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AILTON SIQUEIRA DE SOUSA FONSECA
A ODISSÉIA DE SI:
RECONSTRUÇÃO DO HOMEM
EM CLARICE LISPECTOR
Doutorado
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais (Antropologia) da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
São Paulo
2007
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AILTON SIQUEIRA DE SOUSA FONSECA
A ODISSÉIA DE SI:
RECONSTRUÇÃO DO HOMEM
EM CLARICE LISPECTOR
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo (PUC-SP) como exigência
parcial para a obtenção do título de
Doutor em Ciências Sociais
(Antropologia) sob a Orientação do Prof.
Dr. Edgard de Assis Carvalho.
São Paulo
2007
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BANCA EXAMINADORA
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DEDICATÓRIA
Dedico ao crepúsculo, às estrelas e às noites de lua que enchem minha vida de
encantações.
Dedico aos gnomos, duendes, fadas, elfos, anjos e deuses que habitam o universo ao
meu redor.
Dedico à natureza do campo que está enraizada em mim.
Dedico ao amor que, como o fogo da Fênix, me queima e me faz renascer sempre mais
forte.
Dedico aos meus pais que não somente me colocaram no mundo, mas que me
ensinaram existir como pessoa.
Dedico, ainda, a delicadeza dos gestos humanos que ensurdecem o grito das palavras
vazias de “sentimentações”.
A face do Real está coberta
Com um véu dourado.
Que tu Oh Pushan descubras
Que eu, devoto à verdade, possa ver.
Ishavasya – Upanixade
Há algo de extraordinário no ordinário.
Hsing Yün
Sou muito lateralmente entretontos.
O que desabre o ser é ver e ver-se.
Manoel de Barros
AGRADECIMENTOS
Sempre considerei que o homem cria relações para ser sustentado por elas. Digo isto
porque é assim que me sinto. Sem minha família, amigos, amores e instituições eu não
seria o que hoje sou.
Agradeço
À Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (UERN) por me liberar para cursar o
doutorado e, especialmente, a todos os colegas e amigos de meu Departamento de
Ciências Sociais dessa instituição.
Ao Grupo de Estudos da Complexidade (GRECOM) da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte, grupo no qual as idéias mais profundas são forjadas no calor do afeto,
da compreensão, da amizade e do amor. A esse grupo devo mais do que
agradecimentos.
Ao Núcleo de Estudos da Complexidade (COMPLEXUS) da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo fico extremamente agradecido pelo acolhimento afetuoso, pelo
calor humano e pelos prazeres de aprendizagens plurais.
Ao Grupo de Estudos e Pesquisa sobre Linguagem e Constituição do Sujeito
(SUBJECTUM), pelos diálogos, vivências e descobertas subjetivas que tanto me
ajudaram a ler melhor o livro da vida no qual nos encontramos todos nós.
Ao Grupo de Pesquisa e Estudo sobre Categorias da Narrativa (PUC/SP), que me fez
viajar por leituras fantásticas e discussões fundamentais.
A todos que fazem a Livraria Cortez pelo carinho e amizade.
De forma especial agradeço
A meu pai Aldemiro e a minha mãe Isaura que mesmo sem estudar sempre apostaram
nos meus estudos e me fizeram acreditar que sonhar é a única forma de se alcançar uma
realidade. Agradeço a eles por me terem feito dar os passos que eles não puderam dar
para si mesmos e por acreditarem em mim, por se orgulharem de mim.
A minhas irmãs Íris, Irismar e Iriane que foram mais do que irmãs. Foram luzes que me
fizeram enxergar a esperança quando eu não sabia mais se poderia caminhar.
À Débora Ariane, minha sobrinha, cuja inocência e sorrisos me ensinaram a acreditar
ainda mais no ser humano e a perceber que ainda beleza por trás dos rostos que
perderam a graça de viver.
À Socorro Lemos pelo incentivo e por tudo que aprendi em nossos diálogos.
A Luciano Athayde por se fazer presente cada vez que precisei.
A Zéu Palmeira pelos diálogos filosóficos regados a vinhos, algo que sempre me
inspirou tanto.
A Emanuel e Anadja, amigos de longa data agradeço as palavras simples e fortes,
calorosas e verdadeiras que me fizeram acreditar que era possível ir à frente.
A Edgard de Assis Carvalho que foi mais do que um orientador e sim um amigo,
cúmplice das idéias, homem de inteligência sensível que sabe voar alto e mergulhar
profundamente na vida e nas idéias. Deixo em palavras meu carinho e admiração,
mesmo sabendo que palavras são insuficientes para expressar minha gratidão.
A Fábio Maroja e Carol por saberem demonstrar em gestos e palavras o sentido de uma
amizade verdadeira.
A Luís Guilherme pela escuta sensível, carinho e diálogos tão pertinentes.
A João Bosco pela cumplicidade de idéias e pela mão sempre estendida para a amizade.
A Jorge Lindo, amigo sincero pela ajuda na formatação da tese e pelos diálogos.
A Andrei e a Fernando pela amizade e dedicação na hora de imprimir a tese.
A Ceiça Almeida que desde o mestrado me incentiva a dar um vôo mais alto e mais
profundo, mais longo e desafiador, e, sobretudo, pelas palavras cheias de sabedoria e
afeto.
A Dany Kanaan pelo acolhimento, pela amizade, por ter aberto as portas do coração e
de sua biblioteca para mim, por ter sido e continuar sendo um interlocutor sensível e
profundo, sincero.
A Júlio Ribeiro por ter se tornado um amigo daqueles que fica para o resto da vida.
A Edu Pacetta, um amante da vida e um amigo sincero que, com seu jeito de quem nada
sabe, ensinou-me lições que ficaram tatuadas na alma. Agradeço ainda por ter me feito
voar fora da asa e por ele ser ele mesmo.
Agradeço a todos os amigos que mesmo sem citar seus nomes são extremamente
importantes para mim.
RESUMO
A obra de Clarice Lispector abriga uma complexa cosmovisão de mundo e de homem.
Sua literatura é um mergulho profundo e introspectivo nos mistérios da condição do ser.
Em suas tramas as coisas estão sempre se fazendo. Suas narrativas são erráticas como se
estivessem em busca da origem ou dos princípios das coisas. Nessa busca, a escritora se
depara com a inominável e misteriosa beleza do ser, com a complexa condição humana
que está para além dos rigores disciplinares e racionalizações. Esta tese é uma reflexão
aberta ao outro, ao diálogo sobre a condição humana na obra de Clarice Lispector. Parte
do romance A maçã no escuro porque é nele que, acreditamos, podemos melhor
perceber o homem inaugurando a odisséia de si mesmo. Martim, o protagonista, é esse
homem a partir do qual será possível passear pela obra da escritora e dialogar com
outros personagens criados por ela. Martim é um personagem arquetípico. Esse romance
é considerado, aqui, um romance-núcleo, no qual o sujeito vive o problema
antropológico de se refazer pela raiz, de se tornar o que é. A tese, portanto, está
organizada em torno das experiências de Martim, esse personagem cujas experiências se
apresentam de forma contínua e descontínua.
PALAVRAS-CHAVE:
Clarice Lispector; Condição humana; Literatura; Natureza; Cultura.
ABSTRACT
Clarice Lispector’s works unveil a complex Weltanschauung, both in relation to the
cosmos and man’s condition. Her literature is a bold and introspective plunging into the
mysteries of being. In her plots things are always in the making. Her narratives are
erratic as though the characters were searching the origin or the starting point of things.
In this search, Lispector is faced with the unaccountable and mysterious beauty of
being, with the complex human condition, which is beyond rationalization and
regulating norms. The present thesis is an open reflection, an invitation to a dialogue on
the human condition in Clarice Lispector’s works. It stems from the novel A Maçã no
Escuro, where, we believe, it is possible to notice man start his very own odyssey.
Martim, the protagonist, is the man through whom it will be possible to journey through
Lispector’s work as a whole and to build a dialogue with other characters engendered by
her. Martim is an archetypical character. This novel is here considered as a core-novel,
where the subject experiences the anthropological problem of remaking himself from
his roots, of becoming what he is. Therefore, this thesis has been organized around
Martim’s experiences, presented both in a continuous and in a discontinuous way.
KEYWORDS:
Clarice Lispector; Human Condition; Literature; Nature; Culture.
SUMÁRIO
ABERTURA...................................................................................................................10
DESENRAIZAMENTO................................................................................................22
Natureza...........................................................................................................................23
A fuga..............................................................................................................................27
Persona.............................................................................................................................30
Despersonalização...........................................................................................................36
Plenitude do vazio ...........................................................................................................49
Irmanação do silêncio......................................................................................................54
LUMINESCÊNCIAS ....................................................................................................67
O outro lado da maçã.......................................................................................................68
O gênesis, a maçã, o homem ...........................................................................................74
Encantação.......................................................................................................................83
Caminhando.....................................................................................................................86
Um pássaro no caminho ..................................................................................................93
O retorno..........................................................................................................................97
ENRAIZAMENTO......................................................................................................106
Enraizamento cósmico...................................................................................................107
O corpo..........................................................................................................................113
As pedras .......................................................................................................................123
O sermão........................................................................................................................139
A árvore.........................................................................................................................153
Outra Árvore
...................................................................................................................155
Animalidade...................................................................................................................159
Pequena flor
....................................................................................................................168
ARBORESCÊNCIAS..................................................................................................181
Humildade .....................................................................................................................182
Imitação.........................................................................................................................186
A galinha ..................................................................................................................................
190
A moça
....................................................................................................................................................
195
O trabalho......................................................................................................................202
Escrever.........................................................................................................................213
Verdade inventada.........................................................................................................222
A fome...........................................................................................................................225
BIBLIOGRAFIAS.......................................................................................................234
ABERTURA
Meu caminho é outro, nem mais, nem menos
importante apenas outro caminho,
no qual me movo de forma ... não mais familiar,
mas de um jeito mais faceiro, vagabundo.
Maria da Conceição de Almeida
No tempo, tu palmilhas
por trilhas
que não pode senti-las.
Sousa
No reino do pensamento
a imprudência é um método.
Gaston Bachelard
Falar de Clarice Lispector (1920-1977) e sua obra exige abertura dialogal. Sua
vida e obra ensinam que as palavras mais simples são justamente aquelas que nos
trazem “tempestade de almas”
1
, e que as palavras ditas podem amordaçar uma boca.
Clarice nos ensina que a fala mais humana é uma pergunta que se faz face a face.
Sua obra é uma grande interrogação sobre os mistérios do homem, da vida, do
mundo, da linguagem, da existência. Explicá-la pode empobrecê-la. Defini-la pode
matá-la. Ela mesma refere-se a isso em Água viva quando diz: “Inútil querer me
classificar: eu simplesmente escapulo não deixando, gênero não me pega mais” (1994).
Durante toda sua vida, ela não se associou a nenhum grupo literário e nem definiu seu
estilo ou suas preferências de leituras. Melhor seria não compará-la como o
procurou fazer parte da crítica - a nenhum escritor como Virgínia Woolf, James Joyce,
Katherine Mansfield, pois ela odiava comparações, rótulos, reduções
2
.
Quando ocorre tais comparações a crítica literária se afasta significativamente da
natureza de sua obra. Marina Colasanti observou que os estudiosos de literatura têm
dificuldade em admitir que o trabalho dessa escritora é de dentro para fora e não o
contrário. A própria Clarice costumava afirmar: “Eu coso para dentro”. Para Colasanti,
seu trabalho se dita, se faz. “Os exegetas literários são uma coisa muito complicada
porque procuram os caminhos de ‘fora’ que levariam a escritora às coisas” (Colasanti,
In: OE, p.152).
O conjunto da obra dessa escritora abriga uma inquietante e desafiante
cosmovisão de mundo e de homem. Seus escritos desenham um retrato invisível e
inacabado da unidade do ser diante da diversidade dos seres humanos, porque toca o
tronco comum, a coisa em si, a vida que se faz a si mesma, que se diz sem palavras, mas
que, por um estranho paradoxo, somente a palavra pode fazê-la comunicante. “Eu quero
a coisa em si”, confessa a escritora em entrevista (OE, p, 155).
“A coisa em si” da qual fala Clarice não pode ser traduzida, é indecifrável,
misteriosa. Como escritora, sua estratégia era entender um mistério mergulhando em
outro. Não é exagero dizer que, semelhante a Gaston Bachelard, para Clarice “a melhor
maneira de explicar o extraordinário é acrescentar o extraordinário ao extraordinário”
(Bachelard, 1990: 66).
1
Refiro-me a crônica “Brain Storm” publicada em 22 de novembro de 1969, inserida em A descoberta
do mundo (1999: 244-46).
2
A esse respeito ver: VARIN, Claire. Clarice, olho-de-gato. In: Remate de males: Revista do
Departamento de Teoria Literária. Campinas/SP, n. 9, 1989, p. 55-61.
Para ela, cada pessoa é um mistério e uma pergunta. Cada um de nós se torna a
pergunta que faz a si mesmo. “Eu sou uma pergunta”, afirma ela em crônica escrita em
14 de agosto de 1971 (DM, p. 367-69). Sua vida foi uma grande interrogação, algo que
Teresa Cristina Montero Ferreira perceber em seu estudo “Eu sou uma pergunta: uma
biografia de Clarice Lispector” (1999).
Na cosmovisão clariceana é fundamental o sujeito se questionar, porque isso o
leva a obter o autoconhecimento, por meio do qual ele pode atuar melhor no mundo.
Para Clarice, ninguém pode conhecer a natureza humana, alheia, sem conhecer sua
própria natureza. O autoconhecimento abre caminhos para se alcançar a consciência de
si, do outro e da universalidade que engloba todos os seres; consciência que ultrapassa o
mero conhecimento disciplinar, redutor, fragmentado, dicotômico.
É o homem que está no centro das interrogações clariceanas, esse ser tão
estudado e tão pouco conhecido que a escritora, por meio da escrita, o obriga a se
reconstruir para reencontrar em si mesmo “o humano do homem”, o coração que, com
dor e sofrimento, se aprofunda em si próprio: o ser dentro do ser.
O grande tema da literatura clariceana não é o indivíduo que se aventura na
conquista do mundo exterior, societário, mas a aventura do homem que explora
abismos, crateras, paisagens e territórios de sua própria alma. Nessa literatura, as coisas
acontecem de dentro para fora, se fazem do interior para o exterior. É por isso que o
homem precisa se enovelar consigo mesmo para redescobrir em si os contornos do
universo e os abismos da existência.
Clarice não considerava a literatura como um passatempo, nem uma evasão, mas
como uma maneira talvez a mais completa e profunda de examinar o drama da
condição humana em sua complexidade. O objetivo maior da literatura é o de interrogar
de forma profunda e universalista o destino do homem no universo. Sua obra traz uma
profunda e complexa interrogação sobre o ser, o saber, a vida e a morte, a solidão e o
amor. Poderia ser compreendida como um mergulho introspectivo no ser e como uma
tentativa de reencontrar, nele, os fundamentos perdidos ou esquecidos da humanização
do homem.
Essa escritora queria tocar os mistérios, sentimentos, sensações, intuições. Em
outras palavras, ela queria atingir a intimidade mais profunda de um ser humano. Mas
para tanto, sabia que era preciso saber usar a arte da palavra e as artimanhas da escrita
para escavar intimidades, porque sentimentos, sensações, emoções e desejos não deixam
fósseis e quase sempre apagam seus rastros. Quando a intimidade humana vai longe,
seus últimos passos se confundem com os primeiros passos do que chamamos Deus:
o desconhecido, a totalidade.
Clarice sabia escavar intimidades para tocar na “coisa”, no “it”, ou seja, na coisa
impessoal, no segredo que nunca se revela por completo. Repetia constantemente que
escrever é tantas vezes lembrar do que nunca existiu e conhecer o que não se sabia. Ela
via na literatura e na escrita uma forma de tocar na gênese do ser humano. Seu desejo de
compreender o enraizamento e a origem do homem era muito forte, pois sabia que a
nascente do homem é obscura e seu passado mais remoto é incompreensível.
“A obsessão de minha obra diz respeito a condição humana”. Esse pensamento
de Edgar Morin (2002a:19) expressa bem a obsessão cognitiva de Clarice Lispector.
Para ela, o problema do humano não é apenas de conhecimento, mas de
autoconhecimento, enraizamento e destino, origem e humanidade.
A escritora desenvolve uma escritura que, num jogo estético, une razão e
sensibilidade, intuição e inteligência, racionalidade e paixão. Seu desejo era tocar a
essência da vida e religá-la à essência do universo. Para ela, era inconcebível o mundo e
o universo sem o homem que lhes desse sentido, voz, contornos. “O que seria do
mundo, do cosmo, se o homem não existisse” (OED, p. 119). Era isso que Clarice, em A
paixão segundo G.H. (p. 71), denominou de “sentimentação do mundo”, neologismo
permitido pela licença poética que o escritor tem, termo criado por ela para designar o
sentido que o homem dá ao mundo e a vida.
Em sua concepção, coisas que nos antecedem e que nos sucedem, coisas
sobre as quais nem sempre podemos dizer tudo. Ela incorporou isso em seus textos. O
que são “inícios inacabados” (L, p. 49) e finais sem fim, inconclusos. Talvez a
escritora soubesse que de algumas histórias nunca saberemos nem o começo nem o fim,
e, quanto ao que falamos, “a primeira palavra jamais é nossa”
3
e a última não nos
pertence.
Semelhante às suas pequenas histórias de infância, seus contos e romances não
têm início nem fim, nem abertura, nem fechamento. Sem um enredo bem definido, eles
fogem aos cânones tradicionais. Sem início, meio e fim, suas tramas enovelam o leitor e
o arrastam para as profundezas do ser e das palavras, conduzindo-o a mergulhos naquilo
que ela denominou de “instantes-já” da existência humana. São tramas erráticas, textos
em tecimentos; a redação está sempre se fazendo, como se a coisa estivesse acontecendo
3
Cf. RICOEUR, Paul. O singular e o único. São Paulo: UNESP, 2002, p. 67.
naquele “instante-já”, “ali-mesmo”. “Todas as palavras escritas resumem-se em um
estado sempre atual que eu chamo de ‘estou sendo’(SV, p. 75) Algumas começam
sem começo: iniciam-se com vírgula, com três pontos ou travessões. A primeira linha,
que deveria ser o início da história, aparece como continuidade de algo anterior
indizível, como vemos em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres, de 1969, e em A
paixão segundo G.H., de 1964. Outras narrativas começam mostrando a trama dos
acontecimentos pelo meio. Talvez isso seja influência das histórias sem fim que a
escritora ouviu na infância, o que a levou a pensar que “nada começou e nada
terminará” (In: Borelli, 1981: 17).
Quando uma história não tem começo nem fim, qualquer outra história pode vir
a ser seu complemento, a se juntar à história existente. Ao ler o conjunto da obra de
Clarice Lispector, a impressão que se tem é que cada um de seus livros é apenas mais
uma página de um enredo maior, um fragmento de uma mesma história sem fim. Tudo
se passa como se ela tivesse escrito apenas uma única narrativa que se ramificou em
várias outras, em vários livros, ou como se tivesse escrito apenas um livro com
diferentes narrativas sobre o mesmo ser.
As narrativas dessa escritora transmitem o caráter inacabado do mundo, da vida,
do homem. Elas exigem um leitor especial, alguém cujo pensamento não seja linear,
reducionista que a leia de forma quase telepática, como ela mesma sugeriu. A totalidade
de sua produção cognitiva deve ser entendida pelo envolvimento afetivo, pelo sentir,
pelo que a escritora chama de “pensar” que quer dizer ‘sonhar palavras’ (In: Borelli,
1981: 78). A leitura puramente lógica, racional, analítica de sua obra se tornaria
reducionista e simplificadora. A forma de compreendê-la é por meio do contato
intuitivo, sensitivo, direto e silencioso com suas palavras.
Clarice sempre privilegiou a intuição e adotou em sua escrita um método de
conhecimento que denominava de telepático. Dez meses antes de sua morte - que
ocorreu em dezembro de 1977 - em entrevista dada à TV Cultura, afirma que entendê-la
não é uma questão de inteligência e sim de senti-la, de entrar em comunhão com o que
ela fala: “Ou toca ou não toca (...) Suponho que me entender não é uma questão de
inteligência e sim de sentir, de entrar em contato...”.
Sutilmente, o que ela faz é uma grande crítica à racionalização e não
necessariamente à racionalidade do pensamento. A racionalização integra à força o real
na lógica do sistema e crê então possuí-lo. A racionalidade está aberta ao que resiste à
lógica e mantém o diálogo com o real (Morin, 1998: 171). Sua obra está mais próxima
da racionalidade do que da racionalização, pois a racionalidade é aberta e dialógica, é
capaz de reconhecer o coração que pulsa em cada pensamento.
Uma das marcas da obra clariceana está na condição singular de seus
personagens: a partir de algumas experiências aparentemente banais e cotidianas, eles se
despojam, inesperadamente, do conhecimento que têm para construir o conhecimento de
si. Descortinam-se e voltam a estados de ser crianças para experimentarem a vida como
quem pela primeira vez o nascer do Sol. Tornam-se estreantes no cenário-mundo,
sujeitos que experimentam o mundo como Adão e Eva nos instantes iniciais da vida
humana.
Seus personagens passam pelas experiências da vida/morte/vida, da consciência
e do amor; renascem, simultaneamente, em si e para si. Quem não passa por tais
experiências não pode se permitir ao novo e ao desconhecido, não pode se abrir a Deus,
ao amor, ao outro e ao mundo. “Quem nunca passou por tais experiências é apenas um
animal humano, não um ser humano” (Campbell, 2004: 27). Com esse recurso - próprio
da ficção - a escritora se aproxima da matéria bruta do real, o substrato que faz nascer o
pensamento, a vida, o sopro; lugar de onde vem a consciência e o amor.
Depois de ler, fichar, resumir, escrever, discutir, pesquisar e percorrer toda a
obra de Clarice Lispector, percebi que em sua ficção o homem é um ser inacabado, ser
nascido e em continua gestação. Percebi também que A maçã no escuro, de 1961, é o
livro, o romance, mais emblemático a esse respeito. Do conjunto de sua obra, Clarice
tinha uma preferência especial por esse romance com o qual foi laureada com o Prêmio
Graça Aranha.
A maçã no escuro foi a obra que mais lhe exigiu esforços cognitivos e a que
mais lhe impressionou. Na versão manuscrita trazia um “tom conceituoso” e até um
prefácio que foi posteriormente retirado por sugestões de Fernando Sabino
4
. “Foi o
único [livro] bem estruturado que eu escrevi, eu acho”, disse Clarice (OE, 150). Em
carta de 21 de setembro de 1956, destinada a Sabino, seu amigo sincero, Clarice
confessa: “Foi um livro fascinante de escrever, aprendi muito com ele, me espantei com
as surpresas que ele me deu mas foi também um grande sofrimento” (Sabino;
Lispector, 2001: 140).
4
Parte do “prefácio” retirado do livro está nas “notas de leituras dos originais remetidas em setembro,
1956à Clarice por Fernando Sabino. In: SABINO, Fernando; LISPECTOR, Clarice. Cartas perto do
coração. Rio de Janeiro: Record, 2001, p. 138 e 150-178.
Foi um livro escrito com prazer e senso de descoberta, uma narrativa ficcional
na qual o protagonista regride até a era terciária, a um estágio anterior ao surgimento da
palavra. Foi um romance escrito como quem faz escavação arqueológica: paciente,
profundamente, delicadamente. Escavando, escrevendo e, ao mesmo tempo,
aproximando-se da “coisa”, entendendo-a. “Todas as manhãs eu datilografava, chegava
a 500 páginas. Eu copiei onze vezes para saber o que é que estava querendo dizer,
porque eu quero dizer uma coisa e não sei ainda bem ao certo. Copiando eu vou me
entendendo” (OE, p. 157).
Esse romance passou onze anos para ser publicado, mas durante esse tempo a
escritora ainda redigiu “O mistério do coelho pensante”, (infantil) (1967) e os contos
que compõem “Laços de família” de 1960. “Escrevia! Escrevia, atendia o telefone, no
meio das crianças gritando, o cachorro saindo, entrando... A maçã... foi isso” (OE, p.
161).
Como o restante de sua obra, A maçã no escuro exige um leitor intuitivo,
sensitivo e imaginativo. Como percebeu Olga de Sá, esse romance aspira a um leitor de
fruição que o leia, sem pressa, pois o que chega à linguagem não chega ao discurso. Um
leitor dotado de uma disponibilidade temporal outra, capaz de recuperar “o ócio das
antigas leituras” (Sá, 2004:69). Alguém que escute o apelo ancestral, que sonhe com as
palavras, sinta-se tocado pela coisa; alguém capaz de fazer parte da fábula e viver o
tempo místico em que as coisas acontecem; um leitor que acompanhe a trajetória do
personagem, a respiração do homem “se fazendo”, que, semelhante a “um macaco, seus
pulos de fugitivo repercutem macios sobre a relva do jardim” (SÁ, 2004: 70).
Na concepção de Sá esse romance pode ser visto como uma grande parábola do
Gênesis. Parábola que, segundo Fernando G. Reis, “busca a curva do Homem-total. (...)
Martim quer se recuperar como humano ao se identificar com a pedra, a planta, o
pássaro, a vaca – ele não está fugindo de sua condição” (Reis, 1968:228).
Romance pouco estudado, A maçã no escuro merece um estudo mais atento,
profundo e complexo. Como percebeu Affonso Romano de Sant’anna, A maçã no
escuro é uma grande parábola do indivíduo em busca da consciência e de sua
linguagem, de um indivíduo “se fazendo”, esclarece a própria Clarice. “Tanto que a
primeira parte se chama ‘Como nasce o mundo’
5
. A segunda é O nascimento do
5
Na verdade, a primeira parte do romance não se chama “como nasce o mundo” e sim “como nasce o
homem”.
herói’, porque era homem e queria ser herói. E a terceira é ‘A maçã no escuro’” (OE,
p. 151).
Este “se fazendo” é esclarecedor e deve ser bem compreendido, pois indica a
imagem que a escritora possuía do homem e a que queria transmitir sobre o
personagem, Martim. Indica “processo”, temporalidade presente, o instante-já em que a
coisa está sendo criada, acontecendo, “movimento”, “inacabamento”; expressa a
condição do homem que está se auto-organizando por dentro, mas a partir da dialogia
com o exterior, com o meio, seu mundo circundante. Com dor, alheamento e descoberta,
Martim vai, a cada passo, jogando no chão a pele velha e parindo o eu profundo dele
mesmo. O personagem vai se fazendo, mesmo sem modelos. Com susto, prazer e
surpresas, ele vai se descobrindo.
Para Benedito Nunes, todos os temas gerais de ordem filosófica e religiosa
contidos no conjunto da obra de Clarice Lispector perpassam o longo e complexo
romance A maçã no escuro: liberdade e ação, bem e mal, conhecimento e vida, intuição
e pensamento, cotidiano e “coisa”. São eles que dão ao romance uma latitude
metafísico-religiosa, temas que podem ser resumidos num problema: o do ser e o do
dizer (Nunes, 1976:57). Para alguns críticos, A maçã no escuro é marcante no itinerário
da escritora. Ele define o que ela vinha escrevendo e delineia o que futuramente iria
escrever.
A maçã no escuro é um “romance-núcleo”, como assim o chama Sá (2000), livro
que pode perfeitamente ser visto de modo hologramático, uma narrativa que dialoga
com todos os outros livros e escritos da autora. É nele que melhor percebemos o homem
inaugurando a odisséia de si mesmo no mundo. Esse é um livro cuja narrativa mito-
lógica e mito-poética trata da complexidade da condição humana, podendo ser visto
como uma crítica ao racionalismo e à técnica que ameaçam o humano do homem.
Nesta tese, minha intenção é empreender uma leitura transdisciplinar e complexa
da condição humana na obra de Clarice Lispector. Para isso, não elejo todos os
personagens de seus romances e contos para, a partir deles, tentar compreender ou
vislumbrar a condição humana. Coloco-me aqui um desafio maior: falar de um
personagem e nele vislumbrar o indivíduo, a sociedade e a espécie, a unidade e a
multiplicidade da natureza humana. Martim é esse personagem o qual, por vezes, a
narradora contenta-se em chamá-lo de “o Homem” - com letra maiúscula para indicar o
caráter genérico que assume.
Os grandes personagens criados por Clarice Lispector são quase sempre
mulheres: Ana, Ofélia, Virgínia, Lucrécia, Sofia, Laura, Joana, G.H., Lori, Sra. Xavier,
Dona Maria Rita Alvarenga, Ângela, Ângela Pralini... Em A maçã no escuro, Martim é
o Homem naquilo que a espécie tem, também, de mulher (Reis, 1968: 228-9). É um ser
arquetípico, símbolo macho/fêmea, claro/escuro, transgressor/reconciliador; um ele-ela,
um ela-ele que se apresenta também nos contos da coletânea Onde estivestes de noite,
de 1974.
Todos os personagens de Clarice são ramificações, expressões ou facetas de um
mesmo ser. Martim seria, assim, um “homem genérico”, que, na concepção de Morin, é
o ser que sintetiza e vive, ao mesmo tempo, na natureza e na cultura, na sua
singularidade e na universalidade do mundo, ser único e múltiplo, tão antigo quanto
moderno. Martim não é o nome de um homem, nem somente um personagem. É o nome
que, na escritura de Clarice, assumiu a natureza humana, natureza que se multiplica em
experiências e outros personagens, em vozes e silêncios. Para entendê-lo senti
necessidade de fazê-lo dialogar com outros personagens clariceanos, segui aquilo que o
poeta Roberto Juarroz disse, ou seja, que para entender bem o que diz uma voz temos
que ouvir todas as outras (2000). Essa máxima poética tornou-se um guia metodológico
para eu escutar múltiplas vozes que ecoam em A maçã no escuro, múltiplas sonoridades
que saem das profundezas da mesma alma humana.
Ao procurar o homem dentro do homem, Clarice reinventa-o. Ao buscá-lo, o
cria. A condição inicial de partida é a mesma de volta ao começo porque o caminho
para um fim exige muitos recomeços. Martim é o “protótipo”, homem adâmico.
Criado e inacabado, ele pretende ser o criador de si mesmo, quer e precisa
inventar, mesmo com dor, solidão e perda, um sentido maior para sua existência, um
outro sopro de vida. Desce a eras ancestrais, a existência imemorial do Ser sem nome,
anterior a cultura, a sociedade e ao pensamento racional para se reconstruir.
Com essa tese não pretendo decifrar enigmas. Quero aprender com eles. Não
vou fazer exegeses, nem revelar os mistérios do homem, mas apenas dialogar com os
mistérios que o constituem. Minha postura não será a de dar respostas, mas a de sonhar
com aquilo que as palavras dizem, porque o sonho é uma maneira de se alcançar a
realidade, como pensava a escritora. Não se trata de abandonar as teorias e os
comentadores, mas de ficar atento porque as palavras ditas podem amordaçar uma
boca, desviar uma mente, moldar uma visão e descaracterizar a originalidade do
“objeto” que se tem como alvo de reflexão.
“Arrumar é achar a melhor forma” (PSGH, p. 33). Encontrar a melhor forma é
questão de método.
Não usei nenhuma “metodologia” que aprisionasse numa camisa de força a
condição humana. Recorri ao método por entendê-lo como uma estratégia capaz de
captar as ambigüidades, ambivalências, incertezas e contradições próprias do ser
humano. Morin estabeleceu uma pertinente diferenciação entre metodologia e método.
Para ele, as metodologias são guias a priori que programam as pesquisas, enquanto que
o método derivado do nosso percurso será uma ajuda à estratégia (1999: 39). Como
estratégia, o método ajuda a pensar a complexidade das coisas, do ser-no-mundo.
Olhei para obra dessa escritora e para o homem, Martim, a partir de algumas
lentes que me permitiram dialogar com o personagem e comigo mesmo, com a obra e
com a vida da escritora. Minha leitura sobre a condição humana na obra de Clarice foi
iluminada pelos princípios do pensamento complexo dos quais fala Edgar Morin: os
princípios dialógico, recursivo e hologramático
6
.
A reconstrução de Martim é uma tentativa de enraizamento e abertura.
Enraizamento em sua história, na natureza, na animalidade e no cosmo. Abertura para a
vida, para o incerto e o infinito, pois sem abertura o homem não pode receber a graça
divina, as surpresas do mundo e ser habitado pelo outro. Sua reconstrução começa pela
desconstrução de uma forma de ser, viver, falar, sentir, pensar, fazer. O personagem
passa pelo necessário despojamento de sua antiga vida. Vive as experiências da
despersonalização e do vazio, a perda da linguagem e da identidade, experiências que na
primeira parte da tese denomino Desenraizamentos.
A segunda parte intitulei de Luminescências. As temáticas que compõem essa
parte servem para esclarecer aspectos da obra e das experiências do personagem tratadas
anteriormente. Servem também para iluminar as partes seguintes.
Após passar pelas experiências de “desmontagem humana” ou de
desenraizamentos, ele tenta reconstruir-se e isso o põe em contato com as raízes do
mundo, da vida e dele mesmo; tenta refazer-se buscando enraizar-se na Natureza, no
cosmo, na vida e nele mesmo. Essas experiências constituem a segunda parte da tese
denominada de Enraizamentos. Nela, percebe-se que Martim precisa encontrar seus
fundamentos perdidos para poder refazer-se e, desse modo, sentir as bases primordiais
6
Edgar Morin faz uso desses princípios nos seis volumes de O método, assim como no conjunto de sua
obra. A dialógica rejunta o que está separado, a recursividade introduz um circuito entre causa-efeito,
da sua subjetividade e existência espiritual. Essas “sentimentações” encontram-se na
terceira parte da tese intitulada Arborescências. Aqui Martim se é uma pessoa e quer
se tornar herói, um homem que se pergunta “o que é que um homem faz”, pois, agora, é
possuído pelo desejo de reconstruir o mundo a partir dele mesmo.
Em A maçã no escuro, as experiências de seu protagonista são, ao mesmo
tempo, continuas e descontinuas. As três partes que formam esta tese foram organizadas
a partir das experiências de Martim. Os textos que formam cada parte da tese também se
apresentam assim: autônomos e dependentes uns dos outros, contínuos e descontínuos,
não obedecem a uma seqüenciação linear. Portanto, devem ser vistos como iluminações
sobre as experiências do personagem, esclarecimentos necessários que permitam ao
leitor seguir seus passos e dialogar com os mistérios do ser.
Minha estratégia de escritura levou em consideração a relação entre as partes e o
todo, entendendo-as como unidade indissolúvel. Algumas das idéias ou determinadas
passagens, podem se repetir em outro lugar ao longo da tese. Reorganizadas e
recontextualizadas, essas idéias ou passagens ganham um novo sentido, permitem a
interpretação se ampliar e avançar. Era isso que Clarice tantas vezes chamou de
“repetição criadora”.
Essa estratégia ou forma de arrumar permitiu a mim deixar as vivencias de
Martim como elas são: inacabados, indecifráveis, pois suas experiências não se esgotam
em uma interpretação.
Ler a totalidade de sua obra e, principalmente, A maçã no escuro, é como
acompanhar a respiração de um homem que acaba de acordar de um sono profundo num
jardim sem lua, homem que desperta estupefato consigo mesmo, com a complexidade
de sua condição e com o esplendor do mundo.
O leitor desse longo e denso romance além de se deparar com a complexidade da
obra e do personagem é obrigado a se olhar no espelho e reafirmar as palavras da
própria Clarice em entrevista: “eu sou Martim”.
Ao percorrer a obra de Clarice Lispector, percebi que em seus escritos são
tecidos por quatro fios do conhecimento que se misturam de forma indivisível: um
religioso/místico, um mítico, outro científico e outro poético. Na tese esses quatro fios
também se fazem presentes na forma como interpreto a condição do homem.
efeito-causa e, finalmente, o hologramático assume a indissociabilidade entre parte e todo. Esses três
princípios são inseparáveis.
Por meio de sua obra, Clarice nos diz que a verdade mais sincera é sempre
inventada e que uma interrogação sempre chama outra. Na sombra de uma pergunta
dorme uma outra pergunta. No abismo de um mistério reside um outro mistério: o
homem. Esta tese não possui conclusão, porque quem se dispõe a interpretar ou dialogar
com os mistérios da condição humana deve ter consciência de que a primeira palavra
nunca é sua e que a última não lhe pertence.
