
estão, em permanência: eis o Louis Aragon que parte - ele só tem tempo para
cumprimentar-nos; Philippe Soupault se levanta com as estrelas Paul Eluard, nosso
grande Eluard, ainda não voltou. Eis Robert Desnos e Roger Vitrac, que decifram no
parque um velho edital sobre o duelo; Georges Auric, Jean Paulhan, Max Morise, que
rema tão bem, Benjamin Péret, em suas equações de pássaros; e Joseph Delteil; e Jean
Carrive; e Georges Limbour (há uma fileira de Georges Limbour); e Marcel Noll; eis T.
Traenkel que nos acena de seu balão cativo, Georges Malkine, Antonin Artaud, Francis
Gerard, Pierre Naville, J. A . Boiffard, depois Jacques Baron e seu irmão, belos e
cordiais, tantos outros ainda, e mulheres deslumbrantes, palavra. Estes jovens não
podem se recusar nada, seus desejos são, para a riqueza, ordens. Francis Picabia vem
nos visitar e, na semana passada, recebeu-se na galeria dos espelhos um tal Marcel
Duchamp que ainda não se conhecia. Picasso caça aí por perto. O espírito de
desmoralização ergueu domicílio no castelo, e é com ele que tratamos sempre que há
problema de relação com nossos semelhantes, mas as portas estão sempre abertas, e
sabeis, não se começa "agradecendo" às pessoas. De mais a mais, a solidão é vasta, não
nos encontramos muito. Pois o essencial não é sermos senhores de nós mesmos, das
mulheres, do amor também?
Vão atribuir-me uma mentira poética; cada um vai dizer que moro na Rua Fontaine, e
que não vai beber desta água. Na verdade! mas este castelo cujas honras lhe faço, tem
ele certeza que seja uma viagem? E se, não obstante, o palácio existisse? Meus hóspedes
estão aí para responderem por isso; seu capricho é a estrada luminosa que aí conduz.
Vivemos de fato à nossa fantasia, quando estamos lá. E como o que um faz poderia
incomodar o outro, ali, ao abrigo da procura sentimental e dos encontros ocasionais?