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O FIDALGO
No grupo de personagens condenadas, a primeira a adentrar o palco é o Fidalgo,
representante da nobreza feudal
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, que denuncia sua posição de privilegiado logo no início
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Os nobres, ao contrário do clero, formavam uma casta definida pelo nascimento. Havia vários graus de
nobreza: os grandes nobres que exerciam a autoridade sobre regiões mais ou menos extensas (também
denominados de ricos-homens); os infações, ainda considerados de alta estirpe; os cavaleiros, homens
nascidos nobres, mas muitas vezes sem fortuna e, como não deviam trabalhar por causa do privilégio de
nascimento, sua situação tornava-se bem difícil, precisando, portanto, de algum tipo de rendimento.
Segundo Oliveira Marques (1987), estes foram “classificados” como segundo grupo dentro da nobreza
na Pragmática de 1340 e persistiram como designação teórica e prática durante todo o século de
Quatrocentos. Eles formavam, na realidade, a espinha dorsal da nobreza. Os cavaleiros deviam, por princípio,
pertencer à Ordem da Cavalaria, isto é, ser armados como tais segundo um ritual que vinha de tempos
antigos. “Se muitos o eram, por ação de outros cavaleiros ou do próprio rei, é lícito supor que grande parte,
senão a maioria, apenas o fosse em espírito ou por simples ato administrativo” (MARQUES, 1987: 247).
Por conseguinte, a nobreza de uma forma geral necessitava de algum tipo de rendimento para viver.
Assim, ser nobre pressupunha a posse de um patrimônio e conseqüentemente do poder de mando.
“Todo nobre em princípio, era um senhor, isto é, possuía um patrimônio fundiário mais ou menos
extenso sobre o qual tinha direitos próprios de jurisdição e de cobrança de rendas e impostos. Esse
patrimônio garantia-lhe, igualmente, uma população de dependentes nobre e não nobres, em proporções
variáveis (vassalos, criados, homens, cavaleiros de casa, escudeiros de casa) que lhe estava subordinada por
vínculos simultaneamente pessoais e econômicos e que lhe concedia o substrato de recrutamento militar,
sempre que necessário... Nobre havia, ainda, que não possuíam qualquer senhorio, nem sequer uma quinta
de dimensões reduzidas. Era o que se passava com os ínfimos escalões da nobreza, nomeadamente com
muitos escudeiros, fidalgos pobres, vivendo permanentemente em casa dos seus senhores e deles totalmente
dependentes” (MARQUES, 1987: 237).
Como é sabido, a lei feudal concedia à nobreza amplos privilégios, um dos quais o de exercer justiça
própria nos senhorios. “Se essa justiça abrangia tanto os feitos cíveis como o crimes e a todos os níveis,
dizia-se que o senhor possuía o mero e misto império. No mero império ou soberania pura, sem restrições,
incluíam-se a faculdade de impor as penas de morte, mutilação e desterro, enquanto o misto império se
limitava à faculdade de estabelecer penas menores, mormente pecuniárias, conquanto permitisse decisões
finais em pleitos cíveis” (MARQUES, 1987: 238).
Embora a tradição portuguesa reservasse ao rei o direito de apelação, a justiça maior e outras regalias,
até o século XIV, a tendência fora sempre para não interferir nas terras privilegiadas e para deixar à nobreza
plena liberdade de jurisdição. No entanto, afirma Oliveira Marques (1987), que no final do reinado de D.
Denis, a Lei de 1317 censurou os senhores por impedirem as apelações para o rei. A partir de então, a política
repressiva da Coroa acentuou-se. Foram proibidas novas honras e novos coutos (terras senhoriais, de justiça
própria).
“A Carta Régia de 1321 determinou às autoridades que desfizessem as honras e os coutos ilegalmente
constituídos, ‘e não sofrades que nenhum, por poderoso que seja, que lhes ponha dês aqui em diante sobre
esto embargo’. A de 1324 ordenou às justiças do rei que entrassem nas honras e nos coutos ‘para prender e
fazer i direito e justiça, como nos outros lugares que não são honrados’. D. Afonso IV, ao subir ao trono, fez
citar à Corte todos os privilegiados para que demonstrassem os seus direitos e obtivessem a indispensável
licença de confirmação, o que a muitos foi negado. A lei de 1331 reiterou a de 1317, suprimindo em geral
todas as apelações para o senhor, a não ser em casos excepcionais. Seguiram-se, no mesmo sentido, os
textos legislativos de 1334, 1335, 1341, 1343, etc. Simultaneamente, e sentindo-se apoiado pela política
régia, os procuradores do povo aumentavam, em todas as reuniões de Cortes, o teor das suas queixas contra
a jurisdição senhorial” (MARQUES, 1987: 239).
Os senhores regiam como podiam contra a política repressiva dos monarcas através de protestos, faziam
resistência passiva e às vezes até violentas. Em alguns momentos conseguiram afrouxar os laços do domínio
régio, mas com o passar dos tempos os reis conseguiram o domínio absoluto sobre todos os grupos sociais,
inclusive sobre a nobreza.