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GILBERTO MACHADO RIZZI
A percepção do ambiente urbano:
investigando uma ilha de tranqüilidade na Mooca
.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo,
para obtenção do grau de mestre.
ORIENTADOR: PROF. DR. SÉRGIO ROBERTO DE FRANÇA MENDES CARNEIRO
São Paulo
2007
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GILBERTO MACHADO RIZZI
A percepção do ambiente urbano:
investigando uma ilha de tranqüilidade na Mooca
.
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Arquitetura e Urbanismo,
para obtenção do grau de mestre.
Aprovado: em _______________________ de 2007.
ORIENTADOR: PROF. DR. SÉRGIO ROBERTO DE FRANÇA MENDES CARNEIRO
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3
Rizzi, Gilberto Machado
A percepção do ambiente urbano: investigando uma ilha de
tranqüilidade na Mooca./ Gilberto Machado Rizzi - São Paulo,
2007.
211 f. : il. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Arquitetura) – Universidade São Judas
Tadeu, São Paulo, 2007.
Orientador: Prof. Dr. Sérgio Roberto de França Mendes Carneiro
1. Ambiente Urbano. 2. Percepção. 3. Ambiente Urbano 4.
Método Qualitativo de pesquisa. I. Título
CDD
-
720
Ficha catalográfica: Elizangela L. de Almeida Ribeiro - CRB 8/6878
4
A meu orientador, que embora muito mais jovem do que eu,
abriu-me uma nova percepção da profissão do arquiteto, e a
meus alunos, que são minha fonte permanente de motivação.
5
AGRADECIMENTOS
À Universidade São Judas, pela concessão da bolsa que me permitiu fazer esse curso.
A meu orientador, pela paciência, generosidade e dedicação, consubstanciadas de diversas
maneiras, entre elas, nas horas extras de trabalho em que me acompanhou a campo e na
colocação de sua biblioteca pessoal à minha disposição.
Aos professores do curso de Pós-Graduação que foram gentilmente tangendo meu caminhar
nesse percurso, contribuindo para um novo entendimento do processo de produção do
conhecimento. Agradeço em especial ao Professor Dr. José Ronal Moura de Santa Inês e ao
Professor Dr. Alexandre Lipai, pelas contribuições dadas em seus respectivos cursos e pelas
diretrizes oferecidas na banca de qualificação. Agradeço ao Professor Luís Octávio da Silva
por confirmar ser possível falar da beleza da cidade, oferecendo os meios adequados para
isso. Agradeço ao Professor Dr. Paulo Assunção, por ter mostrado que a História, ao falar do
passado, tem em vista a construção do presente.
Ao professor Fernando Duch e sua assistente Marly, por me terem apresentado formalmente a
um destacado membro da comunidade pesquisada, e que me colocou em contato com os
moradores da área de estudo, atendendo assim aos procedimentos recomendados pela
etnografia.
Ao advogado Plínio Machado Rizzi, meu irmão, pela paciente e cuidadosa correção do texto.
Aos moradores da área de estudo, que com cordialidade e generoso espírito de colaboração
me receberam em suas residências, ou em seus gabinetes de trabalho, e ofereceram ricos
depoimentos de vida, nos quais expressaram a sensível e acurada percepção que têm do
ambiente urbano em que residem.
6
RESUMO
A arquitetura sofreu uma importante crise na década de 1960, que promoveu a ruptura de
velhos paradigmas e motivou a busca de novos.
Encerrou-se o movimento moderno em meio a grande polêmica no âmbito profissional e sob
intensa crítica da sociedade em diversas partes do mundo, que atribuía ao movimento
modernista dos quarenta anos precedentes a precária qualidade das cidades contemporâneas.
Arquitetos apanhados de surpresa pelas diferenças de percepção existentes entre moradores e
profissionais buscaram subsídios nas ciências sociais, que estudavam a cidade sob
diferentes enfoques, inaugurando um profícuo campo interdisciplinar de pesquisa.
O presente trabalho acompanha o percurso da pesquisa na área da percepção do ambiente
urbano, realizada a partir de então, destacando os principais conceitos desenvolvidos e o
método qualitativo utilizado. Esses elementos enriquecem a abordagem tradicional da cidade,
de caráter marcadamente quantitativo.
Conceitos e método são verificados em um estudo de caso, que adota como área de estudo um
conjunto de quadras do bairro da Mooca, na zona leste de São Paulo.
Os ensinamentos decorrentes desse exercício de campo confirmam a importância dessa área
de pesquisa e mostram o quanto os moradores podem contribuir na concepção e no projeto do
ambiente em que vivem.
Palavras-chave: percepção, arquitetura, ambiente urbano, método qualitativo de pesquisa.
7
ABSTRACT
The achitecture beared a critical period in the 1960's that lead to the disruption of old
paradigms and to the search of new ones.
The modern movement in architecture arrived to the end, amidst an ambience of deep
desagreement in the professional field of designers and under tough criticism of the
international community, that blamed on the modern achitecture of the preceding forty years
the critical conditions of the urban environment.
The different perceptions of the built environment, that showed up at this period were at least
surprising for many architects. Some of them, aware of this fact, search for help in the social
studies, that focused the city in many different ways, stablishing a fertile interdisciplinary
research field.
This work walks the path opened by the researchers in the perception of urban environment,
pointing out the main concepts that emerged, as well as the qualitative research method
employed. These elements contribute to make wider the traditional aproach of the city,
strongly based on quantitative procedures.
The concepts and method were checked up in a study case, whose study area is a group of
blocks in Mooca, that is a quartier in the east zone of São Paulo.
The teachings that result from this field exercice confirm the relevance of this research area
and signilize the contribution that citzens can bring to the design process of their environment.
Key-words: perception, architecture, urban environment, qualitative research method.
8
SUMÁRIO
Pg.
1. INTRODUÇÃO 09
2. MÉTODO 13
3. QUADRO CONCEITUAL
3.1 Introdução 22
3.2 Os grandes mestres 23
3.3 A crise do movimento moderno 29
3.4 Novos desafios 31
3.5 Novos paradigmas: a interdisciplinaridade 34
3.6 O que nos ensinam os pesquisadores da percepção do ambiente urbano 40
4. ESTUDO DE CASO
4.1 A Área de estudo e a justificativa de sua escolha 64
4.1.2 Origens da área de estudo 68
4.1.3 Caracterização urbanística da área de estudo 113
4.2 Depoimentos dos moradores 140
4.3 O ambiente percebido pelo morador 182
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 201
6. BIBLIOGRAFIA 205
9
1. INTRODUÇÃO
Apresentam-se aqui de forma sucinta os principais elementos do projeto de pesquisa que
orientou a elaboração deste trabalho. Ele é uma referência que permite cotejar as intenções
formuladas inicialmente com o trabalho realizado. Este projeto incorporou várias alterações
que foram emergindo ao longo do processo, fruto do novo entendimento do tema. Essa nova
compreensão se configurou com o desenvolvimento da pesquisa conceitual e também com os
estudos sobre o método qualitativo, que propôs uma nova atitude do pesquisador frente ao
objeto de estudo e ao processo de constituição do conhecimento.
Objeto de Estudo
Esta pesquisa se propõe a investigar a percepção do ambiente urbano.
O Problema e a Justificativa
Arquitetos e usuários do ambiente urbano podem apresentar variações significativas nas
respectivas percepções de um mesmo ambiente urbano (RAPOPORT, 1976: 29, 32, 38, 41,
43, 63, 64, 65, 123). Além disso, diferentes grupos de moradores podem apresentar diferentes
percepções e distintas avaliações do mesmo ambiente (RAPOPORT, 1976: 20, 39). Tomar
consciência desse fato e buscar o conhecimento dessas variações é fundamental para o
arquiteto que deseje planejar e projetar ambientes urbanos que respeitem as aspirações de seus
moradores (RAPOPORT, 1976: 41 e HALLPRIN, 1977: 9 a 14), cabendo ao profissional a
tarefa de aproximar sua percepção à percepção do morador (RAPOPORT, 1976: 20).
Hipóteses
As diferenças de percepção e de avaliação do ambiente urbano, verificáveis entre arquitetos e
moradores podem ser atribuídas a diferenças culturais existentes entre esses dois sujeitos
(RAPOPORT, 1976: 20, 38). Além disso, a particular percepção que o arquiteto tem do
ambiente urbano pode ser condicionada pelos procedimentos tradicionalmente utilizados para
a descrição e avaliação desse ambiente (DENZIN e LINCOLN, 1997: 4; PENNA, 1984: 9 a
18; RAPOPORT, 1976: 65). Esses procedimentos, de caráter preponderantemente
quantitativo, são focados principalmente sobre os aspectos físicos do ambiente, e voltados
para a sua funcionalidade e salubridade. Deixam de abranger aspectos sutis como as relações
de afeto com o ambiente e os significados atribuídos a ele pelo morador, que podem se
10
observados com uma abordagem qualitativa (DENZIN e LINCOLN, 1997; TUAN, 1980: 2,
5, 129).
Conceitos
Na expressão percepção do ambiente urbano encontram-se entrelaçados dois conceitos, que
podem ser formulados preliminarmente da seguinte maneira: a percepção é um processo de
interação do sujeito com o ambiente, inato aos seres vivos; ambiente é entendido, de forma
ampla, como o conjunto de condições ou influências exteriores ao organismo pesquisado
(RAPOPORT, 1976: 23); a qualificação urbano delimita a abrangência do conceito de
ambiente ao âmbito da cidade.
Objetivos
O objetivo principal desse trabalho é destacar o quanto é importante para arquitetos e
estudantes de arquitetura, a consciência da existência de diferenças de percepção e avaliação
do ambiente, entre os profissionais da área de arquitetura e os moradores e os usuários do
ambiente urbano (RAPOPORT, 1976: 41). Como decorrência desse entendimento espera-se
incentivar a reflexão sobre o ato de projetar, visando, primeiramente, estimular a formulação
de critérios de projeto, para cada caso específico, de modo que os ambientes projetados
atendam mais de perto às expectativas dos moradores e usuários (JACOBS, 2003: 4 e
RAPOPORT, 1976: 29, 31, 32) e em segundo lugar promover a ampliação da participação do
morador e do usuário nas principais decisões relativas à concepção do ambiente habitado
(BENEVOLO, 1985: 143; HALLPRIN, 1977: 9 a 14; RAPOPORT, 1976: 21).
Método
Serão adotados os procedimentos da abordagem qualitativa, por serem mais adequados à
pesquisa da percepção do ambiente efetivada pelo morador, que envolve aspectos não
enfocados pelos métodos quantitativos, tais como relações de afeto, atribuição de significado
ao ambiente, identificação e compromisso, fruição estética e outros (DENZIN e LINCOLN,
1997).
Os procedimentos prevêem levantamento em campo, de caráter etnográfico (ATKINSON e
HAMMERSLEY, 248 a 258; BARBOSA e HOGA, 2006: 55, 56; SANTOS, 1985: 21 a 25)
envolvendo observação in loco, assim como o registro e a interpretação de narrativas de
11
avaliação do ambiente, colhidas em entrevistas em profundidade (DENZIN e LINCOLN,
1997), feitas com dez moradores da área de estudo, residentes há mais de um ano no local.
Estudo de caso
Escolheu-se como área de estudo um conjunto de quadras do bairro da Mooca, situado na
Zona Leste da cidade de São Paulo, capital do estado brasileiro de mesmo nome. A área de
estudo tem a forma de um quadrilátero irregular, com superfície aproximada de 15 ha, e suas
quadras são configuradas por um particular traçado de rede viária hierarquizada: há um
conjunto de vias locais constituída por ruas com forma "U", que se iniciam e terminam em
uma mesma via e uma via que termina em um balão de retorno. Essas vias locais
apresentam um baixo nível de circulação de veículos e dão acesso a moradias de pequeno e
médio porte, térreas ou assobradadas. As ruas que delimitam a área de estudo são três vias
coletoras e uma arterial, que apresentam trânsito intenso e ruidoso de veículos de transporte,
carga e de passeio. Essas vias principais dão acesso a um uso do solo diversificado, de
comércio, serviços e instituições, e a edifícios residenciais de quatro a doze andares. A área é
totalmente servida por redes de infra-estrutura urbana e conta com um núcleo de
equipamentos de comércio, serviços, instituição e culto, de âmbito local, no largo São Rafael.
A MOOCA, A ÁREA DE ESTUDO E A ÁREA DE ESTUDO
OS BAIRROS VIZINHOS
A população residente é de classe média, com bom vel de escolarização, apresentando
marcada presença de famílias de ascendência italiana, e significativo mero de moradores
12
com idade acima de sessenta anos, aspectos sociais que são traços distintivos do bairro da
Mooca com relação a outros bairros da capital paulista.
O estudo de caso prevê a elaboração de uma caracterização do ambiente urbano, feita nos
padrões habitualmente utilizados no planejamento urbano corrente (cartas de parcelamento,
uso e aproveitamento do solo, rede viária hierarquizada, infra-estrutura, arborização e
respectivas análises) e o levantamento da avaliação desse mesmo ambiente, feita por seus
moradores, coletada nas entrevistas mencionadas. Essas duas descrições da área de estudo
permitirão o cotejamento das diferentes percepções do ambiente que elas registram.
A RUA DOS BANCÁRIOS NA ÁREA DE ESTUDO – NOVEMBRO DE 2005.
13
2. MÉTODO
2.1 Introdução
O método geral adotado nesta pesquisa teve dois procedimentos básicos, sendo o primeiro a
formulação de um quadro conceitual, elaborado a partir de pesquisa bibliográfica e o segundo
uma aplicação prática dos conceitos, mediante um estudo de caso.
O quadro conceitual teve por escopo o entendimento do conceito de percepção e também dos
conceitos desenvolvidos e utilizados nas principais pesquisas de percepção do ambiente
urbano, efetivadas por autores internacionais e nacionais. Para tanto foram selecionados os
autores considerados fundadores da investigação da percepção do ambiente urbano, cujos
trabalhos foram realizados na década de 1960. Foram selecionados também autores
emblemáticos das décadas seguintes, até a contemporaneidade, para se acompanhar o
percurso conceitual realizado nesse período.
O estudo de caso faz o levantamento e a análise da percepção do ambiente urbano efetivada
por moradores da área de estudo, localizada na Mooca, nas proximidades da Igreja São
Rafael. Este item mereceu um particular cuidado metodológico. Paralelamente à formulação
do quadro conceitual foi desenvolvido um estudo do método qualitativo de pesquisa, pois
diversos autores
1
da bibliografia consultada para a elaboração do quadro conceitual alertaram
para a importância da adequação do método ao objeto da pesquisa, esclarecendo que os
procedimentos podem condicionar de maneira significativa a formulação do conhecimento,
em seu processo de sua construção. Todos os autores consultados utilizam de forma implícita
ou explícita procedimentos do método qualitativo em suas pesquisas. Aqueles que o fazem de
forma declarada, normalmente questionam a hegemonia do método quantitativo, pretendida
por alguns setores da academia, para a constituição do conhecimento, propondo, em seu lugar
a adoção de uma abordagem qualitativa.
Por essa razão apresenta-se a seguir um quadro referente ao método qualitativo, utilizado no
estudo de caso, e que também permeou todo o processo de elaboração deste trabalho.
1
Entre esses autores, podem ser citados: AMORIM FILHO, 1996: 140; BAILLY, 1979: 30, 32, 189 a 243;
BOSI, 2003: 49 a 57; CHAUÍ, 1983: XXIV e XXV; CULLEN, 1983: 10; FERRARA, 1996: 63, 66, 67;
HALLPRIN, 1978: 10 a 14; JACOBS, 2003: 485, 493; LAMAS, 2004: 37, 41, 53, 56; LYNCH, 1999: 3; RIO,
1996: 10.
14
2.2 O Método Qualitativo de Pesquisa Científica em Ciências Sociais.
O campo das ciências sociais, onde contemporaneamente se enquadra a arquitetura, entendida
como ciência social aplicada, passou, na década de 1970, por um processo de importantes
alterações, no que concerne à questão do método. Os limites entre as várias disciplinas
tornaram-se mais difusos e elas adotaram uma abordagem de caráter qualitativo e
interpretativo, tanto na pesquisa quanto na teoria. Esses fatos não eram propriamente uma
novidade, mas o que chamou a atenção foi a extensão atingida pela "revolução qualitativa"
nesses campos do conhecimento (DENZIN e LINCOLN, 1996: ix).
As etimologias das palavras qualidade e quantidade contribuem para o entendimento da
mudança de paradigma envolvida. A palavra latina qualitas, qualitatis foi cunhada por
Cícero, grande orador romano do século I a.C., para traduzir o termo grego correlato, então
inexistente em latim. Ele utilizou o radical de qualis, adjetivo e pronome interrogativo, cujo
sentido era perguntar qual? ou de que natureza? A palavra quantitas, quantitatis, cunhada
posteriormente, segundo o modelo de qualitas, usou o radical de quantus, e se refere à
extensão, ao tamanho (ERNOUT e MEILLET, 1932: 792). Na raiz das duas palavras percebe-
se a diferença fundamental: enquanto qualidade remete à essência daquilo que é pesquisado,
quantidade refere-se a um de seus atributos, ou seja, à extensão, ao tamanho. Essas palavras
envolvem dois paradigmas epistemológicos muito distintos, pois um busca o entendimento
profundo do objeto pesquisado, enquanto o outro apreende parte de suas características,
aquelas mensuráveis, mas não sua natureza constituinte.
A revolução metodológica ocorrida implicou importantes alterações nos procedimentos
adotados na pesquisa: onde antes dominavam exclusivamente a estatística, as pesquisas
experimentais e as pesquisas de caráter globalizante (do tipo survey), os pesquisadores
despertaram para a etnografia, para a entrevista aberta, para a análise de texto, e para os
estudos históricos. Os acadêmicos passaram a testar as possibilidades da interpretação,
conectando a pesquisa a movimentos sociais, mergulhando em questões como etnia, gênero,
idade e cultura, e procuraram entender de maneira mais completa a relação do pesquisador
com a construção do conhecimento (DENZIN e LINCOLN, 1996: ix).
A pesquisa qualitativa, que se desenvolve a partir de então, constituindo um campo próprio de
atuação, tem suas origens, de fato, nas décadas de 1920 e 1930, quando os estudos sociais da
15
"Escola de Chicago" estabeleceram a importância da contribuição da pesquisa qualitativa para
o estudo de grupos humanos (DENZIN e LINCOLN, 1996: 1).
Identificam-se cinco momentos de transformações na pesquisa em ciências sociais e áreas
correlatas, no culo XX, e que continuam operando no presente. O primeiro momento é
identificado como tradicional (1900-1950); o segundo momento como modernista ou idade de
ouro (1950-1970); o terceiro momento como o dos gêneros difusos (1970-1986); o quarto
momento como o da crise da representação (1986-1990); o quinto momento é o pós-moderno
ou contemporâneo (1991- presente).
"Successive waves of epistemological theorizing move across these five
moments. The traditional period is associated with the positivist paradigm.
The modern or golden age and blurred genres moments are connected to the
appearance of post-positivism arguments. At the same time, a variety of new
interpretative, qualitative perspectives made their presence felt, including
hermeneutics, structuralism, semiotics, phenomenology, cultural studies, and
feminism. In the blurred genres phase the humanities became central
resources for critical, interpretative theory, and the qualitative research
project was broadly conceived. The blurred genres phase produced the next
stage, the crisis of representation, where researchers struggled with how to
locate themselves and their subjects in reflexive texts. The post-modern
moment is characterized by a new sensibility that doubts all previous
paradigms." (DENZIN e LINCOLN, 1996: 1-2)
2
.
Em cada um desses momentos a pesquisa qualitativa apresenta diferentes peculiaridades,
verificando-se, entretanto, um núcleo de características permanentes que indicam a sua
essência: ela é de natureza multimetodológica, envolvendo uma abordagem interpretativa e
2
. "Sucessivas ondas de teorias epistemológicas movem-se através desses cinco momentos. O período
tradicional é associado ao paradigma positivista. O período modernista ou da idade de ouro e o período dos
gêneros difusos, estão ligados ao aparecimento de argumentos pós-positivistas. Nesse mesmo tempo novas
perspectivas qualitativas e interpretativas marcaram sua presença, entre elas a hermenêutica, o estruturalismo, a
semiótica, a fenomenologia, os estudos culturais e o feminismo. Na fase dos gêneros difusos as ciências humanas
tornaram-se a fonte central para as teorias da crítica e da interpretação, e o projeto da pesquisa qualitativa foi
amplamente concebido. A fase dos gêneros difusos gerou o passo seguinte, ou seja, a crise da representação, na
qual os pesquisadores se confrontaram com a reflexão sobre o próprio posicionamento e o de seu objeto de
pesquisa. A fase s-moderna se caracteriza por uma nova percepção, que coloca em dúvida todos os
paradigmas precedentes." (Tradução do autor).
16
naturalista de seu assunto alvo. Isto significa que a pesquisa qualitativa investiga coisas em
seus ambientes naturais, interpretando os fenômenos nos termos dos significados que as
pessoas atribuem a eles.
Ela utiliza uma grande variedade de materiais empíricos, tais como estudo de caso,
experiência pessoal, textos de introspecção, história de vida, entrevistas, textos de observação
histórica, narrativas de experiências participativas e textos visuais, que descrevem situações
rotineiras ou momentos críticos da vida dos indivíduos. Utiliza uma ampla gama de métodos,
buscando sempre a melhor abordagem do assunto em questão e por isso se coloca como um
campo interdisciplinar, transdisciplinar e por vezes contradisciplinar (DENZIN e LINCOLN,
1997: 3). Ela opera de maneira transversal no campo das ciências humanas, das ciências
sociais e das físicas. Como um conjunto de práticas interpretativas, a pesquisa qualitativa não
privilegia nenhum método em especial. Ela tem o caráter de bricolagem, e seu produto, como
tal, é uma criação complexa, densa, reflexiva, tal qual uma colagem, que representa as
imagens, a compreensão e as interpretações que o pesquisador tem do mundo e do fenômeno
em análise (DENZIN e LINCOLN, 1997: 3).
Reações aos estudos qualitativos.
Como se pode supor, são muitas as resistências à abordagem qualitativa, que se manifestam
no ambiente acadêmico de caráter positivista e, portanto, fortemente identificado com a
divisão do conhecimento em disciplinas. Essas resistências refletem provavelmente uma
desconfortável consciência de que a pesquisa qualitativa encaminha o pesquisador a formular
uma crítica da proposta positivista.
As ciências positivistas (física, química, economia e algumas linhas da psicologia, por
exemplo) são freqüentemente consideradas como o coroamento supremo das aquisições da
civilização ocidental, e em suas práticas assume-se que a verdade possa transcender à opinião
e à perspectiva pessoal (DENZIN e LINCOLN, 1997: 4). A pesquisa qualitativa é vista como
uma agressão a essa tradição, cujos adeptos acreditam operar dentro de uma estrutura
objetiva, isenta de valorações (DENZIN e LINCOLN, 1997: 4). A oposição à ciência
positivista é vista então como um ataque à razão e à verdade. Em contrapartida, os ataques à
pesquisa qualitativa são vistos como uma tentativa autoritária de impor uma determinada
versão da verdade sobre a outra (DENZIN e LINCOLN, 1997: 4,5).
17
Diferenças entre a pesquisa qualitativa e a quantitativa.
Existem grandes diferenças entre esses dois métodos. A abordagem qualitativa implica uma
ênfase em processos e significados, que não o passíveis de exame ou mensuração, em
termos de extensão, intensidade ou freqüência. Os pesquisadores qualitativos salientam a
natureza socialmente construída da realidade, a íntima relação entre o pesquisador e aquilo
que é estudado (DENZIN e LINCOLN, 1997: 4 e PENNA, 1984:11), e as condições
situacionais que modelam a investigação. Tais pesquisadores evidenciam a natureza avaliativa
da pesquisa. Em contrapartida, os estudos quantitativos enfatizam mensurações e a análise das
relações causais entre variáveis, e não os processos (DENZIN e LINCOLN, 1997: 4).
As tradições de caráter positivista denunciam a proposta qualitativa, por entender que os
pesquisadores dessa nova tendência têm a intenção de realizar uma boa pesquisa, porém com
métodos menos rigorosos. Em vista disso, alguns pesquisadores qualitativos procuraram
estabelecer limites para a abordagem quantitativa, argumentando que “a instrumentação e
quantificação são simples procedimentos empregados para ampliar e reforçar alguns tipos
de dados, de interpretações e de hipóteses, a partir de amostras. Ambos têm que ser mantidos
em seus devidos lugares" (SPINDLER e SPINDLER apud DENZIN e LINCOLN, 1997: 4,
5). Concluem esses cientistas que seu uso excessivamente abrangente deve ser evitado, como
medida de segurança.
A geração mais recente de pesquisadores qualitativos, ligados à chamada percepção pós-
moderna, rejeitou os pressupostos e os métodos positivistas. Esses pesquisadores argumentam
que o método tradicional é apenas uma dentre muitas maneiras de descrever a sociedade e o
universo social. Criticam também os critérios utilizados pela abordagem positivista, pois
reproduzem apenas um determinado tipo de ciência, uma ciência que impõe silêncio a muitas
outras.
Ambas as abordagens, quantitativa e qualitativa, se interessam pelo ponto de vista do
indivíduo. Entretanto, os pesquisadores qualitativos acreditam chegar mais próximo do ponto
de vista do agente observado, mediante a entrevista detalhada e a observação. Argumentam
que os pesquisadores quantitativos raramente são capazes de capturar a perspectiva do sujeito,
porque eles têm que adotar uma postura distanciada e ater-se a materiais empíricos
secundários, afastados do sujeito observado. Os pesquisadores qualitativos entendem que têm
mais condição de se aproximar do cotidiano do universo social, pois o observam em ação,
18
enquanto os pesquisadores quantitativos abstraem esse universo e raramente o estudam
diretamente.
Os pesquisadores qualitativos acreditam que descrições ricas do universo social são válidas,
enquanto que os quantitativos, comprometidos com sua ética, envolvem-se menos com tais
detalhes.
As diferenças apontadas refletem compromissos com diferentes estilos de pesquisa e
diferentes epistemologias. Os pesquisadores qualitativos se expressam mediante a prosa
etnográfica, as narrativas históricas, depoimentos pessoais, levantamento fotográfico, histórias
de vida, fatos ficcionais, biografias e autobiografias, entre outros. Os pesquisadores
quantitativos usam modelos matemáticos, tabelas estatísticas, gráficos, e freqüentemente
escrevem sua pesquisa em termos impessoais, utilizando a prosa na terceira pessoa.
Na área da percepção ambiental, os procedimentos qualitativos têm encontrado, várias
décadas, aplicação em amplo campo de pesquisa, em distintas áreas disciplinares, como a
antropologia, a psicologia, a arquitetura, o urbanismo e a geografia, entre outros. A produção
brasileira, acompanhando a tendência internacional, é bastante extensa, ressentindo-se,
entretanto, de uma crônica limitação editorial, que torna os trabalhos pouco acessíveis (RIO,
1996: IX), ficando assim restritos à esfera acadêmica.
A exemplo do que ocorre com os pesquisadores de âmbito internacional, os brasileiros
assumem em seus trabalhos, de forma implícita ou explícita, uma abordagem qualitativa,
quando não o fazem de maneira intencionalmente declarada. Questionam assim a produção de
conhecimentos feita sobre fundamentos positivistas, alertando entretanto aos incautos de um
lado e de outro, que
"A rejeição de modelos teóricos ou métodos prefixados não equivale
ao empirismo ingênuo; ao contrário, quanto mais rico, diversificado e
interdisciplinar o repertório cultural e teórico do pesquisador, tanto
mais sagazes serão as estratégias metodológicas e mais criativas
serão as associações interpretativas decorrentes da pesquisa. A
procura da realidade é operacional: busca-se a linguagem da cidade,
as representações de valores, os hábitos e as expectativas construídos
19
pela vida diária e dispersos em marcas e sinais que passarão
esquecidos ou inadvertidos, se não forem resgatados pela observação
e atenção do pesquisador" (FERRARA, 1996: 66).
A pesquisa direta com moradores
Nesta pesquisa adota-se a abordagem qualitativa, de caráter etnográfico. A etnografia,
também chamada etnologia, é uma das disciplinas do campo sociológico, cujo objeto de
estudo é o modo de vida de grupos sociais. A distinção entre elas reside no fato de a
etnografia focar as características específicas do grupo, enquanto a sociologia aborda os
problemas sociais gerais (ABBAGNANO, 2003: 388).
O relacionamento direto do pesquisador com seu objeto de estudo é uma de suas
características, propondo a observação dos fenômenos e das pessoas em seu ambiente natural
(DENZIN e LINCOLN, 1997: 2 e BARBOSA E HOGA, 2006: 53). Isso permite ao
pesquisador observar, descrever, documentar e avaliar os padrões comportamentais
específicos de um dado grupo em seu ambiente e com o seu ambiente. Permite mais do que
observar: permite ao pesquisador compartilhar da vivência que o sujeito observado faz de seu
ambiente, no ritmo em que ele o faz, e com toda a riqueza sensorial que essa vivência implica,
envolvendo o plano físico, o emocional e o mental. De fato, como seria possível apreender, de
outra forma, as características de um ambiente urbano, que permite à criança, que brinca com
amiguinhos na rua em frente à casa da avó, irromper sala adentro, acompanhada de seus
companheiros, porque sentiu o aroma do bolo, recém saído do forno, recendendo
apetitosamente, e que a avó, carinhosa, tinha preparado para o lanche da tarde daquela
"tropinha" alegre e buliçosa? Esse pequeno evento, tão revelador, certamente teria escapado à
cuidadosa descrição do ambiente feita pela moradora, por sequer considerá-lo digno de nota,
por corriqueiro e desprovido de interesse.
Essa vivência remete a uma outra questão proposta pela etnografia: "o desafio de desvendar,
analiticamente, o familiar, pode dar a impressão de estarmos sistematizando obviedades",
dilema que se resolve, quando percebemos que "estamos apenas explicitando o que, a rigor,
todos <<sabem>>, ainda que não se dêem conta disso" (Santos, 1985: 65). De fato, nem
sempre enxergamos, com toda a consciência, aquilo que vemos, sobretudo quando se trata de
elementos do quotidiano, muito próximos ao do pesquisador. Porém, trazê-los à luz da
20
consciência permite ver de uma nova forma o que vinha sendo visto distraidamente, ou
valorizar aquilo que passava desapercebido, ou quase.
Dentre os procedimentos oferecidos pela etnografia adotou-se a entrevista em profundidade,
para levantar a percepção do ambiente efetivada pelo morador. Ele é solicitado a avaliar o
ambiente onde reside, em narrativa livre. Por esta razão não se aplica questionário, com
perguntas previamente estabelecidas. Os itens abaixo listados são referências para estimular o
entrevistado, se ele não se mostrar fluente sobre a questão. Entretanto, a recomendação da
abordagem qualitativa é no sentido de deixar o entrevistado à vontade, o mais possível, para
falar livremente. A importância dessa diretriz fica ainda mais evidente, quando se percebe,
que "freqüentemente, as mais vivas recordações afloravam depois da entrevista, na hora do
cafezinho, na escada, no jardim, ou na despedida no portão" (BOSI, 1983: 3), quando então
não estava presente o menor indício de intenção acadêmica e então se podia "bater-papo" e
falar das coisas da vida... Por isso também as eventuais omissões, com relação ao roteiro,
terão significado e deverão ser analisadas. Nesse sentido, o roteiro abaixo serve como quadro
de referência também para a posterior análise das entrevistas.
a. O morador está atento ao ambiente urbano do local onde reside?
b. Quais os aspectos do ambiente presentes na avaliação do morador?
d. O morador correlaciona qualidade do ambiente com a intensidade do tráfego que passa por
sua rua? O morador estabelece relação entre o traçado da rede viária e a intensidade do
tráfego?
3
e. O morador está atento às transformação de seu bairro, e aos riscos de desqualificação desse
ambiente, decorrentes dessas transformações?
f. O morador visualiza potenciais de melhoria de seu bairro?
g. Quais a ações desenvolvidas pelos moradores para promover a manutenção ou a melhoria
da qualidade do ambiente de seu bairro?
3
O destaque dado ao tráfego (com seus efeitos de ruído, poluição e insegurança para o pedestre), deve-se à
responsabilidade a ele atribuída, por diferentes autores, como um dos fatos urbanos preponderantes na
desqualificação do ambiente urbano, e na constituição de não-lugares, (AUGÉ, 1994: 74, 75, 87; BOSI, 2003:
27,28; CAMPOS FILHO, 1992: 113; CAMPOS FILHO, 2004: 34; HILLMAN, 1993: 55, 56, 59, 61, 63, 64;
MARX, 1987: 88, 90, 91; RIO, 1990: 42; SANTOS, 1985: 24); O traçado viário é considerado "um dos
elementos mais claramente identificáveis tanto na forma de uma cidade como no gesto de a projetar" sendo que
"é o traçado [viário] que define o plano – intervindo na organização da forma urbana" (LAMAS, 2004: 98).
21
Análise das entrevistas
O foco da análise é o ambiente físico, na maneira como ele é percebido e apreciado pelo
morador, verificando-se as hipóteses formuladas no projeto de pesquisa. Para tanto
identificam-se os diferentes aspectos físicos presentes na narrativa de avaliação do morador,
nos três níveis de interação que ele estabelece com o ambiente onde reside, ou sejam, o plano
cognitivo, o plano afetivo e o plano da ação (RAPOPORT, 1976: 9), pois "a etnografia de um
espaço social não pode ser senão a etnografia do que se passa nele" (SANTOS, 1985: 49).
Visitas e fotografias
Além das entrevistas foram realizadas inúmeras visitas de observação à área de estudo.
Caminhadas em diferentes horas do dia, em diferentes dias da semana, em diferentes estações
do ano, sob sol e sob chuva, permitiram perceber diferentes aspectos da área, sob diferentes
luzes, e descobrir e registrar recantos e detalhes, assim como usos do ambiente que um
olhar sereno pode fazer. Essas visitas demoradas, silenciosas, permitiram apreciar as
diferentes dinâmicas do movimento de pedestres e de veículos, a arquitetura, a vegetação, o
canto dos pássaros e ver as pessoas passarem: crianças indo para escola, à ou nas "peruas"
escolares; a empregada doméstica chegando para o trabalho, deixando o filho na escola
infantil, ao lado da igreja e passando na padaria para comprar o pão matinal; fregueses
entrando na padaria e saindo apressados com seus pacotes de pãezinhos quentes; vendedores
ambulantes e pequenos prestadores de serviço, como o vendedor cego, de vassouras, e o
afiador de facas, que ainda anuncia seus serviços com uma gaita, rememorando antigas
sonoridades; o cão vadio que deita para um banho de sol no meio da rua de paralelepípedos;
crianças brincando, ou simplesmente sentadas à sombra da árvore, recuperando o fôlego para
a próxima brincadeira; nos finais de semana, a chegada dos fiéis para a missa das onze, na
igreja São Rafael, com seus trajes dominicais. "Parece uma cidade do interior, dentro de São
Paulo", disse uma moradora, "e é disso que a gente gosta", concluiu.
22
3. QUADRO CONCEITUAL: A PERCEPÇÃO DO AMBIENTE URBANO
3.1 Introdução
A pesquisa da percepção do ambiente urbano emergiu na década de 1960 como uma nova
área de investigação para os arquitetos.
Naquele período a arquitetura vivenciou uma crise que marcou o encerramento da fase
heróica do movimento moderno, que perdurava há quarenta anos. Vários setores da sociedade
manifestaram, em diversas partes do mundo, intensos questionamentos quanto à qualidade
ambiental das cidades contemporâneas. Os questionamentos, que vinham ocorrendo em
acirradas discussões nos principais fóruns de debates dos profissionais de arquitetura,
extravasaram os limites dos meios especializados, e a cidade tornou-se assunto dos meios de
comunicação de massa (BENEVOLO, 1985: 94, 95, 96). Eram questionados em particular os
ambientes urbanos concebidos sob as diretrizes do modernismo (JACOBS: 2003) a ponto de
os psicólogos de Frankfurt atribuírem ao modernismo a responsabilidade pela baixa qualidade
ambiental das cidades do século XX, considerando-as inabitáveis (BENEVOLO, 1985: 94,
95).
Leonardo Benevolo, em seu livro O Último Capítulo da Arquitetura Moderna (BENEVOLO,
1985), reconheceu, com visível pesar, que o início da década de 1960 assistiu de fato ao
encerramento da experiência moderna no campo da arquitetura.
Referindo-se às divergências a propósito do período modernista, que até hoje se manifestam
de maneira recorrente entre arquitetos, críticos e estudiosos, ele aconselhava que
“entre as duas teses opostas aceitar ou rejeitar o movimento da
“arquitetura moderna” sobressai uma terceira via: considerá-la
como uma espécie de prova geral que, enquanto tal, chegou
efetivamente ao seu termo.” (BENEVOLO, 1985: 10).
23
Assim, o grande historiador da arquitetura, promoveu um resgate crítico da herança
modernista e propôs uma reflexão sobre as perspectivas que se apresentaram, a partir de
então, para a arquitetura.
3.2 Os grandes mestres
Le Corbusier, Walter Gropius e Mies van der Rohe, foram, conforme afirma Benevolo, os
mestres da arquitetura moderna (BENEVOLO, 1985: 23).Os três tiveram uma longa atuação
no campo da profissão, e foram responsáveis pela imensa transformação ocorrida no campo
do ambiente construído, no século XX, seja no âmbito do edifício, seja no âmbito da cidade.
