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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A POLIFONIA DO OLHAR
NIDIA HERINGER
Orientador: Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil e Silva
Porto Alegre, fevereiro de 2007
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL
FACULDADE DE LETRAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LETRAS
A POLIFONIA DO OLHAR
NIDIA HERINGER
Orientador: Prof. Dr. Luiz Antonio de Assis Brasil e Sil-
va
Tese apresentada como requisito parcial para obtenção do grau de
Doutor em Letras, na área de concentração de Teoria da Literatura.
Data da defesa: 12.01.2007
Instituição Depositária:
Biblioteca Central Irmão José Otão
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul
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DEFESA DE TESE DE DOUTORADO
BANCA EXAMINADORA
Prof. Dr. Luiz Antônio de Assis Brasil e Silva (orientador – PUCRS)
Prof. Dr. Luís Bueno (Universidade Federal do Paraná)
Prof. Dr. Mauro Gaglietti (Universidade de Passo Fundo)
Prof. Dr. Draiton Gonzaga de Souza (PUCRS)
Profª. Dr. Maria Tereza Amodeo (PUCRS)
AGRADECIMENTOS
Ao professor Dr. Luis Antonio de Assis Brasil, pela amizade e incentivo
inestimável que dedicou a esta orientanda súbita, q ue a sua gentileza
particularí ssima acolheu.
À professora Maria Lui za Ritzel Rem édios, pelos socorros inúm eros, em
tão diferentes momentos: um coração grande como o seu precisa de cui-
dados especiais.
Ao professor Dr. Dino del Pino, orientador inicial, todo o meu carinho.
Algumas vezes, as palavras são insuficientes para expressar tudo que
gostaríamos.
Às professoras Maria Eunice Morei ra, Maria da Glória Bordini e Regina
Zilbermann, pelo s ensinamentos , de diferentes o rdens.
À professora Ms. Celestina Vitória Moraes Sitya, de quem fui aluna na
graduação e cujo entusiasmo impulsionou meu interesse pela pesquisa.
Ao Rudimar, pelo amor múltiplo, em todas as horas.
À minha família, especialmente mãe, Eli e Lú: valeu.
Aos amigos, tão especiais: obrigado pel a força.
À Capes, pela concessão da bolsa de estudo.
O MEU OLHAR
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costum e de andar pelas estrada s
Olhando para a di reita e para a esquerda,
E de, vez em quando olhando para trás...
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem...
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
Reparasse que nascera deveras...
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo...
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não com preender ...
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo...
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos...
Se falo na Natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque q uem ama nunca sabe o que ama
Nem sabe por que ama, nem o que é amar ...
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar...
Fernando Pessoa (Alberto Caeiro)
RESUMO
A tese apresentada postula a vigência dialética de uma “poli-
fonia do olhar” e, através dessa proposição, mostra o quão múlti-
plas em significação são as narrativas, além de coadunar-se dire-
tamente com o contexto cultural da atualidade.
O olhar é, nessa proposta, considerado um vetor flexível que
se instrumentaliza para (re)elaborar, pela palavra dita e escrita,
novos painéis literários e culturais. Os aportes teóricos seleciona-
dos concatenam-se à pluralidade textual e abrangem os campos da
história e várias “linhas” da teoria da literatura.
As narrativas selecionadas são analisadas com o intento de
evidenciar a pertinência da idéia desenvolvida e, por conseguinte,
já construtos do “olhar polifônico”. Aqui estão o “olhar hibrida-
ção” de O queijo e o s vermes; o “olhar pactos rompidos” que O resto
é silêncio dimensiona; Terra papagalli e um “olhar genealogia”; os
“olhares ausentes” do Ensaio sobre a cegueira e o “olhar errante” si-
tuado por Imitação da morte.
ABSTRACT
The presented thesis claims to the dialectic operation from a
“polyphony of the look” and, through this proposal, shows how
multiple in meaning are the narratives, beyond agree itself directly
with the cultural context of the present time.
The look is, in this proposal, considered a flexible vector that
instruments itself to (re) elaborate by the said and writing word,
new literary and cultural panels. The selected theoretical suple-
ments link themselves to the textual plurality and enclose the
fields of history and many " lines" of the theory of literature.
The selected narratives are analyzed with the intent of attest
the pertinence of the developed idea and therefore, already aware
of the " polyphony look ". Here they are the "hibridization look"
of O queijo e os vermes; the "broken pacts look" that O resto é silên-
cio extends; Terra Papagalli and "genealogy look"; the "absent looks"
of the Ensaio sobre a cegueira and the "errant look" situated by Imi-
tação da morte .
SUMÁRIO
1 UM PRIMEIRO OLHAR ........................................................ 10
2 O “OLHAR-HIBRIDAÇÃO” EM O QUEIJO E OS VERMES:
EFERVESCÊNCIAS DA PALAVRA .......................................
18
2.1 ENSAIANDO ELOS ..................................................................... 19
2.2 OLHARES E VOZES: DIALÉTICAS MULTIVETORIAIS .............. 32
2.2.1 OS ELOS INTERATIVOS DO “EU ............................................... 32
3 OLHARES CRUZADOS E O RESTO É SILÊNCIO ................. 40
3.1 A VIDA EM PRISMAS: O ROMANCE ........................................ 40
3.2 O SILÊNCIO NO OLHAR ............................................................ 44
3.3 UMA LEITURA DO SILÊNCIO NO OLHAR ................................ 52
3.3.1 O ROMANCE DE ERICO ..............................................................
54
3.4 O OLHAR LEITOR: ENTRE MENOCCHIO E FRITZEN ................ 56
3.4.1 O PROCESSO DE LEITURA .......................................................... 56
3.4.2 A REALIDADE DA FICÇÃO ......................................................... 58
3.4.3 DOIS LEITORES E SEUS OLHARES .............................................. 62
3.5 FRONTEIRAS: ALGUNS LEITORES-SUJEITOS DA HISTÓRIA . 71
4 O “OLHAR VIAJANTE” ....................................................... 75
4.1 O RISO NO OLHAR ..................................................................... 77
4.2
A PARÓDIA: “O OLHAR PAPAGALLI” ......................................
78
4.3
O OLHAR SURPRESO: UMA BIOGRAFHOGENUS DO BRASIL? .
92
5 AS NUANCES DO “OLHAR AUSENTE” ............................... 99
5.1 O ENSAIO COMO PONTO DE PARTIDA ................................... 99
5.2 O(S) OLHAR(ES) E A(S) VOZ(ES) INSCRITOS ........................... 101
5.3 O “OLHAR LUZ-GUIA .............................................................. 107
9
5.4 IDENTIDADES EM BRANCO .................................................... 109
5.4.1 TRÊS MOMENTOS DA CRISE DE IDENTIDADE ........................... 118
6 O “OLHAR ERRANTE” ......................................................... 126
6.1 A AÇORIANIDADE DO IMPLÍCITO ........................................... 126
6.2 O DUELO DA VIDA-MORTE ...................................................... 130
6.3 OLHARES PORTUGUESES: CONTINENTE E ILHAS .................. 141
6.4 O PACTO DO OLHAR E DA ESCRITURA ................................... 146
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................. 155
8 OBRAS CONSULTADAS ...................................................... 168
9
ANEXO CURRICULUM VITAE ..........................................
176
1 UM PRIMEIRO OLHAR
A tese de que é possível a incidência de vários olhares
para as narrativas encontra sustentação em embasamentos de
ordem teórica e sócio-cultural. A contemporaneidade pode ser
observada como um momento em que o ícone principal é co-
nectar. Estão em foco pensamentos globalizados ou globalizá-
veis, e a comunicação se constitui em artefato capaz de diluir
fronteiras, sejam geográficas e/ou culturais. O homem conec-
ta-se com várias partes do mundo e interage com inúmeras
culturas em segundos. Essa profusão de formas de conhecer a
realidade viabiliza o relativizar dos conceitos. Olhar o mundo,
atualmente, depende muito de onde, como, com quê e para quê
o homem o olha.
A literatura, quem sabe em função das mudanças advin-
das de novos parâmetros culturais, enfrenta a questão de saber
se é possível ou até que ponto é possível estabelecer fron-
teiras, e estimula o surgimento e a existência de formas literá-
rias híbridas, dando ênfase à interpenetrabilidade dos discur-
sos literário e histórico.
O hibridismo resultante desse processo aponta para um
projeto cultural integrador e ambíguo. A história do conheci-
mento, a história oficial da humanidade, a história das menta-
11
lidades, a vida particular e íntima de sujeitos reais são “mate-
riais” que a literatura desestabiliza e reconfigura, estabelecen-
do conexões que desestruturam a fixidez original de determi-
nadas áreas epistemológicas. Da mesma maneira, o discurso da
história, cada vez mais, faz uso de técnicas narrativas aprimo-
radas.
A percepção dessas novas formas gelatinosas de dizer-
mostrar mundos e sujeitos parece estar, também, elaborando
12
construção mesma.
O léxico do olhar está, há muito tempo, presente nos
mais diversos campos do conhecimento. Os gregos e os roma-
nos helenizados já pensavam o olhar sob dois ângulos, um re-
ceptivo e um ativo. Supunham um ver não intencional e um
ver como produto resultante da atividade de olhar.
Luz e olhar processam formas de pensar na Antigüidade
Clássica, são analisados pela filosofia, são perspectiva na Re-
nascença, potencializam-se quando em conjunção com micros-
cópios e outros instrumentos e métodos científicos, determi-
nam a identidade do mundo e até do eu (Narciso preso à pró-
pria imagem está bastante “revisitado”, por exemplo).
A atualidade enfrenta a desterritorialização crescente,
tanto do léxico como da significação e, múltipla em vozes, tem
estreitado os laços entre ver e conhecer. É importante estabele-
cer a diferença, a partir da proposta aqui pretensa, entre os
termos “olho” e “olhar”. Olho é o órgão receptor externo; o-
lhar é uma atividade do ser em busca de significações. Ainda,
importa salientar que nem sempre olhar e conhecer são absolu-
tamente coincidentes em virtude dos demais sentidos humanos
capazes de fundamentar percepções. O “olhar” não existe iso-
lado, depende da corporeidade como conjunto e sofre interfe-
rência externa.
Nessa perspectiva, dentre os cinco sentidos, somente a
audição – vinculada à linguagem – rivaliza com a visão. Os
demais operam como coadjuvantes do olhar ou estão ausentes.
O olhar toca as coisas, descansa sobre elas, caminha entre as
mesmas e as ultrapassa quando as reatualiza sob a ótica singu-
lar do particular.
A visão opera como olhar a verdade. Olhar é pensar pela
13
mediação da linguagem. Pensar parece nascer do olhar – um
modo de olhar. O olhar dimensiona o sujeito – quem é, o que
olha e principalmente o que vê e diz. E transmuta-se em cria-
ção: surge pela palavra.
A reelaboração que entrecruza os conceitos de literatura
e história, narrativa e memória, oralidade e escrita, além de
construir a identidade de alguns períodos, e do homem desses
períodos, está tecendo novas relações de leitura e elaborando
um momento cultural de áreas movediças e co-participativas.
A constatação de que a representação explicita um diálo-
go distinto que, no entanto, nutre-se constantemente do outro
com o qual dialoga, permite a construção de um novo parâme-
tro com base na recepção
2
: o leitor emerge como energia que
dinamiza a narrativa, introduzindo uma dimensão interativa
na relação da obra com o receptor.
O leitor, sob esse ângulo e neste estudo, atua como uma
personagem com novos matizes: por sua intervenção, coloca a
obra no horizonte dinâmico da experiência. Conduzir a ques-
tão do fenômeno literário ao domínio da experiência passa por
fatores como recondução da teoria para uma consciência esté-
tica, histórica e, ainda, considera os atos de ler, interpretar e
2
Alguns conceitos vinculados à Estética da Recepção e consagrados por
Hans Robert Jauss e Wolfgang Iser serão utilizados “tanto quanto ne-
cessários” ao estudo. Para esses autores o leitor aparece ajustado ao
processo de construção e tematização da narrativa ficcional e assume
papéis significativos a partir de distintas formulações teóricas. Os es-
tudos de Jauss enfatizam a importância da recepção como categoria de
análise na história da literatura. Para Iser, a teoria da recepção “diz
respeito ao modo como os textos tem sido assimilados nos vários con-
textos históricos, procurando mapear as atitudes que determinaram
certo modo de compreensão numa situação específica” (p. 19). Porém,
é importante demarcar que embora a “estética da recepção” e a “teoria
do efeito estético” estejam interligadas, a primeira deriva de uma his-
tória de juízos de leitores reais, enquanto a segunda (a que dedicare-
mos maior atenção na análise do capítulo 3) funda-se no texto.
14
compreender como elementos circundantes de um processo
móvel que viabiliza a possibilidade de uma obra ultrapassar
oposições como sentido original e sentido recebido e, dialogi-
camente, formar e modificar percepções.
A validação da ação do leitor permite estabelecer uma
unidade dialética: a obra vive na medida em que age, e a ação
da obra inclui tanto aquilo que acontece na consciência que a
recebe como aquilo que se cumpre na própria obra. A interação
entre a obra e a humanidade existe na medida em que o texto
faz apelo a uma interpretação e age através de uma multiplici-
dade de significações. E o efeito dessa ação será, inevitavel-
mente, mais uma refiguração do olhar.
Apesar de todo o aparato editorial e das classificações
vinculadas aos textos, desde o instante de sua publicação, é
perceptível uma tendência nova no campo recepcional-
artístico-literário: as obras transformam-se em “documentos” e
a matéria ficcional configura-se, muitas vezes, mais real do
que a própria realidade. Os textos colocam em foco uma série
de informações que apontam para sentidos profundamente
humanos e sociais, que abordam e atingem o povo e, sendo fic-
ção, desvelam “sensos de verdade”, enquanto, paradoxalmen-
te, a História passa a ser continuamente questionada quanto ao
quesito “oferecer a verdade”.
Essa dicotomia entre a ficção que soa verdadeira e a His-
tória relativizada, desnuda novos processos de comunicação.
Narrativas e leitores desestabilizam tradições de leitura e cri-
am níveis de significação cada vez mais complexos.
As narrativas aqui analisadas permitem reflexões sobre a
literatura e a história enquanto produtos de linguagem e re-
pousam fundamentalmente sobre estruturas de troca. Ao lei-
15
tor, ao produtor e suas percepções, compete a tarefa de trans-
por áreas tão escorreitas.
Os conceitos teóricos que fundamentam a proposta da
“polifonia do olhar” advêm de distintas áreas do conhecimen-
to e estão imbricados à tessitura analítica.
Os autores Hyden White, Walter Mignolo, Eric Hobs-
bawn e Stuart Hall
3
fazem-se presentes com as premissas do
âmbito histórico e, de certa maneira, demarcam as discussões
sobre a mobilidade fronteiriça entre história e literatura.
As proposições de Linda Hutcheon embasam a questão
da paródia e da metaficção-historiográfica com aportes tanto
da história (mesmo quando para reforçar as premissas literá-
rias) quanto da teoria da literatura.
As questões do âmbito da literatura biográfica estão am-
paradas nos estudos de Philippe Lejeune, Georges Gusdorf,
Paul Ricoeur e Mikhail Bakhtin (este ainda é importante na a-
nálise que aciona o viés teórico do riso, presente no capítulo
4).
As teorias da estética da recepção, mais especificamente
a teoria do efeito estético
4
, proposta por Wolfgang Iser é o a-
porte teórico do capítulo 3.
Benedict Andersen, Homi Bhabha e Ernest Renan – em
3
HALL, Stuart, se faz presente, principalmente pelo proposto em A iden-
tidade cultural na pós-modernidade. Ele propõe três concepções distintas
de identidade: a do sujeito totalmente centrado, a do sujeito sociológi-
co/interativo e a do pós-moderno que é constituído por multiplicida-
des de identidades.
4
A teoria do efeito estético formulada por Iser tem uma perspectiva onto-
lógica. Para o teórico “se o texto ficcional existe graças ao efeito que
estimula nas nossas leituras, então deveríamos compreender a signifi-
cação mais como um produto de efeitos experimentados, ou seja, de
efeitos atualizados do que como uma idéia que antecede a obra e se
manifesta nela” (1996, p. 54).
16
suas acepções individualizadas e distintas - delineiam as pers-
pectivas adotadas nas análises quando elas se voltam aos te-
mas vinculados às idéias de nação, nacionalidade e à proble-
mática que delas emana no âmbito cultural.
O capítulo 2 aborda o texto do historiador Carlo Gins-
burg, O queijo e os vermes, e analisa os desdobramentos da dife-
rença cultural entre um leitor inculto e o que ele vê, lê e recria
pela palavra dita e a recepção e reação do seu discurso pela
platéia erudita da época em contraponto com as possibilidades
de leitura que o texto histórico suscita no leitor da atualidade.
A abordagem do texto de Erico Veríssimo, O resto é silên-
cio, busca o olhar do escritor em seu momento de produção,
quando perscruta a realidade da cidade, e o impacto recepcio-
nal gerado por uma crítica literária que percebe no texto ro-
manesco mais do que ficção.
Com Terra papagalli, o olhar revela e reatualiza o seu elo
identitário fundador. O romance resgata a Carta de Pêro Vaz
de Caminha para inverter o olhar. Enquanto a narrativa de vi-
agem, tão conhecida, desnuda para o mundo europeu civiliza-
do a figura de uma terra paradisíaca habitada por gentios, o
romance contemporâneo flagra o estrangeiro europeu que fun-
da o Brasil.
O romance Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, vai
ser abordado pela ambigüidade do olhar ausente no romance
que ensaia um mundo no qual, de repente, ideologicamente,
todos só vêem em branco.
A narrativa de José Martins Garcia contribui com a pers-
pectiva do olhar errante. O romance Imitação da morte oferece o
olhar da personagem insulana que percorre a Europa - con-
templa diferentes formas de ser e viver - e permanece inadap-
17
tada e “estrangeira” em todos os lugares. Importa nessa análi-
se a questão da identidade e da nacionalidade abordadas de
forma subliminar e não temática.
As análises objetivam evidenciar a estética do olhar plu-
ral. Os olhares efetivados, nomeados nos títulos capitulares,
corroboram a tese proposta: a “polifonia do olhar” acentua a
reatualização contínua das narrativas, independentemente dos
temas que abordam ou das áreas epistemológicas de origem.
2 O “OLHAR-HIBRIDAÇÃO” EM
O QUEIJO E OS
VERMES
: EFERVESCÊNCIAS DA PALAVRA
O olhar presente no texto histórico analisado neste capí-
tulo é um híbrido potencial. A narrativa aglutina elementos
que podem ser focalizados a partir de ângulos anistóricos. A
“polifonia do olhar” opera largamente, explícita ou sublimi-
narmente, nas palavras, paradoxalmente tão simples e tão den-
sas, do homem-personagem resgatado pelo discurso.
O queijo e os vermes - o cotidiano e as idéias de um moleiro
perseguido pela Inquisição, do historiador Carlo Ginsburg, apre-
senta os elementos de um processo inquisitório. A narrativa
foca a vida cotidiana, nos campos italianos do século XVI, e
chega aos pensamentos específicos do “julgado”. Trata-se da
história pessoal de um moleiro, em especial: “Chamava-se
Domenico Scandella, conhecido por Menocchio. Nascera em
1532 em Montereale, uma pequena aldeia nas colinas do Friuli,
a 25 quilômetros de Pordenone, bem protegida pelas monta-
nhas” (GINSBURG, p. 37), em uma época determinada (século
XVI).
Com as referências a uma data específica - a denúncia ao
Santo Ocio ocorre em 28 de setembro de 1583 -, o leitor não é
conduzido a iniciar o acesso ao conhecimento das personagens
19
pela percepção direta de seus atos, mas por informações sobre
o contexto em que viviam. A narrativa não entra diretamente
em ações, optando o narrador por uma linha discursiva que
adota recursos utilizados por historiadores e por cronistas.
O discurso apresenta a sociedade, destaca valores e inte-
resses - “no conjunto, a posição de Menocchio no microcosmo
social de Montereale não parece ter sido dos mais desprezí-
veis” (GINSBURG, p. 38) -, elabora um painel sócio-cultural-
religioso e, nesse, cerceia o moleiro Domenico. Como recurso
persuasivo, esse elemento é importante, por indicar que a for-
ma de condução do olhar adotada pelo narrador corresponde a
um interesse histórico.
O narrador exige do leitor uma complexa perspectiva de
entendimento. A superfície discursiva apresenta as “aparên-
cias” e as redes de interesses que envolvem a personagem. A
relação entre leitor e narrador passa a ser de cumplicidade: o
narrador busca além da superfície; efetiva uma imagem estra-
tégica marcada pelo ângulo do distanciamento crítico. O leitor,
conduzido por ele, participa da atitude crítica, é cúmplice do
olhar que esgarça as relações por detrás dos fatos, tateando em
arquivos-fonte.
2.1 ENSAIANDO ELOS
A tentativa de elucidar momentos específicos no espaço-
tempo é aspecto recorrente na esfera da escrita. História, Lite-
ratura, Religião e Ciência são algumas das áreas que se têm
debruçado sobre esse ponto. Demarcado o espaço-tempo que é
alvo do interesse, são investigados aspectos sócio-político-
históricos, as relações entre sujeitos e coletividade, as fontes
20
culturais, as tradições, os mitos e as imagens.
A forma escrita com que se registravam esses estudos va-
riava de acordo com a área de conhecimento em que a investi-
gação se inscrevia e com o período em que o registro se efetu-
ava. A área do conhecimento era premissa para um sistema de
referência fixo, que orientava o leitor e catalogava o texto em
um eixo da tradição cultural escrita. Além desses fatores indi-
cativos, os títulos também prescreviam maneiras de escrever e
indiciavam os conteúdos.
A história da discussão sobre a aproximação ou separa-
ção entre a Literatura e a História remonta ao início da teori-
zação da arte ocidental. Aristóteles
5
, em sua Poética, já reco-
nhecia que o ofício do poeta consistia em representar o que
poderia acontecer, enquanto ao historiador competia narrar o
que efetivamente aconteceu. Deveria, o poeta, atentar para du-
as exigências internas na produção de seu texto, quais fossem,
a verossimilhança e a necessidade, estando isento de qualquer
exigência externa ao texto, ou seja, a sua representação não se
pautaria por um compromisso com a verdade dos fatos repre-
sentados.
Observou ele, ainda, que a separação acontecia não quan-
to à forma dos textos em verso ou em prosa mas quanto à
natureza do seu conteúdo. Testemunhando uma prática de his-
toriador que se revelava não uma teorização histórica, mas
uma crônica de época, porque se constituía de uma narração
fragmentada de eventos, Aristóteles elegeu a poesia como su-
perior à História, por tender ao universal, o que a aproximava
da Filosofia e a tornava mais séria, enquanto a História volta-
va-se ao particular.
5
Aristóteles. Poética.Porto Alegre: Globo, 1996.
21
Aristóteles não deixou de salientar que os elementos da
realidade observável podem vir a compor o universo constitu-
ído pelo poeta em seus textos. Por força disso, fez a seguinte
consideração:
“o poeta deve ser mais fabulador que versifica-
dor; porque ele é poeta pela imitação e porque
imita ações. E ainda que lhe aconteça fa zer usos
de sucessos reais, nem por i sso deixa de ser poe-
ta, pois nada impede que algumas das coisas,
que realmente acontecem, sejam, por natureza
verossímeis e, por isso, venha o poeta a ser o
autor delas”
(p. 53, 54).
O mesmo interesse em redefinir os limites que separam a
Literatura da História tem-se mostrado através dos atuais dis-
cursos críticos, remodelados pela visão da corrente denomina-
da Nova História
6
, à qual se vincula Hayden Withe
7
. As refle-
xões desse historiador, em Meta-história, centralizam-se na a-
nálise dos elementos políticos que compõem o discurso histó-
rico. O autor, ao interpretar as principais formas de represen-
tação histórica, no século XIX europeu, considera o texto histó-
rico uma estrutura verbal na forma de discursos em prosa.
Assim, afirma que o objeto da história se expressa atra-
vés de formulações que se aproximam das estratégias típicas
do material ficcional. Desse modo, a diluição de fronteiras en-
tre as áreas do conhecimento é apontada como uma das princi-
pais características das ciências humanas contemporâneas e re-
6
Os grandes nomes da Nova História são Lucien Febvre, Marc Bloch e
Fernand Braudel. Baseando-se em longa e sólida tradição, essa corren-
te teórica amplia seu campo documental, avança pela interdisciplina-
ridade e se afirma como história global, reivindicando a renovação de
todo o campo dessa disciplina.
7
White, Hayden é autor, dentre outros, de Meta-história: a imaginação
histórica do século XIX. 2 ed. São Paulo: Universidade de São Paulo,
1995.
22
sulta na aproximação maior entre História e Literatura.
Em O texto histórico como artefato literário,
8
Hayden White
define o historiador como um contador de histórias e, assim,
aproxima, mais especificamente, História e narrativa. De acor-
do com o teórico, o historiador parte de eventos e fontes histó-
ricas, mas seu trabalho é o de selecionar, organizar, ou, como o
autor afirma, “refamiliarizar” esses eventos. Os eventos são
transformados em História pela supressão de alguns elementos
e ênfase em outros. White considera os documentos históricos
tão “opacos” quanto os textos estudados pelo crítico literário,
já que são produtos da capacidade ficcional dos historiadores.
Assim, quanto mais sabemos sobre o passado, mais difícil é fa-
zer generalizações sobre ele.
A compreensão de que a literatura é, além de fenômeno
estético, uma manifestação cultural portanto uma possibili-
dade de registro do movimento que realiza o homem na sua
historicidade, seus anseios e suas visões do mundo tem
permitido ao historiador freqüentá-la enquanto espaço de pes-
quisa. Mesmo que os literatos a tenham produzido sem com-
promisso com a verdade dos fatos, construído um mundo sin-
gular, que se contrapõe ao mundo real, é inegável que, através
dos textos artísticos, a imaginação produz imagens, e o leitor,
no momento em que, pelo ato de ler, recupera tais imagens,
pode encontrar várias outras formas de ler os acontecimentos
constitutivos da realidade que motiva a arte literária.
A percepção das relações de proximidade entre o fictício
e o histórico fortificou as leituras de teóricos atuais, que se
preocuparam em sistematizar os limites daquelas posições, a-
8
O ensaio é parte da obra Trópicos do d iscurso: ensaios sobre a crítica e a
cultura.
23
cabando por promover a sua implosão. Para esse processo, fo-
ram fundamentais, no contexto teórico da História, os questio-
namentos a respeito de seu próprio estatuto, assim como as
tentativas de compreender o papel social do historiador. O
processo de produção do texto histórico também passou a ser
interpretado à luz da experiência literária.
Dessa reflexão resultou a destruição da noção de cientifi-
cidade da narrativa histórica e a instauração da idéia de rela-
tividade do conhecimento nela revelado. Essas leituras basea-
ram-se na fragilidade da realidade histórica enquanto produto
da subjetividade, sendo, portanto, ilimitada e passível de er-
ros. Tomaram ainda como parâmetro o fato de ocorrer, numa
narrativa histórica, seleção e organização da realidade por
parte do sujeito historiador, tarefas que implicam interpreta-
ção de dados por parte dele.
É possível afirmar que os textos dos historiadores de ho-
je são marcados por conjecturas e verossimilhanças, calcadas
em referências e percepções de indícios do real, e não em in-
venções, o que não os relega ao campo da ficção, mas os faz
serem compreendidos como versão possível, e não como ver-
são única do contexto histórico abordado e de seus elementos
constitutivos.
White, segundo observa Walter Mignolo
9
, numa intenção
clara de se opor à visão que entendeu a explanação historio-
gráfica semelhante à explanação das ciências naturais, argu-
menta que o relato historiográfico é, de fato, "uma ficção ver-
bal cujo conteúdo é tanto inventado como encontrado, e cujas
9
MIGNOLO, Walter. Lógica das diferenças e política das semelhanças.
Da literatura que parece história ou antropologia, e vice-versa. In:
CHIAPPINI, Ligia; AGUIAR, Flávio Wolf (Org). Literatura e história na
Améria Latina. São Paulo: USP, 1991.
24
formas têm mais em comum com a literatura do que com as ci-
ências” (p. 127).
Sob esse ponto de vista, a primeira condição que resulta
do encontro da Literatura com a História é o fato de ambas se-
rem textos, objeto este que, por ser o resultado da ação de um
narrador, é responsável pela prodão de sentidos do passado.
Nessa mesma perspectiva, Walter Mignolo, também dis-
cutindo o que chama de mobilidade das fronteiras entre Histó-
ria e Literatura, acrescenta ao pensamento de White a perspec-
tiva de a Literatura absorver experiências da História. Nas en-
trelinhas dessas considerações, é possível situar a elaboração
discursiva como o ponto comum entre as histórias literárias e
as histórias dos fatos da vida.
A natureza das referências dos fatos históricos e o trato
lingüístico sugerem um relacionamento natural entre ficção e
História. O literário e o historiográfico nascem do mesmo ges-
to de compor fatos em uma ordem textual e se distinguem pe-
los signos particulares utilizados pela sociedade para marcá-
los segundo as dimensões e os limites de cada momento histó-
rico.
É necessário considerar que, na ficção e na escrita histó-
rica, o assunto narrado não é só determinação do narrador.
Nesse processo em que escrever se torna uma atividade artísti-
ca, testemunha-se a comunhão do sujeito com o objeto, pois o
texto se constitui como o produto final da vontade do autor-
narrador conjugado com as especificidades dos elementos que
compõem a referência tomada.
Mignolo ressalta que, na relação entre os conceitos de
História e de Literatura, duas convenções interessam: as de ve-
racidade e de ficcionalidade. Esclarece que o caráter narrativo
25
possibilita e permite a permutabilidade entre elas, mas salien-
ta que o aproveitamento de material histórico na literatura faz
com que esse, de certa forma, perca sua identidade, submeten-
do-se à lógica da ficção, transformando-se, assim, em material
artístico.
É de Mignolo, ainda, a observação de que as fronteiras
fluidas já podem ser observadas na prática através de discur-
sos sintomáticos como “Literatura-testemunho”, “Romance-
testemunho”. Outro gênero citado pelo autor é a autobiografia,
a respeito da qual comenta aspectos distintivos entre a reali-
zada por um historiador e por alguém ligado às artes. Para o
teórico, “as distinções entre convenções e normas, [...] entre
tipos e configurações podem contribuir para sanar alguns di-
lemas apresentados pelas difusas fronteiras entre Literatura e
História” (p. 133).
A mediação entre conhecimento e realidade objetiva, rea-
lizada pelas representações, levou os historiadores a aceitar
que a História se apresenta através de uma escritura que até
há pouco era considerada como escrita de ficção, utilizando
fórmulas, figuras e estruturas próprias da narração literária.
Isso não permite concluir que, na produção historiográfica,
tudo é representação e que, por conseguinte, a História pode
ser confundida com Literatura. Roger Chartier afirma, para
expressar a especificidade da História como área de conheci-
mento, que
“é contra esta posição que me parece necessário
reabrir uma reflex ão sobre o estatuto epistemo-
lógico da história como conhecimento verdadei-
ro, que é estabelecer as especificidades deste co-
nhecimento enquanto operações técnicas da his-
tória, que não são unicamente a escritu ra, mas
26
são também a const rução de um objeto, a eleição
de um instrumento analítico, o jogo de hipóte-
ses e de comprovações; finalmente toda a dimen-
são da história que se confronta com as fontes,
ou seja, com todos os elementos, documentos ,
textos literários, restos arqueológicos que são
como vestígios, marcas do passado. E esta rela-
ção entre os vestígios, as marcas do passado e
as técnicas adequadas para compreendê-las, pa-
rece que define em primeiro lugar uma prática
da história que não se limita a sua escritura...”
(CHARTIER, 2002, p. 23).
Para Mary Louise Pratt, tais relatos se constituem de re-
presentações, reinvenções de realidades, produzidas a partir
da visão de um sujeito. São imagens que se constituem em re-
presentações do real, elaboradas com fundamento em compo-
nentes ideológicos de pessoas dotadas de equipamentos cultu-
rais próprios, portadoras de um patrimônio anterior que con-
diciona o modo de observar e entender o empírico.
Essas representações expressam o contexto em que se
formaram e o imaginário vigente na sociedade em que seus au-
tores viviam. Mas elas desencadeiam, também, práticas sociais
e políticas, bem como atuam como fatores formadores de ima-
ginário nas sociedades observadas.
No ensaio historiográfico de Carlos Ginsburg, O queijo e
os vermes, os pontos de contato entre História e Literatura es-
tão de tal maneira almagamados que propiciam o embate in-
vestigativo sobre as especificidades dos gêneros literários.
O queijo e os vermes pode ser observado sob uma perspec-
tiva dual: o discurso é do historiador, as fontes estão ditas
10
:
10
As fontes estão ditas segundo o proposto por Chartier (conforme ex-
posto na citação anterior a esta).
27
“Passei parte do verão de 1962 em Udine. O
Arquivo da Cúria Episcopal daquela cid ade pre-
serva um acervo de documentos inquisitoriais
extremamente rico [...]. Ao folhear um dos vo-
lumes manuscritos dos julgamentos, deparei-me
com uma sentença bastante longa. Uma das acu-
sações feitas a um réu era a de que ele susten-
tava que o mundo tinha sua origem na putrefa-
ção...”( GINSBURG, p. 11).
Porém, durante a leitura, subjaz a sensação de que Me-
nocchio escapa do roteiro histórico que narra o processo inqui-
sitorial, cresce como “ser” e impõe ao relato aspectos peculia-
res de “eu” biografado. A obra é um ensaio historiográfico –
age no âmbito da micro-história
11
–, porém o leitor encontra,
também, um ensaio biográfico fragmentado pelo resgate de
uma voz autobiográfica.
Ginsburg se debruça sobre os processos inquisitoriais,
realiza um estudo das mentalidades em um tempo específico e
através de um caso real. O texto tem base histórica relata a
coleta de dados “Graças a uma farta documentação, temos
condições de saber quais eram suas leituras e discussões, pen-
samentos e sentimentos: temores, esperanças, ironias, raivas,
desesperos” (GINSBURG, p. 12) e, no entanto, oferece uma
perspectiva que o individualiza: “De vez em quando as fontes,
tão diretas, o trazem muito perto de nós: é um homem como
nós, é um de nós” (GINSBURG, p. 12).
A dubiedade entre Literatura e História vem explícita no
discurso do historiador que escreve o prefácio:
“O queijo e os vermes pretende ser uma histó-
ria, bem como um escrito histórico. Dirige-se,
11
O termo é utilizado por Ginsburg no livro A micro-história e outros en-
saios.
28
portanto, ao leitor comum e ao especialista.
Provavelmente apenas o último lerá as notas,
que pus de propósito no fim do livro, sem refe-
rências numéricas, para não atravancar a narra-
tiva. Espero, porém, que ambos reconheç am nes-
se episódio um fragmento desp ercebido, todavia
extraordinário da realidade, em part e oblitera-
do, e que coloca implicitamente uma série de
indagações para nossa própria cultura e pa ra
nós” (GINSBURG, p. 13).
O texto instiga. Esconde um segredo. A voz de Menoc-
chio, para a História, diz que ele é culpado. Mas a mesma voz
ressoa além do significado encontrado pelos inquisidores e é
resgatada pela pesquisa de Ginsburg. Não diz só o segredo:
diz o falante. Revela o ser que, de repente, encontra platéia.
Querem saber o que ele pensa. A voz, transcrita nos registros
do processo, desenha o pensamento e o ser pensante.