ESCLARECIMENTO:
As ao longo dessa tese as obras da autora Clarice Lispector estão sendo referenciadas
por suas respectivas abreviaturas:
MS - A maçã no escuro (romance). Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
AV - Água viva (ficção). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
PSGH - A paixão segundo G. H. (romance). Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
SV - Um sopro de vida: pulsações (romance). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
DM - A descoberta do mundo (crônicas). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
OEN - Onde estivestes de noite (contos). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
QV - Quase de verdade (infantil). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
MCP - O mistério do coelho pensante (infantil). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
VIL - A vida íntima de Laura (infantil). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
PNE – Para não esquecer (crônicas). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
LF – Laços de família (Contos). Rio de Janeiro; Rocco, 1998.
OE – Outros escritos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
HE – A hora da estrela (romance). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
VCC – A via crucis do corpo (contos). Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
BF – A bela e a fera (contos). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
PCS – Perto do coração selvagem (romance). Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
ALP Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (romance). Rio de Janeiro: Rocco,
1998.
L – O Lustre. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1996.
CNE Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras. (infantil). Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
CI – De corpo inteiro. (entrevistas). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
CF – Correio feminino. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
DESENRAIZAMENTOS
Assim é que elas foram
feitas (todas as coisas) –
Sem nome.
Manoel de Barros
Se o corpo, a fala e a mente
forem exercitados em conjunto,
os três estarão unidos no coração.
Conto Ch’an
NATUREZA
A maçã no escuro “começa numa noite de março tão escura quanto é a noite
enquanto se dorme”
7
(ME, p.13)
8
. Com a lua altíssima à passear pelo céu, Martim, o
protagonista, poderia contemplar melhor o brilho das estrelas se acordado estivesse.
Tendo a abóbada celeste como teto e a Natureza como leito, refazia-se entre o céu e a
terra. Dormia profundamente e seus sonhos ficavam dentro da noite. Quando se dorme
se escuta as vozes de seus próprios sonhos. Ele estava em contato com seu eu mais
profundo, com seus sonhos “dentro dos grandes sonhos da noite” (AV, p. 23). Nesse
estado, o homem estava em sua casa, cujo piso é firme (o chão) e o teto móvel (as
nuvens). Como salientou Sylvie Vauclair em A sinfonia das estrelas: “Quando se tem o
céu por teto, vive-se em simbiose com a natureza. Dormem, e sonham sonhos de todas
as cores” (Vauclair, 2002:19, sic). Entre o céu e a terra, em simbiose com a Natureza,
nada o diferencia do lento “jardim sem lua”.
Martim parece estar dormindo num jardim do Éden recriado especificamente
para ele. Seu sono transcorre num lugar onde o tempo decorre tranqüilo e a lua sem
brilho passeia altíssima no céu antes de desaparecer por completo. Um jardim onde
Algumas árvores haviam ali crescido com enraizado vagar até atingir o alto das
próprias copas e o limite de seu destino. Outras haviam saído da terra em
bruscos tufos. Os canteiros tinham uma ordem que procurava concentradamente
servir a uma simetria. Se esta era discernível do alto da sacada do grande hotel,
uma pessoa estando ao nível dos canteiros não descobria essa ordem; entre os
canteiros o caminho se pormenorizava em pequenas pedras talhadas (ME, p.
13).
Dormindo profundamente, Martim não é mais do que “uma árvore de pé” ou o
“pulo do sapo no escuro”, um vir a ser. Ele inspira e suspira em comunhão com a
matéria viva primordial.
A imagem da Lua é recorrente nas narrativas de Clarice Lispector. A Lua
ilumina as paisagens de A cidade sitiada e a escritura de Água viva, paira sobre Um
sopro de vida, reluz em Laços de família e brilha alta em A maçã no escuro. A Lua tem
7
Esse registro temporal pouco importa, porque o mais importante é o tempo interior no qual se passa a
narrativa.
8
Ao longo desse trabalho, as obras de Clarice Lispector estarão sendo indicadas por siglas conforme o
esclarecimento que segue a introdução dessa tese.
um significado importante para a compreensão das narrativas clariceanas. Por um lado,
mostra a ligação do ser humano com os astros e, por outro, está associada à natureza dos
personagens ou às situações vivenciadas por eles. Como observou Campbell, a lua
apresenta uma alternância contínua entre as fases cheia e nova. “Nós a vemos, todo mês,
ao longo de sua fase crescente até se tornar Lua Cheia quando, então, distribui seu
néctar da imortalidade à Terra e em seguida se enche novamente” (Campbell, 2006: 42).
Passa por diversas fases, renova-se, morre para renascer sempre brilhante, cheia e nova.
É a esfera celeste que representa, assim, a morte e o recomeço. É “o princípio que
representa o poder da vida vencendo a morte” (Campbell, 2006: 39). De maneira
análoga ao que ocorre com a lua e suas fases, os personagens clariceanos passam por
diversas fases da vida, vivenciam as mortes necessárias ao ressurgimento de outras fases
existenciais. Portanto, a mudança de vida não é somente um dos temas importantes na
mitologia, mas na literatura dessa escritora.
Campbell tem razão ao dizer que o Sol e a Lua ocupam um lugar especial na
mitologia de alguns povos antigos que associavam esses astros a reinos espirituais
(Campbell, 2006: 22). A lua que surge na abertura de A maçã no escuro tem um
significado importante: indica o estado do ser, de Martim.
O texto se inicia pelo começo de todo ser: a fase de gestação e de nascimento.
Assim como o nascimento precede a gestação e esta precede o ato sexual, a construção
de Martim exige um retorno ao antes dele, ao princípio primordial que permite o
nascimento do ser e a existência do universo:
Daquilo que se cumpre nós nascemos (...) nessa terra onde há mar e espuma, e
fogo e fumaça, existe uma lei que é antes da lei e ainda antes da lei, e que
forma à forma à forma (OE, p. 67).
Nessa fase inicial da narrativa, Martim está “antes da lei”, “antes da forma”,
“atrás do que fica atrás do pensamento”. Suas raízes estão fincadas na origem do
universo, pois ele sabe que “o mundo nos antecedia a cada passo (ME, p. 43). O
narrador poderia ter começado o romance com as palavras que abrem a crônica “A
descoberta do mundo”: “O que eu quero contar é tão delicado quanto a própria vida”
(DM, p. 113).
Martim respira como uma criança quando ainda está no escuro, no úmido e
aconchegante útero materno. Ele está se refazendo calado e sozinho porque a gestação
de um homem é sempre lenta, secreta, silenciosa. Em sua origem reside a dimensão que
nenhuma fórmula científica pode alcançar e nenhuma teoria pode decifrar; o mistério é
a raiz de sua constituição, matéria de fascínio de Clarice Lispector. Nutrindo-se onde
impera a generalidade das coisas, ele sente dentro de si a sua vida se “alargar” e tem a
sensação de estar crescendo como homem, sensação semelhante a que invadiu a
protagonista do conto “A fuga”, mulher que depois de doze anos de casamento foge e
“depois qualquer coisa dentro dela começou a crescer” (BF, p. 79).
Na cosmovisão de Clarice, a expressão “alargar” está num contexto muito
singular. A largueza de uma vida está em seu interior, na subjetividade do ser:
quase todas as vidas são pequenas. O que alarga uma vida é a vida interior, são
os pensamentos, são as sensações, são as esperanças inúteis (...) O que alarga a
vida de uma pessoa são os sonhos impossíveis. Os desejos irrealizáveis
(Lispector apud Borelli, 1981: 21).
As expressões “alargar” e “crescer” têm o significado de aprofundamento em si
mesmo e enriquecimento subjetivo do sujeito, pois quem desce às suas raízes ancestrais
enriquece sua condição e se redescobre como ser, amplia sua existência e se abre ao
mundo. O homem manifesta sua natureza unidual: um ser de enraizamento e de
abertura.
Nos primeiros capítulos da narrativa, Martim está dissolvido na Natureza. Ele é
o marco inicial de si mesmo e de sua história, elo primeiro de uma corrente de relações,
marco fundante da sociedade.
Ao atingir o cleo da matéria bruta, Martim torna-se o coração selvagem da
Natureza, alcança o natural ancestral. Está afastado de qualquer sistema de lógica, pois
está “lidando com a matéria-prima” (AV, p. 12). Inútil querer classificá-lo em qualquer
categoria de análise ou de gênero masculino ou feminino. Atingiu o estado que Clarice
denominou de “primitividade” e “pureza”, pois, para ela, “O que é primitivo é pureza. O
que é espontâneo é pureza” (DM, p.82)
9
. Ele está no núcleo originário, na “coisa das
coisas”, como afirma Benedito Nunes, ou seja,
a coisa das coisas é uma espécie de vis ativa, misto de pneuma sopro sico
atuante e de existência em ato, contingente injustificável, absurda, diante da
9
Na Antropologia, o termo “primitivo” tem gerado muitas discussões, visões relativistas e
preconceituosas. Clarice empregou diversas vezes esse termo, mas em sentido muito singular. Em Água
viva, ela esclarece, rapidamente, o que entende por “primitivo”. “Uma pessoa primitiva” é aquela “que se
entrega toda ao mundo” (p. 13), aquela que não separa as coisas, aquela cuja mente não opera na gica
binária.
qual se extasia a consciência nauseada. Todas as coisas do mundo resumem-se
num só núcleo, neutro, inexpressivo (Nunes, 1976: 127).
Martim vive o lado sensível da concretude do mundo. Para chegar a esse ponto
ele passou por uma verdadeira metamorfose, jogou no chão sua antiga pele existencial:
enfrentou a despersonalização para redescobrir em si o humano do humano.
Nesse estado cósmico no qual se encontra, Martim está desprovido de sua
persona e vive as experiências profundas do vazio e do silêncio como regeneradoras de
sua condição de ser-no-mundo.
A FUGA
Na certa, cada um tem seu próprio caminho a percorrer interminavelmente,
fazendo isso parte do seu destino (OEN, p. 11). Em A maçã no escuro, Martim tem um
longo caminho a percorrer, tem o destino em suas mãos mesmo que este seja incerto,
algo a se fazer a cada instante, um vir a ser.
A natureza cria o homem, mas é o tempo, as experiências e o destino que o
amadurecem. O romance começa com Martim dormindo no seio da natureza. Esse sono
representa uma fuga da realidade em que vivia. Ao contrário da personagem Lucrécia
que sai do campo para morar na cidade São Geraldo, Martim foge da cidade e retornar à
natureza. Diferentemente de Lucrécia, ele não quer somente entender o que se passa
consigo e o que ocorre no lugar onde ele está, naquele momento. Martim quer
redescobrir-se na aurora do mundo. Semelhante a personagem G.H., ele deseja
compreender sua trajetória não a partir de um ontem que se pode esquecer e desdenhar,
mas a partir de um princípio que se tem que recordar.
Martim acredita ter matado sua esposa e foge desesperadamente. Diversas vezes,
sua fuga parece mais uma caminhada. Ele foge para esquecer seu passado criminoso,
mas nessa caminhada fugitiva, ele vai, pouco a pouco, lembrando do que é essencial em
sua vida, aproxima-se de sua condição. Sua vida existencial vai se aproximando, cada
vez mais, de sua vida essencial que muito havia esquecido. Sua fuga é mesclada
por esquecimentos e rememorizações, por despojamento e por novos laços com o
mundo. Como ressaltou Castellanos, sua caminhada começa na pré-história e atravessa
desertos, carece de orientação e se extravia, regressa e volta a se extraviar (Castellanos,
1987: 7) até tocar a memória ancestral da vida e da espécie e daí se descortinar como
homem.
A trajetória de Martim parece ser tão complexa como a própria história da
hominização no planeta. As três partes que formam o romance parecem corresponder a
etapas do processo de hominização do sapiens sapiens, seu enraizamento e abertura ao
mundo. É o professor que aparece nesse romance quem diz algo a respeito. Pessoa culta,
espírita e emotiva, o professor dizia - como a própria Clarice - que “tudo o que é
humano me interessa” (ME, p. 214). Para uma melhor compreensão, em conversa, ele
sugere que o caminho da humanidade deveria ser dividido etapas:
Dividindo o caminho da humanidade em etapas, podemos chegar à conclusão
de que estamos hoje na etapa da perplexidade. Diríamos que o homem moderno
é um homem que não encontra mais ligação na perene ligação dos antigos (ME,
p. 213).
As três partes que formam esse romance podem ser vistas como as etapas da
construção e trajetória do homem ou da humanidade.
Como observou Berta Waldman, esse romance apresenta um trabalho de
construção: ele deve dar forma e vida a um homem a partir de uma perda originária da
forma e da linguagem humanas (1997: 10).
Após acreditar ter matado sua mulher, o protagonista rompe com a sociedade.
Para Martim esse desligamento assinala o começo da experiência que deverá levá-lo ao
fundo de si mesmo. Rompendo com a sociedade e com os laços de família, ele rompe
com o mundo das palavras (Nunes, 1976: 134). Sua fuga do mundo societário é também
uma fuga da linguagem dos outros, pois é nessa linguagem que se encontra a palavra
“crime”, palavra que o classifica e o condena. Martim foge das palavras ditas, pois
estas podem amordaçar sua boca, calar seu ser.
Ao contrário da protagonista do conto “A fuga”, mulher que tinha receio que
alguma força a empurrasse de volta ao ponto de partida, que alguma força a fizesse
voltar para casa, para seu marido, Martim não é possuído por esse medo que podia
empurrá-lo de volta à sua esposa. Ele se sente possuído por uma força maior do que ele,
algo que o empurra para uma aventura mais radical e perigosa: um retorno ao antes do
antes, a substância que dá forma a forma.
A ruptura com sua antiga vida foi tão radical que o leitor quase nada consegue
saber sobre sua vida anterior. O começo da história aparece sem historicidade. Foi isso
que, em 1965, levou José Américo Pessanha a afirmar que a primeira parte de A maça
no escuro é um não-romance, a não-história de ‘como se faz um homem’ no não-tempo
(1965).
Sem passado e sem memória, sem apegos materiais, cobranças, dependência
afetiva, livre de expectativas, o homem está livre de sofrimentos, mas é essencialmente
um homem sem historicidade. Sua história restringe-se ás verdades que o narrador relata
e aquelas verdades que o próprio Martim pode lembrar sobre si mesmo. Martim
despojou-se de tudo o que pesa e “sobretudo do que ainda pudesse mantê-lo preso ao
mundo anterior” (ME, p. 26). Para continuar sua aventura, ele precisa se “desmontar”,
rever sua persona, despersonalizar-se, viver o silêncio primordial e o vazio necessário a
sua reconstrução como pessoa.
PERSONA
Certa vez, em 2 de março de 1968, Clarice Lispector quis escrever uma crônica
que falasse de “pessoa”. Lembrou-se imediatamente que essa palavra está diretamente
associada a uma outra: persona, título de uma de suas crônicas. Grande parte desse texto
também está presente no romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres,
publicado pela primeira vez em 1969.
Em suas crônicas o caráter autobiográfico é sempre muito forte e nítido. Clarice
se coloca de corpo inteiro no que escreve. Em Água vida afirma: “Muita coisa não posso
contar. Não vou ser autobiográfica. Quero ser ‘bio’” (AV, p. 33)
10
. Por um lado, ela
desejava preservar a sua própria intimidade no que escrevia, mas, por outro, sentia o
desejo de se confessar em público e não a um padre. “O desejo de enfim dizer o que nós
todos sabemos e no entanto mantemos em segredo” (DM, p. 78).
Na crônica, persona, Clarice não pretendia analisar ou interpretar o filme de
Ingmar Bergman que também carrega esse nome, filme no qual a personagem se culpa
por odiar o seu filho que a ama. A mulher escolhe a mudez para não confessar sua dor e
viver sua culpa: “não quis falar, o que aliviaria seu sofrimento, mas calar-se para sempre
como castigo” (DM, p. 79). Em Persona”, a autora quer falar sobre “pessoa”, algo que
está diretamente vinculado àquilo que aprendeu com seu pai:
Quando elogiavam demais alguém, ele resumia sóbrio e calmo: é, ele é uma
pessoa. Até hoje digo, como se fosse o máximo que se pode dizer de alguém que
venceu numa luta, e digo com o coração orgulhoso de pertencer à humanidade:
ele, ele é um homem (DM, p. 80).
Essa crônica expressa uma homenagem ou um grito silencioso dirigido ao pai,
pois é a ele que a escritora agradece: “Obrigada por ter me ensinado a distinguir entre os
que realmente nascem, vivem e morrem, daqueles que, como gente, não são pessoas”
(DM, p. 80).
Essa visão transmite a idéia de que nem todos conseguem se apossar
completamente da única coisa completa que é dada a todos nós ao nascermos, ou seja,
aquilo que Clarice denomina “gênio da vida”.
10
No texto “Clarice Lispector: ‘não vou ser bio. Quero ser autobiográfica’”, Tânia Regina de Oliveira
Ramos, inverte a máxima afirmada por Clarice para fazer uma leitura crítica sobre o livro de Nádia
Battela Gotlib intitulado Clarice Lispector: uma vida que se conta. (Cf. Ramos, 1997: 249-263).
Como a personagem Z.M do pequeno conto “A bravata”, a escritora “sentia que
a vida lhe fugia por entre os dedos” (DM, p. 146) e era com as pontas dos dedos que ela
datilografava com sua máquina sobre as pernas; escrevia numa tentativa de fisgar com a
palavra aquilo que não está dito diretamente nos enunciados verbais: o gênio da vida, a
vida íntima de cada ser. Ela buscava não apenas a beleza da palavra, mas a verdade do
homem, verdade latente, inconsciente, muitas vezes irreconhecível pelo próprio homem.
É por meio da escrita e da ficção que ela faz seus personagens atingirem o
estatuto de uma pessoa. Martim, protagonista do romance A maçã no escuro, é exemplo
disso: como um “estatístico” viciado em números e cálculos, em racionalidade e
pragmatismos, como um humano que vivia em conformidade com as regras e
exigências societárias, ele ousa se arriscar em se dar a esse luxo: tirar sua máscara,
desnudar-se, “deixar seu próprio rosto exposto à sensibilidade” (DM, p. 80).
Martim quer a nudez de sua alma, luta por uma novidade de espírito, por uma
outra personalidade: a verdadeira, a essencial que está dentro dele. Para isso, bastava
mergulhar em si, como o martim-pescador mergulha na água para pegar seu alimento.
Esse homem quer se dar a liberdade de não ser, a todo tempo, aquele que os outros
esperavam que fosse. Para tanto, deveria percorrer um caminho inverso, um descaminho
até então não imaginado por ele para se sentir uma pessoa, pois “ser uma pessoa era um
dos grandes prazeres da vida” (ME, p. 123). Ele deveria passar pela morte necessária
em pleno dia, para renascer como pessoa; morte que é um encontro com seu eu
profundo, algo que pode ocorrer em um instante e ser capaz de transformar uma vida
inteira. Foi assim que Martim “como pessoa teve que passar pelo caminho do Cristo”
(DM, p. 81): morrer para renascer em vida.
No romance Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, a protagonista Lóri não
passa pela experiência de ter que morrer para renascer na mesma vida. Mas semelhante
a Martim, ela vivencia também a experiência da persona, da máscara. Certo dia, Lóri
pintou tanto seu rosto que ficou parecido com uma máscara. Seu chofer a olhou
admirado, pois estava com uma aparência de prostituta. ‘Persona’. Essa foi a palavra
que lhe veio a mente quando pensou em máscara, mas com sua pouca memória “Lóri
não sabia se era no antigo teatro grego ou romano que os atores, antes de entrar em
cena, pregavam no rosto uma máscara que representava pela expressão o que o papel de
cada um deles iria exprimir” (ALP, p. 85).
Nas tragédias gregas clássicas, todos os atores usavam máscaras para se
apresentarem no palco. Com a máscara escondiam o rosto, lugar onde sensações,
emoções e sentimentos afloram. Para Olímpico de Jesus, personagem de A hora da
estrela, “a cara é mais importante do que o corpo porque a cara mostra o que a pessoa
está sentindo” (HE, p. 52). Esconder o rosto é esconder sua própria personalidade, seu
ser subjetivo, íntimo, a verdade que se manifesta no semblante da face. A máscara
agarrada ao rosto não expressa nada além da superficialidade da vida e o
aprisionamento da pessoa às convenções societárias e cotidianas que não permitem a
emergência de novas possibilidades existenciais.
“Martim tinha olhos azuis e sobrancelhas baixas; seus pés e mãos eram grandes.
Tratava-se de um homem pesado, com uma idéia na cabeça” (ME, p. 90); não usava
nenhuma máscara como a dos atores gregos, ou a que usou Lóri, ou a de Z.M., que se
vestiu e se pintou para se apresentar ao outro e ao mundo societário no qual vivia. A
máscara de Martim era outra, algo que funcionava como um imprinting
11
, por isso
difícil de ser retirada porque foi construída culturalmente, por meio de um longo
processo de educação e adestramento: “uma boa educação cívica e um longo
treinamento de vida o haviam adestrado a ser culpado sem se trair” (ME, p. 35).
Martim se apresentava como um homem bem sucedido, de presença móvel,
atencioso. Esse era seu lado exterior, a máscara de sua vida cotidiana. As roupas lhe
assentavam bem, mas como todas as pessoas, ele sempre estava nu por dentro.
por dentro ele era um homem de compreensão lenta, o que no fundo era uma
paciência, um homem com um modo de pensar atrapalhado que às vezes, num
sorriso embaraçado de criança, se sentia intimidado pela própria estupidez,
como se ele não merecesse tanto; é verdade que por dentro ele também era
sagaz, com uma possibilidade sempre pronta a tirar proveito e vantagem (ME,
p. 90-1).
Como disse o narrador de A maçã no escuro, “aquele homem possuía uma cara.
Mas aquele homem não era a sua cara”. Vivendo dessa forma, “aquele homem não era
ele mesmo” (ME, p. 65).
Isso implica dizer que a personalidade de uma pessoa pode ser apenas a
representação de um papel para a sociedade e para os outros. Uma pessoa pode, por
escolha própria, comportar-se como a personagem do filme de Bergman: representar o
tempo todo para os outros e para si mesma por não poder encarar sua própria verdade
11
Esse termo é usado por Edgar Morin para designar “a marca indelével, sem retorno, que se recebe dos
pais, da escola e da sociedade, na infância e na adolescência” (1995: 19).
interior, dilacerante, cruel. Nesse aspecto, “a máscara é um dar-se tão importante quanto
o dar-se pela dor do rosto” (DM, p. 80).
Uma pessoa pode assumir uma persona que não a satisfaz ou ter uma falsa
imagem de si própria, alienada; usar uma máscara que esconde de si mesma seus
próprios desejos, fraquezas, medos, sentimentos, emoções, sensações. Sua
personalidade passa a esconder o que ela é no mais íntimo de seu ser.
A máscara cultural é uma das mais complexas e enraizadas na vida de qualquer
pessoa. É tanto imposta quanto desejada. Como na crônica “Desenhando um menino”
(PNE, p.85-6) para um ser se tornar uma pessoa reconhecível pelas outras, ele,
necessariamente, passa por escolhas, por muitos sacrifícios e dores. Para se construir,
uma pessoa sacrifica a verdade de si que poderia ser vista como loucura, fraqueza,
pobreza ou que poderia fazer os outros não suportarem. Para se construir, muitas vezes,
uma pessoa tem que se tornar a imagem passível de ser vista e reconhecível pelos
outros. As crianças e os adolescentes sabem disso:
à medida que vão vivendo fabricam a própria máscara. E como muita dor.
Porque saber que de então em diante se vai passar a representar um papel é
uma surpresa amedrontadora. É a liberdade horrível de não ser. E a hora da
escolha (DM, p. 80).
É pertinente notar que, nesse contexto, tornar-se humano é necessariamente se
mascarar, artificializar-se, reificar-se e, em conseqüência, não poder olhar diretamente
para si mesmo, sob pena de ser petrificado, destruído por sua própria verdade, o que nos
faz lembrar do mito da Medusa (Amaral, 2005: 32), figura mitológica que transforma
em pedra todas aqueles que a olha de frente.
Escolher a sua própria máscara ou a forma como a pessoa quer se apresentar ao
outro e ao mundo é o primeiro gesto voluntário, solitário e humano. A necessidade da
máscara reside no fato de que ficando nu, desmascarado, um ser humano ficaria
totalmente exposto, poderia facilmente se ferir e “fechar-se sozinho em súbita máscara
involuntária e terrível” (DM, p. 80). Portanto, tirar sua própria máscara é como arrancar
sua própria pele: dói, sangra, fica-se em carne viva de alma. Paradoxalmente, é nesse
momento, porém que o sujeito fica face-a-face consigo mesmo, tem o prazer de ser o
que ele sempre fora: uma pessoa, ou nas palavras de Clarice: “A pessoa é”.
Todos os esforços dessa autora convergem para esse ponto: deixar de procurar a
verdade da palavra, para buscar, por meio da palavra, a verdade do ser humano, verdade
interior, desnuda de si mesmo. A verdade vem sempre de um contato interior
inexplicável. Por isso, em suas narrativas, os personagens se desnudam, retiram a
maquiagem do rosto para se olharem no espelho de seus próprios olhos. Usam-se como
forma de conhecimento e de autoconhecimento..
A imagem que uma pessoa faz de si pode não corresponder àquilo que ela é no
fundo de si mesma. Em uma conversa com Stanley Keleman (2001), o mitólogo Joseph
Campbell chama a atenção para isso ao referir-se à relação entre a imagem e a máscara.
A imagem que uma pessoa faz de si pode se tornar uma máscara se esta for formada por
um sistema de imagens que a sociedade impôs ao sujeito, esperando que ele responda e
corresponda a ela.
Campbell estabelece uma diferença entre a imagem oferecida pela sociedade e a
imagem potencial que está no interior, no íntimo de cada sujeito. O mitólogo aponta
para o descompasso que uma pessoa pode andar com ela mesma ou a descontinuidade
entre sua natureza e a imagem que a sociedade impõe a ela (In: Keleman, 2001:62).
Para Campbell, a mitologia poderia ser considerada como uma grande rede ou
teia de modelos para perceber a relação entre as imagens que fazemos de nós mesmos e
as experiências de nossas vidas, pois “a partir de uma experiência, podemos criar uma
imagem que passa a governar a ação, que passa a impulsionar a ação” (In: Keleman,
2001:58).
Não apenas a mitologia, mas também a literatura pode oferecer imagens sobre o
homem e de como esse homem constrói suas personas para conviver em sociedade.
A grande maioria dos personagens clariceanos são pessoas que têm suas
personalidades formadas, mas que por um motivo ou outro, de uma hora para outra,
passam pela experiência contrária de formação: enfrentam a experiência da
despersonalização, perdem a máscara, arrancam de si o supérfluo, para atingirem o
essencial de si mesmos, como acontece com as personagens G.H., a Sra Xavier e
Martim dentre tantos outros.
A experiência da despersonalização é marcada pela perda daquilo que Campbell
chama de “máscara primária”, das imagens construídas pelos outros, das
referencialidades, dos valores e crenças, das concepções habituais, da subjetividade e da
memória do homem.
Na ficção da escritora, quase todos os seus personagens estão à beira do abismo
de si mesmos: querem se descobrir, desejam o contato profundo com sua imagem
interior e ancestral, mas, para tanto, eles devem jogar fora a máscara do “deve ser” para
viver a verdade de ser.
Essa idéia se fazia presente nos primeiros escritos de Clarice, antes mesmo
dela se apresentar como escritora em 1944 com o lançamento do romance Perto do
coração selvagem. Em 1940, ano em que ingressa na Faculdade Nacional de Direito, ela
escreve o conto chamado “A fuga”, publicado posteriormente, em 1979, na coletânea A
bela e a fera. Sua protagonista, uma mulher casada doze anos, foge dessa “prisão” e
vive três horas de liberdade, tempo suficiente para restituí-la quase por inteira de si
mesma (BF, p. 77). Essa mulher ri de si quando descobre a forma como vivia: “Eu
comia caindo, dormia caindo, vivia caindo” e sai à procurar um lugar onde pôr os pés
(BF, p79). Ao fugir das convencionalidades, das máscaras societárias do “deve ser”,
descobre-se e diz a si mesma: “(...) eu era uma mulher casada e sou agora uma mulher”
(BF, p. 79). Esse “eu era” e esse “sou agora” é fundamental, pois o primeiro é a imagem
que a inibia de dizer “sou”. Seu casamento era uma máscara societária por meio da qual
ela se via e era identificada pelos outros.
Na crônica “Desenhando um menino”, Clarice faz uma grande pergunta: “como
conhecer o menino?”, e responde: “para conhecê-lo tenho que esperar que ele se
deteriore, e só então ele estará ao meu alcance” (PNE, p. 85). Para conhecer um homem,
essa escritora não espera que ele se deteriore, mas o faz passar pela experiência da
despersonalização, uma espécie de deterioração provocada pela escritura, para chegar a
raiz daquilo que ele é e, desse modo, atingir a liberdade de ser. É assim que acontece
com Martim ao fugir de um suposto crime.
DESPERSONALIZAÇÃO
G.H., Sra Xavier, Ana e Martim são personagens que não desejam passar a vida
inteira se protegendo da chuva, nem olhando por trás da janela as estações do ano
passarem. O desafio que enfrentam é jogar no chão a máscara do “deve ser” para
descobrir seu rosto de ser.
Para Rafaela Teixeira Zorzanelli, essa temática da despersonalização é uma
marca sui generis da obra de Clarice Lispector e assume um tom forte e decisivo nas
obras A paixão segundo G.H., e em A maçã no escuro (Zorzanelli, 2005: 29).
A despersonalização é a desorganização ou perda do que Clarice denomina de
“montagem humana”, da forma de ser humano, algo tão bem expresso nas palavras da
personagem G.H: “caminho em direção à destruição do que constituí, caminho para a
despersonalização” (PSGH, p. 173). É a experiência que faz o sujeito abrir-se para o
plano inexpressivo ou inumano da vida e para o estado de pré-pensar, do pensar-sentir,
algo que pode ser percebido nas primeiras páginas de A maçã no escuro.
Os termos “despersonalizar” contido em Água viva, “deseroizar”, “desumanizar”
que aparecem em A paixão segundo G. H., bem como “despersonalizar”, “descortinar”
que estão em A maçã no escuro, expressam a experiência de desmontagem humana, da
perda de personalidade dos personagens. É por meio dessa experiência que os
personagens se abrem a possibilidades de criar outras modalidades de relações consigo e
com o mundo, outras formas de sentir (Zorzanelli, 2005:32), mas também de pensar, de
viver, ser e amar.
Se, por um lado, a despersonalização é, “grosso modo, o desarranjo das formas e
dos modos de sentir que condicionam de antemão o contato com o mundo”, por outro,
consiste no exercício de construir formas de sentir que organizam as experiências do
mundo. Esses são dois processos fundamentais para o entendimento das obras de
Clarice Lispector, mas segundo Zorzanelli a ênfase maior dessa escritora “é sobre o
processo de despersonalização” (2005: 36).
Penso que os dois processos têm igual importância na cosmovisão e escritura de
Clarice. São diferentes, mas interdependentes. É por meio de um que o outro se revela,
passa-se por um para se chegar ao outro, ambos encontram-se dialogicamente
articulados.
As narrativas dessa escritora são complexas, não lineares e exuberantes, querem
“desvencilhar-se do supérfluo para chegar ao indispensável” (Khéde, 1994:7). Água
viva, A hora da estrela, A paixão segundo G.H., A maçã no escuro são grandes
narrativas que levam os personagens a desvencilharem-se de si mesmos para tocar o que
há de mais íntimo em suas vidas.
Para atingir o essencial da vida humana, a escritora faz seus personagens
desvencilharem-se do supérfluo. Como acontece no conto “A procura de uma
dignidade” (OEN, 1994: 7-20), com a Sra. Jorge B. Xavier, mulher de 70 anos, que ao
sair de sua casa para assistir uma conferência em um bairro cujo nome não se lembrava
mais, de repente, se percebe perdida nos meandros internos e escuros do Estádio do
Maracanã, Rio de Janeiro (OEN, p. 8).
Na volta à sua casa, depois de perder-se no labirinto das ruas, “tão anônima
quanto uma galinha”, “envolta nas trevas da matéria onde ela era profundamente
anônima”, se surpreende consigo mesma ao perceber “Aquilo” em seu corpo: a nudez
do corpo: o desejo. Ela sentia “‘Aquilo’, agora sem nenhum pudor, era a fome dolorosa
de suas entranhas, fome de ser possuída pelo inalcançável ídolo de televisão”: o cantor
Roberto Carlos (OEN, p.16-18).
Desejar é não ter, é falta, o que implica busca incessante. A Sra. Xavier desejava
o que jamais iria ter, porque desistira de buscar. Tinha, então, apenas o desejo que a
possuía, mas não o objeto desejado, pois esse era inalcançável. “Presa ao desejo fora de
estação assim como o dia de verão em pleno inverno”, tinha somente a falta que a
constituía e a animava.
A falta não deixa de ser importante no processo de constituição do ser: foi assim
que ela quis ter sentimentos bonitos e românticos em relação à delicadeza do rosto de
Roberto Carlos: “Na minha vida nunca ouve um clímax como nas histórias que se lêem”
(OEN, p.19). Era exatamente essa falta, esse desejo que a fazia ser alguém, reconhecer-
se mulher, viva, um ser-no-mundo. Perder-se nas ruas do Rio de Janeiro e nos labirintos
escuros e vazios do Maracanã foi o caminho para reencontrar-se consigo mesma, com
sua vida profunda, íntima, esquecida pelo peso da “cruz dos anos”. Na verdade, “era
assim mesmo a sua vida”, como chegou a pensar. O desejo que a princípio a surpreende
e a assusta é o mesmo que a torna tão familiar a todas as mulheres clariceanas e, talvez,
a condição feminina.
Foi esse desejo “fora da estação” que fez a Sra. Xavier sentir que “estava
emaranhada naquele poço fundo e mortal, na revolução do corpo. Corpo cujo fundo não
se via e que era a escuridão das trevas malignas de seus instintos vivos como lagartos e
ratos” (OEN, p. 18), desejo que a fez sentir-se “viva como se fosse alguém, ela que não
era ninguém”. Nessa mulher, para quem “pouco lhe importava a cultura”, “Aquilo”
parecia enobrecer sua existência, era algo essencial de sua vida humana.
Essa senhora, “que rastejava os pés de muitos anos de caminho pelo labirinto”,
não vivenciou a despersonalização tão radicalmente quanto G.H. e Martim, mas passou
por todo o processo de desprendimento do supérfluo para chegar ao que havia de mais
singular e profundo em sua vida. Toda sua trajetória em busca do lugar da conferência,
a perda das referencialidades da cidade do Rio de Janeiro indicava que sua vida inteira
fora sempre uma desorientação dos sentidos. Essa desorientação foi fundamental para a
surpreendente descoberta em si e de si.
A trajetória e as experiências da Sra. Xavier transformam-se em estágios a serem
desvencilhados para ela chegar onde sempre estivera: nela mesma, em sua vida íntima já
esquecida. Como esclarece a autora na narrativa infantil A vida íntima de Laura, de
1974, “Vida íntima quer dizer que a gente não deve contar a todo mundo o que se passa
na casa da gente. São coisas que não se dizem a qualquer pessoa” (VIL, 1999). Em “A
procura de uma dignidade”, Clarice faz mais do que questionar o papel da mulher na
sociedade. A procura da personagem identifica-se com os anseios da escritora:
compreender sua própria condição humana.
A despersonalização é a destituição do individual inútil, a perda de tudo o que se
possa perder para que se possa ser. Esse processo faz o homem ou o personagem tirar de
si tudo aquilo que caracteriza sua individualidade, jogar fora a máscara com a qual se
apresenta aos olhos dos outros e a si mesmos: “Tudo o que me caracteriza é apenas o
modo como sou mais facilmente visível aos outros e como termino sendo
superficialmente reconhecível por mim” (PSGH, p. 174).
É assim que a personagem G.H. atinge o indispensável de si e da vida, ela “que
passou ‘pela fina morte de manusear o proibido tecido da vida’, numa experiência que
implica, para acontecer, perda de identidade” (Amaral, 2005: 26).
Clarice faz seus personagens enfrentarem o desafio da despersonalização para
recuperar a identidade perdida, o eu profundo de cada um, muito esquecido,
soterrado pelas convenções societárias cotidianas, pelas racionalizações e padrões
culturais. Como percebeu José Américo Motta Pessanha, a obra de Clarice Lispector
abriga uma corajosa visão de mundo: “Corajosa pelo modo de gerar: em dor”. Na dor de
que toda sensação é feita. Sua cosmovisão “reproduz em escala individual o itinerário
do despertar da consciência filosófica dentro do mundo da cultura: a partir da
mentalidade ‘primitiva’, mitopoética” (Pessanha, 1965: 64).
