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livro livre
No século XIX, os sistemas se fecham sobre ele mesmo. O
Universo irá se encaminhar em direção ao esgotamento, “a
morte térmica, Zero” (Benoit, 1998, p. 381). Se de uma parte
ele se dirige ao esgotamento entrópico, se verá também surgir
estruturas complexas, neg-entrópicas, subvertendo toda
probabilidade. Os eventos neg-entrópicos procuram compensar
a entropia global por localidades de alto nível de organização e
de complexidade, e de grande improbabilidade (a vida, o
pensamento, a palavra, etc.).
Constelação é uma expressão recorrente na obra de Mallarmé,
que sempre perseguiu uma correlação entre poesia e Universo.
Ele designa aos seus poemas constelares uma pureza justaposta
à concepção do Universo. Seu projeto mais radical Livre, que
restou em notas, é resultado de diversas de suas reflexões de
Mallarmé acerca da escrita. Tal questão aparece influenciada
pela abundância de escritas que então saltavam do livro e
tomavam as ruas. Letreiros, jornais, cartazes, palavras
esgarçadas nas beiradas e interpoladas umas às outras. A
linguagem é a da velocidade, do simultâneo, do anárquico. O
mundo já não se deixava imprimir sob a forma tradicional do
livro.
Mallarmé era “um syntaxier” na definição de Haroldo de
Campos (1997, p. 260), ele subverte a sintaxe, para propor uma
sintaxe relacional. “O livro, expansão total da letra, deve
diretamente dela retirar uma mobilidade e, espacialmente, por
correspondências, instituir um jogo, nunca se sabe, que
confirma a ficção” (Mallarmé, 1994, p. 269). Ao conceber o
poema como uma constelação, o poeta o retira do plano
bidimensional (temporístico-linear) para lançá-lo ao espaço
quadridimensional (cósmico). Organiza o espaço
estereograficamente, fragmenta o texto, toma as palavras como
elementos potenciais, como feixe radiante de significados.
Mallarmé insere as frases numa ordem de movimento, de
sincronismos, de interjeições onde a palavra é contextualizada
indefinidamente. Concebe um espaço de reversibilidades, no
qual figuras radiantes podem passar a ser vistas como orifícios
rompendo o limite do espaço. Um jogo que movimenta-se ao
infinito.
O Livre propõe a total mobilidade e correspondência dos
elementos que o integram. Composto de quatro livros que
podem ser ordenados dois a dois formando no todo um quinto,
o livro total. Cada livro é subdividido em cinco volumes, que
comportam três grupos de oito folhas cada um. Mesmo as
folhas são subdivididas – ½ folha, ¼ de folha, 18 linhas de
doze palavras. Com isso chega-se a exaustivas combinações
seguindo uma paginação tridimensional. As páginas
intercambiáveis proporcionam múltiplas estruturas e múltiplas
leituras possíveis. Um livro múltiplo, não comportando
nenhum signatário. Em o Livre, Mallarmé visava concretizar o
ideal de uma obra de arte total, desestabilizando,
definitivamente, a estrutura linear e discursiva. Soltando as
páginas, deixando-as à mercê da casualidade, Mallarmé
intensifica o movimento. O Livre é decomposto em lâminas,
fotogramas intercambiáveis a serem ainda dobrados e
desdobrados. A palavra torna-se holográfica, prismática, um
“1) a ciência, a arte não têm limites,
porque o que se conhece é ilimitado,
inumerável, e a ilimitação e a
inumerabilidade são iguais a zero. 2) Se
as criações do mundo são os caminhos de
deus e ‘seus caminhos são inescrutáveis’,
tanto ele como seus caminhos são iguais
a zero. 3) Se o mundo é a criação da
ciência, do conhecimento e do trabalho, e
sua criação é infinita, então é igual a
zero. 4) Se a religião conheceu deus,
compreendeu o zero. 4) Se a ciência
compreendeu a natureza, compreendeu o
zero. 6) Se a arte compreendeu a harmo-
nia, o ritmo e a beleza, compreendeu o
zero. 7) Se alguém compreendeu o
absoluto, compreendeu o zero. 8) Não há
de ser em mim nem fora de mim;
ninguém, nada pode mudar a si mesmo,
e nada que possa ser mudado”(Malevich,
Apud, Argan, 1992, p.672).