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LUCIO LOURENÇO PRADO
John Stuart Mill e o psicologismo
O
System of logic
nas origens da filosofia contemporânea
Tese entregue como exigência para conclusão
do curso de Doutorado em Filosofia no
Programa de Estudos Pós-Graduados em
Filosofia da PUC-SP, sob a orientação do Prof.
Dr. Mario Ariel Gonzalez Porta, em abril de
2006
PUC-SP
São Paulo - 2006
1
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Banca Examinadora
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Resumo
Este trabalho apresenta a lógica e a semântica de John Stuart Mill relacionando-as,
por um lado, à tradição psicológio-nominalista representada pela teoria das idéias de
John Locke e, por outro, aos desdobramentos das discussões lógico-semânticas do
século XIX, sobretudo a partir da filosofia de Frege. De acordo com nossa hipótese,
ao contrário do que toda uma tradição interpretativa estabeleceu, Mill, como que por
detrás de algumas posturas ultrapassadas, foi responsável por teses significativas,
entre outras coisas, em favor dos esforços logicistas e antipsicologistas que marcaram
boa parte das discussões posteriores acerca da natureza da lógica. A crítica que Mill
realiza à tese segundo a qual o significados dos termos da linguagem são idéias (o que
ele chama de conceitualismo), aliada à sua clareza em distinguir processos mentais
envolvidos no ato do raciocínio das razões objetivas envolvidas na correção das
inferências, constituíram, de acordo com nossas conclusões, importantes fontes de
influência positiva, não só para a filosofia de Frege, mas para toda uma tradição
filosófica que veio a desembocar na filosofia analítica contemporânea.
O trabalho é dividido em três capítulos. No primeiro, são apresentados alguns
elementos importantes da lógica e da semântica millianas, tais como: definição de
lógica enquanto ciência da prova, relação entre lógica e linguagem, teoria da
conotação e proposições meramente verbais. O segundo, trata da crítica de Mill ao
modelo semântico psicológico representado, entre outros, por Locke. O terceiro,
busca responder se, a partir do ponto de vista do logicismo fregeano, Mill pode ser
considerado um psicologista.
3
Abstract
This work presents the logic and semantic of John Stuart Mill relating them, on the
one hand, to the psychological nominalist tradition represented by John Locke´s
theory of ideas, and, on the other hand, to the forthcoming logic semantic
discussions of XIX century, mainly from Frege´s philosophy. According to our
hypothesis, in opposition to an established interpretative tradition, Mill was
responsible for significant theses, among others, in favor of the logicist efforts and
anti-psychologists who marked most of the later discussions on the nature of logic.
On the one hand, Mill´s criticism to the thesis according to which the significance
of language terms are ideas (what he calls conceptualism), in addition to his clear
view in distinguishing mental processes in the reasoning act of objective reasons
involved in the inferences correction, constituted, according to our conclusions,
important positive influence sources, not just to Frege´s philosophy, but to a whole
philosophycal tradition that came to contemporary analytical philosophy.
The work is divided in three chapters. In the first chapter, important elements of
Mill´s logic and semantics are presented, such as: the definition of logic as a proof
science, the relationship between logic and language, theory of connotation and
some propositions. The second chapter deals with Mill´s criticism of the
psychological semantic model represented by, among others, Locke. The third
chapter aims to the question whether, from the point of view of Fregean logicism,
Mill can be considered a psychologist.
4
Agradeço ao amigo e orientador Mario Porta por me ensinar filosofia, e por tudo mais; ao
Professor e amigo Edélcio Gonçalves pela contribuição de sempre; aos colegas do Departamento
de Filosofia da Unesp pela força durante a fase final do trabalho, me desonerando de algumas
atividades em momentos estratégicos; em especial à Professora Maria Eunice Gonzalez, sempre
pronta a colaborar no que foi necessário; ao amigo e colega Ernesto Giusti pelos livros que me
emprestou; à Ana Paula Ricci por ter lido o trabalho e ajudado na revisão; e à Nilda, por ter me
agüentado nas semanas que antecederam a conclusão desta tese.
Agradeço também a Capes pelo financiamento das mensalidades do curso, sem o qual este
trabalho não teria sido realizado, e a Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Unesp (PROPG) pelo
auxílio que custeou minhas freqüentes viagens a São Paulo durante a realização da pesquisa
.
5
Pra Laura
6
ÍNDICE
Introdução ...................................................................................................................... 9
C
APÍTULO - I
Stuart Mill: Lógica e semântica
I.1. Preliminares ........................................................................................................ 17
I.1.1. A estrutura do
System of logic
...................................................................... 19
I.2. O conceito milliano de Lógica ............................................................................ 21
I.2.1. Arte e ciência do raciocínio .......................................................................... 28
I.2.2. Lógica e linguagem ........................................................................................ 30
I.2.3. Nomes e proposições ..................................................................................... 35
I.3. A teoria da conotação .......................................................................................... 38
I.3.1. Nomes gerais e singulares ............................................................................. 40
I.3.2. Nomes conotativos e não conotativos .......................................................... 42
I.3.3. Nomes concretos a abstratos ......................................................................... 47
I.3.4. Nomes relativos e absolutos .......................................................................... 49
I.4. Teoria da proposição de Mill .............................................................................. 52
I.4.1. Sobre as proposições em geral ....................................................................... 53
I.4.2. Proposições complexas .................................................................................. 54
I.4.3. Predicação e nomeação ................................................................................. 58
I.4.4. Proposições meramente verbais .................................................................... 61
I.5. Conclusão do capítulo ......................................................................................... 65
C
APÍTULO - II
Refutação do conceitualismo
II.1. Preliminares ....................................................................................................... 69
II.2. Hobbes e Locke .................................................................................................. 70
7
II.3. Locke: psicologia e linguagem ........................................................................... 79
II.3.1. O origem empírica das idéias........................................................................ 79
II.3.2. A Linguagem em Locke ............................................................................... 83
II.3.3. Locke e a generalização ............................................................................... 85
II.3.4. Significado e entendimento ......................................................................... 87
II.3.5. Locke e a proposição .................................................................................... 90
II.3.6. Locke e o psicologismo ................................................................................ 92
II.4. A refutação do conceitualismo .......................................................................... 95
II.4.1. Mill e a unidade do sentido proposicional ................................................ 100
II.4.2. Proposição e juízo....................................................................................... 102
II.5. Conclusão do capítulo...................................................................................... 109
Capítulo - III
Mill e o antipsicologismo fregeano
III.1. É Mill um psicologista? .................................................................................. 113
III.2 O antipsicologismo fregeano ......................................................................... 118
III.2.1. A analiticidade da aritmética ................................................................... 121
III.2.2. Uma nova lógica ....................................................................................... 128
III.2.3. Frege e a objetividade ............................................................................... 131
III.2.4. Leis do ser verdadeiro ............................................................................... 136
III.2.5. Representações e sentido proposicional .................................................. 139
III.2.6. Lógico x psicológico: o princípio do contexto ......................................... 140
III.2.7. Pensar e representar ................................................................................. 145
III.3. Frege crítico de Mill ....................................................................................... 147
III.3.1. Aritmética e empirismo ............................................................................ 154
Conclusão .................................................................................................................... 161
Bibliografia .................................................................................................................. 164
8
Introdução
A relação entre as filosofias de Frege e Stuart Mill é muitas vezes estabelecida,
e não sem claros motivos, de maneira fortemente antagônica. Por um lado, Frege
teria sido o responsável por inegáveis e importantes contribuições, tanto para a
história da lógica quanto para a história da filosofia, seja no que diz respeito ao
instrumental lógico-sintático que forjou em seu
Begriffsschrift
- capazes de dar conta
de problemas extremamente complexos que, dentro do velho universo conceitual
aristotélico, somente eram resolvidos, quando muito, de forma artificiosa e
insuficiente - seja pelos
insights
semânticos que vieram fincar as bases de muitas e
importantes discussões a respeito de temas de filosofia da linguagem que estiveram
no centro das atenções nos pelo menos cinqüenta ou sessenta anos seguintes, a partir
de figuras como Russell, Moore e, sobretudo, Wittgenstein. Mill, por outro lado,
representaria o velho, o ultrapassado, o aristotelismo lógico, o empirismo ingênuo, o
psicologismo infantil. Por conta desse contexto histórico-interpretativo é muito
tentador enquadrar, dentro de um modelo esquemático, os pensamentos desses dois
autores, no âmbito da história da filosofia, em campos opostos. A lógica de Mill seria,
por assim dizer, o exemplo de uma certa maneira equivocada e anacrônica de se
conceber essa pretensa ciência, que a filosofia de Frege teria simplesmente varrido
do mapa filosófico. E não faltam motivos que endossam esse ponto de vista. Por
exemplo:
a) Mill, como um típico representante da chamada filosofia insular, por ser um
herdeiro direto de autores como Hobbes, Locke, Berkeley, Hume etc., é um
empirista dos mais radicais; mais radical até, em muitos sentidos, do que seus
antecessores modernos; Frege, por seu turno, com seu logicismo militante e
9
seu espírito axiomatizante se nos apresenta com um racionalista dos mais
vigorosos;
b) Frege, como é demasiadamente sabido, foi um radical e incansável militante
anti-psicologista; grande parte de seus esforços e argumentos, grande parte de
seu vigor filosófico estiveram voltados a eliminar da lógica todo e qualquer
tipo de contaminação subjetiva (seja propriamente psicológica, como no caso
dos autores da tradição inglesa, seja transcendental, como no caso de Kant).
Mill, por sua vez, numa famosa passagem do escrito sobre a filosofia de
Hamilton - citada inclusive por Husserl em suas
Investigações lógicas
como
exemplo daquilo que não deve ser feito em lógica, como um exemplo lapidar
de uma lógica psicologista – afirmou que a lógica é uma parte, um ramo da
psicologia.
c) Inegavelmente, uma das grandes, senão a maior, contribuição fregeana tanto
para a lógica quanto para a filosofia foi a superação da estrutura proposicional
baseada nas categorias de
sujeito
e
predicado
a partir das categorias de
função
e
conceito
, solucionando, assim, uma série de problemas, como o da
quantificação múltipla e, sobretudo, das proposições relacionais. Mill, por seu
turno, segue fiel ao esquema proposicional aristotélico, comungando ainda,
apesar dos indícios de insuficiência sintática que já transpareciam nas
discussões lógicas de então, da velha estrutura
sujeito/predicado.
d) Naquela que talvez seja sua principal obra,
Der
Grundlagen der Arithmetik
,
Frege refere-se várias vezes a Mill, demonstrando, no mínimo, uma leitura
bastante atenta e interessada do
System of logic
; porém, tais referências são
sempre críticas, negativas e até irônicas, demonstrando de forma direta
discordâncias de posições.
10
Esses fatores parecem servir de suporte para a posição que enxerga uma
relação antagônica entre Frege e Mill. No entanto, apesar dos inegáveis e
incontestáveis motivos que os situam em pólos opostos no âmbito das histórias da
lógica e da filosofia, nem só de discordâncias e antagonismos se constitui a relação
entre os dois autores. Se, por um lado, em questões filosóficas mais gerais e
fundamentais, Frege e Mill demonstram ocupar posições diametralmente opostas, na
medida em que saímos das generalidades e nos detemos em questões mais específicas
e pontuais de suas filosofias, na medida em que deixamos de lado uma abordagem
esquemática típica dos manuais de história da filosofia para analisarmos as teses
mesmas desses autores em seus detalhes, vemos que o quadro se mostra
completamente diferente daquele sugerido há pouco. Isso porque, como
pretendemos demonstrar no presente trabalho, boa parte dos esforços
antipsicologistas de Frege encontraram em Mill, não um adversário a ser refutado,
mas uma importante fonte de influência positiva. Como veremos, os principais
pilares do antipsicologismo fregeano encontrarão, em maior ou menor medida,
respaldo em teses centrais do
System of logic.
De acordo com nossa hipótese, ao
menos nos pontos que nos interessam particularmente, as divergências entre Frege e
Mill limitam-se a uma crítica por parte de Frege ao
status
epistemológico da lógica e
da aritmética; Frege critica o radical empirismo milliano; mais especificamente, a
tese de que aquilo que os racionalistas chamam de princípios lógicos elementares, em
realidade, são produtos da experiência sensível. O que não significa que, uma vez
estabelecidos esses ‘princípios’ (sejam eles, princípios ou não) não possa haver
convergências pontuais importantes.
Diante disso, o presente trabalho busca, dentro dos limites impostos por sua
natureza, situar a figura de John Stuart Mill no âmbito da história da filosofia a partir
de dois pontos de vista, que acabam, no fim das contas, se entrecruzando. Nosso
11
primeiro objetivo, mais geral, é o de tornar explícito aquele que, dentro dos pontos
de vista adotados aqui, é o real papel da filosofia da lógica de Stuart Mill para aquilo
que se acostumou chamar de virada lingüística da filosofia no século XIX. Essa virada
é considerada por muitos autores como o marco inicial daquilo que podemos chamar
de filosofia contemporânea. E esse papel, de acordo com nossa hipótese, passa, por
um lado, pela superação do modelo semântico-psicológico cristalizado na teoria das
idéias contidas no
A essay concerning human understanding
de John Locke, e
também, pela recepção, por parte de Frege, das teorias acerca do papel da lógica no
conjunto as atividades intelectuais humanas e de sua relação com a linguagem que se
encontra no Livro I do
System of logic
. Isso, porque foi justamente no momento em
que elementos de ordem subjetiva perderam espaço nas reflexões filosóficas dando
lugar a abordagens mais genuinamente semânticas, quando os problemas
relacionados à linguagem deixam de ser considerados como meramente secundários
para se tornarem protagonistas dos debates, que o pensamento filosófico cortou parte
dos elos que ainda o ligavam à modernidade, dando lugar a uma nova maneira de
conceber a própria natureza do trabalho filosófico como tal. Nesse sentido, a crítica
fregeana ao chamado psicologismo lógico acaba exercendo papel de destaque nesse
movimento histórico-filosófico, principalmente pelo fato tal psicologismo estar
relacionado diretamente a duas escolas: tanto na Inglaterra, por conta da influência
do nominalismo psicologizantes de Locke, quanto na Alemanha, devido aos
desdobramentos da filosofia transcendental kantiana, a contaminação da psicologia
na lógica e na semântica acabou por se transformar em inimigo comum a ser
combatido por figuras como Frege e Husserl. Diante disso, nosso primeiro objetivo
será identificar qual o papel exercido por John Stuart Mill nesse processo. E será,
segundo nossa hipótese, justamente a crítica milliana ao modelo semântico lockeano
que estabelecerá, em grande medida, as bases da virada da filosofia em direção à
linguagem Se é certo que a supervalorização da lógica e da semântica em prejuízo da
12
epistemologia e da psicologia constituem a principal característica do movimento
que culminou na chamada filosofia contemporânea, então encontraremos no Livro I
do
System of logic
, e não propriamente no
Begriffsschrift
ou nos
Grundlagen der
Arithmetik
(como quer Dummet, por exemplo) o verdadeiro marco desta transição.
O que, pode-se dizer, motivou e serviu de ponto de partida de nossa
abordagem é o trabalho Alberto Coffa, intitulado
The Semantic Tradition
1
. Nesta
obra, o autor reconstitui de maneira detalhada os movimentos que proporcionaram a
elevação da semântica ao
status
de disciplina filosófica de destaque, o que, num certo
sentido, pode ser considerado um dos marcos do advento da filosofia
contemporânea. É, no mínimo, estranho constatamos que o autor não citou Mill uma
única vez sequer; e isso, acredito, é uma grande injustiça
2
. De acordo com nossa
hipótese, e isso foi simplesmente ignorado por Coffa, a crítica que faz Mill àquilo que
denomina conceitualismo, ou seja, à tese de que os nomes não se referem às idéias,
como quer Hobbes e Locke, mas às coisas mesmas, e, mais importante que isso, o
argumento que Mill se utiliza para defender sua posição, baseado na refutação da
tese de que a função da linguagem é transmitir idéias, finca as bases, em muitos
sentidos, não só do modelo semântico que será adotado por Frege, mas também de
seu antipsicolosimo. E isso por dois motivos:
1) Por não considerar as idéias como referência imediata dos nomes, Mill deixa de
ter ao seu dispor elementos de ordem psicológica para estabelecer a relação entre as
palavras e as coisas; ou seja, se os nomes referirem-se à idéias, basta que se postule
1
COFFA. J. A.:
The semantic tradition from Kant to Carnap – To the Vienna Station
(1991)
2
Esta constatação foi sugerida pelo Prof. Mario Porta em seu
Memorial: concurso para promoção na
carreira de magistério categoria professor associado
da PUC-SP:
“Em sua obra já clássica
The semantic
tradition,
Coffa começa sua análise por Bolzano e certamente não sem boas razões. Não obstante, não
deixa de ser significativa a omissão de John Stuart Mill neste contexto. Muito do que justifica a opção de
Coffa por Bolzano, valeria sem restrição alguma para Mill
. “. (Pg. 31).
13
uma semântica da convenção e da arbitrariedade para justificar a relação do signo
com aquilo que significa; e a relação dos nomes com as coisas mesmas se explicaria,
não por meio da semântica propriamente, mas por meio da psicologia. A questão não
seria “como as palavras se relacionam com as coisas?”, mas “como nós formamos
nossas ideais acerca das coisas?”, e as palavras, por sua vez, teriam idéias como
referência. Ora, com a supressão da idéia mediando a relação entre as palavras e as
coisas, se fará necessária a introdução de elementos teóricos de outra natureza, no
caso, de uma natureza eminentemente semântica. E para esse fim, no
System
de
Mill, será forjado o conceito de
conotação
.
2) Por não considerar que a função da linguagem é transmitir idéias, mas informar
crenças (crenças em verdades), Mill já estabelece, de forma embrionária, as bases
daquilo que, em Frege, será chamado de princípio do contexto; e, mais importante
do que isso, esse movimento acaba por delegar à linguagem uma função lógico-
veritativa em oposição à dimensão sócio-pragmática que exercia em Hobbes e Locke;
a ‘mentalidade’ representada por essa mudança de acento no que se refere à função
da linguagem no conjunto das atividades humanas, em muitos e importantes
sentidos, abrirá caminho para a edificação de toda uma escola filosófica que
desembocará, por exemplo, no
Tractatus
de Wittgenstein e no positivismo lógico.
Para levar adiante a tarefa proposta, o presente trabalho é divido em três
partes. Na primeira serão apresentadas aquelas que, de acordo com nossos objetivos
específicos, são as principais teses do Livro I do
System of logic
: basicamente, sua
teoria acerca da natureza e do papel da lógica no conjunto das atividades intelectuais
humanas, sua teoria do significado baseada no conceito de
conotação
e sua tese
acerca das proposições meramente verbais. Na segunda será abordada a crítica
milliana ao conceitualismo, ou seja, à tese de que o significado dos termos da
linguagem são entidades mentais. Na terceira, buscaremos demonstrar que, ao menos
14
aos olhos de Frege, a lógica de Mill não pode ser considerada psicologista, uma vez
que os principais pilares do antipsicologismo fregeano - a) distinção entre razões
demonstrativas e causas psíquicas; b) semântica objetiva na qual as representações
não exercem papel algum na constituição do sentido proposicional e c) a relação
intrínseca entre a lógica e aquilo que Frege chama de
leis do ser verdadeiro
- já estão,
ao menos de forma rudimentar e embrionária, presentes nas páginas do
System of
logic
de Stuart Mill.
15
Capítulo - I
Stuart Mill: lógica e semântica
Serão apresentadas aqui algumas teses importantes com relação ao conceito de Lógica de J. S.
Mill, bem como os fundamentos de sua teoria do significado; serão abordados os seguintes
pontos:
- definição de Lógica como ciência da prova com ênfase na precisa distinção que Mill realiza
entre explicações causais de ordem psicológica e aquilo que justifica a verdade da conclusão de
um raciocínio;
- teoria milliana dos nomes e, mais precisamente, a teoria da
conotação
;
- distinção entre proposições
reais
e
meramente verbais
.
16
I.1. Preliminares
A figura de John Stuart Mill se apresenta para a história da filosofia, em
muitos aspectos, de forma um tanto paradoxal, e até surpreendente. Pensador
multifacetado, escreveu sobre lógica, epistemologia, ética, política, economia...
sempre com um rigor conceitual extremado, no qual todos os aspectos de suas
investigações buscam entrelaçar-se num nexo sistemático dos mais bem arquitetados,
digno dos mais ilustres baluartes da metafísica tradicional. Ao mesmo tempo, um
empirista dos mais radicais e um naturalista vigoroso. Mas, ao contrário dos
‘empiristas tradicionais’ de origem britânica, seus predecessores, nutriu grande
respeito pela lógica formal, além de ter fornecido, em seu
System of logic,
elementos
teóricos preciosos para a superação do nominalismo psicologizante tão difundido
entre os britânicos modernos. Por um lado, Mill se apresenta para a história da
filosofia, ao menos no que diz respeito à sua lógica, como um pensador anacrônico,
representante de posturas ultrapassadas já para os problemas de seu tempo. Sua
lógica acabou por ser enquadrada, por toda uma tradição interpretativa, no âmbito
de algo que foi definitivamente superado pela novidade representada, sobretudo,
pelo pensamento de Frege. Mas, por outro, foi responsável por teses decisivas para a
revolução lingüística ocorrida na filosofia do século XIX, em parte operada pelo
próprio Frege. Fatos como esses demonstram que a figura de Stuart Mill possui um
papel peculiaríssimo na história da filosofia, principalmente no que tange às origens
daquilo que se acostumou chamar de filosofia contemporânea.
Mill, como praticamente todos os pensadores da história que, de alguma
maneira, operaram ou contribuíram decisivamente para transformações
significativas nos rumos da evolução filosófica, ou mesmo que simplesmente viveram
e trabalharam durante esses períodos de transição, tem, por assim dizer, cada pé
17
numa tradição diferente. Por um lado, é o ponto de culminação de um processo
histórico-filosófico que se inicia com Ockan, passando por Bacon, Hobbes, Locke,
Hume, Berkeley; por outro, encontra-se em posição privilegiada no que tange à
superação do que ainda restava da filosofia moderna no pensamento do século XIX.
Num certo sentido – e, na realidade, será essa a conclusão mais geral extraída pelo
presente trabalho – Mill passou ao mesmo tempo pelo inconveniente e privilegiado
papel histórico de estar demasiadamente comprometido com o passado para extrair
todas as conseqüências significativas e importantes de seus
insights
.
Quando se analisam as coisas a partir do ponto de vista privilegiado que a
história é capaz de fornecer, pode-se perceber que o comprometimento inevitável
que se tem com o universo teórico no qual se está inserido acaba, muitas vezes, por
impossibilitar ao pensador transcender de forma definitiva esse mesmo universo,
mesmo na posse de todos os elementos necessários para tal. E, pior do que isso, a falta
de um aparato teórico adequado capaz de levar adiante o desenvolvimento de
teorias, por assim dizer, inovadoras, acaba por cegar esses mesmos pensadores, na
medida em que não conseguem enxergar determinadas conseqüências de suas teses
que, para as gerações posteriores, parecem claras e inevitáveis. Essas considerações
estão sendo feitas para salientar que, muitas vezes, teses millianas absolutamente
originais e decisivas para os desenvolvimentos futuros tanto da lógica quanto da
filosofia da linguagem são expressas por meio de um vocabulário empoeirado,
proveniente de uma tradição que está a um passo de ser superada definitivamente.
Mais importante ainda: Mill, inúmeras vezes, faz afirmações explícitas sobre
determinados temas que, ao analisarmos o conjunto de suas teses e extrairmos delas
suas conseqüências necessárias, vemos que são incompatíveis com a organicidade de
seu próprio sistema. Um exemplo disso, que será retomado adiante de forma mais
detalhada, é sua relação com o psicologismo: Mill afirma claramente, mais de uma
18
vez, que a lógica é uma parte da psicologia; no entanto, suas teses semânticas, e seu
próprio conceito de lógica enquanto relacionada à justificação de verdades inferidas
e não com descrição de processos subjetivos, demonstram claramente que ele está
estabelecendo os alicerces a partir dos quais será edificada boa parte dos esforços
antipsicologistas de Frege. Ora, Mill disse isso, porque isso era o normal e corrente
entre os seus. De forma semelhante, a teoria milliana da
conotação
, que traz consigo
novidades significativas para o estabelecimento das bases em que se edificou a virada
semântica na filosofia do século XIX, é constituída e apresentada dentro de um
contexto proposicional aristotélico, o que pode camuflar, graças a uma aparente
constituição sintática ingênua e ultrapassada, seu verdadeiro alcance e as
conseqüências que suscitou. Como Frege bem notou, chega a ser irritante notar que
o radical empirismo de Mill não lhe tenha permitido ir mais adiante. O que se tem,
em realidade, é uma semântica e um conceito de lógica requintados e progressistas a
serviço de uma sintaxe aristotélica velha e agonizante, e de um empirismo tão radical
quanto inconseqüente. Será buscando enfatizar essa característica da lógica e da
semântica millianas que as apresentaremos no presente capítulo.
I.1.1. A estrutura do
System of logic
O
System of logic
tem por objetivo estabelecer de forma organizada e
sistemática os princípios e fundamentos desta pretensa ciência para, a partir das
premissas estabelecidas e do instrumental analítico obtido, ser possível a edificação
de todo um sistema de conhecimento, cujo objetivo último e principal repousa na
fundamentação das ciências morais. A obra é dividida e seis livros:
1. Dos nomes e das proposições;
2. Do raciocínio;
19
3. Da indução;
4. Das operações auxiliares da indução;
5. Dos sofismas;
6. Da lógica das ciências morais.
Embora, tomados em conjunto, os livros do
System of logic
constituam uma unidade
sistemática bastante clara, cada um deles, tomados isoladamente, possui uma
organicidade própria que os caracterizam, de fato, como livros independentes. De
forma resumida, podemos assim caracterizar o caminho percorrido por Mill em seu
System
: primeiramente, é estabelecido o estatuto semântico da linguagem, tanto no
que se refere à significação dos termos de forma isolada quanto à significação das
proposições (Livro I). Feito isso, o foco de atenção volta-se aos processos dedutivos
de inferência (Livro II). Uma vez, porém, que, de acordo com Mill, as proposições
universais, premissas dos raciocínios dedutivos, não nos são disponíveis de forma
imediata - pois, como bom empirista que é, defende que todo conhecimento inicia-
se, necessariamente, a partir das impressões sensíveis, que somente fornecem
conhecimentos singulares - o autor utiliza o terceiro e o quarto livros para
fundamentar a indução, tipo de raciocínio que possibilita a aquisição das tais
premissas universais. Em seguida, são considerados os argumentos falaciosos e as
causa de tais erros de raciocínio (Livro V). Por fim, após a edificação de todo um
aparato conceitual coerente e estruturado, é considerado o papel da ciência lógica no
estabelecimento das ciências morais (Livro VI).
Durante o caminho percorrido no
System
, Mill trata de expor e fundamentar
três teses capitais, que têm a ver com problemas que interessam diretamente a Frege:
a) a lógica e matemática possuem proposições e inferências reais;
b) nenhuma proposição real é
a priori
;
c) a lógica e a matemática são indutivas e, portanto, possuem origem empírica.
20
Para poder levar adiante seu projeto ultra-empirista, Mill necessitará de
determinadas premissas lógicas, semânticas e, em muitos sentidos, epistemológicas e
mesmo metafísicas, presentes, sobretudo, no Livro I do
System of logic.
Por isso, uma
vez que o interesse de nosso trabalho repousa basicamente nas teses semânticas de
Mill, em seu conceito de lógica e, sobretudo, na influência que tais teses exerceram
na edificação da filosofia e da lógica fregeanas, e dado o caráter, em certo sentido,
autônomo dos livros do
System of logic
, o Livro I será, prioritariamente, tomado
como objeto de nossa investigação.
I.2. O conceito milliano de Lógica
Pergunta: por que Mill, sendo um empirista radical, deu tanto valor à lógica, a
ponto de escrever um grande tratado sobre essa disciplina? Não é a lógica a “ciência”
das leis formais do pensamento puro? Não é ela a maior expressão de um tipo de
saber eminentemente racional baseado em princípios universais e, por isso mesmo,
absolutamente
a priori
? O que justificaria tal interesse? A resposta a essas indagações
não pode receber um tratamento simples, pois Mill delega à Lógica um estatuto
absolutamente coerente com seus supostos epistemológicos mais gerais. Para
compreendermos o que Mill entende por Lógica é necessário, primeiramente, termos
em mente o que ele entende por conhecimento e, mais especificamente, que tipos de
conhecimento postula como possíveis.
De acordo com Mill, todo conhecimento deve, em última análise, ser
reduzido a duas formas básicas: ou o conhecimento é
intuitivo
ou é
inferido
3
.
3
Truths are known to us in two ways: some are known directly, and of themselves; some through the
medium of the others truths. The former are subject of intuition, or Consciousness; the latter, of
21
Conhecimento intuitivo é aquele que obtemos por meio do testemunho direto dos
sentidos; conhecimento inferido é aquele derivado, que se obtém por meio de
inferências, tomando conhecimentos já adquiridos como premissas. Eu sei direta e
imediatamente que sinto uma dor, ou que estou na frente do computador, e sobre
isso não pode restar dúvidas, pois tenho em favor dessas verdades o testemunho
direto de meus sentidos. Há, no entanto, uma série de conhecimentos que eu
certamente possuo, mas somente de forma indireta, que não me foram
disponibilizados a partir do mesmo processo cognitivo; por exemplo: não vi nem
presenciei a chegada de Cabral ao Brasil em 1500, mas sei, por meio de uma série de
indícios que me são disponibilizados, em última análise, intuitivamente, que esse
fato é verdadeiro. Sou, portanto, capaz de inferir a verdade de um fato mesmo sem
tê-lo presenciado. Como podemos notar, Mill tem uma visão muito ampla acerca do
que são inferências: todos os conhecimentos que somos capazes de obter, desde que
não estejam disponíveis diretamente aos sentidos, são inferidos; e todos os tipos de
inferência que somos capazes de realizar (que, segundo Mill, nos possibilitam a
maior parte de nossos conhecimentos) nos fornecerão, portanto, conhecimentos
derivados. Certamente, para que haja conhecimentos derivados obtidos por meio de
inferência é necessário que outros conhecimentos intuitivos prévios sejam
considerados. Somente por meio da intuição – entenda-se, pela faculdade que nos
proporciona o acesso direto ao mundo exterior, possibilitando, assim, um
conhecimento eminente empírico – é possível a passagem do não-conhecimento ao
conhecimento de alguma espécie, fundamental para a edificação de qualquer forma
de saber. Ou seja, somente é possível haver qualquer conhecimento derivado obtido
por inferência se, antes de tudo, a cadeia de raciocínios partir de alguma ou algumas
premissas empíricas. A conseqüência dessa teoria será bastante controvertida. De
inference. The truths known by intuition are original premisses from which all others are inferred”
.
(
System of logic
. Introduction; 4)
22
acordo com esse ponto de vista, Mill rejeita que as proposições universais, aquelas
que servem de premissas para os raciocínios dedutivos, sejam disponibilizadas de
forma imediata e intuitiva
.
Ao invés disso, as proposições universais fazem parte
daquela porção de nosso conhecimento dita derivada. Isso, porque a experiência
empírica fornece um tipo de conhecimento meramente singular, expresso por meio
de proposições particulares; somente por meio da indução - raciocínio a partir do
qual premissas particulares impõem conclusões universais – as premissas dos
raciocínios indutivos podem ser dadas. Segue-se disso que todo raciocínio dedutivo
pressupõe, necessariamente, raciocínio ou raciocínios indutivos preliminares,
capazes de fornecer as premissas da dedução. O principal e mais problemático
resultado desta teoria é a tese, no mínimo estranha, de que as chamadas ‘ciências
dedutivas’, sobretudo a matemática e a própria lógica, são
a posteriori,
possuem uma
origem empírica. Veremos, no Capítulo III, que será essa a principal divergência de
Frege com relação às teses do
System of logic
: tanto o que diz Mill sobre o estatuto
epistemológico das ‘leis’ da lógica, quanto sobre o estatuto da própria indução, serão
atacados por Frege nos
Grundlagen der Arithmetik
. Voltaremos, pois, a esses
problemas no momento mais oportuno. Por ora, vale somente salientar as duas classe
de conhecimentos que Mill considera como possíveis, e a origem eminentemente
empírica de todo conhecimento, seja ele intuitivo ou derivado.
Colocadas as coisas desta maneira, Mill pode estabelecer um lugar privilegiado
para a Lógica no espectro do conhecimento humano sem, com isso, contradizer seus
pressupostos epistemológicos e metafísicos mais fundamentais. A Lógica deve tratar
somente daquele tipo de conhecimento dito derivado, inferido, não tendo nenhum
poder e não exercendo nenhum papel no processo de aquisição primitiva de
conhecimentos por meio do testemunho dos sentidos
4
. É nesse sentido que Mill
4
“The province of logic must be restricted to that portion of our knowledge which consists of inferences
from truths previously knowns”
(idem)
23
define a Lógica como ciência da prova
5
. Ela não pode fornecer os indícios, as
premissas, os fundamentos objetivos a partir dos quais uma verdade pode ser
inferida; mas, uma vez de posse dessas premissas, ela deve decidir se as verdades
delas extraídas o foram de forma correta. Certamente, como acabamos de mencionar,
esse ponto de vista o obriga, necessariamente, a considerar a Lógica como sendo algo
muito mais abrangente do que a maioria dos autores. A lógica deve ser entendida
como ciência (e arte também, como veremos a seguir) do raciocínio e da inferência.
No entanto, por raciocínio deve-se entender não somente as inferências dedutivas,
mas também a indução
6
. Não é por acaso que a obra milliana se propõe a ser um
sistema de lógica
indutiva
e
dedutiva.
Vale salientar, com relação ao conceito milliano de lógica e à teoria
epistemológica que o supõe, um fato extremamente importante: Mill aceita, ao
contrário de Locke, a possibilidade de termos acesso direto e imediato a
verdade
s, e
não meramente a
idéias
. Como veremos mais adiante
7
, para Locke, tudo o que
obtemos imediatamente por meio da experiência sensível são idéias simples; e todas
as demais manifestações intelectuais humanas, como a atribuição de verdades, por
exemplo, já se dão de forma mediata. A verdade, para Locke, nunca se refere às
5
Logic is not the science of Belief, but the science of Proof, or Evidence. In so far as belief professes to be
founded on proof, the office of logic is to supply a test for ascertaining whether or not the belief is well
grounded”
ou:
“Logic, however, is not a same thing with knowledge, though the field of logic is
coextensive with the field of knowledge. Logic is the common judge and arbiter of all particular
investigation. It does not underkate to find evidence, but to determine whether it has been found. Logic
neither observes, nor invents, nor discovers; but judges”
(idem)
6
Logic, then, comprises the science of reasoning (...). But the word reasoning, again, like most other
scientific terms in popular use, abounds in ambiguities. In one of this acceptations, it means syllogizing;
or, the mode of inference which may be called (with sufficient accuracy for the present purpose)
concluding from generals to particulars. In another of its senses, the reason is simply to infer any
assertion, from assertions admitted: and in this sense induction is as much entitled to be called reasoning
as the demosntrations of geometry
”. (idem, Introduction, 2)
7
II.3.1
24
coisas mesmas do mundo, mas somente às nossas idéias
8
. Ora, qual a importância
disso para a lógica e para a semântica? O fato de que em Mill, que considera que a
verdade somente pode se dar no nível proposicional, já se pode identificar um nível
proposicional prioritário e imediato. Escreve ele:
O que chamamos, por um cômodo abuso de um termo abstrato, uma
verdade, significa simplesmente uma proposição verdadeira, e os erros são
proposições falsas
9
Ora, se levarmos isso às suas últimas conseqüências, teremos que supor que Mill
postula a anterioridade da proposição em relação aos seus elementos constitutivos, o
que só foi explicita e definitivamente estabelecido na história da filosofia pelo
princípio fregeano do contexto
10
. Se a verdade nada mais é do que uma proposição
verdadeira, e se a experiência imediata pode nos fornecer verdades, claro está que já
se deveria poder falar num sentido proposicional primário e imediato em Mill. Como
veremos mais adiante
11
, quando tratarmos da distinção que Mill estabelece entre
proposição e juízo, a crença numa verdade supõe um conteúdo objetivo prévio como
seu objeto. Portanto, se é possível termos acesso direto e imediato a verdades, isso
somente pode ser compreendido da seguinte forma: temos acesso imediato ao
conteúdo objetivo crido como verdadeiro. A diferença com relação às verdades
inferidas está no fato de que, nessas, a crença dependerá de provas e se estabelecerá a
partir delas. Já nas verdades intuitivas, o testemunho direto dos sentidos elimina a
necessidade de provas e, portanto, de argumentos. Por isso, não há lógica para as
8
ver: II.3.4.
9
What, by a convenient misapplication of na abstract term, we call a Truth, means simply a True
Proposition; and errors are false proposition”
. (idem: I, i, 2)
10
ver: III.3.2
11
II.4.2
25
verdades intuitivas
12
. Mas, ainda assim, elas são verdades e se dão imediatamente aos
sentidos. Talvez tão ou mais importante do que Mill ter, digamos assim, delegado um
caráter realista à verdade, que não se refere mais às idéias como em Locke, mas ao
mundo real
13
, foi ele ter, ao menos indiretamente, postulado a possibilidade de
termos acesso direto a um sentido proposicional originário. Porém, Mill é confuso;
não tem muita clareza acerca das conseqüências de seu
insigth
. Isso, porque é
claramente contraditória a assunção de que temos acesso direta e intuitivamente a
verdades, sem necessidade de nenhum tipo de mediação (seja por parte de processos
subjetivos ou de elementos de ordem puramente semântica, nos quais o sentido
proposicional se estabeleça), conjugada a uma sintaxe proposicional aristotélica. Se a
proposição relaciona ou articula dois termos e se institui como um símbolo
complexo, e se a verdade somente pode ser estabelecida no nível proposicional,
então não deve ser permitido o acesso intuitivo e imediato a nenhum tipo de
verdade, dada à relação intrínseca entre verdade e proposição. E, como vimos, Mill
aceita essa possibilidade. Há, portanto, aqui, uma flagrante contradição sistemática:
numa sintaxe proposicional aristotélica, a proposição é necessariamente algo
complexo e mediato; é o resultado da articulação de duas ‘entidades’ que se incluem
ou excluem uma à outra a partir da ‘função sintetizante’ da cópula. Essa
complexidade elementar do sentido proposicional, conjugado ao fato de ser a
verdade atribuída exclusivamente a conteúdos proposicionais, é incompatível com a
tese de que o temos acesso intuitivo a
verdades
empíricas.