Os animais e, principalmente, as crianças que povoam a obra dessa escritora são
exemplos disso: elas não têm os instrumentos racionalizadores da vida. Experienciam
aquilo que Pessanha denominou de “aurora do pensamento real”. Seres que não
penetraram ainda na ‘idade da razão’ e que não foram ainda adestradas pelos
instrumentos racionais de defesa. São espontâneas. Olham descobrindo,
compreendendo, sentindo, descortinando o mundo-ai. Por não terem a rigidez da razão
analítica, elas não se distanciam da “coisa” que vêem. “As crianças não possuem ainda,
suficiente, este destacamento intelectual, este distanciamento do mundo-ai, necessário
ao aparecimento da ciência teórica e da filosofia” (Pessanha, 1965: 67). Apresentam-se,
portanto, não apenas como um convite a desracionalização, mas como um “caminho de
retorno à realidade viva e autêntica do homem. Em convite ao ‘eu profundo’”
(Pessanha, 1965: 67).
O processo da despersonalização não deixa de ser, assim, um recuo na escala
evolutiva do ser humano. Por meio dele, Clarice pretendia fazer uma abordagem direta
do ser-em-si, tocar a raiz primordial do homem. Clarice usa a escrita como uma
ferramenta de escavação arqueológica para fazer seus personagens entrarem si e sentir a
condição primordial deles mesmos:
De camada em camada subterrânea chego ao primeiro homem criado. Chego
ao passado dos outros. Lembro-me desse infinito e impessoal passado que é sem
inteligência: é orgânico e é o que me inquieta. Eu não comecei comigo ao
nascer. Comecei quando dinossauros lentos tinham começado (SV, p. 32).
Foi isso que Pessanha chamou de “recuo antropológico”: introspectivamente os
personagens retornam ao começo, à raiz, vão ao encontro do homem-arché dentro deles
mesmos. Para Fernando G. Reis, esse ligeiro primitivismo presente na obra de Clarice
lembra a busca do elemento primário na filosofia pré-socrática, um retorno mito-poético
às fontes, às raízes que não passa de uma forma simbólica da volta a si mesmo. Mas
tudo isso que acontece se insere no presente que os personagens vivem e redescobrem
(Reis, 1968: 227).
Esse recuo do qual fala Pessanha está longe de ser uma mera questão de estilo da
escritora.
Não há em Clarice Lispector um simples caso literário, uma questão de estilo. O
estilo, o puro estilo, desfaz o homem. O homem que a obra da escritora tem
buscado reconstruir a partir dos alicerces. O estilo de Clarice Lispector é
admirável, sem dúvida, único e sem comparação em nossa literatura. Mas nada
vale em si mesmo. Só vale – e muitíssimo – como ex-posição da realidade
colhida na raiz por uma sensibilidade em solitária vigília, em contínuo
Getsêmani (Pessanha, 1965: 66).
O recuo é, na verdade, uma experiência de avanço na compreensão e
complexificação do personagem. Enquanto mais recua, Martim mais se sente na origem
da vida e mais avança para seu entendimento: “(...) mesmo aos recuos, ele sentia que
avançava. Sentia que pois é que quase entendia. É verdade que, por um erro de
calculo, começara pelo começo demais (...)” (ME, p. 147). Para Clarice, é na vida mais
rudimentar que se enraíza o sentido da vida em sua plenitude, sentido que foi soterrado
pelas racionalizações e fragmentações do mundo moderno. “Para ela, como para outros,
a meta é, evidentemente, buscar o sentido da vida, penetrar no mistério que cerca o
homem” (Candido, 1987: 2). É na origem da vida que se enraíza seu sentido, como uma
árvore que aprofunda suas raízes para crescer e se abrir ao mundo, algo que Leloup em
A sabedoria do salgueiro, expressou tão bem em um pequeno poema:
É das profundezas
De suas raízes
No Escuro
Que a árvore busca sua força e
Seu impulso para galgar as Alturas
E se manter ereta
Na Luz (Leloup, 2005: 33)
À semelhança de uma árvore que busca por meio de suas raízes a força e o
impulso para crescer e viver, para se manter em pé, assim é a condição do homem e
Martim. Clarice acreditava que certas verdades humanas que podem ser
encontradas na origem do ser, por isso que quanto mais Martim se enraíza em tempos
imemoriais, em “eras terciárias”, “no terreno baldio” mais ganha impulso vital, cresce e
galga o estatuto de um homem, mais próximo fica da condição de todos os homens. Nas
raízes do homem encontra-se a seiva que sustenta a vida da Humanidade. Pela escrita, a
romancista recua em busca de um sentido maior da existência. Em sua cosmovisão -
para empregar as palavras Boris Cyrulnik ao falar do conceito de resiliência - “o sentido
nasce do recuo no tempo, que permite olhar para si e para o passado” (Cyrulnik, 2006:
29).
Ao examinar a raiz da árvore morta, Martim busca um sentido para sua vida e
existência e é esse o motivo que o mantém em pé. A palavra “sentido” pode ser
apreendida de duas maneiras: refere-se, simultaneamente, à significação e à direção ou
objetivo. Como observou André Comte-Sponville, o que amplia a dificuldade é que, em
qualquer uma dessas duas acepções, o sentido remete a outra coisa que a ele próprio. O
sentido de uma palavra não está inscrito na própria palavra, assim como o sentido de
uma ação não está nela mesma. “O sentido encontra-se sempre fora e estamos sempre
aqui. Não existe sentido, a não ser o sentido do outro e a realidade do mesmo” (Comte-
Sponville, 2006:60).
Comte-Sponville identifica dois caminhos por meio dos quais as pessoas buscam
a felicidade ou construírem um sentido para sua vida: o sentido da vida pode ser uma
outra vida nisso que se baseiam as religiões) ou uma vida diferente (a que se espera)
(2006: 61).
O processo de despersonalização que Martim enfrenta é uma estratégia ficcional
da escritora para fazer o homem viver uma vida diferente daquela que vivia
anteriormente, como se sua antiga vida societária não o satisfizesse mais. Tudo ocorre
como se esse homem quisesse viver uma outra vida dentro da mesma vida, comer a
placenta da vida, vida crua, quente, pulsante. É por isso que ele enfrenta a difícil e
ousada experiência de olhar para dentro de si mesmo, para seu próprio espelho interior.
Em A maçã no escuro tudo se passa como se o personagem dissesse a si mesmo aquilo
que certa vez Montaigne escreveu: ‘o objetivo da vida deve ser a própria vida’(apud
Comte-Sponville, 2006: 61). E como acrescenta Comte-Sponville “o objetivo de viver é
viver” (Comte-Sponville, 2006: 61).
Ao sair do mundo “humanizado” para entrar no “inferno de vida crua”, na “vida
primária divina”, G.H. percebe, na condição da barata, a grandeza de uma vida que não
tem sentido humano, pois é maior que o humano. É no auge de sua despersonalização
que ela descobre que a verdade da vida é anterior a “montagem humana”. Daí o
necessário despojamento do “humano construído”, da vida sistematizada, moralista,
instrumental, convencional.
Diante de uma barata G.H. sente quebrar seu invólucro humano e, sem limites,
se sente “sendo o que é”; sente a grandeza da vida e de ser: “Ser é ser além do humano.
Ser homem não certo, ser homem tem sido um constrangimento”, afirma a
personagem. Diante da barata ela tem a mesma sensação de Martim quando este comete
o crime e, ao fugir, sente-se perdido na vastidão do mundo desconhecido: “O
desconhecido nos aguarda, mas sinto que esse desconhecido é uma totalização e será a
verdadeira humanização pela qual ansiamos” (PSGH, p. 172). Um inseto a faz perceber
que sua vida não tem apenas sentido humano: é algo maior. Tão maior que, em relação
ao humano, não tem sentido (PSGH, p. 178); G.H. percebe na barata a complexidade e
os mistérios da condição humana.
Como ressaltou Regina Helena de Oliveira Machado, é assim que Clarice tem
em um ser vivo menor a visão de uma vida maior (1989: 119). O mesmo acontece no
conto “A menor mulher do mundo”. Tratá-se de uma pequena narrativa decorrente do
amor que Clarice sentia pelos bichos. Inserido na coletânea Laços de família, publicado
inicialmente de 1960
12
, esse conto transporta o leitor para as profundezas da África
Equatorial onde “o explorador francês Marcel Pretre, caçador e homem do mundo,
topou com uma tribo de pigmeus de uma pequenez surpreendente” (LF, p. 68).
Pretre descobre os menores pigmeus do mundo e entre “os menores dos
menores” pigmeus do mundo está o menor de todos: “uma mulher de quarenta e cinco
centímetros, madura, negra, calada. ‘Escura como um macaco” (LF, p.68). Como faz
um homem diante do desconhecido, Pretre sente necessidade imediata de ordenar e
classificar a coisa que vê. Nomeia a menor mulher do mundo de Pequena Flor, ela que,
por “defesa estratégica”, morava nas árvores mais altas.
Pequena Flor, “a coisa humana menor que existe” (LF, p.70), conduz o leitor a
se deparar com sua antiga face já esquecida, suas raízes e os ciclos e metamorfoses que
a espécie humana vem passando ao longo do tempo. Essa “mulher” guarda em si uma
“Preciosidade” maior do que aquela do conto que traz esse título. Como uma fruta
madura que guarda dentro de si uma semente e, dentro desta, uma outra semente que um
dia será árvore, Pequena Flor traz dentro de si o segredo da vida, o passado inteiro da
espécie e a esperança de continuidade da mesma e do mundo. Em seu útero amadurece a
semente de si mesma e de sua espécie: um filho. Está grávida. A preciosidade dessa
mulher é “maior que esmeraldas” e “os ensinamentos dos sábios da Índia” (LF, p. 70).
Nesse conto, como em sua obra inteira, Clarice capta a grandeza do ser nas
pequenas coisas. Ela soube fisgar numa pequeníssima pigmeu a sutil grandeza da
12
Nessa mesma época Clarice escrevia também o romance A maçã no escuro. As preocupações da
escritora e as temáticas que atravessam os contos de Laços de família mantêm ressonâncias com a
narrativa de A maçã no escuro.
“coisa” humana, o indisfarçável tesouro que nem sempre é perceptível ao olhar do
homem, como acontece no conto “Os desastres de Sofia”, inserido na coletânea
intitulada A legião estrangeira (contos), publicada inicialmente em 1964, apenas uma
vez em vida da autora. Como disse Reis, o microscópico-individual e o cósmico-
universal coexistem no estilo de Clarice e estabelecem uma tensão interna na obra
(1968:231).
Como fez com “A menor mulher do mundo”, Clarice conduz Martim a “se
colocar inconfortavelmente em face da primeira perplexidade de um macaco” (ME,
p.140), conduzindo, por vezes, macacos a expressarem, genuína e espontaneamente, os
primeiros gestos humanos, como acontece com Lisette, “mulher em miniatura”, a
macaquinha que “quase cabia na mão”, e com o “macacão-pequeno”, aquele “homem
alegre”, personagens do conto “Macacos” (LE, p. 43-5).
Com a força própria da ficção que permite elaborar ‘mundos imaginários’, a
escritora constrói paisagens onde animais e humanos se fundem e se confundem,
imagens de vida rudimentar que exaltam a mais complexa vida humana. Pequena Flor, a
macaquinha Lisette e o macacão-pequeno são personagens que não passam pela
despersonalização, pelo “despojamento inicial do humano construído” como G.H, e
principalmente Martim. Eles representam a volúpia da natureza, a matéria primeira que
traz em si os mistérios da vida e da morte. Na crônica “Explicação que não explica”, a
escritora esclarece:
parece-me que sinto os bichos como coisas mais próximas de Deus, material que
não inventou a si mesmo, coisa ainda quente do próprio nascimento; e, no
entanto, coisa já se pondo imediatamente de pé, e vivendo toda, e em cada
minuto vivendo de uma vez, nunca aos poucos apenas, nunca se poupando,
nunca se gastando (DM, p. 240).
Os animais seriam, ao mesmo tempo, vazios, profundos e plenos. Expressam as
pulsações do sopro de vida.
Por isso, quanto mais despersonalizado, mais o ser se torna vazio e profundo,
“quanto mais estúpido, mais em face das coisas ele Martim - estava” (ME, p. 83).
Nessa fase da narrativa de A maçã no escuro, o personagem não julga nem interpreta,
não analisa e nem se diferencia do que ao seu redor. o que vê, é o que é: está
sendo. Nada entende, e pensar não era natural
13
. Vive sua “lúcida escuridão”, sua
13
Cf. a crônica “A vida é sobrenatural”, de 28 de junho 1969. In: A descoberta do mundo (1999:205).
“luminosa estupidez”. Encontra-se no selvagem coração da vida e isso é tão vasto que
ultrapassa qualquer entender. A vida antes de ser pensada é sentida, intuída, pois para
viver não é preciso pensar, é algo que ultrapassa o pensamento. Viver é ser. Ser é uma
forma de existir. E ele estava vazio, profundo, pleno: sendo-em-si.
“Ultrapassando o pensar que é sempre grotesco” (PSGH, p. 172), Martim, o
“estúpido”, não se sente apartado dele próprio. Não questiona a vida: vive-a. A vida do
mundo e a sua própria vida formam uma só: o que pensa se harmoniza com o que sente,
o que ele faz e aquilo que ele não fala se complementam; ser e não ser são vividos da
mesma forma. Como um animal, no auge de sua estupidez, Martim está mais próximo
de Deus, porque “Deus é o que existe, e todos os contrários são dentro do Deus, e por
isso não O contradizem” (PSGH, p. 160).
Martim descobre o mesmo que G.H.: a vida e a realidade antecedem o
pensamento.
A realidade antecede a voz que a procura, mas como a terra antecede a árvore,
mas como o mundo antecede o homem, mas como o mar antecede a visão do
mar, a vida antecede o amor, a matéria do corpo antecede o corpo, e por sua
vez a linguagem um dia terá antecedido a posse do silêncio (PSGH, p. 175-6).
A escritora quer o que vem antes da construção e da coisa construída. Quer a
matéria-prima, o divino que compõe o mundo, o homem, a vida. Por isso, ela
considerava que o pensamento poderia afastar o homem da coisa sobre a qual ele pensa.
Concebe que entender é sempre limitado e não entender pode não ter fronteiras. O que
sabemos é finito, o desconhecido é um universo infinito que desafia o pensamento.
Todo conhecimento é sempre uma delimitação do infinito. O conhecimento revela
apenas um ponto do universo sem pontos. Na crônica “Não entender”, afirma: “Não
entender. Isso é tão vasto que ultrapassa qualquer entendimento (...). Sinto que sou
muito mais completa quando não entendo. Não entender, do modo como falo, é um
dom” (DM, p. 172).
O pensamento ou o entendimento não necessariamente aproxima o homem de si
e de sua realidade circundante. Como salientou Pierre Lévy em O fogo liberador, a
maioria dos pensamentos tece um véu que nos separa do mundo e de nós mesmos. Eles
desviam nossa atenção do que acontece nesse instante-já em que se vive. Impedem-nos
de sentir (2001: 64). Enquanto mais rudimentar, mais Martim se encontrava cara a cara
com a natureza, com aquilo que ele era, com a “coisa em si”, com a vida que não
precisa de explicações para existir.
Na concepção de Clarice, viver ultrapassa o entendimento: Martim “em duas
semanas aprendera como é que um ser não pensa e não se mexe e no entanto está todo
ali” (ME, p. 22). A realidade sempre nos antecede e nos ultrapassa: “E foi quando
pensei em escrever sobre a realidade, já que essa me ultrapassa. Qualquer que seja o que
quer dizer ‘realidade’” (HE, p. 17). Por isso, na situação na qual se encontrava Martim,
o não entendimento lhe dava a grandeza que o desconhecido tem, grandeza essa que
tece o mundo para além das racionalizações: “Não compreender estava de súbito lhe
dando o mundo inteiro” (ME, p. 34).
O pensamento e o conhecimento que podem esclarecer também podem
obscurecem a visão sobre as coisas. Eles são elaborados para darem formas ao real,
entendê-lo em sua infinitude e inesgotabilidade, mas um e outro são sempre finitos. O
mistério e o infinito são as grandes verdades. “Aquilo que sabemos é finito; o que não
sabemos, infinito”, como afirma Leloup (1998: 13). Sem pensar em nada, Martim sabia
tudo. “Todos sabem tudo”. “Quem vive sabe, mesmo sem saber que sabe”, como dizia o
narrador de A hora da estrela, obra de Clarice Lispector publicada postumamente, em
1977, no mesmo ano de sua morte (HE, p. 12).
Isso explica o processo de despersonalização e “porquê” tantos personagens com
vida psicológica tão rudimentar na obra de Clarice Lispector. Despersonalizados ou
“pobres de espírito”, eles representam a primeira verdade do mundo; são o disfarce “da
própria coisa que se busca”, da objetividade perdida que a escritora busca atingir com
sua escritura. Com essa redução psicológica, ela procura tocar a ideal condição primeira
de “ser-puro-olho-que-vê-a-vida-aí”, nas palavras de Pessanha.
E que seria pura estesia informulada em linguagem: os sentidos, mais que
sentido, comungando diretamente com a realidade, num arroubo, num estar fora
de si, numa ‘loucura, num êxtase, num entusiasmo que pode nada ter de
espiritual. Que pode ser apenas a fruição exaltada do presente, do aqui, do isto,
êxtase físico, plenitude de animalidade, plenitude e esplendor de ‘burrice’
(Pessanha, 1965: 69).
É assim que G.H, Ana, Martim vivem o filosófico descobrimento do ser e do não
ser, do ser e do seu ser.
Na cosmovisão de Clarice, entender seria um modo de contato. Pensar seria uma
forma de apreender, embora pensar e compreender possa gerar problemas. Somente
depois, quando Martim começa a se refazer subjetivamente e recomeça a pensar e
entender as coisas é que se percebe diferente e superior às vacas: “Desde que havia
entendido as vacas, pela primeira vez se achava acima delas na encosta” (ME, p. 114).
Não entender seria, assim, uma maneira de ficar livre de classificações, dos limites do
próprio entendimento e do conhecimento sobre as coisas.
Se, por um lado, o pensamento pode nos aproximar das coisas, do mundo e da
vida, por outro pode nos afastar de tudo isso. Pode gerar fragmentações, segmentações,
hierarquias, preconceitos. Conceber a realidade de forma fragmentada significa isso:
separar o sujeito do objeto, o sensível do inteligível, o racional do mítico.
Mais uma vez ressurge aqui a importância da despersonalização vivenciada pelo
personagem Martim. Ele tinha que superar uma forma de ser e de pensar, esvaziar-se
desse tipo de pensamento que separa homem e natureza, animalidade e humanidade,
razão e emoção, pensamento e realidade. Esse processo tinha que, necessariamente,
levá-lo a descobrir e vivenciar a “remotidão do mundo”, o que “fica atrás do atrás do
pensamento”.
Para Pierre Lévy, por trás do borrão dos pensamentos, conceitos, preconceitos e
de todas as formas de loquacidade mental brilha a luz do despertar humano. De modo
semelhante, Clarice coloca o homem numa experiência direta com o mundo e consigo
mesmo onde os conceitos, fórmulas e teorias ao invés de ajudá-lo, pode atrapalhá-lo. O
homem vai se desnudando diante da Natureza desnudada, ao mesmo tempo,
sobrenatural, mágica.
Sem pensamentos analíticos, Martim escontra-se mais próximo da Natureza, das
coisas como elas são e de Deus. No Gênesis foi o conhecimento que fez o homem se
perceber despido, nu. Em A maçã no escuro o homem quer se descortinar, despojar-se
de tudo que pesa; deseja e busca a nudez de si mesmo. É o não conhecimento que torna
o homem nu e, por isso mesmo, mais próximo da grandeza do existir, sentir, viver e ser.
Ao contrário do que faz a ação divina que passa dos seres mais humildes e
imperfeitos aos mais perfeitos
14
, a escritura de Clarice passa dos seres mais “perfeitos”
ou construídos culturalmente
15
para alcançar os mais simples e humildes de espíritos,
por ver nestes a grandeza do ser, da vida e a manifestação primeira de Deus. É assim
14
Cf. nota dos tradutores do Gênesis (1976: 24).
15
G.H. era uma mulher de classe média/alta do Rio de Janeiro. Martim era um engenheiro bem sucedido
com família bem constituída.
que acontece com G.H., Joana, Virgínia, Lori, Martim e muitos dos personagens de seus
contos e romances.
Passo a passo, por meio de sua escritura, Clarice constrói “um caminho que é
descaminho”, conforme as palavras do autor de Um sopro de vida.
Ao fazer esse “recuo antropológico”, a escritora avança, pois ao atingir o
singular de um ser percebe a universalidade do mesmo, ao se aprofundar num ponto,
encontra nele o todo. Pela escritura, supera o modelo dicotômico dos contrários que se
anulam e, ao mesmo tempo, investe esforços cognitivos para ver os opostos se
complementam; atinge, assim, uma terceira margem, deixando entrever que a totalidade
da vida humana é tecida de oposições e complementaridades.
A crônica Sim e Nãodemonstra bem isso: “Eu sou sim. Eu sou não. Aguardo
com paciência a harmonia dos contrários. Serei um eu, o que significa também um nós
(DM, p.279). Nessa concepção, diversidade e unidade, universalidade e singularidade,
sim e não, verdade e não verdade se complementam. Ao superar as dicotomias, Clarice
atinge a unidade do ser e o equilíbrio dinâmico entre as coisas.
Seu desejo como escritora era alcançar a verdade por meio de seu oposto: a
inverdade. Foi por isso que o narrador de Um sopro de vida inventou Ângela dentro de
si, assim como sem seu crime Martim não teria entrado em uma nova aventura e sem se
perder a Sra. Xavier jamais poderia ter se reencontrado consigo mesma. Ao se
harmonizarem com o posto de si mesmos, os personagens despertam para si e para o
mundo circundante.
Nesse contexto, despersonalização e personalização são processos diferentes,
mas um inexiste sem o outro. Não um mais importante do que o outro porque
sozinhos, apartados, não fazem sentido.
O poema “síntese das antíteses” de Lao-Tsé é expressivo a esse respeito:
Só temos consciência do belo
Quando conhecemos o feio.
Só temos consciência do bom
Quando conhecemos o mau.
Porquanto o Ser e o Existir
Se engendram mutuamente.
O fácil e o difícil se completam.
O grande e pequeno são complementares.
O alto e o baixo formam um todo.
O som e o silêncio formam a harmonia.
O passado e o futuro geram o tempo (Tse, 2003: 30).
Por meio de sua ficção, Clarice Lispector esvazia Martim de toda subjetividade e
de toda memória para regenerá-lo, conferir-lhe uma outra montagem humana. Para essa
escritora, desfazer uma personalidade é, ao mesmo tempo, reconstruí-la pela raiz. Por
isso, concebe a
despersonalização como a grande objetivação de si mesmo. A maior
exteriorização a que se chega. Quem se atinge pela despersonalização
reconhecerá o outro sob qualquer disfarce: o primeiro passo em relação ao
outro é achar em si mesmo o homem de todos os homens. Toda mulher é a
mulher de todas as mulheres, todo homem é o homem de todos os homens, e
cada um deles poderia se apresentar onde quer se julgue o homem. Mas apenas
em imanência, porque alguns atingem o ponto de, em nós, se reconhecerem
(PSGH, p. 174).
A despersonalização de Martim é um meio de enraízá-lo nele mesmo e na
natureza do mundo, porque o põe em contato com o plano inexpressivo da matéria e da
linguagem, com aquilo que fica “atrás do atrás do pensamento”, como fala a narradora
de Água viva. Como observou Zorzanelli, esse plano inexpressivo é sempre imanente à
experiência do sujeito, ainda que um contato com ele dependa da despersonalização e de
uma experiência denominada atualidade (Zorzanelli, 2005: 29).
Nos primeiros capítulos de A maçã no escuro essa experiência é tão radical que
Martim se igualar aos minerais e vegetais.
Nessa fase da narrativa, o homem não se diferencia da pedra, da árvore sob a
qual ele dorme ou de um animal qualquer. Como salientou Olga de em A escritura
de Clarice Lispector, “para um homem se fazer, deve começar pelo inorgânico, do
mineral” (1979: 250). Martim se refazia pela raiz, a partir de suas relações com o
mundo mineral.
PLENITUDE DO VAZIO
A experiência do vazio é, ao mesmo tempo, uma experiência de aprofundamento
e abertura.
A melhor metáfora para compreender tal imagem é a do pote. Quanto mais largo
e profundo é o vazio de um pote, maior sua capacidade de reter substâncias. A grandeza
de um pote reside em seu vazio, em sua capacidade de receber, de se encher e
transbordar. Quanto mais vazio, mais aberto, tanto mais profundo e susceptível ele está
de ser preenchido, algo que se encontra explicito na filosofia do Tao Te Ching, de Lao-
Tsé:
(...) O oleiro faz um vaso, manipulando a argila,
Mas é o oco do vaso que lhe dá utilidade.
Paredes são massas com portas e janelas,
Mas somente o vácuo entre as massas
Lhes dá utilidade (...) (Tse, 2003: 47).
Não distante desse entendimento também se encontra o sábio oriental Lie Tse
com o seu Tratado do vazio perfeito. Para ele, é exatamente no vazio que cada coisa
tende a encontrar seu lugar. No vazio tudo cabe. Ele é o nada que é tudo. O vazio é a
origem de todas as coisas manifestas. E com elas se acha em unidade (2001: 11).
se preenche o que está vazio. Portanto, para um homem se “encher” do que é
essencial na vida, faz-se necessário se abrir ao mundo, esvaziar-se do que não mais faz
sentido, de seus pensamentos inúteis, do que pesa e de imagens retorcidas de si mesmo.
“É preciso”, como diz Leloup, “esvaziar-se para ser preenchido. É preciso ser esvaziado
de uma certa imagem de si mesmo para ser preenchido por uma nova imagem” (Leloup,
2003:86).
Ao rejeitar a linguagem dos outros e esquecer seu reservatório interno de
memórias, Martim se sente mudo e oco, tem “dentro de si o grande espaço vazio de um
cego, ele avançava” (ME, p. 19). No vazio de si mesmo, ele se sente profundo, se abre a
si e ao mundo, encontra o que Clarice chamou de “vida larga”, ou seja, aquilo de que se
vive e que, por não ter nome, a mudez expressa, algo que só se aproxima por meio da
“grande largueza de deixar de me ser”.
O vazio vivido por esse personagem pode ser entendido como a ausência de
pensamentos instrumentais, racionalistas, de imagens mentais e de razão no duplo
sentido dessa palavra: razão no sentido de um cogito ordenador do mundo e razão no
sentido de uma força motivacional do ser para agir, viver. Martim estava-sendo-no-
mundo de modo intuitivo e sem procurar uma razão para isso. Era apenas um ser
orgânico cujo coração não passava de um músculo involuntário pulsante; não mais
indagava sobre seus motivos de ser e de estar-ali-mesmo. Somente nessas condições ele
conseguiria a impessoalidade da vida anterior ao homem: “Martim mergulhou de novo
na mesma ausência anterior de razões e na mesma obtusa imparcialidade, como se nada
tivesse a ver consigo mesmo, e a espécie se encarregasse dele” (ME, p. 18).
Por meio do fio invisível que religa tudo que há, Martim esta vazio e em silêncio
vive sem um porquê. Para ele “tudo era um prolongamento suave de tudo, o que existia
unia-se ao que existia, as curvas se faziam repletas, harmoniosas, o vento comia as
areias, batia inútil contra as pedras” (ME, p. 144). A narrativa se inicia numa noite de
março. Naquela noite escura, naquele lento jardim sem lua, se sua “caminhada em
círculos” fosse ao redor de uma fogueira, ele seria capaz de ver, na luz das chamas, a
poeira de seus passos se juntando ao brilho das estrelas. O desconhecido do mundo se
unindo ao que de desconhecido nele, homem e mundo em conexão oculta, silenciosa
e essencial.
A experiência do vazio é o cume do processo de despersonalização: “Até que
terminaria por ser aquilo que, quando alguém sentisse, diria: sou um homem vazio, sou
um homem vazio” (ME, p. 157). É no vazio que o homem percebe e sente que a vida
impessoal animal e a vida pessoal humana fazem parte da mesma teia da vida. Ambas
são frágeis, fugazes, temporárias: essa é a condição de todos os seres vivos.
O que torna universal a vida de Ofélia, G.H., Lucrécia, Ana, Pequena-Flor e
Martim é que, neles também, a vida que se vive é breve, passageira. Mas diferentemente
de outros seres, a vida humana pode ser vivida intensamente, pois é em momentos de
vacuidade, em fugazes acontecimentos, em mergulhos nos instantes que o homem pode
encontrar um sentido maior de sua existência, o lugar de Deus, do amor, dos outros e
reencontrar-se consigo mesmo. É na sensação de ser que se encontra a sensação da vida
humana, algo que a personagem de A bela e fera percebeu e disse: “Sei agora qualquer
coisa sobre os que procuram sentir para se saberem vivos” (BF, p. 39). Um mergulho
profundo num determinado instante, pode ser suficiente para uma pessoa traçar seu
destino e, assim, viver o que Clarice chamou “destino dos instantes” (ME, 51).
Ao se despersonalizar, o personagem torna-se semelhante a uma árvore e essa é
a condição para a realização de seu renascimento. Ele passa por uma morte existencial;
despoja-se de tudo aquilo que o constitui como sujeito, vive isso com perda, dor, susto e
esperança, porque além da perda identitária, esse processo o projeta na vastidão do
mundo, no silêncio primordial que antecede o verbo, na vacuidade e na incerteza do
mundo.
Por acreditar ter matado sua mulher, Martim foge de sua vida societária anterior
e isso implica matar uma forma consolidada de viver e a imagem que ele fazia de si
próprio. Mas foi uma experiência necessária para que ele pudesse se realizar como um
novo ser-no-mundo. Como afirma Leloup, “(...) o homem se realiza na medida em que
supera a si mesmo. Ele cresce na medida em que morre para a imagem que tem de si
mesmo; em outras palavras, tratá-se de um processo de ‘morte e ressurreição’” (Leloup,
2001: 35).
Nesse processo, vida, morte e ressurreição são inseparáveis. Essa é também uma
das marcas constitutivas dos dramas e tramas narrativas de Clarice Lispector:
“Nascimento e morte. Nascimento. Morte. Nascimento e como uma respiração do
mundo” (AV. p. 35). O sujeito passa de um estágio de consciência para outro, morre
para uma visão, uma idéia, um modo de ser, um amor; morre para renascer para outro,
para uma nova existência (Leloup, 2001: 35). Como escreveu a narradora de Água viva
(na verdade Clarice Lispector): “Terei que morrer de novo para um novo nascer?
Aceito” (p. 41).
O crime de Martim significou um ato de morte e renovação, renascimento e
salvação existencial. Na ficção clariceana, os personagens passam pela difícil tarefa de
jogar no chão a antiga pele existencial para renascerem em si mesmos, o que acontece
com susto, dor, surpresa e prazer. O novo vem quando o velho é superado. Se ganha
nova vida rompendo com a antiga. É esse processo que ajuda o homem a reconfigurar o
presente e projetar o futuro.
Ao negar a linguagem dos outros, Martim vivencia o silêncio, esquece que seu
ato foi um “crime”. Sem linguagem e sem memória, sem nada escutar, ele sente a
liberdade de não pertencer mais a nenhuma palavra e nenhuma palavra lhe prender. Isso
porque o homem cria a palavra que o liberta, mas fica preso a liberdade que a palavra
cria. Sem falar e escutar nenhum som verbal, ele se sente vazio, mas livre do peso da
palavra “crime”, por exemplo. É apenas um eu, como aquele eco que ouviu a
personagem do conto Miss Algrave: “eu sou um eu”. Seu desejo de criar uma nova
linguagem era o mesmo de reinventar-se em cada nova palavra e reorganizar o mundo
circundante a partir de novos significados.
Esvaziado do peso da linguagem dos outros, sentia-se cada vez mais distante da
vida anterior, da realidade passada. Mas isso também traz latente a vontade do
personagem vivenciar novas experiências fronteiriças da existência.
Esse processo de esvaziamento, que implica perdas e ganhos, é fundamental para
Martim se despir de sua velha vida, esquecer seu nome e um certo número de memórias
com as quais se confundia sua identidade.
Na busca de si mesmo, a memória é extremamente importante, mas o
esquecimento também é fundamental na vida desse homem, assim como na história de
todos os homens. Clarice sabia disso, pois em 29 de maio de 1971, na crônica “Máquina
de escrever”, ela afirmou: “È preciso antes saber, depois esquecer. Só então se começa a
respirar livremente” (DM, p. 349). O que a primeira parte de A maçã no escuro como
se faz um homem - procura mostrar é isso: na vida de um homem algumas coisas devem
ser esquecidas para que, assim, algo novo possa se tornar presente.
A trajetória do protagonista é marcada por rupturas e continuidades, avanços e
recuos e é assim que ele se aproxima cada vez mais do mundo e se reaproxima daquilo
que tem que ser. Ele não pode evitar o novo ser que se encontra em gestação dentro
de si: “O que tem que ser, tem muita força” (ME, p.78). Seu renascimento implica uma
morte existencial sem a qual o novo não pode nascer. Renascer significa, aqui, um
despertar espiritual ou de percepção interior sem a qual não se pode compreender certas
coisas.
Esta experiência do vazio, mesmo dolorosa para o ser criado, não é uma
experiência patológica, uma incapacidade de viver. É a própria condição para seu
renascimento (Leloup, 2003:80). Com a mente e o coração vazios, o personagem se
encontra completamente aberto a novas reorganizações subjetivas e existenciais, novos
pensamentos e sensibilidades, outras formas de fazer e ser-no-mundo.
O vazio que o personagem experiencia é o mesmo que, numa hora ou outra,
toma conta de todos nós. Esse homem encara o nada que constitui todas as vidas, esse
nada que para a personagem G.H., era vivo, úmido e se colava a ela mesma.
Seu esvaziamento interior dialoga com a plenitude do mundo exterior em sua
perfeição e beleza, mundo no qual ele reside. “O mundo era tão grande que ele estava
sentado. Por dentro tinha o vazio ressonante de uma catedral” (ME, p. 37). Nesse estado
de esvaziamento, Martim está mais próximo da Natureza do que das duas mulheres da
fazendo: Vitória e Ermelinda (Nunes, 1995: 43).
No núcleo vivo da Natureza, Martim sente que não fórmulas nem padrões
para nascer e viver, algo que foi surpreendentemente descoberto pela narradora de Água
viva: “Ocorreu-me de repente que não é preciso ter ordem para viver. Não padrão a
seguir e nem o próprio padrão: nasço” (AV, p. 35). O ser humano está na terra para
viver e se tornar aquilo que deve ser, “aquilo que tem de acontecer” (ME).
Vazio, sem subjetividade, Martim é realidade bruta, um ser-em-si molecular,
impessoal, orgânico e universal. Nele não distinção entre o interior pessoal e o
exterior circundante. Sem segredo. É maciço como uma montanha; existente como uma
maçã; cheio como um ovo prestes a eclodir; vivo como um coração que pulsa; é tão real
como a realidade o é. Ele é um “isto”, a “coisa ali mesmo”. Vive sem preocupação, sem
por quê. O homem se torna a matéria que é o que é: a “coisa” que não tem nome e que
nada nomeia porque perdeu o domínio da palavra; não é mais conseqüência ou causa de
nada. Longe de se constituir como ser supérfluo, sua condição se enraíza no cosmos, na
matéria concreta da vida. O homem está em comunhão com o cosmos. Como todos nós,
Martim trás dentro de si “o mundo físico, o mundo químico, o mundo vivo” (Morin,
2000: 37).
Como cada um de nós, ele é uma partícula do grande todo, uma chama da vida
que em nós ainda brilha: “nós somos uma pequena chama de vida que acende e se
apaga. Temos que nos engrandecer contando que nós somos a mais ínfima partícula do
Grande Todo Que Não Acaba” (Lispector In: Borelli, 1981: 50).
À semelhança da Sra. Xavier do conto “A procura de uma dignidade”, Martim se
encontra envolta nas trevas da matéria onde ele é inteiramente anônimo. Como essa
Sra., ele passou muito tempo de sua antiga vida tentando preencher-se com as atividades
cotidianas e sociais o que, em grande parte, o levou a cometer o crime e romper com a
realidade socialmente preestabelecida.
À experiência do vazio soma-se a do silêncio que envolve o personagem,
silêncio que não deixa provas, pois é, em si, a prova dele mesmo como experiência do
homem. Vazio e sem memória pessoal, Martim se abre, entra no coração silencioso do
mundo para reconhecer sua condição, seu enraizamento na história do Universo.
