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Laura Marques Castelhano
A perda do emprego, suas implicações subjetivas e as conseqüências para o laço
social: uma contribuição psicanalítica.
Mestrado em Psicologia Social
PUC / São Paulo 2006
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Resumo
O desemprego é uma das conseqüências mais perversas nesse cenário de constantes mudanças
no mundo do trabalho. Não estamos mais lidando com um problema que se apresenta de
forma passageira. O desemprego hoje é estrutural e sua problemática está atrelada à questão
do lugar que o sujeito ocupa na sociedade e à forma de sua inserção no laço social.
Investigar a perda do emprego e as conseqüências para o sujeito, alertando para o sofrimento
e a desestrutura causada pela ruptura, é um dos pontos principais desta pesquisa.
Do ponto de vista da psicanálise, isso implica compreender o modo pelo qual trabalho e
emprego se articulam com a subjetividade, em função dos laços sociais, implicando conceitos
como identificações, narcisismo, desamparo, ideal de ego, insígnias fálicas, entre outros.
Durante o meu percurso, percebi que muitos dos desencadeamentos, proporcionados pela
ruptura do emprego, devem-se às relações que, no capitalismo contemporâneo, se estabelecem
entre os sujeitos e a organização em que trabalham, com repercussões relevantes para o modo
como eles se posicionam no laço social.
O sujeito, na organização, está implicado numa relação conflituosa, onde ilusões de proteção,
amor e poder se desfazem no momento em que a relação é rompida. O rompimento desta
relação com a demissão faz com que surjam sentimentos de desamparo, rejeição, culpa e
impotência, evidenciando o medo e a angústia do futuro, destruindo as ilusões de proteção e
os propósitos de vida.
Palavras-chave: desemprego, organização, trabalho, capitalismo, subjetividade, psicanálise,
psicologia social.
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Abstract
The unemployment is one of the worst consequences of this context of constant changes in the
employment world. We are not dealing with a temporary situation. The unemployment is
nowadays structural and its basis is linked to the position of the person in the society and the
way of his/her insertion in the social network.
Analysing the loss of work and the consequences for the person, mainly the suffering and
imbalance caused by this changing, is one of the main points of this study.
From the point of view of the psychoanalysis, this means understanding the way work and
employment face the subjectivity, acording to the social network, embracing definitions such
as identifications, narcissism, abandonment, concept of ego, false insignia, among others.
During my research, I realised that many of the consequences of the the rupture of the
employment is due to how the relations, in the contemporary capitalism, are built between the
people and the organization where they work, echoing relevantly in the position they ocupy in
the social network
The person, in the organization, is inserted in a conflitous relationship, in which illusions of
protection, love and power, desappear by the time the relation is ceased. The rupture of this
relationship, with the dismission, leads to feeling of abandonment, rejection, guilty and
impotence, highlighting the fear and anguish of the future, destroying the ilusions of the
protection and aims for their life.
Key-words: unemployment, organization, work, capitalism, subjetivity, psychoanalysis,
social psychology.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 01
I. DO TRABALHO FORÇADO À EXALTAÇÃO DO TRABALHO 16
1.1. As origens do trabalho livre e o desenvolvimento do sistema capitalista 16
1.1.1. E do outro lado do mundo ... o trabalho escravo 18
1.2. O trabalho como mercadoria – a base da industrialização moderna 21
1.2.1. A condição operária do final do séc. XIX e início do séc. XX 23
1.3. A racionalização do trabalho e do tempo e as repercussões para o trabalhador 26
1.3.1. A industrialização no Brasil 29
1.3.2. As conseqüências do trabalho fracionado 30
1.4. A valorização do Trabalho - o trabalho para o homem moderno
32
II. O PÓS FORDISMO, A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E O DESEMPREGO NO
BRASIL 35
2.1. A nova gestão de trabalho e as conseqüências para o emprego 37
2.1.1. As mudanças na classe trabalhadora 39
2.1.2. As novas faces do desemprego 41
III. A ORGANIZAÇÃO DO MEDO 45
3.1. a intensificação do trabalho e o aumento do sofrimento subjetivo 50
3.2. a neutralização da mobilização coletiva 53
3.3. a emergência da estratégia coletiva do silêncio 54
3.4. o individualismo e o agravamento da competição 56
5
IV. ESTUDOS E PESQUISAS DE RELEVÂNCIA SOBRE O DESEMPREGO E
CONSEQÜÊNCIAS SUBJETIVAS E PSICOSSOCIAIS 59
4.1. Pesquisas brasileiras 59
4.1.1. Desemprego e Identidade 59
4.1.2. Desemprego e Exclusão Social 60
4.1.3. Desemprego e Programas de Qualificação 62
4.1.4. Desemprego e Movimentos Sociais 63
4.1.5. Desemprego e Subjetividade 65
4.1.6. Desemprego e Saúde Mental 73
4.1.7. Desemprego e outras abordagens 77
4.2. Pesquisas Internacionais relevantes 78
V. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS 87
5.1. Psicanálise, ciência e sociedade 87
5.2. Aproximações entre psicanálise e marxismo 90
5.3. Linhas gerais para a pesquisa 94
5.3.1 Linhas Gerais para entrevista com sujeitos 96
5.3.2 Sobre os sujeitos 97
5.4. Temas abordados na análise das entrevistas 104
VI. DESFAZEM-SE AS ILUSÕES: A ORGANIZAÇÃO, UM SISTEMA ILUSÓRIO DE
PROTEÇÃO, AMOR E PODER 107
6.1. A perda da proteção e de um propósito de vida idealizado 113
6.1.1. Perda da estrutura organizadora da vida diária do sujeito e da família 122
6.2. A perda do amor: ilusões de laços de amor presentes na relação sujeito
e organização 127
6.2.1. a perda dos vínculos fraternais e a rejeição do grupo 137
6
6.3. Perda de um lugar de reconhecimento social de onipotência e poder 143
VII. A VIVÊNCIA, A ELABORAÇAO DO LUTO E OS PERIGOS DA PERDA 157
7.1. O luto : um processo 157
7.1.1. O choque da ruptura, o impacto da notícia 160
7.2 Os perigos da perda 169
7.2.1 a angústia, sinal de desamparo 169
7.2.2 A demissão: vivência de punição e o sentimento de culpa 180
7.2.3. A perda e dissolução temporária ou permanente de si 186
7.3. “Ressurgindo das cinzas” – Mito de Fênix 194
VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS 209
IX. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 216
ANEXOS 228
Anexo 1 – Entrevista de A. 228
Anexo 2 – Entrevista de E. 237
Anexo 3 – Entrevista de Ge. 244
Anexo 4 – Entrevista de G. 253
Anexo 5 – Entrevistas de JR. 260
Anexo 6 – Entrevista de N. 267
Anexo 7 – Entrevista de R. 275
Anexo 8 – Entrevista de S. 282
7
INTRODUÇÃO
“Os tormentos do trabalho perdido são vividos em todos os
níveis da escala social. Em cada nível, eles são sentidos como
uma prova opressiva que parece profanar a identidade de
quem a sofre, imediatamente vem o desequilíbrio e -
injustamente – a humilhação, logo depois, o perigo”.
(Forrester, 1997, p. 47)
Testemunhamos, desde a década de 90, um grande movimento de reestruturação nas
estruturas organizacionais, resultando em profundas mudanças nas relações de trabalho, com
impacto direto no emprego, causando especialmente demissões em massa.
As pesquisas relacionadas ao desemprego e suas conseqüências, sempre acompanharam os
momentos de crises econômicas. Estramiana (1992), aponta que o primeiro grande grupo de
estudos sobre o desemprego, e suas conseqüências psicossociais, surgiu após a depressão
econômica dos anos 30 e ressurgiu em meados dos anos 70, como conseqüência direta da
recessão econômica.
Mas, a falta de continuidade dos estudos e a preocupação pautada somente em momentos de
turbulência econômica, produziram um significante atraso no avanço dos estudos
psicossociais e conseqüências subjetivas do desemprego. Por ser visto como um problema
cíclico e situacional, com determinantes bem estabelecidos, ao estudarem o desemprego,
esqueceram-se de analisar as conseqüências para o sujeito desempregado.
Segundo Estramiana (1992), não foi só o reducionismo econômico que impediu o avanço dos
estudos do desemprego sob o ponto de vista do desempregado. Outros fatores, como a questão
da polêmica sobre a quantificação de desempregados, a atribuição da responsabilidade do
desemprego às próprias pessoas e a consideração do desemprego como conseqüência
inevitável, sugerindo um fatalismo, também contribuíram.
Não estamos mais lidando com um problema que se apresenta de forma passageira, o
desemprego hoje é estrutural, se constituiu como um novo patamar de marginalização social.
É uma das conseqüências mais perversas que atinge o mundo em escala global.
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Investigar a perda do emprego e as conseqüências para o sujeito, e alertar sobre o sofrimento e
a desestrutura causada pela ruptura do emprego, é um dos pontos principais desta pesquisa.
Do ponto de vista da psicanálise, não há forma de atingir tal objetivo que não seja
compreendendo o modo pelo qual trabalho e emprego se articulam com os processos de
constituição da subjetividade em função dos laços sociais, implicando conceitos como
identificações, narcisismo, desamparo, ideal de ego, insígnias fálicas, entre outros.
A percepção do sofrimento do desempregado revela-se em histórias que durante sete anos
ouvi acompanhando profissionais que perderam seus empregos.
A primeira notícia que fez-me considerar que algo muito maior ocorria quando a pessoa
perdia o emprego foi uma matéria no jornal, contando que após um balanço do processo de
reestruturação ocorrido em 1995 no Banco do Brasil, resultado de um Programa de Demissão
Voluntária, ‘observaram um saldo’ de 25 suicídios em um período de apenas um ano.
Abaixo algumas notícias que os jornais noticiaram na época:
“Os bancários contabilizam 14 suicídios só em 1994 e mais alguns este ano. Há casos de extrema
dramaticidade. Um funcionário deu um tiro na cabeça no horário do expediente em uma movimentada
agência central de uma capital nordestina. Outra, embebeu com gasolina um cobertor, enrolou-se nele e
ateou fogo .... enxugar os quadros é sempre doloroso, mas às vezes necessário. Levar parte deles ao
suicídio, além de doloroso, é imperdoável”. (Rossi, 1995, p.2)
“Silveira, 38 anos, era funcionário do Banco do Brasil no município baiano de Oliveira dos Brejinhos.
Segundo o presidente do Sindicato, o funcionário suicidou-se com um tiro no peito depois que soube do
projeto de desmonte do Banco do Brasil posto em prática pelo governo.O presidente do Sindicato dos
Bancários disse também que, no último dia 4, Antônio Estanislau Silva, 46, morreu de infarto dentro da
agência de Morro do Chapéu (também na Bahia) ao constatar que seu nome estava na lista dos empregados
disponíveis”. (Francisco, 1995, p.4)
É claro que estas notícias permaneceram comigo durante anos. Pensava nestas pessoas, em
seus colegas, em seus familiares, etc. Hoje, tenho certeza, essa tragédia foi minha grande
motivação, tanto para minha atuação profissional, quanto para minha pesquisa.
9
Neste período pude me deparar com diversas histórias, situações, e até mesmo discursos. Os
‘altos e baixos’ e as crises pessoais e familiares fazem parte do cotidiano de quem está em
busca de um novo emprego.
Os sentimentos relacionados à perda fazia-os expressar a relevância e a abrangência do que o
desemprego poderia desencadear em suas vidas. “Me senti totalmente perdida” e “Sinto
mesmo é um grande vazio”, eram frases comuns quando relatavam seus sentimentos diante da
demissão.
Passei a perceber que após a demissão, os profissionais passavam por um período de
turbulência e buscavam a todo custo dar algum significado para o que estavam vivendo.
Muitos sentiam vergonha do que sentiam, outros não se permitiam sentir. Fases como: “Sinto-
me muito triste e com muita raiva”, “sinto-me descartável”, “A gente tem uma vida lá
dentro.” apontavam para uma questão importante: não expressavam somente os sentimentos
relacionados à perda, mas também sentimentos relacionados à organização.
Mas, com o tempo, o que se percebia era que alguns sentimentos novos iam surgindo. A
deparação desses sujeitos com a rejeição constante por parte dos empregadores, as
dificuldades familiares, “a própria família fica questionando”, “o retorno para casa é
difícil”; e a confrontação com uma sociedade que valoriza os que trabalham, “sinto vergonha
dos outros e fujo da pergunta: o que você faz?”, fazia-os questionar-se sobre sua própria vida,
sobre sua utilidade para a sociedade e sobre sua responsabilidade e culpa no processo.
Rever o sentido e a importância que o trabalho possuía era uma constante. Muitas vezes
percebiam o tamanho e o espaço que ocupava em suas vidas: “Trabalho é sentido para a
vida, é sentir-se útil”; “trabalho é ocupar o tempo”.
E se muitos conseguiam passar por esse período, e entendê-lo apenas como um momento a ser
esquecido, outros se afundavam em tão baixo patamar, que não havia mais espaço para nada
em suas vidas.
E como estes, muitos que acompanhei, outros que infelizmente não puderam ter nenhum tipo
de apoio, representam números em estatísticas que são divulgadas todos os dias nos jornais,
mostrando somente aos que querem ver, uma realidade triste e preocupante. Se uma
10
metrópole como a cidade de São Paulo possui mais de um milhão de desempregados
1
, possui
também um milhão de famílias sofrendo as conseqüências diretas do desemprego.
O ‘problema’ do desemprego
O século XX foi marcado por grandes acontecimentos como Guerras, depressões econômicas,
quedas de governos, etc. Foi um período de significativas transformações e, o grande marco,
sem dúvida, foi a Segunda Guerra Mundial. Não pela guerra em si, mas por todo o processo
que concretizou conflitos e tensões já existentes, que trouxe como conseqüência, grandes
transformações sociais, econômicas, política e culturais.
Após a segunda Guerra Mundial, o capitalismo teve seu grande impulso, viveu seu auge até os
anos 70 e, depois de um longo período de acumulação do capital, entrou num período que
oscilou entre tentativas de recuperação e crises em sua forma de funcionamento.
Vivia-se então, após os anos 70, um quadro crítico, que segundo Antunes (2002), era
caracterizado, entre outras coisas, pela queda da taxa de lucro; pelo esgotamento do padrão de
acumulação taylorista / fordista de produção; pela hipertrofia da esfera financeira; pela maior
concentração de capitais, graças às fusões e pela crise do ‘welfare state’
2
, ou Estado do Bem-
Estar Social.
Em resposta à crise, iniciou-se um processo de reorganização do capital, de caráter
centralizador, que foi comandado pelos países capitalistas avançados, e que possuía, como
principal ‘bandeira,’ o neoliberalismo, que se fundamentava nos princípios da propriedade
privada e do mercado livre. Intensificou-se a privatização do Estado, a desregulamentação dos
direitos do trabalho e a desmontagem do setor produtivo estatal, resultando na chamada
reestruturação produtiva. A essência do sistema do capitalismo continuava o mesmo, mas se
alterava a estratégia de domínio.
1
Fonte IBGE 21/05/2003
2
O Welfare State ou como também ficou conhecido, o Estado do Bem-Estar Social, ou ainda o Estado -
Previdência, segundo Heloani (2003a) complementou o projeto fordista, uma vez que ambos se propunham a
manter e assegurar o crescimento do consumo. Caberia ao Estado do Bem – Estar Social a garantia de assistência
médica e educação básica, melhorias urbanas, seguro-desemprego, entre outros benefícios. (p.68)
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O advento do neoliberalismo trouxe consigo bases para o fortalecimento da globalização. O
mercado, sem limites, abriu novas e maiores possibilidades para a retroalimentação do capital.
Para Ianni (2001), a globalização tornou-se um poderoso sistema, um processo civilizatório,
que se expandiu e se expande continuamente, adquirindo um dinamismo próprio, criando e
recriando diferentes formas sociais de vida e trabalho.
O ideário do neoliberalismo adquiriu predominância mundial como ideologia e prática. As
economias nacionais tiveram que se adaptar às exigências da economia mundial. Ao mesmo
tempo em que as sociedades nacionais tiveram que se reorganizar para responder à estrutura
de uma sociedade mundial, recriaram-se novas formas dentro do contexto nacional. À essa
nova forma que corresponde a resposta nacional à globalização, que caracterizam as novas
sociedades contemporâneas, que Ianni (2001) chamou de a ‘sociedade global’.
“... a sociedade global modifica substancialmente as
condições de vida e trabalho, os modos de ser, sentir, pensar
e imaginar. Assim como modifica as condições de alienação e
as possibilidades de emancipação de indivíduos, grupos,
etnias, minorias, classes, sociedades, continentes”. (Ianni,
2001, p.50)
Mas a sociedade global, forma característica das sociedades contemporâneas, traz alguns
problemas primordiais. Primeiro, em relação ao contrato social, pois os princípios de
liberdade, igualdade e propriedade, organizada em contrato, operam em termos econômicos;
em segundo, em relação aos indivíduos nestas sociedades, pois a cidadania vigente é a da
mercadoria; em terceiro, a racionalidade tecnológica domina e burocratiza o mundo, onde
tudo se organiza na razão instrumental técnica e no princípio da produtividade; em quarto, sob
o capitalismo global, as contradições sociais agravam-se nos países dependentes, do terceiro
mundo.
A crise do capital e suas respostas (neoliberalismo e reestruturação produtiva) acarretaram
profundas mudanças no mundo do trabalho, e trouxeram conseqüências diretas para o
movimento operário, partidos políticos e sindicatos.
Para compreender esta dinâmica, é preciso retomar o caminho da história e entender as
mudanças que ocorreram nos sistemas de produção, na organização do trabalho e nas relações
sociais de produção.
12
Com a crise do capital, no final da década de 70, o sistema de produção que vigorou durante
quase todo o século XX, o ‘taylorismo/fordismo’, começou a dar sinais de enfraquecimento.
Nascido e desenvolvido na grande indústria, esse sistema baseava-se na produção em massa
de mercadorias. Sua produção em série era pouco variada e as tarefas eram decompostas. Esse
padrão produtivo estruturou-se com base no trabalho fragmentado, que reduzia a ação
operária a um conjunto mecânico e repetitivo de atividades, cuja somatória resultava no
trabalho coletivo.
Criado para atender à necessidade de um mercado crescente, era marcado pela uniformidade e
pela massificação. Possuía, como forte característica, a verticalização, sendo suas estruturas
fortemente hierarquizadas.
“... esse processo de desantropomorfização do trabalho e sua
conversão em apêndice da máquina-ferramenta dotavam o
capital de maior intensidade na extração do sobre trabalho. A
mais valia extraída extensivamente, pelo prolongamento da
jornada de trabalho e do acréscimo da sua dimensão
absoluta, intensificava-se de modo prevalecente a sua
extração intensiva, dada pela dimensão relativa da mais-
valia”. (Antunes, 2002, p.37)
O ‘operário-massa’ era destituído de qualquer participação na organização do processo de
trabalho, que se resumia a uma atividade desprovida de sentido. Iniciou-se assim, uma
resistência ao trabalho, que intensificou as greves e movimentos, mesmo que de início
parciais, e localizadas, impossibilitando-se a permanência do ciclo expansionista do capital.
Então, a partir dos anos 70, com o quadro crítico do padrão de acumulação vigente, e com a
perspectiva de recuperação do ciclo produtivo, surgiu a era da acumulação flexível, com o
‘toyotismo’.
“O capital deflagrou várias transformações no processo
produtivo, por meio da constituição das formas de
acumulação flexível, do dowsizing, das formas de gestão
organizacional, do avanço tecnológico, dos modelos
alternativos ao binômio taylorismo/fordismo, onde se destaca
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especialmente o ‘toyotismo’ ou o modelo japonês”. (Antunes,
2002, p.47)
O toyotismo mostrou-se como uma possibilidade de saída da crise, e diferenciava-se do
fordismo principalmente por possuir uma produção vinculada à demanda. Caracterizado por
um processo flexível, que permitia ao operário operar simultaneamente várias máquinas,
trouxe como conseqüência a diminuição de profissionais internos e aumento de profissionais
terceirizados.
O padrão de acumulação flexível fundamentou-se num padrão produtivo organizacional e
tecnologicamente avançado, resultado da introdução de novas técnicas de gestão e material
tecnológico.
Com estruturas mais horizontalizadas e mais enxutas, algumas das repercussões dessas
mudanças foram: a desregulamentação dos direitos do trabalho, o aumento da fragmentação
no interior da classe trabalhadora, a precarização da força humana do trabalho, a destruição do
sindicalismo e o desemprego.
A tão difundida qualidade total tornou evidente: “quanto mais qualidade total os produtos
devem ter, menor deve ser seu tempo de duração”. (Antunes, 2002, p.50) A tendência imposta
de redução de vida útil do produto aumentou a velocidade da produção de valores de troca –
os produtos deveriam durar pouco para serem repostos.
Essas mudanças trouxeram uma grande diminuição da classe operária industrial. E por outro
lado, um incremento do trabalho assalariado no setor de serviços, que teve o trabalho precário
como marca registrada.
Verificou-se a desregulamentação das condições de trabalho e uma ausência de proteção e
expressão sindical.
“... a desestruturação crescente do Welfare State e o
crescimento do desemprego estrutural e da crise do capital
são obrigados a buscar alternativas de trabalho em condições
muito adversas... Essa processualidade atinge também, ainda
que de modo diferenciado, os países subordinados de
industrialização intermediária, como Brasil, México,
Coréia...”. (Antunes, 2002, p.105)
14
A desregulamentação do trabalho introduziu formas alternativas de trabalho, como por
exemplo, os trabalhos part-times, temporários, e até mesmo trabalhos voluntários que se
expandem com o chamado “terceiro setor”, que se acreditou, num primeiro momento, ser ele
o preenchimento de uma lacuna da desmontagem do ‘Welfare State’.
Assim como o capital é um sistema global, o mundo do trabalho e seus desafios são também
cada vez mais transnacionais, complexificando a classe trabalhadora. Isso coloca a luta de
classes num patamar cada vez mais internacionalizado e o desemprego em sua dimensão
estrutural, tornando esses os traços constitutivos da reestruturação produtiva.
Segundo Antunes (2002), uma das conseqüências mais importantes no interior da classe
trabalhadora tem dupla direção:
“paralelamente à educação quantitativa do operariado
industrial tradicional, dá-se uma alteração qualitativa na
forma de ser do trabalho, que de um lado impulsiona para
uma maior qualificação do trabalho e, de outro, para uma
maior desqualificação”. (Antunes, 2002, p.55)
Isso significa que existe uma tendência para a qualificação do trabalho e, ao mesmo tempo,
um nítido processo de desqualificação dos trabalhadores, que acaba configurando um
processo contraditório que superqualifica em vários ramos produtivos e desqualifica em
outros.
Com isso, aumentam os focos de contradição entre os desempregados e a sociedade como um
todo. São considerados expulsos do mundo do trabalho e excluídos socialmente. São
impedidos de ter “uma vida dotada de algum sentido”. (Antunes, 2002, p.133)
Se o mundo do trabalho enfrentou na década passada muitas mudanças, enfrentou também um
número cada vez maior de indivíduos que perderam seus empregos e não conseguiram
recuperá-los.
Existem hoje discussões bastante polêmicas sobre a classe trabalhadora e as relações
institucionais do trabalho. A diminuição do proletariado industrial, o aumento da
informalidade e as discussões sobre a CLT fomentam debates acadêmicos sobre o mundo e o
sentido do trabalho na sociedade capitalista. Alguns autores acreditam que estamos na era do
15
fim do emprego (Rifkin, 1995), outros falam sobre o fim do proletariado e questionam a
centralidade do trabalho (Gorz, 1982), e outros não negam as mudanças, mas não deixam de
conferir ao trabalho, sua centralidade. (Antunes, 1995)
Para Antunes (2002), independente de ser ou não proletariado ou assalariado, não se pode
negar que existe uma “classe-que-vive-do-trabalho” que segundo ele é composta por:
“... aqueles e aquelas que vendem sua força de trabalho em
troca de salário, incorporando, além do proletariado
industrial dos assalariados do setor de serviços, também o
proletariado rural. (...) Essa noção incorpora o proletariado
precarizado, subproletariado moderno, part-time, o novo
proletariado (...) os trabalhadores terceirizados e
precarizados das empresas liofilizadas..., os trabalhadores
assalariados da chamada economia informal... além dos
trabalhadores desempregados...”. (Antunes, 2002, p.103)
A perda do emprego
“Trabalhadores ‘que estão envelhecendo’ e que não têm mais
lugar no processo produtivo (mais freqüentemente tem 50
anos, ou menos); jovens à procura de um primeiro emprego e
que vagam de estágio em estágio, e de um pequeno serviço a
outro; desempregados de há muito tempo que passam até a
exaustão, e sem grande sucesso, por requalificações ou
motivações: tudo se passa como se o nosso tipo de sociedade
redescobrisse, com surpresa, a presença, em seu seio, de um
perfil de populações que se acreditava desaparecido, ‘inúteis
para o mundo’, que nele estão sem verdadeiramente lhe
pertencer”. (Castel, 1998, p.529)
Birman (2001) afirma que em uma ordem social tradicional, o sujeito é regulado pela longa
duração das instituições e pela permanência de seu sistema de regras, que lhe oferecem
segurança e grandes certezas. Com isso, o potencial da angústia e da incerteza fica bastante
restrito, e a experiência originária do desamparo do sujeito fica regulada de maneira eficaz,
em função da longa duração do sistema de regras.
16
Em contrapartida, a modernização do social impõe novas exigências para a subjetividade, e
esta é permanentemente remodelada em conseqüência dos processos de transformação que se
realizam de maneira intensiva e extensiva.
Por isso, todas as transformações em nossa sociedade, principalmente no mundo do trabalho,
impõem novas exigências para a subjetividade.
O mundo desmapeado perde suas linhas claras e precisas e adquire uma dimensão de
infinitude, que aumenta a incerteza do sujeito.
“... o sujeito passa a se inscrever num mundo que lhe abre
muitas possibilidades, mas que também lhe aponta muitas
impossibilidades existenciais”. (Birman, 2001, p.79)
A insegurança e a angústia se multiplicam, o desamparo do sujeito se incrementa, revelando-
se o tempo todo como uma ferida exposta, quando ocorre a ruptura da regulação da
instituição, no caso a organização, que antes oferecia segurança ao sujeito.
Não há como falar sobre a perda do emprego sem falar sobre o que significa o trabalho para
os indivíduos e sobre a relação sujeito-organização. E se tentarmos reconstruir sua
importância, encontraremos inúmeras referências sobre sua importância na vida dos homens.
"O trabalho continua sendo uma referência não só
economicamente, mas também psicologicamente,
culturalmente e simbolicamente dominante, como provam as
reações dos que não o têm”. (Castel, 1998, p.578)
Em O Futuro de uma ilusão (1927a), Freud descreveu a natureza da civilização,
contemplando a idéia da formação das ilusões pelo homem para se proteger do desamparo.
As ilusões fazem parte da relação estabelecida entre o sujeito e a organização. A organização
vai suprir a necessidade do sujeito de ser protegido, possibilitando aos seus membros a não-
confrontação com toda sua fragilidade.
A empresa, através da produção de um imaginário, emprestará uma imagem perfeita e
protetora aos sujeitos que se ligarão a ela, por encontrar nesta relação e estrutura: amor,
reconhecimento e proteção.
17
Freud (1921) concebe o nascimento do grupo a partir de um ato de amor espontâneo, que
apresenta como característica a emanação de um só chefe, que ama a todos de maneira igual,
sendo o grupo constituído sobre uma base de igualdade, que pode ser exercida por um
representante temporário, ou por uma imagem transcendente, intemporal e invisível, fundada
sobre uma ilusão.
Sendo assim, as organizações só existem na medida em que prevalece a ilusão de que são
todos iguais e que todos são amados de maneira igual.
“O chefe favorece, em cada um, o refúgio na ilusão, ao invés
da tensão da busca da verdade, o desejo de se acreditar
amado, a manutenção de ídolos, e o narcisismo”. (Enriquez,
1990, p.65)
Mas, a excessiva importância que as empresas assumem na vida dos sujeitos, emprestando a
eles um propósito de vida compatível com o ideário do capitalismo, da produtividade e do
consumismo, faz com que, ao romperem esta relação, os indivíduos sintam-se perdidos e
desorientados, deparando-se com o desamparo e com a angústia.
O que acontece na relação sujeito-organização, expõe aquilo que Enriquez (1990) considerou
como as duas características fundamentais para estudarmos um problema de ordem social e
psíquica: a teoria das pulsões, e a teoria dos processos identificatórios.
“As características singulares do ser humano fazem dele um
ser pulsional e um ser social. As pulsões fazem diretamente
parte do jogo das identificações, ou seja, todo conflito
pulsional se inscreve fundamentalmente como um conflito
identificatório”. (Enriquez, 1990, p. 17)
O outro possui uma grande importância na constituição do sujeito, tendo necessariamente que
existir a ligação com o outro para haver a mediação necessária pela qual as pulsões passarão
para um universo de representação.
Freud, em 1921, em Psicologia das massas e análise do ego, enunciou que a identificação é a
mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa, desempenhando um papel na
história do complexo de Édipo.
18
A resolução do complexo de Édipo implica numa aceitação da lei, instaurada pela castração.
É através do processo de identificação que a criança toma o pai como modelo. A criança
deseja ser igual ao pai, para assumir seu lugar. É a ambivalência que marca essa relação que
se perpetuará nas identificações.
Há o desejo e a imposição de uma interdição que impede sua realização. A criança renuncia às
suas pulsões, renuncia à onipotência do seu desejo para fazer se inscrever na cultura.
Se o complexo de Édipo não é somente o complexo estrutural
do indivíduo, mas também da humanidade, se a psicologia
individual é um ramo da psicologia social, as formações
coletivas só são compreendidas se associadas ao mecanismo
de identificação e, em particular, a certas formas de
identificação primitivas”. (Enriquez 1990, p.66)
O vínculo libidinal é indispensável para construir o laço social. Portanto, se o sujeito
constitui-se como tal, pela existência do outro, nós só existimos quando somos reconhecidos
pelos outros.
Para Freud (1921), um grupo momentaneamente substitui toda a sociedade humana, que é a
detentora da autoridade, cujos castigos o indivíduo teme e em cujo benefício se submeteu a
tantas inibições. A carga emocional dos indivíduos se intensifica por interação mútua. Esse
mecanismo de intensificação da emoção é favorecido por algumas outras influências que
emanam dos grupos. Portanto,
“Para a constituição do grupo são necessárias, de um lado, a
presença de um chefe, de outro uma ‘estrutura libidinal’,
unindo o membro do grupo ao chefe”. (Enriquez, 1990, p. 61)
Freud (1927a) abordou, mesmo que de forma suscinta, a temática do trabalho, falando dele
sob três aspectos:
- sobre o homem sendo usado como produtor de riqueza para outros homens: “...
individualmente, um homem pode, ele próprio, vir a funcionar como riqueza em relação a
outro homem, na medida em que a outra pessoa faz uso de sua capacidade de trabalho ou a
escolhe como objeto sexual”. (Freud, 1927a, p. 16)
19
- sobre o papel de importância de um líder para indução ao trabalho: “... só através da
influência de indivíduos que possam fornecer um exemplo, e a quem reconheçam como
líderes, as massas podem ser induzidas a efetuar o trabalho e a suportar as renúncias de que
a existência depende”.(Freud, 1927a, p.17)
- e sobre a questão da hostilidade e exploração: “... é compreensível que as pessoas assim
oprimidas desenvolvam uma intensa hostilidade para com uma cultura, cuja existência elas
tornam possível pelo seu trabalho, mas de cuja riqueza não possuem mais do que uma quota
mínima”. (Freud, 1927a, p.17)
As formas como as relações vão se constituir no interior da organização revelam-se atrás de
discursos de cooperação e participação, relações perversas de poder e de submissão.
A relação chefe-subordinado constrói uma situação de dominação e submissão (função sado-
masoquista). Segundo Birman (2001), na posição masoquista, o sujeito se agarra ao outro
oferecendo a este seu corpo como objeto de gozo para evitar a experiência do desamparo.
A organização oferece um sistema de regras e um ideal de vida ao indivíduo. A partir disso, o
indivíduo vai procurar conformar-se com o modelo de personalidade da organização, uma
personalidade agressiva e individualista.
Para Pagès (1987), é a dupla angústia-prazer que se experimenta dentro da organização.
Angústia da perda e prazer do tipo agressivo, pois identifica-se com o poder, com o prazer de
conquistar, de dominar, de se superar.
As qualidades da organização tornam-se as qualidades do indivíduo, que trata a organização
como seu próprio Ego, e uma parte de sua libido narcisista é direcionada para a organização
por identificação. Há a construção de um ideal de ego à imagem da finalidade capitalista.
Perder o emprego envolve perder algo que foi ‘investido libidinalmente’. Em ‘Luto e
Melancolia’ (1917), Freud trabalha com a idéia de que o luto e a melancolia são reações à
perda de algo investido, a diferença está na forma como se apresenta, como relata no trecho:
“O luto, de modo geral, é a reação à perda de um ente
querido, à perda de alguma abstração que ocupou o lugar de
um ente querido, como o país, a liberdade ou o ideal de
alguém, e assim por diante. Em algumas pessoas, as mesmas
20
influências produzem melancolia em vez de luto; por
conseguinte, suspeitamos de que essas pessoas possuem uma
disposição patológica”. (Freud, 1917, p. 275)
Como todo conflito pulsional, inscreve-se como um conflito identificatório (conforme citação
anterior de Enriquez), sendo, portanto, igualmente, um conflito que envolve a relação com os
outros, torna a busca da compreensão das conseqüências da perda do emprego importante
para o relacionamento social dos sujeitos. É preciso considerar as vivências psíquicas em
relação à perda; mudanças no modo de vida; mudanças em sua relação com a família e
mudanças em sua relação com o trabalho.
Com a ruptura/perda do emprego, o sujeito é afetado em sua subjetividade. Há perda material,
sofrimento físico, moral e psicológico. Mas o sujeito afetado diretamente não é o único que
sofre, sua família e amigos próximos também são afetados.
Diante dessa discussão, entender como o desemprego afeta a forma de ser dos indivíduos, as
estruturas familiares e sociais, torna-se necessário para compreensão de um problema
produzido socialmente, mas que tem suas repercussões sobre a subjetividade, sem com isso
pretender abstrair uma concepção dicotômica que separa sujeito e sociedade.
A preocupação com os aspectos subjetivos do desemprego vem se concretizando. E, com
certeza, novos estudos vão permitir uma melhor compreensão dos processos subjetivos
envolvidos na perda do emprego, já que é uma realidade que muitos indivíduos enfrentam.
O objetivo desta pesquisa é compreender as conseqüências psíquicas da perda do emprego
pelo sujeito em seus aspectos tópico, dinâmico e econômico ou, resumidamente, em seus
aspectos (conflitos) metapsicológicos.
No capítulo I, através de um movimento de resgate, traçarei um percurso histórico para
compreender as mudanças do trabalho e as relações sociais, buscando entender como o
trabalho ganhou o significado que possui hoje, e como foi mudando ao longo do tempo sua
importância para a sociedade.
No capítulo II, demonstrarei como ocorreu o processo de reestruturação produtiva no Brasil e
como afetou as relações de emprego.
21
No capítulo III, tratarei especificamente das relações entre sujeito-organização, e,
principalmente, como o desemprego afeta essa relação, sobretudo com o medo de perder o
emprego. Veremos como o medo de perder o emprego e a insegurança causada pela falta de
perspectiva futura fazem parte do cotidiano dos que vivem e precisam do trabalho.
No capítulo IV, através de uma revisão bibliográfica, aponto quais os Estudos e Pesquisas de
relevância no Brasil, alem de algumas pesquisas internacionais sobre o desemprego e as
conseqüências psicossociais.
No capítulo V, nas considerações metodológicas, faço uma reflexão sobre a pesquisa em
psicanálise, discuto a relação psicanálise e marxismo, e aponto as linhas gerais da pesquisa,
como dados sobre os sujeitos, sobre as entrevistas e temas que serão abordados na análise.
No capítulo VI discuto o que há na relação sujeito-organização, que se evidencia no momento
em que o sujeito perde o emprego. Trabalho a perda dos ideais e das ilusões, as
representações imaginárias da organização e como isso se articula com a subjetividade.
No capítulo VII proponho uma discussão sobre a vivência, a elaboração e os perigos que a
ruptura do emprego pode causar nos sujeitos. Neste capítulo abordo o choque da ruptura
vivenciado pela notícia da demissão, e o aparecimento de sentimentos como a angústia, o
sentimento de culpa e até a depressão.
Concluo esta dissertação com o início de uma reflexão sobre o sentido do trabalho, que neste
trabalho não se esgota, mas aponta um caminho para outros trabalhos e discussões.
22
I. DO TRABALHO FORÇADO À EXALTAÇÃO DO TRABALHO
1.1. As origens do trabalho livre e o desenvolvimento do sistema capitalista
“... a apropriação privada de meios e instrumentos de
produção, ao gerar lucros por meio da confecção de bens
para o mercado de consumo, constitui condição necessária
para o surgimento do capitalismo”. (Kovarick, 1987, p.9)
Compreender a relação trabalho livre e capitalismo é fundamental para analisar a relação
salarial moderna e suas características, entre elas o emprego, o desemprego e as relações do
sujeito com o trabalho.
Proponho uma viagem pela história, em pelo menos 700 anos, para em um esforço sobre os
registros históricos da passagem do feudalismo para o capitalismo, compreender as mudanças
da esfera social e do trabalho, e a transição do trabalho forçado ao trabalho livre.
3
No feudalismo, época dos senhores e da vassalagem, o indivíduo nascia pertencendo a uma
rede de dependência, onde tudo já estava determinado: família, casamento e profissão. Não
havia escolhas.
Neste sistema, o trabalho era representado, principalmente, por duas modalidades: os
trabalhos regulados, que compreendiam o conjunto das regulações dos ofícios; e o trabalho
forçado, que funcionava nos moldes da escravidão.
Mas, a referência para as mudanças que iriam ser germinadas nestes séculos da Idade Média,
foi o sistema de ofícios. Embrião da manufatura moderna, transformou a natureza das relações
de produção e o padrão de acumulação. Passou a assegurar para si o monopólio do trabalho
3
Cabe lembrar, que por mais que haja uma organização didática para explicação de um processo, uma mudança
deste tipo não ocorreu do dia para noite. Como disse, é um processo que concretiza-se em um status, como é o
caso do trabalho livre, mas não significa que é o ponto final da mudança. As relações de trabalho e a sociedade
estão em constante mudança, e muitas dessas só enxergaremos nas próximas décadas.
23
nas cidades
4
, desenvolvendo pólos comerciais, propiciando seu crescimento e marcando o
espírito do Mercantilismo.
Para Castel (1998), foi o sistema de ofícios que traçou a linha divisória entre os incluídos e os
excluídos do pré-capitalismo, já que marcava a regulação, os privilégios e o reconhecimento
da coroa. Fora desse sistema existiam trabalhadores desprovidos de privilégios, a mercê de
duras obrigações, fazendo do trabalho assunto de polícia. Sim, era papel da policia da época
aplicar aos pobres que não trabalhavam, coerções para forçá-los a trabalhar.
Aqui alguns exemplos:
Em 1349, Eduardo III, Rei da Inglaterra, promulga o Estatuto dos Trabalhadores: “... cada
súdito, homem ou mulher, de nosso reino da Inglaterra, qualquer que seja sua condição,
livre ou servil, que seja válido, com menos de 60 anos de idade, que não viva do comércio
ou que não exerça ofício de artesão, que não possua bens dos quais possa viver e terras, a
cuja cultura possa dedicar-se, e não esteja a serviço de ninguém, se for requisitado para
servir, de um modo que corresponda a seu estado, será obrigado a servir aquele que
assim o tiver requisitado, e receberá pelo lugar, que será obrigado a ocupar somente o
pagamento em gêneros, alimento ou salário...” e se não o fizer: “ele, ou ela, será
imediatamente levado por esse ou um desses à prisão mais próxima, onde será mantido
sob rigorosa vigilância...”. (Castel, 1998, p. 97).
Em 1351, João II, Rei da França, submete o povo ao seu primeiro decreto dizendo: “os
que estão ociosos, na cidade de Paris, e não querem submeter seu corpo a nenhum
trabalho duro, não importa a situação ou a condição em que estejam, tendo ou não
profissão, homem ou mulher, que sejam sãos de corpo e de membros, ordená-lhes fazer
alguma coisa, tarefa com a qual possam ganhar sua vida ou que deixem a cidade de
Paris”. (Castel, 1998, p. 100)
Mas, o fato de serem forçados a trabalhar e às coerções, não marcavam somente, como
parecia, a autoridade pela ordem de um sistema. Obrigavam ao trabalhador, longe do sistema
regulado, trabalhar, tornando seu trabalho útil para o avanço comercial.
4
A cidade que teve um papel importante no desenvolvimento do capitalismo comercial foi, segundo Castel
(1998), onde o pauperismo se manifestou com toda sua amplitude.
24
Assim, os primeiros vestígios da Era Capitalista marcaram uma nova consciência do valor do
trabalho. Os ociosos deviam ser combatidos, e o trabalho passou a ser valorizado, inclusive
por sua utilidade econômica.
“O processo histórico de desenvolvimento de um comércio
internacional, ultramarino, de respiro mundial – tal como
ocorreu a partir dos séculos, XV e XVI – não é,
originariamente, resultado do capitalismo (enquanto modo de
produção consolidado), mas pressuposto do mesmo” (Mello,
1999, p. 45)
1.1.1. E do outro lado do mundo ... o trabalho escravo
Ontem simples, fortes, bravos.
Hoje míseros escravos,
Sem luz, sem ar, sem razão.
(O Navio Negreiro - Castro Alves)
O grande marco do desenvolvimento do capitalismo comercial ocorreu entre os séculos XV e
XVI, com a exploração e colonização de novas terras, descobertas pelas grandes expedições
marítimas.
O objetivo dos colonizadores era explorar as terras, extrair matéria prima, além de implantar
nas colônias atividades produtivas para alavancar o comércio europeu, desenvolvendo os
mercados internos de consumo, expandindo o parque produtivo e contribuindo para a
acumulação da burguesia européia.
Mas, a exploração não permaneceu somente na extração de matéria prima. Se de um lado
houve o desenvolvimento e o enriquecimento dos colonizadores, de outro, houve o
aprisionamento e a exploração do trabalho dos colonizados.
Uma das marcas da colonização foi a dominação de nativos, que se viram escravizados,
alguns até mesmo exterminados, condenados a explorar sua própria terra, sua própria riqueza,
para tirá-las de seu território e enriquecer a uma outra comunidade.
25
Segundo Mello (1999), a escravatura, fundada basicamente na sujeição de populações nativas
e no tráfico de negros capturados na África, foi um recurso utilizado pelo colonialismo
capitalista com o objetivo de suprir territórios com força de trabalho suficientes às tarefas de
extração e cultivo de matérias-primas exportadas para o consumo mundial.
Assim, além de utilizar o nativo como escravo, como explorador de sua própria terra, os
colonizadores descobriram um mercado altamente lucrativo com a venda e compra de
escravos para outras localidades. Povos inteiros foram dominados e vendidos, como foi o caso
dos negros africanos. O tráfico negreiro tornou-se algo muito lucrativo, às custas da
escravização e do aprisionamento de seres humanos.
“Antes de o tráfico negreiro ter sido sistematicamente
implementado, os domínios coloniais supriam o Velho Mundo
unicamente com alguns poucos produtos, cujo patamar de
comercialização, entrementes promissor, não havia ainda
provocado uma mudança visível (...) foi a escravatura que
efetivamente deu valor as colônias”. (Mello, 1999, p. 63)
A utilização dos escravos de forma sistemática e o mercado de venda foi um processo inédito
e devastador nos processos de colonização de países como Portugal e Inglaterra. Tão
devastador que até hoje sofremos com as conseqüências dessa escravização.
É o uso do trabalho escravo que marca o desenvolvimento do Capitalismo Comercial.
Segundo Marx (1983), foi a escravatura o pivô do industrialismo do séc. XIX, que já no séc.
XVI,
5
estava ligado a expansão do trabalho manufatureiro, gerando lucros acumulados.
Alguns autores partilham da idéia de que o sistema colonial, que unia o trabalho escravo e a
acumulação, financiaram a Revolução Industrial. Como é o caso de Ianni e Fernandes (apud
Estenssoro, 2003), que apontam que a escravatura estaria diretamente relacionada com o
processo de gestação do capitalismo na Europa. Os autores argumentam que o capital
mercantil, por intermédio da violência e coação política, aparece como momento determinante
nos saques e expropriações, no comércio de escravos, na acumulação originária de capital e
na apropriação monopolística dos produtos da colônia.
5
Momento que para Marx (apud Mello, 1999) é a inauguração da Era Capitalista.
26
O Brasil, e todas as outras colônias que foram exploradas, sofreram uma marca na historia de
seu desenvolvimento e na historia do trabalho. Segundo Sherafat (2002), enquanto o Oriente
rumava no sentido da abolição, nas colônias européias da América, da qual o Brasil fazia
parte, preparava-se o advento de uma época de escravidão intensa.
Permanecemos durante muito tempo nessa lógica da ordem escravocrata. Mesmo após a
proclamação da independência, com a introdução do café, a sociedade brasileira do séc XIX
reproduzia o trabalho escravo como forma essencial do processo produtivo.
Kovarick (1987), ao analisar os reflexos da colonização na formação social brasileira,
concluiu que a forma colonial de exploração, e a persistência da ordem escravocrata,
reproduziram práticas que levaram à degradação das relações de trabalho, atingindo também a
população liberta e livre.
“Os livres tiveram até o advento da grande imigração
internacional, coincidente no tempo com a abolição da
escravidão, uma participação acessória e ocasional no
processo produtivo”. (Kovarick, 1987, p.31)
Os livres eram mal vistos pela sociedade escravocrata, pois não se sujeitavam ao tipo de
trabalho oferecido aos escravos. Afastados do processo produtivo, os livre eram os
conhecidos ‘vadios’, sem disciplina para o trabalho.
O que ocorreu, então, foi uma desqualificação de tudo que não se encontrava na relação rígida
e dicotomizada da ordem escravocrata, e no final do Séc XVIII, a população do Brasil, que
tinha três milhões de habitantes, tinha quase a metade de livres e libertos, que eram preteridos
para a produção.
“(...) marginalizados desde os tempos coloniais, os livres e
libertos tendem a não passar pela ‘escola do trabalho’...
vistos pelos senhores como a encarnação de uma corja inútil
que prefere a vagabundagem, o vicio ou o crime à disciplina
do trabalho”. (Kovarick, 1987, p. 47)
Com o colapso da escravatura, o número de livres e libertos aumentou consideravelmente, e
estes que precisam ser reintegrados na ordem produtiva foram substituídos pelos imigrantes.
27
Unindo-se à massa de livres que nunca deixou de crescer, não houve falta de ‘braços’ para o
início da industrialização.
Segundo Sherafat (2002), ainda que a escravidão tenha sido abolida, provavelmente a
exploração da mão-de-obra, de uma forma ou de outra, permaneceu enraizada nas definições
de trabalho no Brasil.
“... a super exploração da força de trabalho esteve
exemplarmente presente no processo de constituição do
mercado de trabalho livre no Brasil”. (Kovarick, 1987, p.88)
1.2. O trabalho como mercadoria – a base da industrialização moderna
“A historia do Mercantilismo, do sistema colonial moderno,
resume, por assim dizer, a etapa que inaugura toda essa
dinâmica giratória da busca frenética pelo lucro; processo
que, entretanto, continua a expandir-se e a aprofundar-se com
o advento da Revolução Industrial”. (Mello, 1999, p. 81)
A verdadeira descoberta que o século XVIII promove é a necessidade da liberdade do
trabalho. Isso implica na destruição dos dois modos de organização do trabalho até então
dominantes: o trabalho regulado e o trabalho forçado.
Para Gautié (1998), esse período marcou a passagem na história do pensamento econômico,
fundando o paradigma de referência da ciência econômica hoje dominante. Para o autor, esse
pensamento repousa sobre uma nova concepção da riqueza, fundada sobre uma nova
concepção do trabalho.
A partir de agora, o trabalho é uma mercadoria vendida em um mercado que obedece à lei da
oferta e da procura. O empregador pode contratar livremente, pois não está sob o domínio da
necessidade. O trabalhador é determinado (biologicamente) a vender sua força de trabalho,
pois está na urgência, tem necessidade imediata de seu salário para sobreviver.
Para Kovarick (1987), foi o trabalho que deu vida ao capital, transformando um objeto inerte
em produto de valor. No modo de produção capitalista, as relações sociais de produção
28
assalariadas passam a predominar quando há a separação definitiva entre capital e trabalho,
reflexo da industrialização.
“Sabe-se que, no universo da sociabilidade produtora de
mercadorias, cuja finalidade básica é a criação de valores de
troca, o valor de uso das coisas é minimizado, reduzido e
subsumido ao seu valor de troca”. (Antunes, 2002, p.84)
Sem dúvida, foi o trabalho livre que garantiu o fomento da industrialização, propiciando o
desenvolvimento do capitalismo industrial. Resultado de uma seqüência de revoluções,
aprimoramentos e invenções tecnológicas, substituta da indústria manufatureira, o
desenvolvimento da indústria tomou proporções muito maiores, avançando mercados,
ganhando um patamar mundial.
“... emerge uma nova divisão internacional do trabalho,
adequada às demandas dos principais centros industriais,
transformando uma parte do globo em áreas de produção
predominantemente agrícola, destinada ao suprimento da
outra parte (primordialmente industrial)”. (Marx, 1983,
p.105)
Marx (1983) já havia assinalado que na passagem da manufatura para a produção mecanizada,
para que a atividade das máquinas proporcionasse lucro, era necessário aumentar o consumo
da força de trabalho, aumentando a duração das jornadas. É nesse momento que surge uma
população excedente.
Da mesma maneira que o surgimento da grande indústria marcou o novo desenvolvimento do
capitalismo, marcou também o modo de vida dos trabalhadores. Com o novo sistema, criou-se
um ‘mercado de trabalho’, com novas formas de contrato, marcando de vez a condição do
emprego como direito, e da venda da força de trabalho.
“O trabalho é uma mercadoria e, como tal, um artigo de
comércio. Quando uma mercadoria é levada para o mercado,
a necessidade de que o preço aumente não depende do
vendedor mas, sim, do comprador”. (Castel, 1998, p.142)
29
1.2.1. A condição operária do final do séc. XIX e início do séc. XX
“(...) nem a experiência, nem a tradição, nem a sabedoria,
nem a moralidade da era pré-industrial proporcionavam
orientação adequada para o tipo de comportamento exigido
por uma economia capitalista”. (Hobsbawm, 1983, p. 82)
Segundo Hobsbawm (1983), a Revolução Industrial transformou a vida dos homens a ponto
de torná-los irreconhecíveis, destruindo qualquer relação com o seu passado recente. Para o
autor, a desagregação foi o maior efeito social da industrialização, que tornou a mão-de-obra
de uma sociedade industrial totalmente diferente da que existia na sociedade pré-industrial,
pelos seguintes motivos:
- Numa sociedade industrial, a mão-de-obra é formada, em absoluto, por proletários que
não possuem qualquer fonte de renda, além do salário que recebem por seu trabalho;
- O trabalho industrial impõe uma regularidade, uma rotina e uma monotonia totalmente
diferente dos ritmos pré-industriais;
- Na era industrial, o trabalho passou a ser realizado nas grandes cidades.
Sem ligação com o seu passado, e totalmente preso a uma condição precária de vida e de
trabalho, o trabalhador, diante das transformações geradas pela Revolução Industrial, viu-se
diante de uma situação degradante de sua moral e de seu corpo.
Patto (1998), ao analisar um filme canadense, Léolo (1992), do diretor Jean-Claude Lauzon,
propõe uma análise das condições de vida operária no início do século XX, que serve de
cenário para a história de uma família tomada pela loucura ‘hereditária’. O filme é narrado
pelo menino Léolo, que tenta escapar da loucura refugiando-se em suas fantasias.
A analogia da autora está na condição da loucura como expressão do processo de alienação
vivido pelos operários da época. Para a discussão, dialoga com Simone Weil, filósofa e
grande contribuidora para as causas políticas do início do século XX, considerada uma das
grandes pioneiras dos estudos sobre as condições laborais fabris.
Simone Weil ofereceu sua grande contribuição, quando recém formada, decidiu vivenciar o
cotidiano do trabalho de uma fábrica, vivenciando dia-a-dia sua vida como operária.
Conheceu o coração da vida operária, pois viveu, dentro e fora das horas de trabalho, a
30
opressão brutal imposta pelas próprias condições do trabalho fabril e o dilaceramento físico e
espiritual que ela acarreta.
“(...) diante de um enorme fogo que cospe labaredas, bafos de
brasa direto no meu rosto". (Weil, apud Patto, 1998, p.2)
A análise de Patto (1998) percorreu alguns pontos ao retratar a condição operária da época,
demonstrando como o desenraizamento provocou tanto nos estrangeiros, como nos pobres
locais, o sentimento de exclusão. Como se submetidos a um tempo que é o tempo das coisas,
não o tempo dos homens, foram perdendo suas raízes, sendo humilhados, e entregando-se à
exaustão compulsiva. E a exaustão e o desânimo advindos da opressão não geravam revolta.
