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UNIVERSIDADE DO VALE DO RIO DOS SINOS - UNISINOS
ÁREA DE CIÊNCIAS JURÍDICAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
.NÍVEL MESTRADO
CLÁUDIA MARCELE VARGAS DA SILVA BALBONI
A PLURALIDADE DAS ENTIDADES FAMILIARES A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL BRASILEIRA DE 1988 E SUA IMPORTÂNCIA PARA A
CONCRETIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
São Leopoldo
2007
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CLÁUDIA MARCELE VARGAS DA SILVA BALBONI
A PLURALIDADE DAS ENTIDADES FAMILIARES A PARTIR DA CONSTITUIÇÃO
FEDERAL BRASILEIRA DE 1988 E SUA IMPORTÂNCIA PARA A
CONCRETIZAÇÃO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Direito da Área de Ciências
Jurídicas da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos, como requisito parcial para obtenção do
título de mestre em Direito
Orientador: Prof. Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho
São Leopoldo
2007
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Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca da
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Catalogação na Publicação:
Bibliotecária Eliete Mari Doncato Brasil - CRB 10/1184
B173p Balboni, Cláudia Marcele Vargas da Silva
A pluralidade das entidades familiares a partir da
Constituição Federal brasileira de 1988 e sua importância
para a concretização da dignidade da pessoa humana / por
Cláudia Marcele Vargas da Silva Balboni. -- 2007.
169 f. ; 30cm.
Dissertação (mestrado) -- Universidade do Vale do Rio
dos Sinos, Programa de Pós-Graduação em Direito, 2007.
“Orientação: Prof. Dr. José Carlos Moreira da Silva Filho,
Ciências Jurídicas”.
1. Direito de família. 2. Constituição Federal - 1988. 3.
Direito - Dignidade humana. 4. Sociedade - Família. I. Título.
CDU 347.6
Dedico este trabalho aos meus pais pelo estímulo que me
ofereceram, bem como, de modo especial, à minha irmã pela
inestimável ajuda.
Dedico também ao meu esposo, pelo contínuo e incansável
companheirismo.
Agradecimentos
Agradeço a meu esposo pelo apoio em todos os momentos de
elaboração deste trabalho.
Ao meu orientador José Carlos Moreira da Silva Filho, pela
cuidadosa leitura deste trabalho.
Aos Professores Doutores do Curso de Mestrado e à
funcionária do Programa de Pós-graduação em Direito,
Vera Loebens pela cordialidade e eficiência.
Aos amigos do mestrado, pelo harmonioso convívio.
RESUMO
O presente trabalho tem o objetivo de trazer uma compreensão das diversas
entidades familiares no Direito contemporâneo brasileiro. A família, inicialmente
forma específica de agregação humana asseguradora da sobrevivência, modificou-
se ao longo dos ciclos de vida, dos contextos culturais e dos conflitos interpessoais e
ainda tem passado por transformações que correspondem às mudanças sofridas
pela sociedade. Destaca-se como entidade mutável, pois vem se alterando e
estruturando nos últimos tempos, fato que impossibilita identificá-la com um modelo
único ou ideal. No sistema clássico originário da Codificação Civil de 1916, o modelo
familiar desenhado atendia a uma perspectiva institucional da família, na qual
avultava o caráter patriarcal e hierarquizado, com a proteção exclusiva das
entidades familiares centradas unicamente no matrimônio. Diante da necessidade de
adaptação de soluções para os descompassos e conflitos surgidos, especialmente,
na seara das relações familiares, o Direito Civil tradicional vai cedendo espaço para
a absorção das renovações com o fim de readaptar sua aplicação aos fatos
contemporâneos e aos novos fenômenos sociais. A Constituição Federal de 1988,
marco no reconhecimento da mudança do Direito de Família do Brasil, reconheceu o
pluralismo na formação dos núcleos familiares e uma nova concepção acerca das
famílias, as quais passaram a ser consideradas entidades igualitárias,
descentralizadas, democráticas, fundadas em laços de mútua-ajuda e afeto. No
entanto, constata-se que os modelos familiares contemplados em nosso
ordenamento jurídico ainda não constituem as formas suficientes para atender à
demanda social marcada pelo dinamismo das relações humanas. Frente a esse
cenário, o estudo será dedicado à concepção plural de família e ao contexto familiar
contemporâneo, no qual estão inseridas as famílias matrimonializadas, famílias
fundadas em uniões estáveis entre homem e mulher, famílias monoparentais,
famílias reconstituídas e as famílias de uniões entre pessoas do mesmo sexo, bem
como o fenômeno da simultaneidade familiar.
Palavras-chave: Sociedade. Direitos. Famílias.
ABSTRACT
The present work has the objective of bring an understanding of the several family
entities in the Brazilian contemporary Right. The families, initially specific form of
human aggregation insurer of the survival, they modified along the life cycles, of the
cultural contexts and of the conflicts between people and, they have still been going
by transformations that correspond to the changes suffered by the society. They
stand out as changeable entities, because they come if altering and structuring in the
last times, fact that disables to identify them with an only or ideal model. In the
original classic system of the Civil Code of 1916, the drawn family model assisted to
an institutional perspective of the family, which predominated the patriarchal and
hierarchical character, with the exclusive protection of the family entities centered
only in the marriage. In face of the need of adaptation of solutions for the
disharmony and conflicts appeared, especially, in the ambit of the family
relationships, the traditional Civil Right go giving space for the absorption of the
renewals in order to readapt its application to the contemporary facts and the new
social phenomenons. The Federal Constitution of 1988, mark in the
acknowledgement of the family’s change Right of Brazil, it recognized the pluralism in
the formation of the family nuclei and a new conception concerning the families, in
which became considered equalitarian entities, decentralized, democratic, founded in
liaisons of mutual-help and affection. However, it’s verified that the family models
contemplated in our juridical ordenament still don't constitute the enough forms to
assist to the social demand marked by the dynamism of the human relationships.
Front to that scenery, the study will be dedicated to the plural conception of family
and the contemporary family context, in which are inserted the married’s families,
families founded in stable unions between man and woman, monoparental families,
reconstituted families and the families of unions among people of the same sex, as
well as the phenomenon of the family simultaneity.
Key-words: Society. Rights. Families.
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO ........................................................................................................8
2 PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL: CONTRIBUTO DA VISÃO
PERSONALISTA PARA O DIREITO DE FAMÍLIA ..............................................14
2.1 O Surgimento do Enfoque Civil-Constitucional no Direito Brasileiro .........14
2.2 Um Olhar Jurídico sobre as Famílias .............................................................26
2.3 O Afeto como Alicerce para a Configuração da Família...............................34
2.4 Perspectivas das Famílias no Código Civil de 2002 .....................................42
3 PLURALIDADE FAMILIAR: UMA COMPREENSÃO DAS DIVERSAS FORMAS
DE CONSTITUIÇÃO DE ENTIDADES FAMILIARES...........................................47
3.1 Famílias Fundadas no Casamento .................................................................51
3.2 Famílias Monoparentais: Reconhecimento Jurídico.....................................65
3.3 Famílias Reconstituídas ..................................................................................76
3.4 Famílias Nascidas a Partir de Uniões Estáveis .............................................89
3.5 Uniões Homoafetivas: Da Realidade Fática à Esfera Jurídica ...................102
4 UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA DA FAMÍLIA ................................................126
4.1 Do Pluralismo na Formação de Entidades Familiares ................................131
4.2 Reconhecimento Jurídico das Famílias Simultâneas .................................138
4.2.1 Famílias Simultâneas na Perspectiva da Relação Paterno-Filial ............140
4.2.2 Famílias Simultâneas Centradas em Conjugalidades Múltiplas .............144
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................154
REFERÊNCIAS......................................................................................................161
8
1 INTRODUÇÃO
Nos últimos tempos, um dos segmentos do universo jurídico onde podem ser
verificadas intensas transformações é o Direito de Família, fato que despertou o
interesse pela compreensão contemporânea da realidade da família no Direito
Brasileiro.
A família, inicialmente forma específica de agregação humana asseguradora
da sobrevivência, modificou-se ao longo dos ciclos de vida, dos contextos culturais e
dos conflitos interpessoais e ainda tem passado por alterações que correspondem
às mudanças sofridas pela sociedade. Destaca-se como entidade mutável, pois vem
se estruturando nos últimos tempos, fato que impossibilita identificá-la com um
modelo único ou ideal.
No sistema clássico originário da Codificação Civil de 1916, o modelo
familiar desenhado atendia a uma perspectiva institucional da família, na qual
avultava o caráter patriarcal e hierarquizado, com a proteção exclusiva das
entidades familiares centradas unicamente no matrimônio. Diante da necessidade de
adaptação de soluções para os descompassos e conflitos surgidos, especialmente,
na seara das relações familiares, o Direito Civil tradicional vai cedendo espaço para
a absorção das renovações com o fim de readaptar sua aplicação aos fatos
contemporâneos e aos novos fenômenos sociais.
A família constitui-se em uma realidade social e histórica, fundamental para
a formação e coordenação do destino do indivíduo na sociedade.
Com o advento da Constituição Federal Brasileira de 1988, impuseram-se
novos paradigmas ao deixar-se de considerar o casamento civil ou religioso com
efeitos civis, como a única célula mínima e exclusiva na constituição da família,
abrindo as portas legais para a contemplação da entidade formada pela união
estável entre um homem e uma mulher, como qualquer dos pais com os filhos. Isto
é, consagraram-se novas realidades familiares que se somam às tradicionais.
9
Impõe-se compreender a complexidade das relações familiares e a partir
dessa perspectiva visualizar a construção de uma cultura jurídica, que nos conduza
a reconhecer que há pluralidade de modelos de famílias merecedoras de proteção
jurídica.
Percebe-se a renovação do Direito Civil Brasileiro, especialmente do Direito
de Família. No Direito Civil, o reconhecimento da incidência dos princípios da
dignidade humana e da igualdade e dos valores de proteção ao ser humano,
merecedor de respeito e consideração, bem como da isonomia entre as diversas
formas escolhidas para a composição de famílias, reflete não apenas uma tendência
metodológica, mas a preocupação com a construção de uma ordem jurídica mais
sensível aos problemas e desafios da sociedade contemporânea.
Nas palavras de Luiz Edson Fachin
1
:
A propósito, uma das expressões mais salientes do novo Direito de Família
no Brasil está no ingresso jurídico de uma realidade emergente dos fatos. A
família não era mais uma única definição no plano das relações sociais;
agora passa a não mais sê-lo também no Direito. Apresenta-se, enfim, uma
concepção sociológica plural. Para além do projeto parental
matrimonializado e da inquestionável valorização da família, sob diversas
funções, mostram-se o direito e a liberdade de casar, bem assim o direito e
a liberdade de não permanecer casado. Na ausência de óbices
injustificados, a união matrimonializada encontra o sentido de sua
manutenção. O reconhecimento à união estável, à união livre e à família
monoparental patenteia a chancela da affectio maritalis.
As normas jurídicas que disciplinam as relações de Direito Privado passaram
a ser funcionalizadas em prol da concretização de finalidades que promovam a tutela
dos direitos e interesses da pessoa humana. Diante desse quadro, aflora a
indiscutível importância da Constituição Federal de 1988, como marco no
desdobramento do Direito de Família do Brasil, pois estabeleceu as diretrizes no
tratamento da família como um todo (artigo 226, caput) e na tutela de cada
integrante individualmente (artigos 226, § 5º, 227 e 230).
1
FACHIN, Luiz Edson. Direito de família: elementos críticos à luz do novo Código Civil brasileiro. Rio de
Janeiro: Renovar, 2003, p. 308.
10
A essência da dissertação funda-se em dois princípios: o princípio da
dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade. Esta é a linha mestra que
perpassa do primeiro ao último capítulo e impulsionou a pesquisa desta dissertação.
A busca em tornar concretos e densificados os princípios da dignidade da
pessoa humana e da igualdade é tarefa de todo o cidadão e, principalmente, dos
estudos jurídicos que, ancorados na realidade, almejam tornar a vida das pessoas
mais feliz, acolhendo a diversidade de escolhas na forma de compor suas relações
afetivas e familiares.
Considera-se fundamental essa análise, pois o tratamento dispensado pelo
Direito à família é constantemente posto à prova, tendo em vista as renovadas
transformações vividas pelo cotidiano das pessoas que reclama tratamento jurídico
fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade.
O trabalho busca contemplar uma concepção familiar apresentando a
dignidade humana como critério estruturante do reconhecimento da diversidade de
entidades familiares, a partir da noção do afeto que une seus integrantes.
O marco teórico do trabalho baseia-se no estudo da possibilidade de, sob
uma perspectiva civil-constitucional, o Direito reconhecer, na dinâmica das relações
humanas, a multiplicidade de formas de constituição das famílias.
A metodologia utilizada para a realização deste estudo terá por base o
método histórico-hermenêutico, na medida em que se buscará pensar a família
como uma realidade histórica, interpretada a partir da sua própria manifestação na
sociedade brasileira contemporânea. Além disso, a revisão bibliográfica, onde serão
reunidos argumentos na tentativa de analisar, sob o olhar jurídico, os diversos
modos de constituição das entidades familiares.
No primeiro capítulo – Perspectiva civil-constitucional: contributo da visão
personalista para o Direito de Família - analisar-se-á o surgimento do enfoque civil-
constitucional no Direito Brasileiro e a influência da visão personalista do Direito
Privado, pois aconteceram importantes mudanças, dentre as quais, o fato de o
11
Código Civil deixar de ser a “normativa exclusiva do Direito Privado”
2
, perdendo as
pretensões tradicionais de completude e generalidade na disciplina de todas as
espécies de relações jurídicas privadas.
Com isso alterou-se profundamente o papel do Código Civil, que de “estatuto
orgânico da vida privada”
3
transformou-se em centro normativo do direito comum,
ao lado do qual proliferaram as leis especiais disciplinando matérias específicas. Por
esse motivo, a relevância em tratar das implicações de tais acontecimentos para o
sistema jurídico, especialmente para o Direito de Família. No próximo item do
capítulo, oportuno trazer um olhar jurídico das famílias, especialmente, o perfil das
entidades familiares a partir da Constituição Federal Brasileira de 1988. Neste ponto,
pretende-se analisar os influxos do texto constitucional na esfera das relações
familiares.
O seguinte item – O afeto como alicerce para a configuração da Família –
inicia com a constatação de que as intensas e sucessivas modificações ocorridas no
âmbito dos grupos familiares revelaram um processo de valorização do afeto nas
relações familiares.
A partir do reconhecimento de que o ente familiar não é mais uma única
definição, mas uma realidade sociológica plural, assentada em relações de afeto, de
solidariedade e de cooperação, proclama-se, então, a denominada concepção
eudemonista da família, segundo a qual cada indivíduo busca o seu
desenvolvimento pessoal, utilizando a instituição familiar como meio para alcançar a
felicidade. Nessa esteira, também cumpre destacar a introdução do afeto no Direito,
de acordo com a doutrina francesa, bem como a importância da afeição nas relações
pessoais para a realização plena do indivíduo.
No último ponto do capítulo, contemplar-se-ão alguns apontamentos sobre
as famílias no Código Civil de 2002, verificando-se se o atual diploma absorveu as
2
TEPEDINO, Gustavo. O Código Civil, os chamados microssistemas e a Constituição: premissas para uma
reforma legislativa. In: TEPEDINO, Gustavo (Coord.) Problemas de direito civil- constitucional. Rio de
Janeiro, Renovar, 2000a, p. 4.
3
AMARAL NETO, Francisco dos Santos. Direito civil brasileiro: introdução. Rio de Janeiro: Forense,
1991, p. 150-152.
12
transformações sociais empreendidas pela Constituição Federal.
No segundo capítulo, trazer-se-á uma compreensão dos diversos modelos
de constituição de entidades familiares, iniciando-se pelas famílias oriundas do
casamento, bem como, com a análise do princípio da igualdade entre os partícipes
da sociedade conjugal. Ademais, diante da abertura de horizonte operada no Direito
de Família Brasileiro, privilegiar-se-á o reconhecimento jurídico das famílias
monoparentais e das famílias reconstituídas.
Ainda, no espaço da pluralidade familiar, objetiva-se examinar os principais
efeitos jurídicos provocados pelas famílias advindas das uniões estáveis entre
homem e mulher. Posteriormente, noutro ponto do trabalho, diante da necessidade
do estudo de algumas questões envolvendo o tratamento da homossexualidade no
ordenamento jurídico brasileiro, dedicaremo-nos às perspectivas jurídicas da
doutrina e jurisprudência acerca das relações entre pessoas de mesmo sexo.
O terceiro e último capítulo – Uma visão contemporânea da família – inicia
com a constatação de que a família transformou-se em um núcleo de realização
afetiva do ser humano, fato que conduziu, necessariamente, à construção de um
novo modelo jurídico, extinguindo-se a noção de entidade familiar comprometida e
finalizada somente à função econômico-procracional. Nos dias atuais, os integrantes
do grupo familiar são mais importantes que a preservação da entidade em si mesma.
A relação entre os sujeitos do grupo, o qual pode apresentar uma pluralidade de
fontes, estabelece-se democraticamente, numa verdadeira comunhão de afeto e de
vida.
No próximo item, partindo-se da premissa de que as normas de proteção da
família são normas de inclusão, surge a proposta de uma interpretação extensiva
das estruturas familiares mencionadas na Constituição Federal Brasileira de 1988.
Far-se-á, ainda, um estudo da potencial apreensão jurídica das famílias
simultâneas. Na ordem jurídica brasileira não há uma moldura legal genérica que
pretenda descrever e normatizar os casos de famílias simultâneas, tampouco, como
regra, modelos específicos que visem a contemplar as hipóteses de simultaneidade
13
familiar de maior verificação no ambiente social, o que não significa que se trate de
situação irrelevante para o direito. Ao contrário, como a simultaneidade familiar pode
atender às pretensões de felicidade coexistencial de todos os integrantes das
famílias, o direito não pode se colocar alheio a tal fenômeno. Desse modo, também
se evidencia relevante enfatizar as famílias simultâneas sob dois vetores, quais
sejam, a simultaneidade familiar na perspectiva da relação paterno-filial e a centrada
na existência de múltiplas conjugalidades.
Na perspectiva sociológica plural da família busca-se conferir primazia à
pessoa nas relações civis, bem como se constata um contínuo movimento de
adaptação do Direito de Família à realidade social que transforma e aperfeiçoa seus
modos de convivência familiar.
14
2 PERSPECTIVA CIVIL-CONSTITUCIONAL: CONTRIBUTO DA VISÃO
PERSONALISTA PARA O DIREITO DE FAMÍLIA
Para a compreensão das substanciais alterações operadas no Direito
contemporâneo brasileiro, quanto às novas molduras das famílias, inicialmente,
releva o estudo da perspectiva civil-constitucional.
2.1 O Surgimento do Enfoque Civil-Constitucional no Direito Brasileiro
A era das codificações que se desenvolveu na Europa ao longo do século
XIX, a partir do Código de Napoleão de 1804
4
, representou um período de vigência
da idéia de supremacia dos Códigos Civis.
5
Nesta época predominava a idéia de que
os códigos continham a regulação suficiente de todas as relações humanas em
4
Em estudo aprofundado acerca da elaboração do Código Civil Francês, Renan Lotufo assevera: [...]
verificamos que a 1ª comissão formada para sua elaboração é integrada por um dos maiores
doutrinadores franceses da época, chamado Cambacérès. Após, os trabalhos, Cambacérès apresenta
um projeto com mais de 3.000 artigos, e o legislador constituinte repugna um projeto tão extenso,
dizendo que seria um Código de difícil compreensão, já que o projeto não apresentava uma estrutura
lógica definida e de tal porte e volume que jamais o povo iria entender. E assim o projeto foi rejeitado. O
próprio Cambacérès apresentou, 2 anos depois, um novo projeto extremamente sintético, com 267
artigos. E isso agradou de início a Assembléia Constituinte, já que haveria a possibilidade de um Código
de fácil compreensão. Mas o revolucionário francês começa a pensar e percebe que não seria um bom
negócio um Código tão sintético, pois sendo sintético, o juiz seria o intérprete, e fará o que eles não
queriam. O revolucionário francês, ante as atrocidades, insegurança e casuísmo queria a segurança e
um “juiz escravo da lei”. Por isso, o 2º projeto foi rejeitado. Vem o 3º projeto de Cambacérès e é
rejeitado. Nomeado um novo coordenador, após alguns anos de estudos, vem a dissolução da
comissão, e seu trabalho não chega sequer a ser apreciado. Finalmente, com Napoleão no poder,
percebendo o clamor social e a necessidade da lei nacional, forma nova comissão que é integrada por
Portalis, que além de excelente jurista é bom orador. Após os trabalhos Portalis elabora o famoso
“Discurso preliminar do Código Civil Francês”, que é o discurso de apresentação do projeto do Código
Civil daquele país. Napoleão, ao receber e ouvir as referências do jurista apressa-se em dizer que “ali
está a constituição do cidadão francês”. Em seguida, edita o Código Civil francês. (LOTUFO, Renan. Da
oportunidade da Codificação Civil e a Constituição. In: SARLET, Ingo Wolfgang (Org.). O novo Código Civil
e a Constituição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003, p. 17).
5
Comentando o movimento de codificação, Gustavo Tepedino ensina que com o apogeu das codificações, no
século XIX, sabe-se quão diminuto foi o papel das Declarações de Direitos Políticos e dos textos
constitucionais nas relações de Direito Privado. Por um lado, pode-se dizer que a completude do Código Civil,
que caracteriza o processo legislativo com pretensão exclusivista, descarta a utilização de fontes de
integração heteronômicas, forjando-se um modelo de sistema fechado, auto-suficiente, para o qual as
Constituições, ao menos diretamente, não lhe diziam respeito. A Escola da Exegese, re-elaborando o
princípio da completude de antiga tradição romana medieval, levou às últimas conseqüências o mito do
monopólio estatal da produção legislativa, de tal sorte que o direito codificado esgotava o fenômeno jurídico,
em todas as suas manifestações. (TEPEDINO, 2000a, p. 1-2).
15
sociedade, além de fornecerem os instrumentos e recursos necessários para a
resolução dos conflitos de interesses.
6
A partir da vigência do Código Civil Francês, a França não deu maior valor
às demais legislações. A França passou a centrar-se no Código Civil francês. Esse
Código acaba servindo de modelo e base legislativa para inúmeros outros países,
como a Bélgica e a Itália que acabaram herdando essa nova ordem jurídica.
Existem inúmeros fatos que adquiriram centralidade e importância ao longo da
história e, especialmente, na era das codificações, tornou-se célebre um depoimento
peculiar
7
de Napoleão Bonaparte à Bernardine Eugénie Désirée Clary
8
, transcrito
6
Norberto Bobbio observa que: “A miragem da codificação é a completude: uma regra para cada caso. O
Código é para o juiz um prontuário que lhe deve servir infalivelmente e do qual não pode afastar-se.”
(BOBBIO, Norberto. Teoria do ordenamento jurídico. Tradução Maria Celeste Cordeiro Leite dos
Santos. 10. ed. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1999, p. 121).
7
Na obra “Désirée”, pode-se observar que em meados de março de 1804, Napoleão Bonaparte conversava com
Désirée e lhe apresentava a estrutura do futuro Código Civil Francês, diploma inspirador dos demais códigos
nacionais da Europa: Napoleão Bonaparte: “Ah! Precisas ver isto. São os dois primeiros exemplares acabados de
sair das máquinas”.
Désirée: “– Pôs-me diante dos olhos algumas folhas impressas de alto a baixo em linhas densas e
caracteres diminutos, cada período com a marca de um parágrafo”.
Napoleão Bonaparte: “É o Código Civil. Já está pronto. O Código Civil da República Francesa. As leis,
pelas quais a Revolução lutou, acham-se aqui estudadas, anotadas e impressas. E em vigor, vigorando
por toda a eternidade. Dei à França um novo Código Civil”.
Désirée: “Naqueles últimos anos Napoleão se encerrara horas e horas em conferência com os maiores conhecedores
de Direito para a elaboração do Código Civil da França. Agora este já estava impresso e entrava em vigor”.
Napoleão Bonaparte: “– As leis mais humanas do mundo. Lê apenas um parágrafo. Este aqui que se
refere aos filhos. O primogênito já não tem privilégios e sim os mesmíssimos direitos que seus irmãos
menores. E estoutro aqui: todo casal tem obrigação de manter seus filhos. Vai espiando”.
Désirée: “– Pegou outras folhas em cima da mesa e as leu rapidamente.
Napoleão Bonaparte: “– São as novas leis matrimoniais. Não só facultam o divórcio como também a
separação. E este tópico aqui. Refere-se à nobreza. Fica suprimida a nobreza hereditária. O povo já
principia a chamar de Código Napoleônico o novo Código Civil”. SELINKO, Annemarie. Désirée.
Tradução José Geraldo Vieira. 4. ed. São Paulo: Mérito, 1956, p. 200.
8
Bernardine Eugénie Désirée Clary, filha de um burguês abastado que era comerciante de sedas de Marselha,
tinha 14 (quatorze) anos de idade quando foi a primeira noiva de Napoleão Bonaparte, dez anos mais velho.
Aproximadamente quatro meses após terem se conhecido, Napoleão Bonaparte foi preso e Désirée
intercedeu pela sua libertação junto ao Comando Militar de Marselha. Noutra ocasião, Désirée emprestou a
Napoleão Bonaparte dinheiro para o pagamento de dívidas e de algumas despesas, o que permitiu ao noivo
sair de Marselha rumo à Paris, onde conheceu Josefina, viúva de Beauharnais. Na noite em que Napoleão
Bonaparte oficializou o noivado com Josefina, Désirée estava em Paris e foi surpreendida com tal notícia,
sendo socorrida por Jean-Baptiste Bernadotte (um dos oito generais do exército Francês), o qual lhe
acompanhava e impediu-lhe de se suicidar no Rio Sena. Alguns anos depois, em 30 de agosto de 1798,
Désirée casa-se com o general Jean-Baptiste Bernadotte, em Paris. Ressalte-se que Désirée nunca
conseguiu desprender-se da vida de Napoleão Bonaparte, pois sua irmã Julie era esposa de José Bonaparte,
irmão mais velho do general. Em 30 de novembro de 1804, Napoleão Bonaparte é coroado Imperador da
França e Josefina, Imperatriz. Uma década havia passado, quando Désirée foi incumbida pelo governo
francês, representado por Talleyrand, ministro das Relações Estrangeiras e pelo general Lafayette, da
entrega de um documento que exigia a rendição de Napoleão Bonaparte. Este apresentou sua espada e
rendeu-se em 29 de junho de 1815, sendo encaminhado para o exílio na ilha de Santa Helena, onde faleceu
em 15 de março de 1821. Em 06 de fevereiro 1818, Désirée foi proclamada Rainha Desideria
da Suécia, ao lado de seu esposo Jean-Baptiste Bernadotte, o Rei Carl XIV Johan.
16
para a obra Désirée de Annemarie Selinko, ocasião em que era exposto o
fundamento do ordenamento jurídico francês.
No período das codificações, a visão era de que, a partir dos códigos, fosse
possível criar um corpo legislativo composto de normas responsáveis pela regulação
inteira de todas as relações privadas, seu estado, sua capacidade, sua propriedade
e sua família. O Direito Civil era identificado com o próprio Código Civil.
Desde a codificação francesa de 1804 e a alemã de 1896 proliferou-se uma
exacerbada admiração aos comandos dos Códigos Civis. Essa tendência foi
chamada de fetichismo da lei.
9
Michel Giorgianni
10
assevera que “o significado ‘constitucional’ dos Códigos
Civis do início do século XIX era imanente neles, se se fixar a idéia de que a
propriedade privada e o contrato, que constituíam as colunas do sistema, vinham,
por assim dizer, ‘constitucionalizar’ uma determinada concepção da vida econômica,
ligada, notoriamente, à idéia liberal”.
A era das codificações caracterizou-se como o período do primado do Direito
Privado sobre o Público, no sentido de que os códigos nasciam destinados a regular
todo o espaço jurídico de uma determinada nação. Esta relação de proeminência se
inverte, passando-se ao primado do público sobre o privado
11
, com o advento do
constitucionalismo social e do conseqüente maior intervencionismo estatal fruto das
concepções do welfare state.
9
Na França, a escola jurídica que se foi impondo depois da codificação é geralmente designada com o
nome de escola da exegese, e se contrapõe à escola científica, que veio depois. O caráter peculiar da
escola da exegese é a admiração incondicional pela obra realizada pelo legislador através da
codificação, uma confiança cega na suficiência das leis, a crença de que o código, uma vez promulgado,
basta-se completamente a si próprio, isto é, não tem lacunas: numa palavra, o dogma da completude
jurídica.
(BOBBIO, 1999, p. 121).
10
GIORGIANNI, Michele. O direito privado e as suas atuas fronteiras. Revista dos Tribunais, São Paulo,
v. 87, n. 747, p. 35-55, jan.1988, p. 41.
11
Norberto Bobbio esclarece que o primado do público significa o aumento da intervenção estatal na
regulação coativa dos comportamentos dos indivíduos e dos grupos infra-estatais, ou seja, o caminho
inverso ao da emancipação da sociedade civil em relação ao Estado, emancipação que fora uma das
conseqüências históricas do nascimento, crescimento e hegemonia da classe burguesa. Com o declínio
dos limites à ação do Estado, foi ele pouco a pouco se reapropriando do espaço conquistado pela
sociedade civil burguesa até absorvê-lo completamente na experiência extrema do Estado total (total
exatamente no sentido de que não deixa espaço algum fora de si). (BOBBIO, Norberto. Teoria geral do
direito: para uma teoria geral da política. Tradução Marco Aurélio Nogueira. 11. ed. São Paulo: Paz e
Terra, 2004, p. 25).
17
No período do constitucionalismo social e do aumento da intervenção estatal
como decorrência da contínua necessidade de regulação dos comportamentos em
sociedade, são impostas limitações ao poder da vontade dos particulares nas
relações com outros particulares (como por exemplo o direito de vizinhança) com o
fim de promover a concretização dos princípios constitucionais, com destaque para o
princípio da dignidade da pessoa humana.
Na Europa começava a operar-se uma significativa mudança no panorama
da legislação civil, com a multiplicação de leis especiais que criavam microssistemas
legislativos regidos por princípios e valores afastados daqueles consagrados nos
Códigos Civis.
12
Na medida em que houve o deslocamento do monossistema simbolizado
pela codificação civil e o surgimento de novas leis extravagantes, o que se
intensificava com o desenvolvimento da atividade econômica, disciplinaram-se novos
institutos do Direito Privado, submetendo-os à regulação, mais adequada às
necessidades de uma sociedade que se industrializava e de um Estado que mudava
de aspecto, tornando-se social. Esse processo intensificou-se na Europa depois da
2ª Guerra Mundial, pois o cenário econômico e social passara a exigir uma maior
intervenção do legislador.
Com a intervenção do Estado na atividade econômica e na vida
social e com o surgimento do welfare state ou Estado do bem-estar social
13
,
12
Segundo Natalino Irti: La edade de la codificación – es decir, los años que vivimos y los que nos esperan
en el futuro próximo – está ante nuestros ojos con la nitidez de su fisonomía. El Código Civil ha perdido el
carácter de centro del sistema de fuentes: ya no más sede de las garantías del individuo, ahora asumidas y
desarroladas por la Constitución; ya no más sede de principios generales, ahora expresados, para
singulares categoráis de bienes o clases de sujetos, por las leyes externas. La historia de nuestro siglo
revela, desde la perspectiva de las vicissitudes legislativas, una radical dirección centrífuga. (IRTI, Natalino.
La edade de la descodificación. Traducción e introducción de Luis Rojo Ajuria. Barcelona: Bosch, 1992,
p. 37).
13
Quanto ao período histórico do surgimento do Estado social ou intervencionista, Francisco dos Santos
Amaral Neto se pronuncia: “Com o advento do Estado social ou intervencionista, o individualismo típico e
fundamental do Direito Privado, expresso nos Códigos Civis francês e alemão, entra em crise, como
resultado da contradição entre os ideais jurídicos da burguesia e o anseio da justiça das classes menos
favorecidas. E o valor da liberdade supera-se com o ideal da socialização e da presença do Estado na
economia. A autonomia privada vem a ser gradativamente limitada por princípios e normas que, regulando
os interesses fundamentais do Estado ou estabelecendo, no Direito Privado, as bases jurídicas da ordem
econômica e moral da sociedade, passam a constituir a chamada ordem pública. Divide-se esta, às suas
finalidades, em ordem pública política e moral, pertinente à organização do Estado e dos poderes públicos
da família e dos bons costumes, e ordem pública econômica e social que compreende a ordem pública de
direção (intervencionismo e dirigismo estatal) e de proteção (disciplina dos contratos, proteção ao
18
estabeleceu-se um novo sistema social, no qual o Estado visava a assegurar o
bem-estar individual e social dos cidadãos.
A implantação desse modelo ampliaria o conceito de cidadania, no sentido
de que o indivíduo teria o direito, desde seu nascimento, a um conjunto de bens e
serviços que deveriam ser fornecidos diretamente através do Estado ou
indiretamente, mediante seu poder de regulamentação sobre a sociedade civil.
Esses direitos iriam desde a cobertura de saúde e educação em todos os níveis, até
o auxílio ao desempregado, à garantia de uma renda mínima, recursos adicionais
para sustentação dos filhos.
O Brasil, como outros países, também sofreu os influxos das demandas do
modelo do Welfare State para a formatação de políticas sociais públicas tendentes à
satisfação das necessidades da população economicamente desfavorecida.
14
Pode ser destacada como conseqüência jurídica do intervencionismo estatal
o fenômeno da constitucionalização de certos princípios e institutos fundamentais do
Direito Privado, isto é, a disciplina dos princípios fundantes dos três institutos
básicos do Direito Privado – a família, propriedade e contrato passa a ser
estabelecida pela Constituição Federal. Com isso, supera-se a clássica dicotomia
entre Direito Público e Direito Privado, havendo o direcionamento dos princípios
fundamentais para o âmbito do texto constitucional, o qual passou a assegurar o
direito à vida, à liberdade, à segurança, à igualdade, ao bem-estar, a cidadania, os
direitos e deveres coletivos e a organização das estruturas administrativas do
Estado, bem como reunir os objetivos primordiais da ordem jurídica e social.
consumidor, contratos de adesão, contratos regulamentados etc.) Permanece assim a autonomia privada
como princípio fundamental, mas limitada, no seu campo de atuação pela ordem pública e pelos
princípios de justiça contratual e da boa-fé. O Direito de Família também sofre profundas alterações.
Aumenta o número de uniões livres e o Estado preocupa-se em reconhecer-lhes os efeitos jurídicos.
Disciplina-se o divórcio, desenvolvem-se os métodos de prova no reconhecimento da filiação,
regulamenta-se a inseminação artificial. Socializam-se os deveres familiais e o Estado intervém na
disciplina desses deveres. Desaparece o poder marital, os cônjuges equiparam-se na titularidade de
direitos e deveres [...]. Enfim, os princípios de liberdade e igualdade compatibilizam-se com os interesses
superiores da família, como realidade subjacente. (AMARAL NETO, 1991, p. 147-150).
14
Como exemplos da influência do Welfare State e da tentativa de universalização dos direitos sociais, o
Brasil criou o Instituto Nacional de Alimentação e Nutrição (INAN), do Funrural e, posteriormente, das
Ações Integradas de Saúde (AIS) do SUDS, do SUS, dos mecanismos de seguro-desemprego.
19
Outra conseqüência pode ser indicada - a fragmentação
15
do Direito Privado,
no sentido do término de um sistema monolítico, caracterizado pelo predomínio dos
códigos do século XIX, passando-se a um polissistema ou plurissistema. Trata-se de
do deslocamento de determinados tópicos da matéria privada, antes concentrados
nos Códigos Civis e Comerciais, para a regulamentação específica pelas leis
especiais. Assim, teve início o período denominado a “era dos estatutos”.
Essa realidade em que os códigos não mais encerravam o direito, com
pretensões de totalidade, é um fenômeno mais ou menos recente na vida jurídica
nacional.
O papel desempenhado pelo Código Civil Brasileiro de 1916 alterou-se
substancialmente. De corpo legislativo monolítico e centro do sistema jurídico,
aspirando a completude na disciplina das relações de Direito Privado, transformou-
se em centro normativo do direito comum.
Diante da insuficiência da codificação civil na regulação das novas figuras
emergentes com a realidade econômica e até então, não previstas pelo codificador,
bem como com a proliferação de leis especiais, iniciou-se o fenômeno da
descodificação.
16
Com relação à época da descodificação, Natalino Irti
17
escreve:
El Código Civil ahora funciona como derecho residual, como disciplina de
casos no regulados por normas particulares. No es tan verdadero que las
15
Segundo Daniel Sarmento “com a fragmentação do sistema de Direito, a Constituição, que no contexto
do Estado Social passara também a disciplinar as relações econômicas e privadas, vai converter-se em
centro unificador do ordenamento civil”. (SARMENTO, Daniel. Direitos fundamentais e relações
privadas. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2004, p. 97).
16
No entender de Paulo Luiz Netto Lôbo acerca da situação do Código Civil: “[...] os códigos tornaram-se
obsoletos e constituem óbices ao desenvolvimento do Direito Civil. Com efeito, a incompatibilidade do
Código Civil com a ideologia constitucionalmente estabelecida não recomenda sua continuidade. A
complexidade da vida contemporânea, por outro lado, não condiz com a rigidez de suas regras, sendo
exigente de minicodificações multidisciplinares, congregando temas interdependentes que não
conseguem estar subordinados ao exclusivo campo do Direito Civil. São dessa natureza os novos
direitos, como o direito do consumidor, o direito do meio ambiente, o direito da criança e do
adolescente”. (LÔBO, Paulo Luiz Netto. Constitucionalização do Direito Civil. Jus Navigandi, Teresina,
v. 3, n. 33, jul. 1999. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp?id=507>. Acesso em: 22
ago. 2006).
17
IRTI, 1992, p. 33.
20
leyes especiales desarrollan criterios enunciados por el Código, como que el
Código integra y completa las previsiones.
Nacidas como excepciones o como mero desarrollo de los principios
codificados, las leyes especiales se apoderan de clases enteras de
relaciones, las sometem a nuevas y diferentes lógicas de regulación,
expresan criterios generales y autónomos. El Código Civil sufre así una
inversíon em su función.
No Direito brasileiro, com o advento de uma pluralidade de estatutos e leis
autônomas, dentre eles: a Lei de Locações, o Código de Defesa do Consumidor e o
Estatuto da Criança e do Adolescente, implantou-se um polissistema, caracterizado
por um conjunto crescente de leis, consideradas como centros de gravidade
autônomos e conhecidas como microssistemas.
Diante do fato de que o Direito Civil não poderia ser analisado apenas a
partir de seus próprios fundamentos, surgiu uma nova concepção no sentido da
necessidade de o Direito Civil Brasileiro sofrer os influxos do Direito Constitucional.
Nesse aspecto, a lição de Pietro Perlingieri
18
que, conquanto referida à realidade
italiana, também é importante para a realidade brasileira:
O Código Civil certamente perdeu a centralidade de outrora.
O papel unificador do sistema, tanto nos seus aspectos mais
tradicionalmente civilísticos quanto naqueles de relevância publicista, é
desempenhado de maneira cada vez mais incisiva pelo texto constitucional.
Falar de descodificação relativamente ao Código vigente não implica
absolutamente a perda do fundamento unitário do ordenamento, de modo a
propor a sua fragmentação e diversos microordenamentos em diversos
microssistemas, com ausência de um desenho global [...].
O respeito aos valores e aos princípios fundamentais da República
representa a passagem essencial para estabelecer uma correta e rigorosa
relação entre poder do Estado e poder dos grupos, entre maioria e minoria,
entre poder econômico e os direitos dos marginalizados, dos mais
desfavorecidos.
As relações jurídicas de natureza civil, não importando a sua natureza
específica – familiar, obrigacional, real ou sucessória, passaram a disciplinar-se não
apenas pelas normas contidas ou derivadas do Código, mas, igualmente, por
18
PERLINGIERI, Pietro. Perfis do direito civil: introdução ao direito civil constitucional. Tradução Maria
Regina de Cicco. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 6.
21
princípios e regras constitucionais. Com isso, vislumbra-se a influência da normativa
constitucional sobre todo o Direito Privado.
19
.
Na ótica Perlingieriana
20
, não poderia ser adiada a releitura do Código Civil e
das leis especiais à luz da Constituição da República, com a visão segundo a qual:
As normas constitucionais – que ditam princípios de relevância geral – são
de direito substancial e não meramente interpretativas; o recurso a elas
justifica-se, do mesmo modo que qualquer outra norma, como expressão de
um valor do qual a própria interpretação não pode subtrair-se. É importante
constatar que também os princípios são normas. Não existem, portanto,
argumentos que contrastem a aplicação direta: a norma constitucional pode,
também sozinha (quando não existirem normas ordinárias que disciplinem a
fattispecie em consideração), ser a fonte da disciplina de uma relação
jurídica de direito civil. Esta é a única solução possível, se se reconhece a
preeminência das normas constitucionais – e dos valores por elas
expressos – em um ordenamento unitário, caracterizado por tais conteúdos.
A força jurígena dos dispositivos da Constituição Federal sobre as diversas
áreas do Direito decorre da eficácia plena destas normas
21
. Com a perda do papel
de Constituição do Direito Privado pelo Código Civil, os principais institutos da
atividade privada, tais como a família, o contrato e a propriedade, passam a ser
orientados pelos princípios e valores encartados na Constituição Federal. Os
19
Em comentários à aplicação direta da Constituição Federal nas relações interprivadas, Maria Celina
Bodin de Moraes elucida: [...] a leitura da legislação infraconstitucional deve ser feita sob a ótica dos
valores constitucionais. Desse modo, mesmo em presença de aparentemente perfeita subsunção a uma
norma de um caso concreto, é necessário buscar a justificativa constitucional daquele resultado
hermenêutico. Hoje, sabe ser uma perspectiva ilusória aquela que considerava a operação de aplicação
do direito como atividade puramente mecânica, que se resumiria no trabalho de verificar se os fatos
correspondem aos modelos abstratos fixados pelo legislador. A análise do caso concreto, com
freqüência, enseja prismas diferentes e raramente pode ser resolvida através da simples aplicação de
um artigo de lei ou da mera argumentação de lógica formal. Daí a necessidade, para os operadores do
direito, do conhecimento da lógica do sistema, oferecida pelos valores constitucionais, pois que a norma
ordinária deverá sempre ser aplicada juntamente com a norma constitucional, que é a razão de validade
para a sua aplicação naquele caso concreto. Sob esta ótica, a norma constitucional assume, no direito
civil, a função de, validando a norma ordinária aplicável ao caso concreto, modificar, à luz de seus
valores e princípios, os institutos tradicionais. Tais técnicas de aplicação do direito, instrumentos
hermenêuticos obrigatórios, apresentam-se ainda reforçados pela possibilidade que o ordenamento
concede ao Juiz de considerar insubsistentes normas ordinárias contrárias ao texto maior, através do
mecanismo do controle difuso de constitucionalidade. Cabe, pois também ao Magistrado a operação de
controle e verificação do respeito à supremacia do documento constitucional. (MORAES, Maria Celina
Bodin. A caminho de um direito civil constitucional. Revista de Direito Civil, São Paulo, n. 65, p. 21-33,
1993, p. 29).
20
PERLINGIERI, 2002, p. 10-11.
21
Com efeito, conforme preleciona José Afonso da Silva, “as normas de eficácia plena incidem diretamente
sobre os interesses a que o constituinte quis dar expressão normativa. São de aplicabilidade imediata,
porque dotadas de todos os meios e elementos necessários à sua executoriedade. No dizer clássico,
são auto-aplicáveis”. (SILVA, José Afonso da. Aplicabilidade das normas constitucionais. São Paulo:
Malheiros, 1998a, p. 101-102).
22
parâmetros estabelecidos pela Constituição conferiram um tratamento diferenciado
às questões que envolvem a realidade familiar brasileira.
Como decorrência dessa mentalidade, renovou-se o Direito Civil Brasileiro,
especialmente o Direito de Família, com a garantia de proteção ao ser humano,
merecedor de respeito e consideração, bem como a igualdade entre as várias
formas de constituição de famílias. Esse raciocínio revela não apenas uma tendência
metodológica, mas a preocupação com a construção de uma ordem jurídica mais
sensível aos problemas e desafios da sociedade contemporânea.
As normas jurídicas próprias do Direito Privado passaram a ser
funcionalizadas em prol da concretização e promoção da tutela dos direitos e
necessidades da pessoa humana. Diante desse cenário, aflora a indiscutível
importância da Constituição Federal como fonte de inspiração para os operadores do
Direito em sua missão da busca pela justiça, independentemente das respectivas
posições que cada um assume no contexto jurisdicional (quer sejam professores,
doutrinadores, juristas, procuradores, juízes, promotores etc.), sem deixar de
mencionar, evidentemente, o papel responsável que deve assumir o legislador.
Dessa forma, o papel unificador do sistema jurídico deve ser entregue ao
texto constitucional, para que possam ser pacificados eventuais conflitos existentes
nos diversos ramos da Ciência Jurídica, traçando-se regras básicas a serem
seguidas pela legislação infraconstitucional (seja de Direito Público, seja de Direito
Privado).
A entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 expressou renovada
perspectiva para todos os campos do Direito, principalmente para o Direito Privado e
nesse ramo, mais especificamente para o Direito de Família, que adotou uma
concepção inovadora e atenta à proteção da dignidade da pessoa
22
. De um modo
geral, impôs-se à Ciência do Direito a tarefa de concretizar esse importante valor.
22
Em considerações relacionadas à dignidade humana, ensina Ingo Wolfgang Sarlet: [...] o princípio da
dignidade da pessoa humana constitui o reduto intangível de cada indivíduo e, neste sentido, a última fronteira
contra quaisquer ingerências externas”. Tal não significa, contudo, a impossibilidade de que se estabeleçam
restrições aos direitos e garantias fundamentais, mas que as restrições efetivadas não ultrapassem o limite
intangível imposto pela dignidade da pessoa humana. (SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos
fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2003b, p, 122).
23
Eros Roberto Grau, examinando a Constituição de 1988, observa que ela se
distingue de todas as Constituições anteriores na medida em que reclama, para que
possa ser compreendida e interpretada, a instalação de um modo de pensar
principiológico. A Constituição de 1988 constitui-se em um marco para uma nova
espécie de positivismo: “[...] Passamos a viver um novo positivismo, na medida em
que não apenas positivismo de regras (normas) jurídicas, mas positivismo de
normas (regras e princípios)”.
23
Em face da posição hierárquica superior, da abertura de suas normas, bem
como da avançada principiologia, a Constituição Federal pode ser concebida como
centro gravitacional do Direito Privado.
24
No ordenamento jurídico brasileiro, registre-se que o advento do Código Civil
de 2002 não teve por objetivo reunificar sob a sua égide todo o Direito Privado,
deslocando a Constituição Federal do centro gravitacional do sistema.
A Constituição Federal impingiu ao Direito o abandono da postura
patrimonialista e discriminatória presente na Codificação de 1916. Entretanto,
percebe-se em muitos dispositivos, notadamente quanto ao tratamento da entidade
familiar fundada na união estável, que o atual Código Civil não acompanhou os
avanços constitucionais no que se refere ao embasamento do Direito sobre
fundamentos mais solidarísticos.
Reconhece-se o caráter transformador das normas constitucionais,
consideradas como fundamento de toda a disciplina normativa infraconstitucional, ou
seja, como princípio geral de todas as demais normas do ordenamento jurídico.
Em
conseqüência, incumbe aos operadores do direito, na atividade de interpretação e
23
GRAU, Eros Roberto. A boa-fé no direito privado. Apresentação Judith Martins-Costa. São Paulo:
Revista dos Tribunais, 2000, p. 15-17.
24
Na lição de Luiz Edson Fachin há, em verdade, a “constitucionalização” do Direito Privado que deve ser
lido à luz da Constituição. Esta ordem de idéias também influencia o direito à formação do núcleo familiar
que é, classicamente, outro princípio do Direito Privado que restou constitucionalizado. A Constituição
adotou a concepção plural de família, não havendo apenas a assentada no casamento, mas também
reconheceu como família aquela derivada de união estável e a monoparental, formada por um dos pais e
seus filhos.(FACHIN, Luiz Edson. Teoria Crítica do Direito Civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 76).
24
aplicação dos textos normativos, recorrer à Constituição Federal
25
como
direcionamento para assegurar o equilíbrio nas relações sociais, a efetividade dos
direitos fundamentais e principalmente, a tutela dos direitos da pessoa humana,
privilegiando-se os valores existenciais.
A partir da principiologia constitucional surgem novas tendências e a
necessidade de renovação de conceitos jurídicos
26
, bem como a releitura de vários
institutos do Direito Privado, exigindo que o Direito abrace e contemple situações
inéditas, claramente percebidas nas relações em família.