O texto entrega ao leitor muito mais o homem, Domeni-
co, do que o processo inquisitorial. Ao leitor é apresentado um
leitor, recém-iniciado no processo da leitura, em um momento
em que a escrita e a leitura ainda enfrentavam cerceamentos de
várias ordens: a pouca difusão da matéria escrita, a distância
entre a língua escrita e as variedades lingüísticas das comuni-
dades de fala e a inexistência de escolas.
As fontes utilizadas pelo historiador demarcam um mo-
mento cultural – a Inquisição – que dialoga com a humanidade
e, em contraponto, um total anônimo – o moleiro. O enredo
circunscreve eixos contraditórios e ambivalentes. As teorias de
Menocchio são de há muito conhecidas em Montereale e todos
convivem com o fato. O moleiro lê, reflete e comenta as con-
clusões a que chega. “Com rara clareza e lucidez, Menocchio
articulou a linguagem que estava historicamente à sua disposi-
29
ção” (GINSBURG, p. 25).
A investigação comprova que ele gostava de discutir su-
as idéias:
“Discute sempre com alguém sobre a fé, e até
mesmo com o pároco [...]. Na praça, na taverna,
indo para Grizzo ou Daviano, vindo da monta-
nha – não se importando com quem fala [...] ele
geralmente encaminha a conv ersa para as coisas
de Deus, introduzindo sempre algum tipo de he-
resia. E então discute e grita em defesa de sua
opinião” (GINSBURG, p. 39).
Não há exato registro de que quisesse modificar aquilo
que não considerava plausível. O que fazia era expressar, ve-
ementemente, as interpretações a que havia chegado. O mo-
mento histórico em que essa fala se inscreve, no entanto, é
conturbado, e o moleiro vem a ser denunciado. “Sob a acusa-
ção de ter pronunciado palavras heréticas e totalmente ímpias
sobre Cristo” (GINSBURG, p. 38) é chamado para interrogató-
rio. “Declarou ao cônego Giambattista Maro, vigário-geral do
inquisidor de Aquiléia e Concórdia, que sua atividade era ‘de
moleiro, carpinteiro, marceneiro, pedreiro e outras coisas’.
Mas era principalmente moleiro” (GINSBURG, p. 37).
Chamado para o primeiro interrogatório, Menocchio foi a
Maniago, atendendo à convocação do tribunal eclesiástico em
7 de fevereiro de 1584. Antes, foi aconselhado pelo vigário de
Polcenigo, Giovani Daniele Melchiori, seu amigo de infância:
“Diga o que eles estão querendo saber, não fale demais e mui-
to menos se meta a contar coisas; responda só o que for per-
guntado” (GINSBURG, p. 42).
Ele não consegue apenas responder. Na vila, o que falava
fazia pouco sentido, mas, para os eclesiásticos, a exposição das
30
idéias do moleiro revelou perigo, principalmente após expor
sua singularíssima cosmogonia, da qual o Santo Ofício já ouvi-
ra comentários confusos:
“Eu disse que segundo meu pensamento e crença
tudo era um caos, isto é, terra, ar, ág ua e fogo
juntos, e de todo aquele volume em movimento
se formou uma massa, do mesmo modo como o
queijo é feito do leite, e do qual surgem os ver-
mes, e esses fora m os anjos. A santí ssima ma-
jestade quis que aquilo fosse Deus e os anjos, e
entre todos aqueles anjos estava deus, ele tam-
bém criado daquela massa, naquele mesmo mo-
mento, e foi feito senhor com quatro capitães:
Lúcifer, Miguel, Gabriel e Rafael. O tal Lúcifer
quis se fazer de senhor, se c omparando ao rei,
que era majestade de Deus, e por causa dessa
soberba Deus ordenou que fosse mandado emb o-
ra do céu com todos os seus seguidore s e com-
panhia ...” (GINSBURG, p. 43).
A narrativa do decorrer do processo deixa perceptível a
certeza de que Menocchio poderia ter se calado. Falasse pouco
e voltaria para casa. Ele sabia disso. Porém, pela primeira vez
tem diante de si alguém com quem discutir. O processo vai a-
lém de perguntas e respostas. Domenico responde e pergunta.
Diz e quer saber. Estabelecido o diálogo, “Menocchio abando-
nou qualquer reticência” (GINSBURG, p. 47): encontramos o
moleiro em sua plenitude. O anseio de saber, encontrar lógica
e respostas, questionar aquilo tudo que havia lido, o faz maior
que o processo.
A voz de Menocchio, transcrita nos autos dos processos,
desloca o foco textual do processo para o homem, confere ao
ensaio a subjetividade característica das narrativas que contam
histórias de vida. Há o compromisso do historiador com a ver-
dade, a evidência do que aconteceu, a fidelidade e a explicação
31
das fontes, além do viés ficcional, perceptível na construção
textual que a aproxima da Literatura biográfica
12
.
O queijo e o s vermes historia a vida de Menocchio, objeti-
va-a, paradoxalmente, em um plano artístico. De certa manei-
ra, o historiador biografa a autobiografia de Menocchio. A bi-
ografia refigura-se nos vácuos do discurso historiográfico, que
transcreve uma voz pessoal. Ao depor, Domenico se autobio-
grafa pela mão que registra o processo.
Na autobiografia, o narrador de sua vida torna-se herói
porque se insere na própria narrativa. O julgamento inquisito-
rial a que Menocchio é submetido busca conhecer profunda-
mente um “eu”. Ao falar, o moleiro diz de si, de seu mundo,
de seus pensamentos; o historiador revela as nuances camale-
ônicas da voz arquivada pela Inquisição. Esse “olhar hibrida-
ção”, que ressoa no texto, é mais um prisma da “polifonia do
olhar”.
2.2 OLHARES E VOZES: DIALÉTICAS MULTIVE-
TORIAIS
2.2.1 Os elos interativos do “eu”
As discussões teóricas percebem mais acentuada a dilui-
ção de fronteiras entre os discursos histórico e literário quan-
do a narrativa adentra pelo romance histórico e pelas varieda-
des da Literatura biográfica, em função do caráter de referen-
cialidade e pela forma com que os caracteriza.
12
Entende-se por Literatura biográfica: biografia, autobiografia, memó-
rias, cartas, diário, auto-retrato, ensaio e outras formas que daí pos-
sam derivar.
32
Segundo Bakthin,
13
não há demarcação nítida entre auto-
biografia e biografia. Tanto em uma como na outra uma histó-
ria de vida pode ser objetivada em plano artístico. Na biogra-
fia, o autor se situa muito próximo de seu herói. O autor da
biografia é um outro possível que, de certa forma, exerce do-
mínio sobre o “eu” representado.
A autobiografia, atualmente, é reconhecida pela comuni-
dade literária como uma tarefa premeditada. Philippe Lejeu-
ne
14
define autobiografia como “relato retrospectivo em prosa
que uma pessoa faz de sua própria existência, enfatizando sua
vida individual e, em particular, a história de sua personali-
dade” (p. 13) e, no que concerne ao conteúdo, alerta que se
pode confundir autobiografia e romance autobiográfico.
O gênero autobiográfico supõe uma identidade assumida
no nível da enunciação entre autor, narrador e personagem.
Essa identidade é essencial e pode ser percebida de duas ma-
neiras: implicitamente, por ocasião do pacto autobiográfico, e
de maneira patente, na narrativa, pela igualdade entre os no-
mes do narrador-personagem e do autor.
Para Georges Gusdorf
15
, a autobiografia responde à in-
quietude mais ou menos angustiada do homem que envelhece.
O ”retrato” da história da vida pessoal envolve as fraquezas
da memória, que precisam ser superadas para propiciar o res-
tabelecimento das verdades dos fatos. Para o teórico, “a evoca-
ção histórica estabelece uma relação muito complexa entre
passado e presente, uma reatualização que nos impede de des-
13
BAKHTIN, Mikhail M. A autobiografia e a biografia. In: Estética da cri-
ação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
14
LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique en France. Paris: Seuil,
1975.
15
GUSDORF, Georges. Condiciones y limites de la autobiografia. Suple-
mentos Anthropos, Barcelona, v. 29, p. 9-17.
33
cobrir o passado em si, tal como foi: o passado sem nós”.
A autobiografia é um documento sobre uma vida, mas é
também uma obra-de-arte. Como documento, o historiador tem
direito a comprovar o testemunho, verificar sua exatidão. No
entanto, o valor artístico do gênero supera a historicidade
comprovada e oferece o testemunho de uma verdade singular:
do sujeito com seus sonhos, suas representações de si, do seu
mundo e do mundo dos outros. A projeção do domínio interior
sobre o exterior realiza, nas entrelinhas do texto autobiográfi-
co, a projeção de uma consciência em busca de sua verdade
pessoal.
As fontes de que parte Carlo Ginsburg, para sua recupe-
ração histórica, são os arquivos da Inquisição, nos quais se en-
contram, basicamente, registros escritos de produções orais.
Isso oferece outro aspecto da obra, o limiar entre a oralidade e
a escrita. Mais ainda, a tentativa de recuperação de uma orali-
dade já deturpada pela escrita.
A personagem de Ginsburg apresenta características que
a distinguem dos seus conterrâneos. Não representa a comuni-
dade, é um ex-cêntrico em seu universo espacial e temporal, o
que ressalta outra liminaridade, entre a oralidade e a escrita.
Diferente dos camponeses de sua aldeia, alfabetizado, desliza-
va pela cultura oral e escrita.
O texto de Ginsburg estrutura-se em processos de media-
ção. O historiador constrói uma segunda forma à memória de
um Outro. Menocchio “é”; “existe” uma primeira vez pelo re-
gistro do escrivão da Inquisição e, uma segunda vez, pelo en-
saio que chega até nós.
A memória da personagem em relação a si e sobre os ou-
tros é mediada pela diferença cultural, que acarreta registro do
34
relato oral, e pelo resgate desse relato. O leitor “conhece” a
vida do moleiro através da memória de dois outros sobre o
“Outro” que a leitura lhe entrega.
Ao mesmo tempo em que a oralidade, só recuperada pelo
registro escrito, ajuda a resgatar a figura de Menocchio, já que
são os interrogatórios orais as fontes existentes, também ela
relativiza o registro de Ginsburg. Em O queijo e os vermes, fica
evidente que o acesso à escrita passa a ser uma fonte de poder
no século XVI.
Os camponeses detêm, apenas, a cultura popular, ou seja,
a oralidade, enquanto Menocchio já tem acesso a algo que per-
tenceria à classe superior, uma vez que é capaz de ler, e lê
muito. O olhar dele para a sua aldeia é distinto dos que convi-
vem com ele; da mesma forma que ele é observado como dife-
rente
“foi o choque entre a página impressa e a cultu-
ra oral, da qual era depositário, que induziu
Menocchio a formular – para si em pri meiro lu-
gar, depois aos seus concidadãos e, por fim, a os
juízes – as “opiniões [...] que saíram da sua
própria cabeça” (GINSBURG, p. 89).
A voz de Menocchio, registrada no julgamento, seria a
mesma conhecida dos moradores de Montereale? Entre os seus,
ele partilhava códigos comuns. E não tinha medo.
“Mas nas discussões com seus conterrâne os
Menocchio fazia afirmações muito impetuosas:
“Quem é esse tal d e Deus? É uma invenção da
escritura, que o inventou para nos enganar; se
fosse Deus se mostraria (...) O que é o Espírito
Santo? [...] Não se vê esse tal de Espírito Santo
(GINSBURG, p. 121).
E durante o julgamento? Ao ser questionado a respeito
35
de suas palavras sobre Deus e o Espírito Santo, durante o pro-
cesso, Menocchio fala:
“Nunca se encontrará quem afirme que e u tenha
dito que o Espírito santo não existe; p elo con-
trário, minha maior fé nest e mundo está justa-
mente no Espírito Santo e na palavra do altís-
simo Deus que ilumina o mundo todo“ (GINS-
BURG, p. 121).
Ele é dúbio em suas falas. A memória dos outros sobre a
personagem poderia ser una, considerando a situação de jul-
gamento e as diferenças culturais entre camponeses e clérigos?
Os depoimentos dos camponeses permitem perceber a
admiração que sentem pelo moleiro, concordem ou não com
ele. E ele não encontrava terreno para discutir. As vozes dos
clérigos deixam perceber outra realidade. Ao ser inquirido,
durante um dos interrogatórios, Menocchio cala, pensa e, de-
pois, retoma:
“O vigário, insistindo: “O Espírito de Deus e
Deus são a mesma coisa? E o Espírito de Deus
está incorporado nos quatro element os? “Eu não
sei” – respondeu Menocchio. Permaneceu calado
por algum tempo. [...] “Confesse a verdade...”
(GINSBURG, p. 128).
A identidade de Menocchio se reconstrói com fontes ma-
leáveis. Os depoimentos dos moradores de Montereale ofere-
cem uma voz de Menocchio, os escritos dos julgadores, outra.
E, ao historiador, a tarefa de selecionar a verdade dos fatos a-
través das vozes escritas.
A escrita de Menocchio aparece através de uma carta que
entrega aos juízes, após ter recusado o advogado que lhe fora
oferecido. E Ginsburg a comenta:
36
“O próprio aspecto das páginas escritas por
Menocchio, com as letras coladas umas às ou-
tras, mal ligadas entre si [...] mostra claramen-
te que o autor não tinha muita familiaridade
com a escrita. [...] Com certeza não freqüentara
escola alguma de nível superior, e aprender a
escrever deve ter lhe custado muito, me smo fisi-
camente, o que se p ercebe por alguns sinais que
mais parecem talhados na madeira do que traça-
dos sobre o papel. Já com a leitura devia ter fa-
miliaridade bem maior. Emb ora fechado “na pri-
são escura durante 104 dias”, evidentemente
sem livros à disposição, conseguira descobrir na
memória frases que foram lentament e e durante
muito tempo assimiladas da história de José, li-
da na Bíblia e no Fioretto” (p. 152).
E conclui, após examinar a carta:
“Antes de se tornarem sinais numa página, a-
quelas palavras devem ter sido rumin adas por
muito tempo. Todavia, desde o início haviam si-
do pensadas como palavras escritas. A “fala” de
Menocchio – do que podemos conjeturar das
transcrições feitas pelos escrivães do Santo Ofí-
cio - era diferente, se não por outra razão, por-
que intrincada de metáforas, absolutam ente au-
sente na carta enviada aos juízes” (GINSBURG,
p. 153).
Os juízes, após o exame da carta, promulgam a sentença;
non modo formalem hereticum[...] sed etiam heresiarcam” (não só
um herético formal [...] mas também um heresiarca (GINS-
BURG, p. 155). Era o dia 17 de maio. E o tamanho da sentença,
muito longa, denotava “o profundo fosso, evidente em todo o
processo, que separava a cultura de Menocchio da dos inquisi-
dores” (GINSBURG, p. 158).
O réu permaneceu no Cárcere de Concórdia quase dois
anos. Em 18 de janeiro de 1584 seu filho entrega uma súplica
37
ao bispo Matteo Sanudo e ao Inquisidor de Aquiléia e Concór-
dia. A súplica, escrita pelo próprio Menocchio, deixava perce-
ber a intervenção de um advogado. Considerando o “bom
comportamento” do encarcerado como sinal de conversão, o
Santo Ofício comutou a sentença.
“Como cárcere perpétuo para Menocchio foi de-
terminada a aldeia de Montereal e, ficando-lhe
proibido afastar-se dali. Ficava-lhe expressa-
mente proibido também falar ou mencionar suas
idéias perigosas. Deveria confessar com regula-
ridade e usar sobre a roupa o hábito com a cruz,
sinal de sua infâmia” (GINSBURG, p. 161).
O moleiro voltou e tomou seu lugar na comunidade. A-
pesar da condenação e da prisão, pouco a pouco se readaptou
e, em 1590, foi novamente nomeado administrador da igreja de
Santa Maria de Montereale.
Quinze anos após ter sido interrogado pela primeira vez,
foi novamente chamado para interrogatório. Várias novas de-
núncias contra ele haviam surgido. Tinha 67 anos e continuava
a relativizar crenças e instituições. “Em 12 de julho de 1599
compareceu diante do Inquisidor, frade Gerolamo Asteo, do
vigário de Concórdia, Valério Trapola, e do magistrado do lu-
gar, Pietro Zane” (GINSBURG, p. 170).
Em 2 de agosto do mesmo ano, o Santo Ofício o julgou
“... por unanimidade, um relapso, um reincidente. O processo
terminara. Decidiu-se, no entanto, submeter o réu à tortura,
para arrancar-lhe o nome dos cúmplices. Isso aconteceu em 5
de agosto” (GINSBURG, p. 179-180).
No dia 4, a casa em Montereale havia sido revistada e
todos os livros de Domenico confiscados. Mesmo sob tortura, o
moleiro não falou com quem costumava discutir suas idéias.
38
O leitor de O queijo e os vermes defronta-se com uma mul-
tiplicidade de vozes, ideologias e consciências independentes.
A tessitura textual desdobra-se em híbridos, particulariza-se,
assume uma estética que joga com elementos novos e antigos,
dessacraliza formas e inova em associações ambivalentes. O
olhar do leitor, a cada palavra, encontra mais que História,
mais que Literatura.
O texto de Ginsburg dialoga diretamente com a posição
do historiador sugerida por Peter Burke. Preocupado com toda
a abrangência da atividade humana, esse historiador dimensi-
ona um deslocamento “do ideal da Voz da História para aquele
da heteroglossia
16
, definida como vozes variadas e opostas”
(BURKE, 1992, p. 22).
O relativismo cultural que, de acordo com Burke, está
implícito no paradigma da Nova História, acentua a interdis-
ciplinaridade que pode ser percebida no texto de Ginsburg. O
passado, reescrito, dialoga abertamente com o presente: Me-
nocchio - “Conceda-me a graça de me ouvir, senhor ”- conti-
nua falando. E a sua voz, captada pela “polifonia do olhar”, é
plural em ecos.
16
O termo “heteroglossia” integra os estudos de Mikhail Bakhtin, que o
define como um conjunto de circunstâncias socioideológicas que carac-
terizam a fala de um determinado grupo social em determinada época.
Segundo o teórico russo, o significado de um enunciado se dá a partir
da convergência de forças internas e externas, que determinam as
condições de controle de sua significação. Disso decorre a concepção
de que cada grupo social apresenta uma visão de mundo diferente, a
qual se manifesta na linguagem, dado que nela acontecem os conflitos
sociais.
3 OLHARES CRUZADOS E O RESTO É SILÊNCIO
3.1 A VIDA EM PRISMAS: O ROMANCE
Na evolução das formas literárias, avulta o desenvolvimento e a
crescente importância do romance, contrariando o pressuposto teórico
clássico, como bem atestam as palavras com que Jonathan Cüller (1999)
inicia o capítulo seis, dedicado à narrativa, do livro Teoria Literá ria
uma introdução: “Era uma vez um tempo em que literatura significava,
sobretudo, poesia” (p. 84). Alargando continuamente o domínio de sua
temática, interessando-se pela psicologia, pelos conflitos sociais e polí-
ticos, ensaiando constantemente novas técnicas narrativas e estilísticas,
o romance transformou-se, a partir do século XIX, na mais importante e
mais complexa forma de expressão literária dos tempos modernos.
É significativo verificar que o romance moderno se constitui não
só sobre a dissolução da narrativa puramente imaginosa do Barroco,
mas também sobre a desagregação da estética clássica. Até o século de-
zoito, era um gênero desprestigiado. Embora de há muito se reconhe-
cesse o singular poder da arte de narrar, ela era conceituada como obra
frívola, cultivada por leitores pouco exigentes em matéria de cultura.
Nesse espírito, o romance medieval, o renascentista e o barroco diri-
gem-se fundamentalmente a um público feminino, ao qual oferecem mo-
tivos de evasão e entretenimento.
40
O texto Questões de literatura e de estética, a teoria do romance, de
Mikhail Bakhtin, desvela o interesse do teórico soviético pelo gênero
romanesco, considerado pela estilística tradicional como extra-literário.
Seus estudos acentuam a importância do gênero que, segundo ele, não é
como qualquer outro, uma vez que tem em sua base a noção de dialo-
gismo. Para Bakhtin, em cada texto, em cada enunciado, em cada pala-
vra ressoam duas vozes: a do eu e a do outro em processo comunicativo.
O romance, para Bakhtin, caracteriza-se pela consciência do dia-
logismo, pelo trabalho sistemático com o jogo de vozes simultâneas em
um mesmo enunciado. O teórico situa as origens do gênero e suas raízes
históricas na sátira menipéia e na paródia popular da Antigüidade e da
Idade Média, salientando que, além da noção de dialogismo, importam
as de polifonia e de carnavalização no seu processo de constituição.
O aspecto dialógico refere-se à possibilidade, ou abertura, do dis-
curso para admitir a presença de uma multiplicidade de vozes e consci-
ências independentes, o que caracteriza a polifonia. Esta apresenta-se
não só na diversidade de pontos de vista apresentados pelas persona-
gens, as quais assumem independência, mas na própria heterogeneida-
de de formas do discurso presentes na narrativa.
Esse caráter polifônico do discurso é importante para o conceito
de carnavalização. Para Bakhtin, o carnaval “aproxima, reúne, celebra
os esponsais e combina o sagrado com o profano, o elevado com o bai-
xo, o grande com o insignificante, o sábio com o tolo...” (1981, p. 106).
Na introdução de A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o
contexto de François Rabelais, ele focaliza o carnaval e a importância da
cultura cômica na Idade Média e no Renascimento, mostrando a impor-
tância do carnaval e do riso para uma dualidade do mundo. Também a-
firma que uma literatura paródica era escrita tanto em latim quanto em
língua vulgar, possibilitando paródias sacras, de orações e de leituras
41
evangélicas, o que aumentava o interesse e a quantidade do público.
Considerando os estudos bakhtinianos, é possível “ver” a trans-
mutação das vozes diversas das festas populares encontrando terreno
fértil no gênero romanesco, que permite uma narrativa em que o outro é
uma constante. O romance aglutina a realidade e o discurso da e sobre
esta. Se o processo de realização do objeto estético é “um processo de
transformação sistemática de um conjunto verbal, compreendido lin-
güística e composicionalmente, no todo arquitetônico de um evento es-
teticamente acabado” (BAKHTIN, 1998, p. 51), no romance, o todo está
vinculado a sujeitos e realidades histórico-sociais.
O pícaro é o sujeito-origem da personagem romanesca. Pela sua
natureza, pelo seu comportamento, é um anti-herói, um inversor dos
mitos heróicos e épicos, que anuncia uma nova época e uma nova men-
talidade. Através da sua rebeldia, do seu conflito radical com a socie-
dade, o pícaro afirma-se como um indivíduo que tem consciência da le-
gitimidade da sua oposição ao mundo e ousa considerar, em desafio aos
cânones dominantes, a sua vida mesquinha e reles como digna de ser
narrada. E é o romance moderno indissociável dessa confrontação do
indivíduo, bem consciente do caráter legítimo da sua autonomia, com o
mundo que o rodeia.
A voz de quem fala no romance é aspecto fulcral da teoria bakhti-
niana: “O plurilingüismo, dessa forma, penetra no romance, por assim
dizer, em pessoa, e se materializa nele nas figuras das pessoas que fa-
lam, ou então, servindo como um fundo ao diálogo, determina a resso-
nância especial do discurso direto do romance” (BAKHTIN, p. 134). E
disso nasce uma característica importante do gênero: “o homem no ro-
mance é essencialmente o homem que fala; o romance necessita de fa-
lantes que lhe tragam seu discurso original, sua linguagem” (BAKTHIN,
p. 134).
42
O principal objeto do gênero romanesco, que o caracteriza e lhe
confere originalidade estilística é “o homem que fala e sua palavra” (p.
135). Disso se depreendem três aspectos: a) o homem que fala e sua pa-
lavra são objeto tanto de representação verbal como literária; b) o sujei-
to que fala no romance é essencialmente social; c) o sujeito que fala no
romance é, sempre, em certo grau, um ideólogo.
Esses fatores levam à teoria de que uma linguagem particular no
romance representa sempre um ponto de vista particular sobre o mundo,
que aspira a uma significação social. Além disso, graças à representação
dialogizada de um discurso ideologicamente convincente, o romance
favorece o reconhecimento do narrado e entabula o processo comunica-
tivo e, nesse, não é a imagem do homem em si que importa, e, sim, “a
imagem de sua linguagem” (p. 137).
O romantismo é o período que estabelece as normas e formas para
o “novo” gênero e singulariza a personagem como elemento de funda-
mental importância à narrativa romanesca. Porém o estatuto da perso-
nagem solidamente definida pelos seus predicados e suas circunstâncias
características, traços fisionômicos, meio social, ocupação profissional
entrou em crise ainda na segunda metade do século XIX, com os ro-
mances de Dostoievski. À leitura destes, dificilmente se rememoram os
rostos, a cor dos olhos a decoração das casas de suas personagens.
Segundo Mikhail Bakhtin, o herói interessa a Dostoievski não en-
quanto fenômeno na realidade, possuindo traços caracterológicos e so-
ciológicos definidos, nem enquanto imagem determinada, mas, sim,
como ponto de vista particular sobre o mundo e ele próprio, como a po-
sição do homem que busca a sua razão de ser e o valor da realidade cir-
cundante e da sua própria pessoa.
O romance dos últimos anos do século XIX e das primeiras déca-
das do século XX herdou e desenvolveu a lição dostoievskiana. Torna-se
43
mais que dialógico, caracteriza-se como polifônico por excelência. O
discurso romanesco assimila elementos da enunciação histórico-social,
que é comunicada de forma harmônica por vozes plurais: a ação roma-
nesca dessas obras representa a vida no seu fluir vasto, lento e denso.
3.2 O SILÊNCIO NO OLHAR
A questão do olhar, nas sociedades contemporâneas, delineia
perspectivas ambivalentes. O indivíduo apresenta-se como um passa-
geiro: em permanente movimento, cada vez mais rápido, o olhar con-
densa paisagem e outdoors. Reduzido o ângulo do olhar apressado, a ci-
dade transforma-se, superficializa-se: é cenário no qual os homens são
personagens. A “polifonia do olhar”, assim, instaura um “silêncio no
olhar” que é resultado do “olhar-hábito”, destituído de essência, esva-
ziado pela pressa.
Esse andar rápido do indivíduo inviabiliza olhar o outro, nos o-
lhos, e caracteriza um momento que se contrapõe a outro. O momento
do caminhar lento surgiu na filosofia e na poesia com o flâneur per-
sonagem do final do século XIX, era o homem que vivia na rua como se
estivesse em casa, e que podia pretender um olhar capaz de ver as coi-
sas como eram. Ver o outro nos olhos e estar no olhar do outro.
O momento atual oferece a proliferação de imagens. A era é de
produção do real. Aquilo que era pressuposto do olhar agora é seu re-
sultado. Com a generalização da imagem, o próprio princípio da repre-
sentação modifica-se. As imagens não mais representam o real, elas são
o real. Em um universo de imagens, o real não tem mais origem nem re-
alidade, apenas é. Com a profusão da imagem, identidades e lugares
desaparecem na ampliação a que estão submetidos.
Publicada em 1943, a obra O resto é silêncio, de Erico Verissimo,
44
constitui-se como uma narrativa que apresenta uma primeira imagem
(um fato real) marcada por sete olhares. Algumas dessas sete persona-
gens não são mais capazes de olhar nos olhos dos outros; porém, para-
doxalmente o olhar surpreendido pelo incomum, um corpo de mulher a
precipitar-se do alto de um edifício em pleno centro da cidade de Porto
Alegre, alavanca o olhar para si e para os que estão próximos.
O romance narra a história da jovem Joana Karewska, a partir de
sua morte, em uma sexta-feira da paixão. A experiência do olhar apare-
ce em seu momento terminal e permite conjecturar sobre a existência de
um elo entre a atualidade e o passado. Em Baudelaire, A passante apre-
senta o flâneur, em uma rua movimentada, surpreendido por ter seu o-
lhar preso no olhar de uma linda mulher que vinha em sentido contrá-
rio. Ele se vê refletido no olhar dela e, quando sai de seu êxtase con-
templativo, ela já havia desaparecido. A experiência de olhar nos olhos,
em Erico, delineia a cidade e o ser que não vê o outro que passa, e é,
sim, surpreendido pela ação da cidade sobre ele. Não há o olhar corres-
pondido e, sim, o olhar perdido.
O olhar para a jovem caída na rua movimentada reverte o sentido
dos olhares: olhando o corpo, os espectadores volvem o olhar para as
íntimas angústias a que estão submetidos. Ver um momento de morte,
de silêncio repentino no burburinho usual de uma rua central, faz com
que as testemunhas do ocorrido - um desembargador aposentado, um
menino vendedor de jornais, um ex-tipógrafo, um homem de negócios,
um advogado, a esposa de um regente de orquestra e um escritor - refli-
tam sobre suas próprias vidas e as dos seus.
A narrativa desvela um cenário pulsante: a cidade sob o impacto
de expansão e modernização, decorrentes do incremento do sistema ca-
pitalista, e a transformação dos valores dessa sociedade. O foco narrati-
vo é desviado de uma personagem a outra, instaurando a expectativa e
45
a curiosidade do leitor. A vida na praça continua como se nada tivesse
acontecido, mas o percurso das testemunhas-pesonagens foi alterado. O
corpo que caiu do edifício, de certa maneira, alcança os demais familia-
res das testemunhas e esses sete núcleos distintos formulam um mosai-
co da sociedade representada.
O olhar do leitor, que no primeiro parágrafo do romance parece
ser chamado a participar da narrativa,
“Há um tom de verde, que encontramos às vezes nos céus
de certos quadros – um verde aguado, duma pureza d e
cristal, transparente e frio como um lago nórdi co – um
verde tão remoto, sereno e perfeito, que parece nada ter
em comum com as coisas terrenas. Para mos, contempla-
mos a tela, atribuímos a cor impossível à fantasi a do ar-
tista e passamos adiante” (VERISSIMO, 1999, p. 7).
percorre cada cena e vai sendo continuamente deslocado de um para
outro segmento, na busca de pontos de convergência entre os universos
paralelos. Os tempos verbais utilizados denotam um processo que per-
mite pensar nas funções, na recepção e no efeito estético dos textos lite-
rários sob o enfoque comunicacional.
É claro que o gênero do texto em questão (o romance) não tem
como principal característica a oralidade, mas é possível pensar a obra
de arte literária como essencialmente predisposta ao contato com o lei-
tor, sendo comprovável esse seu traço constitutivo. A situação dialogal,
no texto literário, se dá no terreno do “como se”, e o discurso inscreve
um interlocutor.
A experiência do diálogo se coloca, no entanto, de maneira dife-
rente, uma vez que a condição do interlocutor é a de participar, não
participando: se o narrador narra o “já vivido”, há participação? Como
o narrador conta? Buscando, tentando, esmiuçando o sentido através do
recurso da memória. O leitor passa a conhecer a partir dos recortes do
46
olhar desse narrador em constante busca. A narrativa é parte do proces-
so do conhecer e, ao mesmo tempo, a referência do interlocutor.
O leitor não participa da narrativa como integrante dela, mas faz
parte do processo de “conhecer”. Considerando que a memória só existe
como linguagem e, no caso aqui observado, como escrita, o significado
é duplamente mediado, pela memória do narrador e pelo leitor: a narra-
tiva tem sempre mais a dizer, o enigma se desenrola aos poucos, espe-
rado e esperando o leitor.
O romance instaura-se no eixo da procura-resgate, aciona o vir à
superfície, do texto e da consciência, de fatos, situações, sentimentos
soterrados que adquirem articulação e sentido. A categoria da memória
tem valor excepcional, o sentido estará dado quando tudo estiver orga-
nizado, numa cronologia peculiar, conforme a recordação vai crescendo
e, ela inclusive, sendo mediada por fatores externos de um tempo exte-
rior ao lembrado.
A memória e o olhar, no romance, não são dispositivos que, acio-
nados, reconfiguram o passado. A apreensão do sentido é involuntária:
atos do presente são necessários para fundir o passado nesse presente,
numa aglomeração fragmentária de eventos que formarão o “objeto”
com o qual o leitor vai trabalhar.
A observação desse objeto específico, a obra de arte literária, remete
aos estudos de Wolfgang Iser e a algumas de suas caracterizações: os
aspectos constitutivos da obra-de-arte literária; o papel da ficção; o ato
da leitura e a consciência do leitor, bem como as noções de ficção e
transgressão.
Iser entende a obra-de-arte literária a partir da noção de processo
de leitura. De caráter virtual, essa perspectiva concebe a obra de forma
bipolar, sendo constituída pelo pólo artístico (autor) e o estético (con-
cretizado pelo leitor). Essa polaridade supõe permanente interação en-
47
tre os condicionamentos do próprio texto e os atos de compreensão do
leitor.
O romance exige a presença constante do leitor, atento, capaz de
acompanhar a detalhada revisita aos fatos narrados. E, assim, surge
uma das principais características do texto literário: a peculiar posição
intermediária entre o mundo dos objetos reais (que figura, mas não é) e
o próprio mundo do leitor. O ato de ler se mostra, então, como um
“processo de tentativa“ para vincular a estrutura oscilante do texto a
algum sentido específico. Estabelecido o sentido, a tentativa de proces-
so transforma-se em ato comunicativo.
A ficção comunica algo sobre a realidade, organiza a realidade de
maneira que possa ser comunicada, ela medeia sujeito e realidade. Iser
parte da perspectiva dos atos de fingir para discutir a noção de ficção.
Tais atos são constituídos por três elementos: seleção, combinação e au-
todesnudamento. Os dois primeiros têm em comum a transgressão de
limites, o terceiro elemento, por sua vez, é o que possibilita, através de
um contrato com o leitor, entender o “como se” como a manifestação da
transgressão. A negatividade surge, nesse âmbito, como característica
do conceito de ficção: não há oposição ficção-realidade, há o pacto de
verdade do “como se fosse real”.
É o ato de leitura que confere funcionamento à obra literária. A
polaridade artístico-estético afiança que a obra literária não pode ocu-
par-se exclusivamente nem com o texto nem com a sua concretização, e
esta não é independente das disposições do leitor, mesmo quando tais
condicionamentos são ativados pelos condicionamentos do próprio tex-
to.
O texto se atualiza mediante as atividades de uma consciência que
o recebe e, deste modo, e até certo ponto, a leitura manifesta a inesgo-
tabilidade do texto que, por sua vez, é condição das seleções de leitura
48
que possibilitam a constituição do sentido.
Essa implicação significa que a atualização do texto, mediante o-
rientações que se concretizam durante a leitura, ao mesmo tempo em
que o presentificam em experiência vivida, transladam-no para o pas-
sado. Com isso, transformam a experiência da leitura em reconhecimen-
to que, não mais sendo novo, passa a influir nas novas orientações re-
cebidas do próprio e de outros textos, o que sugere que a leitura está
estruturada como “uma experiência do reconhecido nas representações
do passado, deixando suspensos seus valores em cada novo presente
processado”.
Ao se admitir que, a fim de que a comunicação ocorra, o texto
precisa ser processado pelo leitor no ato de leitura, o intervalo entre
texto e leitor adquire importância. A interação oriunda desse processo
resulta em um jogo entre o dito e o não-dito. A indeterminação, em
graus variados, impulsiona a atividade de constituição de sentido, po-
rém sob controle do expresso.
Desse modo, o significado do texto literário resulta de uma reto-
mada ou apropriação daquela experiência que o texto desencadeou e
que o leitor assimila e controla segundo suas condições. Lacunas e ne-
gações impõem uma estrutura peculiar a essas atividades constitutivas
do processo de leitura e, ao mesmo tempo, estimulam o leitor a supri-
mir o que falta.