12
“Whatever is know to us by consciousness, is known beyond possibility of question. What one sees or
feels, whether bodily or mentally, one cannot but be sure that one sees or feels. No science is required for
the porpose of establishing such truths; no rules of art can render our knowledge of them more certain
than is is in itself. There is no logic for this portion of our knowledge”
(idem; 4)
13
Como veremos em II.3
26
Essa situação é, porém, compreensível e se rrelaciona com aquilo que falamos
nas Preliminares do presente capítulo: Mill está trabalhando num momento de
transição nos rumos da filosofia e tem, por isso, cada pé numa tradição diferente. É,
pois, natural que algumas de suas boas idéias não encontrassem respaldo no universo
teórico no qual transitava. Existem exemplos variados na história do pensamento em
que ocorreram situações semelhantes. Para lembrarmos um: tal como faltou a
Galileu uma mecânica mais elaborada, capaz de dar conta de seus
insights
físicos e
astronômicos - o que só foi realizado com Newton
14
- também Mill, não teve à sua
disposição uma lógica e uma sintaxe proposicional mais elaboradas, capazes de
acomodar algumas de suas melhores idéias. No entanto, como já foi mencionado,
uma das principais hipóteses que norteia o presente trabalho repousa justamente na
constatação de que a novidade representada por várias teses millianas é
absolutamente incompatível com os ditames de sua tradição; entre eles, a estrutura
sujeito
/
predicado
. Certamente, o mérito de ter superado a velha estrutura
proposicional é exclusivamente de Frege. Frege notou não só a insuficiência sintática
daquele modelo mas, além disso - e principalmente - teve o mérito de priorizar a
unidade do sentido proposicional com relação a suas partes. Mill não chegou tão
longe, mas enxergou, certamente, uma coisa muito nova, que, utilizada e referida
num contexto conceitual menos anacrônico, pôde render alguns bons frutos.
14
Como sabemos, quando Galileu propôs sua teoria geocêntrica, havia pouco o que se dizer ao seu favor,
em virtude dessa teoria ser contraditória com relação a muitos dos princípios estabelecidos pela física
aristotélica. Como reagir, por exemplo, ao argumento de que não pode ser possível a terra mover-se sem
que as coisas que estejam em sua superfície sejam lançadas para fora dela? ou contra aqueles pretendiam
negar tal movimento alegando que, se assim o fosse, uma pedra jogada do alto de uma torre não deveria
cair ao seu pé, como ocorre de fato? Foi necessária a elaboração de uma mecânica na qual figurasse
conceitos como o princípio da inércia ou a gravitação universal para que as idéias corretas de Galileu
fossem estabelecidas como corretas. Acredito que algo muito semelhante tenha acontecido com Mill.
Nossa analogia busca simplesmente mostrar que muitas vezes boas idéias não encontram um solo fértil
para florescer em virtude de toda uma mentalidade conceitual vigente no período em que é proposta. E
que somente à luz dos desenvolvimentos que se seguem, podemos, mas tarde, identificar seu real valor.
27
I.2.1. Arte e ciência do raciocínio
Há um ponto de vista extremamente importante no que se refere à concepção
milliana de lógica, e que possui grande relevância para os nossos propósitos. Mill
aponta para uma dupla característica da Lógica: ela é, ao mesmo tempo,
ciência
e
arte
do raciocínio:
ele (o Arcebispo de Whately) definiu a Lógica como ciência, mas também
arte do raciocínio, entendendo pelo primeiro desses termos a análise da
operação mental realizada quando raciocinamos, e pelo segundo as regras
fundadas sobre essa análise para executar corretamente a operação. Não há
duvidas com relação à propriedade dessa retificação. (...) a lógica, portanto, é
ao mesmo tempo a arte e a ciência do raciocínio
15
Esta passagem é fundamental para os problemas que permeiam os interesses do
presente trabalho. Mill apresenta aqui uma distinção fina que deve ser obedecida
quando se investiga o raciocínio lógico: explicações causais acerca do ato do
raciocínio em oposição àquilo que justifica a correção do raciocínio. E isso se
manifesta nas duas características da lógica apontadas acima. Enquanto
ciência
, a
lógica deve descrever os processos psíquicos e ocorrências mentais que têm lugar
quando raciocinamos efetivamente. Enquanto
arte,
ela deve servir como
instrumento balizador e normativo para a realização de inferências válidas. No
primeiro caso, a lógica deve descrever processos psicológicos (e nesse sentido, Mill
pode - ao menos em princípio, pois veremos que a coisa não é bem assim - ser
chamado de psicologista), no segundo, deve constituir-se num conjunto de esquemas
e abreviações destinado a possibilitar o raciocínio correto; e, portanto, já que a lógica
15
“... he (Archishop Whately) has defined Logic to be the Science, as well as the Art, of reasoning;
meaning by the former term, the analysis of the mental process which takes place whenever we reason,
and by latter, the rules, grounded on the analysis, for conducting the process corretly. (...) Logic, then,
comprises the science of reasoning, as well as an art, founded on that science
” (idem: Introduction, 2)
28
cuida daquela espécie de conhecimento dita derivada, deve estar suposta na
aquisição da maior parte dos conhecimentos que estamos aptos a possuir. A lógica,
pois, deve possuir uma parte
descritiva
e outra
normativa
. Uma lógica que se
pretende descritiva é, certamente, uma lógica psicologista, já uma lógica que se
reivindica normativa, pode certamente possuir um outro estatuto.
Mais adiante, no capítulo III, retomaremos o problema da relação de Mill com
o psicologismo. Por ora, cabe ressaltar que, embora Mill tenha afirmado o contrário,
a Lógica milliana abarca, de fato, somente uma das perspectivas acima: a lógica como
arte. Ele definiu a lógica como
arte
e
ciência
, mas, durante o desenvolvimento de seu
conceito de lógica, de modo a expor mais detalhadamente sua função no conjunto
das atividades humanas, a descrição dos processos psíquicos é esquecida. Se
considerarmos a definição mais precisa oferecida acima, que caracteriza a lógica
como
ciência da prova
, veremos claramente que os processos psíquicos que seriam
analisados pela, digamos assim, ‘parte científica’ da lógica, não jogam nenhum papel
relevante na derivação das verdades inferidas a partir das premissas. Eles pretendem
explicar a gênese de tais princípios por meio de uma análise dos processos subjetivos.
Mas uma explicação genética não pode substituir uma justificação lógica. Se as regras
de inferência
16
- que em última análise decidem sobre a correção do raciocínio e
sobre a validade da prova - são ou não obtidas a partir da consideração de processos
psíquicos, esse é um problema de outra ordem, que diz respeito, na melhor das
hipóteses, à epistemologia da lógica. Porém, uma vez estabelecidas essas regras,
sejam elas consideradas como princípios universais da razão, sejam esquemas ou
abreviações de processos psíquicos obtidos por observação e indução, o fato é que a
Lógica não serve a uma causa psicológica e sim à justificação objetiva das verdades
16
Certamente, não devemos entender aqui por “regra de inferência” princípios racionais objetivos, mas
tão somente, esquemas obtidos por observação e indução.
29
inferidas. O que deve ficar claro na presente seção é a incompatibilidade existente
entre a lógica entendida enquanto análise de processos mentais e a lógica entendida
enquanto relacionada à justificação dos raciocínios. Como Frege foi capaz de ver com
toda clareza
17
, causas psíquicas estão envolvidas tanto na realização de raciocínios
corretos, quanto incorretos, tanto no estabelecimento de verdades, quanto de
falsidades. Portanto, essas causas não devem guardar nenhuma relação com aquilo
que pode justificar a validade ou correção
18
de uma inferência. É interessante
notarmos que Mill enxergou isso, pois fez questão de salientar a distinção entre
causas psíquicas e justificação de inferências. Pecou, entretanto, ao defender que a
análise das causas psíquicas está também sob a égide da lógica. No entanto, apesar de
ter afirmado isso explicitamente, Mill preocupou-se exclusivamente com a
justificação dos raciocínios, pois não há outra maneira de compreendermos a tese de
que a lógica é a ciência da prova.
I.2.2. Lógica e linguagem
Definida a lógica como ciência da prova, Mill estabelece a necessidade de
voltar-se prioritariamente para a linguagem em sua edificação. Deve estar incluída
na ciência da lógica também uma dimensão semântica, capaz de dar conta tanto da
significatividade dos termos, quanto da contribuição que o significado dos termos
fornecem ao estabelecimento do sentido proposicional
19
. Isso, no entanto, em nada
17
Ver: III.3.1
18
Falo em
validade
ou
correção
de um raciocínio, porque a expressão “validade” é associada comumente
aos raciocínios dedutivos. E, como vimos, Mill está interessado também nas inferências indutivas.
19
“But there is another reason, of still more fundamental nature, why the import of words should be the
the earliest subject of the logicinan’s consideration: because without it he cannot examine into the import
of Propositions. Now this is a subject which stands on the very threshold of the science of logic”
(
System
of logic
: I, i, 1)
30
contraria a definição da lógica como ciência e arte do raciocínio: se a lógica busca
conhecer os procedimentos mentais envolvidos nos raciocínios e, a partir dele, ser
uma disciplina normativa capaz de balizar a conduta argumentativa dos sujeitos na
busca da verdade (daquelas verdades derivadas), e se tudo aquilo que pode ser dito
verdadeiro ou falso deve necessariamente assumir a forma de uma proposição, a
análise semântica da linguagem e o estabelecimento da maneira como os termos se
articulam na constituição do sentido proposicional não deve ser encarada senão
como preliminares fundamentais da arte do raciocínio. Por esse motivo, o primeiro
capítulo do Livro I do
System of logic
é dedicado aos nomes e às proposições.
A primeira seção do capítulo I é destinada a justificar o motivo pelo qual Mill
inicia seu
System of logic
a partir de uma análise da linguagem:
A Lógica é uma parte da arte do pensar; a linguagem, de acordo com o
testemunho de todos os filósofos, é, evidentemente, um dos principais
instrumentos úteis ao pensamento (...) Um espírito que, sem estar
previamente instruído sobre a justificação e o justo emprego das diversas
classes de palavras, empreendesse o estudo dos métodos de filosofar, seria
como aquele que quisesse chegar a ser observador em astronomia sem ter
aprendido a acomodar a distância focal dos instrumentos de ótica para uma
visão distinta
.
20
Está claro nesta passagem que Mill comunga da concepção, completamente oposta à
de Locke
21
, de que o pensamento é uma atividade eminentemente simbólica, que
necessita da “mediação” da linguagem para se realizar. Veremos que, em Locke, o
universo do pensamento se realiza num contexto fundamentalmente extra-
lingüístco. A linguagem tem por função somente comunicar pensamentos e não
20
Logic is a portion of de Art of Thinking: Language is evidently, and by the admission of all
philosophers, one of the principal instruments or helps of thought (...) For a mind not previously versed
in the meaning and right use of various kinds of words, to attemp the study of methods of philosophizing,
would be as if some one should attemp to become na astronomical observer, having never learned to ajust
the focal distance on his optical instruments as to see distinctly
” (idem; I, i, 1)
21
ver II.3
31
propriamente ser um “instrumento do pensamento”. Locke iniciou seu
Essay
falando
as idéias – e portando, sobre o que está envolvido no ato de pensar; somente depois
trata da linguagem, determinando seu caráter utilitário e sua necessidade social. Mill,
por seu turno, inicia sua grande obra pela análise da linguagem, e só depois abordará
o raciocínio. Porque, se a lógica se pretende ciência e arte do raciocínio - este
entendido eminentemente como manifestação do pensamento – e se a linguagem é
um instrumento útil ao pensamento, então um tratado de Lógica deve ser iniciado
por uma análise da linguagem.
De acordo com o que podemos ler na passagem acima, uma coisa importante
deve ser salientada: se Mill está reivindicando a necessidade instrumental da
linguagem no ato do pensamento, certamente ele não pode estar entendendo por
pensamento
, coisas como apreensão, relação ou associação de idéias, de imagens
mentais. A maneira como Mill entende qual deve ser o papel da linguagem enquanto
instrumento útil ao pensamento demonstra que ele tem em mente, quando fala em
pensamento, algo relacionado de forma direta ao raciocínio, à derivação de verdades
a partir de outras verdades e à própria enunciação de verdades por meio da
proposição. Não precisamos absolutamente da linguagem para formar idéias que se
apresentem na forma de imagens mentais, nem para refletirmos sobre essas idéias
para criar outras mais complexas; precisamos da linguagem, como veremos logo a
seguir, para a enunciação proposicional. Portanto, precisamos da linguagem para
exercer uma atividade que tem uma característica lógico-veritativa, que repousa na
derivação de verdades inferidas a partir de verdades dadas, e não, como ocorre no
caso do nominalismo psicologizante de Locke que veremos no próximo capítulo,
simplesmente para comunicar o conteúdo de nossa vida psicológica, que por ser
insensível, necessita da mediação simbólica da linguagem para ser transmitida aos
outros sujeitos. Em suma, precisamos conhecer os mecanismos semânticos da
32
linguagem para sabermos como os nomes significam e, a partir disso, verificarmos
como se constitui a unidade do sentido proposicional. Uma vez, pois, que é o sentido
proposicional o ‘objeto da crença’ - ou seja, o
portador da verdade
22
- a análise da
linguagem, no universo do sistema de lógica deve possuir essa característica:
fundamentar aquilo que, em última análise, é o elemento lógico prioritário, o
portador da verdade, a saber, o
sentido proposicional
.
Há um outro ponto importante a ser aqui salientado: ao voltar-se para a
linguagem, Mill retorna a um estágio, digamos assim, pré-moderno. A preocupação
milliana com a linguagem e, mais especificamente, com uma teoria do significado
capaz de estabelecer a relação direta entre nomes e coisas sem referência às
condições subjetivas envolvidas nos processos cognitivos
23
, demonstra que Mill
promove, num certo sentido, um retorno aos escolásticos
24
. Como veremos mais
22
ver: II.4.
23
ver: I.3.
24
Algumas passagens importantes do
Sistem of logic
demonstram a postura milliana de ‘retorno aos
escolásticos’. Ao mesmo tempo em que critica o subjetivismo típico dos modernos, Mill várias vezes
reivindica uma herança medieval para muitos dos conceitos dos quais se serve, e sempre com relação a
conceitos referentes à linguagem; por exemplo:
“The same abstinence from details could not be observed
in the Fisrt Book, on Names and Propositions; because many useful principles and distintions which were
contained in the old logic, have been gradually omitted from the writhins of its later teacher; and it
appeared desirable both to revive these, and to reform and rationalize the philophical foundations on
which they stood. The earlier chapters of this preliminary Book will consequently appear, to some
readers, needlessly elementary an scholastic. But those who know in what darkness the nature of our
knowledge, and of the processes by which it is obtained, is often involved by a confused apprehension of
the import of the different classes of Words and Assertions, will not regard these discussions as either
frivolous, or irrelevant to the topics considered in the later Books”
(Prefaces). Ou:
“But Reasoning, even
in the widest sense of which the word is suscetible, does not seem to comprehend all that is included,
either in the best, or even in the most current, conception of the scope and province of de our science.
The employment of the word Logic to denote the theory of Argumentation, is derived from the
Aristotelian, or, as they commonly termed, the scholastic, logicians”
(Introduction, 3). Ou ainda:
“I use
de words concrete and abstract in the sense annexed to them by the schoolmem, who, not withstanding
the imperfections of their philosophy, were unrivalled in the constructinon of tecnical language, and
whose definitions, in logic least, though they never went more thna in a little way into the subject, have
seldom, I think, been altered but to be spoiled”
(I, ii, 4).
33
adiante, quando tratarmos da teoria milliana da conotação
25
, aquele empirismo
psicologizante e idealista típico dos britânicos modernos assumirá em Mill o aspecto
de um empirismo semântico e realista. Se concordarmos com Dummet
26
que o marco
do advento da filosofia contemporânea foi uma espécie de retorno a Aristóteles e aos
escolásticos, na medida em que se coloca a lógica como prioritária com relação à
epistemologia, contradizendo, assim, todo o espírito idealista e subjetivista - comum,
em suas diversas manifestações, à Descartes e Berkeley, a Locke e Kant – então,
talvez seja Mill, e não propriamente Frege, como acredita Dummet, o iniciador desse
processo. E isso por dois motivos: primeiramente, por ter escrito como sua obra
fundamental e prioritária do ponto de vista sistemático, um tratado de lógica, e não
de epistemologia; em segundo lugar, por ter iniciado e fundamentado seu tratado de
lógica a partir da semântica, e não da psicologia. A lógica é prioritária com relação a
todas as outras ciências
27
e a semântica é prioritária com relação à própria lógica.
Mill assume, assim, um ponto de vista que coloca os problemas filosóficos
prioritários a partir da pergunta elementar da relação entre os nomes e as coisas. Boa
parte das discussões que empreenderá no Livro I de sua grande obra estará voltada à
25
I.3
26
“Desde el tiempo de Descartes hasta hace muy poco, la pregunta básica para la filosofia era qué podemos
conocer y como podemos justificar nuetras pretensiones de conocimento; y el problema filosofico
fundamental era hasta dónde puede refutarse el scepticismo u qué tando debe aceptarse. Frege fue el
primer filósofo posterior a Descartes que rechazó totalmente esta perspectiva y en este respecto vio más
allá de Descartes hacia Aristóteles y los escolásticos. Para Frege, como para ellos, la lógica era el principio
de la filosofia; si no tenemos una lógica correta, no obtendremos nada más correto. La epistemologia, por
otro lado, no es prioritária con respecto a ninguna rama de la filosofia; podemos desarrollar la filosofia de
las matemáticas, la filosofia de la ciencia, la metafísica, o cualquier cosa que nos interese, sin tener que
realizar primero una investigación epistemológica. Es este cambio de perspectiva, más que ninguna otra
cosa, lo que constituye la diferencia principal entre la filosofia contemporânea e sus antecessoras y, desde
este punto de vista, Frege fue el primer filósofo moderno”
(Dummet, M.
La verdad y otros enigmas;
trad.
Patiño, A. H. Pg. 159)
27
By far the greatest portion of our knowledge, whether of general truths of particular facts, being
avowedly matter of inference, nearly the whole, not only of science, but of human conduct, is amenable
to the authority of logic”
(Mill; op. cit.: Introduction, 5)
34
querela entre realismo, nominalismo ou conceitualismo
28
, problemas esses que estão
relacionados de forma mais íntima com as discussões medievais do que com as
modernas. Mais adiante retomaremos esse ponto com maior destaque, mas é
importante ter clara a conexão existente entre o um suposto retorno aos medievais e
às suas discussões que visavam a relação entre nomes e coisas, com a filosofia
entendida como análise lógica da linguagem. E, se essa hipótese é verdadeira, então
talvez deveríamos, ao menos o partir deste ponto de vista específico, entender a
filosofia moderna e seu espírito epistemológico e subjetivista como uma espécie de
hiato. Para ir adiante foi necessário dar um passo atrás; para avançar à
contemporaneidade foi necessário retornar aos medievais. E sua preocupação
prioritária com a linguagem fez com que Mill desse tal passo.
I.2.3. Nomes e proposições
Mill aponta uma razão importante para ter iniciado seu
System of logic
pela
análise da linguagem e, mais especificamente, dos nomes: o significado das palavras
(ou, no caso, dos nomes) que compõem uma proposição determina o significado das
próprias proposiçãos
29
; e a proposição, esta sim, é o objeto primeiro da lógica, pois
tudo o que pode ser verdadeiro ou falso deve assumir a forma proposicional:
28
Conceitualismo, como veremos no capítulo II é, segundo Mill, uma espécie de nominalismo no qual,
entretanto, os nomes são nomes de idéias e não das coisas mesmas
: “A third doctrine arose, wich
endeavoured to steer between the two (nominalism and realism). According to this, which is know by
the name of conceptualism, generality is not an atribute solely of names, but also of thoughts”
(An
examination... XXVII)
29
“... there is another reason, of a still more fundamental nature, why the import of words should be the
earliest subject of the logician’s consideration: because without it he cannot examine into the import of
Propositions.”
(idem, I, i, 2)
35
Tudo o que pode ser objeto de crença ou não crença deve expressar-se por
palavras, e tomar a forma de uma proposição. Toda verdade e toda falsidade
jazem numa proposição. O que nós chamamos, por um cômodo abuso de um
termo abstrato, de uma verdade, significa simplesmente uma proposição
verdadeira, e as falsidades são proposições falsas
30
.
Como podemos notar, Mill, claramente, está atrelando três conceitos que são
absolutamente caros à sua lógica:
crença, verdade
e
proposição
. A
crença
deve supor
necessariamente algo que é crido, um objeto intencional ao qual se refira. Quem crê,
crê em algo, e esse objeto é o conteúdo objetivo expresso pela
proposição
. E no que
consiste essa referência intencional do ato da crença? Consiste no reconhecimento
de um conteúdo objetivo como sendo
verdadeiro
, consiste na atribuição do
valor de
verdade verdadeiro
a um conteúdo proposicional. Assim, a fundamentação da lógica
milliana deve possuir os seguintes estágios: a) uma análise dos nomes, ‘matérias
primas’ das proposições; b) uma análise da proposição, portadora da verdade e c) uma
análise do raciocínio, mecanismo pelo qual determinadas verdades são inferidas a
partir de outras verdades dadas. É esse o caminho seguido por Mill no seu
System
of
logic
e é com vistas a alcançar esses objetivos que devemos compreender a
preocupação prioritária de Stuart Mill para com a linguagem. Ao contrário do que
ocorre no modelo lockeano, Mill procura analisar e fundamentar o papel da
linguagem a partir de um ponto de vista eminentemente lógico-veritativo. Por isso, a
análise da linguagem deve ter por objetivo prioritário a fundamentação sintática e,
sobretudo, semântica daquilo que se estabelece como um sentido proposicional, uma
vez que é esse
sentido
o portador da verdade - ou o objeto da crença, como Mill
prefere dizer.
30
Whatever can be na object of belief, or even of desbelief, must, when put into words, assume the form
of a proposition. All truth an all error lie in propositions. What, by a convenient misapplication of a
abstract term, we call a Truth, means simply a True Proposition; and errors are false propositions
. (idem:
I,i,2)
36
Como já foi mencionado, Mill comunga ainda do instrumental lógico-
sintático proveniente da silogística aristotélica. Para ele, portanto, numa proposição,
um nome (predicado) é sempre afirmado ou negado de outro nome (sujeito); os
termos sujeito e predicado são conectados pela cópula (‘é’, ‘não é’, ou qualquer outra
inflexão do verbo ser), que tem também a função de determinar se o predicado é
afirmado ou negado do sujeito
31
. Torna-se evidente, assim, que, para determinar os
tipos de proposições com os quais o pensamento trabalha, é necessário conhecer os
tipos de nomes que se compõem em proposições, para, em seguida, poder ser
realizado um inventário das próprias proposições. Como veremos, Mill romperá com
a tese lockeana de que os nomes referem-se a idéias; portanto, a unidade do sentido
proposicional não pode ser estabelecida em termos psicológicos, a partir de processos
de associação de idéias. Por isso, o sentido proposicional deverá constituir-se
exclusivamente por meio da carga significativa dos nomes que compõe a proposição.
A Proposição (entendida enquanto o significado das sentenças) deixará de ser uma
‘entidade psíquica’ como as
proposições mentais
lockeanas
32
para se tornar uma
‘entidade lógica’ cuja fundamentação deve ser exclusivamente semântica. Por isso,
para compreendermos como se estabelece o sentido proposicional, uma vez que esse
sentido é um complexo obtido a partir da síntese de duas ‘entidades’ que não são
mais idéias, é necessário investigar no que consiste a ‘carga significativa’ dos nomes,
pois é a partir dela que a proposição irá se estabelecer enquanto unidade de sentido.
Certamente, estamos diante de um ponto de vista, em princípio, diametralmente
oposto ao de Frege com respeito à relação do sentido proposicional com suas partes.
Em Frege, clara e explicitamente, o sentido proposicional é, digamos assim, ‘anterior’
31
“Every proposition consists of three parts: the Subject, the Predicate, and the Copula. The predicate is
the name denoting the person or thing which something is affirmed ou denied of. The copula is the sign
denoting that is an affirmation or denial; and thereby enabling the hearer or reader to distinguish a
proposition from any others kind of discourse”
(idem: I, i, 2)
32
v
er II.3.5.
37
aos significados das palavras, que só devem ser estabelecidos no contexto da
proposição, como a contribuição que realiza na constituição do sentido
proposicional
33
. No entanto, assim acreditamos, tal oposição é, senão falsa, ao menos
apenas parcialmente verdadeira. Há elementos suficientes nos textos de Mill capazes
de demonstrar que ele, embora certamente não tenha visto isso com toda a clareza
que poderíamos esperar, já antevê a prioridade do sentido proposicional. Mas, seja
como for, o que deve ser considerado é que Mill retira do universo psicológico o
papel de ser o responsável pela constituição da unidade do sentido proposicional. A
proposição se estabelece no âmbito da significatividade dos termos conotativos; é na
maneira como os nomes apresentam seus referentes, naquilo que eles conotam, que
se encontram os elementos constitutivos do sentido proposicional. No capítulo II,
retomaremos este problema a partir da pergunta pelo
status
da unidade do sentido
proposicional em Mill. Mas, por ora, essas considerações nos bastam e nos levam à
teoria da
conotação
.
I.3. A teoria da conotação
Uma contribuição decisiva de Stuart Mill ao advento daquilo que se
acostumou chamar de virada lingüística na filosofia do século XIX, e cujos
desdobramentos vieram a determinar os ditames teóricos e metodológicos da
filosofia contemporânea, foi a elaboração de uma teoria semântica na qual o processo
de significação é explicado não a partir de causas psicológicas e com recurso a
entidades subjetivas, mas a partir de categorias objetivas e inerentes aos próprios
nomes em sua significatividade. Num modelo semântico-psicólogico como o de
33
Ver: III.2.5.
38
Hobbes e Locke, como veremos no Capítulo II, a relação do símbolo com aquilo que
é simbolizado somente pode ser dada por meio de uma mera convenção arbitrária. E
para isso, não é necessária propriamente uma teoria
semântica
; basta que se explique
a relação do nome com a idéia nomeada a partir de elementos psicológicos, com
referências a processos mentais, como leis psicológicas de associação. Como o que é
nomeado, segundo aquele modelo, são as idéias e não as coisas mesmas, a relação do
nome com um suposto objeto real (segundo Locke, nós não conhecemos as coisas
mesmas, mas somente supomos tacitamente sua existência real) explica-se por meio
da psicologia e não da semântica propriamente dita. E já que os nomes não se
relacionam com coisas, mas somente com idéias, a relação das idéias com as coisas
mesmas se estabelece pela explicação de como as idéias são produzidas nos sujeitos a
partir da percepção sensível do mundo exterior. Ou seja: a psicologia explica a
produção de idéias a partir da observação e também a relação convencional existente
entre os signos da linguagem e as idéias que são seus referentes. E, ainda de acordo
com nossa hipótese, o que Mill ‘colocou no lugar’ da explicação psicológica acerca do
processo de significação foi justamente sua teoria da conotação. As seguintes seções
terão, pois, o objetivo de apresentar essa teoria dentro do seu contexto sistemático.
Para que se possa, porém, expor a teoria da conotação milliana é necessário
apontarmos algumas distinções que o autor realiza com relação à divisão dos nomes
em geral. A classificação dos nomes é efetuada no
System of logic
através de
distinções sucessivas; ao final das distinções, forma-se uma complexa teia de nomes e
estruturas semânticas, cujo principal conceito é o de
conotação.
Antes, porém, de
adentrarmos propriamente na classificação dos nomes realizada por Mill, é
necessário salientar algo extremamente importante. Para Mill, na esteira de toda
uma tradição nominalista, nome é qualquer expressão que possa assumir, numa
proposição, o lugar do
termo sujeit
o ou do
termo predicado
. Trata-se, pois, de uma
39
concepção de nome absolutamente abrangente. Um nome pode ser tanto um nome
próprio como “João”, “Brasil”, “Lulu”, quanto nomes complexos como “o maior pico
localizado na região sudeste do Brasil”; além disso, adjetivos como “branco”, “velho”,
“sábio”, são também considerados nomes; são nomes que denotam todas as coisas que
podem ser ditas brancas, velhas ou sábias. E, como um bom nominalista, Mill
entende que uma proposição tem por objetivo imediato atribuir nomes, e não
propriamente propriedades. Porém, a novidade que apresentou com relação a esse
mesmo nominalismo é a tese de que as propriedades são, de fato, atribuídas na
proposição, mas não em virtude daquilo que a proposição diretamente afirma, mas
em virtude da maneira como os nomes que a compõem significam
34
.
No decorrer deste capítulo, essas afirmações se tornarão mais claras.
Passemos, agora, à classificação dos nomes propriamente dita.
I.3.1. Nomes gerais e singulares
A primeira distinção que nos interessa divide os nomes em
singulares
e
gerais.
Um
nome singular
é aquele que somente pode ser predicado verdadeiramente e com
o mesmo sentido de um único objeto. Por oposição, um
nome geral
pode ser
predicado verdadeiramente e com o mesmo sentido de um número indeterminado
de objetos
35
. Nomes próprios, tais como “João”, “Maria”, “São Paulo”, “Pelé” são
claramente nomes singulares. Já os nomes que tomam a forma de adjetivos, que
aparecem na maioria das vezes como predicados de proposições, tais como “branco”,
34
ver: I.4.3.
35
“A general name is familiarly definied, a name which is capable of being truly affirmed, in the same
sense, of each of an indefinite number of things. An individual or singular name is a name which is only
capable of being truly affirmed, in the same sense, of one thing”
(idem: I,ii,3)
40
“velho”, “sábio”, são exemplos de nomes gerais. Há, certamente, uma infinidade de
objetos dos quais se pode predicar verdadeiramente e no mesmo sentido cada um
desses três nomes, e isso porque cada um deles determina um critério que os objetos
em geral devem obedecer para poderem ser deles predicados; tal critério consiste em
que os objetos possuam um determinado atributo (exatamente o mesmo atributo), no
caso, a brancura, a velhice e a sabedoria.
Os
nomes singulares
, por sua vez, não se resumem aos nomes próprios, aos
“nomes de batismo”, àqueles que são impressos muitas vezes arbitrariamente aos
indivíduos simplesmente com o objetivo de distinguí-lo dos demais, como os nomes
citados mais acima (“João”, “Maria” etc.); “esta caneta”, ou o
“atual presidente da
república” são nomes que somente podem ser predicados verdadeiramente e num
mesmo sentido de um único objeto; são, portanto, nomes singulares, mas não nomes
próprios, pois podem oferecer um critério para sua predicação e este critério pode
consistir na posse ou não de algum atributo, como acontece com os nomes gerais.
Claro deve estar que o mero fato de um determinado nome denotar um único
elemento não é condição suficiente para que seja considerado um nome singular. Um
nome pode ser, em princípio, predicado de verdadeiramente de um único objeto,
mas isso pode se dever simplesmente a uma determinada circunstância. Por exemplo:
“país estrangeiro visitado por João”; a circunstância de João ter visitado em sua vida
apenas um país estrangeiro não faz desse nome um nome singular; em princípio, João
poderia conhecer vários outros países, e pode vir a conhecê-los futuramente, o que
faz com que esse nome tenha um único indivíduo como referência são circunstâncias
do mundo, não algo que seja determinado pela significação mesma do nome; esta
expressa generalidade e supõe, ao menos em princípio, um número indeterminado
de referências possíveis. Um nome singular, pois, deve ser, de forma mais precisa,
definido com um nome que, dada sua carga semântica ou ao seu caráter
41
convencional que não guardam nenhuma referência aos fatos do mundo, somente
possa ser predicado de um único objeto.
Não se pode também tomar por
nome geral
um
nome coletivo
.
O XV
regimento de infantaria do exército britânico
é um nome singular embora o próprio
regimento seja composto por um grande número de indivíduos; trata-se, no entanto,
de um
único
regimento e é ao regimento que o nome se refere. Nomes gerais
referem-se a uma pluralidade de objetos e nunca a um objeto determinado , mesmo
que este seja, em sua natureza, coletivo e, assim, composto por uma série de
indivíduos. O soldado João não é o XV Regimento, mas um membro desse
regimento.
A distinção entre
nomes singulares
e
nomes gerais
, nos remete a uma outra
definição importante: entre
nomes conotativos
e
nomes não-conotativos
; isso porque
é a
conotação
quem garante, no universo conceitual milliano, a generalidade aos
nomes gerais
.
I.3.2. Nomes conotativos e não conotativos
A segunda distinção entre os nomes que será mencionada é também a
mais importante que Mill realiza, pois é nela que se encontra o coração de sua
semântica. Trata-se da distinção entre nomes
conotativos e não-conotativos
. Um
nome
não-conotativo
é aquele que se refere a um sujeito ou a um atributo somente;
um termo
conotativo
designa um sujeito e implica um ou mais atributos
36
. Devemos,
aqui, entender por sujeito tudo aquilo que possua atributos. Exemplos de nomes não-
36
“A non-connotative term is one which signifies a subject only, or an attribute only. A connotative term
is one which denotes a subject, and implies an attribute”
(idem II, ii, 5)
42
conotativos são:
João
,
São Paulo
,
Brasil
; exemplos de nomes conotativos são:
virtuoso
,
branco
,
grande
. A diferença fundamental existente entre essas duas classes
de nomes reside no fato de que uma delas, a primeira, compreende nomes que são
atribuídos aos indivíduos arbitrariamente, com o único objetivo de distinguí-lo dos
demais, sem, no entanto, apresentar nenhuma informação acerca de seus referentes;
são os chamados
nomes próprios
. A outra classe compreende nomes que referem-se
aos indivíduos dos quais podem ser verdadeiramente predicados não por mera
associação arbitrária, mas porque determinam um ou mais atributos que os
indivíduos em geral devem possuir para que possam ser por eles nomeados
37
. Um
indivíduo é chamado
João
por uma livre escolha de seus pais que assim resolveram
chamá-lo para distingui-lo das demais pessoas. Em princípio, porém, poderia receber
qualquer outro nome sem prejuízo de sua própria natureza, pois o nome “
João
” não
nos informa nada acerca desta natureza. É bem verdade – e Mill deixa isso claro –
que pode ter havido algum motivo positivo para que lhe pusessem esse nome, mas
ainda assim não se pode dizer que um tal nome seja conotativo:
Um homem pode se chamar João porque esse era o nome de seu pai; uma vila
pode se chamar Dartmouth porque está situada na embocadura do Rio Dart;
Não há, porém, nada na significação da palavra João que implique que o pai
do indivíduo assim chamado também possua esse nome; nem, tampouco, na
palavra Dartmouth que esta vila esteja situada na desembocadura do rio Dart.
Se a areia viesse a obstruir a desembocadura do rio
(...)
nem por isso o nome
da vila mudaria necessariamente
38
.
37
Da relação entre a generalidade dos nomes conotativos e a singularidade dos nomes próprios, cuidei em
outro lugar:
Nomes próprios gerais no contexto da semântica de J. S. Mill
; in: Revista Trans-Form-Ação;
vol. 28(1), 2005, pp.67- 83.
38
“A man may have been named John, because that was the name os his father; a town may have been
named Dartmouth, because it is situated at the mouth of the Dart. But, it is no part of the signification of
the word John, that the father of the person so called bore the same name; nor even of the word
Darthmouth, to be situated at the mouth of the Dart. Is sand should choke up the mouth of the river, or
an earthquake change its course, and remove it to a distance from the town, the name of the town would
not necessarily be changed”
. (idem)
43
Isso não acontece com os nomes conotativos. Um indivíduo é chamado
virtuoso
não
porque este nome lhe tenha sido atribuído arbitrariamente, mas porque o nome
virtuoso”
implica, compreende, indica ou, como Mill prefere dizer,
conota
um
determinado atributo que todo indivíduo deve possuir para que o nome
virtuoso
possa dele ser predicado verdadeiramente, a saber, a
virtude
. Pode-se afirmar, em
última instância, que os nomes conotativos são
criteriais
(segundo Skorupski:
criterial names
39
) na medida em que fornecem um critério bem determinado que
deve ser obedecido pelos indivíduos que por eles são nomeados. Possuem, pois, uma
carga semântica que vai muito além da mera associação arbitrária de palavras aos
seus referentes, defendida pelo nominalismo clássico. Nomes conotativos referem-se
a indivíduos, mas o fazem através da afirmação de algo que positivamente esses
indivíduos possuem. O que existe em comum entre todos os indivíduos denotados
pelo nome “homem” não é somente o nome “homem”, mas a posse de uma série de
atributos conotados por esse nome. Toda vez que se pronuncia a palavra “homem”,
além de se referir diretamente aos indivíduos dos quais essa palavra é nome, refere-
se também, indiretamente, a todos os atributos relacionados à
humanidade
: vida
animal, racionalidade, mortalidade etc.. E sabemos que somente a posse de todos
esses atributos em conjunto garante a predicação verdadeira desse nome a qualquer
indivíduo.
A teoria da conotação traz consigo uma conseqüência bastante
significativa no que diz respeito à semântica milliana: que somente os
nomes
conotativos
propriamente têm significação ou, o que vem a ser o mesmo, que a
significação dos nomes é determinada por aquilo que eles
conotam
e não pelo que
39
“To know the meaning of a general name like ‘white’, or ‘round’ is to know how to tell whether a thing
is white or round. ‘White’ and ‘round’ are given a use in the language by being associated with criteria.
Grasping the meaning of such name, at least in the primitive case, is graspoing what facts about an object
would warrant predicating the name of it. Let us call such
criterial
names
” (Skoruspiki. J.:
John Stuart
Mill.
Pg. 57)
44
eles
denotam
40
. O significado da palavra “homem”, por exemplo, não depende e não
se relaciona aos indivíduos que são verdadeiramente chamados de homem, mas à
carga semântica que o nome carrega consigo, determinada justamente pelos atributos
que conota. O significado de um
nome conotativo
é a sua
conotação
. O argumento
para a sustentação desta tese baseia-se no fato de que nomes de diferentes conotações
podem ter a mesma denotação e, no entanto, não têm o mesmo significado
41
.
Portanto, o significado não pode ser relacionado, utilizando uma expressão fregeana,
à referência do nome, àquilo que o nome propriamente denota. Ao contrário disso,
significação é algo que se relaciona à
maneira
como o referente é denotado.