LE CORBUSIER
FONTE: BOESIGER, 1971:14 FONTE: BOESINGER e GIRSBERGER, 1960: 263.
RACIONALIDADE E PRÉ-FABRICAÇÃO LE MODULOR
FONTE: BOESIGER, W., S/D:167 FONTE: BOESIGER, W., S/D:166
PLANO PARA MARSELHA CONJUNTO HABITACIONAL – DIRETRIZES
24
De fato, esses grandes arquitetos, em que pesem as diferenças de suas práticas arquitetônicas,
compartilhavam um mesmo ideário, no qual se destacava a importância dada à busca por uma
nova estrutura social e em decorrência disso, a relevância atribuída ao caráter coletivo do
ambiente habitado. Por essa razão, conscientes de sua responsabilidade profissional pela
configuração do ambiente construído, dedicavam suas atenções tanto para o desenho do
edifício quanto para o desenho da cidade. Tinham clareza quanto à importância da cidade
como fenômeno da sociedade humana, e que, ao longo de suas vidas, assumiu uma escala de
dimensões sem precedentes, e por isso mesmo lançou desafios de nova grandeza aos
arquitetos.
Sem dúvida, dentre os três, foi Le Corbusier o que mais se dedicou à procura de novos
padrões para a organização das funções da cidade e das suas variações(BENEVOLO,
1985: 23). Sua obra, além da insistência na racionalidade e generalidade de princípios foi
sempre marcada por objetivo muito claro:
“Não se trata da modificação da forma dos edifícios no quadro da
cidade tradicional, mas antes da invenção de uma cidade diferente,
independente das limitações postas pelo passado.” (...)“Tudo o mais
a eloqüência das formas plásticas, o jogo de referências históricas
e simbólicas, a riqueza das invenções, a maravilhosa facilidade e
felicidade do arranjo visual – é somente a manifestação do tom
apaixonado, confiante e ousado com que leva a cabo a sua
criatividade.” (BENEVOLO, 1985: 24).
A contribuição da obra de Le Corbusier extravasou o campo da arquitetura e se inseriu em
uma profunda transformação cultural, contestando uma divisão do trabalho e uma tipologia
das funções urbanas, das quais dependem um imenso número de instituições, de hábitos e de
interesses consolidados. Daí a violência de suas declarações e das reações suscitadas ao longo
de sua vida profissional (BENEVELO, 1985: 29, 30).
Le Corbusier faleceu em 1965, aos 78 anos, tendo deixado um legado que ainda hoje suscita
polêmicas e que, portanto, constitui estímulo à reflexão e à criatividade no âmbito da
arquitetura.
25
Em 1969, faleceram os dois outros mestres, Gropius e Mies van der Rohe, ambos alemães,
exilados nos Estados Unidos.
Mies van der Rohe foi, provavelmente, dentre os três grandes personagens, aquele cujas
propostas tiveram maior repercussão. De fato, o arranha-céu em aço e vidro, a edificação
isolada e livre na paisagem, o grande pavimento livre de pilares, sustentado por uma estrutura
externa, foram conceitos incorporados, repetidos e aperfeiçoados, por largo período da prática
arquitetônica do século XX.
Tornou-se famoso seu lema less is more (o menos é mais) que anunciava seu propósito de
expressar-se em arquitetura com o essencial, renunciando aos excedentes de todo tipo,
particularmente os de caráter ornamental, que foram durante muito tempo a marca distintiva
de muitos arquitetos.
MIES VAN DER ROHE
FONTE: SAFRAN, Y.,2000:110 FONTE: SAFRAN, Y.,2000:128
LAKE SHORE DRIVE SEAGRAM BUILDING
26
O arranha-céu foi sem dúvida o seu tema principal, pois veio renovar o edifício tradicional,
sempre igual na sua organização interna e sempre diferente na sua expressão exterior.
Inovando, ele propôs edifícios cujos elementos constitutivos eram sempre os mesmos
(estrutura de aço e painéis de vidro), mas que variavam completamente na sua distribuição:
compactos ou alongados, com ou sem piso livre no térreo, isolados ou agrupados em
complexos e liberando o lote para o pedestre, eliminado, no uso, a distinção entre espaço
público e privado (BENEVOLO, 1985: 34, 35).
Diferentemente de Le Corbusier, Mies van der Rohe teve grande sucesso profissional no final
de sua carreira, sendo intensamente solicitado a projetar, tendo por isso alcançado bom
resultado financeiro. Isso se deveu à sua habilidade administrativa: adotou uma fórmula
organizatória que preservou seu escritório pessoal com pequenas dimensões, pois distribuía o
trabalho a ele contratado a diferentes escritórios, a quem delegava importantes
responsabilidades, cuja coordenação, entretanto, era sempre mantida sob seu controle.
O terceiro grande mestre, Walter Gropius, a despeito de toda diferença de opinião, era
considerado o líder moral do movimento modernista.
WALTER GROPIUS
FONTE: BERDINI, 1996: 236. FONTE: BERDINI, 1996: 53.
PLANO DE BAIRRO PARA BERLIM GABINETE DO DIRETOR DA BAUHAUS
27
Embora sua obra não tenha sido a que mais contribuiu para a invenção da nova cidade, foi
sem dúvida seu pensamento o que mais norteou o trabalho do arquiteto no sentido do
progresso da coletividade e não no sentido da glória pessoal.
Mais do que outros, e certamente pela sua maior idade, teve que se confrontar, desde cedo,
com resistências a suas idéias, promovidas pelo pensamento precedente, em um período em
que a indústria alemã assumia sua pica estrutura concentrada, e durante o qual a direção
política aplicava os métodos de uma planificação centralizada, em um quadro que assumia
a forma de antigo compromisso entre arte, propriedade e poder.
É nesse ambiente que Gropius propôs um novo conceito de arquitetura, que decorresse de um
empenho coletivo e das necessidades dos usuários e não mais da organização preexistente de
uma elite dirigente. Além dessa luta, a prática arquitetônica de Gropius foi caracterizada pela
racionalidade e pela busca da unidade no movimento moderno.
A fundação da Bauhaus, escola de arquitetura e design, apesar de sua breve duração (1924 a
1929), destacou-se como uma de suas mais importantes realizações. Sua notoriedade
ultrapassou o plano dos debates em que foi concebida, assumindo valor político de destaque
internacional, pois, pela primeira vez, uma escola teve como concepção não a exclusão, mas a
incorporação de um grande número de experiências que estavam contemporaneamente em
curso (BENEVOLO, 1985: 47).
Um de seus últimos textos rememorava pontos fundamentais defendidos desde o início de sua
carreira e que merecem reflexão até hoje:
“Na agitação de nossa época demasiadas vezes nos esquecemos de
28
possa expressar através de formas menos pessoais e mais
correspondentes às necessidades da coletividade.” (BENEVOLO,
1985: 47)
WALTER GROPIUS
FONTE: BENEVOLO, 2004: 376 – FOTO DE ALFRED VAN DE LEIME
FÁBRICA FAGUS
A importância do legado dos três grandes mestres pode ser bem avaliada quando se consider
29
3.3 A crise do movimento moderno
A década de 1960 foi um período de grandes alterações mundiais.
Nos campos político e sócio-econômico assistiu-se à efetiva polarização entre o primeiro e o
segundo mundo com a intensificação da “guerra fria”, iniciada no pós-guerra, que
intranqüilizou longamente a sociedade humana com uma corrida armamentista de grande
insensatez. Rapidamente se reconheceu a existência de um terceiro bloco, o chamado terceiro
mundo, que reunia os países restantes abrigando a imensa maioria da população mundial
excluídos das condições de desenvolvimento cio-econômico, cultural e tecnológico que
privilegiavam aqueles países que ocupavam posição central no processo de desenvolvimento
econômico mundial.
Novas descobertas na área das ciências, notadamente na área da biologia, mais
especificamente no campo da genética, e também no campo da eletrônica, com o
desenvolvimento dos transistores, possibilitaram um grande avanço tecnológico, em particular
na área das telecomunicações, o que veio a promover ampla alteração de hábitos.
Esses eventos diluem a herança do passado e no campo da arquitetura a experiência moderna
chega a seu fim.
Antecedentes para essas grandes alterações podem ser identificados, com a perspectiva
histórica, em diferentes áreas da atuação humana.
As décadas de 1940 a 1960 foram, para os Estados Unidos um período de crescimento e
expansão de sua economia. Para a Europa as décadas de 1950 a 1960 foram um período de
reconstrução. Para esses dois blocos econômicos as década de 1960 a 1970 foram um período
de grande crescimento e desenvolvimento, consolidando de forma definitiva sua posição
como centro da economia, assim como da liderança tecnológica e cultural no mundo.
Cresceu a economia mundial como um todo, mas agravou-se o problema da distribuição da
30
Os países do terceiro mundo cresceram muito mais lentamente que os países centrais da
economia, ou efetivamente deixaram de crescer; outros ainda, tornaram-se mais pobres.
31
A distribuição da população no planeta passou também por uma revolução: na década de 1960
apenas 30% da população mundial vivia nas cidades; na década de 1970, esse percentual
subiu para 40%. As cidades assumiam dimensões até então desconhecidas.
Evidentemente esse quadro afetou o campo da arquitetura, onde ocorreram importantes
alterações.
A evolução dos CIAM (Conferência Internacional de Arquitetura Moderna) é bastante
eloqüente: no período de 1928 a 1930 consolidaram-se os fundamentos do movimento
moderno; no período de 1930 a 1950 compararam-se e sistematizaram-se as experiências
mundiais, em clima de vasto consenso; em 1953, manifestaram-se discordâncias profundas
entre delegações de diferentes países e entre arquitetos de diferentes gerações. Em 1956,
diante do reiterado e acalorado questionamento dos princípios modernistas, demitiu-se a alta
direção, encerrando na prática, o fórum mundial de debates sobre arquitetura moderna
(BENEVOLO, 1985: 15-22).
3.4 Novos desafios
O quadro mundial, profundamente alterado em suas estruturas, impôs, tanto nos países do
leste, quanto nos países do ocidente, uma necessidade de planejamento, ordenamento e
regulamentação do território, em particular das cidades. Isso abriu um campo para os
arquitetos colocarem em prática os métodos da teoria arquitetônica moderna, desenvolvidos
no período anterior, podendo, testá-los na prática.
Um grande desafio manifestou-se na forma de inúmeros projetos de grande escala,
notadamente na escala urbana.
Destacam-se as experiências inglesa e francesa, no âmbito das cidades novas, que
demandaram revisão de conceitos e novos estudos, envolvendo formulação de novos modelos
de organização do espaço regional e urbano, novos métodos de planejamento e gestão das
cidades, novo instrumental de implantação e de regulamentação da ocupação do território, ou
sejam, normas e legislação de regulamentação e controle do parcelamento, uso e ocupação do
solo, desapropriação, taxação, contribuição etc.
32
Da década de 1940 até a década de 1970 implantaram-se na Inglaterra quarenta e sete new
towns.
Inicialmente concebidas como cidades satélites da metrópole inglesa, cuja macrocefalia se
pretendia controlar, as cidades novas pouco a pouco ganharam o interior, acomodando uma
população crescente, cujo tradicional destino seria Londres. Dessa maneira a população se
distribuiu de forma mais equilibrada no território, possibilitando ao mesmo tempo a
desconcentração das atividades econômicas, o que veio gerar uma ampliação das
oportunidades de inclusão de diferentes estratos sócio-econômicos da população no processo
econômico.
A implantação das new towns constituiu exemplo de processo controlado de projeto e
execução, pois previu um sistema de avaliação permanente, visando a correção de problemas
de concepção, de implantação e de gestão do espaço urbano. Note-se nesse sentido a
concepção da new town Milton Keynes, cuja malha viária principal, de caráter ortogonal,
definiu vários bolsões, cujo projeto foi encomendado a diferentes arquitetos, visando a
diversidade ambiental, mas respeitando, entretanto, determinadas diretrizes tradicionais das
new towns, tais como a hierarquização do fluxo viário, e a segregação da circulação entre
veículos, ciclistas e pedestres.
A experiência francesa de villes nouvelles, um pouco mais tardia, iniciou-se em 1958, mas
similarmente ao que ocorreu na Inglaterra, decorreu também da necessidade de se promover o
controle da expansão e adensamento da capital. Assim, as primeiras cidades novas são
cidades satélites de Paris. Posteriormente o plano se estendeu para o interior francês, mas as
villes nouvelles guardaram sempre seu caráter de cidades-satélites, porém de cidades situadas
no interior do país, identificadas como metrópoles de equilíbrio, que se tornaram destino
alternativo para a população crescente, que antes dirigia-se majoritariamente para a região
metropolitana de Paris.
As cidades novas francesas, em que pese a crítica da população residente às características do
ambiente urbano, em especial à falta de animação das áreas centrais, constituíram uma rica
experiência, tanto no que se refere ao planejamento regional, como no âmbito urbano, ao
33
instrumental de implantação e normas de controle. Destacaram-se também pela promoção de
parcerias de sucesso do poder público com a iniciativa privada.
FONTE: BENEVOLO, 1985: 67
PLANO PARA CIDADES NOVAS NA FRANÇA – DÉCADA DE 1960
Além das experiências inglesa e francesa, poucas outras se evidenciaram no âmbito mundial.
Cabe notar a experiência holandesa, para a expansão linear de Amsterdã (1965), com
resultados arquitetônicos originais, mas que apresentou reduzida extensão, se comparada com
as precedentes.
Nos Estados Unidos as condições de autonomia política dos governos locais inviabilizaram
tentativas federais de ordenamento do território de alcance mais amplo.
No terceiro mundo, ocorreu alguma experiência isolada no Brasil e no México, mas a carência
de recursos tornou inviáveis empreendimentos de grande monta, como os praticados na
Europa.
34
3.5 Novos paradigmas: a interdisciplinaridade
Na década de 1960, uma crescente insatisfação com o ambiente urbano em geral, e em
particular, com os conjuntos habitacionais erigidos sob a égide do modernismo, começou a
pontuar a media, para a qual a cidade já tinha se tornado assunto recorrente.
Esse quadro generalizado de críticas à situação existente e em especial a responsabilidade pela
qualidade do ambiente urbano, atribuída às práticas modernistas, surpreenderam, sem
dúvida, a muitos arquitetos. As críticas dos usuários e as divergências existentes no âmbito
dos próprios arquitetos, no que se refere ao debate sobre a cidade, estimularam a formulação
de novas orientações para a arquitetura.
Os arquitetos foram buscar subsídios na área das ciências sociais, que já vinham
desenvolvendo há algum tempo uma diversificada investigação sobre a cidade, partindo de
uma análise direta da realidade. Essa atitude direcionou o estudo e a pesquisa de arquitetos e
de profissionais das ciências sociais, inaugurando uma profícua interdisciplinaridade nos
estudos urbanos. Assim, além da abordagem física e formal, de que os arquitetos se ocupavam
tradicionalmente, eles passaram a observar a cidade sob o foco da história, da geografia, da
economia, da sociologia, da antropologia e da psicologia.
A disparidade das avaliações do ambiente urbano, efetivadas pelos usuários e pelos arquitetos,
despertou a atenção de alguns profissionais para a necessidade de se investigar a percepção
dos cidadãos.
Citam-se entre esses arquitetos Kevin Lynch, Gordon Cullen, Lawrence Hallprin, que naquele
período escreveram respectivamente sobre a percepção do ambiente urbano, sobre a qualidade
do ambiente urbano e sobre a importância de se incorporarem valores perceptivos dos
usuários nos projetos dos ambientes construídos, seja na dimensão do edifício ou na dimensão
da cidade. Esses três autores hoje são considerados fundadores dessa área de pesquisa,
constituem referências conceituais para qualquer estudo da percepção ou da avaliação da
qualidade do ambiente urbano. Na década de 1970 destacou-se Amos Rapoport, que
contribuiu para a sistematização desse campo de estudo, frisando a relevância dessa pesquisa
para os designers do ambiente habitado.
35
Antes de prosseguir no estudo dos conceitos desenvolvidos pelos autores que a partir de então
se dedicaram a essa questão, cabe perguntar o que é esta área de estudo.
3.6 A percepção do ambiente urbano
Dois conceitos estão entrelaçados aqui: a percepção e o ambiente urbano. A percepção é um
processo de interação do sujeito com o ambiente, inato aos seres vivos; ambiente é entendido
aqui de forma ampla, como o conjunto de condições ou influências exteriores ao organismo
pesquisado, seja um ser humano, ou um grupo de pessoas (RAPOPORT, 1976: 23). Vale a
pena aprofundar o conhecimento desses dois conceitos.
A percepção é alvo de investigação em diversos campos do conhecimento, que vão desde a
filosofia, passando pela psicologia, pela antropologia e pela geografia, chegando até as artes,
entre elas a arquitetura. Na essência, as várias linhas de pesquisa sobre a percepção
convergem para pontos comuns, que constituem os fundamentos do conceito. Trata-se, antes
de tudo, da relação de um sujeito com a realidade que lhe é exterior. A aparente oposição
entre sujeito e objeto presente nessa formulação é superada pela constituição da síntese mental
que se opera no sujeito (SANTAELLA, 1998: 30), e que tem caráter de modelo interpretativo
(PENNA, 1984: 64) do ambiente.
De fato, os pesquisadores desse tema, ao estudar a percepção do ambiente urbano,
estabelecem como objeto de estudo não o ambiente pr
36
abordagem qualitativa, que é a análise da narrativa do sujeito pesquisado, obtida mediante
entrevista em profundidade.
O ser humano interage com seu meio em três estratos: o plano afetivo, o plano mental e o
plano da ação (RAPOPORT, 1976: 42). O processo perceptivo encontra-se na base dessa
interação. Para tanto o ser humano é dotado de diferentes sistemas sensoriais, que lhe
permitem estabelecer contato com uma grande diversidade de estímulos, que em seu conjunto
constitui o ambiente onde o sujeito se insere.
Na percepção do ambiente distinguem-se três momentos, que participam de um continuum
processual (RAPOPORT, 1976: 51): inicialmente a captação sensorial do meio, em seguida a
compreensão e o conhecimento, e em terceiro lugar a avaliação. Alguns pesquisadores
entendem que a avaliação faz parte do processo cognitivo. Entretanto alguns estudiosos do
ambiente urbano, como Rapoport, dão destaque a essa fase, porque estão interessados na
questão da qualidade do ambiente construído, que é relacionada à avaliação que dele se faz
(RAPOPORT, 1976: 63).
Não cabe no âmbito deste trabalho, o aprofundamento nas questões da psico-fisiologia da
percepção, amplamente abordada na bibliografia especializada
4
. Além disso, na etapa da
captação sensorial existe uma relativa constância entre diferentes indivíduos ou entre
diferentes grupos culturais. As diferenças tornam-se importantes na etapa cognitiva, pois é
nela que se atribuem significados ao fato percebido, e os significados são afetados pelo
aprendizado e, portanto, pela cultura (RAPOPORT, 1976: 47). Por essas razões interessa
analisar mais demoradamente a cognição.
A cognição
Identificam-se duas principais posições epistemológicas na tentativa de definir o conceito de
conhecimento. A primeira, que constitui a ótica de Descartes, contempla o conhecimento em
4
1. Pode-se sugerir a leitura de três obras sobre o tema: SIMÕES, Edda A. Quirino e TIEDEMANN, Klaus B.
Psicologia da percepção, volumes 10-I e 10-II. São Paulo: EPU, 1985; e também OKAMOTO, Jun. Percepção
ambiental e comportamento. São Paulo: Plêiade, 1996. Os dois primeiros livros são mais detalhados e
aprofundados na questão da psico-fisiologia da percepção, e o último oferece uma visão geral e sintética sobre a
questão da percepção e suas bases fisiológicas.
37
suas formas acabadas, e desconsidera a idéia de um processo que conduza a ele,
conceituando-o em sua condição de saber científico; a segunda, que é a perspectiva de Piaget,
enfoca o conhecimento em suas transformações evolutivas, observadas inclusive no plano do
indivíduo, entendendo o conhecimento como resultado de um processo histórico de sucessivas
interações.
Para prosseguir na abordagem do conceito do conhecimento é necessária uma descrição de
sua estrutura e natureza, identificando-se dois elementos constitutivos: primeiramente a
presença de um sujeito e de um objeto; em seguida uma determinada relação intencional, que
vincula um ao outro.
Com relação ao sujeito identificam-se duas posições epistemológicas fundamentais: o sujeito
cartesiano é entendido como um dado originário e, portanto, em posição a-histórica, e o
sujeito segundo Piaget é produto de um processo histórico, que se completa ao final da fase
egocêntrica. O egocentrismo é um estado do desenvolvimento do ser humano, que se
caracteriza pela indiferenciação entre sujeito e objeto. Esse conceito é o argumento adotado
na recusa da tese cartesiana, para quem a consciência é auto-evidente (cogito ergo sum) e,
portanto, expressão de um sujeito que se revela como um dado, e não a expressão de um
sujeito que se constrói em um processo (PENNA, 1984: 9, 10).
No tocante ao objeto também se identifica uma distinção entre Descartes e Piaget: o primeiro
entende o objeto subordinado a uma dúvida concernente a sua existência, enquanto que para o
segundo o objeto é algo indiscernível do sujeito na fase egocentralizada, indo se afirmar como
realidade independente e permanente no final do primeiro ano de vida do ser humano.
Ao se observar a relação que se estabelece entre o sujeito e o objeto, no ato de conhecer,
identificam-se várias posições. Os empiristas afirmam que o conhecimento resulta de uma
impressão passiva fixada no sujeito pelos objetos que o circundam. O conhecimento é
entendido assim como mera cópia de uma dada realidade. Piaget recusa a tese empirista, pois
ela privilegia o papel da percepção na recepção das impressões. Para ele a percepção é
indissociável da ação ou da motricidade. Assim o conhecimento não procede nem dos
sentidos nem da percepção, mas da ação inteira, na qual a percepção tem a condição de
função sinalizadora. O conhecimento pressupõe ação sobre os objetos, sua manipulação e
nunca tão somente sua contemplação (PENNA: 10, 11).
38
Esse entendimento da relação do sujeito com o objeto, visando à construção do conhecimento,
remete à questão do método e de sua adequação ao objeto de pesquisa, assumindo
possivelmente maior relevância quando o objeto inclui um conjunto de sujeitos. O
distanciamento crítico com relação ao objeto de pesquisa tem sido uma das normas das
ciências de caráter positivista. Entretanto, aqui se vê o quanto é fundamental o relacionamento
do pesquisador com o objeto de conhecimento. Essa compreensão deve orientar o
pesquisador, não para dirigir adequadamente seu olhar sobre o sujeito pesquisado, mas
também para dirigir o olhar sobre si mesmo, no que se refere a sua postura como pesquisador.
Para que o arquiteto possa elaborar um adequado conhecimento a respeito de como o usuário
percebe o meio ambiente urbano é necessário não apenas colher o relato sobre essa
experiência, mas também, em alguma medida, vivenciá-la, acompanhando a interação do
usuário com o ambiente. Colher o depoimento do usuário em seu próprio ambiente é sem
dúvida uma prática enriquecedora, pois permite ao pesquisador compartilhar com o sujeito
analisado essa experiência do ambiente, o que é uma característica da etnografia, outro
procedimento adotado pela abordagem qualitativa.
A crítica que Piaget faz ao empirismo estende-se também ao positivismo, pelo fato de esta
escola representar uma perspectiva fechada. Rejeita nela em especial a formulação do
conceito de "proposições destituídas de sentido", utilizado pelo positivismo para descartar
idéias que se contraporiam às proposições tautológicas da Lógica e das Matemáticas. Esse
conceito revela um imobilismo, que poderia ser corrigido, ao se reconhecer que uma idéia
pode parecer sem sentido apenas diante do estado atual dos conhecimentos disponíveis. A
posição mais aberta deve aceitar qualquer proposta de pesquisa, uma vez que se encontre um
método adequado, que estabeleça o acordo entre sujeito e objeto (PENNA, 1984: 11).
Quando se enfoca o conhecimento, apresentam-se recorrentemente ao debate a questão de sua
objetividade e a de sua neutralidade. Piaget elabora essas duas questões considerando a
objetividade como um acordo entre os membros da comunidade científica, sem descartar a
idéia de adequação ao objeto; quanto à neutralidade, entende que ela possa ser buscada, pelo
processo de descentração, que é um procedimento do sujeito cognoscente, no sentido de
excluir uma determinação do objeto enquanto centro de desejos. O exemplo clássico de
descentração é a superação da fase egocêntrica, que seria um dos inúmeros procedimentos a
serem cumpridos no decorrer do desenvolvimento do indivíduo.
39
Nesse processo é fundamental, portanto, a atitude do sujeito, que pode ser visto sob dois
ângulos: o sujeito epistêmico e o sujeito individual. O primeiro nomeia um conjunto de
aspectos comuns a sujeitos de um determinado nível de desenvolvimento, independentemente
das diferenças individuais; o segundo nomeia o que é próprio do indivíduo. O conhecimento
científico busca uma objetividade cada vez maior, mediante um duplo movimento de
adequação, o primeiro em relação ao objeto e o segundo de descentração do sujeito em
relação ao sujeito epistêmico (PENNA, 1984: 17). De toda maneira, esse conhecimento é
entendido dentro de sua essência processual, e assim como as categorias da razão são
entendidas como produtos históricos resultantes de interações, permanentemente em processo,
o conhecimento científico é entendido como um conhecimento aproximado da realidade de
que participamos, portanto, continuamente sujeito a revisões, e assim nunca absoluto ou
definitivo.
A consciência dessas questões é de especial relevância para o pesquisador, pois o convida a
adotar uma posição cuidadosa frente ao processo de construção do conhecimento,
rememorando-lhe inicialmente que o conhecimento e o objeto do conhecimento são coisas
distintas. Essa mesma consciência rememora ao pesquisador que esse construto, por não ser a
realidade em si mesma, é uma interpretação dela, sempre parcial, devendo por isso estar
permanentemente aberta a revisões, complementações e alterações.
Encerrando esse item, cabe uma reflexão sobre conceito e método. Sem que se confunda uma
coisa e outra, verifica-se aqui o íntimo entrelaçamento ente ambos e por isso a necessidade de
adequação de um ao outro: pesquisar a percepção do ambiente, efetivada pelo morador,
implica investigar o conhecimento que o morador constrói desse ambiente; ao mesmo tempo,
em um jogo de espelhamento, o pesquisador se confronta com a construção de seu
conhecimento, reconstruindo seu próprio conceito de ambiente urbano, o que propõe pensar o
que é que de fato está sob investigação: é o outro ou é a imagem que o pesquisador faz do
outro?
Discute-se, assim, o conhecimento no ato de sua construção, iluminando as implicações que
diferentes entendimentos do que seja conhecimento, e de como ele é construído, têm para a
condução da pesquisa.
40
3.7 O que nos ensinam os pesquisadores da percepção do ambiente urbano
Essa área de investigação nasce com três características próprias, que irão permear os estudos
desenvolvidos a partir da década de 1960.
A primeira é seu caráter interdisciplinar. Ele traz para o campo da arquitetura novas formas de
olhar a cidade, enriquecendo a descrição que usualmente dela se faz, baseada nos conceitos de
parcelamento, uso e ocupação do solo, da circulação de pessoas e mercadorias, e à qual se
agrega eventualmente uma caracterização dos tipos de edifícios. Essa abordagem, praticada
no planejamento urbano corrente e que frequentemente se faz acompanhar de uma série de
dados estatísticos e quantitativos diversos, privilegia o desempenho funcional e sanitário da
cidade, mas deixa escapar uma grande gama de outros aspectos observados pelas ciências
sociais, que, correlacionando estrutura social e ambiente, oferecem ao arquiteto um
entendimento mais abrangente da dimensão física do ambiente.
A segunda característica desse campo é sua natureza qualitativa, que se manifesta desde seu
nascedouro. Essa abordagem metodológica permite iluminar aspectos sutis, como as relações
de afeto que o cidadão estabelece com o ambiente e os significados a ele atribuídos.
A terceira característica é ligada a uma mudança de atitude do arquiteto: o novo profissional
assume uma postura de respeito pelos valores culturais dos cidadãos que irão utilizar o
ambiente por ele projetado, e por isso percebe a importância de ouvi-los, aproximando sua
percepção à dos cidadãos (RAPOPORT, 1976: 20) e incentivando sua participação no
processo de projeto coletivo (HALLPRIN, 1978: 10-14).
Essas três características marcam uma nova ética para o arquiteto: ele se coloca como um
profissional a serviço da comunidade, e não apenas como um profissional alinhado com os
valores de um determinado segmento da sociedade. Essa nova ética redireciona a prática do
projeto, pois o profissional assume como diretriz da criação o respeito à diversidade, não por
uma atitude compassiva e de tolerância com o diferente, mas por reconhecer a riqueza da
pluralidade, o que talvez seja uma das marcas mais legítimas e instigantes da metrópole
contemporânea.
41
O precário ambiente urbano
42
técnicas" (SITTE, 1992: 118). Seu trabalho é permeado por referências à aridez do ambiente
público e à atmosfera irrespirável da cidade, dominada por ventos canalizados e pela poeira
(SITTE, 1992: 165, 179), dos quais se obtinha refúgio nos jardins das casas burguesas,
protegidos por sebes e altos muros. Compara essa condição com a dos moradores de "cidades
magníficas", como Florença, que nunca sentem necessidade de abandoná-las; "em contraste,
nós, a cada ano, precisamos refugiar-nos junto à natureza, ao menos durante algumas
semanas, para continuarmos suportando a cidade por mais um ano inteiro." (SITTE, 1992:
144)
As críticas são desconcertantemente contemporâneas, e no entanto é a cidade gerada no
século XIX que Camille Sitte observa e critica, e não aquela concebida sob os princípios
modernistas. O ambiente urbano insatisfatório desenvolveu-se concomitantemente à
Revolução Industrial, e essa denúncia já era feita naquela época. É importante reconhecer que
é um complexo processo sócio-econômico e político que envolve divergências e conflitos
que gera o ambiente urbano que se lamenta. Entretanto deve-se lembrar também o que já foi
reconhecido: os modernistas não conseguiram dar adequada resposta aos desafios urbanos
herdados do século XIX e que se apresentaram a eles, de forma crescente, durante toda a
primeira metade do século XX. De fato, um conjunto de princípios baseados em um homem
idealizado e universal, e uma sociedade concebida por poucos, geraram soluções
arquitetônicas padronizadas, que se afastaram em muito dos valores dos cidadãos.
Tornou-se fundamental a revisão das diretrizes arquitetônicas que regiam o projeto e a gestão
do ambiente urbano, assim como buscar a aproximação dos modos de percepção do designer
e do morador. Essa é uma tarefa que cabe ao profissional e não é uma tarefa do passado, mas
contemporânea, pois os desafios continuam a se apresentar de forma crescente.
O urbanismo do século XX.
O urbanismo é um termo cunhado por Cerda, arquiteto espanhol, em 1867 e designava "uma
nova disciplina que se apresenta como uma ciência e uma nova teoria da cidade (...)
distinguindo-se das artes urbanas anteriores pelo caráter reflexivo e crítico e pela pretensão
científica." (HAROUEL, 2004: 7).
43
As práticas urbanísticas desenvolvidas na Europa e nos Estados Unidos, a partir do final do
século XIX, nascem em decorrência da Revolução Industrial, quando a cidade toda está
doente (HAROUEL, 2004: 104). Foram concebidas segundo diversas linhas de pensamento, e
tendo sido aplicadas ao longo do século XX, foram alvo, nas últimas décadas do culo, de
uma revisão crítica, que aponta suas limitações, mediante críticas por vezes severas, que
consideram "o pensamento urbanístico moderno [uma] ideologia revestida com o nome de
ciência, que predomina no século XX, no mundo inteiro, [e] é uma criação específica do
espírito ocidental" (HAROUEL, 2004: 4).
Pode-se descrever resumidamente o que ocorreu modernamente no campo do planejamento
urbano, mediante a observação da atuação conflitante de três tipos de atores: o urbanista
técnico-setorial, o político-globalizante, e o mais recente, o político urbano militante
(CAMPOS FILHO, 1992: 13). O primeiro grupo reúne práticas que entendiam o urbanismo
como "um instrumento técnico de melhoria da racionalidade da organização do espaço
urbano e também das qualidades estéticas desse espaço (...) desvinculadas de qualquer
determinação da organização social" (CAMPOS FILHO, 1992: 6). O segundo grupo, que
inclui os modernistas, tinha por "objetivos atender um ser humano abstrato, sem condições
sociais e culturais específicas" (CAMPOS FILHO, 1992: 11). Ao contrário de algumas
tendências de caráter utópico, como a proposta da cidade-jardim, é um grupo marcadamente
pró-industrialização e pró-urbano, mas que "também ignorou por completo a existência das
classes [sociais] com seus interesses conflitantes." (CAMPOS FILHO, 1992: 11).
O PRECÁRIO AMBIENTE URBANO
O BAIRRO DO IGUATEMI NA ZONA LESTE DE SÃO PAULO – OUTUBRO DE 2003
44
O terceiro grupo, como o próprio nome indica, caracteriza-se por uma atuação urbanística de
caráter político. Procura "captar a lógica por detrás do caos urbano (...) como resultado
básico da busca (...) pelos proprietários imobiliários de valorização produzida pelo esforço
coletivo." (CAMPOS FILHO, 1992: 12). Considera os conflitos sociais, as divergências de
interesses entre os agentes urbanos, e propugna pela participação ativa no planejamento
urbano dos segmentos sociais tradicionalmente alijados do processo decisório.
Assim, as tendências mais contemporâneas do urbanismo, contrastando com as práticas
precedentes, buscam olhar de perto a realidade urbana em toda sua complexidade e incorporar
o olhar do morador em sua forma de perceber o ambiente urbano, seja mediante a consulta,
seja mediante métodos projetuais participativos.
A imagem da cidade
Um dos primeiros aspectos enfocados pela nova área de pesquisa foi a verificação da imagem
da cidade, configurada pelo cidadão. Com certeza Kevin Lynch não estava preocupado de
forma abstrata com essa questão (LYNCH, 1999). Ela respondia a um problema enfrentado
pelo usuário do espaço urbano. Quem conheceu a cidade em sua forma e dimensão
contemporânea certamente não poderá se dar conta do estranhamento experimentado pelo
cidadão nascido no final do século XIX, ou início do século XX, ao se deparar, já adulto ou
idoso, com uma cidade na qual ele tinha nascido, com a qual ele se identificava, à qual ele
julgava pertencer, e que entretanto ele não mais reconhecia. Nesta cidade ele já não mais sabia
como se situar e tampouco se orientava em seus deslocamentos, cada vez mais rápidos e de
longas distâncias.
A identificação dos elementos do ambiente que permitissem ao cidadão formular um mapa
mental de sua cidade e que lhe permitissem readquirir um mínimo domínio do ambiente era
uma questão premente para os cidadãos residentes nas mega-cidades que emergiam no pós-
guerra, no final da primeira metade do século XX. São cinco os elementos identificados por
Kevin Lynch e que até hoje servem como referência para profissionais que estudam o
ambiente urbano e podem ser reconhecidos também nas avaliações e relatos perceptivos do
ambiente, feitos por cidadãos leigos. São eles: as vias; os limites; os bairros; os
pontos nodais e 5º os marcos.
45
KEVIN LYNCH
FONTE: LYNCH, 1999: 170-171 FONTE: LYNCH, 1999: 29
OS MAPAS MENTAIS E A IMAGEM FOTOGRÁFICA
A clareza de presença no ambiente e a legibilidade desses elementos pelo cidadão, e
conseqüente facilidade de participarem da construção de sua imagem mental, levou o autor a
cunhar o neologismo imageability, que designa um conceito cujo significado refere-se à maior
ou menor capacidade de um determinado ambiente urbano promover uma clara imagem
mental em seus observadores.
Ao entender que as imagens ambientais são resultado de um processo bilateral entre o
observador e seu ambiente (LYNCH, 1999: 7), o autor anuncia a importância dos mapas
mentais, que já eram objeto de atenção das ciências sociais e também, mais tarde, das
abordagens interdisciplinares promovidas pelos estudos do homem em seu meio ambiente.
Os mapas mentais, por constituírem representação mental, portanto, imagens sintéticas do
ambiente urbano, são reveladores da particular percepção do observador, pois que este
seleciona alguns elementos e omite outros, valorizando diferentemente os diversos
componentes do ambiente percebido.
O estudo dos mapas mentais expressos seja em discurso oral, seja em esquemas gráficos,
poderá trazer importantes pistas para o designer sobre a avaliação que o cidadão efetua de seu
ambiente e, portanto, sobre o nível de satisfação com o ambiente por ele habitado.
46
A poética do espaço
A busca por uma qualidade do ambiente tem como um de seus focos principais a forma
urbana e deve merecer por parte dos arquitetos uma atenção especial, pois "a intenção estética
é inerente à humanidade, faz parte de nosso dia-a-dia, em todas nossas ações" (LAMAS,
2004: 56). "A emoção e o prazer estéticos [são] uma necessidade", que também se educam e
se desenvolvem (LAMAS, 2004: 56). A forma urbana, entendida como "um conjunto de
objetos arquitetônicos ligados entre si por relações espaciais" (LAMAS, 2004: 41) "adquire
um poder de atração visual a que dificilmente poderá almejar um edifício isolado"
(CULLEN, 1983: 4). Para tanto "há que se procurar mais além do campo estritamente
científico, novos valores e novos critérios" (CULLEN, 1983: 10), pois é um equívoco pensar
que "a emoção e a animação que procuramos nas cidades surgem automaticamente das
soluções científicas fornecidas pelos homens da Técnica." (CULLEN, 1983: 10).