As lacunas, enquanto conexões sonegadas, indicam antes uma ne-
cessidade de combinação que de complemento. A ausência de certas re-
lações estimula a atividade ideacional do leitor, que precisa não apenas
reagir às instruções dadas no texto, mas, também, aos resultados de sua
própria atividade, o que transforma essas lacunas em pré-condição fun-
damental da comunicação.
A exigência do leitor no processo de comunicação confere ao texto
49
um matiz subjetivo que lhe permite atribuir sentido em diversos con-
textos históricos e, ainda, as constantes possibilidades de atualização
do texto literário. O processo de leitura produz uma atualização múlti-
pla dos ditos e não-ditos e, nessa dialética, configura-se um sentido re-
sultante da leitura. Cada ato de leitura define uma atualização indivi-
dual do texto, na medida em que o espaço de relações permite novas
configurações de sentido.
Uma configuração tem, para cada leitor, um alto grau de determi-
nação que surge das muitas decisões e seleções individuais elaboradas
no decurso da leitura é o “momento criador” que experimenta o leitor
do texto literário, embora essa mesma “criação” individual possa reno-
var-se a cada leitura.
O passado reelaborado em O resto é silêncio se alicerça em um fato
real, porém a reelaboração não é contínua, apresenta-se em flashes
fragmentados. O narrador parece expectar o processo de que se utiliza
para contar. O que ele lembra não é mais o fato em si e a experiência de
presenciá-lo. A narrativa assoma filtrada pela ótica do narrador, que
busca o sentido da vida e constata que ela é densa demais para que uma
única ótica dê conta de representá-la.
A representação atua motivada por fatores externos à vontade, ela
está vinculada ao ver, e esse ato recria um instante fugidio. Os olhares
começam, enfim, como que a encontrar seu endereço natural: a situação
do homem enquanto debruçado sobre o mundo e a História.
O olhar, no romance, faz cruzar a História e a intimidade, o públi-
co e o pessoal. Focos e direções que, em meio à diversidade dos sujei-
tos, condensam, pela palavra, todas as camadas do humano e seus uni-
versos.
É a arte a única realidade, a reveladora da verdade, a única capaz
de quebrar a crosta do cotidiano e surpreender as cintilações do “eu
50
profundo” e das realidades exteriores. A alquimia das sensações revivi-
das brevemente e o processo de busca dessas sensações são passados
para o leitor pela linguagem escrita, e escrita de modo artístico, capaz
de suscitar nele um certo “reviver o momento do narrador”.
A cidade e seus moradores passam a ser narrados, em detalhes. Se
a queda da moça só tem força evocativa num determinado momento, a
criação artística que se desprende desse instante deslinda o universo es-
tético das contemplações da memória. A criação estética vai além do e-
fêmero instante evocativo, permanece aberta às constantes atualizações
que leituras e leitores, em tempos e espaços variados, poderão executar.
A narrativa é de tal maneira articulada, passa tal sensação de ve-
rossimilhança, que o leitor compartilha das sensações. Sem dúvida al-
guma, as seleções e combinações vocabulares, aliadas à fluência narra-
tiva, fazem o leitor integrar-se plenamente ao “como se”, firmando a
dialética entre texto literário e leitor. Dessa forma, o ato de leitura che-
ga a assumir um “significado existencial”: o leitor “conhece” as sensa-
ções vivenciadas na Rua da Praia e compartilha do universo das perso-
nagens. Expressando, tornando acessível o ser a si mesmo e, durante a
leitura, a outrem, a obra-de-arte literária dimensiona em si mesma a
função de estabelecer o diálogo.
O texto artístico, sob esse enfoque, relaciona um momento acaba-
do e registra modos de pensar, de ser e de estar no mundo; e, também, a
incompletude, uma vez que ultrapassa as condições de seu surgimento.
A visão artística concebe a “polifonia do olhar” e a entrega ao interlo-
cutor que a queira investigar.
3.3 UMA LEITURA DO SILÊNCIO NO OLHAR
A orientação dialógica é um fenômeno próprio a todo discurso:
ele é sempre orientado para a resposta. Assim, é possível afirmar-se que
51
todo discurso situa-se na fronteira de seu próprio contexto e no contex-
to de outro.
No caso do romance, a representação artística se estrutura através
de vozes diversas, que entabulam diálogos com as coordenadas sócio-
históricas que as regem. O romance de Erico entabula diálogo direto en-
tre dois universos epistemológicos distintos: a História e a ficção.
O resto é silêncio tem como ponto-base de sua estrutura um fato
real.
“Em maio de 1941, num anoitecer de céu límpido com
tons de verde cristalino no horizonte, conversava com
meu irmão numa das calçadas da Praça da Alfândega, [...]
quando vi precipitar-se do alto de um dos edifícios vizi-
nhos um vulto humano, um corpo de mulher, que, ao ba-
ter nas pedras do calçamento da rua, produziu um som
horrendo que jamais pude esquecer. Crime? Suicídio?
Nunca fiquei sabendo ao certo. Mas esse fato, que me im-
pressionou fundamente, um ano mais tarde serviu-me co-
mo ponto de partida para o romance O resto é silêncio
(1943)”. (Solo de Clarineta I
17
, p. 279).
O acontecimento da Rua da Praia permaneceu, durante algum
tempo, fato histórico apenas. Depois adentrou o espaço da representa-
ção artística e passou a tramitar em duas esferas.
Como já afirmamos, o primeiro elo entre a História e a ficção é a
narrativa. O ato de narrar, por parte do sujeito, contém a tentativa de
descobrir-se e ao mundo. O retomar de um fato passado, ao mesmo
tempo em que o reatualiza, revela-se como possibilidade para constru-
ção e ampliação do sentido. Colocada no plano da linguagem, a referên-
cia real é sempre incompleta. E a incompletude da referência aponta pa-
ra a polissemia e para a polifonia que estão nos múltiplos sentidos e
17
A narrativa Solo de Clarineta integra o campo da literatura biográfica. Nela, o au-
tor Erico Veríssimo resgata aspectos da sua vida pessoal e, em alguns trechos,
como o aqui citado, tece comentários sobre a própria produção literária.
52
nas múltiplas vozes que participam do diálogo da vida e da História.
A reurdidura de um fato passado delineia-se como um ato de re-
velação pautado pela eficiência contratualista entre autor e leitor. Para
Paul Ricoeur
18
, é através da leitura, principalmente, que se concretiza
“a referência metafórica, resultante da inevitável fusão de horizontes, o
do texto e o do leitor, e, portanto, a intersecção do mundo do texto com
o mundo do leitor” (p. 121).
O ato da leitura adquire, portanto, dimensão efetiva de presentifi-
cação de sentido e significação, tanto na narrativa ficcional como na
histórica. A utilização de um acontecimento histórico oferece elemento
sedutor ao jogo de significação a ser percorrido. E que pode bem ser
sintetizado pelas palavras do escritor português José Saramago, ao refe-
rir a questão das relações entre História e ficção “o que importa é que
tenhamos, de ambas, uma compreensão duplicada – a do homem pelo
Fato e a do Fato pelo Homem”
19
.
Observada a inserção histórica no romance de Erico, é prerrogati-
va, para a condução da análise e os rumos que ela pretende cercear,
perscrutar a recepção de O resto é silêncio. O processo comunicacional
entabulado pela representação de sete formas de ver uma sociedade a-
vança para o âmbito da crítica literária. A publicação do romance origi-
na uma polêmica que abrange a esfera intelectual e política de Porto
Alegre. A questão se instaura após a publicação de um artigo que “acu-
sa” a imoralidade presente no romance.
O autor do texto é o Padre Leonardo Fritzen, professor de Litera-
tura de um sólido estabelecimento de ensino de Porto Alegre - o Colé-
gio Anchieta. Com o intento de honrar o recém-falecido Getulinho Var-
gas, ex-aluno seu, o professor redige um artigo que dialoga com O resto
18
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas: Papirus, 1994, Tomo I.
19
SARAMAGO, José. História e ficção. Jornal de Letras, Lisboa, nº 400, 1990.
53
é silêncio e oferece, para análise, aqui, o ângulo da recepção especiali-
zada, que despreza “o pacto” proposto após o título: “romance”.
A quebra do pacto instaura uma mudança de foco, relativiza con-
ceitos absolutos de verdade e de totalidade, além de deslocar a idéia de
verdade dos fatos para a idéia de verdade do discurso.
3.3.1 O romance de Erico
A narrativa de O resto é silêncio estrutura-se em quatro seqüências
de ações, que irão compor o enredo: tudo o que precede a queda da mo-
ça, o relato das histórias de vida das personagens que volveram o olhar
para um mesmo fato, as reflexões sobre o ocorrido e a reunião das per-
sonagens em um concerto.
Através das personagens, efetiva-se a reflexão sobre a ação poéti-
ca, uma contemplação da perspectiva literária, a manifestação de diver-
sas vozes e o lugar de onde elas fluem. De certa forma, são discutidas
balizas e núcleos teóricos de teórico-romancista: nessa perspectiva, a
obra é uma reação ao mundo e se elabora na tensão e no drama entre o
sujeito e o mundo.
Não é discurso de salvação ou de harmonia, e, sim, processo ver-
bal por meio do qual se enfrenta a existência e a precariedade desta: o
homem, tomando consciência de sua condição mortal, procura a própria
sobrevivência, que está, acima de tudo, na relação com o outro.
Aspecto relevante é a inserção, como linguagem de liberdade, de
confrontos entre versões de mundo sob o ângulo do olhar de sujeitos
múltiplos. A pluralidade é o resultado das ebulições geradas pela me-
mória de um momento captado pelo olhar. A narrativa é mediadora de
espaços, tempos e mundos. Reúne as oposições ou diferenças, estabele-
cendo-se como mecanismo cognitivo que permite o reconhecimento e as
54
transformações que o leitor efetua.
Nessa direção, o discurso de O resto é silêncio se revela como o re-
sultado de um processo de interação de linguagens, contextos e sujei-
tos; uma espécie de desterritorialização para se chegar a uma re-
territorialização no domínio da linguagem-arte.
Joana Karewska é o fio que tensiona as demais seqüências narrati-
vas. O foco narrativo flui de uma personagem a outra, mostrando o
mundo e os habitantes do mundo de cada uma delas. Em cada núcleo
assomam questões sociais, políticas e morais distintas, que, somadas,
esboçam a sociedade em seus extratos intranqüilos.
A pedra estrutural da trama (Joana) é ponto que erige o contra-
ponto de tipos humanos e suas vidas, em nuances que demarcam cultu-
ra e ignorância, anonimato e posição social, individualismo e solidarie-
dade. Cada núcleo diegético é mostrado fragmentado e isolado na pri-
meira parte da trama, porém a leitura, logo a seguir, revela que os seres
são também fragmentos maiores ou menores de suas próprias vidas.
A ficção, através da personagem Tônio, também se fragmenta para
entabular a discussão sobre a sua própria elaboração. É pela ótica do
escritor a germinar um romance, que são preenchidas todas as lacunas
até então construídas, e que os sete elos adquirem existência isolada.
Ao término da leitura, está esboçado cada um dos perfis que vi-
nham sendo dosados, concluindo-se o traçado de um corte transversal
na sociedade representada. E o leitor, chamado à cena no início, obser-
va o que a ruptura engendrou.
A análise do romance de Erico permite situar a “polifonia do o-
lhar” tanto no nível interno do texto quanto no externo. O resto é silên-
cio deixa visual o seu processo de elaboração, e nesse delineia-se, tam-
bém, o princípio “polifônico do olhar” que vem sendo distendido nessa
tese.
55
3.4 O OLHAR LEITOR: ENTRE MENOCCHIO E FRITZEN
3.4.1 O processo de leitura
A teoria fenomenológica da arte assinala a necessidade de, ao se
observar uma obra-de-arte literária, valorizar não apenas o texto, como
também, em igual medida, os atos de recepção desse texto. A afirmação
recupera a tese de Ingarden, segundo a qual o texto oferece diferentes
“perspectivas esquemáticas”, através das quais aparece o objeto da obra
e, ainda, que a sua verdadeira concretização é um processo. Essa situa-
ção permite a dedução de que a obra literária possui dois pólos: o artís-
tico, vinculado ao autor, e o estético, concretizado pelo leitor.
Essa polaridade afiança que a obra literária não se pode identifi-
car exclusivamente com o texto nem com a sua concretização, uma vez
que é mais que texto, só adquirindo vida em sua concretização; e esta
não é independente das disposições do leitor, mesmo quando tais dis-
posições são ativadas pelos condicionamentos do próprio texto. Nessa
perspectiva, a obra-de-arte surge da interação entre texto e leitor, e
possui “caráter virtual”. A essa virtualidade deve a obra de arte a sua
dinâmica, que, por sua parte, é a condição dos efeitos que produz.
O texto se atualiza mediante as atividades de uma consciência que
o recebe, de maneira que a obra adquire sua autenticidade no processo
de leitura; por conseqüência, “a obra-de-arte consiste na constituição
do texto pela consciência do leitor”.
O processo de comunicação ocorre mediante a dialética entre dito
e não-dito. O não-dito constitui o estímulo para o ato de constituição
textual que, embora controlada pelo dito, transforma-se, atualiza-se no
processo de leitura.
A constituição do sentido é processo de interação entre os textos
56
(e as situações que articula) e o leitor, que ativa a relação entre o texto,
o não-dito e os indicadores individuais do sujeito que lê. Nesse proces-
so, é possível a constatação de que a interação gera modificação cons-
tante, podendo a leitura ser considerada processo permanente de for-
mação.
O processo de leitura produz uma atualização múltipla dos ditos e
não-ditos e, dessa dialética, configura-se o sentido resultante do ato de
ler. Cada leitura define uma atualização individual do texto, na medida
em que o espaço de relações permite novas configurações de sentido.
Uma configuração tem, para cada leitor, um alto grau de determinação,
que surge das muitas decisões e seleções individuais elaboradas no de-
curso da leitura é o “momento criador” que experimenta o leitor do
texto literário, embora essa mesma “criação” individual possa reno-
var se a cada releitura. Desse modo, e até certo ponto, a leitura mani-
festa a inesgotabilidade do texto, que, por sua vez, é condição das sele-
ções de leitura que possibilitam a constituição do sentido.
Uma das questões referentes ao ato de leitura é o efeito do “agru-
pamento” dos sinais estruturais do texto, que não é dado pelo texto,
embora seja uma operação desencadeada por ele, e que surge no instan-
te do contato com o leitor individual. O leitor reage ao que produziu, e
isso dá a possibilidade de perceber o texto como experiência vivida.
Essa implicação significa que a atualização do texto, mediante as
orientações que atuam durante a leitura, ao mesmo tempo em que o
“presentificam em experiência vivida”, a transladam para o passado e
transformam a experiência da leitura em conhecimento que, não mais
sendo novo, passa a influir nas novas orientações recebidas do próprio
e de outros textos. Isso sugere que a leitura está estruturada como uma
experiência do “reconhecido” nas representações do passado, deixando
suspensos seus valores em cada novo presente processado. Nesse senti-
57
do, a leitura oferece a possibilidade de formularmos a nós mesmos me-
diante a formulação do ainda não formulado.
3.4.2 A realidade da ficção
Tomada como estrutura de comunicação, a ficção liga a realidade
a um sujeito que se põe em relação com a realidade precisamente pela
mediação da ficção. Se a ficção não é realidade, não é tanto por não
possuir os predicados necessários da realidade, quanto por ser ela ca-
paz de organizar a realidade de maneira a poder ser comunicada.
Quando se pretende compreender a ficção como estrutura de comunica-
ção, não há por que pretender saber o que significa, e, sim, que efeito
produz: assim se pode conseguir uma via de acesso à função da ficção,
que ocorre pela mediação entre sujeito e realidade.
Para mostrar em que medida a ficção atua como nexo entre o su-
jeito que lê e a realidade comunicada, é preciso descrever o ponto em
que o texto cruza a realidade e aquele em que encontra o leitor: é neles
que o objeto da investigação de um modelo histórico-funcional dos tex-
tos literários se encontra. Essa busca conduz à dimensão pragmática do
texto a relação entre os signos do texto e quem os interpreta.
O uso pragmático dos signos faz referência ao comportamento que
provocam no destinatário, embora não possa abstrair da relação dos
signos entre si nem dos signos com os objetos. Tais considerações con-
duzem a um modelo de atos lingüísticos que, de ordinário, busca des-
crever as condições que garantem o êxito do ato de linguagem. Essas
condições estão igualmente presentes no ato da leitura de textos de fic-
ção, uma vez que a leitura constitui um ato de linguagem, na medida
em que, para que se estabeleça, é necessário um acordo entre o leitor e
o texto ou, em relação ao texto, entre o leitor e o objeto buscado.
58
A investigação das condições constitutivas do ato de linguagem
implica, por conseqüência, a análise dos fatores da relação entre texto e
leitor, que é a condição para que se efetive o ato de linguagem e, tam-
bém, os processos pelos quais a linguagem produz seus efeitos.
Enquanto unidade de comunicação, o ato lingüístico deve condi-
cionar a organização dos signos e o destino da mensagem. Por conse-
qüência, os atos lingüísticos são expressões lingüísticas, enunciados si-
tuados num contexto determinado. As expressões lingüísticas obtêm
seu sentido em seu uso. Desse modo os atos de fala são unidades de
comunicação do discurso, coordenando as frases e as situações, trans-
formando a frase em uma expressão verbal cujo sentido é dado pelo
emprego.
Tomar o modelo dos atos de fala como base para a discussão do
aspecto pragmático dos textos ficcionais significa buscar nesse modelo
os pressupostos heurísticos que expliquem a estrutura comunicativa
dos textos de ficção. A natureza pragmática do texto ficcional surge
quando se atenta para os numerosos contextos que o texto pode assimi-
lar e que permitem situar o destinatário em relação a realidades extra-
textuais.
A interação dialógica entre texto ficcional e leitor necessita de
certas doses de indeterminação para estabelecer-se, pois a indetermina-
ção dá certo impulso à interação postulada. O discurso de ficção segue
o uso lingüístico do ato ilocutivo, porém distingüe-se dele por sua fun-
ção, que é de outra natureza. A destruição dos elementos de indetermi-
nação, necessária para o êxito do ato de fala, está regulada, segundo o
uso lingüístico e pragmático da ação, por convenções e procedimentos;
todas essas normas servem de referência e permitem à linguagem ins-
crever-se no contexto de uma ação.
A destruição dos elementos de indeterminação que acompanha
59
necessariamente a todo ato de compreensão de um texto ficcional não
ocorre por meio de referências preestabelecidas. Trata-se de descobrir
um código subjacente no texto que, em qualidade de referência, incor-
pora o sentido do texto. A constituição desse código é um ato de lin-
guagem por permitir que se realize o entendimento do texto pelo leitor.
A identidade do estatuto lingüístico entre discurso de ficção e
discurso lingüístico tem seu limite em um ponto decisivo: o discurso de
ficção carece de uma situação referencial cuja determinação rigorosa as-
segure ao ato lingüístico sua plena realização. Essa falta não significa
um fracasso por parte do discurso de ficção, mas, sim, serve de ponto
de partida para melhor se captar o que constitui a peculiaridade de tal
discurso a sua função representativa.
No processo de leitura se produz uma retroação constante da in-
formação sobre o efeito produzido. Essa retroação ilumina a imprevisi-
bilidade resultante da denotação dos signos lingüísticos. Eliminar o
imprevisível por uma informação retroativa significa encontrar um sig-
nificado que os significantes não haviam dado e com ele construir um
quadro de compreensão que condiciona a particularidade da perfeição
evocada pelo texto.
A formação da situação, enquanto condição de compreensão do
texto de ficção, ocorre no próprio processo de leitura. A relação entre
texto e leitor se viabiliza pela ação dos constantes efeitos de retroação
da informação, o que gera uma situação dinâmica não imposta de ante-
mão.
Uma qualidade decisiva da interação entre texto e leitor é a pro-
dução de um acontecimento que envolve a realidade. O caráter auto-
reflexivo do discurso de ficção aponta as condições de compreensão pa-
ra a representação que pode produzir um objeto imaginário.
Uma das particularidades do discurso literário é que ele dá uma
60
informação diferente a diversos leitores; a cada um, segundo sua com-
preensão. Dá ao leitor, também, uma linguagem a partir da qual poderá
assimilar a porção nova de dados no curso de uma releitura, compor-
tando-se como um organismo vivo unido em retroação ao leitor, ao qual
instrui.
Postula, então, o texto literário, que o leitor produz e transforma
conhecimentos. Na leitura aparece uma multiplicidade de possibilida-
des para acesso ao texto, de natureza perspectivista, uma vez que a to-
talidade do texto não se pode realizar em um único momento. Essa limi-
tação faz surgir novas perspectivas, as quais acarretam o aparecimento
de um contexto referencial que provoca mudanças de atitude.
O texto ficcional apresenta o inconveniente de não poder dispor
previamente de uma situação contextual e necessitar construir seu sen-
tido a partir do que ele mesmo oferece em sua leitura. Para isso, são ne-
cessários elementos próprios do texto: o r.0102do a parti Tcs etruatégi5.6(a)4-04(s a(p5.7(ar parti)]TJ-29.235 01.865 TD0.0833 Tc-0.00106Tw[(ce)d)4.9(tmnt)5.6(ors) a tealiz)aão
61
que esboça de modo intersubjetivo: o domínio imaginário das realida-
des deficitárias.
3.4.3 Dois leitores e seus olhares
A leitura das narrativas de Carlo Ginsburg e Erico Verissimo, O
queijo e os vermes e O resto é silêncio, respectivamente, desvela eixos co-
muns, que são representados de modos distintos em termos de estrutu-
ração: a presença da referência real e a problematização do significado
que essa referência pode gerar no processo de leitura. Há que observar,
contudo, que esses eixos sustentam-se na estética da recepção.
A recepção diz respeito ao modo como os textos têm sido lidos e
assimilados nos vários contextos históricos. A perspectiva recepcional
visa, portanto, a identificar claramente as condições históricas que
moldaram a atitude do receptor em um período específico da história,
numa determinada circunstância em que juízos sobre literatura foram
transmitidos.
O objetivo primordial desse tipo de estudo consiste na reconstru-
ção das condições históricas responsáveis pelas reações que a literatura,
tomada em sentido amplo, podia provocar. O efeito que um texto pode
produzir, no quadro da relação dialética entre texto e leitor, embora de-
sencadeado pelo texto, é o ponto chave para uma teoria do efeito estéti-
co.
A criação de uma estética da recepção e de uma teoria do efeito
estético está diretamente vinculada à situação da literatura nas univer-
sidades alemãs, no século passado, no final dos anos cinqüenta e início
dos sessenta, tendo sido impulsionada por essa circunstância, que colo-
cava em discussão o problema da interpretação aliado ao impacto polí-
tico das revoltas estudantis. Na Alemanha do pós-guerra indagava-se
62
acerca do passado do país e questionava-se o modelo universitário vi-
gente.
Para justificar por que a literatura ainda podia constituir um obje-
to de estudo importante na educação, foi necessária a mudança de pa-
radigma. Em lugar da mensagem e do sentido, a recepção da literatura e
seu efeito sobre o leitor se tornaram as principais questões. Não se tra-
tava mais de determinar o que o texto significava, porém o que incitava
nos receptores. Mas se algo acontecia ao receptor mediante a leitura de
um texto literário, três pontos básicos precisavam ser investigados.
O texto consistirá em um tipo de evento que ocorre quando esse
texto é processado no ato de leitura?
Em que medida as estruturas do texto prefigurariam o seu proces-
samento pelo leitor, em que medida este teria, de fato, mobilidade, livre
trânsito, ao processar o texto?
Qual a relação potencial de um texto literário, tanto com o contex-
to sócio-histórico em que foi produzido quanto com a disposição que
reclama dos leitores?
Ao se admitir que o texto precisa ser processado pelo leitor no ato
de leitura, o intervalo entre texto e leitor adquire importância crucial.
A interação envolvida nesse processo resulta em um jogo entre o dito e
o não-dito. A indeterminação, em graus variados, impulsiona a ativida-
de de constituição do sentido, porém sob controle do que está expresso.
Desse modo, o significado do texto resulta de uma retomada ou
apropriação daquela experiência que o texto desencadeou, e que o leitor
assimila e controla, segundo suas próprias condições. Lacunas e nega-
ções impõem uma estrutura peculiar a essas atividades constitutivas do
processo de leitura e, ao mesmo tempo, estimulam o leitor a suprir o
que falta.
63
As lacunas, enquanto conexões sonegadas, indicam antes uma ne-
cessidade de combinação, que de complemento. A ausência de certas re-
lações estimula a atividade ideacional do leitor, que precisa reagir não
apenas às instruções dadas no texto, mas, também, aos resultados de
sua própria atividade, o que transforma essas lacunas em pré-condição
fundamental da comunicação.
As lacunas ocasionam uma inversão entre figura e fundo (ou tema
e horizonte). Com isso, os segmentos textuais são observados de ângu-
los que variam, tornando tangíveis aspectos de texto que de outro modo
ficariam ocultos. As lacunas e negações conferem ao texto ficcional uma
densidade característica, por meio de omissões e cancelamentos, reve-
lando traços não ditos. Ao texto formulado e verbalizado, corresponde
uma dimensão não formulada, não escrita: essa duplicação é chamada
negatividade.
À negatividade podem ser conferidas três características: a pri-
meira, de natureza formal, contribui para a compreensão, que é facili-
tada pelos atos constitutivos do processo de leitura. A segunda caracte-
rística está relacionada ao contexto e a terceira está ligada à comunica-
ção, e é uma estrutura capacitadora.
A negatividade exige um processo de determinação que só o leitor
pode implementar, e isso confere ao texto um matiz subjetivo que lhe
permite fazer sentido em diversos contextos históricos. A obra literária
deixa de ser considerada um registro documental de algo que existe ou
já existiu, mas, antes, se revela como a reformulação de uma realidade
identificável, reformulação que introduz algo que não existia antes.
A narrativa de Ginsburg presentifica um julgamento do Santo Ofí-
cio. O escritor do ensaio traduz o que sua leitura desvelou. O mundo
descrito é o da oralidade, sendo o popular a fonte primária da narrativa
e estando presentes a subjetividade, o arbítrio, o choque cultural entre
64
a alta cultura letrada, religiosa, e a incipiente (se comparada à do jul-
gador) do julgado.
O texto está construído em planos que evidenciam a ambientação
da narração, as personagens que a instauram e a ação que envolve os
dois primeiros; e, ainda, dispersa no todo, surpreende-se a sensação
que o texto rastreado historicamente despertou.
Um primeiro plano poderia ser o da leitura, em suas característi-
cas mais peculiares, inserida na narrativa como uma quase-personagem
que, além de ter vida própria, dá ou tira a vida dos demais. No segundo
plano está o homem, que é distinto, ser que àquele espaço e àquela gen-
te se assemelha e deles difere, e com a qual convive satisfatoriamente, e
o outro, o invasor, que, a título de defender seus ideais religiosos, aden-
tra aquele universo e cerceia o olhar e a voz.
Interessa observar que a narrativa de O queijo e os verm es é bastan-
te posterior aos fatos narrados e, não obstante, Ginsburg consegue
“(re)documentar” as fontes que estruturam o ensaio.
O “projeto do historiador” busca a “verdade” do julgamento, mas
a escrita revela uma “realidade” diferente daquela do plano inicial. A
memória dos fatos como que impinge outra conotação aos acontecimen-
tos, e o que devia ser uma reelaboração dos autos do processo que julga
um herege, pela escrita, avoluma-se para o leitor como um momento da
vida de um leitor condenado pela significância que atribuía aos textos a
que tinha acesso e que “teimava” em partilhar com membros de sua
comunidade.
A distância dos fatos narrados não elimina a ressonância da voz
de Menocchio, ao contrário, reforça-a pela palavra de Ginsburg. O fato
histórico transmuda-se em história de vida, hibridiza ficção e História,
constitui novos efeitos de leitura.
Em Verissimo a pauta é outra. O texto-origem da polêmica causa-
65
da pelo processo de leitura é um romance e, como tal, não tem compro-
misso com a verdade.
A distinção entre real e ficcional leva a pensar em “capacidade do
ficcional”, uma vez que o fictício não é igual à obra literária, mas a pos-
sibilita. Essa capacidade, por sua vez, conduz ao conceito de interação
como meio para descrever o tipo de relação existente entre o fictício e o
imaginário, bem como evidenciar os atributos de um e outro, assim co-
mo o fato de servirem de contexto um para o outro (e considerando que
o fictício remete ao texto e o imaginário evoca o leitor).
O fictício e o imaginário existem como experiências cotidianas; a
especificidade da literatura, o traço que a distingüe como meio, consiste
no fato de que é produzida mediante uma fusão do fictício e do imagi-
nário. Fictício e imaginário não são condição para a literatura, mas se
ela emerge da interação entre ambos é porque também nenhum dos dois
pode ter seu fundamento definitivamente esclarecido: a tentativa de
mostrar que o fictício e o imaginário são componentes básicos da litera-
tura envolve um problema metodológico é impossível afirmar que o
fictício e o imagináriosão como se definem e, assim, só podem ser
apreendidos mediante a descrição operacional das suas manifestações,
ou seja, só é possível concebê-los em termos de atividade.
Essa atividade (ato) surge da interação entre o fictício e o imagi-
nário. Uma interação que funciona como matriz geradora da qual emer-
ge a literatura. O fictício é caracterizado, desse modo, por uma traves-
sia de fronteiras entre os dois mundos, que sempre inclui o mundo que
foi ultrapassado e o mundo-alvo a que visa. Os atos dessa interação (os
atos de fingir) são componentes básicos do texto literário e se distin-
güem entre si pela natureza da duplicação que efetuam.
Três atos são discerníveis em todo texto literário: a seleção, a
combinação e a auto-evidenciação (ou autodesnudamento). O ato de se-
66
leção cria um espaço de jogo, pois faz incursões nos campos de referên-
cia extratextuais, transgredindo-os ao incorporar elementos dos mesmos
ao texto e dispondo-os em significativa desordem. Invade igualmente
outros textos, produzindo a intertextualidade. A associação dos textos
aumenta a complexidade do espaço de jogo, pois alusões e citações ga-
nham nova dimensão, tanto no que se refere ao seu contexto de origem
quanto em relação ao novo contexto em que se inserem. Ambos os con-
textos permanecem potencialmente presentes, há uma coexistência de
diferentes discursos, que revelam seus respectivos contextos.
A estrutura evidenciada no ato de seleção também salienta o ato
de combinação. Neste, as fronteiras atravessadas são intratextuais, va-
riando de significados lexicais as fronteiras transgredidas pelos prota-
gonistas. Os agrupamentos se inscrevem mutuamente uns nos outros:
cada palavra se torna dialógica, cada campo semântico é duplicado por
outro.
Por fim, o autodesnudamento da ficcionalidade literária ocasiona
um ato de duplicação peculiar. O “como se” a evidenciação de que al-
go deve ser tomado apenas “como se” fosse aquilo que designa indica
que o mundo representado no texto deve ser visto apenas como se fosse
um mundo, embora não o seja. O mundo textual não significa aquilo
que diz.
Visto exceder o que é, a ficcionalização revela uma intenção que
não pode ser controlada por essa mesma operação ou por aquilo a que
visou. O fictício depende do imaginário para realizar plenamente aquilo
que tem em mira, pois o que tem em mira só aponta para alguma coisa,
alguma coisa que não se configura em decorrência de se estar apontan-
do para ela: é preciso imaginá-la.
O fictício compele o imaginário a assumir forma, ao mesmo tempo
que serve como seu meio de manifestação. Isso implica no fato de que
67
“os atos de fingir descortinam um horizonte de possibilidades para o
que é, permanecendo, nesse sentido, ligados a realidades. Mas realida-
des são concretas e possibilidades permanecem abstratas, pois resulta-
ram de uma travessia de fronteiras, não podendo ser modeladas por
aquilo que excederam”.
Em outras palavras, o imaginário, chamado à presença por atos de
fingir, constitui um ato de anulação. Assim, o espaço de jogo, aberto
pelos atos de fingir, ganha tangibilidade. O que foi invalidado todo
espectro dos campos referenciais é relegado ao passado, e a motivação
para tal mudança torna-se o novo presente. Este só pode ser imaginado
sobre o pano de fundo do que foi cancelado, pois tais atos de imagina-
validaitsm”.
68
ação, sem a qual este permaneceria inerte. Como transpasse de frontei-
ras, a ficcionalidade é um ato puramente consciente, cuja intencionali-
dade é pontuada por indeterminações.
As possibilidades não podem ser deduzidas exclusivamente do
que é; podem, sim, tornar-se um horizonte para dadas realidades, e
quando isso acontece, a realidade em questão não permanece a mesma
e, nesse contexto de contínuo desdobramento, a interação fictício-
imaginário aponta para uma profunda implicação antropológica.
O resto é silê ncio, que se pauta pelo contrato romanesco, origina
um julgamento oriundo da publicação de um artigo sobre o romance. O
fato real que permeia a narrativa “passa batido” pelo leitor aqui em
questão. Imbuído pela emoção da proximidade dos fatos narrados, o
padre Leonardo Fritzen desconsidera a prerrogativa ficcional e efetua
uma leitura ideológica. Absorve a representação artística como verídica
e reproducente de segmentos sociais e, pela escrita, ataca texto e autor.
A leitura do padre Fritzen imprime foros de verdade a um texto
ficcional, dialetiza História e ficcção e gera fontes sobre significados de
leitura. Ao cabo da polêmica, diluiu-se o salto real (de Joana) e aden-
sou-se o efeito de real ou o impacto que um texto pode produzir.
A polêmica articula a discussão sobre como compreender a litera-
tura em sua relação com a ambiência cultural em que foi produzida e
aquela em que o leitor se encontra.
O processo de interpretação de uma obra tem como agente signifi-
cador o público a que se dirige. É esse agente que dinamiza e ressignifi-
ca o discurso. A concretização da leitura de Fritzem implode as frontei-
ras teóricas entre texto artístico e realidade histórica. O ato de ler e
constituir sentido do professor de literatura vincula o narrado à cidade
de Porto Alegre e percebe e julga como imoral o texto artístico (e até o
autor).
69
A posição ocupada pelos dois leitores aqui recortados, Ginsburg e
Fritzen, os caracteriza como leitores especializados. Ambos conhecem
as especificidades dos discursos que têm diante de si. O efeito de leitu-
ra, não obstante, é definidor de uma característica cada vez mais acen-
tuada: a construção discursiva se metamorfoseia constantemente na a-
ção do leitor. E a expressão dessas leituras renova a significação: se
Ginsburg, mergulhado em arquivos-fontes, erige um ser subjetivo, e
Fritzen, envolto com a ficção, transforma o verossímil em real, que o-
lhares mais, e vozes outras podem se estar concretizando?
Uma segunda questão encaminhada em O queijo e os vermes e em O
resto é silêncio é o ato de censurar vozes que se contrapõem a princípios
católicos: diretamente ao questionar dogmas com Menocchio e, indire-
tamente na representação de um segmento religioso, através da perso-
nagem Marcelo, em Erico. Apesar da distância temporal – 1755/1943 –,
o leitor encontra, na polêmica do julgamento de Menocchio (que fala) e
da querela Fritzen-Erico (e o que escrevem), resquícios da dimensão a-
tribuída ao poder da linguagem.
