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DÉBORA BETÂNIA DE SANTANA
IRONIA: O TEMPERO DA CRÔNICA
(estudo de textos cronísticos de
Luís Fernando Verissimo)
MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
PUC/SP
SÃO PAULO
2006
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DÉBORA BETÂNIA DE SANTANA
IRONIA: O TEMPERO DA CRÔNICA
(estudo de textos cronísticos de
Luís Fernando Verissimo)
Dissertação apresentada à Banca Examinadora da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como
exigência parcial para a obtenção do título de MESTRE,
em Literatura e Crítica Literária, sob a orientação do
Prof. Doutor Fernando Segolin.
MESTRADO EM LITERATURA E CRÍTICA LITERÁRIA
PUC/SP
São Paulo
2006
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Banca Examinadora
..........................................................................................................
..........................................................................................................
..........................................................................................................
4
A uma pessoa muito
especial, Fernando Alves,
meu amado, que sempre
esteve ao meu lado
compartilhando a realização
deste sonho.
5
AGRADECIMENTOS
Ao Prof. Dr. Fernando Segolin, orientador competente, pelo empenho e
por ter me ajudado a entrar no mundo da poesia.
Aos Professores do Programa, pelo carinho e dedicação.
À Banca Examinadora, pelas orientações tão significativas.
À professora Esther Schapochnik, pelo entusiasmo e orientação
tão proveitosas.
À Professora Lizete Penha Inácio, pelo apoio na pesquisa.
À Professora Dra. Vera Cecília Machline, que tão prontamente
me emprestou seus trabalhos e textos.
A Professora Lígia Paula, pelo carinho nas traduções.
Ao Professor Dr. José Gerardo Guimarães, pelas orientações
e pelas palavras de incentivo.
Aos meus pais, pelo amor e carinho de sempre.
E, finalmente, àquele que me concedeu o privilégio do saber: Deus.
6
Escrever bem é escrever claro,
não necessariamente certo.
Por exemplo: dizer ‘ escrever claro’
não é certo mas é claro, certo?”
Luís Fernando Verissimo
7
Resumo
O objetivo deste trabalho foi estudar a função da crônica na história da
literatura brasileira e também as diferentes faces da ironia presentes nos textos
cronísticos de Luís Fernando Verissimo. Estudamos a origem e a teorização do
gênero crônica. Exploramos, ainda, a opinião de alguns críticos literários Portella,
Antonio Candido, Arrigucci sobre este gênero, mostrando como ele está bem
adaptado ao Brasil. Ressaltamos a hibridização e a ironia como suas principais
características. Recorremos a Sócrates e alguns teóricos, como Mucke, Hutcheon,
para entender as origens e a evolução do uso da ironia na literatura. O escritor Luís
Fernando Verissimo serviu de corpus para a pesquisa por ser um cronista
contemporâneo, que utiliza uma linguagem irônica para retratar a sociedade
moderna com suas ambigüidades e indeterminações.
Palavras-chave: LITERATURA, TEORIA LITERÁRIA, CRITÍCA LITERÁRIA,
CRÔNICA, IRONIA.
8
ABSTRACT
The purpose of this research was to study the use of the chronicle in the
history of Brazilian literature and also the different facets of irony in the chronicles of
Luís Fernando Verissimo. The origin of chronicle and the theory about it as a literary
genre is also studied. Besides, we discuss the opinion of some literature critics -
Portella, Antonio Candido and Arrigucci - on this genre, showing how adpated it is to
Brazil. We remark the hybrid form and irony in the chronicle as its main features. We
referred to Socrates and some theorists such as Mucke and Hutcheon to understand
the origins and the evolution of the use of irony in literature. Luís Fernando
Veríssimo’s chronicles were used in this study because he is a contemporary
chronicist who makes use of ironic language to portray modern society with its
ambiguity and indetermination.
Keywords: LITERATURE, LITERATURE AND THEORY, LITERATURE CRITICISM,
CHRONICLE, IRONY.
9
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................11
CAPÍTULO I A CRÔNICA
1.1 HISTÓRIA..........................................................................................15
1.2 HIBRIDIZAÇÃO.................................................................................28
1.3 UM GÊNERO BRASILEIRO..............................................................31
CAPÍTULO II A IRONIA
2.1 ORIGEM E TEORIA..........................................................................35
2.2
CRÔNICA E IRONIA: O CASAMENTO PERFEITO..........................38
CAPÍTULO III LUÍS FERNANDO VERISSIMO
3.1
A VIDA...............................................................................................50
3.2 O CRONISTA....................................................................................51
3.3 A PRESENÇA DA IRONIA EM ALGUMAS CRÔNICAS DE LUÍS
FERNANDO VERISSIMO
3.4 “FARSA”............................................................................................53
10
3.4 “SEXA”...............................................................................................55
3.5 “TERRINHA”......................................................................................56
3..6 “SEGURANÇA”................................................................................58
3.7 “NEGOCIAÇÕES”..............................................................................60
CONSIDERAÇÕES FINAIS.....................................................................63
BIBLIOGRAFIA........................................................................................65
ANEXOS..................................................................................................71
11
INTRODUÇÃO
O objetivo deste trabalho foi estudar a crônica no quadro da moderna
literatura brasileira. Algumas crônicas de Luís Fernando Verissimo constituíram o
corpus de nossa pesquisa.
Na crônica, a idéia de tempo já está contida em seu radical, que vem do
grego chronos tempo. O tempo é sua marca principal, ela registra fatos do
cotidiano, que o autor relata de forma livre e pessoal.
A subjetividade do autor, a busca pelo prazer do leitor e a narrativa
descompromissada fazem da crônica um gênero próximo daquele que a lê,
contemporâneo, que acompanha as transformações de sua época, atualizando-se.
Sabemos que os gêneros literários sofrem adaptações e absorvem novas
características da sociedade a que são contemporâneos. A crônica não foge a esta
regra, é um gênero que tende a se manifestar de modo duradouro, inclusive nas
mídias mais atuais, como a Internet, que se utiliza do Blog, uma ferramenta virtual
que permite aos usuários colocar conteúdos na rede e interagir com outros
internautas com textos próximos da crônica por sua leveza e diversidade de temas.
A crônica está aumentando seu espaço no universo literário, gerando até
críticas, pelo número de antologias do gênero publicadas e que nem sempre
apresentam uma boa relação entre a quantidade e a qualidade, como afirma
Massaud Moisés (2001) .
A cultura atual muda com uma velocidade brutal, com a globalização e a
Internet nada mais pode ser estável e definido. Os conceitos mudam a todo momento
no mundo e a crônica acompanha essa evolução.
12
Candido (1997) considera que : (...) “No Brasil, ela tem uma boa história, e até
se poderia dizer que, sob vários aspectos, é um gênero brasileiro, pela naturalidade
com que se aclimatou aqui e a originalidade com que se desenvolveu.
Afrânio Coutinho (2004) comenta que, quando se destacou no folhetim por ter
assumido a sua personalidade, a crônica, cresceu de importância literária, revestindo-
se da cor nacional, tornando-se um dos gêneros que tem mais características
brasileiras no estilo, na língua, nos assuntos, tomando proporções inéditas até aquele
momento no Brasil.
A crônica, para alguns críticos, entre eles Antonio Candido, é um gênero
menor, para outros, como Eduardo Portella, é maior. E há ainda aqueles que a
consideram subliteratura, como o cronista Rubem Braga, talvez ironizando sua
própria condição.
Para estudar a diversidade de posicionamentos referentes a esse gênero, e
sua sintonia com escritores de várias épocas, recorremos a algumas definições. Já
consagradas por escritores e críticos, elas reforçam a idéia da hibridização desse
nero:
“ Alguém já disse que crônica é a literatura sem tempo. O trabalho que eu
faço - a crônica é justamente a junção da literatura ( muito presente na
obra do meu pai) e do jornalismo ( minha especialidade). Outro ponto em
comum é a informalidade com que eu e meu pai procuramos escrever
nossos textos”. (LUÍS FERNANDO VERISSIMO,1998)
“ A crônica não é um ‘gênero maior’ . Não se imagina uma literatura feita de
grandes cronistas, que lhe dessem o brilho universal dos grandes
romancistas, dramaturgos e poetas. Nem se pensaria em atribuir o Prêmio
Nobel a um cronista, por melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a
crônica é um gênero menor.
13
‘ Graças a Deus’ , seria o caso de dizer, porque sendo assim ela fica perto
de nós. E, para muitos, pode servir de caminho não apenas para a vida,
que ela serve de perto, mas para a literatura (...).
Por meio dos assuntos, de composição aparentemente solta, do ar de
coisa sem necessidade que costuma a assumir, ela se ajusta à
sensibilidade de todo o dia. Principalmente porque elabora uma linguagem
que fala de perto ao nosso modo de ser mais natural.” (ANTONIO
CANDIDO, 1998)
“Por se tratar de um texto híbrido, nem sempre apresenta uma narrativa
completa; uma crônica pode contar, comentar, descrever, analisar. De
qualquer forma, as características distintivas da crônica são: texto curto,
leve, que geralmente aborda temas do cotidiano.” (GANCHO, 2001)
“A estrutura da crônica é uma desestrutura: a ambigüidade é a sua lei. A
crônica tanto pode ser um conto, como um poema em prosa, um pequeno
ensaio, como as três coisas simultaneamente. Os gêneros literários não se
excluem: incluem-se. O que interessa é que a crônica, acusada
injustamente como um desdobramento marginal ou periférico do fazer
literário, é o próprio fazer literário. E quando não o é, não é por causa dela,
a crônica, mas por culpa dele, o cronista. Aquele que se apega à notícia,
que não é capaz de construir uma existência além do cotidiano, este se
perde no dia-a-dia e tem apenas a vida efêmera do jornal. Os outros, esses
transcendem e permanecem.” ( PORTELLA, 1979)
“ A crônica não é literatura, e sim subproduto da literatura, e está fora do
propósito do jornal. A crônica é subliteratura que o cronista usa para
desabafar perante os leitores. O cronista é um desajustado emocional que
desabafa com os leitores, sem dar a eles oportunidade para que rebatam
qualquer afirmativa publicada. A única informação que a crônica transmite
é a de que o respectivo autor sofre de neurose profunda e precisa
desoprimir-se. Tal informação, de cunho puramente pessoal, não interessa
ao público, e portanto, deve ser suprimida”. (BRAGA, 1980)
14
Fazem parte de nossa pesquisa, além desta introdução, três capítulos, as
considerações finais, a bibliografia e anexos.
No capítulo I, A crônica, mostramos que, na origem, a crônica era um texto
de cunho histórico, que registrava os fatos , como a carta de Pero Vaz Caminha ao
rei D. Manuel, encontrada em 1773 na Torre do Tombo, que narra a descoberta do
Brasil e é considerada a primeira crônica brasileira. Os reis contratavam cronistas
para registrar as histórias do seu reino e, com o passar do tempo, foi evoluindo e
ganhando seu espaço no universo da literatura. Hoje, é um gênero dos tempos
modernos.
No capítulo II, A ironia, abordamos o conceito de ironia, sua importância no
contexto literário moderno e sua interação com a crônica. Recorrendo a teóricos com
Muecke e Hutcheon dentro outros, mostrarmos a evolução da ironia desde sua
origem em Sócrates.
No capítulo III, Luís Fernando Verissimo, apresentamos os dados biográficos
do autor aqui estudado, sua posição como cronista e a análise de algumas de suas
composições. Nelas, a ironia, a temática do cotidiano, a subjetividade do escritor, o
cômico e tantas outras características fazem que seus livros sejam bastante
apreciados pelo público atual.
15
CAPITULO I - A CRÔNICA
1. 1 HISTÓRIA
O Mito
A palavra crônica vem do grego khronos, que significa tempo. Em
português, ela possui vários significados, e todos mostram sua relação com a idéia
de tempo. Como gênero literário, a crônica tece a continuidade do gesto humano
na tela do tempo “ explica Arrigucci Jr. (1987, p.51). Assim, ela nos permite voltar ao
presente com naturalidade ao narrar fatos, uma das marcas de nossa relação com
a humanidade.
Lembrar e contar fatos, além de resgatar a história, são atitudes comuns ao
homem. Por isso, na crônica, o assunto não é a questão de maior importância. Ele
pode ser político, esportivo ou a violência nas relações sociais. O que lhe interessa
é a brevidade do instante, os pequenos momentos da condição humana talvez
porque “ A arte de narrar tende para o fim porque o lado épico da verdade, a
sabedoria, está agonizando.” como afirmava Walter Benjamin (1980, p. 57).
A crônica sempre se prende à atualidade, embora não exclua a nostalgia do
passado. Ela nos faz pensar sobre os mais diversos temas até os corriqueiros que,
muitas vezes, escapam aos nossos olhos. Esses aspectos nos levam a recorrer à
mitologia clássica, para entendê-la. Assim recordemos o mito de Cronos:
O deus Cronos, filho de Urano (o Céu) e Terra), destronou o
pai e casou com a própria irmã Réia.Urano e Gaia, conhecedores do
futuro, predisseram-lhe, então, que ele seria, por sua vez, destronado
por um dos filhos que gerasse. Para evitar a concretização da
profecia, Cronos passou a devorar todos os filhos nascidos de sua
união com Réia. Até que esta, grávida mais uma vez, conseguiu
enganar o marido, dando-lhe a comer uma pedra em vez da criança
recém-nascida. E, assim, a profecia realizou-se: Zeus, o último da
16
prole divina, conseguindo sobreviver, deu a Cronos uma droga que o
fez vomitar todos os filhos que havia devorado. E liderou uma guerra
contra o pai, que acabou sendo derrotado por ele e os irmãos.
(LAURITO, 1993, p.10)
Cronos é a personificação do tempo e podemos entendê-lo como uma
alegoria representativa do : a) tempo em sua passagem fatal, engolindo tudo o que é
criado e tudo o que é criatura. b) tempo que, ao devolver algo não é mais o original,
mas uma lembrança, uma releitura. c) tempo que preserva tudo o que há de mais
importante para o ser humano e se configura como memória.
Um fator importante para que a crônica seja um gênero de leitura atraente é a
sedução
1
. Mas o valor da crônica depende da sutileza e do talento do cronista, diz
Eduardo Portella ( 1979, p.54):
O que interessa é que a crônica, acusada injustamente
como um desdobramento marginal ou periférico do fazer literário, é o
próprio fazer literário. E quando não o é, não é por causa dela, a
crônica, mas por culpa dele, o cronista.
Como bem enfatizou Portella, personagens e espaços reais, na boa
crônica, se transformam em espaços ficcionais, em histórias que aprisionam a
atenção do leitor. Este percebe que o autor transforma em ficção o que antes era
apenas um fato histórico. É o que diz Margarida de Souza Neves, em seu artigo
Uma escrita do tempo: memória, ordem e progresso nas crônicas cariocas, quando
fala do espírito do tempo, presente na crônica, mostrando a interação entre ficção e
história.