Não é fácil a tarefa que se apresenta aos arquitetos interessados em retomar a investigação
nessa área tão abrangente, que multiplica os desafios que se apresentam no projeto de um
edifício, pois
"a arquitetura à escala urbana, enquanto desenho da cidade,
defronta-se hoje com toda uma série de interrogações e até de
dúvidas, de que são exemplos as diferentes alternativas surgidas no
pós-guerra até aos nossos dias, em que ainda não se chegou a total
acordo quanto às morfologias urbanas mais adequadas e a um
consenso generalizado sobre a forma da cidade. Estas dificuldades
arrastam ainda as seqüelas da ruptura criada pelo urbanismo
moderno em relação à cidade tradicional e à dificuldade ou
incapacidade que os arquitetos modernos revelaram em definir formas
urbanas adequadas à sociedade a que se destinavam" (LAMAS,
2004:24).
Além disso, o momento de ruptura com o modernismo levou, como costuma ocorrer em
momentos de reação a paradigmas vigentes, ao retorno a soluções plásticas presentes no
período imediatamente anterior ao que é colocado em questão. No âmbito do edifício
proliferaram as formas características do pós-moderno, releituras de um período neoclássico e
eclético, do final do século XIX e início do século XX. Mesmo no âmbito do urbanismo
47
assistiu-se à retomada de formas que se manifestaram naquele mesmo período, como aquelas
praticadas por Cerda, na ampla reformulação que empreendeu em Barcelona.
Essa atitude, recorrente ao longo da história, não parece apresentar os melhores caminhos. As
soluções formais de uma época anterior dificilmente respondem aos desafios que se
apresentam no momento da crise, especialmente se considerarmos a velocidade e a extensão
das mudanças em curso a partir de então: amplo questionamento dos valores tradicionais e
alterações estruturais da sociedade propõem um exercício de compreensão e de respostas para
esse novo estado de coisas, cuja realidade é marcadamente cambiante.
Quando Gordon Cullen arrolou em seu trabalho um extenso repertório de ambientes urbanos
notáveis pela poética e pela apropriação comunitária – ou seja, um repertório de lugares ele
provavelmente não o fez com o intuito de proporcionar, com aquela rica coletânea de
exemplos, um manual de formas a serem utilizadas nos projetos contemporâneos. O que se
depreende de seu trabalho é a intenção de educar o olhar através de exemplos de ambientes
bem sucedidos e também mediante procedimentos de observação e fruição do ambiente,
simples mas eficientes, como a visão serial, que implica o deslocamento do sujeito pelo
espaço, recuperando a prática da deambulação do flaneur, que caminha pela cidade para
desfrutar do ambiente e das surpresas que ele proporciona, sem intenção precípua de chegar a
destino algum.
Não é por acaso que nenhuma de suas ilustrações retrata um ambiente modernista ou de
cidades contemporâneas, concebidas, na melhor das hipóteses, sob critérios
predominantemente racionalistas, visando à rapidez dos deslocamentos e à eficiência das
atividades urbanas, quando não sob a influência das fortes pressões dos interesses do mercado
imobiliário.
O que deve ser admirado naquele repertório, além do resultado ambiental bem sucedido, é um
processo coletivo de se construir a cidade, que envolve uma intenção estética e uma
linguagem arquitetônica presentes na cultura da comunidade. Esse processo que se
desenvolve no ritmo do fazer comunitário, permite de um lado a elaboração cuidadosa até o
detalhe, e de outro a incorporação processual das alterações do ambiente, sem que ocorra
estranhamento pelo morador, pois as mudanças tornam-se parte da vida de cada um.
48
GORDON CULLEN
CULLEN, 1959:21
A VISÃO SERIAL
Esse repertório vernacular rememora ao arquiteto que ele não é detentor exclusivo do Belo e
da Arquitetura. Reconhecer esse fato não o diminui. Pelo contrário permite ao profissional
assumir umas de suas mais importantes missões, que é a de coordenar os empreendimentos
urbanos de âmbito restrito e local, compatibilizando-os entre si e harmonizando-os com a
cidade, cuja unidade apenas ele percebe, em função de sua vivência abrangente desse
ambiente (RAPOPORT, 1976: 32).
49
Topofilia
Topofilia é o elo afetivo entre a pessoa e o lugar ou ambiente físico. Difuso como conceito,
[é] vívido e concreto como experiência pessoal ( ...)” (TUAN, 1980: 5).
Esse conceito lança um olhar sensível sobre as relações do cidadão com o meio ambiente,
agregando à tradicional análise do ambiente urbano, ligada preponderantemente às
necessidades físicas do indivíduo, relações e aspirações situadas em plano mais sutil e não por
isso menos importantes para a qualidade de vida do indivíduo e da comunidade.
Ao cunhar esse termo, Yi-fu Tuan resgata e legitima o sentimento de afeto pelo lugar, como
uma categoria de análise do ambiente, que possivelmente foi desconsiderada em passado não
muito distante, quando a cidade deixou de ser entendida como espaço da realização dos
potenciais ser humano e portanto perdeu sua dimensão simbólica de representação do espaço
cósmico, conceito presente em culturas ditas primitivas. Ele propõe com isso uma radical
mudança de olhar sobre cidade, que vinha sendo objeto de soluções tecnológicas, desatentas à
beleza e aos afetos.
O lugar e o não-lugar
O risco de privação de algo muitas vezes desperta a atenção, no momento da crise, para a
importância daquilo que pode vir a faltar. A desqualificação do ambiente urbano, ocorrida ao
longo do século XX, promoveu a reflexão sobre qualidades do ambiente, que provavelmente
eram percebidas como intrínsecas da cidade, mas que se mostraram vulneráveis às
transformações ocorridas, tendo sido descaracterizadas ou mesmo eliminadas de boa parte do
cenário urbano.
Assim o lugar
5
, como ambiente da convivência, e o seu contraposto, o não-lugar ganharam
relevância como conceitos para a análise do ambiente urbano.
5
A denominação lugar decorre da expressão sense of place (sentido de lugar), corrente na língua inglesa, e que
fornece um melhor entendimento do novo sentido atribuído ao termo lugar, utilizado para traduzir o conceito
para o português, mas que não recobre exatamente o mesmo campo semântico de place.
50
O que caracteriza o lugar, essa qualidade do ambiente cuja perda se lamenta é, antes de tudo,
a segurança (TUAN, 1983: 4). Mas os lugares são também "centros aos quais atribuímos
valor e onde são satisfeitas as necessidades biológicas de comida, água, descanso e
procriação" (TUAN, 1983: 4). Porém, essas qualidades, compartilhadas com o conceito de
território apropriado por um animal, não bastam para definir o sentido que o homem atribui ao
lugar (TUAN, 1983: 4), o que requer uma reflexão mais profunda.
Primeiramente é necessário distinguir entre espaço e lugar. "Espaço é mais abstrato do que
lugar. O que começa como espaço indiferenciado transforma-se em lugar à medida que o
conhecemos melhor e o dotamos de valor" (TUAN, 1983: 6). A palavra chave nesse processo
é experiência e esta envolve os sentidos, e é constituída de sentimento e pensamento (TUAN,
1983: 9).
Para que essa experiência adquira sentido ela pressupõe a "constância do ambiente, o que
aos seres humanos um mundo familiar de objetos" (TUAN, 1983: 32). Esse fato, que pode
parecer irrelevante à primeira vista é fundamental para o desenvolvimento do indivíduo. A
constância do ambiente possibilita ao homem cumprir a "necessidade de apoiar sua
personalidade em objetos e lugares" (TUAN, 1983: 36). Mesmo o espaço do oceano,
aparentemente indiferenciado, "é uma rede de rotas marítimas unindo várias ilhas" (TUAN,
1983: 95) e "o mundo para o nômade consiste em lugares conectados por um caminho"
(TUAN, 1983: 200). Assim, a experiência do lugar implica continuidade e permanência do
ambiente físico e social (CHAUI, 1983: XIX).
O sujeito constrói sua identidade, mediante práticas coletivas e individuais, para as quais a
organização do espaço e a constituição dos lugares são uma das principais motivações
(AUGÉ, 1994: 50), pois
"as coletividades (ou aqueles que as dirigem), como os indivíduos que
a elas se ligam, necessitam simultaneamente pensar a identidade e a
relação, e, para fazerem isso, simbolizar os constituintes da
identidade partilhada (pelo conjunto de um grupo), da identidade
particular (de determinado grupo ou determinado indivíduo em
relação aos outros) e da identidade singular (do indivíduo ou do
grupo de indivíduos como não semelhantes a nenhum outro). O
tratamento do espaço é um dos meios dessa empreitada e não é de se
51
espantar que o etnólogo fique tentado a fazer, em sentido inverso, o
percurso do espaço ao social, como se este houvesse produzido aquele
de maneira definitiva. Esse percurso é "cultural" por essência, visto
que, passando pelos signos mais visíveis, mais instituídos e mais
reconhecidos da ordem social, ele esboça simultaneamente o lugar
dele, definido, por isso mesmo, como lugar comum." (AUGÉ, 1994:
50, 51).
Evidencia-se dessa maneira a íntima relação da construção da identidade do indivíduo com a
experiência do grupo, e a relação do grupo e do indivíduo com o lugar a que ambos
pertencem. A compreensão do sujeito e do grupo passa pela compreensão do lugar onde se
exercem as relações comunitárias, pois "o lugar antropológico é simultaneamente princípio
de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa"
(AUGÉ, 1994: 51).
Além disso, "o lugar pode adquirir profundo significado para o adulto, através do contínuo
acréscimo de sentimento ao longo dos anos." (TUAN, 1983: 37). O lugar liga-se dessa
maneira à história de vida do sujeito e portanto ao sentido que ele atribui à sua vida. Não se
trata de mero apego, pois "destruindo os suportes materiais da memória, a sociedade
capitalista bloqueou os caminhos da lembrança, arrancou seus marcos e apagou seus
rastros" (CHAUI, 1983: XIX) gerando o "desfiguramento de paisagens caras". Como
resultado, a cidade, antes "familiar como a palma da mão, quando suas dimensões eram
humanas, converteu-se em escombros de cimento armado". A isso se pode reagir com um
incômodo sentimento de estranhamento, muitas vezes acompanhado de revolta e finalmente
resignação (CHAUI, 1983: XXII).
O sentimento de desarraigamento não ocorre, pois, apenas para o migrante, que,
individualmente ou em grupo, abandona seu lugar de origem, e parte em busca de novas
oportunidades de vida. Ele ocorre também "quando as mudanças históricas se aceleram (...)
criando uma série de rupturas nas relações entre os homens" e nas suas relações com o
ambiente (BOSI, 1983: 35). "A memória das sociedades antigas se apoiava na estabilidade
espacial e na confiança em que os seres de nossa convivência não se perderiam, não se
afastariam." (CHAUI, 1983: XIX). Os valores comunitários se fundavam na prática do
52
cotidiano "ligados à práxis coletiva como a vizinhança (versus mobilidade), o apego a certas
coisas, a certos objetos biográficos (versus objeto de consumo)." (CHAUI, 1983: XIX).
O sentido de lugar abarca diferentes dimensões físicas do espaço.
"A cidade é um lugar, um centro de significados, por excelência. Possui muitos símbolos bem
visíveis. Mais ainda, a própria cidade é um símbolo." (TUAN, 1983: 191). Simbolizava,
tradicionalmente a ordem transcendental, estabelecida pelo homem, em oposição às forças
caóticas da natureza terrena e infernal. Representava também a comunidade humana ideal
(TUAN, 1983: 191). Mas a percepção da cidade, como uma unidade, não se pela
experiência: ela exige um esforço mental, e então esta unidade maior pode se constituir
conceitualmente em um lugar (TUAN, 1983: 189, 190).
Por sua vez, a noção de bairro é "dinâmica, e necessita uma progressiva aprendizagem", que
se repete até o usuário poder exercer uma apropriação (CERTEAU, 1996: 42). O bairro
assume inúmeros significados antropológicos, entre eles o de "espaço de uma relação com o
outro, como ser social. O caminhar a pé assume sentido social particularmente importante: ele
permite, mesmo através dos acenos de mão e da rápida interrupção para um bom dia, exercer
o reconhecimento dos vizinhos e ser por eles reconhecido, na prática cotidiana repetida,
estabelecendo laços comunitários. "Sair de casa, andar pela rua, é efetuar um ato
cultural".(...) "É sempre uma relação entre uma pessoa e o mundo físico e social (...)
constitutiva da autoconsciência." (CERTEAU, 1996: 43). Assim "o bairro se inscreve na
história do sujeito como a marca de uma pertença (...) ao lugar da vida cotidiana pública."
(CERTEAU, 1996: 43, 44).
A rua é o terceiro nível nessa escala de dimensões físicas decrescentes. É "a mais pequena
unidade, ou porção do espaço urbano, com forma própria" (LAMAS, 2004: 41) mas não por
isso é de menor importância para o sujeito. Ao contrário "a rua onde se mora é parte da
experiência íntima de cada um" (TUAN, 1983: 189). Ela se encontra no âmbito do
caminhante e "para sua apreensão quase nem será necessário o movimento, ou basta o
movimento em circuito fechado. Num ponto o observador consegue abarcar a unidade
espacial no seu conjunto" (LAMAS, 2004: 73,74).
53
RUA DOS BANCÁRIOS – AGOSTO DE 2006
O "LUGAR"
RUA DOS BANCÁRIOS –NOVEMBRO DE 2005
A rua pode assumir múltiplos significados funcionais e afetivos para o sujeito. "Para nossa
cultura é impossível imaginar o urbano sem o recurso à noção e à imagem de ruas."
(SANTOS, 1985: 24). A imagem da rua remete a memórias de infância, às camaradagens e
aos folguedos coletivos. Remete assim ao aprendizado da insubstituível sociabilização ampla,
pois "uma rua é um universo de múltiplos eventos e relações" (SANTOS, 1985: 24), que
enriquece o mundo individual, constituindo a personalidade em sua capacidade de
abrangência e aceitação do diverso. Proporciona a vivência da realidade social em sua rica
gama de variações, engendrando a capacidade da tolerância, de diálogo e de inclusão do
outro. Opõe-se por isso à constituição do preconceito, pois oferece a experiência direta com o
54
outro. Na idade adulta, ainda que se estabeleça, por diferentes motivos, certo distanciamento
na convivência com os vizinhos, laços de confiança e solidariedade são fundamentais para
nossa paz e segurança. Esses laços demandam uma base mínima de atitudes cordiais, sem as
quais eles não prosperam.
Por essas razões, "a experiência do espaço urbano fundamenta a intuição de que rua é mais
do que via, trilha ou caminho" pois "em mapas, plantas e planos, ruas podem ser vistas
apenas como meios de circulação entre dois pontos diferente" (SANTOS, 1985: 24). As ruas
também podem ser isso, tanto que se pode medir o fluxo, descrever as diferentes modalidades
de tráfego, e hierarquizá-las. "Mas as ruas que não são mais do que vias de passagem estão
animadas por um só tipo de vida e mortas para todo o resto. Não são as que nos interessam."
(SANTOS, 1985: 24). Além de caminhos, as ruas são "locais onde a vida social acontece ao
ritmo do fluxo que mistura tudo" (SANTOS, 1985: 24). É um espaço de relações "que tem a
ver com repouso e movimento, com dentro e fora, com intimidade e exposição e assim por
diante. Que serve para referenciar bons e maus lugares." (SANTOS, 1985: 24).
O não-lugar
Há uma concordância bastante ampla na responsabilidade atribuída à "espetacular aceleração
dos meios de transporte" (AUGÉ, 1994: 36) pela desqualificação do ambiente urbano, a ponto
de ser necessário conceituar o não-lugar "em oposição à noção sociológica de lugar,
associada por Mauss e por toda uma tradição etnológica àquele de cultura localizada no
tempo e no espaço" (AUGÉ, 1994: 36).
"Os não-lugares conceitua Augé são tanto as instalações necessárias à circulação
acelerada das pessoas e bens (vias expressas, trevos rodoviários, aeroportos, quanto os
próprios meios de transporte" (AUGÉ, 1994: 36). E esse autor prossegue com sua
caracterização, explicando que "os lugares antropológicos criam um social orgânico, os não-
lugares criam tensão solitária (AUGÉ, 1994: 87), e pior ainda, "o espaço do não-lugar não
cria nem identidade singular nem relação, mas sim solidão e similitude". O não-lugar é assim
não apenas a negação do indivíduo como a negação de toda a dimensão relacional do grupo.
55
AVENIDA ALCÂNTARA MACHADO – MARÇO DE 2003 AVENIDA ALCÂNTARA MACHADO – OUTUBRO DE 2002
O "NÃO-LUGAR"
AVENIDA ALCÂNTARA MACHADO, A RADIAL LESTE - OUTUBRO DE 2002
Desde o século XIX, passando por todo o século XX e chegando até autores contemporâneos,
inúmeros são aqueles que lamentam a maneira como o automóvel se impôs ao ambiente
urbano, roubando o espaço ao pedestre, que deixou de caminhar para fruir os encantos da
cidade, devido ao ruído, à poluição, à velocidade e ao risco de atropelamento. De fato, "o que
exclui socialmente o convívio enriquecedor urbano é o uso excessivo do automóvel,
depredando a qualidade ambiental, transformando a rua de lugar de convívio em não-lugar."
(CAMPOS FILHO, 2004: 35). Mesmo os moradores de cidades do primeiro mundo, cujos
indicadores urbanos as situam entre as melhores, sofrem dos males ambientais gerados pelo
trânsito. O depoimento de Gaston Bachelard é pungente:
56
"Quando a insônia (...) aumenta pelo nervosismo devido aos barulhos
da cidade, quando na Praça Maubert, tarde da noite, os automóveis
fazem barulho e o roncar dos caminhões me faz maldizer meu destino
de cidadão, encontro paz em viver as metáforas do oceano".
(BACHELARD, s/d: 215).
Nas cidades contemporâneas, diz Burle Marx,
"Somos multidões de anônimos que não convivem, mas se confrontam
diariamente, com cada vez maior agressividade, para conquistar um
espaço para morar, para se locomover, para se divertir". (...) "Não
desfrutamos mais a vida urbana. cada vez menos o que desfrutar."
(MARX, 1987: 87).
E esse grande paisagista, sensível como poucos às qualidades do ambiente, aponta o veículo e
o trânsito desordenado, como um de seus principais flagelos:
"Os veículos são liberados em número superior ao que as vias
comportam, causando engarrafamentos. Para estacionar, os
motoristas invadem as calçadas. Os pedestres, por sua vez, expulsos
do passeio, misturam-se aos carros nas pistas de rolamento,
arriscando a vida, provocando acidentes. Esse ambiente opressor leva
os cidadãos a verdadeiros êxodos nos feriados e fins de semana,
provocando novos engarrafamentos e mais acidentes." (MARX, 1987:
88).
E esse autor prossegue com sua denúncia, afirmando que mesmo "a concepção da grande
maioria de nossas praças e parques não corresponde a essas finalidades. São como ilhas no
rio do tráfego urbano, seu acesso é difícil e sua qualidade é comprometida pelo ruído."
(MARX, 1987: 90,91).
José Garcia Lamas ao falar sobre a forma urbana, mais atento, por isso, às questões estéticas
do que com o trânsito, não pode deixar de registrar "os conflitos de interesses que disputam o
57
solo público o tráfego rodoviário e o uso pedonal" (LAMAS, 2004: 80), lamentando a
preponderância dada ao sistema viário nos planos modernistas (LAMAS, 2004: 279, 280) e
recomendando que se aceite" o automóvel apenas o quanto baste, controlando o tráfego de
superfície para que este não destrua o ambiente" (LAMAS, 2004: 432). Antoine Bailly, ao
estudar a percepção do espaço urbano, também não se furta a comentar que nas "ciudades que
no cesam de crecer, el número y el ritmo de los desplazamientos va em aumento. El
movimiento fenômeno complejo y de difícil aprehensión deja uma huella cada vez mayor
em la vida urbana".( BAILLY, 1979: 129)
A questão do trânsito parece ter assumido uma dimensão tal na cidade contemporânea, que
seu significado se rebate sobre diferentes aspectos da vida, que vão além do ambiente.
Mesmo autores, cujo tema é centrado nas questões de identidade e das relações sociais não
deixam de se referir ao trânsito e a seu impacto sobre o indivíduo e a comunidade, pois "a
relação mantida com o bairro ou com a cidade se transformou [com] a generalização do
transporte individual" (CERTEAU, 1996: 24). Para os idosos, que vivem de suas
recordações, essas mudanças da cidade, geradas por desapropriações, demolições e pela
implantação de rede viária cada vez mais complexa, geram o estranhamento e a
desidentificação com o ambiente, fazendo com que para eles se torne um triste refrão "a frase
dezenas de vezes repetida pelos recordadores: "já não existe mais"" (CHAUI, 1983: XIX).
As novas gerações, que conheceram a cidade nesse estado de coisas, poderão ter
dificuldade para entender conscientemente esse lamento reiterado, por não disporem de outra
referência. Isso não quer dizer, entretanto, que esse ambiente não cobre seu tributo também a
elas, que manifestam precocemente a condição de stress (HILLMAN, 1993:145).
Razões culturais profundas podem estar associadas à supervalorização do transporte rápido. A
análise etimológica permite verificar que "sucesso e velocidade se relacionam com antigas
palavras [latinas, utilizadas] para [expressar] aumento e desenvolvimento" (HILLMAN,
1993:61). Entretanto encontram-se também na raiz do problema razões econômicas bem
evidentes, que têm exigido desde os primórdios da Revolução Industrial deslocamentos de
mercadorias e pessoas em condições de crescente eficiência. Isso se traduz por transporte
"rápido, barato e confortável" ou seja que garanta "poucas perdas, mínimos desvios
negativos de capital e prejuízos" (HILLMAN, 1993: 59).
58
Certamente "enquanto determinarmos desenvolvimento por aumento, por uma medida
quantitativa, em vez de por uma distinção qualitativa, caímos na armadilha da velocidade:
mais rápido é igual a melhor" (HILLMAN, 1993: 61). É uma necessidade repensar a questão
da circulação e do transporte e para isso "
59
Essa configuração esquemática da ilha de tranqüilidade pode assumir diferentes arranjos
espaciais, adaptando-se a situ0.288(t)-2.16436(r(2.167333.74(n)-10.336(r(2.1673974(i)-2.7(i)-23312( )-26(o)-0.2942ê015n)-0.295585(f)2.80.74( )-22310.336(r(2.1t81(s)-11.2359(e)3.74( )-170.244575.Tr(2.1t81(sh.To5r1(sh.To5r1(sh.T.336f58(u0.288v8(u0.28a)3.80 0 8.33333 0 0 cm 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60
A memória desempenha ainda um terceiro papel, que é o de registrar e colocar à disposição
do sujeito habilidades recorrentemente utilizadas no cotidiano, e que são de caráter quase
mecânico, constituindo o que se chama de memória hábito (BOSI, 1983: 11).
61
Esse arquiteto desenvolveu, em sua fértil atividade profissional, uma extensa gama de
projetos nas mais diferentes escalas, indo desde o projeto do jardim residencial ao
planejamento urbano.
Uma das maiores contribuições desse designer, que se distingue pela poética dos ambientes
por ele projetados, foi, provavelmente, a proposta do método para a criação coletiva de
ambientes urbanos. Conhecido pela sigla RSVP Cycles, cunhada pelo próprio arquiteto, o
método baseia-se em quatro conceitos: Resources (recursos), Score (pauta musical ou
roteiro), Valuaction (neologismo inglês que agrega o significado de evaluation avaliação - e
action ação - com tônica neste último termo) e finalmente Performance (desempenho),
palavras cujas iniciais foram utilizadas na composição da sigla (HALPRIN, 1977: 9-14).
LAWRENCE HALPRIN
FONTE: HALPRIN, 1977: 218 FONTE: HALPRIN, 1977: 35
O PROJETO COLETIVO O MÉTODO DE PROJETO COLETIVO
Vale a pena nos debruçarmos sobre o delicado trocadilho presente na composição dessa sigla,
pois ela revela muito da sensibilidade e dos elevados propósitos desse designer.
62
RSVP, como se sabe, é uma sigla da língua francesa, que significa por extenso répondez s’il
vous plaît (responda, por favor), colocado ao final de convites formais, e que tem por
finalidade obter a confirmação da presença ou da ausência do convidado ao evento,
permitindo aos promotores o adequado dimensionamento e planejamento da reunião.
Esse trocadilho tem implícito em si, portanto, um gentil convite à participação no processo de
criação coletiva. Mais do que isso, ele expressa uma atitude otimista, estimulando uma
resposta do indivíduo para participar de uma ação coletiva para melhoria do ambiente
habitado. Esse convite é permeado pela certeza quanto aos bons propósitos da comunidade
com relação ao projeto do espaço de uso coletivo, que se manifestam quando cada indivíduo e
cada grupo têm a oportunidade de expressar seus desejos e anseios, cotejando-os com os de
seus concidadãos. A frase de Halprin transcrita a seguir ilustra e confirma a sua atitude
positiva, que permeia sua produção projetual e conceitual: It is a hope to design with its
inhabitants a human ecosystem biologically and emotionally satisfying” (HALPRIN, 1977:
14).
Além disso, a prática da criação coletiva do espaço habitado tem, subjacente, o entendimento
da superioridade do resultado do trabalho comunitário com relação ao projeto de autor, pois
incorpora, no ato de projetar, os valores sociais, éticos, estéticos e afetivos da comunidade que
utilizará esse espaço. Espresente também nessa atitude a compreensão de que usuário e
designers têm distintas percepções do ambiente e que, além de merecer respeito, vale a pena
estimular a expressão da percepção do usuário no processo criativo, pois assim se conseguirá
incorporar ao projeto elementos distintivos que possibilitarão a manifestação de uma
desejável identificação do usuário com o novo ambiente.
3.8 A pesquisa da percepção do ambiente urbano no Brasil
A produção brasileira, acompanhando a tendência internacional, é bastante extensa,
ressentindo-se, entretanto, de uma crônica limitação editorial, que torna os trabalhos pouco
acessíveis, ficando assim restritos à esfera acadêmica (RIO, 1996: IX).
Os quadros teóricos preferenciais dos trabalhos realizados identificam-se com o
estruturalismo ou com a fenomenologia, linhas distintas em seus fundamentos filosóficos. A
63
primeira entende a realidade como um conjunto de sistemas complexos e inter-relacionados,
64
4. ESTUDO DE CASO
O estudo de caso é desenvolvido sob dois enfoques distintos e complementares: no primeiro
faz-se uma caracterização urbanística da área de estudo, dentro dos moldes do planejamento
urbano tradicional, utilizando as categorias de análise do parcelamento, uso e ocupação do
solo, rede viária hierarquizada, considerando também a sua paisagem, e a oferta de infra-
estrutura, de equipamentos sociais e serviços urbanos. Essa caracterização é apresentada em
um conjunto de cartas temáticas, analisadas e acompanhadas de levantamento fotográfico
recente da área de estudo. Faz-se também um estudo histórico das origens da área de estudo,
reconstituindo-se para tanto o processo de ocupação do bairro da Mooca, desde suas origens
no século XVI.
No segundo enfoque caracteriza-se o bairro mediante a análise do depoimento de moradores
do bairro, obtidos através de entrevistas e de observação direta. Essa abordagem, de caráter
qualitativo, tem por objetivo destacar a particular percepção do bairro efetivada por seu
morador. A intenção é utilizar os elementos de avaliação do ambiente, trazidos pelo morador,
para enriquecer o processo tradicional de descrição e avaliação do ambiente urbano efetivado
pelos arquitetos. Serão analisados os depoimentos de dez moradores, residentes em vias
internas à área de estudo e em vias que a delimitam.
4.1 A área de estudo e a justificativa de sua escolha
Adotou-se como área de estudo um conjunto de quadras situadas no bairro da Mooca,
delimitadas pela Avenida Paes de Barros, Rua Leocádia Cintra, Rua Curupacê e as Ruas
Orville Derby e Canuto Saraiva. A Carta 1 localiza a área de estudo no bairro da Mooca e a
Carta 2 destaca a área de estudo em escala maior.
Essa área foi escolhida por atender aos parâmetros estabelecidos por Candido Malta Campos
Filho, ao definir o conceito de unidade ambiental de moradia, que estabelece “ilhas de
tranqüilidade urbana” dentro da cidade:
“As unidades ambientais de moradia são aquelas em que se
conseguiu controlar o aumento do volume de veículos atravessadores
de um bairro, estabelecendo nele “ilhas de tranqüilidade”. Essas
65
ilhas podem ser ruas com volume de tráfego controlado, o que
podemos chamar de travessia civilizada, ou ruas sem saída, vilas, ou
onde o tráfego é dificultado para um conjunto de quadras. Esse
conceito será tanto associado a um uso civilizado e contido do
automóvel nas áreas em que isso ainda é possível, porque a
densidade das atividades urbanas associada a um determinado
sistema viário assim o permite, como também nas áreas em que o
adensamento atingiu tais níveis que o transporte coletivo
consegue dar conta, com qualidade de serviço, do volume de
circulação que se produz ou que venha em horizonte previsível de
tempo de planejamento, a se produzir.” [...] Ao mesmo tempo, e o
estudo de caso o dirá, muitas vezes a solução do bolsão no seu
interior se imporá como protetor do tráfego de passagem,
permitindo o tráfego local, como solução extrema, devido às fortes
pressões existentes.” (CAMPOS FILHO, 2004: 34).
FONTE:
CAMPOS FILHO, 1989:10
CROQUIS DE UMA ILHA DE TRANQUILIDADE A ÁREA DE ESTUDO NA MOOCA
Note-se a semelhança da configuração espacial da área de estudo com o croqui, notadamente
o traçado da rede viária, onde se distinguem as ruas "sem saída", com formato em "U" e a rua
que termina em balão de retorno.
66
67
68
4.2 Origens da área de estudo: a ocupação urbana do bairro da Mooca
BRASÃO DO BAIRRO DA MOOCA.
FONTE:
Jornal o Bello, Ano 01, Nº 01, outubro de 2005, página 8.
Introdução
Ainda está por ser escrita a história do bairro da Mooca.
De fato, não existe, até o momento, um trabalho de fôlego reconstituindo o desenvolvimento
desse tradicional bairro da cidade de São Paulo, desde suas origens até hoje. Encontram-se
apenas referências esparsas, carecendo de sistematização. A reconstituição da história do
bairro, entretanto, exigirá muito mais do que isso, pois implicará investigação em
69
profundidade de extensa documentação, o que demandará tempo e método do historiador, que
a tanto se empenhar.
O objetivo aqui não é, portanto, desenvolver o trabalho histórico de fôlego de que o bairro
carece, e que bem o merece, mas reconstituir, em largas pinceladas, o processo de
urbanização do bairro. Espera-se, com isso, compreender o processo de configuração da
estrutura urbana do bairro da Mooca, tal como foi legada a seus moradores e seus diversos
usuários, nesse início do século XXI, e tal como se apresenta hoje e é por todos fruída.
As fontes de informação utilizadas são, primeiramente, a bibliografia existente, que tem a
cidade de São Paulo e seus bairros como tema, e em segundo lugar, mas não menos
importante, a cartografia histórica da cidade de São Paulo, em particular aquela que registra a
evolução do parcelamento e da ocupação urbana do bairro.
Inundação da Várzea do Carmo – 1892
Quadro de Benedito Calixto.
FONTE: CARTA, 1982: 17,18.
Note-se a Zona Leste de São Paulo - Brás e Mooca - em princípios de urbanização,
ao fundo, além da várzea inundada.
70
A Mooca de hoje
O bairro da Mooca tem hoje a extensão de 7,7 km² e conta com aproximadamente 63.300
habitantes. Situa-se na Zona Leste da capital paulistana, limitando-se a norte e noroeste com o
bairro do Brás; a oeste com os bairros do Cambuci e do Ipiranga; ao sul com a Vila Prudente,
a leste com a Água Rasa e ao norte e nordeste com o Belém.
O BAIRRO DA MOOCA
Situa-se no vale do rio Tamanduateí, próximo à sua confluência com o rio Tietê, com altitudes
variando da cota 727, nas proximidades do início da rua da Mooca, à cota 800, na caixa
71
baixa do bairro se assenta na extensa planície constituída pela interligação das várzeas do rio
Tietê e do rio Tamanduateí, e o alto da Mooca ocupa as colinas que constituem parte da
vertente direita do vale deste rio, em seu trecho final, já que o Tamanduateí tem suas
nascentes no alto da Serra do Mar, várias dezenas de quilômetros ao sul da Mooca.
HIPSOMETRIA DA ÁREA CENTRAL DA CIDADE DE SÃO PAULO.
Note-se o bairro da Mooca localizado sobre a vertente direita do vale do rio Tamanduateí.
FONTE:
Metrô de São Paulo – 1968
.
A particular posição no sítio natural da cidade lhe confere privilegiadas perspectivas de longa
distância, o que permite apreciar toda a vertente esquerda do vale, que lhe é fronteiriça, e que
é ocupada pelo centro da cidade, densamente verticalizado. As visuais de longa distância
estendem-se em direção ao sudoeste, tendo como panorama o espigão da avenida Paulista,
também intensamente ocupado por altos edifícios, distinguidos por suas torres metálicas de
telecomunicações; em direção ao quadrante norte, o olhar se estende por toda a área da cidade
ao longo e ao norte do rio Tietê, que constitui extensa área urbanizada, dominantemente
branca, emoldurada, no horizonte, pelo perfil azulado do Pico do Jaraguá e da Serra da
Cantareira.
72
VISÃO PANORÂMICA DA MOOCA, A PARTIR DO MORRO DO CAMBUCI
NOVEMBRO DE 2005
A Mooca tem sua paisagem construída ainda fortemente marcada pela presença de extensos
galpões e edifícios industriais, situados principalmente às margens das estradas de ferro, com
caráter predominantemente horizontal. O trecho alto do bairro, notadamente ao longo da
Avenida Paes de Barros, apresenta edifícios residenciais verticalizados, que evidenciam mais
fortemente a silhueta das colinas da Mooca, na paisagem da cidade. A verticalização da parte
alta da Mooca teve início por volta da década de 1960, e, desde a última década do século
XX, ela vem se estendendo para as partes baixas do bairro.
O perfil de usos do solo na Mooca vem sofrendo transformações significativas, em função do
processo de descentralização do parque industrial paulistano, e sua substituição por serviços,
fenômeno que vem ocorrendo desde a década de 1970, mas que se acelerou em finais do
século XX. Na Mooca, o efeito desse processo é particularmente visível, devido à extensão de
seu parque industrial. muitos galpões ociosos, que pouco a pouco vêm sendo reciclados
para novos usos ou sendo destruídos e substituídos por condomínios residenciais
verticalizados, de alta densidade.
Os moradores da Mooca têm condição sócio-econômica privilegiada com relação à maioria da
população paulistana. A renda média familiar registrada no bairro é de R$ 2.138,90, superior
quase 1,5 vez à renda média da Cidade de São Paulo. Apresenta baixo índice de
analfabetismo, e um recorde interessante, pois é o bairro paulistano com mais alto índice de
idosos pessoas com idade acima de 60 anos o que atesta a boa condição de saúde e de
qualidade de vida de seus moradores, garantindo-lhes longevidade (Plano Diretor Estratégico
do Município de São Paulo - Subprefeitura da Mooca: 15-17).
73
A MOOCA VISTA DO VIADUTO BRESSER
NOVEMBRO DE 2005.
A Mooca nos séculos XVI, XVII, XVIII.
Pesquisadores da história do bairro pleiteiam data bastante remota, situada no século XVI,
para o surgimento da Mooca.
A data de 17 de agosto de 1556, apenas dois anos após a fundação de São Paulo, é defendida
por Nuto Sant’Anna (SANT’ANNA: 1985) como a efeméride que assinala a fundação do
bairro. De fato, essa data consigna a referência escrita mais antiga, encontrada nos anais da
cidade de São Paulo, feita a um importante elemento urbano da Mooca.
Trata-se de uma determinação, expedida pelas autoridades edis de Santo André da Borda do
Campo a cuja jurisdição o nascente aldeamento de São Paulo estava submetido no sentido
de promover a conservação de determinada ponte sobre o Rio Tamanduateí, que era
estratégica para a interligação dos dois centros. Pode-se inferir, pelo texto em questão, que se
trata da ponte da Mooca, ou ponte Tabatingüera, como também foi conhecida no passado esta
mesma travessia do Tamanduateí.
Nesta data, em meados do século XVI, a governança de Santo André fez saber aos habitantes
de São Paulo de Piratininga que estes estavam
74
“obrigados a fazer a ponte do rio Tometeai, que passa por junto da
vila toda as vezes que disso tiver necessidade e por ora ao presente a
dita ponte ter necessidade de concertar-se mandarão que por todo
este mês de agosto deste dito ano [1556] concerten a dita ponte.
(SANT’ANNA, 1985: 7).
