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UNIVERSIDADE DE CAXIAS DO SUL
PRÓ-REITORIA DE PÓS-GRADUAÇÃO E PESQUISA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO
MESTRADO EM LETRAS E CULTURA REGIONAL
Alcione Moraes Jacques Maschio
A PAISAGEM EM DARCY AZAMBUJA:
Outras dimensões
Caxias do Sul
2008
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Alcione Moraes Jacques Maschio
A PAISAGEM EM DARCY AZAMBUJA:
Outras dimensões
Dissertação apresentada como requisito para
obtenção do grau de Mestre em Letras e
Cultura Regional, à Universidade de Caxias do
Sul.
Orientador:
Prof. Dr. José Clemente Pozenato
Caxias do Sul
2008
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Paisagem como se faz
Esta paisagem? Não existe. Existe espaço
vacante, a semear
de paisagem retrospectiva.
Paisagem, país
feito de pensamento da paisagem,
na criativa distância espacitempo,
à margem de gravuras, documentos
quando as coisas existem com violência
mais do que existimos: nos povoam
e nos olham, nos fixam. Contemplados
submissos, delas somos pasto
somos a paisagem da paisagem.
Carlos Drummond de Andrade
(As impurezas do branco)
RESUMO
A representação da paisagem faz parte do processo de formação da identidade brasileira, e a
literatura foi um veículo que concretizou tal concepção. Esta dissertação aborda a importância
da paisagem, e suas várias dimensões, na obra No galpão, de Darcy Azambuja. O estudo se
desenvolve a partir da perspectiva de que a paisagem pode ser interpretada como um signo da
identidade sócio-espacial, inter-relacionada com a linguagem, a estética e o discurso histórico-
cultural. Os contos do autor, que aparecem como causos de um narrador, lançam, em 1925,
um novo olhar sobre a paisagem da região da Campanha do Rio Grande do Sul que, fixada
pela escrita, transforma-se, renovando o seu significado.
Palavras-chave: Paisagem. Paisagem e Literatura. Paisagem cultural. Paisagem e região.
Darcy Azambuja.
ABSTRACT
The landscape representation is part of the Brazilian’s identity formation and the literature
was the vehicle that summed up this conception. This dissertation approaches the landscape
importance, and its several dimensions, in “No galpão”, by Darcy Azambuja. The study
develops itself by the perspective that the landscape can be seen as a socio spacial identity,
correlated with language, aesthetics and cultural historic speech. The author's stories, which
appear as a narrator's stories, land in 1925, a new look on the Rio Grande do Sul country
side’s landscape which was marked by the writing, changes itself, renewing its meaning.
Keywords: Landscape. Landscape and Literatura. Cultural landscape. Landscape and region.
Darcy Azambuja.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO........................................................................................................08
1 PAISAGEM, LITERATURA, CULTURA E REGIÃO....................................12
2 A PAISAGEM NA LITERATURA BRASILEIRA...........................................19
2.1 No início do período Colonial..............................................................................20
2.2 No Arcadismo .....................................................................................................23
2.3 No Romantismo...................................................................................................26
2.3.1 Paisagem tropical..............................................................................................28
2.3.2 Paisagem rural...................................................................................................30
2.4 No Simbolismo.....................................................................................................31
2.5 No Modernismo...................................................................................................33
2.6 No Regionalismo..................................................................................................36
3 A PAISAGEM EM DARCY AZAMBUJA.........................................................42
3.1 A importância da paisagem..................................................................................42
3.2 Situações da paisagem na ficção..........................................................................51
3.2.1 Paisagem de contemplação...............................................................................52
3.2.2 Paisagem como cenário.....................................................................................57
3.2.3 Paisagem como imagem....................................................................................61
4 OUTRAS DIMENSÕES DA PAISAGEM EM DARCY AZAMBUJA...........67
4.1 Paisagem: a fonte de um mito..............................................................................71
4.2 As relações de poder............................................................................................74
4.3 A paisagem vista da cidade..................................................................................80
CONSIDERAÇÕES FINAIS..................................................................................85
REFERÊNCIAS.......................................................................................................90
INTRODUÇÃO
Este estudo surgiu do gosto pela paisagem e sua representação literária. A escolha do
autor deveu-se ao olhar inovador que ele lançou sobre esse tema. A região da Campanha,
embora nunca tivesse conhecido, legou ao lugar onde nasci a ideologia campeira, que marcou
muito a minha infância, rodeada de campos, coxilhas, sangas, cavalos, bois e muitos outros
elementos representados por Darcy Azambuja, em No galpão, inclusive os causos, ouvidos
raramente ao do fogo, e muitas vezes ao redor de um fogão à lenha, em uma casa de
fazenda antiga que foi de meu avô e agora é de meu pai.
A representação da paisagem no Brasil surge com o seu próprio descobrimento, mas
os estudos em relação a ela são raros, e os que existem são, na maior parte, sobre o seu
aspecto estético e sua representação pictórica. No entanto, as representações literárias da
paisagem podem ser lidas e interpretadas ao mesmo nível da linguagem, dos tipos humanos e
dos costumes, como agentes formadores de um povo e de uma região.
Na Europa, a partir dos anos setenta, ainda no século XIX, a paisagem passa a ser vista
também sob a perspectiva da semiologia, tornando-se um tipo de texto, um discurso, cujo
autor (ou autores) sempre pressupõe o humano, o social, como qualquer produto gerado em
meio a valores, crenças, desejos, contradições e contestações que podem ser lidas e
interpretadas. um comunicado social na paisagem que pode ser visto na sua textualidade e
intertextualidade.
Nas palavras de Maria Teresa de Freitas (1984, p. 174), “arte é uma modalidade do
imaginário, e este não reproduz a realidade exterior, mas a transforma, exprimindo o que nela
está reprimido ou latente”. A paisagem representada no plano imaginário por Azambuja
manifesta a cultura de um lugar, através dela percebe-se um espaço, um tempo e uma história.
A representação paisagística azambujiana traz muito do que na época encontrava-se latente ou
reprimido em relação à Campanha. Ao focalizar a linguagem, os tipos e a paisagem dessa
região, os contos de No galpão podem ser vistos como “estratégias interessadas de
manipulação simbólica tendentes a determinar a representação (mental) que os outros podem
construir a respeito tanto dessas propriedades como de seus portadores” (BOURDIEU, 1998,
p. 108).
Dentro do Programa de Pós-graduação em Letras e Cultura Regional, da Universidade
de Caxias do Sul, esta dissertação tem como intuito analisar a representação paisagística como
elemento de uma cultura regional e como ambiente definidor de uma identidade cultural
diferenciada.
O texto está dividido em quatro capítulos. O primeiro, intitulado Paisagem, literatura,
cultura e região, estabelece relações entre literatura, cultura, região, paisagem e
representações paisagísticas. Com base nos novos conceitos críticos da representação cultural
da natureza, busca-se mostrar as inter-relações entre paisagens e linguagem literária, poder e
identidade. Nessa perspectiva, tanto a paisagem como a sua representação literária são
produtos de uma cultura e, como tais, também podem representá-la, pois se encontram
impregnadas de significados e sentidos que fazem parte da vida de um povo, em determinada
época, numa região. Ao conter aspectos culturais, esse “espaço” passa a ser um cenário de
vida, um local de pertencimento que surge de uma variada rede de relações e fatores que se
combinam dentro de uma cultura, cuja variável depende da vida em sociedade, e também a
constitui.
O segundo capítulo apresenta um levantamento sucinto das representações
paisagísticas na literatura brasileira, observando os períodos mais representativos em que a
paisagem se fez presente. A literatura, vista como um sistema de obras, nem sempre
apresentou elementos da paisagem. O primeiro plano, nos clássicos literários, era reservado à
personagem humana, e a paisagem passa a ser “forjadora da alma coletiva” a partir do
século XVIII, na Europa.
Dessa forma, foi importado o gosto pela paisagem que, aqui no Brasil, toma grandes
proporções, chegando a estabelecer relação especial com a cultura e a história da colônia e
mais tarde do país. As representações paisagísticas do período colonial, embora não possam
ser consideradas dentro do sistema literário, vão iniciar o que mais tarde tornar-se-á veneração
aos elementos da natureza e a valorização do pitoresco, alimentando o nativismo e a descrição
da realidade na maior parte das obras na literatura brasileira.
Imagens do país tropical que se formaram nesse momento da literatura brasileira
permanecerão no imaginário local e internacional. O mistério e a fluidez dos simbolistas
fizeram com que eles representassem paisagens nebulosas com sentimentos de espiritualidade.
Mas foi depois, com o movimento modernista, que uma nova etapa de maturação passa a
reconhecer a arte e a literatura como expressão legítima da sensibilidade e das idéias que
circulavam no Brasil. Com isso surge também, uma nova perspectiva em relação à paisagem,
influenciando o ressurgimento, com força total, do Regionalismo.
É dentro da perspectiva regionalista que se insere Darcy Azambuja, autor que cria e
lança uma nova estética da paisagem, transferindo o olhar do narrador para esse elemento da
narrativa que se transforma numa voz poética, marcando a presença humana através dela:
O sol, que rompera de todo a cerração, enchia o campo de luz tépida e vinha bater
na tapera, entrando pelas janelas e portas, iluminando-lhe o interior coberto de
escombros, vestindo-a de clarões dourados. Um vento leve movia os galhos dos
cinamomos e as rosas vermelhas das roseiras do mato. Tudo tinha ficado claro e
vivia. E entre a luz do sol e a animação de em redor, a tapera parecia despertar de
um sono enorme e doloroso, sentindo estar agora perto dela alguém que vivera o
seu passado, que não tinha morrido e vinha vê-la, lembrando sempre, sofrendo
ainda... (AZAMBUJA, 1928, p. 118).
A paisagem em Darcy Azambuja será o tema do terceiro capítulo. O título da obra
analisada, No galpão, sugere a importância desse elemento indispensável da paisagem
(termo que se repete muitas vezes nos contos) pampeana. O galpão é o espaço de lazer e
trabalho do homem do campo, nele se misturam ferramentas, gado, cavalos, peões e patrão.
Todos esses elementos, juntamente com coxilhas, sangas, aramados, carretas, sol, chuva,
vento, entre outros, vão falar” do humano que habita a região da Campanha, com suas
crenças, costumes, trabalhos, amores e guerras.
A análise das representações paisagísticas azambujianas é feita com a seguinte
classificação: Paisagem de contemplação, aquela que sustenta e incorpora a narrativa: “sobre
o campo, então, caiu o silencio também, e a noite foi caminhando, fria, cheia da luz serena da
lua e do brilho das estrelas” (AZAMBUJA, 1928, p. 16); Paisagem como cenário, que são
imagens carregadas com indícios culturais da Campanha: “[...] a direita de quem chega na
casa, desce uma cerca de pedras das velhas: metro e meio de alto que vai dar num
banhadal, ao fundo do potreiro” (Ibidem, p. 27); e, mesclando-se às outras ou mostrando-se
puramente, a Paisagem como imagem, chega a ser mais uma personagem que possui a
dimensão do olhar, do sentir, pressentir ou ver: “nas noites profundas, os fogões das brigadas
acampadas acendiam pupilas vermelhas pelo topo das coxilhas e quebradas de vales ermos”
(Ibidem, p. 67).
No quarto e 0último capítulo, quase como um apêndice, é feita uma apreciação de
outras dimensões da paisagem em Darcy Azambuja, no âmbito do que se poderia chamar uma
iconografia do poder. Território de fronteiras oscilantes, lugar longínquo e distante do restante
do Brasil, a Campanha, desde suas primeiras ocupações missioneiras, cedeu seus campos às
inúmeras batalhas internacionais, nacionais e também, ainda no século XX, batalhas locais,
entre irmãos. Foi este espaço, com sua paisagem e sua história, que permaneceu como
referência da identidade sulina.
Nas representações paisagísticas azambujianas percebe-se esse poder cultural do
pampa nas figuras de peões, agregados, capatazes, que se tornavam, de tempo em tempo,
soldados, buchas de canhão. Eram homens que possuíam histórias parecidas com a de:
Jango [que] veio mui despilchado, como peão duns tropeiros de mula, que entraram
pelo Rosário e foram até Rivera. Quando passaram pela estância das corticeiras, ele
ficou. Era grande como uma tronqueira, com vozeirão grosso, cabelama que nem
chirca; e feio!... Mui buenaço, amigo do seu amigo, mas brabo e desconfiado que
era barbaridade. [...]
E campeiraço, amigo. Não havia potro pra ele: tudo era manso. P’ra pelear, nem
conto. [...] Agüentava, - como eu vi o tirão de um novilho laçado a meia espalda
que parecia um angico, de firme. Até era um divertimento ver-se (AZAMBUJA,
1928, p. 136-137).
O pampa, com sua paisagem, converteu-se em espaço imanente da identidade, o lugar
legitimador do habitante sul-rio-grandense na visão do movimento tradicionalista, a partir de
1947. O mesmo sistema de organização de uma estância é utilizado pelos CTGs (Centros de
Tradições Gaúchas): patrão, capatazes, peões, invernadas, rodeios, numa reconstituição
imaginária da ordem antiga. As regiões de pequenas e médias propriedades, proporcionarão o
suporte e a continuação de práticas tradicionalistas que serão também mantidas através das
manifestações da mídia.
Por fim, conclui-se com algumas observações sobre o que pode significar a paisagem
vista da cidade. O desenvolvimento da cultura urbana e a expansão de novos processos
produtivos provocaram um sentimento de perda em relação à paisagem campeira. Darcy
Azambuja representa as transformações paisagísticas e os desajustamentos sofridos pelos seus
habitantes mais originais: o peão, o “chiru”, o guasca, o changador, o “turuna”, o gaudério, o
campeiro.
A oposição entre cidade-campo também encerra outros conflitos: entre passado e
presente, entre homem livre e primitivo versus homem civilizado e complexo. Talvez por isso
surgia a necessidade de relembrar a Campanha, sua paisagem e seus tipos, como forma de
superar a angústia e as incertezas pela reafirmação do mito oriundo desse espaço: o gaúcho.
1 PAISAGEM, LITERATURA, CULTURA E REGIÃO
Novos desenvolvimentos críticos sobre a representação
cultural da natureza mostraram que existem inter-
relações entre paisagens, linguagens estéticas e
discursos éticos pretensamente universais, entre poder e
identidade. A paisagem não pode mais ser definida
como objeto passivo da observação humana, mas antes
como elemento constitutivo do desenvolvimento das
sociedades.
Matthew Gandy
As paisagens estão carregadas de sentido, investidas de afetividade por aqueles que
vivem nelas, as constroem ou representam. Elas não foram construídas ou representadas
cegamente por autores tão influenciados pelo momento que não projetassem nelas o futuro, ou
os sonhos de uma população. As representações paisagísticas estão recheadas de painéis
indicadores da identidade da região, de costumes, de comprometimento, de interdições, de
autorização, de orientação (BRUNET, 1992, apud CLAVAL, 2004, p.65). Os signos de que as
paisagens representadas são portadoras transmitem mensagens intencionais. Por isso a
mensagem não se torna clara se não tentarmos conhecer o contexto, a época em que o autor a
escreveu.
O significado da paisagem natural reside não na paisagem em si, e sim como fruto da
forma como ela é socialmente construída através da linguagem e da representação. Segundo
Stuart Hall (1997, p. 28), o significado surge não das coisas em si, a ‘realidade’ mas a
partir dos jogos da linguagem e dos sistemas de classificação nos quais as coisas são
inseridas. O que consideramos fatos naturais são, portanto, também fenômenos discursivos”,
que são interpretados diferentemente pelos grupos locais e de fora.
O mundo que é percebido jamais é objetivamente dado. Para compreender e penetrar
na verdadeira natureza das coisas é preciso fazer um esforço para retornar às sensações,
desconstruindo aquilo que a educação ensinou e tentando imaginar o contexto de criação
delas. A paisagem, como aparência e representação, é paisagem quando percebida: “alguns
de seus elementos não aguardaram a humanidade para existir, mas, se compõem uma
paisagem, é sob a condição de serem olhados. Somente a representação os faz paisagem”
(BRUNET, 1992, apud CLAVAL, 2004, p. 48).
Nem a paisagem, nem a sua representação, inclusive a literária, são reflexos de uma
realidade natural exterior, contudo sempre podem revelar algo de autenticidade a quem sabe
olhar. As representações paisagísticas são necessariamente construídas dentro dos limites da
linguagem e das estruturas intelectuais dos escritores. Elas se baseiam em discursos que são
significados partilhados, constituídos socialmente em ideologias, em séries de suposições da
comunidade em geral. Dessa forma, é muito importante observar tais representações, porque
não considerá-las implica na grande perda de uma dimensão essencial da paisagem, aquela
que a torna elemento importante e decisivo na história cultural e identitária do país. Ela, a
paisagem, tornou-se parte do processo de “invenção” do Brasil, com poderosas imagens
vindas da palavra literária que, sedimentadas na memória cultural, produziram um sofisticado
processo de representação da cultura e auto-representação dos sujeitos (FIGUEIREDO, 2007).
Sua interpretação deve ser feita, portanto, na moldura determinada pelo cruzamento da
história literária e social e da natureza.
A representação da paisagem não é apenas um tipo particular de expressão literária da
cultura de um lugar, ou de um país, é antes um meio de reforçar uma ideologia dominante em
uma determinada época e sociedade. Nesse sentido, o pensamento ideológico dos autores
designa um sistema de símbolos e de idéias que, ao mesmo tempo, inscreve modos de
pensamento dominantes na realidade material e assegura a reprodução de um tipo preexistente
de relações sociais. É também a representação inconsciente de determinados modos de
pensamento que religam a ideologia ao poder simbólico da natureza, definido como um
conjunto preexistente de símbolos e significados (CORRÊA; ROSENDAHL, 2004a).
A representação literária da paisagem não deve por isso ser vista como um objeto
neutro de uma observação passiva. Ela deve ser concebida como um produto social resultante
da combinação, segundo uma infinidade de modos, de temas do gênero e da consciência do
autor e do contexto. Deve ser vista como fator determinante do caráter social e cultural das
sociedades. Sobretudo, deve-se levar em consideração que, tanto a representação, como a
própria paisagem, são lugares de superposição de jogos de poderes e de símbolos que têm
influência na imaginação dos homens (GANDY, 2004, p. 86).
Ao verificar a trama de relações estabelecidas por meio da paisagem, nota-se que a
mesma apresenta uma dimensão morfológica, num conjunto de formas criadas pela natureza
e pela ação humana, e também uma dimensão funcional, com relações entre suas diversas
partes. Como a paisagem é, ao longo do tempo, um produto da ação humana, apresenta
inclusive outra dimensão, agora histórica. E, como ela ocorre numa determinada área da
superfície terrestre, ainda possui outra, a dimensão espacial. Mas antes de tudo, a paisagem
está sempre carregada de significados, expressando valores, crenças, mitos e utopias, ou seja,
ela se impregna, principalmente, de uma dimensão simbólica. Vista dessa forma, a sua
interpretação pode conduzir a uma discussão intelectual interdisciplinar onde é possível
debater temas importantes como a natureza em forma de objeto (ou seja, a paisagem), a
representação dela, a consciência, a ideologia e a relação entre esses aspectos de um sistema
cultural (DUNCAN, 2004, p. 98).
A paisagem firma, confirma, sela, e carimba uma identidade cultural, ao mesmo tempo
em que é origem da mesma. As elaborações paisagísticas, construídas ou escritas, em seu
conjunto, compõem “culturas”. Cooperam para afirmar que “toda ação social é ‘cultural’, que
todas as práticas sociais expressam ou comunicam um significado e, neste sentido, são
práticas de significação” (HALL, 1997, p. 16).
De acordo com Raymond Williams (1992, p. 13), a cultura é o sistema de criação de
signos através do qual, necessariamente (ainda que entre outros meios), uma ordem social é
transmitida, comunicada, reproduzida, experimentada, vivenciada, explorada e estudada.
Além disso, a cultura tem sido vista, através de uma abordagem interdisciplinar, não como
um sistema de signos como também textos que permitem várias e diferentes leituras, embora
algumas se apresentem de forma mais hegemônica que outras, sempre existindo uma política
de interpretação.
Stuart Hall (1997, p. 27) vai mais além e explica que a cultura, depois do impacto
maior da “virada cultural”, proporcionada inclusive por Raymond Williams, nos anos 1960,
deve ser vista como uma condição que constitui a vida em sociedade e não apenas uma
variável dependente dela. Essa é a grande mudança de paradigma nas ciências sociais e
humanas, o que permite que a paisagem e suas representações literárias sejam estudadas sob o
ponto de vista cultural. Isso não significa dizer que tudo é cultura, mas que toda prática social
depende e se relaciona com o significado: “conseqüentemente, que a cultura é uma das
condições constitutivas de existência dessa prática, que toda prática social tem uma dimensão
cultural. Não que não haja nada além do discurso, mas que toda prática social tem o seu
caráter discursivo” (HALL, 1997, p. 33).
A paisagem na literatura, compreendida como um cenário natural mediado pela
cultura, através do seu caráter discursivo, revela-se um meio de troca no qual convergem uma
formação histórica particular, e seus valores, em relação à tradição ocidental e suas inter-
relações. Nessa perspectiva, paisagem e sua representação constituem um lugar de
apropriação visual e um foco para a formação de identidade, o que supera a concepção
estética de gêneros fixos (sublime, pitoresco, pastoral) da literatura, pintura ou fotografia e
lugares considerados objeto de interpretação visual, meramente contemplativa
(FIGUEIREDO, 2006). Dessa forma, as representações paisagísticas podem representar uma
determinada região.
Ricardo Kaliman, em seu ensaio “A palavra que produz regiões” (1994, p.5), afirma
que existem, no discurso crítico, duas relações entre literatura e espaço. A primeira é a do
lugar de onde se escreve, o espaço da enunciação literária. A segunda relação se entre o
lugar como tema sobre o que se escreve, o espaço como referência do texto. Partindo dessa
última situação surge uma terceira perspectiva: o lugar em que circula a literatura, seja a
comunidade para qual se produziu o texto, seja uma comunidade que, ainda que esteja longe
no tempo e no espaço dessa produção, recebe o texto e o acolhe em seu seio. Segundo o autor,
esta terceira relação subordina crucialmente a duas outras e suscita uma nova abordagem para
o conceito de região.
Dentro da perspectiva de Kaliman (1994), empregada nesta pesquisa, a região não é
concebida como o espaço em si, mas como uma função sobre o espaço, que lança uma
representação desse espaço. Pertence a um conjunto de apreciações ordenadas em uma escala
que vai desde o próprio corpo até o universo inteiro. As pessoas adquirem certos hábitos
rotineiros, dentro dessa escala, inclusive em seus níveis mais imediatos, como o lar, o bairro,
os lugares freqüentados, a localidade, e assim, sucessivamente. À medida que se ascende
nessa escala, o espaço circunscrito é maior, o que implica que cada vez são menores as
possibilidades de conhecê-lo integralmente por experiência direta. Em conseqüência, a
admissão da validez da circunscrição espacial vai dependendo cada vez menos da experiência
pessoal e cada vez mais de certas afinidades que se encontram entre o espaço que é possível
experimentar e o que na realidade nunca se experimenta, mas do qual se tem notícias. Nos
níveis mais elevados, a informação proporcionada pela experiência direta reduz-se muito. A
imagem do universo, e inclusive do planeta, depende crucialmente do discurso mítico,
científico, ou do discurso literário, por exemplo.
Nessa escala, a região é uma instância mediadora. Segundo Kaliman (1994, p. 14),
alguém a definiu uma vez liricamente como “aquel espacio que puedo recorrer sin sentirme
todavía um extraño”. Seria o lugar onde as pessoas sentem-se em casa. O que é comum à
região inclui uma série de elementos que é possível sentir como específicos da identidade
pessoal, mas não dado a comprovar pessoalmente que efetivamente toda região compartilhe
desses traços. De maneira um pouco mais precisa, pode-se dizer que a circunscrição espacial
da região caracteriza-se por incluir, contudo, de maneira significativa, um componente
informativo baseado numa experiência direta, mas que ao mesmo tempo é altamente
dependente da informação que chega através do discurso. Nesse sentido, constitui um terreno
definitivo para os processos ideológicos. A configuração subjetiva de região, em qualquer
indivíduo, deriva das negociações entre as imagens que o discurso dominante infundiu e a
informação que o indivíduo recebeu por sua experiência pessoal.
Dessa forma, se, como afirma Figueiredo (2006), a literatura ajudou a criar o país,
inclusive pela paisagem, desenhando a alma do homem brasileiro como parte de um projeto
estético-político que enreda o próprio intelectual, torna-se claro que as representações
paisagísticas influem antes e até mesmo na formação de uma região e de seu povo.
Assim, o conceito de região aqui utilizado não se restringe aos limites convencionais
político-administrativos, pois apresenta uma dimensão cultural, ou seja, um cenário de vida,
um local de pertencimento que nasce de uma variada combinação de fatores. É a região que
expressa uma identidade formada pela combinação de vários elementos históricos, naturais,
econômicos e sociais, cujos aspectos também se denunciam pela paisagem construída pelo
sujeito ou representada na literatura. O autor literário, de certo modo, torna-se, se não auctor,
representante de um grupo auctor de uma região. Bourdieu (1998, p. 113) afirma que
“qualquer enunciado sobre a região funciona como um ‘argumento’ que contribui para
favorecer ou desfavorecer o acesso da região ao reconhecimento e, por essa via, à existência”.
Diante das, pelo menos cinco, dimensões da paisagem e, certamente, também
estendidas às representações paisagísticas literárias, não cabe mais apenas apreciá-las sob a
perspectiva estética de sua beleza e forma. O seu conjunto morfológico, criado pela natureza
ou pelo homem, o funcionamento, a localização geográfica dessas formas, tudo isso, por ser
também um produto da ação humana, representa a história, e, desse modo traz à tona, deixa
transparecer um leque de significados que remetem aos valores, às crenças, enfim, a tudo
aquilo que faz de um povo ele e não outro.