3.5 FRONTEIRAS: ALGUNS LEITORES-SUJEITOS DA
HISTÓRIA
As duas obras destacadas permitem observar a mobilização de um
saber que não é estanque. O conhecimento dos narradores viaja sobre si
e sobre os outros pelo recurso da memória. O deslocamento é muito
menos espacial e muito mais profundo: adentra e perscruta ausências,
vácuos, descobre sujeitos e seus mundos individualizados. O olhar não
percorre apenas o horizonte à frente, é múltiplo.
Em O queijo e os vermes, o narrador especula o espaço do antigo-
novo. O olhar é do historiador, que encontra, pesquisa, é surpreendido
70
e, enfim redimensiona o achado. O ser do arquivo se desdobra sob o
prisma surpreendente de sua própria voz, redinamizada pela voz do
historiador.
A narrativa tece uma história de vida, mas reflete sobre o tempo e
as origens: a memória apresenta uma concepção maior de História a
pessoal, do minúsculo, que espalha luz sobre a factual. A Inquisição, a
religiosidade experienciada em uma comunidade italiana existem sob a
ótica memorativa do narrador que conta um sujeito – Menocchio – en-
volvido por outros tantos que ganham contornos e delineiam o ser “di-
ferente”.
A temática é identitária e cultural; a viagem histórica é espacio-
temporal e mnemônica. O narrador historia ensaisticamente um duplo:
o moleiro e as singularidades de seu pensamento, em busca da constru-
ção de uma identidade religiosa, fundam a História com subjetividades
artísticas. É tentando o mergulho no passado, cerceando nuances cultu-
rais, rompendo os limites entre o falso e o verdadeiro, diluindo as fron-
teiras entre o histórico e o literário, intercalando fragmentos de uma
voz autobiográfica em discurso de viés científico que o texto acultura.
A leitura é sempre um olhar a mais.
O mesmo rastrear do passado é foco e mote no texto de Erico Ve-
rissimo, mas o pacto textual é outro. A personagem Joana delimita a
busca de identidades ficcionais. Os dois narradores fazem uso de “um
espaço da memória”. Estão ambos situados em relação ao presente: sa-
bem onde estão e suas fontes são explícitas. Oferecem, ambos, histórias
de vida: os sujeitos, esses são únicos.
A escritura desses “outros”, que as leituras deslocam continua-
mente entre áreas do conhecimento distintas, deslinda um novo espaço-
tempo: as fronteiras todas podem ser rompidas, a volta ao passado, o
deslocamento em direção às origens e o resgate da ausência incorporam
71
o experimentado pelos sujeitos (reais), permitindo avançar. A constru-
ção de identidades desnuda a opção pelo ser. Os sujeitos das escritas-
leituras – Ginsburg, Menocchio, Erico, Joana, Fritzen, etc. – humanizam
a ficção e deixam rastros na História.
A escrita e as leituras elaboram viagens unas ao íntimo da His-
tória e ao histórico da ficção que são, paradoxalmente, espaço da cri-
atividade e da liberdade. Elas são o percorrer e o espaço percorrido en-
quanto passagem de um ser real ao que é memorado pelo “ir à intimi-
dade”. Nela os homens-personagens ficarão suspensos em si. Perderão
de vista as margens e serão conduzidos pelos blocos da memória, que se
desprendem arbitrariamente.
O principal desafio que se lhes apresenta é o de ultrapassar os li-
mites da ida e percorrer o caminho da volta, ou seja, realizar a ruptura
com o presente, reconstituindo o passado, e amarrar os fios do presente
ao transmudado em lembranças, mediante a instauração do diálogo.
O leitor processa a alquimia das impressões ilhadas em tempos e
espaços estanques e encontra sujeitos indubitavelmente verdadeiros.
Não é apenas ato de conservar vestígios na memória, mas, sim, de uni-
los ao presente, revigorando-os e reanimando-os.
Os textos evidenciam que a interface ontem-hoje é situação-limite:
o sujeito que o leitor passa a conhecer existe quando já não é. E esse jo-
go de existir assinala a impossibilidade das certezas indiscutíveis: sem-
pre haverá outro.
No tocante aos gêneros, o hibridismo é evidente. Apesar de bas-
tante frágeis, as fronteiras entre os discursos literário e historiográfico
se fundem em pactos de leitura. As estruturas textuais situam no núcleo
diegético seres com nome, sobrenome e endereço. Há a reconstrução da
vida (ou estilhaços dela), há registros escritos de tempos e espaços. E
há uma ação principal: contar.
72
A atividade seletiva dos narradores imprime às obras ora subjeti-
vidade, ora intenção de objetividade. O jogo entre elas manipula as
fronteiras que dividem os gêneros. O texto, feito diálogo, interage com
o leitor. As obras se atualizam mediante as atividades de uma consciên-
cia que as recebe e, desse modo, e até certo ponto, a leitura manifesta a
inesgotabilidade dos textos. Cada leitura define uma atualização indi-
vidual, na medida em que o espaço de relações permite novas configu-
rações, num inacabamento vitalizador de sentidos que reitera a propo-
sição da “polifonia do olhar”.
4 O “OLHAR VIAJANTE”
O romance Terra papagalli oferece ao leitor o olhar do es-
tranhamento e, através dele, desloca e aproxima, pela perspec-
tiva renovadora da “polifonia do olhar”, momentos espacio-
temporais de caráter histórico muito distinto: o período das
grandes descobertas marítimas e a atualidade.
Épocas houve em que as narrativas visitavam novos
mundos, buscavam o outro seres e continentes. O século
XVI, principalmente, foi marcado pela intensa atividade marí-
tima. A viagem era tema constante, os horizontes visualizados
eram ricos, diferentes, distantes. Narrar, então, significou des-
cobrir e fundar espaços e identidades.
Contar o outro denota um processo intencional. O ato de
ver é processo de percepção natural. Olhar pode ser conside-
rado opção. Uma distinção opaca afirmaria que o ser passivo
vê, e o curioso olha. E os dias atuais exageram na atividade de
olhar o outro (um caso típico é a repetição midiática do pro-
grama televisivo BBB).
O viajante poderia ser, inclusive, considerado o curioso
ideal: ampliados os espaços, é o sujeito que esboça mundivi-
74
dências. A história e a literatura têm um profuso arsenal de
textos que desvenda, registra, identifica, nomeia e dá posse a
territórios e sujeitos. O olhar viajante detinha o poder de de-
limitar o visto, estabelecia fronteiras e horizontes através da
palavra escrita. Os roteiros, os diários de bordo, as cartas atu-
am como um espaço memorialístico consciente sobre ideologi-
as, trajetórias, destinos e “achados”.
Um desses “textos-certidão-de-nascimento” é a Carta de
Pero Vaz de Caminha
20
. A narrativa do escrivão da esquadra
portuguesa comandada por Pedro Álvares Cabral dá conta de
fundar um território e descrevê-lo aos senhores portugueses. A
carta instaura um diálogo entre terras distantes; reporta em
detalhes a viagem de Pedro Álvares Cabral: desde a partida de
Lisboa (a 9 de março de 1500) até o dia 22 de abril de 1500,
marco da chegada ao Brasil, e o que acontece entre o período
de oito dias até que a carta seja remetida ao rei de Portugal. A
Carta segue para Portugal e Caminha continua a viagem para
as Índias.
A Carta de Caminha entra para a história oficial de Por-
tugal como registro da existência de um novo continente. E,
com o advento dos quinhentos anos do Brasil, a literatura des-
loca o foco de um olhar premeditado já desde a origem. O tex-
to Terra papagalli
21
reencena o descobrimento sob um viés bas-
tante em voga na contemporaneidade: o do riso.
20
A Carta, aqui, interessa apenas como referência intertextual e não será
objeto de análise.
21
O romance de José Roberto Torero e Marcus Aurélius Pimenta foi edi-
tado em 1997.
75
4.1 O RISO NO OLHAR
A questão do riso permeia o campo artístico e filosófi-
co
22
. A abordagem analítica do texto Terr a papagalli vai fundar-
se na proposta de Mikhail Bakhtin sobre o riso. Para o teórico,
que estuda o contexto da obra de Rabelais, o riso tem uma sig-
nificação positiva e reestruturadora; é observado como dotado
de poder transformador e capaz de catapultar o novo.
A proposta bakhtiniana acerca do riso explora os concei-
tos de dualidade da vida e de ambivalência. Coexistem nela as
idéias de destruição e de recriação. A reestruturação ocorre
por meio do excesso de idéias e ou de imagens. O riso subverte
através da noção cíclica do tempo. Vinculado às festas popula-
res relacionadas às estações do ano, festeja a novidade; olvida
o antigo e ri para o futuro. Ele oferece a utopia e a esperança
através da inversão. Alterna a alegria e o sarcasmo. A alegria é
coletiva, expõe a contradição da vida-morte-nascimento. O
sarcasmo é particular, reflexivo e reordenador de ideologias.
O aspecto festivo alavanca a idéia de um embrião para o
novo concebido. E essa idéia de mudança permite reflexões a-
cerca do riso e da verdade. No caso da análise aqui proposta, o
riso ultrapassa a seriedade da verdade histórico-documental e
erige uma verdade baseada em aspectos da percepção contem-
porânea, que acredita no homem altamente corruptível e até
excessivamente “cordial”.
O momento da comemoração de quinhentos anos, acom-
panhando a dinâmica da perspectiva histórica, é remoldado
22
O riso como aspecto teórico é estudado por autores como Bergson e
Propp (que situam o riso cômico), Bakhtin (o grotesco em Rabelais),
Verena Alberti (evidenciando as relações entre riso e pensamento) e
Georges Minois (que propõe uma visão do riso na contemporaneida-
de).
76
pela literatura. O período contemporâneo é descrito, em meio
a controvérsias, por “teorias incompletas sobre algo que está
acontecendo, mas não se sabe o que é” (FRIEDMAN, p. 11). O
momento é de debate aberto e até as denominações para o pós-
modernismo
23
, entre aqueles que acreditam que ele existe, são
distintas: “modernização reflexiva”, “radicalização da moder-
nidade”, “pós-modernidade”, entre outras designações, deno-
tam ora a continuidade em relação à época intitulada moder-
nidade, ora a ruptura com ela.
É característica e condição desse momento contemporâ-
neo a fluidez dos referentes. A parcialidade, a multiplicidade e
a polifonia provisória das coisas embargam os campos do co-
nhecimento e transformam as imagens do passado conforme o
olhar-sentido lançado sobre ele. A angústia da incerteza, após
quinhentos anos, desencadeia o movimento de buscar nova-
mente a origem, dessacralizando e parodiando: o riso assume o
leme da viagem em Terra papagalli, e encontra o europeu que
chegou ao Brasil.
4.2 A PARÓDIA: O “OLHAR
PAPAGALLI”
A pós-modernidade não confunde os termos passado e
história, pois, embora ambos os conceitos remetam ao tempo
que foi, ao denominado tempo vivido, a história é passado or-
ganizado, mas não todo o passado, apenas uma parte dele,
uma seleção, um ajuste com os fatos.
23
Alguns nomes desse embate são Frederic Jameson, Zygmunt Baumam,
Jean Baudrillard. Eles propõem visões distintas, mas coincidentes
quanto ao elo fundamental da contemporaneidade entre mercado e
cultura.
77
A história autoriza-se o ilogismo de tomar uma parte pe-
lo todo e comete a proeza de fazer-se aceitar, pelo menos nos
traços gerais, como indiscutível e inabalável. A invenção do pre-
sente, portanto, depende dessa incursão a esse passado infor-
me
24
, pleno, solto, descontínuo, orientada pela intenção de ree-
xaminá-lo, de reordená-lo, de reavaliá-lo. Essa visão crítica e
consciente do passado ajudar-nos-á a compreender melhor o
presente e fornecer-nos-á dados para construirmos um futuro
diferente.
O passado é um tempo a ser questionado e resgatado pe-
la história e pela literatura. “O cronista que narra os aconteci-
mentos sem distinguir entre os grandes e os pequenos, leva em
conta a verdade de que nada que um dia aconteceu pode ser
considerado perdido para a história”
25
.
Embora o discurso literário possa também documentar,
não é esse o seu objetivo. Ele não se confunde com o discurso
histórico porque tem como uma de suas características a des-
preocupação com a verdade. A preocupação do discurso literá-
rio é a verossimilhança, embora as demarcações entre os dois
discursos o literário e o histórico não sejam sempre tão ní-
tidas em virtude de as contaminações entre ambos serem a-
bundantes. É necessário considerar que a dialética existente
entre o falso e o verdadeiro é diferente da que existe entre o
real e o imaginário, visto que a primeira é de ordem lógica, e a
segunda, ontológica. A relação entre o real e o imaginário na-
24
Os termos em itálico foram empregados por José Saramago no ensaio
“Sobre a invenção do presente”. Jornal de Letras, Lisboa, n.317, 1989, p.
45.
25
BENJAMIN W. Sobre o conceito da história. In: Obras escolhidas: magia
e técnica, arte e política. 7. ed.São Paulo: Editora Brasiliense, 1994. v.I.
p.224 225.
78
da tem a ver com a verdade, apenas com a verossimilhança in-
terna.
Para mais, há convenções comuns à ficção e à história,
como a seleção, a diegese, a anedota, o ritmo temporal e a ela-
boração da trama, embora não façam parte da mesma ordem
do discurso. Tanto numa quanto noutra são constituídos sujei-
tos e mundos possíveis de representação narrativa. A própria
convencional oposição binária entre ficção e fato já não se con-
sidera relevante, pois passa a importar o espaço entre as duas
entidades. História e ficção podem ser percebidas com foco no
parentesco, uma e outra como formas de mediar o mundo e in-
troduzir o sentido.
Adentrando esses caminhos, o ficcionista penetrará no
campo da história e, de modo ousado e crítico, irá preenchen-
do lacunas, entretecendo dados históricos num discurso fic-
cional predominante, discutindo valores culturais, políticos e
sociais, através da multiplicidade de vozes, o que lhe permiti-
rá observar os fatos de vários ângulos. Essa ação do ficcionista
e o efeito dela caracterizam a nova maneira de relacionar-se
com a história que Linda Hutcheon denominou de “metaficção
historiográfica”. Diz a autora:
“A metaficção historiográfica refuta os métodos
naturais, ou de senso comum, para distinguir
entre o fato histórico e a ficção. Ela recusa a
visão de que apenas a história tem a pretensão à
verdade, por meio de questionamentos da base
dessa pretensão na historiografia e por meio d a
afirmação de que tanto a história como a ficção
são discursos, construtos humanos, sistemas de
significação, e é a partir dessa identidade que
as duas obtêm sua principal pretensão à verda-
de” (1989, p. 163).
79
O discurso da metaficção historiográfica tem como carac-
terística, ainda, a auto-referencialidade, ou seja, a constante
alusão a sua própria situação discursiva. A metaficção histori-
ográfica elimina a ilusão da narrativa que se narra por si mes-
ma, deixando claros ao leitor os mecanismos de composição de
que se constrói.
Para Hutcheon (2000), outra forma pós-moderna de “in-
corporar literalmente o passado textualizado no texto presente
é a paródia”. A paródia entendida como modo de dessacralizar
e questionar o passado. Para a teórica, essa modalidade dis-
cursiva tem sempre um caráter positivo, pois, ao renovar, pro-
cura extrair do já estabelecido outras verdades, instalando, as-
sim, a dúvida sobre os valores tradicionais e a possibilidade
de transformação do presente. Parodiar é recusar e esvaziar, é
dessacralizar sem descrer, pois só se discute e se leva em con-
sideração aquilo em que se acredita. A paródia tem um ingre-
diente altamente criativo e original, recusa e esvazia o modelo
original para recriar e preencher um modelo que lhe é próprio.
A paródia vai buscar a verdade dos ex-cêntricos
26
, da mi-
noria, dos vencidos, daqueles que não entraram para a história
oficial, uma vez que a versão oficial é sempre produzida pela
classe dominante, sendo os fatos históricos deformados por e
em função dela, cabendo sempre ao povo o papel de colabora-
dor passivo.
26
Termo usado por Linda Hutcheon, que dá a essa excentricidade um du-
plo sentido. Por um lado, são as personagens colocadas à margem da
história oficial e, por outro, os literalmente ex-cêntricos, isto é invul-
gares, tirados do mundo da ficção e (re)colocados na ficção.
80
A crítica e a ironia
27
utilizadas pela paródia pretendem
demonstrar que o destino do homem não está determinado, e
é, sim, passível de transformações. Um dos paradoxos obser-
vados por Hutcheon, sobre a literatura pós-moderna, é seu
caminho de mão dupla: ao mesmo tempo intensamente auto-
reflexiva e paródica, e mesmo assim firmando-se naquilo que
constitui um entrave para a reflexidade e a paródia o mundo
histórico. O pesadelo da história apresentado pelo modernis-
mo é exatamente o que o pós modernismo decidiu enfrentar.
A narrativa de Terra papagalli, de José Roberto Torero e
Marcus Aurelius Pimenta, notabiliza-se na literatura atual por
delinear um discurso ficcional que pode ser concebido como
paródico e intensamente irônico e auto-reflexivo. A narrativa,
de estrutura ambivalente, que congrega os registros de discur-
so de investigação histórico-literária com os da historiografia,
desde o início apresenta um diálogo crítico-irônico com a nar-
rativa da Carta de Caminha, seu duplo quinhentista.
A carta parodiada descreve as terras descobertas, em vir-
tude do acaso, ao rei de Portugal. Terra papagalli nomeia-se no
“Agradecimento a meus dentes” como carta, “Eu porém como
estou a escrever uma carta...”, mas tem um objetivo diferente,
claramente expresso na conclusão “Que conclui tudo”: “É esta,
senhor, a história que quero que leia e faça chegar às mãos de
meu filho Vasco Brandão, que não são outras que não as tuas,
27
Hutcheon salienta que o exercício da ironia está relacionado à posição
de quem a exerce. Afirma que o discurso irônico será visualizado co-
mo revolucionário ou conservador conforme o espaço ocupado por
uma determinada comunidade discursicva. Essa flexibilidade, segundo
a teórica, oferece a disposição transideológica da ironia - “a ironia
pode ser provocativa quando sua política é conservadora e autoritária
tão facilmente quanto quando sua política é de oposição e subversiva:
depende de quem a esta usando/atribuindo e às custas de quem se a-
credita que ela está funcionando” (2000, p. 34).
81
caro conde, pois como já deves ter percebido, és aquele filho
gerado entre os doces e compotas da casa de teus avós....” (p.
188).
A narrativa, em primeira pessoa, mescla gêneros discur-
sivos diferentes, imbrica carta e diário “Diário de viagem de
Cosme Fernandes, que mui destemidamente atravessou o mar
82
mudou-se para Portugal, onde despertou a inveja que deu ori-
gem a boatos de que a família guardava o sábado e recitava
orações judaicas. Para fazer frente aos boatos, o comerciante
achou por bem mandar o filho fazer-se clérigo e assim, com
doze anos, Cosme Fernandes é enviado para o mosteiro de
Bismela.
Já com dezenove e, se não religioso de fé fervorosa, ao
menos capaz de apreciar as fábulas da religião cristã a ponto
de sentir prazer em leituras, é levado por um dos confessores
do mosteiro até a residência de uma nobre família com o intui-
to de auxiliar o magister Videira no trabalho das confissões.
Após lauta refeição, enquanto a dona da casa se confessa,
Cosme encontra Lianor, filha dos donos da casa, e se deixa se-
duzir.
Na manhã seguinte, já no mosteiro, o futuro clérigo é
chamado para explicar uma falta. Sem saber que o prior queria
explicações a respeito de uma rosquinha de alfenim faltante
entre as enviadas pela mãe da moça que junto delas colocara
um bilhete dizendo serem doze rosquinhas, como eram doze os
apóstolos do senhor , Cosme precipita-se e confessa o pecado
da luxúria, afirmando ser o único culpado.
É expulso do mosteiro e preso para ser enforcado. As in-
fluências do pai poupam-no da forca, mas não o livram da
condenação ao degredo nas Índias. Antes de partir, fica saben-
do que os pais perderam tudo tentando libertá-lo e foram
mandados para Flandres. E, ainda, que a família de Lianor está
à procura de um marido para a filha grávida.
Em março é embarcado, com mais vinte e um degreda-
dos, na caravela de Pedro Álvares Cabral, “fidalgo que jamais
capitaneou um barco mas que está a comandar a maior esqua-
83
dra já reunida em todos os tempos, com treze naves muitíssi-
mo bem armadas” (p. 25).
Os trechos que integram a parte intitulada “diário” são
ricos em intertextos “para que não me tomassem por parvo, ci-
tei Ptolomeu Antíoco, que escreveu que o globo terráqueo flu-
tua mergulhado n’água pela metade...” (p. 31), e “Santo Ernul-
fo observou no final do tomo I da Opera Stultorum que a mono-
tonia é mãe do desespero, e posso afirmar que não há tonteira
nessa afirmação. A falta do que fazer está a deixar-me louco...”
(p. 32). E, mais adiante, “Hoje esse fruto é o deleite dos colo-
nos e muito apreciado na Europa, onde o chamam de cocos,
mas muito mais certo seria se o chamassem de maná, pois
também ele caiu do céu para alimentar o povo de Deus”(p. 51-
52).
O diário narra a chegada à terra nova, “que o capitão
Cabral deu por bem nomear Vera Cruz”: Era o dia 22 de abril
de 1500:
Subi até o cesto da gávea e então aconteceu algo
de que muito me orgulho e demonstra que o Al-
tíssimo, ao menos uma vez, voltou seus grandes
olhos para mim. E foi isso que avistei ao longe o
cume de um monte e depois dele, logo atrás u-
mas serras. Com toda força gritei então “Terra
à vista!” (p. 37).
E o primeiro contato com os habitantes da terra no dia 23
de abril:
“Olhando então com mais cuidado para a praia,
vi umas criaturas semelhante s a macacos, que
andavam muito eretas e apo ntavam para nós.
Porém conforme a luz do dia ia clareando, pude
ver que não eram animais e sim oito ou nove
homens pintados de carmim e preto, e armados
84
de arco e flechas” (p. 37, 38).
A diferença de costumes é relatada, no diário, na data de
26 de abril. Há o relato da primeira missa celebrada em terra e
o encontro com os indígenas:
“Trouxemos a maior cruz [...] Ao ver tamanha
quantidade de homens nus, frei Henrique tei-
mou que não podia rezar missa. O capitão-mor,
que era homem i roso e de palavras duras, disse
que não se importasse, por que Adão e Eva
quando estavam nus eram mais puros q ue quan-
do se cobriam com folhas...” (p. 40).
Na data de 1º de maio as naus partem e deixam em terra
dois dos condenados ao degredo: “Veio novamente o capitão-
mor e, passando mais uma vez a vista sobre nós, apontou A-
fonso Ribeiro e Amador Fróis para ali ficarem” (p. 42). Ainda
em 1º de maio o narrador conta o fim que teve o diário que es-
tava a escrever
“Infelizmente, bom conde, aí se acaba meu
diário, porque no dia seguinte, quando esta-
va a escrever no convés, passou por mi m o pró-
prio Pedro Álvares Cabral e tomou a folha e a
pena de minhas mãos, dizendo, depois de dar-me
um soco no nariz, que aquela era viagem mui
secreta e que aquilo podia servir para que espi-
ões castelhanos descobrissem as novas terras...”
(p. 42).
A viagem segue mais ao sul das terras novas “continuo a
narrar a minha história naquelas distantes terras, mas servin-
do-me agora apenas da memória (p. 43) e mais sete condena-
dos são abandonados ali após a explicação de Frei Henrique
“Meus amados, o Criador nos concedeu a grande
vitória do achamento dessa terra que, p elo tra-
tado assinado pelo sumo pontífice, é tão nossa
85
como as ruas de Lisboa. Disso devemos muito
nos orgulhar, pois serão os nossos no mes lem-
brados de geração em geração. Mas Deus, em
seu infinito amor, quis mais perfeitamente a-
graciar a sete servidores s eus, dando-lhes a
bênção de serem apóstolos de Cristo nes ta terra,
aqui ficando para grande inveja minha e de to-
dos” (p. 44).
O discurso, proferido antes do abandono em terras estra-
nhas e sem nenhuma estrutura, é colocado na voz do Frei Hen-
rique, que obedece a Cabral. Dessa forma, a narrativa aproxi-
ma ironicamente as instituições da igreja e da monarquia.
A auto-reflexidade permeia a narrativa
“Permiti-me caro conde, um aparte e m meio a
esta passagem. Há autor es que condenam as
pausas, dizendo que podem causar males ao co-
ração, mas Santo Ernulfo, que tudo pensou, as-
86
vras do frei “Sois sete, como sete são os pecados, mas não es-
tais a serviço do Príncipe das Trevas e sim a mando do Rei dos
Reis...” a narrativa apresenta e narra a vida dos sete coloni-
zadores: Jacome Roiz, Antonio Rodrigues, Simão Caçapo, Gil
Fragoso, Lopo de Pina, João Ramalho e Cosme.
Terra papagalli satiriza a colonização: imbuídos do mais
puro instinto de sobrevivência e de um não menor pendor pes-
soal para o ócio “Como não encontramos caça e a fome era
demais matamos o galo e a galinha, trocando os ovos de ama-
nhã pela carne de hoje” (p. 50) , os primeiros portugueses em
terra brasileira instituem uma cultura que reatualiza hábitos
da terra lusitana em função das ideologias particulares e das
necessidades básicas.
Os degredados adaptam-se aos hábitos dos nativos e ao
clima e logo nos primeiros dias instituem um reino para eles.
“Senhores esses papagaios nos rendem homenagem porque
somos os reis desse lugar [...] Nossos súditos são os mosqui-
tos, as serpentes, os veados e as pulgas” (p. 54). “Então due-
lemos para ver quem será o soberano da Terra dos Papagaios”
(p. 55); “Louvemos o grande Bacharel, rei e senhor da Terra
dos Papagaios” (p.56).
As sagradas escrituras também surgem como intertexto.
Os dez mandamentos são adaptados à sobrevivência e segui-
dos à risca. O primeiro mandamento determina a convivência
entre os gentios “Primeiro mandamento para bem viver na ter-
ra dos papagaios: Na Terra do Papagaios é preciso saber dar
presentes com generosidade e sem parcimônia ...” (p. 58).
A historiografia oficial é elemento textualizado, bem co-
mo seus heróis. Um dos fatos narrados é o encontro entre o
Bacharel e Martim Afonso de Souza “Lá chegando, vi, com pe-
87
sar e receio, entrar pela barra a esquadra do dito Martim A-
fonso de Souza...” (p. 157).
A conclusão da narrativa, Que conclui tudo, acentua a i-
déia sugerida pelo título sugestivo, em Terra papagalli tudo se
reproduziu tal e qual era em terras diferentes e, não obstante e
ao que parece, de gentes tão iguais:
“E daquela terra que hoje ch amam Brasil, es-
quecendo o nome que lhe deram seus primeiros
moradores, digo que pouco proveito se pode ti-
rar dela, porque se vem povoando por homens
cobiçosos [...] e mais pode quem é mais velhaco”
(p.188).
Desde o início da narrativa, o narrador joga com a possi-
bilidade de parodiar o texto histórico e mantém um diálogo sa-
tírico que relativiza a possibilidade de conhecer historicamen-
te o passado, já que, como construto da linguagem, o discurso
é um instrumento de manipulação da ideologia do poder, que
persuade o leitor, sendo capaz de tornar real uma “mentira”.
O mosaico de textos imbricados relata uma história pes-
soal (seus amores, anseios e objetivos), contextualizada pela
evocação do descobrimento do Brasil, imprimindo a subjetivi-
dade, estranha ao discurso historiográfico, e enfatiza a idéia
de montagem discursiva.
A diegese, construída a partir do cruzamento de superfí-
cies textuais recurso aparentemente inocente para o leitor
desavisado , faz parte de uma intencionalidade de desvelar o
texto como discurso histórico-literário: sugere que não apenas
a redação da história é ficcional, como também a História é en-
tretecida de tramas inter-relacionadas que parecem interagir
ao sabor dos desejos humanos.
88
Desse modo, os autores apresentam um texto historiográ-
fico metaficcional que ironiza a noção de unicidade textual e
histórica. Assim, o texto se apresenta como um jogo de espe-
lhos, todos se auto-refletindo, numa experimentação intermi-
nável, que suscita a idéia de tradição crítica literária, à medida
que a própria arte literária se auto-reflete.
A partir de seu traço metaficcional, essa paródia apre-
senta-se como um código que, deliberadamente, explora uma
teoria da ficção através do acréscimo dessacralizador: há acor-
do com a tensão de montagem, haja vista que o destronamen-
to-entronamento em que se funda a narrativa paródica revela
todo o processo ficcional: de um lado sua convencionalidade,
seus problemas e limitações: do outro lado, sua perscrutação
enquanto construto possível da linguagem, sua artisticidade -
leitura puramente ficcional do mundo.
As várias faces refletidas nessa paródia historiográfica
revelam uma multifacetada visão do mundo atual: o narrador,
consciente das potencialidades do seu discurso, vê os textos do
passado com olhos quinhentos anos mais experientes, olhos
perspicazes diante da realidade do século XX, acostumados a
desacreditar de tudo, a tudo relativizar e questionar. Por isso,
denuncia a tradição, virando-a pelo avesso e, na ambivalência
desse avesso, se confundem e se integram passado, presente e
futuro, no infinito diálogo da arte literária.
O romance de Torero e Pimenta legitima na diferença
do duplo a imanência do seu discurso semelhante: montada e
desmontada aos olhos do leitor como construção lingüística, a
paródia entremostra-se visivelmente histórica e inevitavelmen-
te política, ensinando e aplicando, na prática, o reconhecimen-
89
to do fato de que a realidade social
28
, histórica e existencial do
passado é uma realidade discursiva. Apresenta, portanto,
“Um novo modelo p ara demarcação da fronteir a
entre arte e mundo, um modelo que atu a a par-
tir de uma posição que est á dentro de ambos e,
apesar disso, paradoxalmente, não está inteira-
mente dentro de nenhum dos dois, um modelo
que está profundamente comprometido com a-
quilo a que tenta descrever, e apesar disso aind a
é capaz de criticá-lo” (HUTCHEON, 1991, p.
43).
A análise de Terra papagalli denota também a intenciona-
lidade cômico-burlesca justaposta a uma atitude crítico-
irônica. O romance retoma um fato, renovando-o, para imedia-
tamente instituir a verdade do riso: a leitura do texto eviden-
cia-se como leitura plural das possibilidades desse construto
de palavras distanciadas dos objetos referenciais, visando en-
contrar caminhos diferentes para atingir o real.
Outra vez, dois mecanismos distintos: a pretensão cientí-
fica da história de mãos dadas com a irreverência da comédia,
e assim, a teia intrincada do outro, que busca outro, e quem
sabe quantos outros mais serão percebidos? E o narrador Con-
clui tudo, mas o leitor fica com a sensação de que sequer a sua
leitura está completa.
28
Para Hutcheon, a sociedade suscita o uso da ironia. As segmentações
sociais propiciam a duplicidades discursivas. Para ela existem “comu-
nidades discursivas” que retêm em torno de si sentidos específicos co-
erentes, que auxiliam no reconhecimento dos sinais irônicos nas rela-
ções sociais e textuais. E ainda, a noção de “comunidade de discurso
sociorrética” denota a percepção “de que todos nós pertencemos a
muitas comunidades ou coletividades que se sobrepõem. Essa super-
posição é a condição que torna a ironia possível, ainda que o compar-
tilhar seja sempre parcial, incompleto e fragmentário; contudo, algo
consegue ser compartilhado – o suficiente, isto é, para fazer a ironia
acontecer” (2000, p. 168).
90
4.3 O OLHAR SURPRESO: UMA
BIOGRAPHOGE-
NUS
29
DO BRASIL?
O texto Terra pa pagalli oferece ao leitor um paradoxo de-
licioso: a possibilidade de visualizar o momento histórico do
descobrimento do Brasil através da escritura da vida genealó-
gica da nação. Ao mesmo tempo em que refunda o momento-
origem, o texto inverte tudo e oferece, não o outro, o diferente,
e, sim, o perfil do brasileiro do século XX: a “figura do malan-
dro” está lá, na chegada, e funda e narra uma nação.
O momento do contato e a convivência em terras estra-
nhas são reatualizadas. A leitura oferece, não o encontro com
outros povos, e, sim, a acentuação de um perfil do brasileiro.
A descoberta maior é a do sujeito de hoje, lá no desembarque.
Uma consciência viva de si, a possibilidade de identificação do
sujeito moderno em pleno período quinhentista.
A tarefa de recuperação do passado conduz ao pleno en-
tendimento do presente. A crise de identidade nacional, após
quinhentos anos de história, é reatualizada pelo olhar daqui
para lá. E o primeiro olhar apresentado ao leitor está no para-
texto – as palavras tragicômicas psicografadas de Pedro Álva-
res Cabral sobre o protagonista da narrativa:
“Quando larguei aquele rapazote nas praias da
Ilha de Vera Cruz, digo, da Terra de Santa
Cruz, digo, do Brasil, nunca poderia pensar que
ele teria o destino que teve, ou seja, que se
29
A palavra biographogenus é formada por derivação prefixal e sufixal,
pois parte do radical grapho (escrita) antecedido pelo sufixos bio (vida) e
sucedido pelo prefixo genus (genealogia). Porém, para significação da pa-
lavra utilizou-se de hibridismo, recorrendo à origem grega do adjetivo
“genealógico” (genealogikós). Biographogenus é uma variante do termo
autobiograph ogenus (elaborad o e usado no estudo Erico pós- moderno: um c ami-
nho para autobiograph ogenus) e significa aqui a escrita genealógica da vida
de alguém/algo.
91
transformaria num rei, que t eria tantas mulhe-
res, que mataria tantos homens, que possuiria
tantas moedas e viveria tantas aventuras [...]
Mas como verão os que lerem esse livro, as coi-
sas não se deram exatamente assim...”
Ainda o comentário de Cabral sobre o Brasil:
“E, se errei minhas previsões quanto ao jovem
Cosme Fernandes, hoje mais conhecido nos li-
vros de História pela alcunha de Bacharel da
Cananéia, errei ainda mais nas minhas previ-
sões sobre a Terra Papagalli, digo, sobre o Bra-
sil, que achei ser um novo paraíso. Quantos er-
ros, meu Deus! Bem mereço estar no inferno”.
Revisitar teorias, para abordá-las de maneira diferencial,
é uma característica atual. Além disso, a possibilidade de ler
sob novas formas velhas obras manifesta-se como tendência li-
terária. Os fios da história e da ficção entrelaçam-se em Terra
papagalli através da inter-relação entre história pessoal-
genealógica em diálogo com um texto histórico. A personagem
ficcional escreve as suas memórias e destina-as ao filho bas-
tardo, que é um nobre portugs. O leitor encontra na narrati-
va da história de vida do degredado também uma espécie de
genealogia da nação brasileira.
A possibilidade de construção de uma biografia genealó-
gica do Brasil pelo viés do riso paródico acentua a construção
cultural do “eu” como uma forma de afiliação sociocultural a
partir de um espaço nacional que, não obstante, reivindica a
posição representativa de um sujeito específico.
O elemento histórico, garantido pelo texto-origem e pela
demarcação de um tempo cronológico delimitado, age como
princípio afetivo e simbólico catalizador da identificação do
92
leitor. O discurso emergente desse amálgama narrativo elabora
um “eu” pós-moderno ancorado na tessitura da idéia de nação.
O espaço criado em Terra papagalli leva à humanização de
uma localidade e a transforma em um lugar de vida histórica.
O espaço é o do português degredado, tentando a sobrevivên-
cia. A fusão da cultura de além-mar à terra nova desencadeia
processos culturais ambivalentes e uma identidade plural.