IRMANAÇÃO DO SILÊNCIO
O homem é um ser de palavra, mas que sabe se calar para ouvir o que não é
palavra. Seu silêncio é uma de suas formas de se comunicar mesmo sem palavras. Essa
forma de falar sem nada dizer sempre foi uma das marcas presentes nos personagens de
Clarice Lispector, assim como na própria vida dessa escritora.
Enquanto viajava pelo mundo acompanhando Mauro Gurgel Valente, seu
marido diplomata, Clarice Lispector escreveu algumas obras cujas narrativas expressam
as errâncias de personagens que, como ela, retratam a solidão, o pouco entendimento do
mundo circundante e o silêncio no qual vivia a maior parte do tempo. O Lustre, que
começou a ser escrito no Brasil e que foi concluída na Itália e publicada em 1946; A
cidade sitiada, escrito em Berna, publicado em 1949, e o romance; A maçã no escuro
escrito em Washington e publicado em 1961, romance que levou 10 anos para ser
concluído, são obras nas quais a temática do silêncio é recorrente.
Em sua escritura, Clarice sempre valorizou o espaço em branco como lugar
seminal de criação, o não-dito que se acha nas entrelinhas da escritura: “Mas que
de escrever, que ao menos não se esmaguem as entrelinhas”. “O que escrevo está sem
entrelinhas? Se assim for, estou perdida” (SV).
Ao valorizar o espaço em branco, o não-dito do texto, a escritora se depara, e
reconhece o fracasso da linguagem e o impasse em que se encontra a ficção quando
pretende expressar o que não tem nome: a ‘vida crua’, o ‘núcleo da vida’, o ‘neutro’
(Waldman, 1997: 16). Auto-reflexiva, a linguagem indaga, sem cessar, essa coisa que
não tem nome, que se sente e uma forma de dizê-lo.
Ao usar a palavra como isca, sua escritura mira a “coisa”, o “inominável” que
habita o silêncio primordial, sua força criadora. Como percebeu Plínio W. Prado Jr., a
escritura de Lispector não nomeia o inominável, não designa o indeterminável como se
fosse um objeto do mundo, um fato. Ao contrário: por meio do esforço e do malogro de
sua linguagem, ela faz sentir que algo escapa restando apenas o não determinado, não
apresentado, ela inscreve uma ausência, alude ao que se evola (Prado Jr., 1989:24-5).
Para a escritora, o silêncio é também algo seminal no processo de criação
literária, bem como o silêncio da narrativa é fundamental no processo de recriação da
narratividade pelo sentido que a ela o leitor imprime. Em A maçã no escuro, não é,
apenas o personagem que se encontra em gestação, em silêncio, refazendo-se, é também
a narrativa e o próprio leitor que passam pelo mesmo caminho do protagonista.
À medida que o romance avança, esse homem vai sendo construído pela
narrativa da escritora e pelo olhar do leitor que penetra, observa, dialoga e interpreta
suas ações, pensamentos, emoções, sua fala e seu silêncio. Semelhante ao que acontece
na crônica “Desenhando um menino”
16
, o leitor de A maçã no escuro vai desenhando
Martim. Como o menino da crônica, o próprio Martim contribui para isso:
(...) com urgência ele tem que se transformar numa coisa que pode ser vista e
ouvida senão ele ficará só, tem que se transformar em compreensível senão
ninguém o compreenderá, senão ninguém irá para o seu silêncio, ninguém o
conhece se ele não disser e contar (...) (PNE, p. 87).
Essa crônica e a trajetória de Martim demonstram que uma pessoa também é
construída pelo olhar, pelos pensamentos e julgamentos das outras pessoas, mesmo que
a relação de alteridade se enraíze no silêncio.
Por meio da ficção escrita, Clarice constrói as bases primordiais de um homem,
cuja matéria é a narrativa dada ao leitor. Este, por sua vez, precisa penetrar no reino das
palavras escritas, nos espaços do não-dito, para sonhar com o personagem, sua vida, sua
existência e sua reconstrução Nessa ficção, o homem se faz de matéria, palavras e
sonhos. Assim, o personagem renasce para si, mas, a cada releitura, ele renasce com
outro rosto, outras propriedades subjetivas e existenciais; é sempre o mesmo ser: um
homem entre homens, complexo e inacabado; um ser que permite muitas faces, vários
contornos, múltiplo e único que é.
Ao escrever, Clarice fala daquilo que não pode se expressar pelas palavras, mas
que somente por meio destas pode ser vislumbrado. que o mal se enovela no bem e o
dito no não-dito, a palavra se enraíza no silêncio do qual surge e para o qual se dirige.
Numa espécie de jogo e sedução, a palavra e o silêncio dialogam, se enovelam, se
revelam sem se esgotarem, como se fossem uma esfinge que mostra o seu enigma sem,
no entanto, revelar seu segredo.
Em “Silêncio”, crônica incluída na coletânea de contos Onde estivestes de noite,
de 1974, Clarice mostra como é difícil falar daquilo que não precisa da palavra para
existir, e esclarece: “Não se pode falar do silêncio como se fala da neve. Não se pode
16
Essa crônica está inserida no livro Para não esquecer, de Clarice Lispector, coletânea de crônicas que
constituíam, originalmente, a segunda parte de A legião estrangeira, de 1964.
dizer a ninguém como se diria da neve: sentiu o silêncio desta noite? Quem ouviu não
diz?” (OEN, p. 95).
No conjunto da sua obra, o silêncio é tanto um tema, com o qual seus
personagens estão sempre às voltas, quanto uma atmosfera que marca o espaço interno
dos personagens. É algo que está no horizonte de seu processo de criação, como pode
ser observado, explicitamente, em Um sopro de vida, quando afirma: este é um “livro
silencioso”, ou quando afirma que A hora da estrela “é um silêncio” (Waldman, 1997:
9).
Em A maçã no escuro, o silêncio é tema recorrente e espaço de experiência
interna do personagem, Martim, que se inicia na linguagem muda das pedras, plantas,
vacas e homens. O silêncio ecoa como um canto de sereia arrastando o desconfiado
17
, o
leitor, para o silêncio primordial do mundo que só pode ser escutado pela mudez
ancestral que habita o homem. É no silêncio que o homem tenta reencontrar suas raízes
e as origens imemoriais do mundo.
teve um sentimento de encontro: pareceu-lhe que no grande silêncio ele estava
saudado por um terreno da era terciária, quando o mundo com suas
madrugadas nada tinha a ver com uma pessoa; e quando, o que uma pessoa
poderia fazer, era olhar. O que ele fez (ME, p. 81).
O homem “viu o que viu. Como se olhos não fossem feitos para concluir mas
apenas para olhar” (ME, p. 81). Pode-se tentar enganar ou fugir do silêncio, mas não era
o que Martim queria. Sua coragem reside em não lutar contra, em entrar em si mesmo,
cair em seu coração silencioso, como “o livro que cai dentro do silêncio e se perde na
muda e parada voragem deste” (OEN, p, 96).
O silêncio vivido por ele é tão vasto e despovoado como aquele que à noite
envolve a montanha. Ouvidos atentos, corpo alerta não são suficientes para ouvir algum
ruído. Ele precisava de um silêncio profundo como um sono para refazer seu
pensamento e o que sentia em si mesmo; ele estava numa “profunda meditação do
silêncio. Desse silêncio sem lembrança de palavras” (OEN, p. 94). Nada pedia, em nada
pensava, pois para Clarice, a meditação profunda não é aquela que pede ou que pensa
profundamente, mas aquela que em nada pensa e nada pede: é silêncio absoluto.
17
Analogia a obra de Roberto Schwarz, A sereia e o desconfiado, no qual tem um ensaio sobre Perto do
coração selvagem”, de Clarice Lispector.
Longe do domínio das palavras, Martim sente-se em comunhão tranqüila com a
“estupefaciente esplendidez do mundo”, com Deus. Sem palavras e pensamentos, ele
sente o cosmo nele mesmo. Sentir é mais amplo do que pensar, dá-lhe a amplitude e
sensibilidade do mundo. Ele sente, profundamente, o que lhe acontece. Seus
pensamento são todos sensações. Sente o mundo circundante com os olhos e ouvidos,
mãos e pés, nariz e boca. Nisso se encontra o sentido de uma existência maior. E isso é
viver.
Captar o mundo circundante dessa forma é senti-lo vibrar atrás do pensamento.
Pensar o mundo é, antes de tudo, sentir o duro chão no qual pisa, a grama macia na qual
se deita; é olhar a realidade por cima da montanha. Comer um fruto é o mesmo que
sentir o sabor do mundo em sua boca. De olhos fechados e deitado na relva, Martim
sente a si mesmo deitado na realidade viva. Seu êxtase é ter uma alegria mansa (DM, p.
99). Ao perceber o silêncio, Martim percebe dentro do silêncio sua própria presença por
meio de uma ligeira incompreensão muito familiar (ME, p. 16).
No reino silencioso no qual se encontra, Martim sente-se em comunhão tranqüila
com aquilo que Clarice chamou de “esplendidez do mundo”, com Deus. No silêncio se
descobre que um coração não precisa de palavras nem de reflexões para sentir o infinito
do cosmo num único momento. O gozo do personagem está no instante-já no qual se
sente, igualmente, o absurdo fundamental e a graça profunda.
Nessa espécie de meditação, ele se sente aterrisado, centrado em sua terra.
Calmo e vazio, enraíza-se no “terreno terciário” no qual se encontra e, ao mesmo tempo,
se abre ao mundo. Sua respiração profunda parece renovar-se em paz; abre-se
profundamente para se elevar até as alturas; está mergulhado no que Santiago Kovadloff
denominou de “silêncio concentrado”, algo que viabiliza a um ser humano recompor-se
cognitiva e subjetivamente. Por meio disso, Martim sente em seu interior uma
irmanação com tudo a sua volta.
Martim era esse silêncio? Ou esse silêncio era a inexpressividade de Martim, sua
condição? O homem e o silêncio formavam uma realidade indivisível e indizível.
O silêncio não implica isolamento, fracasso e acabamento, mas permite ao
personagem escutar a linguagem primeira do mundo. Nesse momento, o homem vive de
corpo inteiro o que Kovadloff chamou de “silêncio da epifania”, experiência que “situa
o homem diante da totalidade indivisível que, como tal, o silêncio encarna. Totalidade
que, em conseqüência, surge nesse silêncio e surge, certamente, como o que é: inviável
para a fala como objeto de apreensão direta” (Kovadloff, 2003:26).
O silêncio é uma experiência profunda da qual ninguém pode fugir. Até Vitória,
dona da fazenda na qual Martim se refugia, também queria que seu lugar e sua vida
fossem cheia de ordem, firmeza e silêncio. Como escreveu Clarice, “Pode-se depressa
pensar no dia que passou. Ou nos amigos que passaram e para sempre se perderam. Mas
é inútil esquivar-se: há o silêncio” (OEN, p. 95).
No conto “Uma amizade sincera”, publicado primeiramente, em 1971, na
coletânea Felicidade clandestina, posteriormente republicado, em 1974, na coletânea
Onde estivestes de noite, com o título “Esvaziamento”, a experiência do vazio e do
silêncio encontram-se fortemente presentes.
Nesse conto, os dois amigos que se conheceram apenas no último ano da escola
sentem-se tão envolvidos um pelo outro que não havia nada que um não confiasse ao
outro. A amizade era tão sincera e intensa que não podiam guardar nem um
pensamento: “um telefonava logo ao outro, marcando encontro imediato” (OEN, p. 98).
Constantemente, os dois se presenteavam com suas presenças, um diante do outro. Para
eles, presente e presença eram a mesma coisa.
Aos poucos foram aparecendo os primeiros sinais de perturbação e inquietação
entre ambos. Seus encontros ficavam cheios de vazios. Sem diálogo, ficavam repletos
de silêncio, pois já não tinham nada a dizer um para o outro.
Para jovens que não sabiam ficar calados, o silêncio era sinônimo de
esvaziamento da relação, por mais sincera que ela fosse. Dentro de cada um havia um
vazio e um silêncio gritante que pedia mais do que presença para acabar com a solidão
que ambos sentiam mesmo estando um ao lado do outro. Prazer e insatisfação, carência
e plenitude estão presentes numa mesma relação por mais intensa e sincera que ela seja.
Cada um pedia, silenciosamente, algo mais do que presença e palavras, pois os relatos
de seus amores e aventuras, as farras em seu apartamento, já não eram mais suficientes.
Eles se queriam e isso ultrapassava a dimensão da palavra e se perdia no silêncio que os
consumia.
Quando um aceita o convite para vir morar no apartamento do outro, preparam o
ambiente perfeito para a amizade sincera. Mas em pouco tempo, a solidão de um diante
do outro, ouvindo música ou lendo, era muito maior do que quando eram sós. Dentro de
um lar cheio de coisas, eles se vêem “de braços abanando, mudos, cheios apenas de
amizade” (OEN, p. 99-100). Dentro de si, eles tinham o vazio e o silêncio ressonante de
uma catedral. Gostavam-se, mas não estavam plenamente felizes, como se a felicidade
não fosse possível de ser vivida em plenitude, a dois.
Vivendo juntos no apartamento, as palavras não eram suficientes para manter
o poder de vínculo que os unia. restou o silêncio que recobria o estrondo
ensurdecedor das presenças. Eles queriam algo mais: a sinceridade pura para coroar a
amizade que um sentia pelo outro. O vazio aumenta e o silêncio torna-se a voz de
ambos. Palavras são insuficientes para expressar o que sentiam.
Mesmo vivendo juntos, talvez sentissem aquela espécie de saudade que não
passa mesmo “quando se come a presença”, nas palavras de Clarice. Não sendo
suficiente a presença, eles queriam absorver um ao outro, numa espécie de unificação
total, pois, para Clarice, este é um dos sentimentos mais urgentes que alguém pode ter
na vida. Na crônica “Saudade”, escrita em 27 de maio, 1968, explicita esse sentimento
de saudade e de presença:
Saudade é um pouco como fome. passa quando se come a presença. Mas às
vezes a saudade é tão profunda que a presença é pouco: quer-se absorver a
outra pessoa toda. Essa vontade de um ser o outro para uma unificação inteira é
um dos sentimentos mais urgente que se tem na vida (DM, p. 106).
O silêncio eterniza o que ambos não verbalizam. O aperto de mãos no aeroporto,
na despedida, transmite essa certeza: uma amizade que supera a euforia dos primeiros
encontros e que supera o vazio e o silêncio também resiste ao afastamento. No silêncio
da despedida, o que ambos sentem resiste às cinzas de sua própria destruição. A
intensidade do que foi realmente vivido não se apaga como a chama de uma vela.
Esse é um conto no qual o silêncio fala alto e as palavras pouco dizem. Percebe-
se a partir dele que é possível uma relação inteira ser construída em cima de não-ditos,
silêncios, pois é nele que o sujeito envolvido tenta interpretar-se, analisar-se,
reencontrar seu lugar no mundo subjetivo e afetivo do outro. A obediência silenciosa de
Martim diante das ordens de Vitória tinha, para essa mulher, um peso maior do que uma
contestação por parte do homem. O silêncio do homem deixava Vitória inquieta e, ao
mesmo tempo, apaixonada.
Presente no próprio enigma da criação e da vida - já que esta é tecida em segredo
o silêncio habita todos nós. Ele está não apenas em Martim, mas também em
Macabéa, Joana, em Ana, G.H., e no autor de Um sopro de vida, quando este diz: “E
cultivo também o vazio silencioso da espécie” (SV, 14).
O silêncio é a voz original do mundo, sinfonia do universo, linguagem sem
língua. Difícil de ser captado, torná-se um desafio à razão instrumental que rege a ação
comunicativa. Incognoscível e íntima, constitui linguagem universal que não encontra
equivalente em nenhuma ngua. Para escutá-lo é necessário tapar os ouvidos e ouvir
seus ecos no coração que pulsa em sintonia com o mundo.
Quando Deus criou o Universo, o silêncio já existia. No princípio não era o
verbo, mas sim o silêncio, como está no Gênesis:
No princípio Deus criou o céu e a terra. Ora, a terra era solidão e caos, e as
trevas cobriam o abismo, mas sobre as águas adejava o sopro de Deus. Então
disse Deus: ‘Haja luz. E houve luz. Viu Deus que a luz era boa, e separou as
trevas da luz; e à luz chamou de dia, às trevas, noite. Assim fez-se tarde e depois
se fez manha: primeiro dia (1:1-5).
Antes do Criador dizer “haja luz” já existia solidão e caos, trevas cobriam o
abismo. Havia, portanto, o silêncio que pairava sobre tudo. Os poetas souberam
perceber a importância do silêncio para a criação poética, pois como afirma Roberto
Juarroz: “não poesia sem silêncio”; perceberam também que antes do verbo vem o
silêncio e que este está no princípio de tudo. A poetisa Alice Ruiz
18
soube captar isso
em sua poesia intitulada “No princípio era o silêncio”:
No princípio era o silêncio
Só quebrado pelas marés
No princípio eram as marés
E seu ritimo
No princípio era o ritmo
E o ritmo transformou-se em som
E fez-se verbo
E o verbo viu que o som era bom
No princípio o ritmo serviu
Para que todos juntos
Conduzissem melhor
Sua embarcação
Depois virou canção
E poesia, no princípio.
A palavra cria o tempo do homem, ordena o universo, funda o mundo vivido. O
verbo se fez carne nas palavras do Criador, tornou-se matéria, substância concreta: “haja
18
Cf. Revista Teresa. Universidade de São Paulo: Ed. 34, n. 4/5, 2003.
luz” e houve de fato luz. Sem silêncio não a palavra e sem esta as coisas inexistem.
Sem as coisas, apenas o vazio e o caos. A ordem do Universo surge do caos, a luz
nasce das trevas, o verbo ecoa no silêncio e a vida emerge do vazio e do silêncio, da luz
e do verbo.
O Universo é mutável. No princípio era uma forma disforme, depois uma forma
organizada. Sai do nada e se auto-organiza. O poder do Criador está na palavra que cria
a coisa conforme sua vontade. Cria o verbo para criar e fazer existir as coisas que quer
ver no mundo, como acontece também na narrativa de A maçã no escuro: “Martim se
lembrou de seu filho que lhe dissera: eu sei por que é que Deus fez o rinoceronte, é
porque Ele não via o rinoceronte, então fez o rinoceronte para poder vê-lo” (ME, p.40).
No Gênesis, o verbo é sinônimo de sopro, de energia, de criação, de ordem e de
vida. O verbo deu forma à matéria disforme. Deu voz ao silêncio. Construiu, sim, o
Universo, cujos alicerces são feitos de silêncio absoluto. Profundo e assustador, ele está
intimamente ligado ao vazio existencial. “Ele é vazio e sem promessa”, como escreveu
Clarice (OEN, p. 94). Antes da palavra do Criador, o Universo estava vazio e cheio de
silêncio que, por sua vez, não se acabou com a criação do verbo.
O silêncio fala sem nada dizer, é o nada e o tudo: imagem do infinito. Simboliza
algo mais do que a negação do verbo, mas uma abertura ao infinito, como mostra o
conto A terceira margem do rio, de João Guimarães Rosa, contemporâneo de Clarice
Lispector
19
, publicado inicialmente em 1962, na coletânea Primeiras estórias.
Essa pequena narrativa trata de um homem cumpridor, ordeiro, positivo, quieto.
Sua mulher era quem regia e ralhava no dia-a-dia com as crianças. Certo dia, o homem
mandou fazer para ele uma canoa. “Encomendou a canoa especial, de pau de vinhático,
pequena, mal com a tabuinha da popa, como para caber justo o remador. Mas teve de
ser toda fabricada, escolhida forte e arqueada em rijo, própria para dever durar na água
por uns vinte ou trinta anos” (Rosa, 2001:79).
O homem nada diz o que queria com tal canoa. Morava perto do rio que se
estende grande, fundo, calado como sempre; rio largo ao ponto de não se poder ver a
outra margem. De repente, sem nenhum motivo compreensível, “sem alegria nem
cuidado”, sem nenhuma recomendação e nem falar uma única palavra, o homem entra
19
Luís Bueno mostra em seu texto Guimarães, Clarice e antes, publicado na revista Teresa n. 2. 2001, p.
249-259, a aproximação que há entre Clarice e Guimarães: se por um lado eles foram considerados como
fenômenos isolados em nossa literatura por inaugurarem caminhos inéditos nas suas escrituras, por outro
lado, o surgimento deles na literatura nacional pode ser contextualizada num sistema sociocultural da
época.
“na canoa e desamarrou, pelo remar. E a canoa sai se indo a sombra dela por igual,
feito um jacaré, comprida longa” (Rosa, 2001: 80).
O homem nunca mais voltou. Tinha ido a algum lugar e, no entanto, parecia não
ter ido a lugar nenhum. Estava no meio do rio e ali permanecia sempre em silêncio,
consigo mesmo e sempre dentro da canoa. Ninguém entendia o que havia acontecido
com aquele homem. O filho o alimentava. Colocava a comida num oco de pedra do
barranco, longe de bicho, ao abrigo de chuva e de orvalho. Fez isso durante muito
tempo. Muitas tentativas foram feitas para trazer o homem de volta. Todas fracassadas.
O homem não pousava em nenhuma das duas margens, nem nas ilhas e croas.
Ficava sempre no meio do rio, como que ali fosse não propriamente o leito, mas a sua
margem de existência e equilíbrio, fluxo de sua vida. Ali permanecia “e nunca falou
mais palavra, com pessoa alguma”.
Em silêncio ele partiu e para o silêncio ele foi e nele ficou. Ninguém entendia as
razões do homem. Vivendo em silêncio, nessa casa de palavras mudas, o homem
parecia habitar o tempo sem tempo, o infinito. A terceira margem do rio não é um outro
lugar por onde o rio corre, e sim o lugar onde o homem passa a viver. É a terceira
dimensão do tempo e da existência, aquela que somente o silêncio pode tocar.
Em Água viva, a narradora, se esforça e tenta captar a quarta dimensão do
“instante-já”, daquilo que está acontecendo “agora mesmo” com ela. Sua intenção de se
entender é possível nesse “instante-já”, pois é nele que ocorre a atualidade do “sou
eu”. Nesse romance, a palavra, escrita ou falada, é essa quarta dimensão. Em A terceira
margem do rio, o silêncio não seria nem a quarta nem a quinta dimensão da existência,
mas a dimensão anterior a língua, algo que fica a margem do verbo.
Ao largar a pequenez de seu vilarejo para habitar a largueza silenciosa do rio, o
homem parece viver o que Clarice denomina de “vida larga”. Apartado do mundo das
palavras, o personagem vive a terceira margem de sua vida: o silêncio, esse infinito
particular de sua existência. E assim ele tem o universo a seu redor.
Tanto em A maçã no escuro quanto em A terceira margem do rio, os
personagens vivenciam a carência material: a pobreza voluntária em que passam a
viver; a carência de linguagem própria: negam a linguagem dos outros; e o refúgio
como forma de viver o silêncio primordial da vida. Se no conto de Guimarães Rosa, o
silêncio é uma escolha consciente do personagem, para Martim o silêncio é uma
condição de se redecobrir. Martim tinha um propósito: ao fugir de seu crime, atingir o
descortino do mundo e a compreensão de sua condição humana.
Em A terceira margem do rio, as motivações do personagem ficam perdidas com
ele na terceira margem do rio. O leitor precisa atravessar o rio imaginário e romper o
silêncio do personagem para saber suas motivações. Talvez este quisesse o mesmo que
Martim, inconscientemente, queria: substancializar-se no vazio e entender-se no
silêncio.
Para Waldman e Vilma Áreas, Martim também tenta alcançar uma terceira
margem de sua vida, ao final de sua trajetória ao rejeitar fórmulas e símbolos rançosos,
mas essa tentativa não vai além da esfera da subjetividade, não se concretiza no ato, não
o protege daquelas leis das quais tentara escapar no início (1989: 164). Martim é levado
de volta à sociedade e ao convívio com os outros. Volta ao ponto de onde partiu. No
conto de Guimarães Rosa, o homem fica no lugar para onde foi.
Como Clarice Lispector, Guimarães Rosa via com suspeita a racionalidade,
privilegiando em sua visão de mundo a necessidade de religação mais forte e
diretamente o homem com a Natureza. Nesse aspecto, o personagem de A terceira
margem do rio é parente muito próximo de Macabéa e de Martim, pois é no auge de seu
alheamento intelectual e no silêncio profundo de sua condição que se sentem religados
ao cosmo por inteiro. Quanto menos inteligentes, mais estavam eles inseridos no mundo
e sua bruta realidade.
Por meio de seus personagens e narrativas, Clarice Lispector e Guimarães Rosa
mostram que a condição humana e a realidade contêm em seu âmago um elemento
fundador, vital, essencial, que a razão instrumental cartesiana não consegue enunciar
e
nem perceber.
Assim como o silêncio pode nos afastar do convívio societário, pode também
nos recolocar em outras dimensões da existência. Fazer silêncio é esquecer as
preocupações, uma trégua das inquietações. Com a falta de palavras, Martim contemplar
melhor as coisas do mundo: “A árvore que ele viu era de pé. Na beleza do silêncio, a
árvore” (ME, p. 48).
Calado e sem nada ouvir, Martim sente-se enraizado na mudez inicial do
universo, pois é neste que se enraíza a misteriosa singularidade humana. “É na imagem
desse silêncio, nessa imagem sem forma, na qual o homem pode contemplar-se sem se
ver” (Kovadloff, 2003: 10-4).
Enraizado no silêncio do mundo, o personagem sabe de si por meio da veia que
pulsa e lateja, entende o mundo ao manter com este uma espécie de diálogo dos
sentidos, um conhecimento sem palavras, sem raciocínio. Pouco a pouco a realidade
circundante vai sendo conhecida e reconhecida. Sente-se integrado às forças criativas da
vida e do cosmo, e sente nele mesmo.
Como já foi assinalado, o silêncio é fonte de gestação de poesia, fluxo emergente
de palavras e subjetividade, coisa que Clarice sabia e expressou muito bem ao dizer:
“Há um grande silêncio dentro de mim. E esse silêncio tem sido a fonte de minhas
palavras” (DM, p76).
Mais do que os contos e romances, suas crônicas trazem um tom de experiência
subjetiva e pessoal muito forte. Nas crônicas ela explicita melhor algumas das questões
colocadas em seus contos e romances. O silêncio que a habitava não era outro senão
aquele vivenciado muitas vezes por seus personagens. É do silêncio que ela tirava a
palavra que escrevia, é para o silêncio que sua escritura remete.
A palavra é gerada no silêncio e quando é pronunciada traz consigo o universo
subjetivo de quem a verbalizou. Escritora e personagens vivenciam, assim, o silêncio
como forma de escuta subjetiva do mundo circundante e de si mesmos. Semelhante ao
personagem do conto de Guimarães Rosa, Martim sai do mundo das palavras para
habitar o universo do silêncio. Por quê? Porque quando as palavras não dizem nada a
um homem somente o silêncio pode salvá-lo.
Para quem tinha negado a linguagem dos outros, o silêncio representava a
experiência capaz de fazer Martim reconstruir a linguagem, reconstruindo-se com ela.
Foi durante o silêncio que ele sentiu necessidade de criar uma palavra que o
expressasse.
É no silêncio que o sujeito se interroga, duvida de si e do mundo, imagina, mexe
com a operacionalidade de uma gica não instrumental, cujo fundamento é anti-
cartesiano. Para captá-lo é necessário uma escuta sensível capaz de rejuntar aquilo que a
mente racionalista separa. Escutá-lo é ouvir os apelos de seu ser mais íntimo, ser
profundo que não conhece dicotomias entre sim e não, alma e corpo, vida e matéria,
coração e mente.
É por meio dessa experiência que Martim tenta se ouvir, entender sua condição,
regenerar-se como humano. Escuta a voz de fora e a voz de seu interior. Aprofunda com
paciência, amor e altivo desinteresse no mundo fora de si para escutar em seu coração o
eco da sinfonia das estrelas que só pode ser ouvida em silêncio. Percebe dentro do
silêncio a sua própria presença. Ouve o que vem até ele e, principalmente, o que dele
mesmo provém. Sua escuta não é somente compreensiva, mas, sobretudo, apreensiva e
sensitiva.
Martim atende aos apelos de si e do mundo, apelos de escuta poética. Sem
entender racionalmente o que se passa consigo e com o mundo, ele vive e sente essa
indizível unidade que o silêncio por ser comum a todas as coisas e ser a primeira
linguagem do mundo.
Somente o homem é capaz de construir suas arquiteturas existenciais com
palavras e roupagens verbais para existir e compartilhar com todos os outros um mundo
em comum. Mas é no silêncio que ele constitui uma nova imagem de si, uma outra
subjetividade. “O silêncio extremo comprova (...) que a subjetividade encontra nele seu
solo radical” (Kovadloff, 2003: 14).
Nesse estádio da narrativa, Martim vivencia o começo de novas reorganizações
subjetivas e sensitivas, de novas articulações entre o que ele sabe e o que ele é, entre seu
ser imaginário e seu ser real; percebe-se como parte de um todo maior, ser físico e meta-
físico, ser natural que traz em si a capacidade de fazer cultura, mas também um ser que,
mesmo vivendo dentro de regras, tem a capacidade de transgredi-las e cometer um
crime.
O silêncio e a escuta de si são caminhos para o homem sintonizar o saber de si
com o conhecimento sobre o mundo, seu ser com seus desejos e estes com a realidade
circundante.
O silêncio esvai-se quando o verbo é soprado, mas não deixa de existir. O verbo
começa na boca do Criador, mas se amplia e se multiplica na voz e nas ações do ser
humano. O homem não somente habita um mundo criado por Deus e por sua palavra.
Ele também cria a palavra para se recriar com ela e refazer o mundo. Habita, assim, o
universo e a palavra.
Todos os seres são produtos do Verbo. Mas o homem sabe que o silêncio
transborda de sentido. Somente esse silêncio pode nos libertar das limitações, do peso
da linguagem e recriar uma outra forma de entendimento.
O homem é produzido e produtor da palavra e do silêncio. Ele é a palavra que
ele mesmo fala e escuta como se estivesse diante da sinfonia das estrelas. Sua voz é um
eco da cantoria do mundo.
O universo se apresenta, aqui, como um grande texto, uma partitura sonora:
“Somos uma humilde letra, uma sílaba, uma palavra da gigantesca Odisséia. Estamos
imersos numa canção gigantesca e brilhamos como brilham as humildes conchas no
mar” (Kazantzakis, 1997: 82).
Ao se aprofundar no vazio e no silêncio de si, Martim pode se perceber como
sílaba, palavra ou nota musical da grande canção do Universo. Ao mesmo tempo em
que o personagem vivencia essas experiências, mergulha na Natureza para descobrir seu
brilho de estrela na terra, pois afastado da natureza ou indo encontro ela, o homem não
pode se reencontrar verdadeiramente.
Em Um sopro de vida, Clarice afirma: “Se me desenraizo fico de raiz exposta ao
vento e à chuva. Friável” (SV, p. 27). Até aqui acompanhamos, simultaneamente,
experiências místicas e de desenraizamento de Martim: a despersonalização, o vazio e o
silêncio. Desenraizado de sua antiga vida, de seu passado societário, exposto ao vento,
ao outro, aos desafios da vida, Martim encontra-se apto a recomeçar sua jornada de
auto-regeneração e de reconstrução do mundo.
De agora em diante, para se refazer a si e ao mundo, terá de arar ainda mais a
terra desconhecida de seu ser, aprender a crescer como uma planta, relacionar-se com os
animais que precisam uns dos outros..
LUMINESCÊNCIAS
A semente
Germinada
Cria gerações.
Jorge José de Souza
A asa lasca a casca
O bico o ovo fere
A casca dura fura
Nasce a criatura
Eduardo Pacetta
No princípio era a fábula.
Paul Valéry
O OUTRO LADO DA MAÇÃ
A trama que envolve Martim trás implicada uma crítica à racionalização do
pensamento e da vida moderna, vida que perdeu seus fundamentos em meio a técnicas e
cientificizações, fragmentações e padronizações; esse mundo que exige tanto do homem
que ele se sente consumido, no limite de si mesmo e que para continuar vivendo, precisa
se metamorfosear. Não se trata de transformação igual a que acontece em A
metamorfose, narrativa fantástica de Franz Kafka, na qual o homem de tão consumido
que está pelo trabalho e pelas obrigações formais cotidianas se metamorfoseia
fisicamente em um inseto.
Num mundo regido pela técnica e pela fragmentação, pela lógica e pela
racionalização, o homem moderno se sente em crise ao perceber seu fracasso a cada
tentativa de aplicar rigorosamente a lógica à sua vida cotidiana. Se, por um lado, se
mergulhado em técnicas, na ciência, na materialidade e informações, por outro, sente
que está perdendo seu enraizamento natural, animal, mítico, onírico, divino.
Vazio e sem esperança, sente-se sozinho no mundo tentando criar seu próprio
caminho. No conto “A partida do trem” Clarice reconhece que “O homem está
abandonado, perdeu o contato com a terra, com o céu. Ele não vive mais, ele existe”
(OEN, p. 36).
A maçã no escuro é uma resposta a essa atmosfera de superficialidade da vida,
resposta ao homem moderno que está desenraizado em sua própria terra, solto em sua
própria casa, construindo coisas capazes de destruí-lo; ao homem que não sente mais os
perfumes da terra nem percebe no corpo as estações chegando; homem afastado do céu
e da terra, sem capacidade de beber a água viva nas fontes nem contemplar o brilho
longínquo das estrelas. Num mundo desumanizante, a plenitude do viver torna-se um
desafio.
Diversas vezes Clarice Lispector expressou seu grande medo de que a cnica
desumanizasse o homem. No conto “Tempestade de almas”, ela é explicita e enfática ao
dizer: “O futuro da tecnologia ameaça destruir tudo o que é humano no homem”. Mas
essa escritora via uma saída para o homem: a loucura, o sonho: “(...) mas a tecnologia
não atinge a loucura; e nela então o humano do homem se refugia” (OEN, p. 118-9).
Clarice não via as coisas de forma dicotômicas: considerava a loucura como sendo a
vizinha da mais cruel sensatez.
No germe que desencadeia a criatividade, a loucura está presente como fuga da
logicidade que pode prender ou moldar o processo criativo. sempre um pouco de
loucura no germe da criação literária, artística. A ilogicidade seria, assim, uma lógica
não aceitável, não compreendida pela razão instrumental de cunho cartesiano que reina
em nossa sociedade. É exatamente essa outra gica que rege a natureza e a vida, daí
tanta dificuldade de entendê-las, pois elas não se encaixam dentro de nossos princípios
racionalistas. Seria mais pertinente dizer como Clarice: “Não lógica, se se for pensar
um pouco, na ilogicidade perfeitamente equilibrada da natureza. Da natureza humana
também. O que seria do mundo, do cosmo, se o homem não existisse” (OEN, p. 119).
Em A maçã no escuro e nos demais romances, contos e crônicas a escritora
expressa sua visão sobre a natureza humana e o modo como a vida societária é regida. O
ser humano que sempre foi concebido como um ser da razão, do cálculo, do trabalho e
da medida, também deve ser compreendido como um ser da loucura, da desrazão; um
animal dotado de despropósito; um ser que se auto-controla, mas que é possuído pelos
excessos; racional e técnico, mas que se realiza também por meio da ubris e do delírio.
A natureza humana é, assim, sempre unidual como afirma Edgar Morin: somos sapiens
e demens, faber e ludens, tecnicus e mythologicus (2004: 91-2). Vivemos de idéias e
pensamentos, de trabalho e de razão, mas vivemos intensamente também de mito e
poesia, de sonhos e imaginário.
A vida anterior do engenheiro Martim e toda sua trajetória depois do crime -
assim como muitos dos contos de Clarice - sinaliza para a idéia de que no mundo
inúmeras técnicas e pouca liberdade, demasiado saber e nem tanta felicidade, muitos
conhecimentos e não necessariamente auto-conhecimento, muita realidade e pouco
sonho.
Para Clarice, o sonho é fundamental na vida humana além de ser uma das formas
de viver e alcançar a realidade. Nesse sentido, A maçã no escuro é um sonho profundo
do narrador/escritora para atingir o núcleo vivo e duro da realidade, mas não deixa de
ser também uma metáfora moderna da recriação e da reconstrução do homem que foge
da desumanização pela técnica, pela ciência e pela razão, esse triedo que construiu as
bases da sociedade moderna. O protagonista, Martim, parece ser o homem que, cansado
de pensar e trabalhar, quer sonhar, viver livremente, criar uma nova linguagem e com
ela reinventar-se como um novo homem e, possivelmente, recriar a sociedade.