A paisagem é um sinal de pertencimento, de reconhecimento, de confirmação de
identidades. Além disso, ela representa a identidade de uma região, de uma cultura. E a
representação paisagística, talvez mais que a própria paisagem, não representa como
influencia a visão do sujeito sob diferentes perspectivas, sejam elas sociais, políticas,
econômicas, a partir do ponto de vista do autor, sua época, suas intenções, ou seu público. Se,
em muitos clássicos da literatura brasileira, não é possível perceber toda essa riqueza de
significados através das paisagens ali representadas, compete refletir sobre o que não foi dito
e os motivos que levaram os poetas a escreverem sobre tais aspectos e não outros, talvez mais
condizentes com a realidade. Antônio Cândido (2000) a sociologia literária não como
instrumento de conhecimento sociológico, mas como um instrumento de conhecimento crítico
que não se separa da obra. Esta precisa ser vista como um todo gerado por partes externas
(sociais) e internas (estruturais). Muitas vezes os escritores escreviam não necessariamente
aquilo que pensavam, mas aquilo que podiam dizer naquele momento e daquela forma.
A geografia cultural na paisagem um texto que está intimamente relacionado com
os componentes biológicos e as realidades nos ambientes sociais que os homens constituíram.
Para conhecer o significado de um texto faz-se necessário preconceber o todo do qual ele é
uma parte. Ao analisar a paisagem na literatura brasileira é preciso buscar conhecer o
conjunto cultural ao qual pertencia o autor, a paisagem que ele intentava representar e o
público que ele buscava atingir.
A interpretação do significado simbólico da paisagem conduz a uma linha diferente de
pensamento, que se desenvolve amplamente na teoria literária e na história da arte. As
primeiras representações paisagísticas transformaram-se num dos signos mais fortes na
construção do país. Foi da força dessa palavra que se criou uma nova realidade, uma marca
cultural. Encontra-se nela o registro, pela memória coletiva, de uma rede de códigos culturais
destinados à paisagem, uma tradição construída por um vasto conjunto de lembranças, mitos e
lendas que, além de acompanhar extensos períodos da história social, também molda
instituições e valores (FIGUEIREDO, 2007).
Enfim, a paisagem estabeleceu uma relação especial com a cultura e a história do
Brasil: a imaginação nela desenhou sinais e índices de identidade, como marcas do tenso
diálogo entre a racionalidade hegemônica e a expressão do particular. Quem se relaciona
nessa troca procura ler nos sertões, rios e florestas os fragmentos cristalizados de memória
cultural que, como ruínas, agem, simultaneamente, sobre o cotidiano dos homens brasileiros e
sobre a tarefa do intérprete da cultura, ora seduzido e enredado pela exuberância da paisagem,
disseminada pela palavra, ora como investigador crítico, suspeita dessas imagens. E assim, “o
brasileiro ainda procura, na paisagem, as marcas de seu rosto porque ‘o pensamento da
paisagem’ contaminou terras, rios, florestas e, especialmente, a alma dos homens sob os
trópicos” (FIGUEIREDO, 2007).
2 A PAISAGEM NA LITERATURA BRASILEIRA
Não se pode fugir ao mundo de modo mais seguro do
que pela arte; nenhuma forma de prender-se a ele é
mais segura do que ela.
Goethe
Este capítulo tem por objetivo situar a questão da paisagem na literatura brasileira.
Sem a pretensão de analisar exaustivamente, busca-se uma referência para avaliar a
representação paisagística do Modernismo, especificamente a contribuição de Darcy
Azambuja.
Antônio Cândido (1997) considera a literatura como um sistema de obras ligadas por
denominadores comuns, que permitem reconhecer as características dominantes de um
determinado período. Estes denominadores, internos, tais com a língua, os temas e as
imagens, ou externos de natureza social e psíquica, como os produtores, os receptores e o
mecanismo transmissor, se manifestam historicamente e fazem da literatura um aspecto
orgânico da civilização. Pressupondo que as obras literárias se articulam no tempo,
apresentando peculiaridades no modo como são produzidas e se transformam em patrimônio
de um povo, tornam-se legítimos os modos de se estudar literatura sob o ponto de vista
histórico. Assim, neste capítulo, cabe uma análise histórica da representação da paisagem na
literatura brasileira.
A paisagem, além de “forjadora da alma coletiva”, representa, dentro do terreno
artístico, um difícil aspecto literário a ser estudado. Segundo Raúl Porras Barrechea (1969, p.
19), o gosto e o deleitamento subjetivo pela paisagem não é coisa antiga. A paisagem está
ausente das grandes obras de poesia clássica, nas quais é apenas um complemento da
personagem humana, que é a única a quem está reservado o primeiro plano. É a sensibilidade
pré-romântica do século XVIII que vai inventá-la, com Rousseau y Bernardino de Saint
Pierre, a paisagem como um fim e um ideal estético em si mesma. A paisagem surge então de
um “estado de consciência”, como queria Byron. Os poetas românticos incorporam-na com
um volume de melancolia que se une ao plano histórico e ao pesar dos homens que viveram
nela ou a contemplaram antes, além de uma rica gama pictórica. O gosto e a deleitamento pela
paisagem no Brasil são, portanto, importados.
A exaltação da natureza é o meio mais comum de expressão do lirismo brasileiro.
Afrânio Coutinho (2001, p. 49) afirma que isso vem desde a fundação do mito do “eldorado”,
na época da colonização, em cuja intenção emergiam os motivos econômicos de valorização
da terra aos olhos europeus. Mas o culto à natureza desenvolveu-se, sobretudo, com o
Romantismo, no qual a terra e a natureza aparecem divinizadas sob as mais variadas formas.
Os momentos decisivos para as representações paisagísticas nas manifestações
literárias, aquelas possuidoras de características orgânicas de um sistema, no Brasil, até a
metade do século XX, são marcados pelas seguintes correntes principais: o Arcadismo, o
Romantismo, o Simbolismo e o Modernismo. No entanto, a paisagem começa a aparecer
desde os primeiros escritos sobre a nova terra.
2.1 No início do período Colonial
Pero Vaz de Caminha foi o primeiro a registrar, em sua famosa carta, a paisagem
utópica, paradisíaca, compondo, como escrivão do rei de Portugal, as imagens da terra recém
“descoberta”, batizando-a de “graciosa”, e potencialmente rica, pois, dar-se-á nela tudo por
bem das águas que tem [...]” (CAMINHA apud TUFANO, 1999, p.61).
São as informações, que viajantes e missionários europeus colheram sobre a natureza e
o homem brasileiro, os primeiros escritos sobre o país. São crônicas históricas que não podem
ser consideradas como escritos literários. Para Alfredo Bosi (2006, p. 13), a pré-história das
letras interessa como reflexo da visão do mundo e da linguagem que legaram os primeiros
observadores do país. É graças a essas visões da paisagem, sobre o índio e os grupos sociais
nascentes, que é possível entender um pouco das condições primitivas de uma cultura, que
mais tarde poderia contar com o fenômeno da palavra-arte. Muitas vezes, os autores, tentando
reagir contra certos processos intensos de europeização, procuraram nas raízes da terra e do
nativo, imagens para se afirmar em relação ao estrangeiro. Para tanto se valeram dos escritos
dos primeiros cronistas, os quais chegaram a ser comentados e citados, tanto por um Alencar
romântico e saudosista, como por um Mário ou um Oswald de Andrade modernista.
Manuel Botelho de Oliveira
1
foi o primeiro poeta nascido no Brasil que teve sua obra
publicada. Em 1705, chegava ao país Música do Parnasso, que fora impresso em Portugal
devido à ausência (pela proibição) de recursos brasileiros para tal fim. Este livro de rimas não
obteve tanta notoriedade, com exceção da silva (poesia em versos decassílabos misturados
com hexassílabos) em homenagem a uma ilha da baía de todos os santos: À ilha da Maré
2
.
Segundo Antenor Nascentes (1953, p. XI), “é a primeira vez que aparece na poesia uma
descrição da natureza tropical, com seus pescados, suas frutas, seus legumes”. Apenas para
ilustrar esse poema de cinqüenta estrofes, apresentam-se aqui, três das que mais afirmam a
paisagem brasileira:
[...]
As laranjas da terra
Poucas azedas são, antes se encerra
Tal doce nestes pomos,
Que o tem clarificado nos seus gomos;
Mas as de Portugal entre alamedas
São primas dos limões, todas azedas.
[...]
As uvas moscatéis são tão gostosas,
Tão raras, tão mimosas;
Que se Lisboa as vira, imaginara
Que alguém dos seus pomares as furtara;
Delas a produção por copiosa
Parece milagrosa,
Porque dando em um ano duas vezes,
Geram dois partos, sempre, em doze meses.
De várias cores são os cajus belos,
Uns são vermelhos, outros amarelos,
E como vários são nas várias cores,
Também se mostram vários nos sabores;
E criam a castanha,
Que é melhor que a de França, Itália, Espanha.
Nas comparações feitas pelo autor, observa-se que, apesar de brasileiro, sua visão e
inspiração eram européias. As primeiras manifestações literárias do nativismo brasileiro
dificilmente surgiriam de outra maneira, o país estava em processo de formação, inclusive de
identidade. Mais tarde, a medida em que se vai constituindo o sistema literário, também a
representação paisagística ajuda a compor a imagem do novo país.
O conhecimento da realidade local, a valorização das populações indígenas e o desejo
de contribuir para o progresso do país, compõem o conjunto que orientou a formação da
1
Manuel Botelho de Oliveira nasceu na Bahia em 1636. Filho de um capitão de infantaria paga, como todo
descendente de famílias abastadas estudou Direito em Coimbra e ao retornar dedicou-se a advocacia e a política.
Morreu aos setenta e cinco anos, seis anos após a publicação de suas rimas (NASCENTES, 1953, p. VII-XII).
2
Este poema pode ser encontrado na obra Musica do Parnaso (OLIVEIRA, 1953, p. 125-136).
literatura brasileira como sistema entre 1750 e 1880, em correlação íntima com a elaboração
de uma consciência nacional. Segundo Antônio Cândido (1997), o racionalismo europeu
cedeu lugar, aqui no Brasil, ao amor ao próximo e à vontade de se formar uma sociedade livre
e organizada. A veneração dos elementos da natureza valorizou o pitoresco, que é o alimento
do nativismo e da descrição da realidade. Nas palavras do autor, “a moda pastoril encaminhou
para a valorização do homem natural, que para nós foi sobretudo o índio; a tradição clássica
apresentou um estilo de civilidade que nos entroncava de certo modo na tradição e assegurava
a participação no mesmo sistema simbólico do ocidente” (CÂNDIDO, 1997, p. 67).
Deve-se considerar a literatura colonial como um aspecto da literatura portuguesa.
Segundo Ferdinand Denis e Garret, em “Bosquejo da história da poesia e da língua
portuguesa”, de 1826
3
, autores, como Tomás Gonzaga (1744-1810), serviam-se do sabor
exótico do cenário americano, mas este não bastava para corresponder à visão do mundo, ao
sentimento que transforma a natureza física em vivência. As majestosas e novas cenas da
natureza não conseguiam mover o poeta à originalidade. Essas peculiaridades eram elementos
complementares que não indicavam autonomia intelectual. A influência européia falou mais
alto para eles e apagou-lhes o espírito nacional. Havia certo receio de mostrar o americano,
por isso eles não representaram em seus painéis literários, as cores do país que os sitiava. Em
vez de falarem em sabiás, cotias, tatus, buscavam cardeais, lebres, entre outros elementos da
fauna e da flora européia, para comporem seus poemas (CÂNDIDO, 1997, p. 68). Em síntese,
a natureza que os rodeava ainda não havia adquirido o significado da paisagem humana
cultural.
Antônio Cândido (1997, p. 68-69) explica que “o poeta olhava pela janela, via o
monstruoso jequitibá, suspirava ante ‘a grosseria das gentes’” e descrevia muito decidido, no
poema, uma árvore de grande porte das regiões temperadas. Ele não estava errado, pois a
estética segundo a qual compunha exigia a imitação da Antiguidade, graças à qual, dentre as
florestas e matagais mineiros, comunicava espiritualmente com o Velho Mundo e dava
categoria literária à produção oscilante, da sua terra. Dessa forma, “os escritores asseguravam
universalidade às manifestações intelectuais da Colônia, vazando-as na linguagem comum da
cultura européia”.
Esse duplo movimento, entre a desintegração da velha consciência paisagística
européia e a construção de uma nova, caracteriza a dinâmica da atividade literária nas
3
Ver Antônio Cândido, 1997, p. 67.
expressões iniciais da colônia. Nas palavras de Afrânio Coutinho (1968, p. 22), “a evolução
de nossa literatura foi uma luta entre a tradição importada e a busca de uma nova tradição de
cunho local ou nativo”.
2.2 No Arcadismo
O período Barroco privilegiou a palavra em detrimento da natureza (os cenários são
construídos), pois seu apego extremado aos detalhes e ao supérfluo sufocou outras
particularidades. o Romantismo relegou a palavra a uma posição inferior à natureza, que
foi supervalorizada; somente o Arcadismo igualou palavra e natureza, ao criar formas ideais
que exprimiam as formas naturais. A fidelidade à Natureza também passou a coexistir com a
razão, ao contrário do que pregava Descartes, que separava a ambas (CÂNDIDO, 1997, p.
53).
No século XVIII, houve um sentimento muito mais vívido dos fenômenos naturais.
Assim, se no século XVII houve uma ênfase maior na matemática e na física, o século XVIII
assistiu a um interesse prioritário pela botânica e pela zoologia. No campo da literatura, o
conceito de Natureza, abarcando instinto e sentimento, apagou a linha da Razão.
Como assinala Antônio Cândido (1997, p. 57), a maneira pela qual este homem é
focado apresenta a chave para estabelecer a correlação literatura-ideologia-história. Assim, no
século XVIII, existiu uma representação do homem natural, cuja bondade e nobreza inatas são
postas à prova pela Fortuna. Já não são a urbanidade e a civilização as marcas da humanidade,
mas o homem em si. A literatura desenvolvida a partir daí tenta equilibrar o contraste
simplicidade-requinte, rusticidade-erudição, razão-sentimento. Quanto a esta última
dicotomia, a supremacia do sentimentalismo abriu portas às “lógicas do coração”, dissolvendo
a razão raciocinante.
Uma das principais manifestações da naturalidade estava nos gêneros pastorais. Foram
eles que trouxeram o Arcadismo, cuja contemplação da Natureza e simplicidade de vida
constituíam a marca registrada. O campo era representado como um paraíso perdido e estava
ligado à convenção da naturalidade como forma ideal de relação humana. Antes de mais nada,
a paisagem pastoral é imaginária e, nela, a natureza idealizada é a resolução simbólica de
todas as tensões sociais e de todas as privações materiais (CORREA; ROSENDAHL, p. 79,
2004). Paralelamente, houve uma diminuição de escala do sentimento amoroso, expresso pela
“transferência da iniciativa lírica a um pastor fictício” (CÂNDIDO, 1997, p. 58).
O Arcadismo, movimento renovador que partiu de Portugal, evoca um sentido não
somente pastoral como histórico. Formava-se, com ele, uma espécie de arquivo histórico da
natureza e, perdia o rumo o autor que não seguisse os antigos, falando da nobreza da natureza.
Segundo Antônio Cândido (1997, p. 42), a expressão que melhor resume esse período é a
seguinte: “o verdadeiro é o natural, o natural é o racional”. A representação da paisagem será,
dessa forma, a expressão racional da natureza, para assim manifestar a verdade, procurando,
através do espírito moderno, uma última encarnação da mimesis aristotélica.
Com essa percepção limitada e superficial, com regras e imitações, os autores perdiam
a capacidade de observar diretamente a vida exterior, a natureza e a vida humana. Essa
paisagem racionalizada da literatura arcádica observou mais a superfície da terra, seus
regatos, animais, plantas; não se aprofundou nos mares, nos subterrâneos das cavernas, não
voou alto como, mais tarde, os Românticos o farão.
A poesia bucólica vingou, de fato, sempre em ambientes de requintada cultura urbana.
O bucolismo foi, para todos, o ameno artifício que permitiu ao poeta fechado na corte abrir
janelas para um cenário idílico onde pudesse cantar, liberto das constrições da etiqueta, os
seus sentimentos de amor e de abandono ao fluxo da existência. Todavia, não se pode
esquecer que a evasão se faz dentro de um determinado sistema cultural, em que é muito
reduzida a margem de espontaneidade: o que explica diferenças entre o idílio de cada poeta. O
mito do homem natural cuja forma extrema é a figura do bom selvagem, torna-se importante
para compreender a vida rústica na poesia arcádica (BOSI, 2006, p. 58).
O burguês, antes da Revolução Industrial e Francesa, via o campo com os olhos de
quem cobiça o paraíso proibido idealizando-o como reino da espontaneidade. Tanto no
contexto árcade-ilustrado como no romântico-nostálgico um apelo à natureza como valor
supremo que em última instância é a defesa do homem feliz. O poeta árcade não irá tão longe
quando o poeta romântico, na exaltação dos valores que atribui à natureza, por meio da
emoção (Ibidem).
Por outro lado havia um esforço por parte dos autores árcades em provar que eram tão
capazes quanto os europeus, e também fazer com que a literatura participasse na construção
de um país livre, mesmo que, ao escreverem para sua terra, não a descreviam. No entanto,
Cláudio Manuel da Costa
4
, poeta mineiro, preso aos valores e às emoções de sua terra, se
diferencia um pouco de seus pares por trazer na imaginação as vivências profundas da
infância, transformando inconscientemente o cenário da paisagem natural em estado de
sensibilidade. Enquanto a maioria dos poemas pastoris, desde a Antiguidade, tem por cenário,
prados e ribeiras, nos versos desse autor abundante extensão de montes e vales, mostrando
que a imaginação não se apartava da terra natal. Nele, a emoção poética possuía raízes
autênticas. A imaginação da pedra”, em que o autor exprime a fixação com o cenário
rochoso da paisagem natal, é sua principal referência (CÂNDIDO, 1997), como se observa no
soneto
5
:
Este é o rio, a montanha é esta,
Estes os troncos, estes os rochedos;
São estes inda os mesmos arvoredos;
Esta é a mesma rústica floresta.
Tudo cheio de horror se manifesta,
Rio, montanha, troncos, e penedos;
Que de amor nos suavíssimos enredos
Foi cena alegre, e urna é já funesta.
Oh quão lembrado estou de haver subido
Aquele monte, e às vezes, que baixando
Deixei do pranto o vale umedecido!
Tudo me está a memória retratando;
Que da mesma saudade o infame ruído
Vem as mortas espécies despertando.
A escola a que o autor pertencia não possibilitava a ele situar seus poemas na margem
dos ribeiros auríferos, ao longo da natureza selvagem dos trópicos. Mesmo com essas
diretrizes, contudo, de pastores vindo de outros lugares, ele tem olhos para sua terra.
vários poemas em que o poeta se reporta às características de Minas Gerais, dessa forma,
parece que ele começa antecipar o Romantismo, pois a paisagem presente em sua obra
apresenta indícios de uma região.
Cláudio Manuel da Costa, no entanto, não foi diferente dos outros representantes do
Arcadismo quanto ao contraste que dividia suas idéias: “a matéria “bruta” que a paisagem
4
Cláudio Manuel da Costa, primeiro e mais acabado neoclássico, reconhecido pela formação literária portuguesa
e italiana e pelo seu talento, nasceu em Vargem de Itacolomi, Minas Gerais, 1729 e morreu em Ouro Preto,
1789. Filho de portugueses ligados à mineração, estudou com os jesuítas do Rio de Janeiro e cursou Direito em
Coimbra. Teve um papel lateral na Inconfidência; preso e interrogado uma vez, foi encontrado morto no
cárcere, o que se atribui a suicídio (BOSI, 2006, p. 61).
5
Este é o “oitavo soneto” e pode ser encontrado no livro Poemas Escolhidos (COSTA, [19--], p. 32).
oferece aos sentidos do poeta é aceita quando vazada nas formas da metrópole” (BOSI,
2006, p. 61). O autor oscilava e sofria entre o prestígio da Arcádia e as suas montanhas
mineiras.
2.3 No Romantismo
O arcadismo significou, para o país, a introdução da atividade intelectual em um
sistema expressivo de literatura, conforme os padrões tradicionais. O Romantismo, cuja
primeira geração de escritores e intelectuais começa a se manifestar por volta de 1830, vem,
então, tentar adequar a literatura ao presente literário europeu. Este exprimia a sua realidade
própria, por meio de uma “literatura nacional”, que previa a celebração da pátria, ou
simplesmente algo que os exprimisse, os representasse, ou seja, mostrasse a cor local da
sociedade, suas crenças, tradições e as instituições de um povo. A natureza, no romantismo
brasileiro, esteve representada, cheia de vida, através dos trópicos e teve muita força como
elemento peculiar entre os requisitos da nacionalidade da literatura (CÂNDIDO, 1997, v.2,
p.11). Descrever costumes, paisagens, fatos, sentimentos carregados de sentido nacional, era
libertar-se da literatura clássica, universal, comum a todos. Apesar de eles não
compartilharem de sentimentos lusitanos, não desmentiram a imagem da natureza brasileira
como a do Paraíso, o jardim de Éden
6
. Pelo contrário, porque prezavam o nacionalismo e o
patriotismo, recorreram a essa idéia para dar consistência aos ideais recomendados pela
estética e pela ideologia de seu tempo. Isso tudo foi tomando tal força que a cultura brasileira
consagrou a natureza como síntese de suas virtudes essenciais (ZILBERMAN, 1994, p. 11).
O romantismo concebe a literatura dentro de uma nova visão sobre o papel do artista e
o sentido da obra de arte, acabando com a convenção universalista dos arcádicos, em
beneficio de um sentimento novo, embebido de inspirações locais, procurando o único em
lugar do perene. Os românticos foram buscar nos países estranhos, nas regiões esquecidas e
na Idade Média pretextos para desferir o vôo da imaginação. Era a vitória do regional, do
peculiar sobre a uniformidade que o Classicismo pretendeu eternizar. A palavra não é mais
privilegiada do que a natureza, como no Barroco; nem tendem as duas a igualar-se como no
6
Paraíso, vertido ao latim, é Hortus; em hebraico se diz Edem, que na nossa língua significa delícias. Unindo
ambos, formam Hortus deliciarum, Jardim das Delícias, onde abunda todo gênero de árvores frutíferas e também
a árvore da vida; não existe ali nem frio, nem calor, o clima é ameno, o ar é fresco (SEVILHA apud
ZILBERMAN, 1994, p. 13).
Arcadismo; no Romantismo, torna-se algo menor que ela, algo insuficiente para exprimir a
nova escala em que o eu se coloca. A natureza é o supremo que o poeta procura revelar e não
consegue, pois a palavra é o molde estreito de que ela transborda, criando uma consciência de
desajuste (CÂNDIDO, 1997, v.2, p. 29).
Para os arcádicos o amor, a contemplação e o pensamento tinham alcance na medida
em que existiam no poema. Para os românticos, no entanto, importavam a natureza e o artista:
assim, a arte, sempre abaixo da ordem de grandeza que lhe competia exprimir, era relegada a
plano secundário. A natureza era considerada fonte geradora de poesia, pois a elevada visão
da qualidade da paisagem brasileira transformava seus freqüentadores em poetas, cuja obra
era fruto das sugestões do cenário, tão natural como o ambiente que a motiva (ZILBERMAN,
1994, p. 30).
A palavra literária, molde renovável, simples intermediária entre a natureza e o poeta,
vai perder a categoria quase sagrada que lhe conferia a tradição clássica, forjando-se a
expressão de acordo com a necessidade do escritor. A natureza, que aparecia superficial nos
neoclássicos, surge, nos românticos, desestruturando essa atmosfera polida e racional com
aspectos agrestes de difícil acesso como montanhas, abismos, florestas, cascatas que parecem
brotar sob morros, campos e jardins.
Para os arcádicos a natureza espelhava a própria ordenação da verdade, o real era o
natural, acolhendo e abrigando o espírito. Para o romântico ela se transforma em fonte de
mistério, realidade inacessível, fonte de percepção da limitação do homem. Os românticos
procuram mostrar a natureza como algo agitado, quer no mundo físico, quer no psíquico:
tempestade, furacão, raio, treva, crime, desarmonia, contraste. Em lugar de senti-la como
problema resolvido, à maneira do neoclássico, adora-a e renega-a sucessivamente, sem
desprender-se do seu fascínio nem pacificar-se ao seu contacto (CÂNDIDO, 1997, v.2, p.
28-29).
A natureza, segundo o preceito da estética romântica, favorecia a criação poética,
seduzindo os intelectuais brasileiros. Como se tratava de uma natureza diferenciada, suscitava
uma nova poesia, original, de acordo com o novo país que rompia laços políticos com
Portugal e, conseqüentemente, com a Europa. Essa visão determinava uma mudança no modo
de encarar e compreender o espaço, o qual passava a corresponder ao distinto e inusitado em
relação á paisagem européia, representando a nacionalidade da poesia, condição da identidade
da literatura brasileira. Ou seja, “a natureza que fora o penhor da conquista e da ocupação,
apresenta-se agora na situação de penhor da identidade nacional: separa o Brasil da Europa,
portanto, distingue a poesia local da que outrora a dominou” (ZILBERMAN, 1994, p. 32). O
Romantismo brasileiro projetava a natureza como asseguradora dos princípios básicos de sua
estética: naturalidade, originalidade e identidade. Com ela a paisagem européia como
referência cultural começa a ser substituída pela paisagem “americana”, como a definiria
Gonçalves Dias, e pela paisagem “brasileira”, que pode ser vislumbrada na poesia de
Casimiro de Abreu.