A nação presentificada em Terra papa galli foge ao concei-
to canônico – agrupamento de pessoas que habitam o mesmo
território, falam a mesma língua, têm os mesmos costumes, o-
bedecem às mesmas leis e são, geralmente da mesma raça – e
acentua a idéia de nação fragmentada, em si e em sua origem,
e articulando heterogeneidades.
O texto ficcional em análise, no momento pré-
comemorativo da festa nacional pelos quinhentos anos, apre-
senta a discussão sobre a questão da nacionalidade. Pensar o
nacional evoca uma série de vocábulos que envolvem os temas
da identidade, da cultura, da representação, da História e da
Literatura, entre os principais.
A representação paródica da Carta de Caminha reaborda
a questão da origem e da formação da consciência nacional
30
.
Teoricamente, na contemporaneidade, esse assunto é perscru-
tado por diversos autores que têm suas formulações teóricas
migrando continuamente de uma a outra área epistemológica.
Dentre tantos, o historiador Hobsbawn destaca que a
conceituação de nação como uma comunidade de indivíduos é
30
Autores como Eric Hobsbawn, Ernest Renan, Hannah Arendt, Benedict
Andersen, Homi Bhabha, Simon During, Stuart Hall, entre outros desen-
volveram conceitos e teorias que serão apenas brevemente pontuados neste
subcapítulo, com objetivo de situar aspectos vinculados aos conceitos de nação
e identidade nacional.
93
um conceito moderno e vincula-se ao discurso político e social.
Já Benedict Andersen (1989) afirma que a nation-ness constitui
o valor mais universalmente reconhecido como legítimo de
nossa era. Em suas palavras
“Parto de que a nacionalidade, ou, como talvez
se prefira dizer, devido às múltiplas significa-
ções dessa palavra, nation-ness, bem c omo na-
cionalismo, são artefatos culturais de um tip o
peculiar. Para compreendê-los é preciso que
consideremos com cuidado como se t ornaram i-
dentidades históricas, de que modo seus signifi-
cados se alteraram no decorrer do tempo, e por
que, hoje em dia, inspiram uma legitimidade
emocional tão profunda” (p. 12).
É perceptível em seus estudos a proposição de uma acep-
ção antropológica para o termo “nação”. É comunidade políti-
ca imaginada – e imaginada como limitada e soberana:
“é imaginada como algo limitado porque até
mesmo as maiores [...] é imaginada soberana
[...], é imaginada como uma comunidade. Ape-
sar da desigualdade e da exploração que preva-
lecem, a nação é sempre concebida como u m
grande companheirismo horizontal”(1989, p 15-
16).
A teoria de Andersen examina dois sistemas culturais
que precederam a idéia de nacionalismo: o reino dinástico e a
comunidade religiosa. A ficção aqui em discussão funda a na-
ção papagalli sob os auspícios desses dois sistemas agindo em
conjunto.
E essa leitura pode ser, também, apoiada nos aportes teó-
ricos de Homi Bhabha (1994) sobre as questões de identidade
cultural e nação, de história e ficção. Em Nação e narração, ele
94
aponta a identidade entre ambas, ou seja, as duas são idéias
históricas, conceitos que só se efetivam nos “olhos da mente”.
Os dois teóricos – Andersen e Bhabha divergem no as-
pecto da vinculação da idéia de nacionalismo à expressão polí-
tica. Andersen condena o vínculo e Bhabha estabelece-o. O
conceito de Bhabha encontra ressonância nas páginas ficcio-
nais. Para ele, existe ambivalência na idéia de nação, a qual
vem de um passado imemorial e tem um futuro ilimitado. A-
inda, nação vincula-se ao discurso político como forma de ma-
nipulação do povo e torna-se, nesse sentido, um conceito mo-
derno. Terra papagalli tem o aspecto político delimitado de
forma inequívoca: a narração veicula políticas de colonização e
declara a intencionalidade de um encontro que foi exaustiva-
mente, por longo tempo, dimensionado como obra do acaso.
Além da retomada de aspectos históricos, a ficção com-
põe uma imagem de nação baseada no ócio, no apagamento do
habitante primeiro da terra, na malandragem, no logro e no
enriquecimento de poucos. Os sujeitos primeiros da nação re-
petem aqui a configuração da sua pátria de origem. A imagem
que a “polifonia do olhar” efetiva “nos olhos da mente” do lei-
tor é a da genealogia papagalli.
Em Terra papagalli, a individualidade do primeiro rei,
que duelou com os companheiros de degredo para chegar ao
trono, configura o sujeito ex-cêntrico como elemento de uma
identidade cultural totalizadora. E corrobora as palavras do
teórico Edward Said:
“Considerar este espaço horizontal, s ecular, do
espetáculo repleto da nação moderna... significa
que nenhuma explicação única, que remeta ime-
diatamente a uma origem única, é adequada. E
assim como não há respostas dinásticas simples,
95
não há formações discretas ou processo s sociais
simples” (1995, p. 201).
A literatura expressa a nação moldada por uma identi-
dade surpreendente. Constrói uma imagem discursiva que, de
certa maneira, volta-se contra os outros discursos já existentes
sobre ela. No entanto, a humanização das mazelas do processo
de colonização tem um componente que não passa despercebi-
do: o nacionalismo assume diferentes formas de se manifestar
e explora o elemento que melhor o vincula a uma condição.
A “polifonia do olhar” permite afirmar que Terra papagal-
li, de certa maneira, é um eco da cultura heterogênea que so-
mos. É mais uma versão de um país em processo. Os caminhos
novos, agora, precisam ser percorridos dentro de nossas fron-
teiras. A viagem ainda não acabou. E o outro continua a se re-
novar. Ao final do texto, o leitor está, outra vez, contemplando
a falésia: presente, passado e futuro ainda são fossos não des-
vendados completamente. E sempre haverá mais uma fissura a
ser alcançada pelo olhar.
5 AS NUANCES DO OLHAR AUSENTE
5.1 O ENSAIO COMO PONTO DE PARTIDA
A narrativa de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, pu-
blicada em 1998, é comentada, pelo próprio autor, em Cadernos
de Lanzarote como liminar, pois revela uma hibridação de gêne-
ros:
”Sentei-me a trabalhar no Ensaio sobre a ce-
gueira, ensaio que não é ensaio, romance que
talvez não o seja, uma alegoria, um conto ‘filo-
sófico’” (SARAMAGO, 1998, p. 183).
Os substantivos que moldam o título – ensaio e cegueira
estabelecem um eixo de raciocínio. Ensaio, enquanto vocábulo,
pode ser designado como “tentativa”, “experiência que visa
observar o desempenho de algo” e, também, “texto analítico
ou interpretativo que versa sobre determinado assunto sem a
preocupação de cumprir com rígidas exigências formais e de
apresentar idéias completas e definitivas”.
O termo cegueira, além de remeter ao estado do cego, é,
no seu sentido figurado, aplicado à falta de lucidez ou de inte-
ligência, à razão obscurecida e à perturbação do discernimen-
to.
97
Assim, para pensar o sentido que se constrói a partir da
denominação “ensaio”, preservando a ambigüidade dos vocá-
bulos, convém assinalar que foi Montaigne, no final do século
XVI, a usar a denominação no âmbito literário. E a usou como
reação às minúcias analíticas vinculadas a questões filosóficas.
A difusão do gênero ensaístico como escrita marcada por
linguagem austera, com intenção de especulação intelectual,
substituindo o tom leve que exprime uma reação pessoal e ín-
tima diante da realidade, deve-se, posteriormente, a Francis
Bacon.
O substantivo cegueira pode ser, no ocidente, facilmente
relacionável ao coeficiente literário e filosófico. Adentrando o
universo dos mitos
31
, lá estão, por exemplo, Polifemo, Édipo e
Tirésias. Ainda, grandes poetas, não menos míticos, como
Homero e Camões. E Platão. Na literatura contemporânea, pa-
ra ficar em um exemplo, temos um caso especial do relato-uso
do termo: o texto do português José Cardoso Pires – De profun-
dis, valsa lenta
32
oferece uma personagem que não perdeu a
capacidade de ver, mas, é incapaz de imprimir significação
àquilo e àqueles que tem diante dos olhos.
Na atualidade, embora ainda integre as formas do gênero
narrativo, o ensaio tem se aproximado dos trabalhos acadêmi-
cos e vem sendo adotado em produções de cunho teórico, mais
distante da produção literária propriamente dita, assim como
das particularidades da obra que lhe deu origem.
31
Para Mircea Eliade (1983), o mito relata uma história sagrada, um fato
ocorrido no tempo primordial, como uma história começou a existir. É
sempre uma “criação”. Concepção datada do séc. XX, que se opõe à do
séc. XIX, que percebia o mito como “fábula”, “ficção”, “invenção”.
32
A narrativa portuguesa relata a experiência real do autor, que sofreu
um acidente vascular cerebral e, após recuperado, rastreou o espaço-
tempo de sua desmemória.
98
Enquanto texto literário, o de Saramago, recebendo tal
designação, caracteriza-se como escrita especulativa e intimis-
ta de experiências, aliada ao sentido propiciado pelo tema da
“cegueira” e das relações que ele permite efetivar. E importa,
no rastro de vislumbrar recortes do olhar polifônico nessa aná-
lise, perscrutar o que o olhar ausente concebe em termos de
significação.
O tema do olhar será, por conseguinte, observado sob
outro viés. O olhar, em Saramago é antes mais uma “questão
que uma capacidade de perceber algo. O conhecer surge e a-
contece, na narrativa, pelo não-ver. O Ensaio sobre a cegueira
espicaça as limitações da percepção visual e suas condições
cognitivas para obter um julgamento. A categoria do tempo
dialoga diretamente com essa diretriz do texto. O olhar estaria
submetido às determinações do presente e consideraria as coi-
sas unicamente pela forma que apresentam na atualidade.
O texto, então, cerra os olhos das personagens e oferece a
perspectiva do olhar para o passado e o futuro através do tate-
ar o presente. A impressionabilidade característica do olhar,
conquanto limitada cognitivamente, é substituída pela ceguei-
ra, que capacita para o julgamento da natureza e da verdade
das coisas, humanas ou não. A cegueira se impõe como a ca-
pacidade de melhor ver e ensaia o romance que, já a partir da
epígrafe, prioriza o olhar: “Se podes olhar, vê. Se podes ver,
repara”.
5.2 O(S) OLHAR(ES) E A(S) VOZ(ES) INSCRITOS
A leitura dos textos de Saramago, desde Levantado do
chão, publicado em 1980, deixa patente que eles apresentam al-
99
gumas particularidades que aproximam o discurso escrito da
oralidade: a supressão dos sinais de pontuação que, tradicio-
nalmente, indicam a mudança de locutor; a introdução do dis-
curso direto através de maiúsculas após vírgula e o mesmo
quando ocorre alternância da voz entre personagens:
“Quando voltou a juntar-se ao ma rido, pergun-
tou-lhe, És capaz de imaginar aonde nos trouxe-
ram, Não, ela i a acrescentar A um manicômio,
mas ele antecipou-se-lhe, Tu não e stás cega, não
posso consentir que fiques aqui, Sim, t ens ra-
zão, não estou cega” (1995, p. 48).
Em relação ao discurso, utiliza narradores oniscientes,
em terceira pessoa, que estruturam “o olhar” de diferentes e-
nunciadores. No Ensaio sobre a cegueira, o discurso é centrali-
zado pelo narrador, que utiliza distintas estratégias: assume
explicitamente o encargo de relatar o que vinha sendo narrado
por uma das personagens
“A partir deste ponto, salvo alguns soltos co-
mentários que não puderam ser evitados, o rela-
to do velho da venda preta deixará de ser segui-
do à letra, sendo substituído por uma reorgani-
zação do discurso oral ...” (1995, p. 122).
E justifica a postura de subsumir a voz da personagem:
“É motivo desta alteração, não prevista antes, a
expressão sob controlo, nada vernácula, empre-
gada pelo narrador, a qual p or pouco o ia des-
qualificando como relator complementar, impor-
tante, sem dúvida, pois sem ele não teríamos
maneira de saber o que se passou no mundo ex-
terior, como relato r complementar, dizíamos,
destes extraordinários aconte cimentos, quando
se sabe que a descrição de quaisquer fatos só
tem a ganhar com o rigor e a propriedade dos
termos usados” (1995, p. 122-123).
100
E, também, como constrói o discurso simulado, explici-
tando que seu enunciador seria uma das personagens
“Se o cego encarregado de escriturar os ilícitos
ganhos da camarata dos malvados tivesse deci-
dido, por efeito de uma iluminação esclarecedo-
ra do seu duvidoso espírito, passar-se para este
lado com seus tabuleiros de escrever, o seu pa-
pel grosso e o seu punção, certamente andari a
agora ocupado em redigir a instrutiva e lamen-
tável crônica do mau passadio e outro s muitos
sofrimentos destes novos espoliados companhei-
ros. Começaria por dizer que lá de onde tinha
vindo...” (1995, p.159).
A presença da intrusão dos narradores transparece no
tom irônico do discurso
“Irão sem dúvida seguir este itinerário porque a
rapariga dos óculos escuros já pediu que a le-
vem, quando for possível, a sua casa, Não sei
como estarão os meus pais, disse, esta sincera
preocupação mostra como sã o afinal infundados
os preconceitos dos que negam a possibilidade
da existência de sentimentos fortes, incluindo o
sentimento filial, nos casos, infelizmente abun-
dantes, de comportamentos irregulares, mor-
mente no plano da moralidade pública” (1995,
p. 212-213).
Em outros momentos, o narrador ocupa-se de eventos hi-
potéticos:
“Tinham chegado à porta do prédio, duas mu-
lheres da vizinhança olharam curiosas a cena,
vai ali aquele vizinho levado pelo braço, mas
nenhuma delas teve a idéia de perguntar, En-
trou-lhe alguma coisa para os olhos, não lhes
ocorreu, e tão pouco ele lhes poderia responder,
Sim, entrou-me um mar de leite” (1995, p. 14).
e parece estar a denunciar a ficcionalidade discursiva:
101
“Não havendo testemunhas, e se as houve não
consta que tenham sido chamadas a est es autos
para nos relatarem o que se pa ssou, é compreen-
sível que alguém pergunte como foi possível sa-
ber que estas coisas sucedem assim e não de ou-
tra maneira, a resposta a dar é a de que todos os
relatos são como os da criação do universo, nin-
guém lá esteve, mas toda gente sabe o q ue acon-
teceu” (p. 253).
Além da presença de diversos locutores, que dá ao texto
caráter polifônico
33
, pode-se notar a alternância de vários pon-
tos de vista. As personagens são cruamente expostas. O leitor
conhece o confronto entre sentimentos, ações e pensamentos
das personagens “Beijou o marido, sentiu nesse momento como
uma dor no coração” (p. 217-218) e as palavras de que se utili-
zam
“Por favor, aconteça o que acontecer, mesmo
que alguém queira entrar não deixem este sítio,
e se forem postos fora, apesar de que não creio
que tal aconteça, mas é só para prevenir todas
as hipóteses, deixem-se ficar perto d a porta,
juntos, até que eu chegue. Olhou-os com olho s
rasos de lágrimas, ali est avam, dependiam dela
como as crianças pequenas dependem da mãe, Se
eu lhes falto, pensou” (1995, p. 218).
Referidos tais aspectos recorrentes quanto à escrita nos
romances de Saramago, cumpre dizer que a temática da visão é
outro ponto de significância.
As personagens Blimunda de Memorial do convento (1987)
“mulher de olhos excessivos, que para descobrir vontades nas-
ce” (1987, p. 180) e a mulher do médico, que “nasceu para ver
o horror” (1995, p. 262) e tem a “responsabilidade de ter olhos
quando os outros os perderam” (p. 241), em Ensaio sobre a ce-
33
No sentido teórico proposto por Mikhail Bakhtin.
102
gueira, possuem, cada uma a sua maneira, uma tarefa relacio-
nada ao olhar e aos outros indivíduos do mundo em que estão.
Ainda em Memorial do convento, Saramago discute a signi-
ficância do olhar “este é o dia de ver, não o de olhar, que esse
pouco é o que fazem os que, olhos tendo, são outra qualidade
de cegos” (1987, p. 81) e em História do cerco de Lisboa (1989)
aparece o tema da visão, tanto na personagem do almuaden
cego, que tem a capacidade de ver aquilo que seus olhos não
podem olhar, quanto nos comentários do narrador, ao afirmar
que
“Olhar, ver e reparar são maneiras dis tintas de
usar o órgão da visão, cada qual com a sua in-
tensidade própria, até nas degenerações, por e-
xemplo, olhar sem ver, quando uma p essoa se
encontra ensimesmada, situação comum nos an-
tigos romances, ou ver e não dar por isso, se os
olhos por cansaço ou fastio defendem de sobre-
cargas incómodas” (1989, p. 166).
E, principalmente e aquém das distinções entre “o ver, o
olhar e o reparar”, lá da epigrafe do Ensaio, no eixo do “Cerco
de Lisboa”, o olhar que interpõe a negação escrita capaz de
suscitar novos rumos à História: o do revisor Raimundo Silva.
As narrativas saramaguianas têm ainda, como elemento
recorrente, a introdução de coisas que acontecem subitamente:
o risco da vara que risca o chão, em J angada de pedra, e cinde a
península, é tão inexplicável quanto o surto de cegueira bran-
ca, por exemplo. E um “reparar” sobre A jangada de pedra e A
caverna seria capaz de aproximar o artesão que lança olhares
para o futuro, estando nas profundezas da caverna platônica
arqueologicamente resguardada, e as personagens que estão à
deriva no oceano? E, talvez, os “que se levantam do chão”
103
chegassem a ser “homens duplicados” sob uma outra hipotéti-
ca significação? E todos os romances não serviriam, além das
epígrafes “de credencial e carta de rumos ao leitor disposto a
desenvolver o exercício de “olhar, ver e reparar”?
Também é pertinente relevar, no mapa ficcional de Sara-
mago, a narrativa Todos os nomes e os espaços diegéticos da
Conservatória Geral do Registro Civil e do Cemitério – que
possuem todos os nomes - em contraponto ao Ensaio , aqui em
análise, em que somem todos os nomes. E, sem dúvida, inte-
ressante seria colocar em contato a personagem Cipriano Al-
gor, em suas andanças na Caverna, buscando ver o mundo co-
mo ele é, apesar dos simulacros de real tão aplaudidos, e a
mulher do médico vagando pela cidade de cegos após o incên-
dio.
E ainda um duplo branco: se a cegueira branca discute a
(des)humanidade dos seres de uma cidade, os votos brancos
anunciariam uma (des)politização urbana em Ensaio sobre a lu-
cidez?
A ficção de Saramago oferece um mosaico de rostos e vo-
zes. Inscreve olhares e discursos distintos sob a égide de uma
escrita contemporânea que mescla questões de vários eixos do
conhecimento, mais ou menos atuais, e polêmicas. Da Idade
Média a uma democracia hipotética, a escrita oferece possibi-
lidades de leitura. E instiga o leitor, e sua capacidade de deco-
dificar a representação pela palavra, a erigir, individualmente,
as suas percepções.
104
5.3 O “OLHAR LUZ-GUIA”
“Uma coisa seria querer fazer um romance sem
personagens, outra pensar que se ria possível fa-
zê-lo sem gente. Esse foi meu grande equívoco
quando imaginei o Ensaio sobre a ceguei-
ra[...]Levei demasiado tempo a perceber que os
meus cegos podiam passar sem nome, mas nã o
podiam viver sem humanidade” (Saramago,
1998, p .332).
A figura feminina é, em vários romances de Saramago,
ponto de discussão. Especificamente no Ensaio sobre a cegueira,
é figura-chave. O ensaio-romance relata um acontecimento i-
nusitado: uma epidemia de cegueira, branca e contagiosa, se
alastra e atinge uma cidade.
A situação inicial mostra o trânsito da cidade e os carros
parados em um semáforo. Um dos carros não arranca. O moto-
rista é o primeiro a ser vitimado pela cegueira. É auxiliado por
um homem que o leva para casa e lhe rouba o carro. O ladrão é
a segunda personagem cega. Depois, cegam o oftalmologista
que o atende, os demais pacientes que estavam na ante-sala do
consultório, a mulher do primeiro cego e assim sucessivamen-
te.
Epidemia constatada, as autoridades governamentais tra-
çam um plano de contenção emergencial. Uma quarentena
drástica é instituída e aqueles que apresentam a doença, os
sintomas dela ou que possam ter sido contaminados são isola-
dos nas instalações de um manicômio.
A cidade fictícia permanece sem nome, bem como as
primeiras personagens, que passam a ser designadas por as-
pectos vinculados ao olhar: a rapariga dos óculos escuros, o
rapazinho estrábico, o velho da venda preta, o oftalmologista e
105
sua esposa, “a mulher do médico”. O manicômio transforma-se
no espaço de convivência da cegueira, da falta de higiene e da
escassez de alimentos. E a desordem se instala gradativamen-
te, dentro e fora dos muros.
A mulher do médico, que, para acompanhar o marido ce-
go, tivera a idéia de fingir que estava cega, passa a ser a porta-
voz do grupo. A organização dura muito pouco lá dentro. Os
cegos formam grupos, e o oportunismo, a opressão e a violên-
cia eclodem com tanta ou maior força que em condições de
convivência normal.
A distribuição de comida gera conflitos desde o início. A
possibilidade de logro produz discussões e brigas. Até que um
grupo, denominado “dos cegos malvados”, apropria-se da to-
talidade de mantimentos e passa a cobrar pelo fornecimento.
No primeiro momento são confiscados os objetos de valor dos
cegos e, após, são as mulheres submetidas aos desejos sexuais
do grupo, como forma de pagamento.
A mulher do médico mata o chefe dos malvados e inicia a
luta pela liberdade. O embate fica caótico com a eclosão de um
incêndio, e é ela quem constata e avisa, no meio da confusão,
que sequer os guardas permanecem lá e que os portões do ma-
nicômio estão abertos. O pânico é total; alguns morrem quei-
mados e outros fogem desesperados, sem saber para onde es-
tão indo.
Guiados pela mulher que vê, e que continua a esconder
essa capacidade, o grupo de personagens formado pela garota
dos óculos escuros, o rapazinho estrábico, o velho da venda
preta, o primeiro cego e sua mulher e o médico, iniciam a jor-
nada de volta para casa.
No retorno ao espaço urbano, a mulher constata que a
106
cidade toda foi contaminada. Há corpos apodrecendo na rua, o
comércio foi saqueado, faltam alimentos, água, e o ar está pes-
tilento. Ela consegue roupas limpas e alimentos, na cidade sa-
queada. Encontra o cão das lágrimas. O retorno a casa e o pos-
terior e coletivo “ver outra vez” encerram a narrativa.
5.4 IDENTIDADES EM BRANCO
A “polifonia do olhar” que cogita “identidades brancas”
conduz o olhar para o eixo da história. Um histórico sobre as
relações entre Portugal, a Espanha e a Europa permite caracte-
rizar Portugal como um país considerado diferente. Constata-
se a convivência de dois conceitos de Europa, por assim dizer:
a inculta e atrasada, ibérica, e a culta e desenvolvida. A Ibéria
conheceu o declínio após o período das grandes navegações,
durante a crise colonial.
O período de apogeu favoreceu o aparecimento de uma
leitura gloriosa da pátria e o constante rememorar de antigas
conquistas. Segundo Santos (1996), essa leitura causou um
“complexo de inferioridade perante os estrangeiros ao lado de
uma hipertrofia mítica gerando megalomanias e quimeras” (p.
66). Considerar a “outra” Europa como sendo o centro condu-
ziu a um processo de busca da cultura hegemônica.
O sentimento de “ser margem” é a situação tematizada,
por exemplo, no romance A jangada de pedra. A ruptura da pe-
nínsula, que fica à deriva, ilustra uma espécie de desenraiza-
mento cultural em relação à Comunidade Européia.
Ademais, a questão da identidade portuguesa permeia
toda a narrativa de Saramago. Desde as perscrutações metahis-
toriográficas até o Evangelho segundo Jesus Cristo, que de certa
107
forma inicia um novo fio condutor. A consciência da vida em
um mundo desumano, carente de soluções para problemas vi-
tais, revela novo foco: Portugal ainda está presente, mas não é
mais historiado e, sim, está sendo observado enquanto “globa-
lizando-se”.
O romance Ensaio sobre a cegueira coloca em cena a per-
sonagem chamada “a mulher do médico”. A ausência de iden-
tidade individual, aliada à capacidade de continuar vendo
quando todos estão cegos, a coloca no nível do ser “que faz”
por si e pelos outros. Ela existe sozinha, em sua condição dife-
renciada. É a luz na cegueira, que personifica o autêntico hu-
manismo, lutando contra a coletiva cegueira suicida.
34
Os estranhos, na diegese os recém-cegos, são banidos do
convívio social. Eles causam mal-estar e são conduzidos ao
manicômio. Paradoxalmente, aqueles que se afastam da ce-
gueira e dos cegos vão, um após outro, sendo vitimados. So-
mente ela, que quis permanecer entre o espaço do flagelo, não
é atingida.
Saramago sabe que a questão da nacionalidade é uma fe-
rida não cicatrizada, e ele agudiza a questão em âmbito uni-
versal. Em um período em que o agregar o estranho é teoria
em voga, ele entra com a segregação de um grupo “doente”. A
leitura das páginas em que o grupo de “cegos malvados” se
organiza, no novo microcosmo social do manicômio, para con-
seguir lucro e, logo depois, exaurido o capital monetário, che-
ga à cobrança de favores físicos pela garantia do alimento,
34
A mulher do médico pode ser observada por dois contrapontos referen-
ciais. Primeiro, lembra o anjo da história de Walter Benjamim, con-
templando os destroços do passado; porém, a postura é inversa: ela
não está de costas, ela caminha no presente para garantir o futuro. Se-
gundo, também é a que guia seu povo, tal qual a estátua da liberdade,
de Delacroix.
108
deixa perceber a anulação total da civilidade.
Há grupos de poder dentro do manicômio. O bem a ser
explorado é a comida, parca e mal distribuída. A política da
tolerância, da diferença e do respeito aos direitos sucumbe. O
instinto de sobrevivência e a cultura do “ganhar” algo a qual-
quer custo dizimam o grupo segregado. Ironicamente, sequer
entre iguais ocorre o diálogo e a cooperação.
A mulher que “nasceu para ver o horror” é a porta-voz
de um constante “estado de sítio” existencial: a medida da in-
tolerância e perversidade do homem. O manicômio dramatiza
os mais torpes sentimentos, a primazia do instinto sobre a ra-
zão e a certeza do “eu primeiro”. E o realismo das cenas que as
personagens protagonizam e não em é avassalador. É como
se o perder a visão “lhes roubasse a alma”.
O leitor vê, então, durante a leitura, pelo olho que não
cegou. É guiado, como os outros cegos, pela visão daquela que
afiança a narrativa. A leitura passa a ser um processo de “ver
de novo o que ainda não havia visto, porque nunca fora visto
assim”.
O olhar da mulher do médico delineia identidades divi-
didas. A coletiva tem dois níveis, o dos cegos e o dos não-
cegos, e interpõe um intermezzo – aqueles que tiveram contato
direto e que com quase certeza vão cegar. Ainda a identidade
semi-privada. A dos grupos que se formam nas camaratas.
A perda de referências, a desagregação dos valores, as-
sim como da hierarquia usual e cultural, começa a ser sentida
logo nos primeiros momentos da entrada no manicômio: “tão
longe estamos do mundo que não tarda que comecemos a não
saber quem somos, nem nos lembrámos sequer de dizer-nos
como nos chamamos, e para quê, para que iriam servir-nos os
109
nomes” (p. 64).
O grupo que protagoniza a diegese, no primeiro momen-
to, tenta nomear os integrantes e preservar a identidade pes-
soal. E, no momento de dizer quem são, as personagens reve-
lam-se sem identidade nominal. A “função” que exerciam reve-
la-se mais forte que o nome:
“O melhor será que se vão nu merando e dizendo
cada um quem é. [...] Um, fez uma pausa, pare-
cia que ia dizer o nome, mas o que disse foi, Sou
polícia, e a mulher do médico pensou, Não disse
como se chama, também saberá que aqui não tem
importância. Já outro home m se apresentava,
Dois, e seguiu o exemplo do primeiro, Sou mo-
torista de táxi...” (1995, p. 66).
A ausência da percepção visual, de si e do outro, massi-
fica a identidade. E os demais agem como o primeiro, vão um a
um se auto-denominando: ajudante de farmácia, criada de ho-
tel, empregada de escritório, etc.
As conjecturas sobre a origem da epidemia são discuti-
das nos primeiros dias:
“O ajudante da farmácia pediu licença para fa-
lar com o senhor doutor, gostaria que o senhor
doutor lhe dissesse se tinha, sobre a doença,
uma opinião formada [...] Quem sabe, o médico
sorriu sem querer, na verdade os olhos não são
mais do que umas lentes, u mas objectivas, o cé-
rebro é que realmente vê...” (p. 70).
E até a cegueira branca tem uma identidade paradoxal:
“O médico suspirou [...] para ele era tudo branco, luminoso,
resplandecente que o eram as paredes e o chão que não podia
ver, e absurdamente achou-se a concluir que a luz e a brancu-
ra, ali, cheiravam mal” (p. 96).
110
A clareza de que tudo é igual em qualquer lugar surge
através das palavras daquela que não vê em branco: “A mulher
do médico disse ao marido, O mundo está todo aqui dentro”
(p. 102). E, com essas palavras, ela sintetiza os comportamen-
tos das identidades no interior e no exterior do manicômio: a
manipulação em vista de interesses os mais diversos transfor-
ma a tudo e a todos. A valorização da identidade desaparece
no ritmo da epidemia.
O grupo de cegos tem contato com o mundo dos não-
cegos através daqueles que chegam. “Fale-nos como está a si-
tuação lá fora. O velho da venda preta disse, pois sim [...] Lo-
go nas primeiras vinte e quatro horas, disse, se era verdadeira
a notícia que correu, houve centenas de casos, todos iguais”
(p. 122) e do rádio que estava nos pertences do velho “As notí-
cias não foram animadoras, corria o rumor de estar para breve
a formação de um governo de unidade e salvação nacional” (p.
131).
A mulher que não cegou é a sugestão da valorização do
amor como elemento que interage no centro e nas margens. A
luta dela para, primeiro, escapar da opressão dos “cegos mal-
vados”, depois de manter a si e aos do grupo vivos e razoa-
velmente limpos, e, em terceiro, ser capaz de iniciar a busca
pela casa e pela retomada “do que eram antes”, evidencia a
consciência agredida, a perseverança e a solidariedade capazes
de impedir que os objetivos desapareçam.
E a recuperação da identidade só acontece após a jornada
de volta para casa. É no espaço privado do lar,
“a mulher do médico lavou a louça, fez a cama,
ordenou a casa de banho, não ficou o que se
chama uma perfeição, mas na verdade teria sid o
111
crueldade exigir-lhe mais, com aquelas mãos a
tremer e os olhos afogados de lágrimas. Foi por-
tanto a uma espécie de paraíso que chegaram os
sete peregrinos [...] se detiveram à entrada, co-
mo tolhidos pelo inesperado cheiro da casa, e
era simplesmente o cheiro d uma casa fechada”
(p. 257-258).
E só após banhados e alimentados, que voltam a discutir
“a questão ser”:
“Se eu voltar a ter olhos, olharei verd adeira-
mente os olhos dos outros, como se estivesse a
ver-lhes a alma, A alma, per guntou o velho da
venda preta, Ou o espírito, o nome pouco im-
porta, foi então que, surpreendentement e, se ti-
vermos em conta que se trata de pessoa que não
passou por estudos adiantados, a rapariga dos
óculos escuros disse, Dentro de nós há uma coi-
sa que não tem nome, essa coisa é o que somos”
(p. 262).
A caminhada de retorno é necessária para evidenciar a
amplitude da tragédia que assolou e destruiu a cidade. A su-
jeira e a putrefação estão nas ruas. É na sarjeta que a mulher,
em um momento de fraqueza, senta, chora e é consolada por
um cão que lambe suas lágrimas “deixou-se cair no chão sujís-
simo, empapado de lama negra, e, vazia de forças, de todas as
forças, desatou a chorar [...] um deles lambe-lhe a cara, talvez
desde pequeno tenha sido habituado a enxugar prantos” (p.
226).
O cão capaz de consolar, a chuva que purifica os corpos e
a cidade, e a mulher que vê são elementos não-catastróficos
que emergem da narrativa como ideologia da esperança: há
humanidade no animal que passa a seguir a mulher, na chuva
que cai naturalmente e revigora o mundo, e na mulher que
continua podendo ver.
112
A fuga do manicômio submete o grupo de cegos a um
novo processo. Precisam voltar. É a primeira instância de um
reaprender a andar, ir e ser.
“... estás livre [...] e ele não vai, ficou parado
no meio da rua, ele e os outros, não sabem para
onde ir, é que não há comparação entre viver
num labirinto racional, como é, por definição,
um manicômio, e aventurar-se no l abirinto de-
mentado da cidade” (p. 211).
O (re)contato da mulher com o mundo externo acontece
em três momentos. Primeiro: “saber como se está a viver ago-
ra” (p. 217); segundo, encontrar alimento – a ida ao depósito
subterrâneo - e o terceiro, ser consolada pelo cão das lágrimas.
E, ao afastar-se do grupo, ela encontra outro cego, que, inda-
gado, informa-lhe “toda a gente está cega, Toda a gente, a ci-
dade, o país. Se alguém ainda o vê, não o diz, cala-se” (p. 215).
A citação delimita o estágio da metáfora da cegueira.
Ninguém mais é capaz de ver. E vai além, remete à omissão, à
acomodação dos que, se ainda vêem, não o dizem.
A descida ao depósito subterrâneo também é fortemente
metafórica. Ir fundo para conseguir alimento pode ser lido
como a necessidade de voltar-se para dentro a fim de encon-
trar condição de continuidade. A viagem ao aprimoramento é
individual, difícil
35
. A jornada através das trevas não é inútil.
Existir é ter consciência de que, mesmo na cegueira, pode ha-
ver fósforos:
“São fósforos, pensou. Trêmula de excitação,
baixou-se, passeou as mãos so bre o chão, encon-
35
Para Mircea Eliade “os heróis, os iniciados, descem ao fundo dos abis-
mos...” (p. 145). No texto de Saramago, a personagem desce até a “ca-
verna de tesouros” no início de sua busca pela luz coletiva.
113
trou [...] o raspar da cabeça do palito, enfim a
deflagração da pequena chama, o espaço ao re-
dor, uma difusa esfera luminosa como um astro
através da névoa, meu Deus, a luz ex iste e eu
tenho olhos para ver, louvada seja a luz” (p.
223).
Através do simbolismo do subterrâneo, o medo e a an-
gústia transformam-se em esperança. E as lágrimas de cansaço
e exaustão, após a dura subida do depósito, carregada de man-
timentos, fazem parte do processo de renovação. As lágrimas
são expressão da sensibilidade e do movimento íntimo. E o
cão, que surge repentinamente, faz o contraponto com as cenas
de animalidade humana. O animal conforta, é solidário. A i-
dentidade canina é segura. Ele é mais humano em sua irracio-
nalidade que os detentores da razão. A animalidade humana é
identificável em vários momentos diegéticos e fortemente re-
velada na ação do grupo dos “cegos malvados” que “... relin-
charam, deram patadas no chão” (p. 176).
O cão integra o cortejo a partir do encontro “O cão das
lágrimas seguia-os tranqüilamente, como se fosse coisa de toda
vida” (p. 239). O envolvimento do cão e do grupo resgata a
cumplicidade destituída de interesse e a solidariedade que vão
sobrepujar a cegueira.