Diferentemente da narrativa de Kafka, na de Clarice Lispector, o homem passa
por uma outra metamorfose: como uma lagarta que entra dentro de si mesma para se
tornar borboleta e ganhar vida nova, o homem se refugia introspectivamente nele
próprio para encontrar seu eu profundo e habitar o mundo de outro jeito. Lá, no refúgio
de seu próprio eu, Martim encontra e revela a imagem dos outros.
Enquanto na narrativa de Kafka a metamorfose é corporal, na narrativa de
Clarice essa metamorfose acontece por meio de um longo e complexo mergulho
introspectivo, é algo, simultaneamente, espiritual e subjetivo, mítico e existencial.
Marca da escritura clariceana, esse mergulho introspectivo estava presente em
seus primeiros contos e no seu romance de estréia Perto do coração selvagem, presente
na trajetória de sua protagonista Joana (Nunes, 1976). A maçã no escuro vai além:
aprofunda ainda mais o personagem, o homem, nele mesmo. Martim desce ao
subterrâneo de suas memórias ancestrais, ao it, ao impessoal comum a todos os seres
para redescobrir o ser humano que ele é. Esse homem poderia dizer o mesmo que a
narradora de Água viva disse depois de ter entrado lentamente na pintura e na escrita:
estou no “limiar de entrada de ancestral caverna que é o útero do mundo e dele vou
nascer” (AV, p. 14).
Para essa narradora, pintar cavernas é mergulhar na terra e em suas próprias
profundezas de ser. Escrever é como que escavar a terra ou entrar num mundo
emaranhado de cipós, sílabas, madressilvas, cores e palavras. Sem pintar e sem
escrever, Martim mergulha tão profundamente em suas cavernas interiores que
encontra o vazio do mundo e seu silêncio primordial.
A narrativa atinge, com isso, um certo grau de inexpressividade porque seu
protagonista alcança a nebulosidade do que não tem nome e da qual a escritura deve se
aproximar tendo como guia a intuição e o “sem forma”. Martim está na “vida larga”, na
verdade de ser que não precisa da razão analítica para existir; observa o mundo como o
cão Ulisses
20
, pensa como o coelho Joãozinho
21
, habita a realidade como a galinha
Laura
22
. Martim conhece aquilo que Olga de chama de o real ao nível da
primeiridade (2004: 108).
Fora de suas faculdades interpretativas, além das fronteiras da análise e da razão,
ele se depara com o real irredutível à formulas, a palavras e compreensão racional:
“aquilo que resiste ao entendimento sob o nome do inominável” (Kovodloff, 2003: 28).
20
Protagonista/narrador de Quase de verdade, narrativa de Clarice Lispector.
21
Personagem da narrativa O mistério do coelho pensante, de Clarice Lispector. Uma estória policial para
crianças, publicada em 1967.
22
Personagem da narrativa A vida íntima de Laura, de Clarice Lispector, publicada pela primeira vez em
1974
Quando a existência do mundo e do homem ficam insustentáveis pela razão, o
homem se sente confuso, perdido e por isso tenta seguir a “verdade latente” (AV, p. 37),
como assim o fizeram Martim, a narradora de Água viva, Joana, e G.H. Na verdade,
“todos eram tudo em latência”. Mas em Martim “a latência pulsava leve, ritmada,
ininterrupta” (OEN, p. 57).
Os personagens de Clarice Lispector vivem buscando a verdade de si próprios.
Mesmo de forma indireta ou inconsciente, eles vão se abrindo para si, redescobrindo-se
como ser-no-mundo e se tornando aquilo que tem de acontecer, mesmo que isso
implique atravessar ou viver o oposto do que eles viviam, como acontece no conto
“Miss Algrave”.
Nessa pequena narrativa inserida em A via crucis do corpo, coletânea de contos
publicados pela primeira vez em 1974, a personagem Miss Algrave “descendia de
irlandeses. Era ruiva, usava os cabelos enrolados na nuca em coque severo”. Mas “seu
primeiro nome era Ruth” (VCC, p. 14). Como Macabéa, ela era datilógrafa.
Moça sujeita a julgamento dos outros e aos dela mesma, possuidora de uma
grande moral e limitada por ela, “quando passava pelo Picadilly Circle e via as mulheres
esperando homens nas esquinas, só faltava vomitar. Ainda mais por dinheiro! Era
demais para se suportar. E aquela estátua de Eros, ali, indecente” (VCC, p. 13).
Ao ver tais cenas, sente-se ofendida em sua humanidade. Sua moral cristã é tão
rígida que até seu corpo representa uma vergonha para ela mesma. Toma banho apenas
uma vez por semana, no sábado, para não ver o seu corpo nu. Não tirava nem as
calcinhas nem o sutiã. Para ela, corpo lembra pecado e sexo era depravação. Uma
mulher poderia passar sem sexo.
Numa certa noite de maio, num sábado de lua cheia, acontece com ela uma
experiência inesperada que mudou sua vida. Deitada na cama com a sua solidão e
quando
Foi então que aconteceu.
Sentiu que pela janela entrava uma coisa que não era um pombo. Teve medo.
Falou bem alto:
- Quem é?
E a resposta veio em forma de vento:
- Eu sou um eu.
- Quem é você? Perguntou trêmula.
- Vim de Saturno para amar você.
- Mas eu não estou vendo ninguém! Gritou.
- O que importa é que você está me sentindo. (VCC, p. 16-7).
Com medo e trêmula, ela sente pela primeira vez o frisson e o desejo em seu
corpo, coisa que não sabia que poderia sentir, pois seu corpo era desconhecido para ela
mesma. Sem saber como chamar a voz que ouvia, ela a chamou de Ixtlan. Este ser de
Saturno mandou-a tirar a roupa e deitou ao seu lado na cama, passou as mãos pelos seus
seios e ela, por nunca ter sentido o que sentiu, achou “bom demais. Tinha medo que
acabasse. Era como se um aleijado jogasse no ar o seu cajado”. “Tinha vontade de mais,
mais e mais”. O prazer que sentia a fez declarar: “eu te amo, meu amor! Meu grande
amor!” (VCC, p. 17).
Ao aceitar a verdade de seu desejo silenciado pela moral, pelos padrões
societários, ela se aceita, reconhece a verdade de seu corpo e de sua condição. Ao
superar o medo, o desejo a fez viver sua condição. Como escreveu Clarice na crônica
“A condição humana”, “a condição não se cura, mas o medo da condição é curável”
(DM, p. 165). Foi assim que ao se sentir realizada, não sentiu mais necessidade de ir à
igreja, nem repulsa pelos casais do Hyde Park: “Sabia como eles se sentiam”.
Miss Algrave sente a verdade de si que vem com a transgressão do que, para ela,
era normal e verdadeiro, aceitável. Larga a verdade na qual vivia para viver a verdade
que ela é. Torna-se aquilo que tanto negava nos outros e nela mesma, conhece o outro
lado da vida, de sua vida. Para tanto, paga um alto preço por sua nova condição e por
sua liberdade, mas “pagaria tudo o que tivesse de pagar. Sempre pagara e sempre fora
infeliz” (VCC, p. 19). Passou a ficar nas ruas e a levar homens para o quarto. “Como era
boa de cama, pagar-lhe-iam muito bem” (VCC, p. 20).
Ao contrário da relação inicial entre Ulisses e Lóri fundada inicialmente no
prazer da aprendizagem, Miss Algrave descobre a aprendizagem do prazer em seu
próprio corpo, em seu próprio sexo, “porque uma pessoa reconhece o que deseja” (ME,
p. 53) e é isso que a tornou mais humana e não mais ofendida pela humanidade, como
ela dizia.
Percebe-se nesse conto que medo e desejo caminham lado a lado, ser e não-ser
habitam o mesmo sujeito. Algo próximo da experiência vivenciada por G.H. diante da
barata esmagada pela porta do quarto. Ela percebe o ser e o seu ser, se reconhece animal
e humana, corpo e alma, pois ser e não ser, corpo e alma fazem dela aquilo que ela é.
Os personagens clariceanos não explicam nada porque eles não têm a verdade.
Buscam-na, apenas. Eles são a verdade de que tanto buscam. É com susto, prazer, dor e
surpresa que eles descobrem que a verdade maior de um homem está nele mesmo, e que
muitas vezes não é necessário pensar e sentir para alcançá-la.
Tudo ocorre como se da verdade de si mesmo ninguém pudesse fugir. Os
personagens querem a verdade do que são e tal verdade não está fora, não é
transcendente e sim imanente. Se eles a querem, é porque eles ainda não a têm e ainda
não são aquilo que desejam ser. Querem a verdade, mas a verdade também os quer,
sentem-se chamados por ela, por essa outra voz profunda dentro de si.
Por estar em estado anterior a palavra, sem subjetividade, estado de vida que
pulsa e respira, Martim pode ter contato com a realidade do mundo circundante
intuído, sentido, pois a “coisa” está “atrás do atrás do pensamento”, atrás das esferas da
lógica racionalista. É isso que levou Olga de Sá, em A escritura de Clarice Lispector, a
considerar A maçã no escuro como uma paródia do Gênesis, uma nova escritura da
velha tentação paradisíaca em termos de ficção. Martim é uma nova espécie de Adão,
peregrino da linguagem, tentado pela maçã que é a palavra (SÁ, 1986: 248).
O GÊNESIS, A MAÇÃ, O HOMEM
Já foi dito por alguns críticos que a obra de Clarice Lispector tem uma atmosfera
de gênesis. Mas porque a escritura dessa autora faz lembrar isso? O que o Gênesis
revela que permite aos interpretes da obra dessa escritora fazer tal analogia?
Para responder a essas questões é necessário, primeiramente, falar do que se
trata a narrativa bíblica do Gênesis.
Essa narrativa pode ser vista e interpretada não somente como um livro
religioso, mas como uma fábula primordial, uma narrativa fantástica ou metafórica. É
também um livro de fundamentos míticos e antropológicos, pois trata da origem do
homem e do destino da humanidade. Origem certa e destino incerto, a ser realizado.
Destino “que é feito de luta e sofrimento e perplexidade e alegrias menores”, como
escreveu Clarice na crônica “Estado de graça”, de 6 de abril de 1968 (DM, p.92).
O Gênesis narra as primeiras origens do universo, do mundo e do gênero
humano. Contempla a criação do homem no seio da natureza, sua ascensão e queda do
paraíso depois da desobediência ao Pai.
O homem aparece tardio no processo de criação do mundo. No quinto dia de
criação, havia céu e terra, luz e calor, dia e noite, águas, plantas e minerais; somente
quando existiam todas as condições para a vida ser gestada é que o homem é criado.
Foi no quinto dia que o Criador disse: “Fervilhem as águas de animais viventes e as
aves voem por sobre a terra diante da abobada do céu”.
E no sexto dia criou as feras terrestres, os animais e os répteis dos campos, cada
um segundo sua espécie:
Façamos o homem à nossa imagem, à nossa semelhança, e tenha poder sobre
todos os peixes do mar, e sobre as aves do céu, e sobre os animais, e sobre as
feras terrestres, e sobre os répteis que rastejam pela terra. Deus criou o homem
à sua imagem, criou-o à imagem de Deus, e criou-o homem e mulher (Gênesis,
1: 24-31).
Então o Senhor Deus formou o homem com o da terra e lhe insuflou nas
narinas um hálito de vida, e com isso tornou-se o homem uma alma vivente
(Gênesis, 2: 7-8).
O texto faz uma nítida afirmação da unidade. Primeiro, do homem e da espécie
humana. Segundo, da fraternidade universal, pois todos compartilham do mesmo
princípio da vida, trazem a mesma matéria vital. A genealogia do homem está inscrita
na genealogia do céu e da terra. O mesmo princípio de criação que fez a terra e ornou o
céu também fez o ser humano. Entende-se com isso que a matéria que forma a Natureza
e o mundo é a mesma que forma o corpo das aves, répteis e mamíferos, incluindo o
homem, coisa que os físicos e os astrofísicos contemporâneos vêm falando de outra
maneira. A vida é múltipla, diversa, por isso assume várias formas, cores, tamanhos e
faces.
Conhecedora da Bíblia Sagrada, Clarice Lispector deixa ecoar em suas escrituras
essa aura de gênese. Em uma de suas crônicas, reconhece que o mundo foi criado para
aquilo que deveria vir acontecer: o homem. Para se adaptar ao mundo que para ele foi
criado, o homem deformou o mundo na tentativa de satisfazer suas necessidades.
“Quando o mundo foi criado, foi preciso criar um homem especialmente para ele. (...)
Não sabemos como seríamos se tivéssemos sido criados em primeiro lugar e depois o
mundo deformado às nossas necessidades” (PNE, p. 40). Fruto da criação divina, o
homem traz em si “pequenos dons que ele não usou nem desenvolveu”, o que o torna
inacabado e misterioso. O ser humano se ergue como “um espanto inexplicável” (PNE,
p.40), pois a criação não vem para esclarecer e sim para acrescentar ao que existe um
novo mistério.
Em Água viva, Clarice cita textualmente uma passagem do Gênesis: ‘E plantou
Javé Deus um jardim no Éden que fica no Oriente e colocou nele o homem que formara’
(AV, p. 52). Essa mesma aura é claramente perceptível em Um sopro de vida, quando a
autora coloca, como epígrafe, uma passagem do Gênesis: “Do da terra formou Deus-
Jeovah o homem e soprou-lhe nas narinas o fôlego da vida. E o homem tornou-se um
ser vivente”. No próprio texto/diálogo desse mesmo livro ela escreve: “Foi Deus que me
inventou e em mim soprou e eu virei um ser vivente. Eis que apresento a mim mesmo
uma figura” (SV, p. 28). O homem é a única criação/criatura divina capaz de construir
para si aquilo que o Criador não pôde lhe dar quando o inventou. Essa aura de gênese
também é perceptível em A paixão segundo G.H., e em toda a trajetória de Martim,
protagonista da complexa narrativa de A maçã no escuro.
Mesmo que na narrativa bíblica o homem ocupe um lugar hierárquico
privilegiado, ele é um dos fios da teia da vida, pois a criação do homem está inserida no
ciclo de criação e de metamorfoses do Universo. A história da vida se enraíza no
homem e este se enraíza na gênese da Terra, do Universo e de Deus. Essa idéia de
unidade do ser com o mundo está presente em toda a obra de Clarice. Para ela “Não
nada mais do que uma ‘coisa’ (...) existe a unidade dos seres pela qual cada coisa é
uma consigo mesma – consiste em si, adere a si mesma” (SV, p. 106-7).
O homem é matéria bruta, átomo de estrelas extintas, um sopro que a vida faz
crescer e espalhar suas sementes no mundo. O homem não é apenas filho de seus pais. É
também filho da natureza e das estrelas, o caçula dos ventos, neto do Sol, irmão da Lua,
é semente do universo, semente que fertiliza a terra com vida, trabalho e amor.
Os primeiros capítulos do Gênesis e os primeiros capítulos de A maçã no escuro
compartilham da mesma cosmovisão: homem e Natureza, vida e matéria, animalidade e
humanidade compartilham da mesma substância, formam um todo.
O Gênesis narra a construção do mundo e do homem. A maça no escuro narra a
reconstrução do homem e do seu mundo circundante por meio da linguagem e do seu
ser. Em ambas as narrativas, o corpo do homem é uma volúpia da natureza. A vida se
infunde na matéria. A humanidade se enraíza na animalidade. É no coração do homem
que o mundo sente a si mesmo; em suas narinas a vida respira e em sua forma de
“pensar-sentir” o universo ganha sentido de existência. Nesse cenário, tudo parece ser
uma coisa só. A matéria da vida é uma só. Deus fez o padrão, “o tipo padrão
animal”, dizia Clarice (OE, p. 16).
Tanto em uma narrativa quanto na outra, todos os seres viventes fazem parte da
mesma “árvore da vida”, mas o homem se destaca por ser tentado pela “árvore do
conhecimento”.
No Gênesis duas árvores: a da vida e a da ciência do bem e do mal. Esta
última estava no meio do jardim e era dela que o homem não poderia comer seu fruto
para não morrer. Deus também pôs o homem no centro do jardim do Éden para cultivá-
lo e guardá-lo dando a ele este preceito: “Podes comer de todas as outras árvores do
jardim, mas da árvore da ciência do bem e do mal não comerás, porque no dia em que
dela comeres, morrerás ao certo” (Gênesis, 2: 15-17). E a serpente diz à mulher: “Não,
não morrereis. Antes, Deus sabe que quando dele comerdes, abrir-se-ão os vossos olhos
e vos tornais como Deus, conhecendo o bem e o mal” (Gênesis, 3: 5-6).
Mesmo tendo comido dessa árvore, Adão e Eva não morreram como o Pai havia
insinuado, pois essa árvore não causou a morte biológica, mas apenas a morte de uma
idéia, de um pensamento, de uma consciência, provocando, ao mesmo tempo, o
renascimento de outra. Eles morreram apenas para uma certa imagem deles mesmos,
mas renasceram na mesma vida, vivendo-a de forma diferente. Semelhante a uma
serpente que troca de pele para continuar vivendo, eles jogaram no chão suas antigas
peles em nome de uma outra: despertaram os sentidos e a consciência da sexualidade;
em uma palavra: trocaram a visão da inocência pelo sabor do “conhecimento proibido”.
Ao comer da árvore do conhecimento, o homem saboreia o conhecimento de si,
de sua realidade interior e de seu mundo circundante. Isso provoca imediatamente a
irrupção de uma verdade e de uma ilusão, de uma elucidação e de um mito, de um
conhecimento e de uma nova subjetividade. Como todo o conhecimento, aquele que
eles saborearam foi também comprometedor de sua condição.
Mesmo que Deus tenha colocado a dualidade plantada no Jardim, a coisa se
passa como se Ele não admitisse a percepção do bem e do mal, juntos. Mas a serpente
aparece enrolada na árvore da “ciência do bem e do ma”l, mostrando que nessa árvore
não dualidade entre uma coisa e outra, entre o Criador e a criatura, mostrando que
aquilo que separa é o mesmo que uni, aquele que condena é o mesmo que salva, aquilo
que prende também pode libertar, o bem e o mal estão sempre juntos.
Com suas “mentes primitivas”, abertas ao mundo e ao novo, ao comer da árvore
da “ciência”, a mulher e o homem não percebem somente o bem e o mal separadamente,
mas “o bem enovelado como em cabelos no mal, mal que é bom”, como dizia Clarice
em Água viva (p.13). Começam a pensar, e pensar é também um exercício de
transgressão
23
, pois ao homem algo a mais, um atributo que não se encontra na
natureza da vida, dá ao homem a capacidade de interpretar seu mundo circundante e a si
mesmo e se posicionar diante da vida e de seus semelhantes.
O fruto dessa árvore é um fruto inteiro, redondo, palatável e bonito, como se
dissesse que a realidade é ampla, inalcançável, complexa, um sinal de algo maior e mais
profundo do que as aparências demonstram.
Ao comer da árvore do bem e do mal, Adão e Eva se perceberam nus com
“membros que dominavam movimentos e apetites contrários à razão; e procuraram
escondê-los”
24
. Ficaram surpresos com sua condição corporal e tiveram um susto de si
mesmos. Não morreram como disse o Criador, mas despertaram para eles mesmos.
Foram expulsos do paraíso. O pecado original não foi somente a desobediência ao Pai,
mas com o conhecimento adquirido o homem ter perdido sua inocência original.
23
Em seu estudo A arte da fuga em Clarice Lispector, Nilson Dinis também aponta para esse aspecto do
pensamento: o exercício do pensamento é um ato de transgressão (2001: 121). Na obra de Clarice
Lispector, a transgressão também é o grande acontecimento que marca a passagem do roubo de um cavalo
em A Paixão. Esse mesmo texto depois é retomado sob o título de “Estudo do cavalo demoníaco” no
conto ‘seco estudo de cavalos’, inserido no livro de contos “Onde estivestes de noite” (1994: 44-53)
.
24
A esse respeito ver a nota de rodapé do Gênesis (1976: 26).
O primeiro sofrimento e a primeira surpresa humana foi se perceber a si mesmo
em sua frágil condição. A partir de então, o ser humano foi obrigado a se ver como
irrisória centelha aos olhos do Criador e do cosmos. O conhecimento que deu clareza,
liberdade, poder e consciência ao homem não satisfez seus desejos, não trouxe consigo
a felicidade que tanto o homem queria. Como disse Morin, referindo-se a Kleist, ‘o
saber não nos torna melhores nem mais felizes’ (Morin, 2000: 11). A trajetória de
Martim nos diz que podemos saber mais sobre aquilo que pode nos fazer mal e nos
fazer bem, infelizes e felizes.
No Gênesis, a serpente pode ser vista como o desejo de Eva que é compartilhado
com Adão: desejo de viver um mais-além; desejo que é a dimensão da vida que tenta a
própria vida a se ultrapassar, a se realizar, a fruí-la.
É pertinente ficarmos atentos ao significado de cada nome: em hebraico a
palavra Adão significa homem. Adão é o nome do primeiro homem e o nome comum
do gênero homo: o homem dos homens: macho e fêmea, pois é o homem primordial,
figura seminal, ou seja: uma semente, algo que está na raiz da humanidade. Em
hebraico, a palavra Eva tem uma raiz que significa vida, viver
25
.
A figura de Eva pode ser concebida como o outro lado da vida do homem, de
Adão. Este, por sua vez, poderia ser visto como razão, praticidade, mbolo da ordem, e
Eva como emoção, energia criativa, pulsão, desejo, paixão transgressiva, subjetividade,
o lado da desmedida da vida humana.
Sem a falta, sem desejo e subjetividade não haveria o ser humano. O homem se
torna homem ao ser tentado por Eva, pela própria vida desejante a comer da árvore do
conhecimento e se conhecer. O desejo de Eva não era sexual e sim existencial. Era fome
de além-vida realizada no aqui-já. “O desejo é algo primitivo, grave e que impulsiona”
(SV, p. 147). Se ela sentia tal desejo era porque fora feita com carência, com a falta e
com a “fome arcaica” de conhecimento.
Ao oferecer o fruto nos faz lembrar algo de nossa própria condição humana: algo
nos falta, somos incompletos, nascemos com a necessidade de buscar nossa satisfação e
transcendência. Ela tenta o homem para a verdade de si: nasceu sem o conhecimento,
nasceu com uma falta e esta é constitutiva de sua condição. O homem é um ser
aparentemente completo e feliz, mas que lhes faltam a completude e a felicidade.
25
Sobre as palavras Adão e Eva e suas raízes em hebraico, ver a esclarecedora nota de rodapé do Gênesis
(1976: 25-27).
O sujeito é possuído por seu desejo que o faz transgredir e viver humanamente.
Adão e Eva transgrediram o preceito, a norma, em nome da paixão de viver ou da fome
de existir. O desejo põe o homem diante do outro e do seu objeto de prazer; produto e
produtor de outra visão, ele é estimulador de autoconhecimento: “Então a mulher viu
que a árvore era boa ao paladar e agradável à vista, e apetecível para adquirir
conhecimento” (Gênesis, 3: 1-6).
Ao se apresentar como algo profundo e, muitas vezes, estranho ao próprio
sujeito, o desejo faz o homem se estranhar e se conhecer melhor.
Diante da interdição e da tentação, o homem tem duas escolhas: obedecer ou
transgredir. Ao fazer sua escolha, o homem definiria também seu próprio destino e sua
forma de relação com o Criador: obedecê-lo seria estar-com-Ele, desobedecê-lo seria
escolher ser como Ele.
Estar com o Pai implicaria viver nu e sem consciência, sem conhecimento de si;
teria que colher o que lhe era dado e acolher somente as determinações do Criador: ser
obediente, submisso, sujeito sujeitado. Seria eternamente inocente. O homem não teria
vida própria, livre arbítrio. Ser como Ele o faria ter a capacidade de criar, julgar, decidir
sua própria vida; capacidade de enfrentar o novo e com ele os riscos da liberdade.
Não completamente satisfeito com sua condição de estar-com o Pai, o homem
desejou ser como Ele, ter a capacidade de julgar, criar, decidir; queria ser o dono da
grande verdade que ao Criador o poder sobre tudo. O homem desobedeceu ao seu
Criador ao comer da “árvore da ciência do bem e do mal”. Sua vontade de ser, que está
na raiz da vida humana, alimentou e foi alimentada por uma vontade de saber e esta, por
sua vez, se alimentou do poder que toda verdade parece ter em si. É a fé em sua verdade
que ao homem a capacidade ou poder de decidir destinos, julgar, condenar, e a exata
noção de justiça. O conhecimento é visto, assim, como o detentor da verdade e do
poder.
Ao perceber que o homem moderno perdeu o contato com as fontes da vida, que
ele está desenraizado, desterritorializado de sua terra ancestral, Clarice faz seus
personagens seguirem um “caminho que é um descaminho”, uma trajetória oposta a de
Adão quando este foi expulso do paraíso: faz o homem retornar a um estado de paraíso
imaginário para de recomeçar sua nova trajetória de vida, uma outra odisséia humana
no mundo. Para essa escritora, é a partir da origem que se deve buscar a regeneração do
homem e a compreensão da existência humana. O fundamento das coisas está em sua
origem. A “coisa” primeira é a gestora, “fonte de geração”. Quem capta a origem das
coisas ou dos acontecimentos evita o sofrimento, controla a situação. “Quem capta a
causa das transformações sabe a origem dos acontecimentos. Saber a origem evita a
tristeza”, diz o sábio Lie Tse (2001: 62).
Em suas narrativas, o ser humano enfrenta o grande desafio de saber quem ele é.
O sujeito parece ser possuído pelo desafio de se reconciliar consigo mesmo, reencontrar
em si e viver em si o paraíso que o habita.
O que isso significa? Para responder a essa questão, é necessário, assim como
fez Jean Delumeau, pensarmos no significado e na raiz da palavra “paraíso”. Essa
palavra é um antigo termo persa (paridaeza) que deu origem à palavra grega
parádeisos. Ela sugere a idéia de um jardim rodeado de muralhas que o protegem contra
os inclementes ventos do deserto. Ele representava a imagem de felicidade que estava
presente no imaginário dos homens que viviam em regiões muito secas. Para eles, a
morada da felicidade situava-se num local vicejante, com água, flores e vegetação em
abundancia.
Segundo Delumeau, mesmo que o primeiro significado da palavra “paraíso”
tenha surgido do Gênesis, nos Evangelhos, o próprio Cristo jamais precisou o que
chamamos de “paraíso”. Quando se refere a um outro mundo prometido aos homens
justos, ele emprega a palavra ‘reino dos céus’. Cristo não fez qualquer descrição
pormenorizada desse reino. Ele nem sequer sugeriu que fosse um lugar, mas sim uma
‘situação’, no sentido sartreano do termo, que significa o estado no qual um homem se
encontra implicado e comprometido, um estado de ser (Delumeau, 2006: 73-4).
Mesmo que o Gênesis insinue que Deus plantou um jardim no Éden, ao lado do
oriente, e ai colocado o homem que ele formara, a posição geográfica desse jardim é
indeterminada; é um lugar ilocalizável. Talvez o paraíso seja, realmente, aquele lugar no
qual o homem sonha encontrar o bem-estar, a satisfação, a alegria, o prazer, aquela terra
prometida para a liberdade e o amor. O paraíso se assemelha a um estado de graça, de
espírito, algo dentro do homem e não exterior a ele. Algo que nas palavras de Clarice se
assemelha a “um tesouro que se disfarça, que está onde menos se espera, que é
descobrir” (LE, p. 17).
O paraíso é imanente. O mergulho ficcional e introspectivo de Martim aponta
para isso: o oriente mora dentro do coração de cada homem e para encontrá-lo cada
homem tem que se perder para poder reencontrar esse lugar perdido nele mesmo. O
paraíso é um estado de Ser.
Os personagens criados por Clarice Martim é paradigmático a esse respeito -
carregam o desafio do herói: voltar à gênese do mundo e salvar a humanidade,
salvando-se a si mesmo. A humanidade não se resume a uma reunião de todos os
homens, mas aquilo que está em cada ser humano. É o que permite o homem encontrar
em si todos os homens.
Na cosmovisão dessa escritora, o mundo está em cada homem e cada homem é
responsável pelo mundo inteiro. A aura de nese que constitui a narrativa de A maçã
no escuro e toda a aventura de seu protagonista, Martim, sinaliza que em cada homem
a potencialidade de tudo que a humanidade pode fazer. Um único ser humano pode
condenar a humanidade inteira, assim como um único ser humano pode salvar toda a
humanidade. Como o mundo está em cada homem, Martim e “cada homem é
responsável pelo mundo todo” (DM).
O Gênesis e a A maça no escuro se tornam, assim, livros simbólicos,
cosmológicos e antropológicos que enraízam o homem na natureza, na vida, na matéria
inanimada, na animalidade, mas reconhecendo no homem sua capacidade de
transcender tudo isso. “O humano do homem” se faz e se refaz nessa teia de relações
antagônicas, interdependentes e complementares que, por sua vez, alimenta as relações
entre vida e não vida, matéria e substância, natureza e cultura.
É nessa teia de relações que Clarice Lispector concebe o homem e a vida em sua
gênese e plenitude. Por meio de seus personagens, ela exerce aquilo que Edgar Morin
chama de “inclusão do vivo no humano e do humano no vivo”, o que permite conceber
a noção de vida na sua plenitude. A vida cessa de ocupar um lugar intermediário entre o
físico e o antropológico. Com isso, a vida “adquire um sentido amplo que se enraíza na
organização física e se expande em tudo que é antropossocial” (Morin, 1989:16).
As duas narrativas sinalizam que somos feitos de experiências e memórias
passadas, mas também de sonhos, esperanças, desejos e projetos ainda não realizados.
Como demonstra a trajetória de Martim, o ser humano tem uma memória de recuos e
uma outra feita de prospectividades. Mas tudo isso é vivido no momento presente, no
instante-já. À medida que Martim, imaginariamente, recuava em busca de sua origem,
das lembranças esquecidas, ele, ao mesmo tempo, sonhava chegar ao mar, queria
alcançar seu próprio coração. No instante-já em que vivia, ele se enraizava no passado e
se abria a esse futuro que começa nesse instante-já, futuro que é um presente que ainda
não se realizou.
Cada ser humano traz em si todos os tempos e vive, simultaneamente, todos eles
em um só. É por isso que diz o autor de Um sopro de vida: “cultivo também o vazio
silêncio da eternidade da espécie. Quero viver muitos minutos em um minuto” (SV,
p. 14) “Minha vida é um único dia. É assim que o passado me é presente e futuro. Tudo
numa só vertigem” (SV, p. 19).
Para esse autor, o tempo não se divide. Somos feitos de simultaneidades. Martim
se apresenta como uma figura arquetípica; é o homem de todos os homens, ser que
translada no tempo. Figura seminal, como disse. Enigmático como é, ele é melhor
compreendido por meio daquilo que Clarice denominou de “encantação”, algo que
tratarei posteriormente.
ENCANTAÇÃO
Depois de desprezar a linguagem dos outros e antes de tentar conseguir uma
linguagem própria que fizesse vibrar em sua boca a voz do seu coração, Martim
“grunhia”, de vez em quando “rosnava”. Sem nenhum sentido na linguagem humana,
esse grunhido e essa rosnadura seriam seus murmúrios, linguagem que a natureza
conhece e que a cultura ainda não decifrou completamente. Nela reside sua identidade
em ressonância com todas as coisas vivas. Esses murmúrios representam os gorjeios da
Natureza. Nessa fase, Martim se comunica com o mundo por meio daquilo que Clarice
chamou de “encantação”, algo que ocorre entre dois seres que se entendem sem o uso
das palavras: “Eu te conheço até o osso por intermédio de uma encantação que vem de
mim para ti” (In: Borelli, 1981: 54).
Essa comunicação se expressa de forma quase mágica, intuitiva, sensitiva, uma
adivinhação imaginadora, algo próximo ao que está no conto “Um caso complicado”:
Ele, o pai da moça, vestido com terno verde e camisa cor-de-rosa de listrinhas.
Como é que eu sei? Ora, simplesmente sabendo, como a gente faz com a
adivinhação imaginadora. Eu sei, e pronto (OEN, p. 108).
Como uma música que não foi feita para ser compreendida e sim ouvida
26
, a
encantação não tem explicação. Esse é um daqueles casos que “não adiantaria explicar
porque a explicação exige uma outra explicação que exigiria uma outra explicação e que
se abriria de novo para o mistério” como disse a narradora de Água viva (p.29).
A idéia de comunicação se abre, assim, ao plano do incomunicável e aos
sentidos humanos. A palavra remete ao impronunciável e a comunicação ocorre para
além das vias da linguagem racional. É esse impronunciável que marca a obra de
Clarice Lispector, algo que Prado W. Jr. soube muito bem perceber. Talvez a escritora
soubesse que, sendo impossível chegar à essência dos fenômenos, ao desvendamento
dos mistérios da vida e da morte, somente a imaginação poética do leitor pudesse
sobrevoar os terrenos que a razão não conhece, ir além dos limites do saber racional e
captar o que está “atrás do que fica atrás do pensamento”.
26
“Não se compreende música: ouve-se. Ouve-me com o teu corpo inteiro”, diz o narrador de Água viva,
na verdade a própria Clarice (1998: 10).
O entendimento de sua escritura exige também esse encantamento que deve se
apossar do leitor para ele poder acessar o que a palavra diz sem revelar. O leitor precisa
se encantar com Martim para captar o que seus gestos e silêncios querem dizer. A
palavra é referência: é e não é a coisa. Expressa o inexpressivo dizendo que nem tudo
pode ser dito.
Essa idéia de encantação encontra-se presente nas palavras da própria Clarice
quando, em entrevista a TV Cultura
27
, afirmou:
O meu livro A Paixão Segundo G.H., um professor de português do Pedro II
veio em casa e disse que leu quatro vezes o livro e não sabe do que se trata.
No dia seguinte uma jovem de dezessete anos, universitária, disse que este livro
é o livro de cabeceira dela. Quer dizer, não para entender. (...) Também em
relação a outros de meus trabalhos, ou toca ou não toca... Suponho que me
entender não é uma questão de inteligência e sim de sentir, de entrar em
contato. Tanto que o professor de português e literatura, que deveria ser o mais
apto a me entender, não me entendia... E a moça de dezessete anos lia e relia o
livro (Destaque meu).
A encantação é esse tocar, esse sentir, essa forma de entrar em contato que não
requer regras racionais, prévias, para ser entendida e interpretada.
É nesse plano do inexpressivo, da encantação, que se encontram todos os seres
vivos. Para captá-lo é necessário o sujeito ser o que é, pois ser é uma condição de saber.
Aquele que não é, não pode nada conhecer. Ganha sentido, portanto, aquilo que o físico
Basarab Nicolescu disse ao se referindo a Bernard d’Espagnat: “É preciso ser para
conhecer” (2000: 27). Na obra de Clarice, a máxima deixa de ser “penso, logo existo” e
passa a ser: “existo, logo sei” (LE, p. 47).
Entender é uma forma de contato com a coisa. É essa a primeira forma de
entendimento entre Martim e os seres que o circundam, algo que acontece, por exemplo,
durante seu contato físico com as vacas no curral e com o seu sermão às pedras.
No mundo circundante de Martim, as coisas vão, aos poucos, se constituindo
como seres: pedras, plantas, aves e animais tornam-se familiares, e é com eles que o
diálogo e o auto-entendimento acontecem.
27
Entrevista concedida a Júlio Lerner, em São Paulo, nos estúdios da TV Cultura, em Janeiro de 1977.
Contrariando seus hábitos, Clarice comparece a emissora de televisão para participar de um programa de
debate sobre cinema. Sua presença causou surpresa a todos. Aproveitando o momento, o diretor da TV,
Walter George Durst, arrisca um convite para ela fazer um depoimento pessoal. Ela aceita. O escolhido
para entrevistá-la foi o jornalista Júlio Lerner. Antes da entrevista começar, a escritora pede ao
entrevistador que sua entrevista seja transmitida somente após sua morte.
Árvores, ervas, pássaros, terra, pedras, lua, luz, vaca, tudo parece dizer a Martim
que existem para o homem, mas ele sabe que esses elementos adquirem sentido
quando inseridos na teia de relações que une todas as coisas. Martim é apenas um ser
em meio a tantos outros que habitam o universo.
