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Ines Karin Linke Ferreira
INTER/LOC/AÇÃO
A CONCEPÇÃO DA OBRA E SUAS DEPENDÊNCIAS ESPACIAIS
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em Artes da Escola de Belas Artes da
Universidade Federal de Minas Gerais, como exigência
parcial para obtenção do título de Mestre em Artes
Área de concentração: Arte e Tecnologia da Imagem
Orientador: Prof. Dr. Stéphane Huchet
Belo Horizonte
Escola de Belas Artes da UFMG
2008
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Linke, Ines, 1971-
Inter/loc/ação: a concepção da obra e suas dependências
espaciais / Ines Karin Linke Ferreira. - 2008.
140 f : il.
Orientador: Stéphane Huchet
Dissertação (mestrado) - Universidade Federal de
Minas Gerais, Escola de Belas Artes, 2007
1. Artes plásticas e Teatro – Teses 2. Criação
(Literária, artística, etc ) – Teses 3. Espaço (Arte) –
Teses 5. Percepção visual na arte – Teses I. Huchet,
Stéphane, II. Universidade Federal de Minas Gerais.
Escola de Belas Artes III. Título.
CDD: 701.15
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AGRADECIMENTOS
Agradeço a Stéphane, pela orientação; a Louise, pela colaboração; a Guiomar,
pela generosidade; a Maldita, pelas vivências; a Leo, pela inspiração; a Eduardo,
pelas correções; a Fabíola, pelo olhar crítico; a Zina, pela paciência e a todos os
amigos, colegas, professores e funcionários, pelas contribuições diretas e
indiretas.
Arte é chamada para acompanhar o homem em todos os lugares onde sua vida
incansável acontece e atua: na bancada de trabalho, no escritório, no trabalho,
no descanso e no lazer; nos dias de trabalho e feriados, em casa e na estrada,
de forma que a chama da vida não se apague no ser humano.
Pevsner e Gabo
O mundo não é um objeto do qual possuo comigo a lei da constituição; ele é o
meu natural e o campo de todos os meus pensamentos e de todas as minhas
percepções explícitas. A verdade não “habita” apenas no “homem interior”, ou,
antes, não existe homem interior, o homem está no mundo, é no mundo que ele
se conhece.
Maurice Merleau-Ponty
A forma de vida é o processo de criação do espaço.
Milton Santos
[...] desde que a arte passa a trabalhar qualquer matéria do mundo e nele
interferir diretamente, explicita-se de modo mais contundente que a arte é uma
prática de problematização, decifração de signos, produção de sentido, criação
de mundos.
Peter Pál Pelbart
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 11
2 A REATIVAÇÃO DOS SENTIDOS 21
3 A DIMENSÃO SENSÍVEL 39
4 A DIMENSÃO FENOMENOLÓGICA 62
5 A DIMENSÃO EXPOSITIVA 100
6 CONCLUSÃO 125
REFERÊNCIAS 134
APÊNDICE 138
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
Figura 1 - Robert Morris, Column. Nova Iorque, 1960.
Figura 2 - Ines Linke. Seminário: o artesão do corpo sem órgãos. Belo
Horizonte, 2002.
Figura 3 - Ines Linke. Rua Maria Martins Guimarães. Belo Horizonte, 2007.
Figura 4 - Dennis Oppenheim. Material interchange. In: Aspen Projects,
2:44min, 1970.
Figura 5 - Dennis Oppenheim. Parallel Stress. Nova Iorque, 1970.
Figura 6 - Ines Linke. Cidade Cenográfica. Montagem Fotográfica. Belo
Horizonte, 2006.
Figura 7 - Rodrigo Borges, Ines Linke e Fabíola Tasca. Registro fotográfico.
2004.
Figura 8 - Rodrigo Borges, Ines Linke e Fabíola Tasca. Registro fotográfico.
2005.
Figura 9 - Rodrigo Borges, Ines Linke e Fabíola Tasca. Perímetro. Belo
Horizonte, 2005.
Figura 10 - Rodrigo Borges, Ines Linke e Fabíola Tasca. Perímetro. Belo
Horizonte, 2005.
Figura 11 - Peter Greenway. The stairs. Geneva, 1994.
Figura 12 - Dennis Oppenheim. Viewing station. 1969.
Figura 13 - Ines Linke e Louise Ganz. Topografia. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 14 - Ines Linke e Louise Ganz. Topografia. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 15 - Ines Linke e Louise Ganz. Banquete. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 16 - Ines Linke e Louise Ganz. Banquete. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 17 - Ines Linke e Louise Ganz. Cabeleireiro. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 18 - Ines Linke e Louise Ganz. Cabeleireiro. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 19 - Ines Linke e Louise Ganz. Brinquedos. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 20 - Ines Linke e Louise Ganz. Praia. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 21 - Ines Linke e Louise Ganz. Exhibição. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 22 - Ines Linke e Louise Ganz. Exhibição. In: M2, 52:00min, 2006.
Figura 23 - Robert Smithson. Um passeio pelos monumentos de Passaic. Nova
Jersey, 1967.
Figura 24 - Ines Linke e Louise Ganz. Registro fotográfico. Nova Lima, 2006.
Figura 25 - Ines Linke e Louise Ganz. Registro fotográfico. Aglomerado da
Serra, 2006.
Figura 26 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1, Montagem fotográfica. Belo
Horizonte, 2007.
Figura 27 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1 - Construção. Tecido branco,
Ø100cm. Nova Lima, 2007.
Figura 28 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1 - Construção. Tecido branco,
Ø100cm. Nova Lima, 2007.
Figura 29 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1. Caixa com textos impressos,
11x9cm. Nova Lima, 2007.
Figura 30 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1. Montagem fotográfica. Nova
Lima, 2007.
Figura 31 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2. Montagem fotográfica, Belo
Horizonte, 2007.
Figura 32 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construção 2. Tapete
vermelho, camas e pelúcia amarela, 400x400cm². Belo Horizonte,
2007.
Figura 33 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construção 3. Tapete
vermelho e bóias verdes, 400x400cm². Belo Horizonte, 2007.
Figura 34 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construção 1. Tapete
vermelho, mesas, cadeiras, toalhas e louças, 300x400cm². Belo
Horizonte, 2007.
Figura 35 - Percurso 1 - Lona com impressão fotográfica, 2.200x200cm². Belo
Horizonte, 2007.
Figura 36 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construção 1. Tapete
vermelho, mesas, bancos, toalha com impressão fotográfica
(300x140cm²), 300x400cm². Galeria Arlinda Corrêa Lima, Belo
Horizonte, 2007.
Figura 37 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 - Construção 3. Almofada de
lona com impressão fotográfica, 300x400cm². Galeria Arlinda Corrêa
Lima, Belo Horizonte, 2007.
Figura 38 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 2 – Construção 2. Tapete
vermelho, camas, lençóis com impressão fotográfica (280x140cm²),
400x400cm². Galeria Arlinda Corrêa Lima, Belo Horizonte, 2007.
Figura 39 - Ines Linke e Louise Ganz. Percursos. Registro fotográfico. Galeria
Arlinda Corrêa Lima, Belo Horizonte, 2007.
Figura 40 - Michel Asher. Vista de instalação. Galeria Claire Copley, Los
Angeles, 1974.
Figura 41 - Michel Asher. Vista de intervenção. 73rd Exibição Americana, Art
Institute, Chicago, 1979.
Figura 42 - Ines Linke e Louise Ganz. Percurso 1. Ambiente, lona com
impressão fotográfica (2,200x200cm²), 57m². Galeria Arlinda Corrêa
Lima, Belo Horizonte, 2007.
Figura 43 - Ines Linke e Louise Ganz. Percursos. Registro fotográfico. Galeria
Arlinda Corrêa Lima, Belo Horizonte, 2007.
Figura 44 - Ines Linke e Louise Ganz. Percursos. Registro fotográfico. Galeria
Arlinda Corrêa Lima, Belo Horizonte, 2007.
Figura 45 - Ines Linke e Louise Ganz. Percursos. Registro fotográfico. Galeria
Arlinda Corrêa Lima, Belo Horizonte, 2007.
RESUMO
Esta dissertação desenvolve uma reflexão sobre a concepção da obra artística e
suas dependências espaciais. Procuro refletir sobre as dimensões sensível,
fenomenológica e expositiva da obra de arte, a partir da discussão de
determinados trabalhos plásticos e cênicos realizados em Belo Horizonte entre
2002 e 2007. Recorro a conceitos e questões do teatro e das artes plásticas para
analisar a intersecção dos dois campos. Repenso a instalação e o site para
fundamentar a experiência como uma troca entre instâncias ou um encontro capaz
de criar novas localidades e noções de realidades no cruzamento entre arte e
vida. Os trabalhos são criados em relação e a partir de elementos do cotidiano.
Mas como criar uma noção do real que re-estabelece o prazer das coisas
comuns? A proposta é o deslocamento do espaço estético para a experiência
cotidiana e a busca de encontros entre colegas de trabalho, relões com lugares
do entorno e ações que permitem processos de sociabilidade fora e dentro do
espaço institucional da galeria. Com o intuito de articular uma interlocução entre
as práticas teatrais e visuais desenvolvo procedimentos de conscientização,
apropriação e deslocamentos de lugares e objetos existentes para pesquisar a
relação de objetos, lugares e pessoas dentro da perspectiva da vivência estética e
da ação artística.
Palavras-chave: artes plásticas e teatro – criação – espaço – percepção visual na
arte.
ABSTRACT
This paper develops a reflection on the conception of the artistic work and its
spatial dependencies and searches to reflect on the sensitive and
phenomenological dimensions and the exhibition of the work of art based on the
discussion of certain plastic and scenic works, which were realized in Belo
Horizonte between 2002 and 2007. The paper considers concepts and issues of
Theater and Visual Arts to examine the intersection between the two fields and
reevaluates the installation and the site to establish the experience as an exchange
or a meeting between instances, which are capable of creating new locations and
concepts of realities that are located between art and life. The works are created in
regards to and based on elements of everyday life. But how does one create a
sense of reality that re-establishes the pleasure of common things? The proposal is
to displace the aesthetic space to daily experiences, promote exchange between
colleagues and create relations with surrounding places and actions that allow
processes of sociability outside and within the institutional space of a gallery.
Aiming at articulating an interlocution between visual and theatrical practices, the
artist develops procedures such as awareness, appropriation and displacements of
existing places and objects to investigate the relationship of objects, places and
people within the fields of esthetic experience and artistic action.
Key words: plastic arts and theater – creation – space – visual perception in the
arts.
1 INTRODUÇÃO
Os homens, reduzidos à condição de suporte de valor, assistem
atônitos ao desmanchamento de seus modos de vida. Passam
então a se organizar segundo padrões universais, que os
serializam e os individualizam. Esvazia-se o caráter processual de
suas existências: pouco a pouco, eles vão se insensibilizando. A
experiência deixa de funcionar como referência para a criação de
modos de organização do cotidiano: interrompem-se os processos
de individualização (ROLNIK, 1986, p.38).
Ao discutir questões que envolvem os processos de subjetivação,
desejos, fluxos de inconsciente e processos de universos psicosociais, Rolnik
(1986) assinala que fazemos parte de um campo social normalizado no qual se
fabricam subjetividades serializadas. Somos produzidos como suporte de valores
numa hierarquia de identidades reconhecidas dentro de um espaço opressor das
representações pre-estabeleciadas. O corpo violado, invadido, colonizado e a vida
expropriada, reduzida a seu mínimo, à vida nua, à vida reduzida ao estado de
mera atualidade, indiferença, impotência e banalidade biológica. De acordo com a
autora, a subjetividade foi reduzida ao corpo, à sua aparência, imagem,
performance, saúde, longevidade, conforme modelos preestabelecidos. Criou-se
uma cidade das imagens, uma cidade cenográfica
1
, que levou a uma crise de
visibilidade; o excesso de superfícies visíveis leva à invisibilidade das coisas. Pela
saturação dos olhos, as imagens são desvalorizadas e criou-se certa imunidade e
indiferença nas pessoas. Tendo perdido a capacidade de olhar e perceber,
transferiram-se as vivências do corpo para um presente fixo e estável da sua
imagem, ou seja, um mundo no qual o presente é ausente.
Todos vivemos quase que cotidianamente em crise; crise da
economia, especialmente do desejo, crise dos modos que vamos
encontrando para nos ajeitar na vida. [...] Vivemos sempre em
defasagem em relação à atualidade de nossas experiências
(ROLNIK, 1986, p.12).
1
Ultilizo este termo para referir-me à cidade que se apresenta como realidade fixa, que diferencio
posteriormente da teatralização dos espaços capaz de desestabelizar a noção do real fixo a partir
da encenação de contradições existentes.
As relações de alienação e opressão influenciam todas as atividades,
as relações entre pessoas e a nossa circulão no campo social. Dessa maneira
perdemos o controle sobre a construção da nossa realidade. Somos produtos de
uma sociedade que se empenha em produzir indivíduos normalizados,
articulados, conectados uns aos outros segundo sistemas hierárquicos, sistemas
de valores, sistemas de submissão. Na cidade, experimentamos espaços,
condicionamentos ou confinamentos similares ao ambiente de uma prisão.
Em uma visita da Maldita
2
à penitenciaria feminina Estevão Pinto
3
,
localizada em Belo Horizonte, observamos a organização de um organismo
eficiente cujo conjunto de diversos componentes forma um corpo coletivo. A
guarda apresentou esse conjunto como organismo inteligente, auto-suficiente,
autônomo, em que normas e procedimentos fixos regulam os comportamentos do
dia-a-dia. Tudo é funcional e prático. Para tudo existem soluções prefiguradas.
Um conhecimento antecipado prevê todos os acontecimentos, e o organismo
eficaz reage antecipadamente, antes que qualquer coisa possa acontecer. É um
projeto de dissolução da individualidade, da desmaterialização psicológica e física
dos indivíduos; agora o corpo constitui uma parte padronizada e funcional de um
mecanismo maior.
Na prisão, a triagem permite um tempo para a normalização e a
adaptação ao funcionamento. Ela abre o caminho da participação e das escolhas
previamente determinadas. Para superar o tédio, pode se exercer uma atividade,
um trabalho repetitivo, terminar pilhas infinitas de abas de bonés para a próxima
campanha eleitoral ou colar as alegres bandeirinhas para as festas juninas,
2
A Maldita -Companhia de Investigação Teatral de Belo Horizonte, Minas Gerais, nasceu em 2002
do encontro de profissionais com trajetórias de experiências diversas. Do desejo comum de abrir
caminhos e instrumentos com os quais possam estabelecer a socialização da escrita cênica, a
experimentação do processo colaborativo e a investigação de mecanismos épico-dramáticos,
juntaram-se, inicialmente, Amaury Borges e Lenine Martins (diretores e atores), Lissandra
Guimarães (atriz), Nina Caetano (dramaturga), Ricardo Garcia (diretor musical) e a artista plástica
Ines Linke. O grupo pesquisa, por meio da polifonia de funções, mecanismos para o
estabelecimento de uma linguagem épico-dramática. Dentro dessa perspectiva, está presente a
experimentação da atuação, do espaço físico, de objetos, da sonoplastia, da iluminação e da
dramaturgia.
3
Visita realizada no dia 3 de maio de 2006.
diariamente, por horas a fio em uma monotonia triste. O direito de trabalhar é
adquirido pela obrigação de estudar. Submetendo-se aos testes necessários e
agendando com antecedência, pode-se ter uma vida sexual nos finais de semana
ou nas horas vagas que não são destinadas para o repouso obrigatório. Tudo e
todos funcionam de acordo com o relógio. A distribuição de funções e
responsabilidades individuais faz o corpo coletivo funcionar impecavelmente.
Criou-se um espaço que propõe estímulos de uma higiene física e mental. Um
projeto formal, estético e a visualidade do corpo roubado
4
incorporaram-se à
funcionalidade integrada dos espaços específicos de cada atividade.
A mortificação do cotidiano e a modelização do comportamento dentro
de uma ordem social rígida resultam em uma evasão do real, uma perda da
integridade do corpo e da propriocepção - da percepção espacial do eu no tempo
presente - tamm fora da prisão. A redução da capacidade perceptiva na vida
urbana gera uma visão limitada dentro dos moldes e das maneiras existentes de
ver o mundo. As pessoas perderam a capacidade de reconhecer sua cinesfera, o
espaço individual do corpo que se movimenta e se vêem como imagens
construídas a partir de categorias predefinidas pelo olhar do outro.
Como resposta a essa condição, Rolnik (1986) propõe a recusa dos
modos estabelecidos para construir modos de sensibilidade, modos de relação
com o outro, modos de produção que geram processos de singularização. A
criação de subjetividades singulares, conforme a autora, é a base necessária
para produzir relações efetivas e sair das esferas fechadas sobre si mesmas.
Para orientar e organizar no mundo, Rolnik (1986) enfatiza a importância dos
processos de subjetivação. O tempo presente se constrói a partir da interação e
de formas dialógicas entre as pessoas e proximidades com o entorno. A
existência sensorial é a base da propriocepção a qual é necessária para se viver
o presente corporal e imageticamente.
4
Antonin Artaud usa a iia do corpo roubado para expressar a impotência do corpo oprimido de
possuir a vida. Este conceito forma a base de sua busca do corpo sem órgãos para o Teatro da
Crueldade.
As situações e trabalhos reunidos nesta dissertação partem da idéia de
criar agenciamentos individuais e coletivos de processos de subjetivação como
uma tentativa de manifestar a impotência e de re-apropriar-se do “[...] corpo
roubado” (ARTAUD, 1984, p.17). Vivencias, situações e os desdobramentos
dessas ações estabelecem novas relações entre objetos, corpos e espaços.
Associando essas experiências a diferentes dimensões procuro ver o presente,
estar no presente e criar o presente como estratégia de viver ou de sobreviver e
refletir sobre a relação entre arte-vida.
Neste texto, desenvolvo uma conscientização, a partir da realização de
trabalhos recentes, sobre a conceituação da obra de arte e suas dependências
espaciais. Reflito sobre a concepção da obra de arte em relação ao espaço como
estímulo inicial, suporte e meio do trabalho e a sua recepção. Inter/loc/ação
investiga as funções espaciais, por meio da análise desses trabalhos em
associação com obras de diversos artistas e categorias criticas e teóricas do
teatro e das artes plásticas, enfocando, sobretudo, a percepção estética de
elementos do cotidiano, a apropriação e a reinvenção de diferentes espaços.
Repenso, a partir dos trabalhos individuais e coletivos, as práticas artísticas
existentes, como a instalação e a obra lugar-específica, para fundamentar a
experiência estética como uma troca entre instâncias ou um encontro que
interdependem de sistemas. Nesta dissertação investigo procedimentos estéticos
a partir de localidades dentro da perspectiva da ocupação, instalação e
intervenção em um lugar que chamo de cidade cenográfica
5
.
Com a estruturação do texto reflito o processo e as mudanças de
pensamento ocorridas no contexto do meu trabalho cenográfico e artístico ao
longo dos últimos anos. De um título provisório, Simbiose espacial, que visou
investigar a contribuição dos espaços na produção de sentido a partir de
deslocamentos, a dissertação passou a tratar de questões de cenobiose, da vida
em conjunto; uma investigação das interações entre lugares, ações e diálogos:
5
A idéia da cidade cenográfica aponta que a representacionalidade é uma propriedade
fundamental de todos os lugares em nosso entorno e se contrapõe à definição convencional do
espaço urbano externo como um espaço mais real que uma construção ou um interior.
Inter/loc/ação: a concepção da obra e suas dependências espaçiais. A
experiência dos trabalhos realizados na grande maioria ao longo do
desenvolvimento do texto escrito, visava inicialmente ilustrar uma reflexão teórica,
mas passava a ganhar importância no decorrer do processo e construiu
referências práticas próprias que correspondem ao que Guattari e Rolnik (1986)
chamam de revolução molecular. Esta revolução ocorreu no plano individual e
continua como desejo que visa a re-criação de modos de organização do
cotidiano, a invenção de novas formas pessoais e interpessoais e o
desenvolvimento de agenciamentos em que as pessoas criam a vida para si
próprio e podem retomar a própria ação cotidiana em coletivo.
Nos diferentes espaços, o evento cênico, a instalação, a arte ambiental
e a teatralização de procedimentos artísticos permitem, mas tamm regulam, a
interação de pessoas nos espaços. Cria-se um encontro que transforma o público
em participante. Mas quais são os critérios dessa participação e como é criada
uma colaboração efetiva? Quais são as diferenças de trabalhar em espaços
institucionais da arte e em espaços outros?
Relato o processo de criação de uma exposição que dialoga com as
situações criadas em uma instância anterior. Os trabalhos in situ são analisados
durante a escolha de um lugar, a sua percepção, a intervenção e o
deslocamento, visando não a documentação de um evento, mas a análise de um
procedimento processual que, num quarto momento, torna-se público no ato de
ser exposto. Exibe-se um trabalho, um modo de fazer, um procedimento em uma
galeria. Quais questões são pertinentes para deslocar uma situação e suas
diversas instâncias de criação, o que interessa na concepção e apresentação de
um trabalho em uma galeria
6
? As discussões nesses seis capítulos, que formam
o corpo da dissertação, são conduzidas por diferentes processos de criação e
permeadas pelos diálogos com Louise Ganz
7
durante a elaboração de dois
projetos específicos chamados de Percurso 1 e Percurso 2. Na conclusão,
6
Percursos, Galeria Arlindo Corrêa Lima, Palácio das Artes, Belo Horizonte. Exposição de dois
trabalhos desenvolvidos por Ines Linke e Louise Ganz em 2006 e 2007.
7
Louise Marie Cardoso Ganz, (1964- , Belo Horizonte) é arquiteta e artista plástica.
reapresento os questionamentos que foram feitos nos capítulos anteriores. As
perguntas são reavaliadas e respondidas a partir das experiências dos trabalhos
realizados e citados anteriormente.
Problematizo ao longo da dissertação o relacionamento do artista com
o seu entorno e com os espaços encontrados. Na associação entre o campo
teatral, artístico e urbano objetivo ampliar a experiência e as potencialidades no
espaço urbano. O desafio dos trabalhos se coloca em projetar as proposições
com os espaços e as pessoas. Isso predispõe à própria percepção, ao ato
vivencial e ao estabelecimento de relações e interações em que o espaço e o
evento se retro-alimentam. Viso ocupar um vazio relacional, o corpo como interior
e a cidade como interior, para iniciar um processo que reverte a alienação e no
qual a experiência estabelece acontecimentos, trocas entre instâncias e
encontros capazes de criar novas cenas e noções de realidades.
Pretendo contestar a conclusão sobre o cubo branco da galeria e a
caixa preta do teatro como contra-modelos da arte pública e da intervenção e
defender uma postura em que todos os espaços são adequados para trabalhar a
cidade e criar uma interseção entre arte e vida para um público. As artes plásticas
e cênicas dispõem de campos de investigação análogos e procedimentos
parecidos, na medida em que ambas perseguem o objetivo de criar a
possibilidade de uma experiência física e/ou mental para o espectador/público,
que, ao experimentar o evento, ao entrar no trabalho, cria seus próprios
processos de subjetivação. Nos dois casos, o encontro com o espectador/público
gera um todo indivisível, uma soma da percepção dos objetos, da experiência
sensorial e da interação com o lugar.
Para refletir sobre o processo de criação dos trabalhos e para
sistematizar os procedimentos de elaboração das idéias penso os trabalhos
plásticos e cenográficos como uma seqüência sucessiva de três instâncias:
percepção, intervenção e deslocamento. Três operações que formam um
conjunto que se completa e nas quais se considera o espaço como ponto de
partida; lugares a serem observados, contemplados, escolhidos, ocupados,
reconstruídos e vividos. As críticas teóricas e práticas que reverberaram no meu
trabalho e que perpassam esta dissertação falam de percepção, de momentos
estéticos, de participação e de intervenções em lugares e sistemas que
extrapolam as práticas do sistema tradicional das artes plásticas.
