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cisqueiros, farejados, afocinhados de cães magros e murchos, que se esgueiravam
desconfiados. Ela passou, depois, cosida aos altos muros do fundo dos quintais, até
chegar à encruzilhada das ruas, cheias de escravos, retirantes, gente ,suja, gente
esquálida, carregando potes d'água, colhida nas cacimbas abertas na areia do rio, a
conversar, rezingando, em voz alta, com rasgadas desenvolturas de chufas, de
arregaços obscenos, com risos estridentes de malícia.
Ao chegar à rua, suspirou libertada do pavor aflitivo; e, outra vez, gozando
uma doce serenidade d'ânimo, seguiu na direção da igreja do Rosário, relembrando
os incidentes daquela tarde, a cena do jogo, a cobardia no esconderijo, e o terror
que lhe não permitia verificar se Crapiúna deixara a bolsa de coiro de onça debaixo
do caixão. Em todo caso, estava satisfeita com o haver logrado a certeza do
verdadeiro criminoso, indicado pelo infalível, pelo glorioso Santo Antônio, e a
convicção de concorrer para a libertação de Alexandre e a felicidade inteira de Luzia.
E reputava-se engrandecida por essa boa ação, renovada do passado de culpas, de
crimes talvez, dos quais fora responsável inconsciente, e, sobretudo, a principal
vítima. Entidade diminuída e inútil, flutuando sobre uma suja torrente de vícios
incontinentes, sentia-se valorizada, sentia-se forte e sentia-se prestante. Duas
criaturas, pelo menos, neste mundo de ingratidão, de perfídia e de miséria, seriam
reconhecidas à sua dedicação.
Enlevada no doce conforto do beco, Teresinha foi subindo a rua do Rosário
até ao largo. Em redor do Cruzeiro, erguido defronte da igreja, sobre um sólido
pedestal de alvenaria, crentes, ajoelhados, rezavam padre-nossos, ave-marias e o
terço, murmurado, nuns tons soturnos de devota cadência.
Do piedoso burburinho, sobressaía a voz de Dona Inacinha, ao recitar, com
solenidade de padre, o gloria-patris, respondido pelos fiéis, numa algaravia, um
mistifório de latim e português: — Os que perderem em princípio, agora e sempre
por todos os séculos, séculos. Amém, Jesus.
A moça prostrou-se, comovida, abeirando-se do grupo, pouco e pouco
engrossado pelos transeuntes, de uma reverência grave, na maioria mulheres, de
alvos mantos, a espalharem ao luar, claro como o dia. Havia muito, seus lábios se
não entreabriam à florescência da prece consoladora, nem despertava, aos eflúvios
puríssimos da fé, sua alma agrilhoada ao pecado. Dos hábitos piedosos da infância,
apenas conservava o de persignar-se antes de dormir, antes de tomar banho. Não
se recordava da última vez que rezara, a não ser a oração sacrílega em casa da
Rosa Veado.
Terminados os mistérios do terço, Dona Inacinha entoou, com pompa, numa
voz fanhosa e áspera, o canto de contrição, — "Oh! Senhor Deus bem-amado...",
acompanhado por todos os devotos, com uma dissonância aparatosa, irremediável.
Aos derradeiros versículos, houve uma contrita, houve uma longa pausa.
Recolheram-se todos com Deus, curvados e humildes, preparando-se para o solene
epílogo do ato religioso, a súplica comovente de misericórdia. Quando, esta ecoou,
entoada pela beata, em acentos plangentes, as pessoas, afastadas da igreja,
reunidas em roda, na calçada, tanto que ouviam a súplica, ajoelhavam e batiam
também nos peitos, repetindo, em leve, em sentido balbucio, a invocação à
misericórdia divina. Teresinha curvou-se, compungida, e pediu a Deus,
sinceramente, perdão dos seus pecados.
Ergueram-se os devotos, como um rebanho de ovelhas, espantado na
malhada noturna, e debandaram em todas as direções, depois de beijarem o
pedestal da grande cruz negra, que o luar destacava, com melancólicos fulgores.