No entanto, para o período que nos ocupa, a crônica aparece
como portadora por excelência do ‘espírito do tempo’, por suas
características formais como por seu conteúdo, pela relação que nela
se instaura necessariamente entre ficção e história, pelos aspectos
aparentemente casuais do cotidiano, que registra e reconstrói, pela
complexa trama de tensões e relações sociais que através delas é
possível perceber. Pela ‘cumplicidade lúdica’ enfim, que estabelece
entre autor e possível leitor no momento de sua escrita e que parece
reproduzir-se entre historiador e o tempo perdido em busca do qual
arriscamos nossas interpretações, ainda que sempre ancorados em
nosso tempo vivido. (NEVES, 1992, p. 82)
1
Sedução é entendida, neste texto, como: “o conjunto de qualidades que despertam em outrem
simpatia, desejo, interesse etc.” (HOUAISS, 2001, p. 2534)
17
O tempo na crônica e o tempo e a crônica
Ao pesquisar sobre o gênero crônica, percebemos a vinculação entre os
fatos narrados e o conceito de cronologia, isto é, percebemos que os assuntos
tratados obedecem a uma relação tempo/espaço. E isso se deve à própria
etimologia da palavra que dá nome ao gênero. Essa estreita relação entre os
termos crônica e tempo não pode ser negligenciada quando pretendemos
demonstrar que a crônica atual é o produto evoluído de um gênero outrora já
experimentado. Os primeiros cronistas portugueses prendiam-se à observação e ao
registro dos fatos. Estavam preocupados com a história objetiva, vinculando o
tempo à memória. Nos dias atuais, a subjetividade do cronista é a maior
característica desse gênero, porém o tempo continua presente, só que agora o
tempo é aquele vivido também pelo cronista e dominado por suas impressões e
expectativas.
A idéia de tempo está presente não apenas na etimologia da palavra
crônica, mas continua a perpetuar-se em todas as suas modalidades, conforme
afirma Davi Arrigucci Jr. ( 1987, p.51):
São vários os significados da palavra crônica. Todos, porém
implicam a noção de tempo, presente no próprio termo, que procede
do grego chronos. Um leitor atual pode não se dar conta desse
vínculo de origem que faz dela uma forma do tempo e da memória,
um meio de representação temporal dos eventos passados, um
registro da vida escoada. Mas a crônica sempre tece a continuidade
do gesto na tela do tempo (grito do autor). (ARRIGUCCI, 1987, p.
51)
O tempo também pode aparecer na crônica como um rival do cronista, que
briga com as horas para cumprir a data de entrega do seu texto para o jornal, ou na
eterna luta contra a falta de assunto, quando a rotina quer esmagar a criatividade e
18
as palavras somem. Não ter o que dizer pode levar o cronista a refletir sobre o
próprio gênero e a produzir textos metalingüísticos. Luís Fernando Verissimo em
sua metacrônica diz:
A discussão sobre o que é crônica é que ela é quase tão
antiga quanto aquela sobre a genealogia da galinha. Se um texto é
crônica, conto ou outra coisa interessa aos estudiosos da literatura,
assim como se o que nasceu primeiro foi o ovo ou a galinha interessa
a zoólogos, geneticistas historiadores e (suponho) ao galo, mas não
deve preocupar nem o produtor nem o consumidor. Nem a mim nem a
você. (VERISSIMO, 1995)
Este é um tema que percorre a obra de muitos cronistas brasileiros,
tentando, talvez, dar respeitabilidade e importância a esse gênero, que, segundo
Antonio Candido, é um gênero menor
2
. Lembrando que grande parte desses
escritores tem na crônica um meio de subsistência.
Em 14/03/1972, no Jornal da Tarde, o repórter José Márcio Mendonça
escreveu o texto Adeus cronista, onde pergunta a vários cronistas: - Por que, por
volta de 1965, a crônica perde pouco a pouco o espaço nos jornais? Escritores
como Rubem Braga, Paulo Mendes Campos, Clarice Lispector, Fernando Sabino,
Raquel de Queirós e Nelson Rodrigues, em seus depoimentos, falam sobre suas
atividades de cronistas e sobre como o tempo é cruel com eles. O texto mostra que
a crônica está morrendo de cansaço, e desde 1965, se constatam os sintomas de
sua agonia. Cita também vários cronistas que revelam o cansaço deste gênero.
Entre eles estão Carlos Drummond de Andrade e Manuel Bandeira, que por muito
tempo foram mais conhecidos como cronistas do que como poetas e, hoje, são
2
No texto, A vida ao rés-do-chão, Antonio Candido faz várias reflexões sobre o gênero e diz: A
crônica não é um gênero maior. (...) Nem se pensaria em atribuir o Prêmio Nobel a um cronista, por
melhor que fosse. Portanto, parece mesmo que a crônica é um gênero menor.” (1992, p. 13)
19
considerados poetas que escrevem crônicas. Clarice Lispector, por sua vez, declara
que escreve para os jornais apenas para ganhar dinheiro e que não é cronista.
Segundo essa perspectiva, podemos dizer que os cronistas atuais vivem
momentos de conflitos pessoais:
Estão todos desiludidos, irritados ou simplesmente
desinteressados. Alguns deles desde Rubem Braga, considerado o
maior e o melhor, o verdadeiro pai da crônica moderna no Brasil, até
Clarice Lispector, ‘ que escreve por dinheiro’ explicam porque a
crônica caiu de moda. Ou porque, como prefere Nélson Rodrigues,
‘alguns cronistas estão perdendo leitores’ Houve um abuso, um
excesso, crônicas demais, colunistas demais e enjoou.
(MENDONÇA, 1972)
Entretanto, é fácil discordar do texto de José Márcio Mendonça, uma vez
que hoje a crônica voltou a ter um espaço cada vez maior nos jornais, pois
praticamente, em cada seção, há a coluna do cronista. O jornal Folha de São Paulo,
por exemplo, conta com nomes importantes da literatura como: Moacyr Scliar, Carlos
Heitor Cony, Ferreira Gullar, entre outros. Confirmando sua importância no
panorama da literatura brasileira, observamos que a crônica tem sido companheira
de milhares de leitores e contribuiu para a consagração de vários escritores
brasileiros ao longo de sua história. A prova disso é que, desde o século XIX, as
melhores crônicas tem sido reunidas em livros, pouco tempo após sua publicação
nos jornais. Luís Fernando Veríssimo, que escreve uma coluna para o jornal Estado
de S Paulo, é um dos exemplos de que a crônica é um dos gêneros que conta, no
Brasil, com maior número de leitores. Seus livros de crônicas são campeões de
venda no Brasil, e já foram traduzidos para vários idiomas.
A internet utiliza as crônicas de incontáveis escritores nas mensagens
por e-mail e como apoio para vários sites que precisam de textos curtos, numa
linguagem acessível para o leitor, permitindo veicular mensagens, através de blogs,
20
comunidades como o orkut etc. Trata-se, portanto, de textos que não são outra
coisa que pequenas crônicas disfarçadas.
A televisão, o cinema e o teatro brasileiros também recorrem ao universo
cronístico. Programas de TV como Os normais e A grande família, veiculados pela
TV Globo, são seleções de cenas sobre o cotidiano da família e sua relação com os
problemas do mundo contemporâneo. Tais programas são herdeiros da Comédias
da vida privada, de Luís Fernando Verissimo, que teve seu programa homônimo,
veiculado pela TV Globo. O livro As mentiras que os homens contam virou peça de
teatro, com sucesso de público por mais de dois anos, saindo de cartaz em
dezembro de 2005, encerrando sua temporada no Teatro das Artes em São Paulo e
voltou no segundo semestre de 2006. Assim também ocorreu com os filmes: Bossa
Nova, Copacabana, Pequeno dicionário amoroso, e a lista é grande. O exemplo
maior no momento é o novo filme de Nelson Pereira dos Santos, Brasília 18%,
definido como “crônicas de Brasília”.
O gênero
Segundo Afrânio Coutinho ( 2004), os gêneros literários podem ser
divididos em dois grupos:
1) aquele no qual os autores se dirigem ao leitor usando um método direto, há uma
explanação direta das opiniões do autor, dirigindo-se em seu próprio nome ao leitor
ou ouvinte. A esse grupo pertencem: o ensaio, a crônica, o discurso, a carta, o
apólogo, a máxima, o diálogo, as memórias.
21
2) aquele em que os autores usam o método indireto e artifícios intermediários.
Conforme o artifício intermediário, a esse grupo pertence: o gênero narrativo,
epopéia, romance, novela, conto; o gênero lírico e o gênero dramático.
A crônica sofreu diversas modificações ao longo dos últimos séculos. Ela
se ajusta ao primeiro grupo, mas seu caráter hibrido faz com que caiba no segundo
grupo por sua natureza poética, reflexiva e humorística. Como gênero histórico foi
cultivada durante a Idade Média e o Renascimento, em toda a Europa, começando
aí seu processo de hibridização . A crônica histórica foi também denominada
cronicão.
Os cronicões
3
são os primeiros testemunhos de uma historiografia em língua
portuguesa, são relatos cronológicos dos reinados dos diferentes monarcas,
elaborados com a intenção primordial de dar a conhecer quais os territórios que
haviam sido atribuídos aos nobres. Sua importância é, portanto, histórica.
Mais significativos do ponto de vista literário, são os livros de linhagem.
Trata-se de registros genealógicos das famílias nobres, dos quais constavam
também narrativas de feitos de alguns dos seus familiares mais destacados. No
fundo são relatos históricos transmitidos na perspectiva da nobreza, utilizando
recursos da ficção, com o objetivo de engrandecer a família retratada. Esses
episódios ficcionais consistiam, por vezes, na descrição de lendas, em que os feitos
heróicos eram atribuídos a membros da família em questão. Por esse enfoque,
percebe-se que o conteúdo histórico se dilui, prevalecendo o aspecto literário.
Uma compilação literária e sociologicamente considerada mais válida foi a
Crônica Geral de 1344, que resultou do empenho de Afonso X de Castela. Ao
estimular o registro escrito de lendas e tradições oralmente passadas de geração em
3
Pesquisa realizada em 28 de março de 2006 no site: http://rosabe.sites.uol.com.br/trovad.htm
22
geração, ele fez acentuar ainda mais o pendor cultural da corte de Toledo, já
conhecida como um grande centro de divulgação da poesia trovadoresca.
Em Portugal, é o rei D. Duarte que vai dar o primeiro grande passo na
criação de uma verdadeira historiografia, quando, no ano da sua subida ao trono
(1434), decide incumbir Fernão Lopes (1380 1459), o guarda-mor da Torre do
Tombo e escrivão de D. João I, de elaborar as histórias dos últimos reis que o
tinham antecedido. Desse modo, encarrega-o de redigir as crônicas de D. Pedro I,
D. Fernando e D. João I. Fernão Lopes desempenha essa tarefa com um brilho
literário e um rigor histórico impressionante.
Usando uma linguagem em que o movimento, a visualidade e a
coloquialidade combinam com a dramaticidade dos eventos narrados, o primeiro
historiador português mostra grande preocupação com a consulta de documentos,
elaborando textos em que a imparcialidade e o espírito de independência dominam
os fatos mencionados. As grandes transformações sociais e políticas são, para
Fernão Lopes, obra do povo e não dos monarcas ou dos nobres, e ele crítica os
governantes como, por exemplo, D. João I, pai do monarca, que lhe havia concedido
o posto de cronista-mor do reino.
Na atualidade, temos Luís Fernando Verissimo com sua obra A velhinha
de Taubaté, aquela que sempre acreditou nas boas intenções dos nossos
governantes, mas não agüentou os fatos recentes da política atual e morreu. Assim,
vemos que as características principais da crônica continuam fazendo parte da sua
estrutura, pois o cronista tem um compromisso com a verdade, trazendo a crítica e a
reflexão para o texto.
Os sucessores de Fernão Lopes, empenhados em dar continuidade à tarefa
de redigir uma história de Portugal a partir dos acontecimentos ocorridos nos vários
23
reinados, afastar-se-ão, porém, de seu rigor investigativo, optando por uma visão
mais sentimental da realidade histórico-social.
Gomes Eanes de Azurara (1410 -1474) foi o primeiro sucessor de Fernão
Lopes, quer como guarda-mor da Torre do Tombo, quer como cronista. Coube a ele
relatar os primeiros tempos da expansão portuguesa, especialmente no que se
refere as investidas em regiões do norte da África. Tratando-se de acontecimentos
ocorridos durante seu tempo de vida, recorreu com freqüência a testemunhos orais,
adaptando-os posteriormente ao seu registro literário, que foi menos "colorido" e
mais artificial do que o do seu antecessor.
Rui de Pina (1440-1521), sucessor de Azurara, encarregou-se de escrever
as crônicas de D. Sancho I, D. Afonso II, D. Sancho II, D. Afonso III, D Dinis, D.
Afonso IV (reis da primeira dinastia, cujos feitos ainda não haviam sido registrados
com o método que a elaboração de uma crônica requer) e ainda de D. Duarte, D.
Afonso V e D. João II. Foi também o primeiro historiador dos Descobrimentos,
transmitindo o que pode definir-se como uma visão oficial dos acontecimentos.
Outro herdeiro de Fernão Lopes foi Pero Vaz de Caminha, o escrivão da
armada de Pedro Álvares Cabral, que expõe, em carta ao rei D. Manuel, os
acontecimentos da viagem do Descobrimento. Nesse relato, os fatos são registrados
na ordem de sua sucessão, sem interpretação de suas causas e conseqüências.
O gênero crônica passou por diversas transformações. Primeiro, foram os
cronicões, que, com o seu caráter de relato histórico, percorrem a Idade Média e o
Renascimento, em todas as partes da Europa. No princípio, eram escritos em latim
e, depois, nas línguas vulgares. Talvez venha daí o estilo coloquial próprio da
crônica moderna. O cronista moderno não é mais o narrador de fatos e feitos
históricos. Sem a intenção de ficar, como comenta Walter Benjamim (1996), ele
24
passa a escrever o corriqueiro. Em meados do século XIX, com o Romantismo e o
desenvolvimento da imprensa, a crônica transforma-se num novo tipo de relato.
Passa a ser uma seção de comentários dos acontecimentos marcantes da semana,
importando menos o fato em si e muito mais as considerações do cronista, sendo
ele alguém que se dedica ao jornalismo, oscilando entre o jornalismo e a literatura.