O crítico e teórico, Jack Burnham lança em vários textos
8
uma hipótese
sobre arte no tempo real. Ele aponta a mudança de uma cultura de objetos para
uma cultura na qual práticas artísticas invocam ou operam como sistemas. Por
meio da noção de ambiente e da compreensão das práticas artísticas como
estéticas de sistemas, J. Burnham visa um papel importante para o artista na
cultura contemporânea. A aproximação das práticas artísticas via sistemas amplia
sua atuação para um campo de conceitos que vai além dos limites dos campos e
disciplinas artísticas existentes. Para J. Burnham, qualquer situação (contendo
pessoas, idéias, mensagens etc.) dentro ou fora do sistema de arte pode ser
projetada ou analisada como um complexo de interações consistindo de material,
energia e informação em diferentes graus de organização. Para o autor, o artista
se confronta com um sistema considerando metas, limites, estrutura e consegue
alterar a consistência desse sistema em tempo e espaço
9
. Assim, os artistas
prefiguram a transformação necessária do homo faber para o homo arbiter
formae, o fazedor de decisões estéticas, o propositor que determinaria como
invenções da civilização industrial seriam usadas e como a sociedade se
organizaria.
A partir do conceito da heterotopia de Michel Foucault, busco
estabelecer a teatralidade
10
dos outros lugares como possibilidades de
resistência ao isolamento, ao esvaziamento e à espetacularização da vida
contemporânea. Em seu ensaio, De outros espaços (FOUCAULT, 1998), fala da
8
“Systems esthetics”, “Real time systems” e “Beyond sculpture: the effects of science and
technology on the sculpture of this century”.
9
Em Estética de sistemas Burnham visa compreender e delinear as práticas de artistas como
Marcel Duchamp, Laszlo Moholy Nagy, o grupo GRAV, Robert Morris, Robert Smithson, Carl
André, Dan Flavin e Hans Haacke como pessoas preocupadas com os meios de pesquisa e
produção.
10
A teatralidade, a partir de um modelo polifônico que quebra as unidades aristotélicas, valoriza o
caráter transitório do instante presente e opõe-se à idéia de uma realidade fixa.
experiência com o mundo como uma rede de interseções não de pontos
homogêneos, mas de sites especializados e reservados para a projeção do
sujeito. O site, segundo ele, é um lugar vivo, totalmente imerso numa rede de
conexões em constante movimento e é a partir dessa rede, dessa série de
relações construídas que se delineiam ostios. O autor desenvolve diferentes
formas de relações entre sites. A primeira ele denomina sítios utópicos, irreais,
aperfeiçoados e idealizados, lugares que são livres de impurezas e imunes ao
mundo exterior. Para ele, o cubo branco nas artes plásticas e a caixa preta no
teatro são representativos desses espaços homogêneos que supostamente
excluem qualquer interferência externa. E, à segunda forma, ele se refere como
sítios heterotópicos nos quais existe a justaposição ou a combinação de vários
lugares em um único espaço. Tais sobreposições simultâneas criam espaços que
não dêm limites geográficos mesmo mostrando posições exatas. Os espaços são
acumulativos, sobrepostos, sítios contraditórios onde uma série de lugares se
reúnem ou se sucedem como no caso das heterotopias transitórias nas quais os
elementos se apropriam temporariamente de um site
11
. Penso que os elementos
da cidade cenográfica não são fixos, mas coexistem e se complementam num
modelo polifônico, heterotópico.
Os trabalhos teatrais e artísticos deste texto lidam como os diferentes
sites, ruas, lotes, praças, edificações e galerias, não como sítios utópicos neutros
e imunes, mas com sítios heterotópicos. As ações propõem outros lugares,
transformações que lidam com o ser humano em constante processo, e
possibilitam maneiras de pensar como o indivíduo que age sobre o ambiente
conscientemente pode entrar em processo de desalienação. Os trabalhos que
compõem a dissertação Inter/loc/ação empregam conscientemente métodos e
procedimentos que partem da observação da infra-estrutura, da arquitetura e das
características e códigos de espaços para a criação de novas situações e
11
Utilizo esse termo em detrimento de local. O site refere-se ao local existente escolhido como
lugar da ação ou meio e suporte de um trabalho.
imagens. Associo propositalmente o conceito de arte à iia da utopia
12
, um lugar
fictício e imaginado que suscita o espectador. Quero pensar a relação entre
objetos, pessoas e lugares para criar possibilidades do espaço de encontro entre
eu e o mundo exterior. Procuro privilegiar os acontecimentos e provocar acasos,
tanto no processo de criação como no encontro com o espectador/colaborador.
Os trabalhos, que formam a base desta dissertação, são continuação
da minha pesquisa na área de cenografia, desenvolvida desde 2002 dentro da
Maldita, companhia de investigação teatral, que resultou na ocupação de diversos
espaços abandonados em Minas Gerais e do meu envolvimento com o projeto
Lotes Vagos, em 2005, com um trabalho coletivo intitulado Perímetro
13
e seus
desdobramentos, o documentário M2-Metros Quadrados, em 2006, e o projeto
Percursos, em 2007, ambos desenvolvidos em conjunto com Louise Ganz
14
. Para
a realização do documentário M2-Metros Quadrados
15
, que tem como objeto
principal e ponto de partida o projeto Lotes Vagos, foram desenvolvidas seis
ações coletivamente. As situações surgiram a partir de uma reflexão sobre
comportamentos, estratégias artísticas e pensamentos políticos que visam
problematizar a relação entre o homem e a cidade.
Os diálogos que proponho nos trabalhos práticos cênicos e plásticos,
dos quais alguns integram este texto, formam parte da tentativa de achar um
processo de interlocação, uma maneira de trabalho que corresponde aos meus
objetivos. O próprio diálogo nos processos criativos da Maldita e nos trabalhos
com Louise, que é a base da colaboração, é um mecanismo de desalienação. Ele
promove encontros e trocas que implicam mudanças. Essa capacidade da
conversa me faz acreditar que ela, como forma, é pertinente aos trabalhos
12
Nome de um país imaginário criado em 1480 pelo escritor inglês Thomas More.
13
Trabalho realizado por Fabíola Tasca, Ines Linke e Rodrigo Borges.
14
Ines Linke e Louise Ganz começaram, em janeiro de 2006, a realizar passeios em Belo
Horizonte e em seu entorno (Lebenswelt) e criar intervenções que interferem na espacialidade dos
lugares.
15
O documentário M2-Metros Quadrados (52’) discute as noções de público e privado em diversos
campos, enfocando, sobretudo, o potencial de lotes vagos e áreas residuais para serem usados
coletivamente, a partir das diretrizes do projeto Lotes Vagos.
desenvolvidos, nos quais tento abolir hierarquias e criar situações capazes de
sustentar o espírito coletivo do encontro.
Em a reativação dos sentidos (capítulo 2), a segunda das seis partes
da dissertação, após esta breve introdução, procuro situar historicamente o
surgimento dos parâmetros que influenciam minhas produções artísticas por meio
da concepção e da recepção estética de obras minimalistas, instalações e
intervenções. Viso significar a saída do quadro para introduzir a terceira parte, a
dimensão sensível (capítulo 3) que desenvolve a relação entre indivíduo e nosso
espaço vivencial a partir da percepção e do olhar. A seguir, na dimensão
fenomenológica (capítulo 4), a percepção do espaço e a construção de um ponto
de vista individual participam na construção de um conceito de realidade. Esta
parte propõe ampliar as discussões iniciais à percepção, à apreciação estética do
mundo exterior, a um olhar sobre o comum, colocando em questão a oposição
entre arte e as coisas reais. Relato exercícios de reconhecimento e
conscientização, procurando tornar visível a irrealidade do real. A dimensão
expositiva (capítulo 5) trata da relação espacial com o local da representação, de
uma dimensão discursiva que o espaço institucional de uma galeria ou de um
museu agrega ao trabalho e pensa a obra de arte ou a proposição artística dentro
da perspectiva do deslocamento para um outro lugar. Como pensar o
deslocamento de uma vivência, uma ação in situ ou de uma situação? O que se
deve expor?
As conclusões se encontram no capítulo 6. As referências e um
apêndice completam a minha dissertação.
2 A REATIVÃO DOS SENTIDOS
Espaço e tempo são as únicas formas onde a vida é constrda,
as únicas formas, então, onde a arte deveria ser erguida
(PEVSNER e GABO, apud OLIVEIRA, 1994, p.17-18).
Segundo a tradição do teatro não-literário de Artaud (1984), o teatral é
tudo o que não está contido nos diálogos. Com a função de ir além dos artifícios
da linguagem verbal e dos códigos estabelecidos por convenções, os signos
mortos, as ações humanas e a ação dos objetos criam uma experiência visual
imediata, uma expressão no espaço. Ao discutir a reativação dos sentidos, surge
a idéia de que o teatro não deve iludir o público mostrando o que não é, mas
afirmar o seu caráter de acontecimento. O lugar não é mais representado, usa-se
a estrutura do palco, a realidade cênica, com a intenção de provocar os sentidos
e a imaginação.
Artaud (1984), em seu primeiro manifesto do teatro da Crueldade,
declara que não haverá cenário; ele exige a expressão no espaço por meio dos
atores, a ação física da luz e os objetos de cena. Para achar uma estética que
atinge a sensibilidade de todos, ele busca referências nos rituais e no teatro
oriental, sem o caráter do psicológico, simbólico e ilusionístico do teatro ocidental.
As encenações de Artaud existem dentro de um espaço tridimensional, no qual
todos os elementos apresentam uma plasticidade. Ele não se opõe a essa
plasticidade, mas ao cenário que representa um lugar específico e funciona
dentro da lógica do espaço teatral ilusionístico italiano.
Para Artaud (1984) o vazio é sempre pleno e habitado por forças que
encontram na potência seus significados, forças capazes de desconstruir
universos engessados. Ele quer acordar uma crueldade viva e libertadora. Para
ele, é no teatro onde se refaz a vida, onde se foge do suicídio pela sociedade,
onde se reconstrói o corpo roubado. O corpo sem órgãos, o corpo libertado de
seus automatismos que permite a pulsação vibrátil, a emergência da vida. Ele
busca ir além de um sujeito historicamente instituído para viver uma lógica dos
fluxos e construir uma cartografia dos desejos e acredita que o encontro de sua
energia no corpo sem órgãos se produz o real. Construir um corpo sem órgãos é
para Artaud (1984) uma maneira de escapar da ilusória identidade do sujeito.
Assim, ele afirma que, se as pessoas não se contentam em ser órgãos
registradores, elas podem criar. A vida do corpo é sustentada pelo teatro, no qual
os órgãos se transformam em forças que ainda não existem. O sentido da vida se
renova por meio do teatro.
Acreditando nessa possibilidade da devolução do corpo roubado,
Artaud (1984) compara a diferenciação orgânica do corpo corrompido à
organização hierárquica do teatro, cujas articulações, relações de funções
internas, de membros remetem ao desmembramento do corpo. Para ele, a
manifestação das forças é possível só após a destruição dos órgãos teatrais. Ele
busca uma forma de teatro original, cujo signo ainda não foi separado da força e
que ainda não é um signo, mas não é mais uma coisa. Ele busca a reconstituição
da representação original, a zona entre o real e a representação. Essa zona junto
ao diálogo da encenação com a arquitetura cênica existente, e os códigos do
sistema teatral tradicional são preocupações fundamentais para o teatro
experimental e a performance, que percebem o evento como um instante em que
o corpo colide com o mundo exterior: um acontecimento.
As relações entre o homem e o lugar em outros ambientes tamm são
permeadas pelos acontecimentos. As vivencias, experiências e acasos
acontecem no presente, o aqui e agora, que é interligado à idéia do
acontecimento, de algo que sucede, que ocorre. Um fato, coisa ou pessoa que
causa sensação. As tentativas de definir esses instantes passam pela metáfora
da vibração, da ondulão, da corda sonora ou luminosa e do ponto de encontro
de intensidades (DELEUZE, 2000). O acontecimento é apresentado como algo
em si e necessita do lugar e do sujeito para existir. Nessa perspectiva, o presente
é relacionado à posição do sujeito–ator, ao ponto de vista, ao lugar de onde
estou. Modos de ver interdependem de quem olha e de onde se olha. O lugar do
acontecimento permite formas de relacionamento e funciona como mediador
para o indivíduo, favorecendo as relações do homem consigo e com o mundo.
O pensamento desses acontecimentos se dá na relação entre
apresentação e representação. Penso apresentação no sentido dramático, no
qual os componentes convergem para criar uma sensação do hic et nunc, um
tempo e lugar dramático, presente. Os espaços apresentam-se como verdades
fixas que regulam e condicionam os corpos em todas as esferas da vida. Mas
fora do teatro, verdades fixas, a realidade como algo determinado, são uma
contradição porque não existe um presente estável. Cria-se uma ilusão de algo
permanente, uma ilusão de realidade estável. Como a unidade de lugar no Teatro
Aristotélico, esses espaços não são questionados, são vistos como
preestabelecidos e fixos.
Na vida cotidiana tomamos a unidade de lugar como fato que contribui
para a percepção do entorno como realidade fixa. Nosso referencial de realidade
é formado a partir de apartamentos, casas, prédios, carros, ruas, carros, escolas
e outros espaços do campo social. Tais espaços cotidianos ou fatias de vida
preestabelecem suas funções, agem sobre nós e, assim, automatizam as ações e
relações das pessoas que são passivamente condicionados.
Entendo a representação no sentido brechtiano no qual os elementos
épicos não criam um mundo permanente e coerente, mas proporcionam um olhar
sobre o mundo. Seus componentes existem simultaneamente, se distanciam um
do outro e não oferecem um modelo sintético, mas um modelo polifônico, que
confronta as convenções, importa narrativas, imagens e questiona as
familiaridades. Estabelecem-se outros lugares que coexistem e entram em
diálogo com a realidade estável. Assim, pode-se acreditar que as coisas não são
fixas ou eternas, mas suscetíveis a mudanças e transformações.
O artista, como ser no mundo, é um ser social e político. Em vez de
afirmar um lugar fixo, um lugar comum, ele, para trabalhar na constante
reconstrução do seu entorno, se mantém no limite onde existe o efeito de borda.
A heterogeneidade das práticas espacializadas, nas quais existe uma relação
entre a proposição artística, seu lugar de acontecimento e as pessoas presentes,
resultou numa proliferação de termos que procuram especificar a relação
específica dos elementos constitutivos das práticas artísticas, sobretudo, com o
espaço. Nas artes cênicas, espaço alternativo virou uma categoria própria e, no
campo das artes plásticas, instalação hoje é um termo genérico que é associado
a outros termos como ocupação, sítio-específico, intervenção, ambiente, arte
urbana, land-art, ação, evento, situação. O denominador comum dessas palavras
é o conceito de que as práticas mudaram da concepção de um objeto autônomo
construído e exibido para uma abordagem complexa de produção e percepção de
um trabalho em um determinado espaço tridimensional e social. O lugar da obra,
suas características e seu contexto vieram formar parte do conteúdo do trabalho,
um participante ativo. O significado não está dado pelo conteúdo interior da obra
ou do objeto, mas no encontro entre objetos e pessoas em uma situação que é
predeterminada pelo entorno e pela predisposição cultural do espectador. O
conjunto cria um novo espaço social.
Rosalind Krauss relata as transformações da obra de arte para a
experiência da arte num contexto maior. No seu artigo “A escultura no campo
ampliado” ela explicita as mudanças de paradigmas e das categorias tradicionais
da arte e define três novas categorias (o local de construção, locais demarcados
e estruturas axiomáticas), que, ao situar a arte entre sistemas outros, apontam
para uma expansão das formas existentes. Ela cita o local de construção, uma
forma que se situa entre paisagem e arquitetura; locais demarcados, formas que
definem territórios e trajetos a partir da manipulação física dos locais; e estruturas
axiomáticas, formas nas quais existe um tipo de intervenção no espaço real da
arquitetura (KRAUSS, 1984). Por meio dessas formas no campo ampliado, a
autora redefine procedimentos artísticos e cria uma lógica da relação espacial
que pode servir como modelo para as propostas classificadas como ocupação,
site-specific, intervenção, ambiente, arte urbana etc.
A ocupação é um local de construção, no qual uma coisa se instala, se
abriga. O sítio-específico implica uma especificidade do lugar ocupado por
designar a interpendência da circunstância espacial do trabalho. O espaço ao
redor, físico ou social, é significante e forma parte constitutiva da experiência do
espectador de maneira que o trabalho só acontece em relação à situação
espacial. O ambiente se insere num espaço existente ou reconstruido criando
uma relação envolvente agregando qualidades perceptíveis além da visão. O
público se encontra dentro da obra e vivencia o espaço. O conjunto de elementos
se instala em uma proposta na qual uma interação corpórea, física e tátil é
agregada à experiência visual. Os procedimentos da land-art substituem a visão
da cidade, dos espaços internos e externos urbanos pelo ideal do deserto, da
paisagem homogênea onde o céu colide com a terra pela linha do horizonte e
criam locais demarcados. A idéia da situação
16
, que insere as práticas artísticas
num contexto da vida cotidiana, promove vivências de situações existentes ou
criadas. A intervenção se apropria de um lugar existente e, via interferência,
expande ou revela seu significado que corresponde ao que Krauss (1984) chama
de estruturas axiomáticas. Ambientes, instalações e arte urbana, que acontecem
dentro do espaço urbano, não são sinônimos de arte pública. Um trabalho se
torna público quando ele é acessível a todos
17
, não por sua relação espacial, mas
por sua inserção social. Seu caráter público depende de sua abrangência de
espectadores e, não, de sua localização em um espaço aberto ou fechado,
mesmo porque, hoje em dia, existem vários espaços internos públicos e externos
privados e outros falsamente públicos que são restritos a diferentes frações
sociais, alguns por costumes e outros por mecanismos de controle.
Nas práticas de instalação, é comum que as diferentes formas de
espacialização se sobreponham e se agreguem. Elas não somente dependem da
natureza do espaço original ou da proposta do artista, mas tamm da maneira
como o público interage com a obra. A situação espacial promove uma
16
Em 1957, a Internacional Letrista, o Movimento Internacional por uma Bauhaus Imaginista e a
Associação Psicogeográfica de Londres se juntaram para formar a internacional situacionista.
17
Projeto utópico, considerando que um único lugar nunca é praticado por todos. Mas podemos
considerar que uma mesma obra em espaços diversos poderia atualizar-se no campo social em
um sentido amplo.
visualidade e um sentido do corpo que corresponde ao que Grossmann (1996)
chama de momento arte, o acontecimento que resulta da interação entre
presença, proposta e participação.
A percepção dos objetos e do espaço como elementos presentes e
vivos é a base da encenação da peça Casa das Misericórdias
18
da Maldita,
companhia de investigação teatral. Durante os ensaios, foram criadas imagens
concretas e imaginárias em transição por meio de estímulos reais. Dinâmicas
espaciais foram transferidos para o corpo e geraram ações. O espaço tornou-se
arquitetura viva, espaço performático, capaz de transformar a si mesmo e aos
objetos e pessoas nele inseridas. A apropriação individual aconteceu a partir da
construção de novas relações, conexões e articulações que agregaram outros
sentidos e valores aos elementos.
O confronto dessas experiências individuais é o procedimento de
criação e da colaboração entre as pessoas; a produção de significado depende
de uma reinvenção a partir da interação dos espaços individuais existentes. A
cenografia nesse âmbito da ação não se esgota na representação ou na imitação
do mundo visível, ao contrário, realiza-se em um processo dialético entre a
experiência real e o imaginário. São criadas memórias novas que se sobrepõem
aos usos cotidianos dos lugares, situações que criam cruzamentos de referências
e, assim, possibilitam uma releitura dos espaços.
Para a estréia em Belo Horizonte, em vez de escolher uma
determinada configuração num lugar supostamente neutro, optou-se por trabalhar
com uma configuração arquitetônica preestabelecida, um lugar cotidiano e
público, um bar abandonado no bairro Horto. Focalizamos a suspensão da
concretude do espaço e dos objetos familiares relacionados a ele, atribuindo
18
O espetáculo Casa das Misericórdias, gerado em processo colaborativo, é fruto da primeira
edição (2003) do projeto Cena 3 x 4, concebido pela Maldita e realizado em parceria com o Galpão
Cine Horto. O projeto visava o diálogo prático entre as experiências colaborativas de grupos como
pesquisa para criação de uma dramaturgia própria.
A partir de temáticas como loucura e instituição, indivíduo e sociedade, e tendo como referência as
obras da escritora Maura Lopes Cançado, Artur Bispo do Rosário e Antonin Artaud, o grupo
experimentou diversas possibilidades espaciais e chegou ao conceito de arquitetura do abandono,
ocupando, como primeiro espaço de encenação, a Gruta, uma velha casa-bar em Belo Horizonte.
valores subjetivos e coletivos. Para cada cena, o espaço é redefinido e
reorganizado e os significados estabelecidos dialogam com os elementos do
ambiente. Tudo em volta é apropriado, tirado do seu contexto do bar/casa e
inserido no lugar fictício que são os espaços das subjetividades dos personagens.
Desenvolve-se uma produção de objetos e ações análogas ao real nas quais os
símbolos criados existem com referência à realidade. As experiências revelam as
potencialidades dos elementos para criticar os hábitos automáticos, as crenças e
valores, a organização monótona dos dias e a concepção de uma vida normal
que rege as relações diárias.
A representação nada mais é que a projeção no mundo sensível
dos estados e das imagens que dele constituem suas molas
escondidas. Uma peça de teatro deve, portanto, ser o lugar onde
o mundo visível e o mundo invisível se tocam e se chocam, em
outras palavras, a colocação em evidência, a manifestação do
conteúdo oculto, latente, que encobre os germes do drama
(DORT, 1977, p.18)
Cada novo espaço oferece múltiplas possibilidades e potencializa novas
relações. A decifração de signos, sentidos e a crião de mundos dependem
desses espaços existentes. A especificidade espacial da peça Casa das
Misericórdias criou um vínculo recíproco entre os elementos cênicos e os lugares
como estruturas performáticas. Mais do que criar uma instalação autônoma, cada
montagem em um novo local se apropria e habita o lugar. O novo local é ocupado
e experimentado por meio de práticas que consideram a presença dos materiais
do espaço escolhido e recriam a relação entre os elementos inseridos e
encontrados. O público imerso no espaço da atuação é introduzido num ambiente
que parece real e cujo sentido representacional é problematizado. Os potenciais
de variação, a participação e a transformação ao decorrer da peça interferem na
percepção convencional do espaço. No deslocamento da peça para outros
lugares, procura-se estabelecer uma relação sítio específico que dialoga com a
proposta ambiental na qual o espectador é inserido. A apropriação de elementos
existentes em cada espaço e a sua disposição interferem na relação entre as
coisas e na percepção do espectador. Os elementos se agregam e são indivisíveis
para uma produção de sentido. O conteúdo representativo de uma prisão pública
abandonada e de um asilo vazio, suas divisões, marcas, estados de conservação,
objetos abandonados e elementos de infra-estrutura são experimentados em suas
potencialidades em cada recriação para suscitar um envolvimento que excede
uma simples ocupação das arquiteturas públicas abandonadas. A peça procura,
na tradição dos trabalhos denominados minimalistas, criar uma situação, na qual
os atores e espectadores se instalam num espaço que tem memória passada, e
estabelecer um lugar performático com novas referências que questionam as
certezas e deslocam as verdades. No caso da encenação, como nos trabalhos
minimalistas, reloca-se a experiência do trabalho para a experiência do corpo
inserido em um espaço teatralizado.
Nas artes plásticas, um exemplo dessa transferência de paradigmas do
objeto contemplativo para o encontro é a obra de Robert Morris na qual a
percepção se dá no tempo real e a obra se
constitui na experiência da dimensão corporal.