2.3.1 Paisagem tropical
Gonçalves Dias
7
consolida o Romantismo contribuindo, ao lado de José de Alencar,
para dar à literatura, no Brasil, uma categoria perdida desde os árcades maiores e, da mesma
forma que Cláudio Manuel da Costa, fornece aos sucessores o molde, o padrão a que se
referem como inspiração e exemplo. Escritor de personalidade, forte na expressão, Gonçalves
Dias é, entre os românticos, o mais decoroso e elegante. A beleza simples, a fuga ao adjetivo e
a procura da expressão mais adequada ao seu intuito, representavam o seu ideal literário.
Apesar de sua vocação romântica, persistia nele a necessidade da medida, legada pelo
neoclassicismo (CÂNDIDO, 1997, v.2, p. 71).
Em Gonçalves Dias as novas gerações aprenderam o Romantismo. A partir dos
Primeiros Cantos, 1846, “o que antes era tema saudade, melancolia, natureza, índio se
tornou experiência, nova e fascinante, graças à superioridade da inspiração e dos recursos
formais” (CÂNDIDO, 1997, v.2, p. 72).
A natureza era vista por ele em profundidade, representava um significado e ao mesmo
tempo registrava uma realidade. O autor não se destacava pela sua “poesia nacional”,
como também pela adequação dos metros à psicologia, a variedade dos ritmos, a invenção da
harmonia de acordo com as necessidades expressionais.
7
Antônio Gonçalves Dias, filho de um comerciante português e de uma mestiça, nasceu em Caxias, Maranhão,
1823 e faleceu em Costas do Maranhão, 1864. Em suas obras estão presentes os grandes temas românticos:
Natureza, Pátria, Religião, o amor impossível, de raiz autobiográfica. O autor, descendente das três raças que
formaram a etnia brasileira, sofreu o preconceito de ter seu pedido de casamento negado pelos pais da jovem
Ana Amélia (BOSI, 2006, p. 104).
Como poeta, ele procura comunicar uma visão geral do índio, por meio de cenas ou
feitos ligados à vida de um índio qualquer, cuja identidade é puramente convencional e apenas
funciona como padrão. Enquanto José de Alencar, em seus romances, procura transformá-lo
em personagem, particularizando-o e, por isso mesmo, tornando-o mais próximo à
sensibilidade do leitor (CÂNDIDO, 1997, v.2, p. 73).
Ao incorporar o detalhe pitoresco da vida americana ao ângulo romântico e europeu,
Gonçalves Dias, criou uma convenção poética nova, pois, encontrou na poesia o veículo
natural para a sensação de deslumbramento ante o Novo Mundo. De certo modo, ele deu
continuidade à posição arcádica de integrar as manifestações da inteligência e sensibilidade na
tradição ocidental, enriquecendo esta tradição, ao lhe dar novos ângulos para olhar os seus
velhos problemas estéticos e psicológicos (CÂNDIDO, 1997, v.2, p. 78). Se é possível falar
de uma “paisagem tropical”, pode ser identificado seu nascimento no poema Canção do
exílio
8
, publicado pela primeira vez no livro Primeiros Cantos, em 1846. Nele o poeta
constrói uma paisagem que passa a representar o país, a ponto de alguns de seus versos e
imagens terem sido incorporados ao Hino Nacional Brasileiro:
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá.
Nosso céu tem mais estrelas,
Nossas várzeas têm mais flores,
Nossos bosques têm mais vida,
Nossa vida mais amores.
Em cismar, sozinho, à noite,
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Minha terra tem primores,
Que tais não encontro eu cá;
Em cismar –sozinho, à noite–
Mais prazer eu encontro lá;
Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
Não permita Deus que eu morra,
Sem que eu volte para lá;
Sem que disfrute os primores
Que não encontro por cá;
Sem qu'inda aviste as palmeiras,
Onde canta o Sabiá.
8
Este poema pode ser encontrado na obra Poemas (DIAS, 1997, p. 63).
Palmeiras, sabiás, várzeas floridas, bosques repletos de encantos e de vida, passaram a
compor uma imagem do Brasil que circula até hoje por outros países e inclusive no
imaginário social do povo brasileiro. Essa representação paisagística tornou-se parâmetro
também para outros poemas, em outros períodos, que falaram das peculiaridades do Brasil
sob novas perspectivas.
2.3.2 Paisagem rural
Casimiro de Abreu
9
, o maior poeta dos modos menores do Romantismo, o único
plenamente realizado, ao exprimir os intuitos por meio de uma forma perfeita na sua
limitação, não apresenta em seus poemas o desespero amargo, a grandiloqüência, nem as
hipertrofias do sublime. Nele, afirma Antônio Cândido (1997, v.2, p. 173), “o lirismo é pura
expressão da sensibilidade, desligada de qualquer pretensão mais afoita. Saudade, ternura,
natureza e desejo são modulados numa frauta singela, sem a envergadura de outros poetas
românticos.” Ele sempre transpõe no poema um sentimento imediato, banhando-o naquela
magia desde então ligada ao seu nome. Ser casimiriano é ser suave e elegíaco, dar impressão
de incomparável sinceridade, e, principalmente, nada supor no coração humano além de meia
dúzia de sentimentos, comuns mas profundamente vividos.
Na literatura romântica, Casimiro de Abreu é dos que mais objetivamente reproduz os
detalhes da natureza física. Em Gonçalves Dias, o mundo externo é mais ou menos criado
pela imaginação, como sistema de imagens correlatas à visão interior. Nele, esse mundo
existe por si, como quadro real da vida. Quando Casimiro de Abreu associa esta paisagem ao
desejo de isolamento e aparece sob aspectos majestosos, convidando o espírito a contemplar,
manifesta-a pelos lados singelos e pitorescos. A sua é uma natureza de pomar, onde se caça
passarinho, quando criança, onde se arma a rede para o devaneio ou se vai namorar, quando
rapaz (CÂNDIDO, 1997, v.2, p. 174).
A sua visão exterior está condicionada estreitamente pelo universo do burguês
brasileiro da época imperial, das chácaras e jardins, que começavam a marcar uma etapa entre
o campo e a vida cada vez mais dominadora das cidades. A paisagem aparece despojada de
9
Casimiro José Marques de Abreu nasceu em Barra de São João, 1839 e faleceu no mesmo lugar em 1860. Filho
de um fazendeiro e negociante português, o poeta passou toda a infância no campo, de onde saiu para estudar em
Nova Friburgo. Publicou o seu único livro de poemas, Primaveras, em 1859, um ano antes de morrer de
tuberculose (BOSI, 2006, p. 115).
qualquer exagero. O autor preferia os aspectos mais familiares da natureza, reduzindo-a a um
ângulo visual menor, de temperamento mineiro, usando uma expressão baseada na língua
cotidiana, em harmonia com o seu tema insistente da evocação dos anos da infância e do
aconchego familiar (COUTINHO, 1968, p. 64), enxugando a expressão dos afetos, tão
ardentes em Gonçalves Dias. Como nessas duas estrofes de um de seus mais famosos poemas,
Meus oito anos
10
, quando bananeiras e laranjais incorporaram-se de vez à literatura brasileira,
não mais como natureza, mas como paisagem cultural:
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Livre filho das montanhas,
Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberta o peito,
— Pés descalços, braços nus —
Correndo pelas campinas
A roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!
2.4 No Simbolismo
O Simbolismo, reagindo contra a fórmula estética parnasiana e realista que dominava
a cena literária na década de 1870, situa-se muito próximo às orientações românticas, não
aceitando a separação entre sujeito e objeto, entre assunto e artista. Para o simbolista, objetivo
e subjetivo se fundem, pois o mundo e a alma têm afinidades misteriosas e as coisas mais
díspares podem revelar um parentesco inesperado (CÂNDIDO; CASTELO, 2003, p. 294). No
entanto, ele repele o Romantismo quanto à sua linguagem metafórica e ao seu emocionalismo.
No Brasil, esse movimento começa oficialmente com a publicação, em 1893, de
Missal (poemas em prosa) e Broqueis (versos), ambos de Cruz e Souza
11
. O simbolista
10
Este poema pode ser encontrado na obra As primaveras (ABREU, 1972, p. 38).
11
João da Cruz e Souza, filho de antigos escravos, nasceu na cidade do Desterro, atual Florianópolis, Santa
Catarina, em 1861, e morreu em 1898 na Estação de Sítio, Minas Gerais, onde fora tratar sua saúde. Escreveu
desde cedo para jornais. Muito pobre sofreu preconceito de cor e nunca teve profissão certa, contanto com
pequenos empregos para não passar fome. Depois da publicação de Missal e Broqueis, em 1893, o
acredita que o espírito não consegue apreender satisfatoriamente o mundo e os sentimentos.
Não é possível traçar um contorno firme dos objetos, ou dos seres, ou das idéias. Por isso, “a
obra resultante não é válida por si só, não está acabada de uma vez por todas, ou fechada na
sua integridade. Cruz e Souza se esforça pela “transcendência poética, para prolongar o verso
em antenas voltadas para um mundo essencial, além da história, do cotidiano, da própria vida”
(CÂNDIDO; CASTELO, 2003, p. 295).
De acordo com o desejo de mistério e fluidez dos simbolistas, houve a busca por
ritmos mais musicais e insinuantes com recursos expressivos e vocabulário muito peculiar
adaptado aos temas prediletos, entre eles o das paisagens vagas, cheias de cisnes, lagos e
luares, envoltos em neblinas e em ressonâncias, com reflexo de emoções, espiritualidade.
Seus representantes uniram-se por certos ideais comuns contra o espírito positivista das artes,
da moral e da filosofia.
Nesse sentido, a natureza e o universal foram desprezados em troca do individual e do
sobrenatural, do místico. As palavras são escolhidas pela sonoridade, ritmo, colorido, fazendo
arranjos artificiais para criar impressões sensíveis, sugerindo antes que descrevendo. A poesia
explorava o inconsciente através de símbolos e sugestões, preferindo o mundo invisível ao
visível, querendo compreender pela intuição, buscando uma essência, a realidade situada além
do real e da razão, além dos sentidos (COUTINHO, 1999, p. 321-323).
No poema Antífona
12
, de Cruz e Souza, verdadeiro fundador do simbolismo brasileiro,
observa-se que a paisagem, apesar de criar imagens de grande beleza, não aparece de forma
explícita (CÂNDIDO; CASTELO, 2003, p. 294). Mesmo dando a impressão de claridade, ela
apresenta-se em meio a neblinas e ocasos trêmulos. Como é possível notar na primeira e na
terceira estrofes:
Ó Formas alvas, brancas, Formas claras
de luares, de neves, de neblinas!...
Ó Formas vagas, fluidas, cristalinas...
Incensos dos turíbulos das aras...
Indefiníveis músicas supremas,
harmonias da Cor e do Perfume...
Horas do Ocaso, tremulas, extremas,
Réquiem do Sol que a Dor da Luz resume...
reconhecimento da opinião literária e do público foi se construindo lentamente, até à gloria que hoje o cerca
como um dos grandes poetas brasileiros (CÂNDIDO; CASTELO, 2003, p. 393).
12
Este poema pode ser encontrado na obra Cruz e Souza (GONÇALVES, 1982, p. 13).
A contribuição do simbolismo foi mostrar como era possível utilizar elementos da
paisagem como imagem, da metáfora, de experiências humanas, numa fusão de significados
sem precedentes na poesia.
2.5 No Modernismo
O movimento modernista surgiu em São Paulo com a Semana de Arte Moderna, em
1922, e, se espalhou depois pelo país, respondendo aos anseios de equiparação da literatura
nacional, aos avanços das vanguardas estrangeiras, exigindo a atualização da consciência
artística da nação. Não foi claramente delineada a teoria estética desse movimento, mas fica
claro que visava reformular o conceito de literatura e escritor, definindo e orientando uma
nova renovação. O seu período marcante foi em torno de 1930, quando começa a surgir uma
nova etapa de maturação que culmina, como é considerado, no ano de 1945, fim da fase
dinâmica do modernismo (CÂNDIDO; CASTELLO, 1979, p. 7).
Essa mentalidade renovadora na educação e nas artes começa a questionar seriamente
a legitimidade do sistema político, dominado pela oligarquia rural. A arte e a literatura, antes
considerada caprichos de pessoas descrentes do sistema e irresponsáveis, passam a ser
reconhecidas como expressão legítima da sensibilidade e das idéias, pois o Modernismo passa
a aderir profundamente os problemas da terra e da história contemporânea brasileira.
O que unificava os modernistas não eram postulados rigorosos em comum, mas um
grande desejo de expressão livre para falar da emoção pessoal e da realidade do país. Em
relação ao estilo, rejeitavam os padrões portugueses, na busca de uma linguagem mais
coloquial, próxima do jeito de ser e falar do brasileiro, acentuando a diversidade regional para
compreender a unidade nacional (Ibidem, p. 10).
O movimento literário implantado com a Semana da Arte Moderna de 1922 não teve
repercussão imediata aqui no Rio Grande do Sul. Um dos principais motivos foi que as
produções gaúchas oriundas da nova estética não perderam seus vínculos com o Simbolismo.
Outro, é que a ênfase na tradição local, uma das metas do Modernismo, coincidia com os
resultados já alcançados pelo Regionalismo (ZILBERMAN, 1992, p.63).
No entanto, o poeta sul-rio-grandense Raul Bopp
13
, autor de Cobra Norato, publicado
em 1931, está muito mais ligado às vertentes do Modernismo paulista que à literatura gaúcha.
Segundo ele, essa obra foi escrita em 1928 para uma “Bibliotequinha Antropofágica”, a qual
pertenciam as principais obras produzidas dentro do ideário antropofágico, elaborado por
Oswald e Tarsila, visando, naquele momento culminante do nacionalismo, ao “retorno ao
Brasil” e à expansão do primitivismo. A identidade e a individualidade nacional foram
marcadas por criaturas originárias de um ambiente não urbano e mágico, unificando as fontes
nacionais não contaminadas pela colonização (Ibidem).
Em Cobra Norato
14
, a primitividade e a floresta amazônica com seu mundo mítico
significam, respectivamente, o elemento regressivo da Antropofagia e o espaço para sua
representação, abrindo caminhos para a nova poética que se constituiu, junto com
Macunaíma, de Mario de Andrade a grande criação do movimento antropofágico. As coisas
ainda não têm nome no espaço primitivo e original situado na obra de Bopp. Não ainda
“uma civilização com fronteiras sociais demarcadas ou convenções estabelecidas; diz respeito
antes a este mundo em formação, pré-adâmico, que viria a tornar-se um ‘Brasil’, utopia na
qual crê o poeta e que constitui na principal aspiração da Antropofagia” (ZILBERMAN,
1992, p.64).
Necessário complemento do Manifesto Antropofágico, a rapsódia amazônica, Cobra
Norato apresenta diálogos do protagonista com os seres espantados da floresta e do rio, o que
forma um coro cósmico desse poema original e ainda vivo como documento limite do
“primitivismo” entre nós (BOSI, 2006, p. 369). Os seres e os elementos da natureza possuem
características, sentidos e movimentos peculiares aos dos humanos, assim como o eu-lírico
narrador, veste-se de cobra e rasteja pela terra gorda” floresta adentro, em busca de seu
objetivo. A natureza amazônica é engolida pelo homem, transformada em definitivo por esta
presença. Vejam-se os novos significados que ela adquire nestes versos:
IV
Esta é a floresta de hálito podre,
Parindo cobras.
Rios magros obrigados a trabalhar
A correnteza se arrepia nos redemoinhos
13
Raul Bopp nasceu em Tupanceretã, no Rio Grande do Sul, em 1898 e faleceu em Porto Alegre, 1984.
Descendente de imigrantes alemães estabelecidos no estado desde os anos 1850, viajou por todo o país, inclusive
Amazônia, praticando as mais diversas profissões, desde pintor de paredes até caixeiro de livraria. em 1928,
ligou-se a Oswald e a Tarsila, padroeiros da Antropofagia. Tornou-se jornalista e diplomata (BOPP, [19--] ).
14
Este poema pode ser encontrado na obra Antologia poética (BOPP, [19--], p. 22).
Descascando as margens gosmentas
Raízes desdentadas mastigam lodo
Num estirão alagado
O charco engole a água do igarapé
Fede
O vento mudou de lugar
Um assobio assusta as árvores.
Silêncio se machucou
Cai lá adiante um pedaço de pau seco:
Pum.
Um berro avulso atravessa a floresta
Chegam vozes.
O rio se engasgou num barranco
Espia-me um sapo sapo sapo
Por aqui há cheiro de gente
– Quem é você?
– Sou a Cobra Norato
Vou me amaziar com a filha da rainha Luzia.
Eduardo Guimaraens, poeta simbolista, em seu texto O ‘espírito moderno’...,
publicado no jornal Correio do Povo, em 25 de junho de 1925, viu no modernismo uma
contradição que na verdade não existia. Quando os adeptos desse movimento pregavam a
universalização da nacionalidade através da literatura, eles visavam justamente enaltecer as
diferenças e não a unificação ou a homogeneização do Brasil em relação, não somente à
Europa, como às diferentes e distintas regiões do país. Os modernistas previam que a
“brasilidade” se daria através das peculiaridades da nação. Por isso o regionalismo falou
tão alto através desse movimento, e a resposta deles a seguinte pergunta de Guimaraens seria,
sem dúvida, negativa, pois a maior parte dos escritores estaria predisposta a escrever sobre
sua terra:
Devem os artistas do Brasil todo, os do norte, habituados aos calores tórridos e às
secas intermináveis e funestas ou às chuvas continuas e intensas, aos rios colossais
que se animam a lutar com o Oceano, ás montanhas que sobem a explorar as
regiões das nuvens, às floretas cerradas, imensuráveis e gigantescas, devem esses
artistas que vivem num determinado ambiente, sentir, pensar e criar de igual, de
idêntica maneira aos do sul, acostumados à visão dos cerros e das planuras suaves,
acidentadas apenas pelo mar imóvel das coxilhas e das canhadas, às belas serras
ondulosas e jamais agressivas, às matas luxuriantes e diversas, mas normais na
intemperança, a uma primavera e a um outono, a um inverno e a um verão de
ordinário perfeitamente caracterizados, e tudo isto, como é lógico, influindo, de
modos diferentes, na constituição orgânica, na estrutura psicológica das suas
personalidades? (GUIMARAENS, 1925).
2.6 No Regionalismo
O regionalismo é uma tendência às representações das diferentes peculiaridades
regionais que vêm sido observadas na literatura brasileira desde o Romantismo. Não se trata
necessariamente de um movimento, e não significa simplesmente a representação do regional,
mas a de um regional escolhido de acordo com pressupostos ideológicos, que seguem as
convenções estéticas e estilísticas da literatura da época. Segundo José Clemente Pozenato
(1974, p. 15), “o regionalismo não implica a realização de uma obra de valor apenas
regional”, pois, mesmo a obra de caráter universal é sempre situada num lugar e num tempo,
sejam eles reais ou imaginários.
O corsário, de Caldre e Fião, poeta apontado por Guilhermino César (1971, p. 150)
como o criador do romance gaúcho, decano do Partenon Literário
15
de Porto Alegre,
publicado em 1851, inicia, segundo o mesmo autor
16
, o regionalismo brasileiro, cujo tipo
humano representado é o homem do campo, que aparece no espaço rural, na época da
Revolução Farroupilha
17
. De acordo com Antônio Cândido (1979, p. 28), estava lançada uma
das correntes mais poderosas da nossa literatura, que chamamos de regionalista, cujos
produtos se desprendem, muitas vezes, “completamente dos elementos pitorescos, do lado
concreto, da vivência social e telúrica da região. Na maioria dos livros, porém, esta existe
como enquadramento expressivo, dando um peso de realidade e um elemento de convicção”
(CÂNDIDO, 1979, p. 28).
O regionalismo, no Rio Grande do Sul, abrange quase todo século XIX, acentuando-se
na década de 70, com a forte atuação do Partenon Literário, que procurou aproveitar e
promover, enquanto matéria de ficção, a paisagem, os temas e a vida peculiar do homem
campeiro. Em relação a esse aspecto, Maria Eunice Moreira (1989, p. 41) afirma que o
Partenon fortaleceu-se como movimento literário por desempenhar uma dupla função, ou seja,
ao mesmo tempo em que reuniu os intelectuais provincianos, promovendo um trabalho de
15
Em 1868, um grupo de intelectuais porto-alegrenses funda a Sociedade Partenon Literário. Em seus onze anos
de atividade, essa entidade literária incentivou várias manifestações artísticas, criou a sua própria biblioteca e
incentivou a criação de outras. Utilizou o teatro como instrumento em favor da alforria dos escravos e procurou
libertar as mulheres de certos preconceitos, inserindo-as em reuniões literárias. Durante todo o período de
funcionamento, o grupo do Partenon defendeu a valorização do folclore, da história e da linguagem regional,
ampliando, dessa forma, as discussões em relação ao nacionalismo.
16
Ver ZILBERMAN, 1992, p. 48.
17
Regina Zilberman (1992) acrescenta às características do regionalismo enfatizadas por Lúcia M. Pereira, o tipo
humano escolhido e o meio, a fixação de determinado tempo histórico, elemento marcante do regionalismo sul-
rio-grandense.
organização da vida literária debruçou-se sobre os elementos locais, estimulando a produção e
a circulação de obras dentro dos cânones românticos.
Esse regionalismo estendeu sua influência até o Modernismo e ressurgiu ativamente
depois de 1930, quando alguns autores como Cyro Martins, considerado sucessor de Darcy
Azambuja, apropriam-se da temática regionalista, apresentando-a através de uma ótica social,
seguindo os cânones da época (ZILBERMAN, 1992, p. 49). Nessa perspectiva, as
transformações que se constataram no campo econômico, político e social, a partir da década
de 20, propiciaram o surgimento de uma nova pirâmide social. A narrativa regionalista foi
obrigada a encontrar novas temáticas e mudar os rumos da ficção.
O poder de criação no regionalismo sempre teve como célula-máter as sugestões do
meio (PEREIRA, 1973, p. 179). Mesmo o romance brasileiro, de forma geral, em todas a suas
fases, quase sempre se voltou mais para o mundo objetivo em detrimento do plano moral.
Assim, é possível afirmar que a paisagem na nossa literatura alcança dimensões inconcebíveis
numa literatura como a européia, por exemplo. A representação paisagística, como discurso
de uma região, ao mesmo tempo em que contribui para formar os tipos humanos, os costumes
e a linguagem local, e formada por esses elementos tão presentes no regionalismo. A
paisagem como forte elemento de sugestão, tem influenciado o poder de criação literária dos
nossos poetas, e, conseqüentemente, a formação cultural de um povo.
O Modernismo, acentuando as diversidades regionais para melhor compreender a
unidade nacional, reabriu as portas para o regionalismo brasileiro. Segundo Ruben Oliven
(2006, p. 22), “o regionalismo aponta para as diferenças que existem entre regiões e utiliza
essas diferenças na construção de identidades próprias.” Dessa forma, a cultura e a identidade
regional formam-se a partir da representação de um mito local e seus atributos, entre eles, a
paisagem.
A paisagem, dentro do contexto regionalista modernista, foi redimensionada pelo
jovem contista sul-rio-grandense Darcy Azambuja, que, com o lançamento da obra No
galpão, em 1925, traz à tona uma nova estética paisagística. A atenção concedida à paisagem
sobrepõe-se aos tipos humanos presentes nos contos, mas de uma forma subvertida àquela até
então observada nos poetas anteriores. A paisagem é mais uma voz que surge nas narrativas
de Azambuja, inovando a prosa da literatura pré-modernista. José Clemente Pozenato (2005,
p.10) chega a supor que No galpão (1925) influenciou o autor nordestino, José Américo de
Almeida, em sua obra A bagaceira (1928), “romance escolhido pela crítica para ser marco do
romance modernista brasileiro”, que, ao modo da narrativa azambujiana, mostrava a paisagem
não de um modo direto, ou realista, mas poético. Intimamente ligada às personagens, é, de
certa forma, um tipo de “paisagem interna” das mesmas.
Segundo Augusto Meyer (1999, p. 305), o jovem estudante, Darcy Azambuja, levou
para a Capital as lembranças do encanto das rodas galponeiras da Campanha onde morava e,
escreveu,
[...] nas pausas do curso acadêmico, entre o mate e a anedota, uma série de cantos
admiráveis, publicados com o título No galpão (1925). O sucesso foi imediato, e
nenhuma obra de autor gaúcho alcançou até hoje a mesma consagração da
popularidade, nem tantas edições amiudadas. Era mais que uma estréia vitoriosa, a
reatamento da tradição literária gauchesca em novos moldes, sobretudo a revelação
de um verdadeiro mestre do conto; surgia em Darci Pereira de Azambuja (1903)
uma espécie de primo-irmão de Simões Lopes Neto, cuja memória, aliás, invocara
na dedicatória do livro. Limpidez de estilo, veracidade e fluência da narrativa, uma
discreta poesia, [...] e principalmente o gosto de contar sem a preocupação de
explicar, [...] são qualidades que justificam e consolidam a popularidade da obra-
prima de Darci Azambuja.
Nascido em Encruzilhada do Sul, no ano de 1903, esse autor foi jurista, jornalista,
colaborou com A Federação e foi diretor do Jornal da Manhã, professor de Direito, de
Filosofia e diretor da Faculdade de Filosofia da PUC, além disso, atuou como comerciante e
promotor público. Foi também procurador-geral do Estado (1933) e secretário do Interior
(1935-37) no governo de Flores da Cunha. Fez parte da Academia Rio-Grandense de Letras
como um de seus membros e do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul. Aos
39 anos lançou sua mais vendida e reconhecida obra de cunho jurídico, intitulada Teoria
Geral do Estado (1942). Outras produções concernentes ao direito, porém de menor impacto,
também contribuíram para o enriquecimento da área jurídica nacional como Decadência e
Grandeza da Democracia (1945) e Introdução à Ciência Política (1969). Darcy Azambuja
faleceu na cidade de Porto Alegre no ano de 1970.
Entre as obras literárias, depois de No galpão (1925), Darcy Azambuja publicou, ainda
na temática regionalista, Contos Rio-grandenses (1928), A prodigiosa aventura e Outras
histórias possíveis (1939), Romance antigo (1940) e Coxilhas (1956). No entanto, seu
primeiro livro é o mais significativo de sua curta carreira na literatura, onde atuou de forma
pouco comprometida com os parâmetros programáticos da época (POSENATO, 1974, p.55),
enfocados pela Semana de Arte Moderna.
Com os seus dezesseis contos
18
: Fogão gaúcho, Contrabando, Carreteiros, Brinquedo
pesado, Juca da Conceição, Por pena, Velhos tempos, Querência, Charla, Dia de chuva,
Andarengo, Lagoa morta, Fazendo aramado, Beira de estrada, Emboscada e Passo brabo, os
quais representam a cultura do gaúcho da Campanha do Rio Grande do Sul, suas lidas
campeiras, o apego a terra, sua valentia, sua palavra como código de honra, a democracia
pampeana, tudo isso legitimado no imaginário coletivo, a obra No galpão, justamente por
apresentar-se de forma avessa àquela sugerida na Semana de 22, recebeu o primeiro prêmio
de contos da Academia Brasileira de Letras, em 1925. Contista reconhecido na capital federal
sem sair da província, considerado o herdeiro de Simões Lopes Neto (1865-1916), Azambuja
ultrapassa esse Regionalismo pré-modernista e começa a introduzir uma nova visão literária.
Com suas personagens típicas das estâncias e cidades do interior, como o tropeiro, o
contrabandista, o carreteiro, o guerreiro, a zelosa cozinheira, o fazendeiro rico, o cavalo e o
guaipeca entre outros, esse autor utiliza uma linguagem de caráter poético e sensível, fazendo
das representações paisagísticas um veículo para acentuar os atributos físicos e morais que
caracterizam o gaúcho frente aos acontecimentos peculiares àquela região de fronteira com as
guerras, as mudanças econômicas e o processo de urbanização daquela época.
No galpão é a abra responsável pelo elo entre o passado nostálgico regionalista e o
futuro dessa vertente, que surgirá revelando, sob a ótica negativa, as modificações
experimentadas pela economia do país. Tal obra “configura-se como a criação mais
importante na década em que a literatura brasileira amoldava-se aos efeitos da revolução
modernista” (ZILBERMAN, 1992, p. 80). Nesse sentido, Flávio Loureiro Chaves (2001)
considera Azambuja um “narrador de transição” entre João Simões Lopes Neto e Érico
Veríssimo.
A Campanha, como na maioria das obras de cunho regional produzidas no Rio Grande
do Sul, é o espaço escolhidos para tais representações. Destaca-se das demais regiões do
estado e do próprio meio urbano, caracterizando-se como o ambiente natural do vaqueano
andarengo, do guasca livre, senhor absoluto do seu próprio destino.
Eduardo Guimaraens, nome consagrado na poesia simbolista rio-grandense, em Um
poeta do pampa, texto publicado logo após o lançamento de No galpão, no jornal Correio do
Povo, de Porto Alegre, considerava, naquela época, Darcy Azambuja e Simões Lopes Neto os
18
Para esse estudo foi utilizada a terceira edição de No galpão, de 1928, três anos após o seu lançamento. Nas
citações será atualizada a grafia das palavras, e, quando forem citados trechos, far-se-á a referência apenas com o
nome dos contos e não das páginas, em virtude de considerar-se outros volumes dessa edição uma raridade.
únicos autores a disporem de originalidade para aproximar-se da alma e do espírito, do caráter
e do temperamento dos homens que povoaram a Campanha. Ponderando a dificuldade de tal
transposição para a arte, Guimaraens afirma que esses autores conseguiram diferenciar o
cenário do estado do restante do país, representando em seus contos:
[...] planuras imensas, sulcadas aqui e ali de coxilhas e semeadas de arroz, quase
sempre com horizontes amplos e abertos; vastos campos que, incessante fecunda o
suor do trabalho, e que por vezes nem de pão vivem os homens! rega o
generoso sangue, em defesa de ideais; a sinuosa geografia das suas serras
ondulantes, que têm a curva macia dos largos gestos de heroísmo e da bondade da
gauchada audaz e cordial; as matarias espessas e selvagens, cerrados claustros de
escuridão e de terror, avizinhando-se de cascatas de água fresca e pura; e, em maior
número, pequenas selvas e grandes bosques, os capões, isolados, solitários e de
aglomeradas trinchas abertas no emaranhado das frondes (ramificações), por onde a
luz do sol se insinua, multiplica e fragmenta em lampejantes fagulhas de ouro, a
transformá-los, para as sestas de estância, como sonoros, abrigados e silenciosos
caramanchões (GUIMARAENS, 1925).
Segundo Guimaraens (1925), No galpão representa a identidade desses guascas
relacionada a essa natureza peculiar, em cujo ambiente nascem, lutam e morrem, ou por vezes
têm que abandonar a tranqüilidade da sua “‘querência’ onde o conforto da família e do
trabalho feito com essa alegria saudável e forte, são o mais fundo encanto da sua existência, e
partem atraídos pelo irresistível gosto das aventuras e das surpresas”.
Esse autor afirma ainda que para observar com profundidade esses tipos
característicos, e interpretá-los, é preciso transcender do “sobre-real”. E isso significa, em
suma, “o espírito criador em arte, ou seja, a idealização, não transitória, mas permanente e
definitiva das coisas e dos seres” (GUIMARAENS, 1925).
Em muitos dos contos de No galpão, Azambuja, resumindo a história da literatura sul-
rio-grandense, vai dos temas comuns dos assuntos campeiros à tematização urbana. Regina
Zilberman (1992, p.79) assinala que, tal procedimento confere a esse autor a importância de
fortalecer e ampliar o panorama literário, ao representar em seus contos as modificações
ocorridas no setor político, econômico e social da Campanha, em virtude do, então, recente
processo de industrialização e urbanização, antecipando a decadência do gaúcho, mito
idealizado no Regionalismo saudosista.
3 A PAISAGEM EM DARCY AZAMBUJA
Se a construção de uma identidade passa pela
consideração de uma herança e pela preservação de um
patrimônio sócio-histórico; e se a capacidade de
recordar, preservar e perpetuar um passado faz parte
de um sentimento identitário, este último encontra um
local de expressão privilegiada nos ‘lugares de
memória’. As paisagens reais, assim como suas
representações estéticas nas obras artísticas e
literárias, assinalam, tanto quanto informam, as
consciências coletivas emocionais e territoriais.
Mathias Le Bossé
3.1 A importância da paisagem
A escolha do título da primeira obra de Darcy Azambuja denuncia dois aspectos
essenciais da mesma. Não é “O galpão”, o que seria simplesmente um espaço. No galpão” é
dentro de um espaço, agora um lugar onde algo pode acontecer, onde pessoas podem estar.
Outro aspecto é que nesse lugar, nesse elemento da paisagem, que simboliza a Campanha do
Rio Grande do Sul como um elemento histórico relacionado ao homem dessa região, é que
será contada a maioria dos causos de No galpão. O conto de abertura do livro apresenta o
principal cenário deles:
[...] no galpão, à beira do fogo, os peões também, mateando, contavam os rudes
casos. Ora de vida campeira, das marcações ao e ao sol, dos dias quentes, dos
rodeios pelas madrugadas frescas, de estouros de tropas, e trabalhos e perigos; ora
casos de amor, de guerras, de entreveros (Fogão gaúcho).
A paisagem e o contar significam muito mais que o explicar, o esclarecer dos fatos.
Azambuja não pretende, em seus contos, criar grandes e ilustres enredos, dramas psicológicos
e ações. Não importa onde vai chegar, o que importa é a travessia, o que o leitorvê” e sente
pelo “caminho”, durante a leitura do texto. Nesse sentido, Azambuja lembra a poesia inscrita
na ficção de Guimarães Rosa (1908-1967), pois a linguagem paisagística azambujiana insere
outras histórias além da linguagem narrativa.
Em Porto Alegre, onde morava, o autor busca inspiração na simplicidade de um
homem do campo, ou em acontecimentos que se congelaram no plano da sua memória, para
falar poeticamente sobre a natureza, o clima, o sol, a chuva, a noite, os animais e os homens
da Campanha, lugar de seu nascimento. Isso não significa dizer que essas memórias, revividas
e recuperadas no plano da arte, trazidas à tona através da narrativa e expostas a novas
interpretações, sejam compostas somente por belezas. Em muitos contos a violência, presente
em muitas épocas no Rio Grande do Sul, transparece inclusive em meio à paisagem, cenário
de lutas:
Os piquetes, recuando, estabeleciam já, nas coxilhas, fronteiras, o primeiro contato,
quando a coluna acampada se entrincheirava nas cercas meio destruídas e
sinuosidades do terreno, estendida em linha simples, com um flanco apoiado no
arroio. O centro, desabrigado, valia-se do ângulo morto formado por um plano
escampo e os primeiros aclives das coxilhas, – rampas tentadoras para o tempestear
das cargas (Velhos tempos).
É na representação paisagística da obra No galpão que se encontra a maior
contribuição de Azambuja para a literatura brasileira. José Clemente Pozenato, no prefácio de
uma edição especial, publicada em 2005, composta por dois volumes, sendo o primeiro sobre
a vida e a obra de Darcy Azambuja, e o segundo, uma seleção de seus melhores contos
19
, trata
esse poeta como O aquarelista. Referindo-se à obra No galpão, a paisagem, apresenta “um
evidente intuito de ‘poetização’ de cunho pictórico, que de certo modo deixou marcas na
prosa narrativa de toda a geração de 1930” (POZENATO, 2005, p. 10). Azambuja parece usar
um pincel para formar um cenário. Além disso, com as cores de um amanhecer radiante, ou de
“bruma gelada”, ou de um entardecer, quando o sol vai enrolar-se, longe, nas dobras
verde-escuras das coxilhas [...]” (Carreteiros), ou anoitecer, quando “a treva começa a encher
as baixadas, pendurando-se pelas encostas” (Emboscada), o poeta leva o seu leitor a
contemplar todas as cores de uma aquarela.
A importância que o autor dedica à paisagem denuncia-se através das muitas vezes
que a palavra paisagem é repetida ao longo da obra. Se o horizonte parece próximo e
cinzento, como no conto Carreteiros, “fecha de tristeza a paisagem”; quando, nesse mesmo
conto, sob o ar leve ecoava o chio agudo das carretas que se perdiam pelas ondulações das
coxilhas, “animavam de pitoresco a paisagem tranqüila”; o velho Severo, do Velhos tempos,
ficava imóvel, “vendo dentro de si paisagens mortas e longínquas”; o moço Sérgio, do
Querência, vivera na Campanha desde criança, “até fazer-se homem e cada trecho daquela
paisagem amiga tinha um pouco dele mesmo da sua vida forte e alegre de campeiro”; o mar
verde das coxilhas, nesse mesmo conto, estendia-se e, “do alto em que estava a casa, a
paisagem ampliava-se”; mas, em nenhum outro conto a solidão e o silêncio oprimiu e
angustiou tanto, pesando na paisagem”, como em Lagoa morta; o consolo do velho Chico
Pedro, do Beira de estrada, era olhar “demoradamente a paisagem, que havia oitenta anos
enchia de tranqüilidade a sua alma de campeiro”, sentado num banco, em frente a sua casa, na
sombra das figueiras; e o portão largo do galpão servia de moldura aos peões que, terminado
o serviço, tomavam um chimarrão ao redor do fogo, olhando “a paisagem cinzenta” do Passo
brabo, conto que encerra a obra No galpão.
No conto Fazendo Aramado, o narrador fala, referindo-se à personagem João Silvano,
um dos típicos representantes da figura do gaúcho, que “a sua linguagem mesma adaptava-se
ao espírito do que contava”. Na verdade, quem adaptou a linguagem àquilo que contava foi o
próprio Darcy Azambuja. E, como a paisagem representa mais uma voz nos contos, a
linguagem paisagísticas também é adaptada aos acontecimentos e aos sentimentos, dos quais
o autor deseja falar.
19
Nessa edição, dez, dos vinte contos escolhidos, são da obra No galpão (1925).
Mais que uma voz nos contos, elementos da paisagem também possuem a dimensão
do olhar. Logo no primeiro conto, Fogão gaúcho, as janelas das casas abriam pupilas
vermelhas e quentes para a noite que ia fora”; no Velhos tempos,da pupila triste das estrelas
lagrimas de luz pareciam também cair sobre as tragédias terminadas”; no jardim de Clara, do
Querência, “entre o branco tapete das margaridas as rosas sangravam e amores-perfeitos
abriam pupilas de mistério”. Pode-se dizer que o primeiro olhar se refere às janelas abertas,
expandindo a claridade dos lampiões acesos dentro das casas e permitindo aos seus inquilinos
o debruçar-se nela para vislumbrar a noite. Aspupilas tristes das estrelas” justificam-se pela
tristeza de Severo, pois elas viam, também desoladas, a paisagem desfigurada pelas profundas
mudanças trazidas pelo “progresso”. E, justamente porque foi a flor amor-perfeito que abriu
pupilas de mistério, fica explícito o jogo de amor entre Sérgio e Clara: quando foram até o
jardim colher flores, estas enxergaram-lhes o segredo.
As crenças, os ditos populares, a maneira de expor os pensamentos e as idéias dos
tipos humanos que povoam a Campanha de No galpão, não deixam de referir-se a paisagem.
Segundo o velho narrador de “sessenta e tantos anos de viagem...”, (do conto) Dia de chuva,
“é dia de parar rodeio nas lembranças...”. Ele afirma ainda que “há coisas que vêm e ficam
dentro da gente sem murchar, como uma planta que se agua todos os dias”. Em Beira de
estrada, o narrador compara a tristeza de Chico Pedro a uma sombra na sua vida tranqüila
como um riozinho: “uma sombra de magoa viera toldar aquela vida, até então serena como
um arroio a correr em leito de areia”. Nesse mesmo conto, logo em seguida, as árvores
parecem prever o triste fato que irá suceder-se na casa: “[...] duas figueiras, imóveis, pareciam
cismar, deixando cair às vezes uma folha seca, que era como um pensamento morto”. Não
demora, o velho recebe a notícia do viajante Zeferino, que viu o famoso e cruel João Torto
“estaqueado, com a cabeça quase separada dos ombros”. João Torto era filho de Chico Pedro,
aquele que lhe escutava. Depois disso, o destino do casal de velhos, que recebiam e
hospedavam a todos os que precisavam, foi implacável: “num começo de inverno, a velhinha
morreu, e o último de madressilva não tinha ainda florescido quando enterraram Chico
Pedro”. A paisagem, aqui, também serviu como marcação temporal. Como podemos observar,
a senhora morreu no inverno e ele antes de terminar a primavera do mesmo ano.
A beleza maior encontra-se na mistura entre o homem e a paisagem, com suas cores,
as texturas, os cheiros, os sentimentos, os animais, as plantas. Não se sabe a quem ou ao que
pertence cada coisa, pois os matizes que o poeta cria, não permitem distinguir o ser da matéria
ou da arte, um se torna a imagem do outro: “Ao da cruz, sobre a grama verde, um
ramalhete de rosas frescas sangrava, e perto, de chapéu na mão, a cabeça branca inclinada
para o peito, estava o velho Antônio” (Andarengo). De acordo com o contexto, sabe-se que a
personagem, o velho andarengo, pára numa tapera, com a desculpa de descansar, e visita uma
sepultura (que é de sua esposa e filho), em cujo local nasceram flores, que, na concepção
poética do narrador, sangravam. O conjunto das relações estabelecidas no conto, entre
Antônio Pala e aquela paisagem, deixa a sensação de vislumbrar rosas vermelhas, que
significariam amor, mas elas sangram. No entanto, flores não são dotadas dessa capacidade, e
naquele momento, o que sangrava era o coração de um velho que era feito uma tapera
andante: “[...] ele também uma ruína; na sua alma de gaúcho errante e triste existiam as
ruínas das vidas e dos afetos que perdera. Como a tapera, vivia lembrando o passado”
(Ibidem). Ao mesmo tempo em que Azambuja distorce, poetiza a realidade fazendo as rosas
sangrarem, consegue apontar de forma mais aguda a realidade exterior daquela época, cuja
violência propiciava muitos tipos de órfãos.
A paisagem “sofre” junto com seu habitante, serve-lhe como espaço e se oferece à
contemplação, ao deleite de seu dono e criado ao mesmo tempo. Em Grande sertão: veredas,
Riobaldo afirma: “Compadre meu Quelemém diz: que eu sou muito do sertão? Sertão: é
dentro da gente” (ROSA, 1986, p. 270). Para Azambuja a frase seria, quem sabe: Meu
compadre Antônio Pala (ou Severo, de Velhos tempos; ou João Silvano, de Fazendo aramado;
ou Chico Pedro de Beira de estrada; ou Tio Laureano, de Passo brabo) diria: o pampa é
dentro da gente.
As representações paisagísticas transformam-se em um meio pelo qual Azambuja tenta
demonstrar o “progresso”, a urbanização do pampa, e, conseqüentemente, a transfiguração da
cultura do homem do campo. Elementos que compõem a paisagem, como aramados, fios de
telégrafos, o trem, o automóvel entre outros, denunciam a introdução de novos tempos, não
somente para aquela cultura regional, mas para o restante do Rio Grande do Sul. O autor não
propõe, no entanto, a volta do passado, encontra-se ciente das alterações, inclusive do mapa
humano, com o surto migratório. Saudades sim, e por isso ele busca preservar, através da
literatura, a visão que permaneceu em sua memória, para não desaparecer da memória
coletiva.
Em Velhos tempos, a personagem Severo, aos setenta anos de idade, sofre com essas
mudanças. Viu os campos serem retalhados em pedaços com aramados e, no seu modo de ver
o pampa “tinham-no deformado e morto, matando-lhe a alma imensa, que era a vertigem de
extensão desmarcada”. O velho peão parece ter conhecido, quando jovem, o mesmo pampa de
Blau Nunes, personagem/narrador dos “Contos Gauchescos” (1912), de João Simões Lopes
Neto: campos meio sem dono, pampa aberta, sem divisas, onde havia apenas o trilho do gado
que cruzava entre aguadas e querências, como o próprio Blau afirma no conto Correr Eguada:
“tudo era aberto: as estâncias pegavam umas nas outras sem cerca nem tapumes; as divisas de
cada uma estavam escritas nos papéis das sesmarias; e lá um que outro estancieiro é que metia
marcos de pedra nas linhas, e isso mesmo assim, pouco” (LOPES NETO, 1998, p. 59).
Mas o tempo passou e as mudanças vieram. No conto Velhos tempos, Severo observa a
gadaria de raças longínquas pastando naqueles campos, pelos horizontes verdejavam lavouras
de pastos exóticos, enormes renques de eucaliptos que cresciam “com pujança avassaladora,
cobrindo a campina de florestas preciosas, onde mais tarde o machado cantaria de sol a sol”.
Os tratores, no lugar do arado de bois, coxilha acima, coxilha abaixo, arrastavam baterias de
arados, “como monstros possantes e submissos ao homem curvado sobre eles”. Locomóveis
captavam água do arroio para os arrozais e, a água límpida, sugada pelos tubos negros e
premida violentamente para as calhas, espirrava pelas fissuras, querendo liberta-se, e parecia
chorar”. Como o velho Severo, que via o antigo casarão da estância, berço de gerações, ser
demolido e sobre os seus alicerces erguer-se a Granja Nova e em torno dela, florescerem
jardins, pomares cuidados, com frutos desconhecidos. Tudo isso representava uma nova
cultura, a industrialização do campo, novos tempos, os quais ele não suportou. As pessoas
mudaram e com elas a paisagem. O velho guasca não aceitou aquela invasão de novidades
que desfigurava os campos, sentindo-se um “estrangeiro em seus pagos transformados”,
resolveu partir. Nem ele, nem a paisagem, ambos não se pertenciam, não se reconheciam
mais.
Darcy Azambuja tem a visão larga e precisa de um poder de sugestão admirável em
seus contos. Eduardo Guimaraens percebeu, ainda em 1925, logo após a leitura de No galpão,
que o poeta pintava á espátula as paisagens, cenas e episódios que trazia à tona em desenhos e
manchas de óleo, quando as cores exigem delicadeza de toque, em límpidas aquarelas; e as
suas figuras surgem, do quadro, vivas porque sentidas, algumas inesquecíveis pelo seu
pronunciado caráter de criação definitivas” (GUIMARAENS, 1925).
A força do peso da natureza sobre os seres humanos, fora da cidade e dos abrigos
arquitetados pelo homem, faz-se presente nos contos. As personagens, os campeiros,
carreteiros, vaqueanos, contrabandistas, como que se encontram imersos no mundo natural. A
linguagem de Azambuja se impregna, pois, dessa presença, falando dos tipos de árvores,
pássaros, rios, campos, cavalos, bois. A integração de bichos e plantas à fala, ou ao
pensamento, pelo ponto de vista que confere aos narradores, serve para avançar mais um traço
da caracterização do autor: a de bom observador da exterioridade, a de alguém que ama as
belezas da terra.
Numa passagem do conto Emboscada, o narrador afirma que muita gente julga que
os bichos não pensam. Pois sim! É que eles pensam, mas não julgam, e, por isso, não se
enganam tanto, a si e aos outros, como os homens”. A cachorra Baleia da obra Vidas secas,
de Graciliano Ramos, pensava e agia de forma mais sensata que aqueles pobres humanos,
desprovidos de linguagem e até de nomes. Alude-se aqui, o dia da festa de natal em que a
família, juntamente com o animalzinho, vai até a cidade. Em meio à multidão e ao barulho
infernal, Baleia pensa: “Achava que perdiam tempo num lugar esquisito, cheio de odores
desconhecidos. Quis latir, expressar oposição a tudo aquilo, mas percebeu que não
convenceria ninguém e encolheu-se, baixou a cauda, resignou-se ao capricho de seus donos”
(RAMOS, 1998, p. 83).
Já o guaipeca, do conto azambujiano, saiu com o seu dono, que ia a cavalo, num passo
ligeiro, sem se importar com a canseira do cachorrinho que lidara com o gado o dia todo. O
animalzinho seguia pensando, conforme é narrado, que ele bem sabia aonde o patrão ia... “É
naquela casa que tem um cocho de pedra num canto, onde se bebe água. Tem um cachorro
preto, grande; mas bem manso. Até um dia deixara-o roer um osso que estava debaixo da
carreta” [...] (Emboscada). Ao final do conto, que narra uma emboscada, o animal
protagonista salva o seu dono, prevendo, seguindo seu faro, teimando às ordens de “Cala a
boca!”, atacando e ferindo o inimigo.
Em pelo menos outros dois contos, Dia de Chuva e Passo brabo, é o cavalo que, não
possui características do comportamento humano, como se sobressai a ele em algumas
atitudes. “E por falar em cavalos” diz o narrador do primeiro “vou le dizer: os bichos são
sempre melhores que os homens”; e segue contando a história da traição da china Candoca,
“sorte demais pr’a um gaúcho pobre!”, com o amigo de Salustiano, o Monoelito, “um
castelhano mui parlante e milongueiro”. O amante tenta fugir com a mulher e o cavalo do
marido. No entanto, o animal não se deixa pegar, denunciando os delatores a patadas contra as
tábuas. Depois de presenciar o assassinato de seu patrão,
o zaino aplicou as patas na porta da ramada, que saltou em pedaços, e se veio,
aos relinchos, e esteve em cima do Castelhano. Quase separou um braço d’uma
dentada e, na vereda que veio, com uma pechada de encontros, derrubou o matador,
e pisou em cima, a coices, a manotaços, como se vingando.
No Passo brabo foi o cavalo tostado que, montado pelo negro Ranulfo, teve que
atravessar “o passo [...] que era que nem Uruguai na volta grande”. O narrador, Tio Laureano,
contava para os peões do galpão que depois de uma semana de chuva o “arroio estava campo
fora” e o peão recebeu a ordem de buscar um médico na vila. de volta, tiveram que
atravessar novamente o rio. Depois de muitos contras do jovem doutor, o peão teve de
amarrar as mãos dele para obrigá-lo a passar. Estavam no meio daquela “água bufando e cor
de sangue”, quando o cavalo do médico sofreu um pancada de um galho que descia pela
correnteza, pateou e a força da água o levou. Antes, porém, Ranulfo pegou o homem pela
cintura, colocando-o em cima do tostado, e foi conversando com o cavalo. Este parecia não
ter mais forças, e, então, o Negro “falava-lhe ao ouvido e ele estendia o pescoço, alinhava e
vinha [...]”. Laureano, que presenciava tudo, emocionado afirmou: Les digo! Naquela hora
eu senti honra em ter nascido na mesma terra que aquele cavalo! Bicho de alma grande”
(Passo brabo). O narrador reconhecia-se, orgulhosamente, pertencente à mesma paisagem que
o tostado e isso, para ele, era uma glória.
A dedicação e o amor de Ranulfo ao cavalo é destaque em Passo brabo. Uma alusão
ao oitavo dos Artigos de do gaúcho, em Contos Gauchescos, em que Blau Nunes afirma:
“Fala ao teu cavalo como se fosse a gente” (LOPES NETO, 1998, p. 133).
