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expressas, a insistência na referência às refeições e em tudo que se refere ao alimento faz
parte também do processo de carnavalização. A descrição do cozimento do carneiro, na rude
linguagem de Estela: “a pelanga da barriga do bicho serve para meter os fígados cozidos e
ralados com gema dura, farinha, cravo e canela”(FARIA,1991, p. 86) contrasta com a cena de
imolação do animal na sexta-feira, por João Carlos e seu preparo ritualístico dentro de antigas
tradições religiosas, tal como aparece em A Paixão.
As funções naturais, entre elas a do sexo, são postas em evidência e aqui
não apenas realisticamente, mas trazendo a visão popular, ligada a uma alegre obscenidade.
Acometido na sexta-feira Santa (A Paixão) por “urgências de claustro”
(FARIA,1986:117) depois de suas experiências eróticas, André em Cortes tem um
relacionamento sem culpas com Sônia. O já mencionado contato sexual que têm no banheiro,
escondidos da família,é descrito numa linguagem que mistura um registro mais erudito com
uma nomeação mais chula do órgão sexual masculino:
[...] despe-se assim mesmo já que ela o não o faz, certeiro êmbolo embatente, badalo
rijo de sino, enxada que cava, arado que lavra, seta que espeta, cabeçudo peixe-sapo,
meio marreta meio porreta, gargalo sem garrafa, prego cego, espingarda aperrada,
oboé, avena flauta, clarinete, fole de ferreiro, marrante rombo, escacha-pessegueiro,
derruba-grelos, fende humos, tição em túnel, punho em bracelete, compridez de
dedo em luva estreita, desbravador em colossal gula em treva e gozo e desejo que
não acabam quando se separam sem falar, juntos uma hora? (FARIA,1991, p. 61).
Também se dá deste modo o contato entre Marta e João Carlos. Quando o
protagonista chega a Lisboa e pensa em procurar a namorada, há uma curiosa intervenção do
narrador que, à moda de uma narrativa picaresca, acompanha as intenções eróticas do jovem:
Ó vós, ovas marinhas, pois criado tendes em J.C um novo engenho ardente, dai-lhe
em breve gozo alto e sublimado em actos grandilongos e potentes, já que haveis
consentido que ele seja neonato sob o lustral signo do líquido, sémem suor sangue
saliva. Reencontrado vivo sobre as águas, ó vós, tágides ninfas, dai-lhe uma fúria
larga e sonorosa e não de leve avena ou flauta frouxa, antes de tuba canora belicosa
que os peitos de Marta acenda e a cor ao rosto mude. Vós, condutoras deste que
caminha pelas ruidosas ruas, dai-lhe ímpar força em feitos do famoso trio de espeto
e dois beques que a tusa tanto ajude, que se torne esta jornada memorável nos
cronicões dos grandes fodelhões por todo o vasto mundo. (FARIA,1991, p. 48).