Essa ponte dava acesso à trilha tupiniquim preexistente à colonização portuguesa e que os
habitantes autóctones dos campos de Piratininga utilizavam para seu deslocamento em direção
ao alto da Serra do Mar, descendo em seguida para o litoral. Nômades, e ocupando todo o
planalto, os tupiniquins foram responsáveis pela criação de várias trilhas, a maioria usada
pelos jesuítas e portugueses”. Tinham por hábito dirigir-se, no inverno, para altitudes mais
baixas, descendo a serra em busca de temperaturas mais amenas (PERRUCI: 2).
Por essa trilha, cujo traçado as evidências indicam coincidir em parte com o trecho inicial da
Rua da Mooca, certamente chegaram Anchieta e Manuel da Nóbrega, conduzidos por João
Ramalho, para fundarem São Paulo. Dessa maneira, se forem vencidas as resistências ao
reconhecimento da contribuição da cultura tupiniquim ao processo histórico de nossa cidade,
a origem da Mooca recua a tempos imemoriais, quando, nestes Campos de Piratininga,
somente habitavam e circulavam os membros da valorosa nação tupi-guarani.
Vale notar que esse período inicial da colonização presidiu à consolidação de importantes
rotas de circulação na região paulistana, muitas das quais acompanhando as antigas trilhas
tupiniquins, e que se tornaram, posteriormente, grandes diretrizes para o crescimento da
cidade, reconhecíveis até hoje em sua estrutura urbana. São cinco esses eixos: em direção a
leste, procurando o Tamanduateí, o da Tabatingüera; para o sul o do Ipiranga começo do
caminho do Mar e o do Ibirapuera, futuramente de Santo Amaro; para oeste o caminho de
Pinheiros; e para o norte o de Guaré” (BRUNO, 1985: 7).
Entretanto, a efetiva ocupação urbana da Mooca deu-se bem posteriormente na história de São
Paulo. A própria cidade, como um todo, demorou quase três séculos a expressar um
dinamismo mais expressivo de crescimento e desenvolvimento urbano e então ultrapassar os
limites que constituíram suas defesas naturais, ou sejam o vale do Anhangabaú e o vale do
Tamanduateí.
75
MAQUETE QUE RECONSTITUI O POVOAMENTO INICIALDE SÃO PAULO
EM JANEIRO DE 1554.
Museu da Casa da Marquesa de Santos
De fato, Paulo de Assunção registra que
“A povoação de São Paulo nos campos de Piratininga, pobre e sem
recursos, cresceu de forma vagarosa no decorrer do século XVI”.
Pouco a pouco moradias simples feitas de barro eram construídas
por uma pequena população que vivia principalmente do que
plantava na terra, do que colhia pelas matas e do que pescava nos
rios. Os primeiros moradores, justificaram a transferência para o
planalto devido à incapacidade produtiva do solo litorâneo, sendo
também inadequado para a criação de gado”.[...]“As casas feitas de
taipa receberam, com o tempo, acabamento final, dependendo dos
recursos de seus proprietários, que procuravam dar às suas
moradias características de um conforto singelo. Contudo o que
preponderava eram as choupanas construídas de forma simples, sem
planejamento e de maneira artesanal, tanto no centro como nos
caminhos que davam a cesso à vila”. (ASSUNÇÃO, 2004: 19-20).
76
Poucos eventos significativos marcaram a história da cidade durante os dois séculos
seguintes.
O final do século XVI e início do século XVII assistiram a realização “das primeiras
expedições de investida pelo interior” (ASSUNÇÃO, 2004:25), promovidas pelos habitantes
de São Paulo, à busca de ouro e pedras preciosas, certamente premidos pela situação de
penúria econômica em que viviam; assistiu-se também, em 1641, à aclamação de Amador
Bueno como rei, fato ligado à re659(e)3.74(s-12.1703(a)3.747(à)3.74( )-1.155066O0659(e)3659(e)3.74(s-1)3.74( )-259(e)3.74(s-12.1-10.)í12(”)556]TJ/R7 12 Tf186.3)-0.295585(i(s-1S56] -20.64 Td[(B)6.61035(659(e)3.74(0.274(s-161035(u)-0.2961035(u)-0.294(m)-2.94(m)-25265(p)-0.29)-0.29610-2.94(m)-25265(p)-0.29961035(u94(m)-25265(p)-0.2)-0.295585(0)-0.2955852 0 0 cm BT/R33015(s)-1)]TJ277.003610-2.94(m)-85( )-10.1537(r)2.)-85( )-10.1534(m)-25265(p)-0.2)-1)]TJ277.003610-2.9p
77
São Paulo contava então com pouco mais de 1500 habitantes.
VISTA DA CIDADE DE SÃO PAULO, ARNAUD JULIEN, 1821.
FONTE: CAMPOS, 2004: 18.
EM PRIMEIRO PLANO, À ESQUERDA, VÊ-SE O QUE PODE SER A REPRESENTAÇÃO MAIS
ANTIGA DA PONTE DA MOOCA.
78
A Mooca no século XIX
O segundo quartel do culo XIX assiste a uma radical alteração da atividade econômica no
planalto, com a introdução e o sucesso da lavoura do café na Província de São Paulo, que
passa a integrar, pela primeira vez em sua história, o processo econômico central do país,
deixando definitivamente a condição periférica em que tinha se mantido até então.
O poder econômico da cidade se expressa não apenas na expansão de sua área urbanizada,
como também nas obras urbanas de fôlego que são promovidas, destacando-se entre elas o
início da drenagem da várzea do Carmo, com a canalização do primeiro trecho do
Tamanduateí, entre a ponte do Carmo e a Rua Florêncio de Abreu, em 1848 (ASSUNÇÃO,
2004: 39).
VISTA DE SÃO PAULO TOMADA DO CAMINHO PARA O RIO DE JANEIRO
EDMUND PINK, 1823.
FONTE:
CAMPOS, 2004: 44
No entanto, a grande alteração da dinâmica urbana de São Paulo ocorre de fato com a
inauguração em 1867 da primeira estrada de ferro a São Paulo Railway, ou EFI - Estrada de
Ferro Inglesa, ou ainda Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, como ficou conhecida, que resgata
São Paulo definitivamente de seu multissecular isolamento, decorrente das grandes limitações
de acesso ao planalto, impostas pela íngreme muralha natural de 800m de altitude, constituída
pela Serra do Mar.
79
Pode-se acompanhar o crescimento da cidade pelas cartas elaboradas a partir do século XIX,
sendo que as primeiras cartas de São Paulo datam do início do século(ASSUNÇÃO,
2004: 52).
A mais antiga delas, a Planta da Cidade de São Paulo, levantada por Rufino José Felizardo e
Costa, data de 1810 e apresenta a cidade com dimensões ainda bastante modestas, mas
assinala a cidade crescendo nos vetores norte e oeste, tendo transposto o Vale do
Anhangabaú.
A zona leste permanece ainda sem ocupação urbana significativa, e o Rio Tamanduateí e sua
várzea inundável ainda constituem limites para a cidade. Estão registradas apenas as duas
tradicionais pontes de travessia do Tamanduateí: a que demandava o Brás, levando à estrada
que se dirigia para o Rio de Janeiro e a ponte da Mooca. A via que seria a Avenida Rangel
Pestana já está claramente delineada.
As referências históricas do início do século XIX indicam que
Em 1819 perto da cidade de São Paulo havia chácaras por todos os
lados. Muitas com cercados onde se viam plantações simétricas de pés
de café, de laranjeiras e de jabuticabeiras. Algumas enormes, e quase
sempre conhecidas pelos nomes de seus donos ou de seus possuidores
primitivos. Falando do bairro do Brás, no começo do século XIX,
escrevia Monsenhor José Marcondes Homem de Melo que fora os
casebres havia ali algumas chácaras de propriedade de pessoas
abastadas da cidade, na margem da Estrada Geral (a direção da
futura Avenida Rangel Pestana) ou de seus dois braços (o caminho
do Pari e o que procurava o morro da Mooca). Viviam nessas
chácaras seus caseiros ou escravos. nas festas de junho também
seus donos e familiares” (BRUNO, 1991: 202-205).
80
PLANTA DE CIDADE DE SÃO PAULO – 1810
LEVANTADA POR RUFINO JOSÉ FELIZARDO E COSTA
FONTE:
PORTAL INTERNO DA PMSP GEO – SP - http://dcplab71geosp/principal.asp
DETALHE DA CARTA ACIMA MOSTRANDO A GRANDE ALÇA DO
RIO TAMANDUATEÍ E A PONTE DE MOOCA, NA DIREÇÃO DA LETRA “D” DE TAMANDUATEÍ.
81
A Mooca, em especial, manteve suas chácaras até bem perto do final do século, pois um relato
datado de 1863 descreve que
(...) as chácaras da Mooca se requintavam particularmente por seus
muros, com leões de louça por cima e seus portões de ferro batido,
todos cheios de arabescos caprichosos obras primas quase sempre
do serralheiro Carlos Plaster” (BRUNO, 1991: 478).
Outros relatos confirmam a ocupação tardia da região:
“Alfredo Moreira Pinto, em 1900, relembrando seus tempos de
estudante em São Paulo, mais de trinta anos antes [portanto por volta
de 1870] o Brás, a Mooca e o Pari eram povoados insignificantes
com algumas casas de sapé que medrosamente se erguiam no meio de
matagais espessos. E a várzea do Carmo lugar escolhido para
caçadas de cabritos, como antes fora local de caçadas de frangos-
d’água.(BRUNO, 1991: 568).
Na Planta da Cidade de São Paulo, de 1841, levantada por C. A. Bresser, se notam as
primeiras vias estruturantes do Brás e da Mooca, com a delimitação de grandes lotes,
provavelmente as chácaras que os registros históricos citam. Estão bem delineados e
identificados na legenda da carta, com número 6, o caminho para a Moóca (futura rua da
Mooca); com número 18 o dto para a Penha (futura Rangel Pestana) e, com número 17, uma
nova via interligando ambas, identificada como dto para a Mooca (futura rua Piratininga).
Mantém-se presente, nesse quadrilátero a grande alça do Rio Tamanduateí, ainda não drenada,
identificada com o número 38.
A Carta da Capital de São Paulo, de 1842, executada pelo Engenheiro da Columna José
Jacques da Costa Ourique, não acrescenta novos elementos urbanos, nesta área. Apenas
nomeia diferentemente a atual Avenida Rangel Pestana como Caminho do Brás e a atual Rua
da Mooca, como Caminho da Muóca.
82
PLANTA DA CIDADE DE SÃO PAULO – 1841
LEVANTADA POR C. A. BRESSER
FONTE
: PORTAL INTERNO DA PMSP GEO SP – http://dcplab71geosp/principal.asp
DETALHE DA PLANTAGERAL DESTACANDO A MOOCA E O BRÁS
83
CARTA DA CAPITAL DE SÃO PAULO – 1842
ELABORADA POR JOSÉ JACQUES DA COSTA OURIQUE
FONTE:
PORTAL INTERNO DA PMSP GEO SP – http://dcolab71geosp/principal.asp
DETALHE DA PLANTA GERAL MOSTRANDO AS ÁREAS DO BRÁS E DA MOOCA
84
A planta nomeada como Mapa da Cidade de São Paulo e seus Subúrbios, sem data,
aparenta ser uma transcrição mais detalhada da planta de 1842. Traz poucas novidades para a
área da Mooca. Apresenta um loteamento mais detalhado, já indicando limites de lotes ao
longo da Rua Piratininga e um parcelamento maior no trecho final da Rua da Mooca, o que
pode indicar uma maior atividade do mercado imobiliário na área, e um decorrente
crescimento populacional. Além disso, nomeia diferentemente vias já existentes,
demonstrando que não havia ainda nomenclatura oficial para os logradouros públicos, pelo
menos para os mais afastados. A Rua da Mooca é identificada como Estrada da Mooca, e a
Rua Piratininga é identificada como Caminho da Mooka, assim mesmo, com K. Esta carta
nomeia pela primeira vez a Freguesia do Brás.
O pesquisador Eugenio Luciano Junior chama atenção para fato interessante. Pergunta-se ele:
“Porque entre a antiga várzea e a Freguesia do Braz, somente a
atual rua Piratininga foi a primeira rua (ou caminho) aberto para
a Mooca?
Sabe-se, que toda a área compreendida entre o Rio Tamanduatey e
a atual rua Piratininga, embora não sendo totalmente várzea, era
facilmente inundável. Daí a abertura de um caminho onde o
terreno já era suficientemente firme e garantido para todas as
épocas do ano. As ruas intermediárias como Carneiro Leão, por
exemplo, só surgiram muito mais tarde.” (LUCIANO JUNIOR,
1985: 15).
De fato, essas ruas puderam ser implantadas quando foi providenciada a drenagem total
desse quadrilátero.
O Mappa da Imperial Cidade de São Paulo, de 1855, levantada por Carlos Rath, apresenta o
traçado de duas novas vias transversais à rua da Mooca, (nesta carta identificada novamente
como Estrada da Mooca), possivelmente as atuais Rua Dona Ana Néri e Rua Conselheiro
João Alfredo, em que pesem pequenas discrepâncias com as cartas atuais, atribuíveis a
imprecisões do levantamento do século XIX. Apresenta também uma diretriz mais extensa da
85
atual Avenida Rangel Pestana, com uma largura mais ampla, e novas vias paralelas ao
Caminho para a Mooca (atual Rua Piratininga).
A Planta da Cidade de São Paulo, de 1868, do mesmo Carlos Rath acrescenta algumas vias
no Brás, mas em compensação apresenta-se mais pobre de informações do que a carta anterior
na área da Mooca.
Tem como grande novidade o lançamento, pela primeira vez em cartografia oficial da cidade,
do traçado da Estrada de Ferro, a São Paulo Railway, ou Santos a Jundiaí, como ficou mais
conhecida, inaugurada no ano anterior. Note-se a modernidade do uso do sistema métrico
decimal nessa carta, juntamente com o sistema métrico de braças, que caiu em desuso.
O Mappa da Capital da Província de São Paulo, de 1877, publicado por Francisco de
Albuquerque e Jules Martin, não é uma planta técnica, pois é antes de tudo um interessante
guia da cidade de São Paulo, apresentando edifícios notáveis e outros pontos de destaque.
Apesar de restringir-se à área mais central e a seu eixo de expansão norte, ela traz, entretanto,
uma série de informações, nos limites da carta, sobre elementos urbanos na área do Brás e da
Mooca. Indica a existência do Hipódromo, situado a 3.891m da Ponte da Tabatingüera, que é
como está denominada nesta carta a Ponte da Mooca.
A planta de 1881, denominada Planta da Cidade de São Paulo, de Henry B. Joyner foi
encomendada pela Companhia Cantareira e Esgotos. Apesar de detalhar muito pouco a área
da Mooca, identifica pela primeira vez a antiga Estrada da Mooca como Rua da Mooca e a
atual Piratininga como Travessa da Mooca. Delineia as vias com traços cheios e tracejados, o
que pode ser lido como uma diferenciação do padrão de urbanização, indicando
possivelmente a implantação de guias nas vias, ou trechos de vias cujos lotes sejam murados.
Os textos coligidos reforçam essa hipótese, pois indicam que em finais do século XIX a
gestão urbana não propunha uma nova condição de saneamento para a cidade (fato
expresso no nome da empresa que encomenda a carta) como também exigia um novo padrão
de normatização do ambiente urbano:
86
MAPA DA IMPERIAL CIDADE DE SÃO PAULO – 1855.
LEVANTADA POR CARLOS RATH
FONTE:
PORTAL INTERNO DA PMSP GEO SP – http://dcolab71geosp/principal.asp
DETALHE DA CARTA GERAL DESTACANDO AS ÁREAS DO BRÁS E DA MOOCA
87
PLANTA DE CIDADE DE SÃO PAULO – 1868
LEVANTADA POR CARLOS RATH
FONTE:
PORTAL INTERNO DA PMSP GEO SP – http://dcolab71geosp/principal.asp
DETALHE DA PLANTA GERAL DESTACANDO A ÁREA DO BRÁS E DA MOOCA
88
“Caiam as rotundas, as mantilhas, arruavam-se o Campo do Chá, o
Bexiga, o Zuniga; entravam no alinhamento o Brás, a Mooca, a
Ponte Grande. A Penha perdia o encanto, uma vez servida pelas
locomotivas, pelo bonde e pelo gás corrente. O próprio conceito
urbano se modificava como observou Richard N. Morse, comparando
dois regulamentos de 1856 e de 1873 que definiam os limites
dentro dos quais devia ser cobrado o imposto predial urbano. O
primeiro representava a cidade se confundindo ainda com o campo, se
estendendo às chácaras de Joaquim Sertório, Mooca, e de
Hermenegildo José dos Santos (...)”(BRUNO, 1991: 907).
Vê-se também, nessa planta que
“(...) existia o ramal ferroviário que a São Paulo Railway construiu
para servir até o Hipódromo. Esse ramal saía da linha principal, na
altura dos fundos da atual fábrica Alpargatas, fazia uma curva sob o
atual viaduto da zona Leste, onde ainda um pequeno trecho
abandonado, e entrava pela estrada posterirmente denominada Rua
dos Trilhos, e na Rua do Hipódromo entrava à esquerda até a Bresser,
frente aos portões do Hipódromo." (LUCIANO JUNIOR, 1985: 15-
16).
Em 1890, Jules Martin edita uma nova planta, denominada Planta da Capital do Estado de
São Paulo e seus arrabaldes, na qual
se define com clareza as ruas Mooca, Piratininga, Carneiro Leão,
Luiz Gama e Concórdia. Em frente à rua Piratininga “o projeto” de
uma avenida do Ipiranga, para ligar a Mooca até o museu do
Ipiranga.” (LUCIANO JUNIOR, 1985: 15-16).
Efetivamente foi implantado apenas o trecho situado no bairro do Ipiranga.
Nessa planta aparece pela primeira vez a denominação Mooca, para o bairro.
89
MAPA DA CAPITAL DA PROVÍNCIA DE SÃO PAULO – 1877.
PUBLICADO POR FRANCISCO DE ALBUQUERQUE E JULES MARTIN
FONTE:
PORTAL INTERNO DA PMSP GEIO SP – http://dcolab71geosp/principal.asp
90
PLANTA DA CIDADE DE SÃO PAULO – 1881
.
LEVANTADA POR HENRY B. JOYNER.
FONTE:
PORTAL INTERNO DA PMSP GEO SP – http://dcolab71geosp/principal.asp
DETALHE DA PLANTA GERAL DESTACANDO A ÁREA DO BRÁS E DA MOOCA
91
A Planta Geral da Capital de São Paulo de 1897 é editada pelo intendente de obras Gomes
Cardim. Transcrevemos a análise detalhada desta planta, no que concerne à área da Mooca,
feita por Eugênio Luciano Junior:
“Nessa planta [Gomes Cardim] destaque a um loteamento
denominado“Vila Gomes Cardim” que compreende toda a área desde a
Praça atual de Sílvio Romero até a estação da Parada, vila essa que até
1940 não passava de grandes chácaras e até sítio, [e] somente após esta
época entrou em desenvolvimento. Nesse mapa consta claramente o
Hipódromo da Mooca, o ramal ferroviário ainda sem existir “Rua dos
Trilhos” as estradas de ferro S. Paulo Railway e Central do Brasil e as
seguintes ruas:
- Que tiveram seus nomes alterados: Jamundá (Coronel Cintra), Licavale
(Oscar Horta) Xingu (Dom Bosco), Puzomayo (André Reis), Negro (Odorico
Mendes), Bavária (Presidente Wilson) Purus (final da atual Rua Almeida
Lima), De Oliveira (trecho da atual Borges de Figueiredo até a rua
Monsenhor Filipo), Taubaté (final da rua Borges de Figueiredo, da atual
Monsenhor Filipo até a atual Conselheiro Benevides), Travessa sem nome
da Estação da Mooca, hoje Monsenhor Filipo, Pindamonhangaba (João
Antonio de Oliveira), Loreno (Rubião Junior), Jacarehy (Visconde de
Cairu), da Cachoeira (Conselheiro Benevides), Jutahy (Orville Derbi),
Viana (Marcial), Travessa Hipódromo (rua João Caetano), Santa Cruz
(Ipanema), Carijós (Almirante Brasil), Curuçá (Placidina).
2º- Que ainda mantém os mesmos nomes: Mooca, Luís Gama, Barão de
Jaguara, Guaratinguetá, Taquary, Bresser, Itajahy, Hipó´dromo, Frei
Gaspar, Visconde de Parnaíba,Cconselheiro Lafayete, Guarauava, Mem de
Sá, Carneiro Leão, Wandelkolk.
3º- Ruas inexistentes: nessa planta uma série de ruas, que supomos
tenham sido projetadas mas não construídas, por razões que
desconhecemos. Assim é que na antiga Bavária (Presidente Wilson), após a
estação da Mooca, do lado direito, uma série de ruas que não foram
concretizadas, Coavi, entre a estrada de ferro e Borges de Figueiredo;
Juruá, nas cercanias do Largo São Rafael. E por último desapareceram,
92
para dar lugar à Radial Leste: D. Placidina, Azevedo Jr., Conselheiro
Seabra, Bento Pires e Conselheiro Justino.“Assim era a Mooca em fins do
século {XIX]”.
(LUCIANO JUNIOR,1985:15).
RUA 25 DE MARÇO, A. FERRIGNO, c.1890.
FONTE:
CAMPOS, 2004: 62.
A “virada” do século XIX para o século XX
A Planta da cidade de São Paulo, de 1905, aparenta ser mais realista do que a de 1897.
Gomes Cardim, como apontou Luciano Junior, em citação acima, lançou, em sua carta,
projetos de loteamentos, ou loteamentos aprovados, mas não efetivamente implantados. Boa
parte dos loteamentos, que aparecem na Zona Leste, na carta de 1897, só vieram a ser
implantados com o decorrer do tempo, e com significativas alterações em seu traçado original.
A carta, do início do século XX, apresenta um panorama mais fidedigno daquilo que tinha
sido efetivado até então, e que embora menos eufórico do que a carta de 1897 apresenta
significativa diferença com relação à carta de 1890.
A Mooca aparece um pouco menos urbanizada do que aparecia na carta anterior, notando-se
diferença marcante nas proximidades da confluência da Rua da Mooca com a Estrada de
Ferro Santos a Jundiaí, mas já é um bairro com porte significativo na cidade.
93
PLANTA DA CAPITAL DO ESTADO DE SÃO PAULO – 1890.
FONTE:
PORTAL INTERNO DA PMSP GEO SP – http://dcolab71geosp/principal.asp
94
PLANTA GERAL DA CAPITAL DE SÃO PAULO - 1897 .
EDITADA POR GOMES CARDIM
FONTE:
PORTAL INTERNO DA PMSP GEO SP – http://dcolab71geosp/principal.asp
DETALHE DA PLANTA GERAL DESTACANDO
AS ÁREAS DO BRÁS, MOOCA E VILA PRUDENTE.
95
O destaque nesta planta fica para a indicação de várias indústrias, possivelmente de peso
gráfico não muito notável, mas, evidentemente, de enorme importância sócio-econômica,
registrando a constituição de um florescente parque industrial, ao qual se associaram
profundas alterações na estrutura social e no ambiente urbano de São Paulo.
A partir de então a cidade ganhou um dinamismo sem precedentes, e a velocidade de
desenvolvimento da Mooca, acompanha, daí em diante, o desenvolvimento crescente da
capital paulistana.
De fato, o final do culo XIX e o início do século XX assistem a um intenso processo de
industrialização na cidade de São Paulo.
“Muitas dessas fábricas que se fundaram em São Paulo no período
de 1885 a 1890 esboçavam, pela sua localização, a formação de
alguns dos bairros fabris: rua do Gasômetro, Brás, Mooca, Bom
Retiro, Belenzinho, Vila Prudente, Cambuci e Ipiranga, Pari, Luz,
Barra funda, Água Branca, Lapa. Essa formação dos bairros fabris
se caracterizaria melhor todavia na última década do século
passado [século XIX] e no começo do atual [século XX].
(BRUNO, 1991: 1181).
FÁBRICA DA ANTÁRTICA, 1900.
FONTE:
CAMPOS, 2004: 69
96
As indústrias se localizaram principalmente ao longo das estradas de ferro, e grandemente na
Zona Leste da cidade, aí se destacando o Brás e a Mooca.
Para sua implantação, duas condições eram primordiais: a acessibilidade e a disponibilidade
de grandes terrenos planos. O Brás e a Mooca ofereciam esses dois requisitos. Grandes
chácaras ainda não parceladas, contíguas às duas grandes vias férreas, foram sendo
transformadas em loteamentos industriais, que receberam galpões e indústrias diversificadas.
“A Mooca, que era um bairro pitoresco, cheio de chácaras e sítios,
passou a ser ocupada por fábricas e usinas e naturalmente por
casas de moradias, para seus operários e empregados.
Muitas dessas indústrias pioneiras desapareceram com o tempo
deixando-nos com a lembrança de seus nomes: Armazéns
Matarazzo, Grandes Moinhos Gambá, Casa Vanordem, Tecelagem
Três Irmãos Andraus, Cia Paulista de Louças Esmaltadas,
Cotonifício Rodolfo Crespi, Fábrica de Tecidos Labor, Fábrica de
Meias Mousseline, e ainda há pouco a Cia de Calçados Clark.
Outras permanecem, continuando a obra de seus iniciadores: São
Paulo Alpargatas, Attilio Fuzer S. A., Frigorífico Anglo, Cia
Antárctica, Máquinas Piratininga, Alumínio Fulgor, Cia União dos
Refinadores, etc.”(LUCIANO JUNIOR, 1985: 13).
Além da grande indústria, um sem número de pequenas e médias empresas se instalaram na
Mooca, beneficiando-se da centralidade constituída pelo vigoroso parque industrial.
97
COTONIFÍCO CRESPI, 1918
FONTE:
CAMPOS, 2004: 82.
A mão de obra imigrante
A intensa atividade econômica industrial demandava extensa mão de obra. A indústria
crescente oferecia novas oportunidades de emprego e não por acaso a Mooca tornou-se um
bairro de imigrantes italianos, primeiramente, e depois também de espanhóis e portugueses.
A imigração européia, projeto de iniciativa da elite econômica brasileira, muito bem
articulada politicamente, ganhou apoio do governo imperial em 1871, quando então passou a
ser subvencionada pelos cofres públicos, após três décadas de iniciativas particulares,
promovidas por alguns grandes proprietários de terra. Ela se tornou a principal fonte de mão
98
PARTENZA DEGLI EMIGRANTI, ÓLEO DE ANGELO TOMASI, 1896.
FONTE:
Revista Nossa História, Ano 2, nº 24, outubro de 2005, pg. 36.
A corrente migratória, além de oferecer mão de obra assalariada para a lavoura do café,
forneceu também, no final do culo XIX e início do século XX a imensa maioria da mão de
obra industrial empregada em São Paulo. A maioria dos imigrantes era originária da Península
Itálica, de onde provieram 1,4 milhões de pessoas, entre 1870 e 1920. Sua presença era
dominante na mão de obra assalariada em São Paulo, constituindo 90% dos trabalhadores
industriais em 1901 (ELIAS, 2005: 18).
Grande parte desses operários localizou-se na Mooca (BRUNO, 1991: 1344), e a sua presença
se expressa em hábitos, costumes e tradições, mantidos até hoje, destacando-se as festividades
religiosas, como a de San Gennaro, grande festa pública, onde se come e se bebe fartamente;
um sem número de cantinas oferece o que de melhor na cozinha italiana; a arquitetura
registra, nos pequenos sobrados geminados, nas vilas e conjuntos habitacionais populares
tradicionais da Mooca, o início de vida muitas vezes difícil para o imigrante; o sotaque típico
da Mooca evidencia a influência da língua italiana, ainda hoje língua de uso doméstico em
muitos lares do bairro; mas a característica primordial é, sem dúvida, o modo de ser
extrovertido e comunicativo do morador da Mooca, que não é apenas caloroso, mas também
solidário, mantendo uma rede de relações comunitárias, pouco comum em outros bairros
paulistanos.
99
CHEGADA AO PORTO DE SANTOS.
FOTO (PARCIAL) DE GUILHERME GAENSLY, c. 1900.
FONTE:
Revista nossa História , Ano 2, nº 24, outubro de 2005, pg. 34
A presença italiana na Mooca, entretanto não se deu apenas através de trabalhadores
assalariados, mas também através de empresários de sucesso. No final do século XIX, por
volta de 1890, instalaram-se no bairro algumas famílias de imigrantes que traziam consigo
algum capital, logo investidos em diferentes ramos da atividade econômica, como na indústria
alimentícia, na indústria têxtil, em marmorarias, e outros (BRUNO, 1991: 1180, 1181).
Assim, nas primeiras décadas do século XX, uma elite econômica vai se constituindo e
marcando sua presença no bairro, de tal forma que em 1940, a Mooca que até então era
caracterizada como bairro operário, começa a se distinguir como bairro de população
economicamente diferenciada.
100
CASARÕES À RUA PEDRO LUCENA E À AVENIDA PAES DE BARROS
NOVEMBRO DE 2005
O
século XX
É no século XX que a Mooca tem o seu grande desenvolvimento, em especial a partir da
década de 1920, quando é loteada a maior parte do bairro. É marcante o lançamento do
Parque da Mooca, em 1921. Eugênio Luciano Junior nos conta que, em 1912, a Companhia
Chácara da Mooca, posteriormente Companhia Parque da Mooca adquiriu a antiga fazenda
Paes de Barros, com superfície de 4.120.000 (quatro milhões, cento e vinte mil metros
quadrados) (LUCIANO JUNIOR, 1985: 15,16), cuja magnitude, para se ter uma comparação,
corresponde a mais de quatro vezes a superfície do Parque Ibirapuera, inaugurado em 1954,
por ocasião dos festejos do IV Centenário da Cidade de São Paulo.
A VENIDA PAES DE BARROS - NOVEMBRO DE 2005
101
Esse loteamento, com extensa área de lotes residenciais, tem, como espinha dorsal, a Avenida
Paes de Barros, artéria que vem caracterizar a nova feição da Mooca no século XX,
estabelecendo um novo padrão para a paisagem construída do bairro. Ela possui amplos
passeios de pedestres, arborizados, e suas duas pistas, com três faixas de tráfego cada uma,
são separadas por canteiro central, também arborizado. De traçado feliz, ela se inicia nos
baixios da rua da Mooca e ganha altura, galgando em direção ao topo do morro da Mooca, em
movimento sinuoso e ondulante, que lhe confere elegância característica. A avenida, desde
seu lançamento, foi eleita como localização predileta da elite econômica do bairro para a
implantação de elegantes moradias. Ela se constitui ainda hoje em marco distintivo do bairro,
apresentando uma interessante variedade de expressões arquitetônicas, pois preserva
remanescentes desde a época de sua implantação, assim como exemplares de diversas
tendências da arquitetura paulistana, de diferentes períodos do século XX.
102
sobre ele se observam o espigão da Paulista e o centro da cidade, áreas densamente ocupadas
por altos edifícios, dentre os quais se vislumbram alguns edifícios notórios de São Paulo,
como a Catedral da Sé, com suas torres e cúpula esverdeadas, e o edifício do Banespa, tendo
ao topo o mastro que sustenta a esvoaçante bandeira do Estado de São Paulo; mais além, se
distingue no horizonte a Serra da Cantareira, onde alteia o Pico do Jaraguá, emoldurando, com
uma tonalidade lilás, a extensa e branca cidade.
RESIDÊNCIA GEMINADA PADRÃO DA RUA ADELAIDE DE FREITAS
NOVEMBRO DE 2006
A carta de 1930, levantamento da empresa Sara Brasil, de alta qualidade técnica e gráfica,
mostra o bairro da Mooca com sua estrutura definitiva, apresentando apenas algumas áreas
resquiciais não loteadas, entre elas a gleba que deu origem à Área de Estudo desta pesquisa,
localizada nas proximidades do Largo São Rafael.
A carta de 1954, levantamento efetuado pela VASP-CRUZEIRO, mostra a área da Mooca
praticamente totalmente parcelada, com sua rede viária muito parecida com a situação atual,
exceção feita às grandes intervenções viárias da década de 1970 e década de 1980, quando
103
foram implantadas a Avenida Radial Leste, atual Avenida Alcântara Machado, a linha leste do
Metrô, o complexo de viadutos do Parque Dom Pedro, o viaduto da Rua da Mooca, entre
outros, que aparecem na carta de 1972, elaborada pelo GEGRAN- Grupo Executivo da
Grande São Paulo.
RUA BRESSER, OLHANDO EM DIREÇÃO RUA GUARATINGUETÁ COM A CHAMINÉ
À AV. PAES DE BARROS
– 11/2005
DA ANTÁRTICA AO FUNDO
- 10/2005
CIA UNIÃO DE REFINADORES - 10/2005 RUA BORGES DE FIGUEIREDO - 10/2005
104
PLANTA PARCIAL DO BAIRRO DA MOOCA,
DESTACANDO A ÁREA DE ESTUDO TOTALMENTE LOTEADA.
LEVANTAMENTO VASP-CRUZEIRO -1954
Fonte
: Portal Interno da PMSP Geo SP – http://dcplab71geosp/principal.asp1
A área de estudo
A planta de aprovação do loteamento do Parque da Mooca, datada de 1921, nos mostra a
gleba que deu origem á Área de Estudo, ainda sem qualquer intervenção. A carta de 1930, já a
apresenta parcialmente arruada e loteada. A carta de 1954 a apresenta como conhecemos hoje.
Segundo relatos dos atuais moradores, o arruamento incipiente constituído pelas ruas Virgílio
de Freitas e Adelaide de Freitas, e o conjunto de residências apresentados na carta de 1930, é
105
obra de um único construtor, que as produziu para colocação no mercado imobiliário, e por
isso, elas eram, originalmente, todas iguais. O mesmo empreendedor é responsável por outras
partes do arruamento, ou seja, pelas ruas Araribóia e São Rafael, assim como pela construção
das residências padronizadas que se vêem nesta última rua, e que mantém o mesmo padrão da
Rua Virgílio de Freitas. Todo o conjunto era destinado ao mercado de operários assalariados,
e por essa razão o padrão original das residências era modesto. Hoje, a maioria delas foi
reformada, buscando um padrão de acabamento melhor, e uma ampliação da área construída.
Todas elas, sem exceção, alteraram seus muros frontais, para criar acessos aos abrigos de
automóveis.
RUA VIRGÍLIO DE FREITAS RESIIDÊNCIAS-TIPO À RUA VIRGILIO DE FREITAS
TENDO AO FUNDO A IGREJA SÃO RAFAEL
RUA HENRIQUE DANTAS RUA ARARIBÓIA
IMAGENS DE OUTUBRO DE 2005
As residências da Rua Pedro Lucena, todas diferentes entre si, apresentam lotes maiores e
padrão construtivo bem mais alto do que as ruas vizinhas. Informações obtidas junto a
moradores do bairro indicam que ela permaneceu como chácara até tardiamente e foi uma dos
106
últimos trechos a serem loteados. Por isso nela apresenta um padrão construtivo
diferenciado, pois a população da Mooca já se diversificava nessa época.
RESIDÊNCIAS À RUA PEDRO DE LUCENA – OUTUBRO DE 2005
A Rua dos Bancários constituía uma terceira gleba independente. Esse terreno teve desdobro
posterior ao das Ruas Virgilio de Freitas e Adelaide de Freitas, porém na mesma década de
1930, promovido pelo extinto Banco COMIND, Banco Comércio e Indústria. O banco
mandou construir o conjunto de residências aí existentes, originalmente iguais, para oferecer a
funcionários de média graduação dessa instituição financeira. As casas são maiores e têm
padrão construtivo mais elevado que as do loteamento vizinho.
A particular condição dos limites das glebas envolvidas nesse loteamento, que ficaram
flanqueadas pelo loteamento do Parque da Mooca, e assim, pelos fundos dos lotes que se
abrem para avenida Paes de Barros, e para as outras ruas que as delimitavam, Ruas Curupacé,
Leocádia Cintra, e Orville Derby Canuto Saraiva, constituiu uma feliz oportunidade, pois
condicionou um traçado viário muito específico, encontrado nesse trecho da Mooca.
107
DETALHE DA PLANTA DE APROVAÇÃO DO PARQUE DA MOOCA, 1921,
DESTACANDO A GLEBA QUE ORIGINOU A ÁREA DE STUDO,
ANTES DO PARCELAMENTO
.
FONTE
:
PMSP-SEHAB/APROV-CADASTRO
.
De fato, o que se nota aí é um conjunto de ruas com o formato de alça, ou de um U, e uma rua
com a configuração em cul-de sac (ou balão de retorno), todas iniciando e terminando em
uma mesma e única via, a Rua Araribóia.
Essa configuração viária, certamente fortuita, teve como conseqüência estabelecer uma
interessante hierarquia do fluxo viário, de forma que essas vias não recebem trânsito de
passagem, como ocorre com as vias limítrofes, todas com tráfego intenso e diversificado de
veículos de passeio, carga e coletivos.
Essa particularidade propiciou ao loteamento uma condição ambiental de tranqüilidade,
bastante distinta de outras áreas, cujo loteamento é baseado em sistema de tramas, ortogonais
ou não.
108
A ÁREA DE ESTUDO E SEU ARRUAMENTO CARACTERÍSTICO
CARTA-BASE
: GEGRAN 1:2000 – 1972, atualizada in loco.