Significar é um processo que depende, agora, de elementos objetivos e
eminentemente semânticos, e não mais da mera associação arbitrária. É a carga
semântica que o nome efetivamente trás consigo em sua conotação quem
efetivamente possibilita e determina a relação dos nomes com as coisas nomeadas.
Não se trata mais de postular uma instância psíquica mediado a relação do signo com
o mundo real (ou um suposto mundo real, como quer Locke). Não se trata mais de
submeter a semântica à psicologia, mas de dotar a semântica de uma autonomia até
então incomum na história da filosofia.
Vale apontar também que o elemento de arbitrariedade existente e
determinante na semântica lockeana
42
perde toda sua força no contexto milliano. Os
nomes são, de fato, escolhidos ao acaso e a relação do nome com a coisa nomeada
não é absolutamente natural e necessária, mas arbitrária e contingente.
40
“From the preceding observations it will easily be collected, that whenever the names given to objects
convey any informations, that is, whenever they have propely any meaning, the meaning resides not in
what they
denote
, but in what they
connote
. The only names of objects which connote nothing are
proper
names; and these have, strictly speaking, no signification”
(idem; I, ii, 5)
41
Salta aos olhos, aqui, o parentesco entre a posição de Mill e a teoria fregeana do sentido e referência.
Infelizmente, não foi possível incluir nesse volume um capítulo tratando desta relação. Espero, porém, no
momento oportuno, poder publicar algum material sobre este tema.
42
ver II.3.2
45
Determinados objetos do mundo são referidos pelo termo geral “mesa” mas, em
princípio, poderia ser qualquer outro termo – e, de fato, em outros idiomas isso
ocorre. Mas isso - a escolha dos nomes - só é realmente muito relevante numa
semântica da substituição, como a de Locke, na qual o nome é uma marca sensível
que substitui uma idéia não sensível. Já no caso de uma teoria semântica como a de
Mill, baseada no conceito de conotação, o que menos importa é qual o termo, o
símbolo, utilizado como nome geral e as leis psicológicas da associação que explicam
a relação entre um nome e seu referente, mas o que propriamente esse nome conota.
Se o termo é “mesa”, “table”, “bicicleta” ou “tatatá”, isso é o menos importante para
sua sigificatividade. O que realmente importará e determinará a significação do
nome serão os atributos que ele conota. E uma vez identificados esses atributos
conotados, podemos dizer, o nome significa ‘por si só’, pois exprime seus próprios
critérios objetivos de nomeação, sem referência a processos psíquicos de associação.
Há uma característica da teoria milliana da conotação que será apenas
mencionada aqui, mas que, infelizmente, não será explorada como deveria: teoria
milliana da conotação promove uma espécie de ‘revolução copernicana’ na maneira
como os nomes se relacionam com seus nomeados. Numa semântica da substituição,
como parece natural, os nomes são, digamos assim,
atribuídos
aos seus referentes.
Usando uma imagem, são os nomes que ‘vão’ até seus referentes, são atribuídos e
adicionados a eles como um rótulo é adicionado a uma garrafa ou uma marca de giz é
colocada na fachada da casa, tal como ocorre nas mil e uma noites
43
. Coisas (ou, no
caso de Hobbes e Locke, idéias) recebem nomes, e isso se deve exclusivamente
àquele elemento de arbitrariedade mencionado a pouco. Ora, no caso dos nomes
43
Mill associa (I, ii, 5), na forma de uma analogia, a atribuição de nomes próprios (não conotativos) ao
procedimento do ladrão das mil e uma noites que marcou com um “x” a casa que gostaria de assinalar. No
entanto, como tal marca foi realizada arbitrariamente e sem nenhum conteúdo descritivo suposto, ela
deixou de cumprir sua função quando todas as outras casas foram marcadas da mesma forma.
46
conotativos, não é isso o que acontece. Uma vez determinada a carga semântica pela
conotação dos nomes, serão os objetos que, de acordo com sua própria determinação
ontológica, de acordo com os atributos que positivamente possuem, quem se
adequam ou não ao nome. São os objetos que ‘vão até o nome’ e não o contrário. Um
nome conotativo determina por si só, ou seja, pela sua significação, que objetos
podem ou não ser ‘atribuídos’ a ele. Isso que acabamos de apontar, talvez mereça ser
analisado com mais cuidado (certamente em outro lugar) porque, ao que parece, ela
possui uma característica, em certo sentido, similar à maneira como funciona, na
lógica de predicados fregeana, a relação entre
conceitos
e
objetos
. Conceitos, em
Frege, são entidades insaturadas que precisam ser preenchidas por algum objeto para
que se estabeleça um sentido proposicional: conceitos são preenchidos por objetos.
Aqui, os nomes conotativos impõem critérios objetivos capazes de permitir que as
coisas do mundo sejam abarcadas pelo nome. O nome conotativo ‘contém’ na forma
de possibilidades todos as coisas que são aptas a serem por ele nomeadas, tal como o
conceito
fregeano ‘contém’, a partir da generalidade que expressa, os objetos que
caem sob ele. Tal problema, no entanto, não será desenvolvido aqui; foi apresentado
somente enquanto uma hipótese a ser pesquisada futuramente.
A distinção entre
nomes conotativos
e
não conotativos
e, mais
especificamente, o conceito de conotação como associado à posse, por parte dos
objetos, de determinados atributos conotados, leva-nos a uma outra importante
distinção milliana com respeito aos nomes: nomes
concretos
e
abstratos.
I.3.3. Nomes concretos a abstratos
Mill apresenta, no
System of logic
, a distinção entre nomes
concretos
e
abstratos
antes de apresentar os nomes
conotativos
e
não conotativos
. No entanto,
47
entendo que as razões que justificam a necessidade de se utilizar esta distinção estão
diretamente relacionadas à teoria da conotação. Por isso, creio que ficará mais clara
exposta neste momento.
Como apontamos, dentro do universo sistemático de Mill as categorias
morfológicas
adjetivo
e
substantivo,
bem como as categorias sintáticas
sujeito
e
predicado
não determinam diferenças lógica ou ontologicamente relevantes quanto
àquilo que denotam. Por exemplo, na proposição “Sócrates é filósofo” não é caso de
que o nome “Sócrates” denote um determinado objeto e que o termo “filósofo”
denote um atributo que é predicado desse objeto na proposição. Tanto “Sócrates”
quanto “filósofo” denotam o mesmo objeto, são nomes de uma mesma coisa. Assim
sendo, torna-se necessário que haja uma classe de nomes que tenha por objetivo
denotar os atributos, aqueles que são conotados pelo
nome
conotativo
. Nesse
sentido, Mill utilizará o termo “
nome concreto”
para referir-se aos nomes que
denotam objetos e “
nome abstrato”
, para referir-se aos atributos dos objetos
44
. Todos
os nomes conotativos, por conotarem atributos, devem possuir um ou mais nomes
abstratos que lhe sejam correspondentes. Por exemplo: o nome geral “branco”, como
vimos, denota todas as coisas que possuem um determinado atributo por ele
conotado, a saber, a brancura. Assim, “brancura” é o nome abstrato correspondente
ao nome geral conotativo “branco”; “brancura” é o nome do atributo conotado pelo
nome “branco”, denota aquilo que o outro conota. Alguns nomes conotativos, no
entanto, podem possuir vários nomes abstratos a eles relacionados. Isso, porque
existem nomes conotativos que conotam mais de um atributo: “racionalidade”,
“mortalidade”, “animalidade” são todos nomes abstratos relacionados aos nome geral
conotativo “homem”.
44
“A concret name is a name which stands for a thing; an abstract name is a name which stands for an
attribute of a thing”
(Mill. op. oit. I, ii, 4)
48
Mill afirma estar recuperando o sentido medieval primitivo da expressão
“nome abstrato”
45
. Essa expressão teria perdido seu sentido original de referir-se a
nomes de atributos para ser utilizadas como sinônimo de “nome geral”. Tal fato se
deveu ao comprometimento quase que inevitável que a expressão “abstrato”, tão
metafisicamente ‘carregada’, manteve com a teoria da abstração. De acordo com isso,
nomes abstratos seriam nomes atribuídos àquilo que é obtido por meio da abstração;
por meio da desconsideração de todas as qualidades diferentes de determinados
objetos tomados em conjunto e a consideração de somente de alguma(s)
propriedade(s) que tenham em comum.
O que importa aqui, todavia, é salientar simplesmente que a teoria da
conotação e, mais precisamente, o fato de que os
nomes conotativos
denotam objetos
porque conotam propriedades desses objetos exige a estipulação de uma classe de
nomes que tenha como referência não os objetos mesmos, mas as propriedades,
aquilo que os nomes conotativos estabelecem como critérios objetivos para que os
objetos em geral devem obedecer para serem nomeados.
Nomes abstratos
denotam a
mesma classe de ‘entidades’ que os
nomes conotativos
conotam.
I.3.4. Nomes relativos e absolutos.
De acordo com Mill, nomes relativos são aqueles que não conotam uma
propriedade somente, mas conotam uma relação. Em outras palavras, é um nome
45
“I have used the words concret and abstrac in the sense annexed to them by schoolmen, who,
notwithstanding the imperfections of their philosophy, were unrivalled in the construction of thecnical
language, and whose definitios, in logic a least, though they never went more than a little way into
subject, have seldom, I think, been altered but to be spoiled”
. (idem)
49
conotativo que supõe não um, mas, pelo menos, dois objetos
46
. Por exemplo: o nome
relativo “pai” somente pode ser predicado a algum objeto desde que haja, e esteja
suposto, um outro elemento chamado filho. Portanto, não faz sentido dizer
simplesmente “fulano é pai”, mas é necessário que se diga “fulano é pai de beltrano”.
Há, certamente, uma série de problemas metafísicos envolvidos nesta
definição de
nome relativo
. Sobretudo pelo fato de Mill simplesmente afirmar que as
relações são atributos, embora atributos de um tipo especial. Trata-se, pois, de um
atributo que somente pode ser possuído por determinados objetos desde que suponha
outro(s) objeto(s) correlativos. São, portanto, atributos que não se podem identificar
simplesmente pela análise dos objetos individualmente:
Um nome é chamado relativo quando, além do objeto que denota, implica
em sua significação a existência de outro objeto, o qual também recebe uma
denominação a partir do mesmo fato do qual deriva o primeiro nome; ou
melhor, em outros termos, um nome é relativo quando, sendo o nome de
uma coisa, sua significação não pode ser explicada senão pela menção a outra
coisa; ou seja, quando o nome não pode ser empregado num discurso com
sentido a não ser que se expresse ou subentenda o nome de outra coisa. Estas
definições são todas, em última instância, equivalentes, pois não são mais que
maneiras de expressar de modo distinto esta única circunstância distintiva:
que todos os demais atributos de um objeto poderiam sem contradição ser
concebidos como existentes ainda quando jamais tivesse existido outro
objeto, enquanto que aqueles seus atributos que são expressos por nomes
relativos seriam, nesta suposição, eliminado
47
46
“Every relative name which is predicated of an object, supposes another object (or objects), of which
we may prdicate either that same name or another relative name which is said to be the
correelative
of
the former
” (idem: I, ii, 7)
47
“A name, therefore, is said to be realtive, when, over and above the object which it denote, it implies in
its significtion the existence of another object, also deriving a denomination from the same fact which is a
ground of the fisrt name. Or (to express the same meaning in other words) a name is relative, when,
being the name of one thing, its sighnifiction cannot be explained but by mentioning another. Or we may
state it thus – when the name cannot be employed in discouse so as to have a meaning, unless the name
of some other thing than what is is istself the name of be either expressed or understood. These
definitions are all, at bottom, equivalent, being modes of variouly expressing this one distinctive
50
Se atentarmos para o que já foi mencionado anteriormente acerca dos nomes
conotativos, de que ele possui uma estrutura sintática bastante peculiar na medida
em que não são propriamente atribuídos às coisas, mas que, ao contrário, são como
que ‘preenchidos’ pelos objetos que obedecem as determinações impostas pela carga
semântica determinada pela conotação dos nomes, podemos claramente ver aqui
que, no caso dos chamados nomes relativos, ocorre algo muito semelhante. Porém,
não se tratam mais de objetos nomeados, mas de pares de objetos correlativos. Ou
seja, um nome relativo é um nome conotativo e, portanto, criterial, mas cujo critério
estabelecido pela conotação para que os objetos sejam nomeados por esses nomes
devem, necessariamente, aparecer em forma de pares ordenados. Em resumo, um
nome relativo é, para Mill, um nome conotativo de ‘dois lugares’, que deve subsumir
dois objetos.
Foge aos nossos objetivos (ao menos no que se refere ao presente trabalho)
adentrarmos mais detidamente nos problemas referentes aos nomes relativos e ao
estatuto das relações em Mill. Mas como não se pretende aqui realizar uma
abordagem crítica da filosofia de Mill nesse particular, o que foi mencionado aqui
sobre as relações, por ora, é o bastante.
De acordo com o que exporemos a seguir, a teoria milliana da conotação foi
capaz de conter grandes e significativas novidades com relação à teoria do
significado, mesmo se mantendo fiel ao modelo proposicional aristotélico, baseado
nas categorias de
sujeito
e
predicado
. Apesar de uma sintaxe proposicional arcaica na
qual está inserida, a teoria da conotação foi capaz de promover importantes avanços
no que se refere à relação entre proposição e mundo. Por isso, a partir das próximas
circumstance – what every other attribute of an object might that one had ever existed; but those of this
attributes which are expressed by realtive names, would on that supposition be swept away”
(idem)
51
páginas, o presente capítulo estará voltado a expor a maneira como Mill encara a
proposição, e sua relação com a teoria da conotação.
A seguir, abordaremos alguns importantes aspectos referentes ao conceito de
proposição em Mill.
I.4. Teoria da proposição de Mill
Mill dedica três capítulos do Livro I do
System of logic
ao tratamento das
proposições. O Capítulo IV fala das proposições em geral e dos tipos de proposições
existentes, o Capítulo V do significado das proposições, ou seja, determina aquilo que
as proposições propriamente dizem, e o Capítulo VI trata daquelas proposições que
Mill denomina de
meramente verbais
. Chega a ser irônico percebermos o que ocorre
quando analisamos o primeiro desses três capítulos com relação aos outros dois e os
comparamos aos desenvolvimentos futuros da lógica e da filosofia da linguagem: o
Capítulo IV apresenta concepções absolutamente arcaicas acerca das proposições, as
classificando nos termos da tradicional silogística aristotélica e excluindo qualquer
possibilidade da consideração de ‘proposições complexas’, cuja assunção está na base
daquilo que veio a se constituir no cálculo proposicional; já no capítulo V, aquele
que trata do significado das proposições, Mill propõe teses absolutamente
progressistas, iniciando movimentos que serão decisivos para as discussões lógicas e
semânticas da posteridade. E no capítulo VI, Mill estabelece aquela tese a partir da
qual a principal característica de sua epistemologia (a saber, a tese de que não existe
conhecimento real
a priori
) será extraída e fundamentada.
52
I.4.1. Sobre as proposições em geral.
A classificação realizada por Mill em I.iv acerca das proposições não oferece
nada de significativamente importante com relação à tradição. Segundo sua
exposição, as proposições em geral são compostas por dois termos que se unem por
meio da cópula. Esta tendo a função, além de vincular os dois termos num único
sentido proposicional, de estabelecer se a relação existente entre os termos é inclusão
ou exclusão
48
.
A conclusão mais geral a que se chega ao analisar o significado das
proposições em geral é a tese de que toda proposição, sem exceção, estabelece uma
dessas seguintes coisas: existência, coexistência, sucessão, causação e semelhança
49
.
Uma vez que, as proposições, para Mill, estabelecem a relação entre duas ‘coisas’
(representadas pelos termos sujeito e predicado) o que se pode asserir com respeito a
essas duas
coisas
é uma das relações expostas acima.
Com relação à maneira como as proposições significam, Mill defende posições
absolutamente nominalistas em dois pontos chaves:
1) defende, que toda proposição estabelece, em seu significado, relações entre nomes;
assim, por exemplo, numa proposição S é P, não se afirma, de forma direta, que S
48
Certamente, os termos inclusão e exclusão relacionam-se a uma concepção lógico-semântica – criticada
inclusive por Mill no capítulo V – de que todo trabalho significativo da lógica consiste na classificação, ou
seja, na atribuição de elementos à classes ou mesmo de classes à classes. O mais correto, com relação a Mill
é afirmar que, no caso da proposição afirmativa, o predicado é afirmado do sujeito e, no caso da negativa, é
negado.
49
“Existence, Coexistence, Sequence, Causation, Resemblance: one or other of these is asserted (or
denied) in every proposition wich is not merely verbal”
(idem: I, v, 6)
53
possui a propriedade P, mas, ao invés disso, que aquilo que é nomeado por S é
também nomeado por P.
50
2) com relação aos universais, defende explicita e insistentemente que aquilo que
constitui uma classe é, unicamente, um nome comum a todos os membros da classe;
ou seja, que uma determinada coisa pertence a uma determinada classe porque
possui determinado nome e não que uma determinada coisa possua determinado
nome pelo fato de pertencer a uma determinada classe
51
.
Apesar desse nominalismo que salta aos olhos quando analisamos as teorias
millianas com respeito aos nomes e às proposições, veremos um pouco mais adiante
que esse mesmo nominalismo manifesto no nível das proposições, assume ares
extremamente peculiares quando conjugado à teoria da conotação. A maneira como
os nomes conotativos referem-se aos seus objetos, num certo sentido, irá dotar de
uma abrangência ontológica realista aquilo que, no nível da proposição, se dá
simplesmente no nível dos nomes. Em I.4.3. trataremos dessa questão de forma um
tanto mais detida. Antes disso, porém, abordaremos o tratamento dado por Mill às
proposições complexas.
I.4.2. Proposições complexas
Após haver oferecido uma espécie de classificação das proposições com
respeito à qualidade (afirmativa ou negativa) e estabelecido o papel da cópula nesse
50
“Now the first glance at a proposition shows that it is formed by putting together two names”
(idem. I,
i, 2)
51
“It is not unusual, by way of explaning what is meant by a general name, to say that it is the name of a
class
. But this, though a convenient mode of expression for some purposes, is objectionable as a definiton,
since it explains the clearer of two things by the more obscure. I would be more logical to reverse the
proposition, and turn it into definition of the word
clas
s: ‘A class is the indefinite multitude of individuals
denotede by a general name”
(idem: I, ii, 3)
54
processo, bem como sua função temporal (é, foi, será...), Mill distingue as
proposições em hipotéticas e categóricas. Mas, em seguida, trata de esvaziar esta
distinção ao declarar não haver, de fato, proposições complexas e que as chamadas
proposições hipotéticas, em última análise, podem ser reduzidas à forma categórica.
Na realidade, Mill não considera que as partículas “e”, “ou”, “se...então”, como
conectivos lógicos, condição para a consideração das chamadas proposições
moleculares, e, para cada uma dessas três partículas ele fornece uma explicação em
termos distintos.
Em primeiro lugar, “e”, no caso da conjunção, nada mais é do que um artifício
estilístico utilizado para abreviar duas ou várias proposições numa expressão mais
sucinta
52
: assim, quando se diz “João e Maria são estudantes” são afirmadas, em
realidade, duas coisas:
João é estudante
e
Maria é estudante
. Até aqui, parece não
haver muitas diferenças entre o que preconiza a lógica proposicional. Mas deve ser
apontado que, de acordo com o ponto de vista milliano, não se pode perguntar pela
verdade ou falsidade de “João e Maria são estudantes” como um todo, pois ele não
reconhece a função lógica da partícula “e”. É necessário, pois, que se considerem as
proposições em separado e se atribuam os valores de verdade em separado. No caso
de João ser estudante e Maria não o ser, deve-se considerar uma proposição
verdadeira e a outra falsa, mas não a falsidade da proposição como um todo.
52
“At first sight this division
(simple and complexes propositions)
has the air of an absurdity; a solemn
distction of things into one and more than one; as is we to divide horses into single horses and teams of
horses. And it is true that what is called a complex (or compound) proposition is often not a proposition
at all, but several propositions, held together by a conjunction. Such, for example, is this: Caesar is dead,
and Brutus is alive: or even this, Caesar is dead,
but
Brutus is alive. There are here two distinct assertions;
and we might as well call a street a complex house, as these two proposition a complex proposition. It is
true that the syncategorematic words
and
and
but
have a meaning; but that meaning is so far from
making the two propositons one, that it adds a third proposition to them. All particles are abbreviations,
and generally abreviation of propositions”
(idem: I, iv, 3)
55
Com relação à disjunção e ao condicional, o tratamento dado no
System of
logic
é um tanto diferente. Seguindo a tradição silogística, Mill considera ambos os
casos como proposições hipotéticas. O primeiro passo nesse sentido consiste em
assimilar as proposições disjuntivas à forma condicional. O raciocínio é o seguinte:
na proposição “A ou B” o sentido oculto que deve ser clarificado é a condicionalidade
da asserção; “A ou B” significaria, assim, “Se A então não B e se B então não A”.
53
Temos, então, duas condicionais (des)vinculadas pela partícula “e”, já explicada
acima. Como é possível perceber, Mill considera, diferentemente do que ocorre no
cálculo proposicional, somente a disjunção exclusiva. Se considerasse a disjunção
inclusiva, certamente, não seria possível tal redução, ao menos da forma como
realiza.
Falta ainda um passo a ser dado. Reduziu-se a disjunção à forma condicional.
No entanto, uma proposição condicional ainda contém, ao menos em princípio, duas
proposições como partes constitutivas; usando a terminologia técnica moderna, o
antecedente e o conseqüente. A resposta de Mill parte da suposição de que
proposições hipotéticas constituem, de acordo com o ponto de vista adotado, uma
espécie bastante diferente de proposições categóricas. Isso, porque as proposições
hipotéticas não falam nada acerca do mundo, mas somente acerca das próprias
proposições. O raciocínio adotado é mais ou menos o seguinte: Quando se afirma “Se
A então B”, não se afirma absolutamente a verdade ou falsidade nem de A nem de B.
O que se estabelece é uma relação de dependência lógica entre A e B; ou seja, se A
for verdadeira então B também o será. Assim, a tradução necessária para se
identificar a verdadeira forma lógica de uma proposição condicional deve ser a
53
“...the disjunctive form
is resolvable into the conditional; every disjunctive propositions being
equivalent to two or more conditional ones. ‘Either A is B or C is D’, means, ‘if is not B, C is D; and if C is
not D, A is B’. All hypothetical propositions, therefore, though disjunctive in form, are conditional in
meaning; and the words hypothetical and conditional may be, as indeed they generally are, used
synonymously”
(idem)
56
seguinte: “Se A então B” significa “B é uma conseqüência de A”
54
. Neste caso, o
sujeito da proposição como um todo é, por sua vez, uma proposição, o conseqüente
do condicional, e o predicado é a propriedade que possui essa proposição de ser
inferida a partir do antecedente. Nesse sentido, de acordo com Mill, a complexidade
das proposições é um fenômeno apenas aparente; aparência essa que deve ser
eliminada pela análise lógica da linguagem.
Mas adiante, em I.4.4, trataremos de uma classe de proposições extremamente
importante dentro da arquitetura do sistema milliano: as proposições meramente
verbais. Tais proposições, conforme veremos, são aquelas que não nos informam
nada acerca do mundo efetivamente, mas tem por objeto a própria linguagem: é a
linguagem referindo-se a si mesma. Embora ainda falaremos sobre essas
proposições
verbais
, vale apontar, no presente momento, que as proposições ‘condicionais’, aos
olhos de Mill, possuem exatamente este estatuto. Ora, a proposição “se João é
paulista então João é brasileiro” não diz, de acordo com a leitura milliana, nem que
João é brasileiro nem que João é paulista; aliás, nada diz com relação a João. Afirma
que a proposição “João é brasileiro” é uma conseqüência da proposição “João é
paulista”. Portanto, fala simplesmente de uma relação de dependência lógica
existente entre duas proposições. Fala das proposições e não do mundo real: é, pois,
uma proposição meramente verbal que tem por objeto a própria linguagem. O
Objeto do discurso numa proposição condicional é o universo lingüístico
intermediário entre a subjetividade psicológica e a objetividade física do qual
falaremos a seguir.
54
The subject and predicate, therefore, of an hypothetical proposition are names of propositions. The
subject is some one proposition. The predicate is general realtive name aplicable to propositions; oh this
form – ‘an inference from so and so.’ A fresh instance is here afforded of the remark, that particles are
abbreviations; since ‘If A is B, C is D,’ is found to be an abbreviation of the following: ‘The proposition C
is D, is a legitimate inference from the proposition A is B’”
(idem)
57
Mill oferece também uma classificação das proposições com respeito à
quantidade, dividindo-as em universais, particulares e singulares. Segue mantendo,
contudo, o mesmo sistema quantificacional aristotélico.
I.4.3. Predicação e nomeação
Citando Hobbes, Mill estabelece que toda proposição verdadeira possui uma
característica comum, a saber, que nela, aquilo de cujo termo sujeito é um nome, o
termo predicado também o é
55
. Quando se diz, assim, “todo homem é mortal”, o que
se quer afirmar é que as coisas que são nomeadas pelo termo “homem” são todas, sem
exceção, nomeadas pelo termo “mortal”. Se isso de fato ocorre, a proposição é
verdadeira. De acordo com seu ponto de vista, não há dúvida de que essa definição
de proposição verdadeira é absolutamente aplicável a qualquer tipo de proposição
(desde que seja verdadeira, certamente). Entretanto, o problema apontado com
relação ao nominalismo está em que, mesmo sendo esta uma característica de todas
as proposições, a definição acima não esgota tudo o que, de fato, as proposições em
geral significam. Todas as proposições estabelecem uma relação entre nomes e coisas
nomeadas, e sobre isso não há dúvidas. Porém, somente algumas poucas proposições
têm seu significado esgotado por essa fórmula nominalista, a saber, aquelas em que
tanto o termo sujeito quanto o predicado são nomes próprios
56
- sem significação, de
55
“In every proposition (say he [Hobbes]) what is signified is, the belief of the speaker that the predicate
is a name of the same thing of which the subject is a name; and if really is so, the propositon is true. Thus
the proposition, All men are
living being
(he would say) is true, because living being is a name of
everything of which
man
is a name. All men are six feet hight, is not true, because
six feet hight
is not a
name of everything (though it is of some things) of which
man
is a name”
(idem: I. V, 2)
56
“The only propositions of which Hobbes’ principle is a suficient account, are that limited and
unimportant class in which both the predicate and the subject are proper names”
(idem)
58
acordo com os pressupostos millianos
57
. Quando se diz, por exemplo, que Edson
Arantes do Nascimento é Pelé, está sendo estabelecida uma relação de identidade
entre os objetos (ou melhor, o objeto) nomeados pelos termos sujeito e predicado; e
esta proposição não afirma nada além disso, uma vez que, por serem ambos os termos
nomes próprios, a relação de significatividade mantida entre os nomes e a coisa é
arbitrária e artificial, não havendo nenhum outro tipo de ‘processo semântico’
envolvido nas nomeações que protagonizam tal proposição.
No entanto, no caso em que um ou os dois termos são nomes conotativos, a
fórmula nominalista não é suficiente. Isso, porque a significação dessas proposições
se dá, podemos dizer, em duas etapas: uma no nível da proposição (e aí o esquema
nominalista vale sem exceção) e outra no nível dos nomes. A conseqüência disso é a
constatação de que existe, por assim dizer, um sentido implícito nas proposições que
não é aquele que transparece de forma direta e imediata no enunciado proposicional.
Ou seja, o verdadeiro sentido de uma proposição composta por nomes conotativos
deve ser obtido por meio de uma certa retradução daquilo que o enunciado expõe de
maneira direta. Como já foi mencionado anteriormente, no universo milliano
proposições estabelecem relações entre nomes; porém, os nomes referem-se às
coisas, e isso em virtude de sua
conotação
. Por exemplo: a proposição “Sócrates é
filósofo” afirma que o objeto denotado pelo nome “Sócrates” é também denotado
pelo nome “filósofo”; como esse é realmente o caso, a proposição é verdadeira.
Porém, a maneira como o nome “filósofo” refere-se ao seu objeto na proposição é
muito diferente da maneira pela qual o nome “Sócrates” o faz. O nome “filósofo”
refere-se a Sócrates porque Sócrates possui as propriedades por ele conotadas. Desta
forma, o verdadeiro sentido da proposição “Sócrates é filósofo” não se esgota pela
fórmula nominalista. A proposição afirma, certamente, que “Sócrates” e “filósofo” são
57
Ver: I.3.2.
59
nomes do mesmo objeto; mas não afirma só isso. Dizer que o objeto denotado por
“Sócrates” é denotado também por “filósofo” equivale a dizer algo como o seguinte: o
objeto denotado por “Sócrates” possui todos os atributos conotados pelo nome
“filósofo”. Ou seja, uma propriedade é atribuída positivamente a Sócrates, e não
apenas um nome. O nominalismo manifesto no nível da proposição transforma-se,
em certo sentido, numa espécie de realismo no nível dos nomes. Proposições
atribuem nomes, mas os nomes atribuem propriedades reais às coisas. Por isso as
proposições, em última instância, falam das coisas, e este é o sentido oculto que deve
ser identificado nas proposições.
Certamente, as considerações realizadas acima estão longe de serem
definitivas ou de terem esgotado os problemas referentes à relação entre o conteúdo
semântico da proposição com o conteúdo semântico dos nomes que a compõem. Mas
vale salientar mais uma vez que a velha e insuficiente sintaxe proposicional
aristotélica, conjugada a uma semântica progressista representada pela teoria da
conotação, fornece conseqüências inusitadas. A teoria da conotação, dada à novidade
que estabeleceu, mostra-se avançada em demasia com relação a algumas posturas
arcaicas defendidas por Mill. Embora o próprio Mill não tenha se dado conta disso, é
importante notarmos que seus movimentos ao menos foram responsáveis por
tornarem explícitas algumas deficiências da tradição que vieram a ser superadas
futuramente. Conforme acredito, a necessidade de ser identificado um ‘sentido
oculto, nas proposições – tanto no que se refere à sua estrutura sintática, no caso das
proposições complexas, quanto com relação à sua abrangência semântica, como
vimos na presente seção – demonstra que Mill está notando, ao seu modo, a
necessidade de movimentos teóricos inovadores com relação á lógica de seu tempo.
E, certamente, uma das passagens mais importantes, não só da lógica e da semântica
60
millianas, mas de toda sua filosofia, é a distinção entre
proposições reais
e
proposições meramente verbais
, que veremos a seguir.
I.4.4. Proposições meramente verbais
Talvez a principal tese que o
System of logic
busca estabelecer é aquela que
afirma que nenhum conhecimento real é
a priori
; portanto, as chamadas ciências
dedutivas, como a lógica e a matemática, uma vez que, de acordo com Mill,
produzem conhecimentos reais, têm origem empírica. Esta tese é uma conseqüência
quase que natural da distinção por ele realizada entre proposições reais e proposições
meramente verbais. As primeiras falam sobre o
mundo
, as segundas sobre o
significado dos nomes
; ou seja, operam exclusivamente no âmbito da
linguagem;
nas
primeiras, conhecimentos novos acerca do mundo são fornecidos, nas segundas nada
de além do que o conteúdo semântico dos nomes (i. e. as propriedades conotadas
pelo nome) é explicitado.
O ponto de partida da argumentação milliana é a consideração das chamadas
proposições essenciais, presentes há séculos no vocabulário filosófico desde, pelo
menos, Aristóteles. Tais proposições têm sua fundamentação a partir da célebre e
histórica distinção entre predicados acidentais e predicados essenciais. Os primeiros
são aqueles predicados que não estabelecem a natureza essencial de um determinado
gênero; por isso mesmo, um elemento qualquer de um determinado gênero pode
possuir ou não possuir um desses predicados sem prejuízo de sua essencialidade, sem
deixar de pertencer ao seu gênero. Os segundos são aqueles que fazem parte dessa
natureza íntima; portanto, não se poderia conceber um indivíduo desse gênero sem
algum dos predicados essenciais; os predicados essenciais estariam intimamente
ligados à constituição ontológica mais íntima de cada indivíduo pertencente às
61
classes impostas por tais predicados. Por exemplo: a proposição “o homem é
brasileiro” afirma uma propriedade acidental do sujeito “homem”, pois é uma mera
contingência o fato de o homem em questão ter nascido no Brasil; seria
perfeitamente possível concebe-lo como tendo outra nacionalidade sem que seja
inviabilizada sua humanidade essencial. Por outro lado, a proposição “o homem é
racional” afirma uma propriedade que possui uma característica bastante diferente
do anterior. Pelo seguinte motivo: podemos conceber um homem sem a
nacionalidade brasileira, mas o podemos, assim acreditavam, sem a racionalidade.
Portanto, a racionalidade seria um predicado dito essencial, na medida em que faz
parte da
essência humana
.
Seguindo o caminho de Locke
58
, e na esteira da tradição nominalista, Mill
nega a existência de ‘essências de classes’, de essências gerais. E, tal como Locke,
considera essas supostas essências gerais como simplesmente nominais, existindo
somente no nível da linguagem. No entanto, Locke tinha à sua disposição uma teoria
da linguagem fundamentada na psicologia. Portanto, aquilo que ele denomina
essência nominal
nada mais são do que
entidades psicológicas
, frutos do processo
subjetivo da abstração. Portanto, a expressão “essência nominal”, em Locke, somente
se justifica porque lá os nomes gerais são estabelecidos por meio de processos
psicológicos, uma vez que são nomes de idéias gerais. Mas, acredito, não fosse por
esse peculiar papel da linguagem no sistema lockeano, o mais apropriado seria
chamarmos as essências nominais de Locke de
essências psicológicas
, ou
essências
mentais
. Mill, diante do problema das essências e dos predicados essenciais, coloca as
coisas em outros termos; substitui efetivamente boa parte dos elementos psicológicos
envolvidos no sistema lockeano por elementos semânticos, a partir de sua teoria da
conotação. Por isso, em Mill, a distinção entre real e nominal (ou verbal) é muito
58
Ver: II.3.
62
mais profícua e controvertida do que em Locke. Em Locke, uma proposição frívola
nada mais exporá do que os resultados dos processos subjetivos de abstração, ou seja,
as idéias menos gerais que estão contidas nas idéias mais gerais. Assim, por exemplo,
a proposição “Todo homem é mortal” afirmaria simplesmente que a idéia geral
representada pela expressão “homem” é subsumida pela idéia mais geral expressa
pela expressão “mortal”. E, por isso mesmo, a idéia geral expressa por “mortal” faz
parte da definição nominal da idéia geral expressa por “homem” . Em Mill, dada sua
semântica não psicológica, o esquema permanece o mesmo, mas as conseqüências
serão bem diferentes.
Em sua exposição, Mill aponta a seguinte constatação: seguindo o exemplo
oferecido mais acima, podemos conceber um ser humano que não seja brasileiro, mas
não podemos concebe-lo sem ser racional. Coloca-se, então, a pergunta: será que
realmente não podemos conceber um ser que possua todas as chamadas qualidades
essenciais que constituem a humanidade, menos uma: a racionalidade? A resposta
milliana é: sim, podemos. Entretanto, se acaso vier a existir esse ser que facilmente
podemos conceber, a única coisa que não estaríamos autorizados a fazer é chamá-lo
de “homem”
59
. Ou, utilizando outra expressão, não poderíamos classifica-lo entre os
homens. Ora, mas a classe, como já fora insistentemente apontado, dentro do
universo nominalista no qual estamos transitando, nada mais é do que o conjunto de
indivíduos nomeados por um mesmo nome geral. E, de acordo com Mill, o que
determina a significação dos nomes gerais, e, portanto, o que fundamenta uma
suposta classe, é a conotação dos nomes. Logo, quando se afirma “o homem é mortal”
59
“They are said, truly, that man cannot be conceived without rationality. But though man cannot, a
being may be conceived exactly like a man in all points except that one quality, and those others which
are the conditions that man cannot be conceives without rationality, is only, that if he had not
rationality, he would not be reputed a man. There is no impossibility in conceiving the thing, nor, for
aught we know, in its existing; the impossibility is in the conventions of language, which will not allow
the thing, even if it exist, to be called by name which is reserved for rational beings”
(idem: I, vi, 2)
63
não se está afirmando nada com relação à essência geral da humanidade, pois ela é
negada, nem da relação entre idéias mais e menos gerais, como em Locke, mas tão
somente da conotação dos nomes. E como o significado dos nomes resume-se,
segundo Mill, àquilo que eles conotam, as supostas
proposições essenciais
nada mais
são do que
proposições meramente verbais
, que só nos informam acerca do
significado das palavras, dos atributos conotados pelo nome. Nesse sentido, afirmar
“o homem é mortal” significa simplesmente afirmar que o atributo
mortal
é
conotado pelo nome
homem
. Estaríamos, neste caso, transitando no universo da
linguagem e da semântica. Essas proposições não nos falam nada acerca de essências
reais; portanto, não pertencem à ontologia. Também não falam nada acerca de idéias
gerais abrangidas umas por outras; portanto, não pertencem à psicologia. Falam, pois,
da carga semântica dos nomes, das propriedades objetivas conotadas pelos nomes
conotativos. É a linguagem falando dela mesma.
De acordo com Mill, as únicas proposições verdadeiramente
a priori
são as
meramente
verbais
. E essas, dada sua natureza, não são instrutivas, não aumentam
nosso conhecimento acerca do mundo
60
e, portanto, são somente indiretamente úteis
à ciência. Kneale & Kneale, com relação à essa posição milliana, têm uma opinião
bastante interessante: se as proposições meramente verbais nos informam acerca do
significado dos nomes, se versam sobre a carga significativa dos termos da
linguagem, então não é certo toma-las por inócuas ou frívolas. Ao contrário, elas são
instrutivas e aumentam nosso conhecimento
61
. Certamente, tal conclusão não é
60
A proposition of this sort [merely verbal], however, conveys no informations to any one who previouly
understood the whole meaning of the terms. The propositions, Every
man
is a corporal being, Every
man
is a living creature, Every man is rational, convey no knowledge to any one who was already aware of the
entire meaning of the word man, for the meaning of the word includes all this: and that every
man
has
the attributes connoted by all these predictes, is already asserted when he is called a man. Now, of this
nature are all the propositions which have been called essential. They are, in fact, identical propositions”
(idem)
61
“É óbvio que as proposições verbais são aquelas que Locke chamou de frívolas e Kant analíticas, mas a
designação ‘verbal’ e a sugestão de que podem dar informação acerca dos nomes introduzem,
64
incorreta. De fato, aprendemos algo, aumentamos nosso conhecimento quando nos
esclarecemos com respeito ao significado dos termos da linguagem. Mas é, contudo,
bastante compreensível a postura de Mill em favor da frivolidade das proposições
verbais. E isso tem a ver com o empirismo radical e preconceituoso de nosso autor. A
militância empirista de Mill não o permitiu perceber o quão profícua para a filosofia
foi a introdução de um universo conceitual alternativo à velha dicotomia
sujeito/objeto. Como bem notou Frege
62
, o radical empirismo de Stuart Mill o levou
a pender toda sua filosofia para o lado do mundo exterior. Mill acertou ao
desvalorizar o universo psicológico na fundamentação do conhecimento e da
objetividade do discurso, mas pecou, na mesma medida, por supervalorizar o mundo
exterior acessível pela observação empírica. Faltou a ele ter enxergado uma terceira
via. Ou melhor: não faltou, pois esta terceira via está presente em seu pensamento; é
o reino da linguagem e da semântica. Nosso autor, porém, graças ao seu empirismo
tão radical quanto inconseqüente, não teve olhos para explorar todas as
possibilidades de sua teoria. Voltaremos a esse assunto nos dois capítulos seguintes.
I.5. Conclusão do capítulo
O capítulo que aqui se encerra possui, dentro da arquitetura do presente
trabalho, o objetivo de conter alguns conceitos com os quais trabalharemos nos dois
capítulos seguintes. Trata-se, pois, de um capítulo introdutório destinado a
infelizmente, uma confusão. Se a forma de palavras ‘O homem é mortal’ é na verdade alguma vez usada
para dar informação acerca do sentido das palavras ‘homem’ e ‘racional’ então a proposição que esta forma
de palavras exprime não é nem analítica nem frívola, mas sintética e informativa ou, na linguagem de
Mill, é uma proposição real, porque as palavras, ‘homem’ e ‘racional’ em certo sentido são coisas e o fato
de as usarmos tal como as usamos é contingente”
(Kneale, W & Kneale, M.: “O desenvolvimento da
lógica”, trad. M. S. Lourenço. Pg. 380)
62
Trataremos da posição fregeana frente ao empirismo de Mill no Capítulo III
65
apresentar algumas premissas para muitos dos argumentos que se seguirão. Por isso,
podemos estabelecer que, ao contrário dos dois capítulos que se seguirão, este
primeiro capítulo muito mais expositivo do que propriamente propositivo. Alguns
pontos que serão discutidos nas paginas que se seguirão foram mencionados, mas tão
somente de modo a esclarecer e apontar para onde estarão dirigidas nossas
considerações nos capítulos seguintes..
Do que foi apresentado aqui, alguns tópicos devem ser salientados, por
tratrem-se, ao menos nossos propósitos específicos, das teses millianas mais
significativas para as discussões lógico-semânticas que buscaremos explorar a seguir.
São elas:
a) tese de a lógica possui duas faces, uma
científica
na qual os processos psíquicos
envolvidos no ato do raciocínio são analisados e outra
artística
que se constitui
num instrumento normativo capaz de orientar os raciocínios corretamente e
justificar por meio de razões (embora, ‘razões’, aqui, deva ser entendido num
sentido bastante peculiar, graças à natureza, segundo Mill, empírica das regras
formais do raciocínio) a adequação das conclusões extraídas a partir de
determinadas premissas dadas;
b) a tese de a significatividade dos nomes se estabelece através da carga semântica
que eles expressam por meio de sua conotação, o que substitui, com relação ao
modelo nominalista-psicológico (conceitualista, como veremos a seguir),
elementos psíquicos por conteúdos objetivos no processo de significação;
c) a tese de que as únicas proposições verdadeiramente
a priori
são as proposições
meramente
verbais
, aquelas que se destinam simplesmente a estabelecer o
significado dos nomes conotativos, e que, portanto, nada nos informam sobre o
mundo real, mas tratam do universo da linguagem.
66
No bloco seguinte será exposta a crítica milliana ao conceitualismo, ou seja, à
tese de que os significados dos termos da linguagem são entidades mentais. De
acordo com nossa hipótese, tal crítica possui uma importância sistemática
fundamental, tanto para a organicidade interna do sistema milliano, quanto para os
desenvolvimentos futuros da reflexão filosófica acerca da linguagem e sua
objetividade.
67
Capítulo - II
Refutação do conceitualismo
Será aqui apresentada a crítica milliana à tese, corrente na filosofia britânica moderna e
cristalizada no
Essay concerning human understanding
de John Locke, de que os nomes
referem-se a entidades mentais e não às coisas mesmas. De acordo com nossa hipótese, a
refutação dessa tese representou um importante movimento em favor dos esforços
antipsicologistas do final do século XIX. Serão levantadas algumas hipóteses com respeito à
natureza do objeto da
crença
, a partir dos supostos lógicos, semânticos e epistemológicos de
Stuart Mill.
68
II.1. Preliminares
Numa das principais passagens do
System of logic,
e que para os nossos
propósitos possui uma importância fundamental, Stuart Mill refuta aquilo que ele
denomina
conceitualismo;
mais precisamente, ele derruba a tese (que segundo nossa
hipótese, é um dos alicerces do psicologismo lógico) de que o significado das palavras
são idéias, entidades puramente psicológicas. Rompe, assim, com a tradição
psicologizante representada, sobretudo, pela teoria das idéias de John Locke. Se
aceitarmos, como já fora sugerido no capítulo anterior, que uma das principais
características da filosofia moderna foi seu caráter prioritariamente idealista e
subjetivista, e que o advento daquilo que se acostumou chamar de filosofia
contemporânea foi determinado pela necessidade de se superar um tal modelo
filosófico em favor de uma postura que busca fundamentar a objetividade do
conhecimento a partir de categorias lógico-semânticas, então, certamente, teremos
que situar a crítica milliana ao conceitualismo como um dos marcos importantes
dessa virada histórica. Como foi sugerido no capítulo anterior, seguindo a leitura de
Dummet
63
, foi necessário, em certo sentido, que a filosofia, para superar um modelo
filosófico já agonizante representado pelas diversas formas de idealismo que
marcaram o pensamento moderno, efetuasse algo como um passo atrás, na medida
em que retorna um ponto de vista que, em muitos aspectos, remonta à tradição
escolástica: colocar a lógica e a semântica como prioritárias com relação à
epistemologia. Numa importante passagem do
An Examination of Sir William
Hamilton’s philosophy
Mill parece apontar claramente para essa necessidade: ao
analisar as diversas teorias acerca do significado das palavras, mais especificamente
63
ver I.2.2.
69
com relação ao problema dos universais, Mill aponta o surgimento de uma escola
alternativa ao realismo e ao nominalismo, a saber, o conceitualismo
64
. O
conceitualismo é uma espécie de nominalismo, posição clássica entre os medievais,
contaminado pelo espírito subjetivista moderno. E a crítica implacável a esse
modelo, que exporemos a seguir, sugere claramente a repulsa, por parte Mill, a esse
espírito subjetivista tipicamente moderno, e particularmente presente na filosofia de
Locke
65
. Antes, porém, de analisarmos o teor da crítica milliana ao modelo
semântico conceitualista, convém uma breve apresentação desse modelo em sua
roupagem clássica, a saber, no contexto da teoria das idéias de Locke.
II.2. Hobbes e Locke
Dado que nosso objetivo é identificar, no
System of logic,
elementos que
possam endossar nossa hipótese de que a virada lingüística da história da filosofia
teve uma influência direta e decisiva de John Stuart Mill, e como, ainda de acordo
com nossos pressupostos, essa virada lingüística foi marcada, senão exclusivamente,
mas certamente de forma decisiva, pela superação do modelo semântico chamado
por Mill de conceitualista, dedicaremos as próximas seções à apresentação desse
64
A third doctrine arose, which endevoured to steer between the Two (realism and nominalism).
According to this, wich know by name od Conceptualism, generality is not an attribute solely of names,
but also of thoughts
.” (Mill,
A Examination
..., XVII, pg. 302)
65
Vale salientar aqui que, ao contrário do fez no
System of logic
, onde assimila a tese conceitualista a
Hobbes, na passagem da
A examination...
mencionada acima, Mill menciona Locke quando se refere ao
conceitualismo: “
... External objects ideed are all individual, bu to every general name correspond a
General Notion, or Conception, called by Locke
(Essay, II, xxxii, 6-8)
and others an Abstract Idea.
General Names are names of Abstract Idea”
(idem).
Essa constatação será importante para próxima seção
deste capítulo, na qual buscaremos demonstrar que, embora Mill tenha se dirigido a Hobbes em sua crítica
ao conceitualismo no
System of logic
, o mais importante de tudo serão os estragos que tal crítica causará
com relação ao modelo semântico-psicológico representado pela filosofia de Locke.
70
modelo semântico. E para isso, tomaremos o livro III dos
Essay concerning human
understanding
de John Locke como referência direta.
Antes, porém, de ser iniciada propriamente tal apresentação, faz-se
necessários alguns esclarecimentos acerca de uma opção sistemática que foi aqui
adotada. A pergunta que será colocada agora busca esclarecer um ponto, no mínimo,
intrigante do
System of logic
: por que Mill, ao refutar a tese conceitualista, ou seja, a
tese de que os nomes referem-se a idéias e não às coisas mesmas, dialoga diretamente
com Hobbes e seu
Computation ou logic
e não com Locke, que foi aquele que
forneceu um modelo psicológico-nominalista mais acabado e elaborado no Livro III
dos
Essay concerning human understanding
?
No parágrafo 1 do Capítulo II do
primeiro livro do
System of logic
, Mill cita uma passagem do
Computation or logic
de Hobbes e dirige seus argumentos contra esse autor. O objetivo dessa seção
é, pois,
esclarecer a seguinte questão referente à organicidade interna do presente trabalho:
se Mill dirige-se a Hobbes, por que a abordagem adotada aqui partirá da relação
entre as teses de Mill contrapostas às de Locke?
A resposta é simples, embora não seja em nenhuma medida óbvia: o fato é
que, ao menos nos pontos que nos interessam particularmente, a teoria da
significação e, mais importante que isso, a concepção acerca da função da linguagem
no conjunto das atividades humanas, não se modifica de um autor para o outro.
Locke mantém as mesmas teses e os mesmos pressupostos sistemáticos de Hobbes, ao
menos nos pontos em que Mill dirigirá diretamente suas críticas. Em outras palavras,
o que Mill diz com respeito a Hobbes valerá também para Locke. E isso justifica o
fato de Mill ter se dirigido ao primeiro e não ao segundo. Talvez por uma questão de
justiça: se Locke seguiu os passos de Hobbes neste particular, deve-se reportar ao
primeiro e não ao segundo. Mas não resta dúvidas, e creio que isso ficará bastante
claro nas páginas seguintes, que a crítica ao conceitualismo direciona-se clara e
71
certamente ao modelo lockeano também e prioritariamente. Nos pontos, porém, em
que Locke efetivamente promove algum tipo de adição ou inovação com relação ao
seu antecessor, como no caso, por exemplo, da crítica que fará ao conceito lockeano
de essência real em oposição à nominal, aí sim o interlocutor direto de Mill será
Locke. Mas nos pontos em que existe uma equivalência de teorias e pontos de vista,
Mill se reportará ao primeiro. Nesse sentido, uma vez que nosso objetivo não é o de
simplesmente abordar as teses do
System of logic
isoladamente ou a polêmica
específica entre Mill e Hobbes, mas referi-las aos desdobramentos futuros das
filosofias da lógica e da linguagem; e dado que Locke, e não propriamente Hobbes,
foi talvez quem exerceu maior influência ao modelo semântico-psicológico que será
combatido por Mill, creio que a referência direta à qual devemos contrapor a crítica
milliana ao conceitualismo seja a teoria das idéias de Locke, e não os rudimentos
desse modelo contidos no
Computation ou logic
de Hobbes. Portanto, são razões
sistemáticas e histórico-interpretativas que justificam a contraposição de Mill a
Locke nesse particular. Foi Locke o grande influenciador de toda uma escola de
pensamento calcada num subjetivismo psicoligizante e que desembocou claramente
naquilo que alguns autores do século XIX chamarão de psicologismo. Por isso, Locke
nos interessa especificamente.
De acordo com a visão esquemática que estamos propondo no presente
trabalho, podemos identificar algumas obras (ou pedaços de obras) clássicas que
determinam claramente os estágios de desenvolvimento da filosofia da linguagem -
mais especificamente, teorias acerca da proposição e do fundamento da unidade de
seu sentido - entre a modernidade e a contemporaneidade: 1) o Livro III do
Essay
de
Locke; 2) o Livro I do
System
de Mill; 3) os
Grundlagen
de Frege e 4) o
Tractatus
de
Wittgeinstein. No
Essay
de Locke, o significado dos termos são idéias e, portanto, a
unidade do sentido proposicional se estabelece no reino da subjetividade psicológica.
72
No Livro I do
System,
Mill rompe com a tese conceitualista de que os significado dos
nomes são entidades mentais e postula a existência de um universo genuinamente
semântico, constituído pela carga significativa dos nomes conotativos; e a unidade da
proposição se constituirá justamente neste universo lingüístico alternativo à
subjetividade psicológica e à objetividade física. Frege postulará a existência de um
terceiro reino, o reino da racionalidade e da objetividade não real; postulará a
unidade prioritária da proposição e sua anterioridade com relação às suas partes.
Wittgenstein, por sua vez, postulará a ‘organização lógica’ do mundo na forma de
fatos e estabelecerá que a unidade da proposição se dá por conta dela ser uma
figuração lógica dos fatos do mundo e compartilhar com eles a mesma forma lógica.
Podemos, acredito, a partir dessa breve explanação, identificar, se não uma
‘evolução’, ao menos uma linha de (des)continuidade, um ‘movimento’ que leva o
fundamento da unidade da proposição do
sujeito
lockeno ao
universo lingüístico
de
Mill; deste, ao
terceiro reino
fregeano, até ser dissolvido pela teoria da figuração do
Tractatus.
Ora, se estivermos certos em traçar esse caminho histórico-esquemático,
isso justificar nossa preocupação prioritária com o Livro III do
Essay
de Locke. É nele
que se cristaliza o modelo semântico-psicológico que Mill se apressará em derrubar.
Além disso, como veremos mais adiante, deve se apontada a relação intrínseca
entre a teoria das idéias lockeana e o psicologismo lógico que, num certo sentido, é
um dos objetos de nossa investigação. Uma teoria semântica como a de Locke, que
afirma serem o significados das palavras entidades puramente mentais, conjugada
com uma sintaxe lógica aos moldes aristotélicos, no qual a proposição estabelece uma
relação entre dois termos representados pelo
sujeito
e pelo
predicado
, implica
necessariamente numa concepção de Lógica como tratando de leis psicológicas de
associação de idéias. Se a proposição relaciona o que é significado pelos nomes, e se
esses significados são idéias, então a proposição estabelece uma relação entre idéias.
73
Se a teoria silogística estabelece as inferências válidas a partir da relação entre os
termos S, P e M, e se S, P e M significam idéias, então as regras silogísticas devem ser
consideradas como regras de associação de idéias. Enfim, se a lógica constitui-se a
partir da consideração dos processos relacionados à associação de idéias, certamente,
na base da ciência da lógica, deve estar a psicologia. Nesse sentido, de acordo com o
que estamos supondo, o psicologismo lógico encontra nas páginas do
Essay
de Locke
uma importante base de sustentação. Nas origens do psicologismo lógico figura, certa
e decisivamente, o Livro III da grande obra lockeana.
Além do que acabamos de mencionar, deve ser salientado, devemos atentar ao
seguinte fato, que, no fundo, é o que justifica efetivamente nossa opção
metodológica: em sua refutação do conceitualismo, como veremos, claramente, tudo
aquilo que Mill diz contra Hobbes vale incondicionalmente para Locke, como
veremos a seguir:
Duas teses que formam, digamos assim, a espinha dorsal do modelo semântico
que será criticado e derrubado no
System of logic
de Mill:
a) os nomes referem-se a idéias e não às coisas mesmas;
b) a função da linguagem no conjunto das atividades humanas é “comunicar
pensamentos” ou, utilizando uma expressão mais fortemente lockeana, “transmitir
idéias”.
Ou seja, as respostas que serão por Mill oferecidas quando derruba o modelo hobbes-
lockeano deverão dirigir-se às seguintes perguntas:
a') o que os nomes significam?
b') qual a função da linguagem?
Existe claramente uma anterioridade lógica da segunda pergunta em relação à
primeira. O argumento de Hobbes utilizado para justificar a resposta à primeira
74
pergunta, ou seja, o argumento utilizado para demonstrar que os significados das
palavras são as idéias e não as coisas mesmas supõe a resposta à segunda pergunta, de
que usamos a linguagem para comunicar nossos pensamentos. Se a linguagem deve
comunicar idéias, certamente os significados dos termos da linguagem só podem ser
idéias. Isso demonstra, em primeiro lugar, que aquilo que Mill chamará de
conceitualismo, a tese de que os nomes significam idéias e não as coisas mesmas,
possui, dentro do contexto sistemático em que é proferida, uma dimensão pragmática
prioritária. Será a função que a linguagem exerce no conjunto das atividades
humanas que determinará a tese acerca do significado das palavras. Vemos,
claramente, a submissão de semântica à pragmática. Ou, para sermos mais preciso,
será justamente porque a semântica está submetida à pragmática que ela será
reduzida à psicologia, como veremos nas páginas seguintes.
Hobbes escreve:
Um nome é uma palavra tomada ao acaso para suscitar em nosso espírito um
pensamento semelhante a algum outro pensamento que tivemos antes e que,
sendo formulado ante os demais homens, é para eles um signo do
pensamento que havia no espírito do interlocutor antes de falar (...) e, dado
que, de acordo com sua definição, as palavras que formam o discurso são
signos de nossos pensamentos, é claro que não são signos das coisas mesmas;
pois, como compreender que o som da palavra pedra é o signo de uma pedra,
senão no sentido de que aquele que ouve este som infere que aquele que
pronuncia pensa numa pedra?
66
Ora, a passagem acima, citada e devidamente refutada por Mill, como será visto mais
adiante, expõe com clareza as duas características do modelo semântico-
66
A name is a word taken at pleasure to serve for a mark which may raise in our mind a thougth like to
some thought we had before, and which being pronouced to others, may be to them a sign of what
thought the speaker had before in his mind (...) But seeing names orderer in speech (as his defined) are
signs of our conceptions, it is manifest they are not sign of the things themselves; for that the sound of
this word
stone
should be the sign of a stone, cannot be indestood in any sense but this, that he that hears
it collects that he that pronounces it thinks of a stone
”. (Hobbes:
Computation or logic
, cap. II)
75
conceitualista a pouco mencionadas, e que Hobbes praticamente repete, de forma
menos detalhada, no Leviatã:
...a mais proveitosa invenção foi a linguagem, que se baseia em nomes e nas
conexões entre eles. Por meio desses elementos os homens registram seus
pensamentos, os recordam quando já se passaram, e os enunciam uns aos
outros para mútua utilidade e conversação
67
E pouco mais adiante
O uso geral da linguagem consiste em transpor nossos discursos mentais em
verbais; ou a série de nossos pensamentos numa série de palavras
68
Como é possível notar, há aqui um forte apelo ao aspecto utilitário da linguagem. A
linguagem cumpre uma função, tem uma finalidade prática específica que, em última
análise, determina e possibilita a própria vida em sociedade, sendo, portanto, um dos
alicerces da civilização. Não devemos perder de vista que Hobbes, como Locke
também, é um autor que defende uma postura contratualista com relação à
organização social e política. E a linguagem exerce uma função fundamental para o
estabelecimento da tese contratualista, pois, certamente, o contratualismo exige que
os contratos sejam firmados com base em alguma linguagem objetiva. A única
maneira que o homem tem de sair de seu estado de barbárie originária será pelo
estabelecimento de acordos para a mútua convivência. Daí a necessidade quase que
orgânica de ser estabelecido os alicerces teóricos sobre os quais se apóia a atividade
comunicativa humana como fundamento do processo civilizatório. E o pressuposto
67
“... the most noble and profitable invention of all other, was that SPEECH, consisting of
nomes
or
appellations
, and their connexion; whereby men register their thoughts; recall them whem they are past;
and also declare them one to another for mutual utility and conversation”
(Hobbes:
Leviatã
, Livro I, cap.
IV)
68
“The general use of speech, is to transfer our mental discourse, into verbal; or the train of our thougth,
in a train of words”
(idem)
76
elementar desse processo comunicativo é o de que os pensamentos devem ser
comunicados. Por isso as palavras só podem ser signos das idéias.
Comparemos essas passagens com a posição de Locke. Seguindo a mesma
linha de raciocínio e partindo dos mesmos pressupostos conceituais de Hobbes,
Locke dirá:
Além dos sons articulados, foi mais tarde necessário que o homem tivesse a
habilidade de usar esses sons como sinais de concepções internas, e fazê-los
significar as marcas das idéias internas de sua própria mente, pelas quais elas
serão conhecidas pelos outros, e os pensamentos das mentes dos homens
serão mutuamente conhecidos
69
.
Claramente, as duas características da linguagem mencionadas acima estão presentes
e são igualmente determinantes para a teoria da linguagem lockenana. Os sons
articulados devem ser usados
como sinais de concepções internas para que os outros
sujeitos tenham a possibilidade conhecer o que se passa no universo psicológico do
falante. Ora, Mill, quando derruba a tese conceitualista, como veremos mais adiante,
dirige suas críticas às palavras de Hobbes atacando justamente a tese de que a função
da linguagem é transmitir idéias. E Mill deixa muito claro que não se trata
unicamente de uma polêmica sua com Hobbes individualmente o que motivará suas
críticas, mas a toda uma escola que ele chama de ‘metafísica’. Colocada a pergunta
sobre se os nomes referem-se às coisas ou às idéias Mill esclarece:
São os nomes, mais propriamente, ditos nomes das coisas ou de nossas idéias
das coisas? A primeira significação é a do uso comum; a segunda corresponde
a alguns metafísicos que acreditaram, ao adota-la, consagrar uma distinção da
69
“Besides articulate sounds therefore, it was farther necessary, that he should be able to use these sounds
as signs of internal conceptions; and to make them stand as marks for the ideas within his own mind,
whereby they migth to made known to others, and the thougths of men’s minds be conveyed from one to
another.”
(Locke:
Essay concerning human understanding,
III. i. 2)
77
mais alta importância. O eminente pensador citado acima parece
compartilhar desta última opinião.
70
Acredito que seja ocioso salientar que entre os tais ‘metafísicos’ que comungam da
segunda opinião, e que Mill, portanto, ira refutar em sua obra, encontra-se, além do
próprio Hobbes, certamente Locke e o seu
Essay concerning human understanding.
Embora dirigindo-se diretamente a Hobbes, não resta dúvidas que a crítica milliana
tem por objetivo derrubar toda uma tradição semântica que remonta não a um único
autor, e dentro dessa tradição encontram-se tanto Hobbes quanto Locke. Creio, por
isso, que contrapor Mill a Locke, neste particular, é um expediente não só
perfeitamente justificado, mas absolutamente coerente com os nossos propósitos; por
isso, tomaremos os textos de Locke em nossa abordagem, por ser certamente este o
modelo mais bem acabado da semântica que será refutada por Mill. E por ter sido a
teoria lockeana das idéias um dos pilares do psicologismo lógico em sua roupagem
britânica
71
.
Passemos, agora, à exposição do modelo semântico-psicológico representado
pela teoria da linguagem de John Locke.
70
”Are names more properly said to be the names of things, or of our ideas of things? The first is a
expression in common use; the last is that of some metaphysicians, who conceived that adopting it they
were introducing a highly importat distinction. The eminent thinker, just quoted, seems to countenance
the latter opinion”
(Mill:
op.cit.
I, ii, 1)
71
Sobre isso, MUSGRAVE, nos diz:
“While the prevailing logic was Aristotelian logic, the prevailing philosofhy of logic (at least in England)
was psychologism. These two facts quere not unconnected. English philosophy was devoted to the ‘new
way of ideas’ inaugurated by john Locke. Locke had aimed to give a ‘plain historical’ (i. e. descriptive)
account of the way men acquire knowledge. But, in fact, Locke’s psychological views were arrived at by
translating Aristotelian logic into psychoplogical terms(a process which Descartes had begun)
Aristotelian logic is the logic of simple categorial or subject-predicate proposition like ‘Socrates is wise’.
These all consist of a subject (e.g. Socrates), a copula (e.g. is), and a predicate (e.g. wise). Locke simply
psychologized these categories. Instead of the subject and predicate we have two ideas for which,
according to him they stand. And instead of the copula Locke has the ‘conection that the mind gives to
ideas’. Just as, for the Aristotelian logician. All (non-compound) propositions are of the subject-predicate
form, so also, for Locke, all our knowledge consist in the joining or separating of two ideas. (...)
We can see, then, how Locke’s views result from a translation of Aristotelin logic into psychological
terms.
(
George Boole and the psychologism
; in: Scientia, pp. 594)
78
II.3. Locke: psicologia e linguagem
Nas próximas páginas apresentaremos algumas passagens importantes do
pensamento de John Locke, focalizando o estatuto da linguagem dentro do seu
empirismo psicológico. Estamos tomando como uma premissa sistemática de nosso
trabalho
72
a tese de que houve uma influência decisiva exercida pela teoria das idéias
para o estabelecimento daquilo que mais tarde veio a ser chamado de psicologismo
lógico; que uma lógica aos moldes silogísticos, associada a uma semântica psicológica,
na qual a referência dos termos da linguagem são entidades mentais, impõe de forma
implacável a necessidade de se considerar a lógica como tratando da relação entre
idéias e, portanto, descrevendo processos mentais. As próximas seções são destinadas
a apresentação desse modelo semântico lockeano.
II.3.1 Origem empírica das idéias
John Locke é um autor que se contrapõe de forma radical ao inatismo tão
comum e difundido nas escolas filosóficas continentais, que vem desde, pelo menos,
Platão até Descartes e Leibniz. De acordo com Locke, todos os nossos conhecimentos
ou, para utilizar a expressão mais genuinamente lockeana, todas as nossas idéias (pois
conhecimento, para o Locke, é algo que se refere tão somente a idéias), têm origem
ou por meio da experiência sensível imediata, ou por meio da reflexão, do trabalho
72
Infelizmente, a necessidade de cumprimentos dos prazos fez com tal assunção não tenha sido completa e
devidamente justificada. Seria necessário, verificarmos, a partir de outros autores que seguiram a tradição
estabelecida por Locke e sua semântica psicológica e que desembocaram em teorias psicologistas. Mas,
ainda assim, creio que a influência do
Essay
de Locke na edificação de uma mentalidade filosófica baseada
na valorização de entidades subjetivas, que abriu espaço para psicologismo lógico na Inglaterra é tão
evidente, que nossa hipótese sistemática possa se aceita sem maiores problemas.
79
de “processamento” dessas impressões por parte do espírito. Temos, por isso, tanto
idéias simples, diretamente obtidas a partir experiência sensível, quanto idéias
complexas, obtidas por meio de operações psicológicas sobre essas idéias simples. E a
teoria semântica expressa no
Essay concerning human understanding
toma por
suposto essas premissas epistemológicas, que são bastante claras e inegociáveis do
ponto de vista do autor. Ele somente fala da linguagem no Livro III de sua obra, logo
após ter, primeiro, refutado a possibilidade de qualquer tipo de inatismo no Livro I e
de ter minuciosamente descrito os processos psicológicos envolvidos na formação e
aquisição de nossas idéias no Livro II. Tenham ou não as ideais diversas sua origem
diretamente vinculada às impressões sensíveis, em última instância, todas nossas
idéias terão uma origem, imediata ou não, na experiência sensível. Daí resulta sua
célebre teoria da tábua rasa, segundo a qual nosso espírito é algo como uma folha de
papel em branco na qual as impressões sensíveis se inscrevem, na forma de idéias, ao
longo de nossa existência. Sendo assim, portanto, toda atividade intelectual humana
deve resumir-se basicamente à aquisição e transmissão de idéias, sejam elas simples
ou complexas. As idéias simples seriam, assim, algo como átomos de pensamento, e
todo o resto das atividades intelectuais do ser humano se resumiria às relações entre
essas idéias e à constituição de idéias mais complexas por meio do trabalho de
reflexão.
É importante notarmos que, para Locke, o conceito de pensamento é
extremamente amplo. Pensar é ter idéias, relacionar idéias, e essas idéias são dos
mais variados tipos e têm as mais variadas características. Idéias podem ser tanto
‘imagens mentais’ como aquelas que temos quando recordamos ou percebemos
algum objeto sensível, mas também podem ser as paixões, os desejos, os conceitos,
idéias gerais etc. Veremos mais adiante
73
que um dos principais movimentos que
73
Ver: III.2.7
80
determina o advento da tradição semântica na história da filosofia, sobretudo a partir
do pensamento de Frege, é justamente a separação do joio do trigo, será o
estabelecimento daquilo que pode ser considerado como “pensar” em seu sentido
objetivo (no caso de Frege, captar
Gedankes
) e daquilo que será considerado como
atividades psíquicas (ter representações -
Vorstellung
). Estão sendo feitas essas
considerações aqui para que não se perca de vista que a crítica que fará Mill ao
modelo Lockeano abrirá as portas para uma nova concepção de pensamento, menos
amplo e mais preciso, ligado à apreensão de verdades e não à representação de idéias.
Mas sobre isso, voltaremos no momento apropriado.
O que nos interessa, porém, particularmente, no presente momento, é a
existência, em Locke, de todo um universo psíquico como que mediando a relação do
sujeito com o mundo, com o real propriamente dito. A referência ao real se dá por
meio de uma suposição tácita
74
; porém, toda a atividade cognitiva humana versará
sempre direta e exclusivamente sobre as idéias. Conhecimento é conhecimento sobre
idéias, a verdade se refere às nossas idéias ou, mais precisamente, à adequação ou não
da relação entre idéias no espírito
75
, e as proposições, enquanto enunciados verbais,
nada mais são do que a transposição por meio de palavras das chamadas proposições
mentais, da associação de uma idéia à outra no universo psicológico
76
.
74
Por exemplo:
“words often secretly referrred (...) to reality of things. (...) because mem would not be
thougth to talk barely their own imaginations, but of things as really they are, therefore they often
suppose the words to stand also fot the reality fo things”
(idem: III, ii, 5)
75
Knowledge them seems to me to be nothing but the perception of the conexion and agreement, or
disagreemente and repugnancy, of any of our ideas
” (idem: IV, i, 2)
76
“To form a clear notion of truth, it is very necessary to consider truth of thourght, and truth of words,
distinctily one from another: by yet is a very difficult to treat of the asunder. Because it is unavoidable, in
treating of mental propositions, to make use of words: and then the instances given a mental proposition
cease immediately to barely mental, and become verbal. For a mental proposition being nothing but bare
consiederation of the ideas, as they are in our minds stripped of names, they lose, as they are in our minds
stripped of names, they lose the nature of purely mental propositions as soon as they put into words”
(idem. IV, v. 3)
81
De acordo com os pressupostos epistemológicos empiristas de Locke, somente
podem ser consideradas como dotadas de existência efetiva coisas particulares. O
nominalismo-empirista-psicologizante de Locke nos leva a isso: toda generalidade é
um produto, uma “criatura do entendimento”.
77
Por isso, embora no mundo não
exista, segundo o ponto de vista aqui mencionado, universais, existe sim, dentro do
universo psicológico, idéias gerais. E dado que todo nosso conhecimento versa sobre
idéias e não sobre as coisas mesmas, é possível sim falarmos sobre um
“conhecimento” acerca dos universais. Porém, o fundamento último desse
conhecimento não se explica por meio da ontologia, mas somente em termos
psicológicos. Explicar os universais não é explicar como as essências reais se
articulam no mundo, pois essas essências são negadas, mas como nós formamos idéias
gerais a partir das existências particulares. Não se explica a formação de classes a
partir da verificação de como seus elementos se articulam no mundo real, mas a
partir da teoria da abstração
78
, demonstrando como somos capazes de classificar os
particulares do mundo por meio de processos subjetivos.
É com referência ao modelo epistemológico que acabamos de esboçar que a
filosofia lockeana da linguagem deverá se estabelecer. Locke delegará um lugar
sistemático privilegiado à linguagem relacionando-a à necessidade que temos de
comunicar, por meio de algum signo sensível, o conteúdo de nossa vida psicológica,
as nossas idéias. Passemos, então, à consideração do papel da linguagem na estrutura
sistemática da filosofia lockeana.
77
To return to general words, it is plain by what has been faid, that general and universal belong not to
real existence of things; but are the inventions and creatures of de undertanding”
(idem, III, iii,11)
78
“...since all things that exist are only particulars, how come we by general terms, or where find we those
general natures they are suposed to stand for? Words become general, by being made the signs of general
ideas, and ideas become general, by separating from them the circunstacnes of time, and place, and any
other ideas, that may determine them to this or that particular existence. By this way of abstraction they
are made capable of representing more individuals than one; each of which having in it a conformity to
that abstract idea, is (as we call it) of that sort”
(idem, III, iii, 6)
82
II.3.2. A Linguagem em Locke
A filosofia da linguagem lockeana é perfeitamente coerente com sua teoria
das idéias e, conseqüentemente, com seu conceito de pensamento. Uma vez que
podemos falar, em Locke, de um certo ‘atomismo psicológico’, isto é, que o
pensamento possui elementos simples a partir dos quais as atividades psíquicas são
realizadas, Locke baseia sua teoria semântica nas palavras, que seriam algo como que
‘átomos de linguagem’. Tanto é assim que o Livro III do
Essay
não tem por título “a
Linguagem”, mas “As palavras”. Da mesma forma que o livro segundo tem por título
“As idéias” e não “O pensamento”. E isso se torna mais claro e justificado quando
nos deparamos com o papel da linguagem no âmbito do sistema lockeano. Diante de
supostos lockeanos, a linguagem assumirá uma função extremamente importante
dentro da organicidade interna de seu sistema. De acordo com Locke, porque não
somos dotados da capacidade de termos acesso direto e imediato às idéias de outras
pessoas, dado o caráter não sensível dessas idéias e sua dimensão eminentemente
subjetiva, fez-se necessária a introdução de signos sensíveis capazes de servir como
substitutos apreensíveis dessas idéias, a fim de elas pudessem ser transmitidas às
outras pessoas. Locke nos diz:
Ainda que o homem tenha uma grande variedade de pensamentos, dos quais,
tanto os outros como ele mesmo devem receber proveito e prazer, todos eles,
entretanto, estão no interior de si mesmo, invisíveis e escondidos dos outros,
e nem podem se manifestar por si mesmos. O bem estar e a vantagem da
sociedade não sendo realizáveis sem a comunicação de pensamentos, foi
necessário ao homem desvendar certos sinais sensíveis externos, por meio
dos quais estas idéias invisíveis, dos quais seus pensamentos são formados,
pudessem ser conhecidas por outros.
79
79
“Man, though has great variety of thougths, and such, from which others, as well as himself, migth
receive profit and delight; yet they are all within his own breast, invisible and hidden from others, nor
can of themselves be made appear. The comfort and advantage of society not being to be had without
83
Em poucas palavras, a linguagem, para Locke, é uma espécie de substituto sensível
do pensamento não sensível. E como o pensamento é associação de idéias, a
linguagem será a associação de palavras. Dito de outra forma, a linguagem está para o
pensamento assim como as palavras estão para as idéias. Usar a linguagem é
relacionar palavras, pensar é relacionar idéias. É nesse sentido que deve ser
compreendida a afirmação de que a linguagem é um substituto sensível para o
pensamento. O que notamos, pois, no modelo semântico lockeano é algo que
podemos chamar de paralelismo psico-lingüístico. O ‘universo’ do pensamento é
absolutamente independente do ‘universo’ da linguagem, e a linguagem somente se
realiza no conjunto das atividades humanas, porque possui uma função pragmática
bem determinada: comunicar pensamentos.
Duas conseqüências interessantes são extraídas daí:
a) a linguagem não serve como um instrumento útil ao pensamento (ao contrário
do que dirá Mill
80
), mas como um instrumento útil somente à transmissão inter-
subjetiva desses pensamentos; não precisamos absolutamente da linguagem pensar,
mas somente para exteriorizar os pensamentos;
b) linguagem é um instrumento útil à transmissão do pensamento, mas não é
necessário que tal instrumento seja efetivamente a linguagem, ou, ao menos, a
linguagem dos sons e dos sinais gráficos articulados.
Porque o homem é dotado da capacidade de formar sons articulados (e os papagaios
também o são) foram escolhidos, por uma determinação contingente e arbitrária,
esses mesmos sons para servir de substituto sensível dos pensamentos; mas, em
communication of thoughts, it was necessary that man should find out some external sensible signs,
where of those invisible ideas, which his thoughts are made up of, might be made kanown to others”
(idem, III. ii. 1)
80
ver I.2.2.
84
princípio, poderiam ser outros meios. Por isso, a linguagem, tal como a conhecemos,
é algo absolutamente contingente e arbitrário. Poderia ou não existir sem prejuízo
das atividades puramente intelectuais humanas, uma vez que não necessitamos
absolutamente da linguagem para exercer essas atividades, mas somente para
comunicá-la aos demais seu conteúdo. Além disso, a linguagem é, por natureza,
arbitrária, mas essa arbitrariedade não só se dá quando se refere à escolha de
determinados sons para significar determinadas idéias, mas também no sentido de
que o próprio expediente de usar sons articulados para servirem de substitutos das
idéias invisíveis foi uma escolha humana. São as palavras, mas, em princípio,
quaisquer outros elementos sensíveis poderiam ser utilizados como signos de nossos
pensamentos. Mas o fato é que, seja como for, em Locke o conceito de significação
pode ser definido, em última análise, como equivalente ao de substituição: significar
é substituir uma idéia por uma palavra, ou por qualquer outro elemento sensível
capaz de se prestar a essa função.
II.3.3. Locke e a generalização
Agora, talvez, torne-se mais claro o que fora afirmado mais acima, acerca dos
universais no pensamento de Locke. O que existe de geral não são existências, mas
somente idéias. E é sobre as idéias que os nomes se referem, não às coisas mesmas.
Logo, torna-se evidente que o fundamento dos chamados termos gerais, aqueles
nomes que se referem a mais de um indivíduo, deve ser explicado demonstrando a
maneira como somos capazes de generalizar, ou seja, de criar idéias gerais.
Locke aponta a generalização subjetiva e a conseqüente introdução na
linguagem de termos gerais algo não só útil, como também necessário. Primeiro,
85
porque seria impossível que cada coisa particular existente no mundo tivesse um
nome específico, um nome próprio. Segundo, porque, mesmo que fosse possível,
seria inútil, pois a multiplicação de nomes impossibilitaria o acordo intersubjetivo
necessário para a estipulação dos significados dos termos
81
. Não é isso, porém, o que
nos interessa no presente momento, mas sim o fato de que pode ser mais uma vez
justificado aquilo que chamamos a pouco de paralelismo psico-lingüístico. Se os
universais só existem no nível psicológico, enquanto idéias gerais, e se a linguagem
necessita de termos gerais, certamente a linguagem somente pode ser referida,
dentro desse universo teórico, às idéias mesmas, ao mundo psíquico e não ao mundo
real. A partir de um argumento simples, podemos expor sistematicamente o
fundamento do conceitualismo lockeano:
P1: No mundo não existem universais, mas somente coisas particulares
P2: A grande maioria dos termos da linguagem é composta por nomes gerais
P3: A generalização é um processo subjetivo que se dá por meio da abstração
C: Os nomes gerais só podem se referir aos produtos dessa generalização subjetiva,
ou seja: idéias gerais.
Será a partir desta base teórica que Locke lançará mão de seus célebres
conceitos de
essência real
e
essência nominal
. Essências reais são exclusivamente
particulares e, por isso mesmo, possuem uma dimensão ontológica efetiva. Essências
nominais
82
, são meramente proveniente das chamadas idéias gerais, e, portanto, são
eminentemente subjetivas. Em realidade, a expressão “essência nominal” é
propositalmente auto-contraditória, e possui o claro objetivo de sugerir quão
81
If it were possible
[that every particular thing should have a distinct peculiar name (#2)]
it would yet
be useless; because it would no serve to the chief end of language. Mem would in vain heap up names of
particular things, that would not serve them to communicate their thoughts”
(idem: III, iii, 3)
82
Em realidade, a expressão “essência nominal” nada mais é do que um mero artifício para negar a
essencialidade dos universais.
86
inconseqüente é o expediente de se falar em
essências universais
. O adjetivo
“nominal” retira qualquer referência a uma essencialidade entendida em sentido
estrito, pois toda sua dimensão ontológica é simplesmente suprimida em nome da
generalização subjetiva. Trata-se, pois, de uma pérola do nominalismo psicológico.
II.3.4. Significado e entendimento
Uma deficiência importante da teoria semântica lockeana consiste nela ser,
podemos dizer, uma semântica de ‘dois pólos’, de ‘dois sentidos’
83
. Ora, se o papel da
linguagem é comunicar pensamentos, torna-se clara a necessidade de se encontrar
explicações distintas - e ambas psicológicas - para o que ocorre tanto na mente de
quem fala, quanto na de quem escuta. Isso por uma razão bastante clara; segundo
Locke, o significado imediato das palavras são as idéias na mente de quem fala
84
. Eu
tenho uma idéia e a comunico por meio de uma palavra. Logo, o significado dessa
palavra não pode ser outra coisa além da idéia que estou tendo atualmente. Portanto,
minha palavra, para cumprir o seu papel de comunicar o que penso, deve ter um
significado
85
. No entanto, para que esse processo de comunicação de idéias seja
completo e efetivamente cumpra seu papel, é necessário que o interlocutor, aquele
83
Ver BENNETT, J.:
Locke, Beckeley and Hume: Central theme,
cap. 1
84
“Thus we may conceive how words, which were by nature so well adapted to that purpose, come to be
made use of by men, as the signs of their ideas; not by any natural connexion that there is between
particular articulate soud an certain ideas, for then there would be but one language amongst all men.”
(idem III, ii, 2)
85
Já nos é possível notar pelo que foi exposto até aqui que o conceito de significado em Locke está
baseado na substituição: significar = substituir. Uma palavra tem significado se ela é um substituto sensível
de uma idéia.
87
que ouve, compreenda aquela palavra, ou seja, a utilize como marca sensível de uma
idéia que também é sua, e traga à consciência, no ato da audição, também uma idéia.
Portanto, não basta somente que a palavra tenha significado - ou seja, que substitua
uma idéia na mente de quem fala - mas é necessário também que haja entendimento.
Aquele que ouve deve ser capaz de trazer à tona a idéia que está sendo comunicada e
que a tenha também como uma idéia sua.
Ora, qual é o inconveniente dessa conseqüência que acabamos de expor? O
fato de que não basta para uma palavra ter significado para simbolizar algo
efetivamente. Se a função da linguagem é comunicar, somente a ocasião da palavra
ter significado (i. e. ser um substituto de uma idéia do falante) não é suficiente para
que a comunicação de fato se dê e que a linguagem efetivamente se realize. Significar
passa a ser um procedimento unilateral, que tem a ver exclusivamente com o falante
e suas ideais privadas. Torna-se perfeitamente possível, no universo conceitual
lockeano, uma linguagem privada, ao menos no nível do significado. Mas aí, o
problema se desdobra, pois a possibilidade de uma linguagem privada fere um dos
pressupostos mais elementares da teoria lockeana da linguagem, a saber, sua
dimensão prioritariamente pragmática, seu papel de ser um instrumento de
comunicação intersubjetiva. Dito talvez de uma maneira mais precisa, o significado
de uma palavra, para Locke, é privado; mas a linguagem tem sua função e, portanto,
sua razão de ser, na realização de algo que é por natureza intersubjetivo, a
comunicação entendida como transmissão de idéias.
Essas considerações servem para salientar que o modelo semântico lockeano
não se reduz propriamente a uma teoria do significado, não sendo, por isso,
efetivamente semântico, mas eminentemente psicológico. Significar é algo que se
reduz a processos psicológicos e não propriamente a categorias de ordem semântica,
como o
Sinn
fregeano ou a
conotação
de Mill. Nesse sentido - e essa é uma
88
importante tese do presente trabalho - Stuart Mill foi, senão o primeiro, mas ao
menos um pensador anterior a Frege e o seu
Sinn und Bedeutung
, que enunciou uma
teoria do significado objetiva e puramente semântica, capaz de dissolver a
necessidade de explicar os dois pólos do discurso. A teoria da conotação tem, pois,
efetivamente, o caráter unitário reclamado há pouco. Ela assume, tanto no processo
de superação do modelo hobbes-lockeano, quanto para o advento de uma abordagem
mais genuinamente semântica do processo de significação, um papel de destaque que
deve ser salientado. Resolverá, ao seu modo, o problema da função da linguagem
enquanto instrumento de comunicação humana utilizando-se, para isso, somente de
uma teoria do significado, sem a necessidade de se considerar explicações causais de
ordem psicológica que dêem conta do processo de entendimento. E, mais importante
do que isso, produzirá uma teoria unitária, sem a necessidade de se considerar os dois
pólos do discurso (falante e ouvinte), pois ambos estarão abarcados na ‘carga
semântica’ que o nome conotativo traz consigo, que é justamente determinada pela
conotação dos nomes gerais. A ‘carga semântica’ determinada pela conotação de um
nome significa, por assim dizer, por si só, e é absolutamente objetiva; é, por isso,
comum aos diversos sujeitos, não necessitando de explicações distintas e
independentes do que acontece individualmente aos interlocutores no uso da
linguagem. O que menos importará em Mill será a arbitrariedade da aplicação do
nome, mas o que o nome efetivamente significa. É nesse sentido que dissemos que,
em Locke, não existe, positivamente, uma teoria da significação; ou melhor: existe
uma teoria da significação, mas essa teoria não é uma teoria efetivamente semântica.
É uma teoria psicológica que serve a uma causa pragmática.
89
II.3.5. Locke e a proposição
Locke adota uma posição com respeito à estrutura proposicional claramente
aristotélica. A proposição é ‘algo complexo’, fruto da relação e da articulação de dois
‘elementos’, um determinado pelo termo sujeito e outro pelo termo predicado. Ora,
uma vez que, como vimos, segundo Locke, os elementos primários das atividades
intelectuais humanas são as idéias obtidas, em última instância, por meio da
experiência sensível, e dado que a linguagem tem por objetivo ser um substituto
apreensível dessas idéias que são, por natureza, insensíveis, torna-se claro que uma
proposição verbal, ou melhor, que aquilo que se articula e se relaciona num símbolo
proposicional, deve ser o substituto lingüístico – e, portanto, sensível - daquilo que
se passa no intelecto de quem associa e relaciona idéias. A teoria da linguagem como
substituto sensível de idéias insensíveis exige esse paralelismo psico-lingüístico. Eu
relaciono idéias em meu intelecto de uma determinada maneira, ou seja, incluindo
ou excluindo uma idéia à outra mais geral, e tenho, assim, o que será por Locke
chamado de
proposição mental
. Isso significa que é na mente, no intelecto, enfim, no
interior do universo subjetivo e psicológico que a unidade da proposição se constitui.
E a enunciação dessa proposição mental por meio da linguagem será nada mais do
que um substituto sensível e apreensível daquilo que se passa no pensamento.
Ora, se o processo cognitivo primário, que é a experiência sensível, somente
proporciona a aquisição de idéias, e se a proposição se constitui já num nível
mediato, na medida em que tem seu sentido constituído a partir de um processo
psicológico de aquisição e relações de idéias, torna-se evidente que a verdade
somente terá seu lugar se relacionada diretamente às idéias, ou melhor, à maneira
como essas idéias estão associadas no intelecto de um sujeito determinado. Locke nos
diz textualmente:
90
Desde que a mente em todos os seus pensamentos e raciocínios não tem
outros objetos imediatos exceto suas próprias idéias, e apenas isso é que pode
ser contemplado, torna-se evidente que nosso conhecimento se relaciona
somente com elas.
86
Não vem ao caso agora, em virtude de nossos interesses específicos, descrever a
maneira como Locke sistematiza sua teoria e apresenta os diversos tipos de relações
entre idéias que constitui aquilo que pode ser objeto de conhecimento – e, portanto,
ser expresso numa proposição. Importa salientar simplesmente que, para Locke, a
experiência imediata não nos fornece verdades ou conhecimentos, mas somente
idéias, e que a unidade do sentido proposicional se estabelece no universo
psicológico. Quanto ao primeiro ponto, vimos no capítulo anterior que em Mill, por
recusar a teoria lockeana das idéias, as coisas se darão de forma um tanto diversa, o
que fará uma grande diferença: Segundo Mill, a experiência sensível primária e
imediata tem o poder de nos fornecer verdades e não meramente idéias, o que
possibilitará, de acordo com nossa hipótese, a identificação já de um sentido
proposicional primário e imediato, disponível aos sujeitos por meio da faculdade da
intuição. Logo adiante, levantaremos o problema referente à unidade do sentido
proposicional em Mill, a partir de sua crítica ao modelo conceitualista lockeano.
Antes, porém, abordaremos um pouco mais detidamente a relação da teoria lockeana
das idéias com o psicologismo lógico.
86
“Since the mind, in all its thoughts and reasonings, hath no other immediate oblesct but its oun ideas,
wich it alone does or can comtemplate; it is evident, that our knowledge is only conversant about them
(idem: IV, i, 1)
91
II.3.6. Locke e o psicologismo
De acordo com o que foi exposto até aqui, podemos certamente chegar a uma
conclusão importante para nossos propósitos: que aquilo que mais tarde será
chamado de ‘psicologismo lógico’ e que será combatido por Frege tem, ao menos em
sua roupagem britânica, uma conexão quase que necessária com a teoria lockeana das
idéias e sua teoria da linguagem. Por uma razão bastante simples e compreensível.
Antes, porém, de expô-la, faz-se necessário alguns esclarecimentos de ordem
conceitual. E necessário identificarmos ao menos dois sentidos nos quais se pode
falar em psicologismo; ou melhor: duas manifestações do psicologismo, que são
distintas, mas intimamente ligadas. Em primeiro lugar, podemos falar num
psicologismo semântico
, ou seja, na tese de que os significados das palavras são
entidades mentais e que, portanto, a semântica se reduz à psicológia. Dentro de
nosso universo conceitual, o
psicologismo semântico
se identifica com aquilo que
Mill irá refutar com relação a Hobbes e Locke e que chamará de conceitualismo.
Mas, também, podemos falar num outro aspecto do psicologismo, que chamamos de
psicologismo lógico
, ou seja, a tese que as regras lógicas de inferência descrevem
processos mentais, e que, portanto, a lógica é uma parte, um ramo da psicologia. O
psicologismo, de um modo geral, apresenta-se como algo que não possui uma
definição muito clara, mas certamente deve-se considerar que, ao menos uma dessas
duas possibilidades citadas há pouco, constitui o elemento conceitual básico de uma
teoria psicologista
87
. Mas, de qualquer modo, certamente esses dois aspectos do
psicologismo estão intimamente ligados e isso fica mais claro quando analisamos o
87
John Skorupiski, por exemplo, nos diz:
“’Psychologism’ is a loose term but we take it to consist in one or
both of two views: (1) that laws of logic are simply psychological laws concerning our mental processes;
or (2) that ‘meanings’ are mental entities, and that judgements asserts relationships among these entities”
(Language and logic;
The Cambridge companion to Mill
, pag. 46-47)
92
que se passa quando uma teoria das idéias como a de Locke está em conjunção com
uma lógica aos moldes aristotélicos, com uma lógica silogística. Ora, como funciona
a silogística aristotélica? As regras de inferência se aplicam por meio da relação que
mantém os termos do silogismo entre si. De acordo com a maneira com estão
relacionados os termos S e P com o termo M é que se pode ou não inferir a verdade
necessária da conclusão no caso de as premissas serem verdadeiras e determinar a
validade de um argumento cuja conclusão envolve os termos S e P. Ora, se, de
acordo com Locke, o significado dos termos são idéias, e mais do que isso, se as
proposições verbais que formam um silogismo expresso na linguagem nada mais são
do que os substitutos sensíveis daquilo que se passa no intelecto de quem raciocina
silogisticamente, não há como escaparmos da conclusão de que as “leis lógicas”
envolvidas na correção ou não do argumento são, em última instância, leis
psicológicas; que as regras de inferência silogística são determinadas por meio das
regras de associação de idéias estabelecidas pelo sujeito psicológico. É nesse sentido
que se vincula de forma orgânica o modelo semântico lockeano com o chamado
psicologismo lógico. Certamente, quando os autores do século XIX falam e criticam
o psicologismo, não estão se voltando exclusivamente para esse modelo que
acabamos de expor. Os desdobramentos da filosofia kantiana e sua recepção por
parte de das primeiras gerações de filósofos pós-kantianos produziram também na
Alemanha, e por vias diversas, conseqüências psicologistas
88
. Mas, embora o esquema
que expusemos acima não seja suficiente para dar conta da gênese conceitual do
psicologismo como um todo, certamente ela dá conta de aspectos importantes e de
manifestações determinantes desse mesmo psicologismo.
88
Richard Brockaus nos diz
: “But pychologism has much deeper roots in two rather different
philosophical movements. On one hand, German psychologism results, in parte at laest, from corruption
of the Kantian Critical Philosofy (...) On the other, psychologism found fertile soil in the antipathy
towards abstract entities central to British Empirism”
. (
Realism and psychologism en 19
th
century logic
;
in: Philosophy and Phenomenological Research; Pag. 495)
93
Ora, de acordo com nosso ponto de vista, a refutação da tese conceitualista
por parte de Mill, ou seja, a superação do psicologismo semântico que, como
acabamos de ver, é um dos alicerces do psicologismo lógico, ao menos em uma de
suas versões, será um importante elemento para a superação desse mesmo
psicologismo. Quando Mill afirmar com todas as letras que “a lógica é uma parte da
psicologia” ele não estará sendo totalmente coerente consigo mesmo. O que ele diz
textualmente e o que é sugerido por suas teses parecem não concordar.
Certamente não fizemos da forma detalhada, como possivelmente a
complexidade dos problemas apontados nessas primeiras seções exige, a análise e
exposição dos principais elementos conceituais envolvidos no modelo semântico-
psicológico que chamamos de hobbes-lockeano. Mas, acredito que tenha sido
possível ter claro o papel que desempenha as duas teses citadas no início desse
capítulo como constituindo o modelo semântico que será criticado e derrubado por
Mill, e que, de acordo com nosso ponto de vista, abrirá caminho para o advento da
semântica como disciplina filosófica fundamental a partir da chamada virada
lingüística do século XIX.
O que importará, no decorrer do presente trabalho, será demonstrar em que
medida o fato de Mill ter-se voltado para a linguagem primeira e prioritariamente
em seu
System of logic
tem uma relação direta e orgânica com a necessidade de se
superar os pressupostos mais elementares desse modelo hobbes-lockeano exposto até
aqui. E com essa superação, a própria pergunta filosófica elementar, o próprio
entendimento de qual seja o papel do saber filosófico como um todo sofrerá
importantes modificações. Embora um tanto superficial, não é exagero afirmar que,
para Locke, por exemplo, o papel da filosofia dentro do universo cognitivo humano é
o de descrever e explicar as origens de nossas idéias; a filosofia devendo-se voltar
para o próprio sujeito psicológico e suas condições psico-cognitivas. Superar o tal
94
modelo semântico ao qual nos referimos significará, por isso mesmo, superar toda
uma concepção acerca do que se compreende pela própria natureza do pensar
filosófico. E isso é o mais importante de toda essa história. Toda uma escola de
pensamento será posta em xeque no exato momento em que Mill propõe sua teoria
da conotação e refuta o conceitualismo. E será com vistas a esse estado de coisas que
apresentaremos, nas seções seguintes, a crítica milliana ao modelo semântico-
psicológico representado pelo modelo semântico-psicológico hobbes-lockeano.
II.4. A refutação do conceitualismo
No início de sua grande obra, após ter justificado a necessidade de se começar
um tratado de lógica pela análise da linguagem e de ter determinado em que consiste
essa ciência de acordo com seus pontos de vista
89
, Mill oferece aquela que, sem
dúvidas, é uma das principais teses do
System of logic.
Diretamente contra Hobbes,
mas também contra Locke, conforme foi estabelecido nas seções anteriores, Mill
afirma que o significado imediato e primeiro dos nomes não são nossas idéias, mas as
coisas mesmas. Buscaremos mostrar nesta seção que, tão importante como a própria
tese e o que ela significa, tanto para a estrutura interna do
System of logic
, quanto
para a virada semântica à qual estamos nos referindo, será o argumento utilizado
para defendê-la, pois nesse argumento enunciam-se já, ao menos de forma
embrionária, algumas teses que serão de grande valia para Frege.
Conforme aquilo que foi colocado há pouco, a tese conceitualista de que os
nomes se referem a idéias e não às coisas mesma, num certo sentido, é uma
conseqüência quase que necessária de uma outra tese que lhe é logicamente e
89
ver: I.2.1
95
sistematicamente anterior: de que usamos a linguagem para comunicar nossos
pensamentos. Nesse sentido, a semântica seria, por um lado, reduzida à psicologia,
pois a relação entre os nomes e o suposto mundo real (de acordo com Locke as coisas
reais às quais nossas idéias se referem somente são afirmadas por meio de uma
suposição tácita) se explicaria, em última instância, por meio de causas psicológicas,
que determinam a maneira como adquirimos nossas idéias a partir da experiência
empírica. Mas, por outro lado, a semântica também se reduz à pragmática, uma vez
que é o uso que fazemos da linguagem (transmitir pensamentos) quem impõe a
necessidade de uma semântica psicológica. Ora, de acordo com essa situação, claro
deve estar que, para refutar a tese conceitualista de que os nomes se referem às
idéias, será necessário refutar a tese que dá suporte e fundamento a esse
conceitualismo, ou seja, dado que a tese semântica de que os nomes significam
imediatamente idéias supõe a tese pragmática de que a linguagem é usada para
transmitir pensamentos, somente será possível mexer na primeira se a segunda
também for alterada. Stuart Mill fará justamente isso. Contra a tese conceitualista ele
nos diz:
Se isto (a tese conceitualista) quisesse dizer simplesmente que a concepção
só, e não a coisa mesma, é recordada e transmitida pelo nome, não haveria
nada a se opor. No entanto, parece razoável seguir o uso comum dizendo que
a palavra Sol é o nome do Sol e não de nossa idéia de Sol. Com efeito: os
nomes não estão destinados somente a fazer conceber aos outros aquilo que
concebemos, mas também para informar o que nós cremos
90
E, um pouco antes, ao tratar das proposições em geral Mill afirma:
90
If it be merely meant that the conception alone, and not the thing itselfs, is recalled by the name, or
imparted to the hearer, this of the course cannot be denied. Nevertheless, there seems good reason for
adhering to the common usage, and calling the word sun the name of the sun, and not the name of our
idea of the sun. For names are not intended only to make the heares conceive what we conceive, but also
to inform him what we believe
” (op. cit. I. ii. 1)
96
Tudo o que pode ser objeto de crença e não crença deve ser expresso por
palavras e assumir a forma de uma proposição
.
91
O trecho acima, de acordo com os nossos interesses específicos, é, sem dúvida, uma
das principais passagens do
System of logic.
Isso, porque é aqui que Mill estabelece as
bases a partir das quais se sustenta seu anticonceitualismo. Como podemos notar,
Mill nega que os nomes tenham idéias como seus referentes imediatos, mencionando
o fato de que não usamos a linguagem simplesmente para comunicar aos nossos
interlocutores o conteúdo de nossas representações subjetivas, aquilo que
concebemos em nosso universo psicológico. Certamente, quando enuncio uma
proposição na qual figura o termo “sol” devo ter em mente uma idéia do sol; mas
isso não deve significar que é sobre a idéia de sol que o discurso proposicional se
refere. Isso porque o sol, embora figure enquanto idéia no intelecto de quem enuncia
uma tal proposição, é reivindicado com integrante de um fato objetivo do mundo, e é
sobre esse fato objetivo que a proposição deve estar referida. Certamente, de acordo
com o ponto de vista milliano, devo pensar no sol para enunciar uma proposição na
qual a palavra “sol” apareça, mas nem por isso devemos daí inferir que é sobre a idéia
de sol que o discurso proposicional se refere. É porque a palavra “sol” se apresenta
enquanto parte de um
conteúdo proposicional
que busca representar um fato do
mundo, que ela não pode ter por referência a idéia de sol na mente de quem fala.
Qual é, para nossos propósitos, a principal conseqüência de tal argumento? Ele
enuncia já, ainda que forma rudimentar e embrionária, aquilo que mais tarde Frege
colocará com clareza e dentro de um contexto lógico-conceitual mais apropriado: o
princípio do contexto
. É certo, e não há como irmos contra isso, que talvez a
principal característica do princípio do contexto seja a anterioridade do todo
proposicional em relação às partes que compõe a proposição, a tese fregeana clássica
91
“Whatever can be na object of belief, or even of disbelief, must, when put into words, assume the form
of a proposition”
(idem. I, i, 2)
97
de que a análise do todo proposicional não supõe uma síntese anterior, que o todo
proposicional é anterior às suas partes. Mill, por sua vez, ainda trabalha com uma
teoria da proposição aos moldes aristotélicos, na qual o sentido proposicional é
determinado pela síntese de dois termos ligados pela cópula; ou seja: é um símbolo
complexo que supõe elementos simples prioritários. No entanto, o que deve ser
apontado aqui é o argumento utilizado por Mill: se a linguagem de fato servisse
somente para comunicar aos outros aquilo em que estamos pensando, ou seja, as
idéias que estamos tendo atualmente, o conceitualismo teria razão; penso num
cachorro e pronuncio a palavra “cachorro”; certamente, meu interlocutor saberá, ao
me ouvir, que penso num cachorro e, nesse caso, torna-se óbvio que o significado
imediato de palavra “cachorro”, tal como foi proferida, somente pode significar a
idéia de cachorro na minha mente no ato da enunciação. No entanto, quando utilizo
a palavra “cachorro” para expressar uma crença num fato do mundo no qual o
cachorro participa, a palavra cachorro terá um outro significado, e isso graças ao fato
de estar inserida num “contexto proposicional”; e aí se torna insustentável a tese de
que o significado do termo é meramente uma idéia na mente de quem fala.
Certamente devo estar pensando num cachorro e devo ser capaz de ter uma idéia de
cachorro para que eu possa enunciar uma proposição no qual o termo “cachorro”
aparece
92
. E isso Mill vê claramente, quando diz, após ter citado a tese conceitualista:
Esta definição de nome como palavra ou grupo de palavras que servem ao
mesmo tempo como marca para recordarmos a semelhança de um
pensamento anterior e do signo para faze-lo conhecer aos demais, parece
92
Como veremos no capítulo III, em Frege isso não é necessário. Com relação aos termos numéricos,
Frege defende que, mesmo não nos sendo possível representar um número na forma de uma imagem
mental, ela não deixa de ter significado. No entanto, esse significado somente pode ser estabelecido no
contexto de uma proposição no qual o termo numérico aparece. (ver: III.2.6.)
98
irrefutável. Sem dúvida, os nomes fazem muito mais que isso; porém, tudo o
que fazem além disso é resultado desta dupla propriedade..
.
93
Como podemos notar, Mill está assumindo que tudo o que fazemos lingüisticamente
deve supor uma referência a entidades subjetivas. No entanto, se aceitarmos, com
Mill, que não usamos a linguagem para comunicar o conteúdo dos nossos
pensamentos (que em termos lockeanos é sinônimo de comunicar idéias), mas que a
função prioritária da linguagem está ligada à enunciação proposicional, que a função
da linguagem não é comunicar o que concebemos em nossas mentes na forma de
imagens mentais, mas sim as nossas crença em verdades, então a representação
subjetiva deixa de ser relevante, embora esteja suposta.
Ora, qual é a importância de tal argumento para nossos propósitos? Salientar
que Mill já notou a necessidade de se priorizar a noção de verdade numa teoria
semântica. Ele não deixa, certamente, de fornecer á sua teoria uma dimensão
pragmática: a linguagem possui uma função, um uso. No entanto, não usamos a
linguagem simplesmente comunicar aos outros o conteúdo atual de nossas
representações, mas (também) para comunicar o ‘objeto de nossas crenças’. E,
embora a crença em si mesma seja um estado de consciência e, por isso mesmo, uma
manifestação absolutamente subjetiva, quando cremos, cremos em algo, e esse algo é
algo absolutamente objetivo. A verdade, ao contrário do que dizia Locke, não se
refere às nossas idéias, mas a fatos objetivos do mundo. Esse foi o principal
movimento realizado por Mill no que tange aos problemas que nos interessam
particularmente: delegar à linguagem uma roupagem lógica-veritativa em oposição à
visão sócio-pragmática presente no modelo hobbes-lockeano. Naquele modelo, a
93
This simple definition of a name, as word (or set of words) serving the double purpose of a mark to
recall to ourselves the likeness of a former thought, and a sign to make it know to others, appears
unexceptionable. Names, indeed, do much more than this; but whatever else they do, grows out of, and is
the result of this”
(idem
,
I, ii, 1)
99
teoria da linguagem tem por objetivo sua fundamentação enquanto
instrumento
necessário para o estabelecimento do contrato social
; por isso supõe que sua função é
comunicar pensamentos, pois só ‘trocando idéias’ (literalmente), os indivíduos
podem estabelecer os acordos necessários ao mútuo convívio. Aqui, no universo do
System of logic
, a linguagem é fundamentada enquanto discurso proposicional,
enquanto
instrumento necessário à enunciação de verdades
. Creio que seja ocioso
lembrar o quanto essa mudança de ponto de vista com relação à natureza e função
pragmática da linguagem foi determinante para muitas das discussões que serão
empreendidas por filósofos como Frege, Russell, Moore ou Wittgenstein, para citar
somente os mais importantes.
II.4.1. Mill e a unidade do sentido proposicional
Na seção anterior, foi apontado que o argumento milliano contra o
conceitualismo está baseado na afirmação de que usamos a linguagem, ao contrário
do que defende a escola hobbes-lockeana, para expressar nossas crenças; e que
crença,
em Mill, remete-nos à uma dimensão lógico-veritativa. Não vem ao caso,
porém, investigarmos aqui qual o significado do termo crença (
belief
), a partir de sua
dimensão psicológica no universo sistemático de Mill, mas tão somente seu aspecto
lógico; é importante notarmos a conexão íntima existente entre
crença
e
verdade
94
.
De acordo com a passagem citada mais acima, vimos claramente que a
crença
em
Mill está sempre relacionada a um conteúdo crido, e que a
crença
consiste na
atribuição do valor de verdade Verdadeiro a esse conteúdo. Quando se pronuncia, no
uso geral da linguagem, a proposição “o sol é causa do dia” o que se está afirmando é
algo como “eu acredito que o sol é a causa do dia” ou, mais especificamente “para
94
Sobre a relação entre crença, proposição e verdade tratamos em I.2.3.
100
mim ‘o sol é a causa do dia’ é uma proposição verdadeira’”. A
crença
, pois, deve
sempre estar referida a um conteúdo que é crido. A crença é sempre uma crença em
algo. Não se pode dizer, com sentido, de maneira alguma, “eu creio” simplesmente,
mas deve-se sempre dizer algo como “eu creio que P”. Ou seja, o ato da crença deve
sempre se referir a algo, e esse algo não pode ser confundido com o próprio ato da
crença. Devemos extrair das colocações de Mill que o ato da crença deve possuir um
caráter intencional. A crença se estabelece por sua relação a algo objetivo, que
transcende a própria consciência. A pergunta que se coloca, então, é a seguinte: qual
é o objeto da crença? Qual o
status
daquele ‘algo’ que é crido como verdadeiro?
Frege conseguiu encontrar uma saída arrojada para um problema similar. Se
assimilarmos, o que parece plausível, a atribuição de um valor de verdade em Frege,
com o ato da crença em Mill, no qual uma proposição é tomada por verdadeira,
veremos que nos dois casos existe a necessidade de se perguntar pelo portador da
verdade. Ou melhor, em Frege perguntamos pelo
portador da verdade
, em Mill pelo
objeto da crença
, mas nos dois casos a questão se mantém similar: qual a referência
do ato intencional da atribuição de verdade? Frege fornece a seguinte resposta: o que
pode ser verdadeiro ou falso, o que recebe nosso assentimento no ato da asserção é
um
Gedanke
, um pensamento entendido como conteúdo objetivo, é algo que está
vinculado ao que Frege estabeleceu como o ‘terceiro reino’, um conteúdo objetivo
que deve ser captado pelos sujeitos; que é objetivo no sentido de ser exatamente o
mesmo para todos os sujeitos que são capazes de captá-los, mas que nem por isso são
efetivamente reais
95
. Mill, no entanto, por razões de princípio, por conta de posições
bastante definidas com relação à origem empírica do conhecimento, não pôde, ao
menos explicitamente, seguir caminho que foi mais tarde trilhado por Frege, embora
95
No capítulo III trataremos de forma mais detida essa questão.
101
já tivesse ao seu dispor muitos dos instrumentos necessários para isso. Veremos na
seção seguinte como Mill trata o problema.
II.4.2. Proposição e juízo
Sem dúvida, uma tese fundamental do
System of logic
, ao menos para nossos
propósitos, repousa na distinção que Mill realiza entre, de um lado, o
ato subjetivo
da crença e, do outro, o
conteúdo objetivo
dessa crença ou, para usar a expressão
mais propriamente milliana, o
objeto da crença
. Escreve ele:
Um estudo da natureza das proposições deve ter por finalidade uma dessas
duas coisas: análise do estado de espírito chamado crença, ou a análise do
objeto dessa crença. (...) A lógica, tal como é concebida aqui, não tem porque
se ocupar com ato de crer ou de julgar. O estudo de tal operação, enquanto
fenômeno do espírito, é objeto de oura ciência.
96
.
Algo importante deve ser apontado a partir da passagem acima: Mill, mais uma vez,
está estabelecendo uma distinção fina e importante com respeito à relação entre
lógica e psicologia. Em I.2.1., vimos que Mill estabelece, a partir da tese de que a
lógica é composta por uma parte
científica
e outra
artística,
a necessidade de se
distinguir as explicações causais referentes ao que se passa no intelecto dos
indivíduos quando raciocinam de fato, daquilo que fundamenta a correção dos
raciocínios. Na passagem acima, Mill enuncia a necessidade de distinguirmos o
ato
da crença
enquanto processo subjetivo, do
conteúdo da crença
, que deve ser,
certamente, objetivo. Veremos no capítulo seguinte o quanto ambas distinções são
96
“An inquiry into the nature of proposition must have one of two objects: to analyse the state of mind
called Belief, or to analyse what is believed (...) Logic, according to the conception here formed of it, has
to concern with the nature of the act of judging or believing; the consideration of the act, as a
phenomenon of the mind, belongs to another science.”
(
Idem:
I, v, 1)
102
caras ao antipsicologismo fregeano. Mas, por ora, devemos apontar na passagem
acima que, mais uma vez, Mill está professando seu repúdio ao subjetivismo típico
dos modernos manifestado na tendência de assimilar o ato subjetivo de julgar com o
conteúdo julgado. O que deveriam ser teorias da proposição acabaram se tornando,
para os modernos, teorias do juízo
97
. Em oposição a isso, Mill está reclamando a
necessidade de se considerar separadamente duas coisas que equivocadamente foram
assimiladas uma à outra: ato de julgar e conteúdo julgado, o estado de espírito
chamado
crença
e o
objeto da crença
.
Embora, em seu livro, Mill tenha se referido explicitamente a Descartes,
Leibniz e Locke como defensores dessa postura, podemos encontrar em Kant, talvez,
sua maior expressão. Para Kant, como é bem sabido, o juízo (i. e. aquilo que pode ser
verdadeiro ou falso) depende inexoravelmente da figura de um sujeito que, a partir
do aparato transcendental cognitivo que possui, é capaz de “processar” o múltiplo da
intuição e produzir, por meio da síntese, enunciados acerca do mundo (juízos). Nesse
sentido, o conteúdo desses enunciados não pode ser dissociado dos processos
subjetivos que o produzem. Assim, o próprio ato subjetivo envolvido numa asserção
seria ele mesmo o ‘produtor’ do enunciado; a constituição daquilo que se acostumou
chamar de ‘sentido proposicional’ é um processo que se confunde com a assunção da
verdade do enunciado no ato do juízo. O que Mill reivindica é a necessidade de
distinguirmos duas instâncias nesse processo – o ato do juízo e a coisa julgada; com
isso o próprio conceito de juízo se modifica, pois se transforma num procedimento
puramente passivo de crença ou não crença num conteúdo objetivo previamente
constituído.
97
Conformably to these views, almost all writers in Logic in the las two centuries, whether English,
German, or French, have made their theory of Proposition, from one edn to the other, a theory of
Judgments. They considered a Proposition, or a Judgment, for they used the two words indiscriminatly,
to consist in affirming or denying one
idea
of another”
(idem: I, v, 1)
103
Como já foi mencionado, para Mill, numa proposição, algo é associado a algo;
trata-se da união de duas ‘coisas’
98
, uma determinada pelo
termo sujeito
e a outra
pelo
termo predicado
. Ora, antes da manifestação da crença na verdade desse
complexo proposicional é necessário que o próprio complexo seja concebido
independentemente de sua verdade ou falsidade ou, como diz Mill,
independentemente da crença que possamos ter ou não acerca de sua verdade. Para
não crer que Maomé é um apóstolo de Deus é absolutamente necessário que Maomé
e apóstolo de Deus sejam previamente concebidos como unidos num sentido
proposicional
99
. Somente na posse desse complexo proposicional objetivo, em
princípio ‘neutro’ com relação ao seu valor de verdade, é que os sujeitos podem
manifestar sua crença ou descrença em sua verdade e, assim, enunciar um juízo (que,
guardadas as devidas proporções, se equivale àquilo que Frege chamará de asserção, a
assunção de que o enunciado é verdadeiro).
Diante disso, coloca-se a seguinte pergunta: qual é o
status
desse conteúdo?
No que consiste essa unidade de sentido objetiva que é tomada por verdadeira no ato
da crença? De acordo com Mill, não se trata de uma ‘entidade’ psicológica ou
subjetiva, como as
proposições mentais
lockeanas, mas algo ‘exterior’ ao espírito, um
fato no mundo
100
. Embora, de acordo com Mill, seja necessário, certamente, que algo
se passe no universo psicológico quando damos assentimento a um conteúdo
proposicional, não são a esses estados psicológicos que o ato da crença se refere. O
que Mill está estabelecendo é a necessidade de se separar o joio do trigo; de fato,
98
“coisa”, aqui, entendido no sentido mais neutro que se possa supor.
99
We must have the idea of gold and idea of yellow, and these two ideas must be brought together in our
mind. But in first place, it is evident that this is only a part of what takes place; for we may put two ideas
together without any act of belief; as when we merely imagine something, such as a golden montain; or
even we actually disbelieve: for in order even desbelieve of Mahomet and that os an apostle of God, we
must put two ideas together, is one of the most intricate of metaphysical problem”
(idem)
100
“...propositions (except sometimes when the mind itself is the subject treated of) are not assertions
respecting our ideas of things, but assertions respecting the things themselves”
(idem).
104
ocorrem processos subjetivos e psicológicos quando damos assentimento a algum
conteúdo proposicional, idéias são associadas e relacionadas no âmbito das
representações privadas dos sujeitos. Mas isso, embora ocorra, nada tem a ver com a
lógica. O objeto da
psicologia
é a análise do estado de espírito chamado
crença
, o
objeto da
lógica
é a análise do objeto dessa crença. Na terceira parte deste trabalho,
veremos como essa postura é cara e valiosa para o antipsicologismo de Frege, mas por
ora, cabe ressaltar a necessidade de se identificar o
status
do conteúdo objetivo crido
no ato do juízo.
No universo milliano, é a teoria da conotação o principal elemento que joga
em favor da objetivação do conteúdo proposicional. As proposições nas quais
ocorrem nomes conotativos, o objeto da crença deve ser determinado não pela
consideração das idéias e da relação entre idéias no âmbito da subjetividade, mas pela
consideração da carga semântica que os nomes conotativos possuem. Assim, quando
afirmamos, por exemplo, que
a parede é branca
estamos dando nosso assentimento
ao um contdo que se estabelece na medida em que se considera, no complexo a ser
julgado, que um determinado objeto que possui o(s) predicado(s) conotado(s) pelo
nome “parede”, possui também o(s) predicado(s) conotado(s) pelo nome “branco”.
Ora, podemos extrair daí que o objeto da crença não é subjetivo, que não está
relacionado ao universo psicológico do sujeito. É, portanto, objetivo. Mas é objetivo
no mesmo sentido em que as coisas do mundo o são? O conteúdo da proposição “a
parede é branca” é tão objetivo quanto a própria parede? Sabemos que em Frege não.
Frege diferencia dois níveis de objetividade: a objetividade do mundo físico exterior,
percebido pelos sentidos e a objetividade do pensamento, captada pelo razão
101
. Ora,
se em Mill não existe, ao menos explicita e manifestamente, o postulado do terceiro
reino, parece que a única saída é realmente assimilar a objetividade do conteúdo
101
ver III.3.
105
proposicional à objetividade do mundo físico. A postura milliana, graças em grande
medida ao seu empirismo, é de ‘factualizar’ o conteúdo proposicional. Entretanto, tal
saída parece muito pouco aceitável, mesmo dentro dos próprios pressupostos
millianos. Por uma razão bastante simples: embora Mill não admita isso, sua teoria
da conotação estabelece algo que talvez possa ser chamado de um “terceiro reino
semântico”. Entre o universo subjetivo da associação das idéias, e o mundo exterior
que Mill pretende valorizar, existe um ‘universo semântico’ estabelecido pela carga
significativa que os nomes conotativos possuem. Uma coisa são as idéias, outra coisa
são os objetos do mundo físico exterior, e uma terceira coisa muito diferente é a
linguagem e seus ‘mecanismos autônomos’ de significatividade. Um nome conotativo
significa independentemente das idéias subjetivas e das coisas do mundo. Ele
significa exclusivamente por meio da carga semântica determinada por sua
conotação. E essa não se confunde com os sujeitos nem tampouco com os objetos do
mundo exterior. Elas constituem efetivamente um reino autônomo. A própria teoria
das proposições verbais demonstra isso: nelas não se fala nada sobre o mundo
exterior nem sobre o universo psicológico, mas sobre um ‘universo intermediário’,
relacionado exclusivamente à linguagem. Nesse sentido, talvez possamos responder
nossa pergunta com relação ao
status
do objeto da crença situando-o nesse universo
intermediário. Cremos num conteúdo proposicional que é estabelecido
exclusivamente com relação à conotação dos nomes. Em última análise, cremos que
aquele conteúdo objetivo estabelecido no âmbito da linguagem, realiza-se no mundo
exterior. E a teoria da conotação, da maneira como é estabelecida, possui
particularmente a capacidade de vincular o universo da linguagem ao mundo
exterior sem a necessidade de se postular categorias subjetivas. Certamente, Mill não
chegou ao extremo fregeano de identificar o conteúdo proposicional como unidades
de sentido prioritárias, mas claramente dotou a proposição de uma objetividade
106
absolutamente peculiar com relação à velha dicotomia sujeito/objeto ou
interior/exterior.
Vale também apontar, como mais um argumento em favor de nossa posição,
que o radical empirismo de Mill, por paradoxal que possa parecer, acaba por nos
direcionar a uma objetivação não real do conteúdo proposicional. Mill tente a
considerar que as proposições expressam um fato real, um fato do mundo exterior.
As proposições não nos dizem nada acerca de nossas idéias, mas acerca do mundo.
Há, entretanto, que se realizar uma distinção fina que Mill aparentemente não
realizou: que a circunstância de que a proposição nos informa sobre fatos do mundo
não deve necessariamente significar que a própria proposição, enquanto unidade de
sentido e objeto intencional da crença, seja ela própria um fato do mundo. Ora,
seguindo toda uma tradição empirista, Mill defende a tese de que só existem no
mundo coisas individuais; e que a proposição, enquanto signo complexo, deve estar
voltada a essas coisas e não às nossas idéias das coisas. A pergunta que se coloca é a
seguinte: se a unidade do sentido proposicional não se constitui no nível psicológico,
devemos, então, extrair daí que ela se constitui no próprio mundo exterior? Não! A
menos que queiramos identificar no
System of logic
algo como o embrião do
Tractatus
de Wittgenstein, no qual o
fato proposicional
nada mais é do que uma
figuração lógica dos
fatos reais
; que a unidade do sentido se estabelece no nível da
proposição, porque o mundo resolve-se em fatos
102
, se organiza de forma
‘proposicional’, embora sejam os objetos aquilo que existe efetivamente, como as
substâncias (individuais) do mundo
103
. E nesse caso, a unidade da proposição teria
uma fundamentação ontológica. Em última análise, no
Tractatus
, o mundo
originariamente é proposicional. No entanto, não é isso absolutamente o que ocorre
102
“Das Welt zerfällt in Tatsachen”
(Wittgenstein, Tractatus Logico-Philosophicus; 1.2)
103
“Die Gegebtände bilden dir Substanz der Welt. Darum können sie nicht zusammengesetzt sein”
(idem:
2.021)
107
em Mill. A unidade proposicional se estabelece no âmbito da linguagem, na instância
‘paralela’ determinada pelo conteúdo semântico dos nomes conotativos. Se em Locke
essa unidade se estabelece no universo do sujeito psicológico por meio das
proposições mentais
e em Wittgenstein esse problema é dissolvido pela tese de que o
fato proposicional
compartilha a mesma forma lógica do
fato real
que é figurado na
proposição, em Mill ela se estabelece exclusivamente no nível da linguagem, e mais
especificamente, da semântica. É no âmbito da carga semântica que os nomes
conotativos carregam que o conteúdo proposicional se estabelece. A proposição
segue sendo um símbolo complexo, que articula duas ‘instâncias’; porém, o que é
articulado na constituição da unidade do sentido proposicional é a
abrangência
semântica
dos nomes. Esse, acredito, é um importante motivo em favor de nossa tese
mais geral que busca estabelecer a o papel de destaque do
System of logic
no
movimento da filosofia direção à linguagem; deu, portanto, um importante passo em
direção ao caminho que Frege, por exemplo, veio a seguir depois. Mill trouxe o foco
das discussões para os domínios da semântica; e isso, apesar de todos os problemas e
inconsistências que sua filosofia da lógica possam carregar, é suficiente o
enxergarmos como um importante precursor - senão o inaugurador! - da filosofia
analítica contemporânea.
II.5. Conclusão do capítulo
A partir do que foi exposto neste capítulo, talvez seja possível compreender
qual o sentido da afirmação de que a crítica milliana ao conceitualismo exerceu
fundamental importância para os desdobramentos futuros do pensamento filosófico,
principalmente no que diz respeito à chamada
virada lingüística
do século XIX. E
isso por alguns motivos:
108
a) Mill introduz, em oposição ao modelo hobbes-lockeano que concebe a
linguagem como um instrumento vinculado à uma dimensão sócio-
pragmática, uma dimensão lógico-veritativa. A linguagem não se presta
prioritariamente ao estabelecimento do contrato social, mas à enunciação de
verdades. Ora, a radicalização desse ponto de vista veio a desembocar no
Tractatus
de Wittgenstein e sua concepção absolutamente restritiva da
linguagem enquanto fundamentada exclusivamente a partir do
estabelecimento do sentido proposicional. O que pode ser dito, no
Tractatus
,
é o que pode ser expresso proposicionalmente, e acredito que não seja exagero
afirmar que um dos embriões dessa tendência, da priorização da proposição
numa teoria acerca da linguagem, pode ser identificado na crítica que faz
Stuart Mill ao conceitualismo, na medida em que ele privilegia o caráter
lógico-veritativo da linguagem em oposição à dimensão sócio-política
representada pelo modelo lockeano.
b) Ao negar que a dimensão psicológica da linguagem exerce papel relevante na
constituição do sentido proposicional, Mill acaba por apontar, mesmo que
implicitamente, a necessidade do estabelecimento do significado dos nomes
dentro do contexto proposicional: utilizamos a linguagem para expressar
nossas crenças, para explicitar o que consideramos serem verdades sobre o
mundo; por isso, os significados devem, necessariamente, possuir uma
dimensão objetiva. E essa objetividade somente pode ser obtida pela
referência a um conteúdo proposicional. Veremos, a seguir, o quanto essa
posição milliana será útil a Frege na elaboração de seu
princípio do contexto
.
c) Ao fundamentar a objetividade da linguagem a partir de sua teoria da
conotação, Mill estabelece um terceiro universo como que mediando a
relação entre sujeito e mundo exterior: o universo da linguagem e, mais
109
especificamente, da semântica. A conotação dos nomes, que é o terreno no
qual se estabelece a unidade do sentido proposicional, não é nem dependente
do universo psicológico e suas idéias privadas, nem do mundo físico exterior
propriamente dito. Tanto é assim que Mill identifica uma classe de
proposições, que são meramente verbais, que não nos dizem nada com
respeito ao mundo exterior nem ao universo psicológico, mas somente ao
universo da linguagem.
d) Ao negar a tese de que os nomes referem-se a idéias, Mill rompe com um dos
pilares que sustentam o psicologismo lógico. E sabemos que a superação desse
psicologismo foi de fundamental importância para a superação definitiva do
que ainda existia de pensamento moderno no século XIX.
No capítulo seguinte, analisaremos com mais detalhes a relação de Stuart Mill
com o psicologismo, sobretudo a partir da consideração do antipsicologismo fregeano
e da maneira como Frege leu o
System of logic
. Se, no Capítulo I, nosso interesse
esteve voltado à explicitação de algumas teses do
System of logic
acerca da natureza
da lógica e dos mecanismos de significação dos nomes baseados no conceito de
conotação, e neste segundo, à refutação por parte de Mill do modelo semântico
psicológico representado pela teoria das idéias lockeana e as conseqüências disso para
o problema acerca do estabelecimento da unidade do sentido proposicional,
abordaremos a seguir, dentro de um ponto de vista bastante específico, a recepção
das teorias lógico-semânticas millianas por parte de Frege. Pretenderemos responder
se, aos olhos de Frege, Mill era, de fato, um psicologista. Esperamos que a posição de
Frege frente às teses de Mill, no que se refere ao problema do psicologismo (que, de
acordo com nossa hipótese, não foi o alvo a ser objetivado por Frege em suas críticas
ao
System of logic
), conjugados ao que acabamos de apresentar, forneçam elementos
suficientes para que possamos estabelecer aquela que é nossa hipótese mais geral e
110
mais importante: que Mill foi um protagonista no movimento que superou o que
ainda restava da filosofia moderna no século XIX, e que, portanto, foi um dos
principais inauguradores da filosofia contemporânea.
111
Capítulo - III
Mill e o antipsicologismo fregeano
Abordaremos aqui a questão referente ao suposto psicologismo milliano a partir do ponto de
vista do antipsicologismo de Frege. Serão apresentados alguns conceitos importantes referentes
ao projeto logicista de Frege a fim de estabelecer as bases de seu antipsicologismo lógico. Em
seguida, são analisadas as posições de Stuart Mill com relação aos principais pilares desse
antipsicologismo fregeano.
112
III.1. É Mill um psicologista?
A pergunta acerca de um possível psicologismo milliano não pode receber
uma resposta simples, do tipo sim ou não. E isso por alguns motivos. Em primeiro
lugar, devido à falta de uma definição precisa com respeito ao próprio conceito de
psicologismo enquanto tal
104
. Por ser a expressão ‘psicologismo’ um rótulo utilizado,
sobretudo, por parte daqueles que, de alguma forma, buscavam criticar uma certa
maneira de se considerar a natureza da lógica, e não um ‘título’ cunhado e
reivindicado por parte daqueles pensadores que defendem posturas consideradas
psicologistas, muitas vezes os critérios utilizados para se enquadrar uma determinada
filosofia da lógica ao psicologismo são confusos, imprecisos e, sobretudo, demasiado
genéricos. E, nesse sentido, de acordo com o acento que se dá a esta ou aquela
característica considerada como sendo central na estipulação do conceito de
psicologismo, Mill pode ser aproximado ou afastado da ‘acusação’ de ser um
psicologista.
Psicologismo é um conceito pertencente à filosofia da lógica que, de uma
maneira geral, pode ser definido como a posição que afirma ser a lógica não uma
disciplina autônoma, mas, ao contrário disso, é uma parte, um ramo da psicologia.
Nesse sentido, as leis da lógica, as regras e princípios utilizados para fundamentar a
validade das inferências, devem ser tomados não como princípios racionais objetivos,
mas como leis psicológicas que descrevem os processos subjetivos envolvidos no ato
104
Podemos, certamente, analisando a posição de alguns filósofos e intérpretes, identificar alguns pontos
comuns nas definições de psicologismo que defendem. No entanto, tais constantes não são suficientes para
garantir uma univocidade conceitual nesse particular. Dummet, por exemplo, aponta para o caráter
semântico do psicologismo, dando maior ênfase à tese de que os significados dos termos são entidades
puramente mentais. Skorupiski salienta duas características marcantes do psicologismo: identificação das
regras de inferência como generalização de processos mentais e a tese de que os significados são idéias.
Brokaus, por sua vez, somente enfatiza o a dependência das leis lógicas com relação a processos
psicológicos do pensamento atual.
113
de pensar. A lógica seria, pois, de acordo com tal ponto de vista, uma ciência
empírica, uma vez que suas leis nada mais seriam do que generalizações realizadas a
partir da observação exaustiva de como os homens efetivamente pensam. E, mais do
que isso, seria uma ciência descritiva, tal como uma ‘física do pensamento’
105
; uma
ciência marcada pela identificação das leis que regem os processos mentais
envolvidos quando se realiza uma inferência. Certamente, problemas importantes
estão envolvidos na polêmica acerca da natureza da lógica na qual o psicologismo
está inserido. Entre outras coisas, a própria objetividade princípios dos lógicos mais
elementares está comprometida dentro de um tal ponto de vista, pois a lógica teria
um caráter eminentemente subjetivo e prioritariamente factual.
Ora, se o conceito de psicologismo é tomado assim, de uma forma genérica
como acabamos de fazer, fora de qualquer contexto sistemático, a tentação de se
considerar Mill um psicologista é muito grande, e tal posição pode parecer, em
princípio, inevitável. Em primeiro lugar, porque Mill é adepto de um empirismo
ultra-radical – considerado por Frege como preconceituoso; tão radical ao ponto de
afirmar ser a lógica (como também as matemáticas) uma ciência empírica, e suas leis
as mais elementares generalizações realizadas a partir da experiência. E, como
veremos mais adiante, o psicologismo é uma posição eminentemente empirista: todo
psicologismo é necessariamente empirista – embora a recíproca não seja
necessariamente verdadeira. Por isso, o empirismo de Mill pode, ao menos em
princípio, parecer direcioná-lo ao terreno psicologista, dada a tentação que se pode
105
Segundo nos informa Wolfgang, havia uma discussão acalorada no Alemanha dos tempos de Frege
acerca natureza prescritiva ou descritiva das leis da lógica. Seria a lógica algo como a ‘ética’ ou a ‘física’ do
pensamento? Lipps, defendeu a segunda hipótese contra Wundt. De acordo com Wolfgang,
Lipps
“...criticised Wundt’s claim that logical laws are normative. He used de pinthy formula ‘logic as the
physics, not as the ethics of thinking’ and dintinguished two different kinds of norms: prescriptive norms
and ‘norms of nature’, which are laws of nature. Now, the logical laws are not prescriptive because they
are not the result of some kind of ‘autoritative will’. Are they then, ‘laws of nature of thinking’? Lipps to
give a positive answer to this question by taking logical laws as ‘rules according to which one has to
proceed if one is to think corretly”
(
Frege’s theorie of sense and reference
, pag. 14)
114
ter de assimilar, sem mais,
empirismo
e
psicologismo
. Mas existe ainda um elemento
mais forte e aparentemente definitivo que parece decidir de vez a questão em favor
de um Mill psicologista. Trata-se de uma passagem textual do próprio Mill citada por
Husserl numa célebre passagem de suas
Investigações Lógicas
106
: Mill afirma com
todas as letras que a lógica não é uma ciência autônoma, mas que, ao invés disso, é
uma parte, um ramo da psicologia. Ou seja, Mill repete com todas as letras aquele
que é, ao menos em princípio, a principal característica do psicologismo lógico: a
submissão da lógica à psicologia. Tal estado de coisas levou, não só Husserl, mas uma
série de pensadores e interpretes a considerar a lógica milliana com um modelo
lógica psicológica
107
, e a alguns anti-psicologistas a tomá-la com um inimigo a ser
batido. No entanto, as coisas, nesse particular, não podem ser tomadas de uma
maneira tão simplista; a postura de Mill com relação ao papel dos processos
subjetivos na edificação da ciência da lógica e à objetividade dos princípios lógicos,
além de seu manifesto realismo semântico, podem sugerir a possibilidade de se
desvendar, por de trás de seu empirismo ‘ingênuo’, uma lógica com fortes traços
anti-psicologistas
108
.
106
HUSSERL, B.:
Logische Untersuchungen;
(3, #18)
107
O trabalho de Richard Brockaus intitulado
Realism na psychologism in 19th Century logic
apresenta-
nos um Mill fortemente psicologista. Em linhas gerais, o autor defende que o fato de Mill ter confundido,
de acordo com a crítica fregeana dos
Grundlagen der Arithmetik
, a explicação da maneira como
supostamente adquirimos o conceito de número a partir da experiência empírica, das razões que estão
envolvidas numa definição de número que possa ser útil à redução das verdades aritméticas até seus
primeiros princípios, como um expediente eminentemente psicologista.
108
O principal interprete do pensamento milliano que joga em favor da tese de um Mill, senão anti-
psicologista, ao menos não-psicologista, é John Skorupski. Segundo esse autor, o caráter normativo que
Mill delega à lógica em seu
System of logic
acaba fazendo com a própria arquitetura interna de seu sistema
se mostre incompatível com as teses psicologistas. O autor nos oferece alguns argumentos em favor de sua
tese, dos quais apontaremos dois: a) se o psicologismo defende que as leis da lógica são produtos da
generalização realizada a partir da verificação dos processos subjetivos envolvidos no pensamento atual,
elas devem ser necessariamente
a posteriori.
Ora, se as ‘leis da lógica’ são
a posteriori
, não podem ser
universais (em sentido kantiano), ou seja, aplicáveis a todas as esferas dos fenômenos. Mas é justamente
esse o
status
que Mill delega aos princípios lógicos mais elementares. b) Mill, como sabemos, fundamenta
sua lógica no princípio da indução. A lógica trata, segundo sua definição, das verdades não intuitivas, não
115
Esse estado de coisas indica-nos a necessidade que temos de tomar uma
premissa sistemática que será fundamental ao presente trabalho: pelo fato de Mill
não ser, ao menos do ponto de vista daqueles que observam sua filosofia a partir de
categorias conceituais a ele anacrônicas (embora valiosas para o entendimento dos
movimentos que levaram ao advento daquilo que se acostumou chamar de filosofia
contemporânea), um pensador coerente no que se refere à sua posição com respeito
àquilo que se acostumou chamar de psicologismo lógico, de acordo com o maior ou
menor acento que se dá a este ou aquele aspecto do seu pensamento lógico milliano
ou mesmo do próprio conceito de psicologismo lógico, Mill pode e não pode ser
considerado psicologista. Tanto quem acusa Mill de psicologismo, quanto quem
busca defendê-lo de tal acusação podem estar certos e têm motivos bastante fortes
para defender esta ou aquela posição.
diretamente disponíveis à intuição, mas inferidas a partir das verdades indutivas às quais temos acesso
unicamente por meio da observação empírica. E como a observação empírica somente pode fornecer
verdades particulares, toda inferência lógica terá, em última análise, premissas particulares. Por conta
disso, o raciocínio indutivo é o principal sustentáculo da lógica milliana. E nesse sentido, cabe-nos fazer a
pergunta a respeito do
status
epistemológico do próprio princípio da indução. Se considerarmos, como
deve ser feito, o princípio da indução como um ‘cânon’ da indução enumerativa, teremos que considera-lo
como um conjunto de enunciados normativos que visam determinar uma certo procedimento a ser
realizado a partir da observação empírica.
Se aceitarmos, com Skorupski - o que parece bastante plausível
- ser necessário traçar uma distinção clara entre proposições factuais e normativas, entre aqueles
enunciados que buscam afirmar positivamente a ocorrência algum fato no mundo, daquelas que tem por
objetivos servir de cânon para balizar determinadas condutas - no caso, para instruir o correto raciocínio -
que são prescritivas ao invés de descritivas, uma conseqüência importante deve ser extraída: uma vez que
a distinção
a priori - a posteriori
somente pode ser utilizada se referida à maneira como a verdade de um
enunciado factual pode ser justificada, ela não se aplica aos enunciados normativos. Vimos que Mill traça
uma distinção importante entre proposições reais e aquelas meramente verbais; e que as proposições reais,
ao contrário das verbais que nos informam somente acerca do significados das palavras, são as únicas que
efetivamente nos dizem algo a respeito do mundo e que, por conseguinte, aumentam nosso conhecimento.
Certamente, as proposições reais são as únicas que podem legitimamente ser chamadas de factuais e,
portanto,
a posteriori
. Ora, no campo das proposições normativas o problema da justificação não se coloca,
ou, melhor dizendo, se coloca não em termos de
a priori – a posteriori
. Nesse sentido, seria no mínimo
uma impropriedade lógica e sistemática por parte de Mill a tese de que as leis e princípios lógicos são
a
posteriori
. Se aceitarmos esta característica da lógica milliana, podemos facilmente afasta-la de uma
posição psicologista.
116
Diante disso, nosso objetivo aqui não será o de tentar decidir se Mill é ou
psicologista, nem tampouco de realizar um inventário das diversas interpretações
que o situam deste ou daquele lado da polêmica. Ao invés disso, buscaremos abordar
o problema do suposto psicologismo milliano, a partir de um ponto de vista bastante
específico. Não se trata de responder sim ou não à pergunta sobre se Mill é ou não
psicologista, mas de responder a uma pergunta mais especificamente formulada.
Nosso objetivo será responder se, de acordo com a crítica que Frege realiza ao
psicologismo, e com o papel que exerce o anti-psicologismo dentro da arquitetura
interna do seu pensamento, Mill pode ser considerado um psicologista. Em outras
palavras: quando Frege critica implacavelmente o psicologismo, é Mill um dos
destinatários de sua crítica? Nosso objetivo não será decidir se Mill é ou não um
psicologista, mas de verificar se, e até que ponto, Frege o considerava com tal. Para
isso, será necessário, primeiramente, compreender qual o significado sistemático da
crítica fregeana ao psicologismo a fim de verificar até que ponto as coisas que pensa
Mill com relação à lógica são ou não incompatíveis com a posição fregeana frente ao
papel executado pelos processos e ‘entidades’ subjetivas na edificação de uma ciência
demonstrativa. Em segundo lugar, será necessário analisar as críticas que Frege
abertamente faz ao pensamento de Mill, a fim de constatarmos se existe nelas alguma
acusação de psicologismo.
Um outro problema deve ser abordado: a relação existente entre psicologismo
e empirismo. Certamente, o psicologismo é uma forma de empirismo; resta, pois,
sabermos se todo empirismo é necessariamente psicologista e, particularmente, se o
empirismo de Mill o é. Que Frege critica abertamente o empirismo milliano não
existe nenhuma dúvida. No entanto, se for possível estabelecer que, aos olhos de
Frege, o empirismo não se confunde com o psicologismo creio que teremos bons
argumentos em favor de nossa hipótese, a saber, de que Frege, ao invés de criticar
117
um suposto psicologismo milliano, encontrou nas posições defendidas no
System of
logic
acerca ciência da lógica preciosos elementos em favor de seu próprio anti-
psicologismo, e que o teor das críticas que Frege dirige a Mill é eminentemente
epistemológico, não estando relacionado nem ao conceito milliano de lógica, nem
tampouco a uma suposta confusão, em lógica, entre as razões que sustentam
demonstrações e as explicações causais a respeito de processos psíquicos envolvidos
no ato do raciocínio, principal característica do antipsicologismo fregeano.
III.2 O antipsicologismo fregeano
O antipsicologismo de Frege não deve ser compreendido como algum tipo de
preconceito contra questões e explicações psicológicas, nem tampouco com uma
postura ideológica que visa simplesmente privilegiar uma ciência em detrimento de
outra. Em realidade, o antipsicologismo de Frege é somente a contraparte negativa
de seu projeto filosófico fundamental, de seu logicismo: todo vigor de seu
pensamento esteve sempre voltado à sua intenção de reduzir a aritmética à lógica. E
a fundamentação da aritmética em bases puramente lógicas exige, como um preceito
metodológico inegociável, uma radical e precisa distinção entre conceitos envolvidos
na demonstração das verdades aritméticas, as razões que fundamentam as
inferências, em oposição àqueles conceitos evolvidos nas explicações causais
referentes aos processos subjetivos de raciocínio (psicologismo), ou a quaisquer
outros elementos que possam estar envolvidos, de alguma forma, nas atividades
aritméticas, mas que não exercem nenhuma função positiva com relação à
justificativa racional do cálculo (formalismo, fisicalismo, indutivismo). Somente
devem ser considerados, na redução dos teoremas aritméticos até os primeiros
princípios, aqueles conceitos que exercem efetivamente alguma função na cadeia
118
demonstrativa; e todas as explicações que se mostrem irrelevantes à redução das
verdades aritméticas até seus primeiros princípios, serão simplesmente desprezadas e
excluídas do corpo de conceitos que devem constituir a aritmética enquanto ciência
dedutiva. Há uma passagem, na introdução dos
Grundlagen
que ilustra bem esta
posição: ao referir-se à definição de número de Stricker como representações
motoras dependentes de sensações musculares, Frege aponta para o fato de que o
matemático não saberá o que fazer com uma tal definição, e que ela será
absolutamente inútil para as demonstrações aritméticas
109
. Em outra passagem
importante, Frege nos diz:
Uma tal descrição dos processos internos que precedem a formulação do
juízo numérico, ainda que correta, nunca poderá substituir uma
determinação genuína do conceito. Nunca se poderá recorrer a ela para a
demonstração de uma proposição aritmética; por meio delas não aprendemos
nenhuma verdade sobre os números
110
.
O número dos matemáticos não pode ser o número dos psicólogos. E a aritmética
somente estará fundamentada sobre alicerces seguros, se unicamente razões
demonstrativas estiverem evolvidas no corpo de verdades que a constitui.
Frege aponta razões históricas para endossar a pertinência de seu projeto: a
aritmética, diferentemente do que ocorrera com a geometria – em parte, segundo
ele, graças à origem hindu de seus conceitos – não se desenvolveu clamando pelo
rigor de suas demonstrações. A aparente trivialidade dos conceitos aritméticos mais
elementares fez com os matemáticos desenvolvessem ao longo dos séculos a ciência
109
Wenn z. B. Stricker die Vorstellungen der Zahlen motorisch, von Muskelgenfühlen abhängig nennt, so
kann der Mathematiker seine Zahlen darin nicht wiederkennen und weis mit einem solchen Satze nicht
anzufagen. Eine Arithimetik die auf Muskelgefühlen gegründet wäre, würde gewiss recht gefühlvoll, aber
auch ebenso verschwommen ausfallen wie diese Grundlage”
(
Der Grundlagen der Arthimetik
,
Einleitung)
110
Eine solche Beschreibung der innern Vorgänge, die der Fällung eines Zahlurtheils vorhergehen, kann
nie, auch wenn sie zutreffender ist, eine eigentliche Begriffsbestimmung ersetzen. Sie wird nie zum
Beweise eines arithmetischen Satzes herangezogen werden können; wir erfahren durch sie keine
Eigenschaft der Zahlen
(idem: #26)
119
aritmética a partir de uma forma de pensamento mais frouxa que o da geometria.
Nesse sentido, o projeto fregeano está voltado não somente a se igualar à geometria
em rigor nas demonstrações dos teoremas aritméticos até seus primeiros princípios,
mas em supera-la. Estamos diante de um projeto de axiomatização da aritmética. E,
certamente, a aritmética, para ser axiomatizada e fundamentada de forma cabal,
necessita que se possua uma definição precisa do conceito de número natural, aquele
que pode servir de resposta á pergunta “quantos?”. Todos os outros conceitos mais
complexos envolvidos na aritmética, como os de números negativos ou irracionais,
em última instância, devem ser obtidos por dedução a partir do conceito de número
natural. Tal como Descartes necessitava do
cogito
para erguer, a partir dele, o
edifício dedutivo de sua metafísica, Frege necessita do conceito de número natural
para assentar sobre ele o edifício da aritmética.
Nesse sentido, o
status
epistemológico da aritmética, bem como sua relação
com as demais ciências dentro do universo do conhecimento humano, será decidido
de acordo com a maneira como o conceito de número natural for definido. Para Mill,
por exemplo, para quem o número é propriedade dos objetos exteriores e, portanto,
algo que se fundamenta na experiência, a aritmética é uma ciência empírica; para
Kant que estabelece como princípio das leis fundamentais da aritmética a intuição
pura do tempo, a aritmética será sintética
a priori
. Para Frege, só existe uma
possibilidade: o conceito de número natural deve ser definido em termos puramente
lógicos. Assim, em última instância, os teoremas da aritmética devem ser
considerados teoremas da lógica e a aritmética uma ciência analítica.
120
III.2.1. A analiticidade da aritmética
Uma das maneiras de se compreender o papel exercido pelo logicismo dentro
do pensamento de Frege é atentar para o
status
epistemológico que ele delega às
proposições aritméticas. De acordo com Frege, ao contrário do que pensava Kant, as
verdades aritméticas são analíticas. Frege concorda com Kant com relação ao
status
da geometria: a geometria necessita de um fundamento intuitivo, por isso suas
verdades devem ser sintéticas
a priori
. Entretanto, a universalidade e necessidade
absoluta das verdades aritméticas não permitem que Frege lhe delegue tal
status
.
Para compreendermos, primeiramente, o significado da tese fregeana de que
as verdades aritméticas são analíticas, é necessário esclarecer que o conceito de
analiticidade de Frege é diferente do de Kant. De acordo com Kant, um juízo
analítico é aquele em que o predicado está contido no sujeito
111
. O que significa isso?
Para Kant, um conceito é determinado por um conjunto finito de predicados. Nesse
sentido, por exemplo, o conceito de homem é composto pelos predicados
mortal,
animal, bípede, racional
etc. Portanto, todas as vezes que um juízo simplesmente
afirmar um desses predicados do sujeito ‘homem’, teremos um juízo analítico. Um
juízo analítico é, pois, segundo Kant, obtido por meio da análise do conceito do
termo sujeito: se o predicado pertencer já ao conjunto de predicados que compõe o
conceito representado pelo sujeito temos um juízo analítico, caso contrário, um juízo
sintético. De acordo com a posição kantiana, os juízos analíticos possuem sua
fundamentação no princípio de não contradição; afirmar que um conceito não possui
um predicado que faz parte dele próprio implica numa contradição. Afirmar, por
exemplo, que o homem não é mortal seria como dizer: “o homem, que é mortal (pois
111
Kant. (
Kritik der reinen Vernunft
; B10-11)
121
isso seu conceito já estipula
a priori
), não é mortal”, o que é, claramente,
contraditório. De acordo com isso, o resultado do conceito kantiano de analiticidade
não poderia ser outro: os juízos analíticos são meramente triviais e não aumentam
em nada nosso conhecimento, apenas tornam mais claro aquilo que já sabemos de
antemão.
O conceito de analiticidade Fregeano é bastante diferente do de Kant. Num
ponto, porém, ambos concordam: na fundamentação eminente lógica das verdades
analíticas e na sua conseqüente aprioridade. Em Kant, os juízos analíticos se
fundamentam por meio do princípio lógico de não contradição. Em Frege, por meio
das razões envolvidas na demonstração, razões essas que devem ter uma natureza
eminentemente lógica. Frege nos diz:
...importa, pois, encontrar sua demonstração (de uma verdade) e nela
remontar até as verdades primitivas. Se neste caminho somente encontramos
leis lógicas gerais e definições, temos uma verdade analítica, pressupondo-se
que também sejam consideradas as proposições sobre as quais se assenta a
admissibilidade de uma definição...
112
Claro está, de acordo com a posição fregeana, que a analiticidade não está
relacionada ao conteúdo dos conceitos, mas com as razões demonstrativas. A
demonstração de qualquer teorema da aritmética, se a considerarmos analítica em
sentido fregeano, deve, pois, ser levada adiante até que se chegue aos primeiros
princípios; esses devem ser ou princípios lógicos elementares, como os de não
contradição ou de identidade, ou definições. Tais definições, entretanto, não podem
ser estipuladas senão por meio de mecanismos e categorias lógicas. Daí a necessidade
112
“Es kommt nun darauf an, den Beweis zu finden und ihn bis auf die Urwahrheiten zurückuverfolgen.
Stösst man auf diesem Wege nur auf die allgemeinen logischen Gesetze und auf Deninitionen, so hat man
eine analytische. Wahrheit, wobei vorausgezetzt wird, dass auch die Sätze mit in Betrracht gezogen
werden, auf denen etwa die Zulässigkeit einer Definiton beruht.”
(Frege, Der Grundlagen der Arithmetik.
#3)
122
de se elaborar uma definição lógica do conceito de número. As verdades aritméticas
serão consideradas analíticas se o edifício sistemático da aritmética estiver assentado
sobre alicerces que são da natureza eminentemente lógica, sejam esses alicerces
princípio lógicos, sejam definições obtidas no âmbito da lógica, sem referência a
nenhuma outra ciência particular e sem apelo também à intuição; caso contrário,
serão sintéticas:
...se não é possível, entretanto, levar a demonstração sem servir-se de
verdades que não são de natureza lógica geral, mas que remetem a um
domínio científico particular, a proposição é sintética
.
113
Há que se destacar aqui que, ao contrário do que ocorre em Kant, é possível, de
acordo com o conceito fregeano de analiticidade, que uma verdade analítica não seja
trivial e aumente nosso conhecimento. Analiticidade, em Frege, está diretamente
relacionada às razões demonstrativas e não à maneira como os termos sujeito e
predicado se relacionam em referência a um conceito (até porque não temos mais
sujeito e predicado na lógica de Frege). Portanto, derivar teoremas a partir das
verdades primitivas da aritmética, se realmente Frege conseguir estabelecer sua
natureza lógica, será um procedimento analítico e, no entanto, uma atividade
científica que está longe de ser trivial, de ser uma simples clarificação daquilo que já
sabemos acerca das propriedades dos números. Não estão contidas no conceito de
número natural, que deve ser o ponto de partida de toda aritmética, todas as
propriedades de todos os números, nem tampouco as leis aritméticas gerais; elas são
deduzidas a partir dos princípios fundamentais da aritmética, seguindo determinadas
regras de inferência. Verdades analíticas, para Frege, produzem conhecimento
efetivamente. Uma verdade analítica se obtém não pela decomposição de um
113
“Wenn es aber nicht möglich ist, den Beweis zu führen, ohne Wahrheiten zu benutzen, weiche nicht
allgemein logischer Natur sind, sondern sich auf ein besonderes Wissensgebiet beziehen, so ist der Satz
ein synthetischer”
(idem)
123
conceito, mas por meio da derivação e dedução de verdades mais complexas a partir
de verdades mais elementares, desde que essas verdades sejam
a priori
e
eminentemente racionais.
De acordo com a definição fregeana de analiticidade, para fundamentar a
aritmética enquanto ciência analítica, será necessário comprovar que as leis
fundamentais da aritmética, a partir das quais estão assentados seus teoremas, são
todas verdades lógicas gerais ou definições obtidas dentro do âmbito da lógica. Nos
parágrafos 12 a 17 dos
Grundlagen
, Frege trata de resolver esta questão. Basicamente,
dois argumentos são oferecidos para justificar sua opção pela analiticidade da
aritmética: um com referência à necessidade inabalável das suas verdades, outro com
relação à universalidade de suas aplicações.
Vamos, primeiramente, abordar o argumento da necessidade. Kant imaginava
que o caráter sintético
a priori
, reivindicado por ele para as ciências em geral
114
, era
suficiente para garantir a absoluta necessidade e universalidade das leis científicas.
Isso graças ao caráter transcendental reivindicado para as categorias subjetivas que
determinariam a objetividade do conhecimento. Para Kant, objetividade é sinônimo
de intersubjetividade e, nesse sentido, as formas puras da intuição sensível e as
categorias do entendimento, embora subjetivas, seriam suficientes para garantir a
objetividade, necessidade e universalidade dos juízos que fossem obtidos de forma
a
priori
, ou seja, fundamentados ou pelo princípio lógico geral da não-contradição
(juízos analíticos) ou pela referência somente às formas puras da intuição e às
categorias do entendimento (juízos sintéticos
a priori
). No entanto, a história se
incumbiu de refutar Kant nesse particular. A descoberta de físicas não newtonianas e
de geometrias não euclidianas comprovou definitivamente que, ao menos nos
114
Como sabemos, ciência para Kant é conhecimento necessário, universal e cumulativo; essas
características, para ele, somente os juízos sintéticos
a priori
podem oferecer.
124
moldes kantianos, a universalidade da ciência não pode ser fundamentada a partir de
categorias subjetivas. É possível construir todo um sistema geométrico, assentado em
axiomas e definições, no qual, por exemplo, o postulado das paralelas não valha. É
possível estabelecer princípios para uma geometria, e efetivamente levar adiante
uma tal ciência demonstrativa, no qual o espaço possua outras propriedades que não
aquelas estabelecidas por Euclides. Mesmo que isso não seja intuitivo.
Ora, qual a importância dessas constatações para nossos propósitos? Segundo
Frege, a possibilidade de geometrias não euclidianas demonstra que os princípios a
partir dos quais a geometria se assenta não são princípios absolutamente universais,
mas, ao invés disso, repousam sobre nossa intuição do espaço; e a intuição, agora,
fora do universo da
Crítica da razão pura,
não mais garante necessidade e
universalidade. A intuição pode, ao menos em hipótese, ser contradita sem que isso
implique em alguma impossibilidade lógica. E uma ciência dedutiva estabelecida a
partir de princípios que contradizem a intuição não necessariamente será uma
ciência contraditória ou inconcebível racionalmente. Frege nos diz:
Do ponto de vista do pensamento conceitual, sempre é possível assumir o
contrário de um ou outro axioma da geometria, sem incorrer em
contradições ao se fazer deduções a partir de tais assunções contraditórias à
intuição. Tal possibilidade demonstra que os axiomas geométricos são
independentes entre si e em relação às leis lógicas primitivas, e, portanto
sintéticos....
115
Aliás, segundo Frege, foi justamente no momento em que se começou a indagar
pelos fundamentos lógicos da geometria que o axioma das paralelas foi
115
Für das begriffliche Denken kann man immerhin von diesem oder jenem geometrischen Axiome das
Gegentheil annehmen ohnen dass man in Widerprüche mit sich selbst verwickelt wird, wenn man
Schlussfolgerungen aus solchen der Anscheuung widerstreitenden Annahmem zieht. Diese möglichkeit
zeigt, dass die geometrischen Axiome von einander und von den logischen Urgesetzen unabhängi, also
synthetisch sind.”
(idem: # 14)
125
questionado
116
, e abriu-se o caminho para a edificação de uma geometria do espaço
não plano. Isso é o suficiente, segundo Frege, para determinar o caráter sintético da
geometria euclidiana (e das geometrias em geral): demonstrando os teoremas
geométricos a fim de remontar às verdades mais elementares que estão em sua base
não encontramos somente princípios lógicos ou definições estabelecidas no âmbito
da própria lógica, mas princípios fundamentados na intuição pura do espaço. Negar
alguns desses princípios pode gerar uma geometria ‘não intuitiva’, mas ainda assim,
uma geometria pensável.
Já na aritmética, isso não acontece. Kant havia considerado as matemáticas
(geometria e aritmética) e a física como sintéticas
a priori
e, por isso mesmo, de
acordo com seu ponto de vista, necessários e universais. Os fatos mostraram,
contudo, a possibilidade tanto da edificação de físicas não newtonianas, quanto de
geometrias não euclidianas. Mas não se pode, de maneira alguma, conceber alguma
outra aritmética na qual os princípios fundamentais sejam outros e,
conseqüentemente, as propriedades dos números sejam diferentes daquelas que
conhecemos. Podemos conceber uma geometria na qual as ‘paralelas’ se cruzam mas
não podemos conceber uma aritmética na qual as propriedades dos números sejam
outras; na qual, por exemplo, os números pares não sejam divisíveis por dois. A
conclusão que Frege pôde extrair, a partir desse argumento particular, é que a
aritmética, ao contrário do que ocorre na geometria que é eminentemente intuitiva,
deve assentar-se sobre princípios puramente lógicos, e, por isso mesmo,
absolutamente objetivos e necessários. Somente uma fundamentação puramente
racional pode fundamentar a necessidade inabalável das leis aritméticas. Portanto, de
116
Indem man sich selbst an der euklidischen Streng nicht genügen liess, ist man auf die
Untersuchungen geführt worden, welche sich an das Parallelenaxiom, geknüpft haben”
(idem: # 2)
126
acordo com a definição de analiticidade exposta acima, a aritmética deve ser uma
ciência analítica.
Há um outro argumento, diretamente relacionado ao anterior, que Frege
utiliza em favor da analiticidade da aritmética; ele diz respeito não à necessidade,
mas à universalidade de suas leis. Por estar relacionada com nossa intuição pura do
espaço, certamente estão sob os domínios da geometria todos os fenômenos espaciais.
Nesse sentido, ela está restrita ao reino do que é intuível ou do efetivamente real
117
.
A aritmética, por sua vez, tem uma abrangência muito maior, estando envolvida em
qualquer âmbito da atividade racional. A aritmética é, pois, ao contrário da
geometria, absolutamente universal, pois se aplica a todo universo humano, real ou
meramente pensável.
Os delírios extravagantes, as invenções mais atrevidas das lendas dos poetas,
que fazem animais falarem, as estrelas imobilizarem-se, as pedras
transformarem-se em homens e os homens em árvores, e contam como sair
de um pântano puxando os próprios cabelos, tudo isso, na medida em que
permanece intuível, está preso aos axiomas da geometria (...) As verdades
aritméticas governam o domínio do enumerável. Este é mais inclusivo; pois
não lhe pertencem apenas o efetivamente real nem apenas o intuível, mas
todo o pensável.
118
117
Veremos, mais adiante, que uma das principais teses fregeanas é aquela que distingue o que é
efetivamente real do que é objetivo, e que essa é uma tese eminentemente epistemológica que fundamenta
o chamado ‘terceiro reino’ fregeano. A distinção epistemológica entre o que pode ser conhecido por meio
dos sentidos e o que pode ser ‘captado’ pelo pensamento, que em Frege tem um caráter absolutamente
objetivo, determinará os âmbitos do real e/ou intuível e do objetivo não real, ou seja, o meramente
pensável.
118
Die tollstein Fieberphantasien, die kühnsten Erfindungen der Sage und der Dichter, welche Thiere
reden, Gestirne stille stehen lassen, ans Satyeinen Menchen und aus Menchen Bäume machen, und
lehren, wie man such am eigen Schopfe aus dem Sumpfe zieht, sie sind doch, sofern sie anchaulich
bleiben, an die Axiome der Geometrie gebunden (...) Die arithmetischen Wahrheiten beherrschen das
Gebiet des Zählbaren. Dies ist das umfossendste, denn nicht nur das Wirkliche, nicht nur das
Anschauliche gehört ihm an, sondern alles Denkbare”
(idem: #14)
127
Isso significa que, mesmo onde a intuição espacial não joga nenhum papel, como,
por exemplo, no âmbito das maneiras possíveis de resolver um problema
matemático, no âmbito de conceitos abstratos como os de felicidade, liberdade ou
justiça; enfim, fora daquilo que podemos conceber com submetido ao reino do
espacial, ainda assim, as leis da aritmética valem e operam. Não é possível
conceber espacialmente a justiça, a liberdade ou a felicidade, não é possível
operar geometricamente sobre tais conceitos, mas é possível enumerá-los. Não é
possível intuir espacialmente maneiras distintas de se demonstrar um mesmo
teorema, mas posso dizer que existem duas ou três maneiras de se chegar a uma
tal demonstração. Enfim, não se pode exercer a atividade racional do pensamento
prescindindo das leis aritméticas, como também não o podemos prescindindo da
lógica. A aritmética, ao contrário da geometria, possui a objetividade, necessidade
e universalidade comparáveis somente às da própria lógica enquanto tal. Essas
razões parecem ser suficientes para endossar a posição logicista fregeana: somente
estabelecida dedutivamente a partir de verdades lógicas elementares e de
definições realizadas por meio de mecanismos puramente lógicos a aritmética
pode se assentar, dada sua total abrangência e necessidade.
III.2.2. Uma nova lógica
Vimos, a partir da análise da tese de que a aritmética é, ao contrário, por
exemplo, da geometria, uma ciência analítica, em que sentido deve ser
compreendido logicismo fregeano. Trata-se, pois, de um trabalho de ‘purificação’ da
aritmética que deve ser fundamentada a partir de princípios lógicos. E é com vistas a
esse projeto de fundamentação lógica da aritmética que deve ser abordado o
chamado antipsicologismo de Frege. Entretanto, a empreitada fregeana esbarra em
128
dificuldades significativas; em primeiro lugar, do ponto de vista do instrumental
lógico que lhe estava disponível: a lógica, enquanto sistema silogístico aos moldes
aristotélicos, aquela mesma que Kant havia proclamado com pronta e acabada, é por
demais simplória, imprecisa e mal fundamentada, para servir ao projeto fregeano.
Uma lógica que se estabelece a partir de uma estrutura proposicional baseada nas
categorias de
sujeito
e
predicado
, que não é capaz de dar conta de maneira não
artificiosa de enunciados tão simples quando “João ama Maria” ou ‘todo homem ama
alguma mulher”
119
, certamente não pode estar apta a servir de fundamento para a
derivação da aritmética, tal como exige o projeto logicista de Frege. Para citar um
único exemplo dessa insuficiência, podemos mencionar que Frege definiu número
natural como algo relacionado aos conceitos
120
. No entanto, na sintaxe da teoria
silogística sequer figura a categoria lógica de
conceito
.
Conceito
, tal como figura ao
longo da história da filosofia desde Aristóteles até, pelo menos, Locke e seu séqüito,
tem uma roupagem muito mais epistemológica, ou mesmo psicológica, do que
propriamente lógica, uma vez que são produtos do processo subjetivo da abstração.
Foi necessário, portanto, que Frege concebesse a lógica de uma maneira bastante
119
Os dois exemplos citados são exemplos lapidares de proposições que somente podem ser explicados no
universo da sintaxe silogística de forma artificial e imprecisa. O primeiro exemplo “João ama Maria” é uma
proposição relacional; o segundo, “todo homem ama alguma mulher”, é um proposição na qual ocorre
quantificação múltipla. Ora, de acordo com teoria da proposição baseada nas categorias de sujeito e
predicado, torna-se necessário, no primeiro exemplo, considerar que “amar Maria” é um predicado de
João, e não há maneira de concebê-la como expressando o que realmente ela expressa: uma relação entre
João e Maria. No segundo caso, o problema é ainda mais espinhoso. Isso porque no sistema silogístico, o
quantificador tem sempre a função de determinar se a inclusão ou exclusão do termo sujeito ao termo
predicado é total ou parcial; logo, os quantificadores devem referir-se exclusivamente ao termo sujeito. E
em nosso exemplo, claramente, há o quantificador “todo” quantificando o termo sujeito e o quantificador
“alguma” quantificando o termo predicado. Tal procedimento é proibido dentro da teoria da proposição na
qual se baseia a lógica silogística.
120
“Wenn ich in Ansehung derselben äussern Erscheinung mit derselben Wahreit sagen kann: ‘dies ist
eine Baumgruppe’ und ‘sies sind fünf Bäume’ oder ‘hier sind vier Compagnien’ und ‘hier sind 500 Mann,’
so ändert sich dabei weder das Einzelne noch das Ganze, das Aggregat, sondern meine Benennung.Das ist
aber nur das Zeichen der Ersetzung eine Begriffes durch einen anderrn. Damit wird uns als Antwort auf
die erste Frage des vorigen Paragraphen nahe gelegt, dass die Zahlangabe eine Aussage von einem
Begriffe enthalte”
(idem # 46)
129
diferente daquela que manteve-se praticamente intacta durante mais de dois mil
anos. E nessa nova lógica de Frege, a categoria
conceito
deve ser logicizada, a fim de
que a definição de número natural enquanto propriedade de conceitos seja uma
definição lógica. Definir número natural como propriedade de conceitos e manter
que
conceito
é uma categoria psicológica, uma idéia geral obtida por meio do
processo de abstração, ou coisa do gênero, não resolveria o problema do ponto de
vista do projeto logicista. Nesse sentido, Frege elabora uma teoria da proposição na
qual
conceito
e
objeto
, e não mais
sujeito
e
predicado
são as partes constituintes do
conteúdo proposicional. Esse expediente, conjugado com uma poderosa teoria da
quantificação, produziu um sistema lógico engenhoso que, se não conseguiu de fato
proporcionar ao projeto logicista de Frege o êxito esperado, fez, contudo, com que a
lógica nunca mais fosse a mesma, e que a afirmação kantiana
121
de que ela estava
pronta e acabada fosse refutada implacavelmente.
No entanto, essas dificuldades técnicas referentes às limitações da teoria
silogística não nos interessam aqui particularmente. A afirmação de que Frege
refundou a ciência da lógica deve ser compreendida em mais de um sentido. Não só
os problemas referentes ao instrumental lógico analítico necessário ao seu projeto de
fundamentação lógica da aritmética impuseram a Frege a necessidade de conceber a
lógica em outras bases; não só problemas meramente instrumentais deveriam ser
superados. Interessa-nos, pois, um outro problema, relacionado não ao instrumental
lógico analítico que Frege necessitava, mas a questões ligadas mais diretamente à
filosofia da lógica ou, mais precisamente, à epistemologia da lógica: o projeto
fregeano consiste na descontaminação da aritmética com relação a elementos de
outra ordem que não efetivamente lógicos; entretanto, a própria lógica, do ponto de
vista de muito de seus contemporâneos, era concebida de uma maneira que a tornava
121
Kant. (op. cit. B VIII)
130
impregnada de elementos extra-lógicos. Era comum entre os contemporâneos de
Frege a postura de vincular a lógica à psicologia, de subordinar a primeira à segunda.
Nesse sentido, como seria possível a construção de uma aritmética edificada a partir
de princípios puramente lógicos, se a própria lógica não se mostrasse ‘puramente
lógica’? É, pois, dentro do contexto dessa problemática que deve ser abordado o
antipsicologismo fregeano. Aquele espírito purificador incorporado por Frege no que
se refere à distinção precisa entre aquilo que efetivamente exerce algum papel na
demonstração das verdades aritméticas, e que garantiria sua analiticidade, deve
também, e sobretudo, estar presente no que tange à fundamentação da própria
lógica. O racionalismo fregeano é o racionalismo das razões demonstrativas, das
verdades objetivas que devem ser encadeadas na edificação das ciências dedutivas.
Assim sendo, o projeto de fundamentação axiomática da aritmética, que aos olhos de
Frege exige uma purificação racional das verdades, tem como condição de sua
possibilidade o antipsicologismo lógico. Trata-se, pois, do projeto de delegar à lógica,
e conseqüentemente à aritmética dela derivada, um caráter absolutamente objetivo.
Antipsicologismo, nesse sentido, deve ser entendido antes como uma valorização da
lógica do que desvalorização da psicologia. Não se trata, simplesmente, de dizer:
‘tudo o que é psicológico deve ser descartado’ mas, ao contrário, deve-se dizer: ‘tudo
o que não é lógico (o psicológico, entre outras coisas) deve ser descartado’. Isso
porque a lógica, assim como a aritmética é uma ciência dedutiva, analítica, objetiva e
absolutamente
a priori.
III.2.3. Frege e a objetividade
Frege define número como objetos. Não nos cabe aqui expor a maneira como
ele elabora sua definição lógica de número – ou, mais precisamente, de número
131
enquanto objeto lógico – mas, tão somente, apontar um aspecto importante da
concepção fregeana de número: a tese fregeana de que números são objetos possui,
além de seu aspecto ontológico, uma roupagem fortemente epistemológica, pois está
associado à faculdade cognitiva racional. A análise lógica do pensamento (
Gedanke
),
cuja expressão na linguagem se dá por meio das sentenças
122
, dividiu o universo
lógico em duas categorias:
conceito
e
objeto
. Conceitos são insaturados, incompletos
e necessitam serem preenchidos por objetos para que se constitua um conteúdo
proposicional, um sentido, ou seja, um
Gedanke
. Assim, números devem ser
considerados objetos, completos e saturados, e não como conceitos. É esse
status
que
devem possuir os números.
No entanto, conceber o número como objeto lógico, como entidades saturadas
em oposição aos conceitos saturados e completos, é apenas um sentido no qual se
deve tomar a objetividade da aritmética. Devemos levar em consideração, ao
tratarmos da objetividade das proposições aritméticas, a posição fregeana que
desvincula o conceito de número, por um lado, de nossas representações, e, por
outro, da dependência do mundo exterior disponível aos sentidos. Para instituir sua
tese referente à objetividade da aritmética, Frege teve que trabalhar em, pelo menos,
duas frentes: precisou estabelecer a independência dos números, tanto com relação a
entidades e processos psicológicos, quanto com relação às impressões sensíveis.
123
Com a primeira distinção, afirma-se a objetividade da aritmética; com a segunda, seu
caráter não empírico; é esse o
status
peculiaríssimo que assume o conceito de
122
“Der Gedanke ist der Sinn eines Satzes, ohne damit behaupten zu wollen, dass der Sinn jedes Satzes ein
Gedanke sei. Der na sich unsinnlich Gedanke kleidet sich in sinnliche Gewand des Satzes und wird damit
fassbarer. Wir sagen, der Satze drücke einen Gedanken aus”
(
Der Gedanke
: in: Kleine schriften. Pag. 345)
123
Na seção que vai dos parágrafos 21 a 25 dos
Grundlagen
, Frege trata de derrubar a tese de que os
números são propriedades das coisas exteriores; nos parágrafos 26 e 27 refuta a posição daqueles que
consideram algo subjetivo.
132
número e a aritmética como um todo aos olhos de Frege: são objetivos, mas não são
empíricos.
Consideremos, primeiramente, a tese fregeana na qual o autor se opõe àqueles
que consideram número uma ‘entidade’ subjetiva, dependente das - ou equivalente
às - representações e toda sorte de manifestações psicológicas. Ao se contrapor à tese
de que o número é uma representação Frege nos diz:
Uma descrição dos processos internos que precedem à formulação do juízo
numérico, ainda que correta, nunca poderá ser substituto de uma
determinação genuína do conceito (de número). Nunca se poderá recorrer a
ela para a demonstração de uma proposição aritmética: por intermédio delas
não aprendemos nenhuma propriedade dos números.
124
Dois motivos levam Frege a negar a interferência de processos e entidades mentais
na aritmética: em primeiro lugar, por conta do problema da objetividade dessa
ciência; se ela for fundamentada a partir da consideração dos processos psíquicos,
certametne terá uma validade tão somente privada. Em segundo lugar, como estamos
salientando de forma insistente, porque as descrições de processos psíquicos e aquilo
que pode ser obtido a partir dessas descrições não interferem absolutamente nas
razões que sustentam o cálculo. A partir disso, Frege expõe sua tese de que o número
é algo objetivo, mas que, nem por isso, é algo empírico, dependente da percepção
externa:
O botânico quer dizer algo tão factual quando indica o número de pétalas de
uma flor como quando indica sua cor. Uma não depende mais de nosso
arbítrio do que a outra. Há, portanto, certa semelhança entre o número e a
124
Eine soche Beschreibung der innern Vorgänge, die der Fällung eines Zahlurtheils vorhergehen, kann
nie, auch wenn sie zutreffender ist, eine eigentliche Begriffsbestimmung ersetzen. Sie wird nie zum
Beweise eines arithmetischen Satzes herangesongen werden können; wir erfahren durch sie keine
Eigenschaft der Zahlen”
(
Grundlagen de Arithmetik
: #26)
133
cor; mas ela não consiste em serem ambos perceptíveis pelos sentidos a partir
de coisas exteriores, mas de serem ambos objetivos
.
125
E depois:
Distingo o objetivo do palpável, espacial e do efetivamente real...
126
Como podemos notar, Frege desvincula as verdades aritméticas das explicações
causais referentes à elaboração do juízo numérico, garantindo, assim, sua
objetividade. Na medida em que o número não é dependente de coisas, cuja validade
é apenas privada, a aritmética se estabelece, segundo Frege, como uma ciência
objetiva e universal. Mas isso não deve significar, necessariamente, que, uma vez não
sendo dependentes do universo psicológico, os juízos aritméticos sejam factuais,
comparáveis aos juízos que expressam verdades empíricas acerca do mundo físico.
Estamos, pois, diante da enunciação da célebre tese fregeana acerca do terceiro
reino, o reino da objetividade não real. A história da filosofia acostumou-se a
estabelecer uma dicotomia entre sujeito, de um lado, e objeto, do outro. O que
ocorre ‘internamente’ na mente de algum ser pensante, aquilo que depende das suas
determinações privadas como sua história, desejos, expectativas... pertencem ao
reino da subjetividade. Aquilo que é ‘externo’, real no sentido de palpável, tangível,
enfim, que pode ser percebido pelos sentidos externos, é objetivo. Nesse sentido,
objetividade e subjetividade são categorias que dependem muito mais de uma certa
determinação de ‘lugar’ (
dentro
ou
fora
da mente) do que de outros critérios. Frege,
ao propor sua tese do terceiro reino, da objetividade não real, coloca a relação
objetividade/subjetividade em outros termos, em termos não de uma determinação
125
“Der Botaniker will etwas ebenso Thatsächliches sagen, wenn er die Anzahl der Blumenblätter einer
Blume, wie wenn er ihre Farbe angiebt. Das eine hangt so wenig wie das andere von unserer. Willkühr
ab. Eine gewisse Aehnlichkeit der Anzahl und der Farbe is also da; aber diese besteht nicht darin, dass
beide an äusseren Dingen sinnlich wahrnehmbar, sodern darin, dass beide objectiv sind”
(idem)
126
“Ich unterscheide das Objective von dem Handgreiflichen, Räumlichen, Wirklichen”
(idem)
134
de lugar, mas como uma distinção eminentemente epistemológica, diretamente
dependente das faculdades envolvidas.
...entendo por objetividade uma independência com respeito ao nosso sentir,
intuir, representar, ao traçado de imagens internas a partir de lembranças de
sensações exteriores, mas não uma independência com relação à razão
127
Frege, distingue, portanto, faculdades eminentemente subjetivas, como a intuição,
representação, imaginação, das faculdades que produzem conhecimentos objetivos.
Mas essas são duas e não uma só: sentidos da percepção externa, que garante o acesso
ao objetivo real, e a razão, que garante acesso ao objetivo não real. E os números
estão ligados a esta última opção: não são propriedades exteriores das coisas
percebidas pelos sentidos, mas também não são ‘entidades subjetivas’ como
representações ou algo dependente das representações e de nossas faculdades de
representar ou imaginar. São objetos cujo acesso somente pode ser possível por meio
da faculdade cognitiva racional, faculdade essa que é o fundamento epistemológico
do chamado terceiro reino. O reino da objetividade não real é o reino da razão,
daquilo que não depende das condições subjetivas do pensamento atual nem das
condições objetivas do mundo físico.
Vimos, logo acima, que o projeto logicista fregeano consiste num trabalho de
purificação racional dos conceitos envolvidos nas ciências demonstrativas analíticas
(segundo ele, lógica e aritmética; ou melhor: lógica, pois a aritmética é entendida
como um ramo da lógica). Ora, diante do que estamos vendo, tal trabalho de
purificação significa isolar o que é da alçada exclusivamente da faculdade racional
em relação aos elementos cognitivos dependentes das outras faculdades. Os
princípios lógicos – e, conseqüentemente, a aritmética, que, segundo Frege, é
127
“So verstehe ich unter Objectivität eine Unabhängigkeit von userm Empfinden, Anschauen und
Vorstellen, von dem Entwerfen innerer Bilder aus den Erinneurungen früherer Empfindungen, aber
nicht eine Unabhängigkeit von der Vernunft”
(idem)
135
estabelecida exclusivamente a partir deles – não são extraídos do mundo exterior
pelos sentidos, como quer Mill, nem tampouco são ‘entidades’ psicológicas,
produzidas por meio de nossas faculdades subjetivas, como a intuição, representação
e imaginação; ao invés disso, são acessíveis tão somente por meio de nossa faculdade
racional. São, portanto, princípios universais e imutáveis; não podem depender da
faculdade cognitiva relacionada à sensibilidade exterior, nem tampouco de
ocorrências ou entidades psicológicas.
Nesse sentido, a distinção entre objetividade e subjetividade assume uma
dimensão que pode ser estabelecida em termos da distinção entre o que é privado e o
que possui validade intersubjetiva. Em realidade, Frege não nega que processos
subjetivos estejam diretamente envolvidos na produção de conhecimento em geral,
nas atividades comunicativas ou nos raciocínios lógico-matemáticos, quando
realizados efetivamente pelos sujeitos. Tal com o Mill já o fizera
128
, Frege distingue o
ato subjetivo do juízo – i.e. o reconhecimento de que um pensamento é verdadeiro -
que pode ser explicado por meio de causas psicológicas, do conteúdo objetivo que é
considerado verdadeiro no ato do juízo. As explicações psicológicas somente podem
dar conta do ato do juízo, não do conteúdo objetivo que é aceito como verdadeiro
nesse ato. Mas elas não são relevantes e não devem ser consideradas, ao menos no
que tange à lógica.
III.2.4. Leis do ser verdadeiro
A pergunta que se coloca, a partir do que foi exposto até aqui é a seguinte:
qual o critério para que se estabeleça o que é racional, da alçada da lógica e, portanto,
128
ver: II.4.2
136
daquilo que é efetivamente relevante para as ciências demonstrativas analíticas? O
que determina a natureza da lógica enquanto ciência autônoma, segundo Frege, é a
relação intrínseca que ela mantém com a
verdade
. Tal como a estética se edifica por
referência ao conteúdo da palavra “belo”, a lógica se edifica por referência ao
conteúdo da palavra verdadeiro
129
. Em realidade, todas as ciências guardam uma
relação íntima com a verdade, na medida em buscam estabelecer verdades acerca de
seus objetos. No entanto, a Lógica vincula-se com a verdade de uma forma bastante
peculiar, pois trata daquilo que Frege chama
leis do ser verdadeiro.
À lógica
interessa tão somente as razões a partir das quais uma verdade pode ser justificada,
demonstrada com base em outras verdades dadas. E é justamente nesse ponto que a
oposição entre lógica e psicologia se estabelece: explicações causais acerca dos
processos psíquicos envolvidos no ato do juízo devem explicar as causas que
determinam o que ocorre no universo psicológico de quem enuncia ou infere
verdades, mas também de quem enuncia ou infere falsidades.
130
Isso, porque, do
ponto de vista dos processos psíquicos envolvidos no ato do juízo, a distinção entre
verdade e falsidade, tal como interessa à lógica, não é relevante. Determinadas causas
psíquicas são responsáveis pelo juízo verdadeiro, mas também determinadas causas
psíquicas são responsáveis pelo juízo falso. E a verdade, como Frege insiste em
129
“Wie das Wort “schön” der Ästhetik und “gut” de Ethik, so weist “wahr” usw. der Logik dir Richtung”
(Kleine Schriften, p. 343).
“Psychology is only concerned with truth in the way every other science is, in
that is goal is to extend the domain of truths; but int the field it investigates it does not study the property
‘true’ as, in its field, physics focuses on the proprieties ‘heavy’, ‘warm’, etc. This is what logic does. It
would not perhaps be besides the mark to say that the laws of logic are nothing other than an unfolding
of the content of the word ‘true’”
(Posthumous Writings: pag. 3)
130
“Der irrtum, der Aberglaube hat ebenso seine Ursachen wie die richtige Erkenntnis. Das
Führwahrhalten des Falschen uns das Fürwahrhalten des Wahren kommen beide nach psychologischen
Gesentzen zustande. Eine Ableitung aus diesen und eine Erklärung eines seelischen Vorganges, der in
ein Fürwahrhalten ausläuft, kann nie einen Beweis dessen ersetzen, auf das sich dieses Führwahrhalten
bezieht”
(
Der Gedanke;
Kleine Schriften; p. 343)
137
salientar, não depende de seu reconhecimento por parte dos sujeitos
131
; portanto as
causas psíquicas relacionadas ao ato do juízo não guardam nenhuma relação com a
verdade e suas propriedades. E a explicação psicológica deve estar vinculada tão
somente às essas causas.
Através de uma analogia talvez seja possível compreender a posição de Frege
com quando sustenta a necessidade de se realizar uma purificação da lógica com
relação a elementos extra-lógicos, e como as leis da verdade estão relacionadas a isso:
quando um matemático, por exemplo, resolve uma equação com lápis e papel,
certamente podemos dizer que vários fatores estão envolvidos naquele ato em
particular. Desde as razões envolvidas na resolução do problema, até coisas como a
composição química do papel ou do grafite, ou mesmo a composição da massa
encefálica de quem raciocina, entre outras coisas. Ora, embora esses elementos
estejam presentes, e dentro de determinados pontos de vista possam ser
absolutamente relevantes, eles em nada influenciam nas razões envolvidas na
resolução mesma do problema, e, portanto, não guardam qualquer relação com as
leis da verdade
. A correção ou não da resolução de um problema matemático não
depende em nada da composição química do papel ou do grafite, nem da massa
encefálica do matemático. Decerto podemos explicar como o grafite age sobre o
papel, ou como a quantidade de fósforo no cérebro do matemático operam naquele
ato particular, mas jamais encontraremos aí as razões que garantam a correção de
uma demonstração ou a verdade de uma proposição. Ora, tal como a composição
química do papel exerce alguma função no ato na resolução efetiva do tal problema
matemático, embora essa função seja irrelevante para as razões evolvidas na
demonstração, também elementos de ordem psicológica estão envolvidos. Algo se
131
“What is true independently of our recongnizing it as such. We can make mistake
” (Posthumous
Writings: pag. 2)
138
passa no universo subjetivo daquele que raciocina, e isso tem a ver com toda uma
história mental do sujeito. No entanto, esses elementos subjetivos são absolutamente
privados e nada têm a ver com as razões objetivas que garantem a correção do
cálculo.
III.2.5 Representação e conteúdo proposicional
Como sabemos, a atividade racional, em Frege, passa pela ‘captação de
Gedankes
’, conteúdos proposicionais objetivos que se apresentam enquanto unidades
de sentido.
Assim, da mesma forma como acontecimentos psíquicos não devem
exercer papel relevante no que tange à demonstrações de verdades a partir de razões
objetivas, também no que se refere à captação do sentido proposicional ocorre algo
semelhante. As representações que são produzidas nos diversos sujeitos quando
captam
Gedankes
, quando têm acesso a um conteúdo proposicional objetivo, não
podem interferir na própria constituição desse mesmo conteúdo. São, por isso,
semanticamente irrelevantes. Se alguém pronuncia, por exemplo, diante de um
grupo de pessoas, uma proposição como “o carro é branco”, certamente cada ouvinte
irá representar, na forma de uma ‘imagem mental’, um carro branco qualquer. E o
que cada um representará em seu universo subjetivo dependerá exclusivamente de
suas respectivas histórias mentais. E, embora não seja possível serem comparadas
essas diversas representações, temos fortes razões para imaginar que são todas
diferentes umas das outras. Mas, seja como for, o que importa é que possuem uma
validade absolutamente subjetiva, e não podem guardar relação alguma com a
objetividade do pensamento expresso pela sentença. Isso, porque, mesmo
representando imagens mentais privadas e não intersubjetivamente comunicáveis,
todos entendem a mesma coisa; o mesmo conteúdo objetivo é expresso pela sentença
139
e captado pelos ouvintes. Imagens e processos psicológicos exercem alguma função
no ato de captação de um
Gedanke
, de um conteúdo proposicional? Sim; mas de uma
forma análoga àquela que os elementos químicos exercem no ato de resolução de um
problema por parte de um matemático que usa papel e lápis. No entanto, tal como a
composição química do papel e do grafite em nada interfere na objetividade racional
do cálculo, também em nada interferem as representações subjetivas com relação à
constituição do conteúdo objetivo expresso pela sentença.
As considerações que acabamos de fazer estão diretamente relacionadas à um
tese clássica do pensamento fregeano, da qual falaremos a seguir: o chamado
princípio do contexto.
III.2.6. Lógico x psicológico: o princípio do contexto
Na introdução dos
Grundlagen der Arithmetik
Frege estabelece três
princípios que devem ser obedecidos para que seja levado a cabo seu projeto de
fundamentação lógica da aritmética:
1) a necessária a separação entre lógico e psicológico, objetivo e
subjetivo;
2) a necessidade de se perguntar pelo significados das palavras
somente no contexto da proposição, e
3) a necessidade de se de considerar a diferença entre conceito e
objeto.
132
132
“Als Grundsätze habe ich in dieser Untersuchung folgende festgehalten:
- es ist das Psychologische von der Logischen, das Subjective von der Objectiven scharf zu trennen;
- nach de Bedeutung der Wörter muss im Satzzusammenhange, nicht in ihrer Vereinzelung gefragt
werden;
140
Dos três princípios mencionados, os dois primeiros nos interessam particularmente.
Até porque, de acordo com as palavras do próprio Frege, ambos estão intimamente
ligados
133
. E justamente na medida em que vinculamos os dois primeiros princípios,
notamos a intrínseca relação entre a lógica e semântica fregeanas. Apesar de Frege,
quando escreveu seus
Grundlagen der Arithmetik
, ainda não ter estabelecido sua
teoria semântica em bases definitivas - o que só aconteceu anos mais tarde,
sobretudo com a publicação de seu
Sinn und Bedeutung
- já podemos encontrar aqui
um elemento fundamental da teoria fregeana do significado: a tese de que os
significados das palavras não são nossas representações, mas sim a contribuição da
palavra para o estabelecimento do sentido proposicional. Ora, estamos tratando, já
há várias páginas, do projeto fregeano de redução da aritmética à lógica; e temos
visto que tal projeto consiste em ‘purificar’ a aritmética e a lógica de quaisquer
elementos que não sejam de natureza racional e objetiva. E é sobre isso que trata o
princípio 1); da separação entre as esferas da lógica e da psicologia. O princípio 2),
por sua vez, fornece a contraparte semântica desse logicismo. Se devemos separar
cabalmente o que é da alçada da lógica daquilo que depende de nossa vida mental,
certamente os eventos mentais não podem interferir na constituição do sentido
proposicional, uma vez que esse é o portador da verdade; e a verdade, numa lógica
que se pretende radicalmente objetiva e racional, não pode ser atribuída a entidades
mentais nem a nada que seja dependente dessas entidades. E por que isso acontece?
Por uma razão bastante simples: se perguntarmos pelo significados das palavras de
forma isolada, seremos levados a acreditar que as palavras têm por referência as
representações que suscitam nos sujeitos. Se tomo a palavra “casa” isoladamente, sou
- der Unterschied zwischen Begriff und Gegenstand ist im Auge zu behalten.”
(Der Grunlagen der
Arithmetik. Einleitung)
133
“Wenn man den zweiten Grundsatz unbeachtet lässt, ist man fast genöthigt, als Bedeutung der Wörter
innere Bilder oder Thaten der einzelnen Seele zu nehmen und damit auch gegen den ersten zu
verstossen”
(idem)
141
levado a representar uma casa na forma de uma imagem mental; e essa imagem
mental seria, pois, tomada por sua referência. Nesse caso, teríamos uma semântica
psicologista, e a partir dela teríamos uma lógica fundada na psicologia, uma vez que
as proposições estabeleceriam relações entre essas representações. O que Frege nos
diz, entretanto, é que, se perguntarmos pelo significado das palavras no contexto da
proposição, seremos levados a considerá-lo não como sendo as imagens mentais
produzidas pela palavra isoladamente, mas algo objetivo, como uma parte do
pensamento objetivo (
Gedanke
) expresso na proposição, parte essa obtida por meio
da análise desse pensamento. O que Frege está propondo é uma inversão na ordem
das coisas: a proposição é prioritária com relação às suas partes. Por meio de nossa
faculdade racional somos capazes de captar unidades de sentido, e os significados das
palavras devem ser considerados como constituintes dessa unidade de sentido. A
análise da proposição é algo como uma decomposição na qual o todo é anterior às
suas partes. O todo proposicional fregeano não é a união de suas partes, mas é
prioritário com relação a elas
134
. Por isso, o significado dos termos, enquanto ‘partes’
do sentido proposicional, somente pode ser estabelecido cabalmente com referência
ao conteúdo prioritário da proposição.
Frege possui uma necessidade sistemática que o leva a fazer uso de seu
princípio do contexto. Como sabemos, nos
Grundlagen
Frege pretende fornecer uma
134
Pode parecer paradoxal a afirmação que o todo proposicional é anterior às suas partes, que o todo não
pressuponha partes constitutivas. Mas essa impressão é apenas aparente. Há um caso análogo, nos
domínios da aritmética, que pode fornecer um exemplo de como esse relação entre todo e partes pode se
dar: devemos, certamente, considerar que frações ½ ou ¼ são partes da unidade. Mas nem por isso
devemos considerar que o 1 seja formado a partir da soma de suas frações. Mas, ao contrário,
consideramos o 1 como prioritário e anterior às suas frações, e essas somente podem ser obtidas por
divisão ou decomposição da unidade originária. Ocorre algum análogo com relação ao todo proposicional
e suas partes constitutivas na teoria fregeana; as partes da proposição não são autônomas, mas sim
dependentes do todo proposicional. A ordem é a seguinte: primeiro captamos
Gedankes
como unidade de
sentido, depois o decompomos pela análise. A análise do todo proposicional não pressupõe uma síntese
anterior.
142
definição lógica do conceito de número natural; por isso, está prioritariamente
preocupado em acomodar, num sistema lógico-semântico coerente, o sentido das
proposições aritméticas, aquelas nas quais figuram expressões numéricas. Frege
constata, pois, algo importante: os objetos que são a referência das expressões
numéricas não são capazes de produzir representações, mas nem por isso deixam de
ter significado
135
. Não podemos ter uma intuição, nem criar uma imagem mental que
possamos associar ao símbolo “5”, mas isso não significa que tal expressão não tenha
um significado. Esse significado, no entanto, somente pode ser compreendido na
medida em que se compreende o sentido de uma proposição no qual ele figura. E tal
significado deve consistir tão somente no papel exercido pelo termo no contexto
proposicional, sua contribuição para sentido proposicional.
Existe um ponto importante a ser salientado aqui com relação ao princípio
fregeano do contexto: o raciocínio utilizado por Frege quando estabelece seu
princípio é similar àquele utilizado por Mill em sua crítica ao conceitualismo, do
qual tratamos no capítulo anterior. De acordo com Mill, o conceitualismo (a tese de
que os significados das palavras são entidades mentais) estaria equivocado, porque
não utilizamos as palavras para comunicar o conteúdo de nossas representações, mas
sim para expressarmos nossas crenças. E vimos também que a crença é uma atividade
intencional que se refere a um conteúdo proposicional crido, ou seja, tomado por
verdadeiro. Ora, se guardarmos as devidas diferenças de vocabulário, notaremos que
ambos dizem coisas muito semelhantes: se não vincularmos a semântica à lógica, se
135
“Wie soll uns denn Zahl gegeben sein, wenn wir keine Vostellung oder Anschauung von ihr haben
können? Nur im Zusammenhange eines Satzes bedeuten die Wörter etwas. Es wird also darauf
ankommen, den Sinn eines Satzes zu erklären, in dem ein Zahlwort vorkommt. Das giebt zunächts noch
viel der Willkühr anheim. Aber wir haben schon festgestellt, dass unter den Zahlwörtern selbständige
Gegenstände zu verstehen sind. Damit ist uns eine Gattung von Sätzen gegeben, die einen Sinn haben
müssen, der Sätze, welsche ein Wiederkennen ausdrüken. Wenn uns das Zeichen a einen Gegenstand
bezeichnen soll, so müssen wir ein Kennzeichen haben, welches überall entscheidet, ob b daselbe sei wie
a, wenn es auch nicht immer in unserer Macht steht, dies Kennzeichen anzuwenden. In unserm Falle
müssen wir den Sinn des Satzes.
(idem: #62)
143
não submetermos o significado das palavras ao conteúdo objetivo reivindicado como
verdadeiro no ato do juízo, somos levados necessariamente a tomar o significado das
palavras por entidades psicológicas. Se levarmos em conta o fato de Frege ter lido o
System of logic
de forma bastante atenta (a julgar pelas críticas incisivas que dirige a
essa obra) e atentarmos para a similaridade das duas posturas com respeito à relação
existente entre entidades psíquicas e conteúdo proposicional, talvez seja possível
identificar aqui um importante fator de influência positiva de Mill com relação á
Frege. Mill enxergou, ao seu modo e por meio do repertório conceitual do qual
dispunha, a necessidade de serem retirados do reino da subjetividade psicológica os
mecanismos semânticos que fundamentam sua teoria do significado; e notou
também, claramente, que esse procedimento passa pela atrelagem do significado dos
termos a um conteúdo proposicional. É nesse sentido que, de acordo com nossa
hipótese, a crítica milliana ao conceitualismo está organicamente relacionada ao
princípio fregeano do contexto. Como foi mostrado
136
, Mill refutou a tese
conceitualista de que o significado dos termos são idéias apontando para o fato de
não usamos a linguagem para comunicar aquilo que concebemos na forma de idéias
ou imagens mentais, mas para expressar o conteúdo de nossa crenças. E vimos
também que o ato de crença deve referir-se a um conteúdo objetivo prévio, expresso
na forma de uma proposição. Portanto, de acordo com o que podemos entender das
palavras de Mill, quando deixamos de perguntar pelo significado dos nomes
isoladamente (ou seja, sem referência ao conteúdo de nossas crenças) o
conceitualismo se impõe. Mas quando atrelamos o significado dos nomes ao objeto
de nossas crenças a tese conceitualista cai por terra. A enunciação proposicional é
responsável, tanto em Mill quanto em Frege, pela objetivação do significado dos
termos que compõem o sentido proposicional. É claro que Mill não chegou ao
136
II.4
144
extremo fregeano de postular a anterioridade do sentido proposicional com relação
às suas partes, pois segue mantendo que a proposição é um signo complexo obtido
por meio da associação de dois nomes, mas Mill já enxergou a necessidade de se
vincular a semântica à lógica e os significados dos termos a um conteúdo
proposicional objetivo.
III.2.7. Pensar e representar
O que foi exposto até aqui nos leva a uma tese fundamental referente ao
antipsicologismo fregeano: a distinção entre
pensar
e
representar
. Quando se fala,
dentro do universo conceitual fregeano, em separar o lógico do psicológico, pode-se,
equivocadamente, imaginar que Frege está pensando numa distinção entre duas
classes de eventos que se submetem à autoridade da lógica ou da psicologia. Algo
como o seguinte: ‘quando faço ciência, estou no âmbito do pensamento lógico,
quando reflito acerca de minha condição e meu comportamento, por exemplo, estou
no âmbito psicológico’. Poderíamos, pois, se fosse assim, distinguir formas de
pensamento diversas dentre as quais identificaríamos o pensamento lógico em
oposição ao pensamento psicológico. Vimos, porém, que não é isso que ocorre. A
distinção entre lógico e psicológico está diretamente relacionado com a forma de
abordagem dos mesmos fenômenos. Se formos capazes, como acredita Frege, de
desvincular o que existe de efetivamente objetivo daquilo que possui validade
meramente privada, de desvincular as causas psíquicas de um juízo das razões
envolvidas numa demonstração, as imagens mentais produzidas por um sentido
proposicional nos sujeitos diversos, do conteúdo objetivo que constitui tal sentido
proposicional, então, certamente, poderemos entender que a distinção entre lógico e
psicológico, objetivo e subjetivo, não deve ser compreendida como uma ‘demarcação
145
de território’, mas como maneiras diferentes, pontos de vista distintos, de se abordar
os mesmos acontecimentos. Em realidade, há uma distinção prioritariamente
epistemológica que divide os fenômenos cognitivos com relação às faculdades nos
quais se apóiam. Não se pode dizer “isso é um pensamento lógico e aquilo é um
pensamento psicológico”, mas, ao contrário, deve-se identificar, com relação aos
mesmos fenômenos, o que é da alçada da lógica e o que é da alçada da psicologia
137
.
É nesse sentido que devemos entender a distinção fregeana entre
pensar
e
representar.
Representação
é identificada com a produção de imagens mentais por
parte dos sujeitos, entre outras coisas, quando captam um determinado sentido
proposicional ou quando têm uma impressão sensível;
pensar
deve ser identificado
com a própria captação do sentido e com a relação que guarda a verdade das
proposições com respeito à verdade de outras proposições delas derivadas. Porque
somos capazes de pensar, de captar e compreender os conteúdos objetivos das
proposições e de experimentar percepções sensíveis, representamos, criamos imagens
mentais. Da mesma forma, porque existem razões demonstrativas objetivas que
podem garantir a verdade de uma proposição com base na verdade de outras é que
raciocinamos de fato, e essas razões devem servir de justificativa das inferências
obtidas pelo raciocínio. No entanto, os raciocínios efetivos realizados pelos diversos
sujeitos, enquanto processos psíquicos, não se explicam por meio daquelas razões.
Frege, portanto, por paradoxal que possa parecer a primeira vista, objetiva o conceito
de pensamento, vinculando-o de forma estreita com a
verdade
e as
leis do
verdadeiro
. O que é da alçada da psicologia é o que se vincula ao universo da
137
Há uma passagem nos Posthumous writings no qual Frege propõe uma analogia que expressa bem o
que estamos querendo demonstrar:
“...we must reject all distinctions in logic that are made from a purely
psychological stanpoint and have no bearing on inference. Similarly, in pure mechanics we don’t
disntinguish substances according to their chemical propriets, but speaks only of ‘mass’ and physical
bodies, so thatwe don’t have, say, to establish a special law for each chemical sunstances in place of the
one law of inertia”
(Posthumous writings. Pag. 5)
146
subjetividade, e o que possui validade somente subjetiva são a representações, que
são eminentemente privadas. O que é da alçada da lógica é aquilo que possui
validade objetiva - naquele sentido que mencionamos há pouco: objetividade
racional e não física; pensar está relacionado a essa objetividade.
III.3. Frege crítico de Mill
Chegamos agora ao momento de relacionar aqueles que são os principais
pilares do logicismo e do antipsicologismo fregeano com as posições de Mill com
respeito a cada um deles. O objetivo aqui será verificar se, e até que ponto, o
empirismo milliano possui uma roupagem psicologista, se considerarmos o
psicologismo, a partir do ponto de vista de Frege.
O projeto fregeano de fundamentação da aritmética a partir da lógica, e da
lógica a partir de princípios racionais objetivos, exige, por um lado, uma crítica ao
empirismo, ou seja, à tese de que a objetividade somente pode ser fundamentada na
experiência sensível e, por outro, uma crítica ao psicologismo, ou seja, à tese de que
os processos subjetivos envolvidos no ato de pensar (entendendo
pensamento
aqui
num sentido não fregeano) determinam e constituem os fundamentos a partir dos
quais a lógica se estabelece. Para sermos mais precisos, trata-se de duas manifestações
do empirismo, pois o psicologismo também é uma espécie de empirismo
138
. A
diferença, no entanto, reside no fato de que Mill busca estabelecer o fundamento da
objetividade da experiência empírica não a partir do sujeito psicológico, mas a partir
138
Segundo Sluga, o que há de comum entre todos os adversários de Frege na fundamentação lógica da
aritmética é o fato de todos serem adeptos de manifestações diferentes do empirismo:
“Anti-empirism is in
fact pervasive in Frege’s book (...) The views Frege attacks have one, and only one, festure in commom.
Industivism, physicalism, psichologism, and formalism are all different forms of empirism”
(Sluga:
Gotlob
Frege
; pag.102)
147
dos próprios fatos do mundo. A observação empírica, em Mill, não precisa da
chancela subjetiva das idéias para se constituir enquanto experiência, uma vez que a
objetividade dos fatos do mundo, juntamente com a carga semântica dos nomes
conotativos, estabelece, por si só, a unidade do sentido proposicional, sem a
necessidade de se considerar entidades psicológicas, como as
proposições mentais
de
Locke, por exemplo. Temos aqui, talvez, um importante argumento em favor de
nossa tese de que a crítica que Frege dirige a Mill nos
Grundlagen der Arithmetik
não se refere ao seu suposto psicologismo, mas ao seu empirismo. Se Frege distingue
três, e não duas, instâncias a partir das quais se pode estabelecer as diversas formas
de conhecimento - a saber, subjetividade, objetividade empírica e objetividade
racional - e se o projeto fregeano consiste em fundamentar a lógica e a aritmética a
partir da objetividade racional em detrimento das outras instâncias, devemos, pois,
identificar dois alvos da crítica fregeana: um empirismo
subjetivista
, representado
pelo psicologismo lógico, e o empirismo
objetivista
, como aquele de Mill. Trata-se,
pois, de duas formas de empirismo: um
empirismo psicologizante
, cujo modelo
podemos identificar, por exemplo, nos desdobramentos da filosofia britânica a partir
da influência de Locke, do qual se falou no capítulo anterior, e um empirismo
externalista
, representado por Mill, que pretende retirar do reino da subjetividade a
fundamentação da certeza do conhecimento – não devemos esquecer que Mill,
diferentemente das conclusões que outros autores, sobretudo Hume, extraíram de
uma epistemologia empirista, tinha total aversão ao ceticismo
139
e acreditava que o
princípio da indução fosse suficiente para evitar uma tal conclusão. De acordo com
nossa hipótese, que já foi mencionada, Frege se limita a criticar o empirismo de Mill;
e, mais do que isso, o empirismo de Mill, criticado por Frege, em muitos e
139
Há uma passagem na
An Examination...
em que Mill expõe sua posição sobre o ceticismo:
“That
imaginary being, a complete Sceptic, might be supossed to answer, that perhaps we do not know anything
at all. I shall not reply to this problematical antagonist in the usual manner, by telling him that is he foes
not know anything, I do
. (pag. 125)
148
importantes sentidos, fornece a Frege elementos preciosos para sua própria crítica ao
psicologismo.
De acordo com o que foi exposto até aqui, podemos estabelecer a principal
característica do antipsicologismo de Frege:
a) a distinção precisa, em lógica, entre causas psíquicas e razões demonstrativas;
Para estabelecer tal distinção, responsável pela demarcação das fronteiras entre
lógica e psicologia, Frege necessita servir-se:
b) de uma semântica objetiva, ou seja, uma semântica na qual os significados dos
termos não sejam representações, e, portanto, as representações causadas nos
sujeitos pelos termos da linguagem não exerçam papel algum no
estabelecimento do sentido proposicional; e
c) do estabelecimento de uma relação intrínseca da Lógica com a
verdade
, ou,
como Frege prefere dizer, com as
leis do ser verdadeiro
.
Na presente seção, nosso objetivo será verificar qual é a posição de Stuart Mill com
relação aos três pilares do antipsicologismo fregeano exposto acima. Comecemos pelo
primeiro: como pudemos verificar no início deste trabalho, Mill, após ter
mencionado um suposto duplo caráter da lógica - a saber, sua definição como arte e
ciência do raciocínio - só levou em consideração, no decorrer de suas explanações,
um desses dois aspectos. A parte científica da lógica seria algo como a análise dos
processos mentais envolvidos no ato do raciocínio e a outra parte seria algo como um
cânon objetivo a partir do qual os sujeitos pensantes devem guiar-se para raciocinar
corretamente; estaria, pois, preocupada com a justificativa das inferências. É
importante notarmos que, logo após ter estabelecido essa dúplice característica da
Lógica, Mill somente desenvolve aquilo que ele mesmo denominou lógica enquanto
arte
. Isso, na medida em que define a lógica como ciência da prova e da justificativa.
149
Somente o que pode justificar inferências são regras que estabelecem, de alguma
maneira, a relação entre verdades dadas e suas conseqüências. E certamente aí as
explicações causais dos processos psíquicos não podem interferir. Mill, ao seu modo,
soube enxergar a necessidade de se distinguir a análise dos processos mentais, as
explicações causais a respeito do que se passa no intelecto dos seres pensando quando
raciocinam, daquilo que pode justificar a correção dos raciocínios. A lógica, como
vimos, deve estar voltada para todo o conhecimento que somos capazes de obter,
desde que não sejam conhecimentos intuitivos e imediatos, mas conhecimentos
obtidos por meio de inferências. E a lógica deve ser o juiz de tais inferências,
devendo julgar de acordo com determinadas regras. Ora, na medida em que
perguntamos pelo
status
dessas regras, esbarramos no empirismo radical milliano,
uma vez que nosso autor busca derivar tais regras a partir da observação do mundo
exterior. Mas é importante notarmos que o ponto de divergência explícito entre
Frege e Mill nesse particular está relacionado tão somente ao
status
epistemológico
das leis da lógica, e não à uma suposta confusão, cometida por Mill, entre processos
psíquicos e razões demonstrativas. Mill é empirista e Frege racionalista; portanto,
Mill defende uma fundamentação empírica para asregras da lógica, ao passo que
Frege defende sua natureza objetiva, racional e independente de qualquer
observação. Porém, no que tange à delimitação dos campos da lógica e da psicologia,
essa divergência de princípio não é a mais relevante. Frege e Mill discordam com
respeito ao
status
epistemológico dos princípios lógicos, mas não no que diz respeito
ao papel que exerce a lógica no conjunto das atividades humanas, nem em sua
relação com a psicologia, se entendermos por psicologia, a análise dos processos
mentais.
Como foi afirmado mais atrás, há sentidos possíveis nos quais Mill pode ser
considerado um psicologista: ele afirma com todas as letras que a lógica inclui uma
150
etapa científica na qual os processos psicológicos devem ser abordados. Mas isso não
é o mais importante; importa, pois, salientar aqui simplesmente que Mill enuncia
aquele que será um preceito metodológico fundamental para o antipsicologismo
fregeano: a distinção precisa que deve existir entre, de uma lado, explicações causais
dos processos subjetivos envolvidos no ato do raciocínio e, do outro, as razões que
justificam a inferência. Acredito, pois, que o acento deve ser dado não no fato de
Mill ter afirmado que a lógica possui uma parte científica que engloba a análise dos
processos mentais; se o fizermos seremos direcionados a uma posição que enxerga na
lógica milliana uma posição psicologista. A diferença fundamental entre Mill e Frege
neste particular é que Mill realizou sua distinção no âmbito da própria lógica,
dizendo que as duas abordagens constituem duas partes dessa disciplina, ao passo que
Frege faz sua distinção excluindo aquilo que Mill denomina ‘parte científica’ da
lógica, relacionando-a tão somente à psicologia. Mas, volto a salientar, Mill afirma
que a lógica possui um ‘parte científica’, mas quando propõe uma definição mais
precisa de lógica, a define como tendo por incumbência justificar as inferências, o
que descarta, segundo a própria organicidade do
System of logic
, a análise dos
processos mentais. Nesse sentido, acredito que podemos enxergar em Mill muito
mais um aliado de Frege, nesse particular, do que o adversário.
No que diz respeito ao ponto b), à tese fregeana de que as representações
subjetivas em nada influenciam na determinação do sentido proposicional, vemos
também que nesse ponto Mill antecipou Frege de uma forma importante. A tese,
milliana exposta no capítulo II do presente trabalho, de que os significados dos
nomes não podem ser idéias, tal como determinara Locke e seu séqüito, retira
qualquer determinação psicológica no estabelecimento do sentido proposicional. E,
mais uma vez aqui, vemos, ainda que de forma embrionária, o esforço por parte de
Mill de separar o joio do trigo: ele não nega que, de fato, idéias são reivindicadas
151
quando os sujeitos em geral se utilizam da linguagem, que ao ouvir uma determinada
palavra os sujeitos em geral representam determinadas imagens mentais. Mas isso
não significa que no
uso proposicional
na linguagem tais entidades subjetivas
exerçam alguma função relevante. Foi levantada, no capítulo II, a pergunta sobre o
que determina, em Mill, a unidade do sentido proposicional; e decidimos que tal
sentido se constitui no âmbito da linguagem e de suas condições de significatividade,
e não no interior do mundo psicológico dos sujeitos. Apesar de Mill não ter chegado
ao extremo fregeano de postular a anterioridade da proposição com relação às suas
partes (embora, algumas passagens do
System of logic
, como mencionamos, parecem
sugerir isso), e não ter delegado uma objetividade racional ao pensamento expresso
pelas sentenças, ele deu, sem dúvidas, o primeiro passo rumo à despsicologização do
sentido proposicional. A enunciação proposicional por parte do sujeito (juízo) tem
por objetivo apresentar aquilo que o sujeito crê ser verdadeiro. E Mill viu claramente
que a verdade não é uma propriedade das nossas representações, mas deve estar
vinculada, de forma direta e imediata, com os fatos do mundo exterior. Entre a
proposição e mundo exterior ao qual a proposição se refere não existe a mediação do
universo psicológico, mas existe simplesmente a carga semântica dos nomes
conotativos, principal responsável pela constituição do sentido proposicional. Numa
proposição, de acordo com Mill, não são relacionadas idéias por meio da cópula, mas
são relacionados nomes. E esses nomes, graças à teoria da conotação, por si só, sem a
necessidade de qualquer intervenção subjetiva, são capazes de constituir um sentido
proposicional, uma vez associados pela cópula. Os nomes trazem em si algo que os
tornam autônomos em relação ao universo psicológico, e esse ‘algo’ é a sua
conotação. Creio, por isso, que também no que se refere ao papel (ou melhor, à falta
de papel) exercido pelas representações na constituição do sentido proposicional,
Mill antecipou Frege de uma maneira importante, apesar de todas as divergências de
princípio existente entre os dois autores.
152
No que tange ao ponto c), à vinculação por parte de Frege da lógica com as
leis do ser verdadeiro
, à determinação de que a lógica trabalha com vistas
unicamente a justificar verdades demonstrativas, podemos, mais uma vez, encontrar
pontos de contato entre o que dizem Mill e Frege, apesar de utilizarem vocabulários
conceituais bem distintos. Como vimos, Mill vincula a lógica à justificação das
verdades inferidas. A função da lógica é exclusivamente decidir se verdades extraídas
a partir de outras verdades dadas o foram de forma correta e justificada. Ora, isso
somente pode significar que, para a lógica, somente deve ser relevante aquilo que de
alguma forma exerce alguma função positiva com relação à derivação de tais
verdades. Se a lógica deve julgar se, a partir das premissas dadas, as conclusões foram
extraídas de forma cabal, claro deve estar que somente interessa à lógica o que for
relevante para a justificação das verdades. As leis da lógica são as leis que garantem a
verdade das proposições inferidas. É certo que Mill delega às leis da lógica um
status
empírico, o que vai radicalmente contra o racionalismo fregeano. Mas - creio que
não haja dúvidas quanto a isso - vincular a lógica à justificação das verdades inferidas
nada mais pode significar do que vincular a lógica às
leis da verdade
, leis capazes de
estabelecer a derivação de verdades a partir de outras verdades dadas. Ou seja, as leis
da lógica, sejam elas leis eternas e
a priori
como quer Frege, sejam elas leis obtidas a
partir da observação por indução, como quer Mill, devem ser leis que,
exclusivamente, decidam ou ajudem a decidir acerca da correção ou não dos
raciocínios. E isso somente pode ser compreendido se tais leis possuírem uma relação
orgânica com a verdade, sendo, portanto, utilizando uma expressão fregeana,
leis do
ser verdadeiro
.
Pelo que foi exposto até aqui, talvez esteja clara aquela que é a principal tese
defendida no presente trabalho: que, ao menos aos olhos de Frege, a lógica de Mill
não é uma lógica psicologista; que o empirismo milliano não é um empirismo
153
psicologizante, como o de Locke, por exemplo; e que a tentação que se tem de
relacionar a critica fregeanas a Stuart Mill à critica fegeana ao psicologismo nada
mais é do que fruto de uma precipitação: a de vincular, sem mais, empirismo e
psicologismo.
Na próxima seção, abordaremos algumas passagens dos
Grundlagen der
Arithmetik
nas quais Frege dirige críticas contundentes a Stuart Mill. Buscaremos,
pois, demonstrar que o teor de tais críticas não passa por algum tipo de acusação de
psicologismo. O que Frege critica clara e abertamente é o empirismo de Mill, sua
incapacidade de fornecer uma alternativa satisfatória àquilo que ele foi tão feliz em
refutar: o subjetivismo psicoligizante, representado por aquilo estamos chamando de
conceitualismo. Ao retirar do universo subjetivo o fundamento da objetividade do
discurso proposicional, Mill não enxergou a via da objetividade não real que foi mais
tarde explorada por Frege. A partir da consideração das posições millianas com
respeito ao
status
das proposições aritméticas e dos princípios a partir dos quais essa
ciência pode ser demonstrada, apontaremos qual o teor da crítica contundente de
Frege.
III.3.1. Aritmética e empirismo
Na seção que engloba os parágrafos 5 a 8 dos
Grundlagen der Arithmetik
,
Frege pergunta se as fórmulas aritméticas são passíveis de demonstração ou se são
verdades indemonstráveis. Vimos, à exaustão, que o projeto fregeano de
fundamentação da aritmética joga em favor da demonstrabilidade das verdades
aritméticas até que se remonte aos seus primeiros princípios, que devem ser verdades
154
lógicas elementares ou definições obtidas no âmbito da própria lógica. Ao tratar da
opinião de alguns filósofos sobre este ponto, Frege se refere à posição de Mill:
Dever-se-ía pensar que as fórmulas aritméticas são sintéticas ou analíticas, a
priori ou a posteori, conforme o sejam as leis gerais sobre as quais se assenta a
demonstração. John Stuart Mill tem, contudo, outra opinião. Na verdade,
desde o início ele parece, tal como Leibniz, pretender fundamentar a ciência
sobre definições, pois define os números singulares como este; mas seu
preconceito de que todo saber seja empírico arruina imediatamente a
concepção correta. Ele nos informa que essas definições não o são em sentido
lógico, que elas não apenas estipulam o significado de uma expressão, mas
assertam um fato observado.
140
Ora, o que vemos aqui? Uma clara crítica ao empirismo preconceituoso de Mill e não
uma crítica à maneira como ele encara a demonstrabilidade das proposições
aritméticas. O que Frege critica claramente é o
status
delegado por Mill às definições
envolvidas na aritmética a partir das quais suas verdades devem ser deduzidas, e não
o procedimento de assentar a aritmética sobre definições. Como podemos ler, o
empirismo radical de Stuart Mill fez com que se estragasse uma postura que Frege
considerou inicialmente correta. Frege critica a postura milliana de querer derivar as
definições envolvidas na aritmética dos fatos observados, de não admitir que possam
haver definições que se baseiem em princípios puramente racionais. Os argumentos
que Frege fornecerá na seqüência do trecho citado estão todos voltados a demonstrar
que não há fatos observados que justifiquem e fundamentem as definições envolvidas
na aritmética. E aqui, como parece claro, não se faz nenhuma referência a quaisquer
participações de processos subjetivos ou explicações causais substituindo as
140
“Man sollte denken, dass die Zahlformeln synthetisch oder analythisch, aposteriori oder apriori sind, je
nachdem die allgemeinen Gesetze es sind, auf die sich ihr Beweis stützt. Dem steht jecoch die Meinung
John Stuart Mill’s entgegen. Zwar scheint er zunächst wie Leibniz die Wissenschaft auf Definitionen
gründen zu wollen, da er die einzelnen Zahlen wie dieser erklärt; aber sein Vorurtheil, dass alles Wissen
empirisch sei, verdirbt sofort den richtigen Gedanken wieder. Er belehrt uns nämlich, dass jene
Definitionen keine im logischen Sinne seien, das sie nicht nur dir Bedeutung eines Ausdruckes festsetzen,
sodern damit auch eine beobachtete Thatsache behaupten”
(idem; #7)
155
demonstrações. Mas tão somente uma crítica epistemológica com respeito à origem
das definições aritméticas. Mais atrás, quando tratávamos da concepção fregeana da
aritmética enquanto ciência analítica dentro do contexto de logicismo, afirmamos
que, conceber a aritmética como ciência demonstrativa, deduzida a partir do
conceito de número natural, mas definir número natural a partir de categorias não
lógicas, em nada adiantaria para os objetos do projeto logicista fregeano de
fundamentar a aritmética enquanto ciência analítica. É mais ou menos isso o que faz
Stuart Mill com relação à aritmética: ele pretendeu fornecer ao conceito de número
uma natureza empírica; não enxergou, tal como fizera Frege, que a absoluta
universalidade da aritmética e seus princípios não podem derivar de outra fonte que
não princípios racionais eternos e imutáveis. Vimos, com relação à geometria, qual
era o fundamento de sua sinteticidade: embora seja uma ciência demonstrativa, parte
de princípios que dependem de fatores extra-lógicos e extra-racionais, no caso, a
intuição pura do espaço. Mill, por seu turno, com relação à aritmética, também
colocou elementos de ordem extra-racional em sua base. Pretendeu derivar os
princípios da aritmética a partir da observação empírica. Vemos aqui aquilo que
estamos apontando insistentemente no presente capítulo: a principal divergência
entre Frege e Mill, no que diz respeito ao seu projeto logicista, refere-se ao
status
epistemológico dos princípios a partir do qual se edificam a lógica e a aritmética;
porém, uma vez estabelecidos esses princípios, as divergências deixam de ser
significativas.
Entre os parágrafos 9 e 11 dos
Grundlagen der Arithmetik
, ainda com o
objetivo de estabelecer qual a natureza das proposições aritméticas, Frege considera e
rebate a tese de que as verdades aritméticas são indutivas. Mais uma vez aqui, o
‘adversário’ é Mill. Vimos que o empirismo objetivista de Mill optou por não
fundamentar a objetividade da experiência empírica e do discurso sobre o mundo a
156
partir de categorias psicológicas, tal como fizera Locke. Portanto, aquilo que os
racionalistas denominam princípios elementares da razão deve ser obtido por meio
da observação dos fatos do mundo, mas sua ‘transformação’ em postulados a partir
dos quais as chamadas ciências demonstrativas se edificam não podem ser
determinados por meio de processos subjetivos, da relação entre idéias. O que
garante a generalização a partir das experiências particulares não pode ser a
formação, por parte dos sujeitos, de idéias gerais, mas deve estar baseada sobre outro
fundamento. Para Mill, tal fundamento é a indução. A generalização, que no modelo
lockenano é um processo psicológico, em Mill se torna um processo lógico-indutivo.
O teor da crítica fregeana ao empirismo de Mill, aqui, repousa numa crítica ao
estatuto da indução. Frege tem razões suficientes para considerar que a indução não
pode ser o fundamento das verdades aritméticas e o teor dessa crítica repousa na
constatação de que a indução se assenta numa teoria das probabilidades; por isso,
pressupõe as leis da aritmética. A indução é um raciocínio enumerativo, depende de
uma certa quantidade de experimentos particulares para que se estabeleça a
conclusão geral. A conclusão indutiva estará melhor estabelecida quanto maior o
número de premissas particulares a corroborá-la. E isso não se consegue sem as leis
gerais da aritmética. Ou seja: Mill busca fundamentar a aritmética na indução, mas
ocorre justamente o contrário, pois, segundo Frege, é a indução que se fundamenta
na aritmética
141
.
141
Vernunthlich kann das Verfahren de Induction selbst nur mittels allgemeiner Sätze der Arithmetik
gerechtfertigt werden, wenn man darunter nicht eine blosse Gewöhnung versteht. Diese hat nämlich
durchaus keine wahrheitverbürgende Kraft. Während das wissenchaftliche Verfahen nach objectiven
Maasstäben bald einer einzigen Bestätigung eine hohe Wahrscheinlichkeit begründet findet, bald
thausendfaches Eintreffen fast für werthlos erachtet, wird die Gewöhnung, durch Zahl und Stärke der
Eindrüke und subjective Verhältnisse bestimmt, die keinerlei Recht haben, auf das Urtheil Einfruss zu
üben. Die Induction muss sich auf die Lehre von der Wahrscheinlichkeit stützen, weil sie einen Satz nie
mehr als wahrscheinlich machen kann. Wie diese Lehre aber ohne Voraussetzung arithmetischer Gesetze
entwickelt werden könne, ist nicht abzusehen”
(idem: #10)
157
Pois bem: a aritmética deve ser demonstrada a partir de primeiros princípios e
esses não podem ser obtidos por meio da indução. Logo, não pode ser propriedade
das coisas exteriores. De acordo com Frege, o problema ocorre porque
Mill confunde sempre as aplicações que se podem fazer das proposições
aritméticas, freqüentemente físicas e pressupondo fatos observados, com a
própria proposição puramente matemática.
142
Assim sendo, Frege utiliza a segunda seção do capítulo II dos
Grundlagen der
Arithmetik
para refutar a tese, atribuída a Mill, de que os números são propriedades
das coisas exteriores. E o principal argumento utilizado por Frege para isso é também
precioso para que sua própria definição de número natural seja estabelecida. Frege
nos diz:
De fato, como diz Mill, duas maçãs são fisicamente diferentes de três maçãs,
dois cavalos diferem também de um cavalo, cada um sendo um fenômeno
distinto. Mas deve-se concluir daí que a doisidade ou a tresidade sejam algo
físico? Um par de botas pode ser o mesmo fenômeno sensível e visível de
duas botas. Temos aqui uma diferença numérica e que não corresponde a
nenhuma física; pois dois e um par não são absolutamente o mesmo, como
Mill, de modo singular, parece acreditar. Enfim, como é possível que dois
conceitos se distingam fisicamente de três conceitos?
143
Ora, no que consiste, então, a principal objeção de Frege com relação a Mill nesse
particular? Consiste na acusação de que Mill não foi capaz de enxergar que os
números são propriedades dos conceitos e não do mundo físico exterior. O mesmo
142
“Mill verwechselt immer Anwendugen, die man von einem arithmethischen Satze machen kann,
welche oft physikalisch sind und beobachtete Thatsachen zur Voraussetzung haben, mit dem rein
mathematischen Satz selber”
(idem; # 9)
143
“In der That sind, wie Mill sagt, zwei Aeplfel von drei Aepfeln, zwei Pferde von der einem Pferd
physikalisch verschieden, ein davon verschiedenes sichtliches und fühlbares Phänomenon. Aber ist
daraus zu schliessen, dass die Zweiheit, Dreiheit, etwas Physikalisches ist? Ein Paar Stiefel kann dieselbe
sichtbare und fühlbare Erscheinung sein, wie zwei Stiefel. Hier haben wir einen Zahlenunterschied, dem
kein physikalischer entspricht; denn zwei uns Ein Paar sind keineswegs desselbe, wie Mill sonderbarer
Weise zu glauben scheint. Wie ist es endlich möglich, dass sich zwei Begriffe von drei Begriffen
physikalisch unterscheiden?”
(idem; # 25)
158
fato físico pode ser subjugado a partir de conceitos distintos. O mesmo fato físico
pode se apresentar como um time de futebol ou onze jogadores, pois o que determina
o juízo numérico não é o fato físico em si, mas os conceitos que são reivindicados na
‘leitura’ do fato físico observado. É possível utilizar os números aplicados aos fatos
físicos, mas somente no momento em que ele segue acompanhado de um conceito ao
qual, em realidade, se refere. Os números, embora muitas vezes aplicados aos fatos
físicos, também são aplicáveis a coisas não físicas. Vimos, quando falávamos da
analiticidade da aritmética, comparando-a com a geometria, que uma das coisas que
jogaram em favor da postura fregeana em afirmar a racionalidade essencial da
aritmética foi sua aplicabilidade universal. Já a geometria, por depender de nossa
intuição pura do espaço, tem sua aplicabilidade restrita ao universo físico exterior; a
aritmética, por estar fundamenta a partir de princípios racionais objetivos, é
aplicável a todo reino do pensável, e não só ao mundo físico. Ora, a acusação de
Frege com relação a Mill repousa aqui na incapacidade milliana em desvincular a
aritmética do reino da sensibilidade espacial e, consequentemente, em notar
aplicabilidade universal da aritmética. E de acordo com Frege, essa aplicabilidade
universal da aritmética repousa na aplicabilidade universal daquilo que Frege
denomina “conceitos”, os verdadeiros objetos dos juízos numéricos.
A partir do que foi exposto até aqui, creio ter ficado claro qual o objeto das
críticas fregeanas a Stuart Mill: exclusivamente seu empirismo, e não um suposto
psicologismo. O empirismo milliano não é psicologista e talvez tenha sido esse o
principal incômodo causado em Frege pelo
System of logic
: Mill deu um passo
importante na medida em que despsicologiza a lógica e a aritmética, mas esse passo
somente o levou à metade do caminho, pois o que foi retirado do sujeito foi jogado,
sem mais, para o mundo exterior:
159
Chegamos à conclusão de que o número não é uma coisa física ou espacial,
como os aglomerados de pedrinhas e bolinhas de Mill, nem tampouco
subjetivo, como as representações, mas não sensível e objetivo.
144
A passagem acima é clara e nos mostra que são dois os adversários de Frege: Mill de
um lado, e o psicologismo do outro. E as duas críticas não se confundem, mas se
contrapõem, pois marcam exatamente o ponto ao qual Frege que chegar: a
objetividade não empírica. Faltou a Mill ter dado um passo a mais: sua aversão ao
subjetivismo idealista típico dos modernos estava absolutamente correta. O que,
segundo Frege, estragou a posição milliana foi o inglês não ter enxergado que, entre
a subjetividade psicológica e o mundo físico, há uma terceira alternativa. Por isso,
acredito que Frege estava pensando também em Mill quando enunciou, na
Introdução de sua grande obra:
Surpreenderam-me muitas vezes exposições que, aproximando-se muito de
minha concepção em um ponto, em outros divirjam delas tão fortemente.
145
De fato, Mill chegou muito próximo de Frege; talvez na metade do caminho. Mas
seu empirismo, inconseqüente aos olhos de Frege, fez com que, em outros aspectos,
sua filosofia se situasse numa posição tão distante daquela do fundador da lógica
contemporânea.
144
“Und wir kommen zu dem Schlusse, dass die Zahl weder räumlich und physikalisch ist, wie Mills
Haufen von Kieselsteinen und Pfeffernüssen, noch aunch subjectiv wie die Vorstelungen, sodern
unsinnlich und objective”
(idem: #27)
145
“Ich habe mich manchmal gewundert, dass Darstellungen, die in Einem Punkte meiner Auffassung so
nahe kommen, in andern so stark abweichen”
(idem; Einteilung)
160
Conclusão
A conclusão a que chegamos, ainda que parcial, leva-nos a identificar a Lógica
de Stuart Mill como um importante momento nos esforços que possibilitaram o
advento daquilo que se acostumou chamar de filosofia contemporânea, sobretudo em
sua vertente analítica. Se é certo que o grande desafio de parte da filosofia do século
de XIX foi, em algum sentido, superar o agonizante modelo filosófico moderno
baseado na epistemologia e na psicologia em favor de uma filosofia voltada para
análise da linguagem, justamente pela incapacidade que se tornou evidente de se
fundamentar a objetividade do conhecimento e do discurso a partir do sujeito, então
podemos certamente encontrar nas páginas do Sy
stem of logic
alguns
insights
que
vieram abrir caminho para o
linguitic turn
, para a guinada da filosofia em direção à
linguagem. E como muitos filósofos que estabeleceram seus pensamentos em
períodos de transições importantes, e que de alguma forma contribuíram com elas,
Mill e sua lógica encontram-se num nível ainda embrionário, e, por isso mesmo,
confuso com relação a muitos dos problemas que os desdobramentos futuros da
filosofia vieram a estabelecer. Conforme buscamos mostrar, Mill coloca uma
semântica requintada e progressista a serviço de uma sintaxe lógica ultrapassada e já
claramente insuficiente, e de um empirismo tão radical quanto inconseqüente; ao
mesmo tempo, estabelece uma importante distinção entre aquilo que deve ser da
alçada da lógica em oposição ao que é próprio psicologia, mas acaba não enxergando
com clareza que deve se tratar de uma divisão a ser estabelecida fora dos domínios da
lógica, e não como uma mera subdivisão da lógica em duas ‘faces’. Na realidade,
embora muitos de seus
insights
tenham sido corretos e tenham antecipado teses que
se tornariam célebres a partir de Frege, Mill não teve ao seu dispor elementos
conceituais suficientemente elaborados para faze-lo perceber qual era o inimigo a ser
161
batido e o problema a ser resolvido. Diferentemente do que ocorrera com Frege, para
quem o antipsicologismo era uma bandeira muito clara - e que se estabeleceu, graças
ao seu projeto logicista, como uma necessidade sistemática inexorável - Mill não viu
com clareza esta necessidade, e nem comungou da mentalidade que veio a impô-la.
Seu projeto filosófico não passava pelo antipsicologismo, embora sua filosofia tenha
contribuído, à sua maneira, para seu advento. Talvez isso justifique o fato de que
Mill, mesmo tendo ido tão longe em alguns pontos, tenha se mantido, em outros, tão
distante dos resultados que foram alcançados por Frege. Como bem expressaram
Knealle & Knealle no clássico
The developement of logic
, Mill mistura o novo e o
velho numa confusão bizarra.
146
Apesar disso, o que é novo no pensamento lógico de
Mill é suficientemente importante para estabelecermos que ele foi um pensador
decisivo para o advento da filosofia contemporânea.
Deve ser salientado, ademais, que o trabalho que se seguiu não contém a
totalidade da pesquisa que fora proposta quando da elaboração do projeto de tese
apresentado no início do curso. Não fossem as condições objetivas desfavoráveis e a
necessidade inexorável de cumprimento dos prazos, o presente trabalho teria ainda
uma quarta parte, no qual seria analisada a influência exercida pela teoria milliana da
conotação na elaboração, por parte de Frege, da distinção entre
sentido
e
referência
.
Como sabemos, será com essa teoria que Frege resolverá pendências importantes
referentes à semântica que dá suporte à sua lógica. E sabemos que as leituras que
Frege realizou do
System of logic
foram de grande valia também para a realização de
seus projetos semânticos. Na medida em que não se recorre mais ao universo
subjetivo na tentativa de dar conta de coisas como a significatividade dos termos da
linguagem e a unidade do sentido proposicional, fez-se necessária a introdução de
categorias extra-psicológicas, de categorias semânticas capazes de explicar a relação
146
Cap. V, #5
162
que deve existir entre o signo e sua referência, que não é mais considerado como
mera representação subjetiva. Algo deve tomar o lugar dos processos psíquicos na
explicação da maneira como os nomes relacionam-se aos seus referentes; esse algo,
no sistema milliano, é a carga semântica dos nomes conotativos, e em Frege, o
conteúdo descritivo que constitui o sentido dos nomes. Embora não seja possível, ao
menos sem muitas ponderações, assimilar simplesmente a
conotação
milliana com o
sentido
fregeano (e por isso investigar essa relação se justifica), parece não haver
dúvidas que ambas categorias ocupam o mesmo espaço sistemático, cumprem uma
função análoga no que diz respeito à maneira como os nomes devem significar e à
sua relação com entidades psíquicas. Creio, por isso, que, dentre os interesses que
motivaram a pesquisa que desembocou no presente trabalho, é de suma importância
a abordagem da relação entre Mill e Frege também nesse particular.
Marília, abril de 2006
163
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