A perspectiva civil-constitucional, sustentada pela força normativa atribuída
aos princípios constitucionais, objetiva conferir aos fatos e movimentos históricos
que assinalaram a evolução do Direito Civil Brasileiro um propósito: a busca de uma
efetiva tutela e de um constante desenvolvimento da pessoa humana. A proteção da
pessoa humana e da dignidade fundamental constitui, na visão desta metodologia, o
alicerce para as inovações do Direito Civil.
Agrega-se ao fato de a perspectiva civil-constitucional configurar um
testemunho da recente história do Direito Civil brasileiro, demonstrando a conexão
existente entre o Direito Privado e o Direito Público, a intencionalidade de que esses
ramos da Ciência Jurídica compartilhem dos mesmos ideais, assegurando o
exercício da igualdade, da liberdade, da segurança, do bem-estar e da justiça como
valores supremos estabelecidos no texto constitucional.
A incidência direta e imediata da normativa constitucional sobre as relações
interprivadas resume a proposta metodológica da perspectiva civil-constitucional, da
qual Pietro Perlingieri
27
é defensor:
25
Para José Carlos Moreira da Silva Filho, “a Constituição surge, assim, como um manancial de normas e
princípios transformadores dos clássicos institutos e conceitos da órbita jurídico-privatista”. (SILVA
FILHO, José Carlos Moreira da. Transformações jurídicas nas relações privadas, In: ANUÁRIO do
Programa de Pós-graduação em Direito. São Leopoldo: Unisinos, 2003, p. 192).
26
Ensina Luiz Edson Fachin, que na Constituição Federal encontra-se um conjunto significativo de
dispositivos que tratam da regulamentação jurídica da família. O valor e o ‘valer’ da Constituição,
sem embargo, estão além da norma positivada. Assim se apreende esse fenômeno, ‘a
constitucionalização’ do Direito de Família, por meio do qual a Constituição Federal ocupa o lugar
classicamente deferido ao Código Civil e, hoje, é a lei fundamental, ali está a base do Direito de
Família, regras e princípios fundamentais. (FACHIN, 2003, p. 88).
27
PERLINGIERI, 2002, p. 12.
25
A norma constitucional torna-se a razão primária e justificadora (todavia não
a única, se for individuada uma normativa ordinária aplicável ao caso) da
relevância jurídica de tais relações, constituindo parte integrante da
normativa na qual elas, de um ponto de vista funcional, se concretizam.
Portanto, a normativa constitucional não deve ser considerada sempre e
somente como mera regra de hermenêutica, mas também como norma de
comportamento, idônea a incidir sobre o conteúdo das relações entre
situações subjetivas, funcionalizando-as aos novos valores.
Além disso, a perspectiva civil-constitucional propõe certo ângulo na análise
das alterações perpassadas pelo Direito Civil na era contemporânea. É certo que a
transformação dos institutos fundamentais do Direito Civil constitui-se em mudanças
que se verificam empiricamente, no mundo dos fatos, tornados em leis, decisões e
doutrinas jurídicas pela pressão dos acontecimentos sociais.
28
A perspectiva civil-constitucional confere a possibilidade de renovadas
leituras e interpretações para as questões que envolvem a relação familiar, o
contrato e a propriedade, porque encaminha estas investigações e coaduna os seus
resultados com as finalidades fixadas pela Constituição Federal, propondo um
Direito Civil Constitucionalizado e reforçando o compromisso com um valor-fonte
29
: a
dignidade da pessoa.
Na seara constitucional, basicamente, é garantida em vários artigos a
proteção do ser humano, seja fazendo referência ao princípio da dignidade da
pessoa humana
30
, seja protegendo a vida, a saúde, garantindo a igualdade, a
28
NEGREIROS, Teresa. Teoria do contrato: novos paradigmas. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 61.
29
O termo “valor – fonte”, utilizado para expressar, precisamente, a importância da pessoa humana como
centro da axiologia jurídica, é de autoria de Miguel Reale, tendo sido recentemente retomado, a partir,
sobretudo, da obra Pluralismo e Liberdade, por Judith Martins-Costa. (MARTINS-COSTA, Judith. Dito e
cultura: entre as veredas da existência e da história. Revista do Advogado, São Paulo, n. 61, p. 72-78,
nov. 2000).
30
José Afonso da Silva refere que “embora desempenhe papel tão relevante na esfera constitucional, a
dignidade da pessoa humana não é uma criação constitucional, pois ela é um desses conceitos a priori,
um dado preexistente a toda experiência especulativa, tal como a própria pessoa humana. A
Constituição, reconhecendo-a sua existência e a sua eminência, transformou-a num valor supremo da
ordem jurídica, quando a declara com um dos fundamentos da República Federativa do Brasil
constituída em Estado Democrático de Direito. Poderíamos até dizer que a eminência da dignidade da
pessoa humana é tal que é dotada ao mesmo tempo da natureza de valor supremo, princípio
constitucional fundamental e geral que inspira a ordem jurídica. Mas a verdade é que a Constituição lhe
dá mais do que isso, quando a põe como fundamento da República Federativa do Brasil constituída em
Estado Democrático de Direito. Se é fundamento é porque se constitui num valor supremo, num valor
fundante da República, da Federação, do País, da Democracia e do Direito. Portanto, não é apenas um
princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural. Daí sua
natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida social”. (SILVA, José Afonso da. A
dignidade da pessoa humana como valor supremo da democracia. Revista de Direito Administrativo,
Rio de Janeiro, n. 212, abr./jun. 1998b, p. 91-92).
26
liberdade, a segurança e as condições dignas de sobrevivência por meio da
proteção à maternidade e a todos os estágios da vida, tais como: gestação, infância,
adolescência, maturidade e velhice e, para além da vida, preservar a memória, a
imagem e a importância social do indivíduo.
Convém apontar que, afastada uma ideologia com prevalência dos padrões
clássicos da família, houve o reconhecimento, na Constituição Federal de 1988, das
famílias decorrentes de uniões estáveis entre homem e mulher e da comunidade
monoparental, como formas de entidades familiares, além das famílias fundadas no
casamento.
A proteção oferecida pela Constituição Federal atinge a formação do grupo
familiar, bem como a sua manutenção, uma vez que a família propicia os aportes
afetivos e materiais necessários ao desenvolvimento e bem-estar dos componentes.
A partir de tais premissas, a orientação é no sentido de que o tratamento de
qualquer questão referente às famílias deva ser realizado à luz das disposições
constitucionais. Em coerência com essa dimensão, no próximo capítulo trazer-se-á a
moldura das entidades familiares na visão do Constitucionalismo Brasileiro.
2.2 Um Olhar Jurídico sobre as Famílias
No Direito Brasileiro pré-constitucional a disciplina civilista das relações
sociais centrava-se, essencialmente, na tutela dos valores e interesses de cunho
patrimonial. No sistema atual, a ordem jurídica é informada por princípios
fundamentais previstos na Constituição Federal, dentre os quais, ressalta-se o
princípio da dignidade da pessoa humana, o que conduz à subordinação das
relações jurídicas e sociais a valores existenciais, por conseguinte,
despatrimonializando-as.
Numa retrospectiva acerca do tratamento outorgado às relações familiares,
estatuído pela codificação civil de 1916, constata-se que havia uma preocupação em
27
regular a organização familiar assentada no modelo patriarcal, heterossexual,
hierarquizado e exclusivamente matrimonializado. Essa modalidade familiar percebia
tutela jurídica específica e tinha finalidades a cumprir dentre elas: a procriação, o
fornecimento de mão-de-obra, a transmissão do patrimônio da família e constituir
uma primeira base de educação.
Ao modelo de família patriarcal e hierarquizado fundado exclusivamente no
casamento civil ou religioso com efeitos civis agregaram-se outros moldes familiares:
a união estável e a monoparentalidade. Nessa ordem de idéias, Luiz Edson Fachin
31
assevera:
Na família codificada assim também: sistema jurídico sistematizado,
exercício da classificação, à medida que define, exclui e classifica. A égide
regulamentada é juridicamente limitada. Se a codificação em 1916 prevê:
“Criando a família legítima, o casamento legitima os filhos anteriores”, o
Código definindo o casamento e a família, ao assim fazê-lo está restringindo
a família à dimensão matrimonializada. Excluem-se do conceito dessa
família as relações fora do casamento. Realidade que se altera com a
Constituição Federal de 1988, projetando-se para o novo Código Civil.
A aplicação das normas constitucionais às relações interprivadas tem sido
realizada, atualmente, pela doutrina e pela jurisprudência, no que se refere a
inúmeros institutos do Direito Civil, principalmente a família.
A família não recebe tutela constitucional pelo simples fato de existir. A
proteção jurídica à família é proteção imediata, isto é, estabelece-se uma visão
instrumental da entidade familiar, no sentido de que ela não é um fim em si mesma,
mas um lugar destinado à realização pessoal e afetiva dos indivíduos que o
compõem. Às relações humanas que concretizem esse fim, impõe-se o
reconhecimento da natureza familiar.
A Constituição Federal demonstra a sua preocupação com a dignidade das
pessoas integrantes das famílias nos artigos 226, parágrafo 7º, 227 e 230,
enfatizando que o Estado criará os mecanismos necessários à coibição da prática de
violência na seara das relações familiares.
31
FACHIN, 2003, p. 71.
28
Para promover-se o melhor interesse das pessoas que integram as famílias
não podem ser protegidas algumas entidades familiares e desprotegidas outras. O
procedimento de escalonar as formas de constituir famílias configura, aos olhos da
renovada axiologia empreendida pela Constituição Federal de 1988, grave violação
ao princípio da dignidade da pessoa humana.
Em razão da introdução de novos valores
32
com a Constituição Federal,
iniciou-se um período de grandes transformações e debates relativamente à
regulação da matéria de família, o que permitiu uma maior percepção da importância
e do papel da célula familiar para a formação e inserção do indivíduo no meio social.
A Constituição Federal de 1988 em seu preâmbulo prestigia valores
inerentes ao Estado Democrático de Direito, como os direitos sociais e individuais, a
32
Na lição de Paulo Luiz Netto Lôbo, a Constituição Federal brasileira de 1988 expande a proteção do
Estado à família, promovendo a mais profunda transformação que se tem notícia, entre as Constituições
mais recentes de outros países. Alguns aspectos merecem ser salientados:
a) a proteção do Estado alcança qualquer entidade familiar, sem restrições, explicita ou implicitamente
tutelada pela Constituição;
b) a família, entendida como entidade, assume claramente a posição de sujeito de direitos e obrigações;
c) os interesses das pessoas humanas, integrantes da família, recebem primazia sobre os interesses
patrimonializantes;
d) a natureza socioafetiva da filiação prevalece sobre a origem exclusivamente biológica;
e) consuma-se a igualdade entre os gêneros e entre os filhos;
f) reafirma-se a liberdade de constituir, manter e extinguir entidade familiar e a liberdade de
planejamento familiar, sem imposição estatal;
g) a família configura-se no espaço de realização pessoal e da dignidade humana de seus membros.
(LÔBO, Paulo Luiz Netto. A repersonalização das relações de família. Jus Navigandi, Teresina, v. 8, n.
307, 10 maio 2004b. Disponível em: <http://jus2.uol.com.br/doutrina/ texto.asp?id=5201>. Acesso em: 16
nov. 2006).
A propósito, em uma de suas diversas reflexões acerca dos valores, Francesco Alberoni lembra que
“muita gente insiste em nos dizer que não existem mais valores. Que toda a cultura moderna enveredou
em direção ao niilismo, aportou no niilismo e não sai mais do niilismo. O niilismo para a cultura é
exatamente essa: ‘falta de fundamento’. [...] Que a cultura ‘não tem mais fundamento’ quer apenas dizer
que não existe mais uma tradição indiscutível, que não existe mais um credo oficial, que não existe mais
inquisição, nem censura, que eu posso dizer e pensar aquilo que quiser. Em suma, que existe liberdade
de pensamento e de palavra. O fato de não existir mais tal ‘fundamento’ não quer dizer, entretanto, que
nós não tenhamos coisas nas quais acreditamos. Não quer dizer que não tenhamos valores e metas que
nos pareçam mais altos e dignos. [...] Nós também acreditamos, sonhamos, aspiramos, procuramos o
bem, o melhor. Nossa sociedade esforça-se para propiciar a todos uma casa, um salário, uma vida
confortável, um trabalho digno, hospitais onde curar as doenças, escolas para as crianças, abrigos para
os velhos. Nosso sistema jurídico reconhece e tutela inumeráveis direitos e aumenta-lhes,
continuamente, o campo. Todos temos idéia do que seja uma sociedade boa. Uma sociedade em que
cada um seja tratado com inteligência e com amor, sem agressividade e sem inveja, em que cada um
compreenda as necessidades do outro e atenda a elas com inteligência e sabedoria. Todas essas coisas
têm a sua raiz no mais remoto passado filogenético, na memória ancestral dos cuidados parentais que
os animais dedicam aos seus filhotes, no calor do corpo materno dos mamíferos, nas experiências da
infância. Mas nem por isso deixam de ser um saber. São o saber da natureza, do vivido, o saber mais
profundo ao qual, com muita freqüência, nossa inteligência racional não sabe dar sustentação lógica”.
(ALBERONI, Francesco. Valores: o bem, o mal, a natureza, a cultura, a vida. Tradução Y. A. Figueiredo.
Rio de Janeiro: Rocco, 2000, p. 54-56).
29
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade, a liberdade e a harmonia
social. Além disso, a constante busca por uma sociedade fraterna, justa e solidária
também conduziu a uma ordem na qual podem ser consagrados outros valores,
neste caso, atinentes às famílias: a valorização da dignidade da pessoa humana, o
reconhecimento da afetividade como elemento nuclear e definidor da união familiar,
a promoção do desenvolvimento da personalidade dos indivíduos, o pluralismo na
origem da grupalidade familiar, bem como o tratamento e a proteção isonômica dos
membros das famílias e de seus descendentes, sejam esses provenientes ou não de
relações matrimonializadas.
Há um contínuo movimento de adaptação do Direito aos reclamos de uma
sociedade que se transforma e abriga as mais variadas formas de convivência
familiar e de laços de afeto.
Nesse sentido, em pesquisa sobre a história do tratamento conferido à
família nas Constituições Brasileiras, Paulo Luiz Netto Lôbo
33
considera que:
As Constituições modernas, quando trataram da família, partiram sempre do
modelo preferencial da entidade matrimonializada. Não é comum a tutela
explícita das demais entidades familiares. Sem embargo, a legislação
infraconstitucional de vários países ocidentais têm avançado, desde as duas
últimas décadas do século XX, no sentido de atribuir efeitos jurídicos
próprios de direito de família às demais entidades socioafetivas, incluindo as
uniões homossexuais. A Constituição brasileira inovou, reconhecendo não
apenas a entidade matrimonializada, mas outras duas explicitamente, além
de permitir a interpretação extensiva, de modo a incluir as demais entidades
implícitas.
As Constituições Brasileiras reproduzem as fases históricas que o país
viveu, em relação à família, no trânsito do Estado liberal para o Estado
social. As Constituições de 1824 e 1891 são marcadamente liberais e
individualistas, não tutelando as relações familiares. Na Constituição de
1891 há um único dispositivo (art. 72, § 4º) com o seguinte enunciado: "A
República só reconhece o casamento civil, cuja celebração será gratuita".
Compreende-se a exclusividade do casamento civil, pois os republicanos
desejavam concretizar a política de secularização da vida privada, mantida
sob controle da igreja oficial e do direito canônico durante a colônia e o
Império.
Em contrapartida, as constituições do Estado social brasileiro (de 1934 a
1988) democrático ou autoritário destinaram à família normas explícitas. A
Constituição democrática de 1934 dedica todo um capítulo à família,
aparecendo pela primeira vez a referência expressa à proteção especial do
Estado, que será repetida nas constituições subseqüentes. Na Constituição
autoritária de 1937 a educação surge como dever dos pais, os filhos
naturais são equiparados aos legítimos e o Estado assume a tutela das
33
LÔBO, 2004b.
30
crianças em caso de abandono pelos pais. A Constituição democrática de
1946 estimula a prole numerosa e assegura assistência à maternidade, à
infância e à adolescência.
A Constituição de 1988 introduziu no ordenamento jurídico brasileiro uma
concepção que privilegia o desenvolvimento humano e a dignidade da
pessoa e dedicou um capítulo especialmente à família, à criança, ao
adolescente e ao idoso.
A reconstrução do Direito de Família na ordem jurídica brasileira foi
impulsionada pela Constituição Federal de 1988, especificamente pelas diretrizes
expostas nos artigos 226
34
a 230
35
. Para o tratamento a ser dispensado às famílias,
o citado diploma normativo firmou os princípios da dignidade humana e da igualdade
como estruturantes dos direitos dos componentes das entidades familiares.
A estrutura de proteção à família fixada na Constituição Federal concerne à
paridade no exercício dos direitos e deveres na sociedade conjugal, à igualdade na
filiação, independentemente das particularidades que acompanham o nascimento
dos filhos, preservando-se sua integridade e coibindo-se qualquer conduta
discriminatória (artigo 227, § 6º, CF/88). No que concerne à filiação, os pais têm o
dever de assistir, criar e educar os filhos menores; e aos filhos maiores incumbe
ajudar e amparar os pais na velhice, carência e enfermidade (artigo 229, da CF/88).
Além disso, constam no texto constitucional: o pluralismo na formação dos entes
familiares, mediante a recepção das famílias oriundas das uniões estáveis e dos
núcleos monoparentais; o planejamento familiar, como um instrumento destinado a
facilitar o exercício das atividades e funções encerradas pela paternidade
responsável, bem como a criação de mecanismos e a utilização de recursos
assistenciais por parte do Estado com a finalidade de impedir a prática da violência
no interior das entidades familiares.
Esses avanços implicaram revisão de conteúdos, rediscussão de conceitos,
esclarecimento de assuntos controvertidos e uma mudança de pensamento acerca
da família, não mais tida como um núcleo abstrato de indivíduos com papéis pré-
determinados, mas como uma comunidade composta por pessoas com
34
Art. 226 da Constituição Federal Brasileira de 1988. A família, base da sociedade, tem especial proteção
do Estado.
35
Art. 230 da Constituição Federal Brasileira de 1988. A família, a sociedade e o Estado têm o dever de
amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e
bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida.
31
necessidades, realizações, aspirações próprias e universos de desenvolvimento
distintos.
No ordenamento jurídico brasileiro, o Direito de Família é compreendido
como um valor constitucional, pois a Constituição Federal de 1988 ao definir os
direitos dos componentes das entidades familiares e as obrigações do Estado para
com eles, conferiu uma dimensão constitucional ao tratamento das famílias,
atendendo às aspirações da sociedade.
A manutenção de uma família endereçada somente aos valores religiosos,
culturais, éticos e econômicos deu lugar à tutela constitucional de organismos
familiares finalizados, primordialmente, ao desenvolvimento da personalidade e à
preservação da dignidade das pessoas que os compõem.
Com referência à dignidade da pessoa humana, releva trazer as lições de
Ingo Wolfgang Sarlet
36
, quando a considera:
[...] uma qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano
que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do
Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de
direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo
e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe
garantir condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de
propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos
da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres
humanos.
No momento em que a Constituição Federal elevou a dignidade da pessoa
humana
37
ao patamar de princípio fundamental, o conceito de família alicerçou-se
sobre novas bases, promovendo o tratamento igualitário entre todos os seus
componentes, principalmente dos filhos, desimportando a origem ou não no
36
Essa definição encontra-se nas seguintes obras: SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa e
direitos fundamentais na Constituição Federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004b,
p. 60 e SARLET, Ingo Wolfgang. Algumas notas em torno da relação entre o princípio da dignidade da
pessoa humana e os direitos fundamentais na ordem constitucional brasileira. In: BALDI, César Augusto
(Org.). Direitos humanos na sociedade cosmopolita. Rio de Janeiro: Renovar, 2004a, p. 573.
37
Para Pietro Perlingieri, a família como formação social, como sociedade natural, é garantida pela
Constituição não como portadora de um interesse superior e superindividual, mas, sim, em função da
realização das exigências humanas, como lugar onde se desenvolve a pessoa. A família é valor
constitucionalmente garantido nos limites de sua conformação e de não contraditoriedade aos valores
que caracterizam as relações civis, especialmente a dignidade humana: ainda que diversas possam ser
as suas modalidades de organização, ela é finalizada à educação e à promoção daqueles que a ela
pertencem. (PERLINGIERI, 2002, p. 244).
32
casamento. Nessa ordem, a família passou a ser protegida na exata medida em que
se constitua em um núcleo comprometido com o desenvolvimento da personalidade
e de promoção da dignidade dos seus integrantes, conferindo primazia à realização
pessoal e promovendo uma integração de objetivos e sentimentos.
A estrutura familiar brasileira, visualizada no sistema anterior à Constituição
Federal de 1988 como uma organização composta pelas figuras paternas e suas
funções previamente definidas, com filhos legítimos e fundamentada no casamento,
renovou-se para contemplar outras realidades advindas da pluralidade fática dos
modelos de família.
A família fundada no patriarcalismo, na hierarquia e matrimonializada,
tomada como modelo de entidade familiar pelo ordenamento jurídico no curso dos
séculos XIX e XX, modificou suas feições, pois sofreu uma profunda alteração em
seu significado e ganhou novos contornos em razão dos valores introduzidos pela
Constituição Federal, alargando-se para abrigar, irrestritamente, todos os vínculos
gerados pela presença do afeto nas relações humanas.
As relações familiares contemporâneas consagram-se como ambientes de
mútua colaboração e estreita comunhão de vida e apresentam como fundamento a
igualdade, a solidariedade e a afetividade .
Neste particular, Pietro Perlingieri
38
preleciona ter a família uma relevante
função serviente, a qual deve ser realizada de forma aberta, integrada na sociedade
civil, com uma obrigatória colaboração com outras formações sociais: não como uma
ilha, mas como um autônomo território, que é parte que não pode ser eliminada de
um sistema de instituições civis predispostas para um escopo comum; todas essas
formações sociais serão merecedoras de tutela se a regulamentação interna for
inspirada no respeito da igual dignidade, na igualdade moral e jurídica dos
componentes e na democracia. Valores que representam, juntamente com a
solidariedade, o pressuposto, a consagração e a qualificação da unidade dos direitos
e dos deveres no âmbito da família. A delineada função serviente da família, assim
38
PERLINGIERI, 2002, p. 245-46.
33
como a de qualquer outra formação social, explica o papel da intervenção do Estado
na comunidade familiar. Ela se traduz, em geral, na necessidade de que seja
respeitado o valor da pessoa na vida interna da comunidade familiar.
A Constituição Federal Brasileira de 1988 acabou alterando o objeto de
tutela jurídica no âmbito do Direito de Família, ao estabelecer que a proteção à
família dá-se na pessoa de cada um dos que a integram, fato que atesta a existência
de uma concepção plural de família. O Direito brasileiro reconheceu que a família
não tem como nascedouro somente o ato formal do casamento, mas advém de
relações humanas orientadas em face da presença do afeto.
O perfil da entidade familiar brasileira fundamenta-se no predomínio das
idéias de valorização do ser humano, de harmonia e de disponibilidade incondicional
de amor e proteção entre os seus membros e na garantia de condições para o
desenvolvimento pleno do indivíduo.
A Constituição Federal Brasileira de 1988
39
, ao assumir os objetivos de
construção de uma sociedade livre, justa e solidária, destacou a proteção à pessoa
humana e aos valores existenciais, como princípios orientadores de seu tratamento
em todas as esferas, especificamente, nas relações privadas familiares, priorizando
a proteção dos integrantes da família em relação ao grupo.
39
Eduardo Oliveira Leite afirma que o Constituinte Brasileiro em 1988, embora tenha modificado o dogma
da legitimidade da família constituída pelo casamento, não reconheceu (nem poderia tê-lo feito) as
outras entidades familiares no mesmo pé de igualdade do casamento civil, mas de forma lapidar e
amplíssima, dispôs que a família (todas as famílias, certamente) tem especial proteção do Estado. Isto é,
tanto as famílias biparentais (oriundas de casamento civil, ou religioso, ou decorrentes de união estável),
quanto as famílias monoparentais (previstas no § 4º do art. 226). A distinção feita pela Constituição
Federal é veemente e afasta qualquer dúvida que possa pairar com relação ao intuito do Constituinte,
tanto é que ao se referir à “família”, no artigo 226, caput, referiu-se ao ‘casamento’, e ‘às entidades
familiares (união estável - § 3º e família monoparental - § 4º).
Assim, com relação ao reconhecimento de outras formas de famílias, esse mesmo autor esclarece que
qualquer que seja a postura adotada pela doutrina, relativamente à previsão constitucional, ficou
suficientemente claro que o surgimento da noção de entidade familiar além da família tradicional, ou da
família monoparental, abandona o vocabulário moralizador que qualificava situações relativamente
atípicas para reconhecer, sem vacilações, a existência de um fenômeno social, uma nova forma familiar
com a qual será necessário bom ou mal grado, conviver e legislar daqui para o futuro. O fenômeno social
assimilado pelo legislador é caracterizado pela coexistência de vários modelos familiares reconhecidos
como tais, e, notadamente, pelas políticas de família. Quando o legislador se refere à união estável (em
verdade, está ser referindo à união livre) ou à ‘comunidade formada por qualquer dos pais e seus
descendentes’ (família monoparental) é porque reconhece expressamente a inserção destas realidades
naqueles modelos familiares, ou porque, progressivamente elas adquiririam legitimidade. (LEITE,
Eduardo Oliveira. Famílias Monoparentais: a situação jurídica de pais e mães separados e dos filhos
na ruptura da vida conjugal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 18-19).
34
Diante do pluralismo na formação de núcleos familiares, não há dúvidas de
que o Constituinte Brasileiro em 1988 concebeu como novas formas de famílias,
além das famílias constituídas pelo casamento, as entidades familiares nascidas de
uniões estáveis (artigo 226, parágrafo 3º) e pelas comunidades formadas por
qualquer dos pais e seus descendentes (artigo 226, parágrafo 4º). Com efeito, em
razão do reconhecimento das famílias como entidades igualitárias, descentralizadas,
democráticas e instrumentalizadas à realização da pessoa humana, não é admitida a
disciplina desigual a qualquer das famílias explicitadas na Constituição Federal.
Nos dias de hoje, constata-se que a família é forjada em laços de
afetividade, sendo esses sua causa originária e final, com o propósito de servir de
estímulo para a afirmação da dignidade das pessoas que a compõem.
Ressalte-se a relevância do fato de a Constituição Federal Brasileira de
1988 ter introduzido profundas alterações no Direito de Família Brasileiro, ramo que
mais sofreu os influxos dos novos tempos. Assim, resta configurada a tarefa de
buscar a concretização de um Direito de Família orientado por noções de igualdade,
solidariedade e, ainda, afinado às novas faces apresentadas pela convivência
humana na realidade social.
No próximo capítulo, examinar-se-á a inserção do afeto na literatura jurídica,
importante questão para o retrato das famílias contemporâneas.
2.3 O Afeto como Alicerce para a Configuração da Família
A ampliação do conceito de família reconhecido pelo Direito é fruto da
atitude e da pressão exercida pela sociedade. Consciente de seu tempo e de sua
história, a família supera a moldura autoritária, monolítica, patriarcal e hierarquizada,
com sua dimensão transpessoal e cede espaço para a construção de um sentido
apto a captar a magnitude das transformações sociais e alinhavar as novas vestes
de uma família compreendida em sua amplitude.
35
Com relação à trajetória de mudanças percorrida pelo Direito Civil brasileiro
ao longo do século XX, leciona Luiz Edson Fachin
40
:
No modelo herdado dos valores vigorantes no século passado, um ruído,
elementos estranhos. Nova, a pauta das discussões. Crises e
transformações emergem gerando mudanças nos papéis tradicionalmente
cometidos aos institutos fundamentais do Direito Civil: projeto parental
(família), trânsito jurídico (contrato) e titularidades (posse, apropriação).
A família e o Direito de Família alavancam esse novo olhar sobre o governo
jurídico dos institutos de base do Direito Privado. A releitura desses
estatutos fundamentais é útil e necessária para compreender a crise e a
superação do sistema clássico que se projetaram para a família, o contrato
e o patrimônio.
Mais que fazer a reciclagem do passado, a complexidade desse fenômeno
apresenta, neste momento, um interessante banco de prova que se abre em
afazeres epistemológicos. Mais que novo quebra-cabeça, um caminho que
é ao mesmo tempo desafio.
O ponto de partida pode estar fincado na observação colhida dos fatos,
indicadores de manifesta tendência de ‘rearranjo’ social de modelos. E esse
estudo deve considerar a problemática jurídica como problema social e,
como tendência, a análise crítica de seus reflexos na legislação, na doutrina
e na jurisprudência.
Tendo em vista que a sociedade está em constante movimento,
determinados fatos sociais escapam à Ciência Jurídica. Isto porque a norma, que é
estática em seu momento de formação, destina-se a regular uma dada realidade
social então vigente. De outro lado, o Direito, em certo momento, recepciona aquela
realidade social, incorporando-a em seu ordenamento, passando a atribuir
juridicidade à situação configurada no meio social e convertendo-a em relações
jurídicas. No caso das entidades familiares, o Direito reconhece novas famílias em
razão da pressão exercida pelos cidadãos interessados em obter tutela para suas
relações. Além disso, por meio de um mecanismo previsto na própria lei - a
interpretação - nos limites da generalidade do texto, a norma em sua formulação
dinâmica empresta novo sentido e alcance ao seu conteúdo, adaptando-se às novas
demandas sociais.
Os novos moldes de famílias constituem situações subjetivas existenciais,
normalmente resultado de mudanças de comportamento, ideais e interesses no
ambiente social, que reclamam imediata tutela jurídica. Diante disso, o Direito não
pode manter-se no campo da neutralidade, pois é um instrumento de organização
40
FACHIN, 2003, p. 44-45.
36
social, tendente à regulação de fatos sociais e responsável pela preservação das
condições de existência do ser humano em sociedade.
Na perspectiva das famílias, as funções do Direito se tornam ainda mais
importantes e sensíveis, na medida em que se observam, a cada dia, importantes
mudanças nas estruturas familiares que exigem do sistema jurídico um cuidado e
adaptação especiais. Tal percepção associa-se à observância que deve ser dada ao
princípio da dignidade da pessoa humana nas relações familiares que, por si só, já
impõe ao direito o dever de acompanhar as mudanças fáticas e sociais ainda não
previstas no ordenamento jurídico.
Segundo Eduardo Silva
41
, “a noção da dignidade de pessoa humana e da
família como espaço e instrumento de sua realização deve, assim, permear toda a
leitura dos institutos típicos do direito de família [...] toda a lei, todo o artigo,
parágrafo e alínea devem ser lidos sob a ótica e perspectiva do princípio da
dignidade humana”.
42
Considerando-se as transformações operadas no ambiente social e
decorrentes do constante processo de expansão a que submetida a sociedade, o
Direito Civil tradicional necessita ceder espaço para a absorção das renovações,
41
SILVA, Eduardo. A dignidade da pessoa humana e a comunhão plena de vida: o direito de família entre a
Constituição e o Código Civil. In: MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução do direito privado. São
Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 447-482.
42
A respeito do supramencionado princípio, Paulo Bonavides preleciona que “nenhum princípio é mais
valioso para compendiar a unidade material da Constituição que o princípio da dignidade da pessoa
humana. Quando hoje, a par dos progressos hermenêuticos do direito e de sua ciência argumentativa,
estamos a falar, em sede de positividade, acerca da unidade da Constituição, o princípio que urge referir
na ordem espiritual e material dos valores é o princípio da dignidade da pessoa humana. A unidade da
Constituição na melhor doutrina do constitucionalismo contemporâneo só se traduz compreensivelmente,
quando em toda sua imprescritível bidimensionalidade, que abrange o formal e o axiológico, a saber
forma e matéria razão e valor. Ambos os termos conjugados assinalam, com a revolução hermenêutica,
o momento definitivo da supremacia principiológica dos conteúdos constitucionais sobre os conteúdos
legislativos ordinários da velha dogmática e, ao mesmo tempo, exprimem a ascensão da legitimidade
material que põe em grau de menor importância, por carência de préstimo superior nas soluções
interpretativas da Constituição, o formalismo positivista e legalista do passado, peculiar à dogmática
jurídica do século XIX. Daquele binômio deriva, em suma, a reconciliação da dogmática com a
hermenêutica, fundamentando, assim, fora do âmbito especificamente constitucional, em termos
genéricos, a legitimidade do novo Direito, mais propínquo à vida que à utopia, mais chegado e
permeável, portanto, à hegemonia do princípio que consagra a dignidade da pessoa humana”.
(BONAVIDES, Paulo. Teoria constitucional da democracia participativa: por um direito constitucional
de luta resistência, por uma nova hermenêutica, por uma repolitização da legitimidade. São Paulo:
Malheiros, 2001, p. 233).
37
com a finalidade de readaptar as normas jurídicas e sua aplicação aos fatos
contemporâneos e aos novos fenômenos sociais.
Essa preocupação projeta-se de forma acentuada na esfera do Direito de
Família, especialmente, porque este ramo dedica-se ao estudo de um fenômeno da
natureza e da cultura, responsável pela constituição de uma comunhão de vida e de
interesses.
Na família encontram-se os elementos fundamentais da identidade simbólica
do indivíduo enquanto ser humano, que o diferenciam de um animal. No espaço da
vida familiar, verificam-se experiências humanas básicas que duram no tempo,
independentemente da vontade das pessoas envolvidas, tais como a paternidade, a
maternidade, a filiação, a fraternidade, a relação entre as gerações e seu impacto na
descoberta do nexo com a geração da vida e com a realidade da morte. Em suma, a
família compõe o processo de humanização, que enraíza a pessoa no tempo, por
meio das relações de parentesco, destinadas a permanecer durante toda a
existência.
43
A família, inicialmente forma específica de agregação humana asseguradora
da sobrevivência, modificou-se ao longo dos ciclos de vida, dos contextos culturais e
dos conflitos interpessoais e ainda tem passado por transformações que
correspondem às mudanças sofridas pela sociedade.
Tradicionalmente o Direito ocupa-se de disciplinar as relações humanas no
âmbito da família.
44
Isto se deve à necessidade de responder às exigências de
realização do ser humano no plano relacional e afetivo, o que conduz a perceber a
diversidade familiar brasileira, conjugando-se a busca de alternativas concretas para
os conflitos nos relacionamentos interpessoais e a construção de uma adequada
proteção às entidades familiares.
43
PETRINI, João. Notas para uma antropologia da família. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.).
Temas atuais de direito e processo de família. Porto Alegre: Lumen Juris, 2004, p. 56.
44
Nesse sentido, Rodrigo da Cunha Pereira diz: “sobre essa estrutura (família) que o Direito vem, por meio dos tempos,
regulando e legislando, sempre com o intuito de ajudar a mantê-la para que o indivíduo possa, inclusive, existir como
cidadão e trabalhar na constituição de si mesmo (estruturação do sujeito) e das relações interpessoais e sociais”.
(PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Concubinato e união estável. 7. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2004a, p. 10-11).
38
Nas famílias ocorrerão os fatos elementares da vida do ser humano, desde o
nascimento até a cessação da vida.
45
Assim, a existência de um ambiente familiar
onde se sobressaia a cooperação, a fraternidade, o amor e a convivência
harmoniosa e estável entre os membros da família é o abrigo adequado para
conduzir-se a educação dos filhos, além de ser o espaço oportuno à troca de
experiências, tão importante para a constituição e o desenvolvimento psíquico dos
indivíduos.
O ente familiar pode ser entendido como uma espécie de agregação
biológica, história e cultural, flexível e instrumental, que tem em mira a manutenção
do liame subjetivo estabelecido entre os participantes das relações familiares.
Nota-se, invariavelmente, a valorização da pessoa humana e dos seus
interesses de realização afetiva e crescimento pessoal.
A construção de uma nova identidade da família, orientada pelos princípios
da dignidade humana e da igualdade, presentes no texto constitucional, possibilitou
a percepção do ente familiar em um complexo de formas, como um espaço plural,
informado pela presença do afeto, elemento integrador dos indivíduos ao convívio
familiar.
Houve o reconhecimento, alicerçado no contexto constitucional, de que a
família desempenha vários papéis, dentre os fundamentais, está a função
educacional e socializadora, pois insere os indivíduos no ambiente social. A entidade
familiar também tem a função de propiciar o crescimento pessoal, por meio da
convivência afetiva e da união de projetos de vida, sustentada por relações
igualitárias.
45
Com o intuito de delimitar as relações que compõem o universo familiar, descreve a antropóloga Cynthia A. Sarti:
“Na família, dão-se os fatos básicos da vida: o nascimento, a união entre os sexos, a morte. É a esfera da vida
social mais naturalizada pelo senso-comum, onde parece que tudo se dá de acordo com a natureza, porque a
família regula atividades de base biológica, como o sexo e a reprodução humana. [...] A família vai ser a
concretização de uma forma de viver os fatos básicos da vida; ela se relaciona com o parentesco, mas não se
confunde com ele. O parentesco é uma estrutura formal que resulta da combinação de três tipos de relações
básicas: a relação de consangüinidade entre irmãos; a relação de descendência entre pai e filho e mãe e filho; e
a relação de afinidade que se dá através do casamento. Esta é uma estrutura universal, e qualquer sociedade
humana se forma pela combinação destas relações. A família é o grupo social concreto através do qual se
realizam estes vínculos. (SARTI, Cyntia A. família e individualidade: um problema moderno. In: CARVALHO,
Maria do Carmo Brant de. (Org.) A família contemporânea em debate. São Paulo: Cortez, 2002, p. 40).
39
Evidencia-se que a família não apresenta mais uma única fisionomia, tornou-
se plural. Com a superação do paradigma institucional da família, no qual sobressaia
o perfil hierárquico, patriarcal, preponderantemente econômico e de reprodução com
a sujeição ao modelo matrimonial, reconheceu-se o predomínio de novas formas de
convívio constituintes das concretas formações familiares contemporâneas,
conformadas em relações de igualdade, de afeto e de solidariedade.
A partir da identificação das famílias sob essas configurações, arvorou-se a
concepção eudemonista da família. Segundo a concepção eudemonista da família,
não é mais o indivíduo que existe para a família, mas a família existe para o seu
desenvolvimento pessoal em busca de sua aspiração à felicidade.
46
Na família
eudemonista, a pessoa procura sua realização e bem-estar dentro da entidade
familiar.
47
Além disso, um fator a ser considerado, é o crescente movimento de
humanização do Direito, no sentido de demonstrar sensibilidade às questões
afetivas nas relações familiares.
O Direito de Família brasileiro, ramo responsável por incorporar a recente
concepção familiar e redimensionar o tratamento das emergentes realidades das
famílias, caminha em busca da tutela de situações fáticas complexas e da produção
de uma nova literatura jurídica.
No estudo sobre a inserção do afeto na literatura jurídica, Jacqueline
Pousson Petit e Alain Pousson
48
constatam:
46
FACHIN, 2003, p. 32.
47
Para Giselle Câmara Groeninga: “É em relação à família - estruturante do indivíduo – que
respeitosamente devem se curvar as disciplinas, de modo a que o conhecimento por elas trazido sirva
ao propósito da família, que é o de dar oportunidade aos indivíduos de desenvolver seu potencial de
realização e de felicidade”. (GROENINGA, Giselle Câmara. Direito e psicanálise: um novo horizonte
epistemológico. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Afeto, ética e o novo Código Civil. Belo
Horizonte: Del Rey, 2004, p. 257).
48
No original: Les institutions familiales ont besoin, pour fonctionner harmonieusement, d’être soutenues
par des relations affectives entre les participants. Quant aux actes juridiques, beaucoup d’entre eux
supposent pour leur formation ou leur survie l’existence d’un sentiment déterminé dans l’esprit de leur
auteur. L’évolution doctrinale et jurisprudentielle, vore même législative, est venue contrarier cette vision
dichotomique. L’affection, après avoir été abandonnée pendant plusieurs siècles, est parvenue à se
dégager des notioms qui jusqu’alors occultaient sa perception, au point, aujourd’hui, d’imprégner nombre
d’opérations de la vie juridique. L’affection trouve à s’imposer au juriste à l’état pur. Elle n’a plus à
s’associer à d’autres données, à se camoufler sous d’autres concepts ou bien encore à revêtir d’autres
apparences de peur de choquer. Sa présence est de plus en plus fréquemment admise. (POUSSON
40
Para haver um harmonioso funcionamento nas instituições familiares, estas
precisam estar apoiadas nas relações afetivas entre os participantes. Parte
da doutrina (francesa) minimiza a importância reservada à afeição e
reduzem os pontos de encontro com o direito. O avanço doutrinário,
jurisprudencial e até mesmo o legislativo, vem contrariar essa visão
dicotômica, o que significa que, após a afeição ter sido abandonada durante
vários séculos, ela conseguiu resgatar noções que até então ocultavam sua
percepção, ao ponto de hoje enumerar operações da vida jurídica. A afeição
se impõe ao jurista em estado puro sem se camuflar sob conceitos, ou
ainda, sem estar revestida de outras aparências, com medo de entrar em
choque com o direito. Sua presunção é cada vez mais, e com freqüência,
admitida. (tradução livre)
Como o ser humano nasce inserido em uma realidade social, é importante
assinalar como a família, organização básica da sociedade, procura redesenhar a
sua história e desempenhar papel primordial na estruturação psíquica, na
transmissão da cultura e no desenvolvimento dos indivíduos.
No plano do Direito Brasileiro, verifica-se, progressivamente, que o
surgimento do desenho do afeto
49
no plano das relações familiares deu maior
subjetivismo ao modelo de família: “de espaço de poder se abre para o terreno da
liberdade: o direito de ser ou de estar e como se quer ser ou estar”.
50
A construção de uma convivência familiar entre indivíduos depende da
existência e do cultivo da solidariedade, do desvelo, da união, da confiança e do
respeito mútuo, elementos essenciais na constituição de relações interpessoais
duradouras. Mas mostra-se imprescindível a presença do afeto para que haja a
sobrevivência do vínculo familiar; configurado esse pelo compartilhamento de
histórias de vida e do crescimento a partir das diferenças educacionais, culturais e
sociais.
Silvana Maria Carbonera revela que a noção de afeto, como um elemento
concreto a ser considerado nas relações de família, foi ingressando gradativamente
no universo jurídico, assim como outras tantas: liberdade, igualdade, solidariedade.
PETIT, Jacqueline; POUSSON, Alain. L'affection et le droit. Paris: Centre National de la Recherche
Scientifique, 1990, p. 27).
49
Giselle Câmara Groeninga, levando em consideração a questão psicanalítica do afeto, esclarece:
“Espelhamo-nos no olhar de um outro desde o nascimento. Nascemos seres dependentes não só física,
mas psicologicamente. O amadurecimento modifica a qualidade da dependência, a qual mantemos sob
diversas formas por toda a vida; nos reconhecer nas semelhanças e diferenças que se refletem no olhar
do outro é uma necessidade que atravessa nossa existência”. (GROENINGA, op. cit., p. 250).
50
FACHIN, 2003, p. 6.
41
Isto se deve às transformações antes referidas, especialmente quanto ao
deslocamento do centro de preocupações, da instituição família para aqueles que a
compõem. A partir do momento em que o sujeito passou a ocupar uma posição
central, era esperado que novos elementos ingressassem na esfera jurídica. E foi o
que aconteceu com relação ao afeto. A vontade de estar e de permanecer junto a
outra pessoa revelou-se um elemento de grande importância tanto na constituição
de uma família, assim como em sua dissolução. As pessoas passaram a se
preocupar mais com o que sentiam do que com a adequação de seus atos ao
modelo jurídico.
51
O afeto desempenha um papel importantíssimo no processo de
transformação da família. Na família atual, os laços afetivos constituem o
fundamento de existência da própria organização familiar, ou seja, a afetividade é o
elemento nuclear e definidor da coesão familiar. É em razão da presença do afeto
que os indivíduos aproximam-se e se afastam quando este se exauri.
Pietro Perlingieri, ao analisar a formação dos vínculos familiares
contemporâneos, observa: “o sangue e os afetos são razões autônomas de
justificação para o momento constitutivo da família, mas o perfil consensual e affectio
constante e espontânea exercem cada vez mais o papel de denominador comum de
qualquer núcleo familiar”.
52
Dentre as finalidades das entidades familiares encontra-se a realização
afetiva do ser humano no interior do grupo familiar. Em um humanismo que somente
se edifica na constante solidariedade, respeito, liberdade e igualdade entre os
integrantes da família, nota-se que a afetividade unifica e estabiliza as relações.
A nova configuração da família extrapola a composição meramente
biológica, deparando com a intensa valorização do afeto nas relações familiares. Por
conseqüência, a entidade familiar passou a ser vista como uma estrutura subjetiva
51
CARBONERA, Silvana Maria. O papel jurídico do afeto nas relações de família. In: FACHIN, Luiz Edson
(Coord.) Repensando fundamentos do direito civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renoar, 1998, p.
297.
52
PERLINGIERI, 2002, p. 244.
42
que integra os componentes do núcleo em relações de sentimentos e vínculos
sanguíneos e psicológicos, proporcionando-lhes realização afetiva e existencial.
Nas relações humanas familiares não há modelos de composição familiar
comuns a todos os indivíduos. Embora a Constituição Federal e as normas de
Direito de Família elejam modelos específicos de entidade familiares para fixar a
tutela jurídica da família, há plena consciência da existência de outras formas de
convivência grupal, igualmente merecedoras da proteção estatal. O ser humano
parte de uma realidade biológica, de um determinado grau de parentesco e constrói
livremente a estrutura familiar de acordo com seus valores afetivos e psicológicos,
unindo-se a outros para que juntos possam crescer e se desenvolver, produzindo
resultados favoráveis a toda a família.
O afeto assume um lugar na família contemporânea e adquire valor jurídico
para o Direito de Família, revelando a pluralidade de manifestações de vida familiar
e a autenticidade das relações em família no contexto social brasileiro.
No próximo capítulo, enfrentar-se-á questão atinente ao atual Código Civil
Brasileiro, especificamente quanto à possibilidade de superação do clássico modelo
de família transpessoal, matrimonializada, patriarcal e hierarquizada, mediante a
recepção das aspirações de uma concepção igualitária e plural dos grupos familiares.
2.4 Perspectivas das Famílias no Código Civil de 2002
A Constituição Federal de 1988 estabelece no artigo 1º que a República
Federativa do Brasil tem como fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade
da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo
político. Estes fundamentos estão diretamente relacionados aos objetivos da
República, também estabelecidos na Constituição Federal, a construção de uma
sociedade livre, justa e solidária, o desenvolvimento nacional, a erradicação da
pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais e a
43
promoção do bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e
quaisquer outras formas de discriminação.
Para o alcance desses objetivos é necessária a garantia de igualdade
perante a lei, efetivo acesso aos direitos e bens necessários a uma vida digna, o
atendimento das necessidades básicas, o equilíbrio nas relações econômicas e
sociais e a consideração das qualidades individuais da pessoa humana, dentre
outros; e, especialmente no âmbito da família, a apreensão do pluralismo na
constituição das entidades familiares. Dada a importância, essas questões devem
ser assimiladas pelos demais diplomas jurídicos.
No plano do Direito de Família, as entidades familiares contemporâneas
precisam ser concebidas como organismos sociais, com pluralidade de formas de
constituição e merecedores de tutela na medida em que promovam o
desenvolvimento da personalidade de seus membros. Analisando a apreensão
destes avanços a partir do texto constitucional, pelo Código Civil de 2002, Gustavo
Tepedino
53
assevera:
O Código Civil é retrógrado e demagógico, não tanto por deixar de regular
os novos direitos, as relações de consumo, as questões da bioética, da
engenharia genética e da cibernética que estão na ordem do dia e que
dizem respeito ao Direito Privado.
E não apenas por ter como paradigma os Códigos Civis do passado (da
Alemanha, de 1896, da Itália, de 1942, de Portugal, de 1866), ao invés de
buscar apoio em recentes e bem-sucedidas experiências (como por
exemplo, os Códigos Civis de Quebec e da Holanda, promulgados nos anos
noventa).
O novo Código Civil nascerá velho principalmente por não levar em conta a
história constitucional brasileira e a corajosa experiência jurisprudencial, que
protegem a personalidade humana mais do que a propriedade, o ser mais
do que o ter, os valores existenciais mais do que os patrimoniais. E é
demagógico porque, engenheiro de obras feitas, pretende consagrar direitos
que, na verdade, estão tutelados em nossa cultura jurídica pelo menos
desde o pacto político de outubro de 1988.
O pluralismo de modelos familiares e a evolução das técnicas de reprodução
humana são questões ainda não contempladas pela atual codificação civil. Muito
embora existam omissões e reservas no Código Civil de 2002, o ponto que enseja
53
TEPEDINO, Gustavo. O Novo Código Civil: duro golpe na recente experiência constitucional brasileira.
Revista Trimestral de Direito Civil, Rio de Janeiro, v. 7, 2000b, p. 3.
44
discussões cinge-se à manutenção de uma dogmática que focaliza o casamento
ainda como a fonte prevalente na formação de entidades familiares. Percebe-se que
a disciplina da família afasta-se dos parâmetros fixados na legalidade constitucional
e do sentido da atual produção jurisprudencial, que busca absorver a realidade plural
e igualitária das famílias independentemente da estrutura ser assentada no
matrimônio, união estável ou monoparentalidade.
Constata-se que o novo Código Civil Brasileiro não absorveu as
modificações substancias, uma vez que se manteve distante do perfil extremamente
protetivo apresentado pelos preceitos constitucionais. A realidade demanda uma
profunda transformação da abstrata e geral disciplina do sujeito de direito prevista
pelo Código Civil.
O Código Civil Brasileiro de 2002 é um diploma legal estruturalmente voltado
para o passado, com uma racionalidade fundada no sentido unificador de uma parte
geral centrada nos modelos abstratos da relação jurídica, mas que contém regras
que contemplam muitas das transformações sociais já empreendidas pela
Constituição Federal de 1988.
54
O atual diploma legal contemplou a igualdade de direitos e qualificações
entre os filhos, proibindo quaisquer designações discriminatórias relativamente à
filiação e estabeleceu a igualdade de direitos e deveres dos cônjuges como base
para uma estreita comunhão de vida.
É concedida uma regulamentação de caráter discriminatório às famílias
nascidas a partir de uniões estáveis entre homem e mulher, especificamente no que
tange ao direito das sucessões, em que este modelo de família encontra uma
estrutura hereditária que o concebe como entidade diferenciada da fundada no
casamento. De fato, ao ser incluída a união estável no Código Civil de 2002, não
houve a apreensão do instituto, com todas as suas peculiaridades e diferenciações.
Por esta razão, na vigente codificação civil é diagnosticada uma disciplina
54
RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Famílias Simultâneas: da unidade codificada à pluralidade
constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2005, p.164.
45
inadequada, sem uma profunda reflexão sobre o devido tratamento que deveria ser
dispensado àquelas uniões.
Verifica-se que, numa tentativa de adaptar-se a nova ordem social, o Código
Civil de 2002 consagrou, ainda que de modo limitado, uma estrutura familiar que não
tem como fundamento exclusivamente as relações de conjugalidade oriundas do
casamento. Embora o Código dedique-se à disciplina da união estável a partir do
artigo 1.723 e preveja que as relações pessoais entre os cônjuges e os
companheiros sejam orientadas pelos mesmos deveres da lealdade, respeito e
assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos, em razão do tema receber
tratamento em título diverso, parece tratar-se de uma forma residual de família.
Assim, explicam-se as inúmeras distorções do Código Civil de 2002
relativamente ao tratamento das formas de entidades familiares em relação ao texto
constitucional e aos avanços jurisprudenciais em temas de Direito de Família.
Considerando outros tipos de organização familiar, especialmente os
núcleos familiares monoparentais
55
, constata-se que não há previsão de normas que
tratem exclusivamente dos efeitos provocados pela monoparentalidade na ordem
jurídica civilista, muito embora exista previsão no texto constitucional e esta forma de
família componha freqüentemente a realidade social brasileira.
De qualquer forma, o Código Civil mantém o casamento como fundamento
originário dos laços de família, não concebendo o caráter multifacetário da formação
de entidades familiares, ao passo que a Constituição Federal de 1988 delineou a
família numa perspectiva de pluralidade, reconhecendo a existência de outras
formas de agrupamentos familiares, prevendo outros focos geradores de família
além do casamento.
Por derradeiro, regra concernente às relações de Direito de Família que
merece reconhecimento por transcrever o intuito dos imperativos constitucionais é a
55
Para Eduardo Oliveira Leite, “o problema da monoparentalidade é complexo porque ainda não inserido
numa faixa de absoluta transparência jurídica, como ocorre com o casamento, ou com o divórcio, por
exemplo”. (LEITE, 2003, p. 09).
46
que dispôs “ser defeso a qualquer pessoa, de Direito Público ou Privado, interferir na
comunhão de vida instituída pela família”, protegendo, por conseqüência, a família
na pessoa de cada um de seus membros, assegurando o desenvolvimento e a
concretização da dignidade da pessoa humana por meio da convivência familiar
(artigo 1.513 do CC/2002).
No próximo capítulo, será trazida uma compreensão contemporânea da
pluralização de formas familiares, mediante o estudo de alguns aspectos relevantes
do projeto parental matrimonializado, analisando, sob a perspectiva do princípio da
igualdade, os direitos e deveres dos partícipes da sociedade conjugal, bem como
serão trazidas considerações acerca do reconhecimento jurídico das famílias
monoparentais e das famílias reconstituídas. Ademais, serão examinados os
principais efeitos jurídicos produzidos pelas famílias de fato (união estável e união
entre pessoas do mesmo sexo). Portanto, não se pretende fazer comentários
isolados das leis, mas uma análise do conjunto legislativo, apontando as principais
normas jurídicas concernentes à família, objetivando-se a plena adequação da
legislação à realidade social.
47
3 PLURALIDADE FAMILIAR: UMA COMPREENSÃO DAS DIVERSAS FORMAS
DE CONSTITUIÇÃO DE ENTIDADES FAMILIARES
As relações humanas comportam múltiplas formas de composições afetivas
e familiares. As famílias apresentam novos perfis e ambientes, onde prevalecem os
interesses pessoais e comuns do grupo familiar, os quais necessitam ser
compreendidos e reconhecidos pela ordem jurídica.
A família surge estruturada em relações entre as pessoas e seus interesses
propiciando vivências afetivas de forma segura. Elizabeth Roudinesco, refletindo
sobre a organização familiar, levanta a hipótese de que foi a “invenção freudiana” do
complexo de Édipo que está na origem de uma nova concepção da família ocidental
capaz de lidar, não apenas com o declínio da soberania do pai, mas também com o
princípio de uma emancipação da subjetividade. Para a autora,
o modelo edipiano é de fato a tradução de uma organização nova da
família, originária da própria sociedade civil, que repousa em três
fenômenos marcantes: a revolução da afetividade, que exige cada vez mais
que o casamento burguês seja associado ao sentimento amoroso e ao
desabrochar da sexualidade feminina e masculina; o lugar preponderante
concedido ao filho, que tem como efeito ‘maternalizar’ a célula familiar; a
prática sistemática de uma contracepção espontânea, que dissocia o desejo
sexual da procriação, dando assim origem a uma organização mais
individual da família.
56
A compreensão do Direito de Família atual impõe como premissa a
construção de uma cultura jurídica que nos conduza a reconhecer a igualdade dos
vários modelos de entidades familiares e a necessidade de proteção ao ser humano,
estabelecendo-se um processo de repersonalização destas relações.
Delimitando o sentido da expressão repersonalização, Paulo Luiz Netto Lôbo
refere não se estar propugnando um retorno ao individualismo liberal, a um vago
humanismo. O liberalismo tinha como valor necessário da realização da pessoa, a
propriedade, em torno da qual gravitavam os demais interesses privados,
56
ROUDINESCO, Elizabeth. A família em desordem. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Zahar,
2003, p. 88-96.
48
juridicamente tuteláveis. A família, nessa concepção de vida, deveria ser referencial
necessário para a perpetuação das relações de produção existentes, inclusive e,
sobretudo, através de regras formais de sucessão de bens, de unidade em torno do
chefe, de filiação certa.
57
Na esteira da codificação civil brasileira anterior, seguia-se uma linha com a
prevalência de interesses patrimoniais, realidade modificada a partir da vigência da
Constituição Federal de 1988, que adotou uma concepção privilegiadora da
dignidade humana. A família contemporânea abandonou a moldura patriarcal
clássica, afirmando como suporte um elemento aglutinador e nuclear denominado
afetividade
58
. O reconhecimento do afeto nos quadros da família brasileira eleva-o
ao patamar de importante elemento, tanto para o momento da constituição, quanto
para o processo de desfazimento dos relacionamentos, o que permite a superação
do formalismo e da exclusão de outras realidades em matéria de família, até então
não enquadradas na estrutura normativa por serem lastreadas na informalidade.
Assim, a provocação colocada aos juristas e à ordem jurídico-privatista é a
necessidade da contínua centralização, dos interesses envolvidos em relações
jurídicas, na tutela da pessoa humana, valorando-se o ser e não o ter, bem como a
construção de um raciocínio jurídico a partir da compreensão de que as normas
jurídicas devem levar em consideração as peculiaridades de cada caso concreto.
Hoje, a família é vista como família-instrumento, isto é, o ente familiar
confere primazia à pessoa, assegurando o desenvolvimento da personalidade de
seus integrantes e o crescimento da sociedade. Os laços unificadores da família são
mais de afeto e não somente de caráter econômico e de reprodução.
57
LÔBO, 2004b.
58
Nesse sentido, Luiz Edson Fachin anuncia: “O ponto de chegada talvez não passe de uma nova partida.
Assim, ao final, tem algum sentido pronunciar “a fórmula que prescreve a ausência de toda a fórmula”.
Há, nada obstante, direções. Vias e ruelas transitam como indicadores para a reflexão. [...] Há realmente
uma passagem intimamente ligada às modificações políticas, sociais e econômicas. Da superação do
antigo modelo da “grande-família”, na qual avultava o caráter patriarcal e hierarquizado da família, uma
unidade centrada no casamento, nasce a família moderna, com a progressiva eliminação da hierarquia,
emergindo uma restrita liberdade de escolha; o casamento fica dissociado da legitimidade dos filhos.
Começam a dominar as relações de afeto, de solidariedade e de cooperação”. (FACHIN, 2003, p. 305-
306).
49
Com isso, há uma tendência em aceitar-se o princípio democrático do
pluralismo na formação de entidades familiares, e respeitando as diferenças
intrínsecas de cada uma delas, efetivar a proteção e prover os meios para
resguardar o interesse das partes, conciliando o respeito à dignidade humana, o
direito à intimidade e à liberdade com os interesses sociais. O reconhecimento da
pluralidade de formas de constituição de família é uma realidade que tende a se
expandir pelo amplo processo de transformação global, repercutindo na forma de
tratamento das relações interindividuais.
59
Nas últimas décadas, em decorrência de diversos fatores, tais como: o
compartilhamento da administração da vida familiar, com a efetiva participação
igualitária de ambos os cônjuges ou companheiros nas atividades do cotidiano das
famílias, ou seja, os deveres e obrigações relativos à sociedade conjugal devem ser
exercidos igualmente pelo homem e pela mulher, mediante a divisão dos encargos
provenientes da assistência, representação, guarda, mantença e educação dos
filhos, alteraram-se inúmeros costumes e comportamentos em sociedade. Por
conseguinte, quando o Direito deparou-se com esta nova realidade, rompeu-se a
tradicional moldura hierarquizada do ente familiar, contemplando-se a
multiciplicidade e a democratização na origem das relações interindividuais
familiares.
Sem dúvida, alterou-se a concepção de família, uma das instituições
60
fundamentais do Direito Civil Brasileiro. Diante de um contexto de intensas
transformações sociais e da admissão da incidência imediata dos princípios
constitucionais sobre as relações de Direito Privado, especialmente as familiares,
59
BRAUNER, Maria Cláudia Crespo. O pluralismo no direito de família brasileiro: realidade social e
reinvenção da família. In: WELTER, Belmiro Pedro; MADALENO, Rolf Hanssen (Coord.). Direitos
fundamentais do direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 257.
60
“Uma instituição é uma organização duradoura de normas, regras e orientações que torna possível às
pessoas de uma sociedade satisfazerem uma ou duas necessidades a longo alcance. As instituições
formam a estrutura relativamente permanente, dentro da qual operam a cultura e a estrutura social. Os
sistemas organizados de Economia, Política e Ciência, bem como os de Família, Religião e Educação
são exemplos de instituições sociais”. (DRESSLER, David. Sociologia: o estudo da interação humana.
Tradução Aloysio de Moraes. Rio de Janeiro: Interciência, 1980, p. 251). A respeito do tema, Célio
Garcia entende que a família é tampouco natural, ela é uma instituição. Sua forma simbólica é
constitutiva do sujeito; ela veicula na sua estrutura a parte do gozo destinada ao sujeito, assim como ela
assinala a carência sempre lembrada. [...] O sujeito certamente se vê marcado pelos dizeres da família
antes mesmo de seu nascimento, representando o desejo dos pais”. (GARCIA, Célio. Psicanálise:
operadores do simbólico: clínica das transformações familiares. In: CONGRESSO BRASILEIRO DE
DIREITO DE FAMÍLIA. Anais... Belo Horizonte: Del Rey, 1999, p. 291).
50
houve o progressivo predomínio dos interesses do indivíduo e não mais dos
propósitos da entidade familiar isoladamente.
As mudanças vivenciadas pela família decorrem, primordialmente, de
alterações nos hábitos, costumes e culturas de seus membros. Discorrendo sobre
essas transformações, Giselda Maria Fernandes Hironaka
61
elucida que:
[...] reconhece-se, por exemplo, entre os diferentes modelos familiares –
diferentes no que respeita à origem ou à própria estrutura de composição –
a família matrimonial, a família comportamental, a família concubinária, a
família monoparental e a família homossexual. Esta dissimilitude de
modelos revela, rigorosamente, que a família deva mesmo ser considerada
como um ‘grupo espontâneo de pessoas’ – constituído pelo pai, mãe e filhos
– acolhidos em uma determinada época história pela sociedade daquele
tempo, [...].
O reconhecimento da variedade de formas de constituição de família
representa uma grande ruptura com o modelo único instituído pelo matrimônio e é
uma realidade que influencia a regulamentação e o tratamento dos relacionamentos
interpessoais em matéria de Direito de Família. A atribuição de efeitos jurídicos à
construção de laços afetivos e familiares com múltiplas origens no plano social
reflete o amadurecimento e a concretização das idéias de igualdade, respeito,
liberdade e proibição de qualquer espécie de discriminação.
Com efeito, visualizar que a família pode ter outras configurações igualmente
dignas de tutela jurídica conduz, inegavelmente, a admissibilidade do princípio do
pluralismo e da liberdade na formação de vínculos afetivos e familiares.
Como se infere, a família é uma entidade igualitária, descentralizada,
fundada em laços de mútua ajuda e afeto, ou seja, um núcleo de acolhimento,
formação, tutela, auxílio e desenvolvimento da personalidade da pessoa humana,
que em relações de índole pessoal busca sua realização e apresenta como diploma
regulador a Constituição Federal Brasileira de 1988.
61
HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Família e casamento em evolução. Revista Brasileira
de Direito de Família, Porto Alegre, v. 1, n. 1, p. 7-17, abr./jun. 1999, p.11.
51
Levando-se em consideração o fato de a Constituição Federal Brasileira de
1988 consagrar o pluralismo em matéria de relações familiares, recolhendo aspectos
da realidade das famílias brasileiras, partiremos para a análise das diversas formas
de constituição de entidades familiares, iniciando a caminhada pelas famílias
advindas do casamento.
3.1 Famílias Fundadas no Casamento
Sustenta-se uma concepção plural e aberta de família calcada no afeto e na
comunhão de vida e nela se aspira à concretização do bem-estar. Na pluralidade
concebida, em sede constitucional, tem assento relevante a formação solene do
casamento.
No esclarecimento dos fundamentos de uma tutela do matrimônio como ato
jurídico solene, Gustavo Tepedino explica que o casamento recebe proteção
prioritariamente pela ordem jurídica, porque (só ele) capaz de trazer absoluta
segurança para as relações patrimoniais e não-patrimoniais que inaugura, com a
constituição da família, seja quanto aos filhos, como no que concerne aos cônjuges
e às relações com terceiros que com estes venham a contratar. Por tal razão, o
Constituinte Brasileiro em 1988 assegurou a gratuidade da celebração do
casamento civil (artigo 226, § 1º), além dos efeitos civis do casamento religioso
(artigo 226, § 2º), de larga tradição nos costumes pátrios. Igualmente, é o porquê da
determinação ao legislador ordinário no sentido de facilitar a conversão em
casamento das uniões estáveis (artigo 226, § 3º). Ou seja, quis o Constituinte que o
legislador ordinário facilitasse a transformação (do título de fundação) formal das
entidades familiares, certo de que, com o ato jurídico solene do casamento, seriam
mais seguras as relações familiares. Não pretendeu, com isso, o constituinte criar
famílias de primeira e segunda classes, já que previu, pura e simplesmente, diversas
modalidades de entidades familiares, em igualdade de situação. Pretendeu, ao
contrário, no sentido de oferecer proteção igual a todas as comunidades familiares,
52
que fosse facilitada a transformação do título das uniões estáveis, de modo a que a
essas pudesse ser estendido o regime jurídico peculiar às relações formais.
62
Embora sobreviva uma tendência em considerar-se existente uma relação
de proeminência da família matrimonializada em relação às demais, da realidade
social eleva-se a necessidade da construção de um olhar amplo, constitucionalizado
e protetivo sobre as famílias, independentemente da roupagem que apresentem em
sociedade, isto é, sejam entidades familiares assentadas em uniões estáveis, em
vínculos monoparentais, em núcleos reconstituídos ou em relacionamentos
homossexuais.
Mesmo diante da admissibilidade de uma concepção plural da família,
vencido o modelo transpessoal, segundo o qual os interesses de uma unidade da
instituição prevaleciam sobre os seus integrantes, exclusivamente matrimonializado,
hierarquizado e patriarcal, não devemos olvidar da importância da família
estruturada a partir de um casamento e, também à semelhança das demais,
orientada por princípios de afeto, de amor
63
, de respeito, de lealdade e de mútua
assistência. Num resgate da formação histórica dos agrupamentos familiares, trata-
se de uma estrutura universal na constituição de um convívio comum, de um “locus”
de crescimento pessoal e de interação de sentimentos.
62
TEPEDINO, 1997a, p. 57.
63
Em a “Feminilidade velada”, Philippe Julien traça o perfil dos dois pólos da aliança conjugal: “Aqueles
que descrevem a experiência do amor humano entre um homem e uma mulher concordam em dar-lhe
duas definições diferentes. Quer sejam eles romancistas, filósofos ou teólogos, reconhecem de bom
grado que o amor tem dois pólos irredutíveis um ao outro.
De acordo com o primeiro, o laço conjugal se funda sobre a experiência da semelhança. Aquilo que é
amado no outro é uma imagem de duas dimensões, onde me reconheço como num espelho. Encanto da
reciprocidade; eu te compreendo, tu me compreendes; nós nos abraçamos, isto é, cada um pode
contornar o outro.
Tradicionalmente, este amor fundado sobre o reconhecimento mútuo é considerado como sendo o mais
durável. É enaltecido como assegurando na maior parte do tempo, a permanência da felicidade no
casamento. Essa concepção repousa sobre o postulado: O amor se mantém pela comunicação entre
semelhantes, isto é, pela troca de opiniões comuns.
Assim, segundo esta primeira dimensão, o amor recíproco funda-se na arte da conversação partilhada,
cada um por sua vez falando e escutando.
O outro pólo do amor: não o amor da semelhança, mas o amor-paixão, o amor “extático”, que vos coloca
forma dos vós mesmos, na convicção absoluta da unicidade incomparável do outro, em seu corpo e sua
alma. Então, o amante está seguro de si mesmo; não quer mais ouvir nada, da parte de terceiros, sobre
os defeitos do objeto adorado.
O próprio deste amor é viver o instante, um instante eterno. (JULIEN, Philippe. A feminilidade velada:
aliança conjugal e modernidade. Tradução Celso Pereira de Almeida. Rio de Janeiro: Companhia de
Freud, 1997, p. 39-41).
53
Para uma melhor compreensão da família matrimonializada, releva
empreender-se um exame da regulamentação específica dos direitos e deveres dos
cônjuges na ordem jurídica brasileira.
Considerando-se que o estudo cinge-se à igualdade na órbita da sociedade
conjugal, tem relevância expor que nas sociedades do século XVIII e meados do
século XX, havia um espaço reservado ao homem e outro campo reservado à
mulher.
64
Pode-se afirmar que uma diferenciação entre os direitos do homem e da
mulher acompanhou a história da civilização.
Com referência às desigualdades existentes entre os gêneros e posição
ocupada pela mulher, escreve Simone de Beauvoir
65
:
A mulher, em se casando, recebe como feudo uma parcela do mundo;
garantias legais protegem-na contra os caprichos do homem; mas ela torna-
se vassala dele. Economicamente ele é o chefe da comunidade é, portanto,
ele quem a encana aos olhos da sociedade. Ela toma-lhe o nome, associa-
se a seu culto, integra-se em sua classe, em seu meio; pertence à família
dele, fica sendo sua ‘metade’. Segue para onde o trabalho dele a chama; é
essencialmente de acordo com o lugar em que ele trabalha que se fixa o
domicílio conjugal; mais ou menos brutalmente ela rompe com o passado, é
anexado ao universo do esposo, dá-lhe sua pessoa, deve-lhe a virgindade e
uma fidelidade rigorosa.
O ambiente familiar delineado mostra o padrão de comportamento dos
membros da tradicional família patriarcal. Em uma atmosfera de hierarquia, as
relações no grupo familiar eram direcionadas de acordo com os objetivos do marido,
cabendo à mulher e aos filhos ocuparem uma posição submissa.
A compreensão desse cenário, segundo Marilene Silveira Guimarães, passa
por uma análise interdisciplinar, por meio dos conhecimentos fornecidos pela
história, sociologia, economia, antropologia. Essa ciência informa como se deu a
64
JULIEN, 1997, p. 32.
65
Simone de Beauvoir menciona o fato de “o marido não poder desfazer ao seu bel-prazer o laço conjugal;
repúdio e divórcio só se obtêm mediante decisão dos poderes públicos e às vezes o marido deve então
uma compensação monetária. A mulher, se maltratada ou lesada, tem o recurso de voltar para a sua
família, de obter por seu lado separação ou divórcio. Assim, para ambos os cônjuges, o casamento é a
um tempo um encargo e um benefício, mas não há simetria nas situações; para as jovens, o casamento
é o único meio de se integrarem na coletividade”. (BEAUVOIR, Simone. O segundo sexo: a experiência
vivida. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980, p. 167-169).
54
fixação da mulher no espaço privado do lar e a saída do homem para o espaço
público: desde que as tribos deixaram de ser nômades, com o aumento da
população e a conseqüente escassez de alimentos, o homem passou a caçar
grandes animais e a participar das guerras na defesa do território, enquanto as
mulheres cuidavam dos filhos, semeavam e colhiam cereais. Também começou a
haver sobra de alimentos, surgindo o comércio e o acúmulo de patrimônio.
Possivelmente, o desejo de transmitir esse patrimônio a herdeiros legítimos
66
fez
com que o homem desejasse apropriar-se da mulher para ter certeza de sua
sucessão. A família patriarcal, a partir do interesse econômico, desvalorizou a
mulher, confinando-a no espaço privado do lar, quase como uma propriedade do
marido, levando à construção de uma identidade psicológica de submissão,
atavicamente transmitida de geração em geração.
67
No transcurso do século XIX, o casamento e a maternidade eram,
efetivamente, considerados as verdadeiras carreiras femininas. O desempenho de
quaisquer ocupações profissionais representava uma ameaça para as funções
sociais das mulheres.
68
66
Cláudia Fonseca ao traçar um panorama acerca da grupalidade familiar brasileira, observa que: “Os
espaços onde se realiza a norma oficial eram tradicionalmente poucos. Se, num primeiro momento,
historiadores acreditavam que a concubinagem no Brasil colonial restringia-se principalmente à
população negra, pesquisas recentes mostram que a união livre, assim como a mulher chefe-de-família,
não eram de forma alguma privilégio exclusivo dos escravos e seus descendentes. Na sociedade
brasileira, especialmente no século XIX, eram os matrimônios, e não a concubinagem, que se realizam
num círculo limitado. Tudo indica que uma boa parte, talvez a maioria da população não casava antes de
iniciar suas experiências sexuais. Pesquisadores contemporâneos sublinham uma taxa alta de crianças
ilegítimas durante toda a história brasileira, taxa que chegava em certos momentos a superar 40% do
total de nascimentos”. (FONSECA, Cláudia. Ser mulher, mãe e pobre. In: PRIORE, Mary Del. (Org.).
História das mulheres no Brasil. 6. ed. São Paulo: Contexto, 2002, p. 528-529).
Na codificação civil brasileira de 1916 somente as famílias constituídas a partir do matrimônio eram
consideradas legítimas, conferindo-se, por conseqüência, o ‘status de legítimos’ aos filhos provenientes
dessas uniões matrimonializadas. Como existia um repúdio às relações extramatrimoniais, aqueles filhos
havidos fora do casamento eram considerados ilegítimos, sendo relegados a uma situação social
marginalizada e vedada qualquer forma de proteção legal.
67
GUIMARÃES, Marilene Silveira. A igualdade jurídica da mulher. In: STREY, Marlene Neves (Org.)
Mulher: estudos de gênero. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2001, p. 31.
68
Com o fim de contemplar a história laboral da mulher brasileira e elucidar o difícil caminho percorrido no
exercício de uma atividade profissional, cabe transcrever as lições de Guacira Lopes Louro:
O abandono da educação nas províncias brasileiras, denunciado desde o início do Império, vinculava-se,
na opinião de muitos, à falta de mestres e mestras com boa formação. Reclamavam, então, por escolas
de preparação de professores e professoras. Em meados do século XIX, algumas medidas foram
tomadas em resposta a tais reclamos e, em algumas cidades do país, logo começaram a ser criadas as
primeiras escolas normais para formação de docentes. Tais instituições foram abertas para ambos os
sexos, embora o regulamento estabelecesse que moças e rapazes devessem estudar em classes
separadas, preferentemente em turnos ou até escolas diferentes. Vale lembrar que a atividade docente,
no Brasil, como em muitas outras sociedades, havia sido iniciada por homens – aqui, por religiosos,
especialmente jesuítas, no período compreendido entre 1549 e 1759. Posteriormente foram homens que
se ocuparam do magistério com mais freqüência, tanto como responsáveis pelas ‘aulas régias’ – oficiais
55
Conforme Jeni Vaistman
69
, “com o aprofundamento da modernização, da
industrialização e da urbanização, as mulheres redefiniram sua posição na
sociedade e com isto abalou-se a dicotomia entre público e privado segundo o
gênero”.
A dicotomia entre público e privado no que tange ao gênero é avaliada na
tradicional divisão sexual existente. O trabalho remunerado e extralar era
desenvolvido pela figura masculina, ao passo que às mulheres incumbia o
desenvolvimento de atividades limitadas à esfera doméstica que, por sua vez não
incluía a percepção de salário. Com efeito, esses comportamentos ocasionaram a
associação da figura da mulher à de mãe, esposa e às tarefas domésticas, bem
como da figura do homem à energia, ao planejamento e ao trabalho produtivo,
exterior ao lar.
70
A partir da Revolução Industrial, com a redivisão sexual do trabalho, o
movimento feminista e o declínio da ideologia patriarcal, os paradigmas norteadores
– quanto como professores que se estabeleciam por conta própria. Ao serem criadas as escolas
normais, a pretensão era formar professores e professoras que pudessem atender a um esperado
aumento na demanda escolar. Mas tal objetivo não foi alcançado exatamente como se imaginava: pouco
a pouco, os relatórios iam indicando que, curiosamente, as escolas normais estavam recebendo e
formando mais mulheres que homens.
O mais grave era que tal tendência não parecia ser uma característica apenas dessa província. Em
algumas regiões de forma mais marcante, noutras menos, os homens estavam abandonando as salas
de aula. Esse movimento daria origem a uma “feminização do magistério” [...]
O processo não se dava, contudo, sem resistências, ou críticas. A identificação da mulher com a
atividade docente, que hoje parece a muitos tão natural, era alvo de discussões, disputas e polêmicas.
Para alguns parecia uma completa insensatez entregar às mulheres usualmente despreparadas
portadoras de cérebros “pouco desenvolvidos” pelo seu “desuso” a educação das crianças.
Outras vozes surgiam para argumentar na direção oposta. Afirmavam que as mulheres tinham “por
natureza”, uma inclinação para o trato com as crianças, que elas eram as primeiras e “naturais
educadoras”, portanto nada mais adequado do que lhes confiar a educação escolar dos pequenos. Se o
destino primordial da mulher era a maternidade, bastaria pensar que o magistério representava, de certa
forma, “a extensão da maternidade”, cada aluno ou aluna vistos como um filho ou uma filha “espiritual”. O
argumento parecia perfeito: a docência não subverteria a função feminina fundamental, ao contrário, poderia
ampliá-la ou sublimá-la. Para tanto seria importante que o magistério fosse também representado como uma
atividade de amor, de entrega e doação. A ele acorreriam aquelas que tivessem “vocação”. LOURO, Guacira
Lopes. Mulheres na sala de aula. In: PRIORE, Mary Del (Org.). História das mulheres no Brasil. 6. ed. São
Paulo: Contexto, 2002, p. 448-451.
Essas considerações atestam o período inicial da construção do espaço profissional feminino na
sociedade brasileira.
69
VAISTMAN, Jeni. Flexíveis e plurais: identidade, casamento e família em circuntâncias pós-modernas.
Rio de Janeiro: Rocco, 1994, p. 17.
70
Evidentemente, isso deu origem a uma mistura ‘mais pesada’ para as mulheres, já que casa e família
são confundidas como se fossem a mesma coisa. A casa, no entanto, é uma unidade material e local de
muito trabalho. Assim as mulheres são duplamente interessantes para o sistema produtivo. Trabalham
fora por salários mais baixos e reproduzem “graciosamente” a força de trabalho e o trabalho material da
casa. (LOPES, Maria Julia Marques. Mulheres, saúde e trabalho. In: STREY, Marlene Neves (Org.).
Mulher: estudos de gênero. São Leopoldo: UNISINOS, 2001, p. 109).
56
da família começaram a mudar.
71
A entidade familiar passou a constituir-se em lugar
de manifestação do afeto, da cooperação, da igualdade e do amor, minimizando-se
a noção de família, unicamente, como lugar destinado à função procracional,
religiosa e à manutenção da economia e do patrimônio.
Todavia, apesar da presença de tal realidade outras questões, ainda,
mantinham-se inalteradas, uma vez que as decisões pertinentes ao grupo familiar e
os direitos e deveres de seus integrantes submetiam-se à vontade do pai, chefe da
família
72
, o qual exercia a plena direção dos interesses da família, segregando a
esposa e os filhos a posições de subordinação e inferioridade no organismo familiar,
o que determinava a desigualdade.
Convém frisar que o Código Civil de 1916 regulava os direitos e deveres do
marido e da mulher em capítulos distintos, pois havia algumas diferenças.
73
No
entanto, em virtude da isonomia estabelecida pelo artigo 226, parágrafo 5º, da
Constituição Federal de 1988, fixou-se uma disciplina igualitária dos direitos e os
deveres de ambos os cônjuges, afastando as diferenças existentes.
Na análise do reconhecimento do princípio da igualdade nas disposições da
Carta Constitucional Brasileira de 1988, observa José Afonso da Silva
74
:
71
De acordo com Jeni Vaistman, “como parte do processo de industrialização e modernização a partir da
década de 50 a expansão das oportunidades econômicas e sociais então abertas às famílias de classe
média criou condições bastante favoráveis para a valorização da escolaridade dos filhos, fosse para
manter posições que a família já ocupava na sociedade, fosse como meio de ascensão econômica e
social. No caso das meninas, o estímulo à educação significava, na maioria dos casos, sobretudo um
investimento para o bom cumprimento de papéis na família. Para os rapazes, as carreiras que se
colocavam como apropriadas constituíam um investimento para o bom desempenho de papéis públicos
– que geralmente se traduziam na expectativa de uma escolha dentro do trinômio medicina, engenharia
e direito. [...]
O país industrializava-se rapidamente, desenvolvendo o consumo e a indústria cultural. Gestava-se a
contracultura e a rebelião contra a dicotomia de papéis sexuais que irromperia nos anos 70. Vivendo
este momento, muitos jovens, ainda sem o saber, preparavam o desafio aos modelos de suas famílias
de origem buscando outros projetos de vida”. (VAISTMAN, 1994, p. 91-93).
72
Neste período histórico, o Código Civil de 1916 em seu artigo 233 dispunha: “o marido é o chefe da
sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal
e dos filhos, competindo-lhe a representação legal da família, a administração dos bens comuns e
dos particulares da mulher, em virtude do regime matrimonial adotado ou de pacto antenupcial, o
direito de fixar o domicílio do casal e a responsabilidade pela manutenção da família”.
73
O Código Civil brasileiro de 1916, no Título II - Dos efeitos jurídicos do casamento e no capítulo II,
disciplinava os direitos e deveres do marido a partir do artigo 233 a 239 e regulava os direitos e deveres
da mulher no capítulo III a partir do artigo 240 a 255.
74
SILVA, José Afonso da. Curso de direito constitucional positivo. São Paulo: Malheiros, 2000, p. 214-
215.
57
As Constituições só têm reconhecido a igualdade no seu sentido jurídico
formal: igualdade perante a lei. A Constituição Federal brasileira de 1988
abre o capítulo dos direitos individuais com o princípio de que todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (art. 5º, caput).
Reforça o princípio com muitas outras normas sobre a igualdade ou
buscando a igualização dos desiguais pela outorga de direitos sociais
substanciais. Assim é que já no mesmo art. 5º, inciso I, declara que homens
e mulheres são iguais em direitos e obrigações.
Depois, no artigo 7º, incisos XXX e XXXI, vêm regras de igualdade material,
regras que proíbem distinções fundadas em certos fatores, ao vedarem
diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por
motivo de sexo, idade, cor ou estado civil e qualquer discriminação no
tocante a salário e critérios de admissão do trabalhador portador de
deficiência.
A previsão, ainda que programática, de que a República Federativa do
Brasil tem como um de seus objetivos fundamentais reduzir as
desigualdades sociais e regionais (art. 3º, inciso III), veemente repulsa a
qualquer forma de discriminação (art. 3º, inciso IV), a universalidade da
seguridade social, a garantia ao direito à saúde, à educação baseada em
princípios democráticos e de igualdade de condições para o acesso e
permanência na escola, enfim a preocupação com a justiça social como
objetivo das ordens econômica e social (artigos 170, 193, 196 e 205)
constituem reais promessas de busca da igualdade material. (itálico no
original).
Noutra passagem, José Afonso da Silva esclarece que a igualdade de
homens e mulheres já se contém na norma geral da igualdade perante a lei. Já está
também contemplada em todas as normas constitucionais que vedam discriminação
de sexo (artigos 3º, inciso IV
75
, e 7º, inciso XXX
76
). Mas não é sem conseqüência
que o Constituinte decidiu destacar, em um inciso específico (art. 5º, inciso I), que
‘homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição’. Era dispensável acrescentar a cláusula final, porque, ao estabelecer a
norma, por si, já estava dito que seria ’nos termos desta Constituição’. Isso é de
somenos importância. Importa mesmo é notar que é uma regra que resume décadas
de lutas das mulheres contra discriminações. No sentido de onde houver um homem
e uma mulher, qualquer tratamento desigual entre eles, a propósito de situações
pertinentes a ambos os sexos, constituirá uma infringência constitucional. Aqui a
igualdade não é apenas no confronto marido e mulher. Não se trata apenas da
igualdade no lar e na família. Abrange também essa situação, que, no entanto,
75
Art. 3º da Constituição Federal Brasileira de 1988. Constituem objetivos fundamentais da República
Federativa do Brasil.
IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras
formas de discriminação.
76
Artigo 7º da Constituição Federal Brasileira de 1988. São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais,
além de outros que visem à melhoria de sua condição social:
XXX – proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo
de sexo, idade, cor ou estado civil.
58
recebeu formulação específica no artigo 226, parágrafo 5º: ‘Os direitos e deveres
referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela
mulher’. Vale dizer: nenhum pode mais ser considerado cabeça de casal, ficando
revogados todos os dispositivos da legislação ordinária que outorgava primazia ao
homem.
77
É inegável a evolução normativa do Direito de Família, a partir da entrada
em vigor da Constituição Federal Brasileira de 1988, notadamente com os princípios
constitucionais da igualdade e da dignidade humana, em virtude dos quais admitiu-
se a pluralidade na constituição das famílias e a igualdade entre homens e mulheres
perante a lei e no exercício dos deveres e direitos da sociedade conjugal.
A proclamação do princípio da igualdade entre os cônjuges no Código Civil
de 2002 não constitui inovação ao ordenamento jurídico. Em consonância com os
ditames de índole constitucional, o atual Código Civil Brasileiro traz um rol de
deveres de ambos os cônjuges no artigo 1.566.
78
Dentre os deveres conjugais enumerados pela nova codificação civil
brasileira há o dever de fidelidade recíproca.
79
77
SILVA, 2000, p. 220.
78
Art. 1.566 do Código Civil de 2002. São deveres de ambos os cônjuges:
I – fidelidade recíproca; II – vida em comum, no domicílio conjugal; III – mútua assistência;
IV – sustento, guarda e educação dos filhos; V – respeito e consideração mútuos;
79
A respeito da fidelidade, André Comte-Sponville anuncia estas ponderações: Que há casais fiéis e outros
não, é uma verdade de fato, que não parece, ou já não parece, atingir o essencial. Pelo menos se
entendemos por fidelidade, nesse sentido restrito, o uso exclusivo, e mutuamente exclusivo, do corpo do
outro. Por que só amaríamos uma pessoa? Por que só desejaríamos uma pessoa? Ser fiel a suas idéias
não é (felizmente!) ter uma só idéia; nem ser fiel em amizade supõe que tenhamos um só amigo.
Fidelidade, nesses domínios, não é exclusividade. Por que deveria ser diferente no amor? Em nome do
que poderíamos pretender o desfrute exclusivo do outro? É possível que isso seja mais cômodo ou mais
seguro, mais fácil de viver, talvez, no fim das contas, mais feliz, e, enquanto houver amor, até acredito
que seja. Mas nem a moral nem o amor parecem-me estar presos a isso por princípio. Cabe a cada um
escolher, de acordo com sua força ou com suas fraquezas. A cada um, ou antes, a cada casal: a
verdade é o valor mais elevado do que a exclusividade, e o amor me parece menos traído pelo amor
(pelo outro amor) do que pela mentira. Outros pensarão o contrário, talvez eu também, em outro momento.
Não é isso o essencial, parece-me. Há casais livres que são fiéis, à sua maneira (fiéis ao seu amor, fiéis à sua
palavra, fiéis à sua liberdade comum...). E tantos outros, estritamente fiéis tristemente fiéis, em que cada um
dos dois preferiria não o ser [...] Que o amor se aplaque ou decline, é sempre o mais provável, e é
bobagem afligir-se com isso. Mas quer se separe, quer continue a viver junto, o casal só continuará
sendo casal por essa fidelidade ao amor recebido e dado, ao amor partilhado e à lembrança voluntária e
reconhecida desse amor. Fidelidade é amor fiel, dizia eu, e assim é também o casal, mesmo o casal
“moderno”, mesmo o casallivre”. A fidelidade é o amor conservado ao que aconteceu, o amor ao amor, no
caso, amor presente (e voluntário, e voluntariamente conservado) ao amor passado. Fidelidade é amor fiel, e
fiel antes de mais nada ao amor. Como eu poderia jurar que sempre te amarei ou que não amarei outra
pessoa? Quem pode jurar seus sentimentos? E para que, quando não há mais amor, manter a ficção, os
59
Os relacionamentos afetivos envolvem um comprometimento, uma
responsabilidade de um indivíduo perante o outro, fortalecidos pelo compromisso de
vida comum. Essas relações estão alicerçadas em pactos de convivência, nos quais
os conviventes compartilham atos e sentimentos fiéis, enquanto perdurar o laço de
amor que os une. O rompimento desses pactos pode ensejar o término do
relacionamento pela perda de confiança da pessoa enganada. Ainda, pode
desencadear a reavaliação dos comportamentos com a manutenção e
restabelecimento da união sobre novas bases.
Uma vez que as relações de conjugalidade podem não ser eternas, a
reconstrução afetiva é possível também por meio da constituição de novas uniões.
Nessa hipótese, há espaço para os recasamentos, orientados, à semelhança das
uniões anteriores, pelo princípio de que a demonstração do amor e da fidelidade são
realizações cotidianas.
A par dessas visões filosóficas, impende referir que as disposições
normativas do Código Civil de 2002 prevêem que todos os direitos, antes elencados
no artigo 233 do Código Civil de 1916, serão exercidos pelo casal em um sistema de
administração compartilhada. Nesse sentido, dispõe o artigo 1.567 do Código Civil
de 2002:
A direção da sociedade conjugal será exercida, em colaboração, pelo
marido e pela mulher, sempre no interesse do casal e dos filhos.
Parágrafo único. Havendo divergência, qualquer dos cônjuges poderá
recorrer ao juiz, que decidirá tendo em consideração aqueles interesses.
Dessa forma, o Código Civil de 2002, confirmou o princípio constitucional da
igualdade de direitos e deveres entre os partícipes da sociedade conjugal, apoiando-
se em entendimentos contemporâneos de matéria de família e ainda, estipulou para
os partícipes da sociedade conjugal, a obrigação de contribuir não somente com os
encargos ou as exigências do amor? Mas isso não é motivo para renegar ou não reconhecer o que
houve. Por que precisaríamos, para amar o presente, trair o passado? Eu juro não que sempre te
amarei, mas que sempre permanecerei fiel a esse amor que vivemos. COMTE-SPONVILLE, André.
Pequeno tratado das grandes virtudes. Tradução Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 1995,
p. 34-36. A fidelidade, pois, nessa perspectiva, conjuga-se com a honestidade e a franqueza entre os
cônjuges, que devem compartilhar seus sentimentos e atitudes, preservando o vínculo, enquanto o amor
estiver presente na relação.
60
rendimentos de seu patrimônio, como também com o produto de seu trabalho para a
manutenção da família e da educação da prole.
A igualdade jurídica dos cônjuges consiste no resultado de conquistas
históricas que ocorrem no transcurso do tempo e modificam a condição feminina.
Como a interpretação que se confere aos fatos impõe-se perante o Direito e a
realidade acaba desmentindo esses mesmos códigos, mudanças e circunstâncias
mais recentes têm contribuído para dissolver a névoa de hipocrisia que encobre a
negação de efeitos jurídicos à orientação sexual. Tais transformações decorrem,
entre outras razões, da alteração da razão de ser das relações familiares, que
passam agora a dar origem a um berço de afeto, solidariedade e mútua constituição
de uma história em comum, sob o signo da igualdade.
80
No elenco dos direitos e deveres compartilhados pelo homem e pela mulher
tem espaço a direção conjunta da sociedade conjugal. Há cerca de algumas
décadas era considerado comportamento habitual o fato de o comando, a
representação da família, a administração dos bens, o direito de fixar e alterar o
domicílio, o dever de prover a manutenção do núcleo familiar e as demais decisões
pertinentes à vida em comum serem atribuídos ao homem. Como referido
anteriormente, essas manifestações culturais representam a existência de um
modelo familiar hierárquico, com a mulher limitada ao exercício de uma posição
subordinada aos interesses do marido.
Com a vigência da Constituição Federal de 1988, prevendo a estruturação
de um vínculo conjugal e familiar sobre os fundamentos da igualdade, não foram
recepcionadas quaisquer normas infraconstitucionais que colocassem a mulher em
situação de subordinação ou inferioridade no âmbito da relação familiar.
Atualmente, na órbita dos deveres conjugais, cabe aos cônjuges partilhar do
dever de colaborar nos encargos da sociedade conjugal, tanto os materiais como os
morais, desde o sustento da família à educação dos filhos, na proporção de seus
bens e resultados do trabalho.
80
FACHIN, Luiz Edson; RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski. Código Civil Comentado: direito de família,
casamento. Artigos 1.511 a 1.590. São Paulo: Atlas, v. 15, 2003, p. 29.
61
O princípio da igualdade é incompatível com a unidade de direção da
entidade familiar e com a previsão jurídica de funções específicas para marido e
mulher e, por conseqüência, com a assunção de um modelo rígido de distribuição de
tarefas em razão do sexo.
A ordem jurídica não fixa para um dos cônjuges a responsabilidade pelo
trabalho remunerado e extralar e ao outro o desempenho de afazeres domésticos.
Com o afastamento da noção de hierarquia na sociedade conjugal, firmou-se uma
crescente tendência de organização familiar no sentido da divisão de todos os ônus
e responsabilidades entre homem e mulher, desimportando o fato do trabalho ser na
casa ou externamente.
É inadmissível a idéia de hierarquia na sociedade conjugal, pois as
responsabilidades e os encargos devem ser partilhados. A Constituição Federal
consagrou um novo modelo de família, estruturada nas relações de autenticidade,
afeto, amor, diálogo e igualdade. Assim, diante da paridade das relações entre os
cônjuges, é inconcebível a idéia da existência de uma chefia, que pressuponha
relação de subordinação.
81
A fixação do domicílio da família é prerrogativa dos cônjuges. O domicílio do
casal será escolhido por ambos os cônjuges, podendo ocorrer a hipótese de um ou
outro ausentar-se do domicílio conjugal para o fim de atender a encargos públicos,
ao exercício de sua profissão, ou a interesses particulares relevantes, nos termos do
artigo 1.569 do CCB de 2002.
Em acatamento ao princípio da absoluta igualdade, “qualquer dos nubentes,
querendo, poderá acrescer ao seu o sobrenome do outro”.(art. 1.565, § 1º,
CCB/2002). Dessa forma, tanto a mulher quanto o homem podem, no casamento,
adotar o sobrenome conjugal.
Há na legislação civil outra inovação relativamente à perda do direito à
utilização do sobrenome marital. Hodiernamente, a Codificação Civil de 2002 prevê
81
RODRIGUES, Maria Alice. A mulher no espaço privado: da incapacidade à igualdade de direitos. Rio
de Janeiro: Renovar, 2003, p. 126.
62
que, dissolvido o casamento pelo divórcio direto
82
ou por conversão
83
, o cônjuge
poderá manter o nome de casado; salvo, no segundo caso, dispondo em contrário a
sentença judicial. (artigo 1.571, § 2º).
A perda do sobrenome conjugal ocorrerá somente em caso de decretação
da culpa pela separação judicial, o que deve ser expressamente requerido pelo
inocente.
84
Com relação às repercussões da culpa no direito ao nome, explica Luiz
Edson Fachin
85
:
[...] o cônjuge declarado culpado na ação de separação judicial perde o
direito de usar o sobrenome do outro. A pena é a perda do patronímico.
Esse regime traduz criticável modelo sancionatório da culpa. A vinculação
do direito ao nome à noção de culpa é solução de todo criticável, a rigor, o
tema resta deslocado de seu verdadeiro sentido para o campo escorregadio
do subjetivismo. O direito ao nome constitui-se em direito personalíssimo,
selo identificativo da pessoa. Não se evidencia ser a chancela de culpa em
inocência o melhor caminho para a imposição da pena prevista. Ademais,
não raro, mostra-se como juízo preconceituoso sobre a condição feminina.
Ressalte-se que há uma tendência no sentido da superação da dimensão
subjetiva da culpa nas hipóteses de dissolução da sociedade conjugal, o que
conduziria ao modelo de objetivação da ruptura dos vínculos, concedendo-se
relevância jurídica ao fato em si mesmo, isento de outras representações que não
tenham conexão com o término do relacionamento afetivo.
Enfim, supera-se a idéia de culpa para falar-se em co-responsabilidade, pois
82
O divórcio direto poderá ser requerido, por um ou por ambos os cônjuges, no caso de comprovada
separação de fato por mais de 02 anos (art. 1.580, § 2º do CC/2002).
83
O divórcio indireto ou por conversão pode ser requerido por qualquer das partes quando decorrido 1
(um) ano do trânsito em julgado da sentença que houver decretado a separação judicial, ou da decisão
concessiva da medida cautelar de separação de corpos. A conversão em divórcio da separação judicial
dos cônjuges será decretada por sentença, da qual não constará referência à causa que a determinou
(art. 1.580, § ‘caput’ e § 1ºdo CC/2002).
84
Art. 1.578 do Código Civil de 2002. O cônjuge declarado culpado na ação de separação judicial perde o
direito de usar o sobrenome do outro, desde que expressamente requerido pelo cônjuge inocente e se a
alteração não acarretar.
I – evidente prejuízo para a sua identificação;
II – manifesta distinção entre o seu nome de família e o dos filhos havidos da união dissolvida;
III – dano grave reconhecido na decisão judicial;
§ 1º O cônjuge inocente na ação de separação judicial poderá renunciar, a qualquer momento, ao direito
de usar o sobrenome do outro.
§ 2º Nos demais casos caberá a opção pela conservação do nome de casado.
85
FACHIN; RUZYK, 2003, p. 242-243.
63
ambos os cônjuges têm o dever de manutenção do vínculo conjugal, ao passo que
ambos também são responsáveis pelo término do relacionamento.
No Código Civil de 1916, a desigualdade era evidente, os direitos e deveres
do marido eram regulados nos artigos 233 a 239 e os direitos e deveres da mulher
eram regidos pelos artigos 240 a 255. Apesar de a Constituição Federal de 1988
prever o princípio da absoluta isonomia entre os cônjuges, a legislação
infraconstitucional permanecia em mora.
O novel Código brasileiro procurou eliminar todas as discriminações até
então existentes e, em regime de plena igualdade, atribuiu a ambos os cônjuges, em
colaboração, a direção da sociedade conjugal, a ser exercida sempre no interesse
do casal e dos filhos (art. 1.567), vedando ao marido e à mulher a prática dos
mesmos atos, que possam afetar a estabilidade econômica do lar (art. 1.647).
86
Segundo a dicção da lei civil, o cônjuge não tem a livre disposição dos bens e
direitos previstos neste último dispositivo; deles só podendo dispor mediante
expresso assentimento do consorte.
Nesse sentido, é preciso considerar as disposições do artigo 2.039, que
determina: “O regime de bens nos casamentos celebrados na vigência do Código
Civil anterior, Lei n.º 3.071, de 1º de janeiro de 1916, é o por ele estabelecido”.
O conjunto de normas jurídicas que disciplina as condutas, os direitos e os
deveres dos cônjuges tem a finalidade precípua de preservar a dignidade dos
partícipes da sociedade conjugal e de assegurar a manutenção do agrupamento
familiar, estruturando um ambiente propício à formação e desenvolvimento da
personalidade de seus componentes.
86
Art. 1.647 do Código Civil de 2002. Ressalvado o disposto no art. 1.648, nenhum dos cônjuges pode,
sem autorização do outro, exceto no regime da separação absoluta:
I – alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis;
II – pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens ou direitos;
III – prestar fiança ou aval;
IV – fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura
meação.
Parágrafo único. São válidas as doações nupciais feitas aos filhos quando casarem ou estabelecerem
economia separada.
Artigo 1.648 do Código Civil de 2002. Cabe ao juiz, nos casos do artigo antecedente, suprir a outorga,
quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la.
64
Não há dúvidas de que a igualdade de direitos entre homens e mulheres
representa um avanço excepcional. Entretanto, partindo-se da existência de
situações que ainda possam configurar diferenças, não se deve pregar a
aplicabilidade irrestrita e plena da isonomia jurídica entre os homens e mulheres. Há
situações em que se observam diferenças oriundas de uma diversa formação
educacional e profissional, de acordo com o papel desempenhado pelo homem e
pela mulher e suas transformações nas últimas décadas. A mulher, em sua maioria,
no contexto anterior, era dedicada aos trabalhos domésticos e cuidados com a
família, notadamente os filhos, enquanto ao homem reservava-se a função
primordial de provedor.
Ainda nos dias atuais, esta relação desigual implica enorme dificuldade para
que a mulher de uma geração anterior, em caso de separação, obtenha espaço no
competitivo mercado de trabalho, muito embora a garantia jurídica de igualdade.
Esses fatores demandam especial tutela à mulher, notadamente quanto à
concessão de pensão alimentícia.
De outro lado, atualmente, há maior abertura de espaços igualitários nas
relações homem-mulher e nas funções que desempenham na família e na
sociedade. Ambos em maior ou menor medida alcançam acesso aos mesmos meios
de educação, cultura e formação profissional, alterando aquela tradicional relação de
fragilidade e dependência da mulher.
Sem dúvida, houve um significativo avanço para o gênero feminino, o que
pode ser constatado com o aumento das oportunidades de educação, na ampliação
de espaços no mercado de trabalho, em alterações legislativas, assim como o
crescimento da atuação política das mulheres.
87
Porém, essas mudanças ainda não
foram suficientes para superar ambientes de desigualdade e opressão das mulheres
87
A respeito da matéria, Marco Aurélio Dias da Silva diz que “[...] estamos vivendo o que a filosofia oriental
chama de ‘ponto de mutação’. Um dos aspectos mais chamativos dessa transição é o declínio do
patriarcado e o despertar do feminino. Por despertar do feminino entenda-se não apenas a emancipação
da mulher e o seu ingresso, com cada vez mais força e visibilidade, no domínio da vida pública. Entenda-se
também, e talvez principalmente, o retorno dos valores femininos marginalizados por milênios de
dominação do homem, que inclusive, marginalizou e exilou o feminino que há dentre dele mesmo. Com o
retorno e a valorização do feminino, é possível pensar um mundo mais doce, terno, menos áspero, com
maior respeito à vida e a tudo o que ela significa. E não me refiro apenas à vida humana, mas a todas as
formas de vida. À natureza enfim”. (SILVA, Marco Aurélio Dias da. Todo poder às mulheres: esperança e
equilíbrio para o mundo. São Paulo: Best Seller, 2000, p. 264).
65
ao longo da história brasileira.
88
Por essas razões, sustenta-se no Direito contemporâneo a necessidade de
uma constante construção doutrinária que pense e repense a relação familiar,
refletindo sobre os momentos da constituição, organização e desfazimento das
famílias.
Dentro dessa moldura, igual tarefa deve ser desempenhada pela
jurisprudência, a quem, em contato direto com a força criadora dos fatos, cabe
enquadrar as estruturas sociais e os novos modelos familiares na porosidade do
Direito, orientando-se por valores supremos que asseguram uma sociedade fraterna,
pluralista e sem preconceitos.
Por fim, em face das sensíveis e profundas modificações no Direito de
Família Brasileiro, privilegiar-se-á o estudo do reconhecimento jurídico das famílias
monoparentais e das famílias reconstituídas.
3.2 Famílias Monoparentais: Reconhecimento Jurídico
No Brasil, a Constituição Federal prevê, além da família matrimonializada e
oriunda da união estável entre homem e mulher, outro modo de manifestação da
vida familiar, a família monoparental.
89
Nas últimas três décadas, em razão de inúmeros casos de dissolução de
sociedade conjugal, divórcio e término de uniões estáveis, dentre outros fatores, os
organismos configurados pela monoparentalidade, sempre presentes na realidade
familiar brasileira, passaram a receber a qualificação de famílias em razão da tutela
constitucional ao pluralismo na formação das entidades familiares.
88
PETERSEN, Áurea Tomatis. Homens e mulheres: enfim, as desigualdades estão acabando? In: STREY,
Marlene Neves (Org.) Mulher: estudos de gênero. São Leopoldo: Unisinos, 2001, p. 22.
89
Torna-se relevante esclarecer que, neste subcapítulo, não serão enfrentadas questões atinentes aos
problemas e às dificuldades materiais enfrentados pelos núcleos familiares monoparentais em decorrência
da diversidade de situação econômica ou da precariedade no ambiente em que esse pequeno grupo social
se desenvolva.
66
O primeiro país a enfrentar corajosamente a questão foi a Inglaterra (1960)
que, impressionada com a pobreza decorrente da ruptura do vínculo matrimonial e
com as conseqüências advindas, passou a se referir às one-parent families ou lone-
parent families, nos seus levantamentos estatísticos. Dos países anglo-saxões, a
expressão ganhou a Europa continental. Foi na França que, em 1981, empregou o
termo, pela primeira vez, em um estudo feito pelo Instituto Nacional de Estatística e
de Estudos Econômicos (INSEE). O INSEE francês empregou o termo para
distinguir as uniões constituídas por um casal, dos lares compostos por um genitor
solteiro, separado, divorciado ou viúvo. A noção se espalhou por toda a Europa e
hoje é conhecida e aceita no mundo ocidental como a comunidade formada por
qualquer dos pais (homem ou mulher) e seus filhos.
90
A monoparentalidade não é um fato novo, apesar de ter recebido a proteção
jurídica somente a partir de 1988, no artigo 226, § 4º, do texto constitucional, nos
seguintes termos: “entende-se, também como entidade familiar, a comunidade
formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.
Admitida a diversidade na constituição de entidades familiares, com a
conseqüente inclusão dos núcleos monoparentais aos quadros da família no
ordenamento jurídico brasileiro, inicialmente, podem ser enumerados como causas
desta realidade familiar: os relacionamentos pós-separação, divórcio ou viuvez,
quando um dos genitores exerce isoladamente a guarda e a criação da prole, ou
ainda, o exercício da maternidade celibatária voluntária ou involuntariamente,
podendo, nessa hipótese, existir a filiação biológica ou socioafetiva.
A forma monoparental insere-se em um contexto de famílias constituídas pela
biparentalidade
91
. O que origina problema nas famílias monoparentais e constitui sua
especificidade, conforme Eduardo Oliveira Leite
92
, está vinculado:
90
LEITE, 2003, p. 21-22.
91
As famílias biparentais vinculam-se à idéia de uma constituição formada pela união de um homem,
normalmente tido como o chefe da família e, uma mulher, resultando descendentes. Este é o modelo de
família patriarcal e biparental. Nos dias atuais, com o decaimento do patriarcalismo, a família não mais
se apresenta exclusivamente nesses moldes, pode até ser biparental, mas o homem e a mulher vão
dividir as tarefas, encargos e atividades na chefia da entidade familiar.
92
LEITE, 2003, p. 27.
67
à possibilidade de sua existência própria, num ambiente social, concebido e
organizado em torno da família ‘biparental’. Não é no interior destas famílias
que se deve procurar sua “homogeneidade” ou sua “‘identidade”, mas na
sua relação com o exterior – ao lado da organização social – que as obriga
a conviver com um ambiente onde sua situação não foi prevista. Esta
“marginalização” da monoparentalidade, criada por um ambiente que lhe é
hostil, coloca-a numa posição, senão especial, diversa da família tradicional
(constituída por pai, mãe e filho), mas ainda assim, embora “incompleta” ou
“fragmentada” (porque constituída por qualquer dos pais e seus
descendentes) é nominada ‘família monoparental’ ou entidade familiar.
A unidade familiar constituída de um genitor que educa sozinho seus filhos
está longe de ser um fenômeno novo no Ocidente. Entretanto, os especialistas
descrevem a ascensão ininterrupta das famílias monoparentais como o fenômeno
mais marcante da célula familiar, desde vinte anos. Enquanto a monoparentalidade
mais antiga se esgotava nas categorias das viúvas e das mães solteiras, as famílias
monoparentais atuais se recrutam especialmente entre as ex-famílias biparentais,
tornadas monoparentais em decorrência de um falecimento, mas cada vez mais,
agora, pela separação dos cônjuges, ou pelo divórcio, ou simplesmente pela opção
de ter filhos mantendo-se sozinho. Assim, enquanto o fenômeno anterior era vivido
pela imposição de uma situação (viuvez), atualmente a monoparentalidade é
decorrência direta de uma opção (celibato ou separação), logo, efeito de uma
vontade deliberadamente manifestada por esta nova forma familiar.
93
Na maioria das situações, o surgimento das famílias monoparentais pode ter
como fato desencadeador o abandono da mãe e dos filhos pelo pai. Com a
ocorrência desses episódios, a direção, a responsabilidade e os encargos pela
manutenção e sustento da família ficam, unicamente, sob a chefia da mulher.
As comunidades monoparentais, ainda, podem originar-se pela adoção por
pessoa solteira que, para tanto, deve preencher os requisitos legais e possuir as
condições de sustento, educação e afeto a uma criança, tendo em vista que o bem-
estar e o interesse desta significam os elos fundamentais da filiação adotiva.
Há também as famílias monoparentais decorrentes da utilização de métodos
e técnicas de reprodução artificial humana. O fato de um indivíduo solteiro optar por
93
LEITE, ibid., p. 31.
68
este procedimento clínico para a execução do projeto parental é questão que gera
muitas discussões no Direito de Família, por incluir a contribuição genética de
doador anônimo. Esta solução para a concretização da maternidade recebeu a
denominação de produção independente.
Diante do crescente aumento de famílias monoparentais surgiu a
necessidade de avaliar as causas desse fenômeno, onde um pai ou mãe
responsabiliza-se isoladamente por seu filho. Nesse sentido, podem ser indicados
como os principais fatores determinantes da monoparentalidade: o celibato, a
separação e o divórcio, a dissolução das uniões estáveis, o emprego de técnicas de
reprodução artificial humana, a adoção, a existência de pais e mães solteiros e a
viuvez.
O celibato
94
apresenta-se como “novo modelo” de vida escolhida pelas
gerações atuais. Casa-se cada vez menos, especialmente nas grandes
aglomerações urbanas, o que nos conduz a pensar ser a “opção” pela solidão não
só uma questão de escolha, mas, igualmente, um fator decorrente das dificuldades
de ordem econômica. Tanto homens quanto mulheres
95
oriundos de camadas
econômicas mais favorecidas (profissionais liberais, altos cargos empresariais,
funções executivas, etc.) têm optado, sem vacilações, pelo celibato como “novo
94
Consoante Eduardo Oliveira Leite, a expressão “celibato” aqui empregada refere-se tanto aos celibatários que
moram, por exemplo, com os pais, quanto aos solteiros que moram isoladamente. (LEITE, 2003, p. 33).
O Instituto de Demografia e Estatística refere-se aos solteiros que moram isoladamente para indicar as
famílias ‘unipessoais’, isto é, domicílios ocupados por apenas uma pessoa. De acordo com dados do
Censo Demográfico de 2000, ”a distribuição das famílias por número de componentes mostra que 8,6%
são unipessoais, contra 21,2% (de duas pessoas), 24% (de três pessoas) e 22, 8% (de quatro pessoas).
Embora a maior concentração de famílias seja representada pelo grupo 2, 3, e 4 componentes – a grande
maioria da do Brasil -, o percentual representado por famílias unipessoais é expressivo”. Fonte: Instituto de
Demografia e Estatística – IBGE, Censo Demográfico 2000, p. 81.
95
Conforme pesquisa realizada pelo IBGE sobre os domicílios unipessoais de responsabilidade feminina,
“o universo do domicílio com responsáveis mulheres, o Censo 2000 verificou que 1.995.138 eram
domicílios unipessoais, isto é, de apenas um morador correspondendo a 17,9% do total. Esta situação
difere significativamente daqueles domicílios de responsáveis homens onde o peso relativo dos
unipessoais é de 6,2%. Um dos principais motivos para estas diferenças reside na própria condição
feminina, mais condicionada a desenvolver as tarefas domésticas com maior independência. Além disso,
a maior esperança de vida feminina certamente contribui para este resultado. Tal fato é confirmado
quando se observa que 53, 3% deles são ocupados por mulheres com mais de 60 anos de idade. Nos
estados e capitais das regiões Sul e Sudeste são encontradas as maiores proporções de unidades
domésticas unipessoais femininas. Tal fato, mais uma vez, reflete vários fatores, como a maior
esperança de vida, aspectos culturais, dissolução conjugal etc., especificamente, em relação às
chamadas camadas médias urbanas, que são mais extensas e diversificadas nas regiões mais
desenvolvidas, a questão da profissionalização e autonomia das mulheres, sobretudo as mais jovens
que buscam um modelo de independência e individualidade. No Rio Grande do Sul, por exemplo, dos
domicílios com responsáveis mulheres, 25% são unipessoais, enquanto nos Estados da região norte
esta mesma proporção varia entre 6,4% e 9,5%. Fonte: IBGE, Censo Demográfico de 2000, p. 13-14.
69
modelo” de vida sentimental. À união duradoura e ininterrupta do casamento
escolhem-se as uniões passageiras, sem compromissos e obrigações.
96
Na lista de fatores, acrescem-se as hipóteses de separação e divórcio,
responsáveis por uma imensa parcela da origem de famílias monoparentais. A Lei
nº. 6.515 de 26 de dezembro de 1977 instituiu a separação e o divórcio no contexto
jurídico brasileiro. Com isso, possibilitou-se o atendimento aos reclamos da
sociedade quanto ao término da vida conjugal, nas hipóteses de separação judicial e
à dissolubilidade do vínculo, com a restituição da plena capacidade matrimonial aos
cônjuges, nos casos de divórcio.
No estudo da situação jurídica dos integrantes das famílias monoparentais e
dos fatores desencadeadores destes vínculos, Eduardo Oliveira Leite
97
evidencia:
No Brasil, a tendência separatistase manifestara muito antes da Lei do
Divórcio (Lei n.º 6.515/77). As separações vinham ocorrendo como
manifestação veemente da sociedade brasileira contra a manutenção do
desquite, absolutamente contrária à tendência social que não mais admitia a
hipocrisia de uma ruptura de vida conjugal sem possibilidade de novo
casamento.
Portanto, não se pode atribuir à nova lei do divórcio a liberalização da
ruptura e a possibilidade de divorciar por mútuo consentimento.
A nova lei apenas se adaptou às novas tendências de costumes, ou como
sempre se afirmou, confirmou, no plano legal, uma prática que de há muito
vinha exigindo uma postura mais definida do legislador.
Com efeito, no Brasil, a lei tão-somente permitiu regularizar um número
considerável de rupturas já consumadas no plano fático, o que explica a
estabilidade das separações, a partir da entrada em vigor da Lei do Divórcio
(contrariamente às expectativas dos detratores do divórcio, que encaravam
a lei como fomentadora de rupturas).
Assim, não há como afirmar que o crescimento de rupturas é oriundo de
maior permissividade da lei de 1977, já que esta se revelou mais como
resposta jurídica [...] do que como reforma suscetível de gerar tal fenômeno.
Neste rumo, releva mencionar a dissolução das uniões estáveis como
causa determinante da constituição de núcleos familiares monoparentais, pois, à
semelhança das famílias matrimonializadas, o término dessas uniões põe fim à
96
LEITE, 2003, p. 33-34.
97
LEITE, op. cit, 2003, p. 37.
70
sociedade conjugal e dá ensejo à formação de famílias monoparentais pelo convivente
remanescente com filhos.
98
É importante referir as famílias monoparentais decorrentes do recurso às
técnicas de reprodução artificial
99
. Para facilitar a concretização de um projeto
parental foram criadas e desenvolvidas técnicas de reprodução artificial com o
objetivo de resolver os problemas causados pela infertilidade humana. Atualmente,
enfrenta-se a problemática e as implicações da inseminação artificial, questão que
exige regulação específica e atualizada. No rol das espécies de inseminações
artificiais podem ser descritas: a inseminação artificial homóloga e a inseminação
artificial heteróloga.
100
98
Outro fator desencadeante de famílias monoparentais, caracterizado como um período antecedente ao
reconhecimento constitucional das uniões estáveis, diz respeito às uniões livres. Para Eduardo Oliveira Leite,
das modificações ocorridas, após a revolução sexual dos anos 60, a união livre é, de longe, a única tendência
que aproveitou todas as mudanças, reformas e liberalizações recentes, afirmação que não comporta qualquer
julgamento de valor, porém, mera constatação. O desejo de um compromisso pessoal frente à sociedade, com a
pessoa que se ama, a aspiração à duração e à estabilidade, a procura da segurança afetiva e material, o desejo
de fundar uma família, vinculando-se nas famílias dos ascendentes de ambos os nubentes, enfim, tudo isto que
significa o casamento não representa mais modelo e não é, tampouco, meta das novas gerações. Aquilo que se
impõe e de certa forma combate o casamento e ganha cada dia mais adeptos é justamente um modo de vida
que não corresponde a um estatuto nem a qualquer união formalizada: é a união livre, que garante a cada um
sua individualidade, seu nome, que não exige nenhum compromisso, nenhuma promessa, nenhuma
responsabilidade, nenhuma implicação de duração ou fidelidade. É possível resumir quatro fases da união livre,
nas seguintes conseqüências: Primeira fase estender-se-ia de 1960 a 1965. Relações sexuais antes do
casamento. Casamento e filhos; segunda fase estender-se-ia de 1965 a 1972. Relações sexuais muito
freqüentes antes do casamento, ou vida comum. Fecundidade mal dominada. Gravidez. Reparação pelo
casamento; terceira fase praticamente toda a década de 70, e se estendia de 1972 a 1980. Vida em comum
sem casamento. Fecundidade bem dominada. Em caso de desejo de filhos: casamento e filhos posteriormente
e quarta fase, que se estende durante toda a década de 80 até nossos dias. Vida em comum sem casamento.
Fecundidade bem dominada. Decisão de ter filhos fora do casamento. Surgimento da criança independente de
qualquer projeto parental. (LEITE, 2003, p. 45 e p. 49). Nos vários períodos das uniões livres, verifica-se a
diversidade de meios de formação das relações familiares e os estágios perpassados por estas famílias, bem
como o comportamento frente às hipóteses de filiação, já que um dos momentos mais importantes na vida da
maioria dos seres humanos é aquele onde homem ou mulher tornam-se pai ou mãe.
99
“Com o surgimento de tais técnicas de reprodução artificial humana, o nexo que existia entre a
sexualidade e reprodução foi sendo paulatinamente afastado, visto que a fecundação não necessita ser
originada do ato sexual, podendo ocorrer em laboratório (fecundação in vitro). Desta forma, a reprodução
não resulta necessariamente do relacionamento sexual”. (COSTA, Demian Diniz da. Famílias
monoparentais: reconhecimento jurídico. Rio de Janeiro: Aide, 2002, p. 46).
100
Denomina-se homóloga a inseminação proveniente do sêmen do marido ou do companheiro;
heteróloga, quando o material genético é proveniente de um estranho, um doador. Uma questão
relevante deslocada para o campo jurídico é relativa à inseminação heteróloga dar-se sem o
consentimento do marido, nesse caso, este pode impugnar a paternidade. Se a inseminação deu-se com
seu consentimento há que se entender que não poderá impugnar a paternidade e que a assumiu. Nesse
sentido se coloca o inciso V, do artigo 1.597, do atual Código Civil: “Presumem-se concebidos na
constância do casamento os filhos: V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha
prévia autorização do marido. A lei brasileira passa a resolver expressamente essa questão. Contudo, a
lei não esclarece ainda de que forma deve ser dada essa autorização. Em tais circunstâncias deve-se
proteger com o anonimato o doador do sêmen, que deverá abrir mão de qualquer reivindicação de
paternidade e também não poderá ser demandado a esse respeito. Em suma, são casos que podem
gerar sérias discussões, principalmente, quanto aos reflexos no direito sucessório e ainda, demandam
muito estudo e preparo dos juristas.
71
Na seara das famílias monoparentais, cabe à mulher solteira, de acordo com
a oportunidade e conveniência, optar pela inseminação heteróloga. Maria Cláudia
Crespo Brauner
101
identifica essa situação como “monoparentalidade projetada”,
referindo que “sempre existiram mães ou pais viúvos ou adotivos que criaram
normalmente seus filhos, sendo que a sociedade aos poucos foi aceitando tal
situação, pois era uma realidade incontornável e muitas vezes imprevisível”.
O direito de gerar não é absoluto, ou que o direito ao filho não pode ser um
argumento que abra as portas a todas as possibilidades de reprodução artificial. De
fato, o interesse da criança deve ser preponderante, mas isso não implica concluir
que seu interesse se contraponha à possibilidade de vir integrar uma família
monoparental, desde que o genitor isolado forneça todas as condições necessárias
para que o filho se desenvolva com dignidade e afeto. A família deste novo século,
não se define mais pela triangulação clássica: pai, mãe e filho, sendo que o critério
biologista, ligado aos valores simbólicos da hereditariedade, deve ceder lugar a
noção de filiação de afeto, de paternidade ou maternidade social ou biológica.
102
Não há óbices à plena configuração de núcleos familiares monoparentais
constituídos a partir do planejamento do contexto parental, principalmente quando é
perceptível o comprometimento com a defesa dos direitos da criança e do
adolescente, previstos no artigo 227 da Constituição Federal Brasileira de 1988.
Alicerçados no texto constitucional, os direitos fundamentais assegurados à criança
e ao adolescente são os seguintes: o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária.
Quando a Constituição Federal de 1988 atribui à família, à sociedade e ao
Poder Público a responsabilidade pelo atendimento desses direitos, percebe-se a
diferença entre as famílias contemporâneas e as famílias de séculos anteriores,
podendo-se, inclusive, afirmar que as entidades familiares não apresentam as
mesmas configurações.
101
BRAUNER, Maria Claudia Crespo. A monoparentalidade projetada e o direito do filho a biparentalidade.
In: DORA, Denise Dourado; SILVEIRA, Domingos Dresch (Org.). Direitos humanos, ética e direitos
reprodutivos. Porto Alegre: Themis, 1998, p. 65.
102
BRAUNER, Ibid., p. 72-77.
72
Os núcleos familiares monoparentais compõem as múltiplas famílias
presentes na sociedade brasileira contemporânea. Dentre as causas da
monoparentalidade familiar é arrolada a existência de pais ou mães solteiros. Pode
ocorrer que um pai assuma convenientemente a responsabilidade e a dignificante
tarefa de amar e educar sozinho uma criança (filho biológico ou adotivo),
proporcionando-lhe um lar com as condições necessárias ao desenvolvimento de
suas potencialidades.
Do mesmo modo, observa-se que a monoparentalidade pode ser
determinada pela presença somente da mãe juntamente com o(s) filho(s). Conforme
Eduardo de Oliveira Leite
103
, em uma esquematização, podem ser distinguidos
quatro tipos de mães solteiras:
a) As “maternidades impostas”, quando se trata de mães solteiras que não
quiseram nem ter, nem conservar seu filho, mas que a perda dos prazos
legais, autorizando a interrupção voluntária de gravidez (em países como a
França que desde 1975 autoriza a interrupção da gravidez), compele a
assumir sua gravidez (mas não forçosamente sua maternidade: algumas
mulheres abandonam a criança); b) As “maternidades involuntárias”, na
medida em que, embora não desejando a gravidez, certas mães solteiras
decidem assumi-la e, portanto, educam sozinhas seu filho; c) As
“maternidades voluntárias”, quando se trata de solteiras que decidiram
conceber e educar sozinhas seu filho; também chamadas “mães solteiras
voluntárias” e d) As “maternidades coabitantes”, situação particular na qual
as mães solteiras decidem, com o seu coabitante, ter um filho.
Segundo Eduardo Oliveira Leite, a última categoria não se enquadraria no
elenco de famílias monoparentais, pois a Constituição Federal Brasileira de 1988 se
refere à comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes. De
acordo com o texto constitucional pressupõe-se a ocorrência de um pai com o filho,
ou de uma mãe com o filho. No caso em tela, há a coabitação. Se o casal (embora
não casado), educa o filho conjuntamente, pode-se cogitar da hipótese de união
estável, mas não mais de monoparentalidade.
104
Fica resguarda a hipótese de esfacelamento da convivência afetiva entre os
coabitantes, ou seja, a ruptura da união, caso em que a guarda do filho menor será
103
LEITE, 2003, p. 58.
104
Leite, Ibid., p. 59.
73
deferida a um dos genitores, mantendo-se para ambos a obrigação de fornecer
assistência moral e educacional, como efeitos decorrentes do poder familiar, mesmo
com a dissolução do relacionamento.
De acordo com o Censo Demográfico de 2000, havia um contingente de
86.223.155 mulheres, das quais 11.160.635 eram responsáveis pelos domicílios,
correspondendo a 12,9%. A sociedade brasileira passou por profundas
transformações demográficas, socioeconômicas e culturais nestes últimos 20 anos,
que repercutiram intensamente nas diferentes esferas da vida familiar. As tendências
que mais se destacaram quanto às formas de organização doméstica foram a
redução do tamanho das famílias e o crescimento da proporção das famílias, cujas
pessoas responsáveis são mulheres. Em 2000, o Censo Demográfico verificou que
24,9% dos domicílios tinham mulheres como responsáveis.
105
Com efeito, a distribuição regional destes domicílios reflete a distribuição
geográfica da população, com seu peso mais significado na região sudeste. O
nordeste apresenta maior proporção de domicílios, cuja pessoa de referência é do
sexo feminino, 25,9%, seguida pela região sudeste, 25,6%. No caso do nordeste,
deve-se considerar além das mudanças recentes de âmbito cultural, a intensidade
da migração nordestina masculina ocorrida nas últimas décadas e seus padrões
diferenciados por gênero. Nos municípios das capitais, a proporção de mulheres
responsáveis é bem mais elevada do que a média nacional, variando de 23,4% em
Palmas a 38,2% em Porto Alegre. Portanto, Porto Alegre se destaca com a maior
proporção de domicílios com responsáveis mulheres. É importante ressaltar que a
expectativa de vida no Estado do Rio Grande do Sul é das mais altas do país, em
torno de 74 anos, o que poderia ser considerada uma das causas principais para o
alto percentual encontrado.
106
No atual contexto brasileiro, verifica-se que a emancipação das mulheres,
sua maior independência financeira, condições de acesso ao mercado de trabalho,
um elevado grau de escolaridade e o reconhecimento jurídico da igualdade entre
homens e mulheres são fatores que constituem os primeiros passos para a isonomia
105
Fonte: Instituto Brasileiro de Demografia e Estatística – IBGE, Censo Demográfico de 2000, p. 10.
106
Fonte: Instituto Brasileiro de Demografia e Estatística, Ibid, 2000, p. 11.
74
de direitos e de tratamento entre os indivíduos na sociedade. Nessa trilha, o fato de
uma mãe criar, proteger e educar sua prole não caracteriza mais a figura de “vítima
do desamparo”, vigente em meados do século passado, pois agora, configura muito
mais uma opção, uma livre escolha da mulher exercer a maternidade.
É possível a perfectibilização da monoparentalidade nos casos de adoção. A
adoção é tratada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente nos arts. 39 a 52. No
Código Civil de 2002, a matéria é disciplinada nos arts. 1618
107
a 1629.
Convém ressaltar, que não há qualquer restrição quanto ao estado civil do
adotante. A adoção pode ser concedida à pessoa solteira, separada judicialmente ou
viúva e ainda, pode ser singular ou conjunta. No caso de adoção conjunta a
responsabilidade pelo exercício do poder familiar incumbirá ao casal integrante da
família.
No que respeita aos conviventes homossexuais, já há julgados
reconhecendo a possibilidade de adoção, isto é, conferindo-lhes o direito de adotar
conjuntamente. Da mesma forma, o indivíduo homossexual poderá adotar, não se
admitindo nenhuma espécie de discriminação.
108
As normas do Estatuto da Criança e do Adolescente, em matéria de adoção,
têm aplicabilidade quando não conflitarem com as normas introduzidas pelo Código
Civil de 2002. A adoção regulada pelo Estatuto da Criança e do Adolescente
destina-se aos menores de 18 anos, até a data do pedido, salvo se o adotando já
estiver sob guarda ou tutela dos adotantes. Com o objetivo de aproximar a adoção
tanto quanto possível da natureza, o atual Código Civil Brasileiro prevê que o
107
Art. 1.618 do Código Civil de 2002. “Só a pessoa maior de 18 (dezoito) anos pode adotar”.
Parágrafo único. “A adoção por ambos os cônjuges ou companheiros poderá ser formalizada, desde que
um deles tenha completado 18 (dezoito) anos de idade, comprovada a estabilidade da família”.
108
Este tema será tratado no capítulo 2.5 – Uniões Homoafetivas: da realidade fática à esfera jurídica.
Confirmando o entendimento exposto, há recentes julgamentos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul, reconhecendo, por decisão unânime, a existência de entidade familiar em união entre
homossexuais e concedendo a possibilidade de adoção a seus integrantes. (RIO GRANDE DO SUL.
Tribunal de Justiça. Sétima Câmara Cível. Apelação Cível Nº 70013801592. Relator: Luiz Felipe Brasil
Santos. Julgado em: 05 abr. 2006). Para maiores esclarecimentos ver: (RIOS, Roger Raupp. A
homossexualidade no direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001).
75
adotante há de ser pelo menos 16 (dezesseis) anos mais velho que o adotado.(art.
1.619, CCB/2002).
109
Desta feita, por se tratar de um fenômeno social, há inúmeras motivações
ensejadoras da escolha da adoção, como forma de constituir uma entidade familiar.
Dentre elas, destaca-se o fato de as pessoas não terem condições de procriar em
razão, por exemplo, de disfunções biológicas ou, ainda, o que é perfeitamente
sustentável, pelo simples intuito de integrar um indivíduo no ambiente de uma
família. Evidentemente, em quaisquer dessas situações, havendo somente a figura
paterna ou materna na direção do núcleo, terá origem à família monoparental.
No que tange à viuvez como fator desencadeador de monoparentalidade,
Eduardo Oliveira Leite
110
refere:
Na sua expressiva maioria, as viúvas pertencem a uma geração na qual a
identidade social da mulher se elaborava a partir da esfera doméstica e não
da esfera profissional. O trabalho fora do lar era considerado há 30 (trinta)
anos atrás uma situação excepcional, mal-vista não só no interior do grupo
familiar como também pela comunidade circunvizinha. Igualmente, estas
mulheres, preparadas para a reprodução e para o lar, não se preocupavam
em adquirir melhores conhecimentos, seu grau de instrução limitava-se –
quando ocorria – ao primeiro grau.
A partir do momento em que a mulher ingressa no mercado de trabalho,
começa a trazer a sua colaboração econômica para o lar, desempenha uma
atividade laboral, tem uma formação educacional e profissional e administra seus
bens e interesses, altera-se o papel que exercia no ambiente familiar. Com o
reconhecimento da igualdade entre os cônjuges, as tarefas relacionadas à
organização da família passaram a ser desempenhadas conjuntamente,
responsabilizando-se ambos pela guarda, sustento e educação dos filhos.
Nessas circunstâncias, havendo a dissolução do vínculo conjugal, por
ocasião da morte de um dos cônjuges, o viúvo ou a viúva dará continuidade à família
com os filhos. No caso de o cônjuge sobrevivente ser a mulher, esta viúva não
109
Art. 1.619 do Código Civil de 2002. “O adotante há de ser pelo menos 16 (dezesseis) anos mais velho
que o adotado”.
110
LEITE, 2003, p. 60.
76
enfrentará as mesmas dificuldades do passado, pois terá condições de manter a
unidade e o sustento da família, agora denominada monoparental.
As entidades monoparentais nascidas a partir de quaisquer das
circunstâncias supramencionadas, por constituírem núcleos de desenvolvimento da
personalidade e de preservação da dignidade do ser humano, merecem especial
tutela do Estado, no sentido de proporcionar-se o acesso à educação, à cultura e à
formação profissional do indivíduo, além da inserção em projetos assistenciais e
mecanismos de coibição da violência no centro destas famílias.
Esse modelo familiar assentado na monoparentalidade pode tornar-se um
núcleo familiar biparental, por meio de uma nova união do membro remanescente,
visando à construção de novos vínculos afetivos e à reestruturação de sua vida,
originando uma outra entidade denominada família reconstituída.
3.3 Famílias Reconstituídas
Do mesmo modo que o ordenamento jurídico reconhece múltiplas formas de
constituição e desfazimento de famílias, também contempla, nessa hipótese, a
possibilidade de sua recomposição.
Verificando-se quaisquer das situações de desconstituição da relação, seja
por separação, divórcio, dissolução de uniões ou pelo óbito de um dos partícipes das
famílias, abre-se a faculdade de sua reconstrução.
111
As famílias reconstituídas classificam-se como as entidades familiares
estruturadas a partir de um novo casamento ou nova união, após a ruptura dos
vínculos precedentes. Nesse modelo de família, torna-se necessária a presença de
111
Nas palavras de Elisabeth Roudinesco: “[...] atualmente a família é reivindicada como o único valor
seguro ao qual ninguém quer renunciar. Ela é amada, sonhada e desejada por homens, mulheres e
crianças de todas as idades, de todas as orientações sexuais e de todas as condições”. (ROUDINESCO,
2003, p. 198).
77
filiação, esta pode ser de apenas um dos integrantes do novo casal ou de ambos,
mas deve ser fruto de relacionamento afetivo preexistente.
Para a compreensão das famílias recompostas pode-se dizer que são os
laços familiares compartilhados com um padrasto ou uma madrasta
112
.Ou, ainda, é a
forma familiar na qual um dos filhos de uma união anterior de um dos cônjuges ou
companheiros reside conjuntamente.
Na configuração das famílias reconstituídas são considerados os novos
vínculos familiares estabelecidos entre pais ou mães solteiros, separados
judicialmente, divorciados e viúvos. Nesta qualificação estão excluídas as relações
em que não se constate a existência de filhos do cônjuge ou companheiro, pois a
relação entabulada entre o padrasto ou madrasta e a prole do outro é o cerne que
marca os contornos deste novo modelo de organismo familiar.
Contemplado o pluralismo na constituição das famílias e a não sujeição ao
tradicional padrão jurídico de moldura familiar, é possível pensar uma nova
dimensão para as relações humanas familiares, quando indivíduos decidem reerguer
a família, acolher a diversidade de origens e de laços interpessoais e dar ensejo ao
nascimento de uma outra estrutura familiar complexa.
As famílias reconstituídas, constelações familiares manifestadas em uniões
sucessivas que envolvem um dos pais, padrastos ou madrastas, avós, irmãos, meio-
irmãos, quase-irmãos e irmãs, permaneceram por muito tempo como invisíveis na
França
113
e na maioria dos países europeus. No final dos anos oitenta se falava
pouco ainda sobre elas ou se ignorava seu nome. Não se sabia como nomeá-las e
quase nenhuma pesquisa nas ciências humanas nos países de língua francesa lhe
112
No estudo inicial das famílias reconstituídas serão feitas referências às expressões padrasto, madrasta
e enteado. Posteriormente, seguir-se-á com a terminologia mais apropriada para denominar os
partícipes das famílias recompostas: pai afim (padrasto), mãe afim (madrasta) e filho afim (enteado).
113
Na obra Dérisée, vislumbra-se a concepção de Napoleão Bonaparte sobre a formação da família, de
acordo com quem “só no casamento uma mulher poderia encontrar o sentido da sua vida”. Essas
considerações retratam o pensamento vigente no início do século XIX, na França e a importância
conferida à família sacralizada pelo matrimônio, além do espaço privado do lar reservado à mulher.
Assim, não havia lugar para o reconhecimento de outras formas de vida familiar. Como o Código Civil
Francês de 1804 serviu de inspiração para a codificação civil brasileira de 1916, explica-se a
superioridade atribuída ao casamento em detrimento de outros núcleos familiares, até então não
considerados famílias perante o ordenamento jurídico. (SELINKO, 1956, p. 126).
78
fazia menção. Com o passar de alguns anos essa situação melhorou, pois as
famílias reconstituídas tornaram-se uma realidade importante em todas as
sociedades ocidentais. Com efeito, essas sociedades, por suas diferenças sócio-
políticas e culturais, estão confrontadas às mesmas mutações e às mesmas
interrogações fundamentais.
114
As famílias reconstituídas não são apenas configurações de um tipo
particular. Elas adquirem sentido somente quando situadas no tempo das biografias
individuais e familiares. Elas põem em profundidade a questão dos indicativos que
podem dar inteligibilidade e significação no vínculo familiar contemporâneo,
confrontada a sua própria transformação no curso de trajetórias cada vez mais
complexas.
115
A família reconstituída por envolver a união de duas ou mais entidades
familiares, apresenta particularidades relacionadas aos propósitos do novo casal em
compartilhar a nova relação, ao número de filhos, que podem ser crianças ou
adolescentes de diversos níveis educacionais, econômicos e culturais e, portanto,
produzirá a conexão destes indivíduos na medida em que circulam novas
orientações tendentes à conservação desta nova família.
De acordo com situação fática, os integrantes de uma família em construção
podem sentir os obstáculos decorrentes da diferença de circunstâncias individuais,
temporais, sociais e culturais e ainda, ligadas ao exercício do poder parental.
Estipulam-se novos parâmetros, conjugando-se regras consolidadas a novos
comportamentos, com a finalidade de minimizar os impactos da estruturação deste
114
No original: Les familles recomposées, ces constellations familiales issues d’unions successives qui
rassemblent parents, beaux-parents, grands-parents, “beaux-grands-parents”, frères, demi-frères et
“quasi” frères et soeurs, sont demeurées longtemps comme invisibles en France et dans la plupart des
pays européens. À la fin des années quatre-vingts encore, on en parlait peu, on ignorait leur nombre, on
ne savait comment les nommer, et quasiment aucune recherche en sciences humaines ne leur avait été
consacrée dans les pays francophones. En effet, toutes les sociétés occidentales, par delà leurs
différences socio-politiques et culturelles, sont aujourd’hui confrontées aux mêmes mutations, aux
mêmes interrogations fondamentales. (MEULDERS-KLEIN, Marie-Thérèse; THÉRY, Irène. Quels
repères pour les familles recomposées?: une approche pluridisciplinaire internationale. COLLOQUE
INTERNATIONAL QUELS REPÈRES POUR LES FAMILLES RECOMPOSÉES?; 1; 1993; Paris. Paris:
L.G.D.J., 1995, p. 7).
115
No original: Les familles recomposées ne sont pas seulement des configurations d’un type particulier.
Parce qu’elles ne prennent sens que situées dans le temps des biographies individueles et familiales,
elles posent en profondeur la question des repères qui peuvent rendre intelligible et signifiant le lien
familial contemporain, confronté à sa propre transformation au cours de trajectoires de plus en plus
complexes. MEULDERS-KLEIN, Ibid., p. 8.
79
novo vínculo afetivo e permitir a edificação de caracteres próprios e exclusivos do
grupo familiar.
No que concerne à definição dessa modalidade de arranjo familiar, optou-se
em denominá-las famílias reconstituídas, enquanto a expressão for mais corrente na
doutrina jurídica, já que significa constituir uma família, constituir o estado de
casado, no sentido de ser a base de uma nova família por dissolução de um núcleo
anterior. O prefixo re, embora possa sugerir a repetição da família precedente,
significa, antes, uma mudança de estado, o que, evidentemente, não é o mesmo que
estabelecer outra vez a situação prévia, uma vez que novos membros a ela se
integram.
116
No estudo de uma terminologia apropriada para denominar os partícipes das
famílias reconstituídas, uma das dificuldades enfrentadas relaciona-se com as
figuras do padrasto/madrasta, até então, vistos como seres indesejáveis, negativos e
cruéis. Desde os contos infantis sempre foi transmitida uma percepção negativa
dessas figuras.
Surge a dúvida frente a este panorama: seguir-se ou não com as
denominações de padrasto e madrasta? Segundo Cecilia Grosman e Irene Martinez
Alcorta
117
:
És indudable que crear una nueva imagen de la denominación
padrastro/madrasta en la conciencia social representa una tarea muy ardua
porque no es fácil cambiar retratos acuñados en la mente de la gente. Por
eso nos inclinamos por imaginar una nueva designación que simbolice esta
relación familiar. El afán por crear un nombre especial ya se ha evidenciado
en expresiones como “padres sociológico”, “padres de acogida”. No es fácil,
y después de mucho meditar hemos recogido la propuesta formulada en
una reunión científica que se ocupó del tema y rebautizamos a estas figuras
como “madre afín”, en lugar de “madrasta”, “padre afín”, em vez de
“padrasto”, e “hijo afín” por “hijastro”.
116
GRISARD FILHO, Waldyr. Famílias reconstituídas: novas relações depois das separações. Parentesco
e autoridade parental. In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Afeto, ética e o novo Código Civil.
Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 661.
117
GROSMAN, Cecilia; ALCORTA, Irene Martínez. Familias ensambladas: Nuevas uniones despúes Del
divórcio. Ley y creencias, problemas y soluciones legales. Buenos Aires: Editorial Universidad, 2000, p. 43).
80
Na família originária, os componentes possuem uma designação própria
como pai, mãe, irmãos, avós, tios, primos, sobrinhos, etc. No círculo das entidades
familiares reconstituídas, essas figuras multiplicam-se, no sentido de que se
agregam novos indivíduos ao convívio cotidiano da família. A relações no âmbito da
filiação terão como referência natural a mãe e o pai, independentemente de quem
deixar o lar conjugal e desde que mantenha os laços afetivos com a prole. Não
obstante a necessidade de absorver o fim do relacionamento entre os pais, os filhos
deverão conviver com um estranho, o novo cônjuge ou companheiro do pai ou mãe.
Em conformidade com as atuais tendências em matéria de Família este novo
partícipe das relações familiares pode ser denominado pai ou mãe afim. As
disposições do artigo 1.595 do Código Civil de 2002 prevêem que cada cônjuge ou
companheiro é aliado aos parentes do outro pelo vínculo da afinidade. Em razão do
parentesco legal e por tratar-se de um novo núcleo familiar, a redesignação de seus
integrantes como pai afim para padrasto (o marido ou companheiro da mãe), de mãe
afim para madrasta (a esposa ou companheira do pai) e de filho ou filha afim para
enteado ou enteada (o filho ou a filha do cônjuge ou companheiro) mostrou-se
coerente e adequada.
Na sociedade atual, jurídica e culturalmente assume-se a possibilidade de se
desfazer as uniões. Após a desconstituição, esses vínculos familiares podem seguir
surtindo efeitos jurídicos tais como: o dever de alimentos, o exercício do poder
familiar e guarda dos filhos. As uniões podem ser feitas e desfeitas. Logo depois da
separação, forma-se uma minifamília, a família monoparental, que conforma uma
história particular, com regras, em parte, trazidas da família anterior. O respeito a
essas regras faz com que o começo e o desenvolvimento da família reconstituída
sejam muito diferentes daqueles de uma família originária. Muito embora cumpram
as mesmas funções dessas famílias, como a socialização dos filhos, o auxílio
material, a proteção e a educação, a afetividade e a solidariedade, as famílias
reconstituídas apresentam características próprias distintas daquelas.
118
118
GRISARD FILHO, 2004, p. 662.
81
Quanto aos fatores que incidem na construção do papel do pai afim ou mãe
afim, Cecilia Grosman e Irene Martinez Alcorta
119
elucidam:
En el campo psico-social se se destaca que el rol y la labor educativa que
pueda desarrollar el cónyuge o conviviente con realción a los hijos del otro
depende de una serie de factores, entre los cuales se há señalado a las
condiciones socio-económicas de la familia como um dato relevante.
Estudios realizados han demonstrado que en los sectores socio-económicos
de menores recursos y nivel educativo, el padre afín se implica com mayor
intensidad en la educación de sus hijos afines y esta amplitud de la relación
se conecta con la debilidad de contacto con el progenitor no conviviente.
En cambio, cuando se trata de padres afines con mayores ingresos y nivel
cultural, el progenitor no conviviente preserva en mayor medida su función
educativa y la nueva pareja conyugal sólo funciona como pareja parental
respecto de su propria descendencia. Es decir, el eje de estas familias es la
pareja más que los hijos.
Incluso, a veces, en estas familias se crean territorios separados. Cada uno
se ocupa de sus hijos. Los hijos de uno y otro no comparten las mismas
habitaciones, las salidas de fin de semana o las vacaciones se organizan de
manera separada. Para evitar desencuentros se respetan y separan los
lazos familiares. En suma, se mantienen diversos núcleos familiares que si
bien tienen puntos en común no funcionan como una unidad.
En este tipo de organización el padre/madre afín tiene poco lugar para
ejercer alguna función respecto del hijo de su pareja, salvo en el supuesto
de una ausencia prolongada. Aparece aquí, con frecuencia, la coexistencia
de varios sistemas de autoridad. Por ejemplo, uno conducido por la madre
respecto de sus hijos propios, otro de su nueva pareja con sus hijos de la
unión anterior y un tercero de la madre y el padre sobre los hijos comunes.
Com a finalidade de compreender as diversas atitudes adotadas pelos
integrantes de várias configurações familiares, bem como apreender o olhar de cada
um dos envolvidos, seus pontos de vista e seus sentimentos acerca do modo como
se desenvolve o processo de recomposição familiar, torna-se relevante avaliar o
nível cultural e econômico, no qual se dá a construção dos novos vínculos familiares.
Nesse sentido, Cecilia Grosman e Irene Martinez Alcorta
120
confirmam que
o modelo de recomposição familiar está ligado ao nível cultural e econômico, ainda
quando intervêm outros fatores como a idade e a duração da seqüência de
monoparentalidade. Neste sentido, pode-se observar que a organização familiar e o
papel do par do genitor dependem do momento do ciclo família, isto é, modificam-se
com o transcurso do tempo pela idade dos filhos, as mudanças nas relações com o
genitor não convivente ou a chegada de um novo filho. A idade aparece como um
119
GROSMAN; ALCORTA, 2000, p. 169-170.
120
GROSMAN; ALCORTA, Ibid., p. 171-172.
82
fator relevante no grau de aceitação do cônjuge ou convivente do genitor. Será
maior nas crianças de tenra idade e, por outro lado, se são adolescentes existem
maiores dificuldades para admitir regras de disciplina, limitações e atos de
autoridade.