Robert Morris cria uma forma primária a partir
de seu corpo. Ele muda a ênfase do objeto
para a ênfase da visão e cria um convite à ação
do espectador que implica movimento. Seus
objetos surgem do seu envolvimento com a
performance
19
e são articulados com e como
corpos no espaço. Column (Figura 1), o
morfema ou o objeto primário inicial de Robert
Morris, foi destinado a ser um guarda corpo, uma caixa contendo um corpo que,
no decorrer da apresentação com duração de sete minutos, cai da posição
vertical na horizontal. A duração é dividida exatamente ao meio pela queda
abrupta. Por meio do elemento único, a abstração da figura humana e o
19
Ligado ao Judson Dance Theater, Nova Iorque, onde Robert Morris trabalhou com Trisha Brown,
Lucinda Childs, Simone Forte e Yvonne Rainer.
Figura 1 - Column, MORRIS, 1960.
movimento único, numa dimensão temporal, Morris emprega o trabalho
minimalista como pretexto para o encontro corpóreo. A coluna de compensado
liso com suas superfícies retangulares pintadas de cinza para ele é a blank form,
a forma vazia, a unidade básica para aplicar seu conceito de ‘formar’.
Em outro trabalho posterior, o artista junta dois blocos, duas colunas,
para formar uma viga em ‘L’. Pela disposição de três unidades modulares em
diferentes posições no mesmo ambiente, o espectador é convocado a investigar
seu campo de visão. As contingências da montagem de L Beams’ influenciam a
fenomenologia da visão. A percepção é resultado de um processo que envolve
uma ação e a execução de uma tarefa. O espectador está consciente de que se
trata de elementos idênticos repetidos, mas, na comparação da imagem mental,
do entendimento da forma geométrica com a forma concreta em várias posições,
percebe, por meio das condições de observação, que eles são diferentes. O
espectador atento compreende a Gestalt de cada ‘L’ pela sucessão de posições
no espaço. Amplia-se o espaço ótico para o espaço físico, concreto. A partir
dessa entrada no espaço real, o objeto se abre a vários pontos de vista. O
material visual primário elimina a imitação da realidade e critica o idealismo, a
psicologia e a pretensa autonomia da obra de arte modernista. ‘L Beams’, como
tamm outras obras minimalistas, substituem a alusão ao espaço dentro do
quadro pela consciência de que as superfícies e volumes pertencem ao mesmo
espaço tridimensional que é vivido pelo artista e compartilhado pelo espectador.
Robert Morris investiga as relações entre os objetos, o espaço e o
espectador. As relações internas da obra são ampliadas em função do espaço,
da luz e da visão individual. O artista afirma que a obra de arte não é um dom
fixo, mas objeto de uma visão situada. Em Permutation Works, ele radicaliza no
ato expositivo pelas alterações diárias de peças seccionadas de fibra de vidro,
morfemas que assumem diferentes configurações diariamente. As
transformações das posições transformam a visão do espaço existente. A
consciência da permutação diária e a memória das permutações anteriores
formam parte da observação. R. Morris trabalha com a galeria não como não-
lugar para hospedar a memória do site em forma de objeto indicando por meio de
uma abstração material para fora da galeria, mas ativa o lugar e estabelece a
galeria com um lugar com memória. Os módulos, com suas configurações
variáveis, podem assumir infinitos posicionamentos e levam o artista à idéia de
reposicionamento, de padrões de constância e variabilidade e da anti-form
(MORRIS, 1968), na qual ele contrapõe a imposição geométrica dos seus
trabalhos anteriores com a organização acidental de posições produzidas por
acaso que deixam a construção explícita e exercem um efeito sobre o espaço.
Os aspectos complexos da relação entre artista, obra de arte, espaço e
espectador passam por constantes modificações. A tradição da ruptura e as
revoluções plásticas associadas ao modernismo exibem procedimentos e
manifestações artísticas diversas que marcam as mudanças do campo plástico
para a arquitetura. Essa reorientação do campo pictórico para o campo espacial
resulta das investigações no campo da escultura e da espacialização da forma
bidimensional da pintura no século XX. Os conceitos plásticos construtivistas de
Pevsner e Gabo (2000) se orientaram na cultura dos materiais e no espaço real.
A presença física dos materiais reais no espaço real reflete os ideais da
sociedade moderna fundada na crença do progresso industrial. A partir do início
do século XX, a escultura e a pintura procuraram expandir seus campos para o
espaço social. Paralelamente a esse desenvolvimento nas artes plásticas, a
cenografia experimenta ao mesmo tempo as possibilidades de movimento por
meio de construções em volumes. A partir de formas abstratas Adolphe Appia e
Gordon Craig negam a atmosfera e a ambientação naturalista na busca da
construção pura; uma nova organização do espaço que relaciona o indivíduo com
o entorno e cria novos desafios para o corpo dos atores via imagem em
movimento.
Embora com objetivos diferentes, artistas minimalistas tamm
buscaram a forma primária, elementos primários na sua materialidade e a
abolição do ilusionismo. Após a Segunda Guerra Mundial, em um momento em
que a visão positivista da sociedade industrial e a celebração do progresso da
modernidade são substituídas por uma crítica aos valores humanos da sociedade
de consumo que é regido por uma crença nas aparências e dominado por valores
mercadológicos, os artistas minimalistas retomam o purismo e o paradigma da
entrada no espaço real do início do século. Ao retirar as operações formativas do
objeto de arte, eles adotam a tecno-estética dos construtivistas e reutilizam
conceitos presentes no readymade e objet trouvé.
As experimentações dos artistas minimalistas abriram novas
possibilidades de colaboração entre práticas artísticas e o ambiente e renovaram
o conceito da instalação criando trabalhos referenciais de sites e environments.
As diversas práticas expandiram o sistema de arte para uma inter-relação, uma
experiência interativa dentro de sistemas. Parte de um grupo de trabalhos que se
parece em sua ruptura com o fazer manual, a relação hierárquica das partes, a
textura, a referência figurativa, do ilusionismo pictórico, complexidade de detalhes
e o monumentalismo, operam dentro de conceitos arquitetônicos ou paisagísticos
e substituem os termos tradicionais da arte com categorias como campo, direção,
passagem, lugar e movimento.
A ênfase em trocas reais na arte ataca a própria idéia de arte. Diversos
artistas criam trabalhos em relação ao momento, desprovidos de qualquer
qualidade artística. A arte minimalista e trabalhos denominados pós-minimalistas
como process art, land art e body art buscaram uma reativação dos sentidos por
meio da ênfase na experiência em lugar do produto de arte como bem econômico
e bem simbólico. Diferentes manifestações artísticas dos anos sessenta e
setenta, conscientes da rede de pressões externas e usos tradicionais,
procuravam substituir a sublimação dos desejos da sociedade individualista e o
aspecto sensacional da arte pela experiência sensível na busca de produzir
sensações que não deixassem o espectador indiferente e, assim, provocar uma
consciente construção do real.
Essa tentativa de inserir a arte no cotidiano, no contexto social, e de re-
locar o espectador resulta em transformações na função e no uso do lugar da
arte. São quebrados os parâmetros espaciais do mundo da arte e propostas
várias experiências que levam à noção do site-specific. As reflexões de Tony
Smith, Robert Morris, Robert Smithson e Dennis Oppenheim, entre outros,
evidenciam a dependência da obra em relação à paisagem, arquitetura, sala,
parede, luz e ao corpo. Experimentam-se procedimentos que transformam o site
em obra plástica e a obra plástica em site ou non-site, como no caso de Robert
Smithson
20
.
Priorizando a experiência direta, as obras minimalistas colocaram o
entorno em evidência, o material, a luz e a estrutura criam ambientes que
suscitam os sentidos. Essas criações, no seu contexto histórico, podiam ser
vistas em um contexto da arte política, por oferecerem resistência aos padrões
vigentes da sociedade contemporânea e questionar a representação simbólica
praticada. Processos concebidos fora das práticas convencionais da arte e
situações efêmeras articularam a experiência do individuo com o mundo. Os
trabalhos de artistas minimalistas mudaram a produção do sentido da obra de
arte da atividade mental, da interpretação de um significado interior da obra para
a experiência física e sensível no espaço exterior. Ao criar uma instância de
observação consciente do estar no mundo, eles apontaram para um caminho
para chegar à devolução do corpo roubado. O corpo é reconstruído quando a
relação obra-espaço-corpo se atualiza.
A mudança de paradigmas, a quebra das categorias convencionais
como escultura e pintura, a perda da autonomia da obra, conforme o
assinalamento de Krauss (1984), resulta em práticas que exploram a lógica do
espaço que não é organizado em torno de um determinado meio de expressão. A
dimensionalidade da obra incita o espectador a assumir uma relação ao contexto
experimental dado que implica uma presença no interior do espaço
(GROSSMANN, 1996) ou de outro lugar demarcado. A arte espacializada cria
20
O non-site de Smithson, um earthwork para um interior, é uma imagem lógica tridimensional que
é abstrato. Ele é uma cartografia do site original sem semelhança ou mimese, mas por uma
metáfora dimensional em forma de uma construção que busca ser livre de conteúdos realísticos e
expressivos. O que interessa ao artista é o espaço entre os dois sites.
uma experiência no espaço e no tempo que permite uma troca e uma interação
em que o sujeito presente se torna atuante.
Transfere-se a produção do significado para a experiência do real
artificial. Os objetos ganham concretude pela sua materialidade e o espaço por
meio da experimentação da sua forma física, do seu uso, que é inseparável da
matéria corpórea do espectador. O espaço exterior vira o novo limite formal do
trabalho. No espaço ampliado também a posição do espectador influencia o
campo de vio. Essa transferência da produção de sentido para o espaço
exterior ativa os espaços existentes onde os trabalhos acontecem. O lugar de
exibição, o contexto, o ambiente natural ou construído formam parte da
percepção do trabalho e, assim, da experiência do espectador.
O habitat da obra torna-se um dos problemas estéticos. Inicialmente, o
habitat da obra minimalista é um lugar ocupado por objetos artísticos. O entorno é
ativado pelos materiais comuns, as superfícies refletidas, a disposição dos
elementos ou simplesmente pela presença das obras. Na medida em que a
ativação dos espaços se torna norteador para os artistas, são experimentadas
espacialidades com diferentes qualidades físicas e diferentes configurações para
investigar, junto com os trabalhos, as dinâmicas entre objetos, paisagem,
arquitetura e espectador. O ambiente preexistente se apresenta como suporte
concreto e torna-se inseparável do trabalho, um environment.
O exercício de ocupação de diferentes espaços na prática da Maldita,
companhia teatral, é um processo coletivo que envolve todas as áreas cênicas, a
atuação, os elementos visuais, a cenografia, a sonoplastia, a iluminação, a
dramaturgia e a direção, que estavam envolvidas na criação do texto da cena.
Nas ocupações não se trabalha a criação de novos conteúdos, mas com as
possibilidades de variações e novas associações a partir da estrutura
performática sugerida pelo lugar. No caso da cenografia, o espaço é trazido para
a experiência corporal dos atores e do público para que o sentido possa derivar
de um estado de coisas que não depende da sua tradução em representações,
mas dos diferentes estados vividos.
A relação lugar-obra, a lógica do
lugar e a percepção estética de lugares
diferentes que incitam uma predisposição
crítica e consciente não dependem da natureza
do lugar. Não é necessário um espaço
especializado para criar um momento arte, do
qual fala Grossmann (1996). A experiência
pode acontecer em qualquer lugar, uma casa,
um quarto, uma rua, um prédio, uma sala de
escola.
A instalação/intervenção, Seminário:
o artesão do corpo sem órgãos (Figura 2)
21
,
propõe (des-)construir códigos existentes dos
componentes da sala de aula para (re-)
significar objetos e relações. As pessoas
entram em uma sala de aula escura na qual as
cadeiras e mesas viradas, empilhadas até o
teto, formam um círculo descentrado iluminado
por uma lâmpada incandescente. No chão são
dispostos papéis com linhas irregulares,
curvadas e pontilhadas e canetas. Na
apresentação dos conceitos gerais do
conteúdo, o seminarista (ditador e dono da
verdade) ausente é substituído por mediadores e pelas relações que se
estabelecem na interação dos elementos no espaço. O seminário é uma
montagem singular da sala de aula, o lugar do seminário é tamm o corpo do
sujeito, da pessoa que entra em relação com os elementos dispostos. A recepção
da instalação foi controversa. Muitas pessoas escreveram frases, desenharam e
21
Seminário: o artesão do corpo sem órgãos foi apresentado por mim no contexto da disciplina
Imagens do pensamento - pensamento das Imagens no dia 29 de novembro de 2002, na EBA,
UFMG.
Figura 2 - Seminário, LINKE, 2002.
rabiscaram, mas vale um seminário sem seminarista? Porque não tinha nenhuma
indicação do que se tratava, exceto um aviso na porta com os dizeres:
“Seminário: o artesão do corpo sem órgãos”.
O seminário buscou um instante presente no qual o sentido se dá na
observação da disposição de elementos no espaço e nas escolhas do
observador, movido por um olhar condicionado, por um ponto de vista próprio,
que, conseqüentemente, contamina a percepção do exterior. Estabeleceu-se uma
relação entre o corpo máquina, o organismo subdividido em funções e o sistema
da sala de aula como máquina, também organismo com suas funções
determinadas pela predisposição do lugar e o uso da linguagem na interação
entre as pessoas.
Os componentes da sala de aula são organizados hierarquicamente.
Eles atribuem valores via orientação que direciona e limita o fluxo entre os
elementos. Os principais componentes do sistema aula, no modelo dogmático
tradicional, são: a disposição dos lugares, a disposição das pessoas no espaço e
o uso da linguagem para garantir o entendimento e aprendizado de um dado
conteúdo. As funções são organizadas, as instalações elétricas, a ventilação, o
quadro negro com giz, as cadeiras, a carteira do professor e o arranjo do corpo
que participam da aula, professor e alunos, regulam e controlam o evento e a
interação entre as pessoas na sala de aula. Como dar um seminário sobre o CsO
em tais condições? Pensar o seminário como corpo levou às questões: de que
corpo se trata aqui? Por quais procedimentos e meios podemos experimentá-lo?
O que acontece com as variantes em relão às expectativas? O que o seminário
pode fazer enquanto CsO?
A aula é uma cena, uma situação que se recria e se repete quando as
pessoas se encontram para tal fim. Como na aula, um seminário propõe uma
apresentação audiovisual no qual o orador, visível e acusticamente inteligível,
comunica um determinado conteúdo aos interessados. Os participantes dessa
cena, orador e ouvintes, fazem papéis fixos. A organização hierárquica entre as
pessoas e a predisposição geográfica da sala determinam o fluxo das
informações.
A linguagem, organizada pelas funções gramaticais e sintáxicas com
seus mecanismos de descrever, designar, expressar e significar remete ao
organismo. A construção do significado passa pelo regime da linguagem para
produzir mensagens instantâneas, incorporais e signos. Os aspectos lógicos da
palavra discursiva usam a linguagem como representação. As palavras, na sua
compreensão e recepção, são significações limitadas por serem originalmente
repetições.
A sala de aula do Seminário coloca o corpo do observador no centro
das atividades. O indivíduo responde a estímulos que provêm da percepção do
entorno em relação ao próprio corpo. Essas respostas subjetivas implicam
variações contínuas de tudo o que se pode fazer como corpo. “Após da abolição
do texto escrito dá-se lugar a uma fala que é corpo, um corpo que é teatro, um
teatro que vira texto.”
22
Nos anos sessenta, artistas saíram do espaço utópico, do cubo branco
idealizado do museu e da galeria modernista e entraram no domínio dos sítios
heterotópicos, dos espaços heterogêneos que combinam vários lugares em
sistemas maiores. Intensificaram-se as práticas processuais realizadas no mundo
real, em lugares, sem lugares, nas quais intervenções artísticas produzem
diálogos que criam novas relações entre partes já existentes. O mundo das artes
procura reintegra-se ao seu contexto exterior. Os objetos situados minimalistas e
sites e non-sites pós-minimalistas exploraram e expandem as áreas da
experiência artística e humana criando encontros que expandiram a visão para se
ver em múltiplos níveis de realidade. O papel do espaço e o aspecto de duração
fundamentam os trabalhos na sua dimensão social. De uma prática de reajuste ou
de adaptação a um lugar existente para acolher um trabalho, muda-se para uma
consciência de um espaço associador e fundador que elimina a distinção entre a
obra e seu abrigo. O espaço sociofísico vira o espaço performático, um lugar da
22
O ur-texto em qual Antonin Artaud acredita.
cidade cenográfica, agora, um lugar em ação. O espaço de sítios urbanos,
paisagens, salas, construções é evocado para uma experimentação sensorial.
Sylviane Leprun cita diferentes orientações dos artistas-cenógrafos especificando
as diferentes abordagens do espaço como meio das pesquisas plásticas
espacializadas: sítio, mídia, museu e arquitetura. Ela reforça o conceito
cenográfico da instalação com a afirmação que a instalação não trabalha somente
sobre o espaço, mas com ele. Assim, a autora define a prática da instalação que
se propõe a uma construção simbólica do espaço como uma prática
interdisciplinar presente na vida doméstica, coletiva de qualquer sociedade
(LEPRUN, 1999).
O sentido das obras não reside na interpretação de um conteúdo e na
apreciação da sua contraparte material, mas na percepção ligada aos esquemas
sensoriais. A experiência estética acontece em um espaço vivencial, e a
apreensão da obra ocorre na percepção da relação corpo-objeto. Nesse encontro,
o espaço vital, o Lebensraum, como contexto exterior forma parte do conjunto da
obra. Os elementos arquitetônicos numa encenação e na exposição resultam
numa espacialidade que estimula uma consciência corpórea similar aos espaços
urbanos que correlacionam o homem ao seu redor. O cidadão vive em espaços
criados, como o ator vive no espaço do palco. Os espaços propõem diferentes
relações que determinam seu uso e suas dinâmicas que o corpo experimenta a
partir de um objeto ou um elemento arquitetônico. Com base nessa vivência, a
pessoa pode (re-)proporcionar o seu entorno.
A instalação como a proposição de uma arte em ato oferece maneiras
de pensar o espaço individual e coletivo e a simbólica de seus materiais e escalas.
As sensorialidades que resultam das relações estabelecidas pela proposta são
situações efêmeras capazes de ordenar, exibir ou construir uma sociabilidade
plástica. Retomando A. Artaud, pode-se constatar que é o ato que exprime a
potência e que forma o pensamento. O indivíduo se atualiza enquanto participa na
reorganização e na subjetivação do espaço, ele vive um orgânico artificial tornado-
se corpo-obra. A partir dessa experiência corporal, a conscientização do
organismo em que as diferentes partes interagem, estabelece-se uma relação
corpo-sentido que provém de um estado das coisas e das possibilidades de afetar
e ser afetado. Por meio da percepção sensível das coisas e do ato como potência
de diferenciação e de invenção, interfere-se no sistema vigente, nas formas
constituídas e representações estabelecidas. A prática da experimentação e a
transformação do exterior criam um mundo em obra, uma reativação do sentido
processual da construção de noções de realidade.
3 A DIMENSÃO SENSÍVEL
Ines: A gente tinha conversado antes sobre a função da
percepção estética para os trabalhos de Smithson e do
Turnpike de Tony Smith. O ato perceptivo como sustentação
da obra.
Louise: Podemos começar do Monumento de Passaic, da coisa não
materializada.
I: Acho interessante. Ele trata de uma coisa muito familiar,
muito cotidiana dele, a cidade natal.
L: É um caminho, um percurso e um texto que ele constrói.
Não sei como o trabalho depois é apresentado, se é de
outra forma, se é aquele texto que se constitui como
obra.
I: E se ele não tivesse tirado as fotos e não tivesse
escrito o texto?
L: Se tivesse feito só o percurso?
I: Sim, o que seria?
L: Se não tivesse feito nenhuma manifestação, nenhum
registro; se não tiver registro ou nenhuma manifestação
para se passar para um meio público, como a coisa
funciona? Por exemplo, os dadaístas ocuparam um terreno,
ficaram lá durante um dia ocupando. O tipo de registro
que tive disso foi uma foto ou outra. Lançaram um jornal
depois, um texto falando sobre o dia. Mas teve algum tipo
de manifestação, um registro, mesmo não sendo muito bem
articulado.
I: Mas documentação, relatos e textos escritos são
materializações a partir de alguma experiência. E a
experiência em si, tipo a deambulação surrealista?
L: A gente só sabe da deambulação porque tem registro. É
complicado, acho que um ato, como o percurso que a gente
fez, é cheio de sentido. Mas, se a gente quer levar isso
para um outro lugar, tem que ter alguma forma de
materializar a experiência para virar objeto artístico ou
outra coisa.
I: Se não, não cria relação, fica dentro da cabeça. O
diálogo, quando a gente andou e conversou sobre coisas de
várias naturezas diferentes, também era um modo de
externalizar essa experiência do lugar.
L: Isso é a primeira instância, esse registro. Uma coisa é
registrar, a outra é manipular a experiência de alguma
forma, trabalhar com esses indícios, com o sensorial, o
sensível, com algum sentido que a experiência provocou na
gente. Acho que manipular pode ser uma palavra
interessante.
I: Tem-se a percepção na primeira, a manipulação na segunda
e a transferência na terceira instância, mas qual é o
lugar dessas materializações nos sites locais
escolhidos?
23
A teatralidade dos espaços não se restringe ao palco de um teatro. O que
está contido ou acontecendo num lugar está sujeito ao próprio espaço, à cidade
cenográfica ou à cidade polifônica (CANEVACCI, 1997). Por meio de vivências e
percursos, muda-se a atividade artística na primeira instância para perceber o
lugar como um objet trouvé ou uma cenografia pronta. A experiência desses
espaços, dentro da tradição do environment inclui a concepção do espaço na sua
23
Diálogo gravado entre Ines Linke e Louise Ganz em novembro de 2006 a propósito do
desenvolvimento dos trabalhos Percurso 1 e Percurso 2.
materialidade, visualidade, seu funcionamento, como condicionamento do corpo e
como mecanismo de apropriação.
Certeau (1994) aponta que vivemos a cidade como praticantes ordinários,
como caminhantes, pedestres cujos corpos obedecem aos desenhos dos espaços
com seus cheios e vazios. Para o autor, as práticas organizadoras da cidade
habitada se passam numa espécie de cegueira que é contraposta pelas práticas
artísticas no espaço ampliado via ações que criam afetividades com os espaços
cotidianos e produzem relações espaciais que reivindicam os lugares como sítios
de relações capazes de revelar ou extrapolar o conteúdo representativo da cidade.
Esses processos questionam o lugar do corpo na cidade real planejada de acordo
com os parâmetros da organização funcionalista e a impessoalidade do discurso
da sociedade modernista que gera, classifica e hierarquiza todos os aspectos da
vida. Produzindo práticas outras nos espaços, a (re-)apropriação depende de um
modo individual de exercer práticas cotidianas no espaço vivido. As deambulações
surrealistas e as caminhadas psicogeográficas situacionistas criaram modelos de
processos de caminhar que questionam a familiaridade do entorno.
O ato de andar [...] é um processo de apropriação do sistema
topográfico pelo pedestre; é uma realização espacial do lugar;
enfim, implica relações entre posões diferenciadas, ou seja,
“contratos” pragmáticos sob a forma de movimento. O ato de
caminhar parece, portanto encontrar uma primeira definição como
espaço de enunciação (CERTEAU, 1994. p.177).