A identidade subsumida pela adversidade da cegueira
começa a ser recuperada gradativamente no espaço doméstico.
A cena do banho de chuva das três mulheres, na varanda, nuas
e despreocupadas com o mundo, em plena comunhão de almas,
é significativa: a reorganização do conhecer se processa em es-
tágio inicial de união “vamos, somos a única mulher com dois
olhos e seis mãos que há no mundo” (p. 266).
114
O ressurgimento para o mundo passa pelo dever cíclico e
prévio de surgir para si, de dentro de si. A postura existencial
do homem inicia no “eu” “... mais necessidade teriam os que
estão vivos de ressurgir de si mesmos, e não o fazem. Já esta-
mos meio mortos, disse o médico, Ainda estamos meio vivos,
respondeu a mulher” (p. 288).
A representação evidencia perspectivas ideológicas dis-
tintas. O posicionamento das personagens opõe os sentimentos
de vida-morte e obscurecimento-luz. Na transição, o inventar a
vida de forma diferente pode ser determinante para o objetivo
final “é preciso esperar, dar tempo ao tempo, o tempo é que
manda, o tempo é o parceiro que está a jogar do outro lado da
mesa, e tem nas mãos todas as cartas do baralho, a nós compe-
te-nos inventar os encartes com a vida” (p. 303).
O Ensaio sobre a cegueira singulariza uma crise que é a
das velhas identidades, pautadas em paradigmas de classe,
gênero, etnia, e nacionalidade. O conceito de identidade pes-
soal também muda, na medida em que a visão de um sujeito
integrado se desfaz. O perder o “sentido de si” gera desloca-
mento ou descentralização do sujeito.
A crise de identidade é a ação conjunta de um duplo des-
locamento, a descentralização dos indivíduos, tanto do seu lu-
gar no mundo social e cultural quanto de si mesmos. E é essa
crise identitária que integra o simbolismo cultural e a proble-
mática social das sociedades contemporâneas individual e
nacional que o Ensaio pretende questionar e significar sob o
vértice da “polifonia olhar ausente”, que deixa tudo e todos
em branco.
115
5.4.1. TRÊS MOMENTOS DA CRISE DE IDENTIDA-
DE
A concepção de identidade desenvolve-se em planos his-
tóricos desde a concepção usual individualista do Iluminismo
– preconizada pelo ser centrado, consciente de sua identidade,
até a transformação e o surgimento da concepção de sujeito so-
ciológico – capaz de reconhecer a importância dos “eus”, me-
diadores dos valores do mundo que habita -, e, enfim a noção
de identidade daquele que os teóricos definem como sujeito
pós-moderno.
Ocorre um salto da individualização para a interação. A
identidade do sujeito sociológico resulta dessa interação entre
o indivíduo e a sociedade. Mesmo que o “eu real” permaneça,
sua postura é modificada pelo diálogo contínuo com o mundo
exterior. A identidade é a responsável pela estabilização e pela
localização do sujeito. Na pós-modernidade, surge um sujeito
fragmentado, sem identidade permanente, e que é suscetível às
influências dos sistemas culturais que o moldam.
A pluralidade cultural, conseqüentemente, obriga a cons-
tante reorganização identitária – pessoal ou nacional. A histó-
ria pessoal – biografia – ou a História dos povos é oriunda de
uma identidade aberta e em processo constante e perene. Nes-
ses parâmetros, a identidade acontece por estágios de signifi-
cação e não é inata. A concepção de si e do mundo é uma ela-
boração discursiva.
A concepção da identidade como elaboração discursiva
permite referendar o poder da palavra, que eterniza tanto a
verdade quanto a mentira, em esferas pessoais e particulares
ou públicas. Evidenciando esse vetor, o narrador contemporâ-
116
neo, responsável pelo olhar irônico lançado às convenções pri-
vadas e sociais, bem como aos eventos historicamente regis-
trados, cede continuamente a voz a múltiplas personagens,
propiciando uma polifonia que colabora para a concretização
desse processo de descentramento.
A polifonia impulsiona também a tarefa do leitor que mi-
ra o mundo da palavra, e se identifica ou não, encontrando na
palavra escrita outra referência capaz de reatualizar a identi-
dade pessoal dele, leitor.
As tessituras textuais entregam ao leitor a representação
a partir de três conceitos atinentes à compreensão histórica:
tempo, espaço e identidade. A relação humana com o espaço
em determinado tempo molda, por assim dizer, identidades. A
epígrafe do texto de Saramago, selecionado como objeto de a-
nálise, retirada de um hipotético Livro dos cons elhos “Se podes
olhar, vê. Se podes ver, repara”, introduz ainda a questão da
importância do olhar nessa formação-atualização identitária.
O Ensaio sobre a ceguei ra salienta que a organização e a
cristalização de lugares são um desafio imposto às coletivida-
des e aos indivíduos de qualquer lugar do mundo. É preciso
pensar a identidade e a relação, simultaneamente e simbolizar-
representar os elementos conceituais de identificação. No caso
do romance de Saramago, ocorreu a eliminação identitária de
seres e de uma cidade imáginária, que a leitura permite vincu-
lar à modernidade, por traços como semáforos e carros.
As antigas raízes, que marcam o lugar antropológico -
que pretende ser identitário, relacional e histórico - são desfei-
tas. Assim, o lugar antropológico-cultural e espaciotemporal-
mente definido desaparecem. É necessária a reconstrução total
a partir da descentralização da cegueira branca, que não privi-
117
legiou classes.
O manicômio surge como espaço babélico em que a rela-
ção entre os seres fica impossível. O diálogo desaparece total-
mente no espaço da incapacidade de ver, e é reinstituído, no
retorno à cidade, (que pode ser lida então como espaço da
convivência), pela mediação de um único olhar e uma identi-
dade feminina a que se junta a outra, canina.
O caminhar do cortejo pelo caos dá a dimensão da impor-
tância do outro. O eu-indivíduo passa a ser elemento da iden-
tidade coletiva, está ligado ao grupo ao qual pertence. É atra-
vés da partilha que surge a reconstrução.
A temática identitária e cultural corrobora a vigência da
“polifonia do olhar: os testemunhos, os documentos, as ima-
gens são as revelações do ontem e hoje de seres e universos. A
diferença entre o ser-espaço de ontem e de hoje se perpetua na
representação e se reconstrói. É o novo-velho de um momento,
até nova refiguração. E a palavra dita, escrita e lida, configura
o registro do mundo, do homem e de seus atos. O romance e-
videncia os limites tênues que separam a vida e a morte, certos
e errados, ideologias e sentimentos, todos mediados pelo po-
der da palavra.
A categoria da identidade não é a temática exclusiva do
romance de Saramago, em foco neste capítulo. A crítica e o
próprio autor consideram as narrativas de Ensaio sobre a ce-
gueira, Todos os nomes e A caverna uma trilogia, embora não ha-
ja pontos de contato entre os enredos dos romances. O que e-
xiste em comum é a visão do mundo tal como o autor afirma
entendê-lo.
A caverna é o terceiro eixo do trio temático. O espaço di-
egético do romance é um centro comercial e a personagem pro-
118
tagonista é Cipriano Algor, um artesão que vê o produto de
seu trabalho – pratos de louça ser desprezado pelo mercado,
que prioriza outros materiais, como o plástico, por exemplo.
A extinção do trabalho artesanal conduz a família Algor
para o eixo do Centro Comercial. O artesão passa a viver den-
tro do “mercado”, que substituíra sua arte individual pela in-
dustrial. A mudança acontece porque o genro da personagem
exerce a função de vigia do Centro.
O centro comercial é a representação narrativa do capita-
lismo contemporâneo e encena um simulacro de realidade
constantemente vigiada. A caverna revela um mundo em que a
condição humana e o conhecimento são aviltados. A multipli-
cação das imagens no mundo contemporâneo impossibilita ver
o que efetivamente ocorre, numa situação semelhante à que
vivem os habitantes da caverna de Platão, em que os homens,
de costas para o mundo, só o imaginam a partir das sombras
projetadas nas pedras.
O mito da caverna é o intertexto explorado como alegoria
da permanente perseguição ao conhecimento. Para chegar a e-
le, são necessários caminhos bem definidos a serem percorri-
dos, pois romper com a inércia da ignorância exige sacrifícios.
A primeira etapa a ser atingida é a da opinião. O indiví-
duo que se ergue das profundezas da caverna, tem o seu pri-
meiro contato com as novas e imprecisas imagens exteriores;
nesse primeiro instante, não as consegue captar na totalidade,
vê apenas algo indefinido cintilar à sua frente. No momento
seguinte, porém, insistindo, seu olhar inquisidor finalmente
poderá ver o objeto na sua totalidade. Então ele atingirá o co-
nhecimento. Essa busca não tem como limite descobrir a ver-
dade dos objetos. Busca algo superior: chegar à contemplação
119
das idéias morais que regem a sociedade - o bem , o belo e a
justiça.
A questão da identidade está presente na reelaboração
que Saramago faz do mito. Em A caverna está a sociedade glo-
balizada e massificada que provoca a anulação do “eu indivi-
dual”.
Os nomes escolhidos para as personagens são significati-
vos na diegese: Algor significa agitação febril (que se origina
no seu desconforto moral ante a dominância de um megacentro
econômico), enquanto Gacho (o lugar do pescoço que suporta a
canga), dialoga em significação pontual com a função de guar-
da do centro comercial. O sogro e o genro contemplam o cen-
tro e vislumbram nele significação diferente.
A surpreendente escolha de Cipriano, ao final aban-
donar o centro (a caverna) e voltar para casa responde por
uma reação à massificação do mundo contemporâneo, que exi-
la o respeito pelo homem.
O texto inscreve dois mundos. O visível é aquele que en-
clausura a maioria da humanidade, condicionada pelo lusco-
fusco da caverna, acreditando, iludida que as sombras são a
realidade. O outro mundo, o inteligível, é apanágio de alguns
poucos; aqueles que conseguem ultrapassar o estado de conhe-
cimento em que nasceram e rompem com os ferros que os
prendem ao subterrâneo alcançam a esfera da luz e privam das
essências maiores do bem e do belo.
O visível é o império dos sentidos, captado pelo olhar e
dominado pela subjetividade; o inteligível é o reino da inteli-
gência percebido pela razão. O primeiro é o território do ho-
mem comum, envolto pelas coisas do cotidiano, o outro é a se-
ara do homem que atingiu a sabedoria. A narrativa exorta à
120
identificação com Cipriano Algor, o homem comum que adqui-
re sabedoria.
A problematização da identidade, na obra de Saramago,
visa a uma redimensão do “eu” em um mundo condicionado
pelo capitalismo e pela cultura consumista, que dita modelos
sociais de comportamento, relegando a segundo plano os direi-
tos do homem e o respeito ao próximo. Os textos delineiam
uma preocupação com o homem e o sentido de estar no mun-
do.
Quando do lançamento de A caverna no Brasil, Saramago,
em entrevista a vários jornais, afirmou: “Gostaria que as pes-
soas fossem conscientes do mundo em que vivem, não sou con-
trário à ciência, mas o ser humano deve ser respeitado”.
A leitura dos textos da “trilogia” – e até dos demais – in-
dicia a releitura do passado com olhar moderno. Pelo recurso
da alegoria finissecular intertextual, através da especulação
sobre o sentido da vida e da morte, a narrativa funda uma sig-
nificação sociopolítica e define a globalização econômica como
uma nova forma de totalitarismo.
E se, em A caverna, os nomes remetem ao estado do ser, e
se, no Ensaio, as personagens são nomeadas pela função ou por
características relacionadas ao olhar, em Todos os nomes os no-
mes se ausentaram, à exceção do senhor José. Ele tem nome,
individualiza-se e circula pelo universo geográfico de todos os
nomes: Na Conservatória do Registro Civil e no Cemitério,
guiado pelo fio de Ariadne.
“Nada” parece ser a palavra adequada para sintetizar o
universo igual, regulado por regras similares a todo e qual-
quer lugar. Explorando o nada que os caracteriza, colocando
em cena o Sr. José, auxiliar de escrita da Conservatória Geral
121
do Registro Civil, rodeado do conservador e de subchefes sem
nome, Saramago alegoriza amplamente: a Conservatória é o
mundo, no qual a opressão se manifesta com freqüência, re-
produzindo a ordem social, com mecanismos de expressão de
autoridade que caracterizam um sistema piramidal, no qual o
trabalho das bases sustenta o ócio de poucos. Por outro lado,
no andamento dos processos, os vivos atropelam os mortos, os
mais antigos cedem lugar aos mais recentes. E o deslocamento
dos papéis e a troca de expedientes nas prateleiras metafori-
zam a própria ordem natural da vida:
“Não passa um dia sem que os auxiliares da es-
crita tenham de retirar processos das pratelei-
ras dos vivos para os leva r ao depósito do fun-
do, não passa um dia em que não tenham de em-
purrar na direção do topo das estantes os que
permanecem, ainda que à vezes, por capricho i-
rônico do enigmático destino, só até o dia se-
guinte” (SARAMAGO, 1997, p. 16).
A Conservatória e o Cemitério, espaços privilegiados na
obra, caracterizam-se ambos por possuírem Todos os nom es; re-
únem e movem os papéis da vida e da morte; são labirintos
que, no final, devido à decisão do chefe da Conservatória, pas-
sam a ser apenas um.
A leitura da visão de mundo intrínseca às três obras
permite captar as marcas e imagens que dimensionam uma po-
lifonia de vozes e de olhares. A ironia e o ceticismo, bem como
o trágico, o grotesco e o mítico ampliam o diálogo tecido pela
palavra autêntica, capaz de colocar em debate o “si” em rela-
ção ao “outro”, e questionar as imbricações das identidades
afetivas, intelectuais e sociopolíticas, em um exercício de re-
presentação híbrida e profundamente crítica.
122
A tríade diegética elabora usos da categoria memória.
Em Todos os nomes, a vida e a morte são resguardadas pelo re-
gistro escrito. Em A caverna, Cipriano escolhe ficar com a tra-
dição laboral preservada pela família, apesar das facilidades
da vida moderna no centro comercial. O apelo do passado e da
vida pré-centro é mais forte que o universo de consumo. E, no
Ensaio sobre a cegueira, a única possibilidade de continuar a e-
xistir é a reordenação do fluxo dos acontecimentos sob nova
diretriz organizacional humana.
6 O “OLHAR ERRANTE”
6.1 A AÇORIANIDADE DO IMPLÍCITO
A narrativa Imitação da morte, de José Martins Garcia
36
,
sob a égide da “polifonia do olhar”, delimita a perspectiva do
olhar português insulano para a Nação portuguesa e para uma
“nação íntima” e correlata: a Ilha dos Açores.
A escolha do texto de Garcia vem ao encontro do pressu-
posto abordado por Ribeiro (2002), em sua tese de doutorado:
“a própria estética pós-moderna se manifesta
quando se percebe que o papel dessas narra-
tivas é questionar a realidade portuguesa e
as posições historicamente assumidas por
Portugal; é mostrar, também, a condição do
açoriano/português e a sua nova posição
frente a Europa e ao mundo (p. 138).
A análise intenta observar como conceitos como os de a-
çorianidade, identidade, pós-25 de abril e guerra colonial se crista-
lizam na narrativa portuguesa contemporânea selecionada e,
ainda, tenta entrever como essa “cristalização” efetivamente
orienta o olhar que contempla o mundo e o seu mundo.
36
José Martins Garcia nasceu na Ilha do Pico, em 1941, foi professor, ro-
mancista, contista, ensaísta, dramaturgo e poeta.
124
A açorianidade é tema inclusive, de estudos do próprio
José Martins Garcia. Ao analisar a poesia de Roberto de Mes-
quita
37
, ele identifica, por exemplo, a discrepância contrastiva
entre o encarceramento, promovido pelo mar que cerceia a Ilha,
e a infinitude que o mesmo mar sugere, quando pensado sob o
viés da viagem.
Para Garcia, a açorianidade cultural deve ser buscada na
especificidade da própria literatura insulana. Segundo Almei-
da (1989), “açorianidade é aquilo que são e querem ser os aço-
rianos. Esse conceito alargar-se-á sempre que o mundo de
qualquer açoriano se alargar mais” (p. 169).
Ambos os conceitos destacam um espaço geográfico de-
limitado e, ao mesmo tempo, o caracterizam culturalmente. O
açoriano deseja para si a valoração daquilo que o faz diferente
em relação ao continente e, por outro aspecto, afirma que essa
diferença não o separa da comunidade portuguesa, e, sim, que
o identifica entre os portugueses continentinos.
Assim, “açorianidade é pertença da identidade açoriana –
fenômeno maior, que como sabemos, está sempre evoluindo e
transformando-se, uma vez que os fenômenos que a informam
também se alteram. Não há identidade coletiva que seja estáti-
ca” (BRASIL, 2003, p. 20).
A identidade em processo é subsidiada por fatores exter-
nos ao fenômeno. São vários e de distintas ordens os elementos
vinculados ao sentimento e à consciência identitária. Segundo
Castells (1999),
“A identidade vale-se da matéria-prima for-
necida pela história, geografia, biologia, ins-
37
A análise está publicada com o título Para uma literatura aç oriana, 1987.
125
tituições produtivas e reprodutivas, pela
memória coletiva e por fantasias pessoais,
pelos aparatos de poder e revelações de cu-
nho religioso” (p. 23).
E, no caso específico da identidade açoriana, há um sen-
tir que se acentua e que elimina possíveis resquícios de uma
idéia de bairrismo vinculado ao conceito de açorianidade, e
que é muito apropriadamente veiculado, de forma visível, nos
estudos de Freitas:
38
“[É] O homem das ilhas, enfim, ocupando in-
teiramente o seu lugar num universo que ele
sabe estar longe, mas que é seu. Ou então: A
açorianidade é isso mesmo, sempre o foi na
nossa arte – querer e saber pertencer à gran-
de família sem fronteiras” (p. 69).
As elaborações literárias, de diferentes gêneros, e teóri-
co-discursivas, advindas dos próprios autores e estudiosos a-
çorianos adensam um dado que é inegável sobre a questão:
pertencer. Escritos publicados, longe ou nas ilhas, estilhaçam
ou aglutinam a lusitanidade.
A Revolução dos Cravos
39
é um fato que marca a política
nacional e a cultura, bem como influencia sobremaneira a pro-
dução literária. A partir desse evento ocorre uma narrativa
“em que o narrador autocrítica e, ironica-
mente, projeta-se dialogicamente em seu ser-
outro, anônimo, questionando e questionan-
do-se a respeito da alienação do homem por-
38
FREITAS, Vamberto Henriques Ávila, nascido nos Açores, é um dos es-
tudiosos contemporâneos da literatura açoriana e das questões a ela
tu
126
tuguês, da conscienscialização, da participa-
ção do homem, enquanto indivíduo, na rees-
truturação da sociedade portuguesa que, du-
rante muitos anos, foi submetida ao regime
salazarista, e, por último, abordando os ru-
mos sócio-político-econômicos seguidos pela
modificação do regime” (REMÉDIOS, 1986,
p. 239).
O romance Imitação da morte não elabora uma revisão dos
eventos portugueses, nem historia um momento pré ou pós-
revolução. Nele, a “polifonia do olhar” surpreende a elabora-
ção de um sentimento intrigante de “pertença demasiada” que,
esse sim, refigura uma nação e seus eventos. A diegese de Gar-
cia, aqui em exame, coaduna-se com a projeção teórica de Al-
meida acerca da açorianidade:
“a açorianidade não deve acarretar consigo
imperativos metafísicos de insularização pa-
ra além do que o mar impõe. Ela deve ser, a-
cima de tudo, a aceitação dos Açores como
lugar de nascença e que viaja conosco não
como um freio mas como presença afetiva”
(1986, p. 314).
E assim, Imitação da morte é um sentir deslocado e deslo-
cando-se, uma vaga escrita que empurra para longe e perto,
em um vórtice lingüístico quase esmagador. E a consciência
insular articula-se e problematiza a questão da emigração de
forma implícita. Em Imitação, a torrente está de tal modo vio-
lenta que as águas da significação estão escuras. Mas, como em
toda torrente em percurso, vez ou outra assomam alguns ga-
lhos maiores à superfície lodosa, que segue um curso inexorá-
vel: o caminho do mar.
E, de certa forma, na “torrente” estão elementos das três
vertentes em que se têm desdobrado as temáticas narrativas
127
açorianas: a emigração, a ínsula e a guerra colonial. O parado-
xal do romance é que o leitor só chega a pensar em ilhas na
página 142, e conhece detalhes da vida nas ilhas, afinal Antó-
nio é um açoriano, no final do romance: até então, a narrativa
apenas trabalha a sensação de não ser sem indicar o pertencer.
Antonio é a personagem-emigrante. O sentimento de in-
sula o encarcera na geografia libertadora que a emigração lhe
propiciou e é pensada no cerco íntimo das divagações saudo-
sas que vagueiam em espaços pseudo-neutros.
6.2 O DUELO DA VIDA-MORTE
A “polifonia do olhar”, em Imitação da morte, segue a per-
sonagem protagonista em sua viagem bipolar: António está em
permanente deslocamento geográfico, o que, aliás, é acentuado
textualmente pela repetição constante do sintagma “Lá vai o
António Cordeiro...” e, ao mesmo tempo, em suas andanças re-
aliza um percurso interior identitário.
A identidade é duplicada nessa tensão narrativa. Os es-
paços externos, as ruas de Paris, Lisboa e Nova Iorque, corro-
boram e acentuam a ausência interna que molda uma identi-
dade maior: a do português errante “Lá vai o António Cordei-
ro que não encontra descanso em nenhum recanto deste plane-
ta contemporâneo” (p. 13).
António é professor. Ensina Língua e Literatura Portu-
guesa a estudantes universitários. Primeiro está em Paris. O
emigrante contempla a cidade francesa, os colegas e os alunos,
com o olho do estrangeiro. O sentimento de alheamento não
alcança somente os outros do espaço francês. Mesmo os seus
compatriotas são estranhos: “Para se proteger dos portugueses
128
– legião infinita espalhada ...” (p. 13).
Os portugueses em Paris pertencem ao novo espaço, in-
tegraram-se,
“Falam de Portugal como do paraíso, esque-
cidos já da madrasta onde não lhes consenti-
ram o pão. A grande amnésia lusitana não
poupa ninguém, estende-se do diplomata ao
operário, do intelectual ao analfabeto. Um
enorme apagador varre das mentes os signos
frágeis” (p. 16).
Não são, conseqüentemente, parceiros dele, António, in-
tegrado a lugar algum: “Lá vai o António Cordeiro [...] en-
quanto escuta em mente as ressonâncias da palavra diáspora”
(p. 18).
António não aciona o viver. Suas ações básicas são ir e
observar.
“Leva na mão enluvada a pasta de livros por-
tugueses, a lição preparada, os textos polico-
piados, o saber transmissível, a obrigatória
dedicação à causa da língua, da literatura e
da cultura portuguesa. Engenhosa forma de
alcançar mais um exílio; de olhar com distra-
ído olhar por fora (e olhar ensangüentado
por dentro) um fio de luz, agonia duma na-
ção, boqueirão inarredável por onde as for-
mas se diluem na infinita eternidade” (p.
18).
Sente-se arredado do mundo geográfico de antes e do a-
tual: “Não tens de seu sequer o tom dum poente” (p. 18). Ensi-
na português vinculado a um departamento que sente lhe de-
dicar uma atenção diminuta
“O Departamento, onde se cultiva, comenta
e enaltece a cultura espanhola, concede-te
129
uma distraída hospitalidade, uma hospitali-
dade motivada pela vizinhança dos países i-
béricos. Eles são catorze, tu és um [...] En-
sinas português – é uma língua adjacente. Se
falares de Literatura Portuguesa, pois muito
bem!, não te esqueças de que Eça de Queirós
viveu em Neuilly e Eugénio de Castro trocou
alguma correspondência com Verlaine” (p.
22).
E caminha por um espaço incapaz de esmagar a sensação
de não-pertencimento, e incapaz, ele próprio, António, de reu-
nir-se aos demais portugueses: “O mundo, porém, estava cheio
de portugueses [...] Tresmalhados, dispersos, apátridas – ou
conformados, unidos, nacionais – eles eram essa espécie de vi-
gilância que te seguia os passos“ (p. 28). Ele erra em Paris “É
que não possuis sequer identidade enquanto deambulas pelas
ruas de Paris” (p. 29). Incapaz de integração: “Vai-te matar,
António! Tu és o estrangeiro” (p. 29).
A memória da terra não-dita aniquila a vivência de An-
tónio em terras francesas.
“Trazias sargaços colados às mãos e aos o-
lhos, esquírolas de velhos terrores em todas
as juntas da memória, cheiros a vasas múlti-
plas, putrefacções irracionais [...] só medi-
tavas em náufragos e em outras tantas len-
das de limbos, gente a penar sem culpa for-
mada, fetos trazidos por um vento ruim e ali
varridos num milagre de assepsia” (p. 42).
E ele não consegue nada além do sentir-se em processo
de putrefação “Tens de apodrecer, António...” (p. 44).
E a possibilidade de ida para Lisboa:
“Vais ser agarrado, amordaçado, amarrado
de pés e mãos, António. Vão recambiar-te
130
para Lisboa, mais dia menos dia, pois é lá
que os dias fornecem a maior aceleração do
apodrecimento interior” (p. 44).
acentua o imobilismo insular
40
do “eu” solitário, cuja consci-
ência crítico-irônica sabe que em terras portuguesas tudo per-
manece e se repete “Volta para Lisboa, António: talvez aconte-
ça um novo terramoto de 1755 ...” (p. 67).
Portugal, “eterno e eternamente esfacelado, o tal que an-
da ‘pelo mundo em pedaços repartido’, mantendo sede em
Lisboa por desígnio insondável da puta que o pariu” (p. 84), te
chama de volta. “Não culpes ninguém e desculpa-te a ti mes-
mo” (p. 85), a ti, “senhor doutor António Cordeiro, de nacio-
nalidade portuguesa e idéias ambíguas” (p. 85), cabe regressar
a Lisboa.
Quando em Portugal “Lisboa incomoda-te, as salas de
aula reprimem-te” (p. 114) não entende os colegas docentes:
“desaustinam-se em programas, transpiram preocupações, afi-
nal o país não agüenta, isto não pode durar, e dura” (p. 114); e
permanece estrangeiro: “Lá vai o António Cordeiro, sem eira
nem beira, de pasta na mão e consciência indisposta... (p. 116).
Os dias em Lisboa
“foram-se enchendo de caruncho, indiferença
ou desprezo, um permanente fastio, um fun-
do frio, a certeza de viveres dentro de um
antro ‘fascista’ – já que tanta gente abusou
da palavra – [...] todos calcando, humilhan-
do, espezinhando quanto achavam ao alcance
da bota ... (p. 121).
permaneciam iguais, absolutamente iguais. Ele estava ficando
40
O imobilismo insular é a marca que caracteriza o que Assis Brasil defi-
ne como estética da rep etição da pe rmanência.
131
igual aos dias, sem uma intenção sequer,
“Sim, por que os teus planos de fuga, os teus
intentos de mudar de vida, os teus ‘ses’, os
teus fiascos medidos e pesados – tudo isso
embatia, embate, numa evidência maior, nu-
ma verdade factual: um homem nunca se sal-
va desde que ocupe um lugar errado” (p.
121).
em tempo e lugar errados “Estava tudo no lugar errado, espe-
cialmente o António Cordeiro que, desprezando a pedagogia,
ensinava, e gostando de viajar por mar, andava de autocarro
(p. 122).
A diegese suscita a história de Portugal e comenta a ocu-
pação das faculdades de Lisboa pelos estudantes,
“E, na manhã seguinte, sempre sob as cordas
daquela infindável chuva de Novembro – ti-
veste de ir de táxi -, deparaste com um aviso
na porta fechada da faculdade. Devido aos
acontecimentos do dia anterior, as aulas
recomeçariam em Janeiro. Um mês de trégua,
ufa!” (p. 140).
e, pelo evidenciar dos locais onde se “busca” e “ensina” co-
nhecimento, ativa um “olhar ironia-decepção”
“Celebrava, em verso livre, o encerramento
de todas as faculdades, as de pedra, as de
carne e osso, as do espírito (se ainda alguém
lhes desse foros de presença); o encerramento
da noção de ‘universidade’, irmã gêmea da de
‘universalidade’ e de quejandas manipula-
ções verbais; o encerramento dos países apo-
drecidos e o regresso dos humanos às caver-
nas de onde, por engano ou malvadez, os
deuses os haviam soltado” (p. 140-141).
A personagem, “comemorativamente” a esse estado de
132
coisas, sai, sob a chuva, compra uma begônia e coloca-a na va-
randa “... para um dia, mais tarde, te lembrares da vida” (p.
141).
A partir da revolta nas faculdades, a narrativa nomeia a
saudade da terra natal:
“desejavas tão intensamente a solidão, a in-
sulação, a tua Ilha de Saint Louis que fosse,
um ilhéu absolutamente deserto, a morte
limpa, dois minutos de reflexão de ti conti-
go, depois o mistério, as pálpebras cerradas,
deixar de vê-los, deixar de ouvi-los, esmiga-
lhar os seus perfis teimosos na memória” (p.
142).
A personagem deseja sair do universo “podre”, “lodacen-
to”. E o oposto ao lodo é a imagem da Ilha. O sentimento de
insularidade se expressa pela nostálgica rememoração do es-
paço distante, pela contemplação melancólica do espaço do
“apodrecer” e do sentir-se “apodrecendo” nele, tão engravata-
do quanto o sistema.
A açorianidade, em Imitação da morte, ocorre pelo viés da
negação. As situações cotidianas, ironicamente apodrecidas
pelo olhar estrangeiro e crítico, evidenciam os contrastes: o
lugar em que a personagem está inserida não é seu. A proble-
mática do lugar mantém a vida em suspenso. O tempo fora do
espaço “seu” é tempo sem vida, que “imita a morte”.
A ironia funciona como forma de relação com o não-ter,
com o não-ser. A personagem está sem vida, inerte, subjugada
por aquilo que não pode mudar e que não quer para si:
“Embalas-te agora, morto ou recém-nado-
nada, nas frivolidades que afinal te rodearam
o escasso e nublado tempo em que te foi dado
133
viver, ou quase sentir. Uma tristeza de tú-
mulo percorre-te sob a forma de nostalgia
[...] E a memória, António?... Essa, dizem
velhas sabedorias, apaga-se no íntimo de tua
própria sombra [...] Estás viver fugidiamen-
te o último clarão da memória que tanto ido-
latraste” (p. 143).
Na diegese, a identidade singular anula-se, não existe ser
fora de seu lugar correto, permanece apartada do continente.
Já a identidade coletiva, continentina, retorna a casa:
“Começaram a chegar de todos os cantos do
mundo. E abancaram. Cantando à guitarra
isto agora é nosso. Desembarcando em todas
as fronteiras, dentes ao léu, rasgadas sauda-
des, abraços a dar c’um pau, lágrimas longo
tempo reprimidas, lágrimas nocturnamente
soluçadas, lágrimas já calculadamente poli-
tizadas, lágrimas agora incontáveis e incon-
tidas. O país entrava no ciclo do crocodilo”
(p. 148).
E, no contraponto do momento glorioso, a personagem
contempla a expulsão de professores da faculdade e ironiza a
libertação nacional:
“Pois! Mas não acreditava nas palavras de-
les, não aceitava que antigos actos persecu-
tórios estivessem ditando a nova persegui-
ção, não admitias como justiça aqueles su-
mários actos de vingança [...] Onde se dete-
ria a máquina das ambições pessoais? Depois
de quem, quem? E, c’os diabos! Se isso nem
sequer merecia o nome de revolução, antes o
de um golpe de Estado, por que a expulsão
por motivos ideológicos?” (p. 149)
E volve o olhar para os Açores e o além Açores, não lusi-
tano,
134
“Navegando para oeste dos Açores, depois de
séculos de viagem, e se o vento for de feição,
um dia avista-se a costa americana. Pode não
ser exactamente a América – tem acontecido
enganarem-se alguns célebres marinheiros -,
mas, mais coisa menos coisa, sempre se acaba
por arribar a Oeste, se não houver naufrágio
para ceifar de vez a inquietação dos irrequie-
tos” (p. 150).
Sozinho, contempla o que acontece ao seu redor, do fun-
do da sala que lhe fora designada, e é sacudido pelo que acon-
tece a ele:
“A metamorfose que verificavas nesse ins-
tante era ainda muito mais bizarra: a cultu-
ra enlatada virara sardinha, e a sardinha,
nadando assim tão à vontade, estava notori-
amente a reivindicar liberdade de expressão.
E tu, António, completamente surdo” (p.
160).
A personagem retorna a casa para informar à mulher que
não ouvia sequer as próprias palavras: “Tinha perdido o mar –
a única vogal aberta do teu sonho” (p. 161).
A surdez de António o conduz a nova viagem, e outra
vez o aparta ainda mais de casa. É de novo o emigrante – ago-
ra foge do silêncio que o aprisiona:
“Esse velho anónimo percorre interminavel-
mente um corredor alcatifado do aeroporto
John Kennedy, túnel de reluzentes paredes
negras, ou túmulo do pecado – o das identi-
dades conjugadas -, [...] Estás velho, nause-
ado e surdo ...” (p. 162).
E o sentir sem chão e, agora surdo, recrudesce: “No prin-
cípio era o silêncio” (p. 162). Um novo princípio iniciava para
ele. E, no avião, António olha para fora “Lá embaixo, branca
135
recortada, fina, começava a desenhar-se a costa americana” (p.
163).
O terceiro espaço da narrativa é Nova Iorque. “Lá vai o
António Cordeiro, enluvado, de pasta pendurada na ponta da
luva. Com a cultura portuguesa a fingir de forro e aguardando
o snó” (p. 175). E a narrativa condensa nesse trecho a constata-
ção da diáspora de forma mais intensa “Está no país das co-
munidades: comunidade portuguesa, comunidade hispânica,
comunidade italiana, comunidade grega, comunidade negra,
etc, etc” (p. 177).
O espaço americano parece continuar a asfixiar a perso-
nagem: “Todo o vivido, por vivido, te é um doer medular,
mentes, inlocalizado, um doer onde presenças e ausências se
equivalem. Precisavas dum corpo, duns olhos, dumas pálpe-
bras, duma lágrima...” (p. 176). E a presença dos conterrâneos
outra vez o importuna:
“Os portugueses avançam ao teu encontro,
mais uma vez assim o julgas, deficientemen-
te, porquanto és tu quem está amarrado à
língua portuguesa, tua verdadeira única he-
rança, teu pesadelo, teus farrapos, tua morte
apodrecida em vogais quase inaudíveis, tua
nação dispersa” (p. 176).
A presença que acentua o significado da palavra diáspo-
ra “Leste, sonhaste ou disseram-te? ‘Os autênticos america-
nos são os índios; todos os outros são emigrantes’” (p. 178).
António caminha pela Acushnet Avenue:
“com seus lusitanos nomes bem visíveis, e
onde casas de mobília, de electrodomésticos,
sapatarias, farmácias e mais estoas, mesmo
quando ostentam designações em inglês, não
136
chegam a encobrir um nucleozinho português
do tipo Silva’s Market” (p. 178).
E contabiliza a abundância de cafés, restaurantes e gente
portuguesa a viver na América, e sempre “alguém a mastigar
este fel do exílio” (p. 179).
Através da personagem Flávio, outro português radicado
na América, em diálogo com António, o leitor tem uma ima-
gem da América sob o viés do que está lá há mais tempo
Oh, meu amigo! – compadece-se Flávio Você não percebe
mesmo nada deste novo mundo! Na América não há ateus!” (p.