121
Há situações em que o relacionamento com o pai ou mãe afim, em um
primeiro momento, mostra-se limitado e restrito, mas com o passar do tempo, a
natureza dessas relações poderá apresentar mudanças. Na trajetória de vida em
comum, a nova organização familiar vai se estruturando e, por conseqüência, a
figura de autoridade do cônjuge ou companheiro do genitor e a imposição de regras
ou limites tornam-se bem recebidas.
Com o fim de esclarecer alguns aspectos do poder familiar, temos a
contribuição de Pietro Perlingieri
122
:
O esquema do pátrio-poder, visto como poder-sujeição, está em crise,
porque não há dúvidas de que, em uma concepção de igualdade,
participativa e democrática da comunidade familiar, a sujeição, entendida
tradicionalmente, não pode continuar a realizar o mesmo papel.
A relação educativa não é mais entre um sujeito e um objeto, mas uma
correlação de pessoas, onde não é possível conceber um sujeito subjugado
a outro.
121
A palavra “autoridade” origina-se da expressão latina auctoritas e significa: Cumprimento; realização;
consumação. 2. Instigação, exemplo. 3. Garantia; caução; fiança; compra afiançada pelo vendedor;
responsabilidade; obrigação. 4. Voto emitido em primeiro lugar; opinião dominante; conselho; parecer. 5.
Qualidade de vendedor; posse legítima; posse. 6. Direito de propriedade; poder; jurisdição. 7.
Testemunho; aprovação. 8. Crédito; confiança. 9. Vontade; desejo. 10. Resolução; decreto; sentença.
11. Consideração; estima; respeito; importância; valor. 12. Aquilo que tem autoridade ou constitui prova;
o que serve de modelo. (TORRINHA, Francisco. Dicionário latino-português. Porto: Gráficos reunidos,
1942, p. 88).
No tema proposto para estudo - famílias reconstituídas -, a palavra autoridade significa exemplo,
instigação, consideração, estima, respeito e importância. Nesse sentido, ao genitor, conjuntamente com
o pai ou mãe afim, cumpre as funções de ensinar aos filhos, o respeito e à consideração aos
semelhantes, promover sua participação ativa e responsável nos destinos da própria existência e na vida
dos demais integrantes do núcleo familiar. Ainda, o exercício da autoridade compreende ensinar a
ampliar as aptidões, fazer crescer as capacidades latentes e incentivar o desenvolvimento das
potencialidades dos filhos (biológicos ou adotivos) nas tarefas do cotidiano da família, proporcionando a
fundação de um novo lar centrado em laços de afetividade. A autoridade é demonstrada pelo exercício e
pelos exemplos a todos os seres humanos que vivem em família.
É importante esclarecer que a autoridade não se confunde com o autoritarismo. A autoridade de uma
pessoa é conferida pelos outros, em razão do respeito às suas idéias, palavras e ações. A autoridade
não é imposta, mas adquirida, conquistada.
O autoritarismo, por sua vez, torna o ambiente familiar ou profissional desagradável. O autoritarismo
conduz a comportamentos arbitrários, opressivos, prepotentes, que causam desestímulo e insegurança
nos demais indivíduos que convivem o ser arbitrário. No autoritarismo, há excesso no exercício da
autoridade que lhe foi investida.
122
PERLINGIERI, 2002, p. 258.
83
Atualmente, sabe-se que durante o casamento e a união estável, ambos os
pais devem exercer o poder familiar
123
em um ambiente de compreensão,
entendimento e respeito. Na hipótese de falta ou impedimento de um deles, o outro
o exercerá com exclusividade.
Os pais não são privados do exercício do poder familiar com a separação
judicial ou o divórcio, salvo nas hipóteses previstas nos artigos 1.635, 1.637 e 1.638
da atual codificação civil brasileira
124
. O poder familiar decorre da paternidade e da
filiação e não do casamento, tanto que o mais recente Código Civil Brasileiro se
reporta também à união estável. Nos termos do artigo 1.632 do Código Civil de
2002, “a separação judicial, o divórcio e a dissolução da união estável não alteram
as relações entre pais e filhos senão quanto ao direito, que aos primeiros cabe, de
terem em sua companhia os segundos”.
Um dos deveres ou atributos do poder familiar é a guarda dos filhos menores.
A classificação da guarda dos filhos é a seguinte: unilateral
125
, alternada
126
ou
123
O poder familiar compreende os deveres de criação, guarda, companhia, vigilância, educação,
assistência e representação dos filhos, nos termos do artigo 1.634 do Código Civil de 2002.
124
Art. 1.635 do Código Civil de 2002. Extingue-se o poder familiar:
I – pela morte dos pais ou do filho; II – pela emancipação, nos termos do artigo 5º, parágrafo único;
III – pela maioridade; IV – pela adoção; V – por decisão judicial, na forma do art. 1.638.
Art. 1.637. Se o pai, ou a mãe, abusar de sua autoridade, faltando aos deveres a eles inerentes ou
arruinando os bens dos filhos, cabe ao juiz, requerendo algum parente, ou o Ministério Público, adotar a
medida que lhe pareça reclamada pela segurança do menor e seus haveres, até suspendendo o poder
familiar, quando convenha.
Parágrafo único. Suspende-se igualmente o exercício do poder familiar ao pai ou à mãe condenados por
sentença irrecorrível, em virtude de crime cuja pena exceda a 2 (dois) anos de prisão.
Art. 1.638. Perderá por ato judicial o poder familiar o pai ou a mãe que: I – castigar imoderadamente o
filho; II – deixar o filho em abandono; III – praticar atos contrários à moral e aos bons costumes; IV –
incidir, reiteradamente, nas faltas previstas no artigo antecedente.
125
“A guarda unilateral pode decorrer da separação de fática, judicial ou do divórcio dos pais; como
pode advir do abandono de um ou de ambos os genitores, do falecimento de um genitor e também
por conseqüência da paternidade ou maternidade não revelada”. (MADALENO, Rolf Hanssen. A
guarda compartilha pela ótica dos direitos fundamentais. In: WELTER, Belmiro Pedro; MADALENO,
Rolf Hanssen (Coord.). Direitos fundamentais do direito de família. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2004, p. 343). Nos termos do artigo 1.584 do CCB/2002, decretada a separação judicial,
o divórcio, sem que haja entre as partes acordo quanto à guarda dos filhos, será ela atribuída a
quem revelar melhores condições para exercê-la. Tal disposição também aplica-se nos casos de
dissolução de união estável.
126
“A guarda alternada tem sua verdadeira gênese no direito de visitas, quanto ajustam os pais, ou
sentença judicial determina que os filhos fiquem na posse física de um dos genitores, garantindo ao
outro um período próprio de visitação, normalmente em finais de semana intercalados, acrescidos
de um ou mais dias de visitas durante a semana, alternando sua estadia na casa dos pais, de
acordo com o calendário de visitas ajustado por acordo, ou ordenado por sentença. Nessa
regulamentação também ingressam datas festivas, como o dia de Natal, o período da Páscoa, o
Dias dos Pais, das Mães e o Ano Novo, afora os períodos das férias escolares de inverno e de
verão dos filhos”. (MADALENO, 2004, p. 350).
84
compartilhada
127
. É certo que o cônjuge que não detém a guarda tem, na prática, as
forças do poder familiar enfraquecidas. O cônjuge, no entanto, nessa situação, pode
recorrer ao Poder Judiciário quando entender que o exercício direto do poder familiar
pelo guardião não está sendo conveniente. Aplica-se a mesma conclusão às uniões
sem casamento.
A respeito do poder familiar, Luiz Edson Fachin
128
esclarece que “os filhos
não são (nem poderiam ser) objeto da autoridade parental. Em verdade, constituem
um dos sujeitos da relação derivada da autoridade parental, mas não sujeitos
passivos, e sim no sentido de serem destinatários do exercício deste direito
subjetivo, na modalidade de uma dupla realização de interesses do filho e dos pais”.
Especificamente quanto ao poder familiar nas famílias recompostas, o artigo
1.636 do CC/2002: estabelece:
O pai ou a mãe que contrai novas núpcias, ou estabelece união estável, não
perde, quanto aos filhos do relacionamento anterior, os direitos ao poder
familiar, exercendo-os sem qualquer interferência do novo cônjuge ou
companheiro.
Parágrafo único. Igual preceito ao estabelecido neste artigo aplica-se ao pai
ou à mãe solteiros que casarem ou estabelecerem união estável.
Essa disposição normativa garante o exercício do poder familiar por parte
daquela pessoa que, tendo filiação anterior, resolve construir uma nova família. Em
contrapartida, para aquele indivíduo que se encontra na figura de partícipe da
construção desse novo vínculo familiar novos desafios são impostos, haja vista a
necessidade de uma aceitação e de um constante entrosamento com a prole
anterior do cônjuge ou companheiro.
A partir de tais balizamentos, constata-se que o exercício do poder familiar, o
desenvolvimento pessoal e a própria unidade da nova família enfrentarão algumas
127
Segundo Waldyr Grisard Filho “a guarda conjunta ou compartilhada é um dos meios de exercício da
autoridade parental, que os pais desejam continuar exercendo em comum quando fragmentada a
família. [...] é um chamamento dos pais que vivem separados para exercerem conjuntamente a
autoridade parental, como faziam na constância da união conjugal”. (GRISARD, Waldyr. Guarda
Compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000,
p. 111).
128
FACHIN, 2003, p. 244.
85
dificuldades, pois há outra realidade, onde os componentes de núcleos familiares
anteriores vêm carregados de bagagens, provenientes não somente de sua família
de origem, como também dos vínculos conjugais precedentes, isto é, histórias,
experiências de vida, crenças, tradições, sentimentos, convicções religiosas e
modelos educativos.
Ressalte-se, sobre a unidade da família, o entendimento de Pietro
Perlingieri
129
:
A unidade da família tem um sentido amplo, tem um papel também
extramatrimonial: ela se concretiza não somente na constância do
casamento, mas também em formas diversas, na hipótese de dissolução do
casamento ou de separação pessoal. [...]
A unidade tem uma própria relevância seja no momento fisiológico seja
naquele patológico da vida familiar, isto é, enquanto existir uma
comunidade, ainda que materialmente separada (a comunhão entre os
cônjuges é “material e espiritual”), que deve prosseguir a função à qual é
destinada (o desenvolvimento da personalidade dos componentes que
ficaram unidos), ainda que de forma reduzida. [...]
A comunidade familiar mostra-se, nessa ótica, como um conjunto de
relações jurídicas mesmo depois de sua dissolução.
No espaço em que há a integração de indivíduos em famílias recompostas,
não se pode esquecer a possibilidade de a circunstância envolver crianças, as quais
em determinado momento de sua vida, em face da nova organização familiar,
experimentarão distintos padrões de conduta e critérios disciplinares que podem
ensejar grandes mudanças de comportamento.
Desse modo, na formação do novo arranjo familiar, os pais ou mães afins
deverão tentar compartilhar ou auxiliar-se no exercício do poder familiar. O obstáculo
que, porventura, se apresente pode ser plenamente superado pelo decurso do
tempo, o que permitirá a acomodação da família e a aquisição de sua identidade
própria.
No período de constituição da família recomposta, tem-se o tempo como um
elemento essencial, a partir do qual se aprimorará a comunicação entre os
129
PERLINGIERI, 2002, p.250-252.
86
componentes do núcleo familiar, mediante o desenvolvimento de novos hábitos,
rotinas e rituais.
Nesse processo do grupo familiar, adquire maior importância a presença de
filiação, principalmente, quando se trata da construção da família por parte da
mulher. Na decisão em estruturar ou não uma nova entidade familiar, a mulher
aquilata as futuras condições de convivência e as possibilidades de entendimento
entre o(s) filho(s) do relacionamento precedente com o futuro pai afim, buscando
preservar ao máximo os interesses da prole.
Embora, constantemente, presentes na realidade familiar brasileira, as
famílias reconstituídas ainda não são objeto de regulamentação específica pelo
Direito de Família, que não concede ao pai ou à mãe afim direitos e deveres, isto é,
parâmetros legais a orientar o comportamento desses indivíduos e propiciar a
estabilidade do ambiente familiar recomposto. No contexto de uma sociedade em
expansão, não pode a composição de novos vínculos afetivos e à reestruturação de
da vida familiar permanecerem sem o resguardo da lei.
No estudo de tais questões, Waldyr Grisard Filho argumenta sobre a
importância de a lei e o discurso judiciário reconhecerem realidade de uma
convivência, que gera relações de cotidianidade, fonte de direitos e
responsabilidades em relação à socialização, à assistência material e emocional, à
educação dos filhos que vivem nessas famílias. O conteúdo das relações entre um
cônjuge ou companheiro e os filhos do outro deve resultar desde a lei para orientar
as expectativas dos integrantes dessas famílias, mediante normas que constituam
referências institucionais, transformando as figuras dos pais afins, silenciadas pela
própria lei, em figuras positivamente integrantes de famílias, sem oposições ou
omissões.
130
Releva ressaltar que cada pessoa integrante do núcleo familiar anterior tem
um comportamento próprio, concepções adquiridas ao longo do convívio com os
demais componentes de sua família originária. Além disso, traz consigo uma
130
GRISARD FILHO, 2004, p. 672.
87
personalidade formada com base nos vínculos construídos com seus pais, irmãos e
demais parentes. Há memórias, histórias de vida e experiências que devem ser
preservadas ao máximo e na medida em que uma nova etapa nas relações de
coexistência é compartilhada, novos costumes, culturas, laços e sentimentos são
internalizados. Com novos protagonistas e coadjuvantes reconstrói-se a família.
Na busca da compreensão das peculiaridades que cercam a diversidade de
estruturas familiares, vê-se a necessidade de continuar o elenco das famílias. Para
cumprir esta missão, serão trazidas algumas noções acerca do tratamento jurídico
conferido aos outros modelos de arranjos familiares.
Aceito o direito à livre escolha na formação de vínculos afetivos e familiares,
impõe-se compreender os formatos de famílias constituídas faticamente, por não
revestidas das formalidades próprias do modelo tradicional, fundado no matrimônio.
São várias as razões ensejadoras da opção por constituir famílias de fato, que
vão desde motivações ideológicas, econômicas, religiosas, culturais, até mesmo a
singela aversão a submeter-se aos regramentos e formalidades que o casamento
encerra. Nesse contexto, as famílias de fato são formadas sob o influxo de razões
muito particulares do indivíduo, de modo que essa opção cumpre com uma
finalidade que lhe é própria e satisfaz, ao seu modo, seus interesses e
necessidades.
A partir do momento em que considerarmos a família como um espaço
dinâmico de relações afetivas, veremos que sua importância está antes das normas
que determinam sobre as formalidades de um casamento, por exemplo. É preciso
não confundir família com casamento, incorrendo no equívoco daqueles que afirmam
que esta é constituída, quando na realidade este é apenas uma das formas de sua
constituição. Assim, o legislador constituinte parece ter entendido tais noções,
positivando aquilo que já era costume e, principalmente, ampliando o conceito de
família, deixando claro que ela não se constitui somente pelo casamento, mas
também por meio de uniões estáveis e de comunidades formadas por qualquer dos
88
pais e seus descendentes (artigo 226, CF/88).
131
Note-se que a mutação da idéia de família e as transformações ocorridas
factualmente e sedimentadas na sociedade, aos poucos foram integrando o universo
jurídico e recebendo a especial tutela do Estado.
Entre os diversos moldes familiares estabelece-se uma relação de diferença,
não de proeminência. Os modelos de família são iguais em dignidade e
fundamentos (afetividade, respeito, solidariedade, cooperação) que, com mais ou
menos intensidade, coexistem na sociedade brasileira contemporânea.
Em sistematizações e articulações de idéias sobre a família no viver cotidiano,
Heloisa Szymanski
132
escreve:
O mundo familiar mostra-se numa vibrante variedade de formas de
organização, com crenças, valores e práticas desenvolvidas na busca de
soluções para as vicissitudes que a vida vai trazendo. Desconsiderar isso é
ter a vã pretensão de colocar essa multiplicidade de manifestações sob a
camisa-de-força de uma única forma de emocionar, interpretar, comunicar.
Houve uma completa reformulação no reconhecimento jurídico da família. As
entidades familiares continuam imprescindíveis para o desenvolvimento da
sociedade e fundam-se em valores e princípios diversos daqueles outrora
alicerçadores da família tradicional. Com o acolhimento da isonomia entre as várias
formas escolhidas para a composição de famílias e a proteção ao ser humano por
ser merecedor de respeito e consideração, bem como e os princípios constitucionais
da igualdade e da dignidade humana, as relações familiares passaram a ser
direcionadas ao pleno crescimento pessoal de cada integrante.
Com isso, a família não pode mais ser deduzida de uma única realidade
familiar, isto é, de uma estrutura formada por pai, mãe e filhos, preferencialmente
convivendo em um mesmo lar e legitimada pelo casamento, mas como um ambiente
131
PEREIRA, R. C., 2004a, p. 12.
132
SZYMANSKI, Heloisa. Teorias e “teorias” de famílias. In: CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. (Org.)
A família contemporânea em debate. São Paulo: Cortez, 2002, p. 27.
89
que abrange múltiplas origens e propício ao desenvolvimento de um projeto de vida
comum, calcada em ideais de solidariedade, união e afeto.
Dentro dessa perspectiva, não se pode deixar de reconhecer e examinar
outros organismos familiares, fontes de uma vida familiar saudável onde prevalecem
os sentimentos de afeição.
3.4 Famílias Nascidas a partir de Uniões Estáveis
Basicamente, houve o acolhimento da união estável como uma entidade
familiar
133
com a Constituição Federal de 1988
134
, como uma forma alternativa ao
casamento, caracterizada pela manifestação da liberdade dos companheiros em
viver juntos, estabelecendo uma estreita comunhão de vida e de interesses.
135
A Lei n.º 8.971/94 é uma das primeiras leis especiais a tratar do tema da
união estável e estabelecia que a companheira comprovada de homem solteiro,
separado judicialmente, divorciado ou viúvo, que com ele viva há mais de cinco anos
ou dele tenha prole poderia valer-se do disposto na Lei n.º 5.478/68 (dispõe sobre
Ação de Alimentos e dá outras providências), enquanto não constituísse nova união
e desde que provasse a necessidade (art. 1º).
A quadripartição “homem solteiro, separado judicialmente, divorciado ou
viúvo”, prevista no mencionado dispositivo, levava em conta a possibilidade de
133
Rodrigo da Cunha Pereira propõe o seguinte questionamento: “Entidade familiar, o que é?” Para o autor
a expressão “entidade familiar” trazida pela Constituição Federal de 1988 vem designar aquilo que é
família. Percebe-se uma certa timidez nessa designação. É como se não se pudesse dizer que a união
estável é também uma das formas de constituição de família. Diz-se, então, entidade familiar. Mas o que
é isso a não ser família? Certamente o legislador constituinte não veio dizer que esta é uma forma menor
de família. O artigo 1º da Lei n.º 8.971/94 clareou e demarcou um pouco esses conceitos, ao estabelecer
o prazo de cinco anos como se fosse um período aquisitivo, condição para a existência desse tipo de
família. (PEREIRA, R. C., 2004a, p. 73).
134
Art. 226 da Constituição Federal de 1988. A família, base da sociedade, tem especial proteção do
Estado:
§ 3º. Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher, como
entidade familiar, devendo a lei facilitar a sua conversão em casamento.
135
A expressão “união estável” foi escolhida pela Constituição Federal de 1988, substituindo o sentido
preconceituoso e moralizador da expressão concubinato. Por fim, a união estável passou a receber
status de família no Direito Brasileiro em 1988, mas esse fato foi antecedido por uma vasta construção
jurisprudencial que teve o efeito de preparar e fixar as bases para o reconhecimento jurídico.
(BRAUNER, 2004, p. 265-266).
90
converter a união estável em casamento, porque senão, diria apenas “a
companheira comprovada de homem”. Está excluído o homem casado.
136
Do
comportamento do legislador, demonstra-se a preocupação do ordenamento jurídico
em coibir a prática da bigamia em relação a este novo perfil familiar.
Posteriormente, a Lei n. 9.278/96 propôs-se à regulamentação do § 3º do
artigo 226 da Constituição Federal de 1988, tratando expressamente da união
estável, a partir da referência do texto constitucional, reconhecendo tal união como
duradoura, pública e contínua, com o objetivo de constituição da família. Tal lei
trouxe a definição de união estável e incluiu os separados de fato entre seus
beneficiários, estabelecendo direito e deveres semelhantes aos do casamento.
137
A entidade familiar denominada união estável nasce do relacionamento
afetivo-amoroso entre homem e mulher, não adulterino, não incestuoso, notório,
estável, durável, visando à constituição de uma família. Não é exigida a existência
de filhos, a coabitação e a construção patrimonial em comum para a configuração
deste modelo familiar.
138
Importante lembrar que a existência de filhos é um elemento caracterizador
importante, mas não é determinante. Ademais, no Direito brasileiro já não se toma o
elemento coabitação como requisito essencial para caracterizar ou descaracterizar o
instituto da união estável.
139
Na esteira da prestação de alimentos, verifica-se que o pressuposto da
obrigação alimentar assenta-se em um dever ético de assistência e socorro,
decorrente do vínculo familiar. É um direito fundamental, essencial à vida. De um
136
FACHIN, 2003, p. 99.
137
A Lei n. 9.278/96 afastou a Súmula 380 do STF: Comprovada a existência de sociedade de fato entre
os concubinos, é cabível a sua dissolução judicial, com a partilha do patrimônio adquirido pelo esforço
comum. Estabeleceu a presunção de participação patrimonial na formação de um condomínio
representado pelos bens amealhados onerosamente na constância da união estável e também
assegurou aos companheiros o direito real de habitação. Ademais, registre-se que o disposto no artigo
9º remete toda a matéria relativa à união estável à competência das Varas de Família, assegurando o
segredo de justiça.
138
A propósito da matéria, Rodrigo da Cunha Pereira refere que, embora discutíveis, no Direito pátrio e
estrangeiro, podemos apontar como elementos integrantes ou caracterizadores da união estável, a
durabilidade da relação, a existência de filhos, a construção patrimonial em comum, coabitação,
fidelidade, notoriedade, comunhão de vida, enfim, tudo aquilo que faça a relação parecer um casamento.
(PEREIRA, R. C., 2004a, p. 29).
139
PEREIRA, Ibid., 2004a, p. 30 e 32.
91
princípio moral e universal decorre a obrigação jurídica que tutela os interesses
familiares, reconhecendo o seu caráter de ordem pública e não apenas os interesses
privados do credor, embora alicerçados em princípios de solidariedade humana. Seu
caráter publicístico advém do interesse do Estado na conservação e sobrevivência
das famílias, elemento essencial para a sua existência.
140
A união estável não é um instituto idêntico ao casamento. Não há
superioridade de um sobre o outro, há algumas diferenças e semelhanças. Após a
Constituição Federal, surgiu um texto normativo autorizando a concessão de
alimentos aos companheiros: a Lei n.º 8.971/04. No artigo 2º da referida lei havia
previsão de o companheiro sobrevivente participar da sucessão do outro. A meação
dizia respeito ao patrimônio amealhado em face da colaboração de ambos os
conviventes.
Com o advento da Lei n.º 9.278/96
141
houve a substituição da expressão
companheiro por convivente. Essa lei reforçou ainda mais o preceituado na lei
anterior sobre a concessão de alimentos aos companheiros ou conviventes. O artigo
2º, inciso II, da Lei nº. 9.278/96 estabelecia como direitos e deveres dos conviventes
a “assistência moral e material recíproca”.
No mesmo sentido, a disciplina do artigo 7º da mesma lei: “Dissolvida a
união estável por rescisão, a assistência material prevista nesta Lei será prestada
por um dos conviventes ao que dela necessitar, a título de alimentos”.
O Código Civil de 2002, por sua vez, recepcionou a entidade familiar
fundada na união estável, fixando disciplina específica em um título. A definição de
união estável prevista no artigo 1.723 da atual codificação
142
é bastante similar
àquela dada pelo artigo 1º, da Lei n.º 9.278/96.
140
O Direito brasileiro, até o advento da Lei n.º 8.971/94, sempre negou concessão de alimentos aos
companheiros. A justificativa apoiava-se em que a lei é expressa e taxativa sobre os vínculos que fazem
nascer tal obrigação: parentesco e casamento. (PEREIRA, R. C., 2004a, p. 77).
141
Art. 1º da Lei n.º 9.278/96. É reconhecida como entidade familiar a convivência duradoura, pública de
um homem e uma mulher, estabelecida com o objetivo de constituição de família.
142
Art. 1.723 do Código Civil Brasileiro de 2002. É reconhecida como entidade familiar a união estável
entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida
com o objetivo de constituição de família.
92
Em uma tentativa de equiparação da união estável ao casamento, o Código
Civil Brasileiro de 2002 no artigo 1.724
143
dispôs acerca dos direitos e deveres dos
conviventes, inovando quanto à inserção do dever de lealdade. Apesar da busca de
uma disciplina equiparada à da família matrimonializada, o citado dispositivo não
contempla a coabitação, ao passo que no artigo 1.566
144
há previsão desse dever
para ambos os cônjuges, ressalvadas as hipóteses previstas no artigo 1.569.
145
Diversamente do casamento, no entender de Luis Felipe Brasil Santos, não
possuindo a união estável natureza contratual e sendo resultante de um mero fato
da vida juridicizado, revela-se sem qualquer razão a previsão em lei de deveres a ele
inerentes. Outrossim, a falta de sentido em tal disposição resulta da circunstância de
que a infração a qualquer desses deveres está destituída de seqüela, uma vez que
não se prevê desconstituição da união estável com imputação de culpa. Observe-se,
a propósito, que, quanto aos alimentos, o artigo 1.704 trata apenas da repercussão
da culpa entre cônjuges, não se podendo, no caso, raciocinar por analogia, trazendo
o questionamento da culpa por quebra de deveres para a união estável, pois se
trata de regra restritiva de direito.
146
À semelhança do casamento, nas relações familiares de uniões estáveis
pautadas pela diversidade de sexos, publicidade, continuidade, duração e intenção
de constituir família, o dever de mútua assistência embasará a obrigação alimentar
entre companheiros. É desta espécie de relação que emerge o dever de
solidariedade e assistência, atualmente positivado no artigo 1.724, do Código Civil.
143
Art. 1.724, Código Civil Brasileiro de 2002. As relações pessoais entre os companheiros obedecerão
aos deveres de lealdade, respeito e assistência, e de guarda, sustento e educação dos filhos.
144
Art. 1.566, CCB. São deveres de ambos os cônjuges:
I – fidelidade recíproca;
II – vida em comum, no domicílio conjugal;
III – mútua assistência;
IV – sustento, guarda e educação dos filhos;
V – respeito e consideração mútuos.
145
Art. 1.569, CCB. O domicílio do casal será escolhido por ambos os cônjuges, mas um e outro podem
ausentar-se do domicílio conjugal para atender a encargos públicos, ao exercício de sua profissão, ou a
interesses particulares relevantes.
146
SANTOS, Luis Felipe Brasil. A união estável no Novo Código Civil. Disponível em:
http://www.blindagemfiscal.com.br/familia/uniao_estavel01.htm Acesso em: 20 abr. 2007.
93
O Código Civil de 2002, no artigo 1.694
147
disciplinou a prestação alimentar
recíproca, consagrando o uso da expressão “companheiros” na parte que trata
especificamente de alimentos.
148
Com referência aos pressupostos da obrigação da
alimentar, Luiz Edson Fachin
149
menciona que:
A necessidade está na base do pedido de alimentos, quer pela inexistência
de bens, quer pela impossibilidade de prover pelo seu trabalho, a sua
própria mantença. Há o outro pressuposto da prestação alimentar: as
possibilidades do alimentante. As disposições do artigo 1.694, § 1º
estabelecem que os alimentos devam ser fixados na proporção das
necessidades do reclamante e dos recursos da pessoa obrigada.
Condicionalidade, variabilidade e reciprocidade informam, em decorrência,
esse vínculo.
A obrigação alimentar também pode apresentar como fato gerador a culpa.
Nos termos do artigo 19 da Lei 6.515/77, há a Teoria da culpa, no sentido de que o
cônjuge causador da separação deve prestar alimentos ao outro, caso ele necessite,
além de estar impossibilitado de pedir alimentos ao ex-consorte. Ocorre que a noção
de culpa, como causa da obrigação de prestar alimentos, está sendo mitigada no
ordenamento jurídico brasileiro.
Na análise das possibilidades de superação da idéia de culpa, Rodrigo da
Cunha Pereira
150
enfatiza:
Mesmo antes do advento da Lei n.º 8.971/94, diversos autores entendiam
pela aplicação analógica das regras do casamento atinentes aos alimentos,
inclusive a Teoria da Culpa, ao fundamento de que não se poderia conferir
tratamento diverso entre casamento e união estável.
No entanto, este argumento não é o mais aceito, pois é patente a tendência
de se abolir a culpa da dissolução da sociedade conjugal – não obstante o
CCB/02 ainda tenha mantido esta linha de pensamento, no § 2º do artigo
1.694. Uma vez que a Teoria da Culpa está enfraquecendo em nosso
ordenamento – não obstante ainda esteja sendo utilizada pelo atual Código
Civil – não é cabível fazer sua aplicação extensiva à união estável. Uma vez
147
Art. 1.694 do Código Civil Brasileiro de 2002. Podem os parentes, os cônjuges ou companheiros pedir
uns aos outros os alimentos de que necessitem para viver de modo compatível com a sua condição
social, inclusive para atender às necessidades de sua educação.
148
No que diz respeito ao tema, Sérgio Gischkow aduz que “novo Código Civil emprestou tratamento
unificado aos alimentos, ou seja, nos artigos 1.694 a 1.710 versa sobre os alimentos para parentes,
cônjuges e companheiros. Ali é que devem ser encontradas as regras que regulam os alimentos na
união estável e não nos artigos 1.723 a 1.727”. (PEREIRA, Sérgio Gischkow. As uniões paralelas e
direito dos cônjuges. In: SOUZA, Ivone M. C. Coelho (Org.). Casamento: uma escuta além do judiciário.
Florianópolis: Voxlegem, 2006, p. 193).
149
FACHIN, 2003, p.108-109.
150
PEREIRA, R. C., 2004a, p.91-92.
94
que subsiste a tendência à abolição da culpa no âmbito da dissolução da
sociedade conjugal, não faz sentido estender a aplicação desta à união
estável sob pena de se manter uma corrente de pensamento em desacordo
com os ordenamentos jurídicos mais modernos.
Deveríamos nos desprender da idéia de culpa em todos os âmbitos –
separação, divórcio e união estável – deixando a discussão apenas para o
binômio necessidade/possibilidade, como prevê o artigo 1.695, CCB.
Além deste critério ser o mais justo, ele é verdadeiramente capaz de auferir
se os supostos alimentantes e alimentários preenchem os pressupostos
para se tornarem sujeitos – ativo e passivo – da obrigação alimentar.
Deve ser afastada a postura de investigação do elemento subjetivo causador
da ruptura das relações entre cônjuges e companheiros. Nesse passo, a
responsabilidade pela separação não deve ser apreendida apenas na direção do
indivíduo que tenha dado causa ao rompimento, pois existem hipóteses de término
consensual, no qual pode ser convencionada a prestação alimentícia, com
fundamento nos pressupostos da obrigação alimentar.
A única possibilidade de questionamento relativo à culpa na união estável
está no parágrafo segundo do artigo 1.694 do Código Civil. Isto é, quando a situação
de necessidade resultar de culpa de quem pleiteia, haverá o direito a alimentos
apenas no limite do indispensável à subsistência.
151
Para a partilha dos bens fruto do esforço comum entre companheiros havia
previsão no artigo 3º da Lei 8.971/94.
152
A redação desse dispositivo remetia o
direito do companheiro ou companheira à metade dos bens por ocasião da sucessão
por morte. De acordo com as disposições contidas no artigo 5º da Lei 9.278/96
153
, a
meação não era apurada apenas na ocasião da sucessão do convivente. Nesta lei
vislumbrava-se o verdadeiro sentido da meação – regular o fruto do trabalho e da
colaboração na aquisição de patrimônio em comum, pois se permitia apurar a
meação com o fim da convivência e não necessariamente com a morte de um dos
companheiros.
151
SANTOS, Luis Felipe Brasil. A união estável no Novo Código Civil. Disponível em:
http://www.blindagemfiscal.com.br/familia/uniao_estavel01.htm Acesso em: 20 abril de 07.
152
Art. 3º. Lei n.º 8.971/94. Quando os bens deixados pelo (a) autor (a) da herança resultarem de atividade
em que haja colaboração do (a) companheiro (a), terá o sobrevivente direito à metade dos bens.
153
Art. 5º Lei n.º 9.278/96. Os bens móveis e imóveis adquiridos por um ou por ambos os conviventes, na
constância da união estável e a título oneroso, são considerados fruto do trabalho e colaboração comum,
passando a pertencer a ambos, em condomínio e em partes iguais, salvo estipulação em contrato
escrito.
95
Adveio o Código Civil de 2002, tratando da união estável a partir do artigo
1.723 e diferenciando este modelo familiar do concubinato (artigo 1.727)
154
.
Ademais, contém disposição normativa que estabelece quanto aos bens: “na união
estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às relações
patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens”. (artigo
1.725)
155
.
Conforme as disposições do artigo 1.725 do Código Civil de 2002, basta a
demonstração da união para que a partilha se dê automaticamente, se não houver
pacto prevendo um estatuto patrimonial para os conviventes.
156
Com a vigência da Lei 8.971/94, o direito sucessório dos companheiros
recebeu disciplina no artigo 2º
157
, garantindo-se o direito de participar da sucessão
por causa de morte e essa participação se dava nas seguintes formas: a) direito real
ilimitado sobre coisa alheia – usufruto dos bens deixados pelo convivente falecido; b)
direito subjetivo próprio – na qualidade de herdeiro universal dos bens que compõem
a herança.
Por seu turno, a Lei n.º 9.278/96, nos termos do artigo 7º, estabelecia:
Dissolvida a união estável por rescisão, a assistência material prevista nesta
Lei será prestada por um dos conviventes ao que dela necessitar, a título de
alimentos. Parágrafo único. Dissolvida a união estável por morte de um dos
154
Art. 1.727 do CCB. As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar,
constituem concubinato.
155
Artigo 1.725, CCB. Na união estável, salvo contrato escrito entre os companheiros, aplica-se às
relações patrimoniais, no que couber, o regime da comunhão parcial de bens.
156
Anteriormente, o sentido das disposições do artigo 5º da Lei n.º 9.278/96 encaminhava para a
presunção de que os bens adquiridos na constância da união, a título oneroso, pertenceriam a ambos,
porque se deduzia que tinham sido adquiridos pelo esforço comum. Entretanto, é importante ressaltar
que esse esforço comum era tão-somente uma presunção. Sendo assim, poderia ser demonstrado o
contrário, ou seja, provar que determinados bens não foram frutos do trabalho ou da contribuição de
ambos. Esta era uma das diferenças básicas entre casamento e a união estável: nesta era
imprescindível o esforço comum (direto ou indireto); naquele não se discutia isso. (PEREIRA, R. C.,
2004a, p. 114).
157
Art. 2º da Lei n.º 8.971/94. As pessoas referidas no artigo anterior participarão da sucessão do(a)
companheiro(a) nas seguintes condições:
I - o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito enquanto não constituir nova união, ao usufruto de
quarta parte dos bens do de cujos, se houver filhos ou comuns;
II - o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito, enquanto não constituir nova união, ao usufruto da
metade dos bens do de cujos, se não houver filhos, embora sobrevivam ascendentes;
III - na falta de descendentes e de ascendentes, o(a) companheiro(a) sobrevivente terá direito à
totalidade da herança.
96
conviventes, o sobrevivente terá direito real de habitação, enquanto viver ou
não constituir nova união ou casamento, relativamente ao imóvel destinado
à residência da família.
Diante do fato desta Lei não se referir à qualidade de herdeiro universal, a
exemplo inciso III do artigo 2º da Lei n.º 8.971/94, sustentou-se a compatibilidade
entre os textos legais. Todavia, a solução não seria a mesma para os direitos
previstos nos incisos I e II do artigo 2º, pois o direito legalmente reconhecido ao
companheiro sobrevivente seria o previsto no parágrafo único do artigo 7º da Lei n.º
9.278/96 – direito real de habitação e não o direito ao usufruto.
O usufruto legal no Código Civil de 2002 não foi previsto nem para os
cônjuges. Para o cônjuge sobrevivente, qualquer que seja o regime de bens, sem
prejuízo da participação que lhe caiba na herança, foi assegurado o direito real de
habitação relativamente à residência da família, desde que seja o único daquela
natureza a inventariar (artigo 1.831). Para os companheiros, o atual Código Civil
silenciou quanto ao direito real de habitação.
Com relação ao direito real de habitação para as hipóteses de união estável,
a doutrina tem manifestado opiniões divergentes. Quanto à concessão de direito real
de habitação ao companheiro supérstite, observa Rodrigo da Cunha Pereira
158
:
“diante disso, e mesmo porque as duas leis sobre união estável (Leis 8.971/94 e
9.278/96) não foram expressamente revogadas, conclui-se que o artigo 7º, parágrafo
único, da lei n.º 9.278/96 continua co-existindo paralelamente a este Código, já que
esta lei, assim como a 8.971/94 não foram revogadas, derrogadas ou abrogadas
expressamente”. Entretanto, Francisco José Cahali
159
opta pela interpretação de que
“houve revogação tácita deste dispositivo”.
No exame da questão sucessória, que é extremamente delicada e complexa,
o Código Civil Brasileiro de 2002 dispôs em seu artigo 1.790:
Artigo 1.790. A companheira ou companheiro participará da sucessão do
outro, quanto aos bens adquiridos onerosamente na vigência da união estável,
158
PEREIRA, R. C., 2004, p. 124.
159
CAHALI, Francisco José. Curso de direito civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, v. 6, p. 227.
97
nas condições seguintes:
I – se concorrer com filhos comuns, terá direito a uma cota equivalente à
que por lei for atribuída ao filho;
II – se concorrer com descendentes só do autor da herança, tocar-lhe-á a
metade do que couber a cada um daqueles;
III – se concorrer com outros parentes sucessíveis, terá direito a um terço da
herança.
IV – não havendo parentes sucessíveis, terá direito à totalidade da herança.
A sucessão na união estável sofreu duas mudanças significativas, em
relação às leis anteriores. A primeira foi a delimitação dos bens sucessíveis àqueles
adquiridos a título oneroso, na constância da conjugalidade. A segunda, é que a
herança será dividida, em vários níveis, conforme preceitua o artigo 1.790.
Como bem obtempera Rodrigo Pereira, o artigo 1.790 está localizado
incorretamente, na sistemática de capítulos e títulos do Código Civil de 2002, uma
vez que coloca a sucessão do companheiro junto com as disposições gerais, ao
invés de ser alocado na ordem de vocação hereditária. O dispositivo em questão
estaria topograficamente equivocado e seria materialmente inconstitucional, pois se
eliminou o direito dos companheiros ao usufruto, havendo-se que se falar somente
em propriedade. O dispositivo em comento constituiria um grande retrocesso para a
união estável, uma vez que o companheiro estaria em posição infinitamente inferior
a do cônjuge. Com tais acontecimentos, talvez estivesse sendo retomada a
mentalidade de que união estável é uma “família de segunda classe” e não uma
outra espécie de família, nem melhor nem pior do que o casamento, apenas
diferente. Constitucionalmente todas as entidades familiares são iguais.
160
Embora, a Constituição Federal de 1988 tenha apreendido os múltiplos
modelos de realidade familiar e produzido inovações no tratamento das famílias
brasileiras, o legislador do Código Civil de 2002 enfocou as entidades familiares
constituídas com suporte na união de fato em uma perspectiva que transmite a idéia
de gradação entre os núcleos familiares, com a supremacia dos vínculos advindos
do matrimônio.
160
Ademais, para o autor “tal recuo promove a quebra da lógica constitucional da ordem jurídica, que
elevou a união estável ao status de família, não tendo razão, diante disso, de privilegiar-se o casamento.
É certo que este é o paradigma, por tradição, de constituição de família. Mas os outros tipos não podem
sofrer quaisquer restrições”. (PEREIRA, R. C., 2004a, p. 123-124).
98
Deve-se lembrar que as normas referentes à sucessão do companheiro só
podem ser interpretadas conforme a Constituição Federal e, dessa se extrai o
objetivo maior, que é o de proteção à família, seja formada com base no casamento,
quer seja escorada na união de fato entre os companheiros. E nessa busca de
proteção, que obrigatoriamente se impõe ao legislador infraconstitucional, o
casamento deverá ter sempre alguma vantagem em relação à união estável, mas
não no ponto de configurar a proteção significativamente maior à família formada
pelo casamento, pois o contraste pode levar à conclusão de que restou desprotegida
a família que se esteia na união estável. Em outras palavras, se por um lado a lei
ordinária não pode tratar a união estável de forma mais favorável que o casamento,
por outro, também não pode tratá-la de modo tão desfavorável que a transforme em
uma família de segunda categoria.
161
No exame minucioso de situações semelhantes e dos resultados produzidos
para a família matrimonializada e para a união estável, Aldemiro Rezende Dantas
Júnior afirma:
[...] poderá ocorrer de vir a falecer o companheiro, deixando filhos comuns,
sendo que todo o patrimônio de ambos foi adquirido ao longo do período de
convivência.
Nessas circunstâncias, o companheiro sobrevivente participará da meação
desse patrimônio, construído em comum por ambos, e, além disso, ainda
será herdeiro em relação à metade que pertencia ao falecido, recebendo
quota igual à que cabe a cada um dos filhos, nos termos do artigo 1.790,
inciso I, do Código Civil de 2002.
No entanto, na mesma situação acima (todo o patrimônio de ambos foi
amealhado na constância do casamento e o de cujus, ao morrer deixou
descendentes), se ao invés de união estável os dois tivessem optado pelo
casamento, adotando o regime de bens da comunhão parcial, cujas regras
são as mesmas que, em princípio, se aplicam à união livre (artigo 1.725),
completamente distinta seria a solução, em termos sucessórios, pois nesse
caso o cônjuge sobrevivente teria direito à meação desse patrimônio do
casal, mas não seria herdeiro em relação à metade que pertencia ao
falecido, uma vez que se houver descendentes e o regime de bens for o da
comunhão parcial, não tendo o de cujus deixado bens particulares, o
cônjuge supérstite é excluído da sucessão (artigo 1.829, inciso I, Código
Civil de 2002)
.
162
161
DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende. Sucessão no casamento e na união estável. In: FARIAS,
Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais de direito e processo de família. Porto Alegre: Lumen
Juris, 2004, p. 584-585.
162
“Como exemplo: “se um homem e uma mulher, ainda muito jovens, por volta dos 18 e 19 anos, situação
na qual, em termos patrimoniais, é muito comum que se junte o ‘nada’ de um deles à ‘coisa nenhuma’ do
99
Reconhecida constitucionalmente a igualdade e a pluralidade dos núcleos
familiares, não pode ser admitida a situação jurídica na qual os conviventes, em
relação que se submete ao regime legal da comunhão parcial, na ausência de pacto
entre os companheiros, adquira mais vantagens do que o cônjuge, unido pelo
mesmo regime e tendo prejudicada a participação na herança, em concorrência com
o(s) filho(s), porque o falecido não deixou bens particulares, circunstância não
prevista para a união estável.
Segundo a dicção do artigo 226, § 3º, da Constituição Federal Brasileira de
1988, será facilitada a conversão da união estável em casamento.
163
. A
transformação em vínculo matrimonializado favorece a diminuição das formalidades
cartorárias, bem como representa um estímulo para que os companheiros escolham
a modelo de família fundado no casamento. No momento em que a norma
infraconstitucional fomentar a permanência de uma entidade familiar na forma de
união estável, oportunizando o tratamento diferenciado de situações semelhantes,
como as acima descritas, não se consumará o intuito da ordem constitucional: a
tutela igualitária dos diversos tipos de relações familiares.
Haveria mais impropriedades. Da leitura do artigo 1.790 do Código Civil
sabe-se que na hipótese de o falecido não ter parentes sucessíveis, a totalidade da
herança transmite-se ao companheiro sobrevivente. Entretanto, a totalidade da
herança que será sucessível é aquela que o supérstite está autorizado a concorrer,
ou seja, os bens adquiridos durante a união a título oneroso, pois por uma
interpretação sistemática, devemos ler os parágrafos acordes com os mandamentos
do caput. Se o de cujus tinha outros bens, anteriores à convivência, passarão para o
Município ou para o Distrito Federal, se localizados nas respectivas circunscrições,
outro, será mais vantajoso para ambos que passem a conviver em união estável, pois neste caso cada
um dos companheiros será, além de meeiro, herdeiro do outro, ainda que venham a ter filhos. Se
optarem pelo casamento, no entanto, sobrevindo filhos, cada um deles será meeiro, mas não será
herdeiros em relação ao outro, como vimos anteriormente”. (DANTAS JÚNIOR, Aldemiro Rezende.
Sucessão no casamento e na união estável. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais
de direito e processo de família. Porto Alegre: Lumen Juris, 2004, p. 586).
163
Segundo Guilherme Calmon Nogueira da Gama, “a família é reconhecida como base da sociedade,
recebendo a proteção especial do Estado. O conceito de família é alargado no texto constitucional. E o
fato de outorgar à lei a obrigação de facilitar a conversão da união estável em casamento, não subtrai da
mesma a qualificação de família, merecedora de proteção do Estado, deixando, entrever, tão-só a
preferência de ser regularizada tal situação de fato que, no entanto, na linguagem de Pontes de Miranda,
tornou-se suporte fático suficiente para a sua integração no campo do Direito de Família”. (GAMA,
Guilherme Calmon Nogueira da. O companheirismo: uma espécie de família. 2.ed. rev., atual. e ampl.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001, p. 27).
100
ou à União, quando no Território Federal, a teor do que determina o artigo 1.844
164
.
Rodrigo Pereira diz que “tais dispositivos do Código estariam em desacordo com o
artigo 226, parágrafo 3º da Constituição Federal, vez que está havendo uma
discriminação à união estável, preconceituosa e que certamente estará, como todo
preconceito, provocando injustiças”.
165
Outra questão que gera controvérsias concerne ao fato de o companheiro
sobrevivente não ser considerado herdeiro necessário nos moldes do artigo 1.845,
do CCB. No Direito das Sucessões, os herdeiros necessários são os descendentes,
os ascendentes e o cônjuge sobrevivente, o que conduz à dedução de não ser
possível o enquadramento do companheiro. No entanto, no Rio Grande do Sul, a
jurisprudência, em interpretação sistemática do ordenamento jurídico brasileiro, vem
admitindo a caracterização do companheiro como herdeiro necessário, aplicando a
ordem de vocação hereditária prevista no artigo 1.829 do Código Civil de 2002.
Para melhor elucidar estas questões, destaca-se a orientação exposta no
julgamento da AC nº 70015433758 pelo Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul:
APELAÇÃO. INVENTÁRIO. COMPANHEIRO SOBREVIVENTE. DIREITO À
TOTALIDADE DA HERANÇA. COLATERAIS. EXCLUSÃO DO PROCESSO.
Apenas o companheiro sobrevivente tem direito sucessório no caso, não
havendo razão para cogitar em direito sucessórios dos parentes colaterais.
A união estável se constituiu em 1996, antes da entrada em vigor do Novo
Código Civil. Logo, não é aplicável ao caso a disciplina sucessória prevista
neste diploma legal, mesmo que fosse esta a legislação material em vigor
na data do óbito. Aplicável ao caso é a orientação legal, jurisprudencial e
doutrinária anterior, pela qual o companheiro sobrevivente tinha o mesmo
status hereditário que o cônjuge supérstite. Por essa perspectiva, na falta de
descendentes e ascendentes, o companheiro sobrevivente tem direito à
totalidade da herança, afastando da sucessão os colaterais e o Estado.
Além disso, as regras sucessórias previstas para a sucessão entre
companheiros no Novo Código Civil são inconstitucionais. Na medida em
que a nova lei substantiva rebaixou o status hereditário do companheiro
sobrevivente em relação ao cônjuge supérstite, violou os princípios
fundamentais da igualdade e da dignidade.166
164
Art. 1.844 do CCB. Não sobrevivendo cônjuge, ou companheiro, nem parente algum sucessível, ou
tendo eles renunciado a herança, esta se devolve ao Município ou Distrito federal, se localizada nas
respectivas circunscrições, ou à União, quando situada em território federal.
165
PEREIRA, R. C., 2004a, p. 125.
166
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Oitava Câmara Cível. Apelação Cível Nº 70015433758.
Relator: Rui Portanova. Julgado em 05 out. 2006.
101
A partir de decisões jurisprudenciais como essa, vem firmando-se
entendimento no sentido de ser afastada integralmente a hipótese de não
equiparação da união estável ao casamento, entendendo-se que as disposições
constantes no inciso II, do art. 1829, bem como as do art. 1845, todos do Código
Civil de 2002, teriam plena aplicação àquelas também.