O sistema de arruamento em trama apresenta ruas com equipotência de circulação em todos
os sentidos, portanto não hierarquizadas. Dessa forma todas acabam abrigando trânsito de
passagem, à medida que o tráfego no bairro cresce em intensidade. Como conseqüência,
degrada-se o ambiente urbano, pois o ruído e a poluição, além de tornarem a via inadequada
para a circulação do pedestre, impedindo a fruição do espaço público, atinge também o
interior das residências. A rua se esvazia, pois o risco representado pelos automóveis afasta as
crianças das ruas e das calçadas, impedidas de utilizar o espaço público como local de
brincadeiras e de convivência. Com o tempo, instala-se o comércio e serviços diversificados,
atraídos pelo mercado comprador, que circula nos veículos particulares e no transporte
público. O comércio e os serviços atraem clientela residente em outras ruas e bairros e a rua,
109
antes mantida sob a vigilância e controle social de seus moradores, torna-se espaço de todos, e
assim espaço de ninguém, muitas vezes insegura e por vezes violenta.
O loteamento em questão teve o privilégio de ser preservado dessa degradação, para alegria e
fruição de seus moradores, além dos visitantes que se encantam, por encontrar dentro de São
Paulo, uma condição de moradia privilegiada, que se perdeu há cadas na maioria dos
bairros da cidade.
Evidenciam-se nessa área, como elementos distintivos do ambiente construído, a Igreja São
Rafael, a EMEI Escola Municipal de Educação Infantil, a fábrica de tecidos na esquina das
ruas Orvile Derby com o Largo São Rafael, e a subestação da Eletropaulo, antigamente São
Paulo Light and Power. De se vislumbram as chaminés da Companhia de Refinadores
Açúcar União e o vulto maciço da Companhia Antártica de Bebidas.
RUA DOS BANCÁRIOS – NOVEMBRO DE 2005
110
Conclusão
O processo de ocupação urbana da Mooca, bairro da região central na capital paulista,
acompanhou o ritmo de crescimento e desenvolvimento da cidade de São Paulo: durante os
séculos XVI, XVII, XVIII e a maior parte do século XIX o processo de ocupação urbana foi
muito lento. O grande impulso de desenvolvimento de São Paulo iniciou-se nas três décadas
finais do século XIX e só foi reduzir seu ritmo um século depois.
O desenvolvimento da Mooca inicia-se no final do século XIX, mas é mais intenso na
secunda década do Século XX.
Três grandes eixos viários presidiram a estruturação da ocupação urbana do bairro e eles se
encontravam claramente delineados na virada de século XIX para o século XX.
A Rua da Mooca, eixo mais antigo e tradicional dos três, constituído no século XVI, nos
primórdios da fundação de São Paulo, é um vetor com origem no centro da cidade,
direcionado para o leste e sudeste, e que demandava a antiga trilha dos Guaianases, que
levava para o alto da Serra do Mar e de lá para o litoral.
A Rua da Mooca possui importante derivação, a Rua do Oratório, antiga Estrada do Oratório,
que se impôs aos desenhistas dos loteamentos da Mooca como diretriz secundária de projeto.
A Rua Piratininga, antiga Travessa da Mooca, muito cedo interligou a Freguesia do Brás à
Estrada da Mooca, certamente pela importância desta, como rota para o litoral.
A Estrada de Ferro Santos a Jundiaí, implantada no último quartel do século XIX, e portanto
antes do grande impulso de desenvolvimento do bairro da Mooca, tornou-se também um dos
eixos diretores dos traçado viários do bairro.
A carta Evolução da Ocupação Urbana da Mooca, a seguir, apresenta uma síntese do
processo de ocupação do bairro.
111
112
Esses três eixos serviram de referência para os loteamentos que parcelaram e urbanizaram as
antigas chácaras da Mooca. Podem-se reconhecer, na atual rede viária do bairro, relações de
paralelismo ou ortogonalidades com relação a eles, e relações de compromisso com a variante
constituída pela Rua do Oratório.
Mesmo a Avenida Paes de Barros, e sua continuação pela Rua Bresser, que parecem
fundadoras em seu traçado, dada a importância estrutural que hoje assumem nos bairros da
Mooca e Brás, tiveram seus traçados condicionados por esse tripé inicial, configurado nos
momentos nascedouros do bairro.
TEATRO ARTUR DE AZEVEDO, À AVENIDA PAES DE BARROS
NOVEMBRO DE 2005.
113
4.3 Caracterização urbanística da área de estudo
VISÃO SERIAL DE GORDON CULLEM APLICADA AO PERCURSO DO
LARGO SÃO RAFAEL ATÉ O BALÃO DE RETORNO DA RUA DOS BANCÁRIOS.
NOVEMBRO DE 2005
O parcelamento do solo
A área de estudo teve origem na cada de 1930, com o parcelamento tardio das três glebas
que a constituíam. Elas permaneceram sem divisão por vinte e cinco anos após a implantação
do Parque da Mooca. Este loteamento, aprovado em 1921, foi implantado logo em seguida,
114
tendo urbanizado a maior parte do bairro da Mooca. Ele envolveu a área de estudo, como se
pode ver em sua planta de aprovação.
AMPLIAÇÃO DO DETALHE DA PLANTA DE APROVAÇÃO DO PARQUE DA MOOCA, 1921,
DESTACANDO A ÁREA DE ESTUDO, ANTES DO PARCELAMENTO.
FONTE
: PMSP-SEHAB/APROV-CADASTRO.
O traçado viário que é o primeiro nível de parcelamento do solo utilizado para a
configuração das quadras internas à área de estudo, tem vias com larguras variáveis, onde
predomina o padrão de 14,00 m. Desse total 10,00 m são destinados à pista de veículos e os
115
restantes 4,00m são divididos igualmente entre dois passeios laterais. A Rua dos Bancários e a
Tijuguaçu têm padrão mais restrito, com largura total de 8,00 m, sendo 6,00 m destinados à
pista de veículos, o que resulta em passeios de pedestres estreitos, com 1,00 m de largura
apenas.
AMPLIAÇÃO DA PLANTA PARCIAL DO BAIRRO DA MOOCA DESTACANDO
A ÁREA DE ESTUDO - LEVANTAMENTO SARA BRASIL - 1930
FONTE:
Portal Interno da Prefeitura do Município de São Paulo – Geo SP
http://dcplab71geosp/principal.asp.
116
Os lotes praticados são também de dimensões diversificadas. Predomina o padrão que varia
de 140m² a 150m², o que para a época era reduzido, indicando sua destinação para mercado
imobiliário constituído por consumidores de baixa renda. Os lotes da Rua Pedro de Lucena
são maiores, confirmando a busca mais recente de terrenos na área de estudo, por
consumidores de padrão econômico mais alto. Esses lotes têm áreas com superfície variando
entre 200 e 250 . Eles apresentam um importante diferencial, que são as frentes mais
largas. Isso propicia um padrão construtivo mais sofisticado, com afastamentos laterais de
ambos os lados do lote.
AMPLIAÇÃO DA PLANTA PARCIAL DA MOOCA, DESTACANDO
A ÁREA DE ESTUDO. LEVANTAMENTO VASP-CRUZEIRO – 1954
FONTE:
Portal Interno da Prefeitura do Município de São Paulo – Geo SP
http://dcplab71geosp/principal.asp.
117
RUA VIRGÍLIO DE FREITAS RUA TIJUGUAÇU
TENDO AO FUNDO A IGREJA SÃO RAFAEL OTUBRO DE 2005
OTUBRO DE 2005
A Rua dos Bancários, no trecho do balão de retorno, apresenta lotes com frentes bastante
reduzidas, de apenas 3,50 m. Apesar disso, eles têm áreas bem satisfatórias, da ordem de
120,00 m² a 150,00 m². Os lotes têm configuração trapezoidal, devido ao desenho circular do
balão e à forma retangular da gleba original.
RUA HENRIQUE DANTAS RUA ARARIBÓIA E A PADARIA SELMA
OUTUBRO DE 2005 OUTUBRO DE 2005
118
A ruas que delimitam a área de estudo têm larguras de 14,00 m, e apresentam uma grande
variedade de lotes, de porte maior que aqueles encontrados nas quadras internas. Os lotes têm
áreas que variam de 250,00m² a 300,00m². A Avenida Paes de Barros apresenta padrões bem
diferenciados: ela tem 30,00 m de largura total com calçadas laterais e canteiro central
arborizado. Os lotes são bem diversificados, com áreas superiores a 300,00m². Eles têm
frentes bastante amplas, com largura mínima de 12,00m, destinando-se claramente a um
extrato de consumidores de alta renda.
A VISÃO SERIAL DE GORDON CULLEM APLICADA AO PERCURSO
DO BALÃO DE RETORNO DA RUA DOS BANCÁRIOS AO LARGO SÃO RAFAEL.
NOVEMBRO DE 2005
119
A rede viária
A particular condição dos limites das duas glebas envolvidas nesse loteamento, que ficaram
flanqueadas pelo loteamento do Parque da Mooca, e assim, pelos fundos dos lotes que se
abrem para Avenida Paes de Barros, e para as outras ruas que as delimitavam, Ruas Curupacê,
Leocádia Cintra, e Orvile Derby/Canuto Saraiva, constituiu uma feliz oportunidade, pois
condicionou um traçado viário muito específico, de feliz resultado, encontrado nesse trecho
da Mooca.
De fato, o que se nota aí é um conjunto de ruas com o formato de alça, ou de um U, e uma rua
com a configuração em cul-de sac (ou com balão de retorno), todas iniciando e terminando
em uma mesma e única via, a Rua Araribóia.
Essa configuração viária, certamente fortuita, teve como conseqüência estabelecer uma
interessante hierarquia do fluxo viário, de forma que essas vias não recebem trânsito de
passagem, como ocorre com as vias limítrofes, todas com tráfego intenso e diversificado, de
veículos de passeio, carga e coletivos.
Essa particularidade propiciou ao loteamento uma condição ambiental de tranqüilidade,
bastante distinta de outras áreas, cujo loteamento é geralmente baseado em sistema de tramas,
ortogonais ou não.
O sistema de arruamento em trama apresenta ruas com equipotência de circulação em todos
os sentidos, portanto não hierarquizadas. Dessa forma todas acabam abrigando trânsito de
passagem, à medida que o tráfego no bairro cresce em intensidade. Como conseqüência,
degrada-se o ambiente urbano, pois o ruído e a poluição, além de tornarem a via inadequada
para a circulação do pedestre, impedindo a fruição do espaço público, atinge também o
interior das residências. A rua se esvazia, pois o risco representado pelos automóveis afasta as
crianças das ruas e das calçadas, impedidas de utilizar o espaço público como local de
brincadeiras e de convivência. Com o tempo, instala-se o comércio e serviços diversificados,
atraídos pelo mercado comprador, que circula nos veículos particulares e no transporte
público. O comércio e os serviços atraem clientela residente em outras ruas e bairros e a rua,
antes mantida sob a vigilância e controle social de seus moradores, torna-se espaço de todos, e
assim espaço de ninguém, muitas vezes insegura e por vezes violenta.
120
121
O loteamento em questão teve o privilégio de ser preservado dessa degradação, para alegria e
fruição de seus moradores, além dos visitantes que se encantam, por encontrar dentro de São
Paulo, uma condição de moradia privilegiada, que se perdeu há décadas na maioria dos
bairros da cidade.
Note-se na Carta 04, a seguir, que a particular configuração do traçado da rede viária
condiciona uma segregação dos fluxos locais e fluxos de passagem de veículos,
estabelecendo, em decorrência, a hierarquia viária que a carta registra.
Deve-se destacar que a hierarquia não decorre de uma norma imposta às vias, mas sim da
configuração física da rede. Esse fato é de suma importância, pois garante a preservação da
segregação dos fluxos - e portanto, da hierarquia viária - o que condiciona a qualidade do
ambiente da unidade de habitação.
A permanência dessa hierarquia não seria assegurada com a mesma força, se ela decorresse
122
O uso e o aproveitamento do solo
O uso e o aproveitamento do solo na área de estudo, registrados nas cartas a seguir,
apresentam-se de maneira coerente com a hierarquia viária descrita.
As vias que delimitam a unidade de habitação abrigam fluxo viário de passagem, mais intenso
e diversificado, composto por veículos de passeio, de carga e de transporte coletivo, além de
motocicletas.
O fluxo mais intenso de veículos condiciona o surgimento de comércio e serviços, pois
implica maior número de pessoas circulando pela via. Em decorrência disso os lotes lindeiros
à via adquirem maior visibilidade, o que amplia o mercado consumidor potencial,
constituindo aquilo que o mercado designa como ponto comercial. Quanto mais intenso e de
mais longo curso for o fluxo, mais diversificado e amplo é o mercado consumidor que por
circula, diversificando e intensificando o comércio e serviço que se localizam. O
aproveitamento do solo mais intenso decorre da ampliação das oportunidades econômicas,
gerando edifícios verticalizados, não para o comércio e serviços, mas também para o uso
residencial. O morador abre mão da qualidade ambiental, em favor da proximidade do centro
de compras e da oferta de serviços, e, sobretudo pela proximidade do transporte coletivo
abundante.
Muitas vezes, o morador vende seu imóvel, abandonando assim a área onde vive, e onde tem
laços de amizades, pois é pressionado pelo mercado imobiliário, que altera a qualidade de seu
ambiente de moradia, com sucessivas mudanças de uso e aproveitamento do solo, que alteram
as condições de ventilação, insolação e iluminação naturais, e interferem na dinâmica da rua,
aumentando o tráfego, impondo ruído, poeira e poluição do ar.
123
124
125
AVENIDA PAES DE BARROS – NOVEMBRO DE 2005.
A Avenida Paes de Barros, interligada à rua Bresser, participa da rede viária principal da
cidade, pois interliga diferentes bairros entre si (Brás, Mooca, Vila Prudente), interligando
também artérias urbanas estruturais, como a Avenida Rangel Pestana, a Avenida Alcântara
Machado e a Avenida Anhaia Mello. Abriga fluxo intenso, predominantemente de passagem,
diversificado e de longo curso e por isso registra em nos lotes lindeiros comércio e serviços de
âmbito extralocal, e edifícios comerciais e residenciais verticalizados.
AVENIDA PAES DE BARROS – NOVEMBRO DE 2005
126
As ruas Leocádia Cintra, Curupacê, Orville Derby e Canuto Saraiva, são vias coletoras, com
trânsito menos intenso, mas também diversificado e predominantemente de passagem, de
longo e de médio curso, pois são vias de importância no âmbito do bairro. Elas condicionam
também a implantação de estabelecimentos de comércio e serviços, assim como de edifícios
residenciais verticalizados, mas de maneira menos intensa e menos diversificada que a
Avenida Paes de Barros.
RUA CURUPACÉ – NOVEMBRO DE 2005 RUA CANUTO SARAIVA – OUTUBRO DE
2005
RUA PEDRO DE LUCENA – OUTUBRO DE 2005 RUA VIRGÍLIO DE FREITAS – OUTUBRO DE 2005
As vias internas à área de estudo, de caráter local, apresentam uso predominantemente
residencial, com baixo coeficiente de aproveitamento, e apenas algum esporádico uso de
comércio e serviço de âmbito local.
127
RUA ARARIBÓIA – OUTUBRO . 2005 RUA HENRIQUE DANTAS – OUTUBRO. 2005
PRAÇA OSCAR RODRIGUES ALVES CONJUNTO COMERCIAL
NOVEMBRO DE 2005 SAN
RAPHAEL
À RUA CANUTO SARAIVA
NOVEMBRO DE 2005
128
Infra-estrutura e equipamentos sociais
A área de estudo apresenta infra-estrutura urbana completa e é bem atendida por serviços
urbanos, encontrando-se portanto em condição urbana privilegiada.
Possui um único equipamento social público, uma EMEI Escola Municipal de Educação
Infantil Almirante Tamandaré, localizada ao lado da Igreja São Rafael. Essa instituição ocupa
uma quadra inteira, densamente arborizada, e que era, cinqüenta anos atrás, uma praça de
uso blico. Hoje ela se encontra cercada, para proteção da escola e das crianças, mas apesar
disso, sua vegetação, de grande exuberância, marca presença na paisagem urbana, sendo a
única concentração de vegetação de porte na área de estudo. A Carta 8 registra esse fato e
indica que o ambiente urbano se beneficiaria muito com uma arborização mais intensa.
ESCOLA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO INFANTIL ALMIRANTE TAMANDARÉ
EM MEIO A DENSA VEGETAÇÃO
A área de estudo encontra-se mal servida quanto à oferta de áreas verdes, pois além dessa
antiga praça, hoje cercada, dispõe apenas de uma pequena área livre arborizada, a Praça Oscar
Rodrigues Alves, localizada na confluência das ruas Canuto Saraiva, Curupacê e Araribóia.
129
130
Apesar dessa carência específica, a área de estudo se beneficia da rede de equipamentos
sociais públicos e privados existentes no bairro da Mooca, como é apresentado na Carta 1, que
garante um bom nível de atendimento dos habitantes do bairro, em educação, saúde, lazer e
cultura.
Além da EMEI, evidenciam-se, como edifícios distintivos da área de estudo, a Igreja São
Rafael, a fábrica de tecidos na esquina da rua Orvile Derby com o Largo São Rafael, e a
subestação da Eletropaulo, antigamente São Paulo Light and Power. De se vislumbram as
chaminés da Companhia de Refinadores Açúcar União e o vulto maciço da Companhia
Antártica de Bebidas.
A Igreja São Rafael
Merece destaque a Igreja de São Rafael, por suas características arquitetônicas um belo art-
deco dos anos 1930 pela sua implantação e particularmente pelo significado simbólico que
tem para a comunidade de moradores da Área de Estudo.
A dedicação dessa igreja à devoção do Arcanjo Rafael é por deferência, certamente a Rafael
de Barros, um dos grandes proprietários de terra na Mooca, nos primórdios da constituição do
bairro, ainda no século XIX. Figura de destaque na sociedade paulistana da época foi o
fundador do Hipódromo da Mooca, em 1876, que obteve grande aceitação por parte da elite
de São Paulo, tendo recebido permanente incentivo da Condessa de Santos, que apesar de
idosa, era entusiasta freqüentadora desse prado.
A Paróquia de São Rafael foi fundada em 1935 pelo Arcebispo de o Paulo, D. Duarte
Leopoldo e Silva, a conselho do Cardeal do Rio de Janeiro, D. Sebastião Leme, com o intuito
de levar apoio pastoral à comunidade operária da Mooca, constituída grandemente de
migrantes de diversas origens, notadamente italianos e, portanto, tradicionalmente de
católica. (VILELA e MANTOVANI, 1985: 7-9).
131
IGREJA SÃO RAFAEL – NOVEMBRO DE 2005
A direção da paróquia foi atribuída aos padres Barnabitas, de origem italiana, que estavam
trinta e dois anos no Brasil e tinham como antigo desejo a fundação de uma casa em São
Paulo, principalmente pelo fato de, concentrando atividades industriais, acolher grande
população estrangeira, sobretudo os imigrantes italianos.” (VILELA e MANTOVANI,
1985: 9).
Os Barnabitas souberam angariar apoio para a iniciativa episcopal e logo ganharam adesão da
comunidade, que se empenhou na obtenção de recursos par a construção da Igreja Matriz de
São Rafael, cujas obras se iniciaram em 1937. As obras levaram dez anos para serem
terminadas, enfrentando períodos de grande dificuldade econômica da comunidade de
paroquianos, sobretudo nos anos da Segunda Guerra Mundial e nos que logo se seguiram a
ela.
132
A construção da igreja, assim como as obras sociais da paróquia, que tem sede própria,
receberam apoio de membros ilustres da comunidade da Mooca, dentre os quais se destacam a
Condessa Maria Crespi, falecida em 1965, e o Professor Alberto Mesquita de Camargo,
posteriormente reitor da Universidade São Judas Tadeu, e na época presidente da Sociedade
Amigos da Mooca (SAM), que ocupava uma das salas do Centro Social São Rafael, na Rua
Orvile Derby.
RUA GUARATINGUETÁ - OUTUBRO DE 2005.
AO FUNDO A IGREJA SÃO RAFAEL
133
O
sítio natural
A área de estudo tem superfície de aproximadamente 6 ha, e situa-se na vertente direita do
vale do rio Tamanduateí, como se vê na carta 11.
Seu relevo, pouco movimentado, é um plano inclinado, com altitudes que variam da cota 735
a 765, onde a declividade média é inferior a 10%, propiciando boas condições para a
ocupação urbana.
SEQÜÊNCIA DE IMAGENS QUE MOSTRA, DA ESQUERDA PARA A DIREITA E DE ALTO A BAIXO,
UM GIRO NA PAISAGEM, INDO DE SUDOESTE A NORDESTE, MOSTRANDO O ESPIGÃO DA
PAULISTA, O CENTRO DA CIDADE, O VALE DO TIETÊ, A ZONA NORTE E A SERRA DA
CANTAREIRA; EM PRIMEIRO PLANO VÊ-SE PARTE DO BAIRRO DA MOOCA.
REGISTRADO FEITO DO ALTO DO EDIFÍCIO DA UNIVERSIDADE SÃO JUDAS, EM 20.11.2002.
134
A configuração do relevo e o posicionamento a meia encosta, distante do fundo do vale,
garantem adequada drenagem das águas pluviais, preservando á área de estudo dos riscos de
inundação que afetam o vale do Tamanduateí, no período de alta pluviosidade.
A particular posição no sítio natural da cidade lhe confere privilegiadas perspectivas de longa
distância, o que permite apreciar toda a vertente esquerda do vale, que lhe é fronteiriça, e que
é ocupada pelo centro da cidade, densamente verticalizado. As visuais de longa distância
estendem-se em direção ao sudoeste, tendo como panorama o espigão da Avenida Paulista,
também intensamente ocupado por altos edifícios, distinguidos por suas torres metálicas de
telecomunicações; em direção ao quadrante norte, o olhar se estende por toda a área da cidade
ao longo e ao norte do rio Tietê, que constitui extensa área urbanizada, predominantemente
branca, emoldurada, no horizonte, pelo perfil azulado do Pico do Jaraguá e da Serra da
Cantareira.
A SERRA DA CANTAREIRA AO FUNDO, O ESPIGÃO DA AV. PAULISTA VISTO DA ESQUINA
VISTA DA AVENIDA PAES DE BARROS DA AV. PAES DE BARROS COM A RUA CURUPACÉ
135
136
A
população
A população residente na área de estudo acompanha o perfil sócio-econômico dos habitantes
do bairro da Mooca, apresentando condição privilegiada com relação à maioria da população
paulistana.
A renda média familiar registrada no bairro, em 2005, é de R$ 2.138,90, superior quase uma
vez e meia à renda média da Cidade de São Paulo.
A população apresenta baixo índice de analfabetismo, e um recorde interessante, pois é o
bairro paulistano com mais alto índice de idosos pessoas com idade acima de 60 anos o
que atesta a boa condição de saúde e de qualidade de vida de seus moradores, garantindo-lhes
longevidade (Plano Diretor Estratégico do Município de São Paulo - Subprefeitura da Mooca:
15-17).
As leis de zoneamento incidentes sobre a área de estudo
Uma análise das leis de zoneamento de 1972 e de 2004, apresentadas na carta Zoneamento
Vigente até 2004 Lei Municipal 7805/1972 e na carta Zoneamento Vigente Lei Municipal
13.885/2204, permite um cotejamento com a ocupação urbana existente na área de estudo.
A Lei Municipal de mero 7805 de 1972, primeira lei de parcelamento, uso e ocupação do
solo do Município de São Paulo, confirmou, em geral, as condições existentes no momento de
sua formulação. Desta maneira ela não foi instrumento de promoção de grandes alterações no
ambiente urbano pré-existente. As quadras internas à área de estudo permaneceram
praticamente inalteradas desde 1930, no que diz respeito aos aspectos regidos por essa lei.
Exceção deve ser feita à ocupação dos recuos frontais das residências, que foram destinados a
garagens cobertas para veículos. As reformas efetivadas nos imóveis, embora tenham alterado
por vezes de forma significativa a aparência da residência, não alteraram as condições objeto
das normas dessa lei.
137
A partir da década de 1990 assistiu-se a um processo de alterações que se manifestou nos
lotes que têm acesso pelas vias limítrofes da área de estudo, isto é, nos lotes lindeiros às vias
coletoras e à via arterial. Além de uma diversificação do uso do solo, que passou a agregar
usos de comércio e serviço de âmbito local e extra-local, ocorreram substituições de velhos
sobrados e residências por edifícios residenciais verticalizados. Esse processo implicou
muitas vezes o remembramento de lotes contíguos, para ampliação da área dos terrenos
destinados aos novos empreendimentos. Os lotes internos à área de estudo permaneceram
entretanto com o mesmos padrões urbanísticos da década de 1930, muitos deles com o
edifício originalmente construído no lote, com alguma modificação decorrente de reforma de
manutenção ou de modernização da fachada.
A Lei Municipal 13.885 de 2004 manteve inalteradas as normas de parcelamento, uso e
ocupação do solo vigentes anteriormente sobre a área de estudo. Dessa maneira esse
instrumento legal, mais uma vez confirmou os padrões urbanísticos efetivados nas quadras
internas à área de estudo, há mais ou menos setenta anos.
PLATAFORMA DA ESTAÇÃO FERROVIÁRIA RUA ADELAIDE DE FREITAS – NOV. 2005
DA MOOCA; À ESQUERDA O EDIFÍCIO DA
COMPANHIA ANTÁRTICA – NOV. 2005
SUBESTAÇÃO DA ELETROPAULO NA RUA CANUTO SARAIVA E NO LGO. SÃO RAFAEL – NOV. 2005
138
139
140
4.4 Depoimentos dos moradores
As narrativas aqui apresentadas não são meras transcrições dos depoimentos registrados em
fita magnética. Isso seria muito limitante. Não porque as narrativas foram pobres, mas porque
os registros magnéticos não dão conta da riqueza da experiência que se oferece ao
pesquisador e ao sujeito, no momento da entrevista. Essa vivência propicia relacionamento
direto com o entrevistado, que interage continuamente com seu ambiente e com outros
sujeitos que ali estão, possibilitando ao pesquisador observar e ao mesmo tempo participar
desse processo de interação global com o ambiente em que o entrevistado vive.
Por isso, os registros escritos das narrativas dos moradores têm caráter de síntese
interpretativa. Eles buscam reconstituir, mediante os recursos da elaboração textual, a
ambiência rica de informação em que ocorreu esse levantamento de dados, lançando mão,
para tanto, do discurso indireto livre, de descrições de eventos e de situações que ocorreram
durante as entrevistas e de comentários do pesquisador.
O BALÃO DE RETORNO DA RUA DOS BANCÁRIO
CHAMADO DE “RODA” PELOS MORADORES - NOVEMBRO DE 2005
141
142
Percepção e lembrança estão intimamente ligadas. Ao avaliar o ambiente onde vive muitos
anos, o morador rememora sua vida, pois foi ali que ele sempre a viveu. Ao contar sua
história, ele conta a história de seu relacionamento com o ambiente e a história das pessoas
com quem se relacionou nesse ambiente. Analisa seus vínculos de afeto com as pessoas e com
o lugar, recuperando passo a passo o processo de atribuição de significados ao ambiente e aos
eventos ali vividos. A narrativa do morador é livre e por isso muito rica; intencionalmente não
se interrompem as digressões, pois nelas surge, muitas vezes, o fato inesperado, que descreve
e avalia o aspecto que passaria despercebido pelo pesquisador, enriquecendo seu
conhecimento do ambiente e explicitando o modo de perceber do morador.
Dona Maria José
DONA MARIA JOSÉ NA SALA DE JANTAR
DE SUA RESIDÊNCIA.
AGOSTO DE 2006
se passaram mais ou menos vinte e cinco anos desde que chegamos a essa casa. Quando eu
e meu marido mudamos, nossos filhos eram grandes. A menina mais velha tinha seus
catorze anos, o menino estava com doze. A gente veio para cá muito felizes, pois a casa tinha
três quartos, era melhor e maior do que o apartamento onde morávamos. Eu estava realizando
um sonho: quis muito me mudar para cá, desde que uma amiga, que faleceu, começou a
insistir para que eu viesse morar aqui perto dela. Eu adorei quando conheci essa rua: ela tem
uma coisa, que faz com que a gente se apaixone por ela; mesmo as crianças percebem isso. E
143
foi um lance de sorte ter conseguido comprar esta casa. Ela estava vendida, quando então
soubemos que o comprador desistiu. Parece que ela estava destinada a nós.
Tínhamos escolhido a casa com cuidado: uma rua calma, sem movimento e a rua terminava
em um balão de retorno, formando uma espécie de praça, onde fica essa casa. No centro dessa
"roda" um morador dos mais antigos, falecido, plantou uma árvore que cresceu muito,
ficando imensa, dando uma sombra gostosa, onde as crianças de todas as casas se reuniam
para brincar. Hoje é meu neto que está aí brincando, com os netos de outras vizinhas e com os
filhos de uma família mais jovem que acabou de se mudar para cá. uns meninos também
que moram mais longe, mas que gostam de brincar aqui. Parece um clube...
Aqui é tranqüilo, a gente pode deixar as crianças brincar na rua, porque aqui da sala eu
acompanho, pelo barulho da brincadeira, o movimento das crianças. Se alguma novidade
acontece, por exemplo, se algum estranho chega, a gente logo percebe, pois o barulho das
crianças muda, e aqui da janela da sala, ou da porta que fica sempre aberta eu posso
controlar o que acontece. As crianças entram e saem sem problema. Mas a rua é tranqüila. Os
ladrões acho têm medo de vir aqui, pois ficariam encurralados se a polícia chegasse.
sempre alguém vigiando o movimento; e se a gente sai, a gente sempre avisa uma vizinha,
para ficar atenta. Nunca a "roda" fica sem ninguém olhando.
Quando estávamos procurando casa para comprar, gostamos dessa. Ela tinha a vantagem de
ser próxima ao trabalho de meu marido, o que permitia que ele viesse almoçar em casa todos
os dias. Ele trabalhava no Brás, no Gasômetro. Lá havia uma casa para morarmos, mas eu não
me acostumei. Sentia falta de minha mãe, sentia falta dos amigos. Eu queria era morar aqui,
na Mooca.
Esta casa era gostosa, ensolarada e de boa aparência, e tinha até quintal. Minha vontade era
morar em casa, por causa de minha mãe, que morava conosco. Eu queria que ela tivesse um
quintal para poder tomar sol, onde ela pudesse ficar à vontade, e que fosse um lugar também
onde houvesse vizinhança, para ela poder fazer amizades e conversar. Além disso o quintal
permitiria plantar os temperos, uma amoreira e quem sabe uma pitangueira também. Além dos
frutos gostosos, elas também atrairiam pássaros, cujo canto alegraria o ambiente. Nas noites
de verão era bonito apreciar o movimento da lua, que brilhava entre as folhas das árvores.
Hoje isso não é possível, pois o vizinho da casa que tem acesso pela outra rua de cima
144
construiu um verdadeiro "prédio" de três andares, quando reformou sua casa. Escondeu a lua,
deixando o quintal com menos sol também. Uma vizinha de frente, quando viu o que ocorreu
com nossa casa, comprou o imóvel que faz divisa de fundo com o dela, para evitar esse
transtorno. A casa estava velha, mal tratada, por isso o preço estava bom. Eles a recuperaram,
mantendo o mesmo padrão, e alugaram, e assim preservaram o sol, para a casa onde moram.
Quando aqui chegamos, na casa faltava mesmo um abrigo para o automóvel, que logo foi
construído, quando o alívio das prestações da casa o permitiu.
A vizinhança era ótima: ali ao lado mora um dentista, logo mais adiante um juiz e, no sobrado
duas casas mais prá , mora uma professora de português, uma moça solteira que tinha se
mudado para cá, pois tinha acabado de assumir uma cátedra em um colégio do Estado, recém
inaugurado na Penha – projeto arrojado de um arquiteto modernista: a escola tinha até piscina,
uma inovação! Uma senhora fina, e muito culta, tem hoje cerca de oitenta anos; veio morar
aqui para ficar mais perto de seu trabalho. Ela dava aula de manhã e à noite; por isso
precisava morar perto do local de trabalho. Ela agora está aposentada, mas deu aula de
português por muito tempo e até chegou a fazer um programa semanal, na TV Cultura, onde
durante um bom tempo deu aulas de português. Em uma outra casa da “roda” mora uma
senhora italiana, que eu chamo de Santa da Mooca, porque ela é benzedeira e cuida de quem
está doente, especialmente das crianças, para tirar quebranto. Eu gosto muito dela e admiro a
disposição dela para ajudar as pessoas. Na frente da casa dela sempre havia alguém para pedir
ajuda. Agora ela está com bastante idade, acho que com mais de oitenta, então não
atende mais. Eu sou muito grata a ela, pois atendeu a mim e a meus filhos.
Eu a meu modo também procuro ajudar as pessoas. Em geral a s pessoas vêm se aconselhar
comigo. Eu sou a irmã mais velha, então fiquei como a cabeça da família. Todos me procuram
para uma palavra, para trocar uma idéia. E atendo também os que não são parentes,
aconselhando quando posso. Aliás, aqui todos se ajudam. Quando meu marido estava doente,
de coma no hospital, tive uma queda aqui em casa, voltando de uma visita a ele. Foram os
vizinhos que me socorreram e levaram para o hospital. No velório de meu marido eu estava de
cadeira de rodas.
Um dia, alguns anos depois que mudamos, meu filho mais velho, que voltando do colégio
sempre parava na vizinha, anunciou que estava namorando a filha dela, e que o namoro era
sério. Logo que ele terminasse a faculdade iriam se casar. Fiquei feliz, pois a família da
145
namorada era de gente muito boa, e eu já tinha um bom relacionamento com a mãe dela, com
quem trocava gentilezas do dia a dia; além disso, nós duas freqüentávamos a Igreja São
Rafael aos domingos.
Meu marido também ficou tranqüilo, pois conhecia o pai da moça, com quem conversava,
quando ambos saiam de manhã para o trabalho. Apenas achava que era um pouco cedo para o
rapaz se comprometer: queria que ele se formasse antes de se comprometer; mas assim são as
coisas do amor. Mas ele era um menino sério, estudioso, e que já estava trabalhando, mesmo
antes de se formar. Já tinha conquistado sua autonomia.
Quando se casaram, meu filho e a esposa foram morar no Tatuapé. Acho que gostam do
movimento, não sei. Eles têm também um escritório de representações comerciais lá no
Tatuapé. Talvez por isso tenham ido morar lá. Mas meu neto não sai daqui. Gosta de brincar
aqui na rua, o que não pode fazer lá, por causa do movimento. O que ele gosta daqui é que
vêm crianças de todos os lados, não os daqui da Rua dos Bancários. Acontece que na
Avenida Paes de Barros e na Rua Leocádia Cintra passa ônibus, e o movimento do trânsito é
grande; e também passa gente desconhecida; então as mães deixam as crianças na rua se
vierem brincar aqui, sabendo que aqui estão seguras, porque a gente olha. Muitas vezes elas
tomam lanche aqui. Só no final da tarde é que cada um vai pra sua casa.
Gosto muito daqui. Aos domingos vou à Missa das onze, na Igreja São Rafael, onde conheço
muita gente e também muita gente me conhece. Minha irmã, que mora comigo, trabalha como
voluntária na secretaria da Paróquia, e ela sim conhece todo mundo que vai à Igreja. Vale à
pena conhecer a Igreja São Rafael, tem um estilo bonito.
Eu não saio tanto como antes, depois que meu marido faleceu; não faz um ano ainda, e
fiquei meio desanimada. Sinto falta do companheiro e também tive uma doença grave, que
embora superada, ainda exige controle permanente. Ando até meio esquecida...
Gosto de morar na Mooca. Quando eu cheguei do nordeste, para um tratamento no Hospital
das Clínicas, eu vim morar na Mooca, com uma prima. Depois comecei a trabalhar e então me
casei e fiquei por aqui. Meus filhos se criaram aqui, estudaram por aqui; quando foram
para a faculdade é que tiveram que estudar mais longe. Mas quando adolescentes iam para a
escola a pé. Aqui há de tudo. Tudo o que preciso comprar eu encontro por aqui.
146
A Mooca tem uma magia... Acho que é o povo que mora aqui, que são descendentes de
italianos, muito alegres e que recebem bem a todos que chegam. Quero continuar aqui; minha
vida é aqui.
Dona Lúcia
DONA LÚCIA NA SALA DE SUA RESIDÊNCIA.
AGOSTO DE 2006.
A melhor coisa de meu bairro é minha rua. Ela tem o nome de Rua dos Bancários, devido ao
Banco COMIND, que não existe mais. Na década de 1930 o Banco construiu um conjunto
de moradias, todas iguais, para seus funcionários. Hoje não resta mais nenhum deles aqui.
Meu pai quando comprou essa casa onde moro, há cinqüenta anos atrás, a comprou de um
segundo proprietário Os donos originais foram aos poucos vendendo seus imóveis, de forma
que ninguém mais que reside aqui é ligado ao Banco.