Nesses dois contos fica explícito que esses animais, o guaipeca e o cavalo,
simbolizavam o principal tipo humano representado nos contos: o gaúcho. Percebemos
também o grau de importância que Azambuja confere a paisagem, atribuindo aos seus
elementos uma força influente sobre o homem. Pampeanos e animais conviviam no mesmo
território e simbolizavam uma mesma identidade.
A regionalidade, ou seja, tudo aquilo que traz a marca do regional (POZENATO,
1974, p. 19), possui uma presença marcante nos contos de Azambuja. Alguns aspectos da
linguagem e os elementos que compõem a paisagem dos contos identificam-se e relacionam-
se com a região da Campanha. Mesmo quando um dos narradores deseja falar sobre algo de
caráter universal, como a chegada da noite, ou o raiar de um novo dia, utiliza termos,
introduzindo elementos regionais:
Sobre o campo, então, caiu o silencio também, e a noite foi caminhando, fria, cheia
da luz serena da lua e do brilho das estrelas. O vento parou. A geada enfarinhava o
capim e os moirões dos aramados. Na linha escura da sanga o açude espraiava a
água quieta, que a lua fizera de prata, e, num fio de prata, corria sobre a taipa em
longo murmúrio (Fogão gaúcho).
A geada, os moirões de aramados, a sanga prateada e o fio de prata que corria sobre a taipa
não compõem uma paisagem universal da noite. Essa noite pode ser observada apenas num
determinado lugar, onde se relacionam tais elementos. Também o clarear de um dia no
pampa, imerso na névoa, onde as sombras dos capões formam manchas escuras pelo campo,
representam uma paisagem peculiar da Campanha:
Tênues começaram a dealbar no oriente as primeiras claridades do dia. Uma aura
leve foi dispersando a névoa adormecida nas baixadas. Em pouco surgiu o sol,
longe na imensidão do horizonte, dourando a silhueta dos capões de mato que
demoravam no campo como manchas escuras (Contrabando).
Segundo Benveniste (1974), pensa-se um universo que a linguagem previamente
modelou. Dessa forma, é possível afirmar que a linguagem utilizada pelo autor representa o
mundo cultural ao qual, de alguma forma, pertenceu e deseja apresentá-lo. O antropólogo
Alessandro Duranti (2002) reforça essa idéia de linguagem como um conjunto de práticas
culturais, já que para ele o uso da língua é mediado pela cultura. Esse autor observa ainda que
os modos de pensar e manifestar-se culturalmente serão limitados pelo modo de pensar da
comunidade, o que é conseqüência das limitações de sua língua.
Os sinais da paisagem, representados por uma linguagem peculiar, não são superficiais
e apenas exteriores: ligam a memória individual do autor à cultura de uma sociedade, através
das imagens relacionadas a um tempo e a um conjunto de experiências acumuladas e
carregadas de significados construídos num grupo de indivíduos ímpar, o qual não
pertencem a uma região, como a constroem em seu imaginário. Seria fácil identificar o local
descrito no trecho abaixo, como um abrigo, uma casa rústica, com apetrechos de uso
agropecuário, normalmente encontrados no interior e não na cidade:
Encolhido sobre um pelego, um cachorro preto modorrava e, sonhando, mexia com
as pernas. Pelas paredes, dependurados, viam-se laços, rédeas e tiras de couro,
metidos entre a parede e o teto, ferros de marca com cabo de osso, facão, cabos de
relhos. No chão, encostados a parede, couros de rês, arados e outros objetos de uso
campeiro. A um canto um tronco de caneleira, já falquejado e furado, estava pronto
para substituir a tronqueira rachada da mangueira pequena (Passo brabo).
No entanto, as rédeas de couro, as marcas com cabo de osso, o tronco da árvore
caneleira, funcionam, aqui, como símbolos, característicos, de uma determinada região, onde
são encontrados. Então, não se trata de um rancho do Texas, ou de um seleiro, ou de um paiol,
mas de um galpão de uso campeiro, onde peões e animais dividem o espaço entre as
ferramentas que os auxiliam no trabalho.
Dessa forma, No galpão faz parte daquele conjunto de obras literárias que funcionam
como manifestação da totalidade dos saberes de um povo, de uma comunidade ou um grupo.
Segundo Paviani (2004), elas representam uma
[...] fonte inesgotável de pesquisa sobre idéias, crenças, hábitos, comportamentos,
valores, tipos de organização e de instituição, sonhos e desejos, sucessos e fracassos
de uma cultura delimitada pela região e, assim vista como síntese orgânica do
conjunto de ‘lugares’, de ‘tópicos’, de aproximações e distanciamentos
interculturais. (PAVIANI, 2004, p.81)
À cultura pertence a identidade, e ambas são marcadas por meio de símbolos. Uma
identidade se forma a partir das diferenças estabelecidas com o outro. No conto Velhos
tempos, fica bem estabelecida a diferença cultural, com a chegada do outro que vinha para se
estabelecer nas terras tão bem conhecidas pelo antigo peão Severo. O gringo, segundo a visão
do nativo, desfigurou a paisagem que explorava, com elementos de outras paisagens: animais
e plantas de outro habitat, inseridos no pampa; materiais estranhos àquelas plagas chamavam
a atenção de Severo: via-lhe de longe as telhas francesas, as cúpulas, as torrezinhas
pontiagudas, tudo tão leve, tão diferente da antiga” (Velhos tempos).
Essas diferenças podem variar em determinadas épocas e espaços (WOODWARD,
2000). Em outras palavras, pode-se dizer que um homem é aquilo que o outro não é, e para
afirmar a sua posição ele utiliza símbolos, representações e imagens. A representação:
Inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos por meio dos quais os
significados são produzidos, posicionando-nos como sujeito. É por meio dos
significados produzidos pelas representações que damos sentido à nossa
experiência e àquilo que somos. [...] Os discursos e os sistemas de representação
constroem os lugares a partir dos quais os indivíduos podem se posicionar e a partir
dos quais podem falar. (WOODWARD, 2000, p. 17).
Darcy Azambuja produz e reproduz sentidos aos elementos, introduzidos por meio
da representação paisagística de seus textos. Essa é a principal dimensão da paisagem
enfocada pelo autor. Em seus contos a paisagem é prenhe de simbologia, ela expressa os
valores, as crenças, os costumes do homem da Campanha. Sua obra expressa, comunica,
define uma cultura e, como tal, pode ser considerada uma prática social de significação
(HALL, 1997, p. 16).
3.2 Situações da paisagem na ficção
José Clemente Pozenato escreveu, em 1968, um trabalho sobre a narrativa literária
que foi largamente usado pelos alunos do curso de Letras. Quase dez anos depois, o autor
resolve publicá-lo, através da revista Chronos, o que proporciona, para esta dissertação, uma
revisão de suas idéias a respeito da dimensão do espaço na literatura, em especial em No
galpão.
Pozenato (1977, p. 21) afirma que são três as maneiras de se estruturar o espaço
narrativo: ou como elemento de sustentação narrativa, ajudando na sua incorporação, que aqui
será designada como paisagem de contemplação; ou como cenário, pano de fundo, muitas
vezes com função ornamental, mas que no caso azambujiano sempre aponta indícios culturais,
a paisagem como cenário; e, ainda o espaço narrativo visto como elemento de reforço
dramático, podendo chegar ao ponto de aparecer quase como uma personagem, a paisagem
como imagem.
3.2.1 Paisagem de contemplação
Na tese de Ligia C. Moraes Leite, que se transformou no livro Regionalismo e
Modernismo: o “Caso” gaúcho, ela trabalha com autores sul-rio-grandenses, entre eles
Alcides Maya, Simões Lopes Neto e o autor de No galpão, Darcy Azambuja. No capítulo três,
intitulado A “mancha” matriz, Leite focaliza a paisagem presente nas obras selecionadas. Ela
afirma que tais representações são paradas descritivas, entremeadas à narração, que
suspendem a ação, “visando o efeito estético, o ‘embelezamento’ da primeira, carregada de
tropos que se acumulam [...]” (LEITE, 1978, p. 41). Para ela, “o mais grave é, em plena
década do Modernismo, os autores regionalistas insistirem nessas ‘paradas descritivas’ que
pouca (ou nenhuma) relação estabelecem com o narrado” (Ibidem, p. 42), causando um
afrouxamento constante da narração, através dessasmanchas” que se alongam e reduzem os
lances da ação a funções mínimas. Leite vai além em seus estudos e prevê que o que ela
afirma poderia ser contestado, e então volta a rebater:
Essa afirmação poderia ser refutada com o argumento de que os trechos descritivos
podem fazer parte da narrativa, retomando-a num nível metafórico e realizando, na
prosa, a projeção dos dois eixos (da similaridade sobre a contigüidade), de que nos
fala Jakobson. Acontece que o tipo de descrição, aqui observada, tende a se tornar
autônoma e os textos pendem para a “mancha” que destrói o conto. As descrições
são, na realidade, verdadeiras paradas; não se entrosam no fluir narrativo, não
constituem figuração deste, mas rupturas, hiatos, intervalos.
Para exemplificar o que acaba de afirmar, a autora utiliza um trecho do conto
Querência de No galpão, quando Sérgio retorna aos pagos, de trem. Para ela, a passagem
transcrita a seguir é “pretexto para uma descrição da paisagem, verdadeira imagem
paradisíaca” (LEITE, 1978, p. 42):
Cheia de sol morno e claro, de um lado e outro do comboio fugia a paisagem. Sobre
os fios do telégrafo as primeiras andorinhas penujavam-se ou regiravam em vôos
rápidos, aos pares. A rebentação da primavera vestia de verde grandes várzeas e
pelas encostas frescas estendiam-se tapetes de florinhas pálidas. De quando em
quando surgiam açudes, com as margens adoceladas de algas e capim macio; e
lagoas tranqüilas, cercadas pelo vôo sereno das garças e socós, numa solidão feliz
em meio a extensões ermas. Longe, em cimos de coxilhas, frondes de umbus
apareciam, branquejavam paredes, e mangueiras retângulos de lavouras
estâncias povoando os plainos de trabalho e abundância (Querência).
Leite essas paradas descritivas” como uma tensão que se instaura entre o narrar e o
descrever. Dessa forma, uma ruptura que ocorre no texto entre a intenção artística e a
referencial, conseqüência da ambigüidade arte-documento.
Para ver a dimensão que a paisagem alcança dentro de um texto literário deve-se
resistir à tentação de deslocá-la de seu contexto de tempo e espaço, e cultivar a capacidade
imaginativa de incorporá-la ao meio cultural, nesse caso, do conto.
Em relação a Darcy Azambuja, tentar-se-á rever tal posicionamento sobre a paisagem
de No galpão. O enredo e a ação da narrativa azambujiana são relegados a um segundo plano,
favorecendo aspectos da paisagem, costumes, crenças e outros elementos culturais. Um conto
não tem que, necessariamente, centrar seu foco nas ações que ocorrem na história que deseja
contar. Ele pode contar muita coisa apenas através da linguagem que utiliza e fatos ou coisas
que transparecem por meio dela. O seu fim não contém o auge, pois este se encontra na
linguagem, na paisagem, nos elementos culturais de época e espaço. Ao contrário do que
supôs a crítica, Azambuja não ambicionava criar contos dramáticos, mas sim épicos.
Quando Sérgio, do trecho acima citado, observa a paisagem de dentro do trem, ele está
voltando para sua casa, sua querência. O olhar que lança sobre o pampa está carregado de
saudades e apreensão. Semelhante sentimento impregna Riobaldo, em Grande sertão:
veredas, ao rever suas terras: “Saudades, dessas que respondem ao vento; saudades dos
Gerais. O senhor vê: o remôo do vendo nas palmas dos buritis todos, quando é ameaço de
tempestade. Alguém esquece isso? O vento é verde. Aí, no intervalo, o senhor pega o silêncio
põe no colo. Eu sou donde nasci” (ROSA, 1986, p. 153).
dezoito meses Sérgio não avistava o seu pampa, sinônimo dos Gerais para
Riobaldo, e existia uma grande possibilidade de que passasse muito mais sem vê-lo, porque se
encontrava decidido a aceitar o convite de seu comandante para estudar e trabalhar no
exército. Voltava para despedir-se da família e do seu chão. É um olhar apaixonado, saudoso
de tudo que fez parte de sua infância e juventude, ali Sérgio sentia-se em casa, era a região
que lhe pertencia e era pertencente. Por isso parecia uma imagem paradisíaca, mas não
significa uma “parada descritiva”, pois em nenhum momento o que é dito na representação
paisagística desvincula-se do que vem sendo narrado. Ao contrário, prepara o leitor para viver
o impasse da decisão que o jovem soldado terá de tomar: enfrentar o desconhecido ou,
simplesmente, ficar e gozar de tudo aquilo que sempre amou: sua terra, sua família.
Além disso, não que pensar tal trecho como um entrave à história a ser contada. É
possível, por meio dos elementos descritos, observar as práticas culturais vivenciadas por
aquele povo, naquela época. Os fios do telégrafo simbolizam um dos poucos meios de
comunicação naquele tempo; andorinhas, várzeas, açudes, garças, socós, umbus, coxilhas,
compõem uma paisagem não tão comum ao restante do país; retângulos de lavouras”
remetem a um tipo de cultivo da terra voltado ao consumo próprio, caseiro, não em grande
escala e provavelmente fazendo uso do arado de bois. Tais passagens dos contos vão
compondo, na cabeça do leitor, não exatamente um cenário, aonde irá se desenvolver uma
ação, mas as mesmas vão formando uma idéia mais orgânica do lugar e seu funcionamento.
As coisas vão se relacionando, as cores, os sons, os cheiros, tudo parece que se infiltra através
de outros sentidos e não somente a visão sobre o texto que se lê. Azambuja, através da
paisagem, prepara quem a contempla em seu texto, para pensar e colocar-se no lugar de suas
personagens.
A contemplação da paisagem induz o leitor a conhecer não fundamentalmente o
espaço das personagens, mas o que elas pensam e sentem sobre o lugar de onde elas vieram;
como se relacionam com esse meio e o que significa para elas. No fragmento que segue, o
narrador apresenta uma paisagem de contemplação do entardecer, o que seria um cenário para
o descanso dos carreteiros, e depois, volta a contemplar, agora a noite que se misturava às
trevas das baixadas.
De tarde, quando o sol vai enrolar-se, longe, nas dobras verde-escuras das
coxilhas, as carretas, uma após outra, vão chegando ao pouso. Os carreteiros soltam
a boiada, põem o cavalo à soga, arrumam as guascas. [...] Em redor, a boiada vai
deitando, esfalfada e tranqüila. Do oriente a noite a pouco e pouco avança,
juntando-se aos pedaços de treva que a esperam pelas baixadas, e enche a infinita
extensão dos campos. [...] Acende no céu o brilho distante das estrelas
(Carreteiros).
A paisagem, de alguma forma, representa para os carreteiros a hora e o local para o descanso;
o “teto”, onde irão dormir; e o brilho das estrelas parece trazer o consolo para um dia
cansativo de poeira e sol.
A contemplação da paisagem também aparece associada ao amor entre homens e
mulheres. No conto Contrabando, o Chiru, “novilho de aspa fina”, andava à frente, a cavalo,
em marcha, protegendo os companheiros do negócio de contrabando de algum susto, ia
pensando na amada, com quem sem demora pensava em desposar. Seus pensamentos
pareciam iluminar a escuridão da paisagem e a moça era comparada a um pássaro. Os olhos
dessa mulher assemelhavam-se ao infinito e a suavidade das coxilhas. A contemplação dos
elementos da natureza estava em seus pensamentos, nos quais a paisagem permanece como
referência a coisas boas ou más, belas ou feias, alegres ou tristes:
A sua imaginação abria uma clareira na noite e, num retângulo de sol, via-a, todo o
rosto trigueiro da chinoquinha inundado da luz dos olhos. Mais que os lábios
úmidos, mais que o pentinho redondo de rola, mais que tudo nela, prendiam-no
aqueles misteriosos olhos de mulher, onde havia o infinito e a suavidade das
coxilhas, ora banhadas de sol, cantando de vida, ora imersos na saudade e no langor
das noites enluaradas (Contrabando)
A paisagem, carregada de sentido e investida de afetividade por aqueles que vivem
nela, representa a forma de conhecimento das coisas do mundo. Para expressar seus
pensamentos, suas alegrias e suas dores ele faz uso daquilo que conhece, de uma forma
comparativa, sempre buscando as coisas de seu meio, as quais ele sabe o que significam
profundamente. A afetividade relacionada a esses elementos paisagísticos também influencia
nessas escolhas vocabulares. A pretendida de Chiru tinha o “peitinho de uma rola” e nos olhos
o “infinito e a suavidade das coxilhas”; Sérgio, do conto Querência, aspirava o perfume das
flores que Clara exalava. Mas uma das comparações que mais impressiona é a que o narrador
do Dia de chuva faz para falar da Candoca:
Os olhos da Candoca, patrãozinho... Às vezes a gente estava mui bem conversando
em qualquer coisa, e de repente ela erguia o rosto e olhava a gente nos olhos, e a
palavra ia mermando, tudo em roda ficava como escuro, e só se viam os olhos dela,
longe, chamando... E, sem saber-se como, saia-se dali pensando num lugar
estranho, com um varzedo e coxilhas encordoadas, tudo verde, o céu lindo e pontas
de gado pastando, uma casa... tudo aquilo da gente... e uns olhos sempre chamando,
longe... (Dia de chuva).
Para dizer que os olhos da moça enfeitiçavam aos homens, que estes deliravam e
sonhavam acordados, o narrador fala das coisas mais valiosas para eles: campos verdes, “céu
limpo”, “pontas de gado pastando”, “uma casa”, tudo isso, na imaginação, era deles, e isso era
o paraíso, sinônimo de felicidade, que se conseguia expressar a partir daquilo que eles
conheciam como forma de luxo e prazer. Em estado de alucinação, a paisagem vinha-lhes à
mente para exemplificar o grau de satisfação que sentiriam se seguissem o chamado do olhar
da Candoca.
poesia na prosa de Azambuja. A paisagem é poetizada, o autor não pretende
retratar o ambiente, ele busca a essência daquilo que quer mostrar ao leitor, e isso significa
muito mais que a aparência, o que justifica as metáforas e as composições “aquarelísticas” do
autor. Mais de um crítico comparou-o a um pintor de paisagens literárias, e o próprio autor
parece reconhecer-se com tal, quando sugere idéias dessa arte em fragmentos como:manhãs
de bruma gelada, longos meios dias cinzentos, tardes ensombrecidas e curtas que imensos
quadros tristes vai o inverno fazendo pincel do vento na tela errante dos nevoeiros”
(Carreteiros). Na verdade, é Azambuja que faz de sua caneta o pincel, nos contos formados
por diversos painéis que traduzem as alegrias, as mágoas, as guerras, os amores, o destino de
uma das identidades regionais que já fez (ou faz) parte do arquipélago cultural brasileiro.
A poesia está presente na “chama dos fogões que lambe a treva em redor”
(Carreteiros); nos “enormes coxilhões redondos, colados, íngremes, como se agüentando uns
aos outros para não se precipitarem em desabalo” (Velhos tempos); ou no “rumor abafado da
cachoeira, quadras a baixo, afogada pelas águas grossas da cheia” (Contrabando); ou no
campo encharcado e frio, onde “as nuvens baixas da garoa vão amortalhando coxilhas, capões
de raro abrigo, serranias de outros pagos” (Carreteiros); a poesia se espalha também, através
da noite grande, e pelo campo todo branco de geada e de luar, onde “iam as saudades
pungentes, a procurar, errantes, outras saudades perdidas e chorar sobre túmulos sem cruzes”
(Velhos tempos).
A contemplação da paisagem também está carregada de indícios e elementos
históricos, entre eles os que simbolizam a própria formação do Rio Grande do Sul: o boi e o
cavalo. Este último se desenvolvia livremente nas planuras do sul, “desde a expedição de
Mendonza em 1535” (MEYER, 1957, p. 9). Juntos, o cavalo e o boi, introduzido nas regiões
platinas mais tarde, participaram ativamente das lutas fronteiriças do continente, desde as
Guerras Guaraníticas até as do início do século XX, momento em que Darcy Azambuja
escreve sua primeira obra literária, na qual não deixa de falar nesses animais, entre outros, que
tanto influenciaram na cultura do estado:
Pelas lombadas aclaradas de sol e à orla dos capões, pastavam pontas de gado, sob
a vigilância dos touros pampas. Cavalos, ao aproximar-se o trem, retouçavam
céleres e disparavam, aos pinotes, de cauda erguida; outros olhavam-no com a
indiferença de velhos conhecidos. Grandes rebanhos de ovelhas manchavam de
pintas brancas as várzeas e encostas, como novelos de secando ao sol. Às vezes,
nos altos, avestruzes repontavam com os filhotes saltando em redor, e desabalavam
em grandes pulos campo fora (Querência).
Nesse sentido, a territorialidade do lugar revela-se pela identidade que se constitui por
meio das práticas diárias e dos elementos paisagísticos do território, ao qual pertence um
grupo, que define e controla o espaço, através das representações simbólicas sobre este e as
relações estabelecidas interna ou externamente.
3.2.2 Paisagem como cenário
Logo no início do século XX, o surgimento do cinema moderno altera as maneiras de
olhar e de perceber o mundo, imprimindo marcas profundas na literatura. De acordo com
Tânia Pellegrini (2003, p. 30), a câmara cinematográfica desempenhou um papel importante e
decisivo, retirando o homem do centro focal, esse centro não existia mais. Na perspectiva da
autora “as profundas transformações efetivadas nos modos de produção e reprodução cultural,
desde a invenção da fotografia e do cinema que alteraram, antes de tudo, as maneiras pelas
quais se olha e se percebe o mundo –, estão impressas no texto literário” (Ibidem, p. 16).
Percebe-se uma conexão sugerida entre as representações paisagísticas azambujianas e
os elementos das linguagens visuais. O autor apresenta uma multiplicidade de soluções
narrativas que provavelmente se devem aos “novos modos de ver o mundo e de receptá-lo,
instaurados a partir da invenção da câmera primeiro a fotográfica e depois, com mais força,
a cinematográfica” (PELLEGRINI, 2003, p. 16).
Tânia Pellegrini (2003) diz ainda que a diferença entre a literatura e o cinema é que na
primeira as seqüências se fazem com palavras e, no segundo, com imagens. Azambuja parece
subverter um pouco o papel da literatura, articulando com imagens, que forma através das
representações paisagísticas, aquilo que deseja falar. Assim, é possível afirmar que a
representação por meio de imagens influenciou a narrativa azambujiana.
No cinema misturam-se o visível e o invisível. O tempo, que é invisível, é preenchido
com o espaço ocupado por uma seqüência de imagens visíveis. O movimento é representado
através de imagens dinâmicas, não apenas capturando instantes pontuais como era com a
fotografia. A câmera cinematográfica torna-se um olho mecânico livre das imobilidades do
ponto de vista humano, “para o qual não mais convergem todos os pontos de fuga, como
quando se via uma pintura ou uma fotografia” (PELEGRINI, 2003, p. 18-19).
A representação paisagística azambujiana recebeu essa forte influência da estética do
cinema moderno. Ao falar dos lugares onde se desenvolvem as ações, o autor sugere um
cenário das ações de um filme. A representação visual que chega até o leitor remete a matriz
da representação visual do cinema. O olhar do leitor perpassa as câmeras escolhidas e
projetadas pelo narrador de cada conto, e visualiza o filme da paisagem, com a mobilidade de
um olho mecânico:
Recém anoitecera. Pelas coxilhas corria o vento frio de agosto. O fogo branco das
estrelas pontilhava o céu todo negro, e o cruzeiro, luzindo muito, subia na sua
viagem sem fim. Longe, acima dos cerros escuros, a lua tinha aparecido. Na ponta
da sanga, o açude espraiava a água fria, onde cintilavam, aqui e ali, brilhos furtivos,
como de estrelas que tivessem caído.
Todos os animais dormiam, enrodilhados, pelas tocas e ninhos, num torpor pesado;
nem boi nem cavalo caminhavam, e sobre o campo, onde a geada começava a
vidrar o capim, um grande silêncio parecia ter gelado todos os rumores. Os moirões
dos aramados perfilavam-se campo fora, batidos pelo luar, e eram como gente
parada, quieta, escutando o silencio grande da solidão (Fogão gaúcho).
Este é o cenário de abertura do livro No galpão, paisagem do local onde se passará o
primeiro conto, Fogão gaúcho. O narrador apresenta o lugar para depois introduzir a
narradora Tia Silvina, que contará os causos às crianças, na varanda da casa; e o narrador
peão, que contará os causos aos seus pares, no galpão. A “cena” se passa num descampado de
céu aberto e estrelado; lagoas de águas claras refletiam o brilho das estrelas e os animais,
acomodados, dormiam; a geada começava a se formar e o frio deixava tudo em silêncio; os
palanques de cerca, iluminados pela lua, simulavam pessoas paradas a escutar a quietude da
noite ou, quem sabe, os causos que eram contados na estância. Como uma câmera que foca de
cima o lugar, esse olhar do narrador, permite visualizar o espaço onde a ação acontecerá. Mas
a ação, nesse caso, é um pouco diferente daquelas convencionais, o narrador apresenta o
ambiente onde outros seus companheiros” irão atuar. Dessa forma, a ação aqui é o narrar
outras ações, e outras que virão nos próximos contos.
Segundo Denis Cosgrove (2004, p. 98), “a paisagem, de fato é uma ‘maneira de ver’,
uma maneira de compor e harmonizar o mundo externo em uma ‘cena’, em uma unidade
visual”. Darcy Azambuja usufrui desse conceito em relação às representações paisagísticas
dos contos. Seus cenários são paisagens no sentido da estreita relação dos seres humanos e
seu ambiente. Em Querência, aparece um “jardim, o maior cuidado de Clara ficava ao
lado da casa e era fechado por três altas cortinas de trepadeira. O chão fora bordado de
inúmeros canteiros, onde havia desde o trevo à tulipa”. Clara era um moça alegre que sonhava
em casar-se com Sérgio para constituir lar e família. O jardim, que cuidava com tanto zelo,
aponta esse desejo de beleza e harmonia junto ao seu pretendido. Paul Claval (2004, p. 57),
afirma que “não há arte que fale mais das aspirações profundas e dos sonhos de felicidade dos
povos que a arte dos jardins: a humanidade não nasceu no jardim do Éden?”.