O caminhar, o percurso é em si uma realização, uma atualização
espacial do lugar (Figura 3). Certeau (1994) compara esse ato a um modo de
fazer, de atualizar, selecionar, afirmar e transgredir. O ato de andar é apontado
como a criação de um orgânico móvel que se configura em tipos de relações
sucessivas. O autor supõe que as práticas do espaço correspondam à
manipulação de uma ordem construída, de propriedades finitas articuladas entre
si, formando um sistema que pode ser modificado ou deslocado (CERTEAU,
1994). Em um jogo com as organizações espaciais são feitos recortes, seleções,
escolhidos fragmentos do espaço percorrido que implica ligações pessoais, além
de omissões de partes. Essa substituição da totalidade por fragmentos
Figura 3 - Rua Maria Martins Guimarães, LINKE, 2007.
colocados em evincia cria um novo conjunto que aponta para uma alteração do
espaço pelo ato de andar durante o qual territórios fixos se movimentam e entram
em relação a processos de subjetivação (Figura 3).
Caminhar é ter falta de lugar, um exílio caminhante, uma forma de
suspensão, uma experiência de deslocamento e de condensação, uma fião que
não distingue entre lugares sonhados e lugares vivenciados
(CERTEAU, 1994).
Criam-se, assim, representações dos lugares que apresentam conteúdos,
resíduos, fragmentos, detritos que se insinuam como um conjunto simbólico, um
texto ou uma imagem, uma figura da cidade.
A experiência dos espaços ao nível do corpo é uma prática, um
processo de criação de uma dramaturgia do espaço, que forma uma parte
fundamental durante as apropriações de espaços do grupo teatral Maldita. O lugar
contribui para reinventar a composição das ações no novo espaço-tempo. Assim,
a dramaturgia do espaço muda a idéia do conceito aristotélico da mimese, da
imitação das ações, para o evento teatral como composição de ações; busca-se
uma ação direta sobre o corpo, o sujeito criador. As experiências de contato, as
configurações entre espaço e corpo correspondem ao homem em processo
brechtiano, no qual a relação dialógica, o
confronto entre instâncias abole o conteúdo
representativo na primeira instância, “...para o
absoluto a própria vida é um jogo.” (ARTAUD,
apud DERRIDA, 2002, p.176).
O corpo em jogo e a experiência
corpórea dos espaços sugerem uma entidade
mais ativa e não puramente visual, tal como
podemos receber nos trabalhos de Dennis
Oppenheim, que parte em seus trabalhos da
noção de que a escultura é uma permutação da
performance. Ele situa sua investigação artística
num encontro entre o corpo e o ambiente. Esse
Figura 4 - Material interchange,
OPPENHEIM, 1970.
trabalho leva o artista para fora do atelier e do espaço da galeria. Sua experiência
da construção plástica demonstra constantes mudanças em termos de escala e
localização. Ele estende a idéia da escultura minimalista à natureza onde ele
transforma o ambiente da vida real em médium e suporte. Em Material
interchange (Figura 4), adotando uma microescala, ele substitui a paisagem pelo
corpo. Em lugar de confeccionar uma obra ou produzir um objeto, ele desloca o
fazer artístico para uma consciência de processos materiais por meio de um
movimento minúsculo de uma unha e uma farpa de madeira. As trocas mútuas de
materiais criam intersecções ou cruzamentos de sistemas. A unha começa formar
parte do assoalho, e a farpa se integra ao corpo do artista. Os efeitos são
recíprocos.
A intersecção de sistemas está
presente em diversas escalas também em uma
série de trabalhos dos quais Parallel stress
(Figura 5) constitui uma parte. Nesse trabalho,
Dennis Oppenheim propõe processos cognitivos
psicofísicos, a obra se transforma em ação
física. Os sites são: um molhe na proximidade
da Brooklyn Bridge em Manhattam, na primeira
instância, e, num outro momento, um
reservatório de água abandonado em Long
Island para o qual é transferida a forma corpórea
da primeira situação. No trabalho, o artista
experimenta a resistência de seu corpo à tensão
resultante de uma suspensão entre duas
paredes de blocos de alvenaria. A parede toma
lugar do suporte do corpo. Por meio dessa
posição, Dennis Oppenheim tenciona os limites
internos e vive uma experiência física no espaço arquitetônico. Seu corpo, as
paredes, a localização e a ação criam um espaço vivo. Durante dez minutos, o
Figura 5 – Parallel stress,
OPPENHEIM, 1970
artista assume a posição que é registrada no ponto de tensão máxima do
momento antes do colapso. A curvatura do arqueamento corpóreo é
posteriormente duplicada e transportada para a segunda instância para a qual o
artista recria na terra um suporte para assumir uma posição paralela ao primeiro
arco por uma hora. O título mistura referências mentais e materiais: estresse, a
condição de tensão que afeta as emoções, o mal do homem da cidade e stress
como força na forma de tensão, o fenômeno físico que testa a resistência dos
materiais. Com essa alusão e a associação paralela das duas imagens, Dennnis
Oppenheim questiona a natureza do objeto físico de arte e propõe novos diálogos
com o site externo na recriação da curvatura original em outra localização. O
artista buscou um ambiente industrial para a primeira, onde ele cria uma situação
que passa pelo corpo e um ambiente degenerado para sua recriação da segunda
etapa do trabalho. Ao recriá-la, ele comenta a primeira relação. O lugar agora é
encenado e, dessa vez, a dramática visual e física envolve o corpo inteiro. Existe
uma estrutura simbólica nesse trabalho. Mas onde exatamente acontece a obra?
Ela acontece no corpo, na relação com os elementos, nas condições geofísicas ou
arquitetônicas do lugar, na associação das imagens, no título, no efeito recíproco
da experiência física espacial ou na associação dos dois registros fotográficos?
As fotografias documentam um processo, mas tamm existem no
campo das imagens sem sua relação referencial. Na associação das duas
fotografias, estabelece-se uma relação, um lugar entre que independe da primeira
instância, o lugar da ação física. As fotografias como imagens são primárias, elas
são elas mesmas. Pensá-las como um sistema de signos significa construir um
modelo que aproxima o visível ao legível, mas nega o caráter enigmático da
imagem. Pensar imagens como sistemas formais é diferente de pensá-las como
produções singulares a partir de um repertório ilimitado. Não há, porém,
percepção e transmissão sem conhecimentos provenientes da razão; é isso que
leva tanto o artista como espectador a entrar num sistema de correspondências
simbólicas socioculturais. Essas operações simbólicas criam representações
subjetivas dependentes do referencial de cada pessoa. Assim, os sentidos
derivados podem ser divergentes, e as interpretações, múltiplas e subjetivas. Mas
um código completamente subjetivo deixa de ser um código; porque um código
tem que ser compartilhado por um grupo de pessoas para existir.
Em 1964, Frank Stella, para falar de suas pinturas, inventou a frase que
exemplifica o parâmetro da arte minimalista. What you see is what you see,
comentando o esvaziamento do conteúdo representativo e afirmando a pintura em
sua materialidade. A imagem primeiramente não é veículo, suporte ou instrumento
de uma outra coisa. Primeiro, ela é ela mesma com seus materiais, cores e
dimensões. Ela faz sentido por si mesma. Ela se expressa como intensidade,
estado sensível e comunica anterior ao sistema da significação. Ela se coloca
para o espectador, que tem um papel fundamental, porque construir o sentido
depende da percepção seletiva e da interpretação dessa apreensão sensível da
pessoa.
Se as imagens são simplesmente imagens, a arte esbarra na noção do
objeto, se as coisas são simplesmente coisas, como é o processo da sua
apreensão? O reconhecimento das coisas não é automático, mas passa pelo
indivíduo e sua percepção da cidade cenográfica; o corpo como imagem, como
tela, está a todo momento em relação ao espaço urbano, com o entorno, o espaço
exterior composto por múltiplos sistemas significantes que se sobrepõem. A
significação de qualquer situação dentro ou fora do sistema de arte consiste num
complexo de interações de material, energia e informação em diferentes graus de
organização que estabelecem relações com o indivíduo.
O espaço heterogêneo da cidade criou fronteiras que gerenciam as
relações entre sociedade e indivíduo - espos restritivos, áreas segregadas dos
ricos, favelas dos pobres, passeios públicos cujos usos são regulados pelo poder
aquisitivo. A cidade é de todos? Experimentamos os espaços públicos coletivos
como estrangeiros; vemos lugares de passagem e não lugares de uma
significação coletiva ou convidativa. Deixando o espaço agir sobre mim e agindo
sobre ele, posso me aproximar e distanciar-me dele ou inserir-me nele. Os lugares
existentes começam a participar na minha cena como cenário, artifícios capazes
de construir velhas relações e reconstruir novas. Assim, os lugares são
reinventados para produzir um novo campo vivencial que participa na produção de
novos sentidos. Cria-se um olhar sobre a cidade cenográfica, um olhar sobre a
cidade como imagem, um exercício que passa a experiência para uma expressão
verbovisual, uma reinvenção mínima a partir de uma situação, uma vivência em
um cruzamento de cinco ruas no Aglomerado da Serra (Figura 6).
Hipótese uma – Uma steadycam segue uma rua em movimento suave.
Movimentos emmera lenta. Não se reconhece o lugar, até que o movimento
pára e dá um zoom em uma casa no morro, mostrando um quintal com um varal
de roupas onde uma criança pequena brinca com um cachorro do seu tamanho.
No beco da frente, um menino soltando pipa correndo com um outro cachorro, em
cima da laje vizinha, uma mulher pendurando roupas olha para um homem
tropeçando no asfalto irregular da rua, desequilibrando e quase caindo.
Observando os detalhes, de um lugar invisível, distante. A ilusão de ser voyeur
invisível se rompe quando uma mulher passa na frente, xingando. Acho que ela
me viu e falou comigo e lhe pergunto por que ela está chateada, o que ela nega
em tom agressivo. Resumo meu caminho, mas não consigo encontrar o mesmo
lugar e o mesmo movimento suave e confortável. Olhos das janelas, varandas e
lajes me perseguem e colocam a minha presença em evidência. Sinto que cometi
um crime. Sinto-me ameaçada e decido retornar pelo mesmo caminho que
cheguei. Quando me afasto mais, reconheço todos os lugares, relaxo por causa
da familiaridade, a volta é rápida. Não, não é bem isso.
Hipótese dois – Subo a Serra, um morro; paro numa linha de divisão; é
o início de uma favela: o Aglomerado da Serra. Não conheço ninguém, sinto-me
diferente, fora do lugar. Quando vejo um moço andando torto dou meia volta e
começo descer. Não, não é bem isso.
Hipótese três – Vejo no final da rua um muro pintado com tinta a óleo
azul claro brilhante. É uma igreja. Abrem-se as portas e saem pessoas em roupas
de domingo. Sigo o fluxo das pessoas, reparo na roupa de uma menina, sapatos
laqueados e um manto duro com gola grossa de um vermelho intenso. O casaco
Figura 6 – Cidade cenográfica, LINKE, 2006.
de inverno faz surgir tempos diferentes. Perco as referências temporais
completamente quando me encontro no meio de uma interseção de cinco ruas
com motos atravessando em todas as direções. O casaco da menina parece uma
lembrança de um filme, a interseção das diversas ruas uma situação kafkiana e o
medo de uma criança em frente ao globo-da-morte. Perdi as pessoas que estava
seguindo. Fecho meus olhos e, embaixo das pálpebras, continua a circulação
rápida das luzes. Não, não é bem isso.
Hipótese quatro – Entre os sons de carros escuto vozes, sons
mecânicos, a lataria de um carro velho. Um sapato rastejando no asfalto, a minha
sola dos pés pisa num lugar molhado, um som líquido escorrega. Não, não é bem
isso.
Hipótese cinco – Uma garganta seca, um cheiro de sujeira e de poeira.
A umidade do ar faz o exaustor do carro parecer mais sufocante. Sinto o sabor do
gás carbônico nos meus dentes e meus lábios. Afasto-me da intersecção e passo
por uma padaria. A vitrine está convidativamente cheia de vidros com balas
coloridas. É proibida a entrada de cachorros. Não, não é bem isso.
Hipótese seis – Corro rápido. Viro esquina, viro esquina, não escuto
mais nada de fora, todos os sons estão dentro de mim; ouço a minha respiração
ofegante, o meu coração martelando dentro da minha cabeça e continuo correndo.
O processo de contrastar fluxos e deslocar narrativas pode dar vazão à
pressão contínua e criar ilhas de inteligibilidade; não para criar um tecido urbano
homogêneo, mas para criar perspectivas ou pontos de relação a partir da
experimentação de um lugar. As hipóteses desdobram essa situação em
estratégias que criam diferentes perspectivas. Trata-se de um experimento que
trabalha com as limitações da experiência visual. Por meio do discurso, abrem-se
diferentes possibilidades de relação com o mesmo espaço. Em cada hipótese,
abre-se e fecha-se a cortina na tentativa de questionar e dissolver as fronteiras
construídas no nosso entorno e de jogar os diferentes sentidos e com as
distâncias que regem as relações entre os sujeitos.
Nessas hipóteses, são atribuídos conteúdos representacionais às
imagens do exterior, da cidade cenográfica, via palavra. O discurso começa a
ocupar os lugares, as palavras garantem a disponibilidade das coisas. Um lugar
comum como tamm um objeto qualquer pode oferecer múltiplas entradas a
várias regiões do conhecimento; um discurso é capaz de estabelecer uma relação
entre as coisas visíveis e, assim, cria um lugar enquanto formula um ponto de
vista e se refere a uma unidade contável de coisas por meio de um processo de
seleção.
A cidade, percebida como cidade cenográfica, cria a noção de que as
realidades não são fixas. Podem-se viver várias situações a partir de uma
espacialidade. As situações como hipóteses, mesmo as mais banais, se tornam
extracotidianas pela sua sobreposição. Durante as atividades diárias, as pessoas
exercem o papel de expectadores regulares de lugares. Quando inconscientes
dessa condição, eles entram no ilusionismo da cidade, é assumida uma posição
fixa imutável. Criar um público para assistir à atividade normal do mundo. Ver a
performance de seus diversos atuantes é a primeira etapa de uma
conscientização.
Para poder falar do trabalho Perímetro, que visava essa conscientização
ou a criação de uma situação que permite um olhar sobre as relações existentes,
apresento aqui primeiramente seu contexto. O projeto Lotes Vagos, idealizado por
Louise Ganz e Breno Thadeu
24
, parte da concepção de uma cidade regida por
interesses particulares em que o individualismo e a visão quantitativa da vida
aboliram a noção de público. Os artistas e arquitetos
25
que, a partir de junho de
2004, participaram de discussões e criaram intervenções em cinco lotes, em 2005
trabalharam para adquirir um pensamento consistente sobre interesses públicos e
caminhos para outros modos de viver. O projeto Lotes Vagos: ação coletiva de
24
Breno Thadeu (1979- , Belo Horizonte) é arquiteto, artista e professor.
25
Artistas e arquitetos participantes: Ana Paula Baltazar, Breno da Silva, Carolina Junqueira,
Cinthia Marcelle, Fabiola Tasca, Grupo MOM., Hélio Passos, Ines Linke, Laís Myrrha, Louise Ganz,
Marilá Dardot, Melissa Mendes, Rodrigo Borges, Rita Velloso, Ronaldo Macedo, Sara Ramo, Silke
Kapp.
ocupação urbana experimental visava transformar lotes privados em espaços
públicos temporários e propor apropriações e usos que gerassem usos ou
programas que discutissem noções de propriedade, público, jardim e vago.
Como os lotes vagos são resultados da multiplicação de espaços
privados, murados, ociosos, latentes, eles estão distantes da vida cotidiana,
mesmo coexistindo nas proximidades da rotina diária. A idéia de torná-los
acessíveis ou ativá-los é ligada ao conceito da cidade como espaço natural do
homem livre. O desejo utópico do projeto visava uma rede de espaços públicos no
tecido urbano, resultado da iniciativa artística, fora da lógica capitalista do lucro,
espaços nutritivos, auto-sustentáveis, que seriam gerenciados e mantidos por
coletivos de indivíduos. As ações de ocupação temporária foram pensadas como
um embrião, uma iia-piloto que revelaria o potencial desses e outros espaços
para dar início a contínuas ações futuras.
Os cinco lotes, em bairros distintos, foram negociados com os
proprietários para serem emprestados para a realização das ações pelo tempo
necessário. Foram feitos acordos verbais ou contratos assinados que definiram o
caráter e a duração dos eventos. Relações com a população foram estabelecidas
e foram pensadas estratégias para provocar o interesse e o envolvimento ou a
apropriação da idéia por outras pessoas. Visava-se um desdobramento a fim de
que esses e outros espaços passassem a ser utilizados por iniciativas próprias
das pessoas. O desejo de evocar mudanças de comportamentos individuais e
coletivos a partir dos espaços ociosos é associado ao desejo de uma (re-)
configuração da cidade e uma transformação da experiência da propriedade
(proprietários e não-proprietários) que poderia repercutir na subjetividade e no
cotidiano das pessoas.
No dia 30 de outubro de 2004, dentro do contexto do projeto Lotes
Vagos, Fabíola Tasca
26
, Rodrigo Borges
27
e eu, partimos à deriva, a qual nos
deslocou do nosso ponto de partida do bairro Cidade Jardim, escolhido pelo
26
Fabíola Tasca (1969- , Juiz de Fora), é artista plástica e professora universitária da UEMG.
27
Rodrigo Borges Coelho (1974- , Governador Valadares), é artista plástico e professor
universitário da UFMG.
nome. Cidade Jardim é um bairro de alta sociedade, de casas grandes antigas,
jardins cultivados e poucos lotes vagos. A partir de uma conversa com um
proprietário num posto de gasolina onde estávamos pedindo informação sobre um
outro lote, fomos direcionados para o bairro Nova Granada da Regional Oeste de
Belo Horizonte. Lá, numa realidade diferente da nossa, encontramos-nos num
terreno vago, no meio de uma área aberta, indefinida (Figura 7). Digo indefinida,
porque, apesar de ser de propriedade particular, não mostrou limites, cercas,
plantações ou construções. Impressionados pela indeterminação dessa área,
fizemos um plano de saliências do terreno de 2.000 m² e das vizinhanças.
Descobrimos um lugar onde predomina a história de um antigo lixão e de projetos
urbanísticos falidos
28
. O lote não pareceu existir como um lugar em si, mas como
memória de um passado recente e, hoje, como acesso a duas frações do Morro
das Pedras, uma região residencial informal, ou seja, uma favela.
Passagens constantes, trânsito de pessoas, animais, bicicletas e carros
fazem a área parecer de todos e de ninguém. O vazio como ausência, terra sem
lei, liberdade irrestrita, drogas, violência, lixo, ratos e cachorros transformam o lote
em uma ilha de projeção de medos e, simultaneamente, de esperanças. Os
moradores, o proprietário, a Companhia Urbanizadora de Belo Horizonte – URBEL
–, a Superintendência de Limpeza Urbana – SLU –, a prefeitura, as crianças, as
mães, os adolescentes, trabalhadores e aposentados, todos demonstraram
demandas particulares que fazem do lote um campo fértil de idéias. Entretanto, as
infinitas possibilidades, misturadas com apatia, incertezas e falta de dinheiro
resultam numa inércia total. O convite ao uso de uma caçamba para a melhoria de
vida dos vizinhos do proprietário não se transforma em uma ação coletiva. A
presença de um poder oculto e estranho impossibilita qualquer articulação no lote.
Um terreno vago, sujo, fedorento, desprotegido, indefinido e nós, no
centro em contemplações repetidas, com os nossos questionamentos estéticos e
éticos. Usamos o lote para observar o entorno. Sentimos uma incapacidade de
28
Um projeto de parque ambiental tampando o antigo lixão cuja construção foi iniciado, mas não
terminado, e o Conjunto Esperança no Barreiro para onde foram os moradores do lixão.
lidar com este lugar sem fronteiras, heterogêneo e paradoxo. Pensamos num
lugar de observação que possibilitaria às pessoas verem-se nesse local, uma
estação para perceber a sua presença nesse local. Mas, na indecisão para onde
se deveria direcionar o olhar das pessoas, decidimos fazer o lote aparecer pelo
ato de andar, a realização espacial do lugar a partir do seu uso e das formas de
movimento, pelo processo que Certeau (1984) chama de apropriação do sistema
topográfico pelo pedestre. Optamos por um procedimento artístico para revelar os
limites do perímetro do lote particular, registrar o seu uso e tornar o lote presente,
visível e aparente via registro das trajetórias das pessoas que entram e saem.
A ação aconteceu durante o período de 12 horas de um único dia, no
mês de junho de 2005, e consistiu no procedimento de acompanhar as pessoas
que atravessaram o lote naquele dia, desenhando os seus trajetos no solo com
um dispositivo que aplicou uma mistura de água e cal diretamente sobre o terreno
(Figura 8). A marcação teve o seu início e fim estabelecido pelos limites do lote.
Com tal procedimento, a ação procurou revelar o contorno invisível da propriedade
particular, deixando um rastro de cal que marca somente o trajeto dentro do lote.
As passagens efêmeras se tornam visíveis e se sobrepõem. Com essa
acumulação de linhas, demarcou-se negativamente o perímetro do lote (Figuras 9
e e10). Ou, pelo menos, assim pensávamos. Alguns observadores da ação
permaneceram fora dos limites, suspeitos da aparência tóxica do liquido branco,
que, em excesso, criou lugares escorregadios antes de secar para formar uma
camada seca e dura. Outros pensavam que se tratava de um procedimento
relativo à saúde pública que acabaria com as pragas do local. Tentando desviar
das marcas, os moradores criaram cada vez novos trajetos fora das trilhas
cotidianamente usados, ampliando, assim, a área das marcas sobre o lote.
Crianças, após dar algumas voltas para entender e desafiar o procedimento das
linhas brancas, se cansaram de andar, se desinteressaram e preferiam voltar para
o seu cantinho convencional de soltar pipa dentro do terreno. Cachorros e
crianças pequenas foram carregados para evitar contato com a substância e evitar
sujar as patas e os pés. Houve uma certa curiosidade por parte dos moradores, a
Figura 7 - Registro fotográfico, BORGES, LINKE e TASCA, 2004.
Fig.7
Figura 8 - Registro fotográfico, BORGES, LINKE e TASCA, 2005.
Figura 9 - Perímetro, BORGES, LINKE e TASCA, 2005.
Figura 10 - Perímetro, BORGES, LINKE e TASCA, 2005.
qual foi respondida com uma explicação já previamente elaborada que situava o
projeto como projeto de arte e que convidava o transeunte para conversar sobre a
ação dentro do contexto dos Lotes Vagos no sábado seguinte no centro
comunitário do Morro das Pedras. Ninguém, fora dos organizadores e de um
grupo de dançarinos, compareceu.
Esse fato da não-comunicação com os moradores e transeuntes criou
uma dúvida sobre quem era o público daão? Para quem foi feita, qual foi a
intencionalidade e qual foi o sítio heterotópico ou o sistema no qual estávamos
operando. A dimensão discursiva existe no âmbito da representação que depende
de convenções que estabelecem uma correlação entre uma expressão e um
conteúdo (ECO, 1997). São dados indícios e pistas. O lugar é estruturado na
articulação desses signos, e ele é significado na sua recepção. Cria-se um
discurso espacial. Nessa ficção, o espaço ganha características fluidas e móveis.
Os efeitos e o conteúdo estético de uma obra seguem as regras dos modelos da
comunicação e da semiótica
29
ou se estabelecem a partir de uma experiência
particular e processual das relações entre os elementos e os indivíduos no espaço
que depende de sistemas?
Os elementos constitutivos de uma obra dependem da sua realização,
duração, localização e da sua relão com as pessoas. O modelo racional da
linguagem não é apropriado ao lidar com as subjetividades da recepção no campo
sensível. O evento de arte, a expressão de idéias e os questionamentos críticos
não podem depender da repetição de modelos, conceitos e do vocabulário de uma
escritura simbólica prestabelecida. A experiência não tem que passar pela
representação; ela é dinâmica; ela é o fato que se faz conhecer. O processo de
significação e interpretação se dá posteriormente à vivência via dialética do
sentido e da referência de cada pessoa. Formas de vida têm uma remissão ao
infinito, podem conduzir para várias formas de produção de conhecimento. A
experiência é um acontecimento real e único, a coisa acontece aqui e agora. A
29
A definição de Peirce se baseia numa cooperação de três sujeitos: significante, signo e
interpretante, para possibilitar a percepção de um evento ou de uma expressão.
vida cotidiana é guiada por experiências cuja percepção é ligada a sensações
corporais e esquemas mentais. A relação e a apreciação dependem da
capacidade de interpretação, não no sentido tradicional da oposição entre forma e
conteúdo, mas da interpretação ou configuração provisoriamente estabilizada de
um fluxo infinito de onde se extrai a experiência em cada ato que permite estar
consciente de um comportamento e de identificar eixos espaciais incompatíveis.
Um ato intencional visa um efeito no observador que participa não somente na
construção do sentido, mas na constituição de um trabalho.
Pensando as imagens como linguagens, propõe-se um repertório
limitado de símbolos e assume-se possibilidade da tradução de uma linguagem
para outra. A produção artística em termos da produção de linguagens, em que as
diferentes manifestações artísticas funcionam como codificadores, implicam a
codificação de mensagens, pensamentos e informações em signos. A linha da
semiótica
30
divide esses códigos em signos simbólicos, signos arbitrários sem
relação natural, icónicos, representações elaboradas e deliberadas, ou indiciais,
fragmentos ou vestígios derivados de coisas, que se baseiam em convenções de
tempo e espaço específicas e em uma relação sociocultural. Cada área de
conhecimento faz uso dos seus elementos básicos, seu vocabulário e sua sintaxe,
para construir signos com propostas comunicativas e estéticas e conhecimento. A
recepção é dada na atribuição de um determinado significante a um determinado
significado e da expansão dos modelos.
Modelos de comunicação dividem o processo de transmissão de
pensamento em: emissor - mensagem - receptor ou em: codificação - mensagem -
decodificação
31
. Essas funções do fazer passar uma idéia são premeditadas
(como em uma propaganda publiciria) e a mensagem é transposta ou transcrita
em códigos, no caso da cenografia em imagens. A proposta comunicativa
depende de um conhecimento prévio, de um modelo a ser reproduzido. A
construção do sentido se dá pela razão. Mas a idéia da obra ambiental trabalha
30
De acordo com Pierce.
31
Diferentes formas de pensar o modelo da tríade peirciana.
com a imersão do espectador e da vivência do espaço que primeiramente não
funcionam como linguagem. Esse envolvimento direto e a participação corpórea
podem criar novos registros, trocas e confrontações. As essências das situações
se desprendem das corporeidades das pessoas que participam nas intervenções.
Os eventos transformam o espaço exterior em lugar de criação e de
apresentação, um novo site, um outro lugar. Nesse sentido, como tamm no ato
de caminhar, não se depende de signos emitidos artificialmente ou
intencionalmente e pode-se confirmar que as situações sem emitentes humanos
tamm são capazes de estabelecer conteúdos.
Tomar consciência dos meios retóricos que são empregados em um
trabalho e construir a partir da abstração conceitual um significado para ser
identificado passa pelo sensível e pelo subjetivo. As pessoas não foram afetadas
e não conseguiram identificar um sentido fora da maneira pela que estavam
habituadas a ver a área do lote cheio de lixo e ratos e as pessoas de fora (da SLU,
da URBEL ou da Prefeitura) remediando a situação em curto prazo. Uma
percepção estética ou um outro modo de ver não foram suscitados. Visamos, com
o trabalho Perímetro, um efeito nas pessoas do bairro ou utilizamos a afirmação
aquilo é arte como uma desculpa para a não compreensão e insegurança por
parte dos moradores, que pensavam se tratar de algo perigoso ou ofensivo?
Existem momentos em que se apreendem os acontecimentos. Nesses instantes,
não se podem formular apreensões; resta apenas vivê-las nas realidades em que
elas se apresentam. Perímetro lidou com as pessoas do local: o primeiro público
em potencial, como objeto e não como participante. A relação se esgotou em um
procedimento mecânico para atingir um resultado premeditado de natureza
plástica. A mediação da idéia que o lote, apesar de ser uma propriedade
particular, estava como um bem comum, um lugar em uso coletivo, falhou na
comunidade.
Acredito que nós tamm não fomos afetados. O sistema no qual
estávamos atuando não era o site, mas um lugar discursivo em uma outra
instância; não criamos uma relação efetiva com o lote e tampouco com as
pessoas. Não houve intercâmbio ou uma troca de material como nos trabalhos de
Dennis Oppenheim entre nós e as pessoas do local. Nem uma interação corpórea
suscitou uma mudança de percepção.
O não afetar e não ser afetado foi recíproco, mas a transformação se
deu numa reflexão conceitual sobre a relação entre obra e público. O trabalho
suscitou uma discussão sobre participação e questionamentos sobre as
dimensões sociais e políticas de trabalhos artísticos e definiu alguns parâmetros
para as intervenções futuras.
Nos trabalhos mencionados partimos da idéia da cidade cenográfica
como nosso espaço vivencial, da experiência perceptiva e da dimensão sensível
como procedimentos de apropriação do lugar e de construção de um olhar.
Lançamos um olhar estético sobre imagens do cotidiano para fundamentar a
estética no sentir e na vivência de um acontecimento. A partir da experimentação
de espaços e das associões subjetivas, foram realizados ações e registros das
práticas e da apreensão seletiva por fotografias e textos que selecionam e falam
de movimento, de trajetos, de conjuntos temporários, de fixos e fluxos. Essa
experiência do envolvimento perceptivo com algo preexistente formará a primeira
instância, a percepção sensível como espaço de enunciação, para os trabalhos
posteriores.
4 A DIMENSÃO FENOMENOLÓGICA
Space is a practiced place
Michel de Certeau
Se os espaços são encenações de posturas, comportamentos e
movimentos corporais, a relação com o lugar como perspectiva dos trabalhos
demanda a interação com o espaço, os objetos/materialidades e as pessoas.
Analisando os espaços como fenômenos e sistemas, as intervenções interferem
em um conjunto de ações ou num conjunto de elementos finitos e, assim,
deslocam a direção da produção de sentido preestabelecido. A experiência da
diferença é vinculada ao lugar do acontecimento.
Na dimensão fenomenológica, o lugar se dá a partir de sua realidade,
cuja identidade é composta por uma combinação determinada de elementos
físicos, forma e proporções. O procedimento do trabalho artístico explora,
apropria-se e incorpora o ambiente e os objetos constitutivos que dirigem e
determinam o processo. A materialidade, as impurezas e ruídos do espaço
cotidiano se integram à obra e formam um espaço tangível. No processo de
criação, o lugar é experimentado como singularidade, um acontecimento, em
unidade com a presença do local.
Na criação dos meus trabalhos, a partir da ocupação de um
determinado lugar, as proporções, materiais e as pessoas integram-se ao
trabalho. A topografia do lugar influencia as experimentações, as propostas e o
trabalho das pessoas envolvidas. A apropriação e a experimentação resultam na
exploração de múltiplas combinações possíveis, produzindo contínuas
composições. Outras possibilidades de percepção e novas configurações sugerem
direções que produzem experiências individuais. Cada situação possibilita novas
articulações. Os atos de criar, exprimir, experimentar, manifestar uma impotência
e justificar-se estão interligados. Processos que reorganizam e desorganizam,
acasos e arbitrariedades afirmam o lugar singular que o indivíduo ocupa no
mundo.
O projeto M2, um desdobramento do projeto Lotes Vagos, propõe a
realização de várias intervenções em lotes, a transformação desses lotes, a
criação de relações entre pessoas e sua participação nesses eventos para a
confecção de um documentário
32
. Trata-se, como no projeto Lotes Vagos, da
discussão da propriedade, da (re-)configuração da cidade e da influência que os
espaços exercem sobre a subjetividade e os comportamentos. Tentamos
radicalizar a noção de público, que, com a segregação contínua das classes
sociais e a alienação dos indivíduos, perdeu sua função na dinâmica urbana.
Tamm discutimos conceitos como modos de viver, qualidade de vida e o
sentido de liberdade a partir da participação de geólogos, movimentos populares,
economistas, arquitetos, incorporadores e filósofos.
Os tipos de intervenções, a duração e as datas são programados para a
realização das gravações, mas a escolha do local, o contato com as pessoas, a
concepção e a execução das intervenções, as participações espontâneas e as
colaborações efetivas são retomadas aos parâmetros do projeto Lotes Vagos. As
intervenções propõem situações que, por meio do distanciamento e
deslocamento como processo, criam novos espaços e possibilidades para a
interação com as pessoas. É dado enfoque nas relações entre pessoas, em que
essas situações podem provocar e na repercussão no comportamento social.
Louise e eu desenvolvemos seis situações, a partir da realidade física e
social de cada lote, que possibilitaram cada pessoa a participar e construir a sua
própria situação. A proposição aberta e o convite para agir fizeram a divisão entre
artista, espectador e usuário desaparecer. As situações foram vividas e todas as
pessoas viraram proponentes no ato de escolher sua ação concreta nesses
espaços. Foram construídas relações entre programas inexistentes, entre diversas
32
O documentário dirigido por Ines Linke e Louise Ganz foi produzido dentro do contexto do
DOCTV III. O DOCTV é um Programa da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura,
Fundação Padre Anchieta / TV Cultura e Associação Brasileira das Emissoras Públicas, Educativas
e Culturais – ABEPEC –, que tem como objetivos gerais a regionalização da produção de
documentários, a articulação de um circuito nacional de teledifusão e a viabilização de mercados
para o documentário brasileiro.
classes sociais e faixas etárias diferentes e entre pessoas, na tentativa de reverter
a setorização, a hierarquização dos espaços e a dominação e o controle do
indivíduo na cidade contemporânea.
Como o projeto Lotes Vagos, as ações dentro do contexto M2 também
partiram do lote privado, da iia de promover uma ação coletiva e da noção do
vago como uma área da não-determinação, como potencial de devir e lugar de
múltiplas possibilidades. Meio-lugares, estados provisórios, inacabados e
disponíveis. O lugar de um lote se faz quando ele é vivenciado permitindo que as
essências se desprendam das corporeidades. O terreno vira lugar de práticas
efêmeras, construções de situações que proponham espaços provisórios. O fator
tempo e o caráter provisório mostram o estado em potencial. Em vez de instalar-
se como um funcionamento fixo, a idéia das intervenções é manter os espaços
livres e vazios, resistindo à organização e ao agenciamento dos outros espaços
da sociedade espetacular. O caráter provisório cria um potencial de devir. A
efemeridade da situação e sua duração temporal devem manter-se no campo do
precário, criar um lugar com uma condução frouxa. Em quanto tempo um lugar se
faz? Em quanto tempo um experimento vira um costume, quanto tempo é preciso
para se viver um estado do corpo?
Topografia (Figuras 13 e 14), a primeira
intervenção dentro desse contexto, foi realizada
num lote no bairro Padre Eustáquio, situado numa
área fortemente inclinada da Rua Monte Santo.
Criamos áreas de descanso. Abrimos a porta e
convidamos para entrar, ver a cidade, descansar,
cochilar, ler um livro ou apropriar-se do espaço de
uma outra forma. No terreno do lote foram feitos
onze recortes na terra nos quais foram fixados
colchões amarelos que solicitaram as pessoas a
assumir posições, sentadas ou deitadas com
diversas angulações apropriadas para as diversas
Figura 11 - Stairs,
GREENWAY,1994.
ações. Parecido com os trabalhos Stairs de Peter
Greenway (Figura 11) e Viewing Station de
Dennis Oppenheim (Figura 12), os olhares foram
direcionados para uma vista privilegiada da cidade
de Belo Horizonte. O lugar é transformado em um
cinema do espaço real. O tempo e a noção de
realidade mudam, não é feito um convite
autoritário, mas um convite para achar o seu
modo de viver.
O dia da intervenção foi ensolarado,
quente e lento. Poucos vizinhos e outras pessoas
do bairro entraram pela porta pequena e
relaxaram. Houve curiosos, muitas perguntas e vários adultos, adolescentes e
crianças, que entraram no ritmo lento do tempo suspenso do lote. Alguns olharam
a paisagem, outros conversaram, caminharam nos diferentes níveis do lote,
pegavam livros, leram, comeram biscoitos, compartilharam as leituras e o lanche e
socializavam em cima de um colchão amarelo.
Para a segunda intervenção foram estabelecidas relações com pessoas
locais para organizarem e participarem de um Banquete em um lote plano,
cercado por quatro ruas, no bairro Nova Vista (Figuas15 e 16). Foram contatadas
as pessoas do conjunto habitacional em frente, os moradores das ruas adjacentes
e os comerciantes vizinhos. Cada pessoa, grupo ou família participante, levou
cadeira, comida, pratos e talheres da sua casa para um evento comunitário. A
participação das pessoas foi espontânea e direta. Sem sua colaboração, só teria
existido uma mesa de 22 metros no meio de um lote vago. As pessoas saíram
constrangidas das suas casas carregando travessas, pratos, talheres e cadeiras,
preferiam sair em grupos dos apartamentos e casas, às vezes, levando a família
inteira. Chegando ao lote, agruparam-se embaixo de guarda-sóis e em volta das
panelas e bebidas que eles mesmos tinham trazido. A hora de comer pareceu
uma batalha de comida. Em meia hora, o que parecia muita comida, tinha
Figura 12 – Viewing station,
OPPENHEIM, 1969.
acabado, os pratos foram raspados e as melancias mortas. Só depois as pessoas
começaram a relaxar, sentando-se em cadeiras, começando a conversar, cantar e
brincar de uma forma descontraída. As pessoas que encontro de vez em quando
no ônibus para casa contam com entusiasmo do dia porque foram afetadas pela
mobilização coletiva do bairro, fizeram planos de organizar outros momentos
coletivos e se orgulham de cuidar do lote que está sendo utilizado pelas crianças
na sua função anterior: campinho de futebol.
A terceira intervenção, o cabeleireiro, aconteceu num lote da rua Ceará,
que, durante a semana, funciona como estacionamento para clientes e é mantido
coletivamente pelos comerciantes de um depósito, uma loja, um sacolão e um
cabeleireiro (Figuras 17 e 18). Por causa desse entorno específico e esse
funcionamento existente, foi feita uma proposta para ativar o estacionamento com
as atividades dos comerciantes. Num domingo, dia no qual o estacionamento
ficasse fechado para os clientes, o local foi ativado para criar um cruzamento dos
programas existentes no bairro. Foram aproveitadas as sombras das copas de
duas mangueiras para criar um ambiente onde as atividades coexistissem. As
pessoas podiam ler, comer, fazer diversos tratamentos estéticos, relaxamentos,
brincar com areia, passear com cachorro, conversar, encontrar. Os moradores,
passantes e profissionais envolvidos, entraram no clima predominante do
cabeleireiro, um clima de conversas, de diálogo, de contemplação da natureza,
dos sons das árvores, a beleza de um lugar que passaria despercebido; é
revelado um outro modo de ver.
Marcamos a participação de vários profissionais do bairro e outros
conhecidos de outros lugares. As pessoas foram chamados para colaborar com o
evento oferecendo seus serviços e mercadorias. O cabeleireiro convidado
aproveitou o momento para fazer propaganda do seu salão de beleza por meio de
tratamentos gratuitos, e o sacolão vizinho doou umas bandejas de frutas. Essa
participação criou uma movimentação em volta das duas mangueiras, circundadas
por um tapete cor de rosa, que foi suficiente para chamar a atenção dos
moradores dos prédios vizinhos que não deixaram de descer com seus
cachorrinhos para ver o que estava acontecendo e entrar na fila
33
de uma das
manicuras.
Brinquedos (Figura 19) foi planejado em conjunto com a população
local, ou melhor dizendo, com as mulheres do bairro durante as duas semanas
anteriores ao evento. Projetamos uma área de brinquedos, areias e blocos de
madeira embaixo de uma estrutura de palafitas para as crianças. Limpamos os
quadrados entre os pilares da estrutura e cobrimos o chão com as suas
irregularidades naturais com dois metros cúbicos de areia. Foram inseridos nesse
espaço mais de 400 brinquedos e 300 blocos de madeira para serem o ponto de
partida de uma interação entre as crianças do bairro. Pequenos núcleos, de duas
a seis crianças, colaboraram na construção de casas, moradias, cidades,
fazendas, arcas, caminhos e estradas que, na sua expansão, se misturavam e
invadiam criações alheias. Surgiram conflitos, invasões violentas, revoluções,
movimentos de resistência, jogos de poder, roubos para aumentar a propriedade
particular de cada grupo. Os interesses particulares prevaleceram. Não se pensou
em construir uma coisa em conjunto, cada grupinho, e dentro dele cada indivíduo,
por si.
A quinta intervenção dentro do contexto M2 importou o clima de praia
para um lote vago da Savassi, região central de Belo Horizonte (Figura 20). Foi
preenchido um quadrado no centro do lote com dez metros quadrados de areia no
meio do qual foi colocada uma piscina redonda de plástico, cheia de água.
Espreguiçadeiras, um guarda sol e água de coco completaram o ambiente
ensolarado, descontraído e relaxado. Molhando o pé, dando um mergulho,
tomando água de coco ou uma cerveja, relacionando-nos com pessoas
conhecidas e desconhecidas estabelecemos interações que sugerem novas
possibilidades e leituras do espaço. O espaço vago foi transformado em uma
situação de contemplação, de apreensão, em um espaço de encontro e uma tarde
de vivências familiares. A escala pequena da piscina reforçou a iia do artifício e
da precariedade da situação, não se tratava de construir uma praia verdadeira,
33
Existia uma ordem numérica pela qual as pessoas foram atendidas gratuitamente.
Figura 13 – Topografia, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 14 –Topografia, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 15 – Banquete, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 16 – Banquete, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 17– Cabeleireiro, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 18 – Cabeleireiro, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 19 – Brinquedos, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 20 – Praia, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 21 – Exibição, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 21 – Exibição, LINKE e GANZ, 2006.
mas de uma idéia. Crianças de biquínis e sungas, adultos sentados com suas
cangas e toalhas nas espreguiçadeiras conversando. Amigos, conhecidos das
situações anteriores e transeuntes que vieram em grupinhos começaram a
interagir e criar um clima de convivência.
Essa convivência, esse clima em comum tamm estava presente na
sexta intervenção (Figuras 21 e 22), a Exibão, na qual foi mostrada uma edição
preliminar do documentário para os participantes das outras situações. O lugar
dessa exibição era um lote do bairro Floresta com uma casa aberta em ruínas. Em
cima dos vestígios dessa casa, uma planta baixa com pisos diferenciados dos
antigos cômodos de uma casa particular, criamos quatro salas de TV com sofás,
cadeiras luminárias tapetes e um tv-set exibindo o documentário. As pessoas
presentes eram amigos, conhecidos e outras que tinham participado de uma das
intervenções anteriores. A exibição se iniciou no final do dia e foi até a noite.
As situações criadas pelas seis intervenções podem ser compreendidas
como construções precárias em cima da imagem da cidade provocando diferentes
tipos de atitudes e respostas dos participantes, colaboradores e espectadores. As
situações coexistiam com seu entorno, mas o caráter dessa relação dependia da
articulação que foi feita com as pessoas e com as especificidades de cada lugar.
Todas as situações, em maior ou menor grau, trouxeram algo de precário, de
frágil, aberto, frouxo que permitia o acaso, a possibilidade de colaboração e de
reinventar a situação a todo instante a partir de um deslocamento de uma relação
familiar e cotidiana.
O lote delimita um espaço onde é criada uma situação que potencializa
seu uso. Essa intervenção associa o lote a outros espaços e práticas individuais e
coletivas. As experiências das práticas cotidianas nessas novas configurações
espaciais e relacionais transformam a dinâmica das relões convencionais. Mais
que deslocar as práticas de um espaço específico, eles criam possibilidades de se
reorganizar, de criar grupos de convivência, situações que transformam a
percepção do espaço, a maneira de ver os lotes e a imagem da cidade.
Vivenciar uma ação no nível do cotidiano, deslocada no espaço, mostra
uma outra imagem da cidade, uma cidade de peças soltas, uma rede de sistemas
abertos. Nas situações das intervenções realizadas no contexto do documentário
M2- metros quadrados não foram criados necessariamente novos hábitos, mas
foram feitas perguntas sobre as esferas públicas e privadas. Algumas pessoas
participaram, fizeram propostas e colaboraram com contribuições efetivas,
mudando a situação antes de ela tornar-se uma situação estável. A vitalidade da
cooperação espontânea em cada situação construiu um corpo coletivo
momentâneo. A participação e colaboração de pessoas a médio prazo poderiam
criar hábitos e rotinas, mas o evento temporário, pontual, permite uma flexibilidade
aos usos. O deslocamento de uma relação familiar e cotidiana para um espaço
exterior se sobrepôs à cidade e criaram instâncias singulares, livres do
automatismo comportamental.
As relações cotidianas com o entorno são determinadas por hábitos que
se inserem na esfera do inconsciente. Espaços, ações e objetos são percebidos
por atos mecânicos de reconhecimento. Nesse processo de automatização, os
objetos são substituídos por símbolos. O objeto abreviado ou empacotado é visto
apenas na sua superfície. O reconhecimento é imediato. Dessa maneira, espaços,
ações e objetos não passam por um processo de conscientização. O
deslocamento é uma estratégia artística que provoca um distanciamento, um
estranhamento, uma suspensão das finalidades cotidianas, que abre um campo
que é regido pela conjuntura de novas relações. O deslocamento como
procedimento abre a visão à virtualidade do mundo exterior e proporciona um
encontro com a presença das coisas. O distanciamento funciona como um corpo
épico, um corpo estranho que possibilita as relações desvinculadas do
automatismo. A distância constitui um elemento essencial da experiência sensorial
e é associada à capacidade e a habilidade de produzir, usar e criar.
No campo literário, para devolver as sensações e libertar os objetos, os
teóricos formalistas russos propuseram o objeto como visão e não como
reconhecimento por meio de processos de singularização. Assim, podemos dizer
que a arte como procedimento surgiu em relação à crítica literária, que entendia a
arte como estranhamento (ostranenia, tornar estranho), pelo qual se podia
reavivar a percepção.
Para ressuscitar nossa percepção da vida, para tornar senveis as
coisas, para fazer da pedra uma pedra, existe o que chamamos de
arte. O propósito da arte é nos dar uma sensação da coisa, uma
sensação que deve ser visão e não apenas reconhecimento. Para
obter tal resultado, a arte se serve de dois procedimentos: o
estranhamento das coisas e a complicação da forma, com qual tende a
tornar mais difícil a perceber e prolongar sua duração. Na arte, o
processo de percepção é de fato um fim em si mesmo e deve ser
prolongado. A arte é um meio de experimentar o devir de uma coisa;
para ela, o que foi não tem a menor importância (GINZBURG, 2001,
p.16).
O estranhamento é causado quando um objeto é removido do âmbito da
percepção automatizada para alcançar uma percepção exata das coisas. Esse
mecanismo de arte circunscreve o instante presente. Tudo é instável e em
processo de desaparecimento. Os objetos, como as pessoas, devem ser vistos
dentro de um processo geral de transformação e mudanças. O estranhamento
formal afasta o reconhecimento imediato do objeto para buscar seu princípio
causal. O ponto de vista subjetivo é um olhar estranho que permite enxergar mais,
por meio de reações espontâneas, não preconcebidas. Ver as coisas é libertar-se
de idéias automáticas e de representações falsas. Ver as coisas dessa maneira é
torná-las vivas. A definição da arte como procedimento contesta as fórmulas pré-
constituídas de representação e busca a qualidade da experiência provocando
respostas estéticas.
A distância em forma de choque, decepção ou desordem confirma a
presença do distanciamento na arte em geral. O sentido contra a ordem-norma
restabelece a experiência fora das percepções automatizadas. O distanciamento é
capaz de tornar o cotidiano especial. O acúmulo das não-compreensões
transforma-se em compreensão. A experiência é constituída a partir de processos
dialéticos.
Aquilo que é tomado como naturalmente compreensível torna-se
incompreensível, e a finalidade dessa passagem está num terceiro
momento que consiste em atingir o conhecimento ctico do dado
inicial; deve-se erradicar de sua suposta familiaridade aquilo que se
percebe sem realmente perceber (BORNHEIM, 1992, p.244).
Distância apresenta muitas atribuições no teatro desde sua origem.
Mas, no contexto teatral distância tamm se refere à relação entre o espectador
e a obra. Distância mínima, como identificação total ou fusão com a obra, e
distância máxima, como ruptura de ilusão pela qual os elementos parecem
inverossímeis e inacessíveis, representam duas vertentes opostas no teatro. O
distanciamento impede a integração física, empática e ilusionística do espectador,
a representação é objeto exterior. A distância mínima permite que o público entre
na representação. O distanciamento, como conceito que define a relação
encenação-platéia pelo grau de participação do público , influencia a recepção da
obra e não caracteriza uma experiência especificamente teatral, mas constitui o
comportamento no sentido obra-espectador em geral. Como procedimento pode
ser aplicado para pensar a relação entre espectador e obra também nas artes
plásticas.
O Verfremdungseffekt, o efeito de distanciamento brechtiano, é um pré-
requisito para evocar um juízo crítico no espectador
34
. Mas além de abordar
somente as relações palco - platéia, as fundamentações e objetivos específicos da
teoria brechtiana sobre distanciamento envolvem todos os elementos constituintes
da obra. Brecht (1978) propõe, preservando um vínculo com o estranhamento
russo no conceito base, tanto uma teoria e uma prática para o trabalho do ator
como para as outras partes que compõem um espetáculo. Ele visa transformar o
lugar de ilusão via cruzamento de programas em um lugar onde se fazem
experiências, criam-se consciências e na apropriação das idéias, incentivam-se
ações.
O efeito de distanciamento prende-se essencialmente a essa
possibilidade crítica, que deita as suas raízes não na atividade teatral, e
sim, primeiramente, na própria conjuntura social, que, por sua vez,
permitia instauração de um teatro crítico (BORNHEIM, 1992, p.249).
34
No Teatro Épico.
O drama tradicionalmente queria envolver o público no acontecimento
representado na fábula. Para isso, a verossimilhança, uma lógica causativa e uma
cronologia temporal eram necessárias para criar empatia no observador. O
acontecimento especial tornava-se cotidiano e, assim, acessível. O espectador
ficava fascinado, anestesiado, cego. Ao emocionar-se intensamente, o espectador
vê e ouve passivamente e, ao identificar-se com as personagens, substitui a
realidade contraditória pelo mundo harmonioso e onírico do teatro. Dessa maneira,
o teatro provoca sensações que reforçam a sua magia.
Necessitamos um teatro que não nos proporcione somente as
sensações, as idéias e os impulsos que são permitidos pelo respectivo
contexto histórico das relações humanas, mas, sim, que empregue e
suscite pensamentos e sentimentos que desempenhem um papel na
modificação desse contexto (BRECHT, 1978, p.113).
Baseando a sua teoria no efeito de distanciamento, Brecht configura na
encenação a contradição, o confronto, a associação. O objeto não se presta para
empatia, mas é susceptível de ser reconhecido parecendo ao mesmo tempo
alheio. O distanciamento tem como objetivo despojar os acontecimentos de dados
preestabelecidos e distanciá-los de tudo que é familiar.
Apresentando o “agora” e o “aqui” não como uma ficção que é possível
devido às regras de representação, mas, sim, tornando-os distintos do
“ontem” e do “outro lugar”; a associação dos acontecimentos se tornará,
deste modo, mais clara (BRECHT, 1978, p.120).
Em vez da identificação com o protagonista, o público deve se
conscientizar, perceber criticamente as circunstâncias nas quais ele vive e
desenvolver ações próprias. A representação não é a reprodução no sentido
naturalista, mas um acontecimento que descobre relações, e ao distanciar-se da
realidade, é capaz de revelar e modifi-la em conjunto com a ação do
espectador/participante. Brecht (1978) concebe o teatro como meio de incentivar o
dever de lidar com responsabilidade e com a prática da construção de um futuro.
A distância à realidade apresenta novas perspectivas, o lado oculto, e evoca uma
desalienação ideológica. Transforma, assim, o ato estético em um ato político. Ele
concebe o distanciamento em todos os níveis da encenação: da fábula, do
cenário, da gestualidade, da atuação e da dicção. O processo dialético opõe-se ao
estado e à situação fixada. Tudo o que está presente participa, tudo é objeto de
transformação. Brecht (1978) torna o espaço versátil, flexível.
Outro conceito que se parece com as finalidades do estranhamento e do
distanciamento é o pensamento fenomenológico que também parte da crítica das
operações mecânicas cotidianas. A fenomenologia supõe que, para uma reflexão
sobre formas espaciais e temporais do sentir, é necessária a desconexão ou a
desvinculação provisória do objeto analisado. Nesse processo, a suspensão é a
mediação necessária para focalizar a atenção sobre o núcleo de cada fenômeno.
Por meio da suspensão do uso e da manipulação diferenciada do objeto é
possível tomar consciência da situação natural dos objetos e desvendar sua
essência fenomenal. Vendo o uso como a negação do objeto, o objeto ganha uma
presença quando ele é desvinculado do mecanismo de manipulação. No devir do
objeto, o mesmo aparece tornando-se imagem. A visão se concretiza como
experiência dialética entre distância e proximidade; ela significa a perda do contato
real e o surgimento do contato fantasmático.
A distância é a forma espaço-temporal do sentir. Nessa proposição, a
palavra “distância” deve ser compreendida como designando a
polaridade do “próximo” e do “afastado” da mesma maneira que a
palavra um dia” compreende o dia e a noite. [...] Com efeito, é impossível
falar da distância e do futuro sem se referir simultaneamente à
proximidade e ao presente. [...] A distância é assim claramente a forma
espaço-temporal do sentir. Na experiência sensorial, o tempo e o espaço
não estão ainda separados em duas formas distintas de apreensão
fenomênica. Assim, a distância não é simplesmente a forma espaço-
temporal do sentir, é igualmente a forma espaço-temporal do movimento
vivo (DIDI-HUBERMANN, 1998, p.162).
O distanciamento como procedimento abre a visão à virtualidade do
mundo exterior e proporciona um encontro com a presença das coisas. O
estranhamento russo como um mecanismo para ressuscitar a nossa percepção da
vida tem uma conexão clara com o conceito do efeito de distanciamento
brechtiano. Brecht (1978) amplia a visão do distanciamento quando lhe atribui uma
funcionalidade política por meio da aplicação do Verfremdungseffekt ao processo
dialético da percepção dos diferentes elementos cênicos. Distância para ele
implica uma autonomia dos materiais. Com as suas particularidades e seus
diferentes potenciais, cada elemento é responsável pela construção do seu
sentido individual que dialoga ou choca com os outros materiais da encenação de
maneira polifônica.
O distanciamento funciona como um corpo épico, um corpo estranho no
interior de uma pessoa não consciente ou racional, mas um impulso inconsciente,
uma expressão de sentimentos e da imagem do momento vivido. Ele possibilita as
relações individuais, as infinitas possibilidades desvinculadas do automatismo.
Como devir do objeto a distância constitui um elemento essencial da experiência
sensorial.
Todas as coisas podem servir como pontos de partida para um processo
que implica a suspensão ou o distanciamento do seu cotidiano e podem ser
apreciadas ou julgadas de um ponto de vista estético. As meras coisas, o comum,
o ordinário, coisas naturais e artefatos banais são capazes de provocar reações
que elevam à condição de conhecimento. Mas existe uma diferença em deixar as
coisas acessíveis à apreciação ou articular as relações entre os elementos para a
construção de um conteúdo ou uma coisa a ser apreendida.
A experiência sensorial que modifica as relações nas intervenções
realizadas no contexto do documentário M2, deforma os aspectos que
supostamente são regulados por relações estáveis e fixas. Os lotes, para quais
foram deslocadas as ações cotidianas, tornam-se singulares quando ficam visíveis
na sua essência. Em vez de inserir uma determinada situação num lugar
supostamente neutro, optamos por utilizar a configuração preestabelecida do
lugar. Chegando a uma consciência do lugar, focamos na suspensão da
concretude do espaço, dos objetos e dos comportamentos relacionados a ele
sugerindo um novo conjunto de ações. Buscamos a vivência do espaço por meio
da composição dessas ações. O poder da experiência dos deslocamentos, da
expansão do cotidiano refigura o lugar e as ações. O que se apresenta aos olhos
é distanciado, (re-)encarnado, recorporificado. Por meio da suspensão da utilidade
das coisas e das funções habituais, os elementos se mostram enquanto formas
presentes. Uma visão de um ser polimorfo.
A suspensão da realidade dos lotes é redirecionada quando se propõe
um conjunto de novas ações. As intervenções citadas acima mostram uma
possibilidade de implicações significativas quando repercutem no convívio social
temporariamente. São ativadas as teatralidades dos outros espaços, não para
causar um efeito espetacular, mas para criar a consciência de outras realidades
possíveis a partir da experiência.
O trabalho Percursos, que realizei com Louise em 2006 e 2007 em Belo
Horizonte e Nova Lime, iniciou-se como passeios durante os quais criamos
procedimentos que extrapolam o ato de andar. As microintervenções e
construções realizadas nesse contexto criaram novas situações que se apropriam
de elementos existentes e materiais dos lugares e revisitaram procedimentos
anteriores como a expansão da domesticidade e a criação de espaços públicos
temporários para estabelecer ambientes que pertencem ao domínio do cotidiano.
Percurso partiu da experiência estética de paisagens e dos espaços por
meio do ato de andar e consistiu inicialmente em
procedimentos que dialogam com as experiências
urbanas dos Situacionistas e das experiências de
Robert Smithson em Passaic
35
(Figura 23) .
Num segundo momento, o projeto
propôs atos intencionais que visualizassem
aspetos da experiência individual, ações para
construir um trabalho em processo que resultaria
em uma exposição que será tratada no Capítulo 5.
Percurso 1, a primeira ação, consistiu
35
Em 1967, Robert Smithson realiza um passeio na sua cidade natal, Passaic, Nova Jersey. Ele se
distancia do lugar familiar e experimenta a mise-en-scène do subúrbio, cheio de vacâncias, como
uma série de monumentos maiores e menores. Ele cria relações efêmeras com a paisagem
industrial, tira uma série de fotografias postais dos monumentos e escreve um texto sobre sua
odisséia suburbana, uma narrativa pseudoturística que parodia os diários dos viajantes do século
XIX.
Figura 23 - Um passeio pelos
monumentos de Passaic,
SMITHSON
,
1967.
em um percurso a pé sobre um fragmento da infra-estrutura do suprimento de
água de Belo Horizonte pertencente ao sistema de água Rio das Velhas.
Escolheu-se o itinerário da canalização entre Nova Lima e a Serra no Sudeste de
Belo Horizonte (Figura 24). Um trajeto cujo percurso era predeterminado pelo
trajeto da tubulação que transporta a água para a cidade de Belo Horizonte
(Figura 25). Na ausência de um objetivo claro e preciso, além da atividade de
andar pelo cano enterrado, foi feita uma primeira visita, uma realização de um
passeio estético que remeteu à experiência de Tony Smith no Turnpike de Nova
Jersey
36
.
Uma manhã, em janeiro de 2005, um ônibus velho contornando as
curvas acentuadas entre Belo Horizonte e Nova Lima; uma rodoviária pequena
com muitos olhares e uma ladeira passando pelo projeto Gold City, um parque
temático-histórico a ser implantado no entorno da velha mina de ouro. Na subida,
trabalhadores da construção em uniformes laranjas, olhares e risos. Duas velhas
subindo o morro carregando sacos de linhagem, suas pernas enroladas em
trapos. Subida lenta e sol quente. A linha da tubulação, um corte artificial na lateral
da montanha, uma suspensão, um caminho nivelado e reto cercado de
montanhas. Verdes estranhos, folhas de formas diferentes e matos densos. Um
sentimento de familiaridade, como um passeio no dique lateral nos rios europeus.
Uma natureza cultivada, um campo, uma vegetação até o joelho, composta por
uma variedade de flores, samambaias, capins, ervas e outras plantas cujos nomes
não conheçemos, alguns minúsculos e outros com porte maior, vibrações e sons
de uma presença de água invisível. A realização se deu andando e conversando
sobre as percepções no plano visual, acústico e tátil (Figura 26).
Numa segunda visita, chegamos preparados com alguns tecidos,
mangueiras, barbantes e ferramentas, mas sem projetos claros e precisos. Nesse
36
Nos anos 50, a estética de Smith era influenciada pela experiência de um passeio noturno de
carro entre Meadowlands and New Brunswick ao longo de uma rodovia expressa inacabada, a
New Jersey Turnpike. No seu famoso relato, o artista descreve, o momento arte que ele e seus três
estudantes da Cooper Union tiveram.
Figura 24 – Registro fotográfico, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 25 – Registro fotográfico, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 26 – Percurso 1, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 27 – Percurso 1, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 28 – Percurso 1, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 29 – Percurso 1, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 30 – Percurso 1, LINKE e GANZ, 2006.
dia, criamos materializações mínimas, pequenas interrupções da continuidade
visual. Destacamos plantas, limpamos estruturas, recortamos nichos na
vegetação, criamos caminhos para as águas e circundamos elementos que nos
chamaram atenção. Cortamos um tecido em círculos de vários diâmetros e
vestimos diferentes plantas com essas bolas de tecido branco tecidos. Assim,
isolamos algumas espécies de plantas ordinárias ao longo do trajeto da primeira
caminhada. Revelamos pequenas ilhas de individualidades, ou, em outras
palavras, criamos formas em suspensão que modificaram a experiência do espaço
contínuo dessa paisagem artificial (Figuras 27 e 28).
Para descobrir a outra dimensão da infra-estrutura urbana na macro-
escala, construímos uma situação, no contexto urbano do Aglomerado da Serra,
onde, debaixo de um trecho da tubulação suspensa, montamos uma pequena
mesa e cadeiras para colecionar depoimentos pessoais sobre a água.
Registramos
37
as histórias de crianças e adultos, memórias, que falam de um
outro tempo, de bicas e cachoeiras, de outros lugares distantes, do mar,
contrastes a uma lembrança recente que revela os problemas da situação da água
como: falta de água, custo, economia, vazamentos e alagamento, deslizamento de
terra, mortes. Selecionamos e reproduzimos os fragmentos narrativos extraídos
desses relatos. Colocamos esses papéis com frases em pequenas caixas que
deslocamos para o outro lado da Serra onde foram embutidas no chão nas
proximidades das plantas ilhadas do primeiro itinerário (Figura 29).
Durante as diferentes etapas e visitas do Percurso 1, colhemos
elementos e criamos pequenas materializações. Esses deslocamentos e
intervenções são vestígios de um encontro, mas também permitem a construção
de situações posteriores que modificam a relação entre o espectador e o espaço
(Figura 30). Nessa perspectiva, Percursos e também as intervenções realizadas
no contexto do documentário M2 propõem ou deixam a possibilidade aberta de um
encontro em outro momento. A situação, que causou uma sensação no
público/participante, estimula a reflexão e pode aumentar o potencial de ação.
37
Pedimos depoimentos orais e escritos e desenhos.
O pensamento de ação, como qualquer forma de conhecimento, reflete
um modo de viver. O modo de viver o espaço físico urbano depende da nossa
relação com objetos, espaços e corpos dentro das infra-estruturas da cidade. As
linhas de alta tensão suspensas das torres vazadas, como a tubulação de
abastecimento de água do Percurso 1, formam parte do convívio diário e foram
escolhidas para serem o site do Percurso 2. A instalação das torres de
transmissão, que carregam os fios de luz para os pontos de distribuição, deixa
uma faixa, uma fresta verde que despertou nosso interesse. Escolhemos um
trecho desse espaço aberto embaixo dos fios no bairro de Santa Lúcia onde
diversas apropriações (extensões de jardins privadas, ampliação do terreno dos
prédios, parquinho, atalhos entre duas ruas, entradas para garagens particulares e
estradas de acesso para casas) diluem as noções de público e privado (Figura
31).
Numa visita ao local, criamos uma proposição que lida com a
proximidade das residências, convida ao aproveitamento da faixa verde para uma
expansão do doméstico e que potencializa o uso coletivo das áreas verdes.
Propusemos uma intervenção na qual são criadas áreas abertas entre capins
altos, pequenas salas recortadas, onde são colocados carpetes e móveis que
remetem às práticas e aos ambientes cotidianos dos espaços interiores.
Para as ações do Percurso 2 criamos três Construções na natureza
artificial sob a linha de alta tensão. Para a Construção 1 (Figura 34), montamos
uma mesa com oito cadeiras em cima de um tapete vermelho. A mesa era
preparada com louças, copos, talheres e vasos com flores. As pessoas levavam
comidas e bebidas e usaram a mesa coletivamente. Para uma outra Construção,
recortamos um cubo 4m³ entre os capins altos. Nesse quarto com paredes
naturais, colocamos outro carpete e montamos duas camas com colchões,
almofadas e uma pelúcia amarela. Nesse quarto, colocamos brinquedos e revistas
(Figura 32). Para chegar à Construção 3, localizada numa área elevada com vista
do bairro, do lado de uma árvore, abrimos um pequeno caminho que conecta essa
área com as trilhas já existentes. Para a área, capinamos um quadrado
400x400cm² da vegetação natural e instalamos um tapete vermelho no mesmo
formato da área recortada. Ocupamos esta sala com oito grandes bóias verdes e
amarelas (Figura 33).
Esses espaços, quartos, salas de estar e copa, como estruturas
performáticas, convidam a ações triviais da vida privada. A migração da esfera
privada para o espaço público, o deslocamento dos ambientes e das ações que
correspondem a eles proporcionam uma outra experiência do local.
Em vez da dimensão pública, enfatizamos no Percurso 2 a expansão do
doméstico, o deslocamento de um convívio familiar. Para isso, convidamos amigos
para passar o dia nesses espaços, levar comidas, livros para ler, jogos para jogar
etc. As pessoas convidadas eram amigos próximos que tinham um convívio fora
dessa situação. O clima familiar e informal instaurou-se, mas, além da vivência
descontraída, também esteve presente um forte aspecto de produção que
envolveu a capina, o envio de convites, o transporte dos materiais, a instalação
dos ambientes e a criação de registros em vídeo e fotografia, já visando a
produção de um material para a fabricação de imagens e objetos a serem
expostos no espaço de uma galeria.
Em determinados momentos, as pessoas adultas chegaram e se
relacionaram com os ambientes como obras de arte em exposição, autônomas e
auto-suficientes. Atribuo esse comportamento à formalidade do convite que
considero hoje inapropriado pelo tipo de evento que tínhamos planejado
38
. Mas, as
crianças, com sua espontaneidade e capacidade de estar no momento presente,
aproveitaram as situações, os ambientes e, inconscientemente, criaram o clima
esperado da convivência familiar.
A estetização dos ambientes, o rigor formal, o formato dos carpetes
vermelhos, a simetria e a composição dos elementos criaram um contraste com o
entorno natural urbano e, apesar de estimular o desejo contemplativo em algumas
38
Enviamos um convite formal para os amigos que também serviu como documento oficial para
comprovar a realização do evento junto à Fundação Municipal de Cultura – FMC – de Belo
Horizonte que viabilizou a realização do projeto Percursos via Lei de Incentivo.
pessoas, não impediram que outros se sentissem à vontade, sentassem,
deitassem, dormissem, brincassem e usassem os espaços.
Em Percurso 2, criamos uma outra noção de realidade por meio de um
olhar sobre o espaço urbano. O processo de distanciamento coloca em evidência
a irrealidade do real. O real se torna visível quando o espaço urbano, exteriores,
interiores, ruas e prédios são vividos como instantes presentes e, não, percebidos
como presentes eternos.
Ines: Eu estava olhando as fotos das intervenções, e as fotos
não expressam a minha experiência, eu não reconheço a
situação. Parecem outras coisas.
Louise: A imagem pode construir uma história que se
identifica com meu modo de olhar e posso fazer um registro
que passa a ser a construção de um trabalho em cima dessa
experiência. Eu posso fazer composições que já criam uma
outra coisa. É tênue, o legal de saber é que a gente tem
essa experiência, a gente tem a possibilidade de registrar
essa experiência, que pode ser por foto, diálogo, por
escritas ou textos e pensa em criar uma terceira
instância. Criamos uma maneira de trabalhar na qual a
gente estabeleceu essas três condições. Quando fomos
pensar nessa terceira instância, às vezes, é uma mistura
desses elementos. Poderíamos destrinchar a experiência e
pegar um elemento, por exemplo, a torre.
I: Tem que selecionar...
A experiência da suspensão cria infinitas ligações. Na continuação das
discussões sobre o papel do lugar, as ações, a relação entre percepção e
materialização, sobre lugares preexistentes e outros espaços, sobre
deslocamentos e o (re-)dimensionamento dos espaços em outros sistemas
Figura 31 – Percurso 2, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 32 – Percurso 2, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 33 – Percurso 2, LINKE e GANZ, 2006.
Figura 34 – Percurso 2, LINKE e GANZ, 2006.
artísticos e urbanas, podemos perceber a importância da manipulação, da
intervenção a partir do distanciamento de algo visto como real para construir uma
nova experiência. Nas intervenções realizadas no contexto do documentário M2 e
nas construções do projeto Percursos, são criadas construções e propostas
situações que se apropriam de espaços existentes para formar outros lugares e
que suspendem a condição inicial para implicar outros usos. Sugerindo outros
lugares, a partir da concretude de espacialidades existentes, que estabeleçam
conseqüentemente novas relações imaginadas e artificiais, cria-se um jogo,
parecido com a proposta da cenografia no campo da ação, que confronta as
pessoas, artistas e público/participante, com um campo vivencial que não
predetermina as relões, mas potencializa desdobramentos, processos e
intervenções posteriores.
Nos trabalhos mencionados aqui procuramos intervir não somente no
espaço externo, mas tamm no cotidiano das pessoas. O distanciamento resulta
em uma experiência que parte de algo familiar, comum, banal e cotidiano.
A instância exposição nasce do desejo de desvincular as duas
operações anteriores que se relacionam diretamente com os elementos
constitutivos do site inicial, a percepção e a intervenção, e criar novas cenas ou
outros espaços que contenham a memória da experiência, o pensamento e a
sobreposição das relações das outras instâncias. Escolhemos o espaço expositivo
para o encontro com o público e iniciamos uma reflexão sobre quais aspectos e
conexões interessam no lugar da galeria. Como criar no espaço expositivo
relações que se comunicam com as instâncias anteriores, deslocam experiências
ou proposições que transformem e revelem as relações já existentes?
5 A DIMENO EXPOSITIVA
Ines: A galeria é um lugar muito seguro, muito protegido.
Quem vai a uma galeria hoje em dia?
Louise: Artistas plásticos. É o lugar da segurança, da
vigilância, engraçado, não é?
I: A exposição é um evento interno. Não tem uma repercussão
fora do sistema de arte.
L: Depois que a gente foi conversar na geografia e viu que
tem o geógrafo que junta com o arquiteto, que junta com o
economista, que junta com o urbanista; achei isso
incrível.
I: É um cruzamento de diferentes pensamentos ou sistemas.
Essa consciência pode ampliar a noção de funcionamento de
uma galeria ou de um espaço.
L: Não sei se é a expansão, eu acho que, nesse momento, é a
contenção que me interessa. A galeria tem paredes,
espacialmente é contenção. Quando a gente está no site,
estamos criando relações e espaços o tempo inteiro.
I: As relações com pessoas se dão por meio de alguma ação,
isso pode ser reenviado para as relações dos sites. Ou
podem ser criados outros tipos de ações que são
relacionadas ao novo espaço. Isso também é expansão, mas
não em termos espaciais.
L: Essa expansão é a idéia da relação.
I: Troca-se em termos de relação com um outro lugar. Isso
acontece da mesma maneira que ocorre o deslocamento dessas
interioridades para o espaço externo.
Arte como procedimento, ato perceptivo, processo, criação de situações
e intervenções trabalha com estados de suspensão e mecanismos de
deslocamentos que existem numa dimensão temporal que se abre, mas não se
conclui. A proposta da terceira instância, do deslocamento para a exposição, é
pensada no contexto desta dissertação como um desejo, um desafio, uma
experiência que visa chegar a um resultado que estabeleça relações com as duas
instâncias anteriores: a percepção no nível dos sentidos e o distanciamento no ato
da intervenção. A galeria oferece uma instância em que se misturam esses
elementos e ganham uma nova condição num espaço que isola e destaca as
diferentes propriedades de cada elemento.
O cubo branco da galeria modernista como espaço de maior
sensibilidade existe em paralelo ao ideal da caixa preta, um lugar homogêneo,
limpo, puro, livre de qualquer tipo de interferência capaz de colocar em evidência
todo elemento introduzido ou exposto; um lugar que se anula e que deixa o mundo
cotidiano do lado de fora. Mas, aqui pensamos o espaço da galeria como qualquer
outro lugar, passível de ser um site, um lugar existente, achado, onde podemos
propor uma nova situação/intervenção que ativa e revela o potencial desse espaço
em diálogo com as duas instâncias anteriores. Pretendemos, então, criar uma
terceira instância que se relaciona com as instâncias anteriores (perceptivas e das
intervenções) e com a própria característica de se tratar de um espaço expositivo.
Como expandir o espaço de contenção e as convenções de uso da galeria?
Miwon Kwon (2002), no seu artigo One place after another: notes on site
specificity, discute as mudanças no paradigma espacial dos minimalistas até final
do século XX. A locação do site dos artistas minimalistas era associada à
presença do contexto como um lugar real que direciona e determina um trabalho
formalmente. As obras se adequaram ou foram feitas para completar-se nos
lugares nos quais foram instaladas. A autora observa uma mudança a partir do
final dos anos sessenta, quando artistas como Michel Asher, Daniel Buren e
Robert Smithson conceberam o espaço não somente a partir de fatores físicos e
espaciais, mas também como um contexto cultural mais amplo e decodificaram e
(re-)codificaram as convenções e operações institucionais revelando uma
realidade atrás da fachada aparentemente neutra do cubo branco. Os artistas que
expõem suas obras em espaços institucionais inserem suas discussões em
sistemas mais amplos, fora do espaço interior da galeria e demonstram um
engajamento maior com o mundo e a vida cotidianos. A galeria é percebida como
site em um contexto mais amplo. As obras funcionam como instalações em
espaços sociais, públicos, privados, na cidade cenográfica, que se transformam
em ambientes estéticos onde interferem na percepção e no comportamento.
Louise: Eu estou tendendo a uma coisa bastante clássica.
Ines: Visual-contemplativo...
L: É, depois de nossa coincidência do Nymphéas de Monet ser a
obra mais emocionante; é uma obra contemplativa e a
galeria é tão propícia a criar esse lugar da contenção.
I: Eu provavelmente vi a obra em uma disposição espacial
diferente. Lembro de dois ambientes da Kunsthalle em Basel
que tinham uma conexão. As paredes eram cobertas, quase
continuamente, com essa série de pinturas, uma quase
emendada à outra. Não tinha esse espaço de respiração
entre cada quadro. Como você viu?
L: Eu vi no MOMA, era uma sala que era levemente curvada. O
quadro é imenso, quantos metros tem esse quadro, seis ou
sete? Não sei se de fato fez essa leve curva, ou se o
quadro me abraçou desse jeito. Tinha um bancão enorme na
frente, afastado, era; era muito bem construído.
I: Era um quadro?
L: Era um quadro enorme.
I: Eu vi uma coleção, uma série que foi pintada ao longo de
dez anos, eram muitas pinturas; dois ambientes inteiros
com um quadro gigante ao lado do outro. Eles tomavam o
ambiente inteiro, as paredes viraram Nymphéas e você
estava no meio.
L: Isso é uma forma de expansão. A conversa que eu, você e
Fabióla tivemos uma vez, sobre Felix Gonzáles-Torres, você
foi ver o trabalho dele e não sentiu nenhuma emoção quando
você chegou ao lugar, levou o papel e ficou andando com
ele o dia inteiro, esqueceu em baixo de um banco no
cinema, ficou com ele na cabeça e voltou.
I: A minha intenção de levar o cartaz para a Fabíola no
Brasil foi mais emocionante que ver o trabalho na
exposição. A obra dele tem que criar essa expansão. Eu
gosto que ela não se conclua em si mesma, que você leva
algo. Por exemplo, eu vi a exposição do Nymphéas vinte
anos atrás, tudo bem, não me lembro das dimensões, do
número de quadros, mas lembro da minha emoção quando
estava lá, eu acho isso importante.
L: Monet foi pela impressão. A obra pode ter um poder em si.
I: Isso entra nessa questão complicada da função, utilidade
ou inutilidade. O que é isso que se leva? Para que se
propõe a fazer uma obra. Emocionar e afetar com algo, são
proposições interessantes.
Desenvolvemos a exposição para articulá-la com as experiências do
Percurso 1, do cano e das construções de tecido que isolam diferentes tipos de
plantas banais em Nova Lima, e do Percurso 2, das três construções que lidam
com a expansão do doméstico na faixa verde sob a linha de alta tensão no bairro
Santa Lúcia, no espaço da Galeria Arlinda Corrêa Lima, no Palácio das Artes
39
.
39
O pré-projeto da exposição do coletivo M2 foi selecionado para ocupação do espaço da Galeria
Arlinda Corrêa Lima via Edital Artes Visuais 2007 da Fundação Covis Salgado. A exposição foi
realizada com benefícios da Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Belo Horizonte.
Dos diversos procedimentos, percursos, suspensão por meio do
isolamento de plantas, recolhimento de histórias sobre a água e plantação das
frases, optamos por dar ênfase à paisagem com vários espécimes de plantas
destacadas, modelo migratório, paisagem de ilhas e de individualidades e o
percurso ao longo da tubulação. Pensamos em criar um ambiente, no qual as
fotos dessa paisagem fossem impressas em papel de parede que forra o espaço
da galeria por três lados. O espectador é imerso na paisagem ampliada de plantas
ordinárias em destaque (em citação direta ao Nymphéas de Monet). Expande-se a
visualidade do interior da galeria com a visão de um espaço exterior, de uma outra
escala que abre o espaço de contenção da galeria. A experiência dessa paisagem
desloca a visão do site e realça seu efeito na ampliação e na eliminação dos
outros pontos de vista. Plantas comuns e matinhos ordirios ganham em status
via ampliação em uma escala monumental. Foi criado um painel de lona branca
com uma impressão de 2.200 x 200 cm (Figura 35), que cria um ambiente de 57m²
pela sua espacialização nas três paredes no fundo da galeria. Criamos um
videoregistro de 45 min, exposto em uma TV ao lado desse painel, que mostra o
percurso pelo cano em um plano-seqüência.
A faixa verde, que determinou o trajeto do Percurso 2, foi o sítio da
expansão do doméstico. Para a exposição, trabalhamos com a inversão desse
procedimento: a possibilidade da (re-)inserção das relações do espaço exterior
para o espaço privado da galeria a partir de objetos utilitários. As três Construções
do Percuso 2 foram retrabalhadas para o espaço da galeria. Nesse novo lugar, a
Construção 1 (Figura 36) foi composta pelo mesmo carpete e a mesma mesa com
uma toalha retratando uma cena do dia da intervenção. Colocamos banquinhos
para o público sentar. As camas da Construção 2 (Figura 37) foram deslocadas
junto com o tapete vermelho para uma outra área da galeria. Os colchões foram
cobertos com lençóis impressos com a mesma cena no site. A Construção 3
(Figura 38) foi transformada em uma almofada grande com enchimento (400 x 300
cm) apoiada diretamente no chão cuja imagem impressa na lona mostra uma vista
aérea da construção original. As três construções no espaço da galeria são
acompanhadas por um conjunto de cinco ou seis fotos de registro A3 do dia da
situação no bairro Santa Lúcia expostas nas paredes laterais das respectivas
áreas .
Nas três releituras, os objetos são revestidos com superfícies impressas
que registram a relação das pessoas com os objetos nos três quartos/ambientes
de capim. O site original é citado nas imagens que explicitam a relação das
pessoas com as situações na faixa verde, que, para a exposição, viraram objetos
de uso em forma de uma almofada, uma toalha de mesa (300 x 140 cm), e lençóis
impressos para as camas (240 x 150 cm). Estabelecemos uma contaminação
entre a vivência das pessoas na faixa verde e os usuários/visitantes da galeria aos
quais é feito um convite indireto: a possibilidade de um encontro com as situações
e pessoas da segunda instância pelo contato físico com as superfícies impressas
e pelo contato com os diferentes apoios do corpo.
Os objetos expostos tiram a ênfase à obra de arte, à autenticidade e à
unicidade da mesma. Exibem-se produtos utilitários dentro de seus respectivos
ambientes. Na primeira construção, uma mesa, toalha e bancos; na segunda,
camas e lençóis e, na terceira, uma almofada gigante. Essas construções recriam
e citam as construções da segunda instância, a intervenção, e são sobrepostos
visualmente às experiências das pessoas no site.
A produção de sentido reside entre as diversas instâncias e no potencial
dos objetos de transformarem os diversos ambientes. A montagem da exposição e
a apresentação dos trabalhos foram pensadas para o espaço específico da
Galeria Arlinda Corrêa Lima. As impressões foram feitas sob medida, e a
disposição dos elementos foi pensada para não somente separar os dois
trabalhos, os ambientes referentes ao Percurso 1 e 2, mas tamm para propor
um trajeto para o espectador.
A instalação resultante é um trabalho híbrido que remete às palavras
assemblage e ambiente que são associadas ao conceito de instalação
historicamente. Nas duas, o contexto da obra intervém na leitura do trabalho e a
ativação do espaço é inevitável. O controle sobre a disposição da obra é
determinado pelos artistas. Ao relacionar-se com a galeria, a partir do material de
registro e das experiências dos percursos e das construções nos dois sítios, o
cano em Nova Lima e a faixa verde no Santa Lúcia, percebemos as convenções e
relações próprias que regem o espaço da galeria e ordenam a lógica de seu uso.
Os trabalhos são integrados a uma localidade que estabelece, por meio dos seus
próprios códigos, a relão entre o espectador e os diversos elementos inseridos.
A disposição dos elementos expostos (texto de apresentação, mapas, legendas,
construções, vídeo e ambiente) prevê o trajeto do espectador e influencia a leitura
dos trabalhos. O espaço dita a predisposição dos elementos e a percepção do
espectador; ambas fazem parte da obra exposta (Figura 39).
Na exposição Percursos, que foi divulgada como exposição de
instalações e fotografias pela Fundação Clovis Salgado – FCS –, o espaço torna-
se parte constituinte da obra. Articulando elementos no espaço da galeria,
ocupamos uma área e criamos um novo trabalho, uma encenação única na qual o
dinamismo externo interagiu com as estruturas internas dos trabalhos. As
instalações na galeria recriaram e reinventaram as propostas dos sites e
convidam o público a envolver seus sentidos e criar seus próprios percursos.
A apreciação da instalação envolve o contexto dos dois trabalhos, seu
conceito representado por um mapa que contextualiza o trajeto, o percurso, as
ações no lugar das intervenções pelas fotografias do Percurso 2 e pelo
videoregistro do Percurso 1. Os trabalhos tamm ganharam um novo contexto
que pertence ao espaço da galeria, as paredes brancas do ambiente institucional,
um projeto de iluminação que destaca o ambiente do Percurso 1 e as três áreas
ou quartos delimitados pelos carpetes vermelhos, legendas das obras, explicações
dos mapas, e um texto de apresentação. (HUCHET, 2007)
Tentamos trabalhar com materiais comuns, relativamente baratos,
impressões em lona e tecidos para os objetos, impressões em papel, as
fotografias. Mesmo assim, na galeria, os objetos adquiriram um alto status que
criou a barreira isso é arte. A escolha por trabalhar materiais e objetos expostos
fora do seu contexto original resulta na incapacidade de todo artista
Figura 35 – Percurso 1, LINKE e GANZ, 2007.
Figura 36 – Percurso 2, Construção 1, LINKE e GANZ, 2007.
Figura 37 – Percurso 2, Construção 3, LINKE e GANZ, 2007.
Figura 38 – Percurso 2, Construção 2, LINKE e GANZ, 2007.
Figura 39 – Percursos, LINKE e GANZ, 2007.
A escolha por trabalhar materiais e objetos expostos fora do seu contexto original
resulta na incapacidade de todo artista de apresentar qualquer coisa sem (re-)
presentá-la. Pode-se pensar nos ready-mades, nos objet trouvés, numa cadeira no
palco ou nas três cadeiras de Kosuth. A transformação desses materiais e objetos
inseridos num outro contexto é associada à perda dos valores originais, uma
cadeira em cima de um palco ou em uma galeria não é simplesmente uma
cadeira. Os objetos e materiais deslocados ocupam lugares simbólicos e não têm
mais o mesmo significado que tinham como objetos em uma casa ou mesmo
objetos usados durante as intervenções. Eles ganham seu novo significado na
associação a um lugar, um contexto, um sistema que atribuem os papéis e as
funções. Pensando assim, a exposição virou um gênero artístico. A obra de arte,
no mundo contemporâneo, é necessariamente uma obra num lugar especifico - in
situ. Os lugares com seus códigos institucionais determinam o que é incluído e
excluído das diversas categorias. As estruturas dos espaços institucionais são
predeterminadas por teorias e conceitos relativos a um momento histórico.
A maneira de expor a obra, apresentá-la, a embalagem como é
chamada por Buren (2001), vai desde o local onde serão expostos os trabalhos
até os depoimentos dos artistas. Buren (2001) defende a posição que a arte não
passa da embalagem. Seria possível criar algo real não ilusório que não seja um
objeto de arte? Buren (2001) vê a substituição da obra por um conceito, sob o
contexto da abolição do objeto enquanto ilusão, uma resposta utópica ou
idealizada. Na sua obra, a estrutura interna parece imutável, mas as relações
externas mudam. O objeto é exposto em lugares e momentos diferentes. A
realidade da forma se dá na associação aos espaços. A proposta de Buren (2001)
é abolir o drama e a tensão interna do trabalho e usar a forma externa como
variável. O seu objetivo é estar em nível zero.
Buren (2001) produz trabalhos reflexivos ao sistema de arte com o
objetivo de quebrar as regras e expandir os limites. As obras têm uma relação
definida com o território da arte. Ao mesmo tempo em que a sua obra rejeita o
sistema, ela se justifica na leitura crítica da arte e dos processos histórico-
culturais. Para Buren (2001) a influência da obra para o significado do lugar é
menor que a influência exercida pelo lugar. A obra revela o lugar como um novo
espaço a ser decifrado. Muitas obras de arte são classificadas como tal por causa
do lugar onde são expostas. O lugar adquire uma importância por ser fixo,
imutável tornando-se quadro. Buren (2001) atribui ao museu três funções
principais: em seu papel estético, o museu é esse quadro; o suporte real, onde a
obra se inscreve e se compõe; em seu papel econômico, o museu atribui à obra
exposta um valor de mercado, promovendo-a do lugar comum a um lugar de
divulgação e consumo. E, como corpo místico, o museu e outros espaços culturais
asseguram o status de arte.
Os aspectos sociopolíticos são inerentes aos lugares culturais. O
museu conserva, compra e coleciona trabalhos para mostrá-los a um público.
Preservar, justificar a obra, se justificar, mantendo vivo o vestígio de um gesto,
uma época, uma idéia. O museu reúne e enquadra suas aquisições. O novo
contexto, evocado na escolha e na reunião de determinados trabalhos, define
seus lugares e valores. Tamm em uma galeria o trabalho do artista é
impregnado por esses limites culturais impostos pelo vínculo institucional, estadual
no caso da FCS. Os locais de exposição da Fundação são privilegiados e
exclusivos e incentivam não apenas certo tipo de trabalho que se encaixa nos
parâmetros da Instituição, mas tamm incentivam produções com os quais a
Instituição se justifica e cria certos hábitos e reflexões.
Nesse sentido, percebo o contexto da exposição Percursos e a
disposição de seus elementos como configurando a relação entre os objetos e os
espectadores. Na exposição Percursos, o contexto da exposição e da disposição
dos elementos e a encenação dos materiais definem a relação entre os objetos e
os espectadores. Na exposição Percursos, inicia-se a visita à galeria com a
entrada no Palácio das Artes, com a descida pela escada, atravessa-se o pátio e
entra-se pela porta de vidro onde está estaticamente sentado um guarda
uniformizado cuja função é vigiar a interação das pessoas com o espaço da
galeria e com os objetos expostos. Passando a porta, entra-se em um ambiente
organizado, homogeneizado, controlado, arrefrigerado, no qual o contraste entre a
limpeza convidativa dos ambientes no seu espaço interior parece ser substituído
por um padrão estético de exposição. A limpeza em conjunto com o
arcondicionado da sala resulta em uma assepsia de um espaço idealizado e
controlado que distancia o espectador. A nossa familiaridade com os objetos
– as
camas que foram usadas em casa e durante as intervenções – ficou fora desse
lugar. A maioria dos visitantes circula em volta dos carpetes, fica olhando foto por
foto ao longo da parede de fotografias-registro por um tempo estendido, parece
que é mais fácil olhar as fotos-registros e optar por uma olhada rápida nas
impressões sem inserir-se nas construções ou relacionar-se fisicamente com os
objetos.
Nas Construções 1 e 2 da galeria, que são deslocamentos literais das
construções do bairro Santa Lúcia, os mesmos objetos – carpetes e móveis que
foram usados durante a intervenção – são (re-)apresentados materialmente no
novo contexto. Os carpetes estão com os vestígios do site, sujeiras, matinhos e
gramas secas, indícios do lugar exterior e, juntos com as impressões nos lençóis e
da toalha de mesa, funcionam como representações do momento do seu uso
anterior. Refere-se à presença dos elementos em uma outra relação espaço-
temporal. Mas o que foi pensado como uma maneira diferente de relacionar-se
com a imagem pelo ato de sentar-se, utilizar a mesa, deitar-se nas camas
raramente acontece no espaço da galeria. A estetização do projeto expositivo
convida para uma relação visual-contemplativa da instância anterior. Assim, a
instalação serve para o mesmo propósito que as fotografias de registro que
tamm criam uma referência direta às intervenções (Figuras 42 e 45).
Durante a abertura, as pessoas, os amigos e os familiares que
conheciam as propostas das intervenções se sentaram nos ambientes para
conversar e relaxar. Instaurou-se o clima de familiaridade similar ao do ambiente
exterior ou doméstico; outras pessoas preferiam sentar-se em cadeiras que foram
temporariamente depositadas em frente ao banheiro de frente à sala da galeria ou
na área externa que nos bancos da mesa da Construção 1. Nos dias posteriores,
quando entrei na sala, vi algumas pessoas, quase sempre jovens, criando uma
relação individual com os objetos e aproveitando as áreas abertas. A iluminação,
que destaca as áreas dos carpetes, contribui para o efeito da separação entre o
espaço da galeria e a obra exposta, estabelece-se uma separação palco-platéia.
Mesmo sendo uma demarcação sutil, os focos multilaterais teatrais em cima dos
quadrados criam uma diferenciação do espaço da galeria e enfatizam as áreas em
relação ao resto do espaço. Instala-se a relação do ser-visto, de estar em uma
área em destaque.
A solidão das paredes brancas no contexto formal da galeria é
experimentada como algo frio, inóspito. Essa impressão dos visitantes é
contraposta pela visão dos diversos momentos no ambiente exterior nas
impressões dos lençóis, da toalha e das ampliações dos registros fotográficos que
remetem a uma situação informal.
A diferença da terceira construção, em relação às duas primeiras, foi o
processo de sua (re-)elaboração para a exposição. A Construção 1 e a
Construção 2 foram planejadas antes da realização da intervenção e não
passaram por modificações durante o processo. Não houve uma transformação
efetiva para o ambiente da galeria. Seus sentidos se constroem por meio da
citação literal que resulta do ato de deslocamento. Já que a Construção 3 – a sala
que virou almofada – e a área correspondente ao Percurso 1 – o ambiente
emoldurado pela vista da paisagem com as plantas isoladas em cima do cano –
foram desenvolvidas ao longo do processo. Mais que simplesmente comentar os
suportes tradicionais de exposição, apresentam-se transfigurações das
experimentações e dos percursos. Deslocamos não o objeto literal, mas a
experiência.
O que foi deslocado na Construção 3 é a reprodução da experiência
que permite uma inserção do observador capaz de gerir uma circunstância
estética. No Percurso 1, percebemos, a partir da construção espacial, as plantas
colocadas em evidência na impressão que contorna as três paredes da galeria ao
Figura 42 – Percurso 1, LINKE e GANZ, 2007.
Figura 43 – Percursos, LINKE e GANZ, 2007.
Figura 44 – Percursos, LINKE e GANZ, 2007.
Figura 45 – Percursos, LINKE e GANZ, 2007.
longo dos 22 metros. O caminho é construído pelo próprio espectador na área
aberta de 57 m². Muda-se a visualidade da galeria para um panorama
tridimensional que convida à criação de um trajeto e da construção do espaço em
relação à imagem. No Percurso 1 e na Construção 3, criamos propostas abertas,
situações pictóricas que inserem o espectador em uma nova relação espacial,
agora, dentro da galeria. A manipulação dos materiais, em vez de serem
deslocados literalmente, resulta na sua recriação que convida o público
novamente a ser co-autor e construir a sua própria situação. A vivência acontece
dentro do contexto da galeria. A experiência do site original inicial é (re-)encenada.
Mais do que acomodar-se ou alojar-se, os dois trabalhos tomam posse
do lugar, estabelecendo novas relações espaciais e (re-)significando o lugar. A
Arte (tamm a antiarte, arte urbana e arte pública) está ligada à noção do museu,
da galeria e dos salões. O ato ou efeito de instalar uma obra de arte em um
espaço predeterminado se dá via apropriação desse espaço. A intervenção, o ato
de colocar-se entre, estabelece uma troca de significação bidirecional na qual a
obra revela o seu contexto, e o espaço externo revela a obra. Em um processo
dialético, as duas instâncias se transformam. Mas as relações que um trabalho
estabelece extrapolam o seu lugar físico. O espaço pode ser pensado como uma
série de padrões sociais que estabelecem uma ordem. Ele existe dentro de uma
dimensão institucional que expande as suas características físicas e espaciais
para um outro contexto externo. Todos os eventos culturais são informados pela
inserção num outro sistema. Os espaços culturais existentes, como partes de um
mecanismo codificado, servem a funções ideológicas e mercadológicas.
Conscientes ou não, os trabalhos apresentados nesses mecanismos são
influenciados pelas práticas sociais, econômicas e políticas do lugar. Pensar na
auto-suficiência da obra significa ignorar as convenções institucionais e operações
inerentes ao lugar.
Uma intervenção num determinado lugar implica a decodificação das
convenções e a exposição das operações para tratar da relação deste lugar e seu
contexto mais amplo. Para a crítica do funcionamento convencional, o espaço
assume o papel do ponto de partida, não como um fim em si, mas como
possibilidade de revelar uma outra realidade que se esconde atrás da aparência.
Com essa intenção, o espaço depende menos de
parâmetros físicos porque a obra acontece num
sistema de relações que são visualizados pelo
trabalho, como na instalação de Michael Asher na
Claire Copley Galeria em 1974 (Figura 40) e no
deslocamento de uma propriedade do Art Institute
de Chicago em 1979 (Figura 41).
O trabalho de Michel Asher lida com
questões sobre a condição da arte dentro do seu
contexto arquitetônico e institucional. Nos dois
trabalhos, ele torna as condições e convenções da
disposição das exposições visíveis. Em sua
instalação na Galeria Claire Copley em Los
Angeles, M. Asher interfere na arquitetura da galeria
para abrir a vista, revelando o escririo e o depósito
da galeria. Ela aponta para as relações socioeconômicas e o enquadramento
institucional que emolduram as obras de arte convencionalmente expostas. Para a
73rd exibição Americana no Art Institute de Chicago, em 1979, M. Asher (re-)
posiciona a escultura de George Washington, feita por Jean Antoine Houdon, em
1788, do espaço externo do museu para dentro da galeria. A escultura foi
removida de seu pedestal e colocada na Galeria 219, um espaço dedicado à
pintura, escultura e arte decorativa européia do século XVIII. Assim, o artista
insere a escultura no seu contexto temporal, espacial e histórico. A inserção da
escultura, desgastada pela exposição ao tempo, nesse novo contexto modifica a
aparência da galeria, chamando a atenção para as seleções e categorizações que
contribuem para a percepção dos objetos de arte e os fatores institucionais que
determinam o significado das obras.
Figura 41 – Intervenção,
ASHER, 1979.
Figura 40 – Intervenção,
ASHER, 1974.
As instituições artísticas funcionam como lugares simbólicos que
abrigam um conjunto de obras às quais são atribuídos valores e legitimidade. A
inteligibilidade das obras dá-se nas características desse conjunto que se forma
por meio da dinâmica de inclusão e exclusão. Nas artes, existem lugares
institucionais com diferentes propósitos, o templo – o espaço da sacralização, o
forum – o espaço do entretenimento e o laboratório – o espaço da
experimentação.
A apresentação das obras ao público é acompanhada de uma
explicação, um discurso, para garantir a atualização dos objetos. A demarcação
de um trabalho como obra artística dá-se por sua inclusão no sistema da arte e no
contexto da cultura. Nesse momento, um valor externo à obra é agregado. Para
decidir o preço dos trabalhos da exposição Percursos, ou estabelecer um valor
referencial para cada Construção, pensamos em primeira instância, no custo dos
materiais, dos objetos e das impressões; mas, na segunda instância, esse valor
aumentou significativamente. Aos trabalhos foram agregados outros valores
simbólicos, estéticos e econômicos, que são reflexos de uma prática política. Tais
práticas e mecanismos não são neutros, mas definem e categorizam a produção
artística.
Podemos então pensar que todas as atitudes assumidas em relação às
coisas dependem das convenções dos espaços. O trabalho ganha vida própria
pela associação a sistemas. O gesto de expor é uma ação de deslocamento, que
coloca as coisas em suspensão temporária, mas, logo em seguida, estabelece
novas relações pelo novo contexto que atribui sentidos externos. A participação do
espectador depende tanto do seu lugar de observação como do dinamismo
exterior que relaciona e regula os componentes. O envolvimento, a efetivação da
participação é visível quando o espectador age ou reage às coisas propostas. A
provocação de uma ação transforma o trabalho em um objeto relacional. O objeto
passa a ter uma função. Quando se fala da inutilidade do objeto de arte, qual é a
noção de inutilidade? Os trabalhos expostos desafiam a noção de eficiência,
utilidades e de produtividade da nossa sociedade.
A relação espacial dos objetos expostos com o local da representação,
que pode ser um lugar exterior ou interior, cria uma situação que exibe uma
qualidade ambiental. A característica ambiental de uma exposição compõe ações,
sugere movimentações e comportamentos e, assim, teatraliza o espaço da galeria.
Os objetos expostos transformam o público em participante e criam um encontro
entre as instâncias do processo como um todo. A colaboração não acontece
necessariamente dentro dos limites espaciais, mas entre as diferentes instâncias.
A diferença de trabalhar em espaços institucionais, que vendem a imagem da
pureza, e em espaços outros, que são os espaços contaminados pelo cotidiano, é
que se tem a ilusão de que os espaços preparados para receber Arte são mais
controláveis e mais facilmente dominados pelas intervenções artísticas. Mas o
cotidiano não está ausente na galeria. Pode se comportar de diferentes maneiras
em uma galeria.
Mas o público, na sua maioria, ao entrar na galeria não pretende sentir
ou viver, ele quer entender. A sobreposição do campo interpretativo ao campo
performático é inerente ao espaço da exposição. Além dos processos das
intervenções e construções in situ, que são constituídos por meio da ação que se
desloca para a galeria, no espaço da exposição Percursos, um comportamento
cotidiano, em uma mesa, em uma cama, questionaria as convenções do espaço,
um comportamento do vigia com a sala vazia, mas não as fronteiras tradicionais
da arte. No caso da instalação, o trabalho não é um registro ou uma imagem
impressa, mas uma área que se abre à percepção estética, à cinesfera do
espectador e que convida à interação. Enfatizamos, assim, a presença do público
em relação aos materiais expostos. Por meio da teatralização o espaço abre-se à
dimensão sensível que, na galeria, como nos espaços exteriores, leva a uma
reflexão sobre o entorno que faz parte da Lebenswelt, do espaço vivencial, dos
processos do cotidiano, das práticas sociais. Distanciados do mundo cotidiano,
mostramos sua condição teatral: a artificialidade da realidade vivida.
Acredito que essas formas de teatralidade são capazes de participar em
discussões políticas, ao levantarem perguntas sobre como as pessoas lidam com
os espaços e como se produz realidade qie vai alemã da percepção da cidade
cenográfica. As potencialidades das ações individuais e coletivas interagem para
estabelecer um significado ligado às vivencias e aos processos performativos.
Esse significado entra em relação, transforma o espaço fixo em espaço de jogo. A
estrutura do processo depende do distanciamento, da suspensão para criar ações
em um campo que interrompe o contínuo do cotidiano banal, do automatismo e
permite que um outro potencial do espaço se revele e as ações se transformem. A
partir das ações individuais são experimentadas relações espaciais e criadas
experiências de novas interações. O processo da ação confronta a percepção e a
experiência que resulta da ação. A analogia ao teatro e a inutilidade pública das
situações podem ser vistas como uma agressão simbólica que questiona e
reinventa os espaços existentes.
6 CONCLUSÃO
A arte é um estado de encontro...
Nicolas Bourriaud
Artaud (1984) ataca o conceito artificial da cultura como um sistema de
controle das sociedades ditas civilizadas que impõe e rege nossas ações e o
espírito das coisas. Ele insiste na idéia da cultura em ação que se torna em nós
como um novo corpo. Diante da impotência de ter a vida, ele propõe a modificação
de todas as nossas idéias sobre a vida.
Protesto contra a idéia separada que se faz da cultura, como se de
um lado estivesse a cultura e, de outro, a vida; e como se a
verdadeira cultura não fosse um meio apurado de compreender e de
exercer a vida (ARTAUD, 1984, p.18)
Antes de tudo, ele vê as manifestações artísticas como protesto, mas
tamm acredita na possibilidade de se exprimir por meio de atos teatrais, em que
as alterações do fato de viver demonstram que a intensidade da vida permanece
intacta, e que a verdadeira cultura age por sua exaltação e por sua força. Artaud
(1984) propõe rejeitar as limitações habituais e os poderes do homem e tornar
infinitas as fronteiras daquilo que se denomina realidade. Não nos contentarmos
em sermos simples órgãos registradores.
O corpo anatômico é tanto biológico, quanto orgânico e político. Esse
organismo é um corpo submetido às subdivisões em funções hierárquicas. Ser
submetido aos órgãos contrapõe-se à vida. O corpo sem órgãos se opõe aos
estratos de organização do organismo e das organizações do poder. O corpo é
sempre singular, o manifesto das forças da criação que trabalha contra o
receituário do savoir-faire, da passividade, da alienação e da inclusão.
Desaprender e abandonar os princípios dos diversos sistemas leva ao exercício
de recriar a vida. Isso é um exercício contra as representações fixas e repetições,
uma investigação da possibilidade de invenção de singularidades, o evento corpo,
um exercício que permite viver o próprio mundo e produzir o real por meio do livre
exercício de vida.
A exposição Percursos, de certa maneira, foi projetada a partir das
convenções e regras da galeria. O senso estético, as ações e o comportamento do
público e dos artistas são condicionados e conscientes. Os elementos e
dimensões constitutivos das proposições relatadas nos capítulos anteriores são de
uma ordem ambiental, eles solicitam movimentação e são o exercício de um
comportamento familiar da esfera privada em coletivo, em um espaço. A ordem
ambiental acontece no domínio da experiência, dilatando as capacidades
sensoriais e criando um estado de invenção coletiva. O corpo, a dimensão
primeira em um trabalho de arte, é convidado a uma postura ativa, não-estática e
propositiva.
Os trabalhos mencionados jogam com conceitos e espaços, dinâmicas
organizadoras e desorganizadoras, acasos e infiltrações em uma determinada
ordem das coisas para criar uma reflexão sobre as normas e os momentos de
arte. A proposta relacional do trabalho artístico, pensar processos a partir de
forças e potencialidades dos espaços, das pessoas e situações, estende a
produção de sentido individual a uma reflexão sobre a vida em comum, a
cenobiose.
Agenciamentos em grupos teatrais e coletivos de artistas podem ser
entendidos como micropolíticas, independentemente da sua produção artística,
por serem uma resistência ao individualismo da sociedade contemporânea. A
busca de um sentido de comunidade é uma reação frente ao conformismo de
comportamentos da sociedade individualista. Ao criar maneiras coletivas de fazer,
as práticas artísticas tomam parte na formação de experiências comuns. O teatro,
como veículo de diálogo entre os componentes, é um lugar de criação e de
afirmação do singular. Para imaginar outras realidades e construir imagens
cênicas, os autores precisam afetar-se primeiro para posteriormente afetar o outro.
Essa condição requer uma disponibilidade, um estado aberto a impulsos e a
receber proposições do outro. A ação do outro é tomada como estímulo para a
própria criação, e as próprias proposições alimentam as criações alheias. A
partilha das subjetividades resulta do conjunto de identidades que estabelecem
uma forma de ser comum, uma forma de arte que não é desvinculada de um
produto ou de um resultado que se apresenta para um público, mas que mostra
uma auto-suficiência como procedimento. No trabalho coletivo artístico, a
formação do comum é o próprio processo da crião.
Uma postura ativa em relação à construção de espaços, a possibilidade
de pensar em outras maneiras de se viver e uma postura crítica à situação
presente dependem de uma liberdade e de uma criatividade que é inerente ao
trabalho artístico. A sensibilidade puramente artística e a arte pela arte são ilusões
modernistas; arte nunca deve ser auto-referente, não-relacional. O procedimento
artístico, a expressão e produção de sentido têm um laço com o mundo e com a
vida e depende do diálogo com outras áreas de conhecimento para fazer uma
leitura sobre o mundo.
Estabelecer trocas, criar proposições de situações e encontros são
modos de produção de arte. Peças teatrais, intervenções, atos performáticos e
exposições criam lugares onde circulam iias e relações capazes de produzir
uma noção de coletividade. Um projeto como Lotes Vagos pode ser lido como
uma experimentação social, mas também o evento teatral e a exposição são
lugares onde se estabelecem encontros, são experimentados valores,
confrontadas opiniões e geradas trocas que formam coletivos de indivíduos que
compartilham uma experiência. Nas intervenções do documentário M2, nas
Construções e na exposição Percursos, foram produzidos novas sensações,
conhecimento ou sentido e criados lugares para o confronto de opiniões e de
identidades culturais. As ações criaram eventos temporários, em que podiam
conviver indivíduos e espaços em relações não automatizadas e em que podiam
coabitar diversas realidades.
A Arte, com seus procedimentos e convenções, sempre teve
implicações sociais e políticas. Ela está ligada à ação, a partir das relações que
propõe entre obra e espectador, sendo, portanto, fundamentalmente, um ato
político. Política como um modo específico de ação colocado em prática por um
sujeito e derivado de um tipo particular de racionalidade. Rancière (2000) define
como política a atividade que desloca um corpo do lugar que lhe estava atribuído,
que subverte uma função, que mostra o que não havia para ser visto e que faz
entender como discurso o que só era percebido como ruído. Essa definição de
política como uma instância na qual um conflito não é apenas representado, mas
na qual a representação cria uma tensão entre os sistemas existentes mostra o
potencial de transformação da arte. O caráter performativo das obras ambientais
interfere diretamente na forma como se organizam as subjetividades e se
estabelecem as relações entre pessoas e seu ambiente. Assim, podemos pensar
tamm o espaço expositivo como lugar que não se restringe a representar e
comentar a sociedade, mas que atua na sua produção, criando novas formas de
subjetividade política (RANCIÈRE, 2000).
A globalização, o consumismo, a indústria cultural de massa e os
códigos da representação espetacular regulam a percepção do indivíduo e as
relações entre obra e espectador. As intervenções teatrais, as intervenções
artísticas em espaços públicos e o ato expositivo operam na desconstrução das
convenções da sociedade do espetáculo e trazem um questionamento em relação
a seu papel na construção de um pensamento crítico e ao seu potencial de
transformação. Alterando as formas de ver, de perceber e, portanto, de ser,
ampliamos o potencial político da obra de arte. A valorização das pessoas, os
acúmulos de experiências e de significações subvertem e redimensionam umas às
outras e dão lugar à emergência de novas estruturas de sentido, nas quais a
subjetividade da experiência é posta em evidência. A precariedade, a fragilidade e
a efemeridade das intervenções têm força política; elas são inutilidades públicas,
mas são vitais porque recolocam a questão da comunidade por meio do encontro
entre pessoas, para desfrutar uma experiência. As relações intersubjetivas dentro
de um comum trazem a possibilidade de induzir a novas formas de subjetividade
política. Elas suscitam uma posição ativa em relação à construção dos espaços
experimentados.
As derivas, as intervenções e os deslocamentos contribuem para
promover, segundo Rancière (2000), uma ação política pelo deslizamento da
norma hegemônica. As sucessivas mudanças de organização espacial e a partilha
da experiência entre artistas e espectadores alteram as categorias constitutivas do
espetáculo (e da vida) – os sujeitos e objetos – assim como as formas de relação
entre eles. Os processos de subjetivação e objetivação, que habitualmente
transformam o espectador em sujeito passivo e a obra em objeto de apreciação,
são subvertidos, dando lugar a um sujeito ativo. Ao se transformar em praticante,
o espectador se manifesta.
A instalação, a arte ambiental e a teatralização de comportamentos e
atos cotidianos transformam o público em participante e criam um encontro. A
colaboração depende da ativação recíproca, da interlocação entre espaços,
corpos e objetos. Para esse propósito, não há diferença entre trabalhar em
espaços institucionais da arte e em espaços outros. Expõe-se um trabalho em
uma galeria e convida-se a uma interação com uma construção em um lugar
aberto, o que interessa é a interação com a proposta que se pode dar em todo
lugar. Na galeria, como tamm em lugares outros, o significado, aquilo que é
extraído de uma experiência, depende da associação entre o mundo dos sentidos
e os objetos. A partir de um acontecimento único, cria-se uma possibilidade de
experimentar a vida, vida concebida aqui como virtualidade, diferença, invenção
de formas, potência capaz de retomar o corpo como afetabilidade, fluxo, vibração,
intensidade. O público participa na construção de um jogo de significação.
Impregnado pelas vivências, o mundo se abre para os sentidos. A relação entre
espaço e percepção é uma interação na qual, ao deixar o espaço interferir no
corpo, o ambiente se modifica. Estabelecem-se relações, memória das vincias,
propriocepção e percursos nos espaços entre que estão sempre em processo de
construção. A relação com o espaço pela experiência corporal permite enxergar
algo presente.
O sentido espacial é mediado pelo corpo. Por meio da interação entre
percepção, objetos e ambiente, são construídos situações de reconhecimento e
estranhamento que potencializam os sentidos (BASBAUM, 2001). A
propriocepção, um sentido interno do próprio corpo, depende do conjunto
completo de sensações porque é ele que é capaz de produzir sentidos e permitir
uma construção do nosso corpo que é o único lugar que temos para estabelecer
um diálogo com as coisas e com os outros.
O corpo participa na experimentação e na sensibilização. O estímulo à
percepção, de aproximar-se, de envolver-se fisicamente deixa o público construir
seu lugar de participação, sem antecipar todas suas escolhas, sem prefigurar as
soluções ou criar pistas para comportamentos que foram antecipados pelos
artistas. Uma particip/atividade, inventividade, a fruição de um momento de arte
em que é possível estabelecer outras relações e transformar a percepção e o viver
cotidiano. Na renovação do contato com o campo vivencial, o público participa na
construção de um outro sentido; um exercício de sensibilização, que toma o corpo
como suporte.
As propostas relacionais permitem reviver sensações e criar
experiências novas. Com a perda da autonomia da obra de arte, o sítio passa a
atuar como parte de um trabalho, interferindo diretamente na percepção. A
exploração das potencialidades das relações espaciais em ambientes internos e
externos – a transição do espaço metafórico para o espaço real – coincide com a
busca da reintegração da Arte na vida cotidiana. Uma parte do público percebe,
porém, a galeria como presente constante, tem uma noção da obra de arte
estática e se compota em uma galeria como se fosse uma igreja, onde não é
permitido falar, correr, rir etc. As obras, não são apenas elas mesmas no presente,
mas parecem representar algo sagrado e eminente que não forma parte do nosso
aqui e agora. Esta parte não se contenta com a significação do sensível, mas visa
compreender a parte intencional e conceitual do artista. Acredito que a experiência
das relações, a interação de iias, localidades, lugares, objetos e ações
constituam conexões que determinam a significação a partir de um deslocamento
que questiona e reinventa os espaços. As transfigurações não são dadas
previamente pelo artista e tampouco pelo espaço físico da galeria, mas são feitas
na Inter/loc/ação entre as instâncias.
Existe uma relação interdisciplinar entre os espaços urbanos, artísticos
e teatrais. Os trabalhos fora do contexto da galeria com sua perspectiva
performativa abrem um ponto de vista sobre os objetos, espaços e os
comportamentos em relação a eles, lugares com os quais não se tem contato
como lotes vagos, infra-estruturas urbanas, pelas experiências corporais ganham
um significado e começam a ser percebidos. Como nas obras (pós-)minimalistas,
o espaço como contexto interage diretamente na formação de uma compreensão
das relações existentes, ou da sua falta. O espaço em relação ao corpo é a base
na formação dessa interação e para os processos de produção de percepção, do
uso e da apropriação. O efeito do espaço em corpos e objetos cria interações,
intersecções, simultaneidades de comportamento, espaços desiguais, paisagens
imaginárias, heterotopias.
A relação com os lugares torna-se transparente, seja a hierarquia de
espaços ligados à arte, a indeterminação de espaços abandonados, o descaso de
lotes vagos, onde em cada um, a sua maneira, rege os comportamentos,
condiciona as pessoas pelos códigos vigentes. Mas a constituição de lugares é o
produto de um processo histórico, um processo em constante construção. Não são
lugares fixos e podem ser transformados a partir da construção e inovação das
relações. Ações são capazes de revelar potencialidades de ruas, lotes teatros,
galerias etc. ou, pelo menos, criar registros para que esses lugares comecem a
fazer parte constitutiva da cinesfera da pessoa. As intersecções e a
simultaneidade de espaços desiguais questionam as fronteiras das relações
convencionais. Os efeitos do espaço em corpos, objetos e práticas sociais se
tornam aparente a partir da construção de Erfahrungsräume, lugares de
experiências, lugares vividos onde se pode sentir vivendo.
Os espaços não são determinados somente pelos fatores territoriais e
físicos. A partir da sua ativação, eles se transformam em lugares reais e
imaginários (BACHMANN-MEDICK, 2006) e são capazes de simultaneamente ser
material simbólico e real construído. O espaço como categoria artística resultou
em práticas espaciais, diferentes formas de representação ou reinvenção de
espaços em que proximidade, distância, materialidade e presença são estratégias
de representação. Pensando assim, o espaço não é uma categoria que forma a
percepção, mas uma invenção, uma organização ficcional em que se pode
construir ou desconstruir inter/loc/ações.
As sucessivas mudanças de organização espacial e a partilha da
experiência entre artistas e espectadores alteram as categorias constitutivas do
espetáculo (e da vida) – os sujeitos e objetos – assim como as formas de relação
entre eles. Os processos de subjetivação e objetivação, que habitualmente
transformam o espectador em sujeito e a obra em objeto de apreciação, são
subvertidos, dando lugar a um sujeito. Essa experiência, a partir da interação entre
corpos, objetos e lugares, cria instâncias capazes de estabelecer novas
localidades e noções de realidade. A inter-relação foge da determinação dos
espaços e se coloca em brechas de indeterminação, no Thirdspace (BACHMANN-
MEDICK, 2006), o espaço ’entre’, que aponta para a inexistência do espaço real e
afirma o fato dos espaços urbanos serem produzidos.
A falta de identidade com os lugares, os conflitos sociais, estéticos,
políticos e ambientais clamam por modificações. Pensar em ações que
temporariamente criam relação entre pessoas é uma prática improdutiva, já que se
trata de convivência, de lazer e de descanso. Mas o ser humano não se restringe
às práticas quantitativas e produtivas, e a passividade impede as pessoas de
criarem suas práticas e pensamentos. Esquece-se de que outros lugares são
imagináveis e que existe um processo dialético entre o imaginável e o realizável
que cria alternativas para o discurso hegemônico tradicional. O jogo das
significações, a relação instável do evento teatral e da situação de arte interrompe
o fluxo cotidiano. Cria-se sentido na acumulação de experiências e sensações que
se inscrevem nos corpos e nos espaços e permitem reinvenções do cotidiano.
A perda da arte, enquanto objeto autônomo abriu espaço para a ação
artística como possibilidade de criar um presente, uma nova realidade. A
transitoriedade da ação dinâmica articula o espaço. Ela não é vista, mas
vivenciada. São propostas artísticas que ativam pessoas para relacionar e
construir uma arquitetura viva, fundada no homem. É um exercício coletivo da
criação de condições para uma participação ativa na vida. Ao integrar o objeto, o
corpo e o lugar pode-se mobilizar as pessoas para emergir um vir-a-ser (CLARK e
BORJA-VILLEL, 1998), corporificado e socialmente articulado que substitui o
sistema de significação dominante por uma construção de sentido individual.
Retomando as idéias de Artaud (1985), precisa-se de um reconstruir o próprio
corpo para experimentar-se o poder sobre a vida.
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Cited: 3 Jan. 2007.
APÊNDICE
Rua Maria Martins Guimarães, 2007.
Bairro Sagrada Família, Belo Horizonte.
Cidade Cenográfica, 2006.
Vila Cafezal. Aglomerado da Serra, Belo Horizonte.
Perímetro, 2005.
Rua Tibiriçá, esquina com Rua Conselheiro Joaquim
Caetano. Morro das Pedras, Belo Horizonte.
Topografia, setembro de 2006.
Bairro Padre Eustáquio. Rua Monte Santo, em frente ao
número 311.
Banquete, outubro de 2006.
Bairro Ana Lúcia. Rua Vênus com Rua Hybris, Sabará.
Cabeleireiro, setembro de 2006.
Bairro Funcionários. Rua Ceará, quase esquina com Rua
Aimorés, lote com duas mangueiras.
Brinquedos, outubro de 2006.
Bairro União. Rua Y, esquina com Rua Prof. Amaro Xisto
de Queiroz.
Piscina, setembro de 2006.
Funcionários. Rua Alagoa, esquina com Rua dos
Inconfidentes.
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