O pluralismo na formação de entidades familiares, acolhido pela Constituição
Federal, determina a tutela isonômica de todas as relações de família, incluindo-se a
família matrimonializada, a apoiada em união estável e a monoparental. Na família
decorrente da união estável, tomando-se a hipótese de inexistência dos herdeiros
elencados nas disposições do artigo 1.845, CC/2002, pode ocorrer de um dos
conviventes dispor em testamento sobre a totalidade de seus bens, sem a reserva
da legítima.
167
Em tal caso, a existência de disposição de última vontade pode
acarretar o desamparo do companheiro sobrevivente, que nada receberá a título de
herança por ocasião da morte do outro. Não tem aplicabilidade tal situação quando
se tratar de cônjuge sobrevivente, posto que legalmente reconhecido direito à
legítima.
Ainda, numa avaliação da posição ocupada pelo companheiro na ordem
sucessória, em relação ao cônjuge, Rodrigo da Cunha Pereira
168
observa:
É flagrante, portanto, a inconstitucionalidade do artigo 1.790, CCB, que
aloca o companheiro em uma posição jurídica inferior ao cônjuge,
ratificando o preconceito arraigado e sem propósito de ser a união estável
uma “família de segunda classe”.
Tal fato não ocorre, por exemplo, no Estado espanhol das Ilhas Baleares,
cuja lei estabelece que, em caso de sucessão – existindo ou não
testamento – os conviventes têm os mesmos direitos que o cônjuge
sobrevivente. Além disso, também têm direito à propriedade sobre a roupa,
mobiliário e pertences do lar conjugal, os quais não se computam no
quinhão hereditário, excetuando-se objetos artísticos, de procedência
familiar ou extraordinário valor, tendo como parâmetro o padrão de vida do
casal.
167
Em tal hipótese o companheiro supérstite não é considerado herdeiro necessário e nem tem direito à
legítima, podendo, pois, ser excluído por testamento, se assim estabelecer o de cujus em sua disposição
de última vontade.
168
PEREIRA, R. C., 2004a, p. 126.
102
A Constituição Federal de 1988 concedeu tratamento igualitário à união
estável em relação à família matrimonializada. Todavia, o Código Civil de 2002 ao
estabelecer o direito sucessório dos companheiros, diferenciou a posição hereditária
do companheiro sobrevivente da ocupada pelo cônjuge supérstite, fato que não se
conforma com o conteúdo do art. 226, § 3º da Constituição Federal.
Desse modo, a regra contida no artigo 1.790 do CCB, afrontaria as
disposições constitucionais, especificamente o princípio fundamental da dignidade
da pessoa humana e o direito de igualdade.
É necessário frisar que os posicionamentos não são unânimes, pois há
juristas que pensam de modo diverso, aplicando, irrestritamente, as disposições
relativas à disciplina sucessória da união estável estabelecidas no Código Civil atual.
Embora, as dificuldades e as resistências, é fato inquestionável os
benefícios trazidos pelas alterações axiológicas introduzidas pela Constituição
Federal e pela atividade interpretativa na construção de possibilidades tendentes a
minorar o descompasso entre a legislação e os relacionamentos humanos, já que
esses constituem terreno fértil a propiciar decisões inovadoras.
Muitas questões polêmicas envolvem as relações afetivo-familiares,
especialmente as destinadas a enfrentar o tema das uniões entre pessoas do
mesmo sexo. Nesse domínio inovador, incumbirá, em algumas linhas, a tarefa de
indicar os entendimentos sedimentados, bem como as situações pendentes de uma
maior reflexão.
3.5 Uniões Homoafetivas: Da Realidade Fática à Esfera Jurídica
Nos tempos atuais, vislumbra-se que as relações de afeto entre duas
pessoas do mesmo sexo caracterizam uma realidade presente e reconhecida em
muitos países. Sabe-se que a instituição familiar reflete as mudanças ocorridas em
sociedade e no decorrer destas modificações organizaram-se diferentes modelos,
103
entre eles, os formados por indivíduos homossexuais. Com efeito, a existência de
relações dessa espécie nas diversas comunidades constituiu espaço para posterior
aceitação.
A Organização Mundial de Saúde - OMS – retirou da ‘Classificação
Internacional de Doenças’ (CID), qualquer referência à homossexualidade. Desde
1995, porém, quando da divulgação da CID 10, referências à homossexualidade não
mais aparecem. Os psiquiatras, incumbidos da tarefa de revisão da CID, concluíram
não existirem sinais que justifiquem considerar a orientação homossexual como
doença ou mesmo sintoma, tratando-se apenas de uma manifestação do ser
humano.
169
Segundo a Organização Mundial da Saúde - OMS, saúde é o estado
completo de bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doença.
Tantas vezes citado, o conceito adotado pela Organização Mundial da Saúde (OMS)
em 1948, longe de ser uma realidade simboliza um compromisso, um horizonte a ser
perseguido. Remete à idéia de uma “saúde ótima”, possivelmente inatingível e
utópica, já que a mudança, e não a estabilidade, é predominante na vida. Saúde
“não é um estado estável”, que uma vez atingido possa ser mantido. A própria
compreensão de saúde tem também alto grau de subjetividade e determinação
histórica, na medida em que indivíduos e sociedades consideram ter mais ou menos
saúde dependendo do momento, do referencial e dos valores que atribuam a uma
situação.
170
A homossexualidade, não sendo mais considerada uma doença e não
constituindo crime, progressivamente vem sendo aceita e reconhecida em lei, nos
países democráticos. A inserção recente das uniões entre iguais teve maior
expressão em alguns países europeus. Entre aqueles que editaram lei especial para
as referidas uniões, destacam-se: Dinamarca, Lei n˚. 372, de 27 de junho de 1989;
Noruega, Lei n˚. 32, de abril de 1993; Suécia, Lei n˚. 1994,1117, de 23 de junho de
169
MORAES, Maria Celina Bodin de. A união entre pessoas do mesmo sexo: uma análise sob a
perspectiva civil-constitucional. Revista Trimestral de Direito Civil, São Paulo, v. 1, p. 89-112, jan./mar.
2000, p. 96.
170
CONCEITO de Saúde na Organização Mundial de Saúde. Disponível em: http://mecsrv04.mec.
gov.br/sef/estrut2/pcn/pdf/livro092.pdf. Acesso em 23 abr. 2007.
104
1994; Islândia, Lei n˚. 87/1996 de 1996; Bélgica, Lei de 23 de novembro de 1998;
França, Lei n˚.O. 99-944, de 15 de novembro de 1999; e Holanda, Lei n˚.26.672, de
21 de dezembro de 2000.
171
No ordenamento jurídico brasileiro, o dinamismo do Direito seja por meio de
sua interpretação inovadora fundada nos princípios da dignidade humana e da
igualdade, seja com alterações legislativas, que contemplem o respeito ao direito de
liberdade e a não-discriminação em função do sexo, idade e orientação sexual
172
,
possibilita concretizar a sintonia entre as necessidades da sociedade e a produção
de normas jurídicas que disciplinem as relações humanas.
Relativamente à formação da identidade sexual do indivíduo, Luiz Edson
Fachin
173
esclarece:
[...] o sistema jurídico cioso de seus mecanismos de controle, estabelece,
desde logo, com o nascimento, uma identidade sexual, teoricamente
imutável e una. Essa rigidez não leva em conta dimensões outras, também
relevantes, no plano das questões sociais e psicológicas. Desse modo, o
papel de gênero se apresenta como uma expressão pública dessa
identidade.
O atestado do nascimento é, dessa forma, um registro do ingresso da
pessoa no universo jurídico, disposto a conferir segurança e estabilidade
nas relações jurídicas. O registro civil exerce, nesse plano, uma chancela
normalmente imodificável, que marca o indivíduo em sua vida social. É um
sinal uniforme e monolítico, incapaz de compreender a pluralidade
psicossomática das pessoas.
Entretanto, como os fatos acabam se impondo perante o Direito e a
realidade acaba desmentindo esses mesmos códigos, mudanças e
circunstâncias mais recentes têm contribuído para dissolver a “névoa de
hipocrisia” que encobre a negação de efeitos jurídicos à orientação sexual.
Tais transformações decorrem, dentre outras razões, da alteração da razão
de ser das relações familiares, que passam agora a dar origem a um berço
de afeto, solidariedade e mútua constituição de uma histórica em comum.
A partir da releitura da definição e dos fundamentos da família e, para tanto
houve preciosa contribuição do texto constitucional, os demais desdobramentos de
171
BRAUNER, 2004, p. 268.
172
Com referência ao direito à livre orientação sexual, Ingo Wolfgang Sarlet enfatiza: [...] reportando-se
expressamente à conexão entre a dignidade da pessoa humana e o princípio da igualdade, já assume
ares de consenso, também entre nós, o reconhecimento de um direito à livre orientação sexual, do que
dão conta, em caráter meramente ilustrativo, a proteção jurídica das uniões homoafetivas e todas as
conseqüências que a doutrina e jurisprudência já têm extraído. (SARLET, 2004b, p. 105).
173
FACHIN, Luiz Edson. Aspectos jurídicos da união de pessoas de mesmo sexo. In: BARRETO, Vicente
(Org.). A nova família: problemas e perspectivas. Rio de Janeiro: Renovar, 1997, p. 117-118.
105
formas familiares, considerando-se a união estável e a família monoparental,
passaram a receber a devida tutela jurisdicional. Com esta mudança, a ciência
jurídica conferiu um alcance significativo às relações humanas, mas ainda necessita
abrir caminhos e oferecer ampla proteção às uniões entre pessoas do mesmo sexo,
posto que realidade fática carecedora de normatividade.
Na área do Direito brasileiro, a Constituição Federal Brasileira de 1988
assegura a liberdade, a igualdade sem distinção de qualquer natureza (artigo 5˚ ), a
tutela da dignidade humana e a inviolabilidade da intimidade e da vida privada. Com
a garantia do exercício desses direitos, por via reflexa deve ser assegurada, como
um direito personalíssimo, a liberdade na composição da identidade sexual do ser
humano e de seus vínculos familiares.
A igualdade constitui direito fundamental, constitucionalmente garantido e,
como formula Maria Berenice Dias
174
, a igualdade é almejada por todos e em todos
os tempos:
Está proclamada nas Declarações de Direitos Humanos no mundo
ocidental. No Brasil, é consagrada no limiar do ordenamento jurídico, pela
Constituição Federal, que assegura, já em seu preâmbulo, o exercício dos
direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o
desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma
sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos [...]. Erigido o respeito à
dignidade da pessoa humana como cânone fundamental de um Estado
Democrático de Direito, é a igualdade o princípio mais reiteradamente
invocado na nossa Carta Magna. De modo expresso, é outorgada
específica proteção a todos, vedando discriminação e preconceitos por
motivos de origem, raça, sexo ou idade. Também ao elencar os direitos e
garantias fundamentais, é a igualdade a primeira referência da Constituição
Federal. O artigo 5º preceitua o seguinte: “Todos são iguais perante a lei,
sem distinção de qualquer natureza [...].
O sistema jurídico assegura tratamento isonômico e proteção igualitária a
todos os cidadãos no âmbito social. Omitindo-se o legislador em regular
situações dignas de tutela, as lacunas precisam ser colmatadas pelo
Judiciário, que não pode negar proteção jurídica nem deixar de assegurar
direitos sob a alegação de ausência de lei.
Precisa assumir a justiça sua função criadora do direito. Na presença de
vazios legais, a plenitude do reconhecimento de direitos é implementada
pela identificação da semelhança significativa, ou seja, por meio da
analogia, que se funda no princípio da igualdade. Outro não deve ser o
critério a ser utilizado para reconhecer direitos a segmentos alvos da
exclusão social. As uniões entre pessoas do mesmo sexo, ainda que não
tuteladas expressamente nem na Constituição Federal nem na legislação
infraconstitucional, existem e fazem jus à tutela jurídica.
174
DIAS, Maria Berenice. A igualdade desigual. In: FARIAS, Cristiano Chaves de (Coord.). Temas atuais
de direito e processo de família. Porto Alegre: Lumen Juris, 2004b, p. 67.
106
No plano do Direito de Família brasileiro, a exigência da produção de
normas jurídicas para o tratamento e a tutela das relações homossexuais causa
muitas discussões em face da permanência de uma visão conservadora, que não
cede espaço para o pleno reconhecimento dessas uniões no ambiente jurídico. Em
que pese esse pensamento, a tendência é no sentido de a jurisprudência e a
doutrina avançarem bastante na atribuição de efeitos jurídicos e na consideração
desses relacionamentos como forma de realidade familiar.
O texto constitucional previu, explicitamente, as entidades familiares
fundadas no casamento, na união estável e na monoparentalidade. Ocorre que
diante do pluralismo na construção dos vínculos familiares, surge um
questionamento: as relações entre pessoas do mesmo sexo estariam excluídas da
ordem jurídica, sendo necessária uma proposta de emenda constitucional para
assegurar a tutela das uniões homoafetivas, ou por outro lado, configurando-se a
convivência pública, contínua, duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir
família, observados os deveres de respeito, lealdade e mútua assistência, a
semelhança das demais formas de famílias, estariam essas relações compreendidas
pela expressão “entidade familiar”?
Tradicionalmente, o modelo familiar assentado no matrimônio recebia a
cobertura do manto da legitimidade jurídica. Entretanto, com a normativa
constitucional, outras formas de entidades familiares passaram a ser abrangidas
pelo ordenamento jurídico, conferindo-se primazia ao conteúdo ou à substância das
relações familiares. Dessa forma, as famílias deverão receber a tutela constitucional
quando se consubstanciarem em núcleos de comunhão de vida, assistência moral e
material, respeito, afeto e companheirismo entre os componentes, independentemente
da composição apresentar indivíduos de sexos diferentes.
Advogando a inclusão das uniões entre pessoas do mesmo sexo no elenco
constitucional de entidades familiares, Maria Celina Bodin de Moraes
175
esclarece:
[...] se a família, através da adequada interpretação dos dispositivos
constitucionais, passa a ser entendida principalmente como ‘instrumento’,
175
MORAES, 2000, p. 89-112, p. 108.
107
não há como se recusar tutela a outras formas de vínculos afetivos que,
embora não previstos expressamente pelo legislador constituinte, se
encontram identificados com a mesma ratio, com os mesmo fundamentos e
com a mesma função. Mais do que isto: a admissibilidade de outras formas
de entidades ‘familiares’ torna-se obrigatória quando se considera seja a
proibição de qualquer forma de discriminação entre as pessoas,
especialmente aquela decorrente de sua orientação sexual – a qual se
configura como um direito personalíssimo -, a razão maior de que o
legislador constituinte se mostrou profundamente compromissado com a
dignidade da pessoa humana (artigo 1˚, inciso III, CF), tutelando-a onde
quer que sua personalidade melhor se desenvolva. De fato, a Constituição
brasileira inspirou-se no princípio solidarista, sobre o qual funda a estrutura
da República, significando dizer que a dignidade da pessoa é preexistente e
antecedente a qualquer forma de organização social.
Na análise das novas realidades, constata-se que as entidades familiares
identificadas em nosso ordenamento jurídico não constituem as formas suficientes
para atender a demanda social carecedora de proteção.
Há juristas que pesquisam as possibilidades de estudos comparativos das
uniões homossexuais e a comunidade familiar decorrente do casamento e da união
estável.
176
176
Com relação aos estudos comparativos, Roger Raupp Rios esclarece:
A compatibilidade das uniões homossexuais à comunidade familiar derivada do casamento está
descartada – pois nesta espécie de união a distinção dos sexos é pressuposta de forma unânime pela
doutrina e pela jurisprudência -, restando analisar a pertinência das uniões de pessoas do mesmo sexo à
chamada “união estável”. O texto constitucional define a união estável como entidade familiar formada
entre homem e mulher, numa redação que, de início, sugere a exclusão das uniões homossexuais de seu
âmbito, por faltar o pressuposto da distinção de sexos. Diante desta dificuldade, têm sido ofertadas
basicamente duas ordens de respostas. A primeira inclui as uniões homossexuais dentre do âmbito da
união estável, por intermédio de uma interpretação extensiva dos direitos fundamentais (principalmente o
direito de igualdade) e mediante o recurso da analogia; a segunda sustenta a inconstitucionalidade da
própria norma do artigo 226, § 3º, ao restringir o conceito, por violação aos princípios da dignidade humana
e da igualdade. A tese que sustenta a aplicação analógica do instituto da união estável às uniões
homossexuais afasta, primeiramente, a existência de óbice constitucional ao reconhecimento destas
uniões na citada espécie de comunidade familiar. Na ausência de proibição expressa ou de previsão
positiva, postula a interpretação da Constituição de acordo com o cânone hermenêutico da “unidade da
Constituição”, segundo o qual uma interpretação adequada do texto constitucional exige a consideração
das demais normas constitucionais, de modo que sejam evitadas conclusões contraditórias. A equiparação
das uniões homossexuais à união estável, pela via analógica, implica a atribuição de um regime normativo
destinado originariamente a situação diversa das uniões homossexuais, qual seja, a comunidade familiar
formada pela união estável entre um homem e uma mulher. A semelhança relevante aqui presente,
autorizadora da analogia, seria a ausência de vínculos formais e a presença substancial de uma
comunidade de vida afetiva e sexual duradoura e permanente entre os companheiros de mesmo sexo,
assim como ocorre entre os companheiros de sexos opostos. O argumento, sem dúvida, avança no sentido
da concretização da Constituição, pois confere uma unidade de sentido à Constituição diante da realidade
histórica, fazendo concorrer com os princípios informativos do Direito de Família outros princípios
constitucionais, dentre os quais se destaca o princípio isonômico e a decorrente proibição de discriminação
por motivo de sexo e de orientação sexual.
Todavia, se for tomada como ponto de partida para a resolução deste problema jurídico-constitucional a
tarefa de concretização da Constituição, pode-se prescindir do recurso analógico para o reconhecimento
da natureza familiar das uniões homossexuais, pois estas em si mesmas atendem aos citados princípios
da dignidade humana e da igualdade presentes na Constituição. Além disso, a analogia neste caso
pressupõe a semelhança normativa essencial entre a união estável e as uniões homossexuais. Do ponto
108
A aplicação analógica das regras atinentes à união estável para as hipóteses
de uniões homossexuais tem o nobre objetivo de reconhecer a índole familiar nestas
relações, desde que promovam as finalidades valorizadas pelo Direito de Família e
contempladas na Constituição Federal. Quando houver o atendimento dos requisitos
exigidos pelo ordenamento jurídico não há como negar a inserção das relações
homoafetivas no âmbito da família e a independência relativamente ao modelo
familiar da união estável.
Exemplificativamente, pode-se afirmar que caso sobreviesse uma proposta
de emenda constitucional para o fim de retirar a união estável da normativa
constitucional, muito embora a ocorrência de tal fato, nada impediria que a
jurisprudência e a doutrina persistissem na atribuição de direitos e deveres aos
partícipes das uniões homossexuais e das uniões estáveis. Assim, constata-se que
são entidades familiares distintas e autônomas, que comungam de semelhantes
características presentes na realidade da família brasileira.
Diante dessas circunstâncias e tendo-se em vista a inexistência de
regulamentação específica das relações entre pessoas de mesmo sexo, há certa
urgência no estabelecimento de normas destinadas à tutela e à disciplina dessas
formas de relações de coexistência.
No cenário brasileiro, em conseqüência da inexistência de legislação
específica para a disciplina das uniões homoafetivas, a jurisprudência tem
desempenhado uma função relevante no enfrentamento criativo e compromissado
destas questões, promovendo o reconhecimento das relações entre pessoas do
mesmo sexo como entidades familiares e outorgando aos companheiros
homossexuais direitos iguais aos dos companheiros heterossexuais.
de vista aqui defendido, a semelhança relevante entre estas duas situações é a pertinência ao âmbito do
Direito de Família, tendo presente o atual estágio de compreensão do fenômeno familiar pelo ordenamento
jurídico, onde prevalece a proteção da realidade diante do culto à forma. Esta semelhança, frise-se, não
decorre de analogia das uniões homossexuais com a união estável, mas da própria dinâmica das uniões
homossexuais e de sua pertinência à configuração jurídico-constitucional do conceito amplo de família.
Assentada esta nota essencial comum às duas hipóteses, a união estável distingue-se das uniões
homossexuais precisamente em virtude do requisito da diversidade de sexual entre os companheiros,
expressamente consignado no texto do artigo 226, § 3º, bem como na determinação constitucional se
facilitar sua conversão em casamento, aspecto que também afasta as uniões homossexuais da união
estável. RIOS, 2001, p. 121-123.
109
Dentre inúmeros outros julgados do Tribunal de Justiça do Estado do Rio
Grande do Sul
177
sobre relacionamentos homossexuais
178
, vale colacionar, a título
meramente exemplificativo, os seguintes:
RELAÇÃO HOMOERÓTICA. UNIÃO ESTÁVEL. APLICAÇÃO DOS
PRINCIPIOS CONSTITUCIONAIS DA DIGNIDADE HUMANA E DA
IGUALDADE. ANALOGIA. PRINCÍPIOS GERAIS DO DIREITO. VISÃO
ABRANGENTE DAS ENTIDADES FAMILIARES. REGRAS DE INCLUSÃO.
PARTILHA DE BENS. REGIME DA COMUNHÃO PARCIAL. INTELIGÊNCIA
DOS ARTIGOS 1.723, 1.725 E 1.658 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002.
PRECEDENTES JURISPRUDENCIAIS. Constitui união estável a relação
fática entre duas mulheres, configurada na convivência pública, contínua,
duradoura e estabelecida com o objetivo de constituir verdadeira família,
observados os deveres de lealdade, respeito e mútua assistência.
Superados os preconceitos que afetam ditas realidades, aplicam-se os
princípios constitucionais da dignidade da pessoa, da igualdade, além da
analogia e dos princípios gerais do direito, além da contemporânea
modelagem das entidades familiares em sistema aberto argamassado em
regras de inclusão. Assim, definida a natureza do convívio, opera-se a
177
As jurisprudências colacionadas representam o entendimento majoritário em Direito de Família no
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, principalmente na 7ª Câmara Cível.
178
No Supremo Tribunal Federal há relevante decisão acerca das relações homoafetivas:
EMENTA: UNIÃO CIVIL ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO. ALTA RELEVÂNCIA SOCIAL E
JURÍDICO-CONSTITUCIONAL DA QUESTÃO PERTINENTE ÀS UNIÕES HOMOAFETIVAS.
PRETENDIDA QUALIFICAÇÃO DE TAIS UNIÕES COMO ENTIDADES FAMILIARES. DOUTRINA.
ALEGADA INCONSTITUCIONALIDADE DO ART. 1º DA LEI Nº 9.278/96. NORMA LEGAL
DERROGADA PELA SUPERVENIÊNCIA DO ART. 1.723 DO NOVO CÓDIGO CIVIL (2002), QUE NÃO
FOI OBJETO DE IMPUGNAÇÃO NESTA SEDE DE CONTROLE ABSTRATO. INVIABILIDADE, POR
TAL RAZÃO, DA AÇÃO DIRETA. IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA, DE OUTRO LADO, DE SE
PROCEDER À FISCALIZAÇÃO NORMATIVA ABSTRATA DE NORMAS CONSTITUCIONAIS
ORIGINÁRIAS (CF, ART. 226, § 3º, NO CASO). DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA (STF).
NECESSIDADE, CONTUDO, DE SE DISCUTIR O TEMA DAS UNIÕES ESTÁVEIS HOMOAFETIVAS,
INCLUSIVE PARA EFEITO DE SUA SUBSUNÇÃO AO CONCEITO DE ENTIDADE FAMILIAR:
MATÉRIA A SER VEICULADA EM SEDE DE ADPF.
STF. ADI 3300 MC/DF – Distrito Federal. Medida Cautelar Na Ação Direta De Inconstitucionalidade.
Ministro: Celso De Melo. Data Do Julgamento: 03/02/2006. Data Da Publicação: DJ. 09/02/2006. RDDP
N.º 37, 2006, p. 174-176.
Na decisão supramencionada pode ser extraído importante trecho com o seguinte sentido: [...] Não
obstante as razões de ordem estritamente formal, que tornam insuscetível de conhecimento a presente
ação direta, mas considerando a extrema importância jurídico-social da matéria - cuja apreciação talvez
pudesse viabilizar-se em sede de argüição de descumprimento de preceito fundamental -, cumpre
registrar, quanto à tese sustentada pelas entidades autoras, que o magistério da doutrina, apoiando-se
em valiosa hermenêutica construtiva, utilizando-se da analogia e invocando princípios fundamentais
(como os da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação, da igualdade, do
pluralismo, da intimidade, da não-discriminação e da busca da felicidade), tem revelado admirável
percepção do alto significado de que se revestem tanto o reconhecimento do direito personalíssimo à
orientação sexual, de um lado, quanto a proclamação da legitimidade ético-jurídica da união homoafetiva
como entidade familiar, de outro, em ordem a permitir que se extraiam, em favor de parceiros
homossexuais, relevantes conseqüências no plano do Direito e na esfera das relações sociais. Essa
visão do tema, que tem a virtude de superar, neste início de terceiro milênio, incompreensíveis
resistências sociais e institucionais fundadas em fórmulas preconceituosas inadmissíveis, vem sendo
externada, como anteriormente enfatizado, por eminentes autores, cuja análise de tão significativas
questões tem colocado em evidência, com absoluta correção, a necessidade de se atribuir verdadeiro
estatuto de cidadania às uniões estáveis homoafetivas. [...].
110
partilha dos bens segundo o regime da comunhão parcial. Apelações
desprovidas.
179
UNIÃO ESTÁVEL HOMOAFETIVA. DIREITO SUCESSÓRIO. ANALOGIA.
Incontrovertida a convivência duradoura, pública e contínua entre parceiros
do mesmo sexo, impositivo que seja reconhecida a existência de uma união
estável, assegurando ao companheiro sobrevivente a totalidade do acervo
hereditário, afastada a declaração de vacância da herança. A omissão do
constituinte e do legislador em reconhecer efeitos jurídicos às uniões
homoafetivas impõe que a Justiça colmate a lacuna legal fazendo uso da
analogia. O elo afetivo que identifica as entidades familiares impõe seja feita
analogia com a união estável, que se encontra devidamente regulamentada.
Embargos infringentes acolhidos por maioria.
180
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO HOMOAFETIVA. RECONHECIMENTO.
PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E DA IGUALDADE. É
de ser reconhecida judicialmente a união homoafetiva mantida entre dois
homens de forma pública e ininterrupta pelo período de nove anos. A
homossexualidade é um fato social que se perpetuou através dos séculos,
não podendo o judiciário se olvidar de prestar a tutela jurisdicional a uniões
que, enlaçadas pelo afeto, assumem feição de família. A união pelo amor é
que caracteriza a entidade familiar e não apenas a diversidade de gêneros.
E, antes disso, é o afeto a mais pura exteriorização do ser e do viver, de
forma que a marginalização das relações mantidas entre pessoas do
mesmo sexo constitui forma de privação do direito à vida, bem como viola
os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade. AUSÊNCIA
DE REGRAMENTO ESPECÍFICO. UTILIZAÇÃO DE ANALOGIA E DOS
PRINCÍPIOS GERAIS DE DIREITO. A ausência de lei específica sobre o
tema não implica ausência de direito, pois existem mecanismos para suprir
as lacunas legais, aplicando-se aos casos concretos a analogia, os
costumes e os princípios gerais de direito, em consonância com os
preceitos constitucionais (art. 4º da LICC). Negado provimento ao apelo,
vencido o Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. (SEGREDO DE
JUSTIÇA)
181
AÇÃO DECLARATÓRIA. RECONHECIMENTO. UNIÃO ESTÁVEL. CASAL
HOMOSSEXUAL. PREENCHIMENTO DOS REQUISITOS. CABIMENTO. A
ação declaratória é o instrumento jurídico adequado para reconhecimento
da existência de união estável entre parceria homoerótica, desde que
afirmados e provados os pressupostos próprios daquela entidade familiar. A
sociedade moderna, mercê da evolução dos costumes e apanágio das
decisões judiciais, sintoniza com a intenção dos casais homoafetivos em
abandonar os nichos da segregação e repúdio, em busca da normalização
de seu estado e igualdade às parelhas matrimoniadas. EMBARGOS
INFRINGENTES ACOLHIDOS, POR MAIORIA. (SEGREDO DE
JUSTIÇA)
182
Frente à visibilidade e aceitação de que uniões homossexuais possam
fundar-se em laços de afeto, mútua assistência e comunhão de interesses, impõe-se
179
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Sétima Câmara Cível, Apelação Cível nº 70005488812,
Relator: José Carlos Teixeira Giorgis. Julgado em: 25 jun. 2003.
180
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. 4º Grupo Cível. Embargos Infringentes nº 70003967676.
Relator: Desª Maria Berenice Dias. Julgado em: 9 maio 2003.
181
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Sétima Câmara Cível. Apelação Cível Nº 70009550070.
Relator: Maria Berenice Dias. Julgado em: 17 nov. 2004.
182
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Quarto Grupo de Câmaras Cíveis. Embargos Infringentes
Nº 70011120573. Relator: José Carlos Teixeira Giorgis. Julgado em: 10 jun. 2005.
111
a reavaliação de conceitos de Direito de Família e o reexame dos critérios
caracterizadores das relações familiares, para que sejam acolhidas e tuteladas pelo
ordenamento jurídico brasileiro.
Com efeito, considerando-se o fato de o texto constitucional ter elencado as
modalidades de entidades familiares sujeitas à especial proteção do Estado e o
Código Civil Brasileiro de 2002, relativamente ao casamento e à união estável entre
homem e mulher, ter estatuído disciplina peculiar, percebe-se que as relações
homoafetivas, ainda à margem da legislação, devem receber um regramento
específico, sem descurar que esse tema se sujeita à profunda reflexão.
No momento em que a união entre duas pessoas de mesmo sexo constitui-
se em uma convivência pública, duradoura, contínua e sob o fundamento de uma
comunhão de afeto, de solidariedade, de mútua assistência, configura-se um
ambiente familiar semelhante ao casamento e à união estável.
Assim, havendo o projeto e a constituição de vida em comum baseada em
laços recíprocos de afetividade, comunhão de esforços e divisão de despesas não
há como negar a produção de efeitos jurídicos à união homossexual.
No espaço de variadas formas de convivência, impõe-se a qualificação
jurídica de família, sem subordinação ao esquema estrutural do casamento ou da
união estável, àquelas uniões que se constróem a partir de pressupostos
relacionados à presença do afeto, da durabilidade e estabilidade do relacionamento
e da comunhão plena de vida.
A contribuição de Roger Raupp Rios
183
é no sentido de que: “[...] as uniões
homossexuais apresentam todas as notas distintivas do fenômeno humano, ora
juridicizado pelo Direito de Família, portanto, sua concretização reclama a adequada
intervenção legislativa, criadora de um regime jurídico peculiar”.
183
RIOS, 2001, p. 127.
112
No que tange às propostas para o tratamento específico das uniões
homossexuais, em 26 de outubro de 1995, o Projeto de Lei n.º 1.151 de 1995, foi
apresentado pela então Deputada Federal Marta Suplicy. O Projeto de Lei almejava
disciplinar “a união civil entre pessoas do mesmo sexo”.
Em 10 de dezembro de 1996 foi apresentado um Substitutivo ao Projeto de
Lei n.º 1.151, onde houve a mudança da redação do Projeto originário. Transcrever-
se-ão alguns dos dispositivos com o fim de visualizar a regulamentação deste tema.
Assim, no artigo 1º assegurava-se a duas pessoas do mesmo sexo o
reconhecimento de sua “parceria civil registrada”, objetivando, principalmente, a
salvaguarda de seus direitos de propriedade e de sucessão hereditária. De acordo
com o projeto, seria reconhecida, civilmente, a união entre pessoas do mesmo sexo
e autorizada elaboração de um contrato escrito, com a possibilidade de ser
registrado em livro próprio no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais (art.
2º).
184
Essa parceria constituia-se mediante registro em livro próprio nos Cartórios
de Registro Civil de Pessoas Naturais (art. 2º), com a apresentação dos documentos
dos interessados enumerados no § 1º: declaração de serem solteiros, viúvos,
divorciados; prova da capacidade civil absoluta, por meio de certidão de idade ou
prova equivalente; e escritura pública do contrato de parceria civil. O § 2º incluído no
substitutivo repetia a necessidade de que se registrasse a parceria, conforme caput
do mesmo artigo. O § 3º estabelecia a impossibilidade de alteração do estado civil
dos contraentes, na vigência do contrato de parceria.
Na análise dos dispositivos do substitutivo ao Projeto, Álvaro Villaça
Azevedo
185
assevera:
184
Art. 2º. A parceria civil registrada constitui-se mediante escritura pública e respectivo registro em livro
próprio, nos Cartórios de Registro Civil de Pessoas Naturais na forma que segue.
185
O autor admite que o registro desses contratos é salutar e de alta relevância na salvaguarda de direito
de terceiros; todavia, sem que se crie novo estado civil, pois, daí, teremos estado civil de solteiro, de
casado, de divorciado e de parceiro civil. A criação de estado civil novo cria muitos problemas jurídicos à
sua desconstituição. A sugestão dada ao legislador seria admitir o registro do contrato de parceria entre
o mesmo sexo, mas tão-somente para valer contra terceiros. (AZEVEDO, Álvaro Villaça. Estatuto da
família de fato. São Paulo: Jurídica Brasileira, 2001, p. 481-482).
113
Esse § 3º é de extremo rigor, porque corrobora que o pretendido registro,
em livro próprio no Cartório de Registro Civil, mencionado no caput do
artigo, não é só para valer contra terceiros, mas cria, perigosamente, um
novo estado civil, que não pode ser alterado sem a extinção do contrato de
parceria civil registrada. Esse estado civil nem os conviventes possuem, na
união estável, que é reconhecida constitucionalmente como forma de
constituição de família. Vê-se, claramente, que, existindo constituição desse
estado civil de parceiro ou de parceria, sua desconstituição judicial pode
levar muito tempo, sobrecarregando o Poder Judiciário de ações e de
processos dessa ordem. Mesmo em caso de morte do parceiro, deverá
existir processo judicial, para que, seguramente, se constate esse fato, para
que possa ser, por decisão do juiz, desconstituído o estado civil, junto ao
competente Registro.
O artigo 3º do Substitutivo e do Projeto dava caráter solene ao contrato de
parceria registrada, o qual deveria ser lavrado em Ofício de Notas, pactuado,
livremente, mas devendo versar sobre “disposições patrimoniais, deveres,
impedimentos e obrigações mútuas”.
Álvaro Villaça Azevedo menciona que no artigo 4º, inciso I e II do Projeto
originário havia previsão de extinção por morte de um dos parceiros ou por decreto
judicial. Esta decisão, certamente, ocorreria em caso de rescisão desse contrato,
com descumprimento culposo de qualquer de suas cláusulas ou de dispositivos
legais, atinentes a essa união, que é a infração contratual, prevista no inciso I do art.
5º do Substitutivo e do Projeto, ou, ainda, em caso de denúncia (resilição unilateral),
quando a um dos parceiros não mais interessasse a convivência. Neste último caso,
quando houvesse alegação, por um dos parceiros, de desinteresse na continuidade
da união, conforme previsto no inciso II do art. 5º do Substitutivo e do Projeto. O
substitutivo manteve os incisos do Projeto e incluiu, ainda, um terceiro, para
possibilitar, também, essa extinção contratual, por consentimento das partes, desde
que homologado pelo juiz. Aqui, então, prevista a figura da resilição bilateral ou
distrato, em que os parceiros manifestariam o desejo em promover a separação,
perante o juiz, que homologaria esse acordo escrito, verificando se foram cumpridos
os requisitos legais e contratuais.
186
186
Mesmo incluindo o aludido inciso III em seu art. 4º, o Substitutivo mantém o § 1º do art. 5º do Projeto
originário, agora como parágrafo único de seu artigo 5º, que, de modo repetitivo, assegura o
requerimento das partes, consensualmente, amigavelmente, pleiteando a homologação judicial da
extinção de sua parceria registrada. Assim, o Substitutivo possibilita a referida extinção contratual por
morte ou por via judicial, litigiosa ou amigável. (AZEVEDO, 2001, p. 483).
114
Efeito decorrente da extinção da parceria, extraído do artigo 6.º, seria a
partilha dos bens dos parceiros. A partilha deveria obedecer às cláusulas contratuais
inseridas quando da instituição da parceria. Haveria condomínio em relação aos
bens adquiridos, caso não venha mencionada a cota em contrato. Estipulada a
proporção em contrato escrito ou no próprio documento, esta prevaleceria.
O artigo 9º do Substitutivo (art. 10 do Projeto) instituiria, como bem de
família, o imóvel próprio e comum dos contratantes de parceria civil registrada,
tornando-o impenhorável, nos moldes da Lei n.º 8.009/90. O artigo 10 inscreveria o
parceiro como beneficiário do Regime Geral de Previdência Social, como
dependente de seu parceiro segurado, desde que esteja registrado o contrato de
parceria civil; extinto este, cancelaria-se, automaticamente, essa inscrição de
beneficiário.
Da mesma forma, o art. 11, desde que comprovada a parceria civil, o
parceiro seria considerado beneficiário da pensão prevista no inciso I do art. 217 da
Lei n. º 8.112, de 11 de dezembro de 1990, que disciplina o regime jurídico dos
servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas
federais.
187
O Projeto de Lei n.º 1.151/95 com as substituições, que visava disciplinar a
união civil entre pessoas de mesmo sexo, foi retirado de pauta em 31/05/2001.
Em 1999, foi apresentada a Proposta de Emenda à Constituição n.º 67, de
autoria do Deputado Federal Marcos Rolim, dispondo sobre a alteração do artigo 3º,
inciso IV, e do artigo 7º, inciso XXX, da Constituição Federal de 1988.
188
Os
dispositivos teriam a seguinte redação:
Artigo 3º, IV – promover o bem de todos sem preconceito de origem, raça,
187
AZEVEDO, 2001, p. 486-487.
188
A redação dos artigos 3º, inciso IV e 7º, inciso XXX, anterior à proposta de Emenda Constitucional n.º
67/99, é a seguinte:
Art. 3º, IV – promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer
outras formas de discriminação.
Art. 7º, XXX – proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por
motivo de sexo, idade, cor ou estado civil.
115
sexo, orientação sexual, crença religiosa, cor, idade e quaisquer outras
formas negativas, de discriminação.
Artigo 7º, inciso XXX – proibição de diferença de salários, de exercício de
funções e de critério de admissão por motivo de sexo, orientação sexual,
crença religiosa, idade, cor ou estado civil.
Em 31/01/2003, a Proposta de Emenda à Constituição n.º 67/99 foi
arquivada nos termos do Artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos
Deputados.
189
No que concerne à competência, as demandas envolvendo a identificação
de entidade familiar nas relações homoafetivas tramitavam nas varas cíveis, sendo
reconhecidas como sociedades de fato e submetidas à esfera do Direito das
Obrigações para a obtenção da tutela dos efeitos jurídicos.
Entretanto, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, reconheceu a
competência das varas de família para julgar as ações decorrentes de
relacionamentos homossexuais, como podemos observar:
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. RELAÇÃO ENTRE PESSOAS DO
MESMO SEXO. ALEGAÇÃO DE INCOMPETÊNCIA DA VARA DE FAMÍLIA
E DE IMPOSSIBILIDADE JURÍDICA DO PEDIDO. INOCORRÊNCIA DE
NULIDADE DA SENTENÇA. PRECEDENTES. 1. Não ocorre carência de
fundamentação na decisão que deixa de se referir expressamente ao texto
de lei que subsidiou a conclusão esposada pelo julgador quanto à decisão
do caso. 2. Está firmado em vasta jurisprudência o entendimento acerca da
competência das Varas de Família para processar as ações em que se
discutem os efeitos jurídicos das uniões formadas por pessoas do mesmo
sexo. 3. Não há falar em impossibilidade jurídica do pedido, pois a
Constituição Federal assegura a todos os cidadãos a igualdade de direitos e
o sistema jurídico encaminha o julgador ao uso da analogia e dos princípios
gerais para decidir situações fáticas que se formam pela transformação dos
costumes sociais. 4. Não obstante a nomenclatura adotada para a ação, é
incontroverso que o autor relatou a existência de uma vida familiar com o
189
Regimento Interno da Câmara dos Deputados - Art. 105. Finda a legislatura, arquivar-se-ão todas as
proposições que no seu decurso tenham sido submetidas à deliberação da Câmara e ainda se
encontrem em tramitação, bem como as que abram crédito suplementar, com pareceres ou sem eles,
salvo as:
I - com pareceres favoráveis de todas as Comissões;
II - já aprovadas em turno único, em primeiro ou segundo turno;
III - que tenham tramitado pelo Senado, ou dele originárias;
IV - de iniciativa popular;
V - de iniciativa de outro Poder ou do Procurador-Geral da República.
Parágrafo único. A proposição poderá ser desarquivada mediante requerimento do Autor, ou Autores,
dentro dos primeiros cento e oitenta dias da primeira sessão legislativa ordinária da legislatura
subseqüente, retomando a tramitação desde o estágio em que se encontrava. (BRASIL. Câmara dos
Deputados. Regimento interno. Disponível em: <http://www.camara.gov.br> Acesso em: 12 fev. 2007).
116
companheiro homossexual. 5. No entanto, embora comprovada a relação
afetiva entretida pelo par, não há prova suficiente da constituição de uma
entidade familiar, nos moldes constitucionalmente tutelados. Por igual, não
há falar em sociedade de fato, por não demonstrada contribuição à
formação do patrimônio, nos moldes da Súmula 380 do STF. AFASTADAS
AS PRELIMINARES, NEGARAM PROVIMENTO, À UNANIMIDADE.
190
As questões que envolvem partilha do patrimônio adquirido em comum por
indivíduos do mesmo sexo
191
, estão sendo decididas pelo Tribunal de Justiça do
Estado do Rio Grande do Sul, no sentido de reconhecer a proteção jurídica
patrimonial aos parceiros de mesmo sexo.
RELACIONAMENTO HOMOSSEXUAL. SOCIEDADE DE FATO. PARTILHA
DE BEM IMÓVEL. 1. Cuidando-se de união homossexual e que constitui
sociedade de fato, é possível partilhar o proveito econômico obtido pelo
esforço comum do par. 2. Tendo as partes adquirido bem imóvel com o
esforço comum delas, cabível sua divisão igualitária, devendo ser deduzido,
no entanto, os valores pagos pela demandada por conta do negócio que
entabularam relativamente à venda do bem. Recurso provido em parte, por
maioria.
192
APELAÇÃO. UNIÃO HOMOSSEXUAL. RECONHECIMENTO DE UNIÃO
ESTÁVEL. PARTILHA. Embora reconhecida na parte dispositiva da
sentença a existência de sociedade de fato, os elementos probatórios dos
autos indicam a existência de união estável. PARTILHA. A união
homossexual merece proteção jurídica, porquanto traz em sua essência o
afeto entre dois seres humanos com o intuito relacional. Caracterizada a
união estável, impõe-se a partilha igualitária dos bens adquiridos na
constância da união, prescindindo da demonstração de colaboração efetiva
de um dos conviventes, somente exigidos nas hipóteses de sociedade de
fato. NEGARAM PROVIMENTO. (Segredo de Justiça)
193
No primeiro caso, cuida-se de sociedade de fato, onde não restou
reconhecido o status familiar, em razão do que o patrimônio é partilhado com base
em sociedade de fato, fundada na vedação ao enriquecimento ilícito, de acordo com
190
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Sétima Câmara Cível. Apelação Cível Nº 70016239949.
Relator: Luiz Felipe Brasil Santos. Julgado em: 20 dez. 2006.
191
O tema do relacionamento entre pessoas de mesmo sexo ainda é terreno pouco explorado nos
Tribunais Superiores. Como se pode observar, no Superior Tribunal de Justiça o entendimento acerca da
união homossexual é o seguinte:
RELACIONAMENTO MANTIDO ENTRE HOMOSSEXUAIS. SOCIEDADE DE FATO. DISSOLUÇÃO DA
SOCIEDADE. PARTILHA DE BENS. PROVA. ESFORÇO COMUM.
Entende a jurisprudência desta Corte que a união entre pessoas do mesmo sexo configura sociedade de
fato, cuja partilha de bens exige a prova do esforço comum na aquisição do patrimônio amealhado.
STJ. Quarta Turma. REsp. 648763/RS; Recurso Especial 2004/0042337-7. Ministro: Cesar Asfor Rocha.
Data do julgamento: 07.12.2006, Data da publicação: DJ. 16.04.2007, p. 204.
192
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Sétima Câmara Cível. Apelação Cível Nº 70015674195.
Relator: Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves. Julgado em: 27 set. 2006.
193
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Oitava Câmara Cível. Apelação Cível Nº 70006542377.
Relator: Rui Portanova. Julgado em: 11 set. 2003.
117
o aporte econômico individual. No segundo caso, a decisão trilha no caminho do
reconhecimento dos requisitos caracterizadores de família, pelo que se aplica o
regime da partilha igualitária dos bens (meação), independentemente da
contribuição econômica dos companheiros.
O ser humano, quando não pode prover suas necessidades, depende de
amparo de seus semelhantes para a sobrevivência. Assim, os alimentos constituem-
se em prestação de caráter assistencial e devem levar em conta a necessidade de
quem reclama e a capacidade da pessoa obrigada (CC, artigo 1.694, § 1º).
Os alimentos podem ser fixados na ação de alimentos em decorrência do
parentesco, entre pais e filhos e parentes em linha e colateral até 2º grau (CC, artigo
1.694, combinado com os artigos 1.696 e 1.697; Lei n.º 5.478/68, artigo 4º); na ação
de separação judicial, divórcio, de anulação de casamento e de dissolução da união
estável, reciprocamente aos cônjuges ou conviventes e aos filhos (CC, artigo 1.694,
combinado com os artigos 1.703 e 1.704); e na ação de reparação para ressarcir a
vítima por ato ilícito (CC, artigos 948, inciso II, e 950).
Com efeito, na esfera das relações entre pessoas do mesmo sexo, o direito
a alimentos ainda é terreno pouco explorado, havendo o entendimento de que a
união homossexual, por inexistente expressa previsão legal no Direito de Família,
não geraria direito a alimentos, ressalvando-se somente a hipótese da existência de
um testamento com disposições nesse sentido. Ademais, não seria cabível a ação
de alimentos na dissolução do relacionamento homossexual, mesmo consensual,
restando aos parceiros socorrerem-se do direito das obrigações.
194
A propósito
dessa discussão, o tema ainda é campo fértil para construção de sustentações, no
sentido de que o reconhecimento dessas uniões como entidades familiares, fundado
no direito à igualdade e a vedação à discriminação, poderia ensejar demandas
postulando prestação alimentícia.
194
BRENER, Ana Cristina. As uniões homoafetivas e seus aspectos patrimoniais. In: MADALENO, Rolf
(Coord.). Ações de direito de família. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.220-221.
118
Com o fim de elucidar o conteúdo dos alimentos, Luiz Edson Fachin
195
refere:
Na exegese estrita da expressão “necessidades vitais” há uma idéia inexata
do juízo de necessidade. É vital sim sugerir o que nem sempre está no
conteúdo dos alimentos. Não é possível viver dignamente sem a educação,
mesmo que se possa sem ela subsistir. É reticente adjetivar a necessidade
sendo vital, pois há necessidades que são vitais para a sobrevivência, só
que não do ponto de vista biológico, mas que devem estar contidas, o
quanto possível, na prestação alimentícia. A educação, na formação e na
realização do indivíduo como ser social é fundamental, mesmo que não seja
vital no sentido estrito. Na direção legal, a referência é às necessidades, em
sentido amplo, como está no artigo 1.694 do CCB de 2002.
Quanto aos direito sucessórios, há rigorosa disciplina estatuída pelo Código
Civil Brasileiro de 2002. O chamamento dos sucessores é feito de acordo com uma
seqüência denominada ordem de vocação hereditária, prevista no artigo 1.829
196
, do
Código Civil. Na relação preferencial pela qual a lei chama determinadas pessoas à
sucessão hereditária não figura o parceiro homossexual, pois este, aos olhos da lei,
não possui condição de cônjuge e nem de companheiro.
Considerando-se sua fonte, a sucessão, além de legítima, pode ser
testamentária (artigo 1.786), decorrendo de disposições de última vontade, caso em
que há possibilidade de transmissão de herança ao parceiro homossexual, a título
de herdeiro testamentário ou legatário.
Deve-se lembrar que, no âmbito das relações entre pessoas de mesmo
sexo, uma questão vem suscitando muitas discussões: a adoção.
Para Maria Claudia Brauner
197
a “adoção de uma criança ou adolescente, ao
195
FACHIN, 2003, p. 286.
196
Art. 1.829 do Código Civil Brasileiro de 2002. A sucessão legítima defere-se na ordem seguinte:
I – aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o
falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.641); ou se,
no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares;
II – aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge;
III – ao cônjuge sobrevivente;
IV – aos colaterais.
197
BRAUNER, Maria Claudia Crespo; Azambuja, Maria Regina Fay de. A releitura da adoção sob a
perspectiva da doutrina da proteção integral à infância e adolescência. In: ANUÁRIO do Programa de
Pós-graduação em Direito. São Leopoldo: Unisinos, 2002, p. 149.
119
mesmo tempo em que nos põe em sintonia com um instituto extremamente atual,
delineado pelo Princípio da Doutrina da Proteção Integral à Criança e ao
Adolescente, nos remete a uma prática que já se fazia presente no início da história
das civilizações”.
Neste ponto, está em exame o instituto da adoção na perspectiva dos
indivíduos partícipes de relações homossexuais e que objetivam constituir uma
família e transmitir afeto a uma criança ou adolescente.
198
No estudo da proteção integral da criança e da proibição de discriminação
por orientação sexual, Roger Raupp Rios
199
conclui que:
198
Em comentário às inéditas decisões judiciais do Rio Grande do Sul, Enézio Silva refere: [...] estes
recentes avanços judiciais, possibilitando a adoção homoafetiva biparental, são o fruto do
amadurecimento científico em torno da homossexualidade, da derrocada de preconceitos infundados e
de inúmeras decisões judiciais que, em nosso país, já vinham deferindo adoções a uma só pessoa de
orientação afetivo-homossexual, mesmo esta não escondendo a sua orientação sexual ou afirmando que
convivia com outra pessoa do mesmo sexo no mesmo ambiente afetivo.
Constróem-se, progressivamente, neste sentido, as bases jurisprudencial e doutrinária para o Poder
Judiciário brasileiro fazer inteira justiça, com relação à realidade hipócrita que ainda tem permeado a
maioria dos Juizados da Infância e da Juventude do país: quando um casal homoafetivo preenche os
traços modernamente reconhecidos pelos familiaristas como caracterizadores de uma família e deseja
adotar, um(a) dos(as) homossexuais tem que escolher qual deles(as) formalizará o pedido de
constituição do vínculo definitivo da paternidade/maternidade para com o(s) menor(es), mediante
adoção, e os(as) dois(duas), após o deferimento, acabam educando e criando, juntos, o ser humano,
que, de fato, já estava inserido em seu lar substituto biparental (e não falsamente monoparental, como
muitos magistrados preferem continuar vendo - pois não crêem que duas pessoas, sendo de idêntico
sexo biológico, possam se amar e serem felizes na mesma ambiência, a partir de base sólida de
convivência afetiva). Pela primeira vez no constitucionalismo pátrio, a Constituição Federal de 1988
rompeu com a noção familiar atrelada somente ao casamento, elevando a família, qualquer que seja ela,
à base da sociedade e, por isto, merecedora de plena e especial proteção do Estado (art.226, "caput",
CF/88). Neste sentido, não é o ente estatal, nem o constituinte e nem os parlamentares de posições
religiosas fundamentalistas que devem dizer o que é família, mas a complexa dinâmica social, que tem
na aproximação (pela afetividade mútua e pelo desejo comum de convivência), a viga-mestra da
composição familiar, distinguindo-a das demais interações humanas. Ao lado dos tipos familiares,
reconhecidos de modo exemplificativo no citado art. 226 da Lei Maior - § 1º, § 2º (família casamentária),
§ 3º (união estável) e § 4º (família monoparental, independente da orientação sexual dos pais e dos seus
descendentes) - o Poder Judiciário vêm reconhecendo modalidades de família não prevista literalmente
(como as uniões homossexuais afetivamente sólidas), mas inclusas na cláusula protetora geral que é o
"caput", do referido art. 226.
Os parágrafos de tal artigo, em sua inteireza, não devem ser interpretados taxativamente, pois a redação
do "caput" é de dispositivo constitucional de inclusão. No já aberto caminho jurisprudencial de
reconhecimento de efeitos jurídico-familiares às uniões homoafetivas, parte sensível do Poder Judiciário
(como o citado TJ/RS) vem, de modo muito coerente, utilizando-se do recurso integrativo da analogia
(art. 4º da LICC), já que, por ora, não há lei federal regulamentadora das conseqüências jurídicas das
uniões homossexuais no Brasil.
É deste modo que, no presente, pode-se assistir à constituição do vínculo de filiação adotiva entre um
menor e dois homossexuais que, caso se amem verdadeiramente, podem formar, como todas as demais
pessoas (declarada ou presumidamente heterossexuais ou bissexuais) um ambiente familiar adequado
ao normal desenvolvimento de um ser humano. (SILVA, Enézio de Deus da. Decisões judiciais
inéditas viabilizam adoção por casais homossexuais no Brasil. Disponível em:
http://www.ibdfam.com.br/public/artigos.aspx?codigo=249 Acesso em: 13 out. 2006).
199
RIOS, 2001, p. 139-140.
120
Não há como justificar vedação, em princípio, da adoção de crianças por
homossexuais. Isto porque, enquanto modalidade de orientação sexual, não
se reveste de caracteres de doença, morbidez, desvio ou anormalidade em
si mesma, não autorizando, portanto, a sustentação de uma “regra geral”
impeditiva de adoção.
Neste momento, gize-se que a ausência de fundamentação racional não
pode ser substituída, numa sociedade democrática e plural, pelo
subjetivismo de que quer que seja, juiz, assistente social, médico ou
psicólogo, dentre outros. Isto seria destruir a democracia, anular as
diferenças individuais e instituir o arbítrio de uns (mesmo que eventualmente
majoritários) em face dos demais.
Ao contrário, o princípio da igualdade exige que homossexuais e
heterossexuais tenham avaliadas, objetivamente, as condições que
oferecem para propiciar o melhor desenvolvimento possível para a
personalidade da criança; para tanto, não se pode considerar, por si só nem
isoladamente, a orientação sexual do adotante.
Conclui-se, portanto, que a proibição de adoção fundada exclusivamente na
homossexualidade revela ausência de fundamentação racional suficiente
para a imposição de um critério discriminatório, proceder que afronta,
gravemente, o princípio constitucional da igualdade.
Considerando-se as disposições do Estatuto da Criança e do Adolescente -
ECA
200
, não haveria impedimentos para a adoção por ambos os parceiros
homossexuais, uma vez que o artigo 28
201
do ECA ao autorizar a colocação em
família substituta , não a define, como fez o artigo 25
202
da mesma lei, relativamente
à família natural.
Diante do fato de o Estatuto da Criança e do Adolescente autorizar a adoção
por uma única pessoa, isto é, ser privilegiado o direito individual de guarda, tutela e
adoção garantido a todo o cidadão, independentemente de sua orientação sexual,
com os mesmo fundamentos, é possível concluir que a união homossexual, fundada
em relacionamento de afeto, respeito, lealdade e convivência duradoura, não pode
ser qualificada como incompatível com a adoção por um ou ambos os conviventes.
200
O artigo 42 do Estatuto da Criança e do Adolescente contempla: Podem adotar os maiores de 21 anos,
independentemente do estado civil.
A maioridade alterou-se com a nova codificação. Em conformidade com as disposições do artigo 5º do
Código Civil Brasileiro de 2002, a menoridade cessa aos 18 (dezoito) anos completos, quando a pessoa
fica habilitada à prática de todos os atos da vida civil.
201
Artigo 28 do Estatuto da Criança e do Adolescente. A colocação em família substitua far-se-á mediante
guarda, tutela ou adoção, independentemente da situação jurídica da criança ou adolescente, nos
termos desta lei. Parágrafo 2º. Na apreciação do pedido levar-se-á em conta o grau de parentesco e a
relação de afinidade ou de afetividade, a fim de evitar ou minorar as conseqüências decorrentes da
medida.
202
Estatuto da Criança e do Adolescente, artigo 25: “Entende-se por família natural a comunidade formada
pelos pais ou qualquer deles e seus descendentes”.
121
Consubstanciando esse entendimento, recente julgamento do Tribunal de
Justiça do Estado do Rio Grande do Sul, por decisão unânime, reconheceu a
existência de entidade familiar em união entre homossexuais e concedeu a
possibilidade de adoção a seus integrantes.
APELAÇÃO CÍVEL. ADOÇÃO. CASAL FORMADO POR DUAS PESSOAS
DE MESMO SEXO. POSSIBILIDADE. Reconhecida como entidade familiar,
merecedora da proteção estatal, a união formada por pessoas do mesmo
sexo, com características de duração, publicidade, continuidade e intenção
de constituir família, decorrência inafastável é a possibilidade de que seus
componentes possam adotar. Os estudos especializados não apontam
qualquer inconveniente em que crianças sejam adotadas por casais
homossexuais, mais importando a qualidade do vínculo e do afeto que
permeia o meio familiar em que serão inseridas e que as liga aos seus
cuidadores. É hora de abandonar de vez preconceitos e atitudes hipócritas
desprovidas de base científica, adotando-se uma postura de firme defesa da
absoluta prioridade que constitucionalmente é assegurada aos direitos das
crianças e dos adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Caso em
que o laudo especializado comprova o saudável vínculo existente entre as
crianças e as adotantes. NEGARAM PROVIMENTO. UNÂNIME.
(SEGREDO DE JUSTIÇA)
203
Nas circunstâncias descritas, a adoção não deve ser obstada, sob pena de
não ser oportunizado um lar, uma família, o direito ao afeto, à educação, à felicidade
e o respeito à dignidade humana a alguma criança ou adolescente.
No exame das uniões entre pessoas do mesmo sexo sob a perspectiva civil-
constitucional, Maria Celina Bodin de Moraes
204
enfatiza:
A partir do reconhecimento da existência de pessoas definitivamente
homossexuais, ou homossexuais inatas, e do fato de que tal orientação ou
tendência não configura doença de qualquer espécie, mas uma
manifestação particular do ser humano, e considerando, ainda, o valor
jurídico do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, ao qual
está definitivamente vinculado todo o ordenamento jurídico, e da
conseqüente vedação à discriminação em virtude da orientação sexual,
parece que as relações entre pessoas do mesmo sexo devem merecer
status semelhante às demais comunidades de afeto, podendo gerar vínculo
de natureza familiar.
Para tanto, dá-se como certo o fato de que a concepção sociojurídica de
família mudou. E mudou seja do ponto de vista de seus objetivos, não mais
exclusivamente de procriação, como outrora, seja do ponto de vista da
proteção que lhe é atribuída.
203
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Sétima Câmara Cível. Apelação Cível Nº 70013801592.
Relator: Luiz Felipe Brasil Santos. Julgado em: 05 abr. 2006.
204
MORAES, 2000, p. 109.
122
Atualmente, a tutela jurídica não mais é concedida à instituição em si
mesma, mas à família como um grupo social, como ambiente no qual seus
membros possam, individualmente, melhor se desenvolver (CF, artigo 226,
parágrafo 8˚).
Com a superação da idéia tradicional de família composta exclusivamente
por pessoas de sexo diferente, para encará-la como um núcleo de desenvolvimento
da dignidade de indivíduos que se unem por laços de afeto, não se justifica sua
exclusão do âmbito de tutela jurídica das famílias.
Enfrentando a questão atinente à qualificação das relações entre pessoas de
mesmo sexo como entidades familiares, Paulo Luis Netto Lôbo
205
anuncia:
Quando preencherem os requisitos de afetividade, estabilidade,
ostensibilidade, as uniões homossexuais serão tidas como entidades
familiares constitucionalizadas. A norma de inclusão do artigo 226 da
Constituição Federal apenas poderia ser excepcionada se houvesse outra
norma de exclusão explícita de tutela dessas uniões. Entre as entidades
familiares explícitas há a comunidade monoparental, que dispensa a
existência de par andrógino (homem e mulher). A ausência de lei que
regulamente essas uniões não é impedimento para sua existência, porque
as normas do artigo 226 são auto-aplicavéis, independentemente de
regulamentação. Por outro lado, não vejo necessidade de equipará-las à
união estável, que é entidade familiar completamente distinta, somente
admissível quando constituída por homem e mulher (artigo 226, parágrafo
3º). Os argumentos que têm sido utilizados no sentido da equiparação são
dispensáveis, uma vez que as uniões homossexuais são
constitucionalmente protegidas enquanto tais, com sua natureza própria.
Para o dimensionamento das questões jurídicas envolvendo a
homossexualidade, revela-se indiscutível a importância do princípio da igualdade. Do
mesmo modo, avulta a necessidade, para a elaboração de uma dogmática mais
comprometida com os acontecimentos sociais, da consideração de proteção jurídica
da dignidade humana das pessoas envolvidas em relacionamentos homossexuais.
No exame da homossexualidade e da proteção constitucional à dignidade da
pessoa humana, Roger Raupp Rios
206
pondera que:
205
LÔBO, 2004a, p. 16.
206
RIOS, 2001, p. 89-95.
123
O princípio da proteção da dignidade da pessoa humana tem como núcleo
essencial a idéia de que a pessoa humana é um fim em si mesma, não
podendo ser instrumentalizada ou descartada em função das características
que lhe conferem individualidade e imprimem sua dinâmica social. [...]
De fato, ventilar-se a possibilidade de desrespeito ou prejuízo a alguém, em
função de sua orientação sexual, seria dispensar tratamento indigno ao ser
humano. Não se pode, simplesmente, ignorar a condição pessoal do
indivíduo, legitimamente constitutiva de sua identidade pessoa, (na qual
sem sombra de dúvida, se inclui a orientação sexual), como se tal aspecto
não tivesse relação com a dignidade humana.
[...] o respeito à orientação sexual é aspecto fundamental para a afirmação
da dignidade da humana, não sendo aceitável, juridicamente, que
preconceitos legitimem restrições de direitos, servindo para o fortalecimento
de estigmas sociais.
O Direito é produto do meio social e não pode furtar-se a reconhecer fatos
sociais evidentes, decorrentes da própria natureza humana, ou da mudança de
costumes. E um desses fatos sociais inegáveis é a homossexualidade e as uniões
afetivas dela derivadas, que reclamam disciplina e tutela jurídicas.
Partindo-se da compreensão de que há multiplicidade de formas para a
constituição de famílias, torna-se imprescindível a inclusão de relações
homossexuais no cenário jurídico. Referindo-se a esta noção, Luiz Edson Fachin
207
assevera:
Humanismo e solidariedade constituem, quando menos, duas ferramentas
para compreender esse desafio [...] Reaprender o significado de projeto de
vida em comum é uma tarefa que incumbe a todos, num processo sacudido
pelos fatos e pela velocidade das transformações.
Em momento algum pode o Direito fechar-se feito fortaleza para repudiar ou
discriminar. O medievo jurídico deve sucumbir à visão mais abrangente da
realidade, examinando e debatendo os diversos aspectos jurídicos que
emergem das parcerias de convívio e de afeto. Esse é um ponto de partida
para desatar alguns “nós” que ignoram os fatos e desconhecem o sentido
de refúgio qualificado prioritariamente pelo compromisso sócio-afetivo.
O Direito de Família Brasileiro contemporâneo descobre seu caminho ao
contemplar a possibilidade de múltiplas fontes para as relações humanas familiares,
desde que essas se constituam direcionadas ao desenvolvimento da personalidade
de seus integrantes. Na atualidade, a preocupação focaliza-se em propiciar a
preservação da dignidade dos indivíduos, mediante a conversação de qualquer
207
FACHIN, 1997, p. 124.
124
comunidade afetiva, estável e duradoura, vincada pela congregação de esforços e
pela intenção de ser reconhecida como entidade familiar.
Consolidam-se outros valores e o Direito ruma ao encontro da sintonia com
a realidade social brasileira. Assim, é imperioso reconhecer-se uma entidade familiar
nas hipóteses de relação existente duas pessoas, independentemente da
diversidade sexual, como um núcleo de coexistencialidade estável, público,
duradouro, fundado no afeto e com a observância dos deveres de lealdade, respeito
e mútua assistência.
É preciso que o Direito esteja acima dos conceitos estigmatizantes, porque
das relações de afeto, hetero ou homossexuais, decorrem conseqüências
patrimoniais, e não dar a cada um o que é seu foge aos ideais de justiça. Interessa
ao Direito então, saber se as relações homossexuais duradouras, contínuas,
estáveis e monogâmicas constituem uma entidade familiar, ou mesmo união estável
nos moldes da união heterossexual. A decisão sobre as uniões de pessoas do
mesmo sexo não pode significar apologia da homo ou da heterossexualidade, ou de
minorias, pois estas divergem nas premissas e argumentos que fundam suas
posições. O objetivo de trazer a discussão das relações homoafetivas para o Direito
é o de se pensar no ideal de justiça e da não-expropriação da cidadania, a
consideração e a inclusão das diferenças no laço social.
208
As relações entre pessoas do mesmo sexo sempre existiram e jamais
deixarão de existir. Sob o amparo da repressão, preconceito e discriminação não
será possível conter fato que está presente na história da formação dos povos e na
realidade social brasileira.
Com efeito, a compreensão da pluralidade de modelos de famílias sinaliza
para a continuidade do estudo; neste iter, deve ser contemplada uma percepção
contemporânea da família com esclarecimentos acerca da abertura ou taxatividade
do rol de entidades familiares explicitado na Constituição Federal Brasileira de 1988
208
PEREIRA, R. C., 2004a, p. 155.
125
e, frente à multiplicidade de arranjos familiares, aferir-se as hipóteses de famílias
simultâneas, importantes questões a serem apreciadas no próximo capítulo.
126
4 UMA VISÃO CONTEMPORÂNEA DA FAMÍLIA
É na família que se sucederão os fatos elementares da vida do ser humano
desde o momento de seu nascimento até a sua morte. A família é o terreno fecundo
para atividades de cunho natural, biológico e para os fenômenos culturais, tais como
as escolhas profissionais e afetivas, além da vivência dos problemas e sucessos.
No que concerne às transformações contemporâneas das famílias, Roger
Raupp Rios argumenta
ter sido, primeiramente, observada no mundo dos fatos a instauração de um
tipo de relação familiar que privilegiava a satisfação afetiva conjunta dos
cônjuges, informado pelas aspirações de intimidade e reciprocidade no seio
familiar – a chamada ‘família fusional’. A partir da década de oitenta, esta
configuração vai alterar-se ainda mais, configurando a chamada ‘família
pós-moderna’, que se caracteriza pelo predomínio da individualidade de
cada um dos seus membros sobre a comunidade familiar.
209
Hodiernamente, o reconhecimento constitucional da dignidade de outros
modos de manifestação de convívio diferentes da tradicional família legítima fundada
no matrimônio e com a igualdade de direitos e de deveres entre homem e mulher na
sociedade conjugal
210
, promoveram um rompimento com a concepção unitária da
família.
A valorização do ser humano na organização familiar, conquistada a partir
da normativa constitucional, permite que a ordem jurídica recolha e atribua efeitos
jurídicos aos plúrimos estilos de vida em comum dos indivíduos, alcançando a
diversidade de relações interpessoais e integrando sentimentos e valores.
A ampliação do espectro da família, com o acolhimento de novas estruturas
de convívio constituintes das concretas formações familiares contemporâneas e a
noção do afeto, como um elemento a ser considerado no interior destas relações,
possibilitaram a renovação do Direito de Família.
209
RIOS, 2001, p. 103.
210
Constituição Federal de 1988, art. 226, § 5°: “Os direitos referentes à sociedade conjugal são exercidos
igualmente pelo homem e pela mulher”.
127
Com a preocupação em operacionalizar a tutela jurídica à dignidade das
pessoas integrantes das famílias, surgiu um fenômeno jurídico-social caracterizado
como tendência à repersonalização, mediante a elevação do indivíduo ao ápice do
ordenamento jurídico, precisamente, nas relações de família em detrimento da
prevalência de questões de ordem patrimonial.
A repersonalização
211
das relações de família fixa o sentido de que a
proteção do patrimônio não deve suplantar a proteção das pessoas. Desse modo, o
interesse a ser tutelado não é mais o do grupo organizado como esteio do Estado e
das relações de produção existentes, mas das condições que permitam à pessoa
humana realizar-se íntima e afetivamente, nesse pequeno grupo social.
Atualmente, percebe-se que os membros da família são mais importantes
que a preservação da entidade em si mesma. A relação entre os sujeitos da família,
a qual pode apresentar uma pluralidade de fontes ao lado do matrimônio (união
estável, família monoparental e outras) estabelece-se democraticamente, numa
verdadeira comunhão de afeto e de vida.
É possível afirmar que a consagração dos princípios da igualdade e da
dignidade humana
212
, no âmbito da família, constituiu caminho para a admissão de
outras formas de relações de coexistência, fundadas em laços de afeto e de busca
pela realização pessoal.
211
Em razão das transformações operadas na égide das famílias, Guilherme Calmon Nogueira da Gama
assevera que a dignidade da pessoa humana, colocada no ápice do ordenamento jurídico, encontra na
família o solo apropriado para o seu enraizamento e desenvolvimento, daí a ordem constitucional dirigida
ao Estado no sentido de dar especial e efetiva proteção à família, independentemente da sua espécie.
Propõe-se, por intermédio da repersonalização das entidades familiares, preservar e desenvolver o que
é mais relevante entre os familiares: o afeto, a solidariedade, a união, o respeito, a confiança, o amor, o
projeto de vida comum, permitindo o pleno desenvolvimento pessoal e social de cada partícipe, com
base em ideais pluralistas, solidaristas, democráticos e humanistas. GAMA, Guilherme Calmon Nogueira
da. Filiação e reprodução assistida: introdução ao tema sob a perspectiva civil-constitucional.
In:TEPEDINO, Gustavo. (Coord.) Problemas de direito civil-constitucional. Rio de Janeiro, Renovar,
2000, p. 520.
212
De acordo com a lição de Ingo Wolfgang Sarlet, basta-nos a referência à dupla função defensiva e
prestacional da dignidade de tal sorte que o dispositivo (texto) que reconhece a dignidade como princípio
fundamental encerra normas que outorgam direitos subjetivos de cunho negativo (não violação da
dignidade), mas que também impõe condutas positivas no sentido de proteger e promover a dignidade,
tudo a demonstrar a multiplicidade de normas contidas num mesmo dispositivo. SARLET, 2004b, p. 68-
69.
128
Nessa trilha, referindo que a dignidade da pessoa humana dá conteúdo à
proteção da família, cujo dever incumbe ao Estado, nos termos do artigo 226 da
Constituição Federal Brasileira de 1988, Gustavo Tepedino
213
acrescenta:
[...] é a pessoa humana, o desenvolvimento de sua personalidade, o
elemento finalístico da proteção estatal, para cuja realização devem
convergir todas as normas de direito positivo, em particular aquelas que
disciplinam o Direito de Família, regulando as relações mais íntimas e
intensas do indivíduo no social. De se abandonar, portanto, todas as
posições doutrinárias que, no passado, vislumbraram em institutos do
Direito de Família uma proteção supra-individual, seja em favor de objetivos
políticos atendendo a ideologias autoritárias, seja por inspiração religiosa.
Prevalece a compreensão de que todas as relações humanas devem ser
orientadas pelo princípio fundamental da dignidade da pessoa humana.
214
Esse
deve ser considerado a linha segundo a qual se conforma todo o ordenamento
jurídico. Trata-se de princípio direcionado a assegurar a intangibilidade da vida do
ser humano, dela emanando o respeito à integridade física e psíquica dos
indivíduos, a preservação das condições materiais mínimas para a sobrevivência e a
observância dos preceitos fundamentais de liberdade e igualdade.
À família, no direito positivo é atribuída proteção especial na medida em que
a Constituição entrevê o seu importantíssimo papel na promoção da dignidade
humana. Sua tutela privilegiada, entretanto, é condicionada ao atendimento desta
mesma função. Por isso mesmo, o exame da disciplina jurídica das entidades
familiares depende da concreta verificação do atendimento desse pressuposto
finalístico: merecerá tutela jurídica e especial a entidade familiar que efetivamente
promova a dignidade e a realização da personalidade de seus componentes.
215
213
TEPEDINO, Gustavo. Novas formas de entidades familiares: efeitos do casamento e da família não
fundada no matrimônio. In: TEPEDINO, Gustavo. Temas de direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2001,
p. 326.
214
Antônio Junqueira de Azevedo lembra que o princípio da dignidade da pessoa humana exige como
pressuposto a intangibilidade da vida humana. Esclarecendo seu argumento, o autor afirma que sem
vida não há pessoa e sem pessoa, não há dignidade. Diferentemente, o pressuposto desse princípio
fundamental impõe concretização radical; ele logicamente não admite atenuação. Se afastado, nada
sobra do princípio da dignidade. E esse princípio, se pudesse ser totalmente eliminado, não seria
princípio fundamental. O preceito da intangibilidade da vida humana, portanto, não admite exceção; é
absoluto e está, de resto, confirmado pelo caput do artigo 5º da Constituição Federal. (JUNQUEIRA,
Antônio. Caracterização jurídica da dignidade humana. Revista Trimestral de Direito Civil, São Paulo,
v. 9, jan./mar. 2002, p. 14).
215
TEPEDINO, op. cit., p. 326-327.
129
Na compreensão das formas de famílias, resta evidente que o referencial
temporal utilizado é a Constituição Federal de 1988. Os efeitos trazidos para o
Direito Privado são conhecidos, especialmente para o Direito Civil. Institutos
eminentemente privados foram revolvidos em sua essência e convidados a
redesenhar um outro modelo jurídico conformados à principiologia e às dimensões
axiológicas da Constituição. Na senda da constitucionalização do Direito Civil,
percebe-se que o Direito de Família foi um dos ramos que muito absorveu as
mudanças e os influxos da humanização das relações jurídicas em nosso tempo.
216
Para o Direito Brasileiro, a idéia tradicional de família fundamentava-se em
uma estrutura estática e nuclear, composta de pais e filhos unidos a partir de um
casamento regulado pelo Estado. Como referido anteriormente, com o advento da
Constituição Federal de 1988 (art. 226) houve a ampliação do conceito de família,
restando afasta a existência de um modelo dominante de entidade familiar, o que
conduz o intérprete na, exegese do texto constitucional brasileiro, a deduzir que não
há uma única realidade familiar, mas a admitir a identificação da família em um
quadro mais amplo, privilegiando a multiplicidade de configurações dos
comportamentos humanos em sociedade.
Identificada a concepção plural acerca da formação de entidades
familiares
217
, torna-se imperioso regular e inserir no âmbito do Direito brasileiro,
especialmente em matéria de família, outros relacionamentos interpessoais, nesse
caso, as uniões homossexuais, com o fim de promover uma justiça mais atenta às
realidades da vida no meio social.
No Brasil, a produção jurisprudencial sobre as conseqüências pessoais e
patrimoniais das relações homossexuais é recente. No Tribunal de Justiça do Rio
Grande do Sul – TJRS pode-se encontrar várias decisões judiciais que acabam por
216
ALBUQUERQUE, Fabíola Santos. Poder familiar nas famílias recompostas e o artigo 1.636 do CC/2002.
In: PEREIRA, Rodrigo da Cunha (Coord.). Afeto, ética, família e o novo Código Civil brasileiro. Belo
Horizonte: Del Rey, 2006, p. 162.
217
Nas palavras de Luiz Edson Fachin: “a família não tem mais o desenho jurídico do ente familiar e
patriarcal fundado na lei de desigualdade, exclusivamente matrimonializado e transpessoal. Ao largo do
velho Código, e mesmo contra o Código Civil e até afrontando certos “códigos naturais”, os fatos foram
veiculando sua reforma, que abriu portas na jurisprudência e na legislação esparsa. Assim, emergiu uma
dimensão renovada, eudemonista, florescida para dar espaços à igualdade e à direção diárquica, à não-
discriminação”. (FACHIN, 2003, p. 316).
130
extrair resultados das relações entre pessoas do mesmo sexo, objetivando não
estigmatizar quem exerce orientação sexual diferente e contemplando a realidade na
busca de soluções às questões que emergem de tais relacionamentos afetivos.
Nessa esteira, os julgamentos favoráveis ao reconhecimento das relações
homoafetivas como entidade familiar, bem como do fato de que a união formada por
pessoas do mesmo sexo, com características de publicidade, duração, continuidade
e intenção de constituir família enseja a possibilidade de que seus componentes
possam adotar, representam valiosa produção jurisprudencial a caminho do
atendimento dos reclames das pessoas envolvidas em relacionamentos
homoafetivos e que até então, ficavam com seus interesses excluídos da tutela
jurisdicional.
A pluralidade de modelos familiares, o fato de que a sua organização não se
esgote nas restritas formas de uma família nuclear, o fenômeno das reagregações
de parentes (como resposta em termos de contatos humanos, educação e
assistência dos menores, e de conveniência econômica, a uma sociedade
fortemente industrializada) não devem ser ignorados na análise jurídica.
218
Neste passo, é impossível não reconhecer o fato de as famílias constituírem
uma comunidade de afeto e entre ajuda, onde se acentuaram as relações de
sentimentos entre os componentes do grupo familiar com a valorização das funções
afetivas das famílias.
219
Conduzida pelos fundamentos da repersonalização, da
afetividade, da funcionalização, da pluralidade e do eudemonismo, a renovada
axiologia impingida ao Direito de Família fez prosperar uma configuração para as
relações familiares.
Por tais motivos, há a necessidade das normas de Direito de Família
sintonizarem-se com a realidade social, apreendendo dentro de seus limites todos os
218
PERLINGIERI, 2002, p.250.
219
As expectativas em relação à família estão, no imaginário coletivo, ainda impregnadas de idealizações,
das quais a chamada família nuclear é um dos símbolos. A maior expectativa é de que ela produza
cuidados, proteção, aprendizado dos afetos, construção de identidades e vínculos relacionais de
pertencimento, capazes de promover melhor qualidade de vida a seus membros e efetiva inclusão social
na comunidade e sociedade em que vivem. (CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. O lugar da família
na política social. In: CARVALHO, Maria do Carmo Brant de. (Org.). A família contemporânea em
debate. São Paulo: Cortez, 2002, p. 15).
131
matizes dos comportamentos humanos, assumindo uma postura comprometida com
as aspirações da sociedade e concretizando-se como instrumento de libertação e
justiça social.
Contemplando a importância dos fatos sociais, explica Luiz Edson Fachin
220
:
A observação social dos fatos nas relações familiares revela dados novos,
como as famílias monoparentais, as uniões entre pessoas do mesmo sexo,
a filiação socioafetiva, num horizonte que revaloriza a família desatando
alguns nós. Clama-se, e não é de agora, por um Direito de família que
veicula amor e solidariedade.
Em verdade, uma lei se faz código no cotidiano concreto da força
construtiva dos fatos, à luz de uma interpretação conforme os princípios,
época e valores constitucionais. Será no porvir que a sociedade brasileira
poderá nele ver uma família aberta e plural, até por que não pode haver
família plenamente justa numa sociedade escancaradamente injusta.
A partir de tais considerações, deve-se ter presente que antever e
concretizar a tutela à pessoa humana, propiciar um tratamento isonômico aos
modelos de famílias e abrandar os conflitos originados nas relações familiares são
incumbências de um Direito de Família comprometido com a respeitabilidade do ser
humano em sociedade.
Por fim, como a Ciência do Direito não pode deixar de imiscuir-se nas
relações humanas para assegurar uma convivência social igualitária, disciplinando
de modo equilibrado todas as situações fáticas, presenciar-se-á uma crescente
tendência à aceitação de outras formas de grupalidade familiar, já que a sociedade
propicia o surgimento de novos valores, os quais exigirão uma resposta do
ordenamento jurídico.
4.1 Do Pluralismo na Formação de Entidades Familiares
A Constituição Federal de 1988, ao estabelecer o capítulo VII, da Família, da
Criança, do Adolescente e do Idoso, no Título VIII, da Ordem Social, dispôs em seu
artigo 226, caput, que a família, base da sociedade, tem especial proteção do
220
FACHIN, Luiz Edson. Teoria crítica do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 2000, p.332.
132
Estado. No mesmo dispositivo, em seus parágrafos 1º e 2º previu normas relativas
ao casamento, em seu § 3º reconheceu a união estável como entidade familiar e no
seu § 4º fez o mesmo quanto à família monoparental.
Quanto ao reconhecimento da inexistência de um modelo único ou
preferencial de família, Paulo Luiz Netto Lôbo
221
entende que:
[...] cada entidade familiar submete-se a estatuto jurídico próprio, em virtude
de requisitos de constituição e efeitos específicos, não estando uma
equiparada ou condicionada aos requisitos da outra. Quando a legislação
infraconstitucional não cuida de determinada entidade familiar, ela é regida
pelos princípios e regras constitucionais, pelas regras e princípios gerais do
Direito de Família aplicáveis e pela contemplação de suas efetividades, Não
pode haver, portanto, regras únicas, segundo modelos únicos ou
preferenciais. O que as unifica é a fuão de locus de afetividade e da tutela
da realização da personalidade das pessoas que as integram; em outras
palavras, o lugar dos afetos, da formação social onde se pode nascer, ser,
amadurecer e desenvolver os valores da pessoa. Não há, pois na
Constituição, modelo preferencial de entidade familiar, do mesmo modo que
não há família de fato, pois contempla o direito à diferença. Quando ela trata
de família, está a referir-se a qualquer das entidades possíveis. Se há
família, há tutela constitucional, com idêntica atribuição de dignidade.
A sociedade contemporânea aberta, plural, dinâmica, multifacetária e
globalizada não permite mais a afirmação de um modelo fechado de estruturação
familiar. Em meio às múltiplas mudanças axiológicas, torna-se difícil afirmar que
exista um modelo oficial para as organizações familiares, uma espécie de “família
estatal”, forjada no interesse público, em detrimento do desenvolvimento da
personalidade de seus membros e violando suas dignidades.
Com efeito, o pluralismo das entidades familiares, uma das mais importantes
inovações da Constituição Brasileira, relativamente ao Direito de Família, encontra-
se ainda cercado de perplexidades quanto ao ponto: constituem elas numerus
clausus, ou seja, existem só as entidades familiares enumeradas na parte da Carta
Constitucional que trata da família ou podem existir outras formas de entidades
familiares admitidas pelo legislador constitucional, mas que não estão explicitamente
enumeradas?
221
LÔBO, 2004a, p. 18.
133
Diante desse questionamento, Paulo Luiz Netto Lôbo aduz existirem várias
áreas do conhecimento que têm a família ou as relações familiares como objeto de
estudo e investigação, bem como identificam uma linha tendencial de expansão do
que se considera entidade ou unidade familiar. As unidades de vivência
222
dos
brasileiros são objeto de pesquisa anual e regular do IBGE, intitulada Pesquisa
Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD). Os dados dessa pesquisa têm
revelado um perfil das relações familiares distanciado dos modelos legais. Conforme
Paulo Luiz Netto Lôbo
223
, podem ser descritas como unidades de vivência
encontradas na experiência brasileira atual, dentre outras:
a) par andrógino
224
, sob regime do casamento, com filhos biológicos;
b) par andrógino, sob regime de casamento, com filhos biológicos e filhos
adotivos, ou somente com filhos adotivos, em que sobrelevam os laços de
afetividade;
c) par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos (união estável);
d) par andrógino, sem casamento, com filhos biológicos e com filhos
adotivos ou apenas adotivos (união estável);
e) pai ou mãe e filhos biológicos (comunidade monoparental);
f) pai ou mãe e filhos biológicos e adotivos ou apenas adotivos (comunidade
monoparental);
g) união de parentes e pessoas que convivem em interdependência afetiva,
sem pai ou mãe que a chefie, como no caso de grupo de irmãos, após o
abandono ou falecimento dos pais;
h) pessoas sem laços de parentesco que passam a conviver em caráter
permanente, com laços de afetividade e de ajuda mútua, sem finalidade
sexual ou econômica;
i) uniões homossexuais, de caráter afetivo e sexual;
j) uniões concubinárias, quando houver impedimento para casar de um ou
de ambos os companheiros, com ou sem filhos;
l) comunidade afetiva formada com “filhos de criação”, segundo generosa e
solidária tradição brasileira, sem laços de filiação natural ou adotiva regular.
Como se depreende da leitura do artigo 226 é certo que as hipóteses “a” até
“f” estão previstas na Constituição Federal de 1988, nos três tipos de entidades
familiares que explicitou (o casamento, a união estável e a comunidade
monoparental).
Em todos os tipos, há características comuns, sem as quais não configuram
entidades familiares e, para Paulo Luiz Netto Lobo podem ser discriminadas as
222
As unidades de vivência constituem-se em núcleos de indivíduos que se ligam por laços de
consangüinidade, afetividade e solidariedade, com a finalidade de satisfazer as necessidades humanas
enquanto seres de relação, isto é, indivíduos que naturalmente tendem à agregação.
223
LÔBO, 2004a, p. 1-2.
224
A expressão andrógino, no contexto, apresenta o significado de indivíduos de sexos diferentes.
134
seguintes
225
: a) afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com
desconsideração do móvel econômico e escopo indiscutível de constituição de
família; b) estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais, episódicos ou
descomprometidos, sem comunhão de vida e c) ostensibilidade, o que pressupõe
uma unidade familiar que se apresente assim publicamente.
A interpretação dominante do artigo 226 da Constituição Federal, entre os
civilistas, é no sentido de tutelar apenas os três tipos de entidades familiares
explicitamente previstos, configurando numerus clausus. Para os adeptos da
concepção que visualiza no texto constitucional a não admissão de outros tipos de
entidades familiares além dos expressamente previstos, há controvérsia acerca da
hierarquização entre eles, resultando duas teses antagônicas. A primeira de que há
primazia do casamento, concebido com o modelo de família, o que afasta a
igualdade entre os tipos, devendo os demais (união estável e entidade
monoparental) receber tutela jurídica limitada. A segunda, no sentido de que há
igualdade entre os três tipos, não havendo primazia do casamento, pois a
Constituição assegura liberdade de escolha das relações existenciais e afetivas que
previu, com idêntica dignidade.
226
225
Paulo Luiz Netto Lobo, após explicitar as características comuns entre as entidades familiares, leciona
que o direito também atribui a certos grupos sociais a qualidade de entidades familiares para
determinados fins legais, a exemplo da Lei nº. 8.009, de 29.03.90, sobre a impenhorabilidade do bem de
família; da Lei nº. 8.425, de 18.10.91, sobre locação de imóveis urbanos, relativamente à proteção da
família, que inclui todos os residentes que vivam na dependência econômica do locatário; dos artigos
183 e 191 da Constituição Federal, sobre a usucapião especial, em benefício do grupo familiar que
possua o imóvel urbano e rural como moradia. (LÔBO, 2004a, p. 3).
226
Conforme preleciona Paulo Luiz Netto Lobo:
A tese I, da desigualdade, apresenta como principal
argumento o enunciado final do §3º do artigo 226, referente à união estável: “devendo a lei facilitar sua
conversão em casamento”. A interpretação literal e estrita enxerga regra de primazia do casamento, pois
seria inútil, se de igualdade se cuidasse. Entretanto, o isolamento de expressões contidas em determinada
norma constitucional, para extrair o significado, não é a operação hermenêutica mais indicada. Impõe-se a
harmonização da regra com o conjunto de princípios e regras em que ela se insere. Ademais, a norma do
§3º do artigo 226 da Constituição Federal não contém determinação de qualquer espécie. Não há
imposição de requisito para que se considere existente união estável ou que subordine sua validade ou
eficácia à conversão em casamento. Configura muito mais comando ao legislador infraconstitucional para
que remova os obstáculos e dificuldades para os companheiros que desejem se casar, se quiserem, a
exemplo da dispensa da solenidade de celebração. Em face dos companheiros, apresenta-se como norma
de indução. No entanto, para os que desejarem permanecer em união estável, a tutela constitucional é
completa, segundo o princípio de igualdade que se conferiu a todas as entidades familiares. E não pode o
legislador infraconstitucional estabelecer dificuldades ou requisitos onerosos para ser concebida a união
estável, pois facilitar uma situação não significa dificultar outra”. A tese II, fundada na igualdade dos tipos
de entidades, está em maior consonância com as disposições constitucionais, pois além do princípio da
igualdade das entidades, como decorrência natural do pluralismo reconhecido pelo Constituição, há de se
ter presente o princípio da liberdade de escolha, como concretização do macroprincípio da dignidade da
pessoa humana. A liberdade de escolher e constituir a entidade familiar que melhor corresponda à
realização existencial do indivíduo consulta a dignidade da pessoa humana. Inobstante, o avanço da tese
II, ainda é considerada insuficiente. (LÔBO, 2004a, p. 4-5).
135
A proteção da família, a partir da Constituição Federal de 1988, leva em
conta como elementos essenciais: os laços afetivos e a comunhão espiritual e de
vida; valorizando tanto a família matrimonializada quanto a originada fora do âmbito
disciplinado pelo casamento e, evidenciando os múltiplos perfis com que se
apresentam as relações familiares no meio social.
Vislumbra-se a ocorrência de uma grande transformação no âmbito de
vigência da tutela constitucional às famílias. Na explicação de Paulo Luiz Netto
Lôbo
227
:
No caput do artigo 226 da Constituição Federal de 1988 verifica-se que não
há qualquer referência a determinado tipo de família.
No momento em que houve a supressão da locução ”constituída pelo
casamento“ (locução presente nas disposições do artigo 175, da
Constituição Federal de 1967 – 1969) sem a substituição por outra
equivalente, foi colocada sob a tutela constitucional “a família”, isto é,
qualquer família.
Quando em seus parágrafos, referir a tipos determinados, para atribuir-lhes
certas conseqüências jurídicas, não significa a reinstituição da cláusula de
exclusão, como se ali estivesse a locução “a família, constituída pelo
casamento, pela união estável ou pela comunidade formada por qualquer
dos pais e seus filhos”.
A interpretação de uma norma ampla não pode suprimir de seus efeitos
situações e tipos comuns restringindo direitos subjetivos, porque o objeto da
norma não é a família, como valor autônomo, em detrimento das pessoas
humanas que a integram.
O “caput” do artigo 226 da Constituição Federal é considerado cláusula
geral de inclusão, não sendo admissível excluir qualquer entidade que
preencha os mencionados requisitos de afetividade, estabilidade e
ostensibilidade.
A regra presente no § 4º do artigo 226 integra-se à cláusula de inclusão,
sendo esse o sentido do termo “também” nela contido. “Também” tem o
significado de igualmente, de inclusão de fato sem exclusão de outros.
Quando dois forem os sentidos possíveis (inclusão e exclusão), deve ser
prestigiado o que melhor responde à realização da dignidade da pessoa
humana, sem desconsideração das entidades familiares reais não
explicitadas no texto.
227
A Constituição Federal estabelece três preceitos, de cuja interpretação chega-se à inclusão das
entidades familiares não referidas explicitamente. São eles, chamando-se atenção para os termos em
destaque:
a) Constituição Federal de 1988, artigo 226. “A família, base da sociedade, tem especial proteção do
Estado”. (caput)
b) “§ 4º Entende-se, também como entidade familiar a comunidade formada por qualquer dos pais e
seus descendentes”.
c) “§ 8º O Estado assegurará a assistência à família na pessoa de cada um que a integram, criando
mecanismos para coibir a violência no âmbito de suas relações”. (grifos no original) Cfe. (LÔBO, op. cit.,
p. 6-7).
136
Conclui-se que o elenco de entidades familiares explicitado nos parágrafos
do artigo 226 da Constituição Federal é meramente exemplificativo, sem embargo de
serem as mais comuns, por isso mesmo merecendo referência expressa. Assim, as
demais entidades familiares são tipos implícitos incluídos no âmbito de abrangência
do conceito amplo e indeterminado de família indicado no caput. E como todo
conceito indeterminado, depende de concretização de tipos, na experiência da vida,
conduzindo à tipicidade aberta, dotada de ductilidade e adaptabilidade. Impende-se
aferir que os tipos de entidades familiares explicitamente referidos na Constituição
Federal Brasileira não encerram numerus clausus. As entidades familiares, assim
entendidas as que preencham os requisitos de afetividade, estabilidade,
ostensibilidade, estão constitucionalmente protegidas, como tipos próprios,
tutelando-se os efeitos jurídicos pelo Direito de Família.
228
A pluralidade de formas na constituição de famílias tornou-se realidade
reconhecida no Direito Brasileiro, a partir da Constituição Federal de 1988, que
estabeleceu regras supremas informadoras de todo o ordenamento infra-
constitucional, como critérios e parâmetros a orientarem a interpretação e
compreensão das questões referentes à família.
Com o enaltecimento do princípio do pluralismo na formação das famílias
empreendido pelo texto constitucional, a interpretação das normas jurídicas
infraconstitucionais na tarefa de apaziguar a diversidade de conflitos familiares, deve
ser conduzida de forma criativa e aberta, partindo-se da situação fática concreta e
em consonância com os princípios da igualdade, da liberdade, da dignidade da
pessoa humana e de proteção à intimidade e à privacidade.
Primordialmente, os laços sanguíneos têm relevância para a constituição de
uma entidade familiar, no entanto, a continuidade dos vínculos do grupo familiar
encontra sustentação na noção de afeto. Em virtude deste elemento as famílias
formam-se ou se desfazem. A respeito dessa idéia, Pietro Perlingieri
229
observa:
228
LÔBO, 2004a, p. 7-17.
229
PERLINGIERI, 2002, p. 244.
137
O merecimento de tutela da família não diz respeito exclusivamente às
relações de sangue, mas, sobretudo, àquelas afetivas que se traduzem em
uma comunhão espiritual e de vida. Para tornar possível a participação
também aos menores que não tenham tido ou tenham perdido a
possibilidade de uma estável comunhão de afetos, o ordenamento prevê a
constituição, com a mesma dignidade em relação à família iure sanguinis,
de uma formação social onde convivem pessoas ligadas por relações
conjugais e/ou de filiação, origine-se esta última da geração no casamento,
daquela natural, da legitimação, das adoções.
Os organismos familiares, independentemente do formato, têm uma própria
identidade e relevância jurídica e contribuem para propiciar o desenvolvimento da
pessoa. A sucessão de fatos que pode marcar a existência de uma comunidade
familiar, como por exemplo, a separação dos cônjuges ou companheiros, não
determina o término das relações de família, as quais continuam mediante a
manutenção dos vínculos afetivos entre pais e filhos.
Tendo em vista essa multiplicidade de formas familiares, Cecilia Grosman e
Irene Martínez Alcorta
230
, aduzem:
El reconocimiento de tipos familiares diversos y su expresión en los
discursos del saber, al darles legitimidad y desnudar mitos, actúa en el
dominio de las condutas, valores y represtnaciones socialies. Representa,
igualmente, la afirmación del principio democrático que exige el respeto por
las diferencias. Es necesario advertir que la elaboración de categorías en
modo alguno significa diferenciar o discriminar; sólo tiene una connotación
instrumental destinada a indagar las diferentes prácticas y percepciones y
en función de los resultados elaborar políticas públicas y regulaciones
legales que apoyen un mejor funcionamiento familiar. Es necesario tener
presente que los variados tramos de la organización del espacio íntimo
pueden constituir secuencias del ciclo vital familiar de una misma persona.
Así, una mujer casada con hijos que se divorica y luego vuelve a contraer un
nuevo matrimonio ha experimentado el modelo de familia nuclear intacta,
luego la forma de hogar monoparental, más tarde la familia ensamblada y,
finalmente, al fallecer el cónyuge, de nuevo transita por la monoparentalidad
originada en la viuvez. Es lo que se ha denominado ‘cadena compleja de
transiciones familiares’. Estas trayectorias familiares varían según la edad,
sexo, y condición social de los protagonistas, pues existe una mayor o
menor posibilidad de conformar nuevas uniones según las variables
sociológicas mencionadas.
Frente a essas considerações, percebe-se que as formas familiares atuais
preocupam-se em proteger seus integrantes nas diferentes etapas do ciclo vital e
230
GROSMAN; ALCORTA, 2000, p. 32.
138
promover, em cada um dos estágios de convivência, a proteção psicossocial
necessária ao bom relacionamento dos indivíduos entre si e com o meio social.
Como resultado da variedade de arranjos familiares, não pode ser
descartada a eventual hipótese de identificação do fenômeno da simultaneidade
familiar. Assim sendo, no próximo capítulo tratar-se-á do potencial reconhecimento
de famílias paralelas, isto é, das possíveis configurações da simultaneidade familiar.
4.2 Reconhecimento Jurídico das Famílias Simultâneas
A existência de núcleos simultâneos na realidade da família brasileira
evidencia ainda mais o pluralismo na composição das entidades familiares,
formações sociais, tuteladas na exata medida em que se constituam organismos
comprometidos com o desenvolvimento e realização das necessidades humanas.
Na análise da passagem da concepção transpessoal ao princípio
eudemonista, Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk
231
enfatiza que:
O sentido de proteção jurídica da família transforma-se na medida em que
se privilegia a relação coexistencial concreta de seus componentes em
detrimento da tutela de um ente abstrato e transpessoal. As causas desse
fenômeno não residem simplesmente em uma vontade do legislador, mas,
sim, na concreta mudança ocorrida no âmbito das funções e da estrutura da
família ao longo do século XIX. O Direito acaba por apreender essas
mudanças, consagrando um princípio que pode ser denominado de
“eudemonista”. Por essa concepção, o indivíduo não pensa que existe para
a família e o casamento, mas que a família e o casamento existem para seu
desenvolvimento pessoal. O eudemonismo é doutrina que enfatiza o sentido
da busca, pelo sujeito, de sua felicidade. A absorção do princípio
eudemonista pelo ordenamento altera o sentido da proteção jurídica da
família, deslocando-o da instituição para o sujeito, como se infere do
disposto na primeira parte do parágrafo 8º do artigo 226 da Constituição
Federal.
A nova configuração das relações familiares, como espaço de proteção ao
desenvolvimento pleno de ser humano e a atribuição de valor jurídico ao afeto,
desencadeou o enfraquecimento da anterior visão institucionalista acerca da família,
231
RUZYK, 2005, p. 24-25.
139
caracterizada pelo predomínio da noção do matrimônio como modelo único,
originário e perpétuo de constituição do núcleo familiar. A idéia de indissolubilidade
do vínculo matrimonial predominou até meados de 1977, período a partir do qual
entrou em vigor a Lei 6.515, que regulava os casos de dissolução da sociedade
conjugal e do casamento, prevendo a possibilidade jurídica do divórcio. Tais
mudanças confirmam o caráter instrumental das entidades familiares.
Deve-se ter presente que as famílias constituem-se e se ampliam pela
confluência de novos vínculos: genitores, pai ou mãe afim, cônjuge ou companheiro,
irmãos, filhos fruto de uniões anteriores, novos avós, tios, primos e outros parentes
das famílias que se recompõem. Nessa produção de laços, sentimentos e espaços
pessoais pode acontecer de um dos componentes do núcleo encaminhar-se para a
formação paralela de um outro arranjo familiar.
Uma vez estabelecida a situação de simultaneidade familiar, as
representações sociais advindas não podem ficar à margem do ordenamento jurídico
carecendo do reconhecimento dos efeitos jurídicos. Tal preocupação acarreta a
tomada de uma nova postura tendente à apreensão e chancela das circunstâncias
de concomitância de entidades familiares.
A simultaneidade familiar é, como regra, situação de fato que reforça o
sentido de que a construção normativa a ela aplicável deve partir da concretude, sob
uma perspectiva tópica – ingressando no sistema jurídico por meio da abertura
propiciada pelos princípios – sendo, portanto, sistemática. Em outras palavras, ainda
que se esteja a tratar de um sistema aberto, esse mesmo sistema pode ser apto a
selecionar aquilo que ingressa em sua porosidade. Trata-se de uma construção
normativa que é tópica, mas que também deve ser sistemática. Para tanto, elegem-
se dois vetores fundamentais responsáveis pela aferição de algumas possibilidades
e eventuais limitações à inclusão das famílias simultâneas: a simultaneidade na
perspectiva das relações de conjugalidade e na perspectiva das relações de
filiação.
232
232
Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk esclarece que a opção pelos vetores da conjugalidade e da relação
paterno-filial, não tem o sentido de exclusão prévia de outras possibilidades de verificação de situações
de simultaneidade. Mesmo porque as próprias dimensões da conjugalidade e da filiação pode se
entrelaçar no âmbito das famílias simultâneas. (RUZYK, 2005, p. 170).
140
Nesse passo, o objeto de análise será a simultaneidade centrada na pessoa
em relação de coexistencialidade, ou seja, a pessoa inserida no grupamento familiar
e não da entidade familiar por si própria.
4.2.1 Famílias Simultâneas na Perspectiva da Relação Paterno-Filial
Partindo de um contexto de funções tradicionais, hoje, a família fundamenta-
se principalmente na afetividade, na comunhão de afeto, não importando mais a
forma apresentada pela entidade familiar que, como vimos, pode ser
matrimonializada, produto de união estável, monoparental, reconstituída e
homossexual. Constata-se que as relações de convivência entre os integrantes das
diversas famílias contemporâneas orientam-se por vínculos de respeito, mútua
assistência, igualdade e relevam muito mais os laços de afeto e de cooperação do
que os sanguíneos.
Não há dúvidas de que, diante da atual diversidade de composições
familiares, a família transformou-se, no sentido de que se acentuaram as relações de
sentimentos entre os integrantes do grupo, tornando-se um lugar para a realização
de interesses existenciais, onde se valorizaram as funções afetivas e assim,
restaram dominantes as manifestações de solidariedade.
Não pode ser descartada a situação de o ambiente familiar submeter-se a
mudanças, esfacelar-se. Nesta hipótese, surgem prognósticos negativos referentes
à extinção do relacionamento existente entre os cônjuges ou conviventes e dos
laços de afeto entre os filhos e o genitor que se afasta do lar conjugal. No entanto,
mesmo com o término de uma relação de conjugalidade é possível a manutenção
dos vínculos afetivos entre aquele genitor e seus filhos, fator responsável pelo
surgimento da simultaneidade familiar na perspectiva da relação paterno-filial.
A propósito da manutenção ou não de vínculos afetivos entre o genitor e
seus filhos, Carlos Pianovski Ruzyk
233
explica que:
233
RUZYK, 2005, p. 175-176.
141
A realidade biológica da ascendência genética e a relação jurídica de
parentesco se mantêm, o vínculo familiar pode se extinguir, se a ruptura da
conjugalidade implicar o esfacelamento do afeto entre pais e filhos,
obstando a manutenção de uma convivência estável entre eles.
Permanecerá, nessa hipótese, o parentesco, mas não se constituirá um
vínculo familiar concreto entre o filho e o(a) progenitor(a) com o qual não
mais estiver convivendo.
De outro lado, se a manutenção do vínculo de afeto entre pais e filhos for
presente, implicando a configuração de uma convivência familiar entre eles
– que não significa, necessariamente, residência sob o mesmo teto – em
que se mantêm o contato constante, a participação direta do (a)
progenitor(a) na educação e no desenvolvimento dos filhos, é possível
cogitar a existência de um novo arranjo familiar, que integra o(a)
progenitor(a) aos seus filhos, embora não mais o vincule, de modo direto, ao
ex-cônjuge ou companheiro. Este, a seu turno, também mantém a relação
familiar com os filhos, que acabam por se colocar como elementos comuns
de duas novas entidades familiares, originárias da primitiva família nuclear.
Como a ótica de visualização de simultaneidade familiar parte da perspectiva
da filiação, pode acontecer a existência de filhos frutos de um relacionamento
esporádico, ou, mesmo, além de esporádico, clandestino, que não implicaria, em
princípio, caracterização de uma entidade familiar entre os pais.
Na situação fática cogitada, haveria um casamento plenamente válido e
eficaz, isto é, uma sociedade conjugal hígida baseada em comunhão de vida e de
interesses, mas daquele eventual relacionamento com terceira pessoa resultaria
prole. Verificada tal situação e presente a convivência familiar duradoura afetiva
entre cada um dos pais e o filho, configurar-se-ia a presença dessa criança em duas
famílias simultâneas, independentemente de relação de conjugalidade entre os
genitores.
Com referência à disciplina jurídica da filiação, orienta Gustavo Tepedino
234
:
A Constituição alterou radicalmente o sistema anterior, consagrando, ao
lado da isonomia dos filhos, a tutela de núcleos familiares monoparentais,
formados por um dos ascendentes com os filhos (art. 226, § 4º), e
extramatrimoniais, não fundados no matrimônio (art. 226, § 3º).
Tais preceitos, combinados com os princípios fundamentais dos arts. 1º a
4º, em particular no que concerne ao art. 1º, inciso III, segundo o qual se
constitui em fundamento da República a dignidade da pessoa humana,
informam todos a disciplina familiar, definindo a nova tábua de valores, em
que exsurgem, no ápice no ordenamento, três traços característicos em
matéria de filiação: 1. A funcionalização das entidades familiares à
realização da personalidade de seus membros, em particular dos filhos; 2. A
234
TEPEDINO, 1997a, p. 551.
142
despatrimonialização das relações entre pais e filhos; 3. A desvinculação
entre a proteção conferida aos filhos e a espécie de relação dos genitores.
Convém indicar a alteração axiológica operada nas relações familiares em
face da dicção dos artigos 227 e 229 da Constituição Federal Brasileira de 1988, no
sentido de que é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e
ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à
liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda
forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores.
O perfil da filiação delineado a partir do texto da Constituição Federal
consagrou, para Gustavo Tepedino, verdadeira ‘despenalização’ dos filhos
extraconjugais determinada pela isonomia constitucional. A desvinculação da tutela
dos filhos com a espécie de relação mantida pelos genitores corrobora as
características analisadas, afastando as hipóteses em que a unidade conjugal e
patrimonial pudessem ser preservadas graças ao repúdio à filiação extramatrimonial.
235
Desse modo, demonstra-se o enaltecimento da proteção instrumental da
família, como formação social privilegiada para o desenvolvimento da personalidade
da pessoa humana. O Direito deve ocupar-se da prioridade absoluta à pessoa do
filho.
Nessa linha, veja-se o posicionamento de Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk:
Pode-se observar que o arcabouço normativo – sobretudo o que se
identifica na Constituição Federal – é amplamente propício ao
reconhecimento jurídico de situações de simultaneidade na perspectiva da
filiação.
De outro lado, a identificação de potenciais limites, a partir do sentido
teleológico que emerge do sistema centrado na Constituição, se torna tarefa
infértil, uma vez que, ao contrário da secular tradição que excluía da
condição de filhos os denominados espúrios, o sentido jurídico
contemporâneo é o de integração dos filhos em uma entidade familiar,
contemplando-se os princípios da igualdade e da neutralidade.
235
TEPEDINO, 1997a, p. 553.
143
Evidencia-se, a partir da análise do tratamento que a Constituição dispensa
às relações de filiação, que emerge um sentido de plena integração dos
filhos a uma entidade familiar, sem distinção entre filhos havidos no
matrimônio ou fora dele.
Trata-se a relação entre pais e filhos de hipótese na qual a apreensão da
situação fática de simultaneidade pelo jurídico se apresenta em sua
plenitude, na perspectiva da produção de efeitos. Não há restrições textuais
no âmbito das regras em sentido estrito, nem, tampouco, se apresenta, ao
menos de antemão, potencial choque de princípios que poderia ensejar, na
sua ponderação em concreto no momento da construção normativa, óbices
à eficácia jurídica plena dessas situações.
A Ordem Constitucional não autoriza que as relações entre os pais e os
filhos sejam modeladas de modo fortemente hierarquizado à semelhança da
codificação de 1916, a qual contemplava uma concepção tradicional, patriarcal,
institucionalista e transpessoal acerca da comunhão familiar. Poder-se-ia dizer que a
disciplina visava estabelecer categorias de filiação, vinculando-se o tratamento do
filho ao tipo de relação existente em seus genitores. Atualmente, contempla-se a
diversidade de famílias consagradas como núcleos sociais de relações de afeto em
que também coexistem múltiplas origens para os vínculos de filiação.
As disposições do artigo 227, caput e parágrafo 6º, da Constituição Federal
prevêem que todos os filhos são iguais, independentemente de sua origem. Se há
previsão expressa desta igualdade e da garantia de convivência familiar solidária, é
porque a Constituição afastou qualquer interesse ou valor que não seja o da
comunhão do amor ou do interesse afetivo como fundamento da relação entre pai e
filho. A fortiori, se não há qualquer distinção entre filhos biológicos e filhos não-
biológicos, é porque a Constituição os concebe como filhos do amor, do afeto
construído no dia-a-dia, seja os que a natureza deu, seja os que foram livremente
escolhidos.
236
Desse modo, verificada a situação fática de convivência afetiva entre os
filhos e os pais, independentemente da origem da relação preexistente entre os
genitores, bem como do fato daqueles constituírem elemento comum de núcleos
familiares distintos, impõe-se a aceitação da família simultânea. Uma vez
236
LÔBO, 2004a, p. 08.
144
vislumbrada tal relação, não pode ser impedida a produção de efeitos no mundo
jurídico
237
, pois perfeitamente caracterizada como entidade familiar.
Por fim, outra hipótese ensejadora da configuração da simultaneidade
familiar é a constituição de nova família nuclear pelos ex-cônjuges ou companheiros.
Importante ressaltar que, nesta hipótese, o progenitor poderá ser elemento comum
na configuração de famílias simultâneas compostas, isto é, aquelas estruturadas em
um plano pela relação mantida com os filhos de relacionamento antecedente e em
outro, pela nova entidade familiar formada. As perspectivas das relações entre pais e
filhos e de conjugalidades se entrelaçam, evidenciando que os vetores de análise
fixados não podem ser considerados estagnados. Com o objetivo de elucidar tais
questões, serão examinadas as famílias simultâneas centradas em relações de
conjugalidade.
4.2.2 Famílias Simultâneas Centradas em Conjugalidades Múltiplas
Na seara das relações de conjugalidade, a simultaneidade pode adquirir
contornos mais polêmicos, embora se trate de hipótese claramente menos comum
que as famílias simultâneas na perspectiva da filiação. Além disso, torna-se possível
a indicação de alguns limites à eficácia das relações dos indivíduos que compõem
as famílias simultâneas.
Em evidência está o comprometimento do Direito com a conservação da
dignidade de todo o ser humano e, sendo assim, deve atentar para qualquer espécie
de relação estabelecida entre os indivíduos, incluindo-se aquelas que envolvam
simultaneamente outras entidades familiares pré-existentes.
237
A simultaneidade familiar na perspectiva da filiação pode produzir vários efeitos, dentre os quais pode
ser indicada a guarda compartilhada. Conforme referido anteriormente, “a guarda conjunta é um dos
meios de exercício da autoridade parental, que os pais desejam continuar exercendo em comum quando
fragmentada a família. [...] é um chamamento dos pais que vivem separados para exercerem
conjuntamente a autoridade parental, como faziam na constância da união conjugal”. (GRISARD,
Waldyr. Guarda compartilhada: um novo modelo de responsabilidade parental. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2000, p. 111).
145
Segundo Carlos Alberto Bencke, situações de fato existem que justificam
considerar-se que alguém possua duas famílias constituídas. São relações de afeto,
apesar de consideradas adulterinas, e podem gerar conseqüências jurídicas. Essas
situações revelam antes de relações espúrias, convivência de boa-fé.
238
Inicialmente, pode-se apreender a simultaneidade familiar como uma relação
ilícita, porque localizada no plano da bigamia. No entanto, avaliadas as
peculiaridades de cada caso concreto, é possível que o Direito reconheça e atribua
efeitos jurídicos ao vínculo estabelecido paralelamente a outro precedente. As
situações de famílias simultâneas em relações de múltiplas conjugalidades também
podem ser verificadas nos relacionamentos não fundados no matrimônio e, nestas
hipóteses, o Direito poderá conferir a proteção jurídica necessária aos componentes
de ambas as entidades familiares.
Nessa ordem de idéias, apesar da construção de uma noção plural de
entidades familiares, onde sob as relações de afeto, de solidariedade e de
cooperação, constata-se que nem todos os fatos sociais ingressam na moldura
jurídica.
Nem todas as relações humanas podem ensejar a configuração de famílias.
Conforme referido alhures, em todos os tipos, há características comuns, sem as
quais não configuram entidades familiares. Para tanto, são elencados como
requisitos elementares, de acordo com Paulo Luiz Netto Lôbo
239
:
A afetividade, como fundamento e finalidade da entidade, com
desconsideração do móvel econômico e escopo indiscutível de constituição
de família; a estabilidade, excluindo-se os relacionamentos casuais,
episódicos ou descomprometidos, sem comunhão de vida e a
ostensibilidade, o que se pressupõe uma unidade familiar que se apresente
assim publicamente.
No momento em que evidenciados estes pressupostos em núcleos
familiares paralelos torna-se possível afirmar a existência de famílias simultâneas,
238
BENCKE, Carlos Alberto. Partilha dos bens na união estável, na união homossexual e no concubinato
impuro. Revista Brasileira de Direito de Família, Porto Alegre, n. 14, jul./set. 2002, p. 27.
239
LÔBO, 2004a, p. 3.
146
com diversidade de componentes e ligadas em razão de um integrante comum a
ambas as entidades familiares.
Relativamente à característica da ostensibilidade, Carlos Eduardo Pianovski
Ruzyk
240
evidencia:
A ostensibilidade pode ser compreendida sob a perspectiva da ausência de
clandestinidade. A relação de conjugalidade, ainda que estável, mas
mantida às ocultas, sem ampla recognoscibilidade pública, não se afigura
como de natureza familiar.
Trata-se de relacionamento sexual, que pode ser fundado no afeto, mas não
extrapola o restrito espaço dos sujeitos que o compõem, não se explicitando
como relação afetiva perante o meio social. Os que mantêm conjugalidade
sob a égide da clandestinidade não demandam reconhecimento público de
seu afeto, buscando, ao contrário, ocultar qualquer manifestação exterior da
relação por eles encetada.
Enclausuram-se na cumplicidade clandestina do vínculo do “eu” e o “outro”,
encoberta por uma aparência social que lhe seja apta a subtrair, se possível
até mesmo o espectro da suspeita.
A partir de tais balizamentos, infere-se que um relacionamento que não
contemple esses elementos fundandes não poderá enquadrar-se como entidade
familiar, mesmo apresentando um estado de concomitância com outra família.
Qualquer relacionamento que mantenha, por exemplo, as características da
clandestinidade não pode ser tido como uma entidade familiar, obstando-se a
produção de efeitos jurídicos, mesmo que exista simultaneamente a uma relação de
conjugalidade estável, ostensiva e lastreada em manifestações de afeto e entre-
ajuda, como uma expressão de unidade sociológica.
Noutra parte, questionando em relação a quem essa ostensibilidade deve se
apresentar, para afirmar-se a presença de uma entidade familiar apta a surtir efeitos
jurídicos constitutivos, esclarece Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk
241
:
[...] o reconhecimento exterior dessa coexistência deve se dar de modo
amplo no meio social em que se insere, ou seja, a relação formada entre os
sujeitos deve ser objetivamente aferível, de modo explícito, por qualquer
observador, como de natureza familiar.
240
RUZYK, 2005, p.184.
241
RUZYK, Ibid., p.185.
147
Não basta, por conseguinte, que apenas algumas pessoas tenham
conhecimento acerca da existência da situação de fato: se ela não se
apresenta como explícita, pode não constituir uma família.
Isso não significa, porém, que, para ser reputada como entidade familiar, ela
necessite ser efetivamente conhecida dos sujeitos que compõem o núcleo
familiar a ela simultâneo.
Se o núcleo de coexistência fundado no afeto tiver ampla recognoscibilidade
no meio social em que se insere essa circunstância será bastante para que
possa ser reputado como família.
Isso não significa, sem embargo, que ela será sempre apta a receber, em
toda e qualquer circunstância, a chancela jurídica de seus efeitos.
A potencial apreensão jurídica, não implica, como conseqüência necessária,
sua plena eficácia.
A atribuição de efeitos jurídicos às relações travadas em uma situação de
simultaneidade familiar se dá em concreto, no momento da construção
normativa.
Essa construção é, ao mesmo tempo, tópica e sistemática. Parte, portanto,
do caso concreto, mas se dirige à ordem sistemática, com suas regras e
princípios”.
Com o fim de permitir a visualização prática de questões que envolvem
uniões paralelas, em face da inovadora construção jurisprudencial, traz-se à colação
decisões
242
recentes do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul a demonstrar a
242
Dentre as diversas decisões do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, torna-se relevante transcrever
o entendimento exposto pelo Relator Desembargador Rui Portanova no julgamento da Apelação Cível
Nº 70009786419: “O direito já está bem acostumado a tratar da divisão clássica entre casais. Falo da
divisão da partilha que até agora tem sido paradigma quando se está diante de um casal – 1 homem e 1
mulher. Com a separação, cada qual fica com 50% dos bens adquiridos no curso da união. Essa divisão,
que denomino de clássica, responde à partilha de patrimônio entre duas pessoas. Por isso se fala em
meação. O Dicionário Aurélio nos ensina que o significado léxico de meação é divisão em duas partes
iguais. A meação – divisão em duas partes iguais – para partilhar o patrimônio amealhado por duas
pessoas – o homem e a mulher que vivem uma única união concomitante – responde a um critério lógico
e igualizador. Contudo, quando se está diante de união dúplice é diferente. Não se está mais diante de
união entre duas pessoas. Há um triângulo amoroso, ao qual se deve dar efeitos patrimoniais tão
igualizador e lógico como na meação. Logo, reconhecida a união dúplice ou paralela, por óbvio, não se
pode mais conceber a divisão clássica de patrimônio pela metade entre duas. Na união dúplice do
homem, por exemplo, não foram dois que construíram o patrimônio. Foram três: o homem, a esposa e a
companheira. A clássica divisão pelo critério da meação é incompatível com a formação de patrimônio
por três pessoas, e não mais por duas. Aqui é preciso um outro pensar, diria um outro paradigma de
divisão. Aqui se pode falar em uma outra forma de partilhar, que vai denominada, com a vênia do
silogismo, de ‘triação’, que é a divisão em três e que também deve atender ao princípio da igualdade. A
divisão do patrimônio pressupõe que os beneficiados sejam contemplados igualmente com sua parcela,
da forma mais justa e equânime possível. Por isso, quando temos um único casal divide-se o patrimônio
por dois. Mas quando o direito passa a regular a partilha da união dúplice nada mais responde ao critério
igualizador do que a divisão por três. Certo que o termo ‘triação’ representa neologismo e profunda
inovação da forma de partilhar. Logo, é induvidoso que tal situação também apresente uma certa
dificuldade de busca do justo no caso concreto. Um desses efeitos é a divisão do patrimônio, que não
pode mais seguir a divisão própria para as uniões entre um casal. O critério altera-se para atender a uma
nova situação. A realidade posta nas uniões dúplices é a formação de patrimônio comum por três
pessoas. Logo, esse patrimônio deve também ser dividido por três. Por evidente, sempre e sempre,
quando se fala em dividir por três, está a se falar para aquele tempo e aquele patrimônio que foi
constituído durante o período da união dúplice. Durante o tempo em que o patrimônio foi constituído só
por um casal a divisão será por meação. Mas quanto ao patrimônio adquirido durante a união dúplice a
divisão será por três. Ou seja, não estaremos diante de uma meação, mas de uma ‘triação’.”
148
viabilidade no reconhecimento de alguns efeitos jurídicos à simultaneidade
familiar.
243
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. RELACIONAMENTO PARALELO
AO CASAMENTO. 1) AUSÊNCIA DE CITAÇÃO DOS HERDEIROS.
NULIDADE AFASTADA. Embora não tenham sido citados os herdeiros do
falecido companheiro, mas tão-somente a esposa, não se decreta a
nulidade do feito se a sentença de procedência da ação não acarretará
qualquer prejuízo aos herdeiros, já que inexistem bens a partilhar ou disputa
de pensão por morte entre a autora e os filhos. 2) MÉRITO. Se mesmo não
estando separado de fato da esposa, vivia o falecido em união estável com
a autora/companheira, entidade familiar perfeitamente caracterizada nos
autos, procede o reconhecimento da sua existência, paralela ao casamento.
Inexistem bens a partilhar, se o imóvel foi adquirido pelo falecido
companheiro em período anterior ao início da união estável. Descabe
deliberação sobre pensionamento pelo órgão previdenciário, pedido que
deve ser deduzido diretamente ao IPE, se tal órgão não participou do feito.
Nulidade afastada. Apelação parcialmente provida, para julgar parcialmente
procedente a ação, por maioria.
244
APELAÇÃO CÍVEL. UNIÃO ESTÁVEL. RELACIONAMENTO PARALELO
AO CASAMENTO. As provas carreadas aos autos dão conta que o de
cujus, mesmo não estando separado de fato da esposa, manteve união
estável com a autora por mais de vinte anos. Assim, demonstrada a
constituição, publicidade e concomitância de ambas as relações familiares,
não há como deixar de reconhecer a união estável paralela ao casamento,
que produz efeitos no mundo jurídico, sob pena de enriquecimento ilícito de
uma das partes. O termo inicial da união estável é o período em que as
partes começaram a viver como se casados fossem, isto é, com affectio
maritalis. RECURSO PARCIALMENTE PROVIDO, POR MAIORIA.
245
APELAÇÃO. UNIÃO ESTÁVEL PARALELA AO CASAMENTO DE PAPEL.
ARTIGO 1.727 DO CÓDIGO CIVIL DE 2002. EFEITOS. Interpretação do
Código Civil de 2002 com eticidade, socialidade e operabilidade, como
ensina Miguel Reale. Reconhecimento de efeitos a união estável paralela ao
243
No Superior Tribunal de Justiça encontra-se julgado com o seguinte sentido:
DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO
ESTÁVEL. CASAMENTO E CONCUBINATO SIMULTÂNEOS. IMPROCEDÊNCIA DO PEDIDO.
A união estável pressupõe a ausência de impedimentos para o casamento, ou, pelo menos, que esteja o
companheiro (a) separado de fato, enquanto que a figura do concubinato repousa sobre pessoas
impedidas de casar.
Se os elementos probatórios atestam a simultaneidade das relações conjugal e de concubinato, impõe-
se a prevalência dos interesses da mulher casada, cujo matrimônio não foi dissolvido, aos alegados
direitos subjetivos pretendidos pela concubina, pois não há, sob o prisma do Direito de Família,
prerrogativa desta à partillha dos bens deixados pelo concubino.
Não há portanto, como ser conferido status de união estável à relação concubinária concomitante a
casamento válido. Recurso especial provido.
STJ – Terceira Turma. REsp 931155/rs; RECURSO ESPECIAL 2007/0046735-6. Ministra Nancy
Andrighi. Data do julgamento: 07.08.2007, Data da publicação: DJ. 20.08.2007, p. 281.
244
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Oitava Câmara Cível. Apelação Cível Nº 70015777436.
Relator: José Ataídes Siqueira Trindade. Julgado em: 21 set. 2006.
245
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Oitava Câmara Cível. Apelação Cível Nº 70016039497.
Relator: Claudir Fidelis Faccenda. Julgado em: 10 ago. 2006.
149
casamento de papel, como medida que visa evitar o enriquecimento ilícito.
DERAM PARCIAL PROVIMENTO.
246
Existem modos diferenciados de enfrentar a questão da simultaneidade
familiar:
Há posicionamento no sentido de não se permitir o reconhecimento de
entidade familiar, diante do texto expresso da lei. Conforme se depreende da leitura
do artigo 1.723, § 1º, do atual Código Civil: “a união estável não se constituirá se
ocorrerem os impedimentos do art. 1.521, não se aplicando a incidência do inciso VI
(pessoas casadas) no caso de a pessoa casada se achar separada de fato ou
judicialmente”.
Dessa forma, presente o impedimento a que alude o art. 1.521, inciso VI
referente às pessoas casadas - não separadas de fato, surge o entendimento de não
se poder ir a tanto, reconhecendo-se a união estável ao arrepio da lei. Todavia, na
hipótese da pessoa ser casada e estar separada de fato, possibilita-se o
reconhecimento da entidade familiar oriunda da união estável.
De outra banda, reforçando o conteúdo ventilado nas jurisprudências acima
referenciadas, ainda considerando a existência concomitante de união estável e o
casamento, é possível perceber que no caso de uma união estável, não obstante o
disposto no art. 1.727 do CC/02
247
, pode acontecer que o cônjuge, em muitos casos
já falecido, tivesse affectio maritalis e comunhão de vida com terceira pessoa, ainda
que seu matrimônio estivesse íntegro.
Para esta corrente, presente a idéia de que a família é uma realidade que se
constrói da vivência compartilhada entre os indivíduos, estar-se-ia diante, pois,
daquelas situações de fato excepcionais que autorizam o reconhecimento da união
estável paralela ao casamento, sob pena, inclusive, de enriquecimento ilícito de uma
das partes.
246
RIO GRANDE DO SUL. Tribunal de Justiça. Oitava Câmara Cível. Apelação Cível Nº 70014248603.
Relator: Rui Portanova. Julgado em: 27 abr. 2006.
247
Art. 1.727 do Código Civil de 2002. “As relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de
casar, constituem concubinato”.
150
Na origem das famílias, além de baseadas no afeto, integra-se o elemento
do desejo, próprio das relações conjugais, de modo que “não amamos o que
queremos, mas o que desejamos”.
248
Nessa perspectiva, o desejo é elemento anímico que entra em cena, como
estimulador de relações fundadas no afeto, donde pode derivar ou não uma família.
Na seara das relações familiares se, efetivamente, não é possível negar a
condição de ser desejante, é indispensável distinguir duas situações: de um lado, de
fato, não cabe ao Direito imiscuir-se na comunhão de vida instituída pela família,
sendo lícito encetar os arranjos afetivos que atendam à dignidade intersubjetiva de
seus componentes; de outro, porém, se é dever do Estado proteger a família na
pessoa de cada um de seus membros, impõe-se ao Direito uma tutela que
contemple uma dimensão coexistencial, em que não se proteja somente na esfera
do desejo de um dos sujeitos, mas, sim, na dignidade intersubjetiva que deve ser o
leitmotiv de todas as relações humanas.
249
A proteção às famílias visa a assegurar o desenvolvimento e a preservação
da dignidade da pessoa humana por meio da convivência familiar. No entanto, não
se objetiva tutelar a satisfação individual e imediata. As situações configuradas como
famílias simultâneas também devem ser analisadas em uma perspectiva extrínseca,
percebendo-se as repercussões juridicamente relevantes da situação de fato para os
componentes que não integram aquela mesma entidade familiar, mas, sim, o outro
núcleo que se põe em condição de simultaneidade.
Com efeito, oportunizar uma proteção que adote o referido viés pode causar
graves danos aos demais integrantes do núcleo familiar simultâneo, pois podem
advir frustrações quanto às expectativas postas sobre o vínculo conjugal, tais como
a fidelidade recíproca, prevista na legislação civil como um dos deveres inerentes ao
casamento.
248
COMTE-SPONVILLE, 1995, p. 241.
249
RUZYK, 2005, p. 187.
151
Assim, deve-se ter presente que o Direito pode não proteger aquele que, a
pretexto de satisfazer egoisticamente o próprio interesse, aniquila a dignidade do
outro, mediante um proceder extremamente injusto e desleal, que frustra as
expectativas de vida afetiva em comum.
Do mesmo modo, aquele que, ciente de que está a manter relação de
conjugalidade com indivíduo que já compõe uma entidade familiar pré-existente,
procede de modo a desprezar qualquer dever ético perante os componentes da
primeira entidade familiar, pode não ter plenamente atendidas suas expectativas
acerca de eventual chancela jurídica da relação por ele mantida, se essa eficácia
vier a intervir na esfera jurídica dos membros do outro núcleo familiar. Por tais
razões, nos casos de famílias simultâneas, o exame de um comportamento ético
depende de avaliação relacionada com o princípio da boa-fé.
250
Assim, buscando esclarecer a aplicação do princípio da boa-fé nas hipóteses
de famílias simultâneas, registra Carlos Pianovski Ruzyk
251
:
O sentido da boa-fé a que se está a referir diz respeito à boa-fé objetiva
(Treu und Glauben), o que não significa, de antemão, que a boa-fé subjetiva
se apresente como irrelevante. Há circunstâncias nas quais somente se
mostram exigíveis certos deveres decorrentes da boa-fé objetiva quando se
tem conhecimento acerca de uma dada situação jurídica ou de fato.
Não seria lícito supor que alguém teria o dever de, diante de uma situação
fática específica, realizar dada conduta, comissiva ou omissiva, quando não
tem ciência de que está inserido na referida situação. Por conseguinte,
quando o companheiro daquele que se encontra em situação de
simultaneidade familiar não tem conhecimento acerca da existência de um
outro núcleo, a ele simultâneo e anterior, não será logicamente possível
supor, de sua parte, a violação de deveres inerentes à boa-fé. O estado de
boa-fé (Gutten Glaube) faz supor que sua conduta não está a violar os
deveres impostos pelo princípio da boa-fé.(Treu und Glauben).
252
Na dinâmica que envolve as relações familiares, soma de comportamentos,
experiências, anseios e necessidades individuais, os deveres que emanam do
250
RUZYK, 2005, p. 188.
251
De acordo com o autor, sem embargo, ainda que a boa-fé subjetiva possa constituir, em alguns casos,
ante-sala para a aferição do atendimento dos deveres decorrentes da boa-fé objetiva, é sobre esta
última que se está a versar. (Ibid., p. 189).
252
O referido autor, buscando esclarecer mais as potencialidades do princípio da boa-fé, traz as lições de
Antônio Menezes Cordeiro, o qual refere: “Não resta dúvida de que o referido princípio está diretamente
vinculado a deveres de informação e lealdade. Também emergem do princípio da boa-fé deveres de
proteção, que se referem à pessoa e ao patrimônio”. Sobre a boa-fé no Direito Civil: CORDEIRO,
Antônio Manuel da Rocha e Menezes. Da boa-fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 1997, p. 439-445.
152
princípio da boa-fé, em regra, aplicáveis à seara das relações de natureza
obrigacional, também podem ser vislumbrados nas questões de Direito de Família,
especificamente quando a discussão vincule-se a hipóteses de simultaneidade
familiar, pois a ciência de uma relação paralela pelo outro partícipe da sociedade
conjugal abre espaço para a preservação de sua dignidade.
Com tal constatação, não se pretende excluir de uma possível tutela, o
surgimento de outros vínculos familiares centrados em múltiplas relações de
conjugalidade, mas considerar a necessidade da avaliação das condições
específicas do caso, sem olvidar o zelo e a valorização merecidos pela família
antecessora.
A partir da existência de núcleos familiares paralelos em que haja a
presença de um componente comum a ambas as famílias, Carlos Eduardo Pianovski
Ruzyk argumenta que:
253
A comunhão instituída pela família, seja qual for a sua fonte, impõe,
intrinsecamente ao núcleo, deveres recíprocos de fidelidade que devem ser
lidos como lealdade às expectativas legítimas do outro, em proteção à
dignidade coexistencial das pessoas que compõem a entidade familiar. Sob
uma perspectiva extrínseca, a incidência do princípio da boa-fé pode tornar
sustentável afirmar o surgimento de deveres que se impõem aos sujeitos
que se relacionam, de modo específico, com algum dos componentes
daquela dada entidade familiar. Dessa forma, caso uma família seja
constituída paralelamente a outra, tendo como elemento comum um
componente que mantém relações de conjugalidade em ambos os núcleos,
incidem sobre a hipótese deveres éticos de respeito e proteção à esfera
moral e patrimonial dos componentes da outra entidade familiar. Entre
esses deveres, pode estar o de tornar ostensiva a nova relação em face do
núcleo original, não permitindo que os componentes daquela primeira
entidade familiar incorram em engano, que pode culminar em séria violação
de sua dignidade. Trata-se do atendimento de um dever de transparência,
de uma imposição ética de se agir com lealdade em relação às legítimas
expectativas que o outro possui acerca da comunhão de vida instituída pela
família, que pode implicar, como é evidente, a pretensão de mútua
exclusividade no relacionamento sexual entre os cônjuges.
Mas, concretizada a circunstância de pleno conhecimento da família
simultânea pelos integrantes da entidade familiar antecessora, em especial daquelas
pessoas que mantêm relacionamento de conjugalidade com o indivíduo comum às
253
RUZYK, 2005, p. 193.
153
duas comunidades familiares, sem que isso cause o desfazimento da convivência
afetiva, é possível reconhecer-se a simultaneidade como leal. Nessa hipótese, não
haveria violação da dignidade dos componentes de ambas as famílias, bem como do
dever de respeito relativamente ao outro partícipe da sociedade conjugal.
Como ciência que lida permanentemente com os valores da sociedade, cabe
ao Direito, diante das novas realidades alternativas, criar mecanismos de proteção,
visando atender às demandas que envolvam as pessoas em relação de coexistência
de conjugalidades.
Com a previsão de um estágio progressivo para o Direito de Família
Brasileiro, Sérgio Gischkow Pereira
254
diz:
O Direito de Família evolui para um estágio em que as relações familiares
se impregnam de autenticidade, sinceridade, amor, compreensão, diálogo,
paridade e realidade. Trata-se de afastar a hipocrisia, a falsidade
institucionalizada, o fingimento, o obscurecedor dos fatos sociais, fazendo
emergir as verdadeiras valorações que orientam as convivências grupais. O
regimento da família não pode insistir em perniciosa teimosia, no obsessivo
ignorar das profundas modificações consuetudinárias, culturais e científicas;
petrificado, mumificado e cristalizado em um mundo irreal, sob pena de
sofrer do mal da ineficácia.
Por fim, é importante salientar que as profundas transformações ocorridas
na seara das relações familiares, principalmente com a perspectiva da concepção
plural de família, testemunham que o melhor caminho é enfatizar a esperança de
que com elas haja a construção de regras jurídicas em harmonia com a realidade
social, em que as diferenças acrescentem e não sejam vistas como ameaças aos
alicerces familiares.
254
PEREIRA, Sérgio Gischkow. Tendências modernas do direito de família. Ajuris. Porto Alegre, v. 15, n.
42, p. 52-86, mar. 1988, p. 52.
154
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O Direito não pode descurar da realidade que o circunda. Na tentativa de
acompanhar a mudança dos tempos e dos costumes, produziu-se o pilar da
legislação brasileira, a Constituição Federal de 1988.
É reconhecida a índole transformadora das normas constitucionais,
consideradas como fundamento de toda a disciplina normativa infraconstitucional,
como princípio geral de todas as demais normas do ordenamento jurídico.
A partir
da vigência da Constituição Federal de 1988, notadamente com os princípios
constitucionais da igualdade e da dignidade humana, em virtude dos quais
consagrou-se a pluralidade na constituição das entidades familiares e a igualdade
entre homens e mulheres perante a lei e no exercício isonômico dos deveres e
direitos no interior da sociedade conjugal, a família adquiriu nova configuração,
passando a ser definida como um núcleo de igualdade, respeito, afeto e mútua
assistência.
Com isso, as normas jurídicas próprias do Direito Privado direcionaram-se
no sentido da concretização da tutela dos direitos fundamentais do ser humano, bem
como se atribuiu um tratamento diferenciado às questões que envolvem a realidade
familiar brasileira.
Destaca-se uma tendência de maior valorização da pessoa humana e dos
interesses de realização pessoal dos indivíduos, tornando-se efetiva a tutela de
situações fáticas complexas e a produção de uma nova literatura para o Direito de
Família, concebido como o conjunto de normas jurídicas que regulam as relações
pessoais e econômicas advindas da emergente concepção acerca da família.
Na esteira da admissibilidade de uma concepção plural da família, vencido o
modelo transpessoal, segundo o qual os interesses de uma unidade da instituição
prevaleciam sobre os seus integrantes, há o predomínio da noção de família como
um grupo afetivo de cooperação social, com o objetivo de constituir um ambiente
155
propício a conferir educação, afeto e a devida formação moral a todos os que nela
se integram.
Com a superação do paradigma institucional da família, no qual sobressaia o
perfil hierárquico, patriarcal, preponderantemente econômico e de reprodução com a
sujeição ao modelo matrimonial, reconheceu-se a existência da pluralidade de
modelos de convivência constituintes das contemporâneas estruturas familiares.
Nessa concepção, as entidades familiares contemporâneas desempenham
vários papéis, dentre os fundamentais, está a função educacional e socializadora,
pois inserem os indivíduos no ambiente social. A família propicia o crescimento
pessoal, por meio da convivência afetiva e da união de projetos de vida, sustentada
por relações igualitárias. Além disso, a família não apresenta mais uma única
fisionomia, tornou-se plural.
No momento em que houve a valorização da pessoa humana no âmbito
jurídico e que a família mudou suas feições, direcionando-se à realização afetiva do
indivíduo no interior do grupo familiar, gradualmente, o afeto passou a ser
considerado o centro a partir do qual se organiza e estrutura um núcleo familiar, isto
é, elemento principal na formação dos vínculos familiares contemporâneos. As
relações de afeto entre os membros das entidades familiares assumem papel
relevante tanto na etapa de constituição, quanto no estágio de desfazimento da
convivência familiar, uma vez que a família, atualmente, orienta-se em um sentido
democrático-afetivo.
Essas constatações nos levam a conclusão de que a vida em família mudou,
testemunhando a existência da diversidade de arranjos familiares, onde os
integrantes comprometem-se mutuamente em uma comunhão democrática e
solidária de vida.
Houve o reconhecimento do pluralismo na composição dos núcleos
familiares e uma nova concepção acerca das famílias, as quais passaram a ser
consideradas entidades igualitárias, descentralizadas, democráticas, fundadas em
laços de mútua-ajuda e afeto.
156
A pluralidade na formação de entidades familiares constitui-se no
reconhecimento da riqueza advinda da diferença nas relações humanas e na igual
dignidade das famílias originadas no casamento, nas uniões estáveis, nas
monoparentais e homossexuais, uma vez que revestidas das características comuns
da afetividade, como fundamento e finalidade da entidade familiar, da estabilidade,
estabelecendo uma comunhão de vida e da ostensibilidade, mediante a visualização
social da unidade familiar.
As relações humanas comportam múltiplos modelos de composições
afetivas e familiares. As entidades familiares apresentam estruturas em que
prevalecem os interesses pessoais e comuns do organismo familiar, os quais
necessitam ser compreendidos e reconhecidos pela ordem jurídica brasileira.
O matrimônio e a família monogâmica ainda são importantes referenciais
para a constituição de uma família. A noção de casamento não pode ser
considerada algo imutável. Diferentemente do que acontecia em tempos pretéritos, a
constante referência à indissolubilidade do vínculo matrimonial não tem mais espaço
em um ordenamento jurídico onde há previsão de hipóteses de divórcio, por
exemplo. O casamento, como um fenômeno social, tende a modificar-se no tempo e
no espaço e de acordo com a cultura dos povos.
Dessa forma, não se deve olvidar da importância da família estruturada a
partir de um casamento e, também à semelhança das demais, orientada por
princípios de afeto, de respeito, de lealdade e de mútua assistência. Num resgate da
formação histórica dos agrupamentos familiares, trata-se de uma estrutura universal
na constituição de um convívio comum.
No transcurso do capítulo dedicado à família matrimonializada, o estudo
dedicou-se à igualdade na órbita da sociedade conjugal, examinando-se a disciplina
específica dos direitos e deveres dos cônjuges na ordem jurídica brasileira.
No cenário das sociedades do século XVIII e meados do século XX,
enfatizou-se um ambiente familiar no qual predominava um padrão hierárquico de
comportamento dos membros da tradicional família patriarcal, isto é, as relações no
157
organismo familiar eram direcionadas de acordo com os interesses do marido,
cabendo à mulher e a prole ocuparem uma posição subordinada.
Ao longo de décadas no século XX, minimizou-se a dicotomia entre público e
privado segundo o gênero no sentido da fixação de comportamentos que,
anteriormente, associavam e limitavam a figura da mulher à de mãe, esposa e às
tarefas domésticas e a figura do homem à energia, ao planejamento e ao trabalho
produtivo, exterior ao lar. A tradicional divisão sexual existente cedeu espaço para a
construção de um ambiente profissional feminino na sociedade brasileira, em virtude
do desenvolvimento da educação, da ampliação de áreas no mercado de trabalho,
do crescimento da atuação política das mulheres, bem como das alterações
legislativas, principalmente com a previsão constitucional da igualdade entre homens
e mulheres.
A modificação da condição da mulher na sociedade, com a conseqüente
valorização da atuação feminina, bem como a crescente colaboração econômica
para as despesas do lar foram responsáveis por transformações na esfera do
organismo familiar, na exata medida em que tais fatores conferiram a mulher maior
poder de decisão e independência financeira, igualando-se ao homem em
responsabilidades na divisão de atividades e de obrigações para a manutenção da
família.
Com o advento da Constituição Federal de 1988, prevendo a estruturação
da sociedade conjugal sobre os fundamentos da igualdade, não foram
recepcionadas quaisquer normas infraconstitucionais que colocassem a mulher em
situação de subordinação, dependência ou inferioridade na esfera da relação
familiar.
Conferiu-se dignidade constitucional a outros modos de vida familiar,
diversos da tradicional família legítima, isto é, da união estável entre homem e
mulher e da formada pelos genitores e seus filhos, até a referida igualdade de
direitos e deveres entre os partícipes da sociedade conjugal.
158
Na busca da compreensão da diversidade familiar, tratou-se das famílias
monoparentais, com algumas referências estatísticas, relacionando-se as principais
causas desse fenômeno, onde um pai ou mãe responsabiliza-se isoladamente pela
criação, assistência, educação, guarda e sustento do(s) filho(s), ou seja, elencou-se
os fatores determinantes da monoparentalidade: o celibato, a separação e o
divórcio, a dissolução das uniões estáveis, a adoção, os pais e mães solteiros e a
viuvez.
Considerando-se que há múltiplas formas de constituição e desfazimento de
entidades familiares e também a possibilidade de recomposição da vida familiar,
contemplou-se o estudo das famílias reconstituídas, isto é, das entidades familiares
estruturadas a partir de um novo casamento ou nova união, após a ruptura dos
vínculos precedentes. Ainda, esclareceu-se que nesses núcleos familiares, torna-se
necessária a presença da filiação, essa pode ser de apenas um dos integrantes do
novo casal ou de ambos, mas deve ser fruto de relação afetiva preexistente.
Frente à multiplicidade de arranjos familiares, deu-se continuidade ao estudo
com as famílias nascidas a partir de uniões estáveis entre homem e mulher. Nesse
ponto, foram examinados os principais efeitos jurídicos produzidos pelas famílias
oriundas da união estável, indicando-se as diversas legislações aplicadas no
tratamento desta matéria.
Na análise das novas realidades, constata-se que as modalidades de
famílias identificadas em nosso ordenamento jurídico ainda não constituem as
formas suficientes para atender a demanda social carecedora de proteção.
Nesse contexto, ganhou espaço a discussão acerca da consideração das
relações entre pessoas do mesmo sexo como formas de entidades familiares. A
jurisprudência tem apresentado soluções coerentes para as questões que envolvem
as uniões homossexuais. É possível, ainda, avançar principalmente no que concerne
à quebra do preconceito quanto à orientação sexual, pois não há como negar que as
uniões homoafetivas são realidades que se impõem e não podem ser excluídas,
estando a reclamar tutela jurídica específica.
159
Partindo-se da concepção de que a família pode apresentar diversos
modelos e que se consubstancia em relações de coexistência fundadas em vínculos
de afeto, respeito, solidariedade e de busca constante pela realização existencial do
ser humano, conduziu-se uma visão contemporânea acerca da família, onde foram
descritas as características comuns dos tipos familiares, sem as quais não se
caracterizariam as relações em família, bem como se trouxe o questionamento
acerca da taxatividade ou não do elenco de entidades familiares previsto nos
parágrafos do artigo 226 da Constituição Federal de 1988, concluindo-se, ao final,
pela interpretação extensiva das estruturas familiares mencionadas no texto
constitucional.
Outra questão relevante tratada é relativa ao atendimento das pretensões de
felicidade, proteção e desenvolvimento da dignidade da pessoa por meio de uma
coexistência familiar, a qual demanda a compreensão do fenômeno da
simultaneidade.
Tendo em vista o novo lugar assumido pelo afeto nas relações em família e
a variedade destas manifestações, não pode ser afastada a possibilidade de
identificação de entidades familiares simultâneas, as quais, como exposto
anteriormente, podem configurar-se na perspectiva das relações paterno-filiais e em
múltiplas conjugalidades.
Em princípio, poderia ser cogitada a disciplina das famílias simultâneas na
seara da ilicitude penal, circunscrita às hipóteses de bigamia. Todavia, o dogma da
monogamia, nas situações alhures explicitadas, pode não prevalecer, uma vez que
as famílias constituem-se, inclusive paralelamente, e reclamam a apreensão e a
atribuição de efeitos jurídicos.
Nesse ambiente multifacetário de convivência familiar, incumbe ao novo
Direito de Família descortinar inúmeros modelos de convivência familiar, cabendo
aos profissionais que atuam na seara das relações familiares a responsabilidade de
dar eficácia aos direitos encartados no texto constitucional, para que as famílias
recebam a prometida tutela especial do Estado.
160
Por derradeiro, buscou-se demonstrar que o princípio do pluralismo das
entidades familiares, consubstanciado no efetivo reconhecimento pelo Estado da
existência de várias possibilidades de arranjos familiares, constituiu um dos maiores
avanços do Direito de Família Brasileiro, pois ensejou a compreensão do afeto, ao
lado da estabilidade e da ostensibilidade, como um elemento imprescindível no
âmbito da familiaridade.
161
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