183). E ainda a saudade da terra além-mar, mais que vontade
de voltar:
“Flávio é essa ambulante contradição portu-
guesa entre o exílio, onde se resolve econo-
micamente a vida, e outra pátria passada,
mutilada (ou morta) que o chama para escan-
carar (bem o sabes António!, já te aconteceu)
as entranhas esburgadas, o esqueleto do que
terá sido a esperança, o riso cadaveroso dum
projecto para sempre esborralhado, trucida-
do, carbonizado, evaporado...” (p. 183).
É no espaço americano que o leitor vai melhor compre-
ender a personagem e o seu anseio visceral pelo “sentir-se em
casa” sempre sonegado. António encontrou, ou melhor, um pa-
rente encontrou a António:
“Vais viajando sem vontade própria rumo a
Springfield, no americaníssimo automóvel
cujo dono se diz teu parente, primo na dele,
um emigrante fortalhaço e eloqüente, cheio
de memórias de há vinte e alguns anos” (p.
195).
E, então, nas palavras do outro, o leitor surpreende as
137
terras de que António tanto estivera distante espacialmente, e
havia soterrado na mente, “visitando Açores, Madeira, Caná-
rias, cabo Verde (o porto de São Vicente), Guiné [...] e Lisboa,
ah Lisboa...” (p.195). E a constatação final
“... perdeste a bússola Antón io, perdeste o ma-
pa, distraído duma figa – se processa afinal a
caminho de Springfield, Massachusetts, sem vi-
são de mar, nem de ma rinha, nem de caravela,
nem da Cruz de Cristo ...” (p. 196).
ocorre na casa do primo insulano, com António continuamente
inquirido “- Lembras-te?... – parla o teu primo. Elogia o i-
nhame, a lingüiça, o vinho, o arroz doce, o bagaço. Tudo tal e
qual como nas ilhas [...] – Lembras-te?... insiste” (p. 204) ,
onde, através das perguntas que revelam detalhes cotidianos, a
memória é resgatada.
E o monólogo de António já tem território, recém-dito,
recém-lembrado:
“E, se alguma dor te transtorna o estômago
avelhentado, não foi a América quem te ar-
rombou os costados. Morreste de outra coisa,
de febre contraída em outras latitudes, se ca-
lhar de inépcia congênita, se calhar de ruim
hereditariedade, se calhar por causa do teu
apagador da memória ... Onde estão os teus?
Onde está tua infância? Onde te morreu uma
ilha?” (p. 206).
E já há capacidade de nomear a saudade e de ser capaz
de fazê-la se transmutar em algo mais que o vazio:
“Um frio profundo arrepia-te a nacionalida-
de – esse sobretudo frágil que jamais te con-
fortou. E quando o vento passa a soprar do
Atlântico, sonhas com uma pequena lágrima
– é mentira – capaz de responder a ilha e
138
sargaços, águas, águas, águas, milhares de
léguas aquáticas onde não encontraste sepul-
tura” (p. 208).
O encontro com o primo é o laço familiar que demarca o
caminho do mar (de retorno) e atualiza o duelo de morte-vida:
tarefa difícil apodrecer em terra alheia.
6.3 OLHARES PORTUGUESES: CONTINENTE E
ILHAS
O estudo de um texto do autor português José Sarama-
go, que ocupa lugar destacado na literatura contemporânea do
seu país, e de um autor açoriano que, apesar de possuir pro-
dução relevante, ainda é pouco estudado, acentua a disparida-
de recepcional e demarca situações de ordem geográfica e, até
mesmo, de natureza histórica.
A forma inovadora de narrar de Saramago, aliada à re-
tomada e conseqüente discussão, sob novos aspectos, de fatos
sabidamente históricos e de caráter inclusive épico da literatu-
ra portuguesa, deu evidência a seus romances, embora sejam
controversos os juízos sobre eles, como já apontado.
Os textos saramaguianos discutem as questões internas e,
até, indiretamente, as externas, da nação portuguesa. Em âm-
bito ora mais, ora menos, histórico, ora cáustico e ferino, ora
filosofante, verdade é que os textos podem ser considerados
expressões escritas de um olhar que pensa a nação portuguesa.
A representação das idéias acerca da nacionalidade individual
e coletiva é facilmente visualizada nas diegeses.
Essa identidade é, em alguns textos, exacerbada e mesmo
questiona a permanência do “modo de existir português” sob
139
os auspícios de novas políticas de homogeneização global. Sa-
ramago vê e escreve sob a ótica de retomada histórica, para
desmitificar e incluir, e, também, principalmente nos textos
que ele próprio nomeou de trilogia, evidenciar o homem en-
volvido no processo de modernização do país. As narrativas
acionam o singular (através do oleiro e sua atividade laboral
ultrapassada, do funcionário público que conserva nomes, da
mulher que guia cegos) para atingir o plural: uma nação em
processo de escrever “uma sua nova história”.
Em seus textos há muita ideologia, uma escrita torrencial
e galopante até, e pouca nostalgia. Há o estabelecimento de
verdades novas, erigidas sobre outras oficializadas, e olhares e
palavras perscrutadores de futuro. Há uma nação representada
por sujeitos que, conscientemente, embora pouco instruídos,
questionam o amanhã.
O continente existe com força e vigor até mesmo quando
alegoricamente. E o autor lusitano, que coloca em pauta ex-
cêntricos, ocupa uma posição central na literatura contempo-
rânea. No caso da narrativa de José Martins Garcia, os elemen-
tos dados são outros.
Nascido no arquipélago dos Açores, o autor pode ser ca-
racterizado, pela condição insulana, como ”marginal”. Os Aço-
res são singularmente diferentes do continente. Sua história
tem pouco mais de quinhentos anos. A primeira das nove ilhas
teria sido avistada em 1532, embora houvesse descrições e re-
latos dos territórios desde 1336.
A posição geográfica dos Açores, em pleno Atlântico
Norte, determinou a “demora” em efetivar a colonização. Ini-
ciado o processo de colonização, consta que foram para as I-
lhas, além dos portugueses, franceses e flamengos, mouros,
140
judeus e cristão-novos. E ainda os espanhóis, que chegaram à
Ilha Terceira durante o domínio castelhano.
As diferentes levas migratórias geraram processos de
povoamento distintos e originaram discrepâncias culturais.
Distantes do continente e necessitando de organização local,
os “açorianos” adaptaram-se ao ambiente e estruturaram uma
sociedade com base nos elementos de que dispunham.
Em 1736, o Arquipélago passou a ser uma Capitânia Ge-
ral, com sede em Angra do Heroísmo, na Ilha da Terceira. No
ano de 1832, o território atingiu a categoria de Província Aço-
riana. A partir de 1976, o território passou a ser considerado
Região Autônoma dos Açores e a ter sistema de governo pró-
prio – parlamentarista. Atualmente, a população é estimada
em aproximadamente 270.000 habitantes.
A construção da identidade açoriana tem dois elementos
culturais emblemáticos: a emigração e a religiosidade. Soma-
dos ambos com a condição geográfica e seus condicionantes
naturais, esses fatores definem marcas culturais particularís-
simas.
A emigração para a América é um dado estatístico. Mais
de um milhão de portugueses vivem na América, e destes, oi-
tenta e cinco por cento são açorianos. A emigração é uma solu-
ção para problemas de espaço e de sobrevivência, mas também
é característica da literatura produzida no território e fora de-
le. O mar, que cinge a terra, faz recrudescer os sentimentos de
apego e não-pertencimento. O território é e não é Portugal. E
essa dualidade se reproduz, emblematicamente representada
nas produções açorianas.
Até 1974, a literatura açoriana privilegiava a poesia. A-
pós a Revolução dos Cravos, em 1974, aumenta o número de
141
prosadores. José Martins Garcia publica o livro de contos, Ale-
crim, alecrim aos molhos, em 1974, e Lugar de massacre, em 1975.
As produções narrativas acentuam, independentemente dos
pontos de vista, a peculiaridade da açorianidade, de forma
candente ou implícita.
Para Vitorino Nemésio, criador do termo, a açorianidade
é uma consciência de ilhéu, ligada ao apego à terra, ao encar-
ceramento pelo mar, capaz de criar e fundar um modo diferen-
te de ser e sentir. Açorianidade não é regionalismo - não signi-
fica exclusivamente o pertencimento a um lugar ou a uma re-
gião – o conceito alia diretriz estética e sensação de pertencer.
Averiguadas as diferenças entre espaços e autores aqui
em estudo, é possível afirmar que nação e identidade, pensa-
dos culturalmente, no caso da Literatura Portuguesa fogem ao
comumente sabido. O foco da questão escapa da baliza usual –
origem comum - e caracteriza-se por elementos de ruptura e
discursos diversos.
A narrativa portuguesa deslinda, em seus diferentes con-
textos, a historicidade vivida pela nação. A história dos povos
ibéricos, o domínio mouro, as conquistas marítimas e o impé-
rio colonial, a independência das colônias, a ditadura interna,
a entrada no mercado comum europeu, entre outros tópicos,
são temas abordados em textos literários que constroem “ima-
gens de nação”.
É certo que o português sempre esteve premido pela in-
suficiência histórica com que era observado pelos países euro-
peus vizinhos. Stuart Hall (1999), ao discutir a “nação narra-
da”, salienta que as culturas nacionais são construções muito
mais advindas de representações textuais e simbólicas do que
de instituições:
142
“Em primeiro lugar, há a narrativa da na-
ção, tal como é contada e recontada nas his-
tórias e nas literaturas nacionais, na mídia e
na cultura popular. Essas fornecem uma sé-
rie de estórias, imagens, panoramas, cená-
rios, eventos históricos, símbolos, e rituais
nacionais que simbolizam ou “representam”
as experiências partilhadas, as perdas ou
triunfos e os desastres que dão sentido á na-
ção” (p. 52).
Nessa linha teórica, o discurso próprio sobre si, em dife-
rentes gêneros, é o fundador de identidade e age antes de
quaisquer movimentos organizacionais instituídos.
O teórico Ernest Renan
41
, afirma que “Uma nação é uma
alma, um princípio espiritual”. Cita dois elementos que, se-
gundo ele, constituem essa alma e que estão em tempos distin-
tos
“Um situado no passado outro no presente.
O primeiro é a posse em comum de um legado
de memórias; o outro é o consenso do dia-a-
dia, o desejo de conviver, a vontade de per-
petuar o valor da herança que cada um rece-
beu de forma individual” (1994, p. 9).
Segundo esse critério teórico, são condições essenciais
para a elaboração de uma nação a existência de um passado
comum e a vontade no presente.
O passado comum pertence aos portugueses, menos glo-
rioso a partir do barroco e mais conflituosamente ideado a par-
tir da República, em 1910. E, a partir de 1932, marcado pela di-
tadura, que se estendeu por mais de quarenta anos.
41
As proposições teóricas aqui utilizadas pertencem ao texto Wh at is a
nation?.
143
A nação que esse povo desenhou, e atualiza constante-
mente pela escrita e pela “polifonia do olhar”, é baseada em
uma memória comum – recente ou distante – permeada de di-
ferenças, que são o âmago da nacionalidade real.
6.4. O PACTO DO OLHAR E DA ESCRITURA
A perspectiva da possibilidade de vários olhares para as
narrativas instaura a idéia de co-participação entre a esfera da
escrita e a da recepção e supõe, ainda, que ambas mo7 TwTJ-1a(ção)8s8(e, a da), TD0.0le0841–s esc.0843 Twex.0843 s5.6(mum)3.41.Tc07(c)3.45(ial0843 .) a nte2o
144
freu o jugo de regimes totalitários. A modernidade portugue-
sa, em conseqüência disso, é bastante diferente das demais na-
ções européias, como a França e a Inglaterra, por exemplo.
A identidade nacional é, nesse âmbito, um constante e-
lemento literário. Portugal conseguiu estabelecer dois extre-
mos. Articula relações dissonantes entre os conceitos de centro
e margem. Foi o centro em relação às suas colônias. Para Boa-
ventura Santos, Portugal também não é nação periférica. Para
o estudioso, o país entretece ramificações “complexas entre
práticas sociais e universos simbólicos discrepantes, que per-
mitem a construção social, tanto de representações do centro
como da periferia” (SANTOS, 1995, p. 65).
Portugal fixou posição mediadora entre países centrais e
periféricos, podendo ser percebido como semiperiférico. Essa
condição “semi” condensa ambivalências: apresenta fraqueza
nas relações externas e é exageradamente autoritário interna-
mente.
A literatura portuguesa tem discutido a idéia dessa mar-
ginalidade portuguesa em vários níveis e com grande número
de autores. E a ficção recupera as imagens do Portugal pouco
moderno na contemporaneidade, necessitando reforçar o diá-
logo com as ex-colônias, com as quais mantém traços culturais
fortes, e ainda envolvido no embate para integração ao projeto
comum de mercado europeu.
É surpreendente perceber, no universo ficcional portu-
guês, em maior ou menor latência e a cada nova geração, a rei-
teração do enigma “quem somos nós”? No contraponto dessa
suspeição identitária, das colônias portuguesas ou ex-colônias,
está o Brasil. É o país que mais proclama, ao mundo e a si
mesmo, uma pretensa especificidade étnica, cultural e afetiva.
145
Paradoxalmente, no entanto, talvez seja também o Brasil
o país que mais se deixe contaminar por influências exógenas,
alheias à cultura brasileira.
O caráter híbrido e fragmentado da identidade brasileira,
na qual o eu parece ser ao mesmo tempo sempre um outro, e
que já se tornou um clichê no modo como vemos e mostramo-
nos ao olhar estrangeiro, tem sido tópico de muita reflexão so-
ciológica e filosófica. Enquanto Portugal permaneceu fechado,
a sua maior colônia manteve as portas escancaradas.
Esse questionamento é bastante pertinente no plano his-
tórico e sociológico (apesar do discurso homogeneizante da
globalização), e constantemente posto à baila no plano estéti-
co. Será que a arte original e criativa depende ou independe
do localismo cultural? A ênfase no sujeito (des)norteado, prin-
cipalmente na ficção do autor português José Saramago, parece
estar vinculada à incapacidade de visualizar, no plano do cole-
tivo, horizontes outros, menos “duros” que os impostos pelo
consenso político e social que busca ser “igual” ao que é glo-
bal.
No atual momento mundial, em que os desdobramentos
políticos e econômicos pretendem a hegemonia do mercado,
minando, de fora para dentro, as fronteiras nacionais e a pró-
pria idéia de nacionalidade, quando as bases tradicionais de
representação literária entram em crise, forçando a reinvenção
dos elementos movedores do relato, o âmbito do nacional, do
autóctone, já não serve como exclusivo plano de validação es-
tética.
Nos romances aqui em pauta, Terra papagalli, Ensaio sobre
a cegueira e Imitação da morte, são elementos comuns e em dis-
cussão a identidade nacional (ou regional) e o questionamento
146
da identidade dos indivíduos, representados como seres frag-
mentados e inseridos em espaços e momentos um tanto quanto
tumultuados. A remodelação dos referenciais históricos está
radicalmente manifestada nesses textos, e os fenômenos da cri-
se do narrador e da indeterminação dos gêneros é a confirma-
ção de um estado de ser e de estar.
Em uma conjuntura histórica em que a idéia de naciona-
lidade, de identidade coletiva, evapora-se e o ressurgimento
dos particularismos culturais, religiosos e políticos talvez seja
um esforço para impedir essa evasão , o eu individual, origi-
nado nos alicerces da cultura que o acolhe, também se frag-
menta e faz emergir, como voz que fala na literatura, como su-
jeito do relato, a pessoalidade sem contornos definidos; e, por
outro lado, faz com que os temas se diluam como representa-
ção, e se constituam imediatismos. E não há manifesto ou pro-
jeto orientando essa nova estética, ela é a resposta à vigência
de um “estado cultural”.
Esse momento “aparece” no plano literário pelo viés da
escritura diferenciada: estão presentes a supressão da lógica
causal, da seqüência linear, em favor de elementos mais pró-
ximos aos fatos concretos da experiência, como a simultanei-
dade, a descontinuidade, a fragmentação, o deslocamento es-
paciotemporal, o acaso. Essa corelação momento-escrita pro-
picia a especulação do olhar.
O olhar surge como impulsão. Como um novo modo de
percepção, o olhar figura e se firma como instrumento de cria-
ção. É o iluminador de instantes. A imagem é tomada como a
essência mesma de um fazer até então caracterizadamente ver-
bal. E essa nova postura imagética, acentuada pela mídia, co-
loca em suspensão paradigmas estéticos e convenções e, ao
147
mesmo tempo origina outros.
Esse é o momento em que, segundo Frederic Jameson,
“a cultura se expande de forma prodigiosa
por todo o domínio do social, de tal forma
que tudo em nossa vida social – do valor e-
conômico ao poder do estado, das práticas até
a estrutura da vida psíquica pode ser chama-
do de cultural em um sentido original e ain-
da não teorizado” (1996, p. 74).
Em conseqüência dessa conjuntura cultural, os princípios
norteadores das discussões estéticas estão, obrigatoriamente,
sendo reavaliados. A obra literária hoje precisa ser pensada em
termos de contextualização flexível e móvel. É antes bem mais
evento cultural e histórico atribulado, de um olhar ainda de-
ambulante, do que fechamento.
No bojo de inúmeras especulações que permeiam essa si-
tuacionalidade cultural, algumas teorias pós-coloniais podem
sustentar a interpretação desses novos produtos, híbridos mui-
tos deles, e extremamente potentes em informações.
A leitura e a escrita, na esteira dos estudos culturais, al-
cançam as margens dos sistemas, trazem à roda elementos ex-
cluídos. A leitura pressupõe mais que deslindar a aventura da
linguagem, exige a percepção das práticas históricas de hoje e
de ontem, abrange o produzido e a recepção dele, além de en-
tendê-lo como múltiplo.
Essa desterritorialização evidente permitiu e estimulou,
inclusive, a seleção de textos tão díspares quanto os aqui reu-
nidos, para demonstrar uma estética do olhar.
A seleção textual, tão alentada em dessemelhanças, coa-
duna-se com a idéia da heterogeneidade cultural aproximando
textos de áreas distintas. No entanto, as leituras analíticas evi-
148
denciaram um emblemático vetor comum na gama de diferen-
ças em pauta. A força singular da palavra, em momentos de
tempo e de cultura tão distantes, é evidente, e vinculada à tese
funcional do “olhar polifônico”, está processando novas for-
mas de ser e de sentir mundos heterogêneos.
Em Ginsburg a “polifonia do olhar” imprime visualiza-
ção a duas significações. Primeiro, o arquivo histórico aberto
ao leitor destila uma profunda humanidade e instiga a leitura
biográfica. Segundo, a palavra, no instante inicial, está dita,
não escrita: é voz singular, fonte-recuperada, capaz de mobili-
zar um conhecimento muito superior ao do sujeito falante, o
do Santo Ofício.
Recém iniciado na arte da leitura, em uma época em que
a leitura não é prática cultural usual nem disseminada, o ho-
mem-personagem se destaca no núcleo comunitário a que per-
tence pela capacidade individual de significar o que lê. E, rei-
terando o pacto pluraliza escrita e recepção.
A categoria da memória, aliada ao trabalho da escritura,
redimensiona o homem, identifica-o, e o faz ser reconhecido
pela potência da sua palavra dita. A palavra, no mesmo pro-
cesso, o insere no mundo dos camponeses, realça esse mundo
e, após, o aparta dele, pela suposta necessidade de censurar a
mesma palavra.
Ainda, o conhecer, enquanto episteme, é mediado pelo
auto-conhecimento, enquanto formulador e argumentador do
conhecimento adquirido, e pelo outro, através do diálogo, que
permite a avaliação de pontos de vista diferentes sobre um
mesmo objeto. E o “eu” e o “outro” existem pela palavra, que
ambos contemplam com a mesma paixão.
Na Literatura Brasileira, o romance de Erico Verissimo
149
condensa a questão da representação e da recepção. A palavra
ficcional é tomada como verdade. O autor enfrenta “proble-
mas” de ordem real. A teoria fica diante do impasse entre a-
quilo que a literatura é e aquilo que passa a ser pela compre-
ensão do leitor crítico-especializado.
O resto é silêncio enfatiza não apenas o olhar leitor. A di-
egese, inicialmente, condensa e imobiliza sete olhares sobre
um momento e um fato. No momento seguinte ao ocorrido, lá
estão os sete olhares em movimento. E é o cotidiano pessoal de
cada um dos personagens, fragmentado e culturalmente muito
diferente, mostrado a partir do eu pessoal para o coletivo, que
molda o espaço urbano como um todo. A palavra ficcional
constrói a cidade real, ao mesmo tempo em que se desnuda
como processo de criação: o leitor processa a construção e a
significação simultaneamente.
No texto Terra papagal li, a palavra cômico-irônica dá o
tom da significação e traça uma identidade peculiar. A narra-
tiva atualiza a questão da identidade contemporânea. A escrita
se autofortalece pela própria escrita referencial, através do re-
curso paródico, e essa paródia, que fortalece a escrita, estimu-
la, pelo riso, novas significações.
Os textos de Ginsburg e Verissimo têm como elo a abor-
dagem de ângulos religiosos, e também a questão da escritura
com base em fato comprovável. A leitura da “escrita papagalli
faz a ponte referencial entre a ex-colônia e as narrativas por-
tuguesas elencadas. E o olhar integrador vai revigorar as dife-
renças.
As três últimas análises evidenciam a questão da identi-
dade pelo viés do nacional e do pessoal. O continente dialoga
com a colônia e a ilha. Os olhares são mais amplos e aprofun-
150
dam questões histórico-culturais, mas é a tessitura narrativa a
melhor parte da significação.
Os motes narrativos são oriundos de identidades indivi-
duais capazes de guiar e processar um enraizamento cultural
novo e abrangente. A nação se revela pelo olhar e pela narra-
ção, híbrida e instauradora de utopias. E até esse primeiro o-
lhar já chega escrito.
Em Terra pa pagalli, o riso demarca o território e funda
uma colônia. Essa individualidade, que “reproduz” a feição
portuguesa de governar, funda aqui a identidade nacional do
brasileiro. O demarcar fundacional traz para a contemporanei-
dade a identidade culturalmente vigente do “malandro safo” e
do país das possibilidades de crescimento e enriquecimento
fácil. O degredo viabiliza um Cosme Fernandes que não teria
espaço no continente lusitano. Em terras novas ele revela a ca-
pacidade de estruturar um mundo a sua feição.
As leituras do degredo, da cegueira e da solidão errante
identificam Portugal e o multiplicam. As identidades ultrama-
rinas ficcionais são uma, iluminada pelo sol dos trópicos, e a
outra, diluída pelo nevoeiro espelhos para contemplação de
solitários. Cosme só pode viajar na terra nova e, como precisa
do outro para viver, estabelece o diálogo com o elemento nati-
vo. António circula, ilhado, em mais de um continente. O diá-
logo com o outro não é capaz de diminuir o vazio provocado
pelo movimento migratório. Em Garcia, a ideologia da ausên-
cia é colocada em espaço aberto, onde há muito para ver, em
cores. Em Saramago, a identidade nacional é encarcerada pela
cegueira ideologicamente branca. Mas, tanto no Ensaio como
na Imitação, as personagens António e a mulher do médico ati-
vam o eixo terra-casa.
7 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Não vês que o olho abraça a beleza d o mundo in-
teiro? [...] É janela do corpo humano, por onde
a alma especula e frui a beleza do mundo, acei-
tando a prisão do corpo que, sem esse poder, se-
ria um tormento [...] Ó admi rável necessidade!
Quem acreditaria que um esp aço tão reduzido
seria capaz de absorver as imagens do universo?
[...] O espírito do pintor deve fazer-se seme-
lhante a um espelho que adota a cor do que olha
e se enche de tantas imagens quantas c oisas ti-
ver diante de si.
Leonardo da Vinci
A tese da vigência de uma “polifonia do olhar” e as lei-
turas demonstrativas da incidência de vários olhares entre dis-
cursos fronteiriços destacam a ambivalência cultural da con-
temporaneidade. No exato momento em que uma caudal força
sociopolítica pretende um homem global, esse homem articula
esforços no sentido de preservar memórias individuais e cole-
tivas.
O momento atual apresenta, ainda, a potencialização das
mídias e o ápice da cultura da imagem. Os sujeitos estão ávi-
dos por informações, das mais diferentes ordens, e elas che-
152
gam até eles pela imagem. Nestes parâmetros, não é exagero
afirmar que o sujeito de hoje é um ser predominantemente vi-
sual.
A conjuntura sugere que a história é uma visão-
pensamento de fatos ocorridos. O ato de olhar está significan-
do seres e mundos, ficcionais ou reais. Essa significação pelo
olhar, embora as imagens se apresentem unas, se desdobra em
singularidades. O ato de olhar atua em conjunto com fatores
espaciais, temporais e culturais que, no resultado, são elabora-
ções particulares.
Essa cultura da particularização diferencia inclusive mo-
delos de olhar. O sujeito pode trabalhar conscientemente duas
posturas do olhar: a do receber e a do buscar. O mundo se dá
ao olho humano. O receber não é tarefa pensada. As coisas to-
das, de repente, estão dadas na narrativa bíblica do Gênesis,
por exemplo, o mundo, fez-se a imagem e semelhança e foi da-
do ao corpo e ao olhar. Os olhos recebem passivamente e o
sujeito adquire, nesse processo, um conhecimento involuntá-
rio.
Acionar a modalidade “olhar-busca” é tarefa exercida pe-
la vontade, pela curiosidade, pela necessidade, ou outro moti-
vo qualquer. E esse “olhar-busca” é o que modifica a percep-
ção do dado. O que o homem busca está dado para todos, mas
apenas aqueles que se detêm na busca o alcançam. O resulta-
do do “olhar-busca” é a mimese estética do olhar. O sujeito
capta o dado e, então, elabora um novo elemento a partir da-
quilo que estava para todos. O efeito da elaboração produzida
pelo olhar é a interpretação una do mundo.
Essa interpretação nascida do olhar é a energia dinami-
zadora que funciona para além da imagem, mas que se recons-
153
trói em imagem outra vez, para se relançar ao encontro do ou-
tro olhar. E, dada, pode ser processada por novo ”olhar-
busca”, e reconfigurada em algo totalmente inédito, a ser no-
vamente lançado ao encontro do “olhar-receber”.
O paradoxo dessa estruturação imagética, elaborada e
reelaborada sempre pelo olhar é a situação do espaço tempo da
modernidade. Há uma concepção de olhar, vinculada ao ângu-
lo do contemplar, que parece ensejar suspensão de contatos. A
contemplação sugere meditação, concentração, imobilidade, si-
lêncio.
E a sociedade contemporânea prima pelo movimento con-
tínuo (as informações ficam velhas tão rápido!), pela velocida-
de, pelo ruído eletrizante do quase caos urbano.
A urbanização coloca o homem no vórtice da balbúrdia.
Há muito que fazer, ouvir e ver. E tudo está dado simultanea-
mente. E, então, ocorre a possibilidade de supressão do “olhar-
busca”. Sujeitos, enovelados no burburinho, irão permanecer
no patamar do “olhar-dado”. Outros caminham pela dispersão,
mas ativam um senso de eliminação do dado enquanto priori-
zam o buscar. O “olhar-busca” é, assim, antes de imagem, ex-
periência interior. É a mente que se espelha e se confirma em
renovada e reafirmada identidade.
Os seres, pensados sob essa estética do olhar, chegariam
a desiguais níveis de atuação do olhar. Nem todo olhar seria
capaz de ser busca, ou seria apenas em alguns momentos, ou
alcançaria estágios do processo, em função de atribulações co-
tidianas ou incapacidade de selecionar ângulos onde se fixar.
A memória é elemento importante no processo de efeti-
vação desses supostos modos de olhar. A capacidade percep-
tual e expressiva do olhar encontraria suporte nas palavras. A
154
memória reagiria ao já elaborado e expresso, reorganizando-o.
Seria o agente catalisador a impulsionar o “olhar-busca”, em
perspectivas ampliadas e aprofundadas.
A memória uniria o conhecer pelos sentidos e conhecer
pela mente, e produziria a expressão ideal: dialética e polifô-
nica. Essa expressão reconheceria o mundo dado e o ultrapas-
saria, sugerindo novas possibilidades de expressão e experiên-
cia.
Uma linguagem caracterizada por esse olhar especial,
quase ideal, adensaria a visão, o entendimento, e seria “arte-
método”. Lingüisticamente, estaria aberta a possibilidade de
tornar visível o olhar do outro para outro. O mundo privado
abrir-se-ia, para o olhar comum, e entendimentos poderiam
passar a ser mais que apenas imagens.
A “arte-método” seria o objeto da leitura. Ler seria pes-
quisar olhares idos e retidos pela palavra. Quanto mais ideal o
olhar, mais arte expressa. Nessa vertente, a leitura seria a pos-
sibilidade de aprender (método) a especializar o olhar. Seria
flexível, aberta e potencialmente criativa. A “arte-método” fa-
ria da linguagem o veículo de enraizamento de afetos, vonta-
des e identidades.
Uma vez considerada arte, a produção efetivada seria ob-
jeto de cuidado, zelo, respeito, admiração. Expressão do olhar,
essa produção lingüística teria status de poder e seria linha e-
xistencial de vivências. Arquivo da sabedoria de olhares sin-
gulares, abertos para a educação do olhar do outro.
O volver o “olhar-busca” para as narrativas selecionadas
significou entrevê-las como arte, dentro de suas esferas distin-
tas, e pesquisar significações nas nuances desses olhares já
“lançados de volta” como “arte-método” que foram considera-
155
dos.
O texto de O queijo e o s vermes recorda o olhar de um
tempo em que elaborar conceitos era perigoso. A audácia de
expressá-los era crime. Acreditar nas significações que a leitu-
ra parca e a experiência íntima teciam, e querer ampliá-las, en-
trou para a história como heresia. A leitura atual revigora a
identidade humana especial em um contexto de reatualização
do “olhar-busca” expressado sob um novo matiz.
A narrativa de Ginsgurg apresenta ao leitor uma perfeita
“polifonização” do olhar. O “olhar-busca” tem mais de um
agente direto no texto. São colocados, diante do leitor, o bus-
car do historiador, debruçado sobre os arquivos inquisitoriais
(e essa primeira busca amplia desmesuradamente os elementos
desse olhar, quando transformada em “arte-método”); de Me-
nocchio, absorto em suas descobertas, e a circularidade dialó-
gica aumenta, nesse ponto, em virtude de que o mote para o
movimento ocular do inquirido são livros e, portanto, já a re-
verberação de outros olhares transformados em palavra; o o-
lhar dos inquisidores do Santo Ofício, tentando seguir o olhar
do moleiro a partir do olhar já instituído e absorvido por eles
para as idéias em questão e geradoras do embate e, ainda, e de
certa forma, de novo primeiro, o “olhar arte-método” já elabo-
rado pelo historiador.
O leitor, nesse percurso interpretativo, é um “olhar-
busca” externo. E é óbvio que, do contato desse ângulo externo
com o texto, várias outras perspectivas podem surgir.
A leitura aqui elaborada entreviu mais de um elemento
nessa dialética de olhares. Ficou nítida a identidade singular,
histórica; um perfil humano em um microcosmo social e um
perfil de leitor. E ainda, que a leitura silenciosa, incipiente em
156
função do grande analfabetismo e da prática usual de conhecer
a palavra pela voz de outro, geralmente clérigo, poderia ala-
vancar o conhecimento a partir de parâmetros individualiza-
dos.
Também que a sociedade se abria para o conhecimento
com a publicação de textos em latim vulgar, na grande maioria
religiosos, no exato momento em que a Igreja, e seus dogmas
instituídos passavam por uma fase de questionamentos. Ao
mesmo tempo em que a pluralidade de pensamentos ganhava
espaço, recrudesciam as tentativas de eliminar os mais auda-
zes: aqueles que transformavam o seu “olhar-busca” em dis-
curso não ideologicamente alinhado com o poder religioso e-
ram julgados, pelas regras do poder, e condenados a nada me-
nos que a morte.
A ambivalência do período sugere que “muitas identida-
des” dessa época tenham sido eliminadas em função da força
creditada a discursos individuais. E que vários outros olhares
devem estar guardados em arquivos, recheados de olhares
não-autorizados.
O ser “olhado” por Ginsburg e graças a existência das
palavras ditas transformado em “arte-método”, identificado
para a atualidade com o sugestivo nome que indicia uma das
principais linhas acusatórias do processo inquisitorial, flexibi-
lizou a narrativa histórica. A leitura desse olhar que se quer
tese vai mais adiante e se permite ver nele, além da historici-
dade intrínseca e perfeitamente formulada, elementos dos gê-
neros de fronteiras (já referidos anteriormente), a humaniza-
ção do ex-cêntrico, que caminha ao encontro do momento cul-
tural, que cede espaço à diversidade cultural e identifica, pela
singularidade, a culturalidade de ontem e de hoje.
157
Quantos olhares mais já podem ter sido originados dessa
“arte-método” é uma curiosidade que talvez já esteja sendo
transformada em palavra e ganhando espaços outros.
Importa salientar ainda que o registrado por Ginsburg,
sob uma especulação memmônico-histórica, encontra resso-
nância imediata em espaço-tempo bem mais recente. A censura
ao expresso e a condenação inexorável não estão tão apartadas
assim da contemporaneidade. Talvez os elementos de repres-
são é que tenham adquirido novos contornos.
O “olhar-busca” delimitado em O resto é silêncio esboça
um método de fazer a “arte-método”. Erico “devolve” um pro-
cesso laboral ficcional tão significativamente real que articula
a querela da questão da identidade em níveis diferentes.
O olhar inicial institui o chamamento à participação. O
leitor é convocado a participar do processo comunicacional,
que olhares ficcionais dirigem a um fato real, o suicídio da
Rua da Praia. O romance que se organiza e nasce com base his-
tórica suscita, também, o indivíduo histórico.
E as questões recepcionais, que desencadeiam um pro-
cesso vinculado à identidade ideológica do autor, evidenciam,
outra vez, o “minúsculo” que assume importância em função
de sua prática discursiva. Olhar e palavra organizados em
formato ”arte-método” são retirados de seu campo de atuação,
a ficção, e observados enquanto ideologia, denotando a supo-
sição de que efetivar a “arte-método”, mesmo no caso de um
escritor de romances, propicia o alargamento das fronteiras
entre os gêneros.
O olhar para essa maleabilidade de interpretações reitera
a questão da corporeidade cultural do olhar do sujeito que o-
lha. Há questões culturais e ideológicas internalizadas nos
158
textos, sim, porém é o olhar externo, que efetiva a leitura, que
vai refundar o mesmo texto sob sempre novas diretrizes.
No caso de O resto é silêncio, a corporeidade distinta do
olhar é interna, também na segmentação social diegética. Uma
das personagens, o “Sete-mêis” (que nasceu antes, e que o lei-
tor vai descobrir que morre antes) figura o microcosmo da po-
pulação da periferia da cidade. O olhar dele para a moça que
cai de um edifício é elemento que vai conduzir o leitor a um
local periférico evidenciado por vários paradoxos. O menino
que deixa de ir à escola em busca de alento para as finanças da
família e, nesse movimento evade-se do âmbito cultural, sai à
rua para vender jornais e entabula diálogos com os núcleos
culturais em função da venda do produto cultural que lhe é
sonegado: a leitura.