Os cenários azambujianos vêm com os indícios das características das personagens
que neles atuarão. Quem andaria a cavalo por um cenário em que a noite pendia para a
madrugada, mas a névoa, adensada nos baixos, cerrava mais a escuridão” (Contrabando)?
Passagens onde mal se viam os vultos negros das coxilhas mais próximas, árvores e moitas se
diluíam na noite, “fundiam-se na tinta escura, surgindo, de chofre, a roçar os ombros e as
bombachas dos cavaleiros” (Contrabando). Às vezes, ao contornarem os coxilhões, as
sombras destes “elevavam-se numa grande mancha negra dentro da cerração e pareciam
crescer, barrando a estrada” (Ibidem). Contrabandistas, “guascas sem lei”, desertores, seriam
personagens dignos desse cenário nebuloso, amedrontador.
Outros, bem diferentes, seriam os protagonistas do seguinte cenário:
Num repecho brabo que a carreta sobe a custo, os bois arfando, esfusia-lhe ao lado
o automóvel célere, espantando a boiada e desaparece. [...] Ao topar os trilhos da
via férrea, a carreta pára, e cruza o trem rumoroso, estendendo o pavilhão de fumo,
em demanda de cidades longínquas (Carreteiros).
Trabalhadores, homens de ofício, carreteiros que ganhavam a vida em cima de carretas que
viajavam pela Campanha carregando encomendas, notícias, quinquilharias, miudezas, tecidos,
remédios para vender nos bolichos do povoado ou diretos às famílias dos campeiros.
Semelhantes personagens poderiam fazer parte da paisagem de uma estrada batida de
sol, aonde iam sumindo “duas carretas, vencendo o último repecho de quem vai à Boa Vista.
Mais próxima, descendo ao passo do Sarandi, rechinava outra, de cinco juntas, atestada de
carga.” (Brinquedo pesado). Todas ecoando o chiado agudo das rodas, perdendo-se pelas
ondulações sem fim das coxilhas, animavam de pitoresco o cenário tranqüilo, “sob a claridade
doce da tarde de setembro” (Ibidem).
Recentemente foi lançado o primeiro volume do Atlas das representações literárias
de regiões brasileiras, e a Campanha gaúcha encontra-se nele contemplada. O seu estudo
prevê um “recorte regional que associa o conhecimento especifico da Geografia à percepção
espacial presente em tramas de grandes obras da Literatura brasileira, sem restringir-se aos
limites convencionais político-administrativos” (ATLAS, 2006, p. 5). Seu intuito é o de
introduzir na dimensão cultural a análise do espaço geográfico, expondo e fixando uma
identidade também ressaltada pelo aporte iconográfico, ou seja, a escrita da imagem, dos
cenários regionais na literatura. A idéia de região que perpassa esse trabalho é a de um cenário
de vida, num âmbito cultural, “um local de pertencimento, que nasce de uma variada
combinação de fatores, indo do simplesmente natural ao sofisticadamente construído”
(FISCHER, 2006, p. 8).
Sobre a Campanha gaúcha, como em outras regiões do Brasil, têm-se produzido ao
longo dos anos muita literatura, boa ou ruim. O Atlas apresenta como exemplo de literatura de
qualidade, que identificaria a cultura da região da Campanha, as obras: Contos Gauchescos
(1912), de Simões Lopes Neto, O Continente (1949), de Érico Veríssimo, Um quarto de
légua em quadro (1976), de Assis Brasil, Perseguição e cerco a Juvêncio Gutierrez (1990),
de Tabajaras Ruas, A ferro e fogo I (1972), de Josué Guimarães e ainda o segundo título da
trilogia do “gaúcho a pé”, Porteira fechada (1944), de Cyro Martins.
Esse estudo da geografia cultural pressupõe que a identidade é o elemento central para
a individualização dos diferentes segmentos territoriais. Tal qual se busca afirmar nesta
dissertação, fazendo um diálogo entre paisagem, literatura, cultura e região. Pois a ação dos
elementos que constituem a identidade de uma determinada região não é invariavelmente
condicionada pela presença de limites político-administrativos, sendo necessário, portanto, a
representação de regiões, nas quais a dinâmica territorial se expressa para além desses limites
convencionais (ATLAS, 2006, p. 14).
Pelo menos a primeira obra de Darcy Azambuja serviria ao fim acima proposto.
Diferentemente de outras obras regionalistas em que o quadro natural é exaustivamente
descrito e desempenha a função de cenário ou moldura dos acontecimentos, pouco
contribuindo para a compreensão do quadro regional dentro da perspectiva aqui adotada, No
galpão não trata de forma estanque, separada, o que existe em mútua e permanente interação.
Nos seus contos o que importa é a percepção que as personagens têm do meio, as relações que
se estabelecem entre diferentes espaços presentes na trama e a dinâmica social a elas
subjacente.
No conto Querência, quando o narrador fala da ida de Sérgio, da família e da
vizinhança, ao batizado das crianças na fazenda do velho Marcos, aparece um dos exemplos
de cenários repletos de elementos culturais:
A carroça cheia com as mulheres e crianças, a cavalo Sérgio e o cunhado. Varando
o passo, deixaram a estrada e cortaram pelo campo, até a porteira, de onde avistava,
num alto, a casa da fazenda. Era uma casa alegre. Branca e verde, entre duas
grandes figueiras sempre enfolhadas, um jardim ao lado, galpões cobertos de zinco,
mangueiras novas, horta e lavouras descendo pela encosta da coxilha tudo em
ordem e capricho [...].
Diante da casa, havia carros e carroças, gente entrando e saindo; cavalos soltos no
potreiro. Debaixo das figueiras, os convidados comiam os assados da novilha
carneada ao romper do sol (Querência).
A carroça era para as mulheres, que não deviam andar a cavalo; pontes não existiam,
cruzavam-se rios onde desse passo; a porteira significava a fronteira entre o público e o
privado; figueiras transformaram-se em símbolos da paisagem pampeana; o jardim indicava a
presença de mulheres na casa, principalmente moças casadeiras; galpões cobertos de zinco,
mangueiras novas, lavouras e hortas representam poder financeiro e braços para o serviço; e a
hospitalidade campeira fica bem explícita diante de um cenário, onde os convidados, na
sombra das árvores, saboreiam um churrasco.
Quando Azambuja pensa um cenário não intenta descrever a região como uma área
definida e delimitada a partir de aspectos como a vegetação, o relevo, a hidrografia, o clima.
Ele concebe o cenário como uma liga de fatores que envolvem necessariamente o quadro
natural, mas vai além dele, considerando as heranças de tempos passados, a exploração
produtiva do lugar, as relações sociais que condicionam a ocupação, entre outras. Essa
percepção de região do autor perpassa praticamente todos os cenários das narrativas, que
dificilmente não se encontra repleto de elementos e práticas culturais que identificam um
povo.
Como no cenário de um dia de domingo, no conto Charla, “na sombra esparramada
do umbu, entre as raízes grossas como lombos de jacarés, os três peões chimarriavam,
recostados sobre as caronas”: o umbu, árvore que não nasce em capões, preferindo a solidão
dos escampados, lembrando a liberdade e o desapego do gaúcho idealizado, remete a fatos
históricos da região da Campanha, da mesma forma, o culto ao chimarrão, prática cultural
visivelmente observada até a atualidade, não se restringindo ao estado, sendo levada para o
resto do mundo por várias pessoas naturais do Rio Grande do Sul; e a carona, parte dos
apetrechos que compõem a encilha dos cavalos, para o trabalho nas lidas campeiras. Nada é
deixado de lado, nem nas horas de lazer e descanso.
3.2.3 Paisagem como imagem
Para compreender as paisagens dos contos de No galpão é preciso “completá-las” com
muito do que é invisível, para ler os subtextos que estão por baixo do texto visível. Os
significados desses textos e subtextos mudam com a mudança de perspectiva do intérprete
leitor. Para conhecer o significado de um texto paisagístico faz-se necessário preconceber o
todo do qual o texto é uma parte. Quando se transpõe as primeiras impressões e aprofunda-se
o olhar, começam a surgir relações que vão além das aparentes. A paisagem torna-se a
imagem da personagem (suas ações, seus sentimentos), e vice-versa.
Abaixo apenas alguns exemplos desse processo de relacionamento íntimo entre a
paisagem e as personagens, contudo, na realidade, todo o texto de No Galpão confunde
homem e ambiente, não deixando claro quais características pertencem a cada um, fundindo-
os, numa imagem reflexiva, num único elemento.
O conto Por pena apresenta tal relação quando compara um tiroteio a um temporal de
verão: “É bala que é um castigo. A tal metralhadora, então!... Olhe, quando a coisa ferve, é
como temporal de verão. É aquele guascaço de chuva levantando poeira; depois estia, vai
afrouxando, e quando é de repente se desata de novo em manga de pedra”. O temporal de
verão é rápido e devastador como um ataque de metralhadora. Uma chuva forte como a
imagem de uma “chuva de bala” sugere algo efêmero, mas violento, uma vez que “é gente
estrebuchando de um lado, é cavalo pateando do outro, é redemoinho dos entreveros, é um
flanco que se solta campo fora como trovoada, e vai arrebentar longe, e volta, corcoveia,
vai de novo...” (Por pena). Entre a estrutura e o conteúdo do conto também ocorre uma
relação de imagem, pois a forma como o texto é escrito e a história que conta, remetem-se a
pólos, se não contrários, extremos. O externo e o interno do fazer literário se fundem em meio
aos acontecimentos e seu veículo de expressão. O narrador termina o conto com o relato do
fratricídio, de forma abrupta e devastadora, deixando o leitor perplexo como se estivesse
diante das destruições provocadas por um forte temporal de verão. Nessa narrativa, “no
conjunto, como no pormenor de cada parte, os mesmos princípios estruturais enformam a
matéria” (CANDIDO, 1997, p. 4). As imagens do temporal se refletem na guerrilha, as
imagens da estrutura do conto se refletem no conteúdo do mesmo. É um labirinto
interpretativo onde o leitor atento se perde entre o externo e o interno, a paisagem e o
combate, percebendo-os fundidos de tal forma que não saída mais prazerosa senão aquela
em que se admite o social, o histórico, os personagens e o ambiente entrelaçados às palavras
literárias, falando por e através delas, semelhante à dinâmica de um caleidoscópio literário.
A paisagem como imagem da tristeza humana manifesta-se de forma significante e
profunda no conto Lagoa morta. O título sugere uma amarga contradição, sendo a água,
elemento essencial à vida, associada a um adjetivo que denota o fim dela. No entanto, a
paisagem da lagoa morta e seus arredores não contradizem, em nenhum momento, a angústia
do viver daquelas pessoas. Seja no inverno, quando “uma densa névoa caia a tardinha, e a
solidão e tristeza pareciam crescer ainda mais, submergindo e apagando tudo”, e então sentia-
se “como se aquele trecho amargurado de terra se separasse do resto do mundo, onde havia
sol e vida, sepultado no frio e no silêncio da bruma”; ou no verão, quando o o sol torrava a
campina, vestia de luz intensa as coxilhas, ressecadas que, ao longe, entre o ar quente que
subia do solo, ficavam flutuando num mar de vibrações” (Lagoa morta). Nem os animais,
presentes nas representações paisagísticas, escaparam do clima de consternação e pesar, pois
as reses e cavalos magros, claudicando, com os olhos cheios de uma grande mágoa
resignada, erravam em busca de pasto e água”. No Entanto, nenhum “ia refartar-se na grama e
na água da lagoa. De longe parados, mugiam tristemente, e seguiam, como se uma força
oculta os afastasse dela” (Ibidem).
O clima, os animais e a natureza ao redor eram a própria imagem da desolação dos
“últimos destroços da família que vivia na casa da lagoa, arrastando os dias desolados, longe
do mundo que os repelia, sombrios e torturados como o sítio de que haviam feito morada”
(Lagoa morta). João Nunes ganhara essas terras em troca de serviços prestados na revolução
de 1893. Os reflexos do trágico destino da família começam a manifestar-se a partir daí: sua
moradia foi uma “recompensa” pelas mortes que causou na guerra. Logo depois de instalados,
João Nunes “foi assassinado pelo próprio filho por questões de jogo”; este foi envenenado
pela irmã que desapareceu (talvez tenha afundado na lagoa); sobrando a mulher de João
Nunes e a nora com um filho. Um tempo depois a criança vaza os olhos da mãe com uma
tesoura e, ao final do conto, encantada pela possibilidade de pegar alguns “pintassilgos de
peito amarelo e papafigos, indiferentes às pelotadas inábeis do caçador”, adentra a “Lagoa
Morta, nome que a sua água quieta e pútrida justificava”, e quando sentiu um dos pés afundar-
se no lodo, tentou retirá-lo, mas estava preso e aos poucos ia descendo. O terror apoderou-se
do guri e o “lodo cedia sempre, fugindo, numa descida satânica” (Lagoa morta). A velha, sua
avó, ouviu os gritos do menino, compreendendo o que acontecia, tentou salvá-lo, e ele:
[...] gritava desesperadamente, debatia-se, agarrava-se com as mãos crispadas os
caules dos água-pés, que partiam, negando-lhe o derradeiro apoio. Negra e rápida,
a água ia-lhe subindo pelo corpo; a tingiu o peito, encheu-lhe a boca, abafando em
gorgolejos angustiosos o último e desvairado apelo. Enfim cobriu toda a vítima e
borbulhas grandes brotaram, reluzindo no lençol negro (Lagoa morta).
O ar pesado, onde tudo era ermo e silencioso, a ausência de beleza na paisagem era a
imagem do destino cruel daquelas pessoas. Nada superaria a prostração daquela gente, assim
como “não havia verão, porém, que secasse a lagoa” (Ibidem). Ela permanecia como um oásis
em meio à campina seca, mas ninguém podia beber de sua água sem pagar com a vida.
Passavam sede bem perto da fonte proibida. A lagoa era morta, e tudo ao redor expirava,
padecia, sofria. Na “alta noite, vozes lamentosas acordavam o silencio do descampado,
enchendo-o de rumores sinistros e de gemidos, e um cachorro, que nunca fora visto, ululava
em desvairo ao céu sem lua” (Lagoa morta). A paisagem contaminava as pessoas ou as
pessoas contaminavam a paisagem de tristeza e pesar.
No inverno submergia e apagava tudo, no verão o sol torrava a campina; a lagoa não
matava a sede de ninguém e era uma ameaça aos homens e animais. A casa não tinha quintal
nem horta, “era de pobreza e melancolia a impressão que dava o casebre, isolado naquela
extensão erma da campanha” (Ibidem). Ficava entre uma figueira brava, árvore que tem
espinhos desde a raiz até as folhas, produz um fruto viçoso, porém não comestível, e um
cinamomo, segundo a crença popular, de folhas e frutos tóxicos, que ao ingeri-los a pessoa
fica avariada, louca, e a superstição também relacionou essa árvore com um efeito especial
sobre os raios, afirmando-se ora que os atrai, ora que os repele
20
. Cada elemento da paisagem
encontra-se impregnado de amargura e dor, assim com cada personagem da narrativa.
João Nunes trazia consigo a lembrança da violência de uma guerra, que, segundo
Darcy Azambuja
21
“é o mais espantoso e inexorável pecado do homem, porque é o produto ou
a ocasião ótima de todos os outros pecados” (2005, p. 78). O filho tornou-se um parricida, a
irmã o matou. O neto de João Nunes cegou a própria mãe e sucumbiu na lagoa, como numa
areia movediça. Ao final do conto restam a cega e a viúva (que perdera não o marido, mas
também o filho, a filha e o neto). A representação paisagística reflete seus personagens, no
entanto, enquanto a cega não a paisagem, um elemento desta observa, no último parágrafo
do conto, aquilo que o olhar humano não alcança: “na outra margem, o João-Grande solitário,
com uma perna encolhida, olhava com os olhos piscos que sabe o que, no fundo ignoto e
negro da lagoa” (Lagoa morta). Talvez a complexidade do homem, com suas guerras,
vingança, ódio, destruição. E tudo isso não passou despercebido pela paisagem que chegou a
ser “quase alegre, quase feliz” (Lagoa morta), mas na maioria das vezes morta, como a alma
daquela gente.
Teceram-se lendas sobre aquelas paisagens, “tida como amaldiçoada pelo céu” (Lagoa
morta). Coisas estranhas aconteciam naquele lugar assombrado, almas do outro mundo
saltavam na garupa dos cavalos dos viandantes que circundava a lagoa pela estrada.
Contavam ainda que quem passasse fora de horas, de escoteiro, ao vencer certa coxilha
sentia o sangue gelar ao canto lúgubre do urutau em capão próximo, cortando o negror da
noite com a modulação de agouro de má sorte”. Chamas verdes vinham da lagoa e enrolavam-
se nas patas dos cavalos; em noites de sexta-feira, corcoveavam nas coxilhas mulas sem
cabeça, em corridas desgarradas. Tais “inzonices” vinham da “própria tristeza convulsa na
paisagem”. Todos os que podiam evitavam o sítio assobrado, “passavam por longe,
apressados, e só de dia, que de noite os maus encontros eram certos” (Lagoa morta).
20
Ver Enciclopédia Brasileira Mérito, v. 5, p. 445.
21
Conferência no Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, em 1946, durante homenagem ao
general Mascarenhas de Moraes, comandante da Força Expedicionária Brasileira FEB, que lutou na Itália
contra o nazismo nos últimos anos da II Guerra Mundial.
Segundo Paul Claval (2004), as paisagens, como objetos de investimentos afetivos,
podem suscitar muitos tipos de significados e sentimentos, entre eles o temor, pois
encontram-se carregados de poder numinoso. Para as pessoas que vêem o lugar dessa forma, é
perigoso visitá-lo, pois são freqüentados por espíritos; estão para lembrar que existem
outras realidades além daquelas do mundo visível. O reconhecimento do sítio da “Lagoa
morta” como misterioso significa que as realidades sensíveis têm menos força, menor
significação que aquelas do além, das quais os espíritos humanos têm necessidade de se
beneficiar para descobrir o que deve e o que não deve ser o mundo, para fixar as fronteiras do
bem e do mal e para dar a todos razões para esperar” (CLAVAL, 2004, p. 52).
um conto de No galpão em que parece ocorrer uma situação inversa a essa da
imagem paisagística intensamente relacionada, ou refletida nas personagens e suas ações. Em
Brinquedo pesado, Florêncio Souza, “um velho mui buenacho e trabalhador”, perde a visão
depois de acender um cigarro num graveto do fogo, que explodiu eespalhou brasas e tição p
´ra todos os lados”. Tratava-se de uma brincadeira de mau gosto que o dono das terras, onde
os carreteiros acampavam para passar a noite, fizera, por não se agradar da presença deles ali.
Florêncio passou a noite sofrendo de dor, “e dava gemidos que cortavam a alma”
(Brinquedo pesado). Quando clareou o dia ele não enxergava mais. E, ao contrário do conto
anterior, a beleza da paisagem recendia por toda a parte:
E a manhã estava tão linda... tudo claro de sol que Nosso Senhor fez pr’a todos. O
campo verde com rebentação de setembro, florejando de bibis e malmequeres; o
marulho do arroio embaixo, os bois pastando na costa do aramado, e entre as
carretas, a fumaça dos fogões subindo direito no ar; tudo claro, até o céu, de tão
azul (Brinquedo pesado).
Para o velho Florêncio “tudo estava escuro para sempre”. E nesse momento o narrador
se pergunta “pra que tanta claridade e quietura rodeando aquela desgraça sem consolo? Até
um cardeal veio cantar num cambará perto” (Brinquedo pesado).
Depois de estabelecer tantas relações entre a paisagem e seu habitante, a única
explicação para que Azambuja criasse uma imagem antagônica entre a personagem e o seu
cenário é que nada nem ninguém nesse mundo conseguiria explicar até onde pode chegar a
estupidez da crueldade humana. Venâncio não tinha a intenção de cegar um trabalhador,
pai de família, mas é difícil explicar que alguém possa cometer tamanha maldade sem querer.
A paisagem não “entendeu” o que acontecera. E entre os carreteiros cada qual queria
explicar o caso, mas ninguém atinava. Pr’a dizer que foi bomba, não foi. Pedra não tinha no
fogo, que às vezes as que têm água dentro arrebentam. E o que era, o que não era, até hoje não
se sabe” (Ibidem).
A representação paisagística não condiz com a dor e o desespero de Florêncio Souza.
Ela apresenta-se indiferente diante de seu sofrimento, como ele diante de suas belezas.
Homem e paisagem estão cegos, por isso ambos, mais uma vez, se igualam, se refletem. E
então, novamente, Azambuja mostra uma harmonia de conjunto entre os cenários e as
personagens, enquadrando-se estas naqueles, sucedendo-se as aventuras, os incidentes, as
experiências, as peripécias, o mais naturalmente possível.
4 OUTRAS DIMENSÕES DA PAISAGEM EM DARCY AZAMBUJA
A ordem pode ser ao mesmo tempo necessária e natural
(em relação ao pensamento) e arbitraria (em relação às
coisas), já que uma mesma coisa, segundo a maneira
como a consideramos, pode ser colocada num ponto ou
noutro da ordem.
Michel Foucault
Se no capítulo anterior a análise voltou-se para o estudo de uma possível interpretação
literária dos contos em relação às representações paisagísticas, agora se busca ampliar o olhar
para o contexto histórico e social do Rio Grande do Sul, que não deixou de influenciar a
paisagem presente em No Galpão.
A Campanha sempre serviu, na Colônia e no Império, como proteção fronteiriça nas
lutas para preservação do território, diante dos diversos tratados e mudanças de divisas entre o
Brasil e vizinhos, hoje chamados Uruguai, ao sul, e Argentina, a oeste. Muitas cidades
formaram-se a partir de seguidos acampamentos de campanhas militares: por isso o nome
Campanha pode ter sido assim utilizado, além de estar também relacionado às pradarias,
imensas planícies de campos limpos e áreas levemente onduladas. Nessa região os rios não
são abundantes, mas a umidade é assegurada pela água da chuva que fica armazenada em
valas de escoamento, as chamadas sangas. Em outras palavras, fisionomicamente, a
Campanha “é uma terra de suaves colinas e montanhas de contornos arredondados, com os
flancos e os tropos cobertos de pastagens, e os vales assinalados por longas e estreitas faixas
de matos de galeria” (RAMBO, 1954, p. 16). No dizer de Costa (1988, p.16), a Campanha foi
“considerada uma região no sentido de envolver uma paisagem relativamente uniforme e um
‘gênero de vida’ específico, representado pela criação de gado em suas grandes propriedades
campestres, a herança cultural lusa e espanhola e as práticas tradicionais do gaúcho”.
Azambuja representa essa paisagem. Através do olhar saudoso de Sérgio, do conto
Querência, para dar mais um exemplo, o narrador fala da paisagem que começa a surgir, da
janela do trem: “ao primeiro relance de olhos reconheceu os seus campos natais, os campos da
fronteira, estendidos em planuras escampas, ondulados em suaves coxilhas, com tom de verde
amarelado das pastagens, sobre as quais, desabalado, fileteava o comprido trem [...]”.
Segundo Jean Roche (1966, p. 52), a Campanha gaúcha é o “domínio da pradaria”. Os
contadores dos causos de No galpão referem-se a esse tipo de solo como campos limpos, ou
campos sujos: “cobertos unicamente por gramíneas”, ou “salpicados por agrupamentos de
árvores e formações arbustivas”. Antônio Pala (Andarengo), Severo (Velhos tempos), João
Silvano (Fazendo aramado), Chico Pedro (Beira de estrada) ou ainda Tio Laureano (Passo
brabo) falariam, ainda, em campos finos e campos grossos, para classificar em partes a região
em que “a monotonia e a grandiosidade da paisagem dão-nos a mesma impressão de
imensidade. Nenhuma outra região permite compreender, de uma vez, a escala e a alma
dessa porção do continente” (ROCHE, 1966, p. 56). A denominação “O Continente” não se
referia somente à região da Campanha, mas a toda a província de Rio Grande. Além disso,
Jean Roche afirma que:
A facilidade de comunicação, a abundância de águas, a relativa segurança das
elevações do relevo, a riqueza garantida pela criação de gado fizeram dessa região
natural a primeira “região” do Rio Grande do Sul, região geográfica perfeitamente
caracterizada, onde o gênero de vida dos homens coincide com os limites naturais
da vegetação (Ibidem, p. 57).
Essa idéia de imensidão e harmonia também passa pelo olhar de Severo, em Velhos
tempos, quando, decidido a abandonar aquilo que fora sua casa, seu chão, apeia do cavalo e
observa: Dali, daquele alto, divisava quase todo o campo da estância, a prolongar-se, a
estender-se indefinidamente para o norte. Batia-lhe em cheio o sol e, claro e verde,
desdobrava-se todo a vista e ondulando ia morrer no amplo horizonte sem bruma”.
Associada a essas características do quadro natural, a criação de bovinos, eqüinos e
ovinos, atribuíram individualidade a essa região que ao longo dos anos converteu-se em
pecuária extensiva, com baixa densidade demográfica. A partir da década de 1920, esse
cenário transformou-se com a introdução da lavoura de arroz, intensificando as mudanças em
algumas décadas, com o cultivo de soja, a vitivinicultura, entre outras, associado à
modernização das técnicas de criação de gado.