Vim para quando era mocinha, com meus vinte e poucos anos. Minha avó, com quem
morávamos à Rua Visconde de Parnaíba, limite da Mooca com o Brás, tinha falecido, e nós
precisamos mudar de casa. A casa era enorme: era uma dessas casas antigas com um
terreno grande e no fundo havia um quintal com pomar, horta e galinheiro. Havia um
caramanchão muito grande, com vários tipos de uva. No Natal a festa era debaixo das
parreiras, com os cachos de uvas de várias cores dependurados; era muito lindo. Nem sei se
essa casa ainda existe. A casa aqui era boa, com três quartos e tinha quintal, que apesar de
pequeno, servia bem para plantar os temperos, como é o hábito italiano. Com o tempo meu
147
pai foi pavimentando tudo, pois ninguém tinha mais tempo de cuidar de horta, e com o piso
fica mais fácil de limpar. Hoje, de vez em quando, a gente faz as refeições fora, quando o
tempo está bom.
DONA LÚCIA À SOMBRA DA ÁRVORE DONA LÚCIA E A ANIVERSARIANTE.
NA "RODA".
AGOSTO DE 2006 AGOSTO DE 2006.
Eu me casei tarde, tinha trinta e cinco anos. Conheci meu marido por acaso. Na verdade eu
já o conhecia de vista, da Igreja São Rafael, pois freqüentávamos a mesma Missa aos
domingos. Mas não tínhamos tido a oportunidade de sermos apresentados. Um belo dia uma
dor de dente me levou a seu consultório, aonde fui levada por uma prima que era sua cliente.
Eu e meus pais estávamos para viajar para a Itália e por essa razão a viagem foi adiada.
Quando minha e soube que estávamos namorando, disse que tinha de preparar o enxoval e
essa viagem acabou não ocorrendo nunca. Meus pais faleceram antes do meu casamento. Foi
um período horrível, uma coisa atrás da outra. Por isso, quando eu e meu marido nos casamos,
viemos viver aqui, onde eu já morava.
Meu marido trabalhava durante o dia no DER Departamento de Estradas de Rodagem do
Estado, que ficava ali onde hoje é a Universidade São Judas. À noite ele trabalhava em seu
consultório, que ficava na Rua da Mooca. Morar aqui era muito conveniente, pois assim ele
podia almoçar e jantar em casa.
148
Eu nasci na Mooca e me criei aqui. Assim acompanhei o crescimento da Mooca. Quando eu
tinha sete anos, ia para a escola sozinha, que ficava na cidade. Pegava o bonde na Rua da
Mooca. O motorneiro me conhecia: eu sempre de uniforme com aventalzinho branco, e ele
parava o "camarão" aquele bonde vermelho, fechado – e fazia sinal para eu atravessar a rua.
Quando é que hoje em dia é possível deixar uma criança de sete anos fazer isso tudo
sozinha? Atravessar rua, pegar condução e ir para o centro da cidade sozinha? Naquela época
só havia o bonde, e trafegando nos trilhos. Por isso uma criança podia atravessar a rua
desacompanhada, sem risco de atropelamento. As pessoas também eram mais gentis veja o
exemplo desse motorneiro – e o ritmo da vida também era outro.
No início, a Rua da Mooca não era asfaltada: era poeira ou barro. Havia pouco movimento de
automóvel, pois ninguém tinha carro e também não havia ônibus. Meu tio, que era italiano e
que morou primeiro na Argentina, antes de vir para São Paulo é que inaugurou a primeira
empresa de ônibus que serviu o bairro, a "Alto da Mooca", com as linhas 24, 25, 26, 27 e 28.
A Avenida Paes de Barros também era de terra – uma lama só, na época das chuvas – e ela era
bem curta: começava na Rua dos Trilhos e terminava por aqui, na altura da Rua Leocádia
Cintra, mais ou menos. O resto era apenas um caminho que ia para a Vila Prudente. Alguma
construção começou a surgir nas proximidades do Juventus, quando inauguraram o clube.
Mas o resto era mato: grandes terrenos ou até mesmo chácaras.
Uma mudança que eu lamento, aqui no bairro é o que fizeram com a área da atual EMEI, ali
ao lado da Igreja São Rafael. Antes de eu me mudar para cá ali era uma praça, linda,
arborizada, com bancos e iluminação pública. Naquela época os namorados caminhavam pela
Rua Orville Derby e Canuto Saraiva – havia dia certo par namorar: terças, quintas e sábados –
e a Praça era um local gostoso para se conversar. resolveram construir a escola na praça;
derrubaram muitas árvores para isso e fecharam o lote. Apesar de meus filhos terem estudado
nessa escola, algum tempo depois, foi uma perda para todos. Isso foi uns cinqüenta anos
atrás.
tive chances de mudar da Mooca para outros bairros. Meu marido comprou uma casa no
Morumbi, para investimento. Mas o que é que eu ia fazer lá? Longe dos amigos e dos
parentes, em um bairro que não tem nada perto, obrigando a usar o carro para tudo, e onde os
vizinhos não se conhecem? É quase como morar em um prédio de apartamentos. Não se
149
ninguém. O corredor do prédio é isolado, só há portas. Quando se encontra alguém no
elevador é aquele bom-dia formal; é um constrangimento.
Na rua é diferente: a gente sempre pode olhar pela janela e saber o que está ocorrendo. Não
sou de ficar conversando na rua, mas se vejo um grupo reunido, eu me aproximo para saber
do que se trata. Pode ter certeza que algo aconteceu: alguém está doente, ou precisando de
ajuda. Se for o caso, faço uma visitinha e vejo no que posso ajudar. E assim fazem todos aqui.
Ninguém fica desamparado em caso de necessidade.
O que mais aprecio aqui em minha rua é o silêncio e também a segurança. Nenhum ladrão se
aventura por aqui, pois como é silencioso, logo alguém percebe – na “roda” há sempre alguém
vigiando e chama a polícia. O ladrão encurralado, não teria como fugir, pois a rua não tem
outra saída. Mesmo à noite, se a gente ouve qualquer movimento diferente, a gente verifica e
dá o alarme, se for o caso.
Meus filhos nasceram e foram criados aqui. Hoje são todos adultos, casaram-se e aliás
estão se descasando. Minha filha está pensando em voltar a morar aqui comigo e pretende
comprar uma casa por aqui, se encontrar um imóvel a preço acessível.
Meus filhos brincaram muito aqui na roda. O mais velho sempre gostou de festa e enfeitava a
árvore com lâmpadas para o Natal e para o fim de ano. Os vizinhos participavam, e da casa de
cada um saía um cordão de lâmpadas em direção à árvore, formando assim uma estrela, que
ficava muito bonita. Havia muita festa aqui, em junho e no final de ano. Havia um senhor que
gostava de assar sardinhas na “roda” e quando ele começava, cada um leva uma coisa e virava
festa. Em junho acendia-se até uma fogueira, que era pequena, para não prejudicar a árvore.
Eu ensinei meu segundo filho a subir em árvore, nesta aqui da “roda”. Ele morria de vontade
de subir, mas como era pequeno, tinha medo. Um dia eu resolvi ajudá-lo e daí pra frente ele
passou a se divertir muito com isso.
A Rua dos Bancários ficou muito tempo sem crianças. Os filhos foram crescendo, foram se
casando e mudando daqui. Agora as crianças voltaram. São os netos que vêm brincar aqui.
Meus netos também estão na rua; não saem daqui. também algumas famílias mais
jovens, com filhos, que estão se mudando para cá. As pessoas mais velhas estão indo
150
embora... E os mais novos vêm chegando. Assim o movimento de criança, voltou a ser como
antigamente.
As crianças adoram aqui porque muitas vêm de outras ruas para brincar juntas. Não é como
em um condomínio, onde são sempre as mesmas crianças. Quem mora em rua movimentada,
com trânsito pode brincar dentro de casa, vendo televisão ou jogando vídeo-game, por isso
vêm para . Aqui é muito mais saudável: brincam, divertem-se, fazem amigos. Meus netos
gostam tanto daqui que preferem viver na casa da avó a ficar no Tatuapé, onde moram os pais.
A casa onde minha filha mora no Tatuapé é nossa. Meu marido a comprou como investimento
e quando minha filha se casou foi morar lá. Quando nós a compramos, escolhemos uma casa
em situação igual a essa aqui: ela ficava situada em uma vila, uma rua sem saída. Depois a
Prefeitura fez uma alteração e o que era uma vila, passou a ter saída pelos dois lados. Virou
uma rua de passagem e agora as crianças não podem mais brincar na rua. Por isso é que digo
que não gostaria que minha rua fosse ligada à Avenida Paes de Barros: aconteceria a mesma
coisa: o silêncio e a tranqüilidade se acabariam.
Quando alguma criança da rua faz aniversário, convida todas as outras. O aniversariante
distribui convite, um por um, pois hoje não se faz mais festa em casa, é sempre no bufê,
porque menos trabalho. Esta menina que acabou de telefonar virá trazer o convite para o
aniversário dela e você vai poder vê-la.
Gosto daqui também porque de tudo por perto. todo tipo de comércio e também há
feiras livres. Eu caminho pouco, porque desde cedo adquiri o hábito de dirigir, pois meu pai
tinha problema de vista. Quem dirigia o carro dele era eu. Vou de carro para todo canto e aliás
isso é uma coisa que mudou muito na Mooca: antigamente o caminho de ida para qualquer
lugar e o caminho de volta para casa era o mesmo. Hoje, com o aumento do trânsito, a maioria
das ruas é de mão única, obrigando a planejar os trajetos, que ficaram muito mais longos e
complicados. Ás vezes é necessário dar uma volta imensa por causa disso.
A única coisa de que sinto falta na Mooca são os cinemas. Havia vários e bons. Já não
existem mais. Hoje em dia somos obrigados a sair do bairro para assistir a um filme.
151
Dona Dorothy
DONA DOROTHY NA SALA DE SEU APARTAMENTO.
SETEMBRO DE 2006.
Eu e meu marido viemos para quando nos formamos. Fizemos odontologia em Mogi das
Cruzes e decidimos abrir um consultório juntos. Naquela época estávamos noivos. Queríamos
um lugar que ficasse a meio caminho da casa de meus pais, em Diadema, onde eu morava, e a
casa dos pais dele, no Tatuapé. A Mooca foi a opção mais adequada.
Alugamos um conjunto comercial em cima do antigo Bazar 13, que não existe mais; isso
foi em 1980. Quando nos casamos, fomos morar no Tatuapé, onde o Lessa tinha comprado
um pequeno apartamento. Mas quando fiquei grávida, decidimos comprar algo maior, pois
aquele apartamento era suficiente apenas para um casal. Mais uma vez, a melhor opção foi a
Mooca: compramos este apartamento onde vivemos até hoje, por ser perto do consultório.
Não saímos à procura de um bairro bonito pra morar. Viemos para porque foi conveniente
naquele momento. Mas depois de algum tempo que me mudei para cá, eu me apaixonei pela
Mooca. E de lá para cá nunca mais quisemos sair da Mooca.
A Mooca é um ponto referencial: a Avenida Paes de Barros é um endereço chique, que todos
valorizam, embora nosso apartamento se localize na Mooca de Baixo, que já não é tão chique.
O Alto da Mooca sim é chique, mas tudo é mais caro, a começar pelo valor das taxas de
152
condomínio. Aqui é mais povão. A Rua da Mooca, aqui ao lado, tem um bom comércio, mas
de nível popular.
A gente faz parte da classe média e estamos lutando para permanecer nela. Não está fácil, pois
o consultório perdeu muita clientela. Ninguém tem mais dinheiro para pagar um dentista
particular, e hoje em dia todo mundo tem seu convênio odontológico, que embora seja caro é
mais acessível a todos. Por essa razão eu e o Lessa trabalhamos diariamente meio período
cada um, em um sindicato em Guarulhos. A gente se reveza e no consultório, e assim a
gente vai levando.
Nesses anos todos a gente vem acompanhando o progresso e o desenvolvimento da Avenida
Paes de Barros. Quando mudamos para cá, em 1983, o canteiro central era pequeno, ou nem
existia não me lembro e então reformaram, e foi ficando a beleza que está hoje. Foi na
mesma época em que colocaram o ônibus elétrico. Ficou muito bonito e hoje é possível
passear à sombra das árvores do canteiro central, que as pessoas usam muito para caminhadas
e para correr, para fazer cooper. Nas calçadas laterais da avenida, embora largas, não para
caminhar, pois há muita interferência das pessoas fazendo compra. O pessoal da terceira idade
caminha muito no parque da Regional da Mooca, hoje Sub-Prefeitura. O bom do parque é que
para caminhar em grupo, lado a lado, conversando, pois aqui a gente caminha um atrás do
outro, então não dá para conversar. O parque oferece inúmeras atividades para todas as
idades. quadras para todo tipo de esporte e uma excelente piscina. Minhas filhas
freqüentaram muito o parque, e chegaram a fazer ginástica olímpica, quando crianças.
A Mooca tem muita gente idosa, em tal quantidade que até a convivência fica difícil, pois eles
recebem tratamento preferencial em tudo: qualquer fila que você entre, seja no banco ou no
mercado, e mesmo nos ônibus, sempre um idoso passando à frente... E a gente que está
trabalhando, tem pressa; chega a incomodar. Não posso falar muito, pois estou quase
chegando lá... Completei 50 anos, agora há pouco tempo.
A Avenida tem bastante movimento. O barulho não me atrapalha, pois moro em apartamento
de fundo e aqui é silencioso, mas quem mora voltando para a Avenida reclama muito: o
barulho é demais. O trânsito tem seus horários de pico, de manhã e no final da tarde, e a
responsabilidade por esse aumento de movimento é a Universidade São Judas. No horário de
entrada dos alunos fica impossível transitar por aqui. Toda essa região próxima à Rua
153
Taquari, onde fica a São Judas, fica congestionada. Eu venho de Guarulhos em quinze
minutos, até a Mooca; se caio nesse congestionamento não sei quanto tempo mais vou
demorar para chegar em casa. Por isso sou obrigada a dar uma volta enorme, para fugir disso.
E aí há o problema da Avenida que quase não tem retornos. São raros os cruzamentos da Paes
de Barros e muito poucos os retornos, obrigando o motorista a fazer longos percursos, para
passar de uma pista a outra. Isso incomoda muito. Às vezes é melhor ir a pé, a fazer um
percurso desses de carro, em que a gente acaba dando voltas e mais voltas.
Outro problema dessa avenida são as enchentes. Na época das chuvas, sempre ocorrem
inundações, ali na proximidade do cruzamento da Paes de Barros com a Rua dos Trilhos. É
uma parte baixa, para onde escoam todas as águas, e as galerias não tem dimensão suficiente
para escoar tudo rapidinho. A água chega a subir um metro e os lojistas são equipados com
tapumes de ferro, que vedam as entradas das lojas, impedindo as águas de entrarem. Mas não
é incomum um lojista ser pego de surpresa pelas águas, que chegam de repente, invadindo a
loja. Tudo isso é devido ao "progresso": asfaltam tudo e as águas não têm como ser
absorvidas, e se concentram em um ponto só. Quanto mais urbanizado mais a gente sofre as
conseqüências.
Logo que me mudei para a Mooca, caminhei muito pelo bairro. As meninas estudaram no
Externato São José e depois na Água Rasa. Meu marido, a caminho do trabalho, nos levava
até lá de carro. Eu esperava as meninas entrarem, esperava que o portão fosse fechado e então
voltava para casa a pé. São quatro quilômetros de lá até aqui em casa, que eu fazia em 40
minutos. É fácil caminhar pela Mooca, pois é muito fácil de a gente se localizar aqui. A
Avenida Paes de Barros fica no alto do bairro, e portanto é sempre fácil de achá-la: se alguém
está perdido é subir que chega a ela. Além disso, a Avenida é como uma espinha dorsal do
bairro: as outras ruas ou são travessas dela ou são mais ou menos paralelas a ela. Assim a
gente não se perde aqui. Quando eu caminhava, eu procurava sempre os trajetos mais suaves.
É sempre possível contornar os pontos mais altos, procurando ruas bonitas para se caminhar.
Hoje as meninas são adultas e ganharam autonomia para se locomover sozinhas. As mais
velhas estão formadas e a mais nova estuda no Tatuapé, por isso eu não caminho tanto
como antes. Por outro lado, foi a época em que se podia caminhar bem pelas ruas da
Mooca. Hoje muito trânsito, e a gente fica cheirando fumaça, especialmente dos
caminhões, cujo escapamento parece que é sempre voltado na direção do pedestre. Quando eu
caminhava – agora ando sem tempo – procurava sempre fazer caminhos diferentes a cada vez,
154
por uma questão de segurança, para evitar assaltos. Não que seja perigoso, mas é bom tomar
cuidado: usar roupas simples, não usar jóias, ou seja, não ficar dando bandeira... Insegurança
em todo lugar. Apesar disso a Mooca ainda é o melhor lugar para se morar em São Paulo.
Eu nunca fui assaltada aqui. Minhas filhas passaram por algumas situações difíceis, mas
nunca foram assaltadas de verdade. Também não havia o que levar... Minha filha mais velha,
que trabalha em um navio, pois se formou em hotelaria, foi assaltada em Salvador, em uma
noite de folga, quando desembarcou, para passear. Aí levaram tudo.
Não tenho parentes aqui no bairro. Minha família está espalhada por São Caetano, Butantã,
Tatuapé e Penha. Meus amigos, sim, são aqui do bairro, e todos ligados à Igreja São Rafael.
Aqui no prédio onde moro não conheço ninguém, com exceção de uma senhora vizinha de
andar e de uma outra, do primeiro andar, cujos filhos são da mesma faixa de idade das minhas
meninas. Duas de minhas amigas mais próximas são dona Lina, que mora na Rua Pedro
Lucena e a irmã dela, dona Wanda, que é organista da Igreja e que mora aqui ao lado. Você
deveria entrevistá-las também, pois são antigas moradoras aqui desse trecho da Mooca.
Outras pessoas, que são minhas amigas, também conhecidas aqui na Igreja, tiveram que se
mudar daqui. Para se livrarem do aluguel, compraram terrenos que pudessem pagar, e como
são pessoas de menos posses, tiveram que ir para longe. Mas continuam a freqüentar a Igreja,
o que permite que a gente se veja sempre.
O bairro da Mooca tem gente de todo tipo, do bem pobre ao bem rico, o que eu acho bom.
Havia muita gente morando em cortiço, e em determinada época tivemos um projeto social na
Paróquia São Rafael, destinado a essas pessoas. O projeto não foi adiante, devido aos custos
do empreendimento. Ainda assim conseguimos atender a umas vinte famílias, que passaram a
moram em condições muito melhores do que aquelas em que se encontravam.
Eu participo muito das atividades da Paróquia São Rafael. Participo da organização de todas
as festas como quermesses, festas juninas, aniversário da Igreja e bingos, que são promovidas
para arrecadar fundos para os projetos sociais. Sou também responsável pela parte litúrgica da
Igreja. Na verdade sou responsável pela liturgia aqui da Região da Penha. Então, eu participo
da programação de toda solenidade que envolva as autoridades do clero, inclusive quando
ocorre a participação do bispo. Gosto muito, estou sempre presente, e por isso sou muito
conhecida aqui no bairro. As pessoas me vêem sempre no altar, na Missa das onze, e quando
vou às compras, muitas vezes sou abordada por pessoas que nem conheço e que vêm pedir
155
informações sobre a programação das atividades da Igreja. Uma vez eu até cheguei a
concelebrar uma Missa (risos). O padre estava afônico e eu fiquei ao lado dele, lendo e
dizendo tudo o que era necessário, para que a Missa pudesse ser realizada. Apesar disso tudo,
eu ainda me sinto afastada do processo decisório que envolve as nossas atividades. As
decisões são concentradas nas mãos dos padres. Por exemplo, nós estamos em um período
longo sem Missas na Igreja, nos obrigando a freqüentar Missa em outras igrejas da região. O
pároco está de férias, porque teve de ir a Roma, para as reuniões do Capítulo; soubemos
disso em cima da hora. Além disso, o seminário que ficava junto à casa paroquial, no segundo
andar, sobre a sacristia, que fica na parte dos fundos da Igreja, mudou-se para a Rua do
Oratório e nós mal fomos informados sobre essa decisão. A gente gostaria de ser chamado a
participar mais das principais decisões, já que a gente trabalha tanto na Igreja.
Participo também, como voluntária, das atividades do Arsenal da Esperança, que é um projeto
social que nasceu aqui na Igreja São Rafael, mas que hoje é independente dela. Muitos dos
responsáveis pela administração deste projeto são paroquianos da Igreja São Rafael. Esse
projeto começou há dez anos atrás e hoje atende a mais de 1000 homens em situação de rua, a
cada noite. Ali, ao lado do Museu do Imigrante, no Brás, eles são recebidos a partir das 17
horas, quando lhes é oferecida uma toalha limpinha para tomar o banho e depois vão jantar. É
comida excelente, não é apenas sopa. Depois, até as 21 horas, devem se recolher para dormir,
e saem no dia seguinte aas 7 horas da manhã. É super-organizado. Além desse serviço de
albergagem eles recebem tratamento médico e odontológico. É que eu participo,
trabalhando uma noite por semana, no consultório odontológico. Eles recebem também
instruções de vários tipos: um serviço social, que orienta sobre várias coisas, entre elas a
obtenção de documentação pessoal, cursos de alfabetização e de capacitação profissional.
Tudo de alta qualidade, pois são desenvolvidos em parceria com o SENAI e com a
Universidade São Judas e com a Anhembi-Morumbi. A maior preocupação, entretanto, é
devolver a dignidade a essas pessoas.
O comércio da Mooca é muito bom, encontra-se de tudo por aqui, e uma boa variedade de
mercados, o que permite buscar os melhores preços. O Extra, que se instalou recentemente na
antiga fábrica do Crespi, é o mais caro, e eu o uso para uma compra eventual de última
hora, para completar algo no preparo da refeição. Ele ofereceu entretanto uma novidade para
o bairro, que é a praça de alimentação. Ela se transformou em um ponto de encontro, muito
utilizado pelo pessoal da terceira idade e também pelos jovens. Os mercados que eu uso são
156
os mais tradicionais do bairro, não tão grandes, mas que atendem muito bem às necessidades:
vou muito ao Nishitani, que aceita cheque pré-datado, sem cobrar juros, e também uso o
Yamauchi; uso também o Roldão, que fica na Radial Leste. Escolho aquele que está fazendo
promoções e estou sempre atenta aos preços mais baixos. Para ir ao mercado vou sempre de
carro, pela facilidade de trazer as compras ao voltar para casa. muitas padarias, sendo que
algumas são bem sofisticadas. Quando se quer uma especialidade, há a Monte Líbano e
também a Dicunto, que já são bem mais caras. Não posso reclamar dos preços da Dicunto,
porque eles são os padrinhos da Creche São Rafael, outra obra social da Igreja.
O CANTEIRO CENTRAL DA AVENIDA PAES DE BARROS
AGOSTO DE 2006
Gosto da Mooca e não sairia daqui para morar em outro bairro. Aqui de tudo e bem
pertinho; alguns estabelecimentos que ficam abertos 24 horas por dia, atendendo assim a
imprevistos. Para melhorar faltam uns cinemas, pois os mais próximos estão em bairros
vizinhos, o que exige pegar automóvel para se assistir a um bom filme. Eu gostaria de ir a
ao cinema.
Aqui na Mooca eu estou muito bem acomodada e bem localizada. Eu mudaria daqui se
fosse para sair de São Paulo, onde já não se consegue mais viver bem. Iria para Belém do
Pará, para trabalhar nas obras assistenciais dos Padres Barnabitas, meus amigos, porque a
região lá é ainda mais necessitada de assistência do aqui.
157
Sr. Lessa
SR. LESSA EM SEU CONSULTÓRIO.
SETEMBRO DE 2006.
Vim para a Mooca por acaso. Vivi vinte e seis anos no Tatuapé, onde nasci.
Viemos eu a Dorothy, para montar nosso consultório. Estivemos na Paes de Barros, número
68, por quinze anos. mudamos o consultório para cá, porque compramos essa casa, para
sair da situação de aluguel.
Logo depois que nos casamos, fomos morar no Tatuapé, e a minha idéia era continuar por
até hoje. Mas ficamos dois anos. O apartamento era pequeno, e acabamos vindo para a
Mooca, quando minha filha mais velha estava para nascer.
Não pretendo mais sair da Mooca me dei bem aqui e aqui criei minhas filhas. Encontra-se
de tudo o que se precisa, aqui mesmo na Avenida Paes de Barros: mil supermercados e umas
450 mil pizzarias (risos). todo tipo de serviço de delivery de alimentação e de farmácias e
vários hospitais. Diga alguma coisa que você queira qualquer coisa e eu digo onde
você vai encontrar isso na Mooca, e provavelmente a preço menor do que em outros locais de
São Paulo. Além disso, a Mooca é um bairro de alta acessibilidade e tem transporte cil para
toda a cidade e para outras cidades da região. Tenho ônibus na porta de casa e metrô a dez
minutos de caminhada.
158
As meninas foram criadas aqui e eram muito adaptadas ao bairro. Agora são adultas,
trabalham, e adquiriram independência. A mais velha isso é interessante trabalha em um
navio, pois estudou hotelaria, e viaja muito. Para uma menina de vinte e três anos isso é o
máximo, pois está conhecendo o mundo todo.
Os pontos de destaque da Mooca são vários. O Parque da Mooca é muito arborizado e bem
equipado e se pode caminhar e fazer exercícios físicos. o Clube Atlético Juventus, para
um público um pouco mais selecionado. o teatro Artur de Azevedo que sempre apresenta
boa programação.
Na Mooca tudo é perto e de fácil acesso. A área de estudo que você escolheu é o coração da
Mooca, pois aqui se encontra de tudo e também uma população com grande variedade
sócio-econômica, do mais alto ao mais baixo. Isso é bom pois não se criam guetos nem
segregações.
Mudei para recém-casado e nessa condição tudo é muito bom. Estava começando minha
vida profissional e tinha uma filha recém-nascida. Eu mudei do Tatuapé para com 26 anos;
eu era jovem e adulto e sabia bem o que queria. Tudo era feito com muito entusiasmo. E a
Mooca surgiu em minha vida nesse contexto. Fui muito bem recebido e me adaptei muito
bem. Nunca mais quis sair daqui. A adaptação foi tão boa que quis trazer minha mãe para
morar aqui perto de mim. Cheguei a comprar um apartamento para ela. Mas ela não sai do
Tatuapé de jeito nenhum. ela tem seus conhecidos, suas amigas de longa data: tudo para
ela é lá.
Eu logo de início tive muita sorte, pois conheci os vizinhos do prédio, entre os quais fiz
muitos amigos. A Dorothy também teve muita sorte, pois ela logo conheceu a comunidade da
Igreja São Rafael, pois fomos convidados a participar dos Encontros de Casais com Cristo. A
cada encontro era um novo grupo de conhecidos e acabamos nos envolvendo também com as
obras sociais da Igreja São Rafael.
Hoje estou ligado ao trabalho social do Arsenal da Esperança, que nasceu aqui na Igreja São
Rafael. É um trabalho social de vulto, de cuja diretoria eu faço parte, como membro do
conselho administrativo. Essa atividade demanda minha participação de duas a três vezes por
semana. Atendemos 1150 homens a cada dia. O projeto partiu de uma iniciativa de dom
159
Luciano Mendes, que tinha conhecido o projeto Arsenal da Paz em Turim, na Itália, e queria
trazê-lo para São Paulo. Esse empreendimento contou com todo apoio de Mário Covas,
Governador do Estado naquela época, que nos ofereceu o espaço para sua implantação.
Além desse projeto social, que juntamente com a creche é um dos mais bem sucedidos dentre
todos que surgiram na Paróquia São Rafael, tivemos uns dez anos atrás, um trabalho
destinado às famílias que residiam em cortiços. A idéia era eliminar da Mooca essa condição
insalubre de moradia. Construímos inicialmente um conjunto de vinte casas para as quais
foram transferidas as famílias de um determinado cortiço. O imóvel liberado seria reformado
e transformado em habitações de boa qualidade, para as quais seriam transferidas famílias de
um outro cortiço, e assim sucessivamente, sem implicar deslocamento de um grande número
de famílias do bairro. Essa primeira fase do empreendimento foi possível graças à
aquisição do terreno pelo Professor Mesquita, da Universidade São Judas, que nunca quis a
divulgação do fato, enquanto vivia. Apesar disso, não foi possível levar o empreendimento
adiante, pois o projeto demandava recursos, cujo volume era muito superior à capacidade de
investimento da comunidade da Paróquia, como um todo.
O atendimento prestado pelo Arsenal da Esperança é excelente, contando com uma infra-
estrutura de primeira qualidade. Dentre os atendidos nem todos são mendigos. muitos
envolvidos com álcool e drogas, que acabam se afastando das respectivas famílias, pois não
suportam o conflito. Há ainda o problema do migrante que chega a São Paulo, nas rodoviárias
e não tem para onde ir. O Serviço Social do Estado, com quem temos uma parceria e
subvenciona uma parte dos custos desse projeto, nos envia a pessoa para atendimento. Em
geral, uma das primeiras providências é obter a documentação para o indivíduo. Nossas
assistentes sociais entram em contato com sua cidade de origem, buscando qualquer tipo de
registro, que possibilite a identificação da pessoa. Até o Batistério é usado para essa
finalidade. Depois a pessoa é encaminhada para o Poupa-tempo, com foto 3x4 tirada lá, e tudo
mais o que é necessário, para obter seus documentos. E aí ela é integrada ao trabalho social do
Arsenal, que procura parentes e amigos da pessoa, para que ela venha a se inserir de forma
adequada à vida da cidade de São Paulo. Alguns têm problemas com a justiça; esses casos são
encaminhados aos advogados que prestam serviços como voluntários, para receberem
assistência jurídica.
160
A tônica do trabalho é dar condições para o indivíduo recuperar sua auto-imagem e sua
autoconfiança, para recuperar sua autonomia social e financeira. São oferecidos vários cursos
de capacitação profissional, ministrados em parceria com as melhores instituições de ensino
da região. Procura-se oferecer ensino de caráter bem prático e sempre que possível o
aprendizado se na prestação de serviços necessários à manutenção e ao andamento do
próprio Arsenal. Um exemplo é a padaria que está pronta, e vai ser inaugurada no ano de
2007, e que deverá cobrir a demanda por três mil pãezinhos diários, que serão produzidos por
padeiros experimentados, auxiliados por aprendizes aqui do Arsenal.
Essa atividade de trabalho voluntário é uma paixão, e no final não demanda tanto tempo
assim. Com isso, os meus relacionamentos de amizade ficam cada vez mais centrados na
Paróquia e agora no Arsenal também.
Sou também síndico do edifício onde moro, o que me coloca em contato com muita gente. O
prédio era habitado principalmente por idosos, que foram indo embora, pelas razões naturais
da vida. Agora os apartamentos que foram liberados, estão sendo ocupados por famílias mais
jovens, e por isso voltamos a ver crianças no prédio, novamente.
Tenho pouco tempo para caminhar pela Mooca. O trajeto que faço á pé, normalmente, é do
meu consultório até o Arsenal. É uma caminhada boa, de uns quatro quilômetros, que faço
umas três vezes por semana, aproveitando para me exercitar.
Na Mooca o que mais me chama a atenção é a Avenida Paes de Barros, que acho muito
bonita, com seu canteiro central muito arborizado. Lá no Alto da Mooca, ali por perto do Mac
Donald's, onde ocorre a confluência de várias ruas (Janguruçu, Quarité, Aparaju) no
cruzamento com a Avenida Paes de Barros, lindos condomínios, de alto nível e de
arquitetura sofisticada.
Não muita opção de lazer na Mooca, mas um número enorme de restaurantes, de todo
tipo de cozinha. Predominam as cantinas italianas, mas há restaurante chinês e japonês
também. Falar de pizzaria é covardia na Mooca (risos), pois de tudo. Aqui perto, no Brás,
há várias cantinas muito famosas.
161
O aspecto negativo da Mooca é o barulho. Não vislumbro muito jeito de resolver isso, porque
não para impedir as pessoas de usarem seus carros. Talvez se houvesse um sistema de
transporte coletivo melhor, mais eficiente, o ruído poderia diminuir um pouco. Essa rua onde
estamos, Rua Visconde de Inhumerim, canaliza todo o tráfego que travessa a Avenida Paes de
Barros, nesse trecho, no sentido da Rua do Oratório: carros, ônibus, caminhões, motocicletas;
é um inferno e a sujeira é terrível; há muita fuligem, que exige sucessivas limpezas do
consultório ao longo do dia. A mesma coisa acontece com a Rua Curupacé, que é paralela a
esta e é limite da sua área de estudo. Ela recebe este mesmo trânsito, que no sentido
contrário.
Outro fato que me preocupa na Mooca é que estamos indo para a verticalização dos espaços.
Não acho bom todo mundo morar engaiolado. Não sinto que o adensamento esteja me
afetando muito, mas pode ser que venha a afetar. O que eu sinto é uma diminuição da
insolação, por causa das sombras dos grandes prédios. Esta casa onde estamos, aqui no
consultório, praticamente não toma mais sol. quando está a pino é que o sol atinge a
casa, mas não é como antes. A casa ficou fria e também úmida. Isso reduz o conforto e
desvaloriza ao imóvel. Acho que é um problema não para mim, mas para todos que têm
casa e gostam de morar em casa.
A gente esperava que o adensamento pudesse favorecer quem trabalha aqui, mas isso também
não ocorreu, porque não trouxe um aumento de clientela. Talvez para o comércio sim, mas
não para quem tem consultório no bairro. Hoje em dia todo mundo tem convênio e poucos
podem pagar um dentista particularmente. também um problema econômico geral, que
reduz a capacidade de consumo das pessoas.
condomínios fantásticos sendo construídos. São sofisticados, com grandes áreas de lazer,
academias de ginástica e até espaço gourmet. Mas isso me preocupa, porque tira a condição
de moradia das pessoas que já viviam aqui. Acho que cabe à Prefeitura controlar isso, pois os
edifícios muito altos lançam sombra muito além de seus lotes. Mas a corrupção – todo mundo
sabe é enorme e os fiscais deixam que se faça o que se quer, desde que se pague o que
pedem.
Uma medida que poderia melhorar a Mooca seria a arborização intensa em todas as ruas, para
amenizar o clima. A prefeitura também deveria cuidar disso. Mas a própria população reage a
162
essa medida, porque teme que as raízes estourem as calçadas. Acho essa atitude meio
mesquinha, de gente que não pensa no futuro dos próprios filhos. Eu sempre procuro plantar
algo, e como não tenho quintal, planto no canteiro central da Avenida Paes de Barros. Assim
ele vai ficando com a arborização mais densa. Espalhei recentemente semente de mexerica, ao
longo do trecho que percorro para vir de casa até o consultório. Algumas pessoas plantaram
abacateiros, goiabeiras e até bananeiras, que já estão dando frutos.
Se tivesse que sair da Mooca seria para sair de São Paulo: iria para a praia. São Paulo não
mais par viver bem; é para trabalhar. Mas enquanto estiver em São Paulo não saio da
Mooca. Hoje me sinto mais da Mooca do que do Tatuapé, onde nasci e me criei. Eu gosto da
Mooca, me sinto bem aqui. Sou um cidadão da Mooca.
AVENIDA PAES DE BARROS VENDO-SE À DIREITA O EDIFÍCIO EM TIJOLO
APARENTE, DO ANTIGO COTONIF[ÍCIO CRESPI, HOJE SUPERMERCADO EXTRA..
AGOSTO DE 2006
163
DONA ELVIRA REALE
DONA ELVIRA NA SALA DE JANTAR DE DONA ELVIRA NA ÉPOCA DE
SUA RESIDÊNCIA.
SETEMBRO DE 2006
SUA FORMATURA.
Vim para a Mooca em 1950, para morar mais perto de meu trabalho.
Minha família é gaúcha, de ascendência italiana, e mudamos para São Paulo em 1934. Depois
de um breve período, mudamos para Sorocaba, onde fiz o ginásio, em uma escola católica.
me inspirei em uma freira, minha professora e decidi que também queria ser professora de
português.
Voltei para São Paulo para fazer o cursinho preparatório para o vestibular e fui morar com
minha avó, no Bom Retiro. Entrei na Faculdade de Filosofia da USP, para cursar Letras
Clássicas. Quando me formei, havia pouca oportunidade de trabalho em São Paulo; era uma
época difícil, pois estávamos em plena Segunda Guerra Mundial.
Surgiu uma oportunidade em Sorocaba e para voltei, assumindo uma série de aulas como
professora substituta. Quando se abriram os concursos para o magistério no Estado prestei os
exames e pude então escolher cadeira em São Pedro, onde fiquei pouco tempo. Logo
164
participei do concurso para remoção, eu pude escolher cadeira em São Paulo. Fui então dar
aula no Colégio Estadual Nossa Senhora da Penha.
DONA ELVIRA EM SUA SALA DE ESTAR,
EM COMPANHIA DE DONA MARIA JOSÉ.
SETEMBRO DE 2006
Era longe da casa de minha avó e como dava aula à noite era preocupante. Um tio sugeriu que
procurasse casa na Mooca, pois era perto do centro e não era longe da Penha. Um anúncio de
jornal me chamou a atenção para o nome da Rua dos Bancários. Tive alguma dificuldade para
encontrar a rua, pois é escondidinha, mas quando a encontrei gostei na hora. Era silenciosa e
tranqüila e a casa era boa, com três dormitórios, que acomodavam bem a minha mãe, meu
irmão e eu.