Entre as demais identidades que a obra estabelece, essa
acentua uma crueza social, que é atual ainda agora. O “Sete” é
espancado na noite do suicídio. No corre-corre, empurra-
empurra da rua, no momento em que o corpo da moça precipi-
tara-se no vácuo, deixara cair o dinheiro ganho com a venda
dos jornais. Ele tenta explicar o fato, mas, como a notícia não
circulara além das ruas centrais, o pai não acredita nele. O
menino, na diegese, morre - com uma flor na mão. Flor rouba-
da para dar à mãe – logo depois que um dos olhares da cidade,
o de Gil, se havia volvido para ele e marcado um encontro que
poderia indiciar uma possibilidade de integração a uma vida
mais digna.
A identidade da exploração infantil demarcada pelo ro-
mance, no entanto, não é ponto alto na polêmica que o roman-
ce institui. É bem maior a indignação de alguns segmentos da
sociedade em função da suposta representação ficcional da eli-
159
te efetivada pela recepção.
A questão identitária, possível de ser visualizada na “ar-
te-método” de Erico, coaduna-se com o conceito proposto por
Stuart Hall (1999), ela é múltipla, muito mais produto da dife-
rença e da exclusão do que signo da unidade. O deslocamento
do sujeito em função de rupturas nos discursos do conheci-
mento atinge a visão que as sociedades têm de si. A identidade
opera pelo rompimento da homogeneidade e pela necessidade
de considerar as células internas em inter-relação.
É perceptível, nas narrativas de Erico e Ginsburg, a iro-
nia que acentua certa tragicidade e expressa melancolia e ceti-
cismo. Já o “olhar-busca” atuante sobre Terra papagalli filtra
uma tonalidade irônica mais ampla, ativada, inicialmente, pela
intertextualidade.
As narrativas de viagem, usualmente, relatam o olhar es-
trangeiro para um espaço, objeto ou seres vivos, durante ou
após o encontro. Na paródia papagalli existe um tempo irônico,
que suspende quinhentos anos de história e foca, não o nativo,
mas o próprio estrangeiro.
A Carta de Caminha dava conta do achado ao rei de Por-
tugal. A paródia acha o filho perdido em terras portuguesas e
suscita uma certidão de nascimento individual. Caminha regis-
tra o Brasil. O romance brasileiro registra o português.
Marcus Aurélius Pimenta e José Roberto Torero moldam
um discurso irônico que se alinha às proposições da teórica
Linda Hutcheon quanto à disposição “transideológica da iro-
nia”e o que ela chama de “comunidades discursivas sociorréti-
cas” que, ao justaporem sentidos específicos, acentuam a am-
bivalência cultural e identitária, auxiliando no reconhecimen-
to dos sinais irônicos.
160
O discurso papagalli é uno quanto à voz do narrador em
primeira pessoa, mas a auto-reflexidade irônica desnuda as es-
tratégias textuais, evoca a complexidade da identidade no
quadro social e confere opacidade ao passado oficial da histó-
ria da nação.
O debate político, ideológico e identitário captado pelo
“olhar-busca”, e sacudido pelo riso, é um processamento do
velho no novo. O romance instaura fios históricos e os rompe
pelo questionamento sarcástico: a deslegitimação promovida
pela paródia compromete a identidade original de uma nação,
pelo recorte da identidade singular. E essa identidade corrobo-
ra o olhar atualmente corrente sobre o Brasil – o país do jeiti-
nho – embora o riso desloque a “culpa disso” atribuindo-a ao
lusitano. O que de certa, forma, é “outro jeitinho”.
A ironia extrema, paradoxalmente, humaniza a descober-
ta do Brasil mostrando, de forma fragmentada, as complexida-
des das relações entre história e sociedade. A personagem que
narra a sua vida para enviar ao pai, ensejando o reconhecimen-
to da filiação, desmitifica e escreve uma biographogenus da na-
ção que, de certa maneira, permanece extremamente aberta ao
outro (ideológico e pessoal).
A “arte-método” de Saramago reafirma a idéia de que
uma das peculiaridades do romance português do pós-74 é a
reavaliação da história e a observação dos produtos culturais
da modelização da economia atual.
O Ensaio sobre a cegueira encena a crise identitária nacio-
nal a partir de personagens incapazes de ver. Ideologicamente,
a situação de se deixar guiar pela matriz da economia de mer-
cado dialoga com aqueles, que em virtude da cegueira, preci-
sam ser guiados no núcleo diegético.
161
A epidemia de cegueira branca gera dor e catástrofe no
romance. Essa mesma cegueira metaforiza o presente da nação,
que se deixa guiar pela idéia-necessidade de integração euro-
péia. O desencanto da mulher do médico, diante da situação
em que quis estar, ironiza atitudes governamentais “politica-
mente corretas” adotadas.
O olhar polifônico aqui proposto, no caso da narrativa de
Saramago, atua em branco e sublima uma tragicidade inexorá-
vel: na ficção as personagens centrais voltam para casa e recu-
peram a visão e a identidade, mas a identidade nacional, alar-
gada pelos vetores políticos e econômicos, encontrará uma li-
nha de sustentação que lhe permita existir singular e global
diante do mundo homogeneizado?
A ficção de Saramago institui um fio ideológico que guia
o “olhar-busca” pelos contingentes da História, da literatura,
conjuga práticas discursivas e enseja um diálogo crítico entre
passado, presente e futuro. A expressão “ainda estamos meio
vivos”, lá do Ensaio, também encontra ecos prismáticos na vida
real.
As duas narrativas portuguesas aqui reunidas colocam
personagens em movimento. No Ensaio sobre a cegueira, antes
da cegueira coletiva, as personagens estão inseridas no cotidi-
ano moderno de uma hipotética cidade e, após a cegueira, va-
gam pelo mesmo espaço, porém ele foi modificado, devastado,
pelos cegos.
José Martins Garcia dá a sua personagem um espaço bem
maior: António perambula por espaços geográficos reais no-
meados. Em Saramago a incapacidade de ver aparta os seres
dos referentes reais e de si mesmos. Imitação da morte dá vida
ao percurso do ser que se sente “apodrecer” vitimado pela
162
consciência de não-pertencimento, que o afasta continuamente
dos outros. António não encontra espaço continental de seu: é
uma ilha, paradoxalmente, em constante movimento em espa-
ços terrestres.
A insularidade particular de António, histórica e ideoló-
gica, tem um olhar mordaz e crítico. A personagem, que se vê
em estágio de apodrecimento e reitera constantemente essa
consciência, contraditoriamente articula um olhar muito vivo
sobre a sociedade e os fatos históricos que “circundam” a sua
ilha de apodrecimento. O olhar desenraizado, pouco acultura-
do, olha mais profundamente que muitos olhares localizado
em seu confortável contexto original.
O “olhar-diáspora” faz recrudescer a memória do famili-
ar, cruza a identidade íntima com a identidade da multiplici-
dade. A sensação de desenraizamento da personagem António
não origina uma versão de flanneur de mundos novos, mas,
sim, gera uma saudade ontológica, um banzo que faz apodre-
cer.
A análise das narrativas demonstrou que o “olhar-busca”
produz uma imagem imaginada, por conseqüência, o olhar “ar-
te-método” é percepção e memória laborados criativa e lin-
güisticamente, e abertos ao “olhar-receber”. E ainda, que os
olhares analisados, de certa forma, articulam um olhar mais
criativo que reprodutivo, e acionam uma memória voltada pa-
ra ação.
Em um momento cultural em que todos desejam e preci-
sam ver tudo, a dialética da “polifonia do olhar” conduziu à
certeza da incompletude alentadora. A profusão exaustiva de
tantos olhares em processo, e a proposição desenvolvida, cer-
tamente impedem o fechamento da discussão iniciada aqui. Es-
163
sas “considerações finais” apresentam-se como um metodoló-
gico “olhar-ponto-final” sabidamente utópico.
8 OBRAS CONSULTADAS
ALBERTI, Verena. O riso e o risível: na história do pensamento.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, FGV, 1999.
ALMEIDA, Onésimo Teotônio. (Org). Da literatura açoriana:
Subsídios para um balanço. Angra do heroísmo: Direção Regi-
onal dos Estudos Culturais, 1986.
____.Açores, açorianos, açorianidade: um espaço cultural. Ponta
Delgada: Marinho Matos Brumarte, 1989.
ANDERSEN, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo:
Ática, 1989.
ARISTÓTELES. Poética. Porto Alegre: Globo, 1996.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética
a teoria
do romance. São Paulo, 1998.
____. A autobiografia e a biografia. In: E stética d a criação ver-
bal. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
____. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o con-
texto de François Rabelais. Trad. Yara Frateschi Vieira. São Pau-
lo: Hucitec; Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1999,
4ª ed.
BATISTA, Karina Ribeiro. "Caso Fritzen": a polêmica em torno de
165
o resto é silêncio, de Eri co Verissimo. (Dissertação de mestra-
do). Porto Alegre, Pontifícia Universidade Católica do
RS, 2004.
BAUDELAIRE, Charles. Da essência do riso e, de um modo ge-
ral, do cômico nas artes plásticas. In: Escritos sobre a arte. Trad:
Plínio Augusto Coelho. São Paulo: Imaginário, 1998.
BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história.In: Obras es-
colhidas: Magia e técnica, arte e política. 7ª ed. V. I, São Paulo:
Editora Brasiliense, 1994.
BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comi-
cidade. Trad: Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins
Fontes, 2001. (Coleção Tópicos).
BHABHA, Homi. Introduction: Narrating the nation. In: ___
Nation and narration. London; New York: Routledge, 1994.
BORDINI, Maria da Glória. Criação lit erária em Eri co Veríssi-
mo. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1995.
BRASIL, Luiz Antonio de Assis. Escritos açorianos – a viagem
de retorno: tópicos acerca da narrativa açoriana pós-25 de a-
bril. Lisboa: Salamandra, 2003.
BURKE, Peter. A escrita da história. Novas perspectivas. São
Paulo: Unesp, 1992.
CARREIRA, Shirley. Entre o ver e o olhar: a recorrência de te-
mas e imagens na obra de José Saramago. Atas do 6º Congresso
da Associação Internacional de Lusitanistas, 1999. Disponível
em: http://www.geocities.com/ ail_br/entreovereoolhar.html
CASTELLS, Manuel. O poder da identidade. São Paulo: Paz e
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CHARTIER, Roger. À beira da falésia: A história entre certezas e
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2002.
CHAVES, Flávio Loureiro. Erico Verissimo : o escritor e seu
tempo. Porto Alegre: UFRGS, 2001.
____. Erico Verissimo: realismo e sociedade. 2ª ed. Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1981.
____.O contador de histó rias: 40 anos de vi da literária de Erico Ve-
rissimo. Porto Alegre: Globo, 1972.
CULLER, Jonathan. Teoria Literária
uma introdução. São Paulo,
1999.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Trad. Maria Bea-
triz Marques Nizza. São Paulo: Perspectiva, 1995.
DURING, Simon. Literature – Nationalism’s other? The case
for revision. In: BHABHA, Homi. Nation and narration. London;
New York: Routledge, 1994.
DUTRA. Isadora. Um eco do riso Rabelaise028.425 -1.865 TD0.0843.0019linissimo
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____. Memória da Terra. Lisboa: Veja, 1990. Coleção O Chão da
Palavra.
____. Imitação da Morte. Lisboa: Moraes Editores, 1982.
GINSBURG, Carlo. O queijo e os vermes: o cotidiano e as idéias de
um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das
Letras, 1987.
GUSDORF. Georges. Condiciones y límites de la autobiografía.
Suplementos Anthropos, Barcelona, v. 29, p. 9-17.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Trad.
Tomaz Tadeu da Silva e Guacira Lopes Louro. 2
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ed. Rio de Ja-
neiro: DP&A editora, 1999.
HOBSBAWN, Eric. Nações e nacionalismos desde 1780: programa,
mito e realidade. Trad. Maria Célia Paoli, Anna Maria Quirino.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1990.
____. Sobre História. Trad. Cid Knipel Moreira. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
HUTCHEON, Linda. Uma teoria da paródia: ensinam entos das
formas de arte do século XX. Tradução: Teresa Louro Pérez. Lis-
boa: Edições 70, 1989.
____. Poética do pós-modernismo. História, teoria, ficção. Rio de
Janeiro: Imago, 1991.
____. Teoria e pol ítica da ironi a. Belo Horizonte: UFMG, 2000.
ISER, Wolfgang. El processo de lectura. Uma perspectiva fe-
nomenológica. In: WARNING, Rainer (ed) Estética de la recep-
ción. Madrid: Visor, 1988.
____. La realidad de la ficción. In: WARNING, Rainer (ed.) Es-
tética de la recepción. Madrid: Visor, 1989.
168
____. O fictício e o imaginário: perspectivas de uma antropolo-
gia literária. Rio de Janeiro: Ed. da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro, 1996.
____. O ato da leitura: uma teoria do efeito estético. Rio de Ja-
neiro: Editora 34, 1996-99. 2v.
____. Teoria da recepção. In: ROCHA, João Cezar de Castro
(org.) Teoria da ficção: indagações sobre a obra de Wolfgang I-
ser. RJ: Eduerj, 1999.
JAMESON, Frederic. O pós-modernismo ou a lógica cultural do
capitalismo tardio. Trad. Maria Elisa Cevasco. São Paulo: Ática,
1996.
KARAM, Henriete. Sensorialidade e liminaridade em Ensaio sobre
a cegueira, de José Saramago. (Dissertação de mestrado).Porto
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LEJEUNE, Philippe. Le pacte autobiographique en France. Paris:
Seuil, 1975.
LIMA, Luis Costa. A literatura e o leitor. Textos de estética da
recepção. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
MIGNOLO, Walter. Lógica das diferenças e política das seme-
lhanças. Da literatura que parece história ou antropologia, e
vice-versa. In: CHIAPPINI, Ligia; AGUIAR, Flávio Wolf (Org).
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MINOIS, George. História do riso e do escárnio. Trad. Maria He-
lena O. Ortiz Assumpção. São Paulo: Editora UNSP, 2003.
MONTAINE, Michel de. Ensaios. Porto Alegre: Globo, 1962.
PERRONE, Cláudia Maria. O cômico e o riso. In: Letras de hoje.
Porto Alegre: EDIPUCRS, v. 32, 1997.
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PINHEIRO, Luciana Boose. A recepção crítica de O resto é silên-
cio de Erico Verissim o. (Dissertação de mestrado). Porto Alegre,
Pontifícia Universidade católica do RS, 2002.
PROPP, Vladimir. Comicidade e ri so. Tradução:Aurora Fornoni
Bernardini, Homero Freitas de Andrade. São Paulo: Ática,
1992. (Série Fundamentos, 84).
REIS, Carlos. O conhecimento da literatura. Coimbra: Almedina,
1995.
REMÉDIOS, Maria Luiza Ritzel. O romance português contempo-
râneo.Santa Maria: Universidade Federal de Santa Maria, 1986.
RENAN, Ernest. What is a nation?. In: BHABHA, Homi. Nação e
narração. London; New York: Routledge, 1994.
RHEINHEIMER, Marione. A essênci a que nos redime: um percurso
através da cegueira. (Dissertação de mestrado). Porto Alegre:
Pontifícia Universiade Católica do Rio Grande do Sul, 1999.
RIBEIRO, Lúcia Helena Marques. O conceito de açorianidade na
Narrativa Açoriana pós-25 de abril. (Tese de doutorado). Porto
170
SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o
político na pós-modernidade. 2ª ed. São Paulo: Cortez, 1995.
SARAMAGO, José. História e ficção. Jornal de Letras, Lisboa, nº
400, 1990.
SARAMAGO, José. O ano da morte de Ricardo Reis. 2. ed. Lisboa:
Editorial Caminho, 1984.
_____. História do cerco de Lisboa. São Paulo: Cia. das Letras,
1989.
_____. Evangelho segundo Jesus Cristo. 9. ed. São Paulo: Cia das
Letras, 1993.
_____. Ensaio sobre a cegueira. 6. ed. São Paulo. Cia das Letras,
1995.
_____. Todos os nomes. São Paulo. Cia. das Letras, 1997.
_____. A Jangada de pedra. 9. ed. São Paulo: Cia das Letras,
1998.
_____. Memorial do convento. 24. ed. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil,1999.
_____. A Cave rna. São Paulo: Cia das Letras, 2000.
_____. O homem duplicado. 2002.
_____. Ensaio sobre a lucidez. 2004.
_____. Intermitências da morte. 2005.
TORERO, José Roberto& PIMENTA, Marcus Aurelius. Terra
Papagalli. Rio de Janeiro: Objetiva, 1997.
VERISSIMO, Erico. O resto é silêncio. Porto Alegre: Globo, 1974.
____. Solo de Clarineta I. 15 ed. Porto Alegre: Globo, 1981.
WHITE, Hayden. Tropics of Discourse. Baltimore: John Hopkins
171
University Press, 1978.
_____. Meta-história. A imaginação histórica do século XIX. 2ª
ed. São Paulo: EDUSP, 1995.
ANEXO: CURRICULUM VITAE
DADOS PESSOAIS
Nome Nidia Heringer
Nascimento: 06/09/1972
Carteira de Identidade 7043703367 SSP – RS.
CPF 69558523020
Endereço Residencial:
Rua Teófilo Souto Maior, 141
Centro - Sapucaia do Sul
CEP: 93214580, RS
Telefone: 51- 3452-4852
Endereço Profissional:
Instituto Superior de Educação Equipe
ISEE - Faculdade de Letras
Avenida Sapucaia, 1376
Centro - Sapucaia do Sul
CEP: 93210-240, RS
Telefone: 51 3474-4515
Endereço eletrônico
e-mail para contato: [email protected]r
FORMAÇÃO ACADÊMICA/TITULAÇÃO
2001 - 2002 Mestrado em Lingüística e Letras.
Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, PUC/RS, Porto
Alegre, Brasil.
Título: A representação alegórica: caminho de mão dupla, Ano de obten-
ção: 2002
Orientador: Prof Dr. Dino del Pino
Bolsista do(a): Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tec-
nológico
Palavras-chave: Teoria da Literatura, Literatura de Expressão Portuguesa, Alegoria, José
Saramago, Ficção contemporânea
1994 - 1998 Graduação em Letras Português Inglês e Respectivas Literaturas.
Universidade Regional Integrada do Alto Uruguai e das Missões –URI
Campus de Frederico Westphalen
ATUAÇÃO PROFISSIONAL
1 Instituto Superior de Educação Equipe - ISEE
Vínculo institucional
2004 - Vínculo: Professor, Enquadramento funcional: Professor - Curso Letras.
2005 Vínculo: Professor, Enquadramento funcional: Professor – Curso Letras
Atividades
08/2004 - Atual
Graduação - Curso Letras
173
Disciplinas Ministradas:
1. Teoria da Literatura II
2. Teoria da Literatura I
3. Português Histórico
4. Crítica Textual
5. Literatura Brasileira IV
6. Literatura Brasileira III
7. Literatura Brasileira II
8. Literatura Brasileira I
08/2004 - Atual Graduação, Curso Letras
Disciplinas Ministradas:
1. Estágio III e TCC
2. Prática de Ensino II
3. Literatura Infanto-juvenil II
4. Literatura Infanto-juvenil I
5. Metodologia do Ensino de Literatura
03/2005 - 12/2005 Extensão Universitária, Faculdade de Letras
03/2005 - 06/2005 Extensão Universitária, Faculdade de Letras
2 Escola Estadual de 1° e 2° Graus Padre Rambo.
Vínculo institucional
2000 - 2001 Vínculo: Servidor público, Enquadramento funcional: Professor titular -
Carga horária: 20, Regime: Parcial
Atividades
4/2000 - 3/2001
Ensino médio
1. Língua Portuguesa
3 Escola Estadual Edgar Luís Schneider
Vínculo institucional
1999 - 2001 Vínculo: Servidor público, Enquadramento funcional: Professor titular -
Carga horária: 20, Regime : Parcial
Atividades
4/1999 - 3/2001
Ensino médio
1. Língua Portuguesa
4 Escola Estadual 1° e 2° Graus Olívia de Paula Falcão
Vínculo institucional
1996 - 1999 Vínculo: Servidor público, Enquadramento funcional: Professor titular -
Carga horária: 20, Regime : Parcial
Atividades
4/1996 - 3/1999
Ensino médio
1. Língua Portuguesa
174
ÁREAS DE ATUAÇÃO
1 Letras
2 Professor de Literaturas de Expressão Portuguesa
3 Ensino de Literatura
4 Professor de Teoria Literária
5 Ensino de Língua Portuguesa
6 Professor de Literaturas em Língua Inglesa
IDIOMAS
Compreende Inglês (Bem), Espanhol (Bem)
Fala Inglês (Razoavelmente), Espanhol (Bem)
Inglês (Bem), Espanhol (Bem)
Escreve Inglês (Bem), Espanhol (Razoavelmente)
PRODUÇÃO EM C, T & A
Produção bibliográfica
Artigos completos publicados em periódicos
1. HERINGER, N.
A vida é toda linguagem. Revista Língua Literatura. , v.v.1, p.114 - 117, 1998.
Palavras-chave: Linguìstica e Literatura
Artigos aceitos para publicação
1. HERINGER, N.
Rastros de viagem: o olhar e a memória. Letras de Hoje, 2007.
Obs: já publicado na página eletrônica do programa de pós-graduação em Letras da
PUCRS.
Livros publicados
1. HERINGER, N.
Contos Oficínicos. Porto Alegre - RS: W S Editor, 2001
Palavras-chave: Contos
Comunicações e Resumos Publicados em Anais de Congressos ou Periódicos (re-
sumo)
1. HERINGER, N.
Análise das variantes linguísticas dos índiosa caingangues do munic´pio de Iraí-RS. A in-
terferência no processo de aculturação.
In: Anais do III Seminário de Iniciação Científica e II Seminário de Integração de
Pesquisa e Pós graduação. Erechim, RS, 1997.
Palavras-chave: Processos de aculturação, Linguística e cultura, Análise de variantes linguísticas
O projeto de pesquisa " Análise das variantes Linguísticas dos indios caingangues do município de Iraí- Interfe-
175
rências no processo de aculturação" tinha como fomento o PIC-URI.
Demais produções bibliográficas
1. HERINGER, N.
Rastros de viagem: o olhar e a memória, 2005. (Outra, Apresentação de Trabalho)
Palavras-chave: Criação Literária, Ficção contemporânea, Literatura e História, Memória e história, Literatura
de Expressão Portuguesa
Produção Técnica
Trabalhos Técnicos
1. HERINGER, N.
Projeto Centenário Erico Verissimo, 2005
Palavras-chave: Autor - Erico Verissimo, Criação Literária, Gênero Literário, Literatura e História, Literatura In-
fantil e Infanto-juvenil, Literatura Brasileira
Áreas do conhecimento: Letras
Setores de atividade : Educação
Referências adicionais : Brasil/Português.
O projeto foi desenvolvido com a colaboração dos alunos do Curso de Letras, da Faculdade de Letras do Insti-
tuto Superior de Educação Equipe e envolveu escolas dos municípios de Sapucaia do Sul, Esteio, Novo Ham-
burgo e São Leopoldo.
Demais produções técnicas
1. HERINGER, N.
Literatura Infantil: professor, alunos e grilos literários, 2005. (Aperfeiçoamento, Cur-
so de curta duração ministrado)
Palavras-chave: Gênero- conto, Ficção contemporânea, Narrativa
Áreas do conhecimento : Letras
Setores de atividade : Educação pré-escolar e fundamental
Referências adicionais:
O curso foi ministrado aos professores municipais de Sapucaia do Sul no formato Oficina com duração de três
horas
2. HERINGER, N.
Literatura Rio-grandense - Contos e Lendas do Sul, 2005. (Extensão)
Palavras-chave: Contos, Criação Literária, Narrativa, Teoria da Literatura
Áreas do conhecimento : Letras
Setores de atividade : Educação superior
3. HERINGER, N.
Projeto Centenário Erico Verissimo, 2005. (Outra produção técnica)
Palavras-chave: Criação Literária, Contos, Literatura e História, Literatura e Cinema, Literatura Ficcional, Narra-
tiva
Áreas do conhecimento : Letras
Setores de atividade : Educação superior, Educação média de formação geral
Organização e acompanhamento do Projeto: março a novembro de 2005
176
4. HERINGER, N.
Projeto Centenário Erico Verissimo, 2005. (Outro, Organização de evento)
Palavras-chave: Autor - Erico Verissimo, Criação Literária, Literatura e História, Literatura Ficcional, Teoria da
Literatura
Áreas do conhecimento : Letras
Setores de atividade : Educação
O Projeto envolveu os municípios de Sapucaia do Sul, Esteio, Novo Hamburgo, São Leopoldo e Cruz Alta.
5. HERINGER, N.
Repensando a ação pedagógica em Língua Portuguesa, 2004. (Aperfeiçoamento,
Curso de curta duração ministrado)
Palavras-chave: Linguìstica e Literatura, Ensino de Língua Portuguesa, Metodologia do Ensino de Língua Por-
tuguesa
Áreas do conhecimento : Letras
Setores de atividade : Educação pré-escolar e fundamental
O Projeto Repensando a ação pedagógica nas séries finais - Língua Portuguesa - teve carga horária de
8horas.
6. HERINGER, N.
VI Encontro de Oficinas Literárias, 2003. (Outro, Organização de evento)
Palavras-chave: Criação Literária, Contos, Escrita Criativa, Ficção contemporânea, Gênero- conto, Narrativa
Áreas do conhecimento : Letras
7. HERINGER, N.
V Encontro de Oficinas Literárias da PUCRS, 2001. (Outro, Organização de evento)
Palavras-chave: Contos, Criação Literária, Ficção contemporânea, Gênero- conto, Escrita Criativa
Áreas do conhecimento : Letras
Orientações e Supervisões
Orientações e Supervisões concluídas
Trabalhos de conclusão de curso de graduação
1. Irene Antônia do Couto Dias. A representação feminina em O tempo e o vento e A
mulher que escreveu a Bíblia. 2006.
Curso (Curso Letras) - Instituto Superior de Educação Equipe
Palavras-chave: A Representação do feminino em Literatura, Autor - Erico Verissimo, Ficção contemporânea,
Literatura Brasileira, Moacyr Scliar - autor
2. Juliana Mathias de Oliveira. Erico pós-moderno: um caminho para autobiographo-
genus, 2006.
Curso (Curso Letras) - Instituto Superior de Educação Equipe
Palavras-chave: Autor - Erico Verissimo, Ficção contemporânea, Literatura Brasileira, Narrativa, Literatura e
História, Teoria da Literatura
3. Tania Elizabete Dorneles de Oliveira. O riso esboçado em Terr a Papagalli. 2006.
Curso (Curso Letras) - Instituto Superior de Educação Equipe
177
Palavras-chave: Criação Literária, Ficção contemporânea, Gênero literário, Literatura e História, Teoria da Lite-
ratura
4. Sonia Maria Dorneles Reis. Olga: entre o amor e o ideal . 2006.
Curso (Curso Letras) - Instituto Superior de Educação Equipe
Palavras-chave: Criação Literária, Ficção contemporânea, Literatura e Cinema, Literatura e História, Literatura
Ficcional, Narrativa
5. Cristina de Souza Capela. Retalhos da Litera tura na Identidade Infanto-juvenil.
2006.
Curso (Curso Letras) - Instituto Superior de Educação Equipe
Palavras-chave: Narrativa, Leitura, Literatura e Cinema, Literatura Infantil e Infanto-juvenil
6. Sued Salete da Silva. Uma leitura da mescla Ficção/ História em O continente, de
Erico Verissimo. 2006.
Curso (Curso Letras) - Instituto Superior de Educação Equipe
Palavras-chave: Literatura Brasileira, Teoria da Literatura, Literatura e História, Narrativa, Memória e história
Orientação de outra natureza
1. Elenilson Mattos da Silva. Estágio III - Literaturas. 2006. Orientação de outra nature-
za (Curso Letras) - Instituto Superior de Educação Equipe
Palavras-chave: Literatura de Expressão Portuguesa, Literatura Brasileira, Metodologia do Ensino de Literatura
2. Cristina de Souza Capela. Estágio III - Literaturas. 2006. Orientação de outra nature-
za (Curso Letras) - Instituto Superior de Educação Equipe
3. Sued Salete da Silva. Estágio III - Literaturas. 2006. Orientação de outra natureza
(Curso Letras) - Instituto Superior de Educação Equipe
4. Maria Lídia da Rosa Gomes. Estágio III - Literaturas. 2006. Orientação de outra natu-
reza (Curso Letras) - Instituto Superior de Educação Equipe
5. Eva Clóris O. Bierhals. Estágio III - Literaturas de Expressão Portuguesa. 2006. O-
rientação de outra natureza (Curso Letras) - Instituto Superior de Educação Equipe
Palavras-chave: Criação Literária, Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa, Metodologia do Ensino de Litera-
tura
6. Tania Elizabeth Dorneles D' Oliveira. Estágio III - Literaturas de Expressão Portu-
guesa. 2006. Orientação de outra natureza (Curso Letras) - Instituto Superior de Educa-
ção Equipe
Palavras-chave: Criação Literária, Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa, Metodologia do Ensino de Litera-
tura, Teoria da Literatura
7. Sonia Maria Dorneles Reis. Estágio III - Literaturas de Expressão Portuguesa.
2006. Orientação de outra natureza (Curso Letras) - Instituto Superior de Educação E-
quipe
Palavras-chave: Criação Literária, Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa, Metodologia do Ensino de Litera-
178
tura, Teoria da Literatura
8. Irene Antônia do Couto Dias. Estágio III - Literaturas de Expressão Portuguesa.
2006. Orientação de outra natureza (Curso Letras) - Instituto Superior de Educação E-
quipe
Palavras-chave: Metodologia do Ensino de Literatura, Teoria da Literatura, Literatura Brasileira, Literatura Por-
tuguesa, Criação Literária
9. Juliana Mathias de Oliveira. Estágio III - Literaturas de Expressão Portuguesa.
2006. Orientação de outra natureza (Curso Letras) - Instituto Superior de Educação E-
quipe
Palavras-chave: Linguìstica e Literatura, Teoria da Literatura, Literatura Ficcional, Literatura Brasileira, Metodo-
logia do Ensino de Literatura, Literatura Portuguesa
Eventos
Participação em eventos
1. HERINGER, N.
VI Semana Pedagógica, 2005. (Participações em eventos/Outra)
Palavras-chave: Metodologia do Ensino de Literatura, Metodologia do Ensino de Língua Portuguesa,
Linguìstica e Literatura, Linguística e cultura, Ensino de Língua Portuguesa
Áreas do conhecimento : Letras
Setores de atividade : Educação
Referências adicionais : Brasil/Português. Meio de divulgação: Impresso
A Semana Pedagógica envolve os professores da rede municipal de ensino de Sapucaia do Sul.
2. HERINGER, N.
XXIII Seminário Brasileiro de Crítica Literária e XXII Seminário de Crítica do RS,
2005. (Participações em eventos/Seminário)
3. HERINGER, N.
Projeto Repensando a ação pedagógica, 2004. (Participações em eventos/Outra)
4. HERINGER, N.
V Seminário Internacional de História da Literatura, 2003. (Participações em even-
tos/Seminário)
5. HERINGER, N.
VI Encontro de Oficinas Literárias, 2003. (Participações em eventos/Encontro)
6. HERINGER, N.
I Encontro Nacional de Pesquisadores em Periódicos Literários, 2002. (Participa-
ções em eventos/Encontro)
7. HERINGER, N.
COLÓQUIO DA ASSOCIAÇÃO INTERNACIONAL DE LUSITANISTAS, 2001. (Partici-
pações em eventos/Outra)
179
8. HERINGER, N.
SEMINÁRIO ESPAÇO E LINGUAGEM E 5º ENALB, 2001. (Participações em even-
tos/Seminário)
9. HERINGER, N.
JORNADA NACIONAL JOSUÉ GUIMARÃES 80 ANOS & EXPOSIÇÃO JOSUÉ GUI-
MARÃES- UM HOMEM DO SEU TEMPO, 2001. (Participações em eventos/Outra)
10. HERINGER, N.
2001. (Participações em eventos/Oficina)
11. HERINGER, N.
V ENCONTRO DE OFICINAS LITERÁRIAS DA PUCRS, 2001. (Participações em even-
tos/Encontro)
12. HERINGER, N.
I JORNADA INTERNACIONAL DE NARRATOLOGIA, 2000. (Participações em even-
tos/Outra)
13. HERINGER, N.
1998. (Participações em eventos/Seminário)
14. HERINGER, N.
III SEMINÁRIO DE INICIAÇÃO CIENTÍFICA, 1997. (Participações em even-
tos/Seminário)
Participação em banca de trabalhos de conclusão
Graduação
1. HERINGER, N., LEMES, A., CORREA, Vanessa Loureiro
Participação em banca de Irene Antônia do Couto Dias. A representação feminina em
O tempo e o vento e A mulher que escrevu a Bíblia, 2006
(Curso Letras) Instituto Superior de Educação Equipe
2. HERINGER, N., CORREA, Vanessa Loureiro, LEMES, A.
Participação em banca de Juliana Mathias de Oliveira - Erico pós-moderno: um cami-
nho para autobiographogenus, 2006
(Curso Letras) Instituto Superior de Educação Equipe
3. HERINGER, N., CORREA, Vanessa Loureiro, LEMES, A.
Participação em banca de Tania Elizabete Dorneles de Oliveira. O riso esboçado em-
Terra Papagalli, 2006
(Curso Letras) Instituto Superior de Educação Equipe
4. HERINGER, N., CORREA, Vanessa Loureiro, LOUREIRO, P.
Participação em banca de Sonia Maria Dorneles Reis. Olga: entre o amor e o ideal,
2006
(Curso Letras) Instituto Superior de Educação Equipe
180
5. HERINGER, N., CORREA, Vanessa Loureiro, LOUREIRO, P.
Participação em banca de Cristina de Souza Capela. Retalhos da Literatura na Identi-
dade Infanto-juvenil, 2006
(Curso Letras) Instituto Superior de Educação Equipe
6. HERINGER, N., CORREA, V. L., LOUREIRO, P.
Participação em banca de Sued Salete da Silva. Uma leitura da mescla Ficção/História
em O continente, de Erico Verissimo, 2006
(Curso Letras) Instituto Superior de Educação Equipe
Participação em banca de comissões julgadoras
Outra
1. Comissão Permanente de Vestibular, 2006
2. Comissão Permanente de Vestibular, 2005
Instituto Superior de Educação Equipe
3. Comissão Permanente de Vestibular, 2004
Instituto Superior de Educação Equipe
INDICADORES DE PRODUÇÃO
Produção bibliográfica
Artigos completos publicado em periódi-
co.................................................. 1
Artigos aceitos para publica-
ção........................................................... 1
Livros publica-
dos......................................................................... 1
Comunicações em anais de congressos e periódicos (proceedings e suplemen-
tos).............. 1
Apresentações de Trabalhos (Ou-
tra)........................................................ 1
Produção técnica
Trabalhos técnicos (elaboração de proje-
to)................................................ 1
Outra produção técni-
ca.................................................................... 1
Orientações
Orientação concluída (trabalho de conclusão de curso de gradua-
ção)........................ 6
Orientação concluída (orientação de outra nature-
za)....................................... 9
Eventos
Participações em eventos (seminá-
rio)...................................................... 5
Participações em eventos (ofici-
na)........................................................ 1
Participações em eventos (encon-
tro)....................................................... 3
Participações em eventos (ou-
tra).......................................................... 5
181
Organização de evento (ou-
tro)............................................................. 3
Participação em banca de trabalhos de conclusão (gradua-
ção)............................... 6
Participação em banca de comissões julgadoras (ou-
tra)..................................... 3
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