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E, além disso, por corroborar a definição de que a cultura de um povo constitui uma
série de representações coletivas ou não, que um grupo social tem de si mesmo e de outros, e
por isso torna possível a utilização de fontes literárias de diversos tipos, e, nesse caso, é sobre
a tênue fronteira existente entre história e literatura, em que paira nosso olhar investigador, ou
seja, sobre como a história serviu à literatura e como a literatura contou a história, a
composição da sociedade rio-grandense da segunda metade do século XIX, e tangencialmente
para a narrativa dos escritores, dirigiu-se uma interrogação sobre a percepção, e por via de
conseqüência sobre a representação de sua própria sociedade; é portanto, desse cruzamento de
representações que surge a reflexão sobre o que pode ser definido por identidade cultural.
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Um conceito essencial em história cultural é o de representações, pois, por meio dele
é possível compreender as questões relativas à identidade, visto que não opera sozinho, ao
contrário, aglutina em torno de si contribuições de outros campos do saber, tais como a
sociologia, a filosofia, a psicologia e a arte, a fim de somar esforços para o entendimento,
daquilo que pode ser definido como sentidos partilhados.
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Ou, ainda, por outro lado, como
habitus,
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tal como foi definido por Bourdieu e adotado amplamente por Chartier, ou seja, a
apreensão do mundo social, como categorias fundamentais de percepção e de apreciação do real. Variáveis,
consoante as classes sociais ou os meios intelectuais, são produzidas pelas disposições estáveis e partilhadas,
próprias do grupo. São esses esquemas intelectuais incorporados que criam as figuras graças às quais o
presente pode adquirir sentido, o outro tornar-se inteligível e o espaço ser decifrado.” (Apud CHARTIER,
Roger. A história cultural: entre práticas e representações. Lisboa: Difel, 2002. p.17.
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Sendo a cultura um conceito construído historicamente e que, portanto, possui diversos entendimentos, a
definição aqui adotada é a de Roger Chartier: “O Conceito de cultura [...] designa um conjunto de
significações historicamente transmitido e inscrito em símbolos, um sistema de concepções herdadas,
expressas nestas formas simbólicas por meio das quais os homens comunicam, perpetuam e desenvolvem seu
saber sobre a vida e suas atitudes diante dela.” (Apud CHARTIER, Roger. À beira da falésia: a história entre
incertezas e inquietude. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2002. p. 60).
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A noção de representação em Psicologia Social está definida, nesta disciplina, “a partir de sua definição
primeira, que é ‘interpretar a realidade que nos envolve, de um lado, mantendo com ela relações de
simbolização e de outro atribuindo-lhe significações”. Desse modo, as representações sociais “recobrem o
conjunto das crenças, dos acontecimentos e das opiniões que são produzidas e partilhadas pelos indivíduos de
um mesmo grupo, a respeito de um dado objeto social”. É no quadro dessa disciplina, que se encontram as
definições mais elaboradas, tentando distinguir diferentes níveis de construção das representações: um nível
profundo, concebido com um ‘nó central’, no qual se constroem por consenso representações ‘não
negociáveis’, que constituem a memória da identidade social; um ‘sistema periférico’, no qual se constroem
‘categorizações’ que permitem à representação ‘ancorar-se na realidade do momento, [...] como grade de
‘decifração’ das situações sociais”. In: GUIMELLI, C. La pensée sociale. CHARAUDEAU, Patrick.
Dicionário da análise do discurso. São Paulo: Contexto, 2004. p. 432.
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Roger Chartier faz uso da definição de Bourdieu da seguinte maneira: “A articulação entre as propriedades
sociais objetivas e sua interiorização nos indivíduos, sob forma de um habitus social, que comanda
pensamentos e ações, leva a considerar os conflitos ou as negociações, cujo desafio continua sendo sua