Aluguei a casa e depois de dez anos achei que tinha condição de comprá-la. Tive que insistir
muito e contar com a ajuda de minha amiga dona Maria, que aqui está conosco nessa
entrevista, pois o proprietário, que se mostrava renitente, era seu primo. Finalmente ele cedeu
e em 1960 eu adquiri essa casa. Estou aqui há cinqüenta e seis anos e fico aqui até que Deus o
permita.
Gosto de tudo aqui: da casa, que é simples mas que sempre me serviu muito bem, da rua que é
tranqüila e silenciosa e dos vizinhos que são solidários, socorrendo-se mutuamente, sempre
que necessário.
165
Aqui na “roda”, em especial, a segurança é muito grande. Um ladrão que viesse tentar alguma
coisa aqui ficaria encurralado. Já ocorreu isso uma vez: um vizinho viu um desconhecido
entrando debaixo de um carro, com uma chave de fenda na mão. Ligou para a polícia que
ainda pegou o indivíduo em flagrante e o levou preso. ocorreu também de roubarem as
portas de alumínio dos armários dos cavaletes de água, certamente para vender como sucata.
Mas além desse tipo de roubo de ladrão pé-de-chinelo, nunca ouvi falar de assalto dentro de
casa, nesse período todo em que vivo aqui.
Aqui é tão tranqüilo que sempre digo que à noite é possível ouvir o silêncio, e isso se deve
certamente ao fato de a rua terminar na “roda”, o que impede o tráfego de passagem.
A “RODA” DA RUA DOS BANCÁRIOS
NOVEMBRO DE 2005
Eventualmente me incomoda um pouco o ruído das crianças, na rua, especialmente quando
jogam futebol e a bola vem atingir minhas vidraças. Mas como o vidro é resistente a gente
tolera, pois a gente sempre aposta que daqui sairá um novo craque do futebol. – Quem sabe?
O que de fato acho perigoso são os fogos de artifício. Recentemente, uma menina se queimou
feio, fazendo uma fogueirinha com álcool, no período das festas juninas, aqui debaixo da
166
árvore. A sorte é que o noivo de uma vizinha estava conversando com ela no muro e socorreu
a menina. Mas a molecada é assim mesmo, sempre aprontam uma nova. Outro dia inventaram
de subir no muro e de lá subir para a laje de cobertura do automóvel e foram passando de uma
para outra, dando a volta na “roda”. Um menino caiu e quebrou o braço. A mãe nem estava
em casa; foram os vizinhos que o levaram para o pronto-socorro. Mas, apesar disso, o
movimento das crianças é divertido.
Todo mundo
quer morar
aqui. O aluguel está caro, mas muita procura, porque o lugar é
muito tranqüilo. Ocorre um ou outro probleminha, como esses que acabamos de falar, mas é
raro.
ADOLESCENTES VARRENDO A “RODA”, PREPARANDO-A PARA UMA FESTA
SETEMBRO DE 2006
A Mooca tem melhorado muito no aspecto habitacional: têm surgido grandes edifícios e
condomínios elegantes. Mas acho que tem regredido no comércio. A abertura de shoppings
centers nos bairros vizinhos prejudicou as melhores lojas daqui do bairro, que perderam
espaço para o comércio sofisticado desses espaços.
Outra coisa que me deixa muito triste é quando vejo as portas de aço dos galpões industriais
baixadas como estão. As indústrias foram-se, certamente para cidades do interior que
ofereceram terrenos e incentivos fiscais. Os operários é que me preocupam. Para onde
foram? Alguns podem ter acompanhado as empresas para seus novos destinos. Mas e os que
ficaram? De qualquer forma é triste ver tanto imóvel parado, onde antes havia tanta produção.
muito galpão ocioso: ao longo da estrada de ferro, na Avenida, e nas quadras centrais do
bairro havia muita indústria; agora estão todas paradas.
167
Uma coisa que gosto muito é olhar o céu. Estrela não se mais em São Paulo, mas a lua
ainda se vê, e gosto de ir vê-la aqui da “roda”, de onde é possível acompanhar o movimento
dela até ela se por. Às vezes é possível ver a lua nascendo e o sol ainda não baixou no
horizonte.
Sr. Walter
Desde criança queria muito conhecer a Mooca. O ônibus que vinha para cá tinha as mesmas
cores da casa de minha avó e isto estabelecia uma imprevista relação afetiva.
Nasci no Jabaquara e morei até os dezesseis anos, quando fui para a Vila Mariana, onde
fiquei muitos anos. adulto fui para o convento dos franciscanos, mas ao 32 anos desisti da
vida monástica. Eu me vi de volta ao mundo, com essa idade, sem profissão e tendo que
voltar a morar com meus pais. A Providência veio em meu socorro e por uma casualidade
comecei a dar aulas, o que me levou a conhecer minha esposa.
Quando eu e minha esposa nos casamos eu ganhava mito mal e não tinha condição de pagar
um aluguel. Meu cunhado nos socorreu oferecendo a casa onde moramos por dezessete anos.
Ela ficava na Rua Antônia Veiga Filho, número 3, e assim eu vim morar na Mooca, perto dos
parentes de minha mulher, que me adotaram como mais um membro da família. Ali nasceram
meus filhos, ali fui construindo minha vida. Estudei, pude mudar de atividade e dessa maneira
fui construindo uma poupança.
Meu sonho era morar aqui perto da Igreja São Rafael, mais precisamente na Rua Pedro de
Lucena. Eu queria uma casa nesse pedaço, em qualquer uma dessas ruas em forma de
ferradura. Essa é a melhor parte da Mooca, pois é sossegada e bonitinha. No resto muito
trânsito e muita casa velha, muito galpão e armazém industrial fechado. Mas não era fácil
encontrar uma casa por aqui. Não havia tanta oferta e os valores dos imóveis estavam acima
de minhas posses.
Mais uma vez a Providência veio em meu socorro. Um negócio que parecia impossível
acabou se viabilizando e pude adquirir esta casa, onde estou vinte e cinco anos. Na rua
onde morava o barulho era terrível: caminhões e ônibus impediam que dormisse direito.
168
Quando mudei para cá veja que ironia – na primeira noite não consegui dormir, estranhando
o silêncio. Mas com aquilo que é bom, a gente se acostuma rápido. Isso aqui é uma delícia:
tranqüilo. Passa um pouco de carro, não é como a Rua Pedro de Lucena, mas à noite é muito
calmo e silencioso. E a gente acaba vendo as vantagens da rua, depois de estar morando nela:
aqui é plano; assim, quando se volta para casa, depois do trabalho, não é necessário enfrentar
uma subida. Eu me encanto também com essa densa vegetação da escolinha, aqui bem em
frente de casa, que refresca o ambiente e atrai muitos pássaros. Pode-se ver uma grande
variedade deles e de vez em quando eu, assim como outras pessoas, colocamos frutas para
alimentá-los. Essas árvores têm mais de oitenta anos, e sei disso porque minha esposa, que
está quase chegando , estudou nessa escolinha, e naquela época as árvores eram
frondosas. Além disso tenho fartura de transporte à disposição e perto de casa. o trem a
duas quadras daqui, que me coloca em contato com o metrô e dessa forma eu tenho acesso a
qualquer parte de São Paulo.
O Largo São Rafael era bastante diferente, conta minha sogra, que conhece isso aqui desde o
início. Não havia a Igreja que temos hoje: ela era um caramanchão dentro da fábrica. Não
havia o muro da escola, assim podia-se circular e ficar sob as árvores: era uma praça; o espaço
livre, onde hoje é a igreja, era o local onde se instalavam os circos, que vinham se apresentar
na Mooca. Mas de resto, esse trecho pouco mudou, a não ser pelas reformas que foram sendo
feitas em diversas residências.
De uma forma geral a Mooca mudou muito pouco, nesses cinqüenta anos em que eu a
conheço. Recentemente é que a Mooca vem apresentando uma tendência à mudança. O que se
vê, principalmente é a substituição dos galpões industriais por edifícios residenciais e por
condomínios, muitos deles de luxo.
A Mooca é bastante bem servida por comércio: há de tudo aqui. Há também escolas e
hospitais de qualidade e uma rede de pizzarias e cantinas que é covardia comparar com outros
bairros... Temos também clubes, como o Juventus e o Parque da Mooca, excelente para uma
caminhada.
O que se lamenta aqui na Mooca é a inoperância da Sub-prefeitura; é verdade que
administração pública e política sempre se lamenta. Um dos problemas a serem resolvidos são
as enchentes, que afetam a parte baixa da Mooca. também os problema de construções
169
aparentemente irregulares, que avançam sobre os direitos dos vizinhos; isso parece ser muito
comum aqui, e a fiscalização não toma conhecimento. Outra coisa que poderia ser feita é um
melhor uso da área destinada às feiras livres de quarta-feira e de domingo, ali ao lado do
conjunto residencial do Plano 100. É uma pena, porque é uma área enorme, com um potencial
excelente, mas sempre ociosa, mesmo nos dias de feira. Parece que não há ninguém na
administração pública vendo isso. Apesar disso não vejo grandes alterações a serem feitas na
Mooca.
Vivi aqui mais do que em qualquer outro lugar, ao longo de minha vida. E o interessante é
que eu não vim procurar a Mooca para morar, foi a Mooca que veio a mim. Mas agora não
quero sair da Mooca. Minha vida é aqui.
Sr. Valdemir
Tenho 34 anos e moro e trabalho aqui na Mooca cinco anos. Sou proprietário da Padaria
Selma, no Largo São Rafael.
Eu nasci na Bahia, em Brumado, 100 quilômetros depois de Vitória da Conquista, em plena
caatinga, Sertão da Bahia. Eu me criei na zona rural, trabalhando pesado, no cabo da enxada,
até os quinze anos. Nossa família é grande: somos onze irmãos.
Vim para São Paulo em 1987, já com emprego garantido. Vim para trabalhar em uma padaria.
Depois trabalhei em uma cantina, voltei para a padaria, quando então surgiu a oportunidade
de comprar uma padaria no Campo Limpo.
Fiquei nessa padaria um ano e meio, era um estresse danado. eu tinha de servir o bandido
de graça. Eles chegavam e explicavam: se eu não atendesse, eu morria. Eu não consegui
conviver com isso.
A família de minha mulher mora toda ela aqui na Mooca, e a gente vinha visitá-los com
freqüência. O que eu queria era mudar para e isso foi possível no dia em que vi o anúncio
de venda da padaria.
170
Foi muito duro, logo de início. Eu, minha esposa e minha filhinha moramos por dois anos
dentro da padaria. Eu trabalhava dia e noite, dormindo quatro horas por noite. Ainda trabalho
muito, durmo pouco e o tenho folga, mas tudo está melhorando. Agora é possível dividir o
trabalho com minha esposa. Lá no Campo Limpo eu tinha que ficar direto no caixa; não dava
para deixar a esposa sozinha; a barra era muito pesada.
Aqui é o maior sossego, é tranqüilo, é seguro. A gente conhece toda a freguesia e não
ninguém nesse bairro que não me conheça pelo nome. Assim dá para trabalhar: as pessoas são
educadas e gentis. Fui muito bem recebido aqui na Mooca.
três anos eu comprei minha casa, e agora é que não saio mais daqui. Só saio se for para
sair de São Paulo. Minha rua é muito boa, mas por meu gosto eu morava era na Rua Pedro de
Lucena. Lá a rua é muito gostosa: é como um condomínio, só falta o portão. É muito tranqüilo
e as casas são de outro padrão. Só casa bonita e grande. E lá não trânsito nenhum, só
mesmo os moradores é que circulam por lá.
Na minha rua às vezes passa alguém desorientado, achando que a rua dá acesso para a Paes de
Barros, mas isso é raro.
A tranqüilidade é isso que você está vendo aqui: dá até para ouvir pássaros cantando.
Aqui na Mooca eu encontro de tudo. O abastecimento seja de casa, seja da padaria, eu
encontro aqui, sem precisar sair do bairro. Há mercados que vendem no atacado, para
estabelecimentos comerciais; o preço é bom e por isso não há porque procurar em outro lugar.
Minha esposa, quando quer comprar roupa vai ao Brás, que lá há mais variedade; se queremos
comprar algum presente, vamos à 25 de Março, que é perto. Mas de resto não é necessário
sair da Mooca para nada.
Acho que a Mooca é o melhor bairro de o Paulo. Minha cunhada confirmou isso
pesquisando na Internet. A Mooca é boa para mim e para minha família também. Minha
esposa pode andar por aí, sozinha, sem susto. Para minha filha, que tem dez anos, aqui é
ótimo. o fato de eu poder oferecer a ela este bairro, esta convivência e o estudo, para mim
já é uma realização.
171
A Mooca é boa, mas este trecho que o senhor está estudando é especial. Eu moro na João
Batista de Freitas, uma das ferraduras. São três as ferraduras: A Pedro de Lucena, a São
Rafael, e a última, que reúne três ruas: a minha rua, a Adelaide de Freitas e a Virgílio de
Freitas. Depois há a Rua dos Bancários, sem saída. Só circula por aqui quem mora por aqui.
Os fatores mais importantes desse bairro são a tranqüilidade e o fato de não haver bandido: é
sossego 100%.
Eu costumo levar minha menina para a escola e vou buscá-la também, mas ela diz que as
colegas vão e voltam sozinhas. Eu não tenho tranqüilidade para isso. Sempre o medo de
um seqüestro.
Saio muito pouco, por falta de tempo, mas a Mooca oferece muita opção de lazer. A principal
é a rede de restaurantes: de todo tipo. Mas também o Parque da Mooca e o Clube
Juventus. Para quem gosta de caminhar é possível fazer isso com tranqüilidade. A Paes de
Barros é uma boa opção, e essas ruas paralelas a ela, como a Canuto Saraiva: a pessoa vai por
uma, e volta pela outra.
A parte mais bonita desse pedaço aqui acho que é a Igreja e as árvores da escolinha. A Igreja
São Rafael tem um estilo muito bonito, antigo, e as árvores atraem os pássaros.
Quem sai da Mooca se arrepende.
Quem tiver a oportunidade de conhecer a Mooca vai ter uma surpresa e se quiser morar aqui
vai gostar.
Dona Lina
Toda minha vida eu vivi na Mooca. Eu cheguei ao Brasil em 2 de maio de 1925, com dois
anos de idade.
Meu pai veio da Itália para trabalhar na FIAT, que aqui em São Paulo era representada pela
Matarazzo. Por isso, nós fomos morar dentro da fábrica, aqui na Mooca, na Rua Borges
Figueiredo, 752, que já não existe mais.
172
Eu estudei, me formei e comecei a dar aula. Quando me casei continuei morando na Mooca.
Meu marido viajava muito e eu o acompanhava; por isso tive de parar de lecionar. Quando
compramos esta casa, ela era bem simples. Com o tempo fomos reformando e melhorando a
casa. Moro nesta casa cinqüenta e seis anos e eu e meu marido fomos muito felizes aqui.
Meu marido faleceu já faz vinte e três anos.
RESIDÊNCIA DE DONA LINA, À RUA PEDRO DE LUCENA
NOVEMBRO DE 2005
Esta rua onde moro é uma família só. Todos são amigos. Houve alguma mudança, porque
alguns faleceram, outros foram embora, mas mesmo assim, todo mundo que mora aqui se
conhece. A Wanda, minha irmã, morou nessa mesma rua. Agora ela mora na Avenida Paes de
Barros. A filha dela e os netos moram nessa rua. Meus pais moravam aqui perto, na esquina
da Araribóia com a Rua São Rafael.
A vizinhança sempre foi excelente. Havia muita festa na rua: fechávamos a rua para fazer
churrasco e sempre se organizavam as festas juninas. Hoje não mais isso. As pessoas
173
que eram as mais entusiasmadas para promover as festas foram indo embora. A maioria dos
moradores aqui era de italianos, ou seus descendentes, mas havia também uma família de
alemães.
Todos que vêm aqui me visitar dizem: Como essa rua é gostosa! É curioso, porque dizem
gostosa, não dizem bonita ou tranqüila, dizem gostosa. E acho que quando dizem isso estão
querendo dizer que ela é calma, que é bonita e que é acolhedora, tudo junto.
Eu sempre digo que esta rua é uma rua de sorte, pois ela tem a forma de uma ferradura, que é
símbolo de sorte. Talvez por isso ela seja tão gostosa. Eu também acho isso. Aqui é uma ilha
dentro da Mooca, e a mesma coisa acontece com essas outras ruas em forma de ferradura,
aqui perto da Igreja São Rafael. As ruas da Mooca em geral são de passagem. esse trecho
ficou protegido.
O que eu mais gosto aqui é o sossego. os moradores entram aqui. Além dos moradores
entram os fornecedores tradicionais, como o verdureiro e o quitandeiro. Antigamente vinham
também o açougueiro, o padeiro e o leiteiro. Hoje a gente compra tudo isso no Yamauchi, que
é um supermercado na Rua Conde Prates. É bem sortido e não explora o freguês: tem preço
de feira livre. feiras boas também aqui na Mooca e o interessante é que além de ser ponto
de compra a feira é ponto de encontro também. Meus pais reencontraram companheiros da
viagem de navio, de quando migraram para cá. Nunca mais tinham se visto; depois de vinte e
tantos anos se reencontraram na feira. Eu vejo sempre meus amigos na feira, na de quarta e na
de domingo, que ocorre ali perto do Plano 100, perto da Regional da Mooca.
Outro ponto de encontro importante é a Igreja São Rafael. Eu freqüento muito a Igreja e tenho
trabalhado muito, secretariando os padres, fazendo balancetes, presidindo congregação. Hoje
participo menos, pois tenho idade, mas freqüentemente os padres me convocam para uma
reunião ou para um trabalho desses. Eu sou muito amiga deles.
A Igreja é uma referência religiosa e social muito importante, não para esse trecho da
Mooca, mas para todo o bairro. A comunidade que a freqüenta é enorme, e eu conheço muita
gente e também sou muito conhecida aí.
A Mooca oferece também diversão e programa culturais. O destaque é para o Teatro Artur de
Azevedo, onde estivemos ainda ontem à noite. sempre peças boas sendo levadas e os
preços promocionais são atraentes. O outro ponto de atração é o Parque da Mooca, na
174
Regional, muito usado pelo pessoal da terceira idade e também pelos jovens. Eu sinto falta
dos cinemas da Mooca. Havia vários: o Moderno, O Santo Antônio, o Ouro Verde; nenhum
desses existe mais. Às vezes o prédio ainda existe, mas virou estacionamento, ou um depósito.
Apesar disso, a Mooca mudou muito pouco, nesses últimos cinqüenta anos. Agora parece que
ela despertou. Ela está se verticalizando mais. Acho bom, moderniza, renova e deixa o bairro
mais dinâmico, pois os prédios substituem os galpões industriais, que estão fechados anos,
o que deixava o bairro muito triste. Eu não sei se isso pode interferir conosco, com nossa
tranqüilidade. A Wanda, minha irmã, acha que já está interferindo, pois o trânsito já aumentou
muito. Aqui na nossa rua não pode construir prédio. Por isso eu digo que eu acho bom que o
bairro cresça, desde que não interfira aqui com nossa rua, com o nosso sol.
Eu não mudaria nada na minha rua. Talvez a Sub-prefeitura pudesse cuidar melhor das
calçadas. Elas estão esburacadas e foram ficando cheias de degraus, por causa da inclinação
da rua e por causa das rampas que dão acesso às garagens. Isso acaba impedindo os idosos de
caminhar.
Antes não era assim. Em 1949, quando compramos esta casa, não havia iluminação pública
nem pavimento na rua. Em dia de chuva, os carros tinham que ficar em baixo na Rua
Araribóia, pois não conseguiam subir, devido à chuva. Não havia perigo, ninguém roubava,
naquela época. Mesmo hoje essa rua continua tranqüila, nesse aspecto: aqui não ocorrem
roubos, nem assaltos. O asfalto só foi chegar aqui lá por 1954, 1955.
Hoje eu talvez preferisse que esta rua fosse plana, pois como eu moro aqui no alto, a subida a
pé tornou-se cansativa, com a minha idade. Mas esse pequeno desconforto é compensado pelo
por do sol que se avista daqui: é lindo. Eu sempre saio à calçada para ver; vale a pena. Eu
espero que nossa rua seja preservada, porque essa rua de fato é especial.
175
Sr. Paladino
SR. PALADINO NO ARSENAL DA ESPERANÇA
SETEMBRO DE 2006
Eu nasci na Mooca Baixa, mais precisamente na Vila da Mooca, que fica na Rua da Mooca,
312. A minha casa era a de número 25 e a do José Serra era a 19. Ele também nasceu lá, na
mesma vila.
Eu freqüento a Paróquia São Rafael cinqüenta anos. Fui levado para pelo Maestro
Bastiglia , que regia o coral da Igreja Nossa Senhora da Paz, onde eu cantava. Essa igreja fica
no Glicério e foi construída pela comunidade italiana, logo após o final da Segunda Guerra
Mundial. Eu fui coroinha nessa igreja até uma semana antes de me casar, quando tinha vinte
anos.
Minha vivência da Mooca tem 50 anos. Lembro muito da Panificadora Estoril, onde hoje é
uma drogaria, na Rua Visconde de Laguna, esquina com a Rua da Mooca. Lá havia bilhar no
andar superior e outros jogos típicos para os jovens da época. Havia também o Bim-Bar, que
oferecia diversão semelhante e também era muito freqüentado.
A Mooca tinha vários cinemas: o Cine Moderno ficava onde hoje é a agência do Bradesco, na
Rua da Mooca, em frente ao cruzamento com a Rua Orville Derby. Havia também o Cine
Brasilux, onde hoje é a loja Marabrás. E logo abaixo está o Colégio Estadual onde a maioria
dos jovens da Mooca estudou.
176
Tenho vivido na Mooca desde os vinte anos até hoje. Houve uma época que minha família
voltou para a Itália, depois retornamos ao Brasil, quando eu tinha mais ou menos vinte anos.
Conheci minha esposa no coral da Igreja São Rafael e nos casamos nessa mesma igreja. A
comunidade da Igreja São Rafael me proporcionou uma convivência muito rica. Tive contato
com as famílias mais tradicionais da Mooca, entre elas a família Bardaglio. Ela é muito
conhecida e até existe um livro que conta a saga dessa família na Mooca.
Eles tinham um armazém de secos e molhados no Largo São Rafael, bem em frente à Igreja,
no local onde hoje é um posto de gasolina. Depois eles se mudaram par a esquina do Largo
São Rafael, na esquina da Araribóia, onde hoje é a Padaria Selma. Foram eles que
construíram esse edifício, que depois foi reformado para ser padaria.
A Igreja São Rafael era famosa por suas festas religiosas. A procissão de Sexta-feira Santa
reunia uma imensidão de pessoas de toda a Mooca, não apenas da paróquia. Hoje a gente diria
que era um espetáculo cinematográfico.
A principal distração dos jovens era fazer bailinho, sábado à noite. Cada vez era na casa de
um amigo diferente, e os bailes eram sempre animados pela banda Pick-up e seus
negrinhos”, que era como a gente denominava o toca-discos e os discos “78 rotações”.
O Chefe da Estação da Mooca tinha uma filha muito bonita, então freqüentemente os
bailinhos eram na plataforma da estação mesmo e quando os trens passavam cheios,
era engraçado ver aquelas pessoas todas nos olhando surpresas. Era muito divertido.
Havia os bondes também. Além de transporte para o trabalho eles eram usados para passear,
sábado à tarde, quando se saia com a namorada ou com os amigos. Os trajetos dos bondes
eram circulares, então com alguns tostões você podia dar a volta completa. Ele passava pelo
Brás e pela cidade, em um percurso longo, que demorava mais ou menos uma hora. Via-se a
paisagem, namorava-se e batia-se papo com os amigos. Quando o bonde chegava no
cruzamento da Rua da Mooca com a Paes de Barros, ele esvaziava, pois desciam todos que
iam pegar o ônibus para a Vila Prudente e para a Vila Zelina. Ele ia pela Avenida Paes de
177
Barros que era uma rua larga, de uma pista só, naquela época. Só pelos anos 1950, mais ou
menos, é que ela tomou essa forma que tem hoje, com canteiro central e duas pistas.
A Igreja São Rafael é bem mais antiga. É da década de 1930. Quando ela foi construída era
considerada enorme. Foi feita em etapas, pois demandava muito recurso da comunidade. Ela
devia ter sido feita com a entrada voltada para outra direção; a porta devia se abrir para o
Largo e não para a Rua Canuto Saraiva, como acabou acontecendo, não sei por quê.
A Igreja terminava onde hoje começa a sacristia, que na época ficava onde hoje é a Creche.A
prefeitura cedeu aquele pedaço do largo em comodato, que vem sendo renovado a cada trinta
anos. Não dá para perceber, mas aquilo lá era uma praça – o Largo São Rafael – que foi sendo
ocupado pelas construções.
Quando me casei eu e minha esposa fomos morar no Brás, na Rua Silva Telles, em um
pequeno apartamento, em frente à loja de tecidos onde eu trabalhava. Mas logo ela ficou
grávida e todo dia, após me servir o almoço, ela vinha para ficar junto da mãe, que morava na
Rua Virgilio de Freitas, quase esquina com o largo. Era um horror, porque toda noite, após o
trabalho eu tinha que vir buscá-la, de bonde, e ela grávida, era muito desconfortável.
Por sorte, um dia a mãe dela avisou que a casa ao lado da dela tinha sido liberada. Ela correu
e segurou a casa para nós. Mudamos para o Largo São Rafael. A casa fazia um L” com a
casa da minha sogra e como havia um portão interligando os dois quintais era possível entrar
para qualquer uma das casas, tanto pelo largo, como pela rua. Isso foi mais ou menos em
1962.
Ali eu e minha mulher fizemos nossas vidas: éramos jovens ainda quando mudamos para lá.
Nessa casa nasceram e se criaram nossos filhos, dentro da comunidade São Rafael. Hoje estão
todos formados, casados, com filhos, e bem situados na vida.
Moramos ali até que recebemos a denúncia vazia, criada pelo Collor. Eu me interessei por
comprar a casa, mas os herdeiros não entraram em acordo. Para mim foi um choque ter de
pensar em mudar de lá.
178
Fiquei muito angustiado, pois minha vida estava toda ali: parentes, amigos, a Igreja e toda a
comunidade.
Um dia, guiado por Deus, desci a rua Leocádia Cintra e vi dois anúncios de apartamentos a
venda. Um de cada lado da rua, em baixo, perto da Orville Derby. Eram dois apartamentos
bem diferentes, cada um com suas qualidade. Um era pequeno, sem vaga para carro, mas
tinha a vantagem de ser em um prédio de quatro andares, sem elevador e portanto o
condomínio era praticamente nada. O outro era maior, com três dormitórios, vaga para
automóvel, só que mais caro. Verifiquei minha poupança e vi que quase dava para comprar os
dois. Falando com meu chefe a respeito disso, ele me deu os nove mil reais que faltavam para
completar o valor.
Assim mudamos para a Leocádia Cintra. Não estranhamos tanto, porque o apartamento é de
fundo e por isso não se ouve o ruído da rua, por onde passa ônibus. O outro apartamento
cedemos para meu cunhado morar.
Estávamos felizes porque não tivemos que nos afastar da comunidade. Ali é como uma grande
família: todo mundo se conhece. A gente sai à rua, cumprimenta todo mundo e todos me
conhecem pelo nome. É muito gratificante morar na Mooca, mas morar nesse trecho é mais
ainda. A gente tem uma identidade muito grande com aquele quadrilátero, que você
mencionou. Eu atribuo isso à igreja e também à identidade italiana, que é muito forte ali. A
identidade italiana se expressa não na arquitetura da Mooca, mas sobretudo na
comunidade.
Eu garanto que não saberia viver fora da Mooca.
Eu e minha esposa temos uma ligação muito forte com a Igreja São Rafael. Ela é catequista e
eu fiz de tudo ali. Participei de todos os programas sociais promovidos pela Paróquia.
Nossa grande fortuna é poder servir, mais do que ser servido. Isso nos dá uma enorme
tranqüilidade: dorme-se bem e acorda-se melhor ainda.
O primeiro trabalho que realizamos foi um centro comunitário em baixo do viaduto
Guadalajara. Depois foi o programa para os moradores de cortiço, que descreveram para
você. Agora eu estou empenhado no Arsenal da Esperança, ao qual dedico meu voluntariado
179
em tempo integral. Vale a pena conhecer esse projeto social. Só para você ter uma idéia,
quando o Mário Covas, então governador do Estado, nos entregou esse espaço para implantar
nosso projeto, aqui já funcionava um albergue. Sem falar nas condições em que encontramos
isso, aqui havia 263 funcionários para atender 112 pessoas. Era uma distorção e o Covas disse
que o Estado não tinha mais condição de manter aquela situação.
Hoje, passados dez anos que assumimos o local temos 70 funcionários e atendemos 1150
homens a cada noite; com todo o trabalho de albergagem, mais alimentação, atendimento
médico e odontológico, que você conheceu. Além disso oferecemos serviço de assistência
jurídica, documentação pessoal, e oferecemos cursos de alfabetização e de capacitação
profissional, em parceria com as melhores universidades da região: a São Judas e a Anhembi-
Morumbi.
O fundamental é acreditar no outro e reconhecer a dignidade que existe dentro de cada um,
mesmo que a aparência dele teime em querer nos enganar.
Dona Wanda
Eu moro na Avenida Paes de Barros, em um prédio de apartamentos, em cujo rreo uma
agência do Banespa. Meu apartamento abre para a lateral do prédio e por isso, acredito, não se
ouve tanto o ruído da avenida.
Nasci na Rua Borges de Figueiredo. Quando me casei vim morar na Rua Pedro de Lucena, em
um prédio de quatro andares, que fica na esquina com a Araribóia e que foi construído por
meu marido, pois ele era arquiteto.
Meu marido era polonês e ele se criou e se formou, tendo vindo adulto para o Brasil.
Construiu vários prédios aqui na Mooca e no interior do Estado de São Paulo, também.
Quando ele faleceu havia várias obras suas em andamento, que foram terminadas por seu
sócio.
Moramos um ano e meio no apartamento, pois logo adquirimos um obrado na mesma rua.
Minha irmã já morava aqui e eu queria ficar por perto. Isso foi mais ou menos em 1954-1955.
Morei nessa casa até minha filha se casar. Ela mudou-se para Arujá, com seu marido e eu
resolvi mudar para o apartamento da Paes de Barros. Um pouco mais tarde minha filha
180
mudou-se para esta casa da Pedro de Lucena, onde eu tinha morado. Por isso meus netos
também foram criados aqui nesta rua. Hoje estão todos adultos, e na faculdade. Cada um
está em um lugar diferente. Um deles está na Europa, fazendo um estágio em sua área de
estudo, que é a química. Ele, que é o caçula da família, teve a oportunidade de visitar o
membro mais velho da família, que é um tio de 98 anos, que mora na Calábria, totalmente
lúcido e independente. Até hoje ele dirige seu automóvel.
Quando meus netos eram pequenos eu me casei pela segunda vez e fui morar no Cambuci,
perto da Aclimação. Mas eu vinha para cá todos os dias. Não havia maneira de eu me
acostumar com outro bairro. Eu sentia falta de minha irmã e de meus netos; e também eu
tinha que olhar as crianças, pois minha filha, nessa época, trabalhava fora. Eu não saia daqui.
E logo que tive oportunidade voltei a morar aqui. O relacionamento se acabou e eu vim morar
com minha filha, com quem fiquei por três anos, esperando meu inquilino liberar o
apartamento da Paes de Barros. Quando ele saiu, fiz uma pequena reforma e eu me mudei
para lá. estou neste apartamento treze anos. Ele fica aqui ao lado, a poucas quadras
daqui, mas eu continuo não saindo daqui da Pedro de
181
Eu gosto da Mooca porque aqui é muito tranqüilo. Mesmo na Avenida não tanto
movimento assim, e o ruído eu quase não ouço. Agora recentemente é que o trânsito começou
a ficar mais intenso e eu atribuo isso à quantidade de prédios que estão surgindo, no lugar dos
antigos galpões industriais. Isso às vezes me preocupa, pois pode vir a atrapalhar essa
tranqüilidade.
Quando saí da Mooca me arrependi muito, por isso eu não pretendo mudar de onde estou.
se for par vir para a Rua Pedro de Lucena.
O LARGO SÃO RAFAEL HOJE.
AGOSTO DE 2006
182
4.5 O ambiente percebido pelo morador
O material empírico utilizado para descrever o ambiente percebido pelo morador tem como
fonte um conjunto de dados obtidos através de observação vivencial in loco e através de
entrevistas em profundidade, feitas diretamente com dez moradores da área.
Ao fazer a análise da narrativa do morador, o pesquisador se defronta, logo de início, com
uma dificuldade que impõe reflexão e cautela: como um anatomista com o bisturi na mão,
sente-se na iminência de destruir aquilo que quer conhecer. Frente à integridade e à beleza
sempre poética da narrativa do morador – como não temer a destruição desse discurso,
escandido pelo ritmo da história oral, e que, expressando uma percepção global, agrega
sentimentos, avaliação do ambiente físico e social e seus significados, abordando uma enorme
gama de aspectos, em diferentes níveis de detalhe, em uma fala harmoniosa e cordial?
A análise, além de quebrar essa unidade, corre o risco de empobrecer a narrativa, pois tende a
ser classificatória, ordenadora, linear. Entretanto ela pode ser reveladora. Cumpre talvez de
início abandonar o instrumental que dilacera, para não mais recompor, e substituí-lo pelas
mãos nuas, que assim, mais sensíveis ao toque, poderão, quem sabe, desmontar para que se
possa depois reconstruir.
"A Mooca tem uma magia", declarou uma moradora, e é sob o véu desse encanto que nós
queremos penetrar.
De fato, paira um véu sobre essa realidade, pois ela se descortina aos poucos, revelando-se
apenas ao olhar, que além de curioso também se mostre cuidadoso.
O véu que a oculta (ou a protege?) pode ser o do distanciamento, tecido pelas diferenças
culturais de quem observa e de quem ali vive, mas pode ser também o véu do preconceito, que
não permite ver, na simplicidade de um ambiente constituído de elementos do cotidiano mais
óbvio, as qualidades que, quem lá vive, reconhece, preza e preserva.
183
A percepção que a comunidade tem de si mesma
Quem ali vive, cinqüenta anos, um pouco mais ou talvez menos, escolheu a Mooca para
morar, escolheu a Mooca para viver, e o fez antes de tudo para ficar próximo dos seus: de
seus parentes e de seus amigos, unidos muitas vezes por laços de uma etnia imigrante, que ali
se instalou desde o século XIX. Mas ao contrário do que parece à primeira vista, os imigrantes
são muito diversificados: italianos, espanhóis e portugueses principalmente; mas também
alemães, poloneses, lituanos e japoneses, complementarmente. A esses imigrantes de origem
européia e asiática associaram-se mais tarde, em meados do século XX, os migrantes
brasileiros, sobretudo os nordestinos, diversificando ainda mais o quadro cultural e sócio-
econômico do bairro.
Por isso, a rua de caráter residencial ou a vila
6
típica da Mooca oferecem a oportunidade de
integração efetiva do outro, e assim a oportunidade de sentir-se efetivamente integrado
também. Essa integração se expressa não como sentimento de tolerância pelo diverso, mas
mais do que isso como aceitação da convivência com aquele que é diferente, tanto em termos
culturais como em termos financeiros. Essa atitude vem temperada pela certeza de dias
melhores, que advirão do esforço e do trabalho de cada membro da família. Certeza que
advém da experiência de vida dessas famílias de descendentes de imigrantes estrangeiros e
brasileiros, que aqui desembarcaram em busca das oportunidades de sobrevivência, não
encontradas em suas terras de origem. Essa experiência ensina que aquele que hoje está mal
financeiramente, amanhã poderá estar melhor, se tiver as adequadas oportunidades e a elas
responder bem, valendo muito mais a pena participar desse processo de promoção social e não
da exclusão daquele que momentaneamente se vê em condição menos favorável.
Respira-se otimismo na Mooca.
um clima de sentimento de auto-realização entre os membros dessa comunidade. As
famílias dos imigrantes encontram-se em condição francamente emergente, do ponto de vista
sócio-econômico. Isso se evidencia através dos bens patrimoniais e da condição financeira
estabilizada, assim como através da formação cultural das novas gerações, cujos
6
Termo que designa pequenos conjuntos de seis, oito ou dez residências, que m acesso por uma rua que
termina em balão de retorno, ou por rua em forma de ferradura, e que eram antigamente destinados na maioria
das vezes a estratos sociais de baixa renda, a operários.
184
representantes desenvolvem atividades profissionais bem sucedidas e muitas vezes de
destaque.
Entretanto não ostentação. A simplicidade que marcou o comportamento das gerações dos
imigrantes permanece presente no comportamento das pessoas. As dificuldades relativamente
recentes das histórias familiares parecem ser o motivo dessa moderação. Elas podem estar
também na raiz da atitude compassiva demonstrada para com os membros menos afortunados
da comunidade. Essa atitude se manifesta não apenas como sentimento, mas sim de maneira
atuante, através de programas sociais promovidos pelos membros da comunidade, agregados
pela Paróquia São Rafael, que tem fundamental papel aglutinador desse grupo social, desde a
década de 1930.
A Igreja São Rafael foi erigida sob a liderança dos Barnabitas, irmandade de padres católicos
de origem italiana, que para aqui vieram a fim de oferecer suporte espiritual à grande
comunidade de origem peninsular residente no bairro. A sua construção só foi possível devido
aos esforços e aos recursos dessa comunidade, naquela época constituída em sua maioria por
operários, cuja tenacidade enfrentou os desafios que se apresentaram ao longo de mais de uma
década de obras, entre eles as restrições econômicas e a desconfiança política decorrentes da
Segunda Grande Guerra, que se abateram sobre esse grupo social de origem lembremos
predominantemente italiana.
A Igreja São Rafael constitui-se em importante referência material para a auto-identidade dos
membros dessa comunidade e também como um marco visual na paisagem desse trecho da
Mooca.
As pessoas se orgulham dela, tanto por sua beleza como por suas obras assistenciais
permanentes, dentre as quais se destaca a Creche São Rafael, cuja sede própria, à Rua Orville
Derby, bem perto da igreja, também é obra do trabalho comunitário. Além disso, cabe
relembrar um projeto assistencial de alcance, intentando pela comunidade, e que obteve
sucesso parcial, mas significativo: trata-se da construção de pequenos conjuntos residenciais,
destinados a famílias da paróquia, que moravam em cortiços. O vulto dos recursos financeiros
que o empreendimento demandava estava muito acima da capacidade de contribuição da
comunidade e inviabilizou a continuidade do projeto, após a construção das primeiras dezenas
de unidades. Outra iniciativa que teve origem na Paróquia com grande sucesso, é o Arsenal da
185
Esperança. Trata-se de um serviço de albergagem noturna para moradores de rua, que além de
abrigo e alimento, oferece atendimento médico, dentário e promove cursos de capacitação
profissional, assim como um laboratório de criatividade e de artes. Esse projeto conta com a
parceria do Governo do Estado de São Paulo mas é dirigido por uma organização não
governamental constituída para essa finalidade, integrada em sua maioria por membros da
Paróquia São Rafael. O albergue está instalado em prédios adjacentes ao Museu do Imigrante,
situado no Brás, que são parte do complexo de edifícios históricos que constituíam o centro de
recepção ao imigrante europeu, implantado no final do século XIX, e que foi ampliado em
meados do século XX, para receber o migrante nordestino. Esse projeto é administrado com o
mais alto grau de responsabilidade e eficiência, lançando mão de recursos informatizados, os
mais recentes. Surpreende pelo alto nível dos serviços oferecidos e pela qualidade e pela
beleza do ambiente em que são ofertados. Essas características do trabalho expressam a
diretriz que orienta o projeto: nela está presente a consciência da inalienável dignidade de
cada ser humano, que muitas vezes se encontra velada na rua sob as mais tristes aparências,
mas que emerge quando amorosamente reconhecida.
Esses projetos evidenciam a responsabilidade social que rege a conduta dessa comunidade, ao
mesmo tempo em que tecem e reforçam os laços que interligam seus membros, que assim se
identificam de maneira cada vez mais forte com o ambiente em que vivem, pois ele adquire
significados cada vez mais amplos e mais compartilhados socialmente.
VISTAS INTERNAS DO ARSENAL DA ESPERANÇA – MAIO DE 2006
186
Ninguém quer se afastar desse lugar onde mora. Faz parte de suas histórias de vida; é aqui que
se realizam como indivíduos, como membros de suas famílias e como cidadãos conscientes e
atuantes.
A Igreja propicia não apenas relações institucionais de cidadania, mas também reforça laços
de convivência e de amizades, iniciados na rede de vizinhança. Famílias inteiras que se
conhecem no cotidiano da rua, reencontram-se e reconhecem-se nas missas de domingo.
Esses encontros têm o poder de ampliar e deixar mais complexo o tecido das relações
comunitárias, pois essas começam a ultrapassar os limites da convivência proposta pela
proximidade da vizinhança da rua, enlaçando entre si moradores das diferentes ruas da área de
estudo.
As ruas da área de estudo
Cada rua tem personalidade própria, e assim como as pessoas, algumas são mais marcantes do
que as outras.
Os moradores percebem na rede viária da área de estudo uma sutil e rica hierarquia, que
expressa uma sensível avaliação do ambiente, baseada em diferentes critérios, envolvendo o
nível sócio-econômico dos respectivos moradores, o tamanho dos lotes, o padrão
arquitetônico das residências, seu estado de conservação, e a privacidade da rua quanto ao
tráfego de passagem. Em decorrência deste último critério, consideram também em sua
avaliação o vel de ruído da rua e a maior ou menor possibilidade de controle e apropriação
do espaço público da via pelos moradores.
Um morador recente na área, que para se mudou pouco mais de ano, a fim de trabalhar
em seu comércio e fixar domicílio, assim descreveu essa hierarquia: a rua melhor, com as
casas mais bonitas e melhores é a Rua Pedro Lucena; é também a mais tranqüila,
especialmente depois que os moradores conseguiram deixá-la com mão única. Depois vem a
Rua dos Bancários, no trecho do balão de retorno, que possui também residências boas, mas
um pouco mais simples; por ali ninguém passa, mesmo os moradores, pois "a rua não tem
saída". Após ela vem a Rua São Rafael, que dessas outras é a quem tem menos movimento,
mas onde as casas não têm um padrão tão bom. A Rua Adelaide de Freitas e a Rua Virgílio
187
de Freitas apresentam mais movimento, pois elas dão acesso à Rua Leocádia Cintra, pela Rua
Henrique Dantas. Alguns motoristas, que vêm pela Rua Rubião Junior, entram na Rua
Adelaide de Freitas, acreditando que ela aceso à Avenida Paes de Barros, o que a torna
mais movimentada e menos privativa. A Rua Araribóia é a mais movimentada de todas aqui
desse trecho, pois para se entrar nas outras ruas é obrigatório passar por ela. Por isso ela
tem algum comércio e é a rua onde se localiza a padaria. A Rua Henrique Dantas, que tem
acesso a partir da Leocádia Cintra é muito usada como estacionamento de quem usa o
comércio da Avenida Paes de Barros, e os bancos que ficam nas esquina da Leocádia Cintra
com a avenida; quando muito movimento, esse estacionamento se prolonga pela Rua
Virgílio de Freitas também. As outras ruas, como a Leocádia Cintra, a Curupacé, a Canuto
Saraiva e Orville Derby, já estão fora dessa área mais tranqüila.
Atribuem ao formato das "ruas em ferradura", que são as Ruas Pedro Lucena, São Rafael,
Adelaide de Freitas e Virgílio de Freitas e à "rua sem saída", ou seja, à Rua dos Bancários,
que termina em balão de retorno, a tranqüilidade do bairro, seu o silêncio e sua segurança,
pois as ruas não são percorridas por estranhos, à ou motorizados. Isso permite que as
crianças brinquem nas ruas sob a vigilância das mães, que ficam dentro de casa, muitas vezes
com a porta aberta. Assim acompanham "o movimento" e pelo ruído da brincadeira sabem
com estão as coisas. Nenhum ladrão entraria nessas ruas de automóvel, diz uma moradora,
pois ficaria facilmente encurralado pela polícia, o que preserva essa área da violência.
Dois moradores entrevistados e um jovem seminarista da Igreja São Rafael referiram-se a esse
trecho da Mooca como ilha, o que remete ao conceito de ilha de tranqüilidade,
mencionado. Um jovem corretor de imóveis, que mais ou menos um ano vem atuando na
Mooca, ao relatar, em entrevista informal, a grande demanda de seus clientes por residências
nessa área, também usou o termo ilha, para caracterizar a área de estudo. Perguntado pelo
pesquisador sobre o uso dessa palavra, ele contou que entre seus clientes não é incomum o
uso desse termo para identificar esse conjunto de quadras, demonstrando como é recorrente
essa imagem mental, suscitada por essa configuração urbana.
A Avenida Paes de Barros é vista com orgulho pelos moradores da Mooca. quem ainda se
refira a ela como a Avenida Paulista da Mooca, epíteto a que fez jus, pelos idos da década
de 1970, época do "milagre brasileiro", quando o desenvolvimento econômico estimulou a
substituição de uma série de casarões tradicionais por edifícios verticalizados de vários
188
andares. Isso deixou o perfil da avenida mais alto, dando-lhe destaque na paisagem da cidade,
pois ela tornou-se visível de mais longe. A verticalização diminuiu de ritmo com o final do
crescimento econômico acelerado e hoje só de raro em raro um novo edifício surge na
Avenida Paes de Barros, tendo dado lugar a empreendimentos em terrenos menos caros,
localizados em travessas da avenida, ou em ruas paralelas, distantes uma quadra da avenida.
Um endereço residencial na avenida, além de oferecer uma série de vantagens práticas, como
a proximidade ao farto transporte público e à diversificada rede de equipamentos de comércio
e serviços, confere prestígio ao morador, em função da concentração de pessoas de faixa de
renda média e alta nessa via. Ela é também apreciada por sua beleza, destacando-se sua
posição no alto da colina, a variedade de edifícios que mesclam casarões antigos e edifícios
altos, assim como a arborização de seu canteiro central, que é visto como local muito propício
para caminhadas e prática de cooper.
A AVENIDA PAES DE BARROS COM SEU CANTEIRO CENTRAL ARBORIZADO
AGOSTO DE 2006
As festas e os encontros de rua
A tranqüilidade das ruas da área de estudo permite também que elas sejam utilizadas para
festas públicas. Este é um hábito da comunidade italiana, que ocorre em outras áreas da
Mooca, como é o caso da festa de São Vito. Organizada pelos moradores do bairro, ela
adquiriu grande notoriedade e se inseriu no calendário de festas tradicionais da cidade de
São Paulo, chegando a ser divulgada, a cada ano, pela televisão.
189
Na área de estudo, as ruas em forma de ferradura são utilizadas especialmente na época das
copas mundiais de futebol, quando são enfeitadas com bandeirinhas e os adolescentes pintam
a bandeira do Brasil e símbolos do futebol no leito das vias. A cada vitória do Brasil a
comemoração promovida pela torcida entusiasmada ocorre na rua. Na "roda", que é mais
nivelada, ocorrem as festas juninas e normalmente há queima de fogos na passagem do ano.
Muito concorridas são as quermesses da Igreja São Rafael, que atraem pessoas de toda a
Mooca. Fecha-se um trecho de rua do Largo São Rafael, para a instalação das barraquinhas de
jogos e quitutes. Ali se reúne a comunidade, com música e muita animação, nas festas juninas
e na comemoração do aniversário da Igreja São Rafael, que ocorre no mês de setembro.
RUA ADELAIDE DE FREITAS EFEITADA COM
BANDEIROLAS PARA A COPA DO MUNDO DE 2006.
JUNHO DE 2006
No cotidiano, o ponto de encontro mais freqüentado do bairro é a padaria que fica na esquina
da Rua Araribóia com o Largo São Rafael. A calçada da rua se alarga bem em frente à
padaria, o que propiciou o plantio de algumas árvores, na sombra das quais se distribuem
mesas e cadeiras, onde se pode comer um sanduíche e tomar alguma coisa na companhia dos
amigos. Sentado ali se aprecia o movimento dos moradores que vêm fazer suas compras na
padaria ou que vêm se encontrar com outros freqüentadores para um "bate-papo" informal.
Todos que passam a ou de carro, cumprimentam o dono da padaria e os conhecidos que ali
se encontram. O silêncio é quebrado por alguns poucos automóveis, inclusive o da polícia
que faz a ronda periodicamente. Ouve-se o canto dos pássaros que se abrigam no denso
190
bosque da escola municipal, do outro lado da rua, e o ambiente é tão tranqüilo que é possível
ouvir dois jovens que tocam cavaquinho e violão, em um ensaio musical na varanda de uma
casa antiga, a cinqüenta metros dali. O vai e vem dos fregueses, que acorrem nas horas certas,
quando sai o pão fresquinho, é tranqüilo e rememora o ritmo de uma cidade de interior.
A PADARIA SELMA NA ESQUINA DA
RUA ARARIBÓIA COM O LARGO SÃO RAFAEL
Os detalhes do ambiente físico
Aos moradores, que muitos anos caminham por essa
191
O PAVIMENTO EM PARALELEPÍPEDOS DA RUA ADELAIDE DE FREITAS
NOVEMBRO DE 2005
Apreciam a densa vegetação arbórea, que existe no pátio da escola infantil, situada ao lado da
igreja, que além de oferecer sombra sente-se na calçada o ar fresco que flui de sob as
árvores em dias de calor abriga pássaros diversos, cujo canto alegra o ambiente e que se
tornam objeto de disputa amistosa entre alguns vizinhos, que pleiteiam a maior habilidade no
reconhecimento das espécies que ali aparecem. Alguns moradores colocam frutas em seus
jardins, situados nas proximidades desse pequeno bosque, para estimular ainda mais a
presença das aves. Por isso, comenta um deles, eu gostaria que o bairro fosse mais arborizado;
mas logo pressente a incompatibilidade desse desejo com as entradas das garagens
residenciais para veículos.
A DENSA VEGETAÇÃO LOCALIZADA NO TERRENO DA ESCOLA INFANTIL
ALMIRANTE TAMANDA
192
As garagens domiciliares de veículos foram se multiplicando na medida em que a comunidade
ampliou as condições de acesso a esse meio de transporte. Alguns moradores lamentam como
fato inexorável a deterioração que os passeios de pedestres vêm sofrendo, em decorrência das
sucessivas reformas promovidas por outros moradores em suas residências, para implantar
garagem coberta de veículos. Elas geralmente ocupam o recuo frontal dos lotes e para maior
conforto do motorista obriga a alteração do plano do passeio, que é transformado em rampa
de acesso à garagem. O passeio, antes um plano inclinado contínuo, que acompanhava a
declividade da rua, agora é subdividido em sucessivas rampas, intercaladas por degraus de
alturas irregulares, que surgem dessas alterações feitas na frente de cada casa. O resultado é
que já não se pode caminhar com segurança pelos passeios, afetando especialmente os
caminhantes mais vulneráveis, idosos e crianças pequenas, que se arriscam a tombos
perigosos, em função dessa atitude de pouca cidadania com relação ao espaço público. Como
ocorre em outras partes da cidade, aqui também o pedestre vê seu espaço de circulação
pública roubado pelo veículo. Além disso o pedestre se obrigado a circular pela sarjeta,
cujo piso é mais regular, mas que oferece menos conforto e segurança.
OS PASSEIOS DE PEDESTRES ESCALONADOS PELAS RAMPAS DE ACESSO ÀS GARAGENS,
QUE OCUPAM OS RECÚOS FRONTAIS DAS RESIDÊNCIAS.
Os moradores valorizam as reformas que são feitas nas casas, reconhecendo nisso uma
desejável modernização e a expressão do sucesso econômico da comunidade. Consideram
como positiva a diferenciação resultante, pois descaracteriza os conjuntos padronizados,
especialmente aqueles cujos remanescentes ainda existem nas ruas Adelaide de Freitas e
Virgílio de Freitas e que são associados a um mercado operário de baixa renda. No entanto
apreciam o conjunto de residências da Rua Henrique Dantas, pela unidade do conjunto
193
preservado quase em sua totalidade, e pelo pitoresco de suas pequenas varandas encimadas
por arcos.
Reconhecem o privilégio da localização da área de estudo em uma encosta de declividades
suaves, o que a protege de inundações. Essa situação geográfica permite também apreciar um
belo por do sol, que se coloca atrás do maciço de edifícios da Avenida Paulista no verão, e do
centro da cidade no inverno.
A preservação do ambiente
Não apenas os detalhes do ambiente são percebidos pelo morador.
Ele está atento à dinâmica de transformação da Mooca e age sempre que necessário para
preservar o ambiente onde mora.
A Mooca mudou muito pouco em cinco décadas em que a conhecemos, dizem alguns
moradores. Apenas de uns cinco ou dez anos para é que o mercado imobiliário se aqueceu,
sem ter entretanto atingido o patamar em que se encontra o Tatuapé. Parece que quase não há
mais lugar para prédios no Tatuapé e então os empreendedores imobiliários se voltaram para a
Mooca. Havia muito galpão industrial vago aqui na Mooca, comentam, e ainda há. Alguns
foram reformados e reutilizados para estacionamento; outros para supermercados, bingos e
lojas de departamentos. Mas muitos deles estão sendo destruídos, para liberar o terreno para
condomínios residenciais verticalizados. Alguns desses conjuntos residenciais são de alto
nível, sofisticados, com grandes áreas de lazer no térreo. – Acho bom isso, avalia uma
moradora, vai trazer movimento para o comércio do bairro que vai se desenvolver mais. Acho
bom, prossegue ela, desde que não venham interferir aqui no "pedaço" onde moro, que tem de
permanecer como está: com casas térreas, com famílias que a gente conhece muito tempo,
e com essa tranqüilidade e esse silêncio que permite à gente ouvir os pássaros. Até o ar parece
mais puro aqui, se a gente compara com a Avenida Paes de Barros. Não quero também que os
prédios venham "tapar" o meu sol, completou.
194
RUA TIJUGUAÇU RUA DOS BANCÁRIOS
ALTOS EDIFÍCIOS SOMBREIAM AS RESIDÊNCIAS E TIRAM A PRIVCIDADE DOS QUINTAIS
NOVEMBRO DE 2005
HABITAÇÃO COLETIVA PRECÁRIA À RUA BORGES DE FIGUEIREDO
Atentos aos riscos de desqualificação do ambiente, os moradores promovem gestões junto à
Sub-Prefeitura da Mooca, conforme sua capacidade de pressão. Apesar de expressarem muito
desalento com relação à administração pública municipal, conseguem seguidamente atingir
195
alguns intentos, mobilizando a cada situação o membro da comunidade que tenha mais
prestígio junto à prefeitura naquele período.
Uma das ações mais simples é a alteração da mão de direção das ruas da "ilha", ou o
estabelecimento de mão única, para evitar que se transformem em vias de passagem. Dessa
maneira controlam a intensidade do fluxo de veículos que atravessa o bairro.
O exemplo mais antigo dessa medida é a Rua Guia Lopes, que tinha se transformado em "alça
de trevo" da Avenida Paes de Barros, dando acesso à Rua Curupacé, quando esta se
transformou em via coletora de mão única. Os moradores conseguiram que nela fosse
implantada mão única, no sentido contrário à tendência do fluxo de passagem, garantindo aos
belos sobrados que lá existem um ambiente residencial silencioso e tranqüilo.
Mais recentemente fato semelhante ocorreu com a Rua Araribóia, que ficou com uma mão de
direção apenas, no sentido da Rua Curupacé. Em decorrência dessa alteração, e para proteger
ainda mais a alça da Rua Pedro Lucena, estabeleceu-se nela também a o única, que vai no
sentido contrário ao do fluxo da Rua Araribóia, desestimulando totalmente a circulação de
qualquer veículo desorientado, por essa rua.
RUA GUIA LOPES, ESQUINA COM A AVENIDA PAES DE BARROS, ONDE SE VÊEM
ELEMENTOS PRÉ-MOLDADOS DE CONCRETO IMPEDINDO O TRÂNSITO DE PASSAGEM
NOVEMBRO DE 2005
196
Os moradores sentem como agressão a presença dos altos edifícios que têm surgido na
periferia da área de estudo, e que têm acesso pelas vias coletoras e pela arterial que a
delimitam. Eles reduzem a insolação, além de expor os quintais dos sobrados ao olhar
indiscreto de quem se encontra nos apartamentos. A privacidade do quintal, recôndito da
intimidade da família ao ar livre, perdeu-se para sempre, nesses casos.
Apesar de insatisfeitos com esse quadro, os moradores não expressam qualquer possibilidade
de interferir nesse processo de alteração do aproveitamento do solo, que ocorre nos lotes
vizinhos aos seus, interferindo com a qualidade do ambiente onde vivem. Percebem a
administração municipal inacessível sob esse aspecto ou se sentem desalentados face à
grandeza dos interesses imobiliários que sabem estar em jogo. Possivelmente possa ser
identificado algum elemento ideológico nesse comportamento, pois apesar de se verem
feridos os interesses da comunidade, ela reconhece tacitamente e pela inação, o direito do
empreendedor imobiliário efetivar seus objetivos, ainda que a custa da qualidade do ambiente
dos vizinhos.
Assim os altos edifícios vão se avolumando cada vez mais à volta da área de estudo, tornando
mais e mais verdadeira a percepção da área de estudo como uma ilha. Uma ilha de
tranqüilidade na Mooca.
O que os moradores parecem não perceber
Alguns aspectos do ambiente que os arquitetos valorizam, parecem passar despercebidos
pelos moradores. Destacam-se entre eles o posteamento e a fiação sobrecarregada, devido à
múltipla oferta de televisão a cabo e de Internet, além de toda a fiação elétrica e telefônica,
cujo volume torna-se muito visível.
Parecem não perceber, ou então aceitam como inevitável a ocupação do recuo frontal das
residências pelos abrigos para automóveis. Não parecem se dar conta da redução do ambiente
livre agregado à via pública por esses espaços, ou não atribuem valor a esse fato. Apesar
disso, o desrespeito à norma urbanística vai sendo responsável, pouco a pouco, pela
eliminação dos tradicionais jardins floridos das casas, eliminando o encanto que agregam ao
às ruas e reduzindo a presença do verde na área de estudo. Nas vias mais estreitas, a condição
de insolação do espaço público é afetada por essa prática.
197
As instituições do bairro
São várias as instituições de porte que são motivo de orgulho para os moradores da Mooca, e
que atestam o destaque do bairro no cenário urbano de São Paulo. Citam como uma das mais
tradicionais o Esporte Clube Juventus, cujo time de futebol tem tido momentos de glória e é
seguidamente motivo de alegria para seus torcedores. Mencionam o Parque da Cidade,
antigamente chamado Parque da Mooca, e que ocupa o espaço do antigo Hipódromo, que ali
funcionou até as primeiras décadas do século XX. Nessa grande área verde, estão localizadas
várias instituições públicas, entre as quais a Subprefeitura da Mooca, a Biblioteca Pública, e
outras. Essa área é a preferida pelo pessoal da terceira idade, para suas caminhadas e práticas
esportivas, sendo um importante ponto de encontro para essas pessoas. A Universidade São
Judas, localizada ali em frente, e que é obra do esforço de um casal de moradores da Mooca,
os Mesquitas, marcou a inserção da Mooca no circuito acadêmico da metrópole. Os
moradores mais letrados lembram-se de citar o Teatro Artur de Azevedo, que continuamente
oferece espetáculos e eventos culturais de boa qualidade aos habitantes do bairro. São
valorizados também os galpões industriais construídos no século XIX ou início do século XX,
festejando-se sua preservação, quando são reciclados para outros usos, como ocorreu com o
Moinho Santo Antônio, hoje um salão de festas, e com o edifício do Cotonifício Crespi, hoje
uma das lojas da rede de Supermercados Extra.
A rede de restaurantes da Mooca é considerada um patrimônio do bairro, oferecendo
alimentação de cozinhas variadas, com tônica, evidentemente, na comida italiana. São citadas
também as rotisseries tradicionais do bairro, cujas especialidades são as massas e doces
italianos, com destaque para a Dicunto, talvez a mais antiga e tradicional de todas.
A satisfação com o bairro
Não precisamos sair daqui para nada, declaram alguns moradores, aqui de tudo: escolas,
equipamentos de saúde, comércio e serviços de todo tipo. Cite alguma coisa qualquer
coisa que vo queira, desafiam, e você encontra na Mooca, e provavelmente a preço
melhor do que em outras partes da cidade.
198
O sentimento de satisfação com o bairro não impede entretanto a crítica justa: lamentam as
inundações recorrentes no período do verão, que afetam especialmente a "Mooca de baixo",
notadamente nas proximidades do cruzamento da Rua dos Trilhos com a Avenida Paes de
Barros. Sentem falta de uma arborização mais intensa em todo o bairro e lamentam também,
em alguns lugares o excesso de ruído causado pelo trânsito, especialmente em ruas como a
Leocádia Cintra, que tem comércio e por onde passam ônibus, mas que ainda é residencial
também. Nessa rua, por ser mais estreita do que a avenida, o ruído reverbera mais, por isso o
desconforto é maior. Nessas circunstâncias apenas os apartamentos de fundo gozam de
alguma tranqüilidade.
Outro aspecto muito valorizado por quem veio de fora e escolheu o bairro para morar, é a
legibilidade do ambiente, que facilita a pessoa nele se localizar. A Avenida Paes de Barros é
como uma grande espinha dorsal do bairro, explica uma moradora. Ela percorre as partes mais
altas da colina da Mooca, sendo por isso fácil de localizá-la no relevo, pois em qualquer parte
do bairro que se esteja, ela está sempre em cima. As outras ruas, ou são transversais ou
mais ou menos paralelas a esse eixo, sendo por isso difícil se perder na Mooca.
A proximidade do bairro ao centro da cidade e a fartura de transporte público, que inclui
ônibus, trem e acesso fácil ao metrô, levando o passageiro a qualquer ponto da metrópole, são
outros aspectos muito valorizados. Os filhos se deslocam com facilidade para a escola, e os
adultos muitas vezes preferem deixar o carro em casa e ir para o trabalho de transporte
público, evitando o desgaste de enfrentar como motoristas o trânsito pesado da cidade.
Mas sobretudo o que encanta na Mooca é são seus moradores, pois são alegres, cordiais e
muito receptivos com quem vem de fora. Vim para a Mooca porque eu e meu marido
resolvemos abrir nosso consultório aqui, logo que nos formamos, rememora uma moradora. –
Ainda não éramos casados, e a Mooca ficava mais ou menos a meio caminho da casa de meus
pais e a casa dos pais dele. Quando nos casamos, um ano depois, resolvemos vir morar
próximo ao consultório. eu me apaixonei pela Mooca e não quis mais sair daqui,
concluiu.
A Mooca é um bairro de São Paulo onde ainda se pode caminhar pelas ruas, sem medo de ser
assaltado. – É bom não ostentar demais, recomenda uma moradora: vista uma roupa simples e
não use jóias, e assim a caminhada é tranqüila. O relevo é suave e muita rua bonita para se
199
passear. Se não se quiser subir até a Avenida Paes de Barros, no alto da colina, é sempre
possível fazer um trajeto pela parte baixa, que exige menos esforço.
É possível que uma relativa homogeneidade sócio-econômica, ou talvez uma menor
discrepância social do que em outros bairros da cidade sejam os motivos que justifiquem essa
sensação de paz social que o morador tem na Mooca. Outro aspecto presente no bairro é que
mesmo aqueles que estão em uma condição econômica mais precária, encontram aqui um
ambiente de trabalho acolhedor e parecem sentir que têm a oportunidade de crescer
economicamente. O dono da loja comercial onde o migrante recente é empregado, não tem
origem social muito diferente daquela de seu funcionário. Trata-o sem muita distância,
mantidos os limites da hierarquia funcional. Por isso o empregado sente-se respeitado em sua
dignidade e estimulado a se empenhar.
ANTIGOS GALPÕES INDUSTRIAIS DA AVENIDA PAES DE BARROS RECICLADOS PARA
USO INSTITUCIONAL E DE COMÉRCIO E SERVIÇO –
NOVEMBRO DE 2005
O clima cordial é uma tônica e é muito visível nas relações entre vendedores e clientes,
especialmente nas lojas de pequeno e médio porte, como as da Rua da Mooca. Diferentemente
do tratamento padronizado e anônimo que se recebe em um supermercado, os funcionários
dessas lojas agem com espontaneidade, angariando com essa simpatia a preferência do
morador do bairro.
Ainda se compra fiado na Mooca, quando eventualmente se sai desprevenido e esqueceu-se a
carteira em casa; ainda compra-se "na caderneta", onde se assentam os débitos cotidianos,
para que sejam acertados mensalmente, na época do pagamento do salário.
200
Evidencia-se assim uma rede de relações de confiança construídas cotidianamente ao longo
do tempo. EssaS relações são claramente especializadas, pois o vendedor e todos os
moradores sabem onde encontrar um eventual devedor, em caso de necessidade.
A longa permanência no bairro revela a preferência ambiental, que explicita a aprovação
daquele bairro como local de moradia e local para se viver, revelando também a intensidade
dos laços sociais que se criaram. O morador que em determinado momento teve a casa
alugada em que vivia, requisitada pelo proprietário, ou que oportunamente se em condição
de adquirir a casa própria, procura algo nas imediações, para não se distanciar da convivência
diária como os vizinhos com os quais compartilha a amizade e o ambiente onde vivem
muitos anos. Ali ele reconhece as pessoas, ali ele é reconhecido – não é um estranho. Ali ele é
um cidadão membro da comunidade, ali ele tem identidade – e por isso se identifica tanto com
o lugar onde há muito reside. Sair de lá implicaria uma perda de raízes, e um longo e
eventualmente penoso trabalho de inserção em uma nova comunidade. O morador tem
consciência dos riscos que infelizmente espreitam vida afora. Por essa razão reforça ainda
mais seu sentimento de apreço e afeto pelo lugar.
O POR DO SOL E O ESPIGÃO DA AVENIDA PAULISTA
VISTOS DO ALTO DA RUA ADELAIDE DE FREITAS –
AGOSTO DE 2006
201
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Permanência talvez seja o termo que distingue a Mooca como bairro, e em especial a área de
estudo. Essa permanência se verifica tanto em seu ambiente físico como em sua estrutura
comunitária. O bairro teve sua configuração ambiental longamente preservada, tendo passado
por alguns períodos de alterações, quando as atividades econômicas do país mostravam uma
dinâmica maior, mas que nunca chegaram ao ponto de desfigurá-lo, pela eliminação repentina
de referências ambientais importantes. Alterações ocorreram, mas em um ritmo mais leve do
que em outras áreas da cidade, que se tornaram irreconhecíveis, como é o caso do Parque
Dom Pedro II, cujo exemplo se levanta aqui pela proximidade física com a Mooca e pela
dramaticidade da desfiguração levada a cabo.
Outro exemplo é o que ocorreu com a Avenida Alcântara Machado, a Radial Leste, que hoje é
um dos limites do bairro da Mooca. Sua implantação, que implicou numerosas
desapropriações e eliminou trechos de ruas e partes de quadras, deixou marcas e cicatrizes
urbanas visíveis até agora, décadas depois. Entretanto ela apenas tangenciou a Mooca,
preservando-a de alterações mais profundas. Outras alterações viárias tiveram caráter mais
localizado e menos extenso, como o caso do Viaduto Bresser, nas proximidades do Parque da
Cidade e o do viaduto da Rua da Mooca, que se deram de forma mais gradual e que foram
bem recebidos pelos moradores, que os incorporaram como uma evolução benéfica.
De forma mais acentuada as condições de permanência podem ser verificadas na área de
estudo, notadamente em suas quadras internas.
Implantada na década de 1930, e ocupada com certa rapidez, como o mostram as cartas
cadastrais da década de 1950, ela praticamente não se alterou desde então, excluídas as áreas
lindeiras às vias coletoras e à arterial que constituem seus limites. Ofereceu portanto um
ambiente físico estável, para referenciar as histórias de vida dos moradores que vieram se
instalar.
As pessoas que hoje estão na faixa dos oitenta anos, mais ou menos, são a segunda geração de
moradores dessa área. Alguns dos atuais moradores são filhos dessa segunda geração e outros
são seus netos, jovens adultos, que, constituindo família, buscam residência nas proximidades
das casas dos pais.
202
Poucos bairros de São Paulo apresentam essa condição de continuidade do ambiente físico,
acompanhando a evolução das histórias familiares. Ou eles se deterioram, e são abandonados
pelas famílias dos antigos moradores, que ao buscar outros bairros para residir, se dispersam,
desagregando a comunidade que existia; ou então eles se adensam, mediante verticalização,
promovendo a substituição das famílias que aí residiam anteriormente, por um sem número de
novos moradores, desconhecidos entre si.
Essa característica da área de estudo ofereceu uma condição de estabilidade das relações
sociais, que é permeada por uma sensação de segurança no presente e de confiança no futuro,
pois ele vem correspondendo às expectativas dessas famílias, algumas gerações. Essas
expectativas têm sido atendidas para todo um conjunto de famílias que, enfrentando lado a
lado momentos difíceis, e amparando-se mutuamente em situações de crises mais agudas,
foram assistindo ao sucesso de toda uma comunidade, ao mesmo tempo em que alcançavam o
seu próprio. Assim estabeleceram-se e reafirmaram-se laços de solidariedade, de respeito, de
afeto e de amizade.
O morador dessa área, ao repetir os pequenos rituais sociais do cotidiano, talvez não se dê
conta da importância que isso representa para reafirmar sua sensação de segurança e de bem
estar. Mas seus sentimentos, que crescem e se estruturam nesse mesmo ambiente ao lado das
mesmas pessoas, certamente registram esse fato, pois ele se estampa em seu semblante e se
expressa em seu comportamento social, quando sai à rua e saúda seus antigos companheiros
de bairro ou quando acolhe um novo morador recém-chegado.
Assim a vida prossegue seu caminho, que certamente inclui atribulações, mas que
provavelmente serão suportadas com menores penas, devido às condições desse ambiente que
se mostra acolhedor.
Que aspectos do ambiente físico podem ter contribuído para essas condições?
A rede viária cuja configuração fortuita promoveu uma particular condição de controle do
tráfego de passagem poderá responder em parte pela qualidade do ambiente?
203
As leis de zoneamento, que preservaram as condições de uso e ocupação do solo, vigentes nos
períodos iniciais da área de estudo, podem ter contribuído para a tranqüilidade do ambiente
físico e social? A propósito disso deve-se lembrar que a primeira lei do zoneamento de São
Paulo, datada de 1972, teve o caráter bastante generalizado de confirmação do uso do solo
encontrado em toda a cidade naquela época, o que não é portanto distintivo desta área. Já o
fato de seu uso e ocupação do solo terem sofrido muito pouca alteração, e de seu zoneamento
ter sido reafirmado pela lei de 2004, é algo particular dessa área: ela permanece muito
próxima ao que era em seus momentos iniciais de existência, enquanto outras áreas da cidade
tiveram seu zoneamento alterado, muitas vezes em decorrência de fortes pressões dos agentes
imobiliários, o que permitiu sensíveis mudanças ambiente.
Será que a rede viária que protege a área de estudo do trânsito de passagem reduziu a
visibilidade dela para eventuais compradores de imóveis, tornando-a por isso desinteressante
para os agentes imobiliários, que dependem disso para efetivar suas vendas?
Ou terão sido alguns membros da comunidade que prezaram a permanência de seu ambiente e
agiram no sentido de preservá-lo em suas características originais? Poderá ter sido a
comunidade organizada, nucleada por sua igreja, a responsável pela resistência a indesejáveis
alterações? Ou ainda terão os valores da etnia italiana, muito presente na comunidade,
contribuído para essa preservação do ambiente?
Provavelmente o conjunto desses fatores tenha se articulado de maneira positiva para garantir
a permanência do quadro ambiental que os moradores tanto apreciam.
Para o arquiteto, o quadro conceitual e a avaliação do ambiente efetivada pelos moradores
propõem ensinamentos e reflexões.
O primeiro ponto a destacar talvez seja a existência de diferenças de percepção entre o
profissional e os moradores, do que decorre a necessidade de conhecê-las e respeitá-las. Essa
necessidade remete à interdisciplinaridade da abordagem do ambiente. Se cabe ao arquiteto
focar o ambiente em seus aspectos físicos e formais, pois essa é a tônica de seu trabalho, ele
deve fazê-lo tendo em vista a comunidade de moradores, cuja contribuição para a concepção e
o projeto do ambiente deve ser considerada de maneira cada vez mais freqüente. Deverá
também estar atento à intima e delicada relação do tecido social com o tecido urbano. Um e
204
outro são como a trama e a urdidura de uma mesma tela onde se desenrola a vida urbana. A
nova avenida, que rasga o bairro, rasga também o coração da comunidade. Deixa cicatrizes
duradouras na cidade, mas deixa dilacerada a comunidade diretamente afetada, que se
dispersa, para não mais se recompor.
Uma nova consciência se oferece ao arquiteto frente ao ambiente urbano.
Prevenir é melhor do que remediar, ensina a antiga sabedoria, mas quando a cidade se mostrar
doente, e a "intervenção" se fizer necessária, mediante uma "operação urbana", que se
considerem todas as conseqüências sociais decorrentes e sobretudo que não se faça em
favorecimento de alguns, em detrimento de outros.
***
Três olhares sobre a cidade foram ensaiados nesse trabalho: o tradicional olhar inquiridor,
preciso e analítico do técnico; o olhar do historiador, que estabelece um cenário que permite
situar as histórias de vida de cada morador, em um processo coletivo; o olhar sensível, que
associado a um ouvido acolhedor, aprende que nada tem sentido, se não for para promover a
realização dos potenciais do ser humano em toda sua plenitude. Esses três olhares se
complementam e ensinam que a cidade é o ambiente privilegiado para a ventura da vida.
***
Epílogo
–A Mooca esteve dormindo longamente, declarou uma moradora, ao se referir ao mercado
imobiliário no bairro. Parece que por isso o bairro foi preservado, tendo sofrido poucas
transformações, em geral bem absorvidas pelos moradores e que não conturbaram a paz do
ambiente. Agora parece que ela foi despertada. Esperamos que o despertar tenha sido
motivado por princípios valorosos e generosos, e que a conduzam para um futuro promissor.
Que o porvir confirme o destino da Mooca como ambiente acolhedor, ao qual fazem jus seus
moradores.
205
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