O silêncio do mundo era feito de muitos silêncios, como o das pedras e das
plantas. Depois que “Martim percebeu o silêncio e dentro do silêncio a sua própria
presença” (ME, p. 16), ele entra em contato com as pedras e tenta dialogar com elas;
cria um discurso no seio do seu mundo mudo, discurso não verbal construído para o
outro, mas dito para si mesmo, discurso feito em silêncio introspectivo o qual somente
um outro silêncio pode escutar.
Falar mudamente para si implica exercitar sua linguagem emergente, pois é com
ela que tenta reconstruir o mundo e se refazer como humano. Um longo caminho ainda
restava a Martim percorrer.
CAMINHANDO
Martim é um fugitivo. No plano da fábula, foge da polícia por acreditar ter
matado sua mulher. No plano da trama, foge ao encontro de si mesmo. O crime projeta-
se como um ato de transgressão e de liberdade, de ruptura com a sociedade e com a
linguagem saturada do cotidiano (Sá, 2004: 79).
Toda caminhada de Martim é um duplo desbravamento: de si mesmo e do
mundo. Caminha ao encontro de um mundo que está dentro dele mesmo, em seu
interior, redescobrindo seu mundo psíquico-existencial ao mesmo tempo em que
conhece e se aprofunda no “coração do Brasil”. Ao fugir de sua casa, ele pára em um
hotel, penetra numa maravilhosa floresta escura, percebe-se em um lugar onde não
existiam trilhas, veredas ou caminhos. Como a Sra Xavier, de repente ele se acha
perdido em seus próprios labirintos existenciais; quanto mais fugia de sua antiga vida,
mais se deparava com a largueza do mundo circundante. Seu destino não era percorrer o
caminho dos outros, pois o homem que assim se comporta corre um risco ainda maior:
perder a sua vida por completo, alienar-se de si.
Nessa aventura, Martim vai se erguendo devagar, dar os primeiros passos no
escuro e caminha lentamente, tenta se equilibrar no desconhecido mundo em que
começa a caminhar. “Além do chão que os passos alcançavam, era a escuridão.
caminhara horas, o que pôde calcular pelos pés grossos de cansaço” (ME, p. 19). Seu
caminho não estava traçado, ele tinha que traçá-lo como quem sonha com o futuro,
como quem traça seu destino.
Seu caminho é aberto a cada passo que dá no escuro daquela noite. Como aquela
escuridão que ainda se mantinha colada aos seus olhos inutilmente abertos, Martim
caminha como um cego: sem saber o que está à sua frente, vai passo a passo
construindo seu próprio caminho. “Não sabia onde pisava, se bem que através dos
sapatos que se haviam tornado um meio de comunicação, ele sentisse a dubiedade da
terra” (ME, p. 19). Sem saber a direção certa de seguir, ele se deixou guiar por aquilo
que Clarice chamou de “coração inteligente”, ou “sensibilidade inteligente”,
sensibilidade que funciona como que uma bússola, algo que guia o homem “como um
verdadeiro radar” (DM, p. 148-9). Esse radar se orienta por aquela força maior que se
pode chamar “querer”, “intuição”, “desejo”, “vontade”.
Sua grande aventura não prioriza a descoberta do mundo, mas, antes, a
redescoberta de si. O mundo lhe é generoso, pois lhe dava o solo firme para ficar de pé e
caminhar e oferece a luz das estrelas para lhe guiar na escuridão. “Na verdade seu
avanço parecia ser guiado unicamente pelo fato daquele homem estar entre terra e céu”
(ME, p. 54). O homem se encontrava, assim, entre o chão e as estrelas, fazia-se entre a
dureza do barro e o brilho da noite iluminada sem lua. “(...) embaixo era o chão
definitivo, em cima a única estrela, e o homem se sentia acordado pelas duas coisas
acordadas na escuridão” (ME, p. 20).
O mundo circundante de Martim expressava sua condição: no escuro da vida e
do pensamento, ele busca uma certeza para viver, um solo firme para se manter de pé e,
ao mesmo tempo, uma orientação que o permitisse caminhar. O homem é matéria e
energia, dureza e sensibilidade, estável como o chão e mutável como o movimento dos
astros, está entre a terra e o céu, como se fosse a única ligação possível entre um e
outro; o homem caminha pisando em pedras, mas sonhando e contemplando as estrelas.
No claro ou no escuro, cada passo que se é um passo em direção ao mais além de si,
ao futuro: “quando o último passo de seu futuro se completou, Martim mexeu-se na
dureza do chão” (ME, p. 21).
Nessa caminhada em busca das terras de si mesmo, Martim visita seus próprios
solos existenciais, seus medos e emoções; revê suas ações, experiências suaves e
desagradáveis. Trata-se de uma aventura exterior e, principalmente, de uma viagem
espiritual. Esse homem não quer apenas entender o que havia acontecido com ele, mas
acima de tudo, quer se entender como pessoa, ter consciência profunda de si própria.
A fuga de Martim se transforma em descoberta, um passo a mais para chegar a
ele mesmo. Ele busca com sofreguidão e aspereza o melhor modo de ser, pois quer se
reencontrar consigo mesmo e um modo de andar no escuro, modo de dar um passo certo
em direção certa.
Após cometer o crime, refugia-se em um hotel. Desconfiando que poderia ser
denunciado pelo alemão, proprietário do hotel, mais uma vez ele foge. “Aquele homem
andou guas deixando o casarão cada vez mais para trás. Procurou andar em linha reta
e às vezes se imobilizava um segundo agarrando com cautela o ar” (ME, p. 18). Mas um
homem não pode andar em linha reta por dois motivos. Primeiro: a vida nunca é uma
trajetória linear: é cheia de curvas, atalhos, subidas e descidas, e Martim está diante do
abismo de si. Segundo: como ele “andava nas trevas não poderia sequer adivinhar em
que direção deixara o hotel” (ME, p. 18-9), nem sabia em que direção seguir; está
desorientado.
Caminhar nas trevas era o mesmo que caminhar sem orientação, sem
consciência, sem certezas. Martim pretendia ir para o mar e termina se deparando com o
hotel, e “sem mapa, conhecimento ou bússola embrenhara-se terra adentro” (ME, p.
24). Ele quer alguma coisa para si, algo pleno, profundo, que não conseguia ainda
nomear. Semelhante a Joana, seu desejo ainda não tem nome. Mesmo assim, é guiado
no escuro pela intenção, pela vontade, pelo querer e pelos sentidos que o mantêm vivo e
errante.
À medida que caminhava o homem sentia nas narinas aquela falta de cheiro que
é peculiar a um ar muito puro e que se mantém distinta de qualquer outra
fragrância que também se possa sentir e isso o guiava como se seu único
destino fosse encontrar-se com o mais fino do fundo do ar (ME, p. 19)
O mar sempre aparece nas narrativas de Clarice Lispector. Além de se apresentar
em suas crônicas (“Ritual – trecho”, “Banhos de mar”, “O mar de manha”), apresenta-se
também em contos (“A fuga”, “As águas do mundo”) e romances como, por exemplo,
em Perto do coração selvagem, Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres e em A
maçã no escuro. Com suas águas escuras, sombrias, ele representa “as águas do
mundo”, o infinito, a profundeza e os mistérios da vida, a profundidade do inconsciente.
O mar tem estreita relação com a vida. Para Clarice, o mar é o berço materno,
mas seu cheiro é todo masculino e, no entanto, é berço materno. O mar é a ntese
perfeita do masculino/feminino (DM, p. 458). aqui uma alusão ao mar como o berço
da vida no planeta, como assim prega uma área da biologia que acredita que as
primeiras formas de vida surgiram no oceano.
pensadores contemporâneos que acreditam que a vida não surgiu nos mares,
mas, provavelmente, nas lagunas e pântanos, lugares secos e quentes de dia, e frios e
úmidos à noite, que secam e em seguida reidratam
28
. A idéia de que a vida surgiu nos
mares deve-se ao fato de que as primeiras moléculas surgiram na atmosfera e depois
caíram como chuva nos oceanos, onde se encontraram protegidas e encontraram as
condições necessárias para se desenvolverem.
28
A esse respeito, ver: REEVES, Rubert, et alli. A mais bela história do mundo: os segredos de nossas
origens. 1997, p. 62-72.
O desejo que Martim sente de ir para o mar é expressão inconsciente de alguém
que busca sua vida profunda e sua unidade. O mar ultrapassa a dicotomia que rege os
sexos
29
. Ele sintetiza o raso e o profundo, a estabilidade e o movimento, o ir e o vir, a
masculinidade e a feminilidade, o berço e o túmulo, a morte e a vida, o fim e o começo;
é um mistério que guarda em suas profundezas uma verdade igualmente profunda e
misteriosa. Enquanto o humano é “o mais ininteligível dos seres vivos”, o mar é “a mais
ininteligível das existências não humanas”. O encontro de um com o outro é, na
verdade, o encontro de dois mistérios (OED, p. 113). Martim indaga o mistério que é o
mundo e o mistério errante que ele é. Caminhava entre um mistério e outro, dialogando
com eles, buscando um maior conhecimento de seu lugar no mundo e o lugar que o
mundo ocupa em sua vida.
Por mais que Martim andasse, o mar estava longe de onde ele se encontrava;
para alcançá-lo somente fechando os olhos num grande esforço imaginativo:
O que não impedia que mesmo agora – se na semivigília dos passos ele fechasse
os olhos cuja umidade a luz secara mesmo agora a visão do antigo desejo
se concretizasse. Quando cerrou os olhos viu de súbito água verde a se rebentar
em penhascos e a salgar-lhe o rosto quente. Então passou a mão pelo rosto e
sorriu misteriosamente ao sentir a barba dura apontar, o que era também
alguma coisa promissora e satisfatória; sorriu numa careta de falsa modéstia, e
apressou ainda mais os passos (ME, p. 24).
Imaginar o que ele tanto desejava era uma satisfação, pois imaginariamente ele
criava para si o que lhes faltava. Para Clarice, a imaginação é fonte de criação de
realidade, de vida. O homem também se constrói a si mesmo por meio do poder da
imaginação. Ao criar, o homem exercita suas energias vitais; cria possibilidades, aplaca
o sentido da morte. A vida de Martim está enraizada nele mesmo e oculta no mundo
exterior.
Somente imaginando ele consegue sentir o que lhe falta: o próprio mar e a
verdade de seu ser. A verdade que ele tanto procura se assemelha ao tesouro da
personagem Sofia do conto “Os desastres de Sofia”: um “tesouro que está escondido
onde menos se espera. Que é só descobrir” (LE, p. 20). Mas Martim pressentia “que não
se achava tesouro à toa” e que sua caminhada seria árdua, cheia de etapas e
29
Cf. Portieri, Regina. Clarice Lispector: uma poética do olhar. São Paulo: Ateliê Editorial, 1999, p. 97-
8.
desvencilhamentos. Sua verdade estava escondida dentro dele e ela revelaria “aquilo de
que somos feitos” (LE, p. 25).
Mesmo que se trate de uma caminhada dura, que deixa os pés inchados, esse
homem nunca deixa seus passos na areia da praia, porque nunca chegou ao mar. Se num
primeiro momento o homem aparece em fuga, num segundo, ele transforma sua fuga
numa grande viagem, disposto que estava a fruí-la. Sua caminhada se transforma em
uma viagem espiritual.
Algumas vezes, o leitor desse romance sabe menos sobre o personagem e mais
sobre o que a escritora queria saber sobre o Homem, mesmo que ela não soubesse aonde
queria chegar com a narrativa de A maçã no escuro.
Clarice não se interessava por gêneros e sim por mistérios humanos, buscava a
gênese do humano e uma maneira de ver e expressar tal realidade. Ao fazer Martim se
aprofundar em sua própria vida, em suas raízes ou “natências
30
, a escritora queria
também se aproximar da coisa da qual falava e, talvez, de uma zona obscura e profunda
da vida ou da existência humana, zona que somente o relato e a escrita podem tocar com
bastante humildade:
Minha literatura, não sendo de forma alguma uma catarse que me faria bem,
não me serve como meio de libertação. Talvez de agora em diante eu não mais
escreva, e apenas aprofunde em mim a vida. Ou talvez esse aprofundamento de
vida me leve de novo a escrever (OE, p. 110).
Martim tenta se aproximar com humildade de sua verdade. Também era com
humildade que Clarice tentava se aproximar da coisa para que ela não a escapasse
totalmente. Como Martim que se despoja de toda racionalidade para tocar a “coisada
qual é feito, Clarice se despoja dos conceitos e teorias para ter a coisa em si: “eu quero a
coisa em si”, como confessou em depoimento
31
. reside a sua diferença básica com
relação a outros jovens escritores de sua época. Em 1963, no XI Congresso Bienal do
Instituto Internacional Ibero-Americana, Clarice profere a palestra “Literatura de
30
Essa expressão é usada pelo poeta brasileiro Manoel de Barros quando quer se referir a natalidade,
lugar onde se nasce, o nascedouro, origem.
31
Tal depoimento foi gravado no dia 20 de outubro de 1976, um ano antes de sua morte (dezembro de
1977), na sede do Museu da Imagem do Som do Rio de Janeiro. Além disso, esse depoimento está
publicado no livro Outros escritos, organizados por Teresa Montero e Lícia Manzo, lançado pela Rocco
em 2005.
vanguarda no Brasil” na qual critica alguns jovens escritores de sua época. Em seu
discurso afirmou:
(...) existe alguns jovens escritores um pouco intelectualizados demais. Parece-
me que eles não se inspiram na, digamos, ‘coisa em si’, e sim se inspiram na
literatura alheia, na ‘coisa já literalizada’. Não vão diretamente à fonte, seguem
o resultado atingido por outros escritores. Uma literalização da literatura
(OE, p. 109).
Não é exagero afirmar que, como Martim que busca o saber de si na aurora do
mundo e da vida, por meio da escrita Clarice buscava o saber das fontes, mesmo
reconhecendo que era inacessível a apreensão da totalidade. Sua estratégia escritural era
se aproximar com humildade da “coisa”, sem “querer querendo”, intuindo, sentindo.
Martim também caminha assim: intuindo, sentindo, imaginando, aproximando-se de si
com humildade. Esse saber das fontes proporciona um melhor conhecimento da coisa
em si, da vida, da condição humana. Como observou Reis, Clarice tentava se aproximar
ou tocar nas verdades fundamentais do Homem, verdades permanentes, imutáveis, mas
hostis a qualquer cristalização ou rótulo (Reis, 1964: 234).
É nessa atmosfera de enraizamento e gênese, que Martim se move, vive, anda
solto como um cavalo selvagem no campo. Nesse solo cheio de possibilidades ele tenta
se enraizar, como Lóri que “queria se enraizar na terra” (ALP, p. 42) e como Ângela
que sentia que suas raízes estavam na terra e dela deveria se erguer desnuda (SV, p 58).
É pelos pés que ele entra em contato com o que pode sustentar sua caminhada: sua vida
ancestral, terrena. Assim como o solo sustenta uma árvore pelas raízes, no chão duro,
Martim encontra seu enraizamento. Com sofreguidão e aspereza, ele busca encontrar a
regeneração de sua vida, a verdade fundamental de sua condição que se encontra na
origem da vida humana e não humana, algo que G.H., conheceu quando comeu a massa
branca da barata.
Aos poucos, Martim desperta para si e para o mundo. Como percebeu Francisco
Varela, “nós despertamos tanto para nós mesmos quanto para o mundo que habitamos”
(2003).
Ao fugir de seu crime, a cada passo que dá, Martim realiza, mais e mais, o seu
destino. Ao abandonar sua antiga vida, ele dá seus primeiros passos hesitantes em
direção à vida. Foge da vida e sem querer, entrega-se a ela; foge de si e sem imaginar se
abre ao seu ser mais profundo. Ele sabia que “‘se subitamente fôssemos dar importância
ao que realmente nos importa estaríamos com a vida perdida’. Mas também se dizia
que aquele que perde a sua vida, ganha a sua vida” (ME, p. 138). G.H. não precisou
fugir para descobrir que perder uma vida pode ser um meio de se ganhar outra: “ao
perder, eu ganhei” (PSGH, p. 21). Ao fugir de seu destino ele o realiza, afastando-se de
si, redescobre-se como um ser-no-mundo, realiza, assim, a parábola religiosa: “é
morrendo que se vive”, “é perdendo a vida que se ganha a vida”: “O que se prende à sua
vida, perdê-la-a; e o que perder a sua vida por meu amor, achá-la-a” (Mateus, X, 39).
Clarice nunca colocou um pensamento em oposição a outro e sempre buscou a
síntese das antíteses. O momento de uma compreensão súbita é também a revelação de
uma aguda incompreensão e todo momento de achar é um perder-se a si mesmo (PSGH,
p. 16). aqui não somente uma aproximação do pensamento da escritora com os
textos religiosos, mas também com a filosofia oriental dos Upanixades
32
,
principalmente com o pensamento do Upanixade Ishavasya que diz: “Renunciando a
isso, tu podes desfrutar” (Mehta, 2003: 19). É isso que confere ao itinerário de Martim
um caráter espiritual-místico. Como percebeu Nunes, A maça no escuro é fortemente
marcada por esse aspecto místico-espiritual (1995: 44-5). Portanto, sua fuga implicou
perdas e ganhos: perda de uma forma de viver, de um “deve ser” societário, e o ganho
de outra maneira de existir e ser.
Martim, esse homem arquetípico, inaugura uma grande odisséia de si mesmo e
da humanidade. Carregando consigo o medo e a culpa, essas duas cicatrizes da
humanidade, ele tenta resolver seu próprio enigma de homem e termina por tocar os
mistérios insondáveis da condição humana.
A maçã no escuro mostra que coisas das quais se foge e das quais jamais se
fica livre. Somos cada vez mais perseguidos por aquilo que queremos cada vez mais
esquecer. O medo e a culpa de Martim o perseguem por mais que ele fugisse deles, por
mais que caminhasse e tentasse esquecer o seu ato. É por isso que ele é tomado pela
sensação de que caminha em círculos, algo semelhante ao formato de uma maçã.
Essa caminhada também lembra o eterno retorno das mesmas questões que um
homem tem que enfrentar e das que a escritora sempre buscou atingir, compreender:
“Eternidade. Vida. Mundo. Deus... Amor” (BF, p. 8-9). Essas questões são sempre
retomadas na escritura de Clarice.
32
Clarice parecia conhecer bem a filosofia dos Upanixades tendo em vista que ela abre A maçã no
escuro com uma passagem do Vedas (Upanixade).
UM PÁSSARO NO CAMINHO
Alguns personagens clariceanos nunca caminham; outros caminham por ruas,
outros viajam por estradas de ferro, alguns andam por lugares desertos ou vazios. Com
sua fuga, Martim começa a caminhar na natureza. A caminhada se torna um exercício
de buscar as fontes da vida, uma busca que leva o homem a reencontrar seus sentidos.
Nessas caminhadas os personagens não encontram riquezas materiais e sim tesouros
espirituais, existenciais.
Depois de caminhar um certo tempo e examinar o tronco de uma árvore seca,
“Martim ergueu-se como a uma ordem e continuou a marcha. Foi mais além que
estacou diante do primeiro passarinho. Desenhado na grande luz estava um passarinho”
(ME, p. 28).
Essa imagem é fundamental para o entendimento dessa narrativa e da caminhada
de Martim. O aparecimento do pássaro pode ser interpretado de várias maneiras. Penso
que tal aparecimento pode ser melhor entendido se levarmos em consideração uma outra
imagem: a serpente que surge na narrativa bíblica do Gênesis, ela que é “o mais astuto
de todos os animais terrestres criados pelo Senhor Deus” (Gênesis, 3, 1).
A serpente é o animal mais próximo da terra, arrasta-se, rasteja sobre o solo,
caminha sem ter nenhuma pata ou perna. Como afirma Campbell, simbolicamente, ela é
a força vital ligada a terra. É um dos poucos animais capazes de trocar de pele para
renascer, mas muda de pele somente quando a Lua muda de fase. Essa mudança
representa, assim, alguma coisa mais profunda e mais contínua do que apenas um
determinado momento na vida. “Ela troca sua pele, troca uma personalidade, troca um
estilo de vida e se transforma em outra. E assim, torná-se simbólica da força vital no
tempo e no espaço” (In: Keleman, 2001: 104), símbolo da mudança, da morte e do
renascimento. Na narrativa bíblica, a serpente é o primeiro animal a se aproximar do ser
humano, a conversar com Eva e tentá-la.
Ao caminhar em fuga, Martim busca alguma coisa para si mesmo. Somente
quando ele está se sentindo mais livre é que na grande luz um passarinho: “essa foi a
questão: na luz o passarinho” (ME, p.28). Não se trata daquele pássaro da lenda
brasileira conhecida como “O pássaro da sorte”, ou seja, o uirapuru
33
, ave de canto
plangente e mavioso, conhecido popularmente como uma ave que dá sorte.
Tudo o que se sabe sobre a ave que aparece no caminho de Martim é que ela é
escura e surge em um momento de clareza de pensamento para o homem; ela não vem
como símbolo da sorte, mas como símbolo da liberdade que ele sentia e “com o zelo
minucioso a que estava se habituando, ele [Martim] se pôs incontinenti a trabalhar
gulosamente com esse fato” (ME, p. 28). Como percebeu Campbell, ao contrário da
serpente, o pássaro está desligado da terra e representa o poder do vôo espiritual (In:
Keleman, 2001: 104).
Durante a caminhada solitária do homem, o passarinho é o primeiro animal a se
apresentar diante de Martim e o primeiro a se relacionar com ele. Como a serpente
tentou Eva, o pássaro tenta Martim para que voe alto, atinja a liberdade de espírito. Se a
serpente representa a força vital da terra, o enraizamento ao solo, a ligação à matéria
terrestre, o pássaro representa a força celestial, a leveza de espírito, a força e a liberdade
capazes de fazer o homem não se esquecer do chão onde pisa, mas desejar o vôo
selvagem do pássaro, vôo capaz de levá-lo a outros horizontes.
O par de imagens formado pela serpente e pelo pássaro aparece em todos os
tipos de mitologia, assegura Campbell. Geralmente, estão em oposição: a serpente que é
capaz de hipnotizar e depois devorar o pássaro, e o pássaro – como o falcão ou a águia –
que é capaz de se arremessar sobre a serpente e dilacerá-la com suas garras e bico. Essas
imagens são muito antigas, pré-históricas. Para Campbell, “As penas do pássaro e as
escamas da serpente são equivalentes e entre elas está o mamífero, do qual o mais
elevado (...) é o ser humano. Ele se encontra entre esses dois poderes” (In: Keleman,
2001: 104).
Se a personagem Ermelinda tem medo de passarinhos, Martim não. O momento
do grande encontro entre o homem e o pássaro parece ser um momento de hipnose:
como a serpente que hipnotiza uma ave para devorá-la, Martim hipnotiza o pássaro para
prendê-lo:
O passarinho negro estava pousado num ramo baixo, à altura de seus olhos. E
impedido de voar pelo olhar abrutalhado do homem, mexia-se cada vez menos à
vontade, tentando não encarar o que estava para lhe acontecer, alternando
33
Refiro-me aqui a uma das doze lendas brasileiras recontadas por Clarice Lispector no livro infantil
Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras. Rio de Janeiro: Rocco, 1999, p. 16-7.
nervosamente o apoio do corpo numa outra pata. Assim os dois ficaram se
defrontando (ME, p. 28).
Ao caminhar, o homem hipnotiza o passarinho. Mas ao contrário da serpente, ele
não quer devorar a ave, talvez apenas incorporar em si aquilo que a ave simboliza. Por
isso, Martim não devora o pássaro, apenas pegou-o em suas mãos “sem machucá-lo,
com bondade física que tem uma mão pesada” (ME, p. 28).
Martim foge e, semelhante a uma serpente, quer trocar de pele, de personalidade,
de estilo de vida; deseja viver com mais liberdade, por isso sonha com grandes asas para
voar alto.
Semelhança a um pássaro, o personagem quer se desprender do solo, mas
diferentemente de uma ave, ele tenta se afastar da antiga vida que o prende ao duro
chão. “Todo um passado estava apenas a um passo da extrema cautela com que aquele
homem procurava se manter apenas vivo, e nada mais” (ME, p. 32).
Antes mesmo de se encontrar com a ave, ele já havia tentado voar alto: “ele se
arriscou à penosa acrobacia de voar desajeitado”. Nesse aspecto, Martim assemelha-se a
figura mítica de Ícaro, jovem de espírito aventureiro que desejou voar alto. Com
grandes asas fixadas com cera em suas costas, ele desejava as alturas. Seu pai o instruiu
a não seguir um curso muito alto nem muito baixo enquanto voasse sobre o oceano, pois
voando alto demais o calor do Sol derreteria a cera das asas, voando muito baixo os
vapores e a umidade do mar poderiam romper a consistência de suas asas. O moço
ganhou as alturas e caiu (Bacon, 2002: 87).
À semelhança de Ícaro, Martim fracassa em sua acrobacia, ele que sempre teve
“uma tendência a cair na profundidade, o que um dia ainda poderia levá-lo a um
abismo” (ME, p. 32). Ao voar muito próximo ao Sol as asas de Ícaro se despregaram.
Ele caiu. Fracassou no auge de sua aventura. Como essa figura mítica, Martim
nunca estivera tão perto do sol, e andava cada vez mais depressa segurando à
frente de si a ave como se fosse levá-la antes que o correio fechasse. A vaga
missão o inebriava. A leveza que vinha da sede de repente tomou-o em êxtase:
- É, sim! Disse alto e sem sentido, e parecia cada vez mais glorioso como se
fosse cair morto (ME, p. 29).
Martim fracassa e “quando um homem cai sozinho num campo não sabe a quem
dar a sua queda” (ME, p. 25). Confuso, seu coração sente a miséria que há em sofrer
uma queda quando se deseja voar alto demais. Depois dessa queda, ele “recomeçou
então a andar. Mancar dava uma dignidade a seu sofrimento” (ME, p. 25).
O projeto de reconstrução de si e do mundo exigia de Martim que ele triunfasse
onde Ícaro fracassou: ele deveria buscar o equilíbrio entre seu lado serpente rastejante e
seu lado alado de ave. O fato de ele ter pegado em suas mãos a ave e ter tido a sensação
de ter “aprisionado um punhado de asas vivas” (ME, p. 28), significa que ele busca para
si uma síntese de sua dupla condição: de ser terrestre e de ser alado.
Deveria, portanto, caminhar entre uma coisa e outra. Tinha que se equilibrar,
reorganizar-se entre a terra e o céu, entre o chão e as nuvens, mas isso “sempre fora um
equilíbrio difícil, o seu, o de não cair na voracidade com que vagas e vagas o
esperavam” (ME, p. 32). Talvez seu caminho fosse aquele do qual fala o autor de Um
sopro de vida: voar baixo para não esquecer o chão. Voar alto e selvagemente para
soltar suas grandes asas (SV, p. 72), coisa que Ícaro não aprendeu. Uma vida bem
sucedida seria uma vida bem equilibrada, vida que se harmoniza entre os contrários.
A parábola de Ícaro nos ajuda a compreender a trajetória de Martim, pois nos
leva a pensar que em todo processo de conhecimento e de autoconhecimento se deve
abandonar a linearidade e os extremos, deve-se encontrar o caminho do meio entre o
excesso de especialidades e o excesso de generalidades.
A maçã no escuro não cai nas especialidades nem nas generalidades dos
conhecimentos ou concepções. Martim precisa encontrar o equilíbrio entre sim e o não,
entre o zero e o infinito, entre o todo e a parte, entre tudo e nada. Seu equilíbrio reside
em encontrar em si o “humano do humano”, equilibrando-se entre matéria e espírito,
objetividade e subjetividade, a dureza das pedras e a leveza das nuvens, entre a serpente
e o pássaro, animalidade e humanidade.
O homem se torna, assim, um ser de razão e de paixão, de praticidade e de
sonhos, móvel e estático; um ser terrestre como a serpente e celeste como a águia; ser de
silêncio (serpente) e de palavra, de canto (pássaro), encanto. Martim tem que retorna a
si mesmo e reconhecer o “punhado de asas vivas” em suas mãos (ME, p. 28).
O RETORNO
Na obra de Clarice Lispector, essa questão do eterno retorno está marcada de
duas formas que ora se fundem, ora se confundem. Uma reside na estratégia de sua
escritura, na qual se poderia identificar um possível método da escritora, ou aquilo que
Nilson Dinis, chamou em seu estudo de “A arte da fuga em Clarice Lispector” (2001).
A outra é o sentido do eterno retorno que aparece como algo recorrente na própria
natureza dos acontecimentos, nas experiências constitutivas dos personagens e,
principalmente no itinerário de Martim.
Dinis tratou do primeiro caso: da fuga como arte, como uma estratégia da autora
para falar do indizível, atingir o inominável, ultrapassar os limites da lógica estritamente
racional. A fuga não é a negação ou medo de enfrentar o acontecimento ou o que deve
ser dito. Como estratégia de escrita, ela é um meio de desvio, de drible para atingir
outros patamares da “coisa”, da vida, algo que a escrita tradicional não alcançaria
facilmente.
Com sua escrita, Clarice foge aos cânones lingüísticos, dos modelos de
escrituras tradicionais. Algo que, metaforicamente, pode ser bem compreendido por de
O mistério do coelho pensante, pequena narrativa que marca o início da sua literatura
infantil, em 1967. Inicialmente o livro foi escrito em inglês, depois traduzido para o
português e ganhou o troféu da criança-1967.
Atendendo a um “pedido-ordem” de seu filho Paulo, Clarice conta a história de
Joãozinho, um de seus coelhos de estimação. Como ela mesma esclarece: “esta história
é uma história real”. Tratá-se de uma narrativa que parte do cotidiano, do real para o
ficcional fazendo da ficção uma realidade cotidiana possível. Para transmitir algumas
idéias educativas a seu filho, a escritora recorre à ficção por ver nela um instrumento
real do espírito, uma pedagogia capaz de nos fazer penetrar em alguns labirintos mais
retorcidos da mente (Candido, 1987: 2) e da realidade.
O coelho Joãozinho sempre consegue achar um meio de fugir de sua gaiola
quando lhe faltava comida. Com o tempo essa prática se tornou habitual para ele:
aprendeu a gostar de fugir. O coelho não mais fugia porque lhe faltava comida, mas
talvez porque o modelo tradicional de prisão não fosse mais suficiente para domesticá-
lo, contê-lo. Formas tradicionais de aprisionamento não o prendiam mais, a realidade
era muito maior e mais sedutora; algo que não cabia numa gaiola nem podia ser vista de
dentro de uma.
Com sua imaginação e criatividade, Joãozinho sempre encontrava um meio de
fugir da gaiola e voltar para ela quando queria: saia e retornava. Mesmo preso, ele
encontrava um meio de viver sua liberdade, sair de onde estava e conquistar outros
territórios, sair de si e viver o além de si.
As misteriosas estratégias de fuga de Joãozinho lembram as de Clarice quando
ela escrevia. A escritora não negava as regras gramaticais, mas driblava-as. Fugia de
gaiolas lingüísticas, de categorias de gêneros, formas tradicionais de escrita não a
prendiam mais. Como disse Dinis, a escritura clariceana privilegia os processos de
variação e constrói assim uma escritura de fuga. Ao se apossar de domínios como o da
pintura e da música, a escritura se distanciava da representação e constituía com isso
uma arte que buscava captar as composições de sensações tentando, ao mesmo tempo,
pintar a música (2001: 148): “Quero para mim o substrato da palavra repetida em canto
gregoriano. Estou consciente de que tudo o que sei não posso dizer, sei pintando ou
pronunciando sílabas cegas de sentido” (AV, p. 11). “Não se compreende música: ouve-
se. Ouve-me então com teu corpo inteiro” (AV, p. 10).
Clarice inaugura uma nova linguagem e inventa um novo real. Sua escrita se
distancia do uso convencional, do padrão, das “gaiolas” lingüísticas para levar e elevar a
linguagem e o ser a outros territórios. O fluxo das narrativas não estava mais submetido
às regras gramaticais, mas as regras estavam submetidas a natureza da narrativa. A
paixão segundo G.H. e Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres são livros
emblemáticos a esse respeito. Como em alguns de seus contos, esses romances
expressam “a estratégia de fuga” da autora para não se deixar prender por nenhum
gênero, nenhuma classificação.
A paixão segundo G.H. começa e termina com seis travessões, o que expressa
uma idéia de continuidade, de fluidez ininterrupta, que brando a linearidade das
narrativas tradicionais. A presença desses travessões dá a idéia de que a narrativa
começa antes do texto ser narrado e o seu final a ultrapassa, como se a escritora,
estrategicamente dissesse: a primeira palavra não é minha e a última não me pertence,
nem tudo está escrito desde o início e nem tudo se escreve pelo começo.
Começar e terminar o romance com esses travessões funciona como se, à
narrativa do livro, outras narrativas pudessem ser somadas ou juntadas num diálogo
infinito, o que abre o campo da escritura a polifonia e a um vasto campo de
interpretações e significações.
Ao longo do romance se percebe que cada capítulo que termina, um outro se
inicia, mas se inicia com a última frase do capítulo anterior. As últimas palavras de um
capítulo são retomadas como as primeiras do novo capítulo que se inicia. O eterno
retorno se faz presente dessa forma no interior da própria narrativa. O fim é em si um
novo começo. “A repetição acaba por causar como que um eco aos ouvidos do leitor,
mais uma tentativa do narrador de causar estranhamento no mesmo”. “A escritura se
volta e se enrola sobre si mesma, serpente engolindo o próprio rabo” (Dinis, 2001: 30-
34). O leitor se arrastado por um fluxo que é, simultaneamente, contínuo e
descontínuo. Contínuo porque se repete e descontínuo porque essa repetição é apenas o
mote, pré-condição para o texto avançar, para a escritora pular ou transladar de um
assunto a outro.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, romance publicado em 1969,
começa com uma vírgula, o que significa uma pequena pausa na narração, e termina
com dois pontos, como algo que vai ser explicado, e pára. Começar com uma vírgula
constitui uma transgressão, pois estamos diante de um começo que não se mostra como
início, mas sim como a seqüência de algo, uma continuação.
Em um pequeno conto intitulado “Mais dois bêbados”
34
, escrito em dezembro de
1941, portanto, antes de sua consagração como escritora, Clarice termina a narrativa
colocando não um ponto final, mas dois pontos, como se em seguida algo fosse ser
explicado. Essa mesma estratégia é usada anos depois na grande narrativa do romance
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres. No final dessa apaixonante narrativa, a
última palavra é seguida de dois pontos, o que indica que não existe fim; marca um
recomeço da história na qual Lóri e Ulisses, seus protagonistas, recomeçarão a
reescrever suas vidas em conjunto. Uma história de vida e de amor cujo tema não mais
seria “cada um é um”, mas “nós é”; não mais um se descobrindo no outro, tendo esse
prazer da aprendizagem, mas por meio do sexo amoroso ambos viverão a aprendizagem
dos prazeres:
Ele se mexeu na cama. Então ela falou:
- Você tinha me dito que, quando me perguntassem meu nome eu não dissesse
Lóri, mas “Eu”. E digo: eu está apaixonada pelo teu eu. Então nós é. Ulisses,
nós é original (ALP, p. 148)
34
Conto inserido na coletânea A bela e a fera (p.82-89).
Como os dois lados da maçã, Ulisses e Lóri se juntam para se tornarem aquilo
que sempre fora: um todo. Sylvia Perlingeiro Paixão tem razão ao dizer que nessa
grande narrativa não existe começo nem fim: existe o momento da criação, personagem
e leitor se confundindo no emaranhado da linguagem. A forma como o livro foi escrito
pressupõe uma idéia de continuidade, exigindo do leitor a participação que estabelece
elos de ligação entre o dito e não-dito (Paixão, 1993: 5-6).
Nessas obras acima citadas, percebe-se o fluxo dos acontecimentos e, ao mesmo
tempo, a tentativa da escritora de “pegar na mão um pouco d’água”, tentativa de tocar
na fluidez dos fenômenos e sentir a essência do ser, por isso sua estratégia – sua “arte de
fuga” ou sua “escritura nômade”
35
- de criar uma escritura que, ao fugir dos cânones da
linguagem, atinja ou toque a coisa tal qual ela é. A narrativa de A maçã no escuro é uma
tentativa de atingir a coisa em si, de se aproximar da voz que ecoa no fundo do abismo.
A tentativa sempre fracassa e por isso há sempre a recorrência às mesmas
temáticas como se ao repetir uma coisa, alguma outra coisa dela ficasse e fosse
apreendida. Isso explica porque é tão comum ao leitor de Clarice Lispector sempre se
deparar com o eterno retorno das mesmas questões: uma idéia que se disfarça em outra,
uma situação ou cena sendo vivida por outro personagem, a mesma temática sendo
repensada à luz de outra experiência. A repetição não se torna enfadonha, mesmice. Ela
repete para avançar, recriar e ampliar a polifonia dos fenômenos e as possibilidades de
leituras/interpretações.