Paulo Barreto, conhecido pelo pseudônimo de João do Rio, deu à crônica o
caráter social. Foi o iniciador da crônica urbana
4
, procurava apreender o espaço e o
tempo na sua multiplicidade, denunciando o conflito social advindo do impacto da
modernidade, indo até as ruas para assistir ao espetáculo do cotidiano. A partir de
1945, o cronista passa a ser um escritor profissional, pago para trabalhar com os
fatos históricos do cotidiano.
A crônica tem por base uma narrativa curta ou condensada, que capta
fragmentos da vida, podendo ser pitoresca, atual, real ou até mesmo imaginária.
Dotada de ampla variedade temática e num tom poético, embora coloquial, próprio
da linguagem oral, assume ares literários e resiste ao tempo.
Alguns teóricos da literatura brasileira propuseram classificações para a
crônica, destacando nela a mistura de gêneros, a hibridização. Eis primeiramente a
classificação apresentada por Afrânio Coutinho (1967, p. 97):
a) crônica narrativa, cujo eixo é uma história, o que a aproxima do conto, sobretudo
entre os contemporâneos quando o conto se dissolveu perdendo as tradicionais
4
João do Rio (Rio de Janeiro, 1881-1921) exerceu intensa atividade na imprensa do Rio de Janeiro,
sempre buscando a história social, segundo ele “o espelho capaz de guardar imagens para o futuro”
evidenciando o sincretismo (um sinônimo para híbrido) que ,segundo Canevacci, “ocorre porque os
seres humanos não aceitam automaticamente os novos elementos; eles selecionam, modificam e
recombinam itens no contexto do contato cultural.” (1996).
25
características do começo meio e fim. Os exemplos típicos são Fernando Sabino e
Luís Fernando Verissimo.
b) crônica metafísica, constituída de reflexões mais ou menos filosóficas, abordando
acontecimentos do cotidiano, como a crônica de 11/10/1885 de Machado de Assis
(Balas de Estalo Lélio)
c) crônica poema-em-prosa, de conteúdo lírico, que se manifesta como
extravasamento do mundo íntimo do artista diante do espetáculo da vida, das
paisagens ou episódios para ele carregados de significado, como o faz Rubem
Alves. Em 05/09/ 1884, em Balas de Estalo, Machado de Assis faz uma releitura
(paródia) da Canção do exílio, Gonçalves Dias. Portanto, parte de um poema, mas a
ironia é seu aspecto mais forte.
d) crônica-comentário dos acontecimentos, que aborda qualquer assunto,
acumulando muita coisa diferente ou díspar, como também faz Machado de Assis.
e) crônica-informação, mais próxima do sentido etimológico, divulga fatos,
compondo sobre eles comentários rápidos. Aproxima-se do tipo anterior, porém
menos pessoal.
Para Massaud Moisés (2001, p.110), a crônica divide-se em duas
categorias fundamentais:
a) crônica-poema: explora a temática do eu, resulta de o eu ser o assunto e o
narrador a um só tempo, precisamente como ocorre em todo ato poético.
b) crônica-conto: tem a ênfase posta no não-eu, no acontecimento que provocou a
atenção do autor.
Além disso, o autor chama de pseudocrônica os textos que, a seu ver, mais
se aproximam de ensaios ou da prosa didática, onde a idéia prevalece sobre a
26
sensação e a emoção. Moisés recorre também a Carlos Drummond de Andrade,
que resgata o monodiálogo como característica da crônica, e explica:
(...) monólogo enquanto auto-reflexão, diálogo enquanto projeção, a
crônica seria, estendendo o vocábulo que Carlos Drummond de Andrade
utiliza na designação do processo de relação verbal com o interlocutor, para
o texto na sua totalidade um monodiálogo. Simultaneamente monólogo e
diálogo, a crônica seria uma peça teatral em um ato superligeiro, tendo
como protagonista sempre o mesmo figurante, ainda quando outras
personagens interviessem. O cronista, em monodiálogo, se oferece em
espetáculo ao leitor, conduzindo-o por uma secreta afinidade eletiva.
(MOISÉS, 2001, p. 117)
As classificações apresentadas por Afrânio Coutinho e Massaud Moisés,
porém, servem apenas como norteadoras para o pesquisador, já que o gênero
continua a apresentar limites bastante imprecisos.
A crônica como gênero jornalístico
Embora os textos dos primeiros cronistas fossem manuscritos, como a Carta
de Pero Vaz de Caminha, hoje costumamos associar o termo crônica a seu suporte
por excelência, o jornal ( apesar de haver outros , como: blogs, e-mail, orkut etc).
A história da crônica no Brasil, enquanto gênero jornalístico, confunde-se
com a própria trajetória do jornalismo contemporâneo. Vinculada ao entretenimento,
ela começou a consolidar-se em nosso país em meados do século XIX e, desde
então, tornou-se um gênero quase obrigatório para os jornais brasileiros.
Os caminhos da crônica e do jornal começaram a se cruzar na França do
século XIX, quando a imprensa jornalística experimentava grande avanço, devido a
inovações tecnológicas
5
que barateavam a produção em larga escala de periódicos.
Foi nesse período que nasceu o folhetim, do qual se origina a crônica atual.
5
No mundo Ocidental , a invenção de Gutenberg foi fundamental para a divulgação do jornal e do
livro.
27
Segundo Marlyse Meyer (1993, p. 10):
De início, ou seja, começo do século XIX, le feuilleton designa um lugar
específico do jornal: o rez-de-chaussée rodapé, o rés-do-chão
geralmente o da primeira página. Tinha uma finalidade precisa: era um
espaço vazio destinado ao entretenimento. E pode-se já antecipar, dizendo
que tudo o que haverá de constituir a matéria e o modo da crônica à
brasileira já é, desde a origem, a vocação primeira desse espaço geográfico
do jornal, deliberadamente frívolo, oferecido como chamariz aos leitores
afugentados pela modorra cinza a que obrigava a forte censura
napoleônica.(...) Aquele espaço vale-tudo suscita todas as formas de
diversão escrita: nele se contam piadas, se fala de crimes e de monstros, se
propõem charadas, se oferecem receitas de cozinha ou de beleza: aberto
às novidades, nele se criticam peças , os livros recém-saídos.
O folhetim-crônica do século XIX era mais longo do que a crônica atual e,
na maioria das vezes, abarcava grande número de assuntos. No entanto, já era
escrito em tom mais leve, apresentando enfoques humorísticos ou poéticos dos
temas tratados. A própria escolha dos temas, voltada para aspectos “menos
importantes” do cotidiano, já aponta para a presença do humor, da leveza, da
gratuidade, tão comuns na crônica atual.
O jornal continua sendo o suporte tradicional da crônica, que prossegue
contando com a mídia impressa como veículo de manifestação. Os jornais e revistas
de circulação nacional, como bem definiu Vinicius de Moraes (também um grande
cronista), “são como um organismo humano, onde o editorial é o cérebro: as
reportagens, os pulmões, e a crônica, o seu coração.” ( MORAES, apud BRAIT,
1980)
A crônica, como também afirmou Vinicius de Moraes, é o “biscoito fino” dos
cadernos e editoriais de cultura e está conquistando novos espaços, como sites e
blogs, sem deixar de ser o que sempre foi: um exercício de liberdade.
28
1.2 HIBRIDIZAÇÃO
O termo hibridização é definido, neste contexto, como a mutação dos
conceitos literários, que vão se misturando e formando novos paradigmas. Trata-se
de uma combinação de relatos, de fatos políticos e de eventos do cotidiano, numa
espécie de mistura de história da vida privada e de história social.
A crônica, um registro breve e perspicaz de nosso dia-a-dia, é um gênero
híbrido, que transita entre a referencialidade e o comentário subjetivo, encena um
confronto da notícia de personagens reais com a personagem-mimética, que,
segundo Segolin (1978), nos aponta seu modelo humano. Por estar sempre no
limite do real e da ficção, é um dos gêneros mais apreciados na mídia brasileira.
Situa-se entre a literatura e o factual, manifestando-se ao leitor de diversas
maneiras: na forma de uma história, de um poema ou até mesmo de uma lista de
certas regras para uso dos que freqüentam bondes”, como fez Machado de Assis
(1997, p.7) em Balas de Estalo.
Telê Ancona Porto Lopes diz que a crônica é um: “Gênero híbrido situado,
entre a tensão, a função referencial e a função poética. Resultado da transformação
de um fato real numa verdade recriada, ou então, um discurso de invenção que bebe
na realidade. (LOPES, apud BRAIT, 1980, p.109).
A crônica, estudada como gênero de fronteira, está entre o histórico, o
literário e o ensaio. Afrânio Coutinho (2004) escreve que a essência do ensaio
6
6
Segundo Afrânio Coutinho (2004), a crônica se aproxima do ensaio fixado por Montaigne e
desenvolvido na literatura inglesa: familiar, informal, coloquial. Modernamente, o uso da palavra
perdeu aquele sentido tradicional de tentativa. Surgiu um sentido oposto ao do original, chamado de
29
reside em sua relação com a palavra falada, tal qual o tom que Montaigne deu a
sua obra-prima Essais (1596).
A crônica herdou do ensaio muitas das suas características, tais como: o
individual, o curto, o direto, o interpretativo, o flexível, o livre. Permite maior liberdade
no estilo, no assunto, no método, na exposição. Mostra uma reação humana diante
da realidade. Essas características ficam na fronteira do ensaio, que tem, como
escreve Melo ( 1983, p. 77) : “feição de relato poético do real, situado na fronteira
entre a informação da atualidade e a narração” e do jornalismo, que é objetivo e
teima em ser imparcial.
A crônica, dentre os gêneros literários, é o mais leve, o mais suave e,
talvez por isso, de leitura fácil e fluente. Com marcas jornalísticas, sempre apoiada
nos fatos, de produção apressada, sujeita às restrições de espaço, em virtude da
diagramação, revela-se um texto oscilante entre os limites e as liberdades próprias
do jornal. Essa característica prende a crônica ao meio jornalístico, configurando-se
como uma produção datada, sem compromisso maior com o futuro.
Os grandes cronistas conseguem trazer a crônica para o universo do
literário, quando fogem das exigências do espírito de reportagem. Preocupando-se
com a emoção, usando o fato como pretexto, como ponto de partida para a reflexão,
enfocando certos traços particulares e individuais do cotidiano, sem compromisso
com a lógica e desafiando a estrutura rígida dos textos jornalísticos, tudo isto faz da
crônica um texto sempre em tensão entre dois universos: o do jornal e o da
literatura. Segundo Afrânio Coutinho (2004), a hibridização é a crônica desdobrada
em romance, mas não deixando as características do texto jornalístico.
julgamento, que oferecem conclusões sobre os assuntos após análise, avaliação, com uma estrutura
formal regular, usando uma linguagem austera.
30
A crônica pretende fazer o leitor pensar sobre os mais diversos temas, dos
mais relevantes aos mais corriqueiros, que, muitas vezes, passam despercebidos
aos olhos do leitor comum. O subjetivismo do autor é seu ponto crucial, o seu
exercício é definitivamente o que vai aproximar o público do cronista. Não importa se
o assunto tratado é político ou esportivo. O que tem valor no texto é o que o autor
consegue escrever sobre aquele momento único, que sai da realidade para entrar na
imaginação do cronista, renascendo num texto novo, que faculta ao leitor
compreender melhor sua realidade e história.
Esses aspectos da crônica fazem-na transitar por outros gêneros literários.
Pode ser poética, quando elaborada em 1ª pessoa, com assuntos ligados por uma
associação livre, mediante a tradução emotiva da realidade exterior e interior, numa
linguagem sentimental, mas coloquial , próxima à do leitor . Aproxima-se também do
conto, quando construída em primeira ou terceira pessoa, com a presença da
narração (exposição e diálogo, como forma de composição predominante), entrando
num eixo, o fato, que gera a história, desdobrando-o em uma ou mais situações.
Neste caso, pode ocorrer o predomínio da história leve, divertida, de ritmo rápido,
com personagens do cotidiano. O humor, a ironia, a crítica de costumes fazem parte
do enredo, sempre com um final inesperado.
A leveza e a rapidez são características importantes que contribuem para a
hibridização da crônica. Rubem Braga
7
diz que a crônica pode ser tudo, menos
chata, e um dos fatores que vai contribuir para que isso não aconteça é a leveza que
o cronista precisa impor ao texto quando emprega recursos literários como, por
exemplo, a ironia e o humor, tal como faz Luís Fernando Verissimo. Calvino
7
Rubem Braga é o único escritor brasileiro que entra para a história literária exclusivamente como
cronista, mas há uma antologia, feita por Davi Arrigucci Jr. , que ganhou o título de “Os melhores
contos de Rubem Braga”, revelando o hibridismo que vem “ da forma simples do conto oral, ou mais
propriamente com o causo popular do interior do Brasil, onde um sabor feito de experiência se
comunica de boca em boca por obra de narradores anônimos.”(ARRIGUCCI,1998, p. 7)
31
(2003, p.22) comenta que: ( ...) a leveza é algo que se cria no processo de escrever,
com os meios lingüísticos próprios do poeta, independentemente da doutrina
filosófica que este recebe.
1.3. UM GÊNERO BRASILEIRO
Os primeiros cronistas brasileiros: a crônica como a conhecemos
No século XIX, nossa crônica já começa a apresentar uma feição particular,
já começa a ter a “cara do Brasil”, sendo formatada com características próprias, com
a criatividade dos escritores do país. Nossos primeiros cronistas também foram
nossos primeiros romancistas (José de Alencar, Manuel Antônio de Almeida, Machado
de Assis etc.), e este fato contribuiu para que o lirismo tivesse predominado na crônica
desde as suas primeiras manifestações.
A crônica brasileira como a conhecemos começou com Francisco Otaviano
de Almeida Rosa em um folhetim no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro de 02 de
dezembro de 1854. José de Alencar trouxe o requinte para o gênero quando
substituiu Francisco Otaviano no Correio Mercantil, em 1852, juntamente com Manuel
Antônio De Almeida .
Machado Assis criou o modelo estrutural da crônica ou, mais propriamente,
sua matriz. Nas crônicas machadianas, há diálogos, ironia, leitor-narrador, galhofas,
humor, que serve para dizer a verdade, abertura para assuntos variados, em que cada
parágrafo é uma crônica dentro da crônica.
32
A crônica foi um dos gêneros preferidos de Machado de Assis. Ele as
escreveu aproximadamente por 40 anos, dos 16 anos de idade até quatro anos
antes de morrer, em 29 de setembro de 1908. Dedicou-se a discutir o folhetim, termo
que ele e José de Alencar usaram para denominar o que hoje compreendemos como
crônica. Em 1859, ainda no início de sua carreira, tentando definir a nova modalidade
literária, mostra, com a sua tradicional ironia, a relação que se estabelece entre o
folhetinista e seu público, dizendo que as pessoas o amam e o admiram porque têm
interesse em ficar bem com a pessoa que escreve.
Segundo John Gledson (1997), Machado planejava suas crônicas de forma
inversa ao usual, pois não escrevia em função dos acontecimentos diários, mas em
função do que prévia que iria acontecer. Ele tinha um senso político superior ao de
seus contemporâneos, e a política era um fio condutor de suas crônicas, que muitas
vezes têm momentos absurdos, de exageros e de comédia. Eugênio Gomes (1963)
organizou as crônicas de Machado de Assis em quatro períodos:
I - 1861- 1867: Comentários da Semana (Gil e M.A.); Crônicas (Machado de Assis);
Correspondência da Imprensa Acadêmica (Sileno): Ao Acaso (M.A.) ; e Cartas
Fluminenses (Job).
II 1876 1878: Histórias de Quinze Dias e Histórias de Trinta Dias (Manasses):
Notas Semanais (Eleazar).
III 1883 1889: Balas de Estalo (Lélio); A B (João das Regras); Gazeta de
Holanda, em versos (Malvolio) e Bons Dias (Boas Noites).
IV 1892 1900: A Semana, sem assinatura.
33
Machado de Assis escreveu seiscentos e quatorze crônicas. Não
constam deste montante as crônicas identificadas mais tarde, nem aquelas que
figuram nas seções em que se alternavam diferentes colaboradores, sob o
pseudônimo comum de Dr. Semana. Seu pensamento o levava ao humor. Os fatos
não eram importantes, o que importava era o artífice, tudo sendo motivo para uma
crônica.
Usando pseudônimos ou assinando como Machado de Assis, concebeu
ousadas experiências para a renovação desta arte, descambando muitas vezes
vertiginosamente para o humor e o despropósito, estabelecendo flagrantes e
curiosíssimas relações de estilo e efeito entre a crônica, o conto e o romance. São
exemplos disso: Memórias póstumas de Brás Cubas, Memorial de Aires, Contos
Fluminenses etc.
Sua aguda observação da sociedade de cronista-jornalista está presente na
construção de seus textos. Usa exemplos da Bíblia, do cotidiano, da cultura em geral.
A polifonia aí se revela sem mascaramentos, e os simulacros
8
fazem a coerência do
texto, que, mesmo com tantas vozes, comunica, por meio da ironia, seu discurso
ideológico.
Outra característica da crônica machadiana é a estreita ligação entre
linguagem e sociedade. Mesmo partindo de fatos que, para o leitor desatento,
parecem banais, Machado não esconde sua insatisfação com uma sociedade
injusta, em que os pobres (“lá os deixamos, ao sol, de cabeça descoberta, a trabalhar
com a enxada.” ) sempre são desamparados.
A atualidade de Machado está nas marcas do cotidiano e, inclusive, na
frivolidade e efemeridade de assuntos que procura desenvolver. Essa frivolidade não
8
Simulacro é a imitação da imitação.
34
deixa o texto pobre, mas leve, e o escritor usa a condensação através de metáforas
e da ironia. As duas vizinhas que aparecem no texto O nascimento da crônica, de 1º
de novembro de 1877, são as fundadoras do gênero, ao fofocar sobre as namoradas
de um morador. Trata-se da metalinguagem da própria escritura da crônica, que se
apóia em banalidades. É pela lógica de suas subjetividades que se constrói a
verossimilhança.
A ironia é um exemplo do discurso bivocal
9
, pois surge das várias
interpretações, do dialogo ( autor/leitor), da ambigüidade que continua presente nos
textos da modernidade e na maioria das crônicas. Linda Hutcheon (2000) diz que a
ironia é um jogo inferencial, tanto do ironista como do interpretador/leitor. Machado
usa a ironia, que serve de ponte entre o escritor e o público (leitor) e obriga o leitor a
interagir com o texto. O leitor é chamado pelo cronista de leitor amigo, o que constitui
uma marca autoral, uma espécie de rubrica. A ironia se faz com opostos e também
com o duplo sentido, em uma crítica feroz à sociedade hipócrita. Machado, por
exemplo, escreve sobre o paraíso ( ...Adão andava baldo naipe. ) e o compara com a
província, onde há alfaiates para vestir o homem, embora ele continue sem dinheiro
e, por isso, nu.
A linguagem coloquial e a oratória também são marcas da crônica de
Machado. O espontâneo traz para o texto uma cumplicidade entre o escritor e o leitor,
que usa a fantasia e a notícia ao mesmo tempo, sem maior preocupação com a
verossimilhança. Machado registra nas suas crônicas uma espécie de
desestruturação, como explica Eugênio Gomes ( 1963, p.10): -se que o processo
machadiano estabelecera uma confusão intencional; a fantasia, a crônica e o conto já
9
O discurso bivocal é aquele que se manifesta sempre sob as condições da comunicação dialógica.
35
não mantinham fronteira entre si. E a conciliação estava numa filosofia estética, que a
crítica naturalista não podia admitir.
Tal confusão, que está presente também na evolução de outros gêneros
literários, corresponde ao fenômeno da hibridização, tão comum na crônica.
CAPÍTULO II A IRONIA
2.1 ORIGEM E TEORIA
A palavra ironia, na modernidade, não tem mais os significados verificados
nos séculos anteriores, é apenas um acordo temporário, uma maneira de
compreensão do mundo. Muecke (1995, p. 22) explica que a evolução semântica da
palavra, historicamente, é o resultado cumulativo de termos, de tempos em
tempos, no decurso dos séculos, inferindo, a partir do uso conceitual do termo e
talvez erradamente, fenômenos que pareciam semelhantes, usando a palavra ironia
sem saber ou procurar saber como ela era empregada anteriormente.
Segundo a MLA Bibliograpy, já foram listados 1.445 verbetes sobre ironia, e
essa listagem conta apenas uma parte da história, a parte literária. Esse tópico tem
sido pesquisado por especialistas em áreas tão diversas quanto lingüística e
ciências políticas, sociologia e história, estética e religião, filosofia e retórica,
psicologia e antropologia. Parece-nos que há uma fascinação pela ironia, quer seja
considerada um tropo
10
retórico, quer um modo de ver o mundo.
A Palavra ironia vem do grego eironeia e quer dizer interrogação
dissimulada
11
. Tem origem na arte de interrogar e provocar o surgimento das idéias.
10
MACHLINE (1986, p.9) comenta que o tropo, “juntamente com a antífrase, a litotes e o eufemismo,
é considerado por Jean Dubois um desvio quanto à lógica da língua., um desvio de sentido no
enunciado em que ocorre. Enfim, tem-se que a ironia é uma infração que, sem atingir a estrutura do
código verbal, altera a coerência lógico-convencional da língua, provocando um desvio do sentido
denotativo de uma expressão do repertório tradicional de seus usuários.”
11
MOISÉS, 2001, p.294.
36
Sócrates foi seu propulsor, segundo a tradição e o testemunho de Platão, no seu
diálogo A república, de 377 aC. Platão diz que a ironia socrática era composta de
questões a priori, simples e ingênuas, apresentadas pelo mestre a seus discípulos e
interlocutores, mas que, na verdade, o seu propósito era confundi-los para revelar a
fraqueza de suas opiniões, irritando-os e, muitas vezes, levando-os ao ridículo.
Muecke afirma também que Aristóteles, provavelmente tendo Sócrates em
mente, dizia que a eironeia tendia para a dissimulação auto-depreciativa ou
dissimulação jactanciosa. Isso vai ao encontro do que diz Veríssimo ao repórter Luiz
Costa Pereira Jr. (2002, p.21), em uma entrevista para a Revista Língua
Portuguesa, de 20 de abril de 2002, quando responde que o tipo de ironia que o
brasileiro entende é a auto-depreciação com um toque de orgulho. E ele acrescenta:
É curioso. Os brasileiros estão acostumados com a ironia, nada
mais comum do que duas pessoas que se amam se agredirem
ironicamente, ou as pessoas dizerem o contrário do que realmente pensam,
mas coloque-se isso num texto e o comum são as pessoas não
entenderem. Esta é a maior ironia de todas. Se há uma técnica para
escrever com ironia? Não, é só ser irônico, brasileiramente. (VERISSIMO,
2005, p.13)
Na comédia clássica grega, o termo ironia tem suas raízes na personagem
Eiros, que se passava por ignorante para desmascarar o Álozon, um personagem
fanfarrão, que atribuía juízos jocosos aos seus interlocutores. Já na tragédia grega
,a ironia estava vinculada à frustração do protagonista, sujeito aos deuses. Esta
seria, segundo Moisés (2001, p. 295), a ironia do destino.
Vera Machline (1986, p. 8) explica que a ironia entre os romanos teve sua
significação restringida, particularizando o emprego dissimulado da palavra e
passando a ser um fenômeno referente à linguagem verbal, ou seja, uma figura de
retórica.
37
Na Europa moderna, o conceito foi se transformando lentamente, e a
ironia passou a ser considerada, por duzentos anos, como uma figura de linguagem
bem firmada e inscrita nos tratados de Retórica.
Na passagem do o século XVIII para o século XIX, a palavra ironia
ganhou outros significados, sem perder totalmente os referenciais mais antigos
presentes nos textos medievais e do Renascimento. A partir de então, a ironia tem
natureza dupla: ora instrumental, ora observável. A filosofia amplia o conceito e a
função da ironia. Quando Friedrich Schlegel diz que a Filosofia é a pátria da ironia,
muda o foco da questão: agora não se fala apenas em alguém ser irônico,
considera-se, também, esse alguém como vítima da ironia.
Mucke (1995, p.38-9) explica:
Para Schlegel, a ironia está ao mesmo tempo na ‘manobra ágil’ de
Shakepeare e em sua ‘visão irônica’ das relações humanas. Segundo
penso, ele não dá o passo seguinte de ver como ‘objetivamente’ irônico o
fato de serem os homens uma mistura de qualidades contraditórias.
Vimos que o conceito de ironia se estendeu, neste período romântico,
para além da Ironia Instrumental (alguém sendo irônico) até incluir o que
chamarei de Ironia Observável (coisas vistas ou apresentadas como
irônicas). Estas Ironias observáveis sejam ironias de eventos, de
personagens ( auto-ignorância, autotraição), de situação, sejam de idéias
(por exemplo, as contradições internas inobserváveis de um sistema
filosófico como o marxismo) podem ser locais ou universais. Todas elas
eram desenvolvimentos principais, nada menos que o desenvolvimento do
conceito de Welt-Ironie, Ironia Cósmica ou Ironia Geral, a ironia do universo
que tem com vítima o homem ou o indivíduo. Mas Friedrich Schlegel
acrescentaria ao conceito um desenvolvimento posterior e até mais radical.
Com ele, a ironia tornou-se aberta, dialética, paradoxal ou romântica.
A ironia satírica é aquela mais próxima do estilo socrático, isto é, a ironia
do deboche, da degradação do ser humano, depreciativa, vulgar e barata. A ironia
cética, mais próxima da modernidade, tem um tom de rancor e marcas de
crueldade, corrosiva ou diabólica.
A sátira é um fenômeno muito mais geral, frequentemente é deliberada e
mais moral em suas intenções, fazendo um julgamento negativo sobre o objeto
38
satirizado, querendo sempre ferir ou menosprezar. Segundo Massaud Móises
(2002, p.470) sátira é uma:
Modalidade literária ou tom narrativo, a sátira consiste na crítica das
instituições ou pessoas, na censura dos males da sociedade ou dos
indivíduos. Vizinha da comédia, do humor, do burlesco e cognatos,
pressupõe uma atitude ofensiva, ainda quando dissimulada: o ataque é sua
marca indelével, a insatisfação perante o estabelecido, a sua mola básica.
Para De Nigris (2000), a sátira teria nascido com Juvenal e Horácio .
Em Juvenal, seria a do homem correto que sente negativamente a sua sociedade.
Já Horácio vê a sátira como tolice humana por meio do riso e não do ódio. John
Dryden (século XVII), baseado nesses fatos, identificou dois tipos de sátira: a
cômica (horaciana) e a trágica (de Juvenal).
Para Hutcheon, na sátira, há um registro de conduta moral negativa, o
que a afasta da ironia, que não tem essa preocupação moralizante. A ironia implica
em estratégias de emprego de palavras, que podem ser realizadas em dois níveis,
que tiram sua significação do contexto no qual se encontra:
1. nível de superfície primária, em primeiro plano
2. nível secundário e implícito, em segundo plano
A significação última do texto irônico reside na superposição dos dois
níveis, num tipo de dupla exposição textual.
2.2 CRÔNICA E IRONIA: O CASAMENTO PERFEITO
Na crônica, a ironia é a afirmação de algo diferente do que se deseja
comunicar. Consiste em não dar às palavras o seu valor real ou completo, querendo
39
significar o oposto do que se diz. É um disfarce delicado, um dizer uma coisa por
outra. Quando um indivíduo usa de ironia, na maioria das vezes, não pretende ser
aceito, mas compreendido e interpretado. O que diferencia a ironia do enunciado
falso simples é a sinalização da contrariedade, geralmente sutil, por meio do
contexto, da edição, da entoação, do gesto ou de outro sinal. A função da ironia na
crônica é deixar o texto leve, levando o leitor à crítica, à reflexão e ao humor.
Nesse sentido, a ironia é um recurso usual de humor. Ela torna mais
extrema a relação de oposição entre o falso atribuído e o fato verdadeiro. O riso na
ironia surge de uma situação de inversão, mas a ironia não quer dizer
absolutamente que a situação seja risível. Muito pelo contrário, muitas vezes ela
provoca o choro. Quando percebida, a ironia estimula algum tipo de reação. Não
podemos confundir o tom humorístico com a ironia. Segundo Lélia Parreira Duarte
(1994, p.12), o humor, diferente da ironia, valoriza mais o significante do que o
significado, acaba investindo na enunciação e menos no enunciado. A ironia,
diferentemente do humor, precisa de um elemento pragmático, um objeto a atingir,
enquanto aquele, o humor, busca antes o discurso e tem como base um jogo de
linguagem (em que o leitor participa conscientemente de um jogo, fingindo auto-
conhecimento ou ignorância) que só se realiza principalmente no campo da
metalinguagem.
Luís Fernando Verissimo utiliza não só o humor, mas também a mimese
irônica
12
em suas crônicas. A intenção do que é dito é fundamental para a expressão
da ironia. A presença do ironista é imprescindível, não há ironia sem ironista. Ele
percebe dualidades ou múltiplas possibilidades de sentido e explora as situações
12
A mimese irônica é imitar o estilo ou o ponto de vista de outrem, mas o que se pretende é criticar o que se
mimetiza.
40
com enunciados irônicos. Na obra de Verissimo, é comum verificarmos esse uso
particular da ironia em suas personagens, que estão sempre imitando estilos e
patrões típicos, como ocorre, por exemplo, em: O analista de Bagé, A velhinha de
Taubaté etc.
Nas crônicas de Veríssimo, a ironia está muito próxima do chiste
13
e do
cômico
14
. Sua essência consiste em dizer o contrário do que se pretende comunicar
a outra pessoa, mas poupando-a de uma réplica contraditória, fazendo-a entender a
mensagem pelo tom de voz, por algum gesto simultâneo.
A ironia só pode ser entendida quando os interlocutores estão preparados
para o jogo, em que o outro está pronto para escutar o oposto, de modo que não
pode deixar de sentir uma inclinação para contradizer. Em conseqüência dessa
condição, a ironia se expõe facilmente ao risco de ser mal-entendida, fato já
observado por Verissimo em relação ao leitor brasileiro.
Podemos dizer que o uso da ironia, desde os tempos socráticos, cumpre
um papel relevante na vida quotidiana. Aparece nas convicções religiosas, na
política, nas conversas despretensiosas e também naquelas que querem denotar
prestígio e têm como matéria-prima principal as relações humanas. Nestrovsky
(1987, p. 7) afirma: Ironia e modernidade não são exatamente sinônimos, mas as
duas palavras estão bem mais próximas do que se imagina". Para esse autor, a
ironia é aquele movimento que faz a linguagem se suspender ou se negar, está no
fundamento de todo período moderno e também na maioria das crônicas.
13
O chiste, no contexto utilizado, é o espirituoso, o humor fino e adequado, gracejo. (HOUAISS:
2001, p.702)
14
O cômico, neste contexto, é aquilo que tem por efeito suscitar o riso ou a zombaria; ridículo, risível.
(HOUAISS: 2001, p.770)
41
Luís Fernando Verissimo diz que mesmo a ironia fazendo parte da
realidade do brasileiro, muitas vezes não é entendida; ela precisa ser situada em um
contexto e sintonizar-se com certas características do leitor que, no caso do Brasil, é
um individuo propenso a rir dos seus problemas, da situação caótica, da política e de
tantas outras coisas.
A ironia é uma forma de entendimento, uma verdadeira atitude filosófica.
Às vezes torna-se um caminho para a salvação de um mundo tenebroso, revela-se
como forma positiva de relacionar-se com a vida. Nas crônicas de Verissimo, é a
atitude preferida. Por meio dela, o autor consegue diferenciar vários aspectos do
mundo, que observa para escrever.
Em Verissimo, a ironia abre vertentes para a crítica social e o riso,
proporciona ao leitor momentos de libertação da realidade difícil e pesada, cheia de
problemas financeiros e sentimentais. No livro George Santayana o la ironia de la
materia , Ignácio Izuquiza (1989, p63) fala sobre como o filósofo americano
George Santayana mostra a importância da ironia para a sociedade: “ O riso é uma
verdadeira terapia, uma forma de cura frente a todo o negativo que a ironia soube
destacar
15
.”
Verissimo encontra na ironia o material que traduz um ideal democrático,
conhece a tensão da substância dinâmica da vida, consegue extrair da notícia o fato
simples, que aos olhos comuns passa desapercebido, materializando-o em seu
diálogo com o leitor.
A existência é caótica e é por intermédio da ironia, inserida na crônica, que
autor e leitor vão liberta-se das certezas antes amordaçantes, pois, no pequeno
15
Traduzimos livremente: “La risa es una verdadera terapia, una forma de curación ante todo lo
negativo que há sabido destacar la ironia”. (IZUZQUIZA: 1989, p.63)
42
espaço que crônica ocupa no jornal ou no livro, descobrem que nunca há somente
uma única verdade. É o que Santayana quando diz:
É uma fecunda felicidade porque deve abrir a outras formas de
existência, uma felicidade duradoura porque se atem a pensar que a
existência é sempre contingente e produto da potencialidade criativa da
matéria: e é irônica porque sempre se volta contra os que pensam que uma
verdade é a verdade única
16
. (SANTAYANA, apud IZUZQUIZA,
1989, p. 78)
Luís Fernando Verissimo mostra em suas crônicas, a relatividade da
existência e das circunstâncias concretas da vida. Sendo considerado um dos
escritores mais lido na atualidade, no Brasil, ele consegue sobreviver no universo
literário com um acervo enorme de crônicas, um gênero tido por muitos como fadado
a morrer.
O diálogo, que também é um elemento da ironia, é um aliado nas
crônicas de Verissimo, pois, na reflexão que ele realiza sobre o cotidiano as duas
(crônica e ironia) formam um casamento perfeito. Beatriz Berrini (2005, p.40)
comenta:
Afinal, a palavra eironeia, significando “ interrogação “, propõe
perguntas que exigem respostas, indicando claramente que a ironia alcança
sua plena significação através do diálogo, que se processa graças à
linguagem. A estrutura comunicativa é uma condição básica da ironia. O
emissor serve-se de um modo de expressão no qual o significado autêntico
contraria o sentido das palavras.
16
Traduzimos livremente: “Es una felicidad fecunda porque debe abrir a otras formas de existência,
una felicidad duradera porque se atiene a pensar que la existencia es sempre contingente y produto
de la pontencialidad creativa de la matéria: y es irônica porque siempre se vuelve conta quienes
piensan que uma verdad es la verdad única." ( IZUZQUIZA, apud SANTAYANA,1989,p 178)
43
O Ironista
O ironista, segundo Linda Hutcheon (2000), é aquele que consegue
estabelecer uma relação irônica entre o dito e não dito. Às vezes, ele poderá não
ter sucesso em comunicar sua intenção, pois a ironia transcende ao tropo ou à
figura, definindo-se, na verdade, como uma estratégia discursiva que opera no nível
da linguagem verbal ou de outras formas, como: a música, a arte visual etc.
Além da discussão semântica sobre a ironia, com a multiplicidade de
seus significados, devemos considerar também a importância também do contexto
e das atitudes e expectativas do ironista e do leitor ( no caso da linguagem verbal
escrita), pois, para ser entendida, ela depende da interação dos interlocutores, já
que ela “acontece” e não simplesmente existe, como confirmam as palavras de
Hutcheon (200, p. 20):
(...) num contexto social /comunicativo é algo que “acontece“ mais
do que algo que simplesmente existe. E ele acontece no discurso, no uso,
no espaço dinâmico da interação de texto, contexto e interpretador ( e às
vezes, embora nem sempre, ironista intencional). Como uma resposta à
extensa literatura em vários campos, de lingüística a psicologia, de
retórica a crítica literária que vê a ironia como uma inversão semântica
direta (antífrase ou dizer uma coisa e querer dizer o oposto) e logo como
um instrumento retórico estático para ser usado, (...) a ironia é, em vez disso
um processo comunicativo.
Linda Hutcheon apresenta três características semânticas principais da
ironia: a relacional, a inclusiva e a diferencial.
a) A inclusiva é a que torna possível repensar a noção semântica padrão
de ironia, apresentando-se como uma simples antífrase
17
, que se pode entender por
uma substituição direta de significado.
17
A antífrase exprime idéias funestas por palavras de sentido contrário.
44
b) A diferencial é a que oferece uma explicação da relação problemática
entre ironia e outros tropos, tais como a metáfora e a alegoria.
c) A relacional é a combinação do inclusivo com o diferencial, a fricção do
dito e do não dito, cada um assumindo um significado apenas em relação ao outro,
fato este já ligado ao evento comunicativo; mesmo não sendo totalmente
compartilhado, supõe algum compartilhamento para que a ironia aconteça. É o
poder do não dito que, semanticamente, faz a ironia, o dito interagindo com o não
dito.
Desse modo, a ironia, integrando-se na totalidade envolvente do texto,
pode estar no contexto em que a palavra é empregada. Do mesmo modo que o
significado do que se diz depende do modo com que se diz, a ironia depende muitas
vezes do tom da fala. Na verdade, o que existe é um clima de ironia que, por meio
de uma escolha inclusiva, presa a um conjunto complexo de motivações, determina
o deslizar da atitude que seria natural, para outra diferente. O grau do efeito
produzido depende da distância existente entre a atitude real, que se deixa
adivinhar, e a atitude de opção. Essa mudança de atitude realiza-se, algumas
vezes, no plano puramente psicológico, outras vezes, na linguagem característica de
um ambiente ou de uma atividade evocativa de aspectos morais.
Hutcheon explica que, na ironia, a mentira também vai oscilar em um
pressuposto de verdade ou falsidade e cita White (1978, p. 208) quando diz que a
ironia “pressupõe consciência da distinção entre verdade e falsidade, da
possibilidade de falsear a realidade na linguagem, e da diferença entre uma
representação literal e uma figurada” . A diferença está na intenção, ou seja, no
clima do que é dito, usualmente o objetivo não é que a mentira seja decodificada ou
interpretada como mentira, o que se deseja é o contrário, é nesse contexto que
45
acontece a ironia. Burke (BURKE, apud, HUTCHEON, 2000, p.51) afirma que: Os
significados irônicos, entretanto, formam por meio de oscilações aditivas entre
significados ditos e não ditos diferentes. (...) interação de termos uns com os outros,
integralmente afetando uns aos outros.”
Portanto, essa dubiedade apontada pelos autores citados precisa ser
considerada, quando tentamos entender de que modo a ironia ocorre no processo
criativo.
A Paródia e a Ironia
A paródia e a ironia estão ligadas na literatura, pois ambas buscam o leitor
para a sua concretização. A Palavra grega párodia significa contra-canto. O termo
contra sugere uma idéia de comparação, de contraste. O radical odos (canto)
contém o elemento formal e literário da definição. Os dicionários trazem outras
definições para paródia. Massaud Moisés (2002, p.388) diz:
Toda composição histórica que imita, cômica ou satiricamente, o
tema e/ou a forma de uma obra séria. O intuito da paródia consiste em
ridicularizar uma tendência ou um estilo que, por qualquer motivo, se torna
conhecido e dominante.
O dicionário Houaiss define paródia como: “obra literária, teatral, musical
etc. que imita outra obra, ou os procedimentos de uma corrente artística, escola etc.
com objetivo jocoso ou satírico; arremedo”. ( 2001, p. 2137)
46
A amplitude polissêmica da paródia é muito maior do que dizem os
dicionários. Olga de Sá (2004) escreve que a paródia não é só um fato de escritura,
mas um fato de leitura, pois é o contexto que revelará o caráter paródico. Toda
paródia é uma forma literária sofisticada. Nela, há uma interação entre leitor e autor,
uma espécie de superposição estrutural de textos, a inserção do velho no novo. O
leitor constrói uma significação segunda pelas deduções operadas a partir da
superfície do texto, completando o primeiro plano a partir do reconhecimento e
também do conhecimento que tem do contexto de último plano.
Como na ironia, toda discussão e reflexão sobre a paródia também é
um jogo que vai depender da intencionalidade do autor e da habilidade do leitor.
Cabe ao leitor completar a comunicação que tem sua origem na intenção do autor.
A crônica, como já ressaltamos, é um gênero hibrido e, em sua estrutura,
cabe a paródia, mas a ironia fica mais evidente, pois não há predomínio do canto
paralelo, mas o relacionamento com o cotidiano, a valorização das miudezas, a
natureza poética e a critica. Além disso, a irônica não precisa necessariamente
visitar um texto básico, como é o caso da paródia.
Em sua coluna semanal no jornal Folha de São Paulo (Cotidiano) Moacyr
Scliar escreve sobre uma noticia saída na semana anterior, empregando a paródia.
Ele transcreve a notícia que serve de inspiração para seu texto ficcional , como
podemos observar na crônica Pizza homenageada .
A PIZZA HOMENAGEADA
A pizza, símbolo da gastronomia paulistna ganha uma semana
inteira de comemorações. De segunda, dia l0 de julho, até domingo, dia
l6.
Pela programação, todos os estabelecimentos participantes criarão
uma pizza única com ótimos ingredientes. Esta nova pizza será
47
vendida durante a semana da programada para o festival pela pizzaria,
pelo mesmo preço da pizza de mussarela da casa.
Folha Online
Entrevistada num programa radiofônico de grande audiência, a
pizza declarou-se sumamente gratificada e honrada com a homenagem que
lhe é prestada em São Paulo. Evocou sua origem, antiga e humilde,
remontando à época em que egípcios e hebreus misturavam farinha de trigo
e água para assar em fornos rústicos “pão de Abraão” do qual nasceu o pão
árabe.
À época das cruzadas, ou talvez antes, esta prática chegou à atual
Itália. Nápoles foi o berço da pizza; ali o termo “picea” passou a designar a
fatia da massa em forma de disco, com queijo derretido e outros
ingredientes por cima. Tratava-se de alimento barato, vendido por
ambulantes. Mas a pizza viveu seu momento de glória no século l9, quando
o padeiro Raffaele Espósito foi incumbido pelo rei Humberto I de incluir a
pizza num banquete real. Em homenagem à rainha Margherita, Espósito
criou a pizza conhecida por este nome e que ostenta as cores da Itália no
branco da mussarela, no vermelho do tomate e no verde do manjericão.
Ao Brasil, a pizza chegou trazida pelos imigrantes italianos. Foi
uma história de sucesso: só na Grande São Paulo, são vendidos cerca de
50 milhões de pizzas ao mês.
A que atribuir tal êxito? A pizza tinha uma resposta para isso. Em
primeiro lugar mencionou a sabedoria dos ingredientes: a proteína do queijo
combinada com os hidratos de carbono da massa. Ou seja: matéria-prima
para formar os tecidos do corpo mais energia para mover este mesmo
corpo. Depois, a formada própria pizza: redonda, como o Sol, como a Lua,
como a Terra. Pouca profundidade? Certo, mas muita superfície, e quando
se trata de povo, garantiu a entrevistada, é melhor superfície do que
profundidade.
Apesar disso, a pizza não pôde ocultar que tinha ressentimentos
em relação à maneira como tem sido tratada no Brasil. Não admite, para
começar, que se use a expressão “terminou tudo em pizza”, para designar
aquela situação em que políticos envolvidos em escândalos escapam da
punição. Pior ainda, acrescentou, já com a voz embargada, foi a “dança da
pizza”, com a qual uma deputada federal celebrou a absolvição de um
colega acusado de participar no esquema do mensalão. Essas coisas,
bradou, tinham de ser levadas adiante, com a exemplar punição de
culpados.
Constrangido, o entrevistador colocou o microfone à disposição para
eventuais acusações e denúncias. Mas, tendo desabafado, a pizza agora
estava em outro ânimo, conciliador, amistoso. Afinal, não valia a pena
estragar uma semana de comemorações. “Estamos mesmo terminado em
pizza”, pensou o jornalista. Pensou, mas não disse. Em matéria de pizza,
tudo o que vale a pena discutir são os sabores e os ingredientes. O resto é
conversa. Conversa animada, em torno, a uma enorme e saborosa pizza.
(SCLIAR: 2006)
Nessa crônica, Scliar usa o tom irônico. Ele associa a reportagem sobre
o dia da pizza com a política brasileira que sempre dá um jeito de encobrir seus
escândalos. O fato de todos os problemas importantes do país acabarem em pizza,
ou seja, nunca serem resolvidos está no contexto da política atual e traz para o
texto a cumplicidade de autor e leitor para que a ironia seja entendida. No texto, há a
48
intertextualidade
18
(a reportagem transcrita) e a hipertextualidade (resgate da origem
da pizza, a relação de um texto com outros textos), também a paródia. A intenção do
autor ao parodiar a reportagem, passando de um texto prosaico para a ficção, foi
fazer uma crítica social, despertando no leitor outro tipo de relacionamento com o
texto.
Recursos Estilísticos: Figuras de Linguagem
Segundo Machline (1985), a ironia passou a integrar a ciência Retórica,
que a classifica como metalogismo ou tropo. Juntamente com a antífrase, a litotes e
o eufemismo, ela constitui um desvio quanto à lógica da língua.
A ironia interage com outras figuras de linguagem, fazendo intersecção
com a hipérbole, com a metáfora, paradoxo, anacoluto, elipse etc., e trazendo a
transgressão à normalidade da língua.
A metáfora é essencialmente um processo de transposição, por isso é
muito usada pelo ironista. É um dos meios mais freqüentes de provocar a sensação
de imprevisto e consiste em fazer passar uma realidade do plano que lhe é próprio
para outro, destacando a impropriedade da transposição; por um lado, há o
sentimento do deslocado, do sobreposto, por outro, há a capacidade expressiva da
transposição, ambas fazem deste processo uma das fontes mais ricas do cômico.
18
Segundo Hutcheon, Gerard Genette faz importantes trabalhos sobre a teoria da intertextualidade,
mas consideramos que não vão anular o gênero paródico e sim ampliar conceitos. “ Outro contexto
em que uma teoria da paródia se situa é o das teorias da intertextualidade.” ( GENETTE, apud
HUTCHEON, 1985, p.32)
49
Dissonâncias de ordem lógica, como o paradoxo, são muito úteis para o
ironista. O paradoxo consiste num jogo de conceitos antitéticos, baseados
geralmente em uma visão unilateral, que se opõe ao senso-comum, consiste numa
combinação de idéias opostas, que surpreendem o receptor pelo absurdo, sendo
assim importante para o clima irônico.
A hipérbole, que parece ser um dos processos mais primitivos e mais
freqüentes de produzir o riso, consiste em aumentar ou diminuir tão
extraordinariamente as dimensões de uma coisa, que ela passa a impressionar pela
estranheza. Essa alteração de proporções levou alguns autores a definir o cômico
pelo exagero, sendo, por conseqüência, muito usada na ironia e no humor.
O anacoluto irônico, por sua vez, surge como uma forma bem definida e
especializada do contraste: caracteriza-se por ser um contraste de continuidade
ideológica não entre palavras, mas entre direções de pensamento. A quebra de
sentido das palavras, no caso, é geralmente tão nítida e a desconexão tão
acentuada, que podem separar-se as linhas do pensamento divergente.
A elipse é outra figura que serve bem aos objetivos da ironia, pois, em
muitos aspectos, ela é a arte das entrelinhas e das reticências. Não nomeamos
aquilo que a clareza não exige que se nomeie; a omissão elíptica é justamente uma
valorização que se elide.
Verificamos, no capitulo III, como esses recursos lingüísticos são
aplicados nos textos de Luís Fernando Verissimo, pois são eles que fazem da
crônica um gênero literário tão apreciado, e da ironia o seu tempero.
50
CAPÍTULO III - LUÍS FERNANDO VERISSIMO
3.1 A VIDA
Escritor e jornalista, o gaúcho Luis Fernando Verissimo
19
nasceu em 26 de
setembro 1936, em Porto Alegre, Rio Grande do Sul. O talento deve ser de família,
herdado do pai Érico Veríssimo, um dos maiores escritores de nossa literatura. Foi
alfabetizado nos Estados Unidos, para onde a família se muda em virtude de seu pai
ter ido lecionar em uma universidade da Califórnia, por dois anos.
De volta ao Brasil, estuda no Instituto Porto Alegre até os 16 anos.
Termina o 2º grau nos EUA e ali vive até 1956. Cursa a Roosevelt High School de
Washington, onde também estudou música, sendo até hoje inseparável de seu
saxofone. Em 1962, vai para o Rio de Janeiro, onde permanece por cinco anos
empregado no jornal da Câmara de Comércio Americana. No começo, escreveu
para várias seções (redator, editor nacional e internacional), chegando até a fazer
Horóscopo, além de trabalhar como tradutor.
Antes de ganhar a vida escrevendo, Luís Fernando Verissimo quis ser
saxofonista profissional e chegou até a tocar no conjunto Renato e seu Sexteto.
Casado e com uma filha pequena ( hoje ele tem três filhos), volta para Porto Alegre
e, em 1967, trabalha como redator no jornal gaúcho Zero Hora e, aos 31 anos,
19
Informações tiradas do site oficial de Verissimo: http://portalliteral.terra.com.be.verissimo e
http://www.releituras.com/lfverissimo_bio.asp. Pesquisa realizada em 25 de maio de 2006.
51
passa a assinar sua primeira coluna diária no jornal em 1969. Estréia na literatura
em 1973 com o livro de crônicas O popular.
Luís Fernando Verissimo é considerado um de nossos melhores
escritores de crônica e é muito conhecido do grande público. Entre seus mais de 40
títulos publicados, incluem-se O analista de Bagé (1977), A velhinha de Taubaté
(1983) e Comédias da vida pública (1995). Com ironia e humor, desenha o
personagem Ed Mort nos quadrinhos Procurando o Silva, posteriormente adaptado
para o cinema por Alain Fresnot. As histórias de O Analista de Bagé, Brasileiros e
Brasileiras, A Família Brasil , O marido do Dr.Pompeu e As mentiras que os homens
contam são adaptadas para o teatro. Participou também da televisão, criando
quadros para o programa Planeta dos Homens, na Rede Globo. Seu livro de
crônicas, Comédias da Vida Privada (1994), origina a série de mesmo nome
produzida também pela TV Globo. Além disso, tem textos de ficção e crônicas
publicadas nas revistas Playboy, Cláudia, Domingo (do Jornal do Brasil), Veja, e nos
jornais Zero Hora, Folha de São Paulo, Jornal do Brasil e, a partir de junho de 2.000,
no O Globo.
3.2 O CRONISTA
Verissimo, procurando mostrar o lado engraçado do nosso dia-a-dia, cria
personagens famosos, como a Velhinha de Taubaté, que era a última pessoa no
país que ainda acreditava no governo e que, no dia 25 de Agosto de 2005, foi
oficialmente declarada morta por seu criador. A personagem agiu durante estes
52
últimos 22 anos (desde 1983) como o "último bastião da credulidade", a última
pessoa no Brasil a acreditar no governo. A causa de sua morte foi descrédito súbito,
naturalmente, esclarece Verissimo.
Jaguar (2006) comenta que Verissimo é uma fábrica de fazer humor, mas
é extremamente tímido. Já foi premiado várias vezes : em 1995, recebeu o Prêmio
da Critica pelo programa Comédias da Vida Privada, da Rede Globo; em 1997
recebeu o Troféu Juca-Pato de Intelectual do Ano . Em 2000, foi homenageado,
juntamente com o pai, pela escola de samba Unidos de Vila Isabel com o samba-
enredo De Verissimo a Veríssimo.
Ana Maria Machado (2001) no prefácio do livro de Luis Fernando
Verissimo, Comédias para ler na escola, comenta:
Luís Fernando Verissimo conta com seu magistral domínio da
linguagem e do ritmo da narração. Tem uma admirável economia no uso
das palavras - tudo é enxuto, nada sobra. No país do barroco, é quase
minimalista. Seus diálogos dão até a impressão de que saíram de uma fita
gravada. Mas é só a gente lembrar da realidade das transcrições de
conversas gravadas (cada vez mais freqüentes nas denúncias de
escândalos pela imprensa), para perceber como essa impressão é falsa.
Estamos exatamente diante daquele processo que Carlos Drummond de
Andrade descreveu tão bem, ao dizer que queria a beleza da simplicidade,
mas não a beleza do que nasceu simples e sim a beleza do que ficou
simples. Fruto de atenção impiedosa, muito trabalho e aguda consciência
de como cortar. (MACHADO,2001. p. 9-15.)
Como hobby, Verissimo é saxofonista. Seu grupo, o "Jazz 6", apresenta-
se ocasionalmente em Porto Alegre e, mais raramente ainda, em outras cidades,
em eventos especiais.
53
3.3 A PRESENÇA IRÔNICA EM ALGUMAS CRÔNICAS DE LUÍS
FERNANDO VERISSIMO
3.4 FARSA
Temas da atualidade são recorrentes nas crônicas de Veríssimo. Nelas
são abordados o amor , a religião, a política e questões morais, assuntos que,
segundo Mucke (1995), são áreas propícias para o desenvolvimento da ironia.
No texto Farsa
20
, uma mulher aproveita uma viagem do marido até São
Paulo para receber o amante em sua casa. Mas o marido não viaja e volta para casa
. A mulher esconde o amante no lugar mais previsível possível, o armário. Esquece,
contudo, de guardar seus sapatos, fato que vai desencadear a ironia no
desenvolver da narrativa.
O casal de amantes, surpreendido pela chegada inesperada do marido,
encara o fragrante de maneira irreverente, como mostra a frase da mulher Céus,
meu marido! O texto já exige um leitor-modelo
21
, capaz de entender o clima de
ironia que o autor vai construindo ao utilizar uma expressão da linguagem religiosa
(clamar aos céus) em uma situação bastante profana.
O texto mostra que os amantes preferiam que o recém-chegado fosse um
ladrão e não o marido, revelando um cinismo ingênuo, mas jocoso, próprio do
clima irônico.
A mulher sugere que o amante se esconda no armário. Ele recusa, mas,
quando ela propõe a segunda opção, que seria debaixo da cama, ele aceita a
20
Todas as crônicas analisadas constam do anexo.
21
O leitor-modelo segundo Eco ( 1994), é aquele que tem competência para estabelecer uma ligação
com o autor na compreensão do texto.
54
primeira. Temos, então, a situação clássica do amante escondido no armário.. Trata-
se de uma situação que todo o leitor conhece e parece, em um primeiro olhar, que
terá um final previsível. Veríssimo, contudo, empregando muito humor e ironia,
consegue criar um final inusitado.
O marido, ouvindo vozes, pergunta com quem ela está conversando, e a
mulher diz que é a televisão, que ambos sabem que não tem no quarto. A ironia
aqui está exatamente nessa resposta. Tentando esconder os sapatos do amante,
ela esconde os do marido. A ironia aparece agora na entonação enfática da mulher,
que desorientada, começa a dar justificativas para a situação suspeita, mas vai
sendo desmascarada pelo marido. Esse engano, leva-a a usar um jogo de
contrários, de verdades e mentiras, que vão sendo atiradas para o marido, o que
constitui uma das formas de se criar a ironia.
A mulher, para se defender, assume o posto de ironista, fazendo várias
perguntas ao marido, que fica na posição de ironizado e tenta contradizê-la, pois,
como comenta Brait (1996, p. 44): “A ironia só pode ser empregada quando a outra
pessoa está preparada para escutar o oposto, de modo que não possa deixar de
sentir uma inclinação a contradizer.”
A irreverência da mulher ganha uma atitude de ataque quando ela diz:
Eu estava com outro homem aqui dentro quando você chegou. Ele pulou
para dentro do armário e esqueceu os sapatos.”
Com essa resposta, ocorre uma “incongruência entre um acontecimento
esperado e o que de fato sucede. (MACHLINE, 1986, p.16), fato que também
constitui uma das maneiras de se criar a ironia.
55
Finalmente, o marido abre a porta do armário, e marido e amante se
encaram. Nenhum dos dois diz nada. Depois de três ou quatro minutos o marido diz:
’Com licença’ e começou a pendurar sua roupa.
O leitor sabe o contexto da situação, mas o marido não, o que caracteriza
assim a ironia do destino, aquela que acontece com qualquer individuo vitimado por
circunstâncias inoportunas.
O cronista, colocando o sapato, que seria o revelador do amante, como a
única coisa que o marido reivindica, cria um final inesperado. Tal fato ao lado dos
recursos estilísticos empregados transformam a narrativa de um acontecimento
banal em um texto literário.
3.4 SEXA
A crônica Sexa mostra que a ironia é uma maneira de pensar e ler o
mundo. O autor constrói um diálogo simples, às vezes monossilábico entre pai e
filho. Trata-se de um retrato da típica família universal, em que o pai sempre tem
coisas mais importantes para fazer, e o filho é ansioso por atenção. O filho quer
saber o feminino da palavra sexo. O pai quer dar uma resposta rápida, mas a
criança não aceita. A construção da narrativa revela um humor leve, que se adapta
bem à crônica.
A ironia vai acontecendo na tentativa do pai em explicar a diferença entre
o feminino e o masculino das coisas . Invertendo conceitos da gramática, que são
56
normalmente aceitos pelo leitor, o autor o cativa, para que acompanhe esse
diálogo que fica cada vez mais confuso . O jogo de palavras não mostra a intenção
real do pai, confirmando aquilo que KIERKEGAARD (1991, p. 51) diz sobre o uso
da ironia :
(...) é essencial ao irônico jamais enunciar a idéia como tal, mas
apenas sugeri-la fugazmente, e tomar com uma das mãos o que é dado
com a outra, e possuir a idéia como propriedade pessoal, a relação
naturalmente se torna ainda excitante.
A construção final da crônica é uma epifania, uma expressão
desestabilizadora. A ironia se estabelece entre o próprio título e a construção da
narrativa, quando o pai conclui:
Ele só pensa em gramática.
Como afirma Foucault, “ a ironia precisa de ambos, o declarado e o não
declarado, pois ela é uma forma do que se tem chamado de ‘polissemia’ ‘esse não
dito que é, contudo, dito”. (FOUCAULT apud HUTCHEON, 2000, p. 94).
Essa crônica leve e até ingênua mostra que a ironia é o que torna o texto
literário e não simplesmente uma anedota.
3.5 TERRINHA
Na crônica Terrinha, temos um reencontro entre um homem e uma
conterrânea. Ela assistiu a uma peça teatral que ele representou na terrinha e,
deste então, é sua fã.
57
Ele saiu da terrinha e foi para a cidade grande. Para a sua admiradora,
ele estaria vivendo como um grande ator, entretanto, agora não passa de um
escriturário.
O reencontro possibilitou ao cronista a utilização de elipses, deixando o
leitor completar o que o homem estava pensando. A arte das entrelinhas e das
reticências é usada para dar um clima irônico ao texto.
Na construção da narrativa, há um contrastante entre a atitude alegre da
admiradora, que não cansa de falar sobre os grandes acontecimentos ocorridos na
terrinha, e o medo do pseudo-ator em ser descoberto:
Eu não vou dizer que sou escriturário e que esta é a minha hora de
almoço. Ah, não vou.
Esses fatos transmitem ao leitor a ambivaIência do pensamento, que
transita entre o trágico e o cômico. O tom irônico aparece nos momentos em que o
rapaz concorda por conivência, com sua admiradora, que não quer ouvir, mas falar.
A cena é ridícula, mas o autor a descreve com humor, narrando as ações que
despertaram na fã a sua devoção:
Aquela vez do piquenique no cemitério. A passeata pela revogação da lei
da gravidade, responsável por tombos fatais. Minha mãe. Eu estou até sem
respiração, é uma emoção muito grande. A mesa de vocês no bar do seu Pinto,
sabe que não deixava ninguém sentar nela?
Sem saber como agir, o rapaz entra no jogo da fã.
Da Globo ?! Espera até eu contar isso lá na terrinha! Espera só. Eu
sabia que vocês iam estraçalhar na cidade grande.
58
A crônica mostra uma intenção irônica expressa pela verdadeira
condição do rapaz na cidade grande e o que a fã pensa. O leitor precisa estar atento
para compreender os sinais construídos pelo cronista, como comenta Ferraz (1987,
p. 27) : (...) não podemos deixar de reconhecer que a força expressiva da ironia é
tanto maior quanto mais os “sinais” da intenção irônica estiverem “escondidos”, o
que equivale a dizer: quando mais (dis)simulada for essa intenção.
3.6 SEGURANÇA
A crônica Segurança retrata um aspecto da sociedade moderna, com que
todo cidadão é obrigado a conviver, a violência.
A brincadeira, a ironia e o humor aparecem quando um condomínio tenta
achar soluções para se defender dos assaltos sucessivos.
O narrador/autor ironiza o medo que ronda os lares e faz com que os
condomínios no Brasil virem verdadeiras cadeias. A linguagem despretensiosa e
cheia de ambigüidades traz uma crítica à sociedade e também à política econômica
brasileira:
O ponto de venda mais forte do condomínio era a sua segurança. Havia as
belas casas, os jardins, os playgrounds, as piscinas, mas havia, acima de tudo,
segurança.
59
Quando a segurança é ressaltada, percebemos a ironia do cronista,
revelando uma inversão de valores.O que anteriormente era prioridade (viver com
conforto, beleza e vários espaços de lazer) passa a um segundo plano:.
A irreverência do cronista mostra a situação ambígua de assaltantes e
condôminos: os que deveriam ser livres estão presos, e vice-versa. Aqui, a ironia é
construída no exagero.
Foi reforçada a guarda. Construíram uma terceira cerca. As famílias de
mais posses, com mais coisas para serem roubadas, mudaram-se para uma
chamada área de segurança máxima. E foi tomada uma medida extrema. Ninguém
pode entrar no condomínio. Ninguém. Visitas, só num local predeterminada pela
guarda, sob sua severa vigilância e por curtos períodos.”
A crônica como fato jornalístico é evidenciada nesse texto, pois a todo
momento verificamos nos jornais, escritos e televisivos, a situação de insegurança
vivida pelos ricos condomínios espalhados pelo território nacional. O que antes era
comum nos bairros humildes, em que a população contava apenas com o poder
público, agora também é um problema da classe rica, que, mesmo com toda a
segurança que o dinheiro pode dar, vive prisioneira.
O autor estabelece um misto de ironia e tragédia, em cada parágrafo, pois
vai aumentando os itens de segurança até que ocorre a inversão:
Agora, a segurança é completa. Não tem havido mais assaltos. Ninguém
precisa temer pelo patrimônio. Os ladrões que passam pela calçada só conseguem
espiar através do grande portão de ferro e talvez avistar um ou outro condômino
agarrado às grades da sua casa, olhando melancolicamente para a rua.
60
A situação irônica é mantida no final do texto quando o autor coloca outro
item a ser priorizado, ou seja, aquele que tinha problema com a segurança, agora
tem com a insegurança.
A essência do texto não está só na crítica social e política, mas aparece
entre os fatos narrados e o leitor, que também vive essa realidade.
3.8 - NEGOCIAÇÕES
Na crônica Negociações, o cronista começa destacando uma notícia :
Li que a população dos ratos já supera em alguns bilhões a população
humana da Terra”.
A partir dela, ele cria um texto ficcional, como faz Moacyr Scliar
semanalmente no Jornal Folha de São Paulo. Relatando que o rato é um animal
urbano como o homem e que os dois disputam o mesmo espaço, o autor pergunta o
que fazer se as táticas convencionais não são mais úteis para acabar com o rato?
Para o escritor a única solução seria negociar com eles. Assim,
ironicamente, ele cria uma cena em que Igor, o representante dos ratos negocia
com o secretário-geral das Nações Unidas, o representante da humanidade, em
Genebra.
O cronista estabelece a ironia utilizando a personalização. O rato Igor
(único nome que aparece no texto) assemelha-se a um governante. Fala oito
idiomas e é todo fabricado. Nada dele é natural, tudo é construído e manipulado:
61
Gerado por inseminação artificial numa rata amestrada do Centro de
Estudos Genéticos da Universidade de Wisconsin, Estados Unidos... Seu coração é
de plástico, movido a diminutas baterias.
Nada nesse rato é de verdade, ele é a pura ironia da ganância humana.
Igor representa a decadência humana, pois o homem constrói com suas próprias
mãos a sua destruição:
Existe uma elite entre nós, criada em laboratórios, imune a todos os vírus.
Podemos transmitir a várias gerações em questão de semanas. Nós,
reverendíssimo, é que temos os meios para liquidar vocês.
A ironia de Veríssimo traduz a indignação de um escritor que é também
jornalista e conhece a hipocrisia dos lideres políticos, que criam os conflitos e as
situações caóticas pelas quais passa a humanidade e, depois de tantas ações
insensatas, recorrem às Nações Unidas para tentar resolvê-las.
Em cada parágrafo do texto, impera a ironia. O rato Igor fala com o
secretário fumando maconha e o secretario procura palavras para não ofendê-lo.
O secretário se espanta com tom irônico de Igor, que diz:
O quê? Isso seria contra as leis de Deus e da Natureza. O papa nunca
aprovaria.
Apoiado no discurso religioso, Verissimo brinca com a igreja católica que
é contra o controle de natalidade. A ironia dessa crônica só será entendida se o
leitor tiver conhecimento das várias questões apontadas pelo escritor: a posição da
igreja na questão da natalidade, a influência das Nações Unidas, o poder da mídia.
A troca de posições também mostra a ironia, pois os ratos estão
preparados para as mudanças (eles estão acostumados a morder os homens) e os
62
homens, com suas vaidades e fraquezas, não são fortes e vão acabar derrotados
nessa luta.
Em seguida, nota que Igor está olhando para seus dedos com um brilho
diferente nos olhos. E recolhe a mão, rapidamente.
Veríssimo, a partir da ironia de suas previsões e definições, mostra que o
que sobra para a humanidade é o humor, que nos ajuda a refletir sobre a nossa
própria existência e a entender que só restam, então, anedotas e é assim que a
consciência irônica graceja com o mundo. (RAMOS 1998, p. 5).
63
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nesta dissertação, recorremos aos textos de Luís Fernando Verissimo por
acreditar que ele conseguiu, com seu traço característico, que é a ironia e o humor,
conferir à crônica, esse gênero por muitos menosprezados, seu valor literário.
Embora seja curta, de fácil e rápida leitura, a crônica exige uma grande habilidade
do escritor.
Verissimo, talvez por sua conhecida timidez, considera-se mais jornalista
que escritor, mas é tido como um dos grandes nomes da literatura nacional.
Para haver ironia, a interação com o receptor é essencial. Nas crônicas de
Veríssimo, ela é sinal de liberdade seja na sintaxe, seja na criação do clima irônico
dos seus textos.
Nada escapa de seu olhar. Com humor e ironia, Veríssimo serve-se de
aspectos do cotidiano para questionar os valores impostos pela sociedade e o poder
dos políticos:
O humor é uma linguagem. Você pode falar de tudo, coisas mais e
menos sérias, mas usando uma linguagem mais leve, mais atraente. As
pessoas gostam de ler uma coisa bem-humorada. Mas às vezes, há certos
riscos, por exemplo, a ironia, que é sempre perigosa, porque muitas vezes a
pessoa não entende a ironia. Tem que explicar que aquilo é ironia. Mas,
fora isso, o humor é uma linguagem que serve para tudo. (VERISSIMO,
2005)
Veríssimo sabe mesclar um fato banal da vida cotidiana com os grandes
propósitos existenciais do homem. Também transporta, para seu trabalho, a
filosofia, a psicologia, a economia e muitos outros assuntos. Coloca, em seu
texto, o traço da realidade e a ficção. Homem de seu tempo não deixa de fazer um
trabalho engajado na crítica e na reflexão.
64
Veríssimo, exercitando de maneira sublime a ironia, cria tipos que
representam a maioria da sociedade brasileira. As diversas vozes que compõem
suas crônicas mostram que a ironia é um processo discursivo que, servindo para a
critica política e social, conta com a cumplicidade de um leitor-modelo.
Teóricos como Mucke e Hutcheon serviram para reforçar a idéia de que o
uso da ironia constitui um recurso estilístico para trazer a crônica para o universo
literário.
Antonio Candido, Portella e Arrigucci foram os críticos literários que
utilizamos para fundamentar nossas conclusões.
65
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71
ANEXOS
72
Farsa
Luís Fernando Verissimo
QUANDO OUVIU O RUÍDO DA PORTA do apartamento sendo aberta
à mulher soergueu-se ligeiro na cama e disse, ela realmente disse:
Céus meu marido!
O amante ergueu-se também, espantado, menos com o marido do que
com a frase.
O que foi que você disse?
Eu disse “Céus, meu marido!”.
Foi o que pensei, mas não quis acreditar.
Ele me disse que ia para São Paulo!
Talvez não seja ele. Talvez seja um ladrão.
Seria sorte demais. É ele. E vem vindo para o quarto. Rápido,
esconda-se dentro do armário!
O quê? Não. Tudo menos armário!
Então embaixo da cama.
O armário é melhor.
O amante pulou da cama, pegou sua roupa de cima da cadeira e
entrou no armário, pensando “Isto não pode estar acontecendo”. Começou a rir,
descontroladamente. Até se lembrar que tinha deixado seus sapatos ao lado da
cama. Ouviu a porta do quarto se abrir. E a voz do marido.
Com quem você estava conversando?
Eu? Com ninguém. Era a televisão. E você não disse que ia para
São Paulo?
73
Espere. Aqui no quarto não tem televisão.
Não mude de assunto. O que é que você está fazendo em casa?
O amante começou a rir. Não podia se conter; mesmo sentindo que
assim fazia o armário sacudir. Tapou a boca com a mão. Ouviu o marido perguntar:
Que barulho é esse?
Não interessa. Por que você não está em São Paulo?
Não precisei ir, pronto. Estes sapatos...
O amante gelou. Mas o marido se referia aos próprios sapatos, que
estavam apertados. Agora devia estar tirando os sapatos. Silêncio. O ruído da porta
do banheiro sendo aberta e depois fechada. Marido no banheiro. O amante ia
começar a rir outra vez quando a porta do armário se abriu subitamente e ele quase
deu um berro. Era a mulher para lhe entregar seus sapatos. Ela fechou a porta do
armário e se atirou de novo na cama antes que ele pudesse avisar que aqueles
sapatos não eram os dele, eram os do marido. Loucura!
Porta do banheiro abrindo. Marido de volta ao quarto. Longo silêncio. Voz
do marido:
Estes sapatos...
O que é que tem?
De quem são?
Como, de quem são? São os seus. Você acabou de tirar.
Estes sapatos nunca foram os meus.
Silêncio. Mulher obviamente examinando os sapatos e dando-se conta
do seu erro. O amante, ainda por cima com falta de ar. Voz da mulher, agressiva:
Onde foi que você arranjou estes sapatos?
Estes sapatos não são os meus, eu já disse!
74
Exatamente. E de quem são? Como é que você sai de casa com um
par de sapatos e chega com outro?
Espera ai...
Onde foi que você andou? Vamos, responda!
Eu cheguei em casa com os mesmos sapatos que saí. Estes é que
não são os meus sapatos.
São os sapatos que você tirou. Você mesmo disse que estavam
apertados. Logo, não eram os seus. Quero explicações.
Só um momentinho. Só um momentinho!
Silêncio. Marido tentando pensar em alguma coisa para dizer.
Finalmente, a voz da mulher triunfante:
Estou esperando.
Marido reagrupando as suas forças. Passando para o ataque.
Tenho certeza absoluta absoluta! de que não entrei neste quarto
com estes sapatos. E olhem só, eles não podiam estar apertados porque são
maiores que meu pé.
Outro silêncio. A mulher, friamente:
Então só há uma explicação.
O marido:
Qual?
Eu estava com outro homem aqui dentro quando você chegou.
Ele pulou para dentro do armário e esqueceu os sapatos.
Silêncio terrível. O amante prenderia a respiração se não precisasse
de ar. A mulher continuou:
. Mas, nesse caso, onde é que estão os seus sapatos?
75
O homem sem muita convicção:
Você poderia ter entregue os meus sapatos para o homem dentro do
armário, por engano.
Muito bem. Agora, além de adúltera, você está me chamando de
burra. Muito obrigada.
Não sei não, não sei não. E eu ouvi vozes aqui dentro...
Então faz o seguinte. Vai até o armário e abre a porta.
O amante sentia que o armário sacudia. Mas agora não era seu riso.
Era o seu coração. Ouviu os pés descalços do marido aproximando-se do armário.
Preparou-se para dar um pulo e sair correndo do quarto e do apartamento antes que
o marido se recuperasse. Derrubaria o marido na passagem. Afinal, tinha os pés
maiores. Mas a mulher falou:
Você sabe, é claro, que no momento em que abrir essa porta estará
arruinando o nosso casamento. Se não houver ninguém aí dentro, nunca
conseguiremos conviver com o fato de que você pensou que havia. Será o fim.
E se houver alguém?
Ai será pior. Se houver um amante de cuecas dentro do armário, o
nosso casamento se transformará numa farsa de terceira categoria. Em teatro
barato. Não poderemos conviver com o ridículo. Também será o fim.
Depois de alguns minutos, o marido disse:
De qualquer maneira, eu preciso abrir a porta do armário para guardar
a minha roupa...
Abra. Mas pense no que eu te disse.
Lentamente, o marido abriu a porta do armário. Marido e amante se
encararam. Nenhum dos dois disse nada. Depois de três ou quatro minutos o marido
76
disse: “Com licença” e começou a pendurar sua roupa. O amante saiu lentamente de
dentro do armário, também pedindo licença, e se dirigiu para a porta. Parou quando
ouviu um “Psiu”. Disse:
É comigo?
É disse o marido. Os meus sapatos.
O amante se lembrou de que estava com os sapatos errados na mão,
junto com o restante sua roupa. Colocou os sapatos do marido no chão e pegou
os seus. Saiu pela porta e não se falou mais nisso.
(extraído do livro “As mentiras que os homens contam)
77
Sexa
Luiz Fernando Veríssimo
Pai...
Hmmm?
Como é o feminino de sexo?
O quê?
O feminino de sexo.
Não tem.
Sexo não tem feminino?
Não.
Só tem sexo masculino?
É. Quer dizer, não. Existem dois sexos. Masculino e feminino.
E como é o feminino de sexo?
Não tem feminino. Sexo é sempre masculino.
Mas tu mesmo disse que tem sexo masculino e feminino.
O sexo pode ser masculino ou feminino. A palavra “sexo” é masculina. O sexo
masculino, o sexo feminino.
Não devia ser a “sexa”?
Não.
Porque não! Desculpe. Porque não. “Sexo” é sempre masculino.
O sexo da mulher é masculino?
É. Não! O sexo da mulher é feminino.
78
E como é o feminino?
É sexo mesmo. Igual ao do homem.
O sexo da mulher é igual ao do homem?
É quer dizer... Olha aqui. Tem sexo masculino e o sexo feminino, certo?
Certo.
São duas coisas diferentes.
Então como é o feminino de sexo?
É igual ao masculino.
Mas não são diferentes?
Não. Ou, são! Mas a palavra é a mesma. Muda o sexo, mas não muda a
palavra.
Mas então não muda o sexo. É sempre masculino.
A palavra é masculina.
Não. “A palavra” é feminino. Se fosse masculina seria “o pal...”
Chega! Vai brincar, vai.
O garoto sai e a mãe entra. O pai comenta:
Temos que ficar de olho neste guri...
Por quê?
Ele só pensa em gramática.
(extraído do livro “Comédias para se ler na Escola”)
79
TERRINHA
Luís Fernando Verissimo
Ela não tirava os olhos dele, e ele pensou “Ué”, e depois pensou” E eu
neste estado”, porque andava mal, mal vestido, mal barbeado, mal dormido, mal
vivido, o que será que essa menina quer? Até que não é feia, mas... Meu Deus, ela
vem vindo para cá. Deixa eu pelo menos alisar os ca...
O quê?
Como vai o Odipé?
Ele confuso. Ia dizer “Não conheço ninguém com esse nome” e então se
lembrou o Odipé. A minha peça!
Puxa faz tanto tempo. Você viu, é?
Devo ter visto umas 20 vezes.
Puxa.
Olha, eu sou sua, sei lá. Vidrada, viu?
Ele apalpou as costas para ver se a camisa estava para fora das calças, uma
fã e eu neste estado.
Então você é de lá da terrinha, é?
É vim este ano estudar aqui, nunca pensei que fosse encontrar você, esta
cidade é tão grande. Tudo que vocês faziam achávamos maravilhoso.
Nós?
80
É. Tem uma turma lá na terrinha, você nem vai acreditar, a gente imitava
vocês. Fizemos até uma versão do Odipé na escola, deu o maior rolo. Teve pai de
aluno que protestou. O maior escândalo.
Ah, é?
“Ah, é...” É só isso que eu consigo dizer? “Ah, é...” Ela não vai me achar
muito brilhante, mas ela não para de falar. Está emocionada mesmo.
Tudo que vocês faziam. Aquela vez do piquenique no cemitério. A
passeata pela revogação da lei da gravidade, responsável por tantos tombos fatais.
Minha mãe. Eu estou até sem respiração, é uma emoção muito grande. A mesa de
vocês no bar do seu Pinto, sabe que a gente deixava ninguém sentar nela? Ficou
como uma espécie, assim de relíquia, sei lá. Me diz uma coisa, uma coisa que eu
sempre quis saber. |Posso perguntar?
Pergunta, pergunta.
Aquele poema que você leu no bar do seu Pinto, que você subiu na mesa
e declamou, com o Bentevi tocando gaitinha de boca atrás, era para a Salma da
dona Genuína.
Olha faz tanto tempo, que eu...
Porque até hoje tem gente que discute se era para a Salma. Tem uma
corrente que diz que era para a Maíra da farmácia e outra que diz que era para uma
mulher mais velha, que era o teu amor secreto.
Bem, eu...
E o Bentevi? E a Russa? Vocês ainda se vêem? Todos os dias eu
pegava um jornal daqui esperando ver o nome de vocês. Eu pensava: aqueles três
vão estraçalhar na cidade grande. A Russa! Aquela parte do Odipé em que ela ia
81
rasgando a túnica e gritando “Vísceras! Vísceras!” até hoje eu fico arrepiada. Vocês
nunca fizeram nada aqui?
Não, não. Nós... A gente até se vê pouco. O Bentevi esteve e doente,
aliás, está internado, e a Russa...
Sabe que cada um de nós queria ser você?
Ah, é?
A gente brigava. Eu quero ser o Bentevi! Eu quero ser a Russa!
E você?
Eu queria ser você.
Ele pensou, não vou dizer “Ah, é?” Vou dizer o que? Ela continuou:
Olha vidrada, viu? Fã-clube mesmo.
Ah, é?
A terrinha, depois que vocês saíram... Vocês nunca mais voltaram lá?
Nunca, nunca. Nós nunca voltamos. Nunca mais. Nunca mesmo.
Nunca.
E o que você faz aqui? Desculpe as perguntas, é que estou
emocionada. Meu ídolo!
Eu não vou dizer que sou escriturário e que esta é minha hora de
almoço. Ah, não vou.
No momento, eu estou estudando uma proposta da Globo.
Da Globo?! Espera eu contar isso lá na terrinha! Espera só. Eu sabia
que vocês iam estraçalhar na cidade grande.
(extraído do livro As mentiras que os homens contam)
82
Segurança
Luiz Fernando Veríssimo
O ponto de venda mais forte do condomínio era a sua segurança. Havia as
belas casas, os jardins, o playground, as piscinas, mas havia, acima de tudo,
segurança. Toda a área era cercada por um muro alto. Havia um portão principal
com muitos guardas que controlavam tudo por um circuito fechado de TV. Só
entravam no condomínio os proprietários e visitantes devidamente identificados e
crachados.
Mas os assaltos começaram assim mesmo. Ladrões pulavam os muros e
assaltavam as casas.
Os condôminos decidiram colocar torres com guardas ao longo do muro alto.
Nos quatro lados. As inspeções tornaram-se mais rigorosas no portão de entrada.
Agora não só os visitantes eram obrigados a usar crachá. Os proprietários e seus
familiares também. Não passava ninguém pelo portão sem se identificar para a
guarda. Nem babás. Nem os bebês.
Mas os assaltos continuaram.
Decidiram eletrificar os muros. Houve e protestos, mas no fim todos
concordaram. O mais importante era a segurança. Quem tocasse no fio de alta
tensão em cima do muro morreria eletrocutado. Se não morresse, atrairia para o
local um batalhão de guardas com ordens de atirar para matar.
Mas os assaltos continuaram.
83
Grades nas janelas de todas as casas. Era o jeito. Mesmo se os ladrões
ultrapassassem os altos muros, e o fio de alta tensão, e as patrulhas, e os
cachorros, e a segunda cerca, de arame farpado, erguida dentro do perímetro, não
conseguiriam entrar nas casas. Todas as janelas foram engradadas.
Mas os assaltos continuaram.
Foi feito um apelo para que as pessoas saíssem de casa o mínimo
possível. Dois assaltantes tinham entrado no condomínio no banco de trás do carro
de um proprietário, com um revólver apontado para sua nuca. Assaltaram a casa,
depois saíram no carro roubado, com crachás roubados. Além do controle de
entradas, passou a ser feito um rigoroso controle de saídas. Para sair, só com um
exame demorado do crachá e com autorização expressa da guarda, que não queria
conversa nem aceitava suborno.
Mas os assaltos continuaram.
Foi reforçada a guarda. Construíram uma terceira cerca. As famílias de
mais posses, com mais coisas para serem roubadas, mudaram-se para a chamada
área de segurança máxima. E foi tomada uma medida extrema. Ninguém pode
entrar no condomínio. Ninguém. Visitas, só num local predeterminado pela guarda,
sob sua severa vigilância e por curtos períodos.
E ninguém pode sair.
Agora, a segurança é completa. Não tem havido mais assaltos. Ninguém
precisa temer pelo seu patrimônio. Os ladrões passam pela calçada só conseguem
espiar através do grande portão de ferro e talvez avistar um ou outro condômino
agarrado às grades da sua casa, olhando melancolicamente para a rua.
Mas surgiu outro problema.
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As tentativas de fuga. E há motins constantes de condôminos que tentam
de qualquer maneira atingir a liberdade.
A guarda tem sido obrigada a agir com energia.
(extraído do livro “Comédias para se ler na escola”)
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Negociações
Li que a população dos ratos já supera em alguns bilhões a população
humana na Terra. O rato é um animal urbano, como o homem, e simplesmente não
haverá comida e espaço para as duas espécies coabitarem nas cidades do futuro. O
que fazer? Nenhum dos métodos tentados até agora deu resultado na nossa luta
contra o rato pelo espaço vital. A ratoeira está superada. Os gatos falharam
escandalosamente. A guerra química está fora de cogitações. Só há uma solução:
Vamos ter que negociar.
Corta para a sala do Centro de Conferências Internacionais de Genebra. O
Secretário-geral nas Nações Unidas depois de muita discussão foi escolhido
para falar pela Humanidade. Ele chega a Genebra cercado de assessores de várias
nacionalidades. Traz gráficos, minutas e projetos. Tem plenos poderes para falar
pelo Homem. Instala-se numa grande mesa sob a luz de refletores e o olhar de
expectativa de dezenas de câmaras, e prepara-se para o grande encontro. Quem
falará pelos ratos?
Entra em cena, por um pequeno buraco na parede o representante do
inimigo. Seu nome é Igor.
Algumas palavras sobre Igor. Gerado por inseminação artificial numa rata
amestrada do Centro de Estudos Genéticos da Universidade de Wisconsin, Estados
Unidos, criou-se em vários laboratórios da América e da Europa. É um veterano de
todas as pesquisas importantes da sua época. Tem o corpo deformado por doenças
inimagináveis, algumas criadas especialmente para serem testadas nele. Seus
pulmões carcomidos, os bigodes amarelecidos, a voz rouca e os olhos injetados são
as marcas de sua experiência com o fuma e seus sucedâneos. Engordado com
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ciclamatos e depois submetido a dietas forçadas à base de psicotrópicos, Igor tem
as olheiras e os hábitos de uma vida artificialmente dissipada. Seu coração é de
plástico, movido a diminutas baterias. Seu imenso rabo - de vinil segura um cigarro
de maconha sintética que ele leva à boca a intervalos pausados. Em vez do seu
cérebro original de rato tem implantada na cabeça uma réplica miniaturizada do
cérebro humano. Fala oito idiomas, lê, escreve, tem noções de cibernética e de
lógica euclidiana. Treme um pouco, vestígio de anos de labirintos e choques
elétricos, em pesquisas motivacionais. Mas olha para tudo e para todos com
superioridade. Um murmúrio de espanto e admiração percorre o grande salão, à sua
entrada.
Depositado na mesa em frente ao secretário-geral, Igor o encara com
divertida indiferença, entre pálpebras semicerradas. Tira tragadas indolentes de
maconha enquanto o secretário decide como tratá-lo.
Meu filho... - experimenta o secretário.
O rato o interrompe. Sua laringe artificial, de rayon, produz um som áspero,
agravado pela bronquite crônica.
Meu nome é Igor, excelência. Simplesmente Igor. Minha mãe era uma
rata mutante. Meu pai, um conta-gotas. Não sou seu filho.
Sr. Igor, o senhor sabe o que nos traz aqui.
Sei, eminência. Vocês querem se render.
Não, filho.
Igor.
Não, Igor. Queremos evitar uma guerra de extermínio. Temos os meios
para eliminar a sua espécie, mas...
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Outra vez, Igor o interrompe, expelindo uma baforada de fumaça que o
secretário recebe na cara com mal disfarçado desgosto.
Negativo doutor. Vocês não têm como nos liquidar. A bomba? Seria
preciso arrasar todas as grandes cidades do planeta, e ainda assim sobreviveríamos
nas ruínas. Guerra bacteriológica? Não esqueça que as experiências com germes
foram feitas conosco. Existe uma elite entre nós, criada em laboratórios, imune a
todos os vírus. Podemos transmitir essa imunidade a várias gerações em questão de
semanas. Nós, reverendíssimo, é que temos meios para liquidar vocês.
O secretário abafa com a mão um pequeno acesso de tosse. Resolve ser
franco.
Queremos a coexistência pacífica, sr.Igor. Para começar, proporíamos o
controle da natalidade entre os ratos. Pílulas especiais, pequenos diafragmas.
Igor simula um gesto de horror.
O quê? Isso seria contra as leis de Deus e da Natureza. O papa nunca
aprovaria.
Aceito a ironia, seu rato. Digo, sr., Igor. Mas o senhor parece não se dar
conta da gravidez... fa gravidade da situação. Se continuarmos assim, acabaremos
nos entredevorando!
Com uma sutil diferença, meritíssimo. Estamos acostumados a morder
vocês. Nós não teríamos de vencer nenhuma repugnância para comê-los. Eu, por
exemplo, adoro dedo de gente. Gosto de roer uma falange. Há gerações que
comemos até o lixo de vocês, sem escrúpulos ou cara feia. Já vocês teriam de
descartar milênios de civilização, de pruridos, de etiqueta, de discriminação, antes
de morder um rato.
O secretário não pôde conter a sua impaciência.
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Está bem, está bem, O que vocês propõem, então?
Honorável, vocês é que pediram para negociar. Nós não propomos nada,
para nós está tudo ótimo.
O secretário bate com a mão aberta na mesa.
Então é guerra|?
Em seguida, nota que Igor está olhando para os seus dedos com um brilho
diferente nos olhos. E recolhe a mão, rapidamente.
(extraído do livro Cronistas do Estadão)
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