“... nenhuma intimidade liga os operários aos lugares e aos
objetos entre os quais a sua vida se esgota, e a fábrica faz
deles, em sua própria terra, estrangeiros ou exilados,
desenraizados”. (Weil, apud Patto, 1998, p.3)
O corpo, compreendido como um prolongamento da máquina, era o retrato da exploração e da
opressão no local de trabalho, resultando em esgotamento, exaurindo as horas de lazer e
descanso. E para a autora, os oprimidos não se apoderaram de indignação contra as injustiças,
restando-lhes a positividade da loucura: “alienados, alienam-se; coisificados, coisificam-se:
os loucos possuem o que os possui e denunciam o mundo que os degrada”. (Patto, 1998, p. 5)
Na mesma tentativa de compreender a vida dos trabalhadores, e os reflexos da Revolução
Industrial, Bresciani (1984) analisou textos de autores e de trabalhadores do séc. XIX,
particularmente preocupando-se em verificar as perdas vividas pelas pessoas no final deste
século. Para a autora, a máquina teve um papel importante de transformação da estrutura
social, o que colocava algo exterior ao homem como potência movimentadora do novo
sistema social.
Ao expressar as mudanças sofridas pelos trabalhadores, considerou as seguintes
transformações:
- Na representação do tempo: houve a dissolução da relação tempo-tarefa-natureza, e a
imposição de uma nova concepção do tempo. O tempo devia ser produtivamente aplicado,
e exterior ao próprio homem.
31
- Na atividade do trabalho: o homem passou a ser uma das engrenagens de um processo que
objetivou repor a própria produção. O trabalhador foi reduzido à mera subjetividade, à
força de trabalho.
- Nos sistemas de trabalho: as relações pessoais do mestre-aprendiz foram substituídas pela
impessoalidade das relações de mercado.
- No habitat tradicional: o trabalhador deixou os vilarejos e partiu para as grandes cidades.
“Máquinas, multidões, cidades: o persistente trinômio do
progresso, do fascínio e do medo. O estranhamento do ser
humano em meio ao mundo em que vive, a sensação de ter sua
vida organizada em obediência a um imperativo exterior e
transcendente a ele mesmo, embora por ele produzido”.
(Bresciani, 1984, p. 37)
O desenraizamento, a desagregação, a rotina, as condições de precariedade, a vida nas
cidades, a humilhação, a dor, uma nova concepção do tempo marcaram a vida dos indivíduos
no início da industrialização.
O trabalho se desenvolveu nessas condições e passou por diversas mudanças a partir desse
momento. Mudanças que ocorreram cada vez mais rápidas nos espaços da empresa moderna,
intensificando a racionalização dos processos, estratificando cada vez mais suas estruturas.
Castel (1998), com o intuito de explicar essa nova mudança nas estruturas do trabalho, que
conduziu a passagem da relação salarial prevalecente no início da industrialização, para a
relação salarial ‘fordista’, reuniu cinco condições base para a mudança:
- A separação entre os que trabalhavam efetiva e regularmente e os inativos ou semi-ativos
que eram excluídos do mercado do trabalho ou integrados sob formas regulamentadas.
Pode-se falar de emprego e, correlativamente, de não-emprego e de desemprego. Nota-se
que a situação de assalariado torna-se claramente identificável, mas também a de
desempregado involuntário;
- A fixação do trabalhador em seu posto de trabalho e a racionalização do processo com a
“organização científica” do trabalho, cujos efeitos podem ser lidos como uma perda da
autonomia operária e como alinhamento das competências profissionais sobre o mais
baixo nível das tarefas reprodutivas;
32
- O acesso por intermédio do salário a “novas normas de consumos operários”, inaugurado
por Henry Ford, que sistematizou a relação entre produção de massa e consumo de massa.
É o momento em que o operário moderno tem acesso ao estatuto de consumidor dos
produtos da sociedade industrial;
- O acesso à propriedade social e aos serviços públicos, onde o trabalhador passa a
participar do estoque de bens comuns, disponíveis na sociedade. Uma rede mínima de
seguridades ligadas ao trabalho se desenvolveu nas situações fora do trabalho, para
colocar o operário protegido da privação absoluta. Assegurou-se maior acesso a bens
coletivos, tais como a saúde, higiene, moradia e instrução;
- A inscrição em um direito do trabalho que reconhece o trabalhador como membro de um
coletivo, dotado de um estatuto social além da dimensão puramente individual do contrato
de trabalho. A consideração dessa dimensão coletiva fez a relação contratual passar da
relação de trabalho ao estatuto do assalariado.
1.3. A racionalização do trabalho e do tempo e as repercussões para o trabalhador
Ulisses, ao contar a Homero sobre sua viagem pelo inferno relata:“(...) vi Sísifo extenuando-se
e sofrendo, empurrava um bloco imenso com ambas as mãos. Na verdade, ele o arrastava até
o cume, sustentando-o com os pés e as mãos; mas quando estava a ponto de finalmente
atingir o alto do morro, o peso excessivo o impelia para baixo. Novamente, a pedra
impiedosa rolava para o vale. Entretanto, ele reiniciava o trabalho e empurrava-a, a ponto
de ter o corpo banhado de suor; ao redor de sua cabeça, porém, pairava uma nuvem de
poeira”. (Homero apud Kast, 1997, p. 13)
O nascimento da eletricidade, do motor, da manufatura de precisão, e dos materiais sintéticos,
marcaram a grande transformação capitalista: a segunda Revolução Industrial (Mattoso,
1996).
Esta nova fase é marcada por um grande crescimento industrial. O avanço da tecnologia e a
forte industrialização serviram como base para a mecanização dos processos de produção.
33
“No período da chamada ‘segunda revolução industrial’, os
E.U.A, tornaram-se a grande potência industrial do mundo,
em ramos diversificados de produção, particularmente a
industria automobilística concentrou grande volume de
recursos materiais, na esteira do ‘fordismo’ e das linhas de
montagem”. (Silva, M., 1992, p.53)
O chamado ‘fordismo’ modificou o acesso do trabalhador ao mercado de consumo, já que
representava a articulação entre a produção e o consumo de massa. Henry Ford foi um dos
primeiros a perceber a relação entre o aumento do salário, o aumento da produção e o
aumento do consumo.
Segundo Heloani (2003a) o processo de ‘linha de montagem’ desenvolvido por Henry Ford, o
‘fordismo’, apresentou-se como nova proposta de gestão da produção, que sustentava-se em
duas vigas: a tecnologia (mecanização) e os princípios tayloristas. (p.51)
Segundo Braverman, (apud Mattoso, 1996) o Taylorismo baseava-se em três princípios:
1. Dissociação do processo de trabalho das qualificações dos trabalhadores;
2. Separação da concepção e da execução do trabalho;
3. Uso do monopólio sobre o conhecimento para controlar os distintos passos do
processo de trabalho e seu modo de execução.
Para Sherafat (2002), estes princípios são responsáveis por um crescimento rápido das
empresas, especialmente das indústrias. As empresas ganham um papel de produtor e de
crescimento econômico. Além disso, a empresa que nasce deste processo, passa a dominar
passo a passo, todo o ciclo produtivo e o trabalhador com a racionalização.
Esta racionalização, principal característica do taylorismo, limitou o trabalhador a tarefas
repetitivas, sem reflexão e visão do processo todo. O trabalho, nesta forma, é fragmentado e
destituído de qualquer sentido, caminho certo para alienação. Além de ser também
mecanizado e uniforme, com um ritmo muito mais acelerado.
“Quando as idéias de Taylor foram absorvidas nas linhas de
montagem instaurada pelo fordismo, o grau de intensificação
dos ritmos de trabalho e o nível de parcelamento das tarefas
34
atingiu pontos extremamente elevados”. (Seligmann-Silva,
1994, p.48)
Para Ghisleni (2003), o que marca o desenvolvimento da Organização Científica do Trabalho
é a percepção de que a execução de uma tarefa, apenas por um trabalhador, do início ao fim
do processo, era pouco produtiva. A idéia de trabalhadores “completos” deu lugar a
trabalhadores “parciais”. Para a autora, com a incorporação dos instrumentos de trabalho, das
ferramentas dos trabalhadores às máquinas-ferramentas, foi proporcionada a perda do controle
dos ritmos e das cadências que ainda permaneciam sob poder dos trabalhadores, gerando um
aumento maior ainda na produtividade.
Na visão de Castel (1998), a organização científica do trabalho fixou o trabalhador em seu
posto de trabalho, não por uma coerção externa, mas pelo encadeamento das operações
técnicas, cuja cronometragem definia rigorosamente a duração e a racionalização do processo
de trabalho. Instaurou-se uma gestão do tempo exata, recortada e regulamentada.
É o início da parcialização das tarefas e da apropriação do saber dos trabalhadores. É o
controle do tempo em favor de uma maior produtividade, cada vez mais sem sentido para o
trabalhador.
Segundo Kurz (1999), apesar do trabalho consumir a maior parte do tempo diário, os que
laboram não sentem o tempo de trabalho como tempo de vida próprio, mas como tempo
morto e vazio. Para o autor, o tempo livre dos trabalhadores é tempo vazio e de nenhuma
serventia. E acrescenta:
“Desde que o engenheiro norte-americano Frederick Taylor
(1856-1915) desenvolveu, no começo do século 20, a ‘ciência
do trabalho’, empregada pela primeira vez em larga escala
nas fábricas de automóveis de Henry Ford (1863-1947), os
métodos dessa ‘racionalização do tempo’ não pararam de se
refinar e se inculcaram profundamente no corpo social”.
(Kurz, 1999, p.3)
35
1.3.1. A industrialização no Brasil
“(...) a expansão industrial, apesar de lenta e gradual,
introduziu mudanças industriais na economia, na política e
cultura brasileira”. (Silva, M., 1992, p. 12)
Apesar do capitalismo possuir uma lógica universal, seu desenvolvimento vai se concretizar
de forma particular em cada país, principalmente por que vai depender do nível e do
desenvolvimento econômico, político e cultural de cada nação.
O início da industrialização no Brasil teve como principal característica, a mudança do capital
agrário para o capital industrial. A população, no início do século XX, era em sua maioria
agrária. O mercado de trabalho ainda era pouco integrado e havia escassez de mão-de-obra
para a indústria.
Segundo Mattoso (1996), enquanto nos países avançados, desde a crise de 1876/90 já se
questionava o velho paradigma tecnológico e emergia a Segunda Revolução Industrial, no
Brasil, somente depois de decorridas décadas do século XX consolidou-se uma indústria
têxtil.
Houve, nos primeiros anos do século XX, uma intensa imigração, que resolveu
temporariamente o problema com a mão-de-obra. Segundo Kovarick (1997), São Paulo
recebeu de 1884 a 1920, um milhão 590 mil estrangeiros.
Um segundo movimento, com a consolidação da indústria, foi iniciado. As populações
agrárias passaram a migrar para as cidades onde estavam concentradas as indústrias. Foi um
período em que o êxodo rural tornou-se forte, concentrando um número muito grande de
trabalhadores nas áreas metropolitanas.
O Brasil apropriou-se do avanço da segunda revolução industrial em 1930, com o governo de
Getúlio Vargas. Período da criação de empresas estatais produtoras de produtos de base, como
a CSN e a Petrobrás, teve, segundo Mattoso (1996), seu auge após a segunda guerra mundial,
baseado em um tripé formado por empresas transnacionais, estatais, e privadas nacionais, em
sua maioria ligadas à indústria de base.
36
A chamada “Era Vargas”, que durou de 1930 a 1954
6
, marcou o início do desenvolvimento
industrial no Brasil, e além de produzir uma considerável mudança no modo de vida, da
passagem do rural para o urbano, trouxe ganhos e regulamentações para a classe trabalhadora.
Foi nesse período que se criou o Ministério do Trabalho, que houve a oficialização da jornada
de trabalho em oito horas, que se regulamentou o trabalho da mulher, que regulamentou a
aposentadoria e que passou a vigorar, em 1943, a CLT (Consolidação das Leis Trabalhistas).
Logo após a segunda guerra (1945), o Brasil teve um rápido crescimento econômico, ficando
na oitava posição entre as economias de países industrializados. Os anos 50 constituíram o
período de maior crescimento industrial do País. Houve a entrada de capital estrangeiro, com
a instalação de diversas indústrias, principalmente as automobilísticas.
“O padrão de industrialização norte-americano foi rápido e
crescentemente incorporado, seja no referente paradigma
tecnológico, à estrutura produtiva ou à organização do
trabalho taylorista e fordista”. (Mattoso, 1996, pg 123)
Com a ida dos trabalhadores às cidades, duas grandes mudanças ocorrem. Primeiro, altera-se
as formas de trabalho e de vida desses trabalhadores migrantes, que saem de suas terras e vão
para as cidades, onde as condições são muito mais precárias. Segundo, o trabalhador passa a
depender cada vez mais do trabalho nas industrias. Sendo o salário sua única fonte de
sobrevivência, passa a aceitar a sub exploração, aumentando a pobreza nesses grandes
centros.
Segundo Adorno, a sociedade industrial “é um modelo da gigantesca maquinaria econômica
que, desde o início, não dá folga a ninguém, tanto no trabalho e tanto no descanso, que tanto
se assemelha ao trabalho”. (apud Ianni, 2001, p.137)
1.3.2. As conseqüências do trabalho fracionado (A crise do taylorismo/fordismo)
Depois de um longo período de acumulação do capital, o capitalismo nos anos 70 começou a
dar sinais de esgotamento.
6
Getúlio Vargas assumiu a Presidência em 1930, permanecendo até 1945. Alguns autores denominam este
período como a Segunda República. Em 1950, ele foi eleito pelo voto popular, permanecendo até 1954, ano em
que suicidou-se.
37
Para Castel (1998), quaisquer que possam ser as “causas”, o abalo que afeta a sociedade no
início dos anos 70 manifesta-se de fato, em primeiro lugar, através da transformação da
problemática do emprego.
O estancamento econômico, o esgotamento do padrão taylorista/fordista e a crise do ‘welfare
state’, tiveram papel central nesta crise.
“Tendo perdido a identidade cultural da era artesanal e
manufatura dos ofícios, esse operário havia se ressocializado
de modo relativamente homogeneizado”. (Antunes, 2002,
p.40)
A crise do taylorismo/fordismo representava uma insatisfação e um amplo movimento em
prol de condições mais humanas de trabalho, já que o trabalhador, totalmente destituído de
qualquer aspecto humano, sendo visto puramente como uma extensão da máquina, passou a
reivindicar melhores condições de trabalho, intensificando os protestos e, principalmente,
deixando de produzir.
“O taylorismo/fordismo realizava uma expropriação
intensificada do operário-massa, destituindo-o de qualquer
participação na organização do processo de trabalho, que se
resumia a uma atividade repetitiva e desprovida de sentido”.
(Antunes, 2002, p.41)
Para Antunes (2002), o que parecia suportável para a 1ª geração do operário-massa, pareceu
insuportável para a 2ª geração, que passou a reivindicar seus direitos. Os trabalhadores,
passaram a ficar doentes, a ter problemas cada vez mais ligados às suas atividades laborais e a
sofrer com a dureza do trabalho monótono e mecânico.
Segundo Ghisleni (2003), não eram mais corpos dóceis e disciplinados, entregues à
organização do trabalho, eram agora corpos sem defesa, explorados, privados da proteção
natural de seu aparelho mental.
A crise do padrão produtivo, nada mais foi do que a concretização de uma percepção de
exploração. Isso mudou para sempre os modos de se enxergar o trabalho e suas relações.
38
O número grande de movimentações, protestos e greves marcaram o período. Os sindicatos
ganharam força representativa, e o seu papel de defensor dos direitos dos trabalhadores se
intensificou, trazendo ganhos para a classe trabalhadora, que ficou mais organizada e unida.
A forma de o trabalhador pensar o seu trabalho se altera. A preocupação com o ambiente de
trabalho, e a busca por melhores condições de trabalho criam a necessidade de uma
reorganização das estruturas produtivas.
É então que surgem algumas mudanças na gestão do trabalho. A Escola das Relações
Humanas, com as idéias de Mayo, foram os precursores de uma mudança que ocorreria alguns
anos depois. Mayo trazia a idéia de que deveríamos olhar para as características humanas no
trabalho, trazendo conceitos como motivação, aptidão e liderança para o ambiente de trabalho.
Mas a tentativa de humanizar as relações de trabalho trouxe a construção de instrumentos
técnicos para a medição de características pessoais, racionalizando também esse processo.
Centros de recrutamento e de avaliação de pessoal surgiram e foram conduzidos, como bem
coloca Seligmann-Silva (1994), para a busca de eficiência e eficácia máxima do trabalho.
A humanização das relações de trabalho fez com que a subjetividade dos indivíduos fosse
‘usada’ em prol dos objetivos da organização.
7
1.4. A valorização do Trabalho - o trabalho para o homem moderno
“A era moderna trouxe condição à glorificação teórica do
trabalho e resultou na transferência efetiva de toda a
sociedade em uma sociedade operária”. (Arendt, 1990, p.12)
Quaisquer que fossem as mudanças que iriam ocorrer a partir das tentativas da retomada da
economia, com a reestruturação produtiva
8
e a implantação de uma nova gestão do trabalho, o
7
A seqüência lógica deste item seria falar do toyotismo, mas optei por falar dessa fase pós-fordista no próximo
capítulo, relacionando-a com a reestruturação produtiva e o desemprego.
8
Tratarei a questão da Reestruturação Produtiva com mais detalhes no capítulo II.
39
trabalho para os indivíduos já não tinha os mesmos valores que no início de nossa jornada
histórica.
Não foi só a relação do trabalho e capital que se alteraram nesses anos de história. A relação
sujeito-trabalho também passou por uma mudança: de desprezível, o trabalho passou a ser
glorificado, ocorrendo uma enorme valorização pessoal e social de quem trabalha.
O sentido do trabalho para o homem moderno apoderou-se de valores antes inexistentes, que
só se intensificaram no decorrer das décadas. O trabalho ganhou uma nova dimensão, seus
aspectos subjetivos passaram a ser valorizados.
Mas como o trabalho deixou de ter uma conotação negativa e passou a ser glorificado por
toda uma sociedade? Como passou de castigo à recompensa?
É claro que esta é uma discussão ampla, mas ao analisarmos o percurso histórico, podemos
compreender pontos que podem ter facilitado o ganho desta nova dimensão valorizada do
trabalho.
Segundo Arendt (1990) a ascensão repentina, espetacular do trabalho, passando do último
lugar, da situação mais desprezada, ao lugar de honra, e tornando-se a mais considerada das
atividades humanas, começou quando Locke descobriu no trabalho a fonte de toda a
propriedade. Prosseguiu quando Adam Smith afirmou que o trabalho é a fonte de toda a
riqueza e atingiu seu ponto culminante quando, em Marx, o trabalho se tornou a fonte de toda
a produtividade e a expressão da própria humanidade do homem.
O trabalho, ao tornar-se livre, desgarrou-se de um sistema de obrigações e coerções, e tornou-
se fonte de riqueza e utilidade social. Mas o mais importante, ao tornar-se mercadoria, tornou-
se algo fetichizado.
Para Enriquez (1990), graças ao fetiche, o homem empreenderá as maiores tarefas, e será
dominado pelos múltiplos fetiches, perdendo sua própria imagem, sendo forçado a se agarrar
às imagens que os outros lhe dão sobre eles mesmos. E conclui que o destino do homem
moderno é permanecer preso aos vínculos do trabalho, em um mundo “fetichizado”,
submetido ao poder na vida econômica e na vida política. “O interesse do individuo, sua
motivação não se obtém no ‘fazer’, mas no ‘crer’; não no presente, mas no futuro, não no
conceito, mas na fantasia”. (Pagès, 1987, p.108)
40
O reconhecimento social do trabalho tornou a relação do sujeito com o trabalho algo
reconhecido e valorizado, e a subjetivação do sujeito no espaço de trabalho intensificou este
processo de envolvimento, agora não mais só com o trabalho, mas com tudo o que o trabalho
representa e possibilita em termos imaginários.
É o paradoxo da sociedade moderna. Ao mesmo tempo em que há uma valorização excessiva
do trabalho ‘organizado’, há cada vez menos pessoas em condições de trabalho digno.
41
II. O PÓS FORDISMO, A REESTRUTURAÇÃO PRODUTIVA E O DESEMPREGO
NO BRASIL
A reestruturação produtiva que teve início nos países desenvolvidos, na década de 70, marca
uma nova fase do mundo do trabalho. Como vimos no capitulo I, sua raiz está na crise do
fordismo e na sociedade salarial, tal como se apresentava.
De acordo com Leite (2003), o processo de reestruturação produtiva nos países desenvolvidos
foi acompanhado pelo acirramento da competição entre as empresas, que promoveram uma
profunda transformação na forma de produzir, buscando adquirir competitividade para
assegurar sua permanência no mercado.
No Brasil, as raízes do problema não foram diferentes. Apesar do processo de reestruturação
ter sido conduzido de maneira distinta, o processo, que teve seu auge em meados da década de
90, teve seu processo alavancado pela necessidade de, após a abertura econômica, manter-se
no mercado global.
“Esse processo de reestruturação produtiva do capital,
desenvolvido em escala mundial a partir dos anos 70, forçou
uma redefinição do Brasil em relação à divisão internacional
do trabalho, bem como sua reinserção no sistema produtivo
global do capital”. (Antunes, 2002, p.237)
Para compreender os processos de reestruturação ocorridos nas empresas no início da década
de 90, é preciso compreender em que cenário político e econômico tais mudanças se
originaram e por que desembocaram e afetaram o emprego no Brasil e no mundo.
A década de 80 já assinalava as mudanças que a década de 90 iria concretizar. Já havia uma
clara tendência de crescimento das taxas de desemprego e de precarização das relações de
trabalho. Vários são os estudos que apontam os anos 80 como o “novo momento da
acumulação capitalista” (Leite, 2003), em que o desemprego não era mais característico de
uma crise econômica.
Mas, uma diferença muito grande separa as duas décadas. Segundo Alves (1999), até a década
de 80, o Brasil era uma economia protegida da concorrência internacional, e apesar da
42
informalização do mercado de trabalho constituir um aspecto estrutural do nosso país, ela não
assumia ainda proporções significativas, como veio a ocorrer na década seguinte.
Além disso, a década de 80, apesar de vivenciar uma forte recessão econômica, tinha por
outro lado um sindicato presente e forte, que realmente representava os interesses dos
trabalhadores. De acordo com Alves (1999), o trabalho no Brasil neste período era integrado,
possuindo um núcleo orgânico de assalariados ligados à economia formal de grandes
empresas públicas e corporações privadas nacionais e estrangeiras.
Foi também na década de 80, que segundo Montali (2003), a crise econômica brasileira levou
à entrada efetiva da mulher no mercado de trabalho. Fato este que promoveu rearranjos na
relação família-trabalho, indicativos de mudanças na divisão sexual do trabalho na família,
antecipando um problema com o desemprego masculino e a precariedade do trabalho
feminino nas décadas seguintes.
“A situação se modificou por completo a partir do início dos
anos 1990, quando a atividade industrial foi profundamente
golpeada pela abertura do mercado: o desemprego disparou,
aumentou enormemente a informalidade, o desassalariamento
avançou”. (Leite, 2003, p.105)
Segundo Alves (1999), o início da década de 90 marcou um período de enormes mudanças
em nossa política, que confluiu para uma série de reformas do capitalismo brasileiro. Ele
Ressalta, que apesar de o Brasil ter conseguido ser um celeiro de bons negócios no período de
1994-1997, uma análise dos indicadores do mercado de trabalho demonstrou uma perda
cumulativa de postos de trabalho na indústria, como demonstra o crescimento persistente do
desemprego e da precarização do trabalho.
Para o autor, no caso brasileiro, foi a partir do "choque de competitividade" da "década
neoliberal" que ocorreu o desenvolvimento sistêmico e complexo da reestruturação produtiva,
que se caracterizou, por um lado pela introdução de novas tecnologias microeletrônicas na
produção, e, por outro lado, pelo desenvolvimento de novas formas de organização da
produção.
A reestruturação envolveu, segundo Filgueiras (1997), tanto mudanças institucionais, como
organizacionais nas relações de trabalho, redefinindo os papéis dos estados nacionais e das
43
instituições financeiras, impulsionando transformações na organização do processo de
trabalho, modificando os métodos e modos de gestão.
Resumindo, as mudanças produzidas pela crise do capital, que desembocaram na
reestruturação dos processos produtivos foram tão grandes, que autores como Mattoso (1996)
consideram este período como a “Terceira Revolução Industrial”, pois configura um novo
padrão que afeta os planos produtivos, tecnológicos e organizacionais, tendo por base a
expansão da tecnologia e a crescente importância do complexo eletrônico.
Assim, se por um lado temos a introdução de novas tecnologias no processo de produção,
temos por outro, uma mudança organizacional complexa, que envolve a introdução de novas
técnicas de gerenciamento e controle, modificando os conceitos sobre o trabalho.
2.1. A nova gestão de trabalho e as conseqüências para o emprego
O novo modelo de gestão, introduzido com a reestruturação, foi apoiado no modelo ‘japonês’,
o chamado ‘toyotismo’, que tornou-se o novo paradigma de produção nas organizações,
substituindo o modelo até então vigente, o taylorismo/fordismo.
Segundo Antunes
9
(2002), o toyotismo, mesmo com uma implantação diferente dependendo
do país e setor, possui algumas similaridades com outros sistemas de produção:
1. produção vinculada à demanda;
2. fomento do trabalho em equipe;
3. flexibilidade do processo produtivo;
4. princípio just in time – técnica para melhor aproveitamento do trabalho de produção;
5. sistema kanban – placas ou senhas de comando para reposição de peças e de estoque;
6. estrutura mais horizontalizada, havendo transferência para terceiros;
7. discussão sobre trabalho e desempenho pelos trabalhadores – apropriação do savoir faire;
8. ganhos salariais vinculados ao aumento da produtividade.
9
O autor ressalta que o modelo japonês, ou o toyotismo, invadiu os processos produtivos não só nas industrias,
mas também se tornou modelo nas empresas de serviços.
44
As opiniões sobre o toyotismo, sistema vigente até hoje, ainda são diversas e intensamente
discutidas. Apesar de haver um consenso entre estudiosos de que há a implantação de um
novo modelo de produção que afeta as relações de trabalho, há divergências quanto, até que
ponto, esse novo modelo foi totalmente implantado.
Alguns autores acham que tais mudanças instauraram uma nova forma de organização
industrial e de relacionamento entre o capital e o trabalho, e o consideram mais favorável do
que o taylorismo/fordismo, pois possibilita um trabalhador polivalente, qualificado,
multifuncional e participativo. (Sobel e Piore, apud Antunes, 2002, p.48)
Outros autores acham que tais mudanças estariam intensificando tendências existentes, e que
não configurariam uma nova forma de organização do trabalho, contestando a eliminação do
modo de produção taylorista/fordista por completo dentro do processo de produção.
Grisci (2001) acredita, por exemplo, que embora a reestruturação apresente soluções
totalmente novas, conserva uma lógica binária que dissocia gestão/execução, trabalho/sujeito
do trabalho, condizente com o paradigma taylorista/fordista.
Para Sato (2002), esse novo cenário do trabalho apresenta-se como um mosaico, no qual o
velho e o novo se mesclam, observando linhas de montagem fordistas com máquinas de
última geração automatizadas e um novo discurso gerencial articulado com práticas antigas.
Hirata (2002) aponta que as práticas tayloristas se renovam no coração das novas
organizações do trabalho.
Apesar de haver uma lógica do antigo padrão ainda presente nas organizações, existe uma
clara tendência à tornar flexível, não só o trabalho nas linhas produtivas, mas também,
conforme Martin (1997), o emprego, o conteúdo do trabalho, a jornada de trabalho e a
remuneração.
Segundo Mattoso (1996), estes sistemas flexíveis, característica do novo paradigma de
produção industrial, permitiram uma maior customização da produção, com maior relação
desta com a demanda dos consumidores, laços mais estreitos com comercialização, reduzindo
os níveis hierárquicos internos e alterando a própria organização do processo industrial com a
introdução de novos procedimentos.
45
Todas as iniciativas da empresa em reestruturação afetarão diretamente o emprego, pois o
resultado de uma produção vinculada à demanda, de uma estrutura mais horizontalizada, e de
uma empresa mais enxuta, é a redução do número de funcionários e o desenho de um novo
perfil de trabalhador.
Onde aparentemente a nova forma de gestão estabiliza e cria um ambiente de trabalho mais
harmonioso e participativo, é exigido um novo perfil desse trabalhador, que deve possuir uma
série de atributos e requisitos, que Guimarães (2003 p.14) chamou de a “nova síndrome de
requisitos”, envolvendo e implicando ‘subjetivamente’ o trabalhador, como poderemos ver no
capitulo III.
“... o que tem se tornado fundamental para a implantação dos
programas de reestruturação é a readequação do trabalho
vivo aos novos paradigmas organizacionais e técnicos, tanto
objetiva quanto subjetivamente”. (Vermelho, 1998, p.11)
2.1.1. As mudanças na classe trabalhadora
Todas essas mudanças trouxeram repercussões na forma de ser da classe trabalhadora, de seu
movimento sindical, de seus partidos, de seus ideários e valores.
A partir do momento em que a classe trabalhadora tornou-se mais heterogênea, fragmentada e
complexificada, os organismos sindicais foram intensamente afetados. Houve uma diminuição
das taxas de sindicalização, pelo processo de terceirização e pela precarização das relações de
trabalho.
A crise sindical se defronta com uma contextualidade que tem em sua base uma crescente
individualização das relações de trabalho. A base hoje está na negociação onde ‘cada caso é
um caso’. Isso desmonta a possibilidade de uma ação política e direcionada para os interesses
reais dos trabalhadores. Os interesses não são mais coletivos e sim individuais, o que afeta a
identidade coletiva da massa de trabalhadores, e por conseguinte o Movimento Sindical.
Além disso, os sindicatos enfrentam hoje uma crise intensa pelo esgotamento de seus modelos
e por sua burocratização e institucionalização. O papel que desenvolvem hoje, com recursos
do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), oferecendo cursos com o objetivo de qualificar
46
desempregados, com o intuito de reinserir o trabalhador no mercado de trabalho, vem sendo
bastante questionado.
Segundo Freyssenet (1989) “... não há um movimento generalizado de desqualificação ou um
movimento de aumento geral de qualificação, mas um movimento contraditório de
desqualificação do trabalho de alguns pela ‘superqualificação’ do trabalho de outros...”.
(apud Antunes, 2002, p.63).
Para Harvey (1992), houve uma intensa e rápida segmentação da classe trabalhadora.
Segundo ele, existem hoje dois grupos de trabalhadores: o primeiro grupo é composto por
trabalhadores que estão no centro do processo produtivo, são os que permanecem em tempo
integral dentro das fábricas e que estão sendo cada vez mais escassos; o segundo grupo é
periférico e possui dois subgrupos: um composto por trabalhadores em tempo integral e com
habilidades facilmente disponíveis no mercado, que possuem alta rotatividade; e o outro
incluindo empregados em tempo parcial, com contratos por tempo determinado, temporários e
sub contratados, sendo estes cada vez mais numerosos. (apud Antunes, 2002, p.62)
A introdução da tecnologia no processo produtivo estabeleceu, segundo Antunes (2002), um
complexo processo interativo entre trabalho e ciência produtiva, que não levou, como se
acreditou, a uma extinção do trabalho vivo.
O que existe hoje, é uma utilização do trabalho intelectual do operário e uma reorganização
do tempo e do espaço. Visualiza-se a tendência para o incremento das atividades intelectuais
no trabalho produtivo. Não é exagero dizer que a força de trabalho apresenta-se cada vez mais
como força inteligente.
As novas formas e o desenvolvimento tecnológico alteraram as relações no trabalho.
Rompendo com uma estrutura anterior, onde havia um paradigma industrial e tecnológico, a
ofensiva do capital com intuito de recuperar-se, estruturou-se sob o domínio do sistema
financeiro, modificando totalmente a relação capital e trabalho.
Com isso, ampliam-se as formas de trabalho imaterial, sendo ele a interface da nova relação
produção-consumo. Ele organiza e ativa a relação produção-consumo, inova, dá forma e
materializa as necessidades, o imaginário, os gostos.
47
“A particularidade da mercadoria produzida pelo trabalho
imaterial (seu valor de uso sendo essencialmente seu
conteúdo informacional e cultural) consiste no fato de que ela
não se destrói no ato de consumo, mais sim se expande,
transforma-se e cria o ambiente ideológico e cultural do
consumidor”. (Antunes, 2002, p.127)
Desse modo, a intensificação do trabalho imaterial não produz somente mercadorias, mas
produz, ao mesmo tempo, subjetividade e valor econômico.
Ainda segundo Antunes (2002), o trabalho imaterial possui uma interseção entre a esfera da
subjetividade do trabalho e o processo produtivo. Isso obriga o trabalhador a saber “tomar
decisões”, “analisar situações”, convertendo o trabalhador em sujeito ativo, assumindo uma
forma ativa de subjetividade. Entretanto, trata-se de uma forma de construção de uma
subjetividade inautêntica (Tertulian apud Antunes, 2002, p. 128), já que a dimensão de
subjetividade está tolhida e voltada para valorização e auto-reprodução do capital.
2.1.2. As novas faces do desemprego
Mas não podemos nos desprender do principal motivador da reestruturação produtiva, que é a
busca pela permanência num mercado global competitivo. As organizações hoje têm
encontrado meios de tornar-se mais competitivas, unindo interesses para o aumento de um
mercado correlacionado.
O aumento do número de fusões e aquisições
10
, realocações de plantas industriais ou até
mesmo fechamento de fabricas, são conseqüências claras dessa realidade.
Os processos de demissão conduzidos pelas empresas poderão ocorrer na forma de programas
de Demissão Voluntário (PDV), Incentivada (PDI) e até mesmo demissões por aposentadoria
(antecipações de aposentadoria).
10
Segundo Alves (1999), desde 1994, no Brasil, as fusões e aquisições na indústria e no setor de serviços
cresceram cerca de 22% ao ano (com cerca de 175 operações), atingindo seu pico em 1997 (com cerca de 370
operações), e com a presença significativa do capital estrangeiro.
48
Seja da maneira que for, toda reestruturação ocorre na perspectiva ou na eminência de uma
mudança e envolve, hoje, processos de demissão em massa. O impacto local de um processo
deste tipo pode ser tão avassalador, que pode desestruturar toda uma comunidade local.
“Empresa XXX precisa urgentemente reduzir custo, e vai promover uma reestruturação geral que inclui a
demissão de aproximadamente 3 300 funcionários”. (Folha online, 31/10/2004)
“As mudanças na XXXX já começaram, e a reestruturação já provocou 1.300 demissões, segundo o
sindicato de trabalhadores do setor”. (Folha online 22/08/2004)
“A XXX anunciou nesta quinta-feira que vai demitir 3.500 funcionários ou cerca de 10% de sua força de
trabalho. As demissões vão acontecer para melhor a estrutura de custos da companhia. O objetivo é ter um
terço desse total de trabalhadores após os processos de reestruturação”. (Folha online 19/08/2004)
“A partir do dia 31 de julho, a X encerra seu funcionamento na unidade da capital, com isso, teve de
demitir 307 funcionários. Em outubro do ano passado, a empresa anunciou a transferência do trabalho feito
na capital para a unidade de X”. (Folha online 15/07/2004)
Segundo Guimarães (2002), a reestruturação produtiva nos coloca diante de problemas sociais
que afetam tanto os ‘sobreviventes’ deste processo, quanto os que dele parecem estar sendo
‘excluídos’.
O termo exclusão tem a ver com a forma que devemos olhar para o problema do desemprego
hoje. Há uma diferença entre a dinâmica atual do desemprego e as anteriores. Hoje o
desemprego possui um caráter estrutural, o que significa que o problema não mais acompanha
conjunturas e momentos de crises econômicas.
Ao discutir a atual condição salarial, marcada pelo desemprego em massa e pela instabilidade
das situações de trabalho, Castel (1998), retrata historicamente o percurso da exclusão
11
. Para
o autor, o desemprego não é uma bolha que se formou nas relações de trabalho e que poderia
11
Ao invés do termo exclusão, que o autor considera estanque e designando um estado de privação, utilizará o
termo desfiliação, que designa a reconstituição de um percurso.
49
ser reabsorvido. Ele se insere na dinâmica atual da modernização e são as conseqüências
necessárias dos novos modos de estrutura do emprego, a sombra lançada pelas reestruturações
industriais e pela luta em favor da competitividade.
“Desemprego em dimensão estrutural, precarização do
trabalho de modo ampliado e destruição da natureza em
escala globalizada, tornaram-se traços constitutivos dessa
fase da reestruturação produtiva”. (Antunes, 2002, p.34)
Segundo Guimarães (2002), até então evidenciava-se o desemprego como fenômeno
transitório e involuntário, mas a caracterização de uma nova categoria social a dos
“desempregados de longa duração”, revelou uma novidade: a ruptura do nexo entre emprego e
desemprego. Para a autora, o crescimento da produção passa a se dar sem um aumento
proporcional do emprego, evidenciando o desemprego estrutural.
Estudos sobre o da trajetória de demitidos apontam e reforçam a consideração acima. Leite
(2003), ao falar sobre o processo de reestruturação, ressalta que “quanto mais sistêmico o
processo de reestruturação, maior dificuldade dos demitidos em voltar a conseguir emprego
formal”. (Leite, 2003, 111).
O desemprego tornou-se um problema que coloca as pessoas cada vez mais à margem do
processo produtivo. Segundo Cardoso (2000) “o desemprego significa quase sempre
exclusão”. (Cardoso, 2000, p. 65)
O desemprego de longa duração, configurando-se como um verdadeiro processo de
empobrecimento e de exclusão social, sobrevive em uma economia marginal e informal que
só se agrava. É uma perda progressiva de todos os direitos.
Por isso, segundo Tittoni (1999), a exclusão social faz parte da vida desses trabalhadores que
não conseguem retornar ao mercado de trabalho.
Tosta (2000), que em sua pesquisa analisou o desempregado de longa duração (determinou
longa duração o desempregado longe do mercado formal a 12 meses), concluiu que o
desempregado é privado de uma série de condições que extrapolam a econômica, e que por
estar privado do acesso ao trabalho, o indivíduo vê enfraquecer seus outros direitos sociais.
A temática da marginalização acompanha o desempregado que tem no tempo seu maior
50
desestabilizador, pois quanto mais o tempo passa, mais difícil retornar ao mercado de
trabalho, mais difícil ser aceito nas entrevistas de recrutamento, mais fácil ser rejeitado, mais
fácil se sujeitar a qualquer trabalho mal remunerado. Sem esquecer, é claro, que é mais fácil
perder as esperanças, e ver todas as suas forças se extinguirem. Mais fácil sua família desistir
e amigos se afastarem.
51
III. A ORGANIZAÇÃO DO MEDO
“... o medo de perder o emprego aumenta a dependência à
empresa, integrando-se (o sujeito) à produção e silenciando a
própria dor”. (Barreto, 2000, p. 144)
As organizações, que são os alicerces da produtividade do capital, estruturam-se de forma a
conduzir o processo de acumulação, incentivando mudanças que propiciem aumento de
produtividade. Nas organizações, a racionalização das estruturas e das relações pessoais se
disseminam, afetando os modos de vida e de trabalho, desenvolvendo uma estrutura mais
enxuta, e muito mais flexível em suas formas contratuais, do que as antigas estruturas
agrícolas e/ou as industriais dos primeiros períodos da industrialização.
Para Ianni (2001), o processo de globalização provocou o aumento da diversidade, das
desigualdades e das contradições, enfraquecendo o estado-nação e fazendo emergir a
sociedade global, uma nova realidade, que possui como uma de suas características a
tecnificação, que espalha-se pelo mundo em benefício do rendimento.
“O capital deflagrou, então, várias transformações no
processo produtivo, por meio da constituição das formas de
acumulação flexível, do dowsizing, das formas de gestão
organizacional, do avanço tecnológico, dos modelos
alternativos ao binômio taylorismo/fordismo, onde se destaca
especialmente o ‘toyotismo’ ou o modelo japonês”. (Antunes,
2002, p.47)
Mas, empresas não existem sem pessoas. Tudo ‘recairá’ sobre o sujeito da organização, que
deverá ‘reproduzir’ o discurso da organização: deverá ter responsabilidade, autonomia e senso
de cooperação. No entanto, isto poderá explodir em conflito, já que a realidade, desejo e
intenção do sujeito são diferentes dos desejos, realidades, e intenções da empresa.
Foi diante disso que Pagès (1987) afirmou que a organização funciona como um sistema de
mediação das contradições, que tem de um lado os trabalhadores e do outro a empresa. O
sistema de mediação se coloca como a aliança entre as restrições da empresa e os privilégios
aos indivíduos.
52
Para o autor, a organização permite ao individuo defender-se da angústia, propondo-lhe um
sistema de defesa sólido, organizado e legitimado pela sociedade. Em contrapartida, exige do
individuo sua colaboração com a manutenção do poder, tentando evitar ao sujeito afrontar
suas contradições íntimas.
Essa ação mediadora encobre e oculta processos contraditórios, tentando antecipar e
transformar as contradições, antes que elas se transformem em conflitos coletivos.
Pagès (1987) observou no discurso dos sujeitos, trabalhadores de uma grande corporação que
entrevistou, que:
“... tudo se passa como se as contradições fossem
constantemente ‘retomadas’ no momento em que elas
poderiam desembocar num conflito aberto com a empresa”.
(Pagès, 1987, p.23)
Na mesma linha de raciocínio, Schirato (2000), em sua pesquisa com trabalhadores demitidos,
concluiu que não há outra forma de pensarmos a relação homem-organização, senão com base
em sua contradição.
Conclui-se, portanto que todas as políticas positivas das empresas são formas de antecipação
de conflitos. Políticas de altos salários, participação nos lucros e resultados, promessas de
carreira ascendentes, prêmios - tudo isso a seu preço.
A compreensão das relações de poder e dos sistemas de dominação são importantes para
compreender o sujeito na relação com a empresa. O desenvolvimento de um sistema
decisório, com autonomia controlada, e o desenvolvimento de uma dominação psicológica
onde o sujeito tende a assumir a organização como sendo dele, por que isso lhe foi incutido.
“É a ilusão do poder que produz a submissão do individuo e sua dependência”. (Pagès,
1987, p. 141)
A compreensão do medo só é possível com a compreensão do poder, pois o medo se instala
no psiquismo do sujeito como um sinal ao perigo, imposto pela lei e pela autoridade.
O medo sempre esteve presente no ambiente laboral. A empresa sempre foi um ambiente
estressor.
53
Por exemplo, Seligmann-Silva (1994) identificou quatro formas de controle presentes dentro
das empresas que pesquisou. Em dois deles, o medo está presente como resposta:
1. Sobre os riscos: a omissão de informações sobre os riscos laborais à saúde reflete uma
forma de exerção de controle;
2. Sobre as sanções: a desinformação sobre sanções causa medo, como, por exemplo, ser
despedido “sem direito”. Ter o nome incluído nas próximas listas funcionaria como
uma poderosa pressão;
3. Sobre os direitos e deveres face à legislação: não existe, de forma sistemática, a
divulgação dos direitos e deveres dos trabalhadores.
4. Sobre os critérios para pagamento por produção: o desconhecimento das regras e
critérios, que poderia provocar um conflito, faz o sujeito não protestar contra a
possibilidade de estar sendo enganado, exatamente pelo medo de perder o emprego.
Há a exploração do fatalismo.
Em todos os casos acima relatados, os trabalhadores apontam a falta de clareza intencional e
cultural nas informações que lhes são repassadas, como sendo o grande gerador de dúvidas e
incertezas. Tanto as chefias, como os operários relatam que não sabem com precisão o que vai
acontecer, embora tenham recebido algumas informações. Criam-se suposições sobre o
‘como’ e ‘o que’ será feito, sendo isto grande causadora de angustia e ansiedade.
Mas, o aumento do desemprego estrutural e a propagação de suas conseqüências devastadoras
amplificam o medo no ambiente de trabalho, deixando o trabalhador muito mais vulnerável, e
em situação muito mais fragilizada.
Para Heloani (2003b) atualmente observa-se uma pressão constante contra a grande massa de
trabalhadores existente em quase todo o mundo. Uma ameaça com objetivo certeiro faz com
que milhares de pessoas sintam-se sobressaltadas, pois a única ferramenta de que dispõem,
sua força de trabalho, pode ser dispensada a qualquer momento.
Para Dejours (2003), o 'consentimento’ da maioria das pessoas com a situação de desemprego
e miséria tem origem no medo, na vergonha e na forma como marcamos as distâncias em
relação aos excluídos do sistema, para nos protegermos e suportarmos o sofrimento sem
perder a razão.
54
O medo e a angústia do trabalhador empregado é uma das piores conseqüências do
desemprego.
“O desemprego massivo produz socialmente o medo de não
encontrar emprego e, de ao encontrá-lo, perdê-lo,
aumentando a incerteza quotidiana”. (Ribeiro apud Barreto,
2000 p. 102)
O medo e a angústia agravam o sofrimento mental. À medida que diminui a segurança no
emprego, o medo abre uma porta para o sofrimento. Quem sofre é o sujeito, e sofre dentro e
fora da organização. O desempregado, excluído do mercado de trabalho, tem medo de não
encontrar um novo emprego, e o empregado, que está dentro da organização, sofre com o
medo e com as pressões que podem virar ameaças, e até mesmo desembocar em novas
demissões.
Inúmeras pesquisas e estudos que investigam a saúde do trabalhador em seu ambiente de
trabalho advertem: o maior medo de quem tem emprego hoje, é perdê-lo.
Em pesquisa realizada com trabalhadores fabris, afastados por distúrbios nervosos,
Seligmann-Silva (1994) observou as manifestações do desgaste mental no trabalho e
identificou várias conexões entre a vida laboral e as condições gerais de vida. Dentre esses
aspectos, o `medo´ surgiu como fator importante de avaliação, já que a sanção mais temida
por todos os funcionários afastados era a demissão.
Antunes (1995) aponta que uma das conseqüências das mudanças ocorridas no mundo do
trabalho foi a criação de um novo tipo de trabalhador, mais flexibilizado, mas, em
contrapartida, mais inseguro em seu emprego.
Para Merlo (2003), às exigências da organização do trabalho somam-se novas exigências e
outro sofrimento, que advém do medo de não ser capaz de manter uma performance adequada
no trabalho, nas novas formas de gestão "reestruturadas", por medo de serem punidos com a
demissão.
Há décadas, o campo da Saúde Mental e Trabalho (SM&T) desenvolve estudos contribuindo
para a melhor compreensão da saúde do trabalhador. Apesar de toda polêmica e
55
discordâncias, oriundas da impossibilidade do nexo causal doença / trabalho, constata-se a
existência do sofrimento, mas não se identificam suas origens.
Mas, Barreto (2000) aponta que a impossibilidade de reconhecer o nexo causal da doença com
o trabalho, faz com que o adoecido tenha que comprovar a sua doença e correlacioná-la ao seu
trabalho. Sofrendo a partir daí, pressões e ameaças, sendo ridicularizado e humilhado, o
sujeito chega, muitas vezes, a concordar com a demissão e ainda sentir-se culpado.
“Desde 1910 que se sabe do sofrimento psíquico das
telefonistas, e até hoje não se sabe, com precisão, por que
sofrem... por ser onipresente, o trabalho e seus efeitos são
difíceis de detectar”. (Codo, 2002, p.25)
Todos esses problemas, provavelmente ocorrem por que o trabalho extrapola a atividade em
si. Na relação com o sujeito, o trabalho invade e permeia todas as suas atividades e é
determinado pela estrutura política, social e cultural, entrando na composição de sua
identidade.
Por isso, uma situação de crise econômica e agravamento da insegurança, altera as relações no
trabalho. Há uma relação entre o social e o trabalho, e o sujeito na organização será afetado
por isso, aumentando seu medo e sofrimento. Para Merlo (2002), o medo é um dos
sofrimentos mais importante provocados pelo trabalho.
As mudanças estruturais no trabalho agravaram as situações causadoras de medo. O medo do
desemprego altera as reações já existentes e cria novas formas, podendo ocasionar maiores
danos ao sofrimento físico e mental do trabalhador.
Mas, quais as conseqüências do medo mobilizado nas relações de trabalho para o sujeito?
Dejours (2003), em análise sobre o medo no ambiente organizacional, aponta que o medo
deve ser sempre analisado em relação com os processos de demissões e precarização do
trabalho. Compreende a relação dos fatores externos à estrutura do trabalho, como orientador
de uma conduta interna, e propõe quatro efeitos principais para a mobilização do medo:
a) a intensificação do trabalho e o aumento do sofrimento subjetivo;
b) a neutralização da mobilização coletiva;
56
c) a emergência da estratégia coletiva do silêncio, cegueira e surdez, no sentido de "não
perceber" o sofrimento e a injustiça infligidos a outrem;
d) o individualismo.
Abaixo, proponho uma discussão sobre essas questões levantadas por Dejours (2003):
3.1. a intensificação do trabalho e o aumento do sofrimento subjetivo – medo
transformado em produtividade
Segnini (1999) aponta, em estudo com bancários em São Paulo, que o medo da perda do
emprego, sempre presente em todas as entrevistas e nos debates em grupo, constitui-se em
grande motivador para o trabalho, em tempos de discursos participacionistas.
A percepção dos trabalhadores é de que trabalham mais, percebendo salários relativamente
menores, em comparação com os anos anteriores.
Nesse sentido, o medo é transformado em produtividade, já que se observa a intensificação do
trabalho, tanto pela fusão de postos de trabalho, como pelas exigências decorrentes de
programas de gestão, como por exemplo, de qualidade. Procuram a maximização dos
resultados pela forma de dominação e controle que se faz pela organização, transformando
medo em sujeição.
“O sentimento de insegurança quanto à manutenção de
emprego também pode ser instrumentado”. (Seligmann-Silva,
1994, p.159)
O medo torna-se um poderoso instrumento de manipulação.
Ghisleni (2003) observou que com o medo do desemprego, os trabalhadores vêem-se em
situação de não poder parar de trabalhar, mesmo que já tenham cumprido suas tarefas. Eles
alegam que se a chefia percebe que estão parados, interpreta que estão fazendo “corpo mole”,
que estão com pouco trabalho, ou ainda, que querem ser demitidos.
57
Para Seligmann-Silva (1994), o medo surge como resultado de um sistema de dominação e
controle existente dentro do ambiente de trabalho, e aponta a existência de dois tipos de
dominação: a repressão explícita e a dominação sutil.
Segundo a autora, a dominação sutil apresenta-se de maneira muito mais perigosa. Domina a
manipulação de sentimentos como o afeto, a gratidão e a provocação de sentimento de culpa,
onde as exigências são criadas em nome de uma racionalidade tecnológica.
Nesse tipo de manipulação, muito comum dentro das empresas hoje, o medo não é da
violência, embutida na repressão explícita, o medo é de perder o prestígio, de fracassar, de
perder seu posto.
A nova gestão do trabalho, que “vende” a idéia de ser mais adaptada ao ser humano,
administra agora sob um aparato mais abstrato, mexendo muito mais com a subjetividade do
sujeito e exigindo do profissional mais responsabilidade, adaptabilidade e perfeição.
Para Heloani (1994) os estudos realizados sobre as formas de gestão participativa no Brasil,
apontam para uma alienação maximizada na medida que se exige além do trabalho, a
afetividade e/ou até o inconsciente. Segundo o autor, no caso do Brasil, as políticas
empresariais são caracterizadas por envolver mecanismos de controle da percepção e
subjetividade para enquadrar trabalhadores mediante engrenagens que visam introjetar as
normas e metas da empresa.
Numa ‘super empresa’ ou empresa hipermoderna
12
, só existe lugar para ‘super empregados’,
que devem ser ‘super-homens’: bonitos, felizes, altamente qualificados, que não cometem
erros, enfim, perfeitos.
Atitudes como estas são divulgadas pela mídia especializada que molda, personifica e
padroniza o “empregado perfeito”.
Um artigo da revista inglesa The Economist, cita os 10 atributos essenciais dos dirigentes do
séc. XXI, (apud Amadeu, 2002, p.159), são eles:
- velocidade: o mais ágil vencerá o mais lento;
- gente excelente: o gerente deve se cercar de gente melhor do que ele próprio;
12
Termo utilizado por Max Pagès em “O poder das Organizações” (1987).
58
- abertura: mente aberta para as mudanças;
- cooperação: deve garantir a cooperação total dos funcionários;
- disciplina: foco e disciplina;
- boa comunicação: o dirigente deve ser um bom comunicador;
- relevância na informação: é preciso saber selecionar a informação;
- foco no mercado e no cliente;
- compartilhar o conhecimento: propiciar aprendizado;
- liderança pelo exemplo.
Resumindo, o trabalhador precisa ser rápido, porque o tempo do dinheiro é rápido; bondoso e
cooperativo com os outros, reprimindo qualquer atitude de hostilidade; além de servir e seguir
exemplos, o que significa repetir o modelo e o discurso da excelência.
É a exigência da excelência. A busca impossível, que massacra os sujeitos dentro da empresa.
Segundo Pagès (1987), o medo de fracassar e de perder o amor do objeto amado está sempre
presente. Estes medos coexistem com a culpabilidade, pois dificilmente o sujeito, estará à
altura das exigências da organização e do ideal que se procura atingir.
Werner (2002), em sua pesquisa sobre a vivência subjetiva do trabalhador diante dos
processos de reestruturação, aponta que a tendência das empresas de privilegiar o fator
humano tem por trás a promessa de um ideal: a promessa de uma satisfação “narcísica” ao
sujeito. Isso, de alguma maneira, faz com que o sujeito intensifique sua energia e volte todas
as suas forças para a empresa.
Anna Pollet (apud Antunes, 2002), ao estudar a sistemática do ‘team work’ (prática de
gerenciamento moderno, que visa a estrutura de times dentro das empresas, privilegiando o
trabalho e as decisões em grupo), concluiu que houve, por parte dos trabalhadores, pouca
aceitação das “novas técnicas”, aumento da competição entre eles, além de uma resposta
gerencial mais dura. O que a princípio deveria funcionar sem comandos rígidos por parte dos
gestores, intensificou o trabalho, a competição e o ambiente tornou-se mais estressante. A
autora chamou atenção para a compreensão de que as mudanças ocorrem muito mais no plano
do discurso, do que na realidade do trabalho cotidiano.
59
Outra pesquisa, de Carol Stephenson, confirma o peso do desemprego e do contexto
econômico depressivo como fatores que propiciam o ‘envolvimento’ dos trabalhadores com o
projeto da empresa. (Antunes, 2002, pg. 82)
O individuo nas organizações vive o sonho de onipotência e perfeição, e a empresa sabe lidar
com essa fragilidade a seu favor. É o que ressalta Macedo (1992), ao estudar o impacto do
desemprego:
“o medo do desemprego, principalmente frente á sua
generalização na sociedade, pode gerar no empregado
sentimento de gratidão, flexibilidade, etc, por estar
trabalhando, mesmo que tenha garantido apenas o aspecto de
remuneração”. (Macedo, 1992, pg.51)
3.2. a neutralização da mobilização coletiva
Uma das conseqüências dos fatores já comentados anteriormente, o medo mobilizador da
produtividade, e o que discutirei no próximo item (a instrumentalização do individualismo), é
o enfraquecimento da ação da classe trabalhadora.
Mattos (1998), ao analisar as características recentes da ação sindical no Brasil, coloca que
um novo quadro de relações de trabalho, impulsionado pelo processo de reestruturação
produtiva, flexibiliza os acordos, já que a última coisa que o trabalhador quer é correr o risco
de entrar em conflito com seu empregador.
Nesse sentido, o medo de perder o emprego está implícito nessa relação. Assim, o medo traz,
como conseqüência, o enfraquecimento da ação sindical.
É inegável que a situação de desemprego crescente é um obstáculo real à retomada das
mobilizações sindicais, afinal, os sindicatos enfrentam hoje um esvaziamento dos seus
quadros. Tanto pelo aumento do número de demitidos que deixam a categoria, como pelo
esfriamento na disposição de luta dos trabalhadores diante do temor das demissões.
Alves (1999) coloca que o toyotismo buscou o consentimento ativo da subjetividade do
"trabalho vivo", e passou a constituir-se através da síndrome do medo.
60
Para o autor, a precarização que se disseminou nos anos 90 no Brasil e que atingiu o "núcleo
moderno" da implicação assalariada, catalisando a síndrome do medo, tornou-se perceptível
não apenas através do crescimento do desemprego em massa, mas, principalmente, pela
tendência contínua de precarização do estatuto salarial da força de trabalho no Brasil.
"... o medo do desemprego passa a ser a principal
preocupação para um amplo setor da mão-de-obra".
(Rodrigues, apud Alves, 1999, p. 123)
Coloca-se, assim, outro problema ou conseqüência, que é a precarização. Como resultado de
uma flexibilização das leis e proteções, a organização passa a não ser mais o ambiente seguro
onde se passará o resto de sua vida ativa, até sua aposentadoria. Não há mais garantias, nem
mesmo no mais seguro dos lugares.
O sujeito que, dentro da organização assiste a diversas demissões, vê vários de seus colegas
serem mandados embora e que tem medo de ser a próxima vítima, sabe que a falta de
proteção é uma das causas de sua angústia.
É ‘atemorizante’, pois o mercado é volátil. Histórias de desemprego de longa duração e de
situações em que o trabalhador não consegue mais voltar para o mercado formal se repetem. E
mais, aquele que consegue voltar ao mercado formal tem até mais medo, porque já conhece as
conseqüências do desemprego.
Estramiana (1992) aponta que o desemprego pode ter diversas conseqüências negativas, como
por exemplo, a aceitação cada vez maior de empregos precários, com salários baixos e pouca
mobilização política.
3.3. a emergência da estratégia coletiva do silêncio, cegueira e surdez, no sentido de "não
perceber" o sofrimento e a injustiça infligidos a outrem
“Quando o medo atinge um nível muito alto e perdura por
tempo prolongado, sem que o trabalhador consiga detectar
sua fonte, ocorre uma evolução no sistema e há um
envolvimento maior, onde o organismo, como um todo, reage
manifestando um quadro de angústia, extrema irritabilidade e
61
depressão. A tensão interna aumenta tanto, que o indivíduo
necessita manifestar seu descontentamento e descompasso”.
(Sherafat, 2002, p. 13)
Para Werner (2002), é possível questionar por que os trabalhadores não têm conseguido se
organizar coletivamente na atualidade, como fizeram em outros momentos históricos.
Diversos autores se referem à inibição dos trabalhadores na manifestação da sua
inconformidade por medo de perder o emprego, ou por “vergonha” de demonstrar que sofrem
e reclamar de condições inumanas de trabalho (Dejours, 2003; Bárbara,1997; Grisci, 1999).
Na organização onde é o medo que impera, os boatos que precedem as demissões são os
grandes geradores de angústia. E o silencio é a forma fatalista com a qual as pessoas
vivenciam e enfrentam o processo de demissão.
Silva, E., (2000), na verificação da trajetória profissional e subjetiva dos ex-bancários que
aderiram ao programa de demissão, verificou que o medo e a ansiedade foram utilizadas como
instrumentos de pressão para a adesão ao programa de demissão. O medo de sofrerem
demissões desprovidas de indenizações, caso não aderissem ao PDV (Programa de Demissão
Voluntária), fez com que as pessoas aderissem ao Programa, ganhando o medo dimensões
coletivas, provocando defesas como o individualismo, competitividade e indiferença em
relação aos sofrimentos psíquicos sofridos.
A raiva despertada pelos ataques à dignidade tende a ser reprimida, e muitas vezes ressurge,
deslocada para o ambiente familiar ou através de distúrbios psicossomáticos:
“O temor de perder o emprego e a necessidade de garantir a
convivência estavam subjacentes a estas dinâmicas, voltadas
para a repressão e para o ocultamento da raiva”.
(Seligmann-Silva, 1994, p 165)
Barreto (2000), ao divulgar a existência do assédio moral, caracterizado pela humilhação
sofrida por trabalhadores adoecidos, apontou que a omissão dos sintomas da doença é uma
pratica comum entre os trabalhadores, que não falam sobre sua doença por medo perder o
emprego.
O medo aparece como fator, além de produtividade, também de submissão e omissão:
62
“... por medo, passam a produzir mais do que as suas forças,
ocultando suas queixas e evitando, simultaneamente, serem
humilhados e demitidos”. (Barreto, 2000, p. 228)
3.4. o individualismo – e o agravamento da competição
A nova organização exige um novo trabalhador, que deverá possuir novas características. O
individualismo é uma delas. Constituindo-se como uma das respostas da mudança nas
organizações, o individualismo marca uma nova forma de relacionamento dentro da empresa.
O medo muda as relações. Diante dele, cada individuo deverá se preocupar com a sua
segurança, rompendo com os laços emocionais, exaltando o individualismo e aumentando a
competição dentro da empresa.
O aumento da competitividade dentro das empresas é tido como expressão do desemprego.
Para Werner (2002), o inimigo na nova organização é o colega ao lado, pois é tal a
competição provocada por essas propostas individualistas, que o colega de trabalho passa a
ser uma ameaça ao seu emprego.
Para Freud (1921), quando os laços mútuos entre os sujeitos do grupo deixam de existir,
liberando um medo gigantesco e insensato, cada indivíduo passa a se preocupar apenas
consigo próprio, sem qualquer consideração pelos outros. Nesse sentido, “o medo tornou-se
grande a ponto de poder desprezar todos os laços e todos os sentimentos de consideração
pelos outros”. (Freud 1921, p. 122)
O sujeito está mais sozinho do que nunca. Está desamparado, e não vê outra forma de
assegurar-se, se não pela sujeição às exigências da empresa.
Pagès (1987) coloca que o ambiente de competição desenfreado que se instala na organização
faz com que o indivíduo fique isolado. Este indivíduo está condenado a vencer, pois é o meio
de ser reconhecido e de ser amado. Coloca a carreira como o elemento central de sua relação
com a organização.
63
Por isso, o individualismo é marcado pela auto-exigência e pela intensificação de sua
responsabilidade, que segundo Antunes (1995), são os conceitos básicos na implementação do
novo procedimento flexível na organização do trabalho.
Sherafat (2002) revela em seu estudo que, em geral, a falta de confiança gera muito medo e
insegurança para os funcionários. Ele observa que a falta de relacionamento honesto e sincero
causa muitos transtornos para todos.
A organização estimula o individualismo. Segundo Segnini (1999), os salários são
estruturados de modo a reforçar esse processo, que somado ao medo do desemprego, promove
índices de produtividade elevados.
Por isso, diante de diversas tensões o medo de ser mandado embora é o que permeia a vida
dos trabalhadores.
Acrescento às idéias de Dejours (2003) dois pontos importantes que devem ser levados em
conta quando falamos do medo de perder o emprego:
1. A imagem negativa que possui o desempregado em nossa sociedade
Um artigo recente que falava sobre as transformações no trabalho é o exemplo que ilustra bem
o que representa hoje a imagem negativa do desempregado:
“como na selva, vencerá não apenas o mais forte, mas o mais estratégico, o que consegue
mais apoio da equipe e da alta gerencia, e o que tem mais habilidade de lidar com situações
difíceis”. (Amadeu, 2002, p. 157). Segundo a autora esse será escolhido para a promoção. “Os
outros continuarão se degladiando e o mais fraco conhecerá a amargura da demissão mais
cedo ou mais tarde” (Amadeu, 2002, p. 157) Em uma nota de rodapé complementa “gente
boa também é demitida”. (Amadeu, 2002, p. 157)
Além disso, não é rara a assimilação do desempregado com a violência e com a droga. Como
se o desemprego justificasse tais atitudes. Encontramos todos os dias nos jornais: ‘Fulano de
tal, desempregado, matou x, etc.”
2. A historia de vida e profissional do sujeito
64
Acredito que existem fatores importantes que podem amenizar ou complicar a relação do
sujeito com a dominação da organização. Por exemplo, provedores de família que possuem o
trabalho atual como a única de suas rendas, os graus de envolvimento do sujeito com a
empresa e a vivência de períodos anteriores de desemprego.
E acrescento que Tittoni (1999), ao estudar os modos que os trabalhadores lidam com a
demissão, concluiu que um dos sentimentos dos sujeitos demitidos é o alívio. Acredito que
isto se dê pela cessação da angústia causada pelo medo e temor constante da demissão.
65
IV. ESTUDOS E PESQUISAS DE RELEVÂNCIA SOBRE O DESEMPREGO E SUAS
CONSEQÜÊNCIAS SUBJETIVAS E PSICOSSOCIAIS
4.1. Pesquisas brasileiras
4.1.1. Desemprego e Identidade
Macedo, em 1992, analisou o desemprego e suas relações com a identidade, baseando-se em
depoimentos de desempregados que foram afastados involuntariamente de seus empregos.
Optou por investigar o impacto do desemprego na classe média, por considerar ser este o
grupo, hoje, mais atingido pela crise.
Tentou captar o percurso da história pessoal, enfocando a situação atual e sua implicação na
vida do sujeito, respondendo a algumas questões: o que ocorre quando os sujeitos perdem esta
fonte de reconhecimento social? Como este fato pode afetar suas identidades e quais
estratégias desenvolvem para enfrentar esta situação? Altera-se o significado atribuído ao
trabalho?
Em sua pesquisa concluiu que a reação do desemprego varia de acordo com o contexto em
que se dá, isso significaria que o fato de ser voluntário ou involuntário, afetaria a situação do
desempregado. Mas coloca que em todos os casos, a identidade do sujeito é afetada primeiro
por causa da centralização do trabalho para o sistema de produção capitalista e, por outro
lado, por causa da valorização cultural.
“... o desemprego priva o sujeito da remuneração, do convívio
no trabalho e de uma fonte de identificação pondo em cheque
as opiniões que tem sobre si e suas relações com o mundo”.
(Macedo, 1992, p.61)
Para a autora, as conseqüências do desemprego para o sujeito estão associadas a fatores como
duração do desemprego e contexto sócio-econômico-cultural.
Freitas (1996), em sua dissertação de Mestrado, investigou a construção da identidade de um
profissional que possuía uma carreira de sucesso, que se desfez pela demissão involuntária e
pelo desemprego daí decorrente. Concluiu que a demissão apareceu para o sujeito como um
66
ato de punição. Acrescenta em sua análise que o profissional demitido involuntariamente
sente-se julgado pelos outros, tanto pelos colegas que permanecem na empresa, quanto pelos
familiares e pela sociedade em geral, fazendo surgir, assim, um sentimento de impotência
frente à realidade. Pontua que a identidade ainda hoje é definida e subordinada à uma
ocupação. Quando ocorreu uma demissão, se desfez a carreira profissional sólida de sucesso.
4.1.2. Desemprego e Exclusão Social
Tosta (1999), ao investigar como o desemprego de longa duração (superior a 12 meses) afeta
o cotidiano das pessoas desempregadas concluiu que o desempregado é privado de uma série
de condições que extrapolam a econômica, e que por estar privado do acesso ao trabalho, o
individuo vê enfraquecer seus outros direitos sociais.
Por isso aborda o tema sob a ótica da exclusão social e discute como os sujeitos reagem às
transformações das relações sociais e dos papéis e status decorrentes da ruptura com o mundo
do trabalho.
Diferencia o desemprego e o desemprego de longa duração em relação a seus efeitos.
Segundo a autora, o desemprego de longa duração modifica a identidade do indivíduo. Para a
autora, com o agravante “tempo”, o caminho é a exclusão social, já que sua reinserção fica
prejudicada.
Investigou 16 ex-bancários (sete mulheres e nove homens), de 30 a 49 anos, com tempo
médio de emprego de 15 anos.
Observou que o desemprego e o trabalho era uma linha muito tênue para as pessoas, pois
embora se considerassem desempregados há mais de um ano, realizaram nesse meio tempo
alguns trabalhos autônomos e “bicos”, que pouco se diferenciavam do restante de sua história
profissional.
Outro ponto importante de discussão que a autora traz, é como os profissionais desligados
percebem o momento da demissão, aparecendo sentimentos, relatando o choque da noticia, o
sentimento de perda de uma vida, sentimento de ser apenas um número.
Aborda como as dimensões econômica e familiar afetam e são afetadas pela ruptura do
emprego. Conclui que todos os entrevistadas relataram ter tido uma perda no padrão de vida, e
67
que tiveram que construir um novo modo de vida, tendo que se adaptar à nova realidade,
ficando esta realidade mais acentuada nos provedores de família.
Relata como as mulheres viram o desemprego como uma volta à dependência financeira,
possuindo assim um aspecto negativo. Viver sem emprego é uma realidade que afeta toda a
família.
“A redução da renda, a constante presença em casa, o status
de desempregado e outras questões que advém dessas três
causam reações e sentimentos, ora negativos, ora positivos,
ora ambíguos no seio da família”. (Tosta, 1999, p. 53)
Relata situações familiares de cobrança, o abalo, a preocupação e a irritabilidade. Aparecem
relatos de profissionais que tiveram dificuldades de contar aos membros da família sobre a
perda do emprego. Veja no relato abaixo:
“... quando você está desempregado você começa a ser
discriminado dentro da sua própria casa. A esposa já começa
a te olhar diferente...”. (Relato de um entrevistado, apud
Tosta, 1999, p. 58)
Para a autora, o sentimento que acompanha o desempregado é a percepção de que as pessoas
se afastam, resultando num isolamento social.
Teles (2003), ao analisar as estratégias de sobrevivência dos desempregados e dos moradores
de rua, aponta que o desemprego provoca danos irreparáveis em quase todos os setores das
organizações sociais, assim como desestabiliza a sociedade, a política, a economia, o
mercado, e, principalmente, a família, desarmonizando a ponto de romper os laços de união e
afinidade.
Relata que os danos causados às estruturas familiares são grandes: “’a parte mais difícil na
vida de um desempregado, sem dúvida, é a vida em família, que invariavelmente acaba se
desarmonizando, se desestruturando, e, na maioria das vezes, terminando em separação”.
(Teles, 2003, p.67)
Alguns entrevistados revelavam desejo de ter uma companheira, de construir sua família, mas
sem emprego fixo não há segurança, declaravam eles. Os casados contam que não é fácil
68
manter uma família unida diante das dificuldades no dia a dia. “...o que é mais difícil para um
pai de família... é ter que olhar para os seus filhos nessa situação, isso é muito triste...”.
(Teles, 2003, p.68)
4.1.3. Desemprego e Programas de Qualificação
Bárbara (1997) analisou os documentos que tratavam da qualificação/requalificação, nos
Sindicato dos bancários, CUT e Programa Integral PUC/CUT e Unitrabalho, para verificar,
através do discurso do trabalhador, como as novas formas de produção e a requalificação
eram percebidas por ele.
Abordou em sua análise, entre outros aspectos, o fato dos profissionais participantes dos
cursos considerarem como causa do desemprego o estudo insuficiente, trazendo para a
discussão a questão da autoculpabilização.
Concluiu que o trabalhador tem pouca clareza do que é a reestruturação, que o nível de
aprendizado do trabalhador não é a causa do seu desemprego, apesar dele assim considerar, e
que o fato de ter esta atitude de autoculpabilização provoca sofrimento, pois ele passa a
procurar em sua historia, as causas da demissão.
Assume o fato de que o desemprego traz sofrimento, e que o trabalhador sem emprego
descreve seus estados internos com respostas relacionadas com: a vergonha, sentimento de
exclusão e sentimento de desamparo.
Sarriera e outros (2000), ao delinearam um ‘programa de inserção ocupacional’ para jovens
que tentavam ingressar para o mercado de trabalho, delineando as principais dificuldades
percebidas pelos jovens para o processo de inserção no mercado laboral, perceberam que
dentre as principais dificuldades percebidas para conseguir emprego pelos jovens era a
timidez; o ‘ficar nervoso com facilidade’; não ter estudos, não ter experiência de trabalho e
não saber buscar emprego.
A aplicação do Programa foi realizada com 56 jovens à procura de emprego, cadastrados no
SINE/Adolescente da FGTAS (Fundação Gaúcha do Trabalho e Ação Social), e com os
resultados pode-se concluir, entre outras coisas, que a maioria quis seguir estudando e
concluir seus estudos para garantir a consecução de bens e de trabalho. Ao mesmo tempo,
69
houve uma desvalorização dos cursos profissionalizantes, uma vez que a passagem por eles
não garantiu o emprego.
Além disso, pode-se notar que, em sua grande maioria, o jovem busca um emprego fixo e que
tem ‘medo’ da maneira como o mercado reagirá com eles.
4.1.4. Desemprego e Movimentos Sociais
Del Prette, em sua tese de Doutorado, (1990), analisa o movimento de luta contra o
desemprego, denominado MLCD, ocorrido emo Paulo de 1983 a 1985, para compreender
o fenômeno em sua gênese, trajetória e dispersão.
Inicia sua coleta de informações verificando que as empresas, para minimizar as repercussões
adotaram critérios planejados de dispensa: realizavam demissões gradativas em dias de
semana indiscriminados, além de manterem sigilo absoluto de informações envolvendo as
demissões.
Del Prette mostra como o quadro mobilizou sindicatos e operários, que após amplos protestos
de dias seguidos de conflito, deram início ao movimento de luta contra o desemprego.
Retratou de forma bastante interessante o fortalecimento do movimento, as reivindicações, as
conquistas, os problemas enfrentados, e a perda gradativa de sua representatividade. Mas, o
mais instigante em sua pesquisa, apesar de pouco explorado, é a sua investigação de como os
agentes desempregados sentiam e percebiam a sua situação de desempregado.
Algumas observações que merecem discussão:
- todos os agentes relataram disposição e empenho para encontrar um novo emprego, mas o
tempo empregado na procura resultava em diminuição do tempo para os chamados “bicos”,
necessários para sua sobrevivência.
- os agentes relataram, como conseqüência da condição de desempregado, sentimentos de
culpa, isolamento social, a ameaça da fome, a desestruturação da família e a perda de bens
adquiridos com esforço.
70
- os relatos sobre as formas adotadas no enfrentamento da condição de desemprego foram
agrupados em seis categorias: ajuda mútua, venda de bens, ajuda de entidade, ajuda de
parentes, mudança de residência e mudança de atividade.
- quando perguntados sobre os motivos de filiação ao movimento, os motivos mais freqüentes
foram o ideológico e a necessidade (havia outros dois índices, satisfação pessoal e
solidariedade).
- dentre as crenças e aspirações dos agentes, verificou-se uma busca de uma situação de
justiça e uma possibilidade de mudança social.
- o relato dos agentes que viveram a condição de desempregado mostra que essa experiência
marcou profundamente o cotidiano de cada um, alterando-lhe a auto-estima.
- o sentido negativo da categoria de desempregado é convergentemente reforçado, de um lado
o trabalhador utiliza as atribuições negativas como uma justificativa pessoal para afastamento
de conhecidos, isolamento, a dificuldade com a família e etc., de outro, a designação externa
através dos indicadores sociais, como a restrição de crédito no comércio e o registro no SINE
fortalecem os atributos negativos da categoria.
- os relatos de suicídio, alcoolismo e de desestruturação familiar experienciados por vizinhos
e conhecidos, parecem confirmar as teorias dos que enfatizam as psicopatias relacionadas ao
desemprego.
- a experiência da perda de emprego e seus desdobramentos configuram um quadro
razoavelmente semelhante para o conjunto da classe trabalhadora, a obtenção de uma nova
vaga torna-se mais difícil, e o empobrecimento crescente dificulta a sobrevivência própria e
da família, atingindo praticamente todos.
- assemelha-se igualmente, de empresa para empresa, o ritual burocrático de desligamento do
trabalhador, que obedece, em geral, os passos que se seguem: uma notificação verbal ou
escrita de comparecimento ao setor responsável pela tarefa de seleção e dispensa de pessoal,
comunicação formal de rescisão de contrato de trabalho e notações na Carteira Profissional,
assinatura de documento, encaminhamento para recebimento de salário e outros direitos,
como férias, 13º salário proporcional e retirada do FGTS. Esse ritual compreende um
conjunto de estímulos, que sinaliza para o trabalhador a sua inserção na categoria de
71
desempregado, quando a expectativa de uma nova colocação é baixa, tais estímulos provêm
de sentimentos de desconforto, com prováveis alterações na auto-estima.
- a experiência de desemprego aparece como uma condição determinante da filiação do
trabalhador ao movimento. Mas mesmo sendo bem fundamentada, ainda não existe resposta
para o fato de pessoas nas mesmas situações evitarem a filiação ao movimento. Para o autor a
necessidade que parecia o principal fator, não era uma condição presente, nem determinante
para a filiação.
Em uma perspectiva semelhante, Goulart (2003) analisa o fenômeno buscando compreender
as articulações psicossociais entre o engajamento no movimento social e a possibilidade de
superar o desemprego.
Analisou o MTD (Movimento dos Trabalhadores Desempregados), que teve sua origem em
uma Subcomissão de Desemprego, espaço de discussão composto por desempregados de
Porto Alegre, que tinha como projeto o combate ao desemprego. A meta da ação coletiva era
a conquista de trabalho e moradia.
Concluiu que o movimento coletivo representou a última alternativa de obter emprego no
mercado formal, quando todas as outras possibilidades foram ineficientes, já que houve uma
enorme participação de trabalhadores informais, uniram-se ao movimento para reivindicar
benefícios e direitos.
Constatou que três motivos levaram os participantes à ação coletiva: a precariedade
financeira, a violência das ruas (buscar proteção) e a crença de fazer uma reforma urbana de
desempregados.
4.1.5. Desemprego e Subjetividade
Silva, E. (2000), em sua dissertação de Mestrado, investigou através do relato de ex-
funcionários que aderiram a um programa de demissão voluntária de um banco estatal, os
aspectos subjetivos, familiares e psicossociais destes trabalhadores.
Remonta a história do sistema bancário no Brasil e seu processo de reestruturação, além de
apontar a questão das fusões, aquisições e privatizações. Mostra como, de 1986 a 1996, cerca
de 503 mil postos de trabalho bancário foram suprimidos.
72
Verificou que o medo e o desejo funcionaram como instrumentalizadores da subjetividade, já
que algumas pessoas optavam pela adesão ao programa, que possuía um bom incentivo para
saída, com medo de que fossem mandados embora em um outro momento sem incentivo,
acompanhados de um desejo de libertação e mudança. Além disso, a desvinculação da
empresa foi relatada como uma ruptura e uma perda, e por outros como uma chance de
recomeçar. Mas o que se verificou foi um discurso nostálgico em relação ao banco,
verificando sentimentos de satisfação, mas também angústias e medos.
“...a realidade psicossocial após a demissão revelou-se
extremamente complexa, sobretudo se considerarmos os
efeitos variados derivados dos cruzamentos e interferências
mútuas entre as dimensões sociais, família e individuais”.
(Silva, E., 2000, p. 148)
Muitos dos entrevistados relataram que suas famílias tiveram dificuldade em aceitar a sua
saída do Banco, e alguns foram cobrados pela sua atitude. Foram relatados conflitos
conjugais, dificuldades de relacionamento, e até mesmo problemas com os filhos na escola.
Muitos também relataram dificuldades de relacionamento e perda de interação social.
A conclusão que o pesquisador chega é que os profissionais que aderiram ao programa de
demissão voluntária foram colocados numa situação de pseudo-escolha. Dentre os 36 ex-
bancários pesquisados, (19 mulheres e 17 homens), 12 disseram que foram pressionados a
sair, e apenas três casos disseram que a situação financeira atual era mais vantajosa.
Tittoni (1999), em sua Tese de doutorado, discutiu os modos de subjetivar a demissão entre
trabalhadores demitidos do setor petroquímico, no período de 1990 a 1995.
A questão da autoculpabilização e da desvalorização foram temas centrais em sua discussão:
“as falas dos trabalhadores são atravessadas por elementos de autoculpabilização, embora a
demissão seja hoje um fenômeno coletivo, que atinge um grande número de trabalhadores”.
(Tittoni, 1999, p. 19)
A partir da análise do discurso, objetivou analisar os saberes produzidos pelos trabalhadores
sobre sua condição de desempregado. Problematizou o retorno ao mercado de trabalho, os
modos de pensar o trabalho e a dificuldade do retorno.
73
A partir das entrevistas, construiu três situações que expressam saberes diferenciados sobre a
condição do trabalhador a partir da demissão, são os modos como significam suas
experiências nas situações de desemprego:
1. autônomos: “eu sou corajoso, capaz e competitivo”
2. temporários: “devo ter feito alguma coisa errada, por que minha função foi
desvalorizada”
3. “bicos”: “estou incapaz e doente”
A autora chegou a algumas conclusões importantes:
- a demissão redefiniu os modos de vida dos trabalhadores demitidos em diferentes
aspectos.
- ao estudar o trabalhador demitido, compreende que seu espaço de referencia não é mais o
trabalho, desloca-se para a rua na forma de convívio com vizinhos e outros
desempregados, e para a casa, podendo tornar-se desempregados solitários, deprimidos e
envergonhados.
- existe uma memória, cravada na história e na vida dos sujeitos, ao falarem sobre o
momento em que eram empregados: “apesar da demissão, não podem deixar de ser
petroquímicos” (Tittoni, 1999, p. 80).
- a temática da perda é uma constante: é a perda do emprego, a perda do status, do dinheiro;
- a maioria dos demitidos sentiu que sua atividade ficou desqualificada e desvalorizada;
- os trabalhadores com mais dificuldade de retornar ao mercado são aqueles com mais idade
e com mais tempo de serviço;
- existe um discurso oficial, que reforça a idéia de que tem emprego quem “quer”, e que o
problema está na qualificação, reforçado pelas políticas de emprego que partem hoje dessa
idéia;
- a autoculpabilização aparece como um modo de subjetivar o desemprego, e é causada ou
ocorre pala desvalorização dos saberes;
- os sentimentos vividos pela demissão são: num primeiro momento o alívio; seguido por
sentimentos de vazio; a sensação mais marcante é a insegurança, por causa da perda da
estabilidade; desejo por autonomia;
- a perda do vínculo com a empresa também foi relatada como uma sensação de sentir-se
descartável;
74
- sensações como angustia, sensação de diminuição, depressão e estresse foram relatados
como sentimentos de vivência do desemprego;
- a sensação de perda, associada à incapacidade fica mais forte, quanto maior o tempo de
desemprego;
- para os homens, o que preocupa é manter o papel de mantenedor da família, depender de
alguém para eles é desgastante;
- a imagem negativa do desempregado é sentida, pois sempre se vincula o desempregado ao
vadio e ao preguiçoso;
- a exclusão social faz parte da vida dos trabalhadores que não conseguem retornar ao
mercado de trabalho.
“A situação de desempregado é compreendida através da
experiência como empregado”. (Tittoni, 1999, p.99)
Rosa (1999), em artigo derivado de sua dissertação de mestrado, investiga a tolerância à
frustração em profissionais desempregados, suas repercussões nos aspectos psicológicos
individuais e seus significados psicossociais e éticos. Baseou-se nos referenciais teóricos
existentes sobre a psicologia da frustração e da psicologia do trabalho nas empresas. Analisou
quatro profissionais da área de manutenção, montagem industrial e supervisão de produção
com idades que variam de 44 a 61 anos. Foram realizadas observações nos locais de
agrupamento profissional, entrevistas pessoais semi dirigidas e aplicação do teste PFT de
Rosenzweig. O autor concluiu que:
- o desemprego e o subemprego são obstáculos importantes na vida dos participantes;
- um dos sujeitos, o que havia permanecido durante muito tempo dentro da empresa da qual
havia sido demitido, após noves meses de seu desligamento está elaborando o impacto;
- as influências da frustração, provocadas pelo desemprego, provocam uma reação
psicológica além da área de pensamento e cognição. São mobilizadas barreiras defensivas
do ego que funcionam como protetoras de uma ameaça maior;
- trabalham em subempregos e continuam buscando um emprego formal, tendo que lidar
com a realidade da rejeição do mercado, principalmente por acusa da idade, que os
empurra para um mercado paralelo;
- o desemprego na faixa etária estudada envolve preconceitos sociais existentes nas
empresas, afeta o equilíbrio biopsicossocial do indivíduo, levando a quadro
psicopatológico que pode chegar no estabelecimento e agravamento das doenças.
75
“... o desemprego e as mudanças estruturais do mundo do
trabalho levam às experiências quotidianas de quem deseja
apenas exercer o direito de trabalhar, aos limites da
capacidade de tolerância às frustrações”. (Rosa, 1999, p.184)
Tumolo (2002) realizou uma pesquisa que envolveu 13 participantes, dentre pessoas que
procuravam emprego por meio de encaminhamento do SINE Sistema Nacional de
Emprego de Florianópolis - SC, com o propósito de buscar apreender as características
mais marcantes da vivência dessas pessoas que se encontravam desempregadas.
Dos entrevistados, dez eram do sexo masculino e três do sexo feminino. A faixa etária variava
entre 18 e 51 anos e encontravam-se desempregados por um período que variava entre um
mês e dois anos.
A partir dos relatos dos entrevistados que se encontravam na condição de desempregados e da
análise de seus conteúdos, puderam extrair alguns resultados:
- a situação do desemprego não significa que os desempregados estejam com seu tempo
livre, já que despendem grande parte de seu tempo na busca incessante pelo emprego;
- a condição de desemprego interfere na vida do desempregado como um todo, é uma
preocupação constante que está presente 24 horas por dia, e afeta os relacionamentos, e as
horas destinadas ao descanso;
- os desempregados entrevistados se responsabilizam pela sua situação de desemprego,
geralmente por se considerarem com pouca qualificação, baixa escolaridade, pouca
experiência profissional, idade, etc.
- a família possui um forte significado para o trabalhador desempregado, por causa do apoio
financeiro, quando necessário, mas isso não ocorre sempre, já que o mais comum é o
desamparo financeiro. Além disso, verifica-se uma perda na qualidade da relação entre o
casal, devido às preocupações geradas pelo desemprego. A preocupação com os filhos é
uma constante;
- relatam a perda no poder de decisão sobre a condução de suas próprias vidas, já que a
situação de desemprego gera uma dependência de outras pessoas, sentem que têm de se
sujeitar às regras e decisões daqueles que os sustentam.
76
- ao serem questionados sobre qual a dimensão mais importante do trabalho, se a atividade
ou o salário, todos os participantes atribuem uma importância fundamental ao trabalho
enquanto o meio principal de obtenção de uma remuneração;
- o distanciamento social, expresso na diminuição da freqüência em encontros sociais,
gerado pela necessidade de redução nos gastos, também faz parte da vivência do
desempregado, no momento da situação de desemprego.
- o desemprego atinge pessoas de todos os níveis de escolaridade, e mesmo aquelas que têm
um grau mais elevado de escolarização, não têm encontrado facilidade de conseguir
emprego.
- a falta de informações sobre os critérios de seleção para as funções às quais concorrem,
como também a ausência de uma resposta sobre os resultados dos processos seletivos aos
quais se submetem, geram nos desempregados uma sensação de serem desconsiderados
pelas organizações de trabalho.
- diante de tantas tentativas frustradas de reingresso no mercado de trabalho, e da
conseqüente perda da esperança, assim como do desespero causado pela situação do
desemprego, algumas expressões e atitudes são adotas para recuperar a esperança e aliviar
as tensões: a crença no pensamento positivo e religioso.
- o planejamento da vida futura também fica dificultado, devido à situação do desemprego;
- os sentimentos gerados pela situação do desemprego são negativos, isto é, possuem uma
conotação desagradável, associados a uma experiência de sofrimento por parte dos
desempregados. O desespero, a perda da esperança, o desamparo, a tristeza, a revolta e a
desorientação são sentimentos verbalizados e expressos de forma contundente pelos
participantes.
- o valor da força de trabalho corresponde ao valor dos meios de subsistência que devem
satisfazer as necessidades humanas do trabalhador e de sua família, de acordo com o grau
de desenvolvimento da sociedade na qual estão inseridos.
- conclui que o desemprego é um produto histórico de uma sociedade fundada no mercado,
o capitalismo, que transformou praticamente tudo em mercadoria, sobretudo a força de
trabalho.
Schirato (2000), ao pesquisar 500 trabalhadores demitidos de uma grande empresa de aviação,
durante dois meses do ano de 1995, acrescentando as duas experiências que teve como
consultora no ano de 1997 e 1998 em outras duas empresas, concluiu que não há outra forma
de pensarmos a relação homem-organização, senão com base em sua contradição. Coloca que
77
as organizações são movidas pelo imaginário, enganoso e motor, o que mostra que é na
representação simbólica da convivência pessoal que as relações de trabalho acontecem.
Coloca que o momento da demissão causa dor, causando, entre outros sentimentos,
impotência e paralisação.
“... se a aliança e a entrega total do trabalhador no seio da
organização é resultado de um mundo simbólico, imaginário,
representado por intenções e promessas de proteção, sucesso,
reconhecimento social etc, igualmente o rompimento dessa
aliança – ou fusão – dá-se no plano do imaginário como
abandono, fracasso, impotência, condenação as trevas e à
desgraça. Fora do plano imaginário, longe do feitiço, nem a
empresa é tão protetora nem o desemprego é tão
ameaçador”. (Schirato, 2000, p. 26)
Werner (2002) analisa a vivência subjetiva do trabalhador diante dos processos de
reestruturação, e conclui que a demissão é um fantasma presente que afeta as relações na
organização, amplificando a competição. Segundo a autora, as transformações ocorridas nos
últimos anos, fez com que recaísse nos “ombros” do trabalhador a culpa pela falta de
escolaridade/qualificação, responsabilizando-o pela perda ou ausência de emprego. Segundo a
autora, o desemprego estrutural diminui o processo de autoculpabilização que tem efeitos
nocivos à saúde do trabalhador, pois, além da angústia de estar desempregado, ele sofre
acreditando que está nessa situação por falta de estudo e qualificação, enquanto
responsabilidade individual. Pesquisou um grupo de supervisores de uma prestadora de
serviços da área de comunicação de economia mista, e concluiu entre outras coisas que “ser
demitido é tido como castigo a desobediência e o castigo angustia e atormenta a existência”.
(Werner, 2002, p. 230)
Barreto (2000), ao divulgar a existência do assédio moral, caracterizado pela humilhação
sofrida por trabalhadores adoecidos, apontou que a omissão dos sintomas da doença é um
pratica comum entre os trabalhadores, que não falam sobre sua doença por medo de perder o
emprego. Aponta que em caso de doença do trabalho, o adoecido tenha que provar a sua
doença e correlacioná-la ao seu trabalho, sofrendo a partir daí pressões e ameaças, sendo
ridicularizado e humilhado, o sujeitos chega, muitas vezes, a concordar com a demissão e
sentir-se culpado.
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“... a necessidade do emprego é simultaneamente vivenciada
como medo da demissão e pavor de agressão”. (Barreto,
2000, p. 232)
Calderon (2000) busca compreender qual o impacto de um PDV na subjetividade do
funcionário antigo de casa, a importância da subjetividade no processo de adesão ao PDVS.
Sua pesquisa baseou-se em relatos de funcionários e ex-funcionários de uma instituição
bancaria, que em 1995 institui o PDV. A autora vivenciou pessoalmente a implantação do
programa de PDV, utilizou a abordagem qualitativa e obteve seus dados através de entrevistas
semi estruturadas e análise de documentos. Entrevistou funcionários com no mínimo 12 anos
de empresa. Utilizou como referencial teórico Habermas e Ciampa. Sobre a perda do
emprego, coloca: “é a ruptura da própria biografia”. (Calderon, 2000, p. 91)
Morrone (2001) investigou o prazer e o sofrimento de trabalhadores em atividades informais,
utilizando como referencial teórico a psicodinâmica do trabalho (Dejours). Utilizou a Escala
de Indicadores de Prazer e Sofrimento no Trabalho (EIPST) a 231 trabalhadores em exercício
de atividades informais, donos de barraca de uma feira de importados do DF. Posteriormente,
realizou 20 entrevistas semi-estruturadas individuais com 10 trabalhadores que vivenciavam a
atividade com prazer e 10 que vivenciavam predominantemente com sofrimento.
Partiu do princípio de que é inerente ao trabalho a vivência, o prazer e o sofrimento, e que
todo trabalho pressupõe uma carga psíquica, resultado da confrontação do desejo do
trabalhador, à injunção contida na organização do trabalho.
Para a autora, o trabalho será fonte de prazer quando permitir a diminuição da carga psíquica
e conseqüente livre funcionamento do aparelho psíquico, por estar articulado às necessidades
e desejos psicológicos do trabalhador. E será fonte de sofrimento quando resultar em bloqueio
ou acúmulo de energia psíquica, pela impossibilidade de gratificação dos desejos do
trabalhador.
As vivências de prazer estão ligadas a: gratificação, reconhecimento, benefícios.
As vivências de sofrimento estão ligadas a: descontentamento, falta de
reconhecimento, falta de infra-estrutura.
A autora observa que a valorização da atividade informal ocorre, apesar das condições de
precariedade e possível fonte de sofrimento, por ser vista como propiciadora de oportunidade
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para fazer face ao desemprego. Por isso o título de sua tese: ‘só para não ficar desempregado’.
Essa categoria profissional tenta encontrar caminhos para manutenção da saúde psíquica ao
utilizar mecanismos que favorecem a transformação do sofrimento e a busca do prazer no
trabalho.
“Estar desempregado representa um estado de renúncia e
privação de possibilidades de realização de si mesmo”.
(Morrone, 2001, p.38)
4.1.6. Desemprego e Saúde Mental
Seligmann - Silva (1994), apesar deste estudo abranger uma perspectiva muito maior, a autora
vai abordar a questão do desemprego e suas conseqüências para o indivíduo, sob a ótica da
saúde mental.
Propõe um dialogo interdisciplinar e aborda a questão da dominação para pesquisar as
conexões entre trabalho e processos de desgaste humano. Utiliza o termo psicopatologia do
desemprego, pois considera que o afastamento do trabalho em qualquer situação, representa
uma perda, e se representa uma perda, representa um sofrimento.
“Essa perda será caracterizada por sentimentos de temor e
insegurança quanto ao futuro, tão mais fortes, quanto
menores forem as perspectivas de encontrar, em curto prazo,
um outro trabalho e, quanto menores forem às garantias de
apoio financeiro...”. (Seligmann-Silva, 1994, p. 274)
Lembra-nos de que entre os maiores medos está o da demissão, e que existe a manipulação
deste medo como possibilidade de dominação e sofrimento individual. Além disso,
desenvolve uma interface interessante entre família e trabalho, mostrando como essas suas
instâncias se imbricam na vida do sujeito, concluindo que a situação familiar do presente pode
determinar reflexos para a vida laboral, e vice-versa.
No relato dos sujeitos pesquisados, a autora destaca que o discurso é permeado por um
sofrimento em todas as dimensões de vida do sujeito, seus afetos e relações mais íntimas são
invadidos e atacados pelo fato social do desemprego.
80
A autora aponta ainda que na realidade brasileira é preciso considerar o fato de que o
desemprego é associado à vagabundagem, numa perspectiva de exclusão social.
Moura (2001) apresenta a análise de pesquisa desenvolvida pelo Grupo de Pesquisa sobre
Saúde mental, Trabalho e Subjetividade, do Núcleo de Pesquisa em Psicologia (NUPESP),
Escola de Psicologia (UCPEL). O objetivo era analisar as repercussões do impacto do
desemprego sobre a subjetividade. Adotou-se a pesquisa qualitativa e entrevistas como coleta
de informações, com cinco sujeitos (três homens e duas mulheres). Para a análise, utilizou a
perspectiva metodológica de análise das informações discursivas em Foucault e o referencial
teórico da Psicodinâmica do Trabalho (Dejours).
Segundo a autora, o impacto do desemprego incide sobre os sujeitos de duas maneiras: a
dimensão material e a dimensão subjetiva.
A dimensão material impõe-se como uma reestruturação do orçamento e uma repentina
mudança nos hábitos de consumo doméstico, provocando sentimentos de: ansiedade,
sentimentos de desamparo, impotência.
No que se refere à dimensão subjetiva, observou no relato dos sujeitos uma vivência marcada
por sentimentos de desespero, choque (inicial), pavor, pânico, combinado a intensos
sentimentos de vergonha, fracasso, inutilidade, incompetência, abandono e impotência.
Relatam também sentimentos de esvaziamento, perda e ausência de si mesmo.
“... o sentimento de ausência de si aponta a dissolução do
sujeito-trabalhador, ligada à pratica cotidiana de um
trabalho-emprego que não mais existe”. (Moura, 2001, p.67)
Na visão da autora, a dissolução da subjetividade-trabalhor produz uma abertura à uma
capacidade de análise critica, possibilitando uma melhor auto percepção do sujeito. A
ampliação dessa capacidade de auto -percepção parece estar associada a um sentimento de
decepção em relação ao emprego perdido.
Para a autora, a situação de desemprego faz com que os sujeitos tenham que lidar com
sentimentos e situações até então desconhecidos, que podem trazer desgaste e até mesmo
81
valorização de situações cotidianas, que anteriormente não eram percebidas e nem
valorizadas.
Na fala dos entrevistados, percebeu que a essência do impacto do desemprego está no
elemento surpresa, que é percebido como um ato de violência, quando demonstram
incredulidade e revolta. A superação do choque inicial é seguida por um estado de anestesia,
partindo para um esforço de superação.
A autora conclui que o trabalho representa para os sujeitos o espaço no qual constroem-se
como sujeitos do trabalho, obtendo parâmetros de referência que definem a subjetividade-
trabalhador, assim, desprovidos dessa referência com a ruptura do emprego, os sujeitos vêem
isolados e historicamente desvalorizados, podendo, por isso, vivenciar sentimentos
depressivos carregados de culpa, vergonha e sentimentos de inutilidade.
Observou também variações nas repercussões do impacto do desemprego sobre as vivências
subjetivas dos sujeitos, mas notou alguns elementos comuns, verificando que a vivência
marca a todos da mesma forma.
Para a autora, o impacto do desemprego, o qual torna o sujeito subjetivamente desprovido dos
seus modos de ser, pensar e sentir do trabalho, também conduz a um saudável movimento de
reorganização, o qual, paradoxalmente, representa a oportunidade para o sujeito reencontrar
as dimensões da subjetividade que foram adormecidas ou anestesiadas pela ação de interdição
da lógica prescritiva da organização do trabalho.
“Quanto mais o sujeito obtinha auto confirmação e
reconhecimento, através daquela atividade laboral perdida,
mais intensamente repercutiu sobre ele o impacto do
desemprego”. (Moura, 2001, p.75)
Ludermir (1994), em artigo intitulado de ‘Suicídio, parassuicídio e desemprego’, analisa a
relação doença mental e desemprego, partindo do pressuposto de que os desempregados e
suas famílias tem pior estado de saúde do que os que estão trabalhando.
Ao analisar as evidencias, taxas de mortalidade e ciclos de atividade econômica, coloca que o
mecanismo que liga o suicídio ao desemprego não está ainda totalmente compreendido.
82
Apresentando alguns estudos, conclui que apesar de não ser nenhum estudo conclusivo,
quando tomados coletivamente, apresentam evidências históricas de que o desemprego afeta a
saúde de um dada população, podendo levar ao aumento de taxas de suicídio.
Em outro artigo, Ludermir (2000), apresenta estudo conduzido em Olinda para estimar a
associação do desemprego e do trabalho informal com os transtornos mentais comuns. O
estudo foi realizado com 62.891 habitantes, de idade igual ou superior a 15 anos.
Neste estudo a autora conclui que:
- homens e mulheres vivenciam o trabalho informal diferentemente.
- a duração do desemprego foi significativamente maior nas mulheres (28 meses) que nos
homens (15 meses).
- enquanto as trabalhadoras formais apresentaram uma saúde mental significativamente
melhor que as informais, desempregadas, donas de casa e inativas, as diferenças
encontradas entre os homens não foram estatisticamente significantes.
- as mulheres desempregadas e as trabalhadoras informais apresentaram um risco,
aumentado para os TMC. No entanto, não foi encontrada uma associação estatisticamente
significante entre a posição no mercado produtivo e a saúde mental nos homens.
- onde o trabalho era a principal fonte de remuneração, status e segurança e considerado
fundamental para uma vida decente (79% dos entrevistados o considerou como uma parte
essencial de suas vidas), a desvalorização social causada pelo desemprego (Warr, 1987)
pode comprometer o bem-estar psicológico individual.
- quanto menor a escolaridade, a qualificação e a renda, maiores foram as chances do
trabalhador estar desempregado.
- a desorganização do mercado de trabalho brasileiro e o excesso de mão-de-obra de reserva
(DIEESE, 1996) trazem pessimismo sobre o futuro e diminuem o poder individual
percebido de controle sobre o meio social, gerando ansiedade e depressão.
- a maioria das mulheres aqui estudadas, ao contrário dos homens, ao desempenhar uma
atividade econômica, assumia também outras responsabilidades familiares;
- mas, enquanto 54% das trabalhadoras informais apresentavam ansiedade e depressão,
apenas 19% dos homens sofriam com a informalidade.
- se para os homens o trabalho informal significa autonomia e a concretização do sonho de
não ter patrão, para as mulheres, além da carga adicional de trabalho e da monotonia,
representa uma oportunidade limitada e não reconhecida do uso de suas capacidades.
83
- a incerteza sobre sua situação de trabalho, como conseqüência da informalidade, e a
percepção de injustiça e discriminação, pelas menores chances em relação aos homens, de
uma inserção formal, podem estar negativamente associadas ao bem-estar psicológico
feminino.
Carlotto & Kalil (2002) apresentam uma prática de intervenção psicossocial realizada no
estágio em Psicologia do Trabalho desenvolvida em uma instituição governamental, propondo
a discussão e a reflexão do papel do psicólogo sobre o compromisso social com o
desemprego. O objetivo da intervenção foi trabalhar com a prevenção ou recuperação de
aspectos da saúde mental de trabalhadores desempregados. Foram realizados quatro encontros
de três horas com grupos de desempregados. Durantes este encontros, foram abordados temas
como mercados de trabalho, processos seletivos, etc. Perceberam nos grupos, durante os
relatos dos participantes, que emergiam situação de impacto emocional. Para as autoras, um
dos impactos causados pela perda do emprego é a diminuição da auto-estima. Percebeu-se
uma função da valorização social do trabalho, alguns participantes vincularam o trabalham à
honestidade e à decência. Relatam também a decepção pelo emprego perdido, acompanhado
de desesperança. Torna-se evidente a estrita relação entre reestruturação produtiva e
desemprego, através dos relatos dos participantes, e concluem que é possível observar
alterações na vida psíquica causadas pelo desemprego, ocorrendo uma desestruturação com
serias repercussões na saúde mental do trabalhador.
4.1.7. Desemprego e outras abordagens
Baccaro (1987), em sua tese de Doutorado, buscou uma caracterização daquilo que chamou
da ‘atitude’ do indivíduo desempregado e suas reações.
Realizou sua pesquisa durante a crise econômica no Brasil, de 1982 a 1984 (época ainda da
Ditadura Militar). Dividiu o estudo em duas dimensões e correlações: a situação de
desemprego e a reação do desempregado, e buscou analisar tanto os aspectos sociais, como os
aspectos atitudinais do desempregado.
Após um estudo piloto com ummero considerável de pessoas, aplicação de questionários e
entrevistas, confrontando pessoas empregadas (mas com histórico de desemprego) e pessoas
desempregadas, agrupou em 13 conjuntos as atitudes dos entrevistados:
1 – negativismo – falta de confiança em conseguir o que deseja
84
2 – esteriótipo - percepção rígida de um grupo
3 – depressão – abatimento afetivo, físico e moral
4 – isolamento – privação dos contatos sociais
5 – interferência da comunicação de massa – atitudes do indivíduo estimuladas pela
mídia
6 – controle externo – o indivíduo atribui suas atitudes como resultado do destino
7 – rejeição – o indivíduo percebe destituindo-se de valor
8 – dissimulação – ocultação de verdade
9 – comportamento enganoso – paliativo para a situação
10 – comportamento delinqüente – reação de forma não aceita à sociedade
11 – comportamento de fuga – evitar a situação indesejável
12 – insegurança – falta de confiança em si mesmo
13 – revolta – indivíduo que se sente injustiçado
O autor concluiu que houve uma maior incidência de atitudes de isolamento, dissimulação e
revolta dentre as respostas dos indivíduos. Média incidência nas atitudes de negativismo,
estereotipo, depressão, interferência da comunicação de massa, controle externo, rejeição,
insegurança e fuga. Com baixa incidência apareceram o comportamento enganoso e o
comportamento delinqüente.
4.2. Pesquisas Internacionais relevantes
Jahoda e outros (apud Estramiana, 1992; Silva, A., 2000; Ludermir, 2000; Seligmann-Silva,
1994) participaram de um dos primeiros estudos nos anos 30, sobre o impacto do desemprego
em decorrência do fechamento de um fábrica têxtil em uma cidade na Áustria chamada
Marienthal. O efeito do fechamento da fábrica foi devastador, deixando quase todos seus
habitantes desempregados.
O estudo observou durante 120 dias os desempregados e recolheu informações sobre a vida da
comunidade. Recopilaram 478 arquivos de diferentes famílias, os quais continham dados
sobre a história familiar, forma de subsidio de desemprego, etc.
Recolheram histórias de vida de 32 homens e 30 mulheres, 80 pessoas responderam
questionários sobre a forma em que passavam o tempo livre, estudavam as queixas e
reclamações realizadas, a comissão das industrias, as crianças nas escolas escreviam ensaios
85
sobre ‘o que quero ser’, 48 famílias guardavam registros de suas comidas durante uma
semana.
Estudaram diferentes dados estatísticos como os empréstimos da biblioteca pública, números
de matrimônios e casamentos, resultado das eleições, informação sobre as organizações
políticas locais, consultas médicas, etc.
“Estar desempregado era algo muito diferente a ter tempo livre ... seu sentido de tempo vem
abaixo... discussões familiares tinham aumentado”. (Jahoda apud Estramiana, 1992, p. 51)
Cinqüenta anos depois, nos anos 80 realizaram novamente o estudo em um país anglo-saxão,
nas mesmas condições e contribuíram para a construção da teoria da privação, para explicar as
conseqüências psicossociais do desemprego. Ao comparar os efeitos em dois momentos
históricos diferentes (anos 30 e atualidade), mostraram como característica a incorporação de
uma perspectiva histórica no estudo psicossocial dos efeitos do desemprego. O que diferencia
os dois estudos realizados é que no segundo já havia o processo indenizatório para as pessoas
que perderam seus empregos.
Seus estudos são centrais no debate sobre as diferentes explicações psicossociais da
experiência do desemprego.
De acordo com a autora, o emprego como instituição social cumpre uma série de funções:
1. o emprego impõe uma estrutura temporal à nossa vida diária;
2. implica experiência e contatos regulares, compartilhados com pessoas fora da família
nuclear;
3. une o indivíduo com metas e propósitos que transcendem os seus próprios;
4. define importantes aspectos de status e da identidade;
5. força o desenvolvimento de uma atividade.
Jahoda mantém a tese de que o emprego é a única instituição que prevê estas cinco
características. Isso significa que as pessoas desempregadas sofrerão estas ausências, a menos
que encontrem formas alternativas de satisfazê-las, na medida em que essas categorias sejam
convertidas em uma necessidade psicológica na vida social.
86
Para a autora "a característica comum a todos os que perderam o emprego é a exclusão
abrupta de uma instituição social que dominava suas vidas anteriormente". (Jahoda apud
Ludermir, 2000)
O desemprego, como não-trabalho, para Jahoda, restringe as possibilidades de ter
determinadas experiências, provocando uma desestruturação temporal, restringindo os
contatos sociais e o espectro de objetivos a médio e longo prazo, assim como retirando as
bases do status pessoal e da identidade social.
Este estudo nos fornece uma luz sobre o que pode significar o trabalho para os indivíduos. A
autora determina que o fato de trazer uma remuneração é vital, mas lembra que quando há
indenização numa situação de não trabalho, a frustração ainda é presente.
O modelo de Warr (apud Ludermir, 2000; Silva, A., 2000; Estramiana, 1992) baseia-se na
identificação de nove características negativas do desemprego. Warr denomina vitamínico seu
modelo, já que o meio tem sobre a saúde mental, uma influência semelhante ao efeito das
vitaminas sobre a saúde física. As conseqüências podem ser positivas ou negativas. Este
modelo coincide em alguns pontos com a teoria da privação de Jahoda.
Estas são as nove potenciais conseqüências negativas da desocupação, citados pelo autor:
1) gera-se uma ansiedade financeira;
2) restringem-se as experiências sociais ao passar mais tempo em casa e ao necessitar de
dinheiro;
3) reduzem-se objetivos de vida;
4) restringe-se o espectro de tomada de decisões concernentes a questões significativas, a
médio e longo prazo;
5) perde-se o prazer ligado à própria ocupação;
6) aumentam atividades com conseqüências psicologicamente negativas, como a busca
de trabalho, o pedido de dinheiro;
7) aumenta a insegurança com relação ao futuro;
8) reduzem-se os contatos sociais e
9) perde-se o status social estritamente ligado ao trabalho.
Para o autor, a falta de oportunidade de controle e a deterioração financeira em virtude do
desemprego são vistas como as principais fontes de problemas pessoais e familiares.
87
Warr define as mudanças produzidas pela perda do emprego como processo de transição e
mudança de “roles” (papéis). Cada “rol” pode ser definido de acordo com seus conteúdos e
resultados. Com relação ao conteúdo, um ‘rol’ carrega: tarefas, rotinas, uma posição social e
um meio físico próprio. No caso do desempregado, há a diminuição de suas tarefas e rotinas,
redução das relações sociais e perda do espaço físico.
Por outro lado, os conteúdos em termos de resultados e sua perda são benéficos, porque
evitam fadiga, estresse físico e psicológico, aborrecimentos, limitação do tempo livre, redução
da liberdade de ação. A mudança do papel de empregado para o papel de desempregado,
requer uma nova aprendizagem, uma nova orientação.
Morse e Weiis (apud Estramiana, 1992) perguntaram a 401 trabalhadores se continuariam
trabalhando caso levantassem o dinheiro suficiente para sobreviverem: 80% declararam que
sim.
Para os autores, o desejo de trabalhar não pode ser explicado unicamente por seu caráter
instrumental e concluem que manter-se ativo e ocupado é uma das principais motivações para
trabalhar e que um dos maiores sofrimentos psicológicos de estar desempregado é a
inatividade.
Observaram que quando indagados sobre seus desejos de continuarem trabalhando,
apresentavam diversas razões que contribuem na explicitação das variadas funções do
trabalho, podendo ser sinteticamente atribuídas às necessidades de atividade. As respostas
foram assim classificadas (apud Macedo 1992):
32% - o trabalho os ocupa e interessa
10% - o trabalho os ocupa e é benéfico
4% - na ausência do trabalho se aborreceriam
10% - não souberam o que fazer com o seu tempo
Kessler (apud Silva, A., 2000), ao estudar as implicações da experiência do desemprego na
Argentina, para o indivíduo e sua família, concluiu que o processo de busca de trabalho, no
período recente, tem-se caracterizado por uma maior exigência de requisitos.
88
Para o autor, essas crescentes exigências se transformam em um fator de desalento, pois
muitos desempregados têm uma sensação de que: sempre haverá alguém melhor para cada
posto de trabalho.
O autor observa que alguns estudos recentes, tanto na Europa como nos Estados Unidos, têm
demonstrado que o tipo de proteção social influi diferencialmente nas conseqüências de
desemprego.
Para a realidade latino-americana, os estudos da década de 30, onde coloca-se o “risco da
privação absoluta”, seriam ainda atuais e poderiam servir de referência para analisar as
conseqüências do desemprego em nossa conjuntura.
Segundo o autor, o desemprego repercute na dinâmica familiar, dependendo da posição que o
indivíduo desempregado ocupa na família, segundo a divisão de papéis pré-existentes. Mas no
trabalho empírico, a maioria dos entrevistados considerou que o desemprego afetou
profundamente a vida familiar.
Relatou o impacto do desemprego nos filhos em dois sentidos contrários: primeiro, os filhos
seriam conscientes da situação, adaptando suas demandas às possibilidades do contexto e,
num segundo sentido, inverso ao primeiro, seria expresso, em particular nos adolescentes,
pelo desinteresse nos estudos, atitude que justificaria, em virtude das trajetórias paternas, às
que parecem considerar como exemplos da inviabilidade de um progresso individual baseado
no esforço e no trabalho.
Jakubowicz (apud Seligmann-Silva, 1994) analisa aspectos pelos quais a estrutura familiar
suscita ressonâncias nas hierarquias do mundo do trabalho, mostrando que duas situações, em
especial, marcam a aproximação entre estas instâncias: a situação de dependência e a situação
de crise. Ambas atuam agravando as confusões de sentimentos que dificultam a discriminação
entre as relações de trabalho e as relações afetivas familiares.
Para o autor, essa confusão de sentimentos faz com que a demissão, mesmo que por ocasião
de crise econômica, seja vivenciada como rejeição e abandono.
Os métodos de motivação comportamental adotados na industria moderna, muitas vezes
utilizam os princípios que podem significar para o operário reconhecido sinônimo de
recuperação do afeto paterno e/ou materno tido como perdidos. Mas também o ódio e a
89
revolta, reprimidos contra um patriarca opressor, podem projetar intensamente sobre a figura
de um chefe imediato.
O autor lembra que o trabalho na usina do século XIX favoreceu um tipo de família nuclear,
onde as ligações entre as pessoas se fundavam sobre a responsabilidade e a culpa.
Alerta que fenômenos de despersonalização ocorrem dentro destas situações de dominação,
marcadas pela instalação de uma total dependência do corpo diante do sistema hierárquico
imperante na organização do trabalho.
“As leis internas da fábrica são fortalecidas pelas leis do mundo interno de cada um”.
(Seligmann-Silva, 1994, p. 200)
Lira e Weistein (apud Seligmann-Silva 1994) estudaram durante vários anos, sob o aspecto
psicológico, pessoas desempregadas num contexto onde as possibilidades de confrontos
políticos (Chile) eram impedidas pela forte estrutura repressiva.
As autoras constataram nos desempregados:
1. uma impotência individual, sentem que não têm mais controle sobre a sua vida.
2. uma sensação de carência de sentido de vida com total ausência de perspectivas.
3. ausência de normas, onde perde-se os pontos de referência, a partir dos quais realiza
uma programação de atividade.
4. um distanciamento cultural, onde passam a ser um pária por aquilo que a sociedade
espera dele, sem espaço e nem identidade.
5. um auto distanciamento, que o torna estranho a si mesmo, surgindo os sentimentos de
inferioridade e despersonalização.
6. o isolamento social, o indivíduo se sente só e excluído.
A partir das observações realizadas nas pessoas desempregadas, as autoras conseguiram
identificar aspectos psicodinâmicos vinculados à frustração decorrente do desemprego, tendo
como conseqüências principais quatro respostas psicológicas básicas:
1. Agressão: a agressão se dirige a outro objeto ou ao próprio indivíduo. A impotência para a
luta, por causa do regime autoritário, conduziu a ataques dirigidos à própria família ou a
auto-agressão. A família, neste caso, torna-se depositária desta agressão.
90
“o desemprego prolongado vai gerando uma série de
condições que alteram o modo de vida do grupo familiar.
Surge a instabilidade emocional, ocorrem acusações
recíprocas entre os cônjuges, um exigindo do outro mais do
que pode ser dado” (Lira e Weistein apud Seligmann-Silva,
1994, p. 280).
2. A regressão: pode ser evidenciada pela falta de controle emocional e por demandas
exageradas. É a fuga da vida adulta.
3. Fixação: corresponde a uma forma rígida de responder esteriotipadamente diante da
frustração.
“O desemprego altera o sentido e o significado do tempo... o tempo não está mais
delimitado por trabalho e descanso”. (Lira e Weistein apud Seligmann-Silva, 1994, p.281).
O futuro não existe.
4. Apatia: a apatia ou a resignação costumam ser respostas defensivas frente a processos de
frustração prolongado. Ocorre uma inibição de ação, o indivíduo já não tenta nada e
passa a aceitar tudo com uma forma de fatalismo.
As autoras prosseguem demonstrando como a experiência prolongada do desemprego pode
originar noções patológicas e transformações na identidade social.
“É o trabalho que define o homem adulto como membro da
sociedade, o fato de estar prolongadamente afastado de
qualquer emprego determinaria a sensação de ser um
excluído, um pária”. (Lira e Weistein apud Seligmann-Silva,
1994, pg. 283)
Dejours (2003) analisa o processo que favorece a tolerância social para com o mal e a
injustiça, e através do qual se faz passar por adversidade a que, na verdade, resulta do
exercício do mal praticado por uns, contra outros. Coloca que, ao contrario de algumas teses,
o trabalho não se tornou artigo raro. Os que continuam a trabalhar o fazem cada vez mais. O
que ocorre é que aumenta o trabalho e diminui o emprego.
Para o autor, o trabalho pode ser mediado de emancipação, mas também continua a gerar
sofrimento. Não há dúvidas de que os que sofrem encontram dificuldades para reagir
91
coletivamente. Numa situação de desemprego os trabalhadores que tentam lutar por meio de
greves, se deparam com dois tipos de dificuldades (subjetivas) que trazem conseqüências para
a mobilização coletiva e política. A ‘inculpação’ pelos outros e a vergonha de protestar.
Coloca também que as tentativas de suicídio nos locais de trabalho podem ocorrer, por que
não há espaço para discutir o sofrimento.
“... a indiferença pelo sofrimento psíquico dos que trabalham
abriu caminho, portanto, à tolerância social para com o
sofrimento dos desempregados”. (Dejours, 2003, p.41)
Propõe a tomada de consciência do sofrimento no trabalho como uma via para compreensão
da tolerância, com as condições de desemprego. Para o autor, é sabido que esse processo leva
á doença mental ou física, pois ataca os alicerces da identidade.
A questão que levanta é que o sofrimento, que é uma adversidade, não gera necessariamente
uma reação coletiva. A precariedade da mobilização contra o desemprego, e a exclusão,
impossibilitam o travamento do problema, causando resignação. E a banalização do mal não
há mobilização política contra a injustiça.
“Hoje todos partilham um sentimento de medo por si, pelos
próximos, pelos amigos ou pelos filhos diante da ameaça de
exclusão”. (Dejours, 2003, p.19)
Sendo assim, a explicação para esse caso especifico deve se explicar de outra forma. O autor
deixa claro que não há ação nem reação por parte do desempregado, porque não há
compreensão do sofrimento. O que há é a desqualificação do discurso sobre o sofrimento e a
tolerância ao sofrimento subjetivo.
“... se hoje a principal fonte de injustiça e de sofrimento na
sociedade francesa é o desemprego, o grande palco do
sofrimento é certamente a do trabalho, tanto para os dele se
acham excluídos, quanto para os que nele permanecem”.
(Dejours, 2003, p.37)
Estramiana (1992) em seu estudo, vai estabelecer comparações entre trabalhadores
empregados e desempregados, em diferentes aspectos de seu bem estar psicológico. Nessa
92
analise comparativa, em tendo como variáveis: idade, gênero, emprego/desemprego, tensão
financeira, apoio social, satisfação com o tempo livre, duração do tempo do desemprego,
conclui que:
1. são os trabalhadores desempregados de idade intermediaria os que mostram maior
sofrimento psicológico e sentimento depressivo.
2. tanto em homens como em mulheres se observa uma associação segmentada entre estar
desempregado e sofrimento psicológico.
3. quanto maior é a motivação pelo trabalho, maior é o desgaste da saúde mental, maior
também o sentimento depressivo e menor a satisfação com a vida atual, maior é o desgaste
da auto-imagem.
4. pessoas desempregadas que se sentem menos apoiadas experimentam um maior desgaste,
tanto psicológico, como em sua auto-imagem.
5. os desempregados que mostram maiores dificuldades para estruturar seu tempo livre de
uma forma satisfatória sofrem um maior sofrimento psicológico, sentimento depressivo,
insatisfação com sua vida atual e uma baixa auto-estima.
6. a duração do desemprego se encontra relacionada com um maior desgaste da saúde
mental.
93
V. CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
5.1. Psicanálise, ciência e sociedade
Conduzir uma investigação psicanalítica de um problema social, como é o caso do
desemprego, não é uma tarefa fácil, pois envolve uma articulação entre dois campos que
possuem, a princípio, fundamentos divergentes.
Mas, a dificuldade não torna o diálogo impossível. Ele é perfeitamente possível quando
conhecemos e respeitamos os limites de cada um dos campos em questão: a psicanálise e as
ciências sociais.
É o diálogo que é importante, e não a preocupação com determinações.
Freud, num determinado ponto de sua construção, chegou à conclusão de que era necessário
olhar para a sociedade e para a cultura quando passou a dialogar com temas relacionados à
cultura, em obras como: Totem e Tabu (1913), Psicologia das massas e a análise do ego
(1921), O futuro de uma ilusão (1927a), O mal-estar na civilização (1930), Por que a
guerra? (1933b) e Moiséis e o Monoteísmo (1939).
A grande contribuição que a psicanálise fez para o estudo de problemas sociais foi reconhecer
uma concepção de sujeito fundado na história e na significação, sendo, por isso, construído
como um sujeito de ordem intersubjetiva.
“É possível que a contribuição mais importante que a
psicanálise tenha a oferecer para a compreensão dos
fenômenos sociais seja a maneira pela qual articula, por meio
do processo edípico, a construção da subjetividade e do laço
social, elucidando os modos pelos quais as transformações,
em um desses pólos, refletem-se em mudanças inevitáveis no
outro aspecto”. (Pacheco, 1997, p.130)
Reconhecer a importância do outro na constituição do sujeito criou a impossibilidade de
pensar o sujeito sem o corpo social. Não há como pensar o sujeito sem o outro, e essa
elucidação indica, de imediato, a dimensão social do problema.
94
O outro é a mediação necessária, pela qual as pulsões devem atravessar, para se inserirem no
universo da representação, para se inscreverem no simbólico. Não há subjetividade que se
organize fora do laço social.
Mas, apesar de afirmar a importância da cultura e da sociedade no processo de constituição do
sujeito, não podemos esquecer que há algo no sujeito que não encontra simbolização na
cultura, há algo que é singular aos sujeitos.
A psicanálise sempre buscou preservar a importância da singularidade do sujeito na
abordagem das questões humanas, sem que isso implicasse na negação dos aspectos
estruturais nos processos psíquicos e de relações com a cultura e a sociedade.
E é esse é o ponto crucial do limite para a discussão, pois, historicamente, a psicanálise
sempre se constituiu como prática e teoria que considera a particularidade do sujeito, sendo
que a ciência, tal como a conhecemos, sempre implicou em uma exclusão da particularidade
subjetiva.
A psicanálise sempre teve em sua reivindicação pelo estatuto da ciência. Freud lutou por essa
reivindicação, mas por não ser verificável o campo segundo o modelo de cientificidade da
época – o positivismo - a psicanálise foi, muitas vezes, desconsiderada como ciência. Isso
ocorria em função de uma concepção representacionista ingênua de realidade, que
pressupunha uma falsa separação radical entre fato e teoria, além de uma igualmente falsa
independência do método de pesquisa em relações à teoria e abordagem utilizada. Essa é uma
discussão que persiste até hoje.
Durkheim foi um dos grandes consolidadores da Sociologia. Tendo como base as idéias
positivistas de Comte, e do racionalista Kant, foi responsável por dar forma a um novo
fundamento epistemológico. Estruturou e objetivou o estudo e a análise do pensamento social.
Com ele, a sociologia ganhou uma base concreta de estudo.
Os problemas sociais não deveriam, segundo Durkheim (1984), se restringir aos fundamentos
filosóficos. A maneira como os filósofos tratavam os problemas sociais ou a sociedade não
geravam fundamentos passíveis de ação. Estavam presos a pressupostos ideológicos baseados
na experiência humana, o que os impossibilitava olhar o fenômeno social de maneira objetiva.
Por isso, seu método se opunha à Filosofia.
95
Para ele, a verdadeira possibilidade de intervenção era possível somente com a observação do
objeto e da análise concreta dos fatos sociais. Sendo assim, a observação do cientista deveria
ser neutra, para impossibilitar interferências das idéias.
Durkheim acreditava que a realidade social deveria ser vista como “coisa”, como algo
concreto e material. Para ele, não havia ciência sem a observação empírica dos fatos.
Acreditava na observação prática e na visualização do problema social como algo passível de
observação, desprendido de idéias pré-concebidas.
A sociedade é que fazia o homem, e não o contrário.
O que Durkheim fez foi a separação mente e realidade externa, desvalorizando os aspectos
subjetivos do indivíduo.
A psicanálise, por outro lado, sempre rejeitou uma visão determinista do indivíduo, sempre
recusou a dicotomia entre indivíduo e sociedade; aliás, um de seus méritos foi superar essa
dicotomia.
Durante o percurso de Freud podemos verificar que, em alguns momentos, se aproximou da
filosofia como uma teoria especulativa, por não se encaixar no conceito positivista de
pesquisa de seu tempo. Passou a ser considerado como um campo de pura especulação, já que
a ‘prova’ do científico dependia da experimentação e de uma observação baseada na
superação absoluta entre fato e teoria. Em outros momentos verificamos uma pretensão em
construir um saber centrado na empiria e na verificação experimental.
Mas, na realidade, a psicanálise tem o seu método científico próprio de produzir
conhecimento, já que a metapsicologia se fundou na pesquisa do inconsciente, incompatível
com qualquer outra modalidade existente. Centrada no inconsciente, a psicanálise pretendeu
ultrapassar os registros da consciência e se aproximar do funcionamento das pulsões. A
experiência psicanalítica e seu campo interpretativo é que fundaram a metapsicologia
freudiana.
“O psiquismo freudiano é um psiquismo que fala, não uma
fala solitária, mas inserida num circuito de interlocução”.
(Birman, 1994, p.25)
96
5.2 Aproximações entre psicanálise e marxismo
“... é digno de nota que Marx e Freud tenham concordado
que o sujeito humano, e todo seu gozo, sejam sempre sociais”.
(Pacheco, 1997, p.131)
Durante muito tempo, infelizmente, foi incompatível o diálogo entre a psicanálise e o
marxismo, porque partia-se do princípio de que a psicanálise era uma ideologia burguesa, que
não se preocupava com as questões sociais, apenas considerando a problemática e o conflito
do indivíduo.
“A falta de una formación marxista, los psicoanalistas no
dejan de tentarse en estas extensiones y desarrollar, a partir
de su saber teórico, una cosmovisión que, por su punto de
origen en la particularidad y sus presupuestos teóricos, no
deja de culminar, sistemáticamente, en posiciones
democratizantes (cuando no reaccionarias). Pero el problema
está también en que del lado del marxismo tampoco se tiene
idea alguna de los descubrimientos reales del psicoanálisis y
se siguen repitiendo prejuicios y mitos acerca de la naturaleza
del lenguaje y la relación de los hombres con el mismo”.
(Valderrama, 1998)
Mas houve quem empreendesse tal tarefa, trilhando caminhos e, muitas vezes, ampliando um
conflito sempre existente. Foi o caso dos freudo-marxistas, que formaram legiões.
Principal representante do freudo-marxismo, Reich foi o primeiro a pensar o diálogo entre a
psicanálise e o marxismo. Psicanalista e militante da luta comunista, viajou inúmeras vezes à
URSS e filiou-se ao partido comunista alemão. Fundou em Berlim a Associação Alemã de
Política Sexual Proletária, a SEXPOL.
Reich acreditava que a liberação sexual seria a solução para a questão dominação/exploração,
existente nas relações de produção.
97
Em Psicologia de massas do fascismo, Reich investigou a combinação da estrutura sócio-
econômica com a estrutura sexual da sociedade, e concluiu que “a inibição sexual altera de
tal modo a estrutura do homem economicamente oprimido, que ele passa a agir, sentir e
pensar contra os seu próprios interesses materiais”. (Reich, 1972, p. 212)
Parece claro que Reich acreditou que a repressão sexual era causa de todos os males sociais,
ou melhor, que a solução para todos os males era a liberação sexual.
Unindo dois conceitos de ordens diferentes: repressão e alienação, Reich tentou transitar entre
dois saberes, desconhecendo os limites de cada uma deles, ambicionando, segundo
Valderrama (1998), alcançar um conhecimento ‘completo’ da condição humana, onde o
marxismo cobriria o estudo dos fenômenos sociais, e a psicanálise o dos fenômenos
individuais. Uma ciência que cobriria os dois aspectos, seria, portanto, completa.
Talvez esse tenha sido o grande erro. Os chamados freudo-marxistas psicologizaram a questão
histórica.
A psicologia do ego, adversária do freudo-marxismo, propôs uma adaptação do sujeito sem
espaço para idéias revolucionárias. Mas os dois concordam que existe um conflito entre o
indivíduo e a sociedade, baseado em uma oposição entre natureza e cultura. Ou seja, ainda
que adversários, permanecem presos a um mesmo âmbito de análise da questão.
Mas o freudo-marxismo não se resume a Reich. Fromm, Marcuse e Althusser contribuíram e
muito para a discussão, tendo esses dois últimos se aproximado mais na compreensão dos
processos da subjetividade.
Para Birman (1994), Althusser foi quem reabriu as relações da psicanálise com o marxismo,
trabalhando as questões de política e psicanálise, e enunciando a cientificidade da psicanálise,
considerando o inconsciente como seu objeto teórico.
Devemos considerar que a prática do marxismo foi efetivamente revolucionária durante certas
fases da história moderna, mas também foi exatamente o contrário durante outros períodos. E,
da mesma maneira que alguns assumiram a psicanálise como ideológica, o marxismo também
tornou-se ideologia.
98
Para Castoriadis (1982), o marxismo é uma teoria imperfeita, ligada a uma determinada época
histórica, e a teoria econômica de Marx não é sustentável nem em suas premissas, nem em seu
método, nem em sua estrutura. O racionalismo de Marx adquiriu expressão filosófica quando
se apresentou como a dialética hegeliana, ficando desta forma idealista e mistificada. A
expressão de Marx, repetida por marxistas durante gerações: “Com Hegel, a dialética estava
sobre a cabeça: eu a recoloquei sobre seus pés”, faz alusão ao aspecto prático de sua teoria
filosófica, mas nem Marx e nem os marxistas se perguntaram se esta operação era possível.
Para o autor, não pode existir teoria perfeita da história, e a idéia de uma racionalidade total
da história é absurda. O real histórico não é integralmente exaustivamente racional, se o fosse,
não haveria jamais um problema do ‘fazer’, pois tudo já estaria dito.
Uma coisa é reconhecer a importância fundamental do ensino de Marx, outra coisa é reduzir a
produção à atividade humana mediatizada por instrumentos e objetos, o trabalho, as forças
produtivas, ou seja, finalmente a técnica, já que não existe a autonomia da técnica.
Para Castoriadis (1982), o marxismo impregnou à linguagem as idéias e a realidade, ao ponto
de ter se tornado parte da atmosfera que respiramos. Marx foi o primeiro a mostrar que a
significação de uma teoria não pode ser compreendida independentemente da prática histórica
e social, a qual ela corresponde, e sobre a realidade histórica.
Mas foi exatamente a linguagem que muitos marxistas subestimaram em sua discussão,
oferecendo uma concepção simplificada da mesma ou até mesmo excluindo-a por completo
de muitas de suas análises.
Para Valderrama (1998), linguagem e trabalho são as duas categorias que atuam sobre o
sujeito, e a relação do homem com a linguagem não é de domínio, e nem de instrumento. O
homem habita a linguagem como habita as relações de produção, sem compreender as
determinações que o regem.
Para a autora, a linguagem não é instrumento que viria dar expressão a uma idéia, a um
conceito, a algum significado prévio. Com essa observação, está respondendo ao
questionamento de marxistas que consideram a linguagem um instrumento, portanto, uma
ferramenta de dominação e poder.
99
Portanto, ao contrário do que parece, os significados, as idéias, são geradas e produzidas pela
linguagem.
“Lo que el psicoanálisis descubre es que el lenguaje tiene
efectos sobre aquellos que lo “habitan”, que el lenguaje no es
una herramienta o un objeto a disposición de la voluntad de
cada cual, sino que cada sujeto es determinado por el
lenguaje, que el lenguaje es tan determinante sobre aquellos
que hablan como las relaciones de producción pueden ser
determinantes sobre aquellos que trabajan”. (Valderrama,
1998)
O ‘habitar’ a linguagem é o que Freud chamou de o inconsciente, que sempre está dizendo
algo a mais do que se quer dizer.
En síntesis, lo que el psicoanálisis descubre es que el significante actúa como una causa
material sobre los sujetos. Y este es un punto que el marxismo en general no considera”.
(Valderrama, 1998)
O ser humano, por meio da linguagem, constrói a realidade, e esta é diferente de real. Para a
psicanálise, a realidade psíquica é sexual e inconsciente.
Para Bezerra (1989), não há nada no mundo da cultura, não há qualquer problema de âmbito
individual, social ou político que a psicanálise não seja capaz de refletir. Pois em cada um
desses fenômenos, há uma dimensão intersubjetiva, uma perspectiva singular dos sujeitos que
neles se encontra.
“… o psicoanálisis ha aprendido, es a sacar enseñanzas del
caso particular. Lo que ha aprendido es que el caso
particular, muchas veces, dice mucho mas que las estadísticas
sobre ciertos aspectos de la condición humana”.
(Valderrama, 1998)
O sujeito, na psicanálise, pela incidência do inconsciente, é um sujeito cindido, divido.
“Esta divisão supõe como conseqüência a existência de dois
tipos de saber que remetem à instâncias distintas do sujeito:
um é o saber consciente, discursivo, que se volta para o
100
conhecimento da realidade, através dos instrumentos da
razão. A este se opõe o saber inconsciente. Este está referido
à realidade psíquica, à dimensão do sujeito clivado, dimensão
que se expressa na emergência do desejo inconsciente”.
(Bezerra. 1989, p.236)
A verdade, para psicanálise, é a verdade do desejo, e o sujeito de uma ciência, que renega a
singularidade em nome de um saber universalizante, é afastado de sua verdade.
Essa sempre foi a grande dificuldade da psicanálise, de como fazer teoria para uma prática
que cada caso é um caso. Essa sempre foi a dificuldade de aproximá-la de um estatuto de
ciência positivista.
Não é uma ciência como muitas outras, porque inclui o sujeito e suas particularidades, e não
as exclui como as outras ciências fazem. A psicanálise tem o seu jeito de fazer ciência. Na
particularidade do sujeito, extrai algo que é geral.
“O ser humano constitui-se sujeito, e simultaneamente alheia-se pelo acesso ao simbólico
ofertado pela cultura”. (Pacheco, 1997, p.133)
Reconhecer o sujeito do desejo é o que marca a diferença.
5.3. Linhas gerais para a pesquisa
Acompanhar profissionais demitidos de empresas em processos de reestruturação, fez com
que eu me aproximasse de um problema tão intenso quanto impactante, quando a visão estava
no sofrimento daqueles que perdiam o emprego.
Para desenvolver o tema, e compreender melhor a relação sujeito, trabalho e desemprego, nos
capítulos anteriores, foi necessário remontar historicamente a relação do capitalismo com o
trabalho, e a relação dos sujeitos com a organização.
Algumas pesquisas já apontaram e enumeraram os vários sentimentos ligados ao desemprego
e seus aspectos subjetivos, mas poucas se preocuparam em compreender o por que do
desencadeamento de alguns sentimentos e as mudanças geradas na vida do sujeito.
101
Compreender como nossa sociedade lida com os aspectos do trabalho, é mais do que
necessário para a compreensão do problema do sujeito desempregado, e a psicanálise tem
muito que acrescentar.
Freud (1921), revelou que todos os temas tratados pela psicanálise, relacionados com os
aspectos relacionais podem ser consideradas como fenômenos sociais. Isto por que reconhece
a importância do outro na constituição do sujeito.
“... torna-se indispensável recorrer à teoria das pulsões e dos
processos identificatórios para se compreender as duas
ordens de realidade: a realidade psíquica e a realidade
social” (Enriquez, 1990, p.17)
No centro de toda a teoria e investigação psicanalítica, está o inconsciente, a relação com o
ego e com o mundo externo. Isso significa, que há uma relação dinâmica entre as pulsões e os
objetos, que colocam o outro numa relação de importância na construção do sujeito. Para
psicanálise não existem as estruturas em si, pois elas são sempre habitadas, modeladas pelos
homens que, na sua ação lhes dão uma significação.
“O pulsional é, então, o que imprime um movimento ao organismo mas, ao mesmo tempo,
visa ao outro como aquele que pode reconhecer o desejo de responder ao desejo de
reconhecimento” (Enriquez, 1990, p.17)
Por isso, todas as características do ser humano, fazem dele um ser pulsional e um ser social.
Todas as pulsões fazem parte do jogo das identificações. O pulsional faz parte do fundamento
de cada sujeito e do fundamento da vida social.
Todos somos reprodutores de um discurso onde o vencedor está perpassado por uma malha
social que não aceita o desempregado. Muito próximo de uma exclusão, por todos os fatores
que se anunciam com o tempo de desemprego, que se torna cada vez maior, os sujeitos que
são demitidos das organizações se vêem desamparados, e sem futuro.
Estar desempregado envolve muitas perdas e investigá-las é um dos pontos principais desta
pesquisa. A experiência deste trabalho, é acompanhada de anos de observação e de
aproximação com o sujeito desta pesquisa: o desempregado.
102
A escolha dos sujeitos dessa pesquisa foi cuidadosa por que optei por trabalhadores demitidos
em decorrência de processos de reestruturações produtivas de empresas do Estado de São
Paulo. Escolhi tanto homens como mulheres, tanto pessoas que acabavam de ser demitidos
como pessoas que estavam a mais de 2 anos desempregados.
Realizei encontros com 08 desempregados, para verificar como está se dando o processo de
desemprego, e como vivenciavam a perda, o período e as mudanças. Além disso, nessa
mesma entrevista colhi dados da história individual de cada um e da história profissional,
permitindo uma estrutura e uma relação da perda, com a vida do sujeito.
5.3.1. Linhas Gerais para entrevista com sujeitos
1. Sobre a última experiência no emprego
como era a sua relação com a organização;
quanto tempo de empresa?
como foi a comunicação sobre seu desligamento
o que você sentiu na hora?
E agora?
Do que sente falta?
No dia em que você foi comunicado o que você fez quando chegou em casa. Contou
para alguém? Para quem? Contou para a sua família? Qual foram as reações das
pessoas de sua família (esposa, filhos, pais...) (caso tenha hesitado em contar,
compreender o por que)
Você já ficou desempregado antes. Se já, como foi essa experiência?
2. Sobre o valor/sentido do trabalho
compreender como o sujeito construiu o valor/sentido do trabalho (pessoal e familiar)
o que significa trabalhar, para você?
3. Sobre a experiência do desemprego
conte-me como é seu dia-a dia
O que mudou?
Quais são suas dificuldades hoje, e como tenta superá-las
103
Como sua família tem respondido (tem ajudado?, tem ficado mais preocupado?)
Como está sua relação com os seus familiares (esposa, filhos, pais)
Do que você sente falta?
Você vai aos mesmos lugares que você ia antes?
Como está a sua relação com seus amigos?
5.3.2. Sobre os sujeitos
N., 47 anos, analista contábil, 03 meses desempregada, divorciada, 02 filhos, 17
anos de empresa
N. trabalhou 17 anos na empresa X. Segundo ela, uma vida. Tendo entrado como digitadora,
foi se aperfeiçoando, sendo promovida, até chegar em uma área de finanças, de plena
confiança. Recém saída da empresa, no momento da entrevista, realizada há 3 meses, não
esperava a demissão, apesar de já haver sinais claros, quando refletindo hoje sobre o processo.
Relata que assistiu muitos de seus colegas serem desligados, mas que nunca imaginou que
pudesse acontecer com ela, pelo tempo que havia se dedicado até o momento. Demorou a
compreender o que estava se passando quando do desligamento. Pensou sobre o motivo que
lhe foi dado, a demissão como uma necessidade de reengenharia, na qual era necessário
desligar pessoas antigas de empresa. Como acha que sempre foi uma ótima funcionária,
acredita que o motivo de seu desligamento foi o tempo de empresa e a idade. Perdida nos
primeiros meses, sentiu-se ainda presa às tarefas do dia-a-dia da empresa, relatando
desconforto com a nova situação. Considerando o outro emprego que teve, trabalhou 27 anos
sem parar, estava encarando o período como férias ‘prolongadas’. Divorciada, com dois filhos
grandes e criados, conta que a maior dificuldade foi mesmo a readequação de seu cotidiano, e
a própria aceitação de seus familiares. Demorou a começar a busca por um novo emprego, só
conseguindo fazer isto após quatro meses de desemprego. Mesmo assim, querendo evitar
situações de desconforto, conforme vivenciou na última empresa, já que acredita que aos 47
anos não tem mais disponibilidade para aguentar alguma situações. Trabalhou para sustentar
seus filhos (hoje com 25 e 20 anos, ambos casados), que criou sozinha, sem a ajuda de um pai
presente, e disso sente muito orgulho. Com os pais já falecidos, tem apenas uma irmã que a
ajudou a criar seus filhos, já que seu ex-marido nunca ajudou em nada. Acredita que uma das
grandes dificuldades que encontra é a idade e a falta do inglês. Tem muito medo da rejeição e
acha que a idade pesa bastante. “Quando eu me vi desempregada, não sabia fazer mais
104
nada”. Trabalhar, para N., representa ‘valores’, para ela é inútil ficar em casa quando o
trabalho é tudo. “Não me vejo lavando, passando, cuidando de filhos”. Acha que o fato de
trabalhar muito tempo em uma mesma empresa lhe fez ser acomodada, e se entrasse em outra
empresa daria mais de si. Sempre foi a N. da X, tanto para os amigos, como para a família,
por isso acredita que o impacto foi maior para eles do que para ela própria. N. começou a
trabalhar com 10 anos para ajudar a família, cuidando de ‘um menininho’. A mãe lavava
roupas para fora e o pai trabalhava em uma metalúrgica. Suas duas irmãs trabalhavam em um
hospital e uma outra era doméstica. Aos 60 anos, o pai teve um infarto no qual precisou
colocar pontes de safena, o que o fez parar de trabalhar. Eram as filhas que cuidavam
financeiramente da casa.
R., 47 anos, gerente comercial, 10 meses desempregado, casado, 02 filhos, 08
anos de empresa
Com oito anos de empresa, R. relata que desenvolveu uma carreia de destaque em todas as
posições, onde teve a oportunidade de realizar grandes trabalhos, com vários níveis de
graduação, responsabilidades e poder. Conta que tinha a responsabilidade não só com os
clientes, mas também com as pessoas dentro da companhia. Segundo ele, teve muito sucesso
nisso e foi promovido a gerente de uma filial. Com uma formação em engenharia, assumiu
cargos de gerência, desenvolvimento, e depois gerente de filial. Acredita que esse caminho foi
de grande importância, já que toda a filial estava sob sua responsabilidade. Fez diversas
mudanças de cidade com toda sua família. Casado, com dois filhos (de 13 e 6 anos), a família
teve que acompanhá-lo em todas as mudanças, parte essa muita complicada. R. já pressentia a
demissão há algum tempo. Sabia que haveria cortes em alguns departamentos, mas mesmo
assim acreditava em sua carreira brilhante dentro da empresa, na qual ganhou diversos
prêmios. Acredita que foi o alto salário que o prejudicou. “Sempre tive uma certeza em todas
as companhias que eu trabalhei: você vai ser demitido um dia ou outro. Hoje é muito difícil
você trabalhar 40 anos numa mesma empresa porque as empresas têm muitas mudanças
políticas de mercado, o que é bom hoje não é bom amanhã”. Hoje, Sente falta do desafio, e
de ter ‘dez coisas’ para fazer ao mesmo tempo. A sua saída o afetou principalmente por que
viu que os relacionamentos que criou dentro da empresa lá permaneceram, “No primeiro dia
ainda tive ligações pra fazer. Depois foram diminuindo, apesar de ter contato, de saber o que
esta acontecendo lá, mas depois vai distanciando. Mais ou menos uma semana depois eu vi
105
que o barco estava indo pra um lado e eu pro outro”. Acredita que se dedicou demais à
empresa, pensando em seus problemas de 10 a 15 horas por dia, não tendo férias. Gostava do
que estava fazendo, não sentia a falta de férias. A sua família lhe cobrava tempo, e ele
acredita que hoje está tendo mais tempo para eles. Mas ficar em casa não lhe agrada, quer
logo encontrar uma nova solução.
Ge., 42 anos, supervisor de produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos,
04 anos de empresa
Ge. trabalhou como estagiário por 13 anos numa empresa metalúrgica de alumínio. Formou-
se em técnico eletro mecânico e começou a fazer engenharia trabalhando nesta mesma
empresa. Infelizmente não conseguiu concluir o curso por problemas de família e pessoais.
Acredita que ficou muito tempo nessa empresa, sendo dispensado quando a empresa foi
vendida para a principal concorrente, tendo sido esse o seu ‘primeiro baque’. Saiu de uma
grande empresa para outra grande empresa, até quando teve uma proposta de assumir uma
área de supervisão em uma empresa menor. Mesmo com a família contra, ele optou pela
mudança profissional e hierárquica. Ficou dois anos nessa empresa, foi demitido no dia
formatura de sua filha, dia em que houve um problema sério numa máquina. Mesmo voltando
após a formatura, virando a noite, foi dispensado pelo presidente Reclama que nunca houve
um “parabéns pelas coisas boas”, mas que o presidente se apegou ao fato descrito nesse
momento, para decidir se ele servia ou não. Trabalhou um uma consultoria durante oito
meses, e mais dois anos em outra empresa, quando surgiu uma nova proposta, de novo em
uma grande empresa, mas com um salário bem melhor. Mas, uma parte da empresa foi
vendida para a concorrente e muita gente foi dispensada. Mesmo mantendo-se no grupo, foi
transferido e depois de meses, demitido mais uma vez. Há 20 dias desempregado, após de
quatro anos de empresa, comparando com a primeira empresa que trabalhou e na qual ficou
12 anos, acredita que não foi tanto assim. Com histórico anterior de desemprego, lida com a
situação de uma maneira mais realista, já passou por momentos muito difíceis antes e tem
medo de vivenciar momentos como os anteriores, desconfortantes tanto financeiramente,
como emocionalmente. Com duas filhas, uma de 10, outra de 13 anos, a esposa está voltando
a trabalhar para ajudar. Conta que ficou abalado com as demissões, que foram três, sempre lhe
passando pela cabeça como iria contar o fato em casa. Do que sente mais falta é de dedicar-se
a alguma coisa, de estar desenvolvendo algo, de fazer alguma coisa produtiva. Sente
106
dificuldade em interagir socialmente com as pessoas, acha que a tendência é o isolamento, já
que não gosta de falar sobre o assunto (desemprego) com as pessoas à sua volta. Está
aproveitando o tempo para retomar os estudos e terminar a faculdade.
E., 36 anos, controller, 04 meses desempregado, casado, sem filhos, 11 meses de empresa
Tendo atuado durante seis anos em Banco, e depois nove anos em uma grande auditoria, E.
foi convidado a atuar em uma grande empresa, em um cargo de controller. Com 11 meses de
empresa e uma transferência de cidade, acredita que sua demissão ocorreu por total falta de
planejamento em sua contratação. Seu papel seria, com seu perfil de auditor, melhorar os
controles internos da empresa, encontrando muita resistência por parte de toda a fábrica. Em
uma cidade nova, com pessoas novas e sem o apoio da empresa, começou a ficar
desmotivado; “não usava nem 30% da minha competência porque eu não tinha o desafio. Por
exemplo, o inglês eu não usava, fiquei enferrujado no inglês e na parte técnica contábil que
usava todo dia aqui em SP”. Pediu para retornar para São Paulo, já que estava difícil a
adaptação tanto pessoal, quanto profissional, e eles disseram que não havia possibilidade, mas
que estavam dispostos a ajudar para que tudo saísse da melhor forma possível. Casado, sem
filhos, sua volta a São Paulo teve um gosto de alivio, “parecia que tinha tirado um bonde das
minhas costas, me senti tão leve, tanto que nem quis voltar de avião e voltei de carro”. Mas,
em uma reunião agendada para discutir coisas do trabalho, foi comunicado de mudanças na
estrutura, havendo a extinção de seu cargo. Conta que ficou surpreso, mas já estava
desmotivado e ia acabar tomando a decisão. Há um mês desempregado, acredita que foi o
melhor que pode ocorrer, e que não faria de novo o que fez, sair de um lugar que
aparentemente lhe apresentava alguma segurança, para uma empresa com um ambiente
totalmente desconhecido. Nunca esteve desempregado, é a primeira vez que se encontra nessa
situação, e segundo ele essa sensação é a pior possível, é de estar perdido. Depois do choque,
relata que passou a pensar no que iria fazer, sendo isso um motivo de constante preocupação e
desespero. Trabalho, para ele, é sentir-se útil, peça de um quebra cabeça, parte integrante de
um processo, saber que alguém ‘precisa de você’. Vem de família humilde, segundo ele, sem
muito estudo, o pai metalúrgico, sendo sua condição hoje, melhor do que a da infância.
107
G., 32 anos, analista de R.H., 03 meses desempregada, solteira, 02 anos e 03 meses de
empresa
Com 32 anos, G. começou a trabalhar aos 15 anos em um Banco, para ajudar a sustentar a
família. Conta que fez muitos sacrifícios para terminar seus estudos – formou-se em
informática – e que as dificuldades não são encaradas como empecilhos, mas como obstáculos
que devem ser ultrapassados. Arrimo de família, solteira, e sem irmãos, cuida da mãe que
mora com ela e de um tio com 71 anos. Tem uma péssima lembrança de seu primeiro
emprego, que segundo ela, odiava, por que era basicamente datilografia, mas como tinha que
pagar os estudos e ajudar em casa, trabalhava para pagar as despesas. Quando saiu do Banco,
foi trabalhar em uma empresa pequena, perto de sua casa, que tinha um horário mais flexível
e que a permitia fazer faculdade. “Quantas vezes só almoçava, chegava na faculdade
morrendo de fome e só ia comer uma hora da manhã, quando chegava em casa. Passava pela
cantina e sentia aquele cheiro do lanche e não tinha um real para comer”. Conta que quando
terminou a faculdade, começou a viver um pouco mais. Mudou de empresa e ficou durante
seis anos, quando achou que já tinha aprendido tudo e que queria aprender mais, mas não se
acostumou e mudou novamente. Mudou de área, foi da informática para o RH, área com a
qual se identificou bastante. Gosta de fazer parte do negócio e de interagir com as pessoas.
Depois de dois nos e três meses em seu último emprego, saiu, resultado de uma reestruturação
do RH. Foi dada a possibilidade de G. permanecer na empresa, em outra unidade. Ela já
estava com a data marcada de transferência para a outra unidade, quando na véspera, na sexta-
feira, às 14horas, lhe chamaram e disseram que o projeto tinha sido revisto e que aquela vaga
não ia existir mais. Conta que ficou um mês esperando essa transferência, e saber da não
possibilidade de permanecer foi um choque. Conta que foi um momento difícil. “você já sabe
que não tem mais lugar para você”. Sente falta da atividade e da segurança da remuneração
mensal. Trabalho para G. é dignidade, é ser alguém.
JR., 35 anos, supervisor de sistemas, 02 anos desempregado, casado, sem filhos, 10 anos de
empresa
JR. há dois anos desempregado, não desiste de encontrar um novo emprego, tentando nesse
período aprimorar-se e abrir novas possibilidades, por exemplo, com o mestrado que está
fazendo. Após 10 anos de empresa, acredita que os motivos de sua demissão não foram bem
108
explicados, apesar de acontecido durante um processo de mudança na estrutura da empresa. Já
tinha indícios do que iria acontecer desde os últimos três meses de empresa. Sentia um
desconforto muito grande, sentia-se colocado de lado, excluído das atividades, segundo ele,
privado de fazer o que gostava. A exclusão não era em si das atividades, mas também dos
próprios colegas de trabalho, que a partir do momento que viram que ela não estava mais na
organização, evitavam o contato e até de serem vistos com ele. “Essas pessoas não queriam
se ‘contaminar’ estando perto ou sendo vistas ao telefone falando com você ou coisas do
tipo”. Mesmo sabendo da decisão da empresa, tentou reverter a situação, trabalhando de
forma muito mais minuciosa, mas segundo ele, não surtiu efeito. Acredita que poderia ter sido
realocado dentro da empresa. Casado e sem filhos, relata que hoje continua trabalhando, mas
agora para encontrar um novo emprego. Conta que os primeiros meses são os piores, que se
adaptar à situação é muito difícil e que teve períodos muito complicados, de desânimo. Hoje,
sente falta de se relacionar com várias pessoas tão constantemente, e a frustração de não estar
produzindo é muito presente. Relata que já enjoou do rótulo de desempregado, conta que nos
primeiros meses foi muito mais difícil falar com as pessoas, pois sentia-se mal com esse
estigma, mas hoje sua preocupação é arrumar outro emprego. O rótulo que o desempregado
carrega em nossa sociedade, segundo ele, é igual ao de um marginal. Conta situações em que
teve que enfrentar, principalmente situações de entrevista, onde a condição de desempregado
foi uma condição humilhante. Acredita que para a sociedade o desempregado é um aidético,
que tem uma doença, infecto-contagiosa, e que ninguém quer estar por perto.
S., 34 anos, analista de marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01 filha, 09
meses de empresa
Com 34 anos, solteira e uma filha pequena, S. mora com a mãe e luta por sua independência
financeira. Formada em artes plásticas, trabalhou pouco na área, optando por seguir uma
carreira, segundo ela, mais séria, por causa de sua filha. Foi buscar uma formação mais
voltada para Marketing. Saiu de seu último emprego, no qual ficou durante nove meses, em
março de 2002. Segundo ela, ficou menos do que gostaria, pois custou a conseguir engrenar
nesta carreira. Ficou impressionada com a empresa, com o seu tamanho e com as
possibilidades que ofereciam aos seus funcionários, apesar de achar o trabalho que fazia
muito chato. Apesar de ter sobrevivido a um grande corte, não sobreviveu ao segundo. Conta
que era uma época em que se via pessoas sendo mandadas embora a todo o momento, e isso a
109
preocupava. Ficou durante muito tempo sem fazer entrevistas, o que para ela era muito
aflitivo. Foi convidada para trabalhar com o padrasto de uma amiga, mas não deu certo, sendo
novamente dispensada. “Fui aos trancos e barrancos, acho que culminou com uma
depressão, fiquei péssima”. De lá para cá, dá aulas de inglês, mas não é o que quer como
trabalho. Começou a fazer mestrado, porque deseja seguir carreira acadêmica. Para ela, quem
não trabalha não tem um propósito, não tem honra. Passa por um momento em que a pressão
econômica é muito forte, o fato de não conseguir pagar suas contas e ainda precisar da ajuda
de sua mãe lhe incomoda. Mesmo melhor, ainda tem crises de depressão e pânico, apesar de
já estar bastante controlada. Sente-se mal em situações sociais, principalmente quando
encontra pessoas que não vê há muito tempo.
A., 47 anos, gerente de tecnologia, 04 anos desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de
empresa
A. começou a trabalhar muito cedo, com 15 anos. Filho de imigrantes portugueses, acredita
que herdou de seus pais a vontade e o desejo de lutar pela sobrevivência. Perdeu seu último
emprego em junho de 2001, quando a empresa em que trabalhava foi fundida com outra do
setor. Voltou para o mercado procurando alternativas, mas também ficou muito tempo sem
nenhuma remuneração, trabalhando somente com comissões de venda. Conta que os períodos
mais críticos foram em 2001, quando recém saído da última empresa em que foi empregado,
não conseguiu mais ter uma remuneração compatível, e a expectativa de que a situação fosse
resolvida era muito estressante. Acredita que sua sorte esteja no fato de que sempre pode
contar com a família e com o trabalho da esposa, que bem remunerada, sustentou a casa
durante muito tempo. A., apesar de ter trabalho, se considera um desempregado, pois sua
remuneração não é fixa e depende de seu emprenho e vendas. Deseja voltar ao mercado, mas
sabe que quanto mais o tempo passa, mais difícil fica. Criticou bastante os processos de
seleção das empresas e a forma como os desempregados são tratados nesses processos
seletivos. Não é um assunto que gosta de falar com as pessoas, acha que a condição de
desempregado é a pior condição de marginalização do mundo de hoje. Viu seus amigos se
afastando, pessoas que considerava evitando contato, e tudo isso foi muito dolorido. Não
imaginava que essa situação ia se estender por tanto tempo, acreditou que fosse passageiro.
Trabalho para A. é uma coisa muito importante enquanto realização pessoal. “Quando você
esta sem ocupação, parece que você não esta crescendo, é uma necessidade minha de ter uma
110
finalidade de vida, eu tenho a necessidade de manter o motor aquecido“. Já esteve bastante
deprimido e se sentindo muito mal com toda a situação, já que sente-se injustiçado com toda a
dedicação que ofereceu às empresas que trabalhou. Encontra forças na família e na religião.
5.4. Temas abordados na análise das entrevistas
O momento da demissão concretiza a ruptura do sujeito com tudo que pode representar,
objetiva e subjetivamente, a sua relação com o trabalho e com o emprego perdido.
A relação de perda está intimamente ligada ao que aquele espaço, relações, objetos e
estruturas significam para o sujeito. Mas, essa relação de investimento não é tão simples
quanto parece, pois ela é singular, por isso será diferente o modo como cada sujeito reagirá à
perda.
“O significado que o trabalho assume para cada indivíduo
difere profundamente, conforme o desejo investido e o
aprofundamento da relação estabelecida com a ocupação que
exerce”. (Seligmann – Silva, 1994, p. 275)
Independente disso, o que podemos concluir é que a demissão, ou até mesmo um afastamento,
representam uma perda. Perda não só do espaço de trabalho, mas perda de relações
estabelecidas entre tudo o que compreende a relação sujeito-trabalho/emprego-sociedade.
Os trabalhadores demitidos estão diante da ruptura de uma história, e passam agora a se
questionar sobre seus valores, sobre seu futuro, sobre suas vidas.
A preocupação com o futuro é o mais evidente. O desemprego não rompe somente com uma
historia passada, mas prejudica a projeção em uma vida futura. É como se o tempo tivesse que
parar até que a situação de desemprego seja superada. É como se tempo de vida fosse tempo
de trabalho.
Algumas pesquisas sobre desemprego apontaram essa preocupação. Tumolo (2002), em sua
pesquisa, concluiu que o planejamento da vida futura ficou dificultado devido à situação do
desemprego; Calderon (2000), ao caracterizar a perda do emprego como a ‘ruptura da própria
biografia’, concluiu que o desemprego rompeu com uma história de vida; e Tittoni (1999), ao
111
concluir que a perda do emprego redefiniu os modos de vida dos trabalhadores, também
demonstrou a importância do trabalho/emprego para o sujeito.
Assim, quando falamos de desemprego ou de perda do emprego estamos falando de algo tão
importante que pode alterar o modo de relação do sujeito consigo, com sua vida e com os
outros. Com a perda, a imagem que até então tinham de si mesmos e a construção de um
mundo ideal, são substituídas por momentos de desorientação, sentimentos de perda, rejeição
e culpa.
Quem perde o emprego não perde somente uma relação de troca econômica, sob o ponto de
vista material, perde todos as trocas, ideais e ilusões compreendidas no espaço que o trabalho
ocupa e age na subjetividade.
Em uma frase, Seligmann-Silva (1994) diz: “nas entrevistas com trabalhadores industriais
que haviam perdido o emprego, captamos muitas vezes sentimentos intensos de mágoa e
perplexidade (...) o vínculo rompido era muito mais do que simplesmente empregatício”.
(Seligmann-Silva, 1994, p.198)
Apenas mudaria uma das percepções que esta frase pode causar. Não é que o vínculo rompido
é muito mais do que um vínculo empregatício, e sim, o vínculo empregatício significa muito
mais do que um vínculo de troca econômica.
Trabalhar com a temática da perda significa trabalhar com o âmago da psicanálise. É uma
problemática que envolve os processos de identificação e principalmente a constituição do
sujeito.
Trechos das entrevistas aparecerão no corpo do trabalho, para enriquecer o desenvolvimento
da elaboração e a conjunção prática e teórica. Ao final do trecho, aparecerão dados do
sujeitos, importantes para o leitor reconhecer a situação do profissional.
A identificação dos sujeitos ao final do trecho das entrevistas é feita na seguinte ordem: inicial
do nome do sujeito para manter o anonimato, a idade do sujeito, o cargo ou função que
exercia no último emprego, o tempo em que está desempregado, o estado civil, se possui
filhos, e o tempo que tinha de empresa quando foi demitido.
112
Para compreender todo o processo de perda e seus desdobramentos, divido esta análise em
dois capítulos:
¾ Desfazem-se as ilusões: a organização, um sistema ilusório de proteção, amor e
poder: -emprego-organização: a conclusão de que há muito no processo de perda, que
está relacionado com a representação e os espaços que a organização ocupa na
subjetividade, me fizeram tornar esta uma importante via de análise. Esta perda é
principalmente vivenciada com a perda dos ideais e das ilusões estabelecidas nas relações
dos sujeitos com a organização e com os outros membros da corporação. Minha discussão
gira em torno do fato de que a perda do emprego evidencia uma relação estabelecida entre
sujeito e organização, que com a ruptura, desmonta as ilusões de proteção, amor e poder.
No primeiro tópico discuto porque os sujeitos necessitam dessa proteção, como e porque
as ilusões estão na base do funcionamento das organizações, e quais as conseqüências
para os trabalhadores demitidos. No segundo tópico falo sobre a crença dos vínculos de
amor e cooperação estabelecidos nas relações na empresa, e como isso vai ser
desmascarado com a ruptura desses laços. No terceiro tópico discuto a relação do
reconhecimento social que o trabalho carrega, com o sentimento de contribuição ao
coletivo e a desvalorização e marginalização do desempregado por nossa sociedade.
¾ A vivência, a elaboração do luto e os perigos da perda: neste capítulo discuto a
vivência dos sujeitos diante da ruptura do emprego. Iniciando com o choque da notícia,
discutindo o luto e como pode ocorrer essa elaboração do processo de perda, aponto
também quais os perigos do processo, trabalhando sentimentos como o desamparo, a
angústia, a culpa e até mesmo a depressão. Relato como a perda do emprego, afeta a vida
em família do sujeito demitido, que sofrerá com as mudanças desencadeadas pelo
processo de ruptura, podendo desencadear conflitos, rompimentos e separações.
113
VI. DESFAZEM-SE AS ILUSÕES: A ORGANIZAÇÃO, UM SISTEMA ILUSÓRIO
DE PROTEÇÃO, AMOR E PODER
“Houve uma grande movimentação aquele dia. Seguranças, pessoal do sindicato, funcionários do alto
escalão, e em meio a tudo isso, 300 funcionários aguardando em uma sala, proibidos de entrar na
fábrica, porque ‘alguém iria fazer uma comunicação importante’. O clima era tenso. Uns andavam de
um lado para outro, outros ficavam reunidos a portas fechadas, e os mesmos 300 funcionários
aguardavam ‘ansiosamente’ o comunicado. Uns brincavam com os outros: - você sabe que estamos
aqui porque vamos ser mandados embora, né? - outros não paravam de olhar para seus relógios e
diziam que estavam atrasados para voltar ao trabalho, outros cochichavam do colega de trabalho e
outros, impacientes, perguntavam quando chegaria a pessoa que iria falar com eles. E assim ficaram
durante uma hora. Três pessoas entraram na sala. Uma delas estava visivelmente nervosa. A outra
moça, coitada, que estava pálida e quase sem força, iniciou a comunicação ao grupo. Uma delas me
confidenciou depois: - a sensação que eu tive foi de que eu estava levando a notícia da morte de um
ente querido e não sabia a melhor forma de fazer. ‘Atenção! Pessoal, estamos aqui, infelizmente...’
após essa palavra, as pessoas já não ouviram mais nada, sabiam que qualquer coisa que viesse após
o ‘infelizmente’ seria dramático... nunca ouvi tamanho silêncio... a pessoa que falava parou por
alguns segundos... mas para as pessoas foi uma eternidade, até que um se levantou e falou: - Você
veio aqui para me mandar embora? É isso? Os rostos apreensivos desejavam que aquilo não fosse
verdade, afinal tinha-se que esperar a conclusão da frase. De pálida ficou vermelha... e então
continuou: ‘é por isso que estamos todos aqui, nossa empresa está passando por uma grande
reestruturação e temos que cortar pessoas, espero que compreendam, afinal de contas foi uma
decisão muito difícil de ser tomada. Vocês estão sendo desligados e a partir de hoje não precisarão
retornar mais aos seus postos de trabalho. O silêncio novamente foi o que prevaleceu e, após alguns
instantes, ouviu-se: - ‘meu deus e agora o que vai acontecer com a gente?’. Gostariam de perguntar
como agora deveriam proceder, se iam embora, se iam para o setor, mas, entorpecidos, não
conseguiram. Poucos saíram enfurecidos da sala, a maioria ficou em silêncio e visivelmente em
estado de choque. O atrasado que tinha uma reunião com o seu chefe, não parava de olhar em seu
relógio, e perguntou: - ‘e a minha reunião, eu tenho que ir, eu me comprometi, montei todo meu
material e eu preciso entregar a eles’. O outro, que havia dito no início que estavam ali para serem
comunicados de sua demissão não parava de falar:- ‘eu sabia, eu sabia quando vi os seguranças ali
eu...sabia...eu sabia’. Após a comunicação, todos foram orientados a não retornar mais aos postos de
trabalho, a não ser em casos extremos e com a presença de seguranças. E naquele dia, 300 pessoas
foram para casa com a notícia que precisavam agora dar a suas famílias”.
13
13
O trecho é resultado de uma observação por mim realizada, de um processo de comunicação de desligamento
de uma fábrica.
114
No capitulo III, vimos como o desemprego e o medo do desemprego produzem sujeitos mais
submissos, que se apresentam de maneira muito menos política e com pouca voz ativa,
quando o que está para ser determinado são os seus direitos. Alertei para o sofrimento
infligido aos sujeitos quando o que está presente é o medo, e as mudanças que o desemprego
pode produzir nas relações de trabalho.
Neste capítulo, o que pretendo discutir é o que há na relação sujeito-organização, que se
evidencia no momento em que o sujeito perde o emprego.
Depois de anos acompanhando profissionais demitidos, e após a análise dos sujeitos
escolhidos para esta pesquisa, pude perceber que há muito no processo de perda que está
relacionado com a representação e os espaços que a organização ocupa na subjetividade,
sendo assim uma importante via de análise.
O que nos faz concluir que há algo no funcionamento psíquico dos sujeitos na organização
que não se apaga na estrutura e na racionalização. Ela é produtora e reprodutora de ideais e
ilusões de amor, poder e proteção.
Comecemos por uma frase de Freud, em O mal estar na civilização:
“A vida, tal como a encontramos, é árdua demais para nós;
proporciona-nos muitos sofrimentos, decepções e tarefas
impossíveis. A fim de suportá-la, não podemos dispensar as
medidas paliativas (...) As satisfações substitutivas, tal como
as oferecidas pela arte, são ilusões, em contraste com a
realidade; nem por isso, contudo, se revelam menos eficazes
psiquicamente, graças ao papel que a fantasia assumiu na
vida mental”. (Freud, 1930, p.93).
Considerado um texto pessimista, Freud, em O mal estar na civilização (1930), marcou para
sempre o conflito existente entre o sujeito e a cultura, conflito este que para Freud, até o
Futuro de uma ilusão (1927a), podia ser superado. Nos alertou para os sofrimentos infligidos
ao homem, e para as formas de satisfação possíveis e reconhecidas pela cultura.
A grande constatação que Freud fez em ‘O mal estar..’ foi: “os homens não podem nem
suportar a civilização nem viver sem ela, eles devem estar juntos/separadamente”. (Rey-
Flaud, 2002, p.9)
115
Que posição trágica a do sujeito, que deverá, para sempre, negociar renúncia e satisfação,
jamais se deslocando de sua posição de desamparo, sempre buscando a recompensa pelos
sacrifícios, não estando nunca livre do sofrimento.
O sofrimento, segundo Freud (1930), nos ameaça sob três formas: na fragilidade do nosso
corpo, com o poder superior da natureza, e nos relacionamentos com os outros homens,
principalmente pela inadequação das regras que procuram ajustar os relacionamentos mútuos
na família, Estado e sociedade.
Mas, ‘o outro’, fonte mais penosa de sofrimento, também será fonte de satisfação, marcando a
presença da ambivalência em qualquer relação.
“... a civilização é construída sobre uma renúncia ao instinto,
o quanto ela pressupõe exatamente a não-satisfação de
instintos poderosos. Essa ‘frustração cultural’ domina o
grande campo dos relacionamentos sociais entre os seres
humanos”. (Freud, 1930, p.118).
O pai é rival, ao mesmo tempo em que é modelo, e é esse o caráter que se perpetuará nas
identificações.
Freud, em Psicologia das massas e análise do ego (1921), enunciou que a identificação é a
mais remota expressão de um laço emocional com outra pessoa, e desempenha um papel na
história primitiva do complexo de Édipo, que envolve dois laços psicologicamente distintos:
uma catexia de objeto sexual e direto com a mãe, e uma identificação com o pai, que o toma
como modelo.
A compreensão do processo de identificação, que tem como base o complexo de Édipo,
desempenha papel fundamental na orientação do desejo do sujeito e na estruturação da
personalidade.
A escolha do objeto para a criança segue os caminhos das necessidades narcísicas e busca
ligar-se em objetos que lhe assegurem a satisfação de tais necessidades. O objeto amado
torna-se satisfação e proteção contra os perigos, sendo a mãe a primeira proteção contra a
angústia. Com o tempo, o sujeito descobre que não consegue viver sem a proteção. É a luta
116
contra o desamparo infantil que empresta suas feições características à reação do adulto, ao
desamparo que ele tem de reconhecer.
A criança deseja ser igual ao pai para assumir seu lugar, sendo a atitude da criança diante do
pai sempre ambivalente. Esse caráter ambivalente se perpetuará nas identificações, que serão
ambivalentes desde o início. Ao mesmo tempo em que deseja, percebe a imposição da
interdição.
A resolução do complexo de Édipo implica numa aceitação da lei, instaurada pela castração.
É feito um pacto com o pai, e nesse pacto, o sujeito, ao renunciar ao desejo (que produzirá
uma ferida narcísica), substitui as catexias do objeto amado pelas identificações.
Para Pellegrino (1984), o pacto edipiano implica em mão dupla, já que a criança, em troca da
renúncia que lhe é exigida, tem o direito de receber nome, filiação, lugar na estrutura de
parentesco, acesso à ordem do simbólico, além de tudo o mais que lhe permita desenvolver-se
e sobreviver. Com isso, ela ama e respeita o pacto que fez, e nesta medida, fica preparada para
identificar-se com os ideais e valores da cultura à qual pertence.
A identificação é o “processo psicológico pelo qual um sujeito assimila um aspecto, uma
propriedade, um atributo do outro, e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo
desse outro. A personalidade constitui-se e diferencia-se por uma série de identificações”.
(Laplanche & Pontalis, 1992, p. 226)
Para Freud (1921), o indivíduo num grupo está sujeito, através da influência deste, a alterar
profundamente sua atividade mental. Portanto, com o processo de identificação, os modelos e
os ideais da organização participarão da constituição do sujeito.
“... enfrentar o desemprego significa esvaziar-se,
desapropriar-se, desalojar-se de si mesmo, abrir-se ás
desestabilizações”. (Moura, 2001, p. 73).
As possibilidades de identificações dentro das organizações são inúmeras. Enfrentar a perda
do emprego significa enfrentar a sensação de que algo, um pedaço de si, se perdeu, já que o
trabalho e tudo mais que o representa tem um papel fundamental para a construção da
identidade.
117
Assim, levanta-se outro ponto importante. Para Freud, em ‘Psicologia das massas...’ (1921),
as organizações só existem na medida em que há a ilusão prevalecendo nos vínculos
14
.
As ilusões, segundo Freud (1927a), são realizações dos mais antigos, fortes e prementes
desejos da humanidade, e o segredo de sua força está na força desses desejos.
“Uma ilusão não é a mesma coisa que um erro; tampouco é
necessariamente um erro ... O que é característico das ilusões
é o fato de derivarem de desejos humanos.... Podemos,
portanto, chamar uma crença de ilusão quando uma
realização de desejo constitui fator proeminente em sua
motivação...”. (Freud, 1927a, p.43)
As ilusões estão na base do funcionamento das organizações, que prometem a salvação,
constróem sua ‘realidade’ particular e oferecem aos sujeitos a proteção necessária, nas quais
ali defendem-se da própria impotência, negam suas fragilidades, e buscam no ideal, a
nostalgia e o desejo de completude que foram perdidos.
Assim, se a vida é difícil de suportar por todos os males e ameaças causadoras de sofrimento,
por todas as coerções infligidas, por todas as constantes lembranças que temos de nosso
desamparo, buscamos ser protegidos e consolados, buscamos o alívio para a dor, criando
formas e figuras que rompem com a realidade e nos mostram o que ‘desejamos’ ver.
Portanto, se a relação sujeito-organização constitui-se sobre uma fantasia e um ideal, sendo
então o sujeito moldado e reprodutor do ideal da organização, ao encarar a realidade que toda
perda e ruptura propiciará, vivenciará sentimentos desconhecidos e desagradáveis.
É a realidade que a ilusão desfeita com a perda da relação sujeito-organização desmascara, e
sentir-se aportar numa realidade é desfazer-se das ilusões
15
:
14
Assunto que aprofundarei no tópico 6.2.
15
Nota-se que em uma abordagem lacaniana da ideologia, o que se aproxima com as desvantagens das ilusões (da
‘realidade’ enquanto formação imaginária produzida pela simbolização sempre parcial e incompleta do Real) é a
parcela do Real não passível de simbolização. Neste sentido, haveria dois ‘métodos ideológicos’ distintos e,
conseqüentemente, duas formas distintas de crítica da ideologia. Sem desmerecer o valor do uso que Zizek (1996) faz
da psicanálise lacaniana para refletir sobre a ideologia, registro que o presente trabalho privilegia as considerações da
psicanálise freudiana sobre a construção das ilusões. A respeito dos limites dessa teorização e da teorização marxista
para a crítica da ideologia apontados por Zizek (1996), permanecem que as fantasias ideais relevantes no caso da
abordagem deste trabalho tem como fundamento principal a estratégia de “ ‘falsa’ eternização e/ou universalização” de
um estudo que depende de uma conjuntura particular e específica. Assim, acredito que as formações freudianas e
marxinianas mantém sua relevância neste caso.
118
“(...) a sensação que eu tinha era: bem vinda ao planeta Terra”.
(S., 34 anos, analista de marketing, 1 ano e 8 meses
desempregada, solteira, 01 filha, 09 meses de empresa)
É com a angústia que o sujeito desamparado se depara, perdendo a via de satisfação de
desejos de onipotência, de proteção e de amor.
Para discutir os próximos temas, quero citar os três estágios de identificação entre indivíduo e
organização, que Pagès (1987) considerou em seu estudo sobre as organizações. Para o autor,
num primeiro momento o indivíduo experimenta fortes angústias de destruição e o sentimento
de toda sua fraqueza diante de algo tão maior, que representa a organização; num segundo
momento, o indivíduo defende-se contra sua angústia, desenvolvendo um desejo de
onipotência e projetando seu desejo na organização, identificando-se com ela, construindo
uma organização imaginária, onde a angústia é reprimida e a agressividade dirigida para a
organização é canalizada para o exterior (concorrentes, clientes, Estado, entre outros); e num
terceiro momento, a organização imaginária invade o indivíduo e torna-se parte dele,
adquirindo uma vida independente da organização real.
Comentarei sobre os estágios mais adiante. Agora quero me ater agora na constatação de que
há a construção de uma organização imaginária pelo sujeito da organização.
Antes, algumas considerações.
Para Castoriadis (1982), o trabalho é sempre percorrido por operações simbólicas, que nunca
se esgotam em sua substância, pois sub existe um componente essencial e decisivo, que é o
componente imaginário de todo o símbolo e do simbolismo. Para o autor, a instituição é uma
rede simbólica socialmente sancionada, onde se combinam em proporções e em relações
variáveis, um componente funcional e um componente imaginário. O imaginário utiliza o
simbólico não somente para exprimir-se, mas para existir, para passar do virtual para qualquer
coisa a mais. O simbólico pressupõe o imaginário e nele se apóia, mas não é apenas o
imaginário efetivo em seu conteúdo. Tudo que nos apresenta num mundo social histórico está
indissociavelmente entrelaçado com o simbólico, não que se esgote nele, os atos reais e
individuais ou coletivos, como o trabalho e o consumo, não são símbolos, mas são
impossíveis fora de uma rede simbólica.
119
Enriquez (2000), se apóia no conceito da organização como um sistema cultural, porque é
produtora de normas e regras; simbólico, porque institui os ritos e imagens heróicas;
imaginário, porque sem o simbólico e o cultural teriam dificuldades em estabelecer-se.
Bastante apoiado nas idéias de Castoriadis (1982), Enriquez (2000) compreendeu a
organização como um representante do imaginário social. Se assim o considera, aceita o fato
que a organização é um espaço de criação incessante de figura, formas e imagens, tendo a
realidade e a racionalidade como seus produtos.
Por sua vez, Schirato (2000), baseado nas conclusões de Enriquez (2000) de que organizações
são movidas pelo imaginário, enganoso e motor, aprofundou os conceitos de sistemas
imaginários, e constatou que é no mundo das intenções e das promessas que os homens
agrupam-se em organizações.
“... se a aliança e a entrega total do trabalhador no seio da
organização é resultado de um mundo simbólico, imaginário,
representado por intenções e promessas de proteção, sucesso,
reconhecimento social etc, igualmente o rompimento dessa
aliança – ou fusão – dá-se no plano do imaginário como
abandono, fracasso, impotência, condenação às trevas e à
desgraça”. (Schirato, 2000, p. 26)
6.1. A perda da proteção e de um propósito de vida idealizado
“... é nas formações imaginárias da cultura que o sujeito
encontra as condições de possibilidade para fomentar as
ilusões de seu narcisismo”. (Birman, 1994, p.87)
A empresa, através da produção de um imaginário, empresta uma imagem perfeita e protetora
aos sujeitos, que por sua vez, se ligam a ela por encontrar nesta relação e estrutura “fonte de
amor e reconhecimento que podem preenchê-los e curá-los de suas imperfeições e
fragilidades.” (Freitas, 2000, p.54)
Todos nós buscamos ser protegidos e consolados, principalmente quando reconhecemos que
somos frágeis e desprotegidos, ou seja, quando nos damos conta do nosso desamparo.
120
O desamparo é a posição de fragilidade e impotência do sujeito diante do outro, mas é
também a percepção da necessidade de proteção.
“... a impressão terrificante de desamparo na infância
despertou a necessidade de proteção — de proteção através
do amor — a qual foi proporcionada pelo pai”. (Freud,
1927a, p. 43)
Desde 1895, Freud, em Projeto para uma Psicologia Científica, já apontava questões de
articulação do desamparo com a cultura, quando observou: “o desamparo inicial dos seres
humanos é a fonte primordial de todos os motivos morais”. (p.422)
Mas foi em O futuro de uma ilusão (1927a), e em Mal-estar na civilização (1930) que Freud
articulou o problema do desamparo com as questões da cultura de uma maneira mais precisa,
correlacionando o desamparo da criança com o desamparo do adulto.
Essa passagem e a concretização do desamparo como um fundamento estrutural do sujeito só
foi possível com a introdução do conceito de pulsão de morte, que Freud fez em Além do
princípio do prazer, em 1920. A partir da introdução deste conceito, Freud admitiu ser o
desamparo indissolúvel e originário.
“... o registro psíquico do desamparo é algo de ordem
originária, marcando a subjetividade humana para todo o
sempre, de maneira indelével e insofismável”. (Birman, 2001,
p. 37)
Assim, Freud marcou para sempre o conflito existente entre pulsão e civilização,
reconhecendo seu caráter estrutural e um trabalho infinito por parte do sujeito, como Birman
(2001) bem colocou de ‘gestão do desamparo’.
Para Pereira (1999), Freud evoluiu de uma formulação inicial, que concebeu o desamparo sob
a perspectiva do estado de impotência psicomotora do bebê, até reencontrá-la, em seus
últimos trabalhos, na base do desespero do homem quando confrontado à precariedade de sua
existência.
“A mesma pessoa, à qual a criança deveu sua existência, o
pai (ou, mais corretamente, sem dúvida, a instância parental
121
composta do pai e da mãe), também protegeu e cuidou da
criança em sua debilidade e desamparo, exposta como estava
a todos os perigos que a esperavam no mundo externo; sob a
proteção do pai, a criança sentiu-se segura. Quando um ser
humano se torna adulto, ele sabe, na verdade, que possui uma
força maior, mas sua compreensão interna (insight) dos
perigos da vida também se tornou maior, e com razão conclui
que fundamentalmente ainda permanece tão desamparado e
desprotegido como era na infância; ele sabe que, na sua
confrontação com o mundo, ainda é uma criança”. (Freud,
1933a, p. 188)
Para Enriquez (2000), a organização, apresentando-se como todo-poderosa, fornecerá a cada
sujeito os elementos de segurança que lhe permitirão saciar seu desejo de completude. Na fala
dos sujeitos aparecem expressões e sensações que mostram a dificuldade de sair da empresa,
pelo fato de nela sentirem-se seguros:
“A X, era meu ‘porto seguro’, sair foi difícil, pois já me sentia em
casa...” (G., 32 anos, analista de R.H., 03 meses desempregada,
solteira, 02 anos e 03 meses de empresa)
A organização vai suprir a necessidade do sujeito de ser protegido, evitando aos seus
membros entrar em contato com sua fragilidade. Ela o fará principalmente através de regras,
valores e estruturas. Estruturas que trazem comodidade, e que soam aos sujeitos como uma
forma de acolhimento e proteção:
“(...) ela (a empresa) parece uma grande mãe... você tem plano de
saúde, uma série de benefícios, umas série de coisinhas, de
facilitações na sua vida. (...) essas coisas do dia a dia, que são da
vida pessoal, que não tem nada haver com a empresa ... é cômodo
e você sente que é pratico, você fica com menos coisa para fazer
fora”. (S., 34 anos, analista de marketing, 1 ano e 8 meses
desempregada, solteira, 01 filha, 09 meses de empresa)
“A X é uma empresa ótima adorava trabalhar lá nunca tive
problemas com supervisão ou pessoas a empresa é muito
122
acolhedora”. (N., 47 anos, analista contábil, 03 meses
desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
A permanência do sujeito em um sistema de regras, que lhe oferece segurança e grandes
certezas, restringirá, segundo Birman (2001), o potencial da angústia e da incerteza do sujeito.
Mas, há o contraponto.
Como nos alerta Freitas (2000), cada vez mais as empresas assumem importância na vida dos
indivíduos. E podemos perceber isso quando os sujeitos se referem às empresas como espaços
seguros e protegidos que os orientam, apontando um caminho: “a empresa dá o norte ... nos
orienta...”; “a gente tem uma vida lá dentro”; “ela nos aponta o caminho, a estrada que
temos que seguir, faz parte da vida”.
Um caminho que se torna propósito de vida:
“(trabalho) é uma necessidade minha de ter uma finalidade de
vida. Não é só aquela relação do ‘eu produzo’e sou pago por isso
tem que ser uma coisa muito mais abrangente”. (A., 47 anos,
gerente de tecnologia, 04 anos desempregado, casado, 02 filhos, 1
ano de empresa)
A ruptura de ‘uma vida’, como muitos relatam, só nos mostra como o trabalho é determinante
na vida das pessoas. E quando eu falo de trabalho, falo no sentido mais amplo de todas as
possibilidades que o trabalho pode oferecer ao sujeito, desde rotinas, colocação de energia,
regras, relacionamentos, etc.
“Assumimos a vida nas empresas como vida, e os seres
humanos que lá estão como humanos, no que o humano
significa. São homens e não máquinas, que sonham e realizam
sonhos, que expressam alegrias, frustrações, inquietações,
grandiosidade e fragilidades”. (Freitas, 2000, p.43)
Trabalho e vida, no relato dos demitidos, se confundem tanto e participam de uma dinâmica
que não sabemos mais se é possível vida sem trabalho:
123
“(...) para mim o trabalho é tudo, a pessoa que não tem trabalho
não tem objetivo nenhum na vida...”. (N., 47 anos, analista
contábil, 03 meses desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos
de empresa)
“Não consigo entender uma pessoa que não trabalha, vejo um
monte de ‘gente’ que não trabalha e são mais novas do que eu.
Acho que não nasci para ser dona de casa, adoro cozinhar, adoro
cuidar da casa, mas só isso não preencheria minha vida”. (S., 34
anos, analista de marketing, 1 ano e 8 meses desempregada,
solteira, 01 filha, 09 meses de empresa)
Por haver essa mistura vida e trabalho, é comum aos sujeitos que perdem o emprego relatarem
questionamentos sobre suas vidas, como se ao perderem o emprego, perdessem também a
possibilidade de projetar-se num ideal, num propósito coletivo, lugar este que o trabalho, e
principalmente o trabalho na organização, representa.
Pesquisadores concluíram que a perda do sentido de vida e a preocupação com o futuro são
relatadas pelos desempregados:
Lira e Weistein (apud Seligmann-Silva, 1994) constataram que a perda do emprego trouxe
para os sujeitos a sensação de carência de sentido de vida e ausência de perspectivas;
Tumolo (2002) apontou que o planejamento da vida futura ficou dificultado devido à
situação do desemprego;
Tosta (2000) concluiu que o desemprego concretiza a ruptura de uma vida, onde se faz
necessária, por parte dos sujeitos desempregados, a construção de um novo modo de vida
para se adaptar a uma nova realidade;
Warr (Apud Seligmann-Silva, 1994) apontou que reduzem-se os objetivos de vida,
aumentando a insegurança sobre o futuro.
Tudo isso só nos leva a inferir que os objetivos de vida são idealizados na estrutura da
organização. São as empresas que muitas vezes ditam o que é o ideal.
124
Assim, perder o emprego significa perder uma imagem idealizada e a possibilidade de
concretização de um ideal, um propósito de vida idealizado por uma estrutura, que no caso é
representada pela a organização:
“(...) eu fui criado, educado e estudado para o ambiente de
empresa. Meus pais vieram desse ambiente, então os meus
valores, os meus conhecimentos, as minhas qualidades sempre
foram voltadas para aquilo que a empresa valoriza”. (JR., 35
anos, supervisor de sistemas, 02 anos desempregado, casado, sem
filhos, 10 anos de empresa)
Para Schirato (2000), as organizações cumprem a possibilidade da busca pela felicidade, a
ilusão de ‘ser melhor’ e de conseguir um propósito de vida, de ser reconhecido por ele, está
embutido no desejo de pertencer àquela estrutura. É no mundo das intenções e das promessas
que os homens agrupam-se em organizações, tornando este o espaço fértil de produção.
“Não era só questão de estarem cancelando sua vaga, é a questão
de cancelar seu sonho, seu projeto de continuar...” (G., 32 anos,
analista de R.H., 03 meses desempregada, solteira, 02 anos e 03
meses de empresa)
É a busca constante pela recompensa ao seu sacrifício, pela renúncia aos seus desejos, que o
sujeito marca o verdadeiro propósito da vida humana.
O sujeito, em constante negociação, nunca estará completo e buscará a completude através do
prazer coletivo, aceitando suas imposições.
“Ofereço à sociedade minha competência e minha renúncia
ao princípio do prazer, sob forma do meu trabalho”.
(Pellegrino, 1984, p.4)
Podemos perceber, como Pagès (1987), que a identificação dos indivíduos com um ideal
coletivo, representado pela organização, terá algumas conseqüências:
a canalização do máximo de energia dos indivíduos em benefício da organização;
a submissão do indivíduo à organização, como se esta fosse dele;
125
conforma-se ao modelo de personalidade suscitado pela organização, uma
personalidade individualista e agressiva, todavia adaptável, possuindo um ideal de
perfeição.
o ideal coletivo substitui o ideal do ego de cada um.
Na organização, o sujeito está inserido num ideal, alimentado pela ideologia do capitalismo e
do consumo, buscando nos objetos a desejada completude narcísica perdida. “Ama-se a
organização pela perfeição que se almeja para o próprio Ego”. (Pagès, 1987, p. 159)
É a economia do narcisismo que se materializa em figuras e modelos que, segundo Birman
(2001), revelam diferentes relações com o Outro e com o prazer, onde a subjetividade oscila
continuamente entre os pólos alteritário e narcísico que fundam seu ser, com o ‘ideal do ego’e
‘ego ideal’.
O ‘ego ideal’ está relacionado com o narcisismo primário, onde o eu se coloca como sendo
seu próprio ideal, conservando e reproduzindo seu próprio narcisismo, não existindo ainda a
mediação pelo simbólico. (Laplanche & Pontalis, 1992, p. 139)
Já o ‘ideal do ego’, considerado ‘herdeiro do narcisismo’, é um modelo “resultante da
convergência do narcisismo e das identificações com os pais, com os seus substitutos e com
os ideais coletivos”. (Laplanche & Pontalis, 1992, p. 222).
As identificações apenas inscrevem-se no psiquismo com o ideal do ego, e a satisfação que o
ideal oferece aos participantes da cultura é de natureza narcísica.
“Transportemo-nos para a vida mental de uma criança. Na
escolha do objeto, a libido segue os caminhos das
necessidades narcísicas e liga-se aos objetos que asseguram a
satisfação dessas necessidades”. (Freud, 1927a, p.36)
O ideal do ego é quem trabalha com os modelos, normas e valores no campo das trocas,
funciona como mediação entre os sujeitos. Por ser herdeiro do narcisismo primário, é quem
restaura a ilusão, e isso ocorre através dos processos identificatórios, que resultam na
convergência do narcisismo e das identificações com os pais, aos seus substitutos e aos ideais
coletivos.
126
É através deste ideal que se constituirá o modelo que o sujeito se esforçará para moldar-se.
Mas, há uma outra diferença a fazer. Vejamos este trecho em Psicologia das massas e análise
do ego:
“No ego se desenvolve uma instância capaz de isolar-se do
resto daquele ego e entrar em conflito com ele. A essa
instância chamamos de ‘ideal do ego’: atribuímos-lhe a auto-
observação, a consciência moral, a censura dos sonhos e a
principal influência na repressão. Dissemos que ele é o
herdeiro do narcisismo original em que o ego infantil
desfrutava de auto-suficiência; gradualmente reúne, das
influências do meio ambiente, as exigências que este impõe ao
ego, das quais este não pode sempre estar à altura; de
maneira que um homem, quando não pode estar satisfeito com
seu próprio ego, tem, no entanto, possibilidade de encontrar
satisfação no ideal do ego que se diferenciou do ego.” (Freud,
1921, p.138)
Neste momento, em 1921, Freud não havia ainda conceitualizado a estrutura psíquica da
segunda tópica (id, ego, superego). Parte daquilo, que chamou de ‘ideal do ego’, como a
função crítica e observadora, foi o que, em o Ego e o id, em 1923a, caracterizou como sendo
função do ‘super ego’.
Como podemos ver, o conceito de ‘ideal de ego’ está diretamente ligado ao conceito de super
ego. Os dois são instâncias psíquicas que se constituem pela elaboração do complexo de
Édipo, por isto, este desempenha papel fundamental na orientação do desejo do sujeito e na
estruturação da personalidade.
Mas não só: também impõem a importância do outro na constituição do sujeito, tendo que,
necessariamente, existir a ligação com o outro para haver a mediação necessária pela qual as
pulsões passarão para um universo de representação.
As qualidades da organização tornam-se as qualidades do indivíduo, que trata a organização
como seu próprio Ego, e uma parte de sua libido narcisista é direcionada para a organização
por identificação. Há a construção de um ideal de ego à imagem da finalidade capitalista.
127
”O indivíduo tende a assumir a organização, sua ideologia,
suas regras, o trabalho que ela lhe propicia e a reproduz
assim de maneira mais segura e ao mesmo tempo mais suave
e mais adaptado ...”. (Pagès, 1987, p.36)
O espaço de trabalho na organização representa um espaço de vida, e sua realização só é
possível porque é alimentada por um fantasia e por um ideal. As criações da civilização
sobrevivem e se mantém pela satisfação de ordem narcísica, na medida em que os sujeitos
participam de seus ideais e de suas criações.
Portanto, se para muitos, trabalho é vida, se é espaço de ‘ser’, o não-trabalho vivenciado no
desemprego é morte.
“Não quero deixar de trabalhar... não acabou, a gente está vivo...
não estamos mortos, nós estamos vivos”. (Ge., 42 anos, supervisor
de produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos, 04 anos de
empresa)
Por mais que isso seja expresso pelas pessoas, o importante é o que está por trás daquilo que
se prende à idéia do que é o trabalho. Não é só o trabalho que se torna àquilo que tenho que
me ‘agarrar’, não é só o trabalho que se torna meu propósito, e sim aquilo que a organização
reconhece como sendo a meta e o propósito. Os indivíduos que perderam seus empregos,
perderam também aquilo em que acreditavam ser o seu ideal, que não era seu, e sim da
empresa.
“(...) sinto falta de muita coisa... tanta coisa na minha vida
mudou que não sei nem precisar... mas, na verdade, do que sinto
falta mesmo é da segurança que eu tinha, e dos sonhos que deixei
para trás. Sonhos que sei hoje, não eram meus”. (JR., 35 anos,
supervisor de sistemas, 02 anos desempregado, casado, sem filhos,
10 anos de empresa)
Peça a um demitido para lhe dizer o que ele quer, qual o seu projeto de vida, o que deseja
fazer daqui para frente. O que vai ouvir é um grande ponto de interrogação, como se nunca
tivessem parado para se questionar sobre isto, é como se enquanto estavam trabalhando
dissessem: ‘eu quero o que eles querem’, ‘eu sou o que ele deseja’.
128
“Busco hoje, que estou desempregado, outros objetivos e metas
para a minha vida”. (R., 47 anos, gerente comercial, 10 meses
desempregado, casado, 02 filhos, 08 anos de empresa)
Isso explica bem a desorientação, a perda de sentido que muitos sentem aos estarem
desempregados. Como coloquei no início, quando perde-se o ‘norte’, perde-se o propósito que
foi idealizado pela estrutura.
“Me senti totalmente perdida, sabe quando se perde o chão?”.
(N., 47 anos, analista contábil, 03 meses desempregada,
divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
“Tenho dificuldades de vislumbrar novas possibilidades” (R., 47
anos, gerente comercial, 10 meses desempregado, casado, 02
filhos, 08 anos de empresa)
6.1.1. Perda da estrutura organizadora da vida diária do sujeito e da família
Mas a perda de sentido e a desorientação, freqüentes nos casos em que a pessoa perde o
emprego, podem nos colocar frente a um novo problema.
Ao estabelecer as regras, a organização não só oferecerá um propósito de vida, mas também
organizará o tempo do sujeito, lhe oferecerá um espaço de troca e de trabalho, e assumirá
outros espaços além do trabalho, preenchendo a vida dos trabalhadores com um cotidiano
sistemático.
Quando desempregados, não sabem o que fazer com o seu tempo, sentindo-se a tal ponto
desorientados, que muitos trocam o dia pela a noite durante as primeiras semanas de
desemprego, como podemos ver no relato do sujeito:
“Tomei muito cuidado para que eu não trocasse o dia pela noite
nesse período”. (JR., 35 anos, supervisor de sistemas, 02 anos
desempregado, casado, sem filhos, 10 anos de empresa)
Além disso, acham que perderam sua capacidade produtiva e sentem-se estranhos dentro de
sua própria casa. O estranho dentro da própria casa, que teve durante tanto tempo seu tempo
capturado da família.
129
Não há como negar que a vida familiar e o mundo do trabalho se misturam.
Podemos verificar historicamente que as sociedades industriais sempre objetivaram como
bem colocou Castel (1998), realizar uma perfeita osmose entre a fábrica e a vida cotidiana dos
operários e suas famílias.
É uma rede de dependência que foi sendo criada, e a família participou ativamente disso.
Assim se o emprego organizou a vida dos trabalhadores, organizou também a vida em família.
“A primeira mudança daqui de SP foi traumática ... Mas eles
aprenderam que a vida sempre apresenta mudanças e tem que se
adaptar rápido e fizeram amizades lá dentro da escola e para Belo
Horizonte foi ainda melhor a adaptação então acho que foi
positivo por isso ele aprendeu a se adaptar logo rapidamente as
mudanças e ao ambiente isso porque também tem essa filosofia
dentro de casa”. (R., 47 anos, gerente comercial, 10 meses
desempregado, casado, 02 filhos, 08 anos de empresa)
Existe claramente um conflito entre tempo de trabalho e tempo de família. Pelo menos é
assim que os filhos, esposas e maridos enxergam o tempo de dedicação de seus pais ou
cônjuges à empresa.
“A família sempre me cobrava porque eu viajava muito, chegava
muito tarde, os filhos queriam brincar comigo, sair mais...”. (R.,
47 anos, gerente comercial, 10 meses desempregado, casado, 02
filhos, 08 anos de empresa)
Quantas vezes não ouvimos os trabalhadores dizerem que a empresa era a sua segunda
família. Ou quantas vezes não vimos os nomes da família serem substituídos pelos nomes das
empresas, tornando a empresa o referencial e não mais a sua família.
“Quando ligo para algum lugar, por exemplo e as pessoas me
perguntam: - É a Fulana da onde ? Falta alguma coisa, não
posso falar mais que sou a N., da X” (N., 47 anos, analista
contábil, 03 meses desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos
de empresa)
130
O tempo dedicado ao trabalho é um tempo de não dedicação a família, e o tempo de
dedicação à família é um tempo de não dedicação ao trabalho.
No exemplo do Ge., podemos ver isso claramente como a opção pela família o fez aparentar
desleixo com o seu trabalho, tornando esse o motivo de sua demissão:
“Nunca tive receio de trabalhar além do horário pelo qual fui
contratado ... Como estava investindo na profissão queria
resultados e precisava de dedicação e investimento... Um dia tive a
formatura da minha primeira filha e avisei que teria que sair às 6
horas. Nesse dia deu um problema sério numa máquina .....fui à
formatura de minha filha, voltei para a empresa, virei a noite e
mesmo assim fui dispensado pelo presidente. Nunca houve um
parabéns, pelas coisas boas, mas se apegou ao fato descrito nesse
momento, para decidir se eu sirvo ou não“. (Ge., 42 anos,
supervisor de produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos,
04 anos de empresa)
Existe na fala dos trabalhadores a idéia de que para se atingir um alto cargo executivo em uma
empresa, deve-se sacrificar o seu tempo com a família. Isso Pagès (1987) relatou em sua
pesquisa quando apontou que o sentimento de alguns profissionais é de que: se o profissional
não vence, se não atinge o ‘sucesso’ é por que dedica-se mais tempo à família. E isso significa
menos tempo para a empresa.
Hoje, as empresas com o objetivo de captar toda a energia do profissional em beneficio da
empresa, criaram uma série de programas, que funcionam muito mais como mecanismo de
captação e interação dos familiares com a empresa. Se o tempo não dedicado à empresa é
dedicado à família: Cooptem à família!
“Foi uma decisão crítica, falar para a família que ia largar esse
trabalho, e com a agravante de ser época da festa de fim de ano,
onde a empresa recebia as famílias, as crianças, realmente era
uma festa bonita. Minha esposa pediu pelo amor de Deus para eu
não sair: -... é uma boa empresa, grande”. (Ge., 42 anos,
131
supervisor de produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos,
04 anos de empresa)
“(...) as meninas são muito ligadas à fábrica, ao nome da fábrica.
Para não ter esse desespero em casa, não sei porque, mas é
sempre e a primeira coisa que me passa na cabeça”. (Ge., 42
anos, supervisor de produção, 20 dias de desemprego, casado, 02
filhos, 04 anos de empresa)
Pensar na empresa, nos problemas da empresa e ter todo sua energia direcionada para isso, faz
com que o sujeito ao perder o emprego tenha que lidar com o seu próprio tempo. Isso envolve
ter que entrar em contato com as suas angústias, fragilidades e frustrações, não somente sua,
mas também de seus familiares. Por que no espaço de trabalho seus problemas eram
esquecidos, o trabalho servia a muitos como fuga dos próprios problemas.
“(...) lá, não tinha tempo de pensar em meus problemas, era
correria e pressão o dia inteiro, não dava nem para pensar em
mim”. (G., 32 anos, analista de R.H., 03 meses desempregada,
solteira, 02 anos e 03 meses de empresa)
Porém, tempo de desemprego não significa tempo livre, muito pelo contrário, significa tempo
de indecisão.
“estar desempregado era algo muito diferente a ter tempo
livre.... seu sentido de tempo vem abaixo ... discussões
familiares tinham aumentado”. (Jahoda apud Estramiana,
1992, p. 51)
Segundo Tumolo (2002), a condição de desemprego interfere na vida do desempregado como
um todo, é uma preocupação constante que está presente 24 horas por dia, e afeta os
relacionamentos e as horas destinadas ao descanso.
“(...) eu não tinha mais aquele objetivo aquela rotina que eu
estava acostumada, era outro objetivo”. (N., 47 anos, analista
contábil, 03 meses desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos
de empresa)
132
Os homens sentem-se intrusos dentro de sua própria casa, estranhos diante de sua família. As
mulheres sentem a frustração de ter que voltar a ser dona de casa, perdendo totalmente a
independência que o trabalho lhe trouxe:
“quem não tem trabalho não tem objetivo nenhum na vida eu, por
ser mulher, não me vejo lavando passando e cuidando de filhos
acho que vou ficar muito frustrada infeliz se isso acontecer”. (N.,
47 anos, analista contábil, 03 meses desempregada, divorciada, 02
filhos, 17 anos de empresa)
“Tinha as mulheres do prédio que ficavam tomando sol, mas não
era minha praia, então prefiro ficar sozinha com minhas coisas.
No início tentei descer mas as mulheres só falam mal dos
maridos, de dinheiro, .... é outra vida e não saía disso. Quando
você esta trabalhando você discute problemas da empresa, jornal
e lá eu me sentia um peixe fora do aquário”. (N., 47 anos,
analista contábil, 03 meses desempregada, divorciada, 02 filhos,
17 anos de empresa)
A volta para casa representa o retorno do trabalhador à uma cena que não estava mais
acostumado. Nem ele e nem seus familiares.
Os estudos de Jahoda (apud Estramiana, 1992) trabalham bastante com a temática do tempo.
A autora concluiu, entre outros aspectos, que o emprego impõe uma estrutura temporal à vida
diária do trabalhador, que ao perder essa referência, perderá esse referencial de tempo.
Sem dúvida, o emprego e por conseqüência o trabalho na organização, torna-se um
organizador da vida diária.
A rotina que tanto é estressante é vista como falta, não pela sua existência, mas pelo fator
organizador que sua sistemática possui.
“a gente acostuma com a rotina. Você não vai fazer mais aquilo
então fica sem saber o que fazer, foi o que aconteceu comigo
depois”. (N., 47 anos, analista contábil, 03 meses desempregada,
divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
133
Acordar todos os dias e ter para onde ir, ter o que fazer, é um fator de segurança que coloca os
sujeitos numa rede de desconforto quando perdem esse direcionador.
“quer queira, quer não, eu acordava todo dia no mesmo horário.
Era uma rotina que mesmo quando eu saía num dia, no outro
estava acordando para ir trabalhar... você já tinha todo um
projeto pronto, sua agenda, o que ia fazer na próxima semana”
(N., 47 anos, analista contábil, 03 meses desempregada,
divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
A angustia de ‘não ter o que fazer’ é tão evidente, que lidar com o vazio que essa perda causa
é um complicador.
Dar-se conta de que não têm mais quem determine seus próximos passos os faz inseguros, e
como veremos mais para frente, pode reproduzir o desamparo.
“O mundo aqui fora é diferente... dá insegurança, medo do
mundo novo”. (N., 47 anos, analista contábil, 03 meses
desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
“Você fica muito perdido quando vivencia mudanças drásticas em
sua vida”. (A., 47 anos, gerente de tecnologia, 04 anos
desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de empresa)
6.2. A perda do amor: ilusões de laços de amor presentes na relação sujeito e
organização
Em qualquer organização, indivíduos unem-se com um objetivo comum, tornam a missão da
empresa a sua própria missão e multiplicam um discurso de comprometimento e cooperação.
É claro que estamos falando de uma crença, que se perpetua mesmo após a demissão.
Sentir-se parte de algo maior, sentir-se pertencente a um grupo que o reconhece, e sentir-se
desejado, mesmo que isso envolva sacrifícios pessoais, é o que muitos trabalhadores
respondem quando perguntados sobre sua relação com a organização.
134
“É sentir que você é útil, é peça de um quebra cabeça, parte
integrante de um processo, alguém precisa de você. É interessante
saber que um grupo de pessoas precisa do teu trabalho, precisa te
ouvir, cobrar seus resultados... Você sai com a sensação de
missão comprida...” (E., 36 anos, controller, 04 meses
desempregado, casado, sem filhos, 11 meses de empresa)
Mas o que liga as pessoas a um grupo? E o que faz essas pessoas se manterem unidas? Foi o
que Freud (1921), em ’Psicologia das massas...’, se perguntou. Partindo da idéia de que um
grupo, compreende de um lado o sujeito unido a um chefe, a um líder, ou a uma idéia, e do
outro, unido aos demais membros do grupo, concluiu que o que está na base das formações do
grupo são os laços emocionais.
Preocupado em compreender a dinâmica de um indivíduo inserido num grupo, Freud (1921)
marcou a posição de um sujeito influenciado pela fantasia e pelo desejo, fundando um modelo
de identificação que participa da constituição do sujeito.
Esse modelo de identificação observado por Freud (1921) no funcionamento do grupo tem
dois pontos importantes a serem observados. O primeiro está ligado à conclusão de que não
existe grupo sem a figura ou presença de um chefe, de algo superior, pois é ele que assegura
ao grupo um referencial ao ideal, é quem suscita as identificações, e é quem será o
representante e lembrará a todos a existência de uma lei. O segundo ponto, ainda ligado ao
modelo de identificação, é a estrutura libidinal que une os membros do grupo entre si, porque
todos reconhecem o mesmo representante, reconhecendo-se como iguais.
Na verdade o que Freud (1921) trás nesse modelo é o que julgou ser a ‘revivescência da
horda primeva’, que em Totem e Tabu (1913) descreveu como sendo o mito originário: o
assassinato do chefe da horda e a conversão desse em pai e dos membros do grupo em irmãos,
que diante do pacto que realizam reconhecem a lei em favor do grupo.
“Certo dia, os irmãos que tinham sido expulsos retornaram
juntos, mataram e devoraram o pai, colocando assim um fim à
horda patriarcal. Unidos, tiveram a coragem de fazê-lo e
foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer
individualmente... odiavam o pai, que representava um
obstáculo tão formidável ao seu anseio de poder e aos desejos
135
sexuais; mas amavam-no e admiravam-no também. Após
terem-se livrado dele, satisfeito o ódio e posto em prática os
desejos de identificarem-se com ele, a afeição que todo esse
tempo tinha sido recalcada estava fadada a fazer-se sentir e
assim o fez sob a forma de remorso”. (Freud, 1913, p.146)
Para Kaës (1997), o deslocamento das identificações com a onipotência atribuída ao pai, em
direção aos investimentos na figura do irmão e nos valores da cultura, é conseqüência de uma
crise, de uma ruptura e de uma superação que sinalizam a passagem do vínculo a-histórico da
Horda para o vínculo intersubjetivo, histórico e simbólico do grupo fraterno totêmico. “Sem a
referência paterna, nenhuma cultura é concebível”. (Enriquez, 1990, p. 32)
É a força da ligação perante um propósito que Freud (1913) transmite ao colocar “Unidos,
tiveram a coragem de fazê-lo e foram bem sucedidos no que lhes teria sido impossível fazer
individualmente”. Representantes em busca de um único objetivo tornam-se muito mais
fortes, o que na realização individual seria impossível.
Devorar a vítima, incorporar os atributos do ‘intocável’ e do ‘temido’, é identificar-se com
seu poder e com sua força, e vivenciar o sentimento coletivo.
Para Enriquez (1990), o desejo dos filhos é de conjurar sua impotência escapando ao temor do
onipotente, identificando-se uns com os outros, exprimindo sua solidariedade e reconhecendo
o vínculo libidinal que os une no ódio comum contra o pai.
O ódio transforma os submissos em irmãos, e o assassinato transforma o chefe da Horda em
pai. Pai que em sua função idealizada tornar-se-á mais forte morto do que vivo, por causa do
sentimento de culpa que acometerá todos os filhos.
“(...) um sentimento de culpa surgiu, o qual, nesse caso,
coincidia com o remorso sentido por todo o grupo. O pai
morto tornou-se mais forte do que o fora vivo“. (Freud, 1913,
p.146)
Para Kaës (1997) é da impossibilidade de substituição do lugar de todo poderoso do pai, que
os filhos conseguirão interromper a repetição e renunciar à rivalidade imaginária sob o efeito
da culpa depressiva.
136
Portanto, é o sentimento de culpa e o remorso que possibilitará a conclusão da aliança entre os
irmãos, que deverão, a partir de agora, perpetuar o assassinato do pai, evitando que qualquer
um dos filhos venha tomar o seu lugar de poder.
Nesse movimento e nessa lembrança constante de que o lugar do pai não pode ser ‘tomado’
por nenhum dos filhos é que se configura o laço entre os irmãos, que segundo Kaës (1997),
junto com o ódio, serão reconhecidos também os sentimentos de amor que o pai inspirava.
Portanto, será o amor, o ódio, a culpa, a lei e a ilusão, que estarão presentes nos laços
emocionais e na constituição de qualquer grupo, sendo este representante, segundo Freud
(1921), de toda a sociedade humana, detentora da autoridade, cujos castigos o indivíduo teme,
e em cujo benefício se submeteu a tantas inibições.
“Conseguir transformar as pulsões ‘em um sentimento com
fins inibidos‘ e amar os seres humanos numa mesma medida,
é a condição da formação de laços de amizade que reforçam
os elos comunitários”. (Enriquez, 1990, p.104).
Há um fato que agora quero me ater. Freud (1921) concebeu o nascimento do grupo a partir
de um ato de amor fundado sobre uma ilusão. A ilusão da existência de um ser supremo, que
do ponto de vista do sujeito, ama a todos os indivíduos do grupo de maneira igual.
“O chefe favorece em cada um o refúgio na ilusão, ao invés
da tensão da busca da verdade, o desejo de se acreditar
amado, a manutenção de ídolos e o narcisismo”. (Enriquez,
1990, p.65)
Num grupo, é o discurso do amor que se pronuncia e que reforça em cada um a crença em seu
amor. O desejo de ser amado e reconhecido é o que prevalece. Isso ocorre, como já vimos
anteriormente, porque o desamparo está na base da constituição do sujeito. É o
reconhecimento de que somos desprotegidos e desamparados que desperta a necessidade de
proteção, que se fará muitas vezes através do amor.
Tornar o trajeto de vida seguro, evitar as surpresas do acaso e a busca pelo prazer foi o que
Freud, em Mal estar na civilização (1930), deixou claro quando colocou que o que o homem
busca é a defesa contra as sensações de desprazer, tornando a arte de viver a busca pela
independência do Destino.
137
Diante disso, a forma de funcionamento do indivíduo diante da percepção da vida é que vai
conduzir a busca pela satisfação, ou pelo menos a evitação do sofrimento.
A ‘deslocabilidade’ da libido, como Freud (1930) bem coloca, tem duas vias para obtenção da
satisfação, uma via em processos mentais internos e outra em objetos do mundo externo, onde
poderá obter “felicidade de um relacionamento emocional com eles”. (Freud, 1930, p.101)
E complementa:
“Estou falando da modalidade de vida que faz do amor o
centro de tudo, que busca toda satisfação em amar e ser
amado”. (Freud, 1930, p.101)
Em um artigo intitulado Pai Amoroso, Tavares (1996) coloca em discussão algo que aqui nos
interessa. Não por seu conteúdo, já que a discussão do artigo gira em torno do problema do
tráfico de órgãos, mas pelo desencadeamento de idéias que propõe ao analisar um episódio de
um programa de televisão, chamado ‘Você decide’. O objetivo do programa é tratar de um
assunto polêmico e fazer com que o público decida o final da história.
O questionamento do programa gira em torno da história de um médico, que tem uma filha
que sofre de insuficiência renal crônica, e que precisa urgentemente de um doador de rins
para que sobreviva. Todo o conflito se inicia quando é internado no mesmo hospital em que o
pai trabalha, um jovem que foi baleado pela polícia ao roubar um armazém.
O pai e médico vê a possibilidade de intervir e adulterar o informe médico e introduzir a
retirada do rim do paciente para salvar sua filha.
Essa é a pergunta destinada ao público: deveria o médico realizar o transplante do órgão,
mesmo infringido a conduta ética de sua profissão? O público que poderia optar por dois
finais, opta que sim, ele deveria efetuar o transplante e salvar sua filha, independente de
qualquer lei ou ética profissional.
O intuito da discussão que Tavares (1996) propõe, e que aqui nos interessa, é a questão
daquilo que se expressa na decisão do público: o desejo de sermos amados
incondicionalmente. Desejo de que o pai, que representa acima de tudo um pai que ama a
todos os seus filhos, por esse amor seja capaz de qualquer coisa, até mesmo o sacrifício.
138
Para a autora, o médico que se coloca como um pai amoroso, reveste-se em uma roupagem
materna, retomando a questão do imaginário. Imaginário esse expresso por uma maioria que
se identifica com a filha e que deseja que um pai a salve e que a ame incondicionalmente, ou
que se identifica com o pai e que mantém o discurso do pai amoroso, que coloca o amor
acima de tudo, até mesmo acima da lei.
Todos desejamos sermos salvos e todos sonhamos com um amor incondicional. Um pai que
nos ame e que nos faça sentir único, representando um imaginário presente em todos nós
sujeitos. Vemos isso representado todos os dias, seja nos dizeres da história, seja num futuro
de promessa que a religião, a ciência, etc, nos mostraram.
Para Anzieu (1993), todo grupo é uma colocação em comum das imagens interiores e das
angústias dos participantes, possuindo um si-mesmo próprio, representando um imaginário.
Para o autor, toda vida de grupo está presa numa trama simbólica, que se constitui pela
representação de um sistema de regras, e no próprio movimento da projeção que os indivíduos
fazem sobre ele de suas fantasias, de suas imagens, de sua tópica subjetiva.
A crença no amor é um dos sustentadores dos laços grupais. Na organização o sujeito crê
nesses laços, e essa crença vai permear todas as suas relações na empresa. Ao contrário do
que possa parecer, crer no amor não significa, portanto, eliminar a agressividade presente nos
laços, muito pelo contrário, essa crença também reconhece a ambivalência.
Na expressão dos sujeitos, a organização possui um corpo, e a relação sujeito-organização vai
se fundamentar nessa personificação que a empresa ganha. Sentir a perda significa também
perder aquilo que a empresa representa para o sujeito, há uma referência direta do sujeito com
a empresa. Podemos ver isso claramente nesses exemplos:
“(...) a empresa também eu senti de perder..., quer queira quer
não eu acordava todo dia no mesmo horário, era uma rotina... no
período de uma semana eu ficava pensando nos problemas da
empresa”. (N., 47 anos, analista contábil, 03 meses
desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
“(...) tinha uma coisa legal e outras não, como em todo
relacionamento, acho a Companhia excelente e voltaria a
139
trabalhar se me convidassem, pois a empresa e ótima”. (R., 47
anos, gerente comercial, 10 meses desempregado, casado, 02
filhos, 08 anos de empresa)
Para Pagès (1987), o deslocamento da projeção inconsciente do chefe para a organização
torna esta, e não mais o chefe, lugar privilegiado de identificação, alterando os mecanismos de
reprodução social, onde o poder não está mais fixo em uma rede de relações hierárquicas
interpessoais, mas no conjunto da organização, que submete os indivíduos a uma lógica
abstrata de lucro e expansão.
É claro que isso é instigado principalmente pela forma de funcionamento das organizações
hoje, que não possuem mais ‘um dono’, que torna-se muito evidente na fala dos sujeitos
quando falam sobre sua relação com a organização.
Mas isso também não exclui que existam pessoas dentro da organização que no papel de líder
possam ser lugar de projeção de chefe, e ao contrário do que Pagès (1987) averiguou, não
estamos libertos dos chefes mesquinhos, os vínculos de poder estão tão ou mais presentes
nessas relações.
Mesmo reconhecendo que a empresa possui um corpo que é depositário de identificações, não
há funcionamento, regra, reconhecimento, premiação que se suceda sem a interferência das
pessoas representando esse discurso. Assim, os trabalhadores na organização são
representantes e multiplicadores do discurso da organização, todos estão realmente presos
nessa trama.
A representação da empresa, depositária do imaginário construído por todos os seus membros
existentes hoje e no passado, se mantém principalmente pela manutenção do discurso de seus
membros.
Dessa relação que o sujeito estabelece com a organização espera-se o reconhecimento e o
amor. E é dela também que o sujeito, em parte, vai ressentir a perda, a rejeição e o abandono:
“(...) você se dedica a oito anos de relacionamento, eu me
dediquei, pensava naquilo dez, 15 horas por dia. Tive poucas
férias, então você tem um relacionamento muito próximo e isso
causa um relacionamento afetivo. E esse relacionamento você
140
tem algumas bases, diretrizes... você sabe que não é uma coisa
eterna, que um dia vai acabar, e você vai pra outro lado, também
tem que ser bom enquanto durar e depois que o casamento acaba
é tratar de fazer a coisa de forma mais elegante possível e acabar
se separando”. (R., 47 anos, gerente comercial, 10 meses
desempregado, casado, 02 filhos, 08 anos de empresa)
A leitura que o sujeito faz é que o meio de ser reconhecido é o meio de ser amado. E a forma
de reconhecer o sujeito se mostra através de um nome, um cargo, uma premiação e até mesmo
um benefício que o sujeito lê como um sinal de valorização e de ‘ser desejado’.
Na verdade, a história se inicia desde o momento em que o sujeito é selecionado e aceito para
trabalhar naquela empresa.
“Esta empresa me chamou pra trabalhar com eles... eles tinham
necessidade do meu trabalho”. (Ge., 42 anos, supervisor de
produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos, 04 anos de
empresa)
A empresa premia, e cada vez mais encontra formas de reconhecer o seu trabalhador pelo que
este trouxe de beneficio para a empresa. Se observarmos a fala do sujeito sob esse aspecto,
podemos notar que ele enaltece-se por acreditar ser desejado. Não compreende como antes
pôde ser querido e valorizado, e mesmo assim demitido. Quando se diz que “isso não pode
acontecer comigo”, na verdade isso representa a queda das formações ilusórias mantidas pelas
empresas.
“Eu não esperava sair da empresa... eu não acreditei porque eu
tinha uma carreira muito brilhante dentro da empresa, ganhei
vários prêmios internacionais e dentro da companhia tinha um
trabalho muito importante que eu estava realizando, tinha um
salário muito alto era uma pessoa que tinha muito destaque,
talvez por isso tinham que fazer a reestruturação e eu não
esperava”. (R., 47 anos, gerente comercial, 10 meses
desempregado, casado, 02 filhos, 08 anos de empresa)
141
Todo o fundamento de reconhecer o trabalhador está fundado no olhar de um outro que o
reconhece, que o valoriza e que o deseja, mesmo que isso fique personificado “em nome da
empresa”.
“Dependente das relações intersubjetivas do coletivo de
trabalho, o reconhecimento pressupõe um processo de
julgamento, realizado pelos pares e pela hierarquia.”
(Morrone, 2001, p. 13)
É o olhar do outro que julga pelas referências e modelos internos de cada empresa. O
reconhecimento, assim, vai fundamentar a construção da identidade do trabalhador que deverá
responder ao desejo de seu corpo organizacional.
Manter a ilusão grupal, porque esta responde a um desejo de segurança, de preservação da
unidade egóica ameaçada, substitui a identidade do indivíduo por uma identidade de grupo.
(Anzieu, 1993, p. 82)
Assim, se por um lado a organização satisfaz algumas necessidades do sujeito, lhe
emprestando um nome e um lugar de reconhecimento, por outro lhe cobrará por isso.
O amor torna o indivíduo dependente de ser amado, o fragiliza. Pelo amor, ele se anula, e
permite a sua dominação.
“eu acho que quando você esta numa empresa, você está proposto
a fazer o que ela esta precisando de você, então se você esta lá tem
que fazer”. (N., 47 anos, analista contábil, 03 meses
desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
Para Pagès (1987), o amor é um vínculo opressor, e para o autor a dominação se faz pela
retirada de amor, bem mais do que a coerção e a interdição.
Não podemos ser ingênuos e esquecer que os sujeitos na organização acreditam ser
respeitados e reconhecidos, mas na verdade participam de um jogo, pois a finalidade de toda
empresa é a geração de lucro, essa é a finalidade capitalista, e isso nunca podemos perder de
vista.
142
“(...) fiz eles ganharem muito dinheiro, fui parte importante da
companhia, eles ganharam muito e eu também, foi uma troca
muito boa. Do desafio de ter dez coisas para fazer ao mesmo
tempo, eu gosto disso, eu gosto do trabalho, sinto falta de acordar
cedo e ter cinco lugares pra ir e dez para pensar, isso realmente
me faz falta, essa atividade, a dinâmica, isso é o que eu sinto
falta”. (R., 47 anos, gerente comercial, 10 meses desempregado,
casado, 02 filhos, 08 anos de empresa)
No capitulo III, falamos sobre a dominação existente nas organizações, e como o medo de
perder o emprego pode torná-lo muito mais vulnerável à submissão.
Às vezes, as formas de dominação aparecem de maneira sutil, outras vezes nem tanto. Na
verdade a conclusão que cheguei é que os trabalhadores sabem que muitas vezes são usados,
mas não entendem isso de maneira negativa, compreendem e acreditam que é para o bem da
empresa, é o sacrifício necessário para que o grupo se mantenha. Nos relatos podemos
identificar isso facilmente, já que está permeando a fala de quase todos os sujeitos:
“(...) tenho ainda muita coisa para as empresas aproveitarem de
mim, são valores que agente agrega. Eu me sinto realizada
estando trabalhando”. (N., 47 anos, analista contábil, 03 meses
desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
“Se eu entrasse em outra empresa, eu daria mais de mim pra ela
aproveitar aquilo que eu sei, porque as experiências que tive em
outras empresas são de grande valor. Então vou dar mais de mim,
mostrar mais o que sei, e acho que vai ser completamente
diferente”. (N., 47 anos, analista contábil, 03 meses
desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
“(...) eu também não queria tirar férias pelo desafio que tinha
cada ano, por conta das mudanças, tinha minha parte do meu
envolvimento e eles optaram, mas eu também optei, foi
confortável pra mim, se me dessem um desafio que me envolvesse
provavelmente quando chegasse o período de férias eu diria: não
143
deixa pra depois pro ano que vem”. (R., 47 anos, gerente
comercial, 10 meses desempregado, casado, 02 filhos, 08 anos de
empresa)
Não é incomum ouvir dos demitidos a sensação de sentir-se como ‘descartáveis’, ‘usados’ e
até mesmo como se fossem ‘lixo’. Tittoni (1999), também em sua pesquisa, concluiu que a
perda do vínculo com a empresa propiciou a sensação de ser descartável após a demissão.
Nada mais triste do que dar-se conta de que deixou essa relação tomar proporções
indesejadas. Nada mais triste do que sentir-se algo descartável:
“Sinto-me um lixo, algo descartável”. (A., 47 anos, gerente de
tecnologia, 04 anos desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de
empresa)
“(...) você pega (a empresa) aquela peça e joga fora”. (A., 47
anos, gerente de tecnologia, 04 anos desempregado, casado, 02
filhos, 1 ano de empresa)
São sentimentos expressos na demissão e que refletem a realidade da relação sujeito-
organização, uma relação de uso e sacrifício. Ao contrário do que parece, não é o sentimento
de não sentir-se mais útil ou produtivo, mas a perplexidade que define esse sentimento, é que
nele há o sentimento expresso de uso.
Sentir-se ‘lixo’, é sentir-se sugado até suas últimas energias, é sentir-se usado e jogado fora,
por não ser mais útil aos propósitos da empresa, lê-se: - você não presta mais para aquilo que
temos como objetivo, não há mais nada o que sugar de você!
6.2.1. a perda dos vínculos fraternais e a rejeição do grupo
“As empresas aparecem como o reino das possibilidades para
a realização da fantasia da conquista, do reconhecimento, do
poder. Mas elas também são o espelho que denuncia o
fracasso, a vulnerabilidade, a frustração e a rejeição.
Conviver com a fantasia de grandeza é também conviver com
o medo do abandono”. (Freitas, 2000, p.43)
144
O que mais me chama a atenção analisando os profissionais demitidos é que mesmo
reclamando do ambiente de trabalho competitivo e estressante, diante da perda, é dos vínculos
afetivos que sentirão falta.
Aliás, a questão do desemprego traz muito fortemente a questão dos vínculos. Os sujeitos,
quando perguntados do que mais sentem faltam, não hesitam em colocar que sentem falta das
pessoas e dos vínculos no ambiente de trabalho, como podemos ver nos trechos abaixo:
“A falta que eu sinto é a de me relacionar com várias pessoas tão
constantemente... esse contato com as pessoas faz muita falta”.
(JR., 35 anos, supervisor de sistemas, 02 anos desempregado,
casado, sem filhos, 10 anos de empresa)
“Sinto falta das pessoas...”. (N., 47 anos, analista contábil, 03
meses desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
“(...) lá você tinha uma relação boa com as pessoas durante muito
tempo. Eu não trabalhava só por dinheiro, teve um momento que
eu não estive só por estar ganhando bem, aquilo me satisfazia.
Você tinha uma relação boa com as pessoas, o ambiente era bom,
você estava em constante fase de aprendizado”. (A., 47 anos,
gerente de tecnologia, 04 anos desempregado, casado, 02 filhos, 1
ano de empresa)
“(...) largar os companheiros é complicado...”. (Ge., 42 anos,
supervisor de produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos,
04 anos de empresa)
Em quase todas as pesquisas sobre o desemprego aponta-se a questão dos vínculos sociais.
Primeiro pelo relato dos sujeitos que sentem a perda dos colegas de trabalho, depois, pela
dificuldade de estabelecer novos vínculos, por estar o desempregado numa categoria de
margem à sociedade.
Para Henwood e Milles (apud Estramiana, 1992), o emprego possibilita, e até mesmo impõe,
o estabelecimento de vínculos sociais, sendo o ambiente de trabalho um local propício para
uma variedade de trocas e relação sociais. Para os autores, os desempregados relataram que a
145
maioria dos colegas de trabalho eram praticamente as únicas pessoas com as quais tinham
contatos fora do círculo familiar, sendo com isso muitas amizades perdidas com a perda do
emprego, contribuindo para o isolamento desempregado.
Neste trecho podemos verificar como N. justificou a falta que sentia das pessoas:
“(...) como eu sou sozinha senti ainda mais falta das pessoas”.
(N., 47 anos, analista contábil, 03 meses desempregada,
divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
Para Jahoda (apud Estramiana 1992), uma das implicações do desemprego é a perda dos
contatos regulares, compartilhados com pessoas fora da família nuclear. Do mesmo modo,
Warr (apud Estramiana 1992) cita dentre as nove funções que cumprem o emprego, e por
conseqüência as características negativas do desemprego, as restrições das relações pessoais.
Para o autor, há a mudança do papel de empregado para o papel de desempregado.
O indivíduo em uma empresa sente-se parte de um grupo, e é essa visão que vai se desenrolar
tanto no comportamento de seus ex-colegas de trabalhado, quanto na percepção do próprio
sujeito demitido.
Sem dúvida, a mudança na forma nos contatos sociais é uma das mudanças que o desemprego
provoca.
Para Anzieu (1993), faz parte de todo fenômeno grupal, sustentar a qualquer custo a imagem
ideal, porque é um risco para os sujeitos que esse se desmanche. Para o autor, os grupos se
sentem narcisicamente ameaçados, quando há o risco de se colocar em evidência, entre eles,
os pontos fracos que preferem dissimular para si mesmo.
O pensar na demissão revela que muitas vezes os profissionais estavam tão envolvidos na
ilusão grupal, que não perceberam os sinais de exclusão do grupo. O trajeto do trabalhador
marcado pela demissão, e as conseqüências das perdas ocorrem muito antes da ruptura do
emprego propriamente dita. Alguns sujeitos relataram que quando pararam para refletir sobre
o processo, verificaram que haviam alguns sinais de exclusões claras antes da notícia da
demissão ser dada.
146
“(...) eu estava sendo excluído de uma atividade a qual eu dou
muito valor. Eu me sentia assim... a primeira sensação foi de
desconforto muito grande, de estar sendo privado de fazer o que
gosto”. (JR., 35 anos, supervisor de sistemas, 02 anos
desempregado, casado, sem filhos, 10 anos de empresa)
“(...) aquela questão do colocar de lado, sabe....da exclusão ....
vamos preparando, já deixando fora, para que na hora de
tirarmos essa pessoa, ela já não esteja envolvida nos processos da
companhia. Isso foi nítido”. (JR., 35 anos, supervisor de sistemas,
02 anos desempregado, casado, sem filhos, 10 anos de empresa)
Um grupo fará de tudo para permanecer um grupo. Pelo medo da ameaça de dissolução, os
indivíduos na organização e nos grupos na organização, colaboram e reproduzem o discurso
da organização.
Isso nos coloca frente a um outro problema. A forma hostil como membros do grupo vão
reagir àqueles que são rejeitados pela empresa: os demitidos.
Nitidamente, os que permanecem na empresa vêem-se ameaçados e numa luta constante entre
o medo de se tornarem os próximos a serem demitidos e a manutenção dos ideais.
O demitido lembra ao grupo a possibilidade de dissolução daquilo que sustentam. O demitido
passa e ser questionado e a se questionar sobre sua importância, podendo muitas vezes
desencadear sentimentos de inferioridade.
Há inúmeros relatos que ilustram bem a forma como os colegas de trabalho vão reagir ao
colega demitido. Esse de JR., em particular, traz consigo a dor da rejeição que sofrera, como
se o desemprego fosse uma doença contagiosa:
“(...) tem a questão dos colegas ou dos ex-colegas de trabalho, que
a partir do momento que você não está mais na organização, você
também é visto como uma pessoa.... se alguém for visto com você,
isso depõe contra a pessoa, alguma coisa mais ou menos assim.
Isso também pesa bastante, porque o relacionamento no trabalho
era de relacionamento intenso com as pessoas... essas pessoas não
147
queriam se ‘contaminar’ estando perto ou sendo vistas ao telefone
falando com você ou coisas do tipo. Isso é uma forma de
exclusão, que também foi muito pesada”. (JR., 35 anos,
supervisor de sistemas, 02 anos desempregado, casado, sem filhos,
10 anos de empresa)
É como se dissessem ao colega que acabou de ser mandado embora: fique longe, você nos faz
lembrar a desgraça e a possibilidade que ocorra com qualquer um de nós do grupo. É bom
tomar cuidado porque isso pega, é contagioso.
Há sofrimento quando o sujeito se dá conta de que não faz mais parte da organização e do
grupo. Podemos ver isso claramente no relato de N., a fala expressa: - eles precisam de mim
como eu preciso deles.:
“(...) dava vontade de ligar (para os colegas na empresa) e dizer: -
faz assim; então assim eu sofri um pouquinho”. (N., 47 anos,
analista contábil, 03 meses desempregada, divorciada, 02 filhos,
17 anos de empresa)
Para Enriquez (1990), tanto o social, quanto o individual não suportam viver sem crença e
sem ilusão, e eles manifestam em todos os assuntos ligados ao vínculo social.
Os membros da organização reconhecem e valorizam os que são iguais. Criam-se indivíduos
trabalhados sob o mesmo molde, direcionando toda a hostilidade para os que não pertencem
ao mesmo modelo do grupo. Foi o que Freud (1921) chamou de “narcisismo das pequenas
diferenças”, que reforça a coesão e coloca os sujeitos em posição de guerra contra os que não
pertencem mais àquele grupo.
O demitido deixa de fazer parte do grupo e passa e ser hostilizado e rejeitado pelos ex-
companheiros, reforçando a culpa, como veremos no próximo capítulo e o sentimento de
rejeição, como poderemos ver nos relatos:
“(...) eu tinha uma colega que o marido trabalhava na X e quando
foi mandado embora as pessoas se afastavam dele como se ele
estivesse em desgraça... E sinto que seja assim, pessoas inseguras,
o chefe mandou ela embora então eu não vou chegar perto, não
148
vou me influenciar, esse é um ponto. Eu penso que as pessoas não
querem ser vista com o time daquele cara que foi mandado
embora e talvez ele tenha algum problema ou aconteceu alguma
coisa e se você estiver conversando com o cara e o chefe vê fica
aquela coisa estranha”. (A., 47 anos, gerente de tecnologia, 04
anos desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de empresa)
“algumas pessoas te evitam por insegurança de que você vai pedir
alguma coisa, ela quer ficar longe de você porque ela não quer se
comprometer, ela quer se afastar daquilo”. (A., 47 anos, gerente
de tecnologia, 04 anos desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de
empresa)
“O mais frustrante foi que mesmo tendo vários amigos de longa
data em posições chave, não houve nenhuma ligação em “off”
para me alertar”. (A., 47 anos, gerente de tecnologia, 04 anos
desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de empresa)
Os vínculos muitas vezes se frustram e terminam aqui. Para os que saem fica a idéia de que
não pertencem mais àquele grupo, e que devem ser rapidamente apartados.
A rejeição e a hostilidade perante os ex-colegas de trabalho só nos mostram que as demissões
alteram as formas de funcionamento dos grupos, tornado-os desestruturados, podendo trazer
aquilo que Freud (1921) chamou de ‘o fenômeno do pânico’.
O fenômeno de pânico, segundo Freud (1921), surge se um grupo se desintegra, e faz com
que cada indivíduo busque preocupar-se apenas consigo próprio, sem qualquer consideração
pelos outros, deixando de existir os laços mútuos, liberando um medo gigantesco e insensato.
“o medo tornou-se grande a ponto de poder desprezar todos
os laços e todos os sentimentos de consideração pelos
outros”. (Freud, 1921, p. 122)
Os que permanecem na empresa vêem seu dia a dia alterado e agora com mais medo de que
sejam os próximos. É um ciclo, que quem participa da vida na organização precisa se adaptar,
149
e que pode trazer a questão do individualismo e da competitividade em pauta novamente, já
que discutimos sobre o tema no cap. III.
O grupo quer sempre permanecer um grupo por uma questão de ordem e por respeito a um
pacto que introduziu as leis necessárias para que a humanidade se mantivesse, mas não por
uma questão de desejo. O pacto entre os irmãos só existe porque sempre há o desejo de tomar
o lugar do pai.
Na organização, por trás dos discursos de cooperação e amor que se multiplicam em formas
variadas, fazendo os trabalhadores acreditarem nisso, há o aumento do individualismo e da
competitividade, porque na desestrutura do grupo causada pelas reestruturações e demissões,
os que sobrevivem terão a crença de que poderão almejar um lugar, uma posição de destaque
maior.
Todos querem o lugar que pertence a outro, todos querem disputar o lugar de reconhecimento.
Para Freitas (2000) nas organizações as pessoas disputam umas com as outras, lugares,
posições privilegiadas de poder e influência.
É um jogo, que envolve discursos e ações contraditórias, pois ao mesmo tempo em que se
reforçam os laços entre seus membros, insinua a competição. Ao mesmo tempo em que diz
que se preocupa com seus funcionários, ganhando prêmios de responsabilidade social, é hostil
e muitas vezes humilha o desempregado.
6.3. Perda de um lugar de reconhecimento social, de onipotência e poder.
“o profissional demitido involuntariamente vê colocado em
cheque o seu reconhecimento pelos outros, ou seja, pelos que
permanecem na empresa, pelos familiares e pela sociedade
em geral, isso pode fazer surgir sentimentos de impotência
frente a realidade”. (Freitas, 1996, p.7)
Perder o emprego não faz o sujeito só deixar de ser reconhecido em seu grupo. Como
falamos, quem dita as regras são as empresas, por isso os sentimentos ampliam-se para como
a sociedade vai perceber o desempregado, e como esse desempregado também vai
compreender sua situação.
150
Para iniciarmos a discussão deste tópico vamos relembrar a discussão que iniciei no capítulo
I, sobre a exaltação do trabalho em nossa sociedade. Após retroceder historicamente,
analisando o momento histórico e o valor do trabalho para os indivíduos, em diversas fases da
história, concluí que houve uma mudança significativa na forma dos indivíduos perceberem o
trabalho, que deixou de ter uma conotação negativa e passou a ser glorificado por toda
sociedade.
Para aprofundar essa questão e discutir o que proponho neste tópico, que é a perda do
reconhecimento social, como conseqüência da perda do emprego, iniciarei com uma cena
trazida por Bleichmar (1984) interessante para nossa discussão:
“pensemos neste jogo do anelzinho, em que vários personagens no círculo fazem circular um
anelzinho. O valor que toma uma das pessoas no jogo depende do lugar onde o anelzinho
esteja escondido. Este é o que determina qual pessoa adquire um valor especial. As pessoas
em si, pelo que são, não se diferenciam uma das outras em relação ao jogo. Só pelo fato de
que cai em poder de uma delas, o anelzinho adquire um status particular”. (Bleichmar, 1984,
p.19)
Diante da situação, o autor traz alguns elementos importantes:
1. utilizando a metáfora de Lacan: “o que circula é o que vai determinar a posição do
personagem”, vai marcando uma determinada posição, na qual a pessoa que nela se
encontra tomará as funções, as propriedades da mesma;
2. o ‘anelzinho’ marca uma posição: aquela na qual o anel se encontra, e por contraste
demais integrantes da roda ficam marcados como não o tendo;
3. o que possui o anel passa a desempenhar determinado papel; os que não têm,
desempenharão outro papel;
4. o personagem que está buscando o anel ficará marcado como equivocado ou acertado,
tornado-se merecedor do prêmio ou do castigo, se disser que tem o anel aquele que de fato
o tem;
5. em uma condição psíquica tal, um dos membros do círculo, quando o anel chega a seu
lugar, em vez de crer que o anel lhe outorga uma posição e um valor, crê que ele mesmo é
o anel, que o valor que tem é devido a ele próprio e não ao anel. O anel como elemento
independente dele desapareceu da representação que ele se faz.
151
6. se este personagem que imaginou ser o anel tem sentado a seu lado um outro personagem
que deseja intensamente ter o anel, que sempre sentiu que este anel o faria imensamente
feliz, que era algo que lhe faltava e que, no dia em que tivesse um anel, estaria realizado,
tentará substituir o anel.
7. do ponto de vista de um observador que teorizasse sobre a estrutura deste círculo de
pessoas, descreveria que há um conjunto de pessoas e algo – o anel- em circulação que
determina posições.
8. esse ‘algo’ que circula e o que determina a posição dos personagens é o falo.
O falo, na medida em que se encontra articulado à cultura (falo simbólico), comporta sempre
algo de relativo (não absoluto). Neste sentido, pode-se concebê-lo como algo que se pode ter
(possuir) ou não ter: e não como algo que se é ou não é. Ou seja, a articulação do falo à
cultura , como falo simbólico (em lugar de falo imaginário), remete o individuo à passagem
da ‘dialético do ser’ para a ‘dialética do ter’.
Mas, aprofundaremos essas colocações.
Freud, em 1923b, em A organização genital infantil, introduziu pela primeira vez o conceito
simbólico do falo, propondo uma relação do órgão – o pênis, com o símbolo ou insígnia da
representação com aquilo que chamou de ‘primazia do falo’. Descobriu com isso, “o valor
fundamental do Complexo de Castração, bem como sua união estruturante com o Complexo
de Édipo”. (Rocha, 2000, p. 130).
Sem dúvida, essa descoberta foi importante para que pudesse compreender a importância do
complexo de castração, e sua relação com a estruturação da subjetividade, mesmo que Freud
nunca tenha se libertado da condição biológica do conceito, abriu as portas para que outros
fizessem.
Lacan mostrou ser possível entender o discurso freudiano, livrando-o das aderências
biológicas, compreendendo as “fases” ou “etapas” como “estruturas” mais complexas,
atemporais, organizadas a partir da relação com o Outro na dialética da demanda de amor e da
experiência do desejo.
Priorizando a dimensão simbólica e imaginária, Lacan introduziu com o conceito de
significante, a função imaginária do falo e sua importância na estruturação do sujeito.
152
“O significante é um aspecto material, que nele, e por meio
dele, algo fica inscrito, alguma coisa que é de outra ordem,
que há uma transposição.... o significante aparece como
presente por contraste com uma possível ausência. Neste
sentido, pode ser anulado ou substituído por outro
significante ...”. (Bleichmar, 1984, p.22)
O elemento articulador do complexo de castração é o falo em sua função imaginária. O falo,
com a castração simbólica, deixa de estar identificado com o Ego ideal e identificar-se-á com
o Ideal do Ego, produzindo uma constelação de insígnias.
Segundo Bleichmar (1984), insígnias são um distintivo que alguém leva para assinalar que
está ocupando um lugar, desempenhando uma função, tendo um papel, que fica indicado
através das mesmas. Ou seja, a insígnia é um testemunho, um símbolo de que alguém ocupa
um lugar determinado, é um elemento material significante que situa quem a possui.
Passemos agora para o nosso problema em questão.
Em nossa sociedade capitalista o trabalho, alicerce de toda organização capitalista, reconhece
mas também cobra dos indivíduos a produção para manutenção da máquina econômica.
Como protagonista desse cenário temos as organizações que disseminam, por um lado, o
discurso do ideal do consumo, por outro lado, o discurso de excelência e perfeição de seus
trabalhadores, emprestando-lhes imagens de perfeição, esvaziando-os de suas identidades, que
através do seu próprio mecanismo de interesse produzem tipos ideais.
O problema da perda do emprego, que tem em seu contraste o problema da super valorização
do trabalho, coloca os sujeitos frente à perda de uma das mais importantes possibilidades de
reconhecimento social, de se apropriar das insígnias ou desses símbolos fálicos produzidos
culturalmente. Primeiro porque o trabalhador empregado possui poder de consumo, o que já o
coloca numa posição de destaque, segundo porque no mundo do trabalho o trabalhador tem
acesso a uma rede simbólica, que lhe propicia satisfações e o faz ser reconhecido e valorizado
pela posição que ocupa.
No capitulo I, ressaltei que o reconhecimento social do trabalho tornou a relação do sujeito
com o trabalho algo reconhecido e valorizado, e a subjetivação do sujeito no espaço de
153
trabalho intensificou este processo de envolvimento, agora não mais só com o trabalho, mas
com tudo o que o trabalho representa e possibilita em termos imaginários.
Pela busca da completude, nos agarramos às imagens oferecidas por uma sociedade que vai
valorizar um tipo e um perfil ideal para a concretização dos fins do capitalismo. Ganha-se
uma possibilidade de ‘ser’, de ganhar uma inscrição, um nome de reconhecimento que poderá
possibilitar a apropriação de insígnias fálicas.
Crescemos ouvindo que ‘o trabalho enobrece o homem’, que ‘Deus ajuda quem cedo
madruga’, que ‘só não trabalha quem não quer’, ajudando na valorização e na cobrança
social, que só reconhecerá quem trabalha e um tipo específico de trabalhador, já que não é
qualquer trabalho que é valorizado e reconhecido socialmente.
Tornando-se o grande fetiche de toda sociedade moderna, a mercadoria trabalho, fonte de toda
a propriedade, tornou-se fonte de riqueza e de utilidade social.
Para Freud (1927b), o fetiche é um substituto do pênis da mãe em que o menininho outrora
acreditou, e que — por razões que nos são familiares — não desejou abandonar. O menino se
recusando a tomar conhecimento do fato de ter percebido que a mulher não tem pênis,
podendo ele mesmo estar na posse de um pênis, será ameaçado da castração, ergueu-se em
revolta a parte de seu narcisismo que a Natureza, como precaução, vinculou a esse órgão
específico. Assim, outra coisa toma o lugar do pênis, indicado como seu substituto herda
agora o interesse anteriormente dirigido a seu predecessor (Freud, 1927b, p.172).
O importante é que o fetiche se mantém como um substituto, adquirindo valor fálico. O que
era uma ausência, o falo, fica transformado em uma presença com o fetiche.
Para Enriquez (1990), foi a racionalidade presente no capitalismo que institui um “fetichismo”
generalizado, ou uma multiplicação dos fetiches, que envolve toda a vida dos indivíduos,
sendo todas as pessoas forçadas a viver numa solidão cada vez maior, cada qual sendo
dominada pelos múltiplos fetiches que a dominam.
“... o fetichismo capitalista do ‘gesto eficaz’, ou do indivíduo
definido por testes, determina a vida real do mundo social”.
(Castoriadis, 1982, p.190)
154
O mundo do trabalho oferece múltiplos elementos fálicos. Somos nomeados, ganhamos um
lugar de representação de sucesso e um lugar de reconhecimento social. A partir disso, somos
reconhecidos por um grupo, que bem vimos no tópico anterior, estabelecendo os vínculos e
identificando-se a partir do reconhecimento do ‘ser empregado’.
Fica claro que a organização é produtora de um ideal, que se por um lado produz imagens
idealizadas, produz também sujeitos tentando se adequar ao que é idealizado, buscando a
perfeição e a onipotência prometida.
“...essa tentativa se dá através da produção de um imaginário
especifico, no qual a empresa aparece para os indivíduos
como grande, nobre, perfeita, buscando captar os anseios
narcísicos de seus membros e prometendo-lhes ser a fonte de
reconhecimento, de amor, de identidade que pode preenchê-
los e curá-los de suas imperfeições e fragilidades”. (Freitas,
2000, p.54)
Em cima disso construímos nossa identidade, que segundo Dejours (apud Morrone 2001)
processa-se em dois campos: um erótico e outro social. A construção da identidade no campo
erótico realiza-se pelas relações amorosas, e no campo social pela relação que o indivíduo
estabelece com o trabalho, pelo reconhecimento que seu fazer recebe no coletivo do trabalho.
Freitas (2000) parte do princípio e coloca que as grandes empresas são fornecedoras de
identidade tanto social quanto individual, contaminando o espaço privado.
Para Pagès (1987), a imagem social de onipotência e um modelo de personalidade baseado na
dominação dos outros e de si próprio, constituem os elementos da organização e interferem na
formação da personalidade individual.
Não é incomum vermos os tipos ideais estampados em anúncios de revista, principalmente
aquelas que são direcionadas para o público que trabalha na organização. Outro dia, folhando
uma dessas revistas direcionada a executivos, que ‘ensina’ os trabalhadores como se tornarem
cada vez melhores, encontrei um encarte duplo de propaganda de uma outra revista do mesmo
grupo. Na primeira página do encarte encontrei a foto de um executivo jovem e bonito, e nos
dizeres de dentro: “gosto de trabalhar em equipe, resolvo tudo pelo celular, estou montando
o meu apartamento, eu sei onde quero chegar”. E mais abaixo: “Você cresceu
155
profissionalmente. Tem um papel cada vez mais importante na empresa, na família e na
sociedade. Encarar esse desafio é um constante aprendizado, X (nome da revista) orienta seu
desenvolvimento, em tudo o que tem a ver com sua vida profissional, Você já sabe que tem
que se aprimorar sempre. Leia X, ‘Você valendo mais’....”
O anúncio é só um exemplo de como as empresas e a mídia têm um papel importante ao
determinarem um perfil ideal, que se expressa na imagem de um executivo de sucesso.
Reduzindo o que é ideal a essa imagem, faz-se com que os sujeitos acreditem que só terão
sucesso àqueles que forem: jovens, bonitos, bem sucedidos e com poder de compra, etc...
Esse tipo de anúncio expressa a perfeição almejada de quem trabalha e que busca o
reconhecimento social e da família. Por outro lado, aumenta a culpa do que não têm esses
atributos e principalmente daquele que está desempregado.
Para Enriquez (2000), as organizações expressões da perfeição, fazem os sujeitos, que terão
como o elemento central de sua busca, o ‘sucesso’, alimentarem sonhos de onipotência e
perfeição. Segundo Freitas (2000), existe na relação indivíduo/organização uma promessa de
realização de uma fantasia de perfeição, uma superfície que projeta uma imagem grandiosa,
do sonho que é possível e da promessa de gratificações.
Símbolos atestam o sucesso. A carreira e o status profissional tornam-se elementos
organizadores da vida dos sujeitos na organização, sendo o que lhe dá sentido, referência
única que permite ao indivíduo a expressão de sucesso e realização pessoal.
Para Freitas (2000), o sucesso que é determinado pela estrutura, pelas organizações, tem a
capacidade de influenciar o inconsciente de seus membros, fazendo deles aliados na busca de
poder e de perfeição.
Paraíso perseguido, mas que não existe, é como a fábula do pote de ouro no final do arco-íris.
É como a missão de todo herói, que deve ultrapassar todos os obstáculos, sacrificar-se por um
bem maior.
“O herói diz em voz alta o que toda pessoa, tomada pelo
narcisismo diz em voz baixa: o desejo de ser Deus”.
(Enriquez, 1990, p.113)
156
Ser um vencedor é o que alimenta o desejo de perfeição. O sucesso é um ideal. E ter sucesso é
determinado pela estrutura, que cobrará dos sujeitos a conquista desse lugar.
Nessa dinâmica está logicamente explícita a questão da dominação. Trabalhadores
impulsionados pela grande conquista estão cada vez mais pressionados a atingir o ‘pote de
ouro’. Percorrem caminhos árduos pela promessa de ‘chegar a um lugar’. Oferecem ao outro
seu corpo, seu tempo, sua mente, porque vivenciar a experiência da angústia e do desamparo é
muito mais aflitivo. Preferem, segundo Birman (2001), agarrar-se à fabula fálica do outro, do
que suportar o real da angústia.
“...a busca da referência fálica pelo sujeito, na posição da
feminilidade, implicaria o tamponamento desta e do
desamparo em que aquela se desdobra, conduzindo então a
subjetividade para a centralidade atribuída ao phallus e ao
narcisismo na constituição do eu”. (Birman, 2001, p.45)
Assim, se o emprego é fonte de reconhecimento e, portanto, fundamental na construção da
identidade do sujeito, perdê-lo tornar-se um grande sofrimento. Ninguém deseja estar nesta
posição: segundo Macedo (1992), a sociedade vê o desempregado como desviante do modelo
vigente. Refletindo o sentimento social em relação ao desempregado E. relata:
“Até pra me sentir melhor eu não me vejo como desempregado,
me vejo como um homem que profissionalmente está buscando
uma posição no mercado, do meu interesse, e enquanto isso, não
fico parado, estou me mexendo... não gosto de ver o desemprego
como uma coisa errada. Errado é estar preso por algum malfeito
à sociedade, e não por estar desempregado, todo mundo esta
sujeito a isso”. (E., 36 anos, controller, 04 meses desempregado,
casado, sem filhos, 11 meses de empresa)
Podemos ver claramente nas palavras do sujeito que há um julgamento, e ele também não
ficou isento disso, de que o desempregado é um vadio um vagabundo. Apesar de termos hoje
mais condições de compreender o desempregado, há ainda um valor moral negativo atrelado à
sua figura, resultado também de resquícios históricos, veja mais exemplos:
157
“A gente fala que aqui não tem preconceito, mas é o que mais
tem. E um dos preconceitos muito velados é com o desempregado.
Já está muito associado àquela figura da pessoa vagabunda,
daquela pessoa inútil, daquela pessoa corpo mole, ficou esse
esteriótipo”. (JR., 35 anos, supervisor de sistemas, 02 anos
desempregado, casado, sem filhos, 10 anos de empresa)
“(...) continua aquele estigma de falar que se a pessoa esta
desempregada é porque ela não é boa, teve algum problema,
alguma coisa do tipo... isso ainda acontece muito... penso que é
uma questão cultural”. (A., 47 anos, gerente de tecnologia, 04
anos desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de empresa)
“(...) o desempregado é um ‘marginal’, ele está à margem da
sociedade. Para qualquer que seja a coisa, ele esta à margem,
embora, por exemplo, na vida de muitas pessoas, no momento
imediato após o desligamento, talvez seja o momento em que ela
mais teve dinheiro na vida, a sociedade trata muito pelo contrário,
como se ela não tivesse. Isso é uma coisa muito presente, muito
marcante, querendo ou não”. (JR., 35 anos, supervisor de
sistemas, 02 anos desempregado, casado, sem filhos, 10 anos de
empresa)
A mensagem velada é: vagabundos e vadios não contribuem para o enriquecimento da
sociedade, são marginais e devem ser excluídos.
Para Tosta (2000), pelo fato do emprego ligar o indivíduo a metas e objetivos que o
transcendem, de forma que ele sente estar dando uma contribuição positiva para a sociedade,
ao perder o emprego perde-se essa sensação participativa de contribuição para a sociedade.
É esse sentimento que vai fazer surgir nos demitidos uma sensação muito comum de
inutilidade. O desempregado sente-se um inútil, sente que não está mais contribuindo para a
coletividade, nos relatos podemos ver isso expresso:
158
“Muitas vezes me senti ‘inútil’ como diz a música ‘a gente somos
inútil’”. (A., 47 anos, gerente de tecnologia, 04 anos
desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de empresa)
A cobrança pela ‘produção’ em nossa sociedade é tanta que o trabalho torna-se peça chave
para a alimentação da máquina do capitalismo. Quem não trabalha, não produz, e quem não
produz é um inútil, em uma sociedade que só valoriza quem é ‘produtivo’.
Naturalmente as pessoas ligarão o trabalho à utilidade, sendo isso um dos principais
definidores do seu papel social. Em nossa sociedade o trabalho passa a oferecer um sentido,
que ganha proporções quando atrelado a outras funções, como vimos nos tópicos anteriores.
Sentir-se ‘descartável’, outro sentimento presente como vimos no tópico anterior, é diferente
de sentir-se um inútil na situação de desemprego. No primeiro caso há o envolvimento de uma
relação de uso, no segundo há o envolvimento de uma relação de contribuição com a
sociedade.
Nitidamente o emprego institui e define um papel social. Ter um emprego faz com que o
sujeito sinta-se parte de um projeto coletivo, que quando perdido põe em cheque sua
contribuição com o social. É a questão do trabalho como parte do pacto coletivo:
“Trabalhar para mim é produzir alguma coisa, numa visão super
ampla, trabalho é a coisa que produz qualquer coisa, nem que
seja simplesmente lucro, nem que seja valor para os outros e
satisfação pessoal, já que faz toda diferença se você trabalha
numa coisa que gosta”. (S., 34 anos, analista de marketing, 1 ano
e 8 meses desempregada, solteira, 01 filha, 09 meses de empresa)
“(...) É muito importante sentir–se útil. Para mim, a maior
satisfação do trabalho é ser do tipo que rende mesmo, nem que
tenha que ficar até mais tarde. Isso acontecia muito na X e era o
dia que eu chegava mais bem humorado em casa, porque rendia.
Você sai com a sensação de missão comprida e tem aquele dia que
se está meio travado e sente-se um inútil”. (E., 36 anos,
controller, 04 meses desempregado, casado, sem filhos, 11 meses
de empresa)
159
“Eu acho que trabalhar é bom para o ego, eu me sinto útil
trabalhando, para mim é inútil ficar em casa...”. (N., 47 anos,
analista contábil, 03 meses desempregada, divorciada, 02 filhos,
17 anos de empresa)
Sendo assim, o trabalho tal como conhecemos em nossa sociedade, passar a ser visto como
essencial para a vida. E como encarar a sociedade agora? Como encarar as pessoas, se o
sentimento é de total fragilidade diante do outro?
É essa a fragilidade que vemos comumente nos relatos dos que perdem seus emprego. Mas
quero compartilhar um relato especifico, que me chamou muito a atenção:
“Uma vez um colega disse: o desempregado é um aidético.
Imagina você chegar na sociedade e falar que tem AIDS. As
pessoas não vão te convidar pra ir na casa dela. Alguma coisas
mais ou menos assim: Olha, você tem algum contato em algum
lugar? Eu tenho, só que é o seguinte, eu sou soropositivo, porque
eu fui demitido, as pessoas de lá vão te tratar... É lógico que essa
pessoa foi muito radical, muito pessimista na colocação dela, mas
em alguns casos a gente percebe que é isto mesmo”. (JR., 35
anos, supervisor de sistemas, 02 anos desempregado, casado, sem
filhos, 10 anos de empresa)
Doente pela imagem que têm de si, e porque dele todos fogem. Ninguém quer chegar perto de
um desempregado, como se fosse uma doença contagiosa, em que qualquer contato pode ser
perigoso.
“Acham que não é sofrimento e tem gente que lida com o
desemprego como se fosse uma doença”. (S., 34 anos, analista de
marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01 filha, 09
meses de empresa)
Veja o tamanho do sofrimento que tal sentimento gera, sem dúvida, afeta toda a estrutura do
sujeito, que se vê diante de uma situação de julgamento e em uma degradante visão de si.
160
E se pudermos agora fazer uma revisão de tudo que já falei, podemos constatar uma realidade
dura e difícil: desempregados podem experienciar e sentir-se: inseguros, desprotegidos, sem
possibilidade de futuro, como lixos, doentes, inúteis, frágeis, rejeitados...
Sentimentos nada agradáveis e que indubitavelmente afetarão, ou já são resultados de sua
identidade, que agora esvaziada de sentido, envolverá sujeitos numa dinâmica trágica de
perda e impotência, já que estão diante de uma situação que não poderá ser resolvida
simplesmente por desejar que ela seja.
Perdem o controle sobre sua vida, sobre seu futuro, afeta seu papel diante do outro. E como
enfrentar essa situação?
“(...) tenho receio de chegar numa roda de amigos que estão
empregados. A gente se afasta um pouco da vida social, isso é um
problema. Quando você devia estar mais presente, trocar idéia,
conversar, a gente tende a se isolar... não posso fugir... mas acho
que é uma defesa... a gente se dedica tanto ao trabalho, que
quando fala de trabalho a gente fala com prazer, seja ele qual for.
Faço isso, aquilo e quando você não tem o que comentar, parece
que você perde a capacidade de fazer o que estava fazendo, não
que perca, mas não tem o que comentar numa roda de amigos,
numa cerveja sempre sai conversa sobre serviço, um diz estou
fazendo isso e aquilo, e você pensa: estou fora disso...”. (Ge., 42
anos, supervisor de produção, 20 dias de desemprego, casado, 02
filhos, 04 anos de empresa)
Devemos acrescentar o isolamento àquela lista citada acima. É muito difícil o enfrentamento
com uma sociedade que julga de maneira negativa o desempregado, e não só julga, mas lhe
cobra atitudes:
“O tratamento é diferente para os que estão trabalhando, há um
respeito”. (JR., 35 anos, supervisor de sistemas, 02 anos
desempregado, casado, sem filhos, 10 anos de empresa)
161
“Sabe a música do Fagner: o homem sem o seu trabalho não tem
honra”. (S., 34 anos, analista de marketing, 1 ano e 8 meses
desempregada, solteira, 01 filha, 09 meses de empresa)
Segundo Moura (2001), desprovidos da referência coletivas do ‘ser trabalhador’, os sujeitos
desempregados vêem-se isolados e fixados no espaço doméstico, cultural e historicamente,
desvalorizado. E concluiu: “Quanto mais o sujeito obtinha auto-confirmação e
reconhecimento, através daquela atividade laboral perdida, mais intensamente repercutiu
sobre ele o impacto do desemprego”. (Moura, 2001, p.75)
Muitas são as pesquisas que relatam o isolamento como conseqüência do desemprego (Del
Prette, 1990, Tosta, (2000), Moura (2001), Estramiana (1992), etc.), mas nesse nosso percurso
acredito que a compreensão do ‘por que?’ desse isolamento tenha ficado mais claro.
Não podemos esquecer que o problema do isolamento que aqui se coloca não é tanto o ‘isolar-
se’, mas muito mais o ‘ser isolado’:
“(...) no primeiro dia ainda tinha ligações para fazer, eu recebi
muitas ligações, depois foram diminuindo...”. (R., 47 anos,
gerente comercial, 10 meses desempregado, casado, 02 filhos, 08
anos de empresa)
“(...) algumas pessoas te evitam por insegurança de que você
possa pedir alguma coisa, ela quer ficar longe de você porque ela
não quer se comprometer, ela quer se afastar daquilo”. (A., 47
anos, gerente de tecnologia, 04 anos desempregado, casado, 02
filhos, 1 ano de empresa)
“É muito difícil fazer contato com as pessoas, fazer essa
abordagem e eu ainda sinto isso... A sensação é a de pedinte, de
estar com o chapéu na mão, você fica numa situação de
inferioridade, você esta precisando de alguma coisa”. (A., 47
anos, gerente de tecnologia, 04 anos desempregado, casado, 02
filhos, 1 ano de empresa)
162
Perder o emprego traz a perda de um lugar social, lugar este representante de poder e de
possibilidades, lugar este de reconhecimento.
163
VII. A VIVÊNCIA, A ELABORAÇAO DO LUTO E OS PERIGOS DA PERDA
Nos capítulos anteriores pudemos compreender a relação entre os lugares que a organização
ocupa na subjetividade e as perdas para o sujeito. Como vimos, o sujeito ao perder o emprego
também perde:
a proteção ilusória que a organização lhe propicia através de um sistema de regras; um
propósito de vida idealizado; uma imagem de perfeição; um sentido; um organizador do
tempo de vida; uma possibilidade de fuga dos problemas; uma segurança com o futuro;
a possibilidade de pertencer ao grupo; os laços de amor ilusórios presentes nas relações; o
reconhecimento do grupo; a sensação de ser querido e desejado a ponto de valer a pena
qualquer sacrifício em beneficio do objetivo único;
um lugar de reconhecimento e valorização social e familiar; um lugar de poder e
onipotência; um status social; uma identidade profissional; a noção de contribuição para a
sociedade.
No mundo moderno, o trabalho adquiriu muitos significados, que investido e cada vez mais
valorizado por uma dinâmica e um ciclo ininterrupto de produtividade, deixa marcas nos
sujeitos que são afastados da possibilidade de exercê-lo de forma digna.
Vivenciar a perda do emprego não é algo fácil para os sujeitos. Compreendemos neste
percurso que a ruptura do emprego representa não uma, mas inúmeras perdas. Perdas estas
ligadas às representações que foram se articulando aos sujeitos, muitas vezes através do
trabalho, que por isso se situa numa rede de representatividade muito maior do que a sua
institucionalização.
O que proponho neste capítulo é a discussão de como o sujeito vai vivenciar essas perdas e
como vai se produzir o processo.
7.1. O luto : um processo
164
Desde o início de nossa existência tivemos que lidar com a perda. Aliás, a psicanálise
contribuiu muito para a compreensão do sujeito diante da perda e a influência desta na
constituição do sujeito.
Em Totem e Tabu, Freud (1913) mostrou como a ordem cultural se fundou a partir de uma
perda, e em 1926, em Inibições, sintomas e angústia, colocou que o ego, durante seu
desenvolvimento, sofreria constantes e repetidas perdas de objeto, já que ele havia sido
preparado para esperar a castração
16
.
A reação natural à perda de um objeto valorizado foi o que Freud, em Luto e Melancolia
(1917), denominou de ‘luto’:
“... o luto é a reação à perda de um ente querido, à perda de
alguma abstração que ocupou o lugar de um ente querido,
como o país, a liberdade ou o ideal de alguém, e assim por
diante”. (Freud, 1917, p.275)
Laplanche (1998) nos lembra que não podemos esquecer que o objeto é tomado aqui no
sentido da teoria freudiana: objeto da pulsão, objeto da libido ou, mais geralmente, objeto de
amor (é possível estar de luto por uma coisa, por um ideal, etc.).
O que estará em causa no luto é a solidez do vínculo com o objeto e o que lhe acontece
quando esse vínculo está à prova.
“... nunca nos achamos tão indefesos contra o sofrimento
como quando amamos, nunca tão desamparadamente infelizes
como quando perdemos o nosso objeto amado ou o seu
amor”. (Freud, 1930, p.101)
Mesmo sendo um processo ‘natural’, o luto não elimina o sofrimento. Freud (1917) coloca: “é
notável que esse penoso desprazer seja aceito por nós como algo natural”. Desencadeador de
um processo, ou ‘um trabalho’, como sugere Freud, a libido direcionada para aquele objeto
perdido precisa ser retirada: “o objeto amado não existe mais, passando a exigir que toda a
libido seja retirada de suas ligações com aquele objeto”. (Freud, 1917, p.276)
16
Esta constatação modificaria para sempre a noção de sujeito para Freud.
165
“O trabalho de luto, o trabalho do desapego é
necessariamente um trabalho parcialmente mortífero, mesmo
que conserve igualmente, mas sob uma outra forma, o objeto
perdido”. (Laplanche, 1998, p. 308)
Para Rudge (2001), o ‘trabalho de luto’ conduz à renúncia ao objeto perdido e a uma liberação
da libido que poderá, a partir de então, investir em outros objetos. É claro que isto seria o seu
percurso natural, mas sabemos que isso é um processo, e como coloca Laplanche (1998),
“fazer o luto” não acontece num abrir e fechar de olhos. Essa liberação da libido para outras
tarefas efetua-se às custas de um trabalho que deve ser realizado em detalhe:
“Normalmente, prevalece o respeito pela realidade, ainda que
suas ordens não possam ser obedecidas de imediato. São
executadas pouco a pouco, com grande dispêndio de tempo e
de energia catexial, prolongando-se psiquicamente, nesse
meio tempo, a existência do objeto perdido. Cada uma das
lembranças e expectativas isoladas através das quais a libido
está vinculada ao objeto é evocada e hipercatexizada, e o
desligamento da libido se realiza em relação a cada uma
delas”. (Freud, 1917, p.277)
Perdendo o emprego, perde-se algo que foi investido e valorizado pelo sujeito, e na fala do
sujeito é fácil identificar o ‘trabalho de luto’ se processando com a retirada de energia:
“(...) sabe, o subconsciente não consegue se desligar, no período
de uma semana eu ficava pensando nos problemas da empresa”.
(N., 47 anos, analista contábil, 03 meses desempregada,
divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
“(...) eu demorei pra me desligar. Eu acordava à noite pensando
nos problemas dela (da empresa). Dava vontade de ligar e dizer: -
faz assim. Então assim eu sofri um pouquinho”. (N., 47 anos,
analista contábil, 03 meses desempregada, divorciada, 02 filhos,
17 anos de empresa)
É sem dúvida um processo de separação, e como já se fala na linguagem coloquial do
processo de demissão: é um processo de desligamento.