O tema da transgressão, por exemplo, é retomado diversas vezes na obra da
romancista. Está no conto “Felicidade clandestina”, em A maçã no escuro, em A paixão
segundo G.H. e no conto “Seco estudo de cavalos”, inserido na coletânea Onde
estivestes de noite, conto esse que antes de sair nessa coletânea tinha sido tratado sob
o título “Estudo do cavalo demoníaco”.
A fuga é outro tema recorrente. Está presente em seus primeiros contos
publicados na coletânea A bela e a fera, escritos entre seus 14 e 17 anos, portanto antes
dela estrear com o romance Perto do coração selvagem. Trata-se dos contos “A fuga”,
escrito em 1940, no Rio, e “Gertrudes pede um conselho”, de 1941.
Além desses, a temática da fuga se apresenta também em O mistério do coelho
pensante, no conto “A partida do treme, principalmente, em A maçã no escuro. Como
percebeu Dinis, “Faz parte do estilo clariceano esta retomada, essa re-escrita dos
35
A esse respeito, ver: CURI, Simone. A escritura made em Clarice Lispector. Chapecó: Argus,
2001.
mesmos textos que passam a transitar ora sob a forma de contos, ora sob a forma de
crônicas ou de romances” (Dinis, 2001: 121). E acrescenta esse autor: “Tudo aquilo que
se repete pelo esforço da repetição acaba por criar um diferente” (Dinis, 2001: 151). Ela
retoma coisas passadas para descobrir ou vislumbrar coisas à frente. É assim que uma
obra de Clarice se conecta a outra, um texto dialoga com outro, uma idéia se confronta e
se harmoniza com outra assim como um elo se junta a outro para formar a corrente, um
todo.
Outros romances ou até mesmo alguns contos poderiam ilustrar essa “arte” da
escritora, essa discussão, mas restrinjo-me somente a esses por serem mais conhecidos e
expressivos a esse respeito
36
.
Em A maça no escuro o eterno retorno se faz presente de outra forma. Não é
mais a escrita que retoma a palavra anterior para criar uma nova, a seguinte; a escrita
deixa de ser uma estratégia ou uma arte de fuga para se tornar a busca de uma essência
imutável enraizada num tempo que não conhece cronologias. O eterno retorno agora
recai sobre a vida do ser, do protagonista da narrativa que busca um autoconhecimento
de sua condição no mundo.
Martim acredita ter matado sua mulher e se comporta semelhante a personagem
de “A fuga”, semelhante ao coelho Joãozinho e, em alguns momentos, se aproxima de
Joana e do êxodo bíblico: Martim foge, mas diferentemente dos outros personagens, ele
foge com medo das conseqüências de seu ato criminoso.
Essa cena de fuga, por exemplo, se repete, muitas vezes e disfarçadamente, ao
longo da obra de Clarice; apresenta-se, ao mesmo tempo, como “saída”, “fuga”,
“busca”, mas no contexto geral de sua obra, o termo “‘busca’ parece conter os outros
dois [termos] e contemplar melhor a concepção de escrita e de vida da autora”, como
afirma Dany Al-Behy Kanaan em sua obra À escuta de Clarice Lispector: entre o
biográfico e o literário (2003:26).
Uma das marcas singulares dos personagens clariceanos é que eles estão sempre
em busca de alguma coisa de si mesmos, algo que é tão comum ao homem
contemporâneo. Joseph Campbell dizia que “atualmente, todos [os homens] estão à
procura de algo que perderam” (2006: 20). Martim esta à procura daquilo que muitos
36
Para quem mais interessar, em seu trabalho, Nilson Dinis em A arte de fuga em Clarice Lispector
também aponta dois outros livros da escritora nos quais ela exerce sua arte de fuga: Água viva e Um sopro
de vida: pulsações.
homens “modernos” perderam e não sabem onde encontrar. Nesse aspecto, o
itinerário de Martim está muito próximo da própria vida de Clarice.
Vários estudiosos da sua vida e obra mostraram que em sua escritura a vida
mistura-se a obra, personagem e estilo se imbricam, técnica e conteúdo, prosa e poesia
se amalgamam de forma discreta e suave, formando o que ela chama de “caldo de
cultura”. “Clarice Lispector reivindica para si, constantemente, tudo o que experiencia
no plano literário, atribuindo a este, por sua vez, tudo o que experiencia no plano
biográfico” (Kanaan, 2003: 19).
A fuga de Pedro e Mariana Lispector para o Brasil deve-se ao fato da
perseguição aos judeus na Europa. A família Lispector buscava libertação. O casal
trazia duas filhas e esperava o nascimento da terceira. Durante a fuga, pára em uma
pequena aldeia para o nascimento de Clarice Lispector.
Como muitos de seus personagens, Clarice nasceu em fuga, como ela mesma
confessa durante uma entrevista:
Eu nasci na Ucrânia, mas em fuga. Meus pais pararam em uma aldeia que
nem aparece no mapa, chamada Tchetchelnik, para eu nascer, e vieram para o
Brasil, onde cheguei com dois meses de idade. De modo que me chamar de
estrangeira é bobagem. Eu sou mais brasileira do que russa, obviamente (OE, p.
137).
A fuga sempre marca a passagem de um estado a outro, é uma transição. Se por
um lado, ela marca uma atitude de desespero, por outro, ela se torna uma esperança de
saída, atitude de quem abraça uma aventura desconhecida como a sua salvação. A
salvação vem por meio desse risco.
No ato de fugir duas coisas se fazem presentes: o desespero e a esperança. Com
desespero se foge de um lugar, de uma situação, e com esperança se chega a outro lugar,
vive-se outras experiências. É exatamente nessa aventura permeada por medo e
esperança que o sujeito se abre ao desconhecido, enfrenta o inesperado capaz de
reorganizar sua vida por completa, enfrenta o grande desafio de se enfrentar: repensar as
grandes questões de seu ser, de sua vida e de seu futuro.
Ao fugir, Martim se diante de questões essenciais que perpassam a vida de
todos os seres humanos: vida, morte, amor, desejo, medo, vazio, silêncio, crime,
descoberta de si. A fuga deixa de ser uma estratégia de linguagem e escrita e passa a ser
uma estratégia de ação cotidiana do personagem. Para compreendê-lo o leitor é
convidado a seguir seus passos no escuro.
Martim sempre lida com as mesmas questões sobre ele mesmo, o outro e o
mundo. Enfrenta, assim, o eterno retorno do mesmo. Uma nova vida sempre recomeça
da raiz e nesse retorno algumas coisas estão condenadas a se repetirem para se
ampliarem. Como sinalizei em outra parte, nas narrativas clariceanas a repetição não
se reduz a uma mera reprodução do que aconteceu, da “coisa”, do acontecimento,
mas uma repetição criativa.
O início da caminhada de Martim assemelha-se ao início da jornada da narradora
de Água Viva que diz: “eu mal e mal comecei a minha jornada, começa-a com um senso
de tragédia” (AV, p. 17).
Ao acreditar que cometeu o crime,
O personagem afasta-se de sua casa, de sua profissão, de seu universo de
relações, sai à procura de uma nova forma. O ponto de partida dessa
construção é o escoamento de toda vida pessoal, seguida pelo abandono das
racionalizações habituais, etapas necessárias para o protagonista tornar-se
concreto. Essa concretização almejada equivale a sua total humanização; para
alcançá-la, Martim começa por se recusar a racionalizar o seu crime ou a
desculpá-lo discursivamente (Waldman, 1992:97).
Ao contrário de Lucrécia Neves, protagonista de A cidade sitiada, que vem para
cidade e passa pelo processo de se autoconhecer a partir de suas relações com o
contexto citadino, Martim foge da cidade para o mato, para uma fazenda desconhecida,
a promessa de um paraíso, de uma vida nova. Inicialmente ele vive um mal-estar porque
não aceita o que está acontecendo consigo, sente medo do desconhecido de uma vida
nova. Ele foge de sua realidade e de si mesmo, mas falha porque ninguém consegue
fugir de sua condição. Cada um é o que é (sua condição) e é o que de ser (seu
destino). De sua condição e de seu destino ninguém pode fugir. O maior desafio do
homem é o próprio homem. O maior desafio de Martim é ele mesmo: deve se tornar
aquilo que deve acontecer, pois “Nós somos aquilo que tem de acontecer”, como
escreveu a própria Clarice (DM, p. 224).
Ao viver a imensidão do mundo, caminhando sobre areias movediças
(incertezas), esse personagem enfrenta o desafio de “pegar na mão um pouco de água” e
sentir nos pés “a dureza do chão”. Em sua aventura, quer entender um pouco da vida, da
água viva que todos nós bebemos para viver, mas quer também sentir a dureza do chão
firme que permite um homem se pôr de e andar sobre pedras. Em outras palavras: na
aventura de se refazer, Martim, assim como Ana do conto “Amor”, “deseja a raiz firme
das coisas” e de si mesmo, mas também deseja o vôo daquele pássaro que aparece no
início de sua caminhada. Como uma árvore, quer o chão para se enraizar; como um
pássaro, quer o céu para soltar suas grandes asas. Sua condição está marcada pelo
enraizamento e abertura ao mundo. O homem se apresenta, aqui, como um
entrelaçamento de natureza e aventura.
Martim quer a gênese de si e procura entender também as raízes ancestrais do
mundo. Sua se entrelaça na história de vida do Universo. “E sem questionar o que fazia,
ajoelhou-se diante de uma árvore seca para examinar seu tronco” (ME, p. 28). Com isso,
quer o saber oriundo da “árvore do conhecimento”, para examinar o solo comum no
qual se enraízam vida e morte. Examinar o tronco dessa árvore seca era o mesmo que
tentar entender como tudo começou, a raiz de problemas antigos, sua vida anterior já
morta e, ao mesmo tempo, rever as bases societárias, culturais, pessoais que enraízam a
vida humana.
As possibilidades de interpretação dessa cena são infinitas. Mas, no fundo,
talvez Martim quisesse saber o que mantêm de pé uma vida e o que a faz morrer. Talvez
examinasse o sustentáculo da vida e o que poderia fazer para si mesmo, para sustentar
sua existência. Nessa aventura, ele, assim como Ana, deseja um solo firme para dar o
primeiro passo e se pôr de pé, iniciar sua grande caminhada em direção a si próprio.
Enquanto Ângela Pralini sentia medo de viajar e perder o seu eu numa viagem, Martim
transforma sua fuga em uma viagem na tentativa de transformar-se em seu próprio “eu”.
Mas como Ângela, esse homem era urgente e emergente. Ângela era uma
personagem/mulher que se fazia a cada instante, “estava sendo(SV, p. 75). Martim
decidiu ser esse homem que estava sendo: o sentido das terras e da mulher, o aguilhao
daquilo que via (Sá, 2004: 95).
Em Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, Lóri diz para Ulisses que
gostava “de ver as pessoas sendo” (ALP, p. 71). Eles trilham por labirintos existências
em busca de si mesmos. Se, por um lado, a caminhada de Martim obedece a motivos
diferentes e mais radicais do que os de Lóri e Ulisses, por outro, são extremamente
parecidos em sua condição humana: estavam “sendo”, em gestação. Se Lóri pudesse
olhar para Martim teria um grande prazer, pois, veria nele a sua própria condição, a de
Ulisses e a de todos os seres humanos.
Martim caminha para seu renascimento, vive nesse está-sendo desse “instante-
já” que é sempre atual. Tinha deixado de ser homem, mas ainda não era um novo
homem, mas “já estava começando a tomar algum cuidado em ser exatamente apenas
aquilo que ele estava sendo” (ME, p. 91). Havia deixado de ser, mas ainda não era:
estava sendo, é um ser a-ser. O homem é este ser: nascido e sempre por nascer. Vivo e
querendo viver. Criado e se recriando.
ENRAIZAMENTO
Assim como o mar é o lugar onde todas as águas
se fundem,
Assim como a pele é o lugar onde todos os
toques se fundem,
Assim como os olhos são o lugar onde todas as
cores se fundem,
Assim como o ouvido é o lugar onde todos os
sons se fundem,
Assim como a mente é o lugar onde todas as
deliberações se fundem,
Assim como o intelecto é o lugar onde todo
conhecimento se funde,
Assim também o Ser é o lugar onde todas as
diferenças se fundem.
Yajnavalkya – Upanixade
Há coisas que se formam por si mesmas,
sem causa, e que fazem seu próprio
destino.
Paul Valéry
Meus pensamentos começam a estar
confusos. Mas o meu corpo, tocando
nas cousas, entra nelas.
Fernando Pessoa
ENRAIZAMENTO CÓSMICO
Na cosmovisão clariceana, o conhecimento sobre o homem não se limita apenas
ao que é observável, ao que lhe é exterior. O conhecimento de si exige um mergulho
introspectivo para tocar a universalidade. Como Edgar Morin, ela concebia que o
conhecimento do homem inclui uma parte introspectiva. Para Morin, cada indivíduo
singular ‘carrega a forma inteira da condição humana’ (Montaigne apud Morin, 2002:
18). Para ambos, é possível encontrar em cada sujeito verdades de valor universalmente
humano.
Ao manter relações íntimas com a Natureza, fonte gestora da vida, o homem está
de corpo inteiro em contato com a origem de toda matéria, de tudo que vive, de todo ser
que pensa e que não pensa, que sonha e sente.
No seio da Natureza e dentro da noite sem lua, Martim quer o mesmo que a
narradora de Água Viva: quer sua vida, e a quer crua, sangrenta e cheia de saliva. Quer o
“plasma” e deseja se alimentar diretamente da sua própria placenta (AV, p. 44). Nessa
fase, Martim se alimenta da própria placenta do universo que, ao gerar a vida, gerou o
homem.
A reconciliação consigo mesmo exige uma reconciliação com sua ancestralidade
e com o cosmo, pois neste, todos os seres inanimados e animados compartilham a
mesma história cósmica. Em O método 5: a identidade humana, Morin afirma:
“Conhecer o humano não é expulsá-lo do universo, mas ai situá-lo” (2002: 25). Morin
tenta compreender a natureza humana ou aquilo que certa vez Clarice chamou de
“humano do humano”. Para conhecer o homem, Morin o contextualiza no universo no
qual ele está enraizado e do qual emerge sua hominização.
A história do universo é anterior a vida no planeta, coisa que Martim sabia, pois,
para ele, o mundo e a realidade nos antecede e nos ultrapassa, assim como para G.H.
que sabia e sentia com susto e nojo que “ser” vinha de uma fonte anterior à humana,
mas que era também maior que a humana.
Sendo o terceiro satélite de um Sol destronado do centro, a Terra gira no espaço,
como se estivesse perdida numa galáxia periférica, entre bilhões de outras galáxias de
um universo em expansão. A história do homem encontra ai seu enraizamento. Somos
formados por bilhões de bilhões de partículas e atravessados, incessantemente, por
bilhões de neutrinos. O homem está como que ‘perdido num cantão desviado da
natureza’(Morin, 2002: 25).
Clarice tinha noção do surgimento do universo e, como Morin, ela tentava
encontrar nas raízes do mundo a gênese da vida, a arborescência do homem. Ao falar
por meio do autor de Um sopro de vida, afirma:
Eu tenho medo de quando a terra se formou. Que tremendo estrondo cósmico.
De camada em camada subterrânea chego ao primeiro homem criado. Chego
ao passado dos outros. Lembro-me desse infinito impessoal passado que é sem
inteligência: é orgânico e é o que me inquieta (SV, p. 32).
O estrondo cósmico a que se refere Clarice é o Big Bang. A astrofísica
mostrou que depois dessa grande explosão o universo nasceu e dele surgiu a Terra. Na
cosmovisão do astrofísico Trinh Xuan Thuan, o universo partiu de um estado
extremamente pequeno, quente e denso, que explodiu. A cosmologia moderna
descobriu que o universo foi ajustado de modo extremamente preciso para que assim a
vida e a consciência aparecessem (Thuan, 2002: 18). Na concepção de Thuan, Deus
seria o princípio criador e regular de tudo. Ao se desenvolver a partir de um princípio de
auto-organização, o universo tende para o aparecimento da Terra, da vida e do homem.
Talvez “a vida seja única ou, ao menos, muito rara, no cosmos; não passa de uma
espuma parasita na Terra; e a consciência talvez esteja no mundo vivo” (Morin,
2002: 26).
Na Terra originou-se a vida e do desenvolvimento e diversidade desta originou-
se a animalidade da qual se ramificou e surgiu o homem. “A presença do homem está
inscrita em todos os átomos do universo”. Os átomos de que é feito nosso corpo foram
fabricados pela alquimia nuclear das estrelas. Sem as estrelas não estaríamos aqui para
contemplá-las e para falar delas (Thuan, 2002: 18-21).
As raízes primordiais do mundo estão presentes em cada ser e cada um carrega
em si a memória de sua espécie e de todo o universo. A vida humana é apenas um ramo
da grande árvore da vida. Somos seres vivos, migalhas da diáspora cósmica, centelhas
do acaso e da existência solar, um pequeno broto da existência terrena. Somos um sopro
de vida, “somos todos poeira de estrelas” como afirmam H. Reeves (1997) e Thuan
(2002: 18). Se é verdade que o cosmo crio-nos à sua imagem (Morin, 2002: 28),
significa dizer que cada um de nós traz o cosmo em si, pois os mistérios do universo são
os mesmos que engendram os do homem, e vice-versa.
Para Clarice o que existe é um “Deus cósmico”
37
. Deus é o princípio criador de
tudo e do todo. Só nos resta dizer que o homem é filho Dele porque nasce desse
princípio criador universal. “Foi Deus que me inventou e em mim soprou e eu virei um
ser vivente” (SV, p. 28); “Nós somos de uma fabricação divina” (SV, p.115). Inseridas
no contexto acima, essas palavras ganham um novo sentido. Naquela noite de março -
na qual se inicia A maçã no escuro - Martim estava na noite escura das origens. Estava
vivendo a gênese de si mesmo.
A busca de Clarice se orienta para o autoconhecimento e para a unidade do
conhecimento, mas reconhece que para se aproximar do que quer, sua escrita deve
ultrapassar a prosa e a poesia, superar a fragmentação do conhecimento e da vida, deve
lançar sua imagem de homem numa fabulosa aventura cósmica para tocar a raiz de sua
origem interior. Foi Fernando G. Reis quem percebeu que em sua obra o microscópico-
individual e o cósmico-universal coexistem em seu estilo e se tornam as duas linhas
estruturais de sua obra (Reis, 1968: 231). Para ela, é no particular que se encontra o
geral, no pequeno que se encontra o grande, na pessoa se encontra a impessoalidade e
transpessoalidade, a essência do homem encontra seu lugar na essência do universo e
vice-versa.
À maneira de um holograma
38
, trazemos no seio de nossa singularidade não
somente toda a humanidade e toda a vida, mas também quase todo o cosmo, incluindo
seu mistério que jaz no fundo da nossa natureza (Morin, 200b: 51) Quando alguém
mergulha dentro de si alcança fagulhas de sabedorias da vida, centelhas de
conhecimentos do universo, toca na verdade do universo que se enraíza no homem e na
verdade deste que ecoa na essência do universo.
Ao se enraizar na natureza, Martim enraíza-se também no cosmo. Sua existência
está em conexão com todo o universo,
pois se ele ficasse preso numa cela com apenas um fio de capim na mão, nesse
fio de capim estava tudo o que um campo inteiro lhe poderia dizer. E se ele
pegara uma mulher feia e ignorada, uma mulher entre milhares, nela estava o
mundo inteiro a esperar dele a esperança (ME, p. 165).
37
A esse respeito ver: Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (p. 64-5).
38
Um holograma é uma imagem em que cada ponto contém a quase totalidade da informação sobre o
objeto representado. É dessa imagem que Edgar Morin constrói o “princípio hologramático” como um
dos princípios do pensamento complexo. “Cada ponto do holograma contém a informação do todo de que
faz parte, o mundo, doravante está cada vez mais presente em cada individuo” (Morin, 2002: 229).
Quanto mais Martim se aprofunda nele mesmo, mais perto fica de sua condição
humana universal.
À semelhança de um holograma no qual cada parte está no todo e o
todo está inscrito em cada parte, ele, Martim, estava no todo e tudo estava nele: “Sua
unidade se dava como unidade” (ME, p. 93).
Sem desejo e subjetividade, o personagem ora assemelha-se a pedras, ora se
confunde com os vegetais. Nessa fase do romance ele se torna matéria do cosmo, carne
do mundo e sangue da natureza. Ele poderia dizer o mesmo que a narradora de Água
viva: “Eu, sangue da natureza” (AV).
Sua despersonalização e seu recuo à ancestralidade foram tão radicais que o
conduziram a viver a impessoalidade da vida; quase inorgânico, ele pode mesmo se
assemelhar a uma coisa”; não passa de uma matéria viva objetiva e em formação,
possibilidade de um vir a ser, pois se encontra aberto à outras dimensões da vida. Como
uma semente que tem dentro de si uma árvore que ainda não nasceu, Martim “se tornava
precioso como uma semente” (ME, p.27), pois carrega em seu código genético a
memória da humanidade, traz em seu corpo a latente possibilidade de existir e
transcender, o futuro da espécie e da sociedade, a capacidade de criar e recriar. E tudo
isso exige uma longa e lenta aprendizagem.
Ao buscar seu enraizamento no universo, a pessoa ao universo algo mais do
que já existia antes dele: um sentido humano. O universo cria o homem e este o
humaniza ao lhe dar um sentido à sua vida, pois sem sentido uma vida fica sem centro,
desorientada, perdida. Vitória tinha razão quando pensou que “se não desse
magnificência ao mundo estaria perdida” (ME, p. 74). “O que seria do mundo se o
homem não existisse?”, se perguntava Clarice.
Martim se torna a imagem do homem arquetípico, do ser que traz em si o sopro
da vida primordial, o substrato de todos os seres viventes. É isso que Benedito Nunes
percebe de comum na leitura da obra de Clarice Lispector e nas idéias do Brahma: o
substrato da existência humana individual é o mesmo de todos os outros seres, pois tudo
quanto existe, manifesta a substância única, universal (Nunes, 1976: 100-10). Ao estar
no todo, o homem sente o todo encarnado em si: homem e universo, carne e verbo
formam uma só coisa, a mesma manifestação.
Em A maçã no escuro, a natureza do homem vai se “descortinandodiante da
natureza do mundo e vice-versa. Homem e natureza em um processo simbiótico de alto
grau de complexidade se constroem e se reconstroem. Homem e natureza se
complementam e existem nessa relação de diferenciação, complementaridade e
coexistência.
Ao recolocar o homem diante da natureza, Clarice Lispector permite ao espírito
humano abrir-se para o mundo e para o cosmo.
Para Edgar Morin, o espírito humano se abre ao mundo pela curiosidade, pelo
questionamento, pela exploração, investigação e paixão de conhecer. Manifesta-se pela
estética e emoção, pela sensibilidade e encantamento diante do nascer e do pôr-do-sol,
da lua, da avalanche das ondas, das nuvens, das montanhas, dos abismos, da beleza e
ornamentos naturais dos animais, do canto dos pássaros. Morin nisso as emoções
estimuladoras para o cantar, desenhar, pintar. É isso que incita a todos os começos
(Morin, 2002: 40).
Para Clarice, o mundo se revela ao espírito humano quando este se abre
plenamente ao mundo, totalmente despossuído de referencialidades, racionalidades,
princípios morais, de olhos e mente limitados pelas experiências da sua história; quando
a pessoa atinge o “impessoal natural”, o universal do mundo nela mesma. A
contemplação estética da vida e do mundo é o coroamento dessa abertura.
A abertura potencial do espírito humano ao mundo, essa ‘grandeza da
humanidade’, é, para Morin, um problema para o homem, é seu tormento e destino.
Morin reconhece que “abrirmo-nos à vida significa também nos abrirmos para as
nossas vidas” (Morin, 2002: 49). Na narrativa de Clarice, Martim, ao se abrir para a
vida, abria-se para si mesmo. Ao se defrontar com a vastidão do mundo sente-se
igualmente vasto; percebe os mistérios de si dentro dos mistérios do universo. Cada
sensação que sente é como sentir o mundo todo. “A sensação é a alma do mundo” (SV,
p. 34). Martim quer ouvir do mundo uma resposta para “quem” ele é. O mundo espera
ouvir do homem a resposta que o homem a pergunta que ele lhe fez. Na cosmovisão
clariceana, para uma pessoa conhecer o mundo é necessário se conhecer: quem descobre
o mistério de si, desvenda os mistérios do universo.
Por meio de suas narrativas, Clarice Lispector, faz seus personagens enfrentarem
seus problemas, tormentos e dramas. Abertos ao mundo e a si mesmos, realizam seu
destino, passam pela via crucis do corpo para renascerem em si e para o mundo.
Passar pela experiência da despersonalização, do vazio e do silêncio foi
fundamental para Martim se enraizar na natureza e reconhecer sua conexão oculta com
o universo; foi a primeira etapa do seu longo e complexo processo de se regenerar como
humano, ele que “teria que recomeçar do exato começo, ele que agora começava pelo
domingo” (ME, p. 30). Se a narrativa de A maçã no escuro começa numa noite de
março, a vida nova do seu protagonista inicia-se em um domingo desse mesmo mês.
Para a narradora de Água viva, domingo era dia de ecos, talvez porque se
parecesse com aquele domingo que inicia a narrativa de Quase de verdade, livro infantil
publicado inicialmente em 1967: “Domingo era sem nenhum programa, sem nenhum
divertimento, era um dia de nada (...) Tudo igual” (QV, s.p).
No Gênese, domingo é o primeiro dia da criação. Martim também começa a ser
criado num domingo. “Domingo era o primeiro dia de um homem. Nem a mulher fora
criada” (ME, p. 27). Era necessário um ponto de partida. Domingo torna-se o marco
temporal de sua nova existência e aventura. Portanto, “se ele quisesse ser leal para com
a própria necessidade, não poderia enganá-la: tinha que começar pelo começo primeiro”
(ME, p. 141). “De modo perfeito e obscuro, ele era a primeira coisa posta no domingo”
(ME, p. 27). Portanto, ele tem a chance de reconstruir a si mesmo e o mundo em seus
próprios termos. “(...) cada homem é a sua própria chance” (ME, p. 167). Isto o torna
precioso e especial como uma semente. “Ele mesmo era o seu próprio marco” (ME, p.
27) e tudo se reorganizaria a partir dele:
Então as coisas passaram a se reorganizar a partir dele próprio: trevas foram
sendo entendidas, ramos começaram lentamente a se formar sob o balcão,
sombras se dividiram em flores ainda irresolutas como os limites ocultos pelo
viço imóvel das plantas, os canteiros se delinearam cheios, macios. O homem
grunhiu aprovando (...) (ME, p. 16-7).
Foi num domingo que Martim teve seu primeiro pensamento claro desde que
deixara em fuga o hotel: “Hoje deve ser domingo!”, pensou Martim (ME, p.26). Esse
foi seu primeiro passo em um novo mundo e seu primeiro pensamento sem nenhuma
utilidade de defesa pessoal.
Esse homem não estava somente “no coração do Brasil”, mas “no coração de
alguma coisa” (ME, p. 53), no selvático coração da vida, lugar onde a água viva flui,
renova-se e ele frui. É desse jeito que Martim vive o real sem questioná-lo, aceita sua
condição sem compreendê-la. Como “os verdadeiros homens da Antiguidade”, ele “se
esquecia na vigília, dormia sem sonhar” (Lie Tse, 2001: 62).
O CORPO
Nos primeiros capítulos da primeira parte que forma A maçã no escuro, Martim
é apenas um corpo em repouso, “remotamente gozando”, corpo no qual a vida pulsa
silenciosamente em ressonância com o todo. Esse homem experimenta aquilo que
Clarice chama de “uma orgia muda do mundo” (ME, p. 27). Corpo-mundo-natureza
formam uma unidade simbiótica, indissolúvel.
É assim que Martim sente o coração do mundo latejar dentro de si. As energias
que formam o mundo e a natureza são as mesmas que geram e regem o corpo humano e
não humano. Seu corpo torna-se carne do mundo e em suas veias circula o sangue da
natureza. O homem emerge como uma sensibilização, um “orgasmo da natureza”, como
dizia G.H. O homem se torna “o clímax da vida” nas palavras da personagem Ângela
Pralini em Um sopro de vida.
Martim sente o mundo estremecer em sua própria pele; sua carne é matéria
objetiva, viva e sensível do mundo: “o mundo inteiro se tornara seu cúmplice” (ME, p.
89). Ele vive e sente em silêncio essa indizível unidade. Nesse silêncio ele está sem
máscara, desnudo, vive na verdade calada de Ser existente. Martim sente “a graça de
existir”, ou seja, “a esplendidez daquilo que é direto e se dirige direto” (DM, p. 92).
Em diálogo com Campbell, Stanley Keleman afirma que crescemos para ser
aquilo que o nosso corpo deseja que nós sejamos (2001: 47), mas é importante perceber
que a imagem que a mente faz do corpo no qual habita pode se afastar daquilo que o
corpo é. Pode haver um abismo entre o corpo e a imagem que a mente elabora dele.
Nesse caso, o sujeito se aparta de si mesmo, não vive em integração consigo próprio.
No caso de Martim, ele era o seu corpo e seu corpo dizia aquilo que ele se tornara. Não
descompasso ou apartação entre o que ele sente e o que ele é, entre matéria e
substância, mente e corpo. O personagem vive a unidade de seu ser em harmonia com o
mundo circundante: “- A região é árida, pensou em seguida. O que lhe deu um gosto
muito satisfatório. Olhou para o árido céu. O céu ali estava, alto. E ele embaixo.
Perfeição maior não se pode imaginar (ME, p. 93). É assim que “sua unidade se dava
como unidade”, como diz o narrador de A maçã no escuro (p.93).
Longe de ser apenas um feixe de funções preestabelecidas e anônimas, simples
meio ou instrumento, seu corpo é o seu último segredo e o primeiro mistério do
universo. É no corpo que as coisas transcorrem: “ninguém ensinara ao homem essa
conivência com que se passa de noite, mas um corpo sabe” (ME, p. 18).
Então com infinito desagrado, fisicamente atrapalhado, ele se lembrou no corpo
de como é homem pensando. Homem pensando era aquilo que, ao ver algo
amarelo, dizia com esforço deslumbrado: essa coisa não é azul. Não que
Martim tivesse chegado propriamente a pensar mas o reconhecera como se
reconhece na forma das pernas imóveis o possível movimento (ME, p. 33).
Trata-se de uma maneira de reconhecer sem raciocinar. O reconhecimento do
mundo circundante se passa pelo corpo, pois um “corpo informa muito” (SV, p. 18).
Seja grande ou pequeno, cheio ou vazio, em movimento ou em repouso, um corpo se
comunica com o universo inteiro e com todos os seres (Tse, 2001: 62). É matéria viva,
encarnação da vida. Como acontece com Lucrécia, protagonista de A cidade sitiada, o
corpo é raiz e fonte de percepções, de sensações e descobertas de si e do mundo
circundante, pois nele o mundo se passa, nele estão inscritas as memórias de tempos
antigos.
Após acompanhar a trajetória de Martim e da Sra. Xavier, após testemunhar as
metamorfoses pelas quais passou G.H., presenciar as descobertas de Lucrécia e “O
primeiro beijo
39
do menino e, além disso, percorrer A via crucis do corpo, percebe-se
que o corpo é registro de conhecimento, sabe mais de nós do que nós sabemos dele. “O
corpo todo escuta” (ALP, p. 36), fala sentindo, se expressa sem palavras, grita em
silêncio de dor e alegria, somatiza experiências diversas, evidencia nossa dureza e
sensibilidade, limites e capacidades, confirma que nossa origem vem de longe. O corpo
é fonte inesgotável de conhecimentos e de enigmas, mistérios feitos de carne e de verbo,
de matéria física e de substância não física, do que é fugaz e se renova para além dele
mesmo; está conectado com o universo.
No corpo se enraízam sensações, emoções, sentimentos, desejos, informações,
mas se enraíza também aquele “eu” sem nome tantas vezes referido por Clarice: “eu sou
apenas um eu”. Portanto, o sentir é sempre uma forma de se conhecer, forma de
aproximação de nossa condição e uma maneira de perceber a ligação que entre o eu,
o outro e o mundo.
Ao passar pela experiência da despersonalização, do vazio e do silêncio, Martim
atinge o impessoal, a matéria bruta, o neutro, e, sem pensar, descobre que o corpo é o
que de mais pessoal e, ao mesmo tempo, algo de mais impessoal e universal; é a
matéria comum entre as diferentes pessoas e culturas. Como lembra Keleman, é
exatamente a experiência da corporificação que nos a experiência de estarmos vivos.
Ela nos a percepção de um passado, de uma vida histórica, e nos um presente
(2001: 26-7). Portanto, Martim tem que, necessariamente, passar pela experiência de
redescobrir seu próprio corpo.
Um corpo carrega a história de uma vida pessoal e nele estão as raízes de uma
história ainda maior, transpessoal: as origens da vida e do mundo. Se as memórias do
mundo estão inscritas na pele e na carne de cada homem, acariciar a pele de um ser vivo
pode ser um meio de tocar antigas memórias do universo, descobrir verdades profundas
sobre a vida, como aconteceu com Martim ao tocar a pele da vaca no curral e descobrir
que o mundo era, simultaneamente, masculino e feminino:
Tratando das vacas, o desejo de ter mulheres renasceu com calma. Ele o
reconheceu logo: era uma espécie de solidão. Como se seu corpo por si mesmo
não bastasse. Era o desejo, sim, ele bem lembrou. Lembrou-se de que mulher é
mais que o amigo de um homem, mulher era o próprio corpo do homem. Com
um sorriso um pouco doloroso, acariciou então o couro feminino da vaca e
olhou em torno: o mundo era masculino e feminino. Esse modo de ver lhe deu
um profundo contentamento sico, a quieta e contida excitação física que ele
tinha cada vez que ‘descortinava’. Uma pessoa tem prazeres altamente
espirituais de que ninguém suspeita, a vida dos outros parece sempre vazia, mas
a pessoa tem os seus prazeres (ME, p. 108).
O toque e o tato são essenciais para sentir a plenitude da coisa tocada; sentir o
lado sensível da concretude do mundo, como se ao alisar uma pedra sentisse nela a
carne e o coração do mundo; a matéria é sensibilizada pela pele que se arrepia ao tocá-
la.
Acariciar o couro da vaca faz os olhos de Martim se abrirem, sua percepção se
ampliar e ele descortinar. Para Olga de Sá, esse “descortinar” é sinônimo de epifania e
epifania significa momento de beleza (2004: 77). Mas significa também “mostrar,
correndo as cortinas”, algo que faz “des-ocultar”, “descobrir” o que fica atrás das
cortinas, das mascaras, o que está coberto com véus, “manifestar”, “revelar”
40
.
39
Conto de Clarice Lispector inserido na coletânea de contos Felicidade clandestina, publicada pela
primeira vez em 1971.
40
Esse conceito de “epifania” é aprofundado por Olga de Sá em sua obra A escritura de Clarice
Lispector publicada pela Vozes em 1979, mais especificamente no capítulo IV. A autora faz uma longa
discussão desse conceito passando pela crítica literária de Clarice, mostra como tal conceito está na obra
de Joyce e como ele aparece na obra de Clarice Lispector (p. 163-211).
A cada descortino, Martim se descobre um pouco mais, deixa cair suas
máscaras, revela-se para si mesmo e conhece a beleza da verdade imanente de ser-no-
mundo. Estender a mão e tocar “o corpo enxuto de uma vaca” (ME, p. 98) foi a forma
que Martim, sem querer, descobriu de ter contato com algo maior do que ele, algo
constitutivo da natureza e do mundo. Ao entrar no curral ele sente nas mãos o couro
grosso e macio das vacas, sente nos pés a textura do estrume e no nariz o perfume
natural do curral. Acariciar o couro das vacas é o mesmo que acariciar a si mesmo.
Nesse acariciar, acariciando-se, Martim sente-se pertencido aos minerais,
vegetais e animais. E se é no curral que as plantas crescem mais viçosas é porque nele a
vida pulsa como uma veia escarlate.