A paisagem da Campanha, lugar de fronteira oscilante onde ocorreram diversos
conflitos armados, com seus campos de topografia suave, contrastante com o resto do
território nacional, com seus invernos rigorosos, em que o vento Minuano “tortura o vivente”,
emprestou, durante décadas, maior personalidade, no imaginário social, ao estado e seu típico
habitante. Essa região, com suas guerras, seus heróis, suas lendas, sua paisagem, seus
habitantes estancieiros e familiares, índios, negros escravos, agregados, castelhanos,
contrabandistas, mercenários constituiu-se em matéria ricamente explorada pela farta
literatura sul-rio-grandense (ATLAS, 2006, p. 33).
A Campanha, como qualquer outro lugar, “repousa sobre sua própria história e
constitui o foco único, emissor e receptor de sua singularidade em um espaço de relações com
outros lugares, próximos ou distantes, reais ou imaginários, assimilados ou rejeitados” (LE
BOSSÉ, 2004, p. 172). No entanto, por muitos anos, ela permaneceu como referência da
identidade sulina, sendo que o espaço e o poder latifundiário subjugavam outros espaços e
outros pretensos poderes no estado.
A paisagem é um fator determinante do caráter social e cultural das sociedades.
Porém, quando acontece de um lugar impor-se hegemonicamente sobre outro, isso não
significa que o campo da atividade humana é determinado pela moldura material do meio
ambiente, mas, sobretudo, que “a paisagem é o lugar de superposição de jogos de poderes e de
símbolos que têm influência na imaginação dos homens” (GANDY, 2004, p. 86).
Na obra Fundamentos da cultura rio-grandense, Balduino Rambo (1954, p. 15), no
capítulo intitulado “A fisionomia do Rio Grande do Sul”, afirma que “nada está na mente que
não esteve primeiro nos sentidos” do homem. Ele diz ainda que grande parte do que compõe
um pensamento, ou um conceito provêm do que é externo; “seus símbolos e suas analogias,
suas luzes e suas trevas, suas auroras e seus ocasos acompanham o homem desde os primeiros
albores da inteligência, até o derradeiro crepúsculo da vida” (Ibidem). Toda a vida intelectual,
volitiva e emocional está carregada de imagens, lembranças, situações concretas radicadas na
paisagem em que se nasceu, cresceu, trabalhou e morreu.
A querência, para a personagem de Sérgio, muito mais que o amor da moça Clara,
influenciou na decisão que mudaria o seu futuro. Ele sentia que era profundo o sentimento
que o ligava a seus pagos, “era a sua querência... Nunca poderia abandoná-la, nunca poderia
trocá-la, assim amiga e tranqüila, por outras terras de inquietas ambições e duros egoísmos. E
era feliz, sentindo-se definitivamente unido à sua terra e à sua vida antiga” (Querência).
Separar-se dela seria um castigo. Como aquele, aplicado pelo bando de Riobaldo, em Grande
sertão: veredas, ao então inimigo Bebelo: Titão Passos disse: ‘... Então, ele indo pra
bem longe está punido, desterrado. É o que eu voto por justo [...]’” (ROSA, 1986, p. 241).
Fazem parte da paisagem da Campanha, dentro do imaginário social presente nas
representações de Darcy Azambuja, que exaltam os valores culturais reproduzindo-os e dando
continuidade aos seus significados, dois elementos que não estão necessariamente
relacionados ao ambiente físico, mas ao mesmo tempo tornaram-se imprescindíveis ao
ambiente cultural do pampa: o chimarrão e o churrasco.
Numa roda de parceiros, no galpão e/ou perto de um fogo de chão, o chimarrão
acompanha a conversa e segue mesmo depois que acaba a Charla, nome do conto
azambujiano que deixa explícito o ritual do mate: “quando se acomodou de novo, o índio
Libório, que cevava o mate, alcançou-lhe a cuia”. Era dia de folga e alguns peões
permaneceram pelas sombras dos galpões, “o Fidêncio estendeu-se sobre a carona, de barriga
para cima, olhando distraído a galharada forte do umbu e o céu, de um azul de aço, onde
voejavam dois corvos procurando o frescor das alturas”. Mais tarde,
[...] de entorno vinha o bafo quente da resolana, que fazia tremer o ar. Não se via
uma rês no campo. Os cachorros estendiam-se de fio comprido no costado do
galpão, onde a terra era fresca. As galinhas ciscavam pelo terreiro. Nenhum rumor
vinha das casas, pois toda a família fora a passeio, e os peões, como fosse domingo,
tinham-se cortado cada um a seu rumo; aqueles três permaneciam, como velhas
donas, verdeando (Charla).
Encontravam-severdes” de tanto tomar mate, mas, para uma nova rodada de causos:
“– Banque-se, paisano. Che, Flores, vai mudar a cevadura, que esta nem pra mate de
paraguaio presta mais. Enquanto o Flores punha fora a erva, encheram a chaleira e atiraram
mais uns pausitos no fogo” (Charla). Uma mesma cuia passava de mão em mão e a conversa
fluía: “– vai a cuia. Na casa do Josino Três Sete? O que foi que houve? O Fidêncio pegou
a cuia que o Libório lhe alcançou, “acendeu nas brazas o baio que fechara e, entre largas
tiradas de fumaça” (Ibidem) seguia contando.
Já, a personagem de João Silvano, do conto Fazendo aramado, além de alambrador e
contador de causos, “tinha orgulho de ser bom assador” de churrasco. Quando se aproximou à
hora do almoço, o peão, depois de fazer o fogo no chão, tirou a manta de carne gorda de um
saco branco que tinha ficado pendurado num galho de “capororóca”, furou-a em três lugares e
enfiou o espeto, estaqueando um pauzinho na parte larga daquele pedaço. Em seguida, mexeu
nas brasas e fincou uma forquilha no chão para apoiar nela o espeto e assar a carne. Sentado
“quase em cima do fogo”, João Silvano, pitando e tomando mate, “virava de vagarzinho o
espeto”, até que a carne “coloreou-se enrugou, e depois fez-se ouvir um leve crepitar”. Aquele
cheiro que vinha da graxa que pingava nas brasas atiçou a peonada a se achegar ao
acampamento e, enquanto esperavam o almoço, mateavam e proseavam, pois ainda faltava o
tempero da carne:
Aí, João Silvano retirou a carne do fogo, deu-lhe pequenos talhos, esburrifou
salmoura com um molhosinho de carqueja e pô-la de novo assar. A todas essas,
conversando sempre. Quando julgou pronto o assado, fincou o espeto no capim,
chairando a faca, e:
– Cheguem-se, moçada, que isto é churrasco e algo mais (Charla).
Tanto o churrasco como o chimarrão, que serviam para aproximar ainda mais os pares
das lidas campeiras, eram apreciados em campo aberto, de baixo de uma sombra larga de
algum umbu, ou mesmo no galpão. Nesse sentido, a paisagem torna-se uma vivência, afirma
Giles Sauter
22
, é marca e matriz do ser humano, argumenta Augustin Berque
23
.
4.1 Paisagem: a fonte de um mito
22
Ver CORREIA; ROSENDAL, 2004, p. 8.
23
Ibidem.
A partir de 1870 a face econômica e política do estado sofreria alterações. A
Campanha deixa de representar o Rio Grande e passa a ser redefinida como um espaço
regional, ao lado do novo espaço que surgia com a formação de uma classe de pequenos
produtores agrícolas e comerciantes descendentes de colonos alemães (no estado deste de
1824) e italianos (após 1875) (COSTA, 1988, p. 42). Além disso, o surgimento das cercas de
arame, a introdução de novas raças de gado, o incremento da rede de transportes geraram uma
modernização sem precedentes na campanha. Peões, posteiros, agregados e afins, não serviam
mais àquele modelo pecuarista simplificado, com pouca demanda de braços para as lidas do
campo ou da lavoura.
É esse o momento histórico do Rio Grande do Sul que vive a personagem de Severo,
no conto Velhos tempos. Por meio dele é possível ter uma idéia do que representou para o
homem do campo a transformação paisagística da Campanha que, na realidade, apenas
refletia as alterações políticas, econômicas e sociais da época. Para o velho Severo, que
representa a classe de peões de estância, o que mais provocava tristeza eram as mudanças
verificadas na paisagem: as cercas que matavam a alma imensa do pago, as reses e os cavalos
de raças estranhas, as lavouras de pastos exóticos, as árvores plantadas com destino certo para
o corte e a venda lucrativa, a invasão do gringo na Campanha, o pago do gaúcho. O
preconceito contra as mudanças estava presente em seu modo de pensar, que via na paisagem
o que significava seu lar, sua segurança. Criado e acostumado a ver nas lidas campeiras,
muito mais que um trabalho, um meio de vida em que a forjada democracia do pampa o
induzia a pensar que era rico, possuindo apenas um cavalo. O velho se sentiu “estrangeiro em
seus pagos transformados” (Velhos tempos).
A paisagem representada nos contos, ao oferecer aos leitores os símbolos e mitos
unificadores que servem de fator de resistência à mudança de base de estabilidade, favorece a
ancoragem espacial e temporal de uma identidade territorial e a transmissão da mensagem
identitária dentro e fora do território (GOTTMANN apud MONDADA; SÖDERSTRÖM,
2004, p. 168). Mensagem que é transmitida, por exemplo, pelo velho Severo, último peão a
sair da estância, onde se erguera a “Granja Nova”, e onde ele, a contragosto, como querendo
humilhar os novos empregados que vieram trabalhar na granja, contava sobre os velhos
tempos, o passado, todo de lutas e glórias nos seus pagos: Foi logo depois do Passo da
Pátria. Estávamos acampados assim numa recosta, na beira dum mato ralo. Quase toda a
cavalaria meio cansada, mas como aspa de novilho, de afiada [...]” (Velhos tempos). Na
partida para uma nova vida, rumo incerto para Severo, ele lança um último olhar à paisagem e
imprime, mais uma vez, a identidade que a sociedade hegemônica buscava firmar no
imaginário social sul-rio-grandense:
O velho entrevirou-se no lombilho e olhou mais uma vez para trás. longe, no
alto, entre figueiras, estava a estância velha; um pouco à esquerda, no vale, a
Granja, cintada pelo arroio, e no fundo do horizonte, que começava e esfumar-se, a
linha escura da serra. E adivinhou, mais do que viu, outros sítios conhecidos: o
capão Grande, com troncos de tarumã clareando à incidência do sol, a restinga, o
Umbu, a estrada das tropas. Todos os pagos: toda a sua vida. A sua e a dos seus
antepassados, nascidos ali e dali irradiando pela campanha em longos anos de lutas
e trabalhos. E ele, agora, ia abandonar o cenário de tantas existências queridas.
Tinha que ser. A vida nova repelia-o (Velhos tempos).
De acordo com Sergius Gonzaga (1980, p. 120), “despejados de seu espaço ou
simplesmente ameaçados pelo colapso de um capitalismo arcaico, os trabalhadores assumiam
uma concepção idílica do passado”, cultivavam a nostalgia de um mundo tradicional, anterior
à ruptura modernizadora, mas não empunham armas para enfrentar a estrutura vigente. O
clima saudosista dos dominados impedia qualquer manifestação contrária ou violenta contra
dominadores. Ambas as classes assistiriam à restauração de um hipotético paraíso perdido, de
uma paisagem utópica, exclusivamente na esfera da linguagem oral e, depois, escrita, criando-
se assim, pode-se dizer, um saudosismo benigno, não-virulento, que mais tarde na fantasia
de uma comunidade humana ideal, localizada no passado remoto, ganharia importância”
(Ibidem) e transformar-se-ia no atual “Movimento Tradicionalista Gaúcho”, o MTG.
O Rio Grande consolidou a sua expressão de forte identidade regional, sem possuir
necessariamente o perfil gauchesco, que começou a ser inventado, de forma gradual, a partir
do imaginário da Campanha Gaúcha, que representou, por muito tempo, a primeira e mais
importante região reconhecida pelo restante do país. Além de ser distinta pelo seu valor
bélico, que chegou a ser, durante décadas, uma das principais forças militares brasileiras,
foi espaço da primeira e rústica indústria sul-rio-grandense, a empresa do charque.
Quando, em 1868, a Sociedade Partenon iniciou a formação do sistema literário rio-
grandense, foram louvados os tipos representativos mais caros à classe dirigente. Gonzaga
(1980, p. 125) afirma que se sedimentava ali o começo da apologia de figuras heróicas
elevadas à condição de símbolos da grandeza de um povo. Os paradigmas de honra, liberdade
e igualdade procedentes da Revolução Farroupilha, tornaram-se essenciais ao futuro mito do
gaúcho. Se por um lado Darcy Azambuja segue o rastro dos integrantes da Sociedade,
louvando e enriquecendo o mito gauchesco, por outro, ele mostra, também, o começo da ruína
do sistema latifundiário e a transformação dessa paisagem, apontando, com isso, as mudanças
sociais, políticas e econômicas daquele momento histórico da região, cujo futuro não mais
comportaria o gaúcho. Cyro Martins é quem virá, mais tarde, também pela literatura,
representar a conflitante realidade do peão deslocado da sua paisagem, nos três livros que se
transformaram na trilogia do gaúcho a pé: Sem rumo (1937), Porteira fechada (1944) e
Estrada aberta (1954).
Darcy Azambuja, juntamente com seus antecessores, antecipa, com as representações
paisagísticas da Campanha, o lugar, o ambiente e o cenário de onde virá surgir o gaúcho, o
mais forte mito do estado. O tradicionalismo, forjado a partir de 1947, por um pequeno grupo
de estudantes secundaristas, converteu o pampa em “espaço” imanente da identidade, o lugar
legitimador do rio-grandense. Inicialmente, essa conversão tinha como alvo o poder estatal e
mais tarde, a sociedade civil. Seus intelectuais criaram sistemas de visão regional e
comportamental para serem cultuados, estabelecendo dogmas. A partir de um epicentro
imaginado em Porto Alegre, foram se expandindo e se reproduzindo. E, permanentemente,
inclusive nos dias atuais, progridem, inventando regras a serem repetidas.
Um tipo cada vez mais genérico vai surgindo das práticas do cotidiano, das
manifestações da cultura popular e do conjunto de discursos (jornalísticos, literários,
políticos) da cultura das elites que reforçariam os predicados de uma figura humana
completamente dissociada de uma camada especifica da população. Segundo Sérgius
Gonzaga (1980, p. 119), “isso quer dizer que qualidades mitológicas e niveladoras,
emprestadas ao homem da campanha, estavam mais ou menos desenvolvidas antes do
triunfo definitivo do gaúcho, em sua condição de símbolo do universo pastoril”, fato que
ocorreria nas últimas décadas do século XIX.
Embora o espaço de vivência do gaúcho tenha sido a estância, historicamente de baixa
sociabilidade, os Centros de Tradições Gaúchas atuam com força total em regiões, como a de
imigração italiana, cuja paisagem impede as lidas que eram praticadas pelo guasca livre e
destemido dos pampas.
A Campanha representou o espaço da cultura dominante. O imaginário social presente
em todo o Rio Grande do Sul partiu dela. Foi da Campanha a paisagem que se perpetuou
como ambiente cultural do gaúcho. O grupo cuja dominação estava baseada objetivamente no
controle dos meios de vida, ou seja, terra, capital, matérias-primas e força de trabalho, foi, na
formação do Rio Grande do Sul e durante três séculos, o dos grandes estancieiros
latifundiários. Seu poder foi mantido e reproduzido, até um ponto consideravelmente
importante, por sua capacidade de projetar e comunicar, por todos os meios disponíveis e
junto a todos os outros níveis e divisões sociais, uma imagem do mundo consoante com a sua
experiência, e ter essa imagem aceita como reflexo verdadeiro da realidade de cada um. Este é
o significado da ideologia (COSGROVE, 2004, p. 111-112).
O pampa foi e continua sendo uma das imagens mais duradouras da paisagem sul-rio-
grandense, incutida na sociedade por manifestações orais e escritas, de quem se encontrava
deslocado de suas terras (talvez pela falência dos pais) e buscava certa “ordem”, perdida
diante de tantas inovações do capitalismo.
4.2 As relações de poder
Edgar de Decca (1997, p. 201), afirma que “o romance toma emprestado da
historiografia as representações que ela produziu sobre o passado, ele se utiliza de materiais
históricos já prontos, mas subverte a própria função da história”. Aplicando essa idéia à ficção
de forma geral, é possível afirmar que a narrativa azambujiana, por meio das representações
da paisagem, de alguma forma, subverte a sua função histórica, pelo que é subentendido, e
não necessariamente pelo que é enunciado em seus contos. Inclusive na arte, nem tudo pode
ser enunciado, mas é insinuado, ou sugerido.
Isso acontece na relação que o narrador do conto Andarengo estabelece entre o velho
Antônio Pala e uma tapera, ao mesmo tempo em que insere o jovem Miguel refletindo sobre o
destino daquele andarengo: “com certeza o velho Antônio tivera uma família: mulher, filhos,
ali na casa vivera tranqüilo, cuidando do seu campo e do seu gado. Um dia veio a desgraça
quando ela tem que vir, vem, com um nome ou com outro”. Miguel somente pensa, não
pergunta e não afirma nada: “pra que, pois, magoá-lo mais? Não; deixá-lo sossegado,
guardando em repouso a sua história, pra que fosse diminuindo a dor tão antiga e funda que
havia de ser...” (Andarengo). O jovem não quer falar da violência, da destruição de famílias
no Rio Grande do Sul durante longos anos de guerras, nem o narrador, ninguém quer falar
dessas tristezas, contudo de alguma forma, Azambuja não as deixa esquecer. Em quase todos
os seus contos, nos indícios da paisagem ou nas comparações entre homens e elementos
paisagísticos, seus narradores apontam acontecimentos brutais desumanos, vividos no estado,
como nesta passagem em que Severo presencia o retorno dos velhos tempos, em meio a uma
batalha:
[...] De quando em quando, atrás da cerca que servia de trincheira, braços erguiam-
se, convulsos, e tombavam. Um oficial trepou sobre ela, de espada em punho, como
a desafiar o inimigo. Ao abrir a boca, ima bala atingiu-o, e, como quem se atira á
água, caiu para frente, batendo com o rosto numa pedra. Cavalos sem dono
desgarravam-se campo fora; alguns estrebuchavam, outros morriam lentamente.
Um zaino de raça, ao tombar, apertara o cavaleiro que morrera expelindo grossos
fios de sangue pela boca (Velhos tempos).
Nas representações paisagísticas de No galpão, percebe-se o poder da paisagem como
meio de reconstituir uma ordem perdida ou que estava se perdendo. Para compreender a
relação que se estabelece entre a criação da imagem paisagística da Campanha e o poder ali
estabelecido, será importante abordar o relacionamento entre patrão e peão.
Os patrões eram proprietários de incomensuráveis latifúndios, oferecidos pela Coroa
que tinha a intenção de assegurar ao estado português a valiosa courama, o efetivo domínio
territorial, o controle e a repressão do regime anárquico de preia do gado alçado, nas
“vacarias” do Rio Grande do Sul.
Os peões eram os herdeiros do que sobrou dos índios dizimados e dos estupros
praticados por bandeirantes, portugueses e espanhóis. Cavaleiros errantes vagavam pelos
campos, solitários ou em bandos, à procura do couro, que sempre lhes rendia algum trocado.
A faina clandestina desse grupo tornou-o ainda mais marginal. Antes dos fazendeiros, como
afirma o narrador do conto Andarengo, “era um atavismo tranqüilo dos primeiros gaúchos,
que sem pagos nem lei combatiam e rapinavam pelo pampa”.
Para os estancieiros, esses semibárbaros representavam mão-de-obra especializada
para as lidas do campo e, portanto, trataram de incorporá-los ao processo produtivo. Como é
comum entre as manobras dos senhores, a sua ideologia passou a ser a ideologia geral dos
peões que apresentavam extrema fidelidade aos patrões, num procedimento característico das
sociedades pastoris. Integrados na fazenda, passavam a preencher o seu “vácuo moral” com a
moralidade dos poderosos: crença na honra, no direito da propriedade privada. Idéias como a
de honestidade encontravam-se inclusive entre os semimarginais, que preferiam a degola a
serem apontados como ladrões (GONZAGA, 1980, p. 114).
De acordo com Pierre Bourdieu (1989), para um discurso realmente incidir naquilo
que enuncia é preciso que não somente a autoridade de quem o enuncia seja reconhecida,
como também, para que o mesmo seja importante, que o grupo ao qual se dirige reconheça
nele a sua identidade. O poder será exercido se houver cumplicidade entre as partes
envolvidas. Pode-se dizer, dessa forma, que patrões e peões possuíam um consenso acerca do
sentido do mundo e isso reproduzia a ordem social presente na Campanha, inclusive em
tempos de guerra.
Através desse processo a figura marginal do gaúcho foi se extinguindo na prática e,
mitologicamente, renascendo como instrumento de sustentação ideológica dos mesmos
grupos que a tinham destruído, em meados do século XIX. Segundo Sergius Gonzaga (1980,
p. 118), os últimos anos desse século assistiram à constituição das belas mentiras”, sem
confrontos com a realidade, que o verdadeiro gaudério tinha desaparecido, poderiam
terminar por difundir um outro real, ilusório, mitificador, confortante, ordeiro.
O início da Revolução Farroupilha, em 1835, pode fornecer as origens da imagem
positiva do gaúcho. Aos subordinados dos comandantes rebeldes, oferecia-se algo mais do
que o soldo e a perspectiva do saque. A relação oficial-soldado era impregnada por laços
caudilhescos, vínculos pessoais com lideranças carismáticas e idéias de bravura e coragem,
para infundir ânimo ao combatente. Os valores da rude vida campeira eram absorvidos e
repassados aos peões, insuflados através de injeções ideológicas de destemor, força, astúcia e
liberdade. Tudo retomado de forma idealizada, para servir de invólucro às razões da elite que
lutava pelos seus interesses. As massas levadas para os campos de batalha, negros, peões e,
em conseqüência, familiares, sentiam na carne a dor e a retaliação de uma guerra fratricida
com toda a sua dinâmica de terror: degola, profanação, castração, estupro. Esse povo
humilhado da campanha teria de ser mobilizado por formas caudilhescas de liderança e por
certas idéias-base repetidas em todas as outras guerras que viriam depois de 35, para ambos
os lados dos conflitos sobre a hombridade e a coragem do guasca rio-grandense
(GONZAGA, 1980, p. 121). E a paisagem representava uma dessas forças coercitivas.
Talvez por essa forte relação do homem campeiro com a terra, era no campo e no
galpão que se forjava a idéia da democracia social, como se verifica no conto Contrabando:
“aquela amizade funda e concentrada, niveladora de peões e patrões, criados nas mesmas
lides, onde gradua, não o nascimento ou a fortuna, mas o valor de cada um”. Nessa paisagem
peões e fazendeiros irmanavam-se no mesmo cheiro de suor da faina rústica, das lidas de
gado, a cavalo, ou tomando mate na mesma cuia, sorvendo na mesma bomba, congraçavam
juntos o patrão e o guasca os mesmo traços do caráter, típico de gestos “rudes e lhanos [...],
filhos dos pagos, gaúchos de lei” (Velhos tempos). Essa ideologia era habilmente cultivada
pela elite que previa a sua própria segurança. Tratava-se de uma estratégia de sobrevivência,
pois a massa poderia rebelar-se e tornar-se incontrolável, por isso, a mobilidade dos chefes,
seu conhecimento da região e seu preparo militar dificultariam enormemente qualquer levante
contrário. Dessa forma, o patrão andava lado a lado com o peão, como aponta Tio Laureano
no causo do Passo brabo: “Esse negro, o Ranulfo, que está dentro tratando o gado com o
patrão, já botou na mangueira bicho pior que boi matreiro”.
Os sem-terra glorificavam o nomadismo que lhes oferecia toda a terra, toda aquela
vastidão da paisagem lhes pertencia; não tinham escolha, por isso canonizavam a liberdade;
não podiam possuir mulher, elevavam o amor passageiro; sem um lugar privado, um lar,
enalteciam a natureza, a aventura; e, como não possuíam nada, exceto o cavalo e a faca,
atribuíam-se, como pertences, a coragem e o vigor; e, por fim, de miseráveis que eram,
afirmavam o amor-próprio (GONZAGA, 1980, p 131). Tudo indica que esse pensamento foi
inculcado pelos próprios estancieiros que dentro da “práxis” cotidiana, da valorização da
coragem sem peias, do desprezo pela vida e do opor-se a todas as formas de posse dos peões,
eternizavam a sua hegemonia e garantiam a estabilidade do regime pastoril que haviam
implantado.
No conto Fazendo aramado, João Silvano, experiente peão da estância do velho
Lucas, fazedor de aramado e contador de causos,
Olhando o sol e vento que ia virando para o meio-dia, levantou-se com um – han!
e foi direito ao acampamento, debaixo de uma capororóca nova, onde estavam
arreios e utensílios. Acendeu fogo, e enquanto se formavam brasas pra assar o
churrasco, tirou água do balde e pô-la na chaleira a aquecer, para o amargo
(Fazendo aramado).
Na ocasião, ele furava os moirões com a pua, em seguida passava o arame para prender ao
outro palanque. Parou o serviço e foi preparar o almoço dele e de mais dois peões. No
contexto, o narrador deixa claro que uma força revolucionária tinha picado toda a cerca com o
intuito de passar, como uma provocação ao estancieiro que aproveitou para mandar os
empregados refazerem tudo. Provavelmente o lugar ficava a léguas de distância da sede da
fazenda, e os próprios peões preparavam a comida; tinham ido a cavalo, levando os
apetrechos para o churrasco e o chimarrão. Todos se mostravam satisfeitos com o trabalho,
mais ainda com a carne e o amargo. O horário do serviço era ditado pelo sol, e o descanço,
pela chuva. Cumpriam suas tarefas como se estivessem trabalhando em suas próprias
propriedades, no entanto, não possuíam casa, nem mesmo terras. Viviam nos ranchos ou nos
galpões das estâncias, trabalhavam pela comida, o mate e algum agrado do patrão. No
entendimento social, econômico e político dos senhores da terra, para o peão que vivia em
meio a tanta abundância e beleza, num pampa que representava a sua casa, não precisava de
mais nada para ser feliz.
A liberdade da paisagem que o cercava, seu cavalo, as lidas campeiras e a mulher
amada, juntos representavam a felicidade do peão campeiro, na concepção de uma ideologia
impressa no pensamento do subalterno, inclusive, através de uma visão de auto-suficiência
entre a relação homem / paisagem, como confirma tio Alexandre, o velho peão gaiteiro,
nesses versos:
Há muita gente que pensa
Que o dinheiro faz feliz.
Sou pobre e vivo contente
Por querer a quem me quis.
Nos campos da minha terra
Sou gaúcho sem patrão.
De a cavalo, bem armado,
Meu governo é o coração.
Duas coisas neste mundo
Juntas dão felicidade
E aqui lês digo o segredo:
São o amor e a liberdade (Querência)
De acordo com Mitchell (apud GANDY, 2004, p. 79), a paisagem não é apenas um
tipo particular de expressão cultural da realidade, mas um meio de reforçar uma ideologia
dominante em uma determinada sociedade. Nesse sentido, a ideologia marca um sistema de
símbolos e de idéias que, ao mesmo tempo, registra modos de pensamento dominantes na
realidade material e assegura a reprodução de um tipo preexistente de relações sociais. É
também a reprodução inconsciente de determinados modos de pensamento que religam a
ideologia ao poder simbólico da natureza, definido como um conjunto preexistente de
símbolos e significados. Dessa forma, “a paisagem é, por essência, política: toda mudança
social constitui, na verdade, um desafio às concepções preexistentes da natureza e às
representações simbólicas da paisagem” (GANDY, 2004, p. 80).
A aparente transparência das características da representação da paisagem em Darcy
Azambuja tende a convencer o observador-leitor de que as relações sociais, políticas e
econômicas, permitidas pela organização da paisagem, são estabelecidas naturalmente, ou
mesmo divinamente. Isso pode esclarecer “a maneira como ideologias dominantes, que são
transmitidas por meio da paisagem, reproduzem práticas sociais e políticas” (DUNCAN,
2004, p.109).
As paisagens presentes na obra No galpão, representam a primeira iconografia do
poder no estado, a Campanha Gaúcha. Segundo Denis Cosgrove (2004, p.115) “tais
paisagens simbólicas não são apenas afirmações estáticas, formais. Os valores culturais que
elas celebram precisam ser ativamente reproduzidos para continuar a ter significado”. Em
grande parte, isto foi realizado através das representações paisagísticas azambujianas, que em
muitos momentos da narrativa celebrou a querência, os pagos e o rincão, no dizer de Augusto
Meyer (1957, p. 8), “palavras de dedo no lábio, impondo silêncio”. Cristalizou-se a imagem
do pampa como o lugar de onde se decidia o destino do Rio Grande e de seus habitantes.
De acordo com tais representações, as grandes disputas territoriais, políticas ou mesmo
o contrabando, foram vivenciados e lutados sobre terras pampeanas. Em relação a este último,
os contrabandistas já estavam afeitos ao perigo e aos sobressaltos, sempre em risco, em hábito
“a existência errante e insegura, noite e dia sob as coxilhas da fronteira” (Contrabando). Ora
atentos, fugindo, contornando obstáculos, ora arriscando e revidando à bala a fiscalização que
queria tirar-lhes a mercadoria preciosa. E assim,
Entre a vida e a morte aproximadas na expectativa dos recontros, passavam calmos,
quase indiferentes, derivando para aquele comércio perigosíssimo a bravura e o
estoicismo da raça, vindos de longe, do passado guerreiro, aceso outrora nas lutas que
haviam feito vibrar o imenso arco da fronteira, distenso do Iguaçu ao Chuí, nos vai-
vens incertos das guerras e revoluções (Contrabando).
As fases do desdobramento das lutas que ocorreram sobre as coxilhas sul-rio-
grandenses repetiam-se, uma após outra:
Mobilizavam-se os homens, mudavam-se os gados, sítios eram abandonados,
grupos cruzavam-se reuniam-se, engrossando; piquetes autônomos, corpos
defluidos às agregações prefixadas, brigadas volantes, divisões efêmeras. A
fronteira animava-se como no tempo das invasões; tropas de gado emigrando para
invernadas seguras, grupos de guerrilheiros indo e vindo, contrabandos de
equipamento às forças improvisadas a osmose secular de três povos em contato
(Velhos tempos).
Juntamente com os homens e sua realidade, mudava também a paisagem:
Nas cumeadas da serra os clarins saudavam, alvoroçados, a luz das madrugadas
frias, e nas quebradas de mato estralejava de continuo o tiroteio das esperas. Pelo
dorso das coxilhas, as bandeirolas das lanças batiam nervosamente ao vento e
despenhavam-se, ceifadas de metralha, sobre a muralha fulgurante das baionetas.
Sobre as povoações, perdidas na extensão verde da campanha, caiam, de surpresa,
os esquadrões. Recontros e entreveros estrupiam, épicos, tempesteantes na voragem
das cargas, ou quase silenciosos, em tiroteio espaçado, de coxilha a coxilha (Velhos
tempos).
4.3 A paisagem vista da cidade
A representação paisagística do campo esteve vinculada ao desenvolvimento da
cultura urbana. Antônio Cândido (1997, p. 58) afirmou isso em relação à poesia pastoral,
que ao opor a paisagem natural às linhas artificiais da cidade, transforma o campo num bem
perdido, representando os sentimentos de frustração. É possível perceber na prosa
azambujiana que os desajustamentos dos peões do campo e suas famílias se explicam pela
perda da vida anterior, e o pampa surge nos contos como cenário de uma euforia perdida. A
personagem do velho Severo, ao abandonar o pampa, “em alucinação, sentia ir com ele aquele
mundo revolto, maior e mais belo que a sua vida obscura e sem glória” (Velhos tempos).
Recordando a paisagem da Campanha, Azambuja intenta equilibrar a angústia de viver
longe da terra, e proporciona com isso a afirmação dos mitos oriundos daquela época. Em
pleno momento de desenvolvimento das cidades, o autor e seus pares sonham com uma
felicidade passada, forjando a convenção da naturalidade como forma ideal de relação
humana. A última visão que desejam ter antes da morte é a mesma que teve Severo no seu
último combate: “sintetizou os pagos todos, vendo-os aberto, escampo” (Velhos tempos).
Severo com tristeza “o movimento desenvolto, sem peias”, enquanto “a agitação
primitiva e a rude gauchada, constringira-se, afeiçoara-se forçadamente às normas novas,
regulares, calculadas”. A “destruição” da paisagem e dos costumes era vista como um
desastre e não como uma reordenação cultural.
Zilberman (1985, p. 16) afirma que com a proclamação da República em 1889, e a
ascensão do grupo político dominado por Júlio de Castilhos, Pinheiro Machado e Borges de
Medeiros, o estado experimenta uma fase de crescimento econômico, decorrente da
industrialização no campo e na cidade, do estímulo à policultura na lavoura e do apoio às
atividades comerciais assumidas por novos setores sociais formados pelos imigrantes
europeus e seus descendentes. Nessa época os frigoríficos foram substituindo as charqueadas,
e nas cidades surgem, com muita força, as manufaturas. O progresso econômico passa a
acontecer com a urbanização de centros que, até então eram marcados pela fisionomia rural.
Segundo a autora, “Pelotas e Porto Alegre aderem ao estilo art nouvenau então em voga e
buscam assumir ares cosmopolitas, inspiradas na modernização imposta à Capital Federal, à
mesma época” (Ibidem).
Com o passar dos anos e a efetivação das mudanças econômicas surgem nas cidades,
principalmente em Porto Alegre, jovens, oriundos dos setores intermediários que iriam usar
as “belas letras” para, não somente tentar reviver de alguma forma o tempo passado, mas para
trazer de volta uma certa ordem perdida e sobreviver economicamente e socialmente frente à
nova realidade. De acordo com Sérgius Gonzaga (1980, p. 125-126),
[...] repetia-se um fenômeno de extensão nacional: o processo de mobilidade social
dessa ‘intelligentsia’ de origem bastarda condicionava-se à intimidade que pudesse
ter com os detentores do poder. Articulava-se uma troca: ascensão, prestígio ou
simples reconhecimento cambiados por subideólogos, aptos a oferecer fórmulas
(amenas à oligarquia) de representação da realidade, e por artistas, capazes de pôr
em prosa e verso as qualidades varonis dessa mesma oligarquia.
A paisagem da Campanha passou a ser um objeto pictural de importante representação
no ambiente moderno da cidade, proporcionado pela industrialização e o desenvolvimento
urbano, percebido como artificial. Assim, a representação paisagística, e especialmente a
paisagem da Campanha, constitui uma forma de reação artística à destruição do mundo
campeiro:
A rebentação da primavera vestia de verde as grades várzeas e pelas recostas
frescas estendiam-se tapetes de florinhas pálidas. De quando em quando, surgiam
açudes, com as margens adoceladas de algas e capim macio; e lagoas tranqüilas,
coroadas pelo vôo sereno das garças e socos, numa solidão feliz em meio às
extensões ermas. Longe, em cimos, de coxilhas, frontes de umbus apareciam,
branquejavam paredes, e mangueiras, retângulos de lavouras estâncias povoando
os plainos de trabalho e abundância (Querência).
Esses escritores, distanciados do mundo rural que expunham nos livros, eram
intelectuais urbanos que não podiam, e talvez nem desejassem, ser confundidos com os rudes
peões oriundos das paisagens representadas em suas obras (ZILBERMAN, 1985, p. 60). Essa
oposição cidade-campo, tem suas raízes no Romantismo e é uma temática comum aos vários
textos do Regionalismo. Ligia Chiappini Morais Leite (1978, p. 37) afirma que tal oposição,
cidade-campo, encerra uma outra, que não somente a espacial, é a oposição passado-
presente, um tempo heróico, do homem livre e primitivo, o tempo do centauro; e um tempo
degradante, do gaúcho civilizado, amolecido, num Rio Grande transformado”. Nos conselhos
que o narrador do conto Dia de chuvaao guri, que vai a cidade estudar, é possível observar
tais idéias: “Mas olhe patrãozinho [...] tome tenência, com aquela gente da cidade. todos
falam ligeiro e bem, e, falando tanto, agente não les enxerga a intenção”.
A tentativa de perenizar os “velhos tempos”, numa contemplação saudosa do passado,
caracteriza uma visão pessimista e amargurada do presente. Antônio Pala, do conto
Andarengo, afirma, ao passar por uma invernada:
– Isto foi campo bom! Quem visse... [...] Quero dizer bem cuidado, no outro tempo.
Agora... Também a gente muda, e tem o costume de dizer que as coisas é que
mudaram. P’ros velhos, o que é de hoje não presta,o nosso tempo foi bom. Mas,
verdade, verdade, quando eu morava aqui, isto era mais alegre.
Segundo Michel Foucault
24
a representação do passado, a memória, é um recurso
político muito importante. De acordo com ele “a memória é, na realidade, um importantíssimo
fator de disputa... se alguém controla as memórias das pessoas, controla seu dinamismo [...] É
vital possuir essa memória, controlá-la, administrá-la, dizer o que ela deve conter”.
A representação da paisagem da Campanha marca as consciências coletivas
emocionais e territoriais. Le Bossé (2004, p. 168) diz que se a construção de uma identidade
passa pela consideração de uma herança e pela preservação de um patrimônio sócio-histórico,
e se a capacidade de recordar, preservar e perpetuar um passado faz parte de um sentimento
identitário, este último encontra um local de expressão privilegiada nos “lugares de memória”.
Os narradores dos contos azambujianos deixam esses “lugares de memória” tomar corpo de
linguagem através de seus causos e, a exemplo do velho paisano Blau Nunes, vão recordando
as histórias “como quem estende ao sol, para arejar, roupas guardadas ao fundo de uma arca”
(LOPES NETO, 1998, p. 17).
Dessa forma, a paisagem da Campanha não se modificou, não sofreu alterações, não
desapareceu, ela tornou-se encantada na memória de autores como Darcy Azambuja, e,
através da literatura, transforma-se em patrimônio de identidade de um povo. Ao contrário do
que sugeriu o narrador do conto Dia de chuva, ao falar da necessidade do patrãozinho ir para
a cidade estudar: Mas, amigo, vancê está quase um homem; é preciso agüentar. Quando
24
Ver MONDADA; SÖDERSTRÖM, 2004, p. 117.
chegar esquece logo a querência”, Azambuja não esqueceu e não deixou esquecer ao
escrever seus contos.
Recordações que surgem na memória do velho Severo podem elucidar um pouco do
que permanece latente entre as pessoas que ajudam a cultuar tais representações:
Trechos do passado, fragmentos de outras vidas, outros tempos povoando o mesmo
cenário. [...] A princípio, pontas de gado, chegando do fundo do campo, cada vez
mais numerosas, formando grandes tropas, mugindo, entrechocando aspas,
seguindo pela amplidão verde. Depois, nas coxilhas próximas, um vasto palpitar de
crinas, de garupas rápidas, matagais chispando ao sol, sons longínquos de clarins...
Dentro de um vulcão de poeira, centenas de esquadrões galopavam, bandeiras
tatalavam ao vento forte... (Velhos tempos).
No entanto, de certo modo, Darcy Azambuja desnuda um pouco o modelo idealizador
do Regionalismo, não pela nostalgia, que vai ao encontro da tendência à idealização presente
nesse movimento, porém em sua memória, expressa nos seus contos, o autor deixa
transparecer aspectos que denunciam a insensatez de tantas guerras, de tanta violência,
observando contraditórios fatos que levam o leitor a questionar sobre tais acontecimentos:
irmão que mata irmão (Por pena); um lugar amaldiçoado conseguido por meio de recompensa
de mortes (Lagoa morta); o peão sem rumo diante das inovações do campo (Velhos tempos);
uma família destruída e um homem sem destino (Andarengo); a dificuldade de se criar um
filho diante de tantos despropósitos sociais, políticos e econômicos (Beira de estrada). Todos
esses temas relativisam a vertente puramente regionalista do autor, transformando-o em
“abridor de porteiras” para as novas tendências literárias do Rio Grande do Sul, além de ter
sido considerado criador de uma nova estética da paisagem na literatura. Os anos de infância
de Darcy Azambuja, vividos na Campanha sul-rio-grandense, permaneceriam sempre dentro
dele como um presente constante, ao abrigo da ação do tempo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A história era impossível, mas impôs-se a todos porque
substancialmente era certa. Verdadeiro o tom,
verdadeiros os sentimentos, verdadeiros os
acontecimentos. Só eram falsas as circunstâncias, a
hora e um ou dois nomes próprios.
Jorge Luis Borges
Azambuja lançou um novo olhar sobre a paisagem. A maneira como apresenta a
paisagem, em No galpão, revela novas dimensões paisagísticas por meio da representação
literária, o que proporciona uma retomada de consciência das relações íntimas que unem os
aspectos físicos, os componentes biológicos e as realidades sociais e culturais que o homem
constituiu. Interpretar tais dimensões requer não somente uma visão crítica e minuciosa das
sensações, mas também compreender a paisagem azambujiana como ela se apresenta e
penetrar no seu sentido, na sua natureza. É bom lembrar sempre que essa paisagem foi criada,
ou ainda recriada, pois se trata de representações paisagísticas, por um observador-autor e que
ela depende do ponto de vista que ele escolheu e do enquadramento que lhe deu.
Não existe uma realidade objetiva que deva ser reconhecida nas representações
paisagísticas desse autor. Deve-se reter a atenção na maneira como essa realidade fala aos
sentidos dele e de suas próprias personagens, entrando em harmonia com seus “estados de
alma”. Tal manifestação literária deixa de considerar que os homens, no caso personagens,
são independentes do meio onde se encontram, sendo que “eles podem existir nos meios
geográficos com os quais mantém relações mais complexas do que até então se pensava”
(CLAVAL, 2004, p. 49). O sertão é dentro da gente”, como diz Guimarães Rosa, mas a
gente também “é” dentro do sertão.
A geografia cultural rejeita o dualismo homem/matéria, tornado central com
Descartes. Augustin Berque afirma com vigor que o símbolo, inversamente, anula
materialmente as distâncias” (Apud CLAVAL, 2004, p. 50) entre o ambiente e o homem.
Vale utilizar-se dessa teoria para afirmar que a simbologia presente nas paisagens
azambujianas anula qualquer suspeita de distância entre elas e o drama do texto em si, que
seria impossível explicar as personagens sem entender o meio em que elas vivem.
As leituras sobre a paisagem representada nos contos poderiam ser muitas, incluindo
uma leitura da dimensão morfológica, para falar das formas do campo, suas coxilhas, seus
descampados, suas árvores nativas, mangueiras, galpões, potreiros e assim por diante. Outra
perspectiva seria a dimensão funcional, para estabelecer relações entre esses diversos
elementos que compõem o habitat do homem campeiro, como por exemplo, aramados,
carretas, trem. Uma leitura sobre a dimensão histórica seria inevitável, uma vez que todos os
contos focalizam, inclusive pelos aspectos paisagísticos, um tempo decorrido na Campanha
do Rio Grande do Sul,se tratando da dimensão espacial, o que diz respeito à região em que
se passam as narrativas. Ainda restaria outra, segundo uma abordagem da dimensão
simbólica, na qual se falaria dos elementos que expressam valores, crenças, mitos e utopias.
Entretanto, diante da complexidade e do entrelaçamento de fatores lingüísticos, históricos,
geográficos e antropológicos, e outros, torna-se inviável fragmentar as dimensões
paisagísticas presentes na obra No galpão. Por isso, a interpretação sob uma abordagem
cultural deve ter englobado todas aquelas observadas nos textos e contextos azambujianos
abordados neste estudo.
A linguagem utilizada na composição da paisagem, investida dos sentidos e
significados estabelecidos pelo homem, pela própria paisagem e o que ela representa para a
cultura daquela região, também foi observada na pesquisa. E nesse sentido, vêm à tona as
palavras de Augusto Meyer (1957, p. 7) quando se referia aos termos gauchescos, a vida e a
alma que carregam consigo:
O vocábulo então não é apenas a carniça magra ou polpuda, em que a etimologia
vem dar a sua bicada. Na perna de cada letra estão entecidas sugestões e sugestões
para o leitor fantasista, amigo da pachorra que devaneia e do fumo crioulo bem
palmeado. Enquanto a fumaça escreve no ar a garatuja indecifrável, salta do texto
um termo vivo, que os olhos apalpam e o ouvido reproduz, buscando o seu eco no
poço da memória. (MEYER, 1957)
O vocábulo não está aprisionado, prestando apenas serviços etimológicos, pois na
perna de cada letra encontram-se alusões que servem às degustadas interpretações que podem
remeter a experiências, dando vida àquelas palavras que, somente longe daquele contexto,
poderiam parecer mortas:
Mas olhe, patrãozinho, não se enrede nas quartas [...]. Escute bem o que eu digo.
Tenho corrido muito mundo e aprendido à minha custa. Levei muito pataço da
sorte, por afoito e comprador de paradas. Afrouxava o flete nos lançantes, e quando
via o perigo, bancava nas rédeas, e era uma rodada certa. A gente sempre esquece
que nãocampo, por mais limpo, sem buraco de tuco-tuco. Foi por isso que rodei
muita vez (Dia de chuva).
O trecho acima fala de um lugar em que: acomodar-se é enredar-se nas quartas; a sorte
é uma égua mal domada; correr a cavalo numa descida é afrouxar o flete num lançante; recuar
do perigo é uma rodada certa. Tais expressões querem dizer que por mais calma que pareça a
vida (campo limpo), sempre tem os seus percalços (buraco de tuco-tuco). Para esse homem da
Campanha, a paisagem é a pupila que proporciona a visão do mundo e do comportamento
humano. Todo o seu conhecimento, seu olhar, perpassa alguma dimensão da paisagem,
mesmo que involuntária ou politicamente induzida pelo poder local, do qual é cúmplice.
Como se percebe, os sinais da paisagem representada em todos os contos não são
superficiais e apenas exteriores. Ligam a memória individual do autor à cultura de uma
sociedade, por meio das imagens relacionadas a um tempo e a um conjunto de experiências
acumuladas e carregadas de significados. Estes, construídos num grupo de indivíduos ímpar,
que não só pertencem a uma região, como a constroem, inclusive, em seu imaginário.
Homi Bhabha (2005), afirma que os locais da cultura são os pequenos intervalos de
tempo e espaço de vivência dos grupos. A paisagem representa, além do espaço, o tempo, a
história de um povo. Pode-se dizer que nas representações paisagísticas azambujianas
encontra-se o local da cultura pampeana do Rio Grande do Sul, de uma determinada época.
Nelas, pode-se ler o cruzamento do espaço e do tempo, produzindo “figuras complexas de
diferença e identidade, passado e presente, interior e exterior, inclusão e exclusão” (Ibidem, p.
19). As identidades presentes nos locais das culturas acabam por transformá-las e são
formadas por elas. A paisagem em Darcy Azambuja representa um local de cultura, e, como
tal, influi e é influenciada pelas personagens que atuam nos contos.
Diferentes ciências que estudam o homem, seu comportamento, seu habitat, sua
história, foram utilizados na elaboração deste estudo. Segundo José Clemente Pozenato
(2004), “se um campo de produção de conhecimento em que a troca entre diferentes
disciplinas sempre ocorreu foi nele, o campo dos estudos literários”. A paisagem é um
produto social e por isso fez-se necessário, para análise das representações paisagísticas,
buscar conhecimentos em diversas áreas que tentam explicar o homem, como indivíduo e ser
social, para contribuir na interpretação do texto azambujiano.
Um esforço foi feito para se tentar fazer uma leitura original sobre a paisagem na
literatura. O entrelaçamento e a busca de pontos convergentes sobre paisagem, literatura,
cultura e região proporcionou um olhar interdisciplinar sobre o sentido da paisagem
representada. O levantamento de algumas representações paisagísticas de poetas brasileiros
apontou a importância concedida à natureza representada, que ajudou a constituir a identidade
de um novo país que surgia, no qual os moldes e as perspectivas européias tornavam-se
artificiais e simplórias diante de tanta exuberância natural. São duzentos e vinte anos que
separam o poema de Manuel Botelho de Oliveira, À Ilha da Maré (1705), um dos primeiros
escritos literários sobre a paisagem brasileira, dos contos de Darcy Azambuja, em No galpão
(1925). As peculiaridades estabelecidas pelo primeiro começam a influenciar a criação de um
espaço diferente em relação ao do seu colonizador. Muito tempo depois, o segundo autor,
pisando sobre os alicerces deixados por seus pares, de outros movimentos literários, apresenta
uma nova perspectiva ao representar a paisagem: ela não apenas se constitui pela diferença
em relação à outra, mas o indivíduo que a ela pertence a constitui e é constituído por ela. Com
Azambuja a paisagem passa a ser de alguém e não somente de um território, e, esse alguém se
funde a ela, se nutre dela e pode, inclusive, levá-la dentro de si para outros espaços, assim
como o fez o próprio autor ao publicar No galpão.
Outro que, mais tarde, carregou a sua paisagem e a fez “viajar”, através de seus livros,
por muitos outros territórios, foi Guimarães Rosa. Para Riobaldo o sertão é o mundo, significa
a sua plenitude, foi ali que ele nasceu, lutou, sofreu, amou, desencantou e viveu para contar o
Grande sertão: veredas
25
. Da mesma forma que Chico Pedro, Severo, Tio Laureano, Tia
Silvina, João Silvano, com a alma na paisagem pampeana, contaram os causos dos contos
azambujianos, duas décadas antes de Riobaldo.
O estudo das representações paisagísticas em No galpão pode, talvez, abrir caminhos
para uma visão mais rica e detalhada da paisagem na ficção. Há muitas outras obras literárias
brasileiras que renderiam outras tantas pesquisas paisagísticas.
Por hora cabe dizer, ao parafrasear e ressignificar a epígrafe destas considerações
finais, exercitando o que próprio Borges fazia: que a pesquisa parecia impossível, mas impôs-
se a todos porque substancialmente era certa. Verdadeira a intenção, verdadeiros os esforços,
verdadeiras as dificuldades. eram falsas as obviedades, a superficialidade e um ou dois
pensamentos prontos sobre a paisagem e suas representações.
25
Uma pesquisa sobre as representações paisagísticas do grande romance rosiano, ampliaria os estudos literários
que tanto dedicam a esse autor, mas que muito pouco fizeram nesse sentido. A riqueza paisagística, representada
através dos nomes e descrições de pássaros, plantas, rios, encostas, matos, buritis, animais silvestres, cavalos,
jumentos, bois, entre outros, denunciam a sua importância. E, o elemento humano pertencente a essa paisagem,
as personagens desse sertão mineiro, têm, nesse espaço, a base e o filtro de tudo aquilo que conhecem, sentem,
aprendem e agem. A paisagem, também em Grande sertão: veredas, fala aos sentidos dos homens entrando em
harmonia com suas almas. O rio não é apenas um marco na vida de Riobaldo, ele simboliza a sua própria fonte
de sustentação, uma complexa relação entre o ser desse personagem e a água. Embora seu nome possa
significar um rio baldio, Riobaldo é um rio de águas que correm, que buscam, que estão em constante contato
com a terra, que representam uma fronteira, mas também uma ponte, ligando os dois lados, ou os duplos do
homem: a vida e a morte, deus e o diabo, amor e ódio, a fé e a descrença, enfim, o homem e o homem.
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