166
7.1.1. O choque da ruptura, o impacto da notícia
Após o período de férias, A. retornou ao seu trabalho. Nada lhe causaria espanto se no dia
seguinte ao seu retorno, e após 13 anos de dedicação à empresa, não tivesse recebido a notícia
de sua demissão. A. relata o momento:
“(...) quando cheguei de férias, no dia seguinte me mandaram
embora. Não tinha necessidade disso... digamos que foi um
choque, você passa muito tempo numa empresa, ‘carrega vários
pianos’ e nesses treze anos tiveram vários cortes, mas eu sempre
sobrevivia de uma forma ou de outra. Eu tive várias
oportunidades de trabalhar em outras empresas e acabei não indo
pelo status de receber treinamento, novas tecnologias. Eu acabei
vendo isso como vantagem competitiva”. (A., 47 anos, gerente de
tecnologia, 04 anos desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de
empresa)
Este foi o relato da primeira demissão de A.. Depois dessa, muitas outras vieram, todas muito
presentes em sua memória. O sentimento de traição, evidente em seu relato, só nos mostra a
forma como a relação que foi estabelecida com a organização o fez acreditar que esse
momento poderia ter sido diferente. O que ele expressa em suas palavras é a presença do
sacrifício e do envolvimento presente entre o indivíduo e organização. Para ele, o choque foi
inevitável, já que acreditava, como ocorrera tantas vezes antes, que seria ‘salvo’, que
‘sobreviveria’ a mais um ‘corte’.
Não compreender o que está acontecendo no momento é mais comum do que imaginamos. A
forma como os vínculos com a organização são estabelecidos fazem com que algumas pessoas
notem os sinais, que já há muito tempo estão sendo dados pela empresa, somente muito tempo
depois, após um reflexão da situação, como foi o caso de N.:
“(...) uma semana antes eu percebi... minha supervisora me
deixou um pouco de lado. Por exemplo, tinham projetos para a
outra semana e reuniões e ela não me incluía... eu estava
praticamente excluída, mas não percebi”. (N., 47 anos, analista
167
contábil, 03 meses desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos
de empresa)
N. viveu o momento como se estivesse anestesiada e relata o momento em que seu
coordenador, ao tentar consolá-la disse:
“(...) eu sei como você está se sentindo... eu sei como se sente, eu
me coloco no seu lugar porque aqui a gente se anulou muito, a
gente deixou os filhos e muita coisa pra trás em função da X”.
(N., 47 anos, analista contábil, 03 meses desempregada,
divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
Mas sua resposta à indagação de seu coordenador só demonstrou o seu estado de choque e
anestesia, N. respondeu a ele:
“- Não, você não sabe, porque eu não estou sentindo nada”. (N.,
47 anos, analista contábil, 03 meses desempregada, divorciada, 02
filhos, 17 anos de empresa)
Dispensada do acompanhamento do segurança (praxe das empresas), N. foi acompanhada por
sua supervisora até sua estação de trabalho, logo após ser comunicada de sua demissão. N.
trabalhou durante 17 anos numa mesma empresa e achou que isso nunca aconteceria com ela,
pelo tempo em que estava e pelo tempo de dedicação que tinha à empresa.
“(...) você acha que nunca vai acontecer com você... eles me
chamaram na sala de reunião e me comunicaram. Minha
supervisora me falou que eu era ótima funcionária, que eles
gostavam muito de mim, que não era nada pessoal, que era
remanejamento de funcionários. Então, eles estavam precisando
de pessoal mais ativo”. (N., 47 anos, analista contábil, 03 meses
desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
Para N., o choque foi tão grande que não conseguiu pensar em nada no momento. Foi sentir as
conseqüências da notícia somente muito tempo depois e admitiu:
168
“O choque foi tanto que eu não esperava, tanto que quando ele
me chamou eu pensei que eu ia ter uma promoção. Eu não senti
nada, não fiquei desesperada, eu simplesmente não senti”. (N., 47
anos, analista contábil, 03 meses desempregada, divorciada, 02
filhos, 17 anos de empresa)
S. também demorou para dar-se conta do ocorrido. Aliás, conta que depois que foi
comunicada retornou ao seu posto de trabalho e continuou a trabalhar como se nada tivesse
acontecido:
“Sei o que está acontecendo, mas até sentir... lembro que ela
(chefe) me falou (que estava demitida) e voltei para o meu
computador. Continuei o que estava fazendo, terminei o que
estava fazendo e, pensando um monte de coisa”. (S., 34 anos,
analista de marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01
filha, 09 meses de empresa)
Reação esta, que verifiquei durante minha experiência com profissionais demitidos ser mais
freqüente do que muitos imaginam, chegando muitas vezes a casos extremos de profissionais
demitidos, que mesmo após dias depois não conseguem dar-se conta da situação e continuam
indo para o trabalho, como se nada tivesse ocorrido. Podemos ver isso também neste
depoimento:
“Foi uma reação tranqüila. Quando ele me falou parecia que não
tinha acontecido nada, demorei algumas horas para eu entender e
ter consciência do que tinha acontecido”. (S., 34 anos, analista de
marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01 filha, 09
meses de empresa)
Em todos os casos, o momento da notícia da demissão se faz muito presente e com muita
carga emotiva. Independente do tempo em que estão desempregados, a lembrança do
momento é sempre de muita mágoa, raiva ou consternação.
O sentimento de injustiça também é muito presente, e quando há a percepção do profissional
do processo de marginalização antes da demissão propriamente dita, há a tentativa de reverter
a situação, como é o caso de JR.
169
JR. conta que estava alerta há algumas semanas quando se deu conta que não estava mais
sendo incluído em nenhum projeto novo. Tentando reverter a situação que já previa, começou
a trabalhar com muito mais dedicação e cuidado. Conta que a demissão foi feita junto a uma
avaliação de desempenho, ficando clara a relação entre as duas coisas. Mesmo já sentindo
alguns sinais, só teve certeza quando foi chamado pela diretoria. Sobre a demissão comenta:
“(...) é sempre um choque, é sempre desagradável estar sendo
retirado do lugar onde você quer estar”. (JR., 35 anos, supervisor
de sistemas, 02 anos desempregado, casado, sem filhos, 10 anos
de empresa)
O caso de G. foi um pouco diferente, mas nem por isso menos conturbado. Um mês antes de
sua saída havia sido informada que sua área passaria por uma reestruturação e que seu cargo
seria modificado. Mesmo assim haveria a possibilidade de concorrer a uma vaga interna, que
estaria mais próxima daquilo que fazia. G. participou e foi a escolhida para assumir a nova
oportunidade, mas deveria esperar completar o mês para fazer a transição. Na véspera de
assumir o novo cargo chamaram-na e disseram que o projeto tinha sido revisto e aquela vaga
não existiria mais:
“(...) na hora foi um choque, o emocional da “gente” vai para o
chão, por mais que você queira, você não agüenta. Não era só
questão de estarem cancelando sua vaga, é a questão de cancelar
seu sonho”. (G., 32 anos, analista de R.H., 03 meses
desempregada, solteira, 02 anos e 03 meses de empresa)
Ge. já havia passado por outras demissões, outras mais e outras menos difíceis. Quem o
chamou dessa vez foi um gerente, segundo ele de gênio muito difícil e com muitos anos de
empresa. Conta que via da sala onde estava dois outros coordenadores que também haviam
sido comunicados. Sentiu-se traído pelos colegas que, segundo ele, sabiam da decisão e não
lhe contaram. Lembra que refutou a decisão e disse ao Gerente:
“- Você tem noção do que é sair nesse momento? Tudo que está
lá, uma época de transição. Ele respondeu que não, e eu não ia
discutir... perguntei se era só eu, por incapacidade ou
170
incompetência minha?”. (Ge., 42 anos, supervisor de produção,
20 dias de desemprego, casado, 02 filhos, 04 anos de empresa)
O que Ge. pediu foi uma explicação, e pensou que seria uma boa hora para repensar a sua
vida. Conta que ficou muito abalado na hora, e que em todas as demissões sempre passa pela
sua cabeça: “o que vou falar em casa?”.
Relata que o pior foi ter que contar aos seus subordinados, que sairiam (ele e outros dois
coordenadores) e que as 14h chegariam os novos coordenadores. A despedida foi difícil, conta
que houve muitos que choraram e que perguntaram a ele: - e agora o que vai ser? E
complementa:
“(...) ir embora com o guardinha atrás também foi complicado”.
(Ge., 42 anos, supervisor de produção, 20 dias de desemprego,
casado, 02 filhos, 04 anos de empresa)
Essa postura da empresa de não deixar as pessoas retornarem aos seus postos de trabalho
sozinhas, sempre acompanhadas de um segurança, fere o sentimento de confiança que os
profissionais acreditavam existir entre eles e a empresa. Muitos relatam o momento como
humilhante e constrangedor, entram na sala como profissionais valorizados e respeitados, e
saem como potenciais criminosos.
O impacto da notícia da demissão é evidente e representa, para muitos, um momento que não
será esquecido tão facilmente, tornando-se uma marca muito forte em suas histórias.
O choque que a ruptura do emprego causa é o grande anunciador do sofrimento presente no
processo de luto.
Segundo Parkers (1998), o luto que é para muitos sujeitos referido como ‘um choque’, é um
processo, uma passagem necessária para o sujeito assimilar a perda do objeto.
Muitas pesquisas sobre os aspectos psicológicos do desemprego apontam a demissão como
um momento de choque emocional.
Eisenberg e Lazarsfeld (apud Estramiana 1992) colocam a reação de choque como uma
primeira reação emocional diante da demissão. Kauffman (apud Estramiana 1992) mostra que
o choque é presente mesmo nos trabalhadores altamente qualificados, sendo sempre seguido
171
de uma sensação de alívio. Briar (apud Estramiana 1992) chega a mesma conclusão, incluindo
que o sentimento de choque e otimismo na possibilidade de rapidamente encontrar um novo
trabalho, dão lugar a um período de autoculpabilização e depressão, acabando em abandono e
falta de iniciativa, conforme o tempo vai passando e as expectativas de encontrar um emprego
vão diminuindo.
Moura (2001), em sua pesquisa, percebeu que a essência do impacto do desemprego está no
elemento surpresa, que é percebido como um ato de violência. Relata que a superação do
choque inicial é seguida por um estado de anestesia, partindo para um esforço de superação.
Outros autores, como Tosta (2000), também ressaltam que na maioria das vezes a demissão é
vivida como um choque.
Hayes (apud Estramiana 1992), por exemplo, distingue dentre as cinco fases do processo de
demissão, uma primeira fase caracterizada pela reação de choque, que segundo o autor, é
vivenciada por aqueles para os quais o trabalho é um elemento importante na definição de si
mesmo, que as esperanças de encontrar um novo posto sejam escassas e em que o desemprego
seja uma experiência nova.
Pude perceber que o choque é muitas vezes inevitável, independente de ser ou não uma
experiência nova. Aliás, para aqueles que vivenciaram mais de uma vez a demissão, a reação
a um novo desemprego pode ser muito mais traumática, já que vivenciar o desemprego nunca
é uma situação simples e fácil de ser resolvida.
Os outros sentimentos descritos nas pesquisas relatadas acima, como o alívio,
autoculpabilização, depressão, e até mesmo o esforço de superação são verificados sem
dúvida. Mas, o aparecimento desses sentimentos vai depender da história de vida de cada
sujeito, da representação que o emprego supunha em sua vida, do espaço que o trabalho
ocupava na subjetividade, do histórico com a empresa, etc.
Por exemplo, sentimentos de alívio são muito comuns em pessoas que estavam vivenciando
uma situação de estresse muito grande na empresa, que ao meu ver, era causado muito mais
pela pressão e pela constante utilização do fator medo, como apontei no cap III.
O medo de perder o emprego e todas as situações às quais os profissionais se sujeitam, como
no caso de E., que vivenciou um estresse tão grande, que em seu último emprego teve que
lidar com dificuldades em sua adaptação em uma cidade estranha e a um ambiente
172
profissional altamente estressante, foi natural a sensação de alívio que teve logo após sua
demissão.
“Foi uma sensação de alívio muito boa, parecia que tinha tirado
um bonde das minhas costas, me senti tão leve...” (E., 36 anos,
controller, 04 meses desempregado, casado, sem filhos, 11 meses
de empresa)
Mas aqui o que devemos nos perguntar é: por que o choque?
O que está relacionado com a perda está muito mais relacionado com o investimento do
sujeito com uma relação idealizada e ilusória (objeto), que quando desmantelada, coloca o
sujeito frente à realidade, característica do ‘trabalho do luto’.
É a ligação com o objeto perdido que o choque da ruptura evidencia. Freud, em Luto e
Melancolia coloca: “uma ou duas coisas podem ser diretamente inferidas no tocante às
precondições e aos efeitos de um processo como este. Por um lado, uma forte fixação no
objeto amado deve ter estado presente”. (Freud, 1917, p.282)
O estado de luto é suscetível de descrição através de um certo número de sintomas:
“O luto profundo, a reação à perda de alguém que se ama,
encerra o mesmo estado de espírito penoso, a mesma perda de
interesse pelo mundo externo — na medida em que este não
evoca esse alguém —, a mesma perda da capacidade de
adotar um novo objeto de amor (o que significaria substituí-
lo) e o mesmo afastamento de toda e qualquer atividade que
não esteja ligada a pensamentos sobre ele. É fácil constatar
que essa inibição e circunscrição do ego é expressão de uma
exclusiva devoção ao luto, devoção que nada deixa a outros
propósitos ou a outros interesses”. (Freud, 1917, p.276)
Ao luto é confiada a tarefa de efetuar essa retirada do objeto em todas aquelas situações nas
quais ele foi o recipiente de elevado grau de catexia. Para Freud (1917), o luto, enquanto
persiste, absorve todas as energias do ego. Do mesmo modo que o luto compele o ego a
desistir do objeto, declarando-o morto e oferecendo ao ego o incentivo de continuar a viver.
Assim, cada luta isolada da ambivalência distende a fixação da libido ao objeto, depreciando-
173
o, denegrindo-o e mesmo, por assim dizer, matando-o. É possível que o processo no
inconsciente chegue a um fim, quer seja após a fúria ter-se dissipado, quer seja após o objeto
ter sido abandonado como destituído de valor.
Para Laplanche (1998), mesmo com o desaparecimento do objeto, o vínculo subsiste, de
modo que o sujeito encontra-se diante de uma tripla possibilidade:
- a primeira, evidentemente a mais radical: parecer com o objeto, o que não é inconcebível e
ocorre em mais de um caso.
- a segunda possibilidade: subsistindo o vínculo, trata-se de manter igualmente o objeto, quase
magicamente, de um modo quase alucinatório ou mesmo francamente alucinatório, é quando
o indivíduo mantém em vida a pessoa perdida.
- a terceira possibilidade: a do luto propriamente dito, a que encontramos na locução
intuitivamente exata “fazer o seu luto”. Neste caso, é o respeito pela realidade que prevalece
sobre o laço afetivo; a realidade exige que o sujeito transmute, ou até aniquile o seu vínculo
com uma pessoa que já não está presente.
Assim, mesmo o “trabalho de luto” poderá sofrer mudanças em seu percurso natural. Para
Freud (1917), o luto pode tornar-se patológico, quando principalmente, houver o sentimento
de culpa envolvido, podendo desencadear no sujeito um quadro de melancolia.
17
“... as pessoas nunca abandonam de bom grado uma posição
libidinal, nem mesmo, na realidade, quando um substituto já
se lhes acena. Esta oposição pode ser tão intensa, que dá
lugar a um desvio da realidade e a um apego ao objeto por
intermédio de uma psicose alucinatória carregada de desejo”.
(Freud, 1917, p.277)
Em 1926, Freud no texto chamado Angústia, dor e luto (apêndice C de Inibições, sintomas e
angústia) inicia uma discussão importante. Reafirmando a conclusão de que a angústia vem a
ser uma reação ao perigo de uma perda de objeto, lembrando que: “agora já conhecemos uma
17
Tratarei da melancolia e da depressão no item 7.2.3.
174
reação à perda de um objeto, que é o luto”, traz à tona a questão: quando a perda conduz à
ansiedade e quando ao luto?
Mas, seu questionamento não pára por aí. Lembra o leitor que no momento em que discorreu
sobre o assunto do luto, havia uma característica do problema que continuava sem explicação,
que seria o estado de dor. Tornando o problema ainda mais complicado, ele modificou a
pergunta: quando a separação de um objeto produz angústia, quando produz luto e quando
produz somente dor?”.
Freud (1926), mesmo deixando pistas de que não havia respostas e ainda pouco conhecimento
para responder a essas perguntas, concentrou-se em distinguir os conceitos: a dor seria a
reação real à perda de objeto, a angústia seria a reação ao perigo que essa perda acarreta e, por
um deslocamento ulterior, uma reação ao perigo da perda do próprio objeto. Em relação ao
luto, mantém a idéia anterior do texto de 1917, evidenciando a questão do ego e sua relação
com a realidade:
O luto ocorre sob a influência do teste de realidade... exige
categoricamente da pessoa desolada que ela própria deva separar-se
do objeto, visto que ele não mais existe... Ao luto é confiada a tarefa
de efetuar essa retirada do objeto em todas aquelas situações nas
quais ele foi o recipiente de elevado grau de catexia. Que essa
situação deva ser dolorosa ajusta-se ao que acabamos de dizer, em
vista da catexia de anseio, elevada e não passível de satisfação, que
está concentrada no objeto pela pessoa desolada durante a
reprodução das situações nas quais ela deve desfazer os laços que a
ligam a ele”. (Freud, 1926, p.237)
Além disso, Freud (1926) diferencia uma situação traumática de uma situação de perigo que
respectivamente correspondem, por exemplo, se a criança tiver sentindo a necessidade que
sua mãe seja a pessoa a satisfazer ou transformando-se numa situação de perigo se essa
necessidade não estiver presente no momento.
“... o primeiro determinante da angústia, que o próprio ego introduz,
é a perda de percepção do objeto (que é equacionada com a perda do
próprio objeto). Ainda não se trata de perda de amor. Posteriormente,
a experiência ensina à criança que o objeto pode estar presente, mas
175
aborrecido com ela; e então a perda de amor a partir do objeto se
torna um novo perigo e muito mais duradouro e determinante de
ansiedade”. (Freud, 1926, p.256)
7.2 Os perigos da perda
7.2.1 a angústia, sinal de desamparo
“Para o adulto, o estado de desamparo é o protótipo da
situação traumática geradora de angústia”. (Laplanche &
Pontalis, 1992, p.112)
Segundo Ferenczi (1992), diante do choque emocional, há uma decepção causada pela perda
de segurança, anteriormente estabelecida pelo sujeito, fazendo com que se altere as
referências do sujeito sobre si mesmo, podendo perder a confiança em si e no mundo.
A conseqüência imediata ao choque é a angústia geradora de sofrimento.
Pode-se localizar em Freud duas teorias da angústia. Uma que está presente em seus estudos
de 1890 a 1900, outra apresentada nos estudos Inibições, sintomas e angústia, de 1926,
mesmo que em Conferências Introdutórias sobre a Psicanálise de 1916-17, Freud já
apontasse alguns dos caminhos que iria concretizar em 1926.
A primeira teoria da angústia, segundo Ramos (2003), é vista como uma transformação tóxica
da libido não utilizada, sendo uma teoria puramente econômica. Para Laplanche (1998), é
neste período que Freud define a angústia como a energia sexual não elaborada e livre,
podendo fixar-se de maneira ocasional, seja em sintomas somáticos, seja em representações. É
neste período também que Freud estabelece a diferença entre a angústia realística e a angústia
neurótica.
Mas segundo Laplanche (1998), Freud chega à conclusão de que não há como distinguir uma
angústia realística de uma angústia neurótica, e na segunda teoria, em 1926, em Inibições
sintomas e angústia , substitui as duas conceituações por angústia automática e angústia como
sinal.
176
Nesse segundo momento da teoria da angústia, Freud (1926) abandona a idéia de que o
recalque transforma a libido em angústia e introduz a relação da angústia como um sinal para
um perigo e enfatiza o papel do ego:
“a angústia é colocada na perspectiva da reação ou da
preparação para o perigo”. (Laplanche, 1998, p.43)
e
“o ego é o lugar da angústia, o que quer dizer que a angústia
é percebida ao nível do ego; e o ego é no processo defensivo,
o produtor (ou reprodutor) da angústia” (Laplanche, 1998, p.
134)
Freud (1916-17), apesar de não ter trabalhado muito bem estas distinções, apontou que medo
(Furcht), angústia (Angst) e terror (Sherek) são termos que não podem ser colocados como
sinônimos.
Existe uma confusão com o termo alemão ‘Angst’, que é traduzido por alguns autores como
medo, colocando a angústia e o medo como sinônimos
18
.
Para Laplanche (1998), a confusão com os termos ocorre por que em alemão, ‘Angst’ possui
tanto um significado para a angústia, como para medo, e não porque os significados das
palavras e como elas se empregam são geralmente causados por uma tradução mal feita, mas
sim por diferenças culturais dos significados das palavras.
Segundo o autor, estamos tratando de dois conceitos diferentes: medo e angústia, mas que
estão interligados, já que todo medo aparentemente motivado teria, na realidade, um fundo de
angústia, e toda angústia se revestiria, a prazo mais ou menos curto, com a máscara do medo.
A angústia seria, como vimos no item anterior, uma reação à perda, uma reação ao efeito de
deslocamento que a expectativa de desamparo e do trauma tem sobre a perda.
Assim Freud (1926) define:
18
Também ocorre com algumas traduções da obra freudiana a tradução do termo ‘Angst’ como ansiedade.
177
“A angústia é a reação ao perigo. Não se pode, afinal de contas,
deixar de suspeitar que o motivo pelo qual o afeto de ansiedade ocupa
uma posição sui generis na economia da mente tem algo a ver com a
natureza essencial do perigo. Contudo, os perigos são o destino
comum da humanidade; são os mesmos para todos”. (Freud, 1926, p.
213)
Para Delouya (1998), Freud pensa a angústia, enquanto reação – dinâmica e econômica - à
ausência do objeto, decorrente também do anseio libidinoso em relação a este. Ao mesmo
tempo, a ausência inscreve-se (no final do seu texto de 1926) na dimensão tópica que
privilegiamos, apontando para sua vinculação com o locus da dor de órgão, o narcisismo, a
saudade, a nostalgia e a depressão.
A diferença que marca uma nova visão da angústia, diferente da anterior, é importante para
qualquer estudo que visa tratar da relação sujeito e cultura. Pois é a partir da segunda teoria
que Freud (1926) “dá lugar a um enorme desenvolvimento de idéias sobre a cultura”.
(Ramos, 2003, p.148). Isso porque é a partir desse momento que Freud (1926) passa a se
permitir unir a idéia de desamparo da criança com o desamparo originário, presente na
constituição de todos nós, sujeitos.
“... a angústia é a reação originária ao desamparo do
trauma, que depois é reproduzida na situação de perigo, como
sinal de ajuda”. (Rocha, 2000, p. 131)
Segundo Rocha (2000), a angústia, na segunda teoria, passa a ser um elemento estruturante do
existir humano, atribuindo-lhe uma função defensiva diante dos perigos que ameaçam a
existência.
Situar o problema da angústia e da sociedade na obra de Freud requer um pequeno parêntese.
Se foi só em 1926 que Freud reformulou o conceito de angústia, dando mais importância ao
problema do desamparo e da castração, as obras ditas sociais anteriores a essa reformulação
possuem resquícios da primeira teoria da angústia.
Segundo Ramos (2003), foi só em o Futuro de uma ilusão que o modelo de angústia diante do
perigo penetra os textos ditos sociais, ficando ainda mais clara a questão do desamparo
originário, a sociedade e a angústia.
178
Para Peres (2001), na metapsicologia freudiana, desamparo e castração estão intimamente
relacionados, e a angústia de castração é que fundamenta o lugar de destaque e a nova
dimensão que a angústia do real (Realangst) passa a ter na nova teoria da angústia, a ponto de
Freud dizer que ela tem primazia sobre a angústia pulsional.
Freud, na segunda teoria da angústia, repensou a noção de perigo, agora o perigo pulsional
ocorre não por si mesmo, mas por causa de suas conseqüências relacionadas com o perigo
externo, articulando o perigo externo com o perigo da castração.
"... o eu foi preparado para esperar a castração, tendo sofrido
perdas de objeto constantemente repetidas, coloca a angústia
sob nova luz. Até aqui consideramo-la como um sinal afetivo
de perigo; mas agora, visto que perigo é tão amiúde o de
castração, ele nos parece uma reação a uma perda, uma
separação." (Freud, 1926, p. 154).
Para Corrêa (2001), a castração está irredutivelmente ligada à dimensão imaginaria do falo e
o que está em jogo é o ter ou não ter falo, onde a marca desta falta denuncia a perda. Para o
autor, a função fálica tem um duplo valor: um valor positivo de gozo, e um valor negativo de
castração.
Como vimos, o desamparo por estar presente na estrutura da constituição do sujeito, por ser
indissolúvel e originário, envolverá um trabalho infinito por parte do sujeito, que buscará
mediante a percepção de falta, soluções para sentir-se protegido, amado e consolado.
Como ressaltei, é a realidade que a ilusão desfeita com a perda da relação sujeito-organização
desmascara, principalmente com a perda da proteção e dos laços que se rompem.
A perda do emprego pode reafirmar o desamparo, colocando novamente o sujeito diante de
sua fragilidade e impotência diante do outro, antes camuflada pelos ideais da organização.
O desamparo que se expressa na desilusão e no vazio do choque com a realidade, promove o
sofrimento marcando a dor da ruptura.
Segundo Tumolo (2002), os sentimentos gerados pela situação do desemprego estão
associados a uma experiência de sofrimento por parte dos desempregados. O desespero, a
179
perda da esperança, o desamparo, a tristeza, a revolta e a desorientação são sentimentos
verbalizados e expressos de forma contundente pelos participantes.
Longe de ser uma posição de vantagem, o desempregado coleciona experiências
desagradáveis que o faz sentir-se desconectado com o mundo e com as pessoas, é como se por
um instante não fizesse parte dessa comunhão.
O sujeito diante do desamparo, diante da solidão, não encontra brechas para a projeção de seu
futuro, aliás, como vimos, para o desempregado não há futuro, só há o aqui e o agora, não há
certeza de continuidade.
“Sob o desamparo, o sujeito encontra-se diante da pressão
constante das forças pulsionais”. (Birman, 2001, p.44)
O duro choque da realidade só nos faz concluir que dependemos do outro para existir. Sentir-
se descalço’, ‘como um astronauta sem ninguém por perto’, ‘sem chão’ ou até mesmo
‘nu’, são expressões constantes de quem perde emprego, que realçam a questão do perigo da
angústia diante do desamparo que a perda constitui.
No processo de desemprego o medo e a angústia são sentimentos que se misturam, e que
neste processo estão interligados.
O medo maior é o de não conseguir restabelecer-se. A partir do momento em que o sujeito
está desempregado e quer retornar ao mercado de trabalho, suas aflições passam a ser muitas.
O medo de não conseguir mais retornar ao trabalho é uma constante:
“Vou conseguir ou não outro (emprego)? Isso é uma
preocupação para mim”. (Ge., 42 anos, supervisor de produção,
20 dias de desemprego, casado, 02 filhos, 04 anos de empresa)
“(...) às vezes bate a preocupação e o desespero. E agora? Como
fica? Será que vou conseguir, vai demorar pra arrumar outro
trabalho? Como que é que está o mercado?” (E., 36 anos,
controller, 04 meses desempregado, casado, sem filhos, 11 meses
de empresa)
180
“(...) você vai começar a pensar como vai fazer, meu dinheiro vai
acabar e se eu não conseguir um emprego? Mais por causa da
idade...”. (N., 47 anos, analista contábil, 03 meses desempregada,
divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
Como disse no cap. VI, é com a angústia que o sujeito se depara quando perde a via de
satisfação de desejos de onipotência, de proteção e de amor que a empresa lhe oferece.
A fonte da angústia é o desamparo que se produz na perda da relação, dos lugares ocupados
pela organização na subjetividade do sujeito, que lhe traziam sensação de ‘pertencer’. Mas o
problema das conseqüências que o desemprego acarreta para a subjetividade, apenas inicia-se
com a ruptura do vínculo com a empresa.
Nos caminhos tortuosos da compreensão que a perda do emprego exige, estão sujeitos
tentando compreender o que se passa, porque sentem-se estranhos e por que todos vêem de
forma banal seu sofrimento.
“As pessoas de fora têm a idéia de que é bola pra frente, você vai
conseguir. Tem uma postura de banalizar, porque elas estão fora
do problema. Acham que nunca vai acontecer com elas, não
vêem o problema. Acham que não é sofrimento...”. (S., 34 anos,
analista de marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01
filha, 09 meses de empresa)
O desemprego, situação em que o sujeito vive a impotência e a impossibilidade de determinar
seus próximos passos, abala sua noção de liberdade. Porque a situação de sofrimento em que
o desempregado encontra-se, e acredito ser esse um dos grandes perigos que a perda do
emprego pode ocasionar, é que não depende dele a resolução da situação.
“(....) essa sensação de incapacidade de impotência vai
aumentando com o tempo”. (Ge., 42 anos, supervisor de
produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos, 04 anos de
empresa)
181
É essa situação de total passividade em que se encontra o sujeito, na incapacidade de poder
com seus próprios recursos encontrar saída para seus impasses, que Rocha (2000) define a
situação de desamparo.
Com o desemprego, toda possibilidade de escolha que o sujeito poderia ter estando
empregado desaparece, e não somente porque naquele ambiente, ou por que como trabalhador
constrói sua identidade e direciona seus objetivos, mas porque perde alguns de seus direitos,
vê seu dinheiro e todas as coisas que ele compra irem embora, sofre pela família, que também
sofre pela situação nada dignificante. “Viver sem emprego é uma realidade que afeta toda a
família”. (Tosta, 2000, p. 53).
Não há como falarmos sobre o sofrimento dos profissionais que perderam o emprego sem
falar sobre o impacto que o desemprego tem sobre as relações familiares.
Uma das maiores preocupações do desempregado é com a sua família. Não há quem não fique
apreensivo com as situações que envolvem: trabalho, família e dinheiro.
“(...) a preocupação maior é a família”. (Ge., 42 anos, supervisor
de produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos, 04 anos de
empresa)
A preocupação com a família vem muito freqüentemente ligada a uma questão: a financeira.
O que passa pela cabeça dos trabalhadores que perderam seus empregos é: será que vou
conseguir sustentar minha família?
“A família sofre mais, pois acaba passando por uma gangorra
emocional”. (A., 47 anos, gerente de tecnologia, 04 anos
desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de empresa)
Jahoda (apud Estramiana 1992), ao estudar as famílias no famoso estudo de Marienthal,
concluiu que quanto maior era a deterioração econômica, maior era a deterioração das
relações familiares.
Mas esse problema pode ser só o estopim de outros que passam a surgir com a demissão.
182
Os chefes de família, responsáveis pela sobrevivência econômica de sua família, vão sentir o
seu papel de provedor falhar. Homem ou mulher, tanto faz. Todos aqueles que são
responsáveis por sustentar um lar passarão por uma grande pressão.
“Tenho que estar empregada porque sou arrimo de família,
ninguém me ajuda, tenho financiamento, casa, condomínio, um
monte de coisas para pagar, quando o dinheiro acabar, acabou”.
(G., 32 anos, analista de R.H., 03 meses desempregada, solteira,
02 anos e 03 meses de empresa)
O desemprego inicia um ciclo de preocupações, angústias e cobranças. Por parte dos
trabalhadores que perderam seus empregos, mas também por parte de seus familiares, que
muitas vezes não sabem como lidar com a situação.
“Minha esposa é muito mais preocupada e mais tensa, é uma
característica dela. Tento mantê-la mais calma”. (Ge., 42 anos,
supervisor de produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos,
04 anos de empresa)
Portanto, na família todos serão afetados quando um dos cônjuges, ou um dos filhos, ou um
dos irmãos vivenciar o desemprego.
“A ansiedade é normal na família.” (Ge., 42 anos, supervisor de
produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos, 04 anos de
empresa)
Relatos de famílias se desestruturando e tentando se adaptar a uma nova realidade, fazendo o
profissional demitido ter que lidar agora não mais com seu sofrimento, mas também amenizar
o de seus familiares.
“Meu filho não se conformava e queria ir lá falar com minha
chefe. Eu disse para ele que as coisas não eram assim. Eles
sentiram mais e acabaram se acostumando. Às vezes os filhos têm
como referência, porque a mãe trabalhou lá muito tempo, sentem
mais que você. É porque é uma referência mesmo. Minha filha
tinha três anos quando entrei lá e hoje ela tem 20. Então a
183
referência dela sempre foi a X. Até os amigos falavam a N. da X,
sempre estava ligada a empresa, por isso sentiram mais que eu”.
(N., 47 anos, analista contábil, 03 meses desempregada,
divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
É muito difícil para quem perde o emprego ter que lidar com as referências que foram sendo
criadas no ambiente familiar. Contar para um filho que você foi demitido de uma empresa
pode ser muito difícil.
Os filhos, quando pequenos, muitas vezes não compreendem a situação, e por serem
obrigados a cortar alguns gastos que envolvem presentes e passeios, cobrarão seus pais.
R., conta que não está livre da angústia dos filhos: “ele fala: vê se arruma um emprego
viu?”. (R., 47 anos, gerente comercial, 10 meses desempregado, casado, 02 filhos, 08 anos
de empresa)
Para Tosta (2000), o desemprego pode afetar a imagem que os filhos carregam do pai. É
muitas vezes difícil para um filho que se espelha no pai ver essa imagem se dissolver.
Isso é motivo de sofrimento intenso para os pais, que passam a sentir-se cada vez mais
impotentes e incapazes de cuidar de sua própria família.
“fiquei quatro meses desempregado. Foi porque só a redução de
custo já não estava adiantando. Tinha dificuldade até para
manter o que já tinha. Precisei de ajuda e é difícil pedir ajuda.
Tinha filhas pequenas e essa sensação de incapacidade de
impotência vai aumentando com o tempo”. (Ge., 42 anos,
supervisor de produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos,
04 anos de empresa)
As chances do desemprego desestruturar uma família são muito grandes. Tumolo (2002)
verificou uma perda na qualidade da relação entre o casal, devido às preocupações geradas
pelo desemprego.
“a parte mais difícil na vida de um desempregado, sem
dúvida, é a vida em família que invariavelmente acaba se
184
desarmonizando, desestruturando, e na maioria das vezes
acaba terminando em separação”. (Teles, 2003, p.67).
É toda uma estrutura que é rompida e que precisa sofrer rearranjos. É um pai que não ficava
nunca em casa e passa a ser solicitado, é uma esposa que pode culpar o marido pela situação,
é a esposa que não consegue mais ser independente financeiramente e sofre com a
dependência, etc...
Mas é também o sofrimento de um filho que vê seu pai chorar pela primeira vez, a dor de uma
esposa que não sabe mais o que fazer para ajudar seu marido, ou de uma mãe que vê seus
filhos sofrerem por não conseguirem um novo emprego.
“Eles (os pais) são muito preocupados, mas agora estão mais
tranqüilos, eles são assim por natureza, ainda mais que sou filho
único. Ligam toda hora, falando que na época deles era diferente,
tinha emprego, hoje em dia é mais difícil”. (Ge., 42 anos,
supervisor de produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos,
04 anos de empresa)
“minha mãe, no começo, a primeira vez que fiquei desempregada,
ficou na maior ansiedade”. (G., 32 anos, analista de R.H., 03
meses desempregada, solteira, 02 anos e 03 meses de empresa)
Ninguém deseja manter-se nessa situação durante muito tempo. A angústia causada pela
incerteza e pela insegurança do momento deixa os sujeitos sem perspectivas.
“Emocionalmente descendo no sentido que você fica numa
expectativa de que aquela situação seja resolvida de que vai
conseguir ter uma remuneração compatível, isso era constante,
acabei sofrendo processo de stress...”. (A., 47 anos, gerente de
tecnologia, 04 anos desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de
empresa)
Para JR., é muito difícil conviver com uma situação que ainda não está fechada, sem saber o
que fazer, sem saber pra onde ir enfrentando situações totalmente novas.
185
A espera de uma ligação, de um contato que pode demorar meses para acontecer é uma
grande preocupação:
“(...) tem semana que toca o telefone e um monte de coisas
acontece e, outras, nada. Nas outras duas vezes eu ficava
neurótica, mandei um monte de currículo e nada... ninguém me
ligava”. (G., 32 anos, analista de R.H., 03 meses desempregada,
solteira, 02 anos e 03 meses de empresa)
“(...) não consigo fazer a entrevista, tenho pouquíssimas
oportunidades de mostrar o que eu sei fazer, quem eu sou, são
poucas oportunidades”. (R., 47 anos, gerente comercial, 10 meses
desempregado, casado, 02 filhos, 08 anos de empresa)
“(...) foi complicado porque quase não tive entrevistas”. (S., 34
anos, analista de marketing, 1 ano e 8 meses desempregada,
solteira, 01 filha, 09 meses de empresa)
O desemprego não tem data de término, ninguém sabe quanto tempo vai durar, e essa é a
sensação complicada: é uma história que não se sabe o final.
O futuro é uma incógnita e a espera só fragiliza o sujeito.
“Percebi que potencializa a fraqueza, coisa que procuro não
fazer, eu tomo uma cerveja, mas não numa segunda-feira, nunca
fiz isso porque vou fazer agora, mas alguma coisa te empurra pra
aquilo, mas eu fico atento”. (Ge., 42 anos, supervisor de
produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos, 04 anos de
empresa)
O percurso que mantive nesse capítulo deixou claro o que pode ser desencadeador desses
sentimentos, e ser essa a grande contribuição que uma pesquisa em psicanálise pode oferecer.
“Ser sujeito, pois, é ter de recomeçar insistentemente seu
percurso singular, ter de lidar com seu desamparo em um
mundo em que universalidade e totalidade não mais existem”.
(Birman, 2001, p.95).
186
“(...) o desespero não leva a nada, faz perder a noção do sentido”.
(Ge., 42 anos, supervisor de produção, 20 dias de desemprego,
casado, 02 filhos, 04 anos de empresa)
7.2.2 A demissão: vivência de punição e o sentimento de culpa
“Eu acredito que todas as empresas devam ter um ambiente tenso,
mas não assim, com a punição da demissão”. (JR., 35 anos,
supervisor de sistemas, 02 anos desempregado, casado, sem filhos,
10 anos de empresa)
A demissão muitas vezes é vista como uma punição. Segundo Barreto (2000), ser demitido
pode trazer ao desempregado a sensação de castigo à desobediência.
Não é incomum ver relatos de profissionais que mesmo sendo demitidos em processos
coletivos, buscam compreender a demissão, sempre se perguntando: Onde foi que eu errei ?
Os profissionais costumam, numa tentativa de compreensão, buscar razões e motivos para o
ocorrido. Quase sempre, quando fazem um balanço de sua história profissional, tendem a
culpar-se e a responsabilizar-se pela perda do emprego.
A culpa, pela própria responsabilização do sujeito pela perda, é um fator que dificulta o
trabalho do luto.
A forma como se desenvolve a relação empresa-sujeito, e a forma de condução dos processos
de demissão nas empresas tendem a responsabilizar o sujeito pela demissão, reafirmando um
sentimento de culpa que se evidencia com o desenrolar do tempo, principalmente quando o
sujeito desempregado se deparar com as cobranças da sociedade e o enfrentamento do
mercado de trabalho.
“(...) fui à formatura de minha filha, voltei para a empresa, virei a
noite e mesmo assim fui dispensado pelo presidente. Perguntei se
o motivo foi porque eu não estava presente quando quebrou a
máquina, perguntei ainda, se esse era o reconhecimento do
presidente por todo tempo que estivera lá, pela minha dedicação,
187
pelas mudanças realizadas”. (Ge., 42 anos, supervisor de
produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos, 04 anos de
empresa)
Tittoni (1999), que analisou os processos coletivos de demissão, percebeu que a fala dos
trabalhadores era atravessada por elementos de autoculpabilização, embora a demissão seja
hoje um fenômeno coletivo que atinge um grande número de trabalhadores. Sob o foco da
autoculpabilização, ressaltou que esta é gerada pela desvalorização dos saberes dos
trabalhadores que sentem-se descartáveis e velhos para o mercado de trabalho, sentindo-se
culpados porque acreditam que não podem mais contribuir para a empresa, sendo a
desvalorização dos saberes causa da autoculpabilização.
“a demissão funciona como um acontecimento que redefine os
saberes que os trabalhadores possuem sobre si próprios”.
(Tittoni, 1999, p.98)
A conclusão de Tittoni (1999) trás alguns pontos importantes para a nossa discussão se
observarmos os aspectos subjetivos de suas considerações e pensarmos: por que os sujeitos
que perdem o emprego sentem-se responsáveis e culpados pela perda?
A primeira questão que a autora coloca, de que mesmo sendo um fenômeno coletivo a fala
dos trabalhadores era atravessada por elementos de autoculpabilização, só nos mostra a
importância subjetiva do processo.
O trabalhador sempre vai buscar o motivo em sua vivência, vai sempre se perguntar: onde foi
que eu errei? O que fiz para merecer isso? Será que é por que já estou velho demais? O
importante é o fato de ser coletivo, não alivia a culpa individual.
Quando N., diz: “se eu entrasse em outra empresa eu daria mais de mim”, nos mostra que
sua crença é de que não fez o suficiente para permanecer na X. Ou quando E. coloca que
“uma das coisas que abaixou minha auto-estima foi à sensação de não ter feito muita coisa
na X como gostaria, mas sei que não foi culpa minha, isso eu ouvi deles”, nos mostra a
percepção de que de no fundo um erro dele o levou a demissão. E quando JR. diz que tentou
reverter a situação quando soube de tal demissão, trabalhando ‘melhor’, é por que acreditou
que não estava sendo um bom profissional e dedicado-se à empresa.
188
“(...) eu tentei reverter a situação trabalhando de forma muito
mais minuciosa, muito melhor”. (JR., 35 anos, supervisor de
sistemas, 02 anos desempregado, casado, sem filhos, 10 anos de
empresa)
“(...) eu também me questionei por ter saído da X”. (A., 47 anos,
gerente de tecnologia, 04 anos desempregado, casado, 02 filhos, 1
ano de empresa)
A segunda questão importante levantada pela autora é de que os trabalhadores, por causa da
desvalorização de seus saberes, sentem-se descartáveis e velhos para o mercado de trabalho.
Isso eu discuti no cap. VI e acredito que sentir-se descartável está ligado a forma como a
relação sujeito-organização foi construída, evidenciando, sem dúvida, um forte sentimento de
traição, pelo uso e pela obtenção do sacrifício dos trabalhadores em benefício da empresa.
A terceira conclusão da autora, de que os trabalhadores sentem que não podem mais
contribuir socialmente com o seu trabalho, é que eu acho que cria condições para discussão
que farei neste item.
É nesse caminho que a responsabilização pela perda liga-se ao sentimento de culpa.
Mas antes, para falarmos sobre o processo de culpa, precisamos falar como isso se instala no
sujeito. No tópico anterior ressaltei como o conceito de ‘ideal de ego’ está intimamente ligado
ao conceito de ‘super ego’, porque envolvem um ideal e uma lei de um simbólico que foi
internalizado.
O super ego é o agente que possui a função de manter a vigilância sobre as ações e as
intenções do ego e julgá-las. Tem, em sua base, a renúncia ao instinto, que resulta do medo de
uma autoridade externa, que a organização psíquica, pela introjeção da agressividade
impedida pela civilização, instaura tal autoridade interna. Esse processo ocorre através da
identificação, que incorpora a si a autoridade.
Em o ‘Mal estar....’, Freud (1930) concluiu que a agressividade impedida pela civilização
retorna ao ego, sendo introjetada “sob a forma de ‘consciência’, e está pronta para pôr em
ação contra o ego a mesma agressividade rude que o ego teria gostado de satisfazer sobre
outros indivíduos, a ele estranhos”. (p.146)
189
Mas expliquemos melhor. O sentimento de culpa é o mais importante problema do
desenvolvimento da civilização, produzindo aquilo que denominou o ‘mal estar’. Tem, para
Freud (1930), duas origens: uma que está relacionada com o medo da autoridade externa,
decorrente da perda do amor, e outra ligada ao medo do super ego.
Sendo o super ego um agente que possui uma função de vigilante é ele quem julga e que
exerce a censura ao ego, e como Freud bem colocou, o “agente critico”, é por causa de sua
existência e de sua lei instauradora que existe o sentimento de culpa que reconhece uma
tensão existente entre o ego e uma autoridade externa.
Para Garcia (2001), o sentimento de culpa é o derivado do conflito entre a necessidade do
amor da autoridade e o impulso da satisfação pulsional. Para a autora, a culpa pressupõe que
haja um reconhecimento do que é mau e do que é bom, que não está relacionado ao que é
prejudicial, mas está relacionado ao estado de desamparo e de dependência do humano.
“o sentimento de culpa surgido do remorso por uma ação má
deve ser sempre consciente, ao passo que o sentimento de
culpa originado da percepção de um impulso mau pode
permanecer inconsciente”. (Freud, 1930, p 162)
Segundo Barbiere (2001), Freud distingue três tipos de culpa: a culpa consciente, a culpa
inconsciente e aquela a qual nos referimos a que não sem algum embaraço, ele chama de
sentimento inconsciente de culpa ou culpa muda.
“O sentimento de culpa produzido pela civilização permanece
em grande parte inconsciente, aparece como uma espécie de
mal-estar, uma insatisfação, para a qual as pessoas buscam
outras motivações”. (Enriquez, 1990, p.115)
Questionamento presente em toda sua obra, segundo Barbiere (2001), Freud começou
tomando a culpa como sentimento de indignidade do eu submetido à crítica do supereu,
chegando à formulação de que a culpa, em seu viés de universabilidade, é condição da
estrutura e constitui o primórdio da civilização, já que, para Freud o desamparo é a fonte de
todos os motivos morais, uma vez que a descarga emocional está na dependência do outro, o
que se desenvolverá na direção do medo da perda do amor.
190
Para alguns autores, como é o caso de Rinaldi (2001), o sentimento de culpa é para Freud uma
variedade topográfica da angústia, porque o que está em sua origem é o desamparo
primordial, onde se localiza a origem da angústia primária relacionada ao trauma originário
como puro excesso econômico, tomando como protótipo o trauma do nascimento, primeiro
momento avassalador e excessivo de radical desamparo.
Segundo Rinaldi (2001), Freud deixa claro que o sentimento de culpa é anterior ao supereu e
anterior à consciência, e que em alguns momentos chega a identificar os dois termos quando
se refere ao sentimento de culpa como angústia diante do supereu. Na genealogia da culpa,
que traz um mal estar na cultura, define uma primitiva forma de culpa caracterizada pelo
medo de perder o amor dos pais como angústia social.
“Se existe, no interior de cada um, uma instância interditora
visando à repressão das tendências agressivas e à criação do
sentimento de culpa, uma instância do mesmo tipo pode ser
percebida no interior de uma cultura”. (Enriquez, 1990,
p.116)
No cap VI coloquei que o emprego, por definir um papel e ter um lugar de reconhecimento do
sujeito diante da sociedade e que o desemprego coloca em cheque a sua contribuição com o
coletivo que se faz via trabalho.
Freud, em Mal estar na civilização (1930), coloca que a vida comunitária teve um
fundamento duplo: a compulsão para o trabalho, e o poder do amor, que fez o homem relutar
em privar-se de seu objeto sexual e a mulher em privar-se de seu filho. Foi esse fundamento
duplo que criou condições para o pacto, em que o trabalho entrou como parte: “trabalha-se
então com todos, para o bem de todos”. (Freud, 1930, p.96)
Entende-se, portanto, porque Lacan (apud Barbiere 2001) diz que a culpa vai ser tratada como
uma dívida simbólica do sujeito.
Como já vimos, a renúncia à onipotência e ao desejo é o que marca a condição da inserção do
sujeito na cultura. A resolução do Édipo é condição indispensável para a entrada do sujeito na
cultura.
191
Para Pellegrino (1984), a Lei da Cultura representa o batismo do ser humano, a marca da
passagem que o faz ingressar no circuito de intercâmbio social, que na idade adulta ao pacto
com a Lei da Cultura, centrado em torno da renúncia aos impulsos sexuais, vai acrescentar-se
um pacto social, estruturado em torno da questão do trabalho.
“A partir do trabalho exigido pela sociedade, estabelece-se
um pacto social que, à semelhança do pacto edípico, tem que
ter mão dupla. A competência para o trabalho exige um longo
e doloroso aprendizado. Em troca deste sacrifício, quem
trabalha adquire o sagrado direito de receber, como paga, o
mínimo necessário à preservação de sua subsistência e
dignidade - e a de sua família. O pacto social se legitima - e
se cumpre - através desse intercâmbio. Sem ele, o pacto se
torna viciado e se corrompe, com graves conseqüências”.
(Pellegrino, 1984, p.6)
Para o autor, o trabalho é o elemento mediador fundamental, por cujo intermédio, como
adultos, nos inserimos no circuito e intercâmbio social, e nos tornamos - de fato e de direito -
sócios plenos da sociedade humana.
“Trabalhar é inserir-se no tecido social, por mediação de
uma práxis, aceitando a ordem simbólica que o constitui”.
(Pellegrino, 1984, p.6)
Seria através do trabalho que nós sujeitos contribuiríamos para a construção e para a
transformação da vida social.
A essência da idéia de Pellegrino está na conclusão de que o trabalho é uma exigência feita
pela sociedade a todos os seus membros.
“O aviltamento do seu trabalho é a mais grave ofensa social
que pode ser feita a um homem. Ela o atinge na essência
mesma de sua condição de pessoa. Ela ofende o seu senso de
equidade e de justiça. Ela o frauda na sua esperança - e na
sua fé no mundo. Ela semeia em seu coração a descrença e a
revolta”. (Pellegrino, 1984, p.5).
192
Assim, se o que foi estabelecido, se o pacto era trabalhar em benefícios de todos, não produzir
e não contribuir, é visto como algo que não é certo.
Quando no capitulo VI coloquei que uma das coisas que o sujeito perde é a sensação
participativa de contribuição para a sociedade, surgindo assim sentimentos ligados a
‘inutilidade’, confirmando o fato de que o trabalho está ligado à utilidade social, se não posso
mais ser útil e produzir para minha coletividade não me resta nenhum outro sentimento se não
o remorso
19
e a culpa.
“Estou com 34 anos e morando na casa da mamãe, além de
outras coisas do gênero. Todo mundo dizia que eu era inteligente,
ou todo mundo me enganou, ou absolutamente não sei fazer uso
disso. É a coisa da inadequação, de você achar que está aqui para
fazer algo de útil, produzir alguma coisa. Se você não está
produzindo, para que acordar ? Você fica achando que não tem
propósito, você não está dando sua contribuição social para esse
mundo, então o que você está fazendo aqui?”. (S., 34 anos,
analista de marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01
filha, 09 meses de empresa)
“Preciso desenvolver, fazer alguma coisa que dê resultados, senão
me sinto inútil”. (Ge., 42 anos, supervisor de produção, 20 dias de
desemprego, casado, 02 filhos, 04 anos de empresa)
O sentimento que o desempregado tem é de que ele fez o que não era certo, de que rompeu
com o pacto, de que não era bom o bastante.
7.2.3. A perda e dissolução temporária ou permanente de si
“(...) tudo vinha na minha cabeça e então comecei a ter uma
sensação de perda como se tivesse perdido uma metadinha de
mim sumindo era aquela coisa que eu sabia que não ia voltar
mais ir lá não ia mais ser como antes era uma sensação de perda
19
Freud (1930) chamou de remorso a reação do ego ao sentimento de culpa.
193
mais eu não saberia dizer se era do emprego ou das pessoas ...”
(N., 47 anos, analista contábil, 03 meses desempregada,
divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
Freud, em Luto e Melancolia (1917), se propôs a buscar a natureza da melancolia e
correlacioná-la com o luto, porque acreditava que existia uma articulação entre os dois
processos que lhe permitiram discorrer sobre eles baseando-se em suas analogias e diferenças.
Apesar de haver uma variação significativa, e sobre isso falarei melhor durante o texto, a
causa tanto do luto, quanto da melancolia geralmente é a mesma: a perda do objeto.
Mas aquilo que parece ter como causa o mesmo problema, não se desenvolve e nem se
processa nos sujeitos da mesma forma.
Se o luto é uma reação natural à perda, como vimos no tópico 7.1.1, a melancolia será, para
Freud (1917), o mesmo processo, mas conduzido de maneira patológica
20
.
“Os traços mentais distintivos da melancolia são um
desânimo profundamente penoso, a cessação de interesse pelo
mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de
toda e qualquer atividade e uma diminuição dos sentimentos
de auto-estima, a ponto de encontrar expressão em auto-
recriminação e auto-envilecimento, culminando numa
expectativa delirante de punição”. (Freud, 1917, p.276)
Diante da perda do objeto, o luto se instala como um processo, pois é necessária a retirada das
ligações direcionadas para aquele objeto, que não existem mais. Mas o que diferenciaria esse
“trabalho”, no caso da melancolia, seria o reconhecimento de que a perda pode ter realmente
ocorrido, mas podemos não estar conscientes do que perdemos. A diferença estaria na
conclusão de que: mesmo que o paciente esteja cônscio da perda que deu origem à sua
melancolia, estará apenas no sentido de que sabe quem ele perdeu, mas não o que perdeu
nesse alguém. (Freud, 1917, p.277)
Para Laplanche (1998), apesar de no luto lidarmos com uma perda de objeto e com um
‘trabalho psíquico’ ligado a essa perda, na melancolia essa perda parece ser muito mais
20
Freud (1917) acrescenta que o luto pode também se tornar patológico quando há a culpa pelo objeto perdido.
194
complexa do que no luto, e menos evidente. A perda pode ser mais moral do que física, é algo
que é menos discernível de imediato.
“Isso sugeriria que a melancolia está de alguma forma
relacionada a uma perda objetal retirada da consciência, em
contraposição ao luto, no qual nada existe de inconsciente a
respeito da perda”. (Freud, 1917, p.278)
Por isso, Delouya (1998) coloca que a melancolia vincula-se a uma fase posterior da
constituição do eu, que diz respeito às identificações secundárias. Para o autor, tanto Abraham
como Freud nos mostram como a sensibilidade narcísica do melancólico deve-se à sua
dificuldade em introjetar, integrar e assimilar o objeto para dentro do eu, expondo este último
a um massacre culposo por parte do super-eu. Freud situa tal dificuldade na ambivalência
afetiva de amor-ódio. É esta a razão pela qual tanto ele como Abraham ligam a melancolia à
neurose obsessiva, embora Freud focalizasse a problemática desta última em torno da
identificação ao pai na trama edípica.
Freud (1917) citando Otto Rank, coloca que a escolha objetal é efetuada numa base narcisista,
de modo que a catexia objetal, ao se defrontar com obstáculos, pode retroceder para o
narcisismo. A identificação narcisista com o objeto se torna, então, um substituto da catexia
erótica, e, como conseqüência, apesar do conflito com a pessoa amada, não é preciso
renunciar à relação amorosa. Essa substituição da identificação pelo amor objetal constitui
importante mecanismo nas afecções narcisistas.
A escolha do objeto tem como pretensão a busca da completude narcísica. E o objeto
incorporado na melancolia é também uma escolha sobre bases narcísicas.
A chave do processo para compreensão do processo melancólico está na compreensão do
objeto perdido, ou melhor, na compreensão da escolha do objeto e sua relação com o ego. Isso
porque segundo Laplanche (1998), o vínculo com o objeto na melancolia é sempre um
vínculo narcísico.
“O objeto perdido é sempre o objeto que falta. Sempre a
perda, consciente e exteriormente devida a algum acidente ou
doença, é atribuída no inconsciente a um abandono, a uma
195
falta fundamental que, em última instância, é a da mãe, a
perda do amor” (Laplanche, 1998, p.307)
Assim, o debate com o objeto, no luto, é transposto na melancolia para um debate com o ego.
Para Freud (1917), no luto o sujeito sofre uma perda relativa a um objeto, e o melancólico
apontaria para uma perda relativa a seu eu, o que significaria dizer que o melancólico exibe
uma diminuição extraordinária de sua auto-estima e um empobrecimento de seu ego em
grande escala.
“No luto, é o mundo que se torna pobre e vazio; na
melancolia é o próprio ego”. (Freud, 1917, p.278)
Por isso, na melancolia o ego esvazia-se, e desprovido de valor torna-se incapaz de qualquer
realização. Sente-se desprezível, degrada-se perante todos. É uma dor moral que segundo
Laplanche (1998) está em seu auge e a inibição acentuada fazendo-se acompanhar de uma
ausência completa dos cuidados mais elementares, por exemplo, a alimentação; a perda da
capacidade de amar, podendo denotar ausência de afetividade; a perda de interesse pelo
mundo exterior, além da questão da auto-acusação, com um delírio moral centrado na questão
da culpabilidade.
O sentimento de que ao perder o emprego, perde-se o próprio valor é muito comum.
“parece que você perde a capacidade de fazer o que estava
fazendo, não que perca, mas não tem o que comentar numa roda
de amigos, numa cerveja sempre sai conversa sobre serviço, um
diz estou fazendo isso, aquilo e você pensa, estou fora disso, por
enquanto”. (Ge., 42 anos, supervisor de produção, 20 dias de
desemprego, casado, 02 filhos, 04 anos de empresa)
“Quando eu me vi desempregada, eu não sabia fazer mais nada e
ficava rodando”. (N., 47 anos, analista contábil, 03 meses
desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
Para Laplanche (1998), se no luto o objeto nos falta e reinventamos temporariamente, na
melancolia produz-se um outro mecanismo, que domina toda seqüência: é a identificação com
o objeto perdido.
196
A perda de um objeto amoroso constitui excelente oportunidade para que a ambivalência nas
relações amorosas se faça efetiva e manifesta.
Para Freud (1917), há três pré-condições da melancolia: a perda do objeto, a ambivalência e a
regressão da libido ao ego. A catexia erótica do melancólico, no tocante a seu objeto, sofreu
assim uma dupla vicissitude: parte dela retrocedeu à identificação, mas a outra parte, sob a
influência do conflito devido à ‘ambivalência’, foi levada de volta à etapa de sadismo, que se
acha mais próxima do conflito.
Para Freud (1917), o conflito dentro do ego, que a melancolia substitui pela luta pelo objeto,
deve atuar como uma ferida dolorosa que exige uma anticatexia extraordinariamente elevada.
O complexo de melancolia se comporta como uma ferida aberta.
“O ego registrará diante da emergência inesperada do
recalcado na consciência, que surge como uma ameaça de
desabamento da imagem do eu narcisicamente investida, ou
seja, o que é angustiante é a possibilidade da perda dos
limites do eu”. (D’orio, 2003, p. 41)
O golpe na auto-estima, o rombo no amor próprio, o sentimento de inferioridade, são
expressões de um narcisismo ferido. Para Bleichmar (1985) “a falta de prazer narcisista
produz apatia pelo mundo circundante”.
“Acho que para mim o golpe mais difícil foi o da auto-estima...
Você fica achando que não tem propósito, você não está dando
sua contribuição social para esse mundo então, o que você está
fazendo aqui? Por mais que você esteja nessa situação ela é
alheia à sua vontade, às vezes acontecem coisas assim, que
chegam no quase e, ai não vai... chega uma hora que é inevitável
pensar que você não consegue, porque você não tem capacidade.
Tem emprego para todos os gostos, do chão de fábrica à diretoria,
sempre em algum lugar você se encaixa”. (S., 34 anos, analista de
marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01 filha, 09
meses de empresa)
197
“Sinceramente minha auto-estima nunca foi grande coisa, apesar
de saber que não tinha nada a ver com minha capacidade, fiquei
insegura, sim. E me lembro de ter me sentido injustiçada, às
vezes, por conhecer gente que estava bem empregada e que era
bastante mediana ou que não se esforçava muito e as coisas
aconteciam para elas. Me sentia injustiçada pelo destino ou por
Deus, sei lá, por acreditar que tinha tanta capacidade quanto
essas pessoas, e no entanto estava desempregada”. (S., 34 anos,
analista de marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01
filha, 09 meses de empresa)
A ferida pode muitas vezes nos impedir de agir, e muitas vezes de viver. Pode ser tão
insuportável que pode levar o sujeito a sucumbir a vida.
“A perda do amor e o fracasso deixam atrás de si um dano
permanente à autoconsideração, sob a forma de uma cicatriz
narcisista, o que, em minha opinião, bem como na de
Marcinowski (1918), contribui mais do que qualquer outra
coisa para o ‘sentimento de inferioridade’, tão comum aos
neuróticos”. (Freud, 1920, p. 60)
A grande imagem do melancólico, Hamlet, de Sheakspeare, que Freud utiliza para explicar
como pode alguém com exacerbada auto critica, que mesmo próximo da verdade um homem
deve estar doente ao expressar tamanho desprezo por si próprio, tem uma consciência aflita,
um personagem culpado de ter um inconsciente. (Roudinesco, 2003)
Para Roudinesco, (2003), Hamlet, um neurótico paralisado por escrúpulos e remorsos,
tragédia da subjetividade é a seqüência lógica desse drama histórico, que mostra um homem
que não sabe porque não conseguiu realizar o que deseja realizar.
Para Freud (1917), o sujeito na melancolia se encontra tão desinteressado e tão incapaz de
amor e de realização quanto afirma. Ele perdeu seu amor-próprio e deve ter tido boas razões
para tanto.
198
“o sentimento de ausência de si aponta a dissolução do
sujeito-trabalhador, ligada a prática cotidiana de um
trabalho-emprego que não mais existe” (Moura, 2001, p.67)
S., com 34 anos e uma filha de cinco anos, desde que foi mandada embora de seu último
emprego, trabalhou em alguns lugares por pouco tempo e fez alguns bicos. Seu último
trabalho foi em 2003, e desde então não conseguiu mais trabalhar e acredita que isso pode ter
culminado na depressão.
“(...) fui, aos trancos e barrancos, acho que culminou com uma
depressão, fiquei péssima”. (S., 34 anos, analista de marketing, 1
ano e 8 meses desempregada, solteira, 01 filha, 09 meses de
empresa)
Conta que ficou muito mal e pensava: - porque acordo? O que estou fazendo aqui?
“Sabe a música do Fagner: o homem sem o seu trabalho não tem
honra. Você acha que você não tem utilidade, que não tem um
propósito nesse planeta. Se você não produz nada é uma pressão
de vários lados, primeiro é uma pressão econômica, “pô” não
consigo pagar minhas contas, já estou morando com minha
mãe”. (S., 34 anos, analista de marketing, 1 ano e 8 meses
desempregada, solteira, 01 filha, 09 meses de empresa)
S. conta que se cobrou muito e mesmo na rebeldia de sua adolescência, sempre dizia para sua
mãe que quando tivesse 18 anos ia morar sozinha.
“todo mundo dizia que era inteligente ou, todo mundo me
enganou ou, absolutamente não sei fazer uso disso.... Se você não
está produzindo para que acordar”. (S., 34 anos, analista de
marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01 filha, 09
meses de empresa)
“Minha mãe cobra muito, não só de mim, mas de todo mundo que
esta à volta dela. Ela é muito perfeccionista e exigente, parece
uma patrulha, qualquer deslize será apontado”. (S., 34 anos,
199
analista de marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01
filha, 09 meses de empresa)
S. possui um quadro de pânico e depressão, que tenta já algum tempo normalizar com
medicamentos:
“(...) fui procurar tratamento, uma vez que não consegui
trabalhar, foi na época que estava no negócio x, não consegui
passar da ponte, ai falei: - Preciso de ajuda”. (S., 34 anos,
analista de marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01
filha, 09 meses de empresa)
Fez tratamento durante um ano e meio com antidepressivo e sentiu a melhora:
“(...) você não tem crise todo dia. Você tem crises, você acha que
vai morrer, dá vontade de dar com a cabeça na parede, nunca
pensei em suicídio, tenho medo de morrer, a morte não é uma
coisa tranqüila pra mim, não gosto da idéia. O que também é
interessante, porque acho que não quero esquecer e acho que
morrer é esquecer. Mas você tem vontade de desmaiar para parar
aquela sensação”. (S., 34 anos, analista de marketing, 1 ano e 8
meses desempregada, solteira, 01 filha, 09 meses de empresa)
“ultimamente não tive mais crises, tive uma ansiedade mais
exacerbada. Ando com Frontal na bolsa para emergências, mas
faz oito meses que não tomo, só o fato de ter na bolsa já me
tranqüiliza”. (S., 34 anos, analista de marketing, 1 ano e 8 meses
desempregada, solteira, 01 filha, 09 meses de empresa)
O depoimento de S. é como o de tantos outros que precisam se reerguer. A dor que a aflige, a
ferida aberta, o enfrentamento com um mundo perverso que cobra atitudes e posicionamentos
cada vez mais próximos da perfeição divina.
200
7.3. “Ressurgindo das cinzas” – Mito de Fênix
O trabalho constante de elaboração envolve muito mais do que lidar com todo o sofrimento
gerado pela perda do emprego ou se restabelecer num novo emprego. Sem emprego, a maior
dificuldade que quem está em busca de um novo trabalho precisa enfrentar são as rejeições,
que não serão poucas.
“(...) você começa a criar um monte de fantasmas e cada vez que
você recebe um não, já começa a viajar. Você começa a achar que
é incompetente e isso não é verdade”. (G., 32 anos, analista de
R.H., 03 meses desempregada, solteira, 02 anos e 03 meses de
empresa)
As exigências do mercado, cada vez maiores, e a fragilidade do sujeito, cada vez mais afetada
com o passar do tempo, faz com que os sujeitos questionem-se sobre suas capacidades.
“chega uma hora que é inevitável pensar que você não consegue
porque não tem capacidade”. (S., 34 anos, analista de marketing,
1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01 filha, 09 meses de
empresa)
O caminho da aceitação parece depender cada vez mais de situações alheias à vontade dos
profissionais que estão em busca de um novo emprego. Precisam ser escolhidos e dependem
de um olhar avaliativo para isso.
O desempregado, já fragilizado, tem que se deparar com as situações de seleção e avaliações.
Isso se complica quando o profissional sente-se, por exemplo: “velho demais”; ou sem uma
exigência constante do mercado, como “seu inglês é fluente”?
“Sinceramente minha auto-estima nunca foi grande coisa, apesar
de saber que não tinha nada a ver com minha capacidade, fiquei
insegura. E me lembro de ter me sentido injustiçada, às vezes, por
conhecer gente que estava bem empregada e que era bastante
mediana ou que não se esforçava muito e as coisas aconteciam
para elas. Me sentia injustiçada pelo destino ou por Deus, sei lá,
por acreditar que tinha tanta capacidade quanto essas pessoas e,
201
no entanto, estava desempregada”. (S., 34 anos, analista de
marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01 filha, 09
meses de empresa)
Além disso, como não considerar um agravante: o tratamento que as empresas e os
recrutadores dentro das empresas oferecem aos desempregados?
A maioria dos profissionais que está desempregado reclama do tratamento que recebe nas
entrevistas de emprego, muitas vezes relatando histórias de humilhações, desrespeito e
preconceito:
“O tratamento que algumas empresas dão... falam com você de
qualquer jeito, jogam seu currículo para lá, acham que você está
à disposição a qualquer hora.... Acho que essas situações vão
deprimindo as pessoas, eles fazem as entrevistas e não te dão
retorno e são situações que você tem que equilibrar, contornar. Se
você se deixar abater, você não sai da cama, fica o dia inteiro
num quarto escuro, chorando”. (G., 32 anos, analista de R.H., 03
meses desempregada, solteira, 02 anos e 03 meses de empresa)
“(...) teve um processo na X e a entrevistadora disse: - quem está
desempregado de um lado e quem está empregado do outro lado.
Distribuiu as folhas e foi liberando as pessoas... ela só mandava
voltar, sem nem mesmo ter lido as folhas, as pessoas que estavam
empregadas. De alguma forma ela já estava desclassificando os
desempregados. Não foi um ataque direto, mas quem prestou
atenção percebeu que ela estava desclassificando as pessoas que
estavam paradas”. (JR., 35 anos, supervisor de sistemas, 02 anos
desempregado, casado, sem filhos, 10 anos de empresa)
“(...) uma pergunta muito difícil de se responder nas entrevistas é:
- o que você tem feito nesse período de desemprego? É muito
difícil fazer o entrevistador entender que a vida está correndo....
Por isso perguntam o que estou fazendo, como se eu não estivesse
fazendo nada... São coisas muito óbvias, que uma pessoa que já
202
passou por um desemprego e for contratar alguém vai saber se a
outra pessoa é corpo mole, se está desatualizado ou não, por
outros métodos investigativos e não por perguntas: - o que você
tem feito nos últimos dois anos?’ De uma certa forma até
invadindo a privacidade, ela não faria isso com uma pessoa que
está empregada por exemplo”. (JR., 35 anos, supervisor de
sistemas, 02 anos desempregado, casado, sem filhos, 10 anos de
empresa)
“O entrevistador quando se depara com o desempregado, se sente
algumas dezenas de patamares superiores. É uma conversa como
se ela estivesse olhando bem para baixo mesmo. Tudo se resume
numa questão de poder. O tratamento é diferente para os que
estão trabalhando, há um respeito. São coisas que quando eu
estava empregado era o contrário, me perguntavam a minha
disponibilidade de horário, não esperava tanto quanto eu espero
hoje... Existe também um preconceito em se contratar um
desempregado... há a insistência naquela questão do ‘por que
você foi demitido?’, ‘como você foi demitido?’” (JR., 35 anos,
supervisor de sistemas, 02 anos desempregado, casado, sem filhos,
10 anos de empresa)
“(...) me deparei com algumas situações que você fala: - Puxa! ..
eu até diria que a pessoa que estava lá na seleção estava
despreparada, não sei se é de fato ou não mas parece que quando
a pessoa está empregada ela tem mais chance do que quem está
desempregado, o que deveria ser o inverso... Continua aquele
estigma: - se a pessoa esta desempregada é porque ela não é boa,
isso ainda acontece muito”. (A., 47 anos, gerente de tecnologia,
04 anos desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de empresa)
“Acham que nunca vai acontecer com elas, você manda o
currículo e as pessoas desmerecem. Essas pessoas, provavelmente,
acham que estão imunes e hoje em dia ninguém está imune”. (S.,
203
34 anos, analista de marketing, 1 ano e 8 meses desempregada,
solteira, 01 filha, 09 meses de empresa)
Assim, o momento da perda do emprego é apenas o início de um processo, que vai se
desenrolar com a própria vivência do desemprego, e que mesmo quando reempregados alguns
cultivarão a dor e o sofrimento, talvez não mais representado pelo desemprego, mas pelas
enormes feridas não cicatrizadas do processo desencadeado pela demissão.
Qualquer perda importante significa inevitavelmente danos e feridas. Para Rudge (2001), o
trabalho de luto, seja ele qual for, envolverá sempre a restauração de um narcisismo
gravemente ferido, restauração que não significa a ausência de marcas permanentes deixadas
pelas perdas.
“(...) a pessoa passa por um momento de ‘down’ porque foi
demitida e não estava esperando. Depois ela tem que se fazer de
‘fênix’, levantar a poeira e ir para cima... às vezes é difícil, porque
ela ainda não conseguiu mastigar aquela situação
adequadamente...“ (A., 47 anos, gerente de tecnologia, 04 anos
desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de empresa)
Fênix, ave mitológica adorada pelos gregos, egípcios e chineses, mesmo em suas variantes
aparece como uma ave de grande porte e de uma beleza incomparável. Considerado um
animal raro, era o único de sua espécie. Com o poder de se reproduzir sozinha, depois de
viver quinhentos anos, faz um ninho nos ramos de um carvalho ou no alto de uma palmeira,
nela junta cinamomo, nardo e mirra, e com essas essências constrói uma pira sobre a qual se
coloca. Morre exalando o último suspiro entre os aromas. Após atear fogo em si própria,
renasce das suas próprias cinzas, surgindo a nova espécie. Símbolo adotado pelo cristianismo
como a representação da ressurreição de Cristo. (Bulfinch, 2001, p.363).
A ave bela e única pode ser entendida aqui como a representante do desejo narcisista. Desejo
este que, segundo Bleichmar (1985), tem em sua essência o “sentir-se único, diferente,
superior a todos os demais, recebendo um olhar que assim o ateste”. (p.15)
Segundo Laplanche (1989), Freud acertou em cheio ao sublinhar que um grande número de
mitos de diferentes culturas, consagrados às origens do fogo (símbolo da libido), contêm o
204
elemento da ave. Na antiguidade, a Fênix, diretamente ligada ao fogo, era o símbolo do falo
que renascia após seu adormecimento ou após sua consumação.
Lidar com o desemprego é sofrer constantes feridas e cicatrizações. Ter que se refazer. É o
que constantemente tem que se fazer e o apoio é necessário.
A essência do mito de Fênix não está somente em como a ave conduz a sua morte, mas em
como conduz a vida. Precisa morrer para renascer, e que o segue são histórias de lutas,
feridas, mas também de redescobertas e de renascimentos:
A., desempregado há quatro anos, fez alguns bicos, abriu alguns negócios, mas todos sem
sucesso. Mesmo trabalhando em alguns projetos temporários, durante muito tempo trabalhou
sem qualquer tipo de remuneração.
“Eu me sinto desempregado na questão da remuneração, não de
trabalho. Eu tenho o trabalho”. (A., 47 anos, gerente de
tecnologia, 04 anos desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de
empresa)
Sua esposa foi quem segurou a situação financeira da família, já que trabalhava e tinha uma
boa remuneração. Mas as coisas pioraram quando a sua esposa também perdeu o emprego.
“(...) depois dela perder o emprego é que a coisa ficou crítica,
estavam os dois desempregados e aí tivemos que segurar... a
preocupação maior eram as escolas das crianças e o que vinha do
fundo de garantia dava pra ir tocando”. (A., 47 anos, gerente de
tecnologia, 04 anos desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de
empresa)
A. deseja retornar ao mercado de trabalho formal, mais pela segurança do que pela satisfação
que teria com isso.
Podemos verificar no relato de A., que o que o ajudou, e que o ajuda, é o apoio da família e a
religião.
“A família é uma coisa importantíssima e eu me sinto um
felizardo. Se eu não tivesse esse suporte eu teria realmente
205
desmontado, pois sou uma pessoa muito agitada, me sinto
agitado, não sei se passo isso para as pessoas, e a religião é uma
coisa interior, minha família é muito católica, sou praticante e
vou à missa todo domingo. Sempre que possível eu penso que isso
é meu gancho. Cada um busca em algum lugar uma força
interior”. (A., 47 anos, gerente de tecnologia, 04 anos
desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de empresa)
Mesmo sabendo que suas chances de retorno ao mercado formal de trabalho são pequenas, já
que as empresas rejeitam profissionais com tanto tempo de desemprego, não perde as
esperanças. Existe algo que é de seu funcionamento próprio, a sensação de apoio e ajuda das
pessoas que ama, o colocam numa situação de batalha.
“Você tem que ir à luta, não vai ficar dependendo de outras
pessoas. Essa busca, essa luta de sobrevivência é muito forte na
minha vida como mensagens dos meus pais”. (A., 47 anos,
gerente de tecnologia, 04 anos desempregado, casado, 02 filhos, 1
ano de empresa)
Isso não significa, é claro, que nesses quatro anos que não conseguiu atingir o seu objetivo,
não tenha se frustrado com as tentativas e que não tenha passado por períodos complicados.
Mas algo o fez não desistir, A. continua trabalhando, mesmo que não esteja empregado, ocupa
seu tempo, o que em parte lhe dá condições para continuar tentando.
“(...) já estive deprimido. De repente você trabalha ali muito
tempo, tem uma dinâmica individual, você tem que apresentar os
produtos da empresa para o diretor, por exemplo, aí você
trabalha, faz e acha que foi bem, mas por algum motivo que
nunca te esclarecem, e isso seria ótimo, você acaba não sendo
designado e naquele momento você fica. Você trabalhou muito
para aquilo e nesse momento não tem mais a única cenourinha
que você tinha e aí você levanta e vai ter de ir atrás de outra
cenoura”. (A., 47 anos, gerente de tecnologia, 04 anos
desempregado, casado, 02 filhos, 1 ano de empresa)
206
A história de JR., como a da A., comove pela força e pelo empenho. Com fala pautada e
sempre mantendo a calma, JR. contou com muita dor todas as perdas com as quais teve que
lidar, não só logo após sua demissão, mas durante esses dois anos em que esteve
desempregado.
As rejeições constantes que sofreu, a perda dos amigos e a quebra de vínculos que para ele
fizeram parte de um processo difícil e penoso. Mas como A., JR. também teve o apoio de sua
esposa, que sempre demonstrou muita paciência e, segundo ele, bom senso para conseguir
postergar alguns projetos que tinham em mente.
“no dia da demissão, eu trabalhei até às 12h apenas, cheguei em
casa e falei pra ela (esposa): - olha realmente aconteceu, e agora
eles vão marcar um dia para homologação e vamos correr pra
frente, vamos tocar nossa vida, vamos buscar novas
oportunidades”. (JR., 35 anos, supervisor de sistemas, 02 anos
desempregado, casado, sem filhos, 10 anos de empresa)
Nesse período conseguiu emagrecer, passou a fazer esportes e a levar, segundo ele, uma vida
mais saudável.
O tempo de desemprego o fez se desgarrar de alguns preconceitos e medos que tinha, ao
enfrentar algumas situações de mercado:
“Hoje a questão do ‘estou desempregado’ já não é tão presente
porque já gastou e desgastou e eu já enjoei desse rótulo. Embora
eu esteja desempregado, cansei desse estigma”. (JR., 35 anos,
supervisor de sistemas, 02 anos desempregado, casado, sem filhos,
10 anos de empresa)
JR. ficou desempregado dois anos, e no momento do fechamento desta pesquisa recebi a
notícia de que havia conseguido, após tanta batalha, um novo emprego.
S., também desempregada há muito tempo, um ano e oito meses, vive ainda na luta pela sua
tão sonhada independência:
207
“sempre falo que é provisório e já está com cinco anos e continuo
aqui (na casa da mãe). Isso que fico me perguntando, será que
nunca vou ser independente?”. (S., 34 anos, analista de
marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01 filha, 09
meses de empresa)
Aos trancos e barrancos, é como diz que caminha. Teve, durante o período, um problema
muito sério de depressão. Questionava-se sobre o sentido da vida, sobre suas frustrações de
não conseguir estar à altura de uma imagem idealizada por seus pais.
“Todo mundo dizia que era inteligente. Ou todo mundo me
enganou ou absolutamente não sei fazer uso disso”. (S., 34 anos,
analista de marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01
filha, 09 meses de empresa)
Fala sobre a cobrança que sente de sua família:
“Minha mãe cobra muito, não só de mim, mas de todo mundo que
esta à volta dela. Ela é muito perfeccionista e exigente, parece
uma patrulha, qualquer deslize será apontado”. (S., 34 anos,
analista de marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01
filha, 09 meses de empresa)
“(...) meu pai ficava ligando: - E ai, você arranjou alguma coisa?
Tem alguma novidade? Respondia que se tivesse arrumado já
teria avisado. Sei que era com boa intenção, mas parece que é
uma cobrança a mais. Parece que a pessoa está falando: - Não
esquece de se mexer hoje, ta?”. (S., 34 anos, analista de
marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01 filha, 09
meses de empresa)
“Minha mãe, obviamente, como não tem muita fé em mim e acha
que o fato de eu ter sido demitida da X tem a ver com o fato de eu
ter ficado sem estudar por dois anos quando tinha 17 anos (nem
me abalo mais em entrar nesta discussão, por ser completamente
absurda), ficou mais preocupada”. (S., 34 anos, analista de
208
marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01 filha, 09
meses de empresa)
Conta que o que sempre desejou foi seguir uma carreira acadêmica, mas optou por um
caminho mais responsável por causa de sua filha. S. conta que já fez a opção de voltar para
aquilo que abandonou, que é o sonho de estar na sala de aula.
“Foi o desemprego que me fez refletir e escolher voltar ao
caminho acadêmico. Na verdade eu sempre me senti meio que um
‘peixe fora d’água’ nas empresas que trabalhei”. (S., 34 anos,
analista de marketing, 1 ano e 8 meses desempregada, solteira, 01
filha, 09 meses de empresa)
Mas, mesmo assim, não se sente confortável com a escolha, porque ainda
considera-se desempregada.
“Não penso em mudar mais, mas é também complicado, porque é
um desemprego”. (S., 34 anos, analista de marketing, 1 ano e 8
meses desempregada, solteira, 01 filha, 09 meses de empresa)
Mesmo com as crises de pânico e depressão controladas, já que ultimamente não tem mais
crises, reclama da forte ansiedade que sente.
“tenho fases em que estou ótima, que falo ‘pô’ estou bem, as
coisas estão difíceis, mas tenho onde morar, minha filha está
numa ótima escola e você fica brincando de Poliana. Vai demorar
mais estou indo”. (S., 34 anos, analista de marketing, 1 ano e 8
meses desempregada, solteira, 01 filha, 09 meses de empresa)
G., que começou a trabalhar muito cedo, sempre teve em mente a grande responsabilidade de
cuidar de sua família.
“Tenho que estar empregada, porque sou arrimo de família,
ninguém me ajuda... ”. (G., 32 anos, analista de R.H., 03 meses
desempregada, solteira, 02 anos e 03 meses de empresa)
“Tenho sorte, porque emocionalmente sou uma pessoa de fibra,
quando meus pais se separaram eu tinha três anos, comecei a
209
trabalhar com 15 anos, então já passei por várias coisas, cheguei
a passar fome para pagar a faculdade, aquelas coisas terríveis”.
(G., 32 anos, analista de R.H., 03 meses desempregada, solteira,
02 anos e 03 meses de empresa)
Em muitos momentos demonstrou um certo desprezo pelo que sentia, e pelas representações
que o desempregado possui na sociedade. Acredita que sentir pena das pessoas que estão
nessa situação não leva a nada.
“Tem alguns momentos na vida que você tem que pegar e
assumir, não dá para ficar o tempo todo pensando nas coisas
ruins que podem acontecer. Estou nessa expectativa e tenho essa
coisa de ir para frente, vamos lá, vai dar, vai dar, vai acontecer,
para frente alguma coisa boa vai acontecer e, assim vou
caminhando”. (G., 32 anos, analista de R.H., 03 meses
desempregada, solteira, 02 anos e 03 meses de empresa)
Remontando constantemente sua história de sacrifício e de luta, não era permitido desistir. A
sua história de sofrimento, sem dúvida, lhe dera uma outra perspectiva. Aos 32 anos
demonstrava muita maturidade:
“as pessoas te vêem hoje, acham que foi fácil, não sabem o que a
‘gente’ passou antes para ter uma posição mais tranqüila. Mas
quantas vezes só almoçava, chegava na faculdade morrendo de
fome e só ia comer, uma hora da manhã, quando chegava em
casa. Passava pela cantina e sentia aquele cheiro do lanche e não
tinha um real para comer”. (G., 32 anos, analista de R.H., 03
meses desempregada, solteira, 02 anos e 03 meses de empresa)
N. teve muita dificuldade de se desligar da empresa em que havia trabalhado durante 17 anos.
Passou por um período de tentativas constantes de compreensão. Sentia que algo ainda estava
preso naquela relação que não a permitia seguir em frente.
Demorou algumas semanas para se acostumar com a ‘nova vida’. Acostumada, palavra que
tantas vezes usou para falar de sua relação com o trabalho e com a empresa.
210
Com medo de um futuro incerto, a incerteza fez parte de sua vida durante muito tempo. Frente
ao mercado exigente, seus medos e fantasmas só aumentavam.
Conseguiu sair para procurar emprego somente três meses após sua saída, porque o medo
tomou conta. Medo de não conseguir, medo de ser rejeitada:
“a gente só escuta mesmo falar que lá fora esta difícil”. (N., 47
anos, analista contábil, 03 meses desempregada, divorciada, 02
filhos, 17 anos de empresa)
N. se achava velha demais para um mercado que valorizava a jovialidade e não a experiência.
“A idade pesa muito aí fora, você vê muitas pessoas com 20, 19
anos que tem faculdade, línguas, foram morar fora, no exterior,
eles podem não ter o conhecimento da prática, mas tem teoria
estudo... a idade pesa bastante”. (N., 47 anos, analista contábil, 03
meses desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
Mas apesar de ser um período difícil, foi também uma chance de descoberta. Reconstruiu em
sua vida espaços inexistentes ou perdidos.
“Dizia: - amanhã eu faço, amanhã eu faço. E acabava não
fazendo. Aí aproveitei, fui viajar, descansei, resolvi meus
problemas”. (N., 47 anos, analista contábil, 03 meses
desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
Relatou que sente-se hoje mais descansada e com mais tempo para si, e que as pessoas
também perceberam nela uma mudança.
“hoje estou bem, estou descansada... até as pessoas dizem que
estou mais bonita, estou melhor. Porque também era muita
correria, muitos anos e agora tenho tempo pra mim. Antes eu não
tinha eu, me preocupava com outras pessoas, com os filhos, com
pai e mãe, eu mesma, minha vida pessoal não dava, agora tenho
tempo até demais. (N., 47 anos, analista contábil, 03 meses
desempregada, divorciada, 02 filhos, 17 anos de empresa)
211
Mas mesmo o fato de descobrir-se envolve sofrimento. A solidão atormentou-a. A perda de
objetivos, que deixou na empresa, a deixaram sem perspectivas, a fizeram pensar também
sobre sua vida, sobre alguns valores.
R., conformado com a incerteza e com a insegurança presente hoje no mercado de trabalho,
reconhece e é compreensível, principalmente pelo seu histórico, que a relação dele com
qualquer empresa sempre será instável.
“(...) sempre tive uma certeza em todas as companhias que eu
trabalhei: você vai ser demitido um dia ou outro hoje, é muito
difícil você trabalhar 40 anos numa mesma empresa porque as
empresas tem muitas mudanças políticas, de mercado, o que é
bom hoje, não é bom amanhã, é uma coisa certa, um dia ou outro
você vai sair”. (R., 47 anos, gerente comercial, 10 meses
desempregado, casado, 02 filhos, 08 anos de empresa)
Com um histórico de desemprego anterior, encontrou mais dificuldades dessa vez com a
aceitação do mercado, do que da primeira vez que perdeu o emprego, apesar de, segundo ele,
ter sido uma experiência mais traumática, por ter sido a primeira vez.
Teve que se conformar com a falta de perspectiva e com a angústia do futuro. R., sempre
demonstrando muita agitação e impaciência, teve que enfrentar um mercado restrito para seu
nível hierárquico.
Sempre na expectativa de encontrar explicações para sua situação, principalmente para a sua
falta de ‘visibilidade’ no mercado, já que frisou a grande dificuldade de ‘ser notado’,
demonstrava algumas vezes alterações de humor, raiva e descontentamento.
Ao mesmo tempo em que fala sobre a incerteza do trabalho na organização, não deixa de
demonstrar vontade de sentir-se novamente envolvido na dinâmica empresarial, que lhe
garantia reconhecimento e status.
Demonstrou satisfação em ser reconhecido pelas posições em que ocupou e pelo poder que
tinha:
212
“eu tive bastante destaque em todas as posições. Foi bastante
engrandecedor, aprendi muito, tive oportunidade de realizar
grandes trabalhos, com vários níveis de graduação,
responsabilidades e poder”. (R., 47 anos, gerente comercial, 10
meses desempregado, casado, 02 filhos, 08 anos de empresa)
“Fui gerente, antes também fui engenheiro de adaptações
especialista nacional, regional, depois gerente de
desenvolvimento, depois gerente de filial em Campinas, Belo
Horizonte, gerente medicinal e industrial, foi aí que eu tive um
desempenho e um desenvolvimento muito grande, porque toda a
filial estava sob minha responsabilidade”. (R., 47 anos, gerente
comercial, 10 meses desempregado, casado, 02 filhos, 08 anos de
empresa)
“(eu) tinha um salário muito alto, era uma pessoa que tinha
muito destaque”. (R., 47 anos, gerente comercial, 10 meses
desempregado, casado, 02 filhos, 08 anos de empresa)
O ‘trabalho de procurar emprego’ era algo que o exauria, já que gastava muita energia e tinha
muito pouco resultado. Para ele, ficar em casa era “uma porcaria! Eu trabalho 15hs por dia
fazendo a mesma coisa”. (R., 47 anos, gerente comercial, 10 meses desempregado, casado,
02 filhos, 08 anos de empresa)
R. buscou novamente a segurança. Descobriu que o importante era ser valorizado e ter uma
atividade dinâmica, que lhe desse reconhecimento. No fechamento dessa pesquisa, R. estava
empregado numa grande organização, fora de São Paulo.
Ge. como G., R., e A., possuía um histórico de desemprego anterior. Na verdade, já foi
mandado embora três vezes e sentia-se pressionado e, novamente, em uma situação de
desgaste financeiro e familiar, sendo isso para ele um grande complicador.
“Tenho vivo na memória tudo, até as pessoas com quem
conversei, o que conversei...”. (Ge., 42 anos, supervisor de
produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos, 04 anos de
empresa)
213
A preocupação com a família, e principalmente com a esposa, é uma constante em seu
processo.
“Minha esposa é muito mais preocupada e mais tensa, é uma
característica dela. Tento mantê-la mais calma.“ (Ge., 42 anos,
supervisor de produção, 20 dias de desemprego, casado, 02 filhos,
04 anos de empresa)
Vivencia a situação com muita humildade e, apesar da pressão, conta que é nesses momentos
que consegue ter mais clareza e bom senso para lidar com a situação.
“(...) o desespero não leva a nada, faz perder a noção do sentido.
Em momentos de grande pressão é onde eu consigo ter mais
clareza e tenho conseguido os melhores resultados, talvez porque
os outros, nesse momento, não tenham domínio... passei a
associar que no momento de pressão tenho bom resultado pessoal.
Não que melhore, mas não gosto de pensar nisso, aprendi a
gostar de momentos de pressão como oportunidade de mostrar
resultados”. (Ge., 42 anos, supervisor de produção, 20 dias de
desemprego, casado, 02 filhos, 04 anos de empresa)
Na verdade, Ge. encontrou uma maneira para lidar com as frustrações. De alguma maneira,
acredita nesse fortalecimento. Mas, em alguns momentos deixa escapar palavras soltas como:
“desespero”, “isso por dentro da gente é muito complicado”, “preocupação”.
Para ele, a vida social se tornou um problema.
Também em seu relato, deixou claro que o fato de ter vivenciado a situação complicada de um
de seus irmãos, que passou por um problema parecido, mas que não conseguiu se reerguer, o
deixou mais alerta para as conseqüências daquela situação.
“meu irmão passou por um momento muito crítico quando saiu
da X, depois de 20 anos. Ele montou uma loja de acessórios, e
quando montou o ego dele foi lá em cima. A loja não deu certo,
afundou e ele se afundou também, mais do que deveria.
Escondeu-se, percebo que quem tem fraqueza se perde, vai beber,
214
fumar, ainda mais se tem algum vício, vai se fragilizar ainda
mais. (Ge., 42 anos, supervisor de produção, 20 dias de
desemprego, casado, 02 filhos, 04 anos de empresa)
Também por isso ele devesse se manter forte.
E., nesse meio tempo, conseguiu um trabalho que segundo ele tem o deixado muito mais
tranqüilo:
“Eu se não tivesse fazendo esse trabalho com certeza nosso papo
seria outro, eu não estaria com a auto-estima que estou hoje, com
certeza. Eu estaria menos otimista, mais inseguro”. (E., 36 anos,
controller, 04 meses desempregado, casado, sem filhos, 11 meses
de empresa)
O fato de estar trabalhando, mesmo que temporariamente, tornou seu trajeto muito mais
tranqüilo. Além disso, o fato de ter sido sua última experiência de emprego muito desgastante,
foi a sensação de alívio que prevaleceu em seu relato.
E. conseguiu falar sobre coisas que os outros não conseguiram, sobre prazer principalmente.
“Sempre vi meu pai saindo cedo e voltando tarde, sempre falando
da importância do trabalho, é aquela coisa que dignifica o
homem, e de fato quando você vai tomando consciência das
coisas, você vai vendo que é isso mesmo, que as coisas não caem
do céu”. (E., 36 anos, controller, 04 meses desempregado, casado,
sem filhos, 11 meses de empresa)
Para E., as pessoas nunca devem se ver como desempregados ou sentirem-se inferiores a
quem está empregado. Devem se valorizar e ver até onde podem chegar, até onde têm
capacidade e lutar.
215
VIII. CONSIDERAÇÕES FINAIS
“Conheci a face escura do desemprego quando meu pai vendeu sua farmácia central, Salva Sempre, e
mudou-se para São Paulo sem ter emprego fixo. O velho tinha história na farmácia... o desemprego é
feroz. Não respeita história, competência, seriedade, humilha, liquida com a auto-estima.. Seu Oscar
veio para São Paulo machucado, mas guerreiro. Foi de porta em porta, ofereceu-se como
farmacêutico para seus pares, distribuiu currículo, chegou a escrever algumas crônicas em sua velha
Remington, na esperança de que sua segunda profissão, jornalista amador, pudesse ser uma saída.
Não parou de lutar por nenhum minuto até conseguir emprego de vendedor da Coleção Nobel. Foi
para Poços e procurou, um a um, amigos e antigos desafetos para vender livros. E continuou lutando,
tentando, até conseguir emprego de farmacêutico, fazendo manipulação de fórmulas em uma clínica
de emagrecimento na zona leste. Depois, alugou uma casa e conseguimos reunir de novo os cinco
filhos, espalhados por casas de parentes... Pouco a pouco, seu Oscar foi se refazendo. Foi juntando
seu dinheirinho, economizando, até o dia em que conseguiu comprar uma linha telefônica. Foi a
primeira vitória de um longuíssimo período, em que se limitou a vender, um a um, todos os seus bens.
Durou pouco a sensação de vitória. Poucos dias depois, cheguei em casa à noite, me preparando para
viajar para Poços no dia seguinte. Era 1974. Ele me pegou na sala afobado, com as pupilas dilatadas,
bem do modo dos Nassif, depois de certa idade, daquele jeito do seu primo Armando Bogus no final
da vida., o Conselho Regional de Farmácia de São Paulo estava recusando seu registro, porque o
nome no diploma era Sckhair, e no documento de identidade era o Oscar que assumira com a
naturalização, em 1967. Ele, o mais mineiros dos poços-caldenses, na opinião do amigo Lindolfo
Carvalho Dias, chegou a Poços com dez anos de idade, vindo da Argentina. Quando conseguiu a
naturalização, muitas décadas depois, fez a maior festa que nossa casa presenciou. Juntou todos os
amigos, exibindo um sorriso esfuziante, devidamente registrado em várias fotos que guardo no álbum
de família. A praga da burocracia vinha atormentá-lo, logo agora que a longa corrida de obstáculos
parecia estar chegando ao fim, depois de anos tentando vender a farmácia, depois do momento duro
da venda da casa, da chegada a São Paulo, do aluguel da nova casa, da reunificação dos filhos
debaixo do mesmo teto, do emprego duramente conquistado. Viajei no dia seguinte para Poços
carregado de pressentimentos. Cheguei lá e soube que os políticos da Arena tinham comprado o
jornalzinho que eu havia ajudado a fundar. Briguei com meus ex-sócios, perdi a cabeça e fui esfriar
de noite, em uma rodada de música na represa Saturnino de Brito. Coube ao Sérgio Manucci, com
quem eu brigara à tarde, ir até lá para me avisar que meu pai tinha sido derrubado por um derrame.
Sobreviveu com seqüelas, mas sua luta terminara ali. Separei um resto de salário, comprei a
"Farmacopéia" e o presenteei, mas ele já tinha desistido. Por isso, cada vez que vejo esses
economistas e políticos com suas formulações absurdas, com a insensibilidade dos que destroem
países sem se incomodar com os efeitos sobre famílias e pessoas, quando vejo o desemprego se
espalhando, me recordo do velho e o vejo, como a milhares de pessoas, na música de Gonzaguinha:
216
"Um homem se humilha / se castram seus sonhos / Seu sonho é sua vida / e vida é trabalho / E sem o
seu trabalho / o homem não tem honra / E sem a sua honra / se morre, se mata...” (Nassif, 2004, p.B3)
Não há dúvida de que um dos grandes problemas que nossa sociedade enfrenta hoje é o
desemprego. Tema de diversos debates, tornou-se um ‘bom assunto’ para plataformas
políticas e discussões unilaterais, que não produzem um debate eficaz, já que excluem das
discussões todas as suas dimensões.
Acredito que Nassif (2004) captou a verdadeira problemática com a qual o desemprego hoje é
tratado quando ponderou: “cada vez que vejo esses economistas e políticos com suas
formulações absurdas, com a insensibilidade dos que destroem países sem se incomodar com
os efeitos sobre famílias e pessoas...”.
Isso é o que ocorre na maioria das vezes, e o risco dessa atitude é tornar as conseqüências do
desemprego banalizadas.
Concordo com Forrester (1997), quando diz que o desemprego está privado de seu verdadeiro
sentido, pois nefasto é o sofrimento que ele gera.
A dimensão subjetiva do problema do desemprego ainda é tímida, mas essencial para
contribuir com um debate, já que a percepção do sofrimento humano na trajetória daquele que
perdeu o emprego modifica a forma de apoio ao desemprego nas políticas públicas; a forma
como tratamos o desempregado e o desemprego e a forma como tratamos o problema em
nosso lar.
Mas, como também não quero tornar-me unilateral na discussão do problema desemprego, se
há a questão singular do sujeito com o sofrimento que o desemprego pode causar nele e em
sua família, há, também, a questão da objetividade social, que pode se tornar mais do que um
mero desencadeante.
O desemprego é estrutural e um desempregado não é mais um problema de ordem passageira.
A segurança no emprego não existe mais. Boas escolas e universidades não garantem mais um
emprego, e o ‘mercado de trabalho’ torna-se tão perverso e seletivo que qualquer um com
mais de 40 anos pode tornar-se velho demais para um mercado preconceituoso.
217
As conseqüências do desemprego, e principalmente a perda do emprego, têm relação com
aquilo que foi construído na relação sujeito e organização, e na relação trabalho e sociedade.
O sujeito que perdeu um referencial, antes assumido pelos ideais da organização, tem suas
relações com o mundo e suas próprias referências alteradas. Isso por que a cultura e a
sociedade possuem uma grande importância no processo de constituição do sujeito.
Compreender como nossa sociedade lida com os aspectos do trabalho é mais do que
necessário para a compreensão do problema do sujeito desempregado, e o significado do
trabalho ganha toda sua magnitude ao ser analisado na perspectiva da perda do emprego.
Freud (1930) já havia apontado que o homem primevo descobriu que estava literalmente em
suas mãos melhorar a sua sorte na Terra através do trabalho e que “não lhe pode ter sido
indiferente que outro homem trabalhasse com ele ou contra ele. Esse outro homem adquiriu
para ele o valor de um companheiro de trabalho, com quem era útil conviver”. (Freud, 1930,
p.119)
Os laços que fundaram a família continuaram a operar na civilização, e a vida comunitária
teve segundo Freud (1930), um fundamento duplo: a compulsão para o trabalho e o poder do
amor.
Para Pellegrino (1984), foi através da família que o sujeito começou a adquirir, por meio do
aprendizado, uma competência que lhe permitiria, no futuro, por mediação do trabalho,
tornar-se sócio pleno da sociedade humana.
Mas se há aquilo que está sendo representando pelo contexto familiar e social, há algo
escondido que pode ser sua própria essência. O trabalho possui um significado independente
das relações empregatícias ou institucionais. Há, sem dúvida, um significado maior, um
sentido.
O que faz do trabalho tão essencial à vida?
O ‘trabalho’, em o ‘Mal estar na civilização’ (1930), aparece como conseqüência do pacto e
dos sacrifícios inevitáveis, já que não podemos fugir das armadilhas da civilização. Freud
coloca: “Trabalha-se, então, com todos, para o bem de todos”. (Freud, 1930, p.96)
218
Para Freud (1930), a produção de prazer, a partir das fontes do trabalho psíquico e intelectual,
é possível e possui uma qualidade especial:
“Uma satisfação desse tipo, como, por exemplo, a alegria do
artista em criar, em dar corpo às suas fantasias, ou a do
cientista em solucionar problemas ou descobrir verdades,
possui uma qualidade especial que, sem dúvida, um dia
poderemos caracterizar em termos metapsicológicos”.
(Freud, 1930, p.97)
Essa afirmação nos coloca diante do movimento da sublimação.
Para Laplanche (1989) a sublimação é certamente uma das cruzes (em todos os sentidos do
termo: ao mesmo tempo um ponto de convergência, de cruzamento, mas também o que põe na
cruz) da psicanálise e uma das cruzes de Freud. Isso porque, segundo o autor, a trajetória de
Freud nesse terreno está repleta de hesitações, é mais citada do que propriamente analisada.
Seria mais um indicativo de um questionamento necessário, uma tarefa a realizar.
A sublimação, um dos destinos possíveis das pulsões, é um processo postulado por Freud para
explicar atividades humanas sem qualquer relação aparente com a sexualidade, mas que
encontrariam o seu elemento propulsor na força da pulsão sexual. Diz-se que a pulsão é
sublimada na medida em que é derivada para um novo objeto não–sexual, e em que visa
objetos socialmente valorizados. (Laplanche & Pontalis, 1992, p.495)
Devemos nos lembrar que é um conceito que se apresenta desde o início da obra de Freud. Já
em 1895 era citada nas cartas à Fliess e apareceu em algumas de suas obras como: Moral
sexual civilizada e doença nervosa moderna (1908) e Leonardo da Vinci e uma lembrança de
sua infância (1910), onde apontou:
“A observação da vida cotidiana das pessoas mostra-nos que a
maioria conseguiu orientar uma boa parte das forças resultantes do
instinto sexual para sua atividade profissional. O instinto sexual
presta-se bem a isso, já que é dotado de uma capacidade de
sublimação: isto é, tem a capacidade de substituir seu objetivo
imediato por outros desprovidos de caráter sexual e que possam ser
mais altamente valorizados”. (Freud, 1910, p.73)
219
Já em ‘Sobre o narcisismo: uma introdução’, Freud (1914) examinou a relação entre a
formação de um ideal e a sublimação, e alertou para a dificuldade de diferenciar a formação
de um ideal do ego com a sublimação do instinto e ressaltou que um homem que tenha
trocado seu narcisismo para abrigar um ideal elevado do ego, pode não ter sido
necessariamente bem-sucedido em sublimar seus instintos libidinais. Para ele, o ideal do ego
exige a sublimação, mas esse processo, que pode ser estimulado pelo ideal, é inteiramente
independente de tal estímulo.
“A sublimação é um processo que diz respeito à libido objetal, e
consiste no fato de o instinto se dirigir no sentido de uma finalidade
diferente e afastada da finalidade da satisfação sexual; nesse
processo, a tônica recai na deflexão da sexualidade”. (Freud, 1914, p.
102)
A sublimação também vai aparecer e agora com mais freqüência em: As pulsões e suas
vicissitudes (1915), em O ego e o id (1923a), em Além do princípio do prazer (1920).
Mas é em O mal-estar...” que Freud (1930) solidifica o conceito de sublimação. Ao situar o
sujeito numa relação de conflito entre pulsão e civilização, e colocar o sujeito em uma
situação de constante gestão do ‘mal–estar’, anuncia ser a sublimação, uma das técnicas
possíveis para afastar o sofrimento, deslocando a libido e reorientando a pulsão para evitar-se
a frustração do mundo externo.
Com isso, Freud (1930) aponta ser a sublimação do instinto um aspecto particularmente
evidente do desenvolvimento cultural, já que é ela que torna possível às atividades psíquica
superiores, científicas, artísticas ou ideológicas, o desempenho de um papel tão importante na
vida civilizada.
A sublimação e o recalque fazem parte do trabalho da civilização e, segundo Castoriadis
(1982), não são destinos da pulsão que se excluem, mas repartições da energia de
investimentos entre representações antigas e representações /significações alteradas e novas.
Para o autor, a sublimação é a socialização da psique considerada como processo psíquico. É
o processo mediante o qual a psique é forçada a substituir seus ‘objetos próprios’ ou
‘privados’ de investimento, por objetos que são e valem na e pela instituição social, e fazer
para ela mesma ‘causas’, ‘meios’ ou “suportes’ de prazer.
220
“...pela sublimação, enfim, a força pulsional se encaminharia para a
busca de novas ligações e de novos objetos de investimentos”
(Birman, 2001, p.63)
Segundo Freud (1930), não é possível, dentro dos limites de um levantamento sucinto,
examinar adequadamente a significação do trabalho para a economia da libido. Para ele
nenhuma outra técnica prende o indivíduo tão firmemente à realidade, quanto a ênfase
concedida ao trabalho, pois este, pelo menos, fornece-lhe um lugar seguro numa parte da
realidade, na comunidade humana. E complementa:
“A possibilidade que essa técnica oferece de deslocar uma grande
quantidade de componentes libidinais, sejam eles narcísicos,
agressivos, ou mesmo eróticos, para o trabalho profissional, e para os
relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor
que de maneira alguma está em segundo plano quanto ao de que goza
como algo indispensável à preservação e justificação da existência em
sociedade. A atividade profissional constitui fonte de satisfação
especial, se for livremente escolhida, isto é, por meio de sublimação,
tornar possível o uso das inclinações existentes, de impulsos
instintivos persistentes ou constitucionalmente reforçados”. (Freud,
1930, p. 99)
Segundo Birman (2001), pode-se perguntar se a sublimação implicaria, ao mesmo tempo, a
transformação do alvo e a invenção de novos objetos para os circuitos pulsionais, como
enunciou Freud na 2ª teoria da sublimação, contrapondo a primeira, que falava que a
manutenção do objeto originário da pulsão implicaria na dessexualização desta última.
Segundo o autor, nesta nova versão não haveria mais conflito entre sexualidade e sublimação.
Existiria a constituição de outro objeto para a pulsão, e o processo de sublimação consistiria
na transformação da pulsão de morte em pulsão sexual, onde o domínio, e não a cura do
desamparo, é que possibilitaria o sujeito constituir destinos tanto eróticos como sublimatórios
para a pulsão.
É aquilo que o autor chamou de ‘gestão do desamparo’ e que trabalhamos no decorrer da
dissertação, que toma direção bem precisa com o conceito de sublimação. Nessa versão, a
sublimação implica a horizontalização das ligações do sujeito com os outros, pela tessitura de
laços sociais.
221
Assim, as questões relacionadas ao trabalho e sua perda não se limitam ao âmbito do que em
psicanálise se denomina de pulsão de auto conservação. Dizem respeito ao que a psicanálise
mostrou com os fundamentos do principal processo de constituição e formação do laço social
do sujeito humano e abrangem o âmbito do pulsional sexual e da libido.
222
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