O curral era um lugar quente e bom que pulsava como uma veia grossa. Era à
base dessa larga veia que homens e bichos tinham filhos. Martim suspirou
cansado com enorme esforço: acabara de ‘descortinar’. Era a partir dessa veia
larga que um grande animal atravessa um riacho espalhando água que brilha
o que o homem já havia visto, tendo porém tido apenas aquele mínimo aviso de
beleza que agora repousa em base profunda. Era por causa dessa pulsação que
as montanhas eram longe e altas. Era por isso que as vacas molhavam o chão
com um barulho forte. Era à base de um curral que o tempo é indefinidamente
substituído pelo tempo. Era por causa desse latejar que levas migratórias saíam
de zonas frias para as temperaturas. Aquele aquele era um lugar quente que
pulsava (ME, p. 98).
No curral, Martim sente o latejar do selvagem coração da vida, como se o
mundo fosse um corpo e todos os seres respirassem o mesmo sopro. Essa cena
também mostra que o conhecimento deve ser apreendido em contato direto com a
natureza das coisas. Se no curral ele se descortinou foi porque nesse lugar ele teve uma
descoberta, uma revelação de sua condição de ser-no-mundo.
Homem, mundo e natureza não podem ser concebidos de forma fragmentada,
disciplinar e sim de forma complexa, numa visão que busca ver tudo ligado a tudo. A
física quântica e a astrofísica mostraram essa ligação. Reiteraram que o planeta Terra
nasceu de poeira de estrelas e cada um de nós é feito dessa mesma poeira. Talvez seja
isso que Clarice quis dizer ao afirmar na voz de Ângela Pralini: “sou estrela, sinto que
sou estrela. Espatifada. Sou caco de vidro no chão” (SV, p. 44).
Uma das primeiras lições que o cosmos nos é que as partículas de nossas
células foram formadas, inicialmente, nos seus primeiros segundo de surgimento do
universo. Somos formados por partículas, átomos, moléculas do mundo físico de antigas
galáxias. Cada um de nós está ligado ao cosmo, às águas, á Terra, ao Sol, as estrelas.
Todos os seres vivos trazem em si a liquidez das fontes, a matéria concreta de que é
feita a terra; trazem a energia que se encontra no brilho do Sol e no brilho de antigas
estrelas. “Somos, por assim dizer, órgãos do planeta. Nossos olhos são os olhos dessa
terra; nosso conhecimento é o conhecimento da terra. E a terra, como agora sabemos, é
um produto do espaço” (Campbell, 2003: 144).
Se somos filhos do cosmo como sustentam os astrofísicos, podemos afirmar que
em nosso corpo se encontram as memórias das antigas galáxias e podemos entender o
que Clarice queria dizer ao afirmar: “um corpo sabe”. Talvez ela soubesse que a
consciência de si passa pelo conhecimento que se tem do próprio organismo, pois em
cada célula há saberes sobre o ser e o mundo, há velhas verdades inscritas.
A astrofísica Vauclair tem razão ao afirmar que somos todos descendentes das
estrelas. Sabemos que não temos muito a ver com o nascer do Sol todas as manhãs nem
com o poente de todas as tardes, mas sabemos que nossa vida representa uma
emergência do cosmo. Não perdemos a relação com nossos ancestrais, pois descobrimos
um novo ‘sentido cosmológico’ à luz de nosso saber contemporâneo, que nos ajuda a
assumir e a valorizar nossa íntima relação com o cosmo (Vauclair, 2002: 99). Isso pode
esclarecer a relação entre pensar e sentir, o “pensar-sentir” clariceano. Sentir também é
uma forma de se conhecer e se conectar com o todo, com as antigas sabedorias do
universo inscritas em cada célula do corpo. “Um corpo sabeporque o saber se enraíza
nele.
Em Como se faz um homem, primeira parte de A maçã no escuro, o organismo
de Martim está enraizado no cosmo; ele e o mundo têm a mesma matéria, carregam a
mesma energia, pois “cada homem trás dentro de si o mundo físico, o mundo químico e
o mundo vivo” (Morin, 2000: 36).
Não é possível conhecer o humano separando-o do Universo, mas, ao contrário,
situando-o nele. Ao que tudo indica, Clarice já sabia disso, pois o conhecimento sobre si
tão desejado por Martim não ocorre separado do mundo em que vive. Na primeira parte
da narrativa, ele alcança o saber que não se encaixa em nenhuma disciplina, um “saber
cosmológico” que não se explica, mas que se sente: saber de ser que todo ser vivo tem.
Em sua errância, o personagem se aprofunda tanto em si que termina tocando o
que de mais profundo no mundo. Era esse algo “profundo” que guiava Martim e o
fazia viver. Ele poderia dizer o mesmo que a personagem G.H. disse: “O mundo não
me amedrontaria se eu passasse a ser o mundo. Se eu for o mundo, não teria medo. Se a
gente é o mundo, a gente é movida por um delicado radar que guia” (PSGH, p. 91).
Para a personagem Lóri, seu corpo se transformava num dom, porque lhe
permitia experimentar, de uma fonte direta, a dádiva indubitável de existir
materialmente (ALP, p. 132). O corpo é objetivação e encarnação da vida e está um
processo constante de recriações e transfigurações, como aparece em Um sopro de vida,
e em Joana, protagonista de Perto do coração selvagem: “a dor de hoje será amanha tua
alegria; nada existe que escape à transfiguração” (PCS, p. 180). No corpo tudo é
mutável e perecível. Ele é materialização do invisível, a forma temporária por meio da
qual o infinito se manifesta.
Na ficção de clariceana fica claro o caráter perecível de todas as coisas e de
todos os entes. Numa pequena crônica de 25 de novembro, de 1972, intitulada
“Lavoisier explicou melhor”, a escritora demonstra claramente essa idéia de
transfiguração da qual falava Joana e de fugacidade de tudo que há.
A perecibilidade das coisas existentes, sendo substituída por outras perecíveis
que são substituídas pela perecibilidade de outras a essa constância se pode,
querendo, chamar de perecibilidade eterna: que é a eternidade ao alcance de
nós (DM, p. 435).
Lembrando mais uma vez Lavoisier, a escritora tem a perfeita noção de tempo e
das leis que regem o universo. Uma explicação esclarecedora para essa noção foi dada
pelo autor de Um sopro de vida (a própria Clarice), para quem o tempo significava a
degradação da matéria, o apodrecimento do que é orgânico. Em sua compreensão, o
tempo não existe. Se existe não passa de um movimento de evolução natural das coisas.
A natureza é regida por ciclos e metamorfoses, mas o homem constrói o
cronômetro ou o relógio para medir isso e a isso chamou de tempo. A vida de um
homem tem a duração imprevista de um ciclo, pois ele nasce condenado a morrer.
Nasce como ser da natureza, dentro de um planeta que por sua vez gira no universo
estrelado. Nasce em uma sepultura flutuante, coberta de lua e de estrelas. Clarice tem
razão ao dizer que cada dia que se vive é um dia roubado da morte (HE, p. 16). Uma
pessoa tem apenas a duração de um ciclo, o tempo indeterminado de uma vida para ser
feliz, e ser feliz é uma satisfação em ser, uma graça de existir.
Se um objeto apodrece ou se um corpo envelhece é porque dentro dele habita as
mesmas leis que regem o universo. Ao falar da concepção de universo cíclico, o
astrofísico Thuan afirma que o universo nunca começou e nunca terminará, porque é
regido por ciclos. O fim de um é o começo de outro, sua destruição é o recomeço
de outro universo. O universo se desfaz construindo-se, se constrói destruindo-se.
Regido por ordem-desordem-interaçoes-reorganizações, o universo não teve
início e nunca terá um fim definitivo. Como diz Thuan, “Não houve início e não haverá
fim” (2002: 25). Essa concepção está muito próxima da cosmovisão de Clarice para
quem “nada começa e nada termina!” e acrescenta: “mas eu morro” (In: Borelli, 1981:
53). Se essa é uma marca de suas narrativas, é também a marca da perecibilidade e
inacabamento da vida, do universo, portanto do humano.
O corpo é a matéria que o tempo e a energia reuniram no espaço. Clarice tinha
consciência de que o tempo só existe em nós referindo-se a uma coisa se transformar em
outra (In: Borelli, 1981: 17). Como estrela formada de matéria e energia, o corpo, e tudo
que é vivo, um dia se extinguirá.
O nascimento do homem é uma abertura para o mundo e para a vida, sua morte é
inevitável, mas enquanto se vive o corpo é uma condição de prazer, satisfação, dor,
sofrimento, renovações, descoberta de si. Vive-se a cada momento. Portanto, a cada
momento que não se vive é um instante que nos faz morrer. O homem é um ser
inacabado que vive um curto tempo e faz da vida uma grande aventura desconhecida e
indeterminada, como bem demonstra a história de Martim.
O que é a “Mortalidade em relação ao humano. Imortalidade pela
transformação na natureza. Dentro do mundo não lugar para outras criações. Há
apenas oportunidade de reintegração e continuação” (PCS, p. 123). O ser humano pode
ser visto como uma forma fugaz a se refazer pelas contínuas transformações da
matéria
41
. Em Um sopro de vida, o autor, ao se referir a Ângela, diz que ela é fugaz
demais para ser definida. A natureza de Ângela é comum a de todos os seres humanos.
O homem é fugaz e complexo demais para ser definido rigorosamente. Cada ser é um
enigma, uma atração, uma indefinição, uma pergunta que ecoa no mundo.
A vida é o desejo de continuar vivendo e viva é aquela coisa que, mais cedo ou
mais tarde, morre (In: Borelli, 1981: 19). Nessas condições, o corpo de Martim é o que
de mais pessoal e de mais universal. Depois de passar pela despersonalização, pelo
vazio e pelo silêncio, seu corpo descobre-sentindo sua irmanação com os vegetais, com
41
A esse respeito ver: PORTIERI, Regina. Clarice Lispector: uma poética do olhar (1999: 89).
os animais e outros corpos humanos. A matéria corporal iguala todos os humanos
porque se encontram inseridos nos ciclos de metamorfoses, ciclos de vida/morte/vida.
Em um de seus últimos contos, “A bela e a fera ou a ferida grande demais”, de
1977, Clarice expressa bem esse caráter perecível do corpo e da vida ao afirmar a noção
de unidade entre os humanos.
Ao sair de seu cabeleireiro que ficava no Copacabana Palace Hotel, a
narradora/personagem dessa história se depara, de súbito, com um homem sem uma
perna que se agarra numa muleta e lhe pede esmola. Ao perceber a enorme ferida na
perna daquele homem/mendigo/fera, ela solta um grito interno de “socorro”. Seu susto e
nojo aos poucos se transformam em compaixão, humildade e compreensão ao ponto de
se perceber irmã do mendigo. Descobre que “o que ele quer não é dinheiro, é amor”,
pois aquele ser humano havia se perdido da humanidade, e diz para si mesma: “eu
também mim perdi” (BF, p. 115).
Além desse reconhecimento, a bela moça percebe que
‘Há coisas que nos igualam’, pensou procurando desesperadamente outro ponto
de igualdade. Veio de repente a resposta: eram iguais porque haviam nascido e
ambos morreriam. Eram, pois, irmãos (...) O mendigo era feito da mesma
matéria que ela. (...) No plano físico eles eram iguais (BF, p. 116).
Essa descoberta da personagem revela que todos nós somos filhos do mundo
vivo e animal, fazemos parte dos mesmos laços de família. Cada homem é irmão de
todos os outros.
Nesse plano se enraíza a imagem do humano comum à espécie. “A ferida grande
demais” não era apenas uma chaga do mendigo-fera, mas era a dor de viver, coisa que a
moça-bela não conhecia ainda. Não deixa de ser também a frágil condição de tudo que
vive, a dor de viver, de um organismo condenado a perecer.
Como toda matéria viva, o corpo carrega essa marca do perecível. É exatamente
por isso que o corpo de Martim estava sujeito às condições da vida, ao seu ciclo de
transfigurações. Seja ele qual for, o corpo tem a eternidade de uma vida e é essa a marca
que iguala todos os seres humanos. O corpo de uma pessoa obedece a um antigo padrão
de constituição, algo que Clarice chamava de “protótipo”: “quanto a pessoa, Deus talvez
veja o nosso protótipo e não cada um de nós que é uma repetição do protótipo (In:
Borelli, 1981: 39).
Mesmo que cada cultura crie para si uma imagem especifica do corpo humano,
um sentido e uma forma de concebê-lo, é precisamente a estrutura, a unidade biológica
do corpo humano que gera o primeiro laço identitário entre os homens. Reconhecemos-
nos homens a partir de uma imagem comum de corpo.
Certa vez o personagem Otávio anotou um pensamento de Spinoza que dizia:
“Os corpos se distinguem uns dos outros em relação ao movimento e ao repouso, à
velocidade e à lentidão e não em relação à substância” (PCS, p. 124). Aqui se expressa a
visão de que, independentemente das diferenças culturais, sociais e humanas, o corpo é
biologicamente constituído pelo mesmo código genético, pelas mesmas aptidões e
funções. Todos os corpos possuem a mesma substância. “O mesmo patrimônio
hereditário de espécie é comum a todos os seres humanos e garante todos os caracteres
de unidade (anatômicos, morfológicos, cerebrais)” (Morin, 2002: 59).
Se, por um lado, é a estrutura biológica do corpo que nos tornam semelhantes,
nos unem, por outro, são os sonhos, os desejos, a imaginação, as sensações, a
sensibilidade e a forma como vivemos o amor que nos individualiza; mas devemos
reconhecer que tudo isso habita um corpo e sem um corpo nada disso existia. Portanto,
somos biológica e geneticamente únicos, mas subjetiva e existencialmente plurais. É na
unidade genética que se encontra a raiz da unidade genérica do ser humano. O
“genérico” engloba e ultrapassa o “genético”.
Esse termo “genérico” é empregado aqui no sentido moriniano. Ou seja: por
genérico entende-se não somente o gênero humano, mas a aptidão que tem o homem
para gerar todos os caracteres e todas as qualidades humanas manifestadas no curso da
história, assim como inúmeras virtualidades e outras aptidões ainda não realizadas. É a
aptidão que, aquém e além das especializações, constitui a fonte geradora e
regeneradora do humano. Esse termo “genérico” é visto aqui de forma complexa, pois o
homem não está destituído de subjetividade, de afetividade, de loucura, de poesia e de
amor.
O genérico é o que há de mais primordial, a arkhé, é a origem e o princípio a
partir do qual pode emergir uma outra hominização ou um novo devir humano, como
pensa Morin. Na concepção desse pensador transdisciplinar e complexo, o progresso
pode ocorrer por meio do retorno às fontes e não do seu esquecimento. Para que haja
progresso é preciso reencontrar a fonte geradora. (Morin, 2002b: 21-3).
Essa concepção moriniana está muito próxima da cosmovisão de Clarice
Lispector que esta faz seus personagens beberem diretamente na fonte da água viva,
pois é esse retorno às fontes que faz seus personagens progredirem e redescobrirem sua
humanidade latente, sua complexa existência, como acontece com Martim e G.H. Para
esses autores “grande é a verdade do retorno ao original, pois o original é o ser
inacabado por nascimento” (Morin, 2002b: 22).
É na unidade genética que se enraíza a unidade genérica do ser humano, mesmo
que esta não se prenda exclusivamente àquela. Como pensa Morin, para manter o que se
conquistou, é necessário incessantemente regenerá-lo. Sem a necessária regeneração
haveria degeneração.
A existência do homem está inserida nos ciclos que regem o universo. Nesses
ciclos, minerais, vegetais e animais fazem parte da mesma teia que não se cansa de se
fazer-desfazer-refazer. “Tudo o que não regenera, degenera. ‘Quem não está nascendo,
está morrendo’” (Morin, 2002: 294). O personagem Otávio lembra isso e,
indiretamente, se refere a Lavoisier ao reconhecer a natureza perecível das coisas:
“Nada se perde, nada se cria” (PCS, p. 120). Tudo se transfigura, metamorfoseia-se. A
personagem G.H. também tinha esse conhecimento, pois para ela “O mundo é
extremamente recíproco”. “Tudo olha para tudo, tudo vive o outro; nesse deserto as
coisas sabem as coisas” (PSGH, p. 66; 113).
Por mais que cada um seja um, Martim, a Natureza e o mundo fazem parte da
mesma “teia da vida”, termo utilizado por poetas, filósofos, físicos e místicos ao longo
do tempo para transmitir seu sentido de entrelaçamento e de interdependência de todos
os fenômenos
42
.
A experiência do corpo é uma experiência de se redescobrir enquanto matéria
viva biológica conectada ao cosmo. Como tal, ela foi fundamental para Martim
redescobrir em sua matéria o espírito que a habitava em silêncio. É esse espírito ou
sensibilização que lhe permitiu abrir seu coração e sua inteligência. Foi a experiência do
corpo que permitiu a Martim um reencantamento de sua própria vida.
42
A esse respeito ver CAPRA, Fritjor. A teia da vida. São Paulo: Cultrix, 1997, 256 p.
AS PEDRAS
“Como se faz um homem” é a primeira parte do romance A maçã no escuro. Nos
11 capítulos que compõem essa fase da narrativa, a questão reitora é exatamente essa
expressa no título.
A segunda grande parte do romance “O nascimento do herói” é composta
por nove capítulos. Martim já está formado como pessoa e, agora, ligado às duas
mulheres da fazenda, Ermelinda e Vitória, ele quer ter um propósito, quer se fazer herói;
é “capaz de altos sacrifícios e destinado a desempenhar uma missão entre os homens”
(Nunes, 1995: 40-1).
Nessa segunda parte da narrativa, a questão reitora é: “que é que um homem
faz?”. De certo modo, essa questão está disfarçadamente presente desde a primeira
parte do romance. Os primeiros sinais do nascimento do herói-Martim estão presentes
desde os primeiros passos de sua aventura, no início de sua odisséia: Martim transforma
sua fuga em viagem, sua viagem em aventura e esta em uma missão a cumprir: encarar
a realidade de si, entrar no seu labirinto interno para se redescobrir e reconstruir o
mundo a partir de uma nova linguagem.
Como uma pessoa que deseja ser comum a todas as outras, “Martim já estava
começando a se perturbar - ele era um homem, mas restava algo inquieto: que é que um
homem faz?(ME, p. 129). Com esse “um homem”, Martim quer saber o que uma
pessoa faz que é capaz de fazê-la humana, o que um homem faz que é capaz de fazê-lo
homem, pois assim como diz o poema de Leloup,
Não é o pote
Que faz a água
Potável
Não é o homem
Que faz o homem
Humano (Leloup, 1998: 55).
O humano nasce no homem, mas não necessariamente com o homem. A
humanização de Martim ocorre em um longo processo no qual o outro é fundamental,
assim como todas as relações e experiências que ele vivencia com o não humano.
O homem não se cria sozinho, nem se basta a si mesmo. Mestre Eckhart
percebeu isso ao afirmar que todas as criaturas não são a partir de si mesmas. Tudo o
que elas compartilham, recebem-no de um outro. Os seres não se dão a si mesmos
(Eckhart, 2006: 85).
A humanidade de Martim aparece numa longa e lenta aprendizagem que passa
pelo mundo mineral, pelo reino vegetal e animal até chegar ao mundo societário
habitado por outros humanos, construído pela linguagem. Ao longo do romance, o
personagem vai passando por experiências ou estágios que o fazem evoluir em sua
condição. Somente passando por essas experiências é que ele poderia redescobrir a si
mesmo, mas um si-mesmo inserido na teia de relações da qual ele faz parte. O homem é
uma teia de relações e, ao mesmo tempo, tudo que as circunstâncias possibilitam.
Martim conseguirá encontrar uma resposta sobre ele mesmo direcionando sua
pergunta ao gênero humano (“um homem”) e não ao homem individualizado, pois em
um homem isolado respostas igualmente isoladas sobre ele próprio. Sua pergunta
“que é que um homem faz” - tem uma dupla direção: dirige-se ao outro e a ele
mesmo. Mas Martim tinha que atravessar o deserto dentro de si para se reencontrar com
ele mesmo e os outros por meio de uma nova linguagem. São nos outros que nós nos
reconhecemos, algo que Leloup expressou de forma poética dizendo:
Nós outros humanos
Nós nos reconhecemos
Sempre houve caravanas de sonhos
E provisões de palavras
Para fazer a ligação
Mas o deserto está entre nós
(Leloup, 1998: 60 sic).
Ninguém atravessa um deserto sem conhecê-lo. Martim tenta conhecer o seu
próprio deserto para ultrapassá-lo. Sem um referencial que o oriente, o homem seguia o
seu coração que queria aninhar o mundo dentro de si mesmo.
Com seu “recuo antropológico” à origem de tudo, à aurora do mundo, Martim,
assim como G.H., quer encontrar a primeira imagem de um homem ou a primeira imago
que um homem elabora de si mesmo para se apresentar diante de si e dos outros. Por
outro lado, esse recuo nos faz pensar que os enigmas do homem contemporâneo são tão
modernos quanto antigos, que os enigmas de hoje podem encontrar uma resposta no
ontem que fez nascer o mundo e a vida, o ser e a linguagem.
As grandes perguntas de um homem estão dentro do próprio homem, mas ele
não pode encontrar uma resposta para si sem atravessar o deserto onde sua pergunta o
colocou. É o deserto, a solidão de ser que Martim tem que ultrapassar para encontrar
nele os outros e encontrar nos outros a sua imagem e semelhança. Por isso, ao se
perguntar “que é que um homem faz?”, Martim queria se descobrir nos outros e neles
encontrar o que lhe faltava para se tornar humano e consciente de si.
Ao se fazer essa pergunta, o protagonista quer saber o que é comum ao gênero
humano, o que torna um homem semelhantemente diferente de outros, qual é a marca
inconfundível do gênero humano ou do “homem genérico”, nas palavras de Morin. Na
linguagem da própria Clarice, Martim quer descobrir o “humano do humano” nele
mesmo e nos outros. A resposta que ele busca se enraíza na complexa condição humana,
pois se um homem não faz aquilo que é comum a todos os seres humanos, ele parece
não ser uma pessoa.
O itinerário desse homem parece ser o de uma grande aventura mística da
linguagem e o romance A maçã no escuro pode ser visto como um grande “romance da
condição humana”, como disse (2004: 82), ou, nas palavras de Morin, poderíamos
chamá-lo de “romance de hominização”, pois a sua narrativa mostra, sem revelar
completamente, o longo e complexo processo de desenraizamento/enraizamento e
abertura do ser humano em busca de uma nova constituição de si.
As referências sobre a condição humana multiplicam-se no livro com o narrador
falando na primeira pessoa do plural nós e se imbricam na narrativa, de modo a
formar um tecido inconsútil, impossível de recortar, sem colocar em perigo sua
privilegiada unidade (Sá, 2004: 83). Desse modo, narrador e personagem, vida e
escritura, leitor e leitura, Clarice e seu personagem (Martim) tornam-se um só. “Eu sou
o Martim”, dizia Clarice (OE, p. 151).
Na narrativa, a voz do outro, do personagem, parece ser a outra voz de cada um
de nós, pois todos nós somos seres de linguagem e estamos unidos pela mesma
condição de humanos. Clarice escreve sobre um eu que inclui tu, ele, ela, nós, vós, eles,
elas: porque todos estão unidos pelos mesmos laços familiares, umbilicais. Essa idéia
está explícita no romance A hora da estrela. A “Dedicatória do autor (Na verdade a
própria Clarice Lispector)” vai para esses outros que fazem o “eu sou”:
... Dedico-me à cor rubra muito escarlate como o meu sangue de homem em
plena idade e portanto dedico-me a meu sangue. Dedico-me sobretudo aos
gnomos, anões, sílfides que me habitam a vida. Dedico-me à saudade de minha
antiga pobreza, quando tudo era mais sóbrio e digno e eu nunca havia comido
lagosta. Dedico-me à tempestade de Beethoven. À vibração das cores neutras de
Bach. A Chopin que me amolece os ossos. A Stravinsky que me espantou e com
quem voei em fogo. À “Morte e Transfiguração”, em que Richard Strauss me
revela um destino? Sobretudo dedico-me às véspera de hoje e a hoje, ao
transparente véu de Debussy, a Marlos Nobre, a Prokofiev, a Carl Orff, a
Schönberg, aos dodecafônicos, aos gritos rascantes dos eletrônicos a todos
esses que em mim mesmo atingiram zonas assustadoramente inesperadas, todos
esses profetas do presente e que a mim me vaticinaram a mim mesmo a ponto de
eu neste instante explodir em: eu. Esse eu que é vós pois não agüento ser apenas
mim, preciso dos outros para me manter de pé, tão tonto que sou, eu enviesado,
enfim que é que se de fazer senão meditar para cair naquele vazio pleno que
só se atinge com a meditação. (...) Amém para nós todos (HE, p. 9-10).
Tudo se passa como de fato é: minha voz tem o som de muitas outras vozes; em
meus olhos o brilho de outros olhos; meu coração pulsa com o peso e a leveza de
tudo que senti e deixei de sentir; minhas lembranças são cheias de vida; meu corpo traz
as marcas do tempo; minha história é feita de muitas histórias e em meu eu habita
outros eus. Somos uma colméia de seres. Cada um de nós é a síntese de muitos outros.
Como diz Morin, somos, simultaneamente, únicos e múltiplos. E é isso que torna cada
pessoa misteriosamente interessante, mágica, um universo a ser explorado, uma
aventura a ser vivida, um sonho que vive de olhos abertos.
Como um poeta, essa romancista “canta um eu que é um tu e um ele e um nós”
(Paz, 1993: 30). Cada homem carrega o pior e o melhor de toda a humanidade e toda a
humanidade está em cada um dos homens. De certa forma, é esse o entendimento que
tem o autor de Um sopro de vida (a própria Clarice) ao dizer: “tenho que começar por
aceitar-me e não sentir o horror punitivo de cada vez que eu caio, pois quando eu caio a
raça humana em mim também cai” (SV, p. 17).
Quem indaga sobre um homem, indaga-se sobre a condição humana em geral, e
quem questiona a condição humana, questiona-se. Perguntar: “Quem é o homem?”,
“Como se faz um homem?”, “Que é que um homem faz?” é o mesmo que se perguntar:
“quem sou eu?”, “Quem somos nós?”. Uma se liga a outra como vários elos que se
unem para formarem uma corrente.
Essas perguntas estão implícita e explicitamente presentes na trajetória e
experiências de Martim. Além delas, constantemente o personagem se questiona se foi
realmente um crime o ato que cometeu, “que é que um homem faz”, qual é seu destino.
Nesse aspecto, Martim está muito próximo não somente do professor de matemática do
conto “O crime do professor de matemática”, mas de todos os outros personagens
criados por Clarice Lispector, e estes não se distanciam de todos os homens.
Ao contrário de um cão que é um mistério vivo que não se indaga
43
, o ser
humano é um mistério vivo que se indaga a si mesmo. Indagar-se é sua natureza. Não
conseguir uma resposta definitiva é sua frustração, é seu constante fracasso. O homem
se torna uma grande questão para si mesmo; ele é uma pergunta e a falta de uma
resposta
44
. Sua trajetória de vida talvez seja a única resposta que um homem pode ter
sobre ele mesmo. A vida de uma pessoa - com todas as suas perguntas e mistérios - é a
sua bruta resposta ao que ele se tornou.
A vida de uma pessoa é a resposta que esta à pergunta que ela faz à vida. Se
ela não encontra resposta, essa não resposta é sua vida, pois é em cima dela que todo
o seu ser, suas relações e experiências são construídas. “Vivo como bruta resposta. E
estou para quem me quiser”, dizia Clarice em uma de suas crônicas (PNE, p. 49).
Quando uma pessoa faz uma pergunta à vida e não obtém resposta, talvez tudo aquilo
que ela vivenciou seja exatamente a resposta sem palavras à pergunta feita. Cada um de
nós é a resposta viva que se indaga a si mesma sem nunca encontrar a definição para
aquilo que é. A vida fala de muitas formas e nem sempre um homem está ao alcance da
linguagem por meio da qual a vida se expressa.
O homem é um animal que se estranha a si mesmo, que se busca, que faz de sua
vida uma pergunta, um desafio, uma saga. Assim, esse emblemático romance A maçã
no escuro - pode ser visto como uma odisséia do homem que começa não somente com
o retorno às fontes, à aurora do mundo, mas à indistinção que une as diferenças à
origem de tudo. Olhando para Martim, poderíamos dizer que é somente no homem que
“existe o poder de um ato, a estúpida liberdade e a grande solidão” (Sá, 2004: 83).
Talvez sua primeira descoberta seja esta: um homem é aquele que tem uma missão entre
os homens.
Martim é um homem que não consegue se definir, pois ninguém sabe o que é o
homem. A princípio ele é um não-ser, enquanto caminha é um estar-sendo e um vir-a-
ser
45
. Tudo que se pode dizer é que o homem é este vir-a-ser-sendo-agora-mesmo, um
ser sempre a-ser. É assim que Martim se sente na maior parte do romance, sensação que
43
No conto “As águas do mar”, Clarice faz a pergunta: “Por que é que um cão é tão livre?”. E responde
dizendo: “Porque ele é o mistério vivo que não se indaga” (OED, p. 113).
44
Na crônica “Eu sou uma pergunta”, Clarice se define como uma pergunta sem resposta. Cf. A
descoberta do mundo, p. 367-369.
45
Nesse aspecto, o pensamento de Clarice está intimamente próximo da filosofia indiana dos Upanixades,
filosofia que a escritora parecia conhecer tendo em vista a epígrafe que abre A maçã no escuro. Sobre
essa filosofia ver: MEHTA, Rohit. O chamado dos Upanixades. Tradução: Marly Winckler. Brasília:
Ed. Teosófica. 2003.
lhe acompanha quase durante toda sua trajetória, principalmente quando ele es
sozinho no deserto do mundo, “rodeado de pedras”.
No deserto
O homem não é
Ele deve ser
Vir-a-ser sem cessar
Não há parada possível
De hoje em diante
Ele deve inventar-se a cada passo
Seu desejo o salva
Se parar
Torna-se areia ou se petrifica
O homem não é um ser
Um pode-ser (Leloup, 1998: 67).
Um dos primeiros contatos de Martim com seu mundo circundante objetivo,
exterior, e sua primeira tentativa de entendimento de si aconteceu quando teve o contato
com o reino mineral, com as pedras em seu caminho. Ao se deparar com grandes e
pequenas pedras em seu caminho, Martim poderia ter dito:
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei esse acontecimento
Na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
Tinha uma pedra
Tinha uma pedra no meio do caminho
No meio do caminho tinha uma pedra. (Andrade, 2006:16)
Não foi somente uma pedra que apareceu no caminho de Martim. Foram várias,
muitas; mas elas não estavam dificultando a sua jornada, nem atrapalhando o fluxo da
palavra como parece acontecer com o próprio poema de Carlos Drummond de Andrade,
que o poema não consegue avançar como se realmente uma pedra estivesse a sua
frente impedindo seu progresso, dificultando a próxima palavra. Em Drummond, a
pedra estava no caminho do verbo. Em Clarice, as pedras eram um caminho para o
homem se reconhecer e se reconstruir por dentro.
Diante das pedras, daquele “silêncio de coisas encontradas na estrada”, Martim
permanece sem falar, mas isso se deve ao fato dele ainda não conseguir fazer vibrar na
boca a voz do seu coração.
Em A maçã no escuro, as pedras surgem como um possível “outro”, o que faz o
protagonista desejar um diálogo.
As pedras não estavam no caminho do personagem. Elas expressavam a natureza
de sua jornada interior, eram seu próprio caminho ou parte daquilo que estava
acontecendo com ele. Era um meio de o homem alcançar algum conhecimento e
compreensão sobre sua condição. Significa dizer que Martim teria que percorrer esse
longo, duro e escorregadio caminho para conseguir obter o conhecimento e o
autoconhecimento que tanto queria. Seu caminho era, portanto, duro, lento e
escorregadio, algo que metaforicamente pode ser compreendido por meio de um conto
oriental intitulado “O caminho de pedra é escorregadio”:
O mestre Ch’na Yin-feng decidiu pedir ao mestre Ch’na Ma-tsu licença para
partir e este lhe perguntou: ‘ Para onde você vai?’.
Yin-feng respondeu: Vou para Nan-yüeh, estudar sob orientação de Mestre
Shih-t’ou Hsi-ch’ien’.
Ma-tsu comentou: ‘ O caminho de pedras é escorregadio’.
Ao ouvir, Yin-feng retrucou: A vara de bambu e o bastão de madeira estão
comigo e eu vou tocá-los de ouvido’.
Tendo recebido a autorização de Ma-tsu, Yin-feng partiu e foi de Kiangsi para
Hunan, onde prestou respeito a Mestre Shih-t’ou.
Yin-feng deu uma volta ao redor da plataforma Ch’na, chacoalhou seu cajado
de monge e perguntou: ‘ Qual é o seu ensinamento?’.
Mestre Shih-t’ou o ignorou. Passado um bom tempo, Shih-t’ou exclamou: Ó
céus! Ó céus!’.
Yin-feng não conseguiu entender o significado daquilo e não soube como
responder.
Sem alternativa, Yin-feng retornou a Mestre Ma-tsu e relatou o que lhe ocorrera
durante o encontro com o outro mestre.
Mestre Ma-tsu disse-lhe: ‘Volte e, quando Mestre Shih-t’ou disser ‘Ó céus! Ó
céus!, responda ‘Ssssssh!’.
Yin-feng retornou a Nan-yüeh e perguntou de novo: ‘Qual é o seu
ensinamento?’.
Sem a menor hesitação, Mestre Shih-t’ou fez: ‘Ssssssh!’.
De novo sem saber o que dizer, Yin-feng voltou para contar a Mestre Ma-tsu o
ocorrido.
Consolando-o, Mestre Ma-tsu pontuou: ‘Eu disse que o caminho de pedras era
escorregadio’. (Yün, 2004: 52-3).
Em A maçã no escuro, além das pedras se apresentarem como um possível
outro, representam também esse duro e escorregadio caminho pelo qual o personagem
deveria seguir para reconstruir a si mesmo por dentro, ele que tinha a intenção de se
“reconstruir a seu modo pela primeira pedra, até que chegasse ao instante em que
houvesse o grande desvio” (ME, p. 139).
Martim usa a objetividade das pedras como uma forma de crescimento subjetivo,
humano, como um meio de conhecimento pessoal. “Ele sempre aproveitara do que
pudera aproveitar, pois nunca fora um tolo” (ME, p. 45). E em sua jornada, não existirá
"pedra" em seu caminho que esse homem não possa aproveitar para a sua própria
construção existencial.
O contato desse homem com as pedras foi fundamental para que ele não
conhecesse apenas os ecos de si mesmo, imagens e idéias vagas sobre sua vida.
O homem se sentou numa pedra, ereto, solene, vazio, segurando oficialmente o
pássaro na mão. Porque alguma coisa estava acontecendo. E era alguma coisa
com um significado.
Embora não houvesse um sinônimo para essa coisa que estava acontecendo.
Um homem estava sentado. E não havia sinônimo para nenhuma coisa, e então
o homem estava sentado (ME, p. 31).
É um domingo o dia em que Martim senta-se em uma pedra. Esse foi um dos
grandes e primeiros prazeres que ele sentiu depois de sua fuga do hotel. Sentado numa
pedra e sentindo o que lhe acontecia, Martim parecia “O pensador” de Rodin. Essa
escultura é fisicamente perfeita, mas, ao contrário dela, esse homem estava em lenta
reconstrução por dentro de si mesmo, buscava uma perfeição possível, uma
subjetividade que lhe desse a forma de humano. Era um ser que estava sendo, pois ao
contrário de uma estátua, um homem não é construído somente por outro homem. É um
ser em constante reconstrução.
Esse contato com o mundo mineral fez o homem se enraizar ainda mais na
ancestralidade do mundo, na matéria anterior à vida. Martim sabia que “o mundo nos
antecedia” e que “as coisas nos ultrapassam”. As pedras eram a demonstração concreta
disso, pois elas são mais antigas do que o aparecimento da vida no Planeta e
ultrapassam a existência de uma pessoa.
Ao admitir um desenvolvimento progressivo do Universo, a paleontologia
esclarece um pouco mais essa questão. Para ela, a evolução do Universo está dividida
em três etapas: a cosmogênese, a biogênese e a antropogênese. A primeira teve início
com o aparecimento das substâncias materiais que formaram a litosfera. Essa palavra
vem do grego lithos e quer dizer pedra. A crosta terrestre é formada por essa matéria
inanimada e antiga. Essa é a fase dos agrupamentos moleculares e nela não haveria
ainda a consciência, mas a pré-consciência. A segunda é marcada pelo surgimento de
vidas sensitivas como a das plantas e de animais como aranhas, crustáceos e peixes. A
terceira começa com o aparecimento do homem que tem consciência de sua própria
consciência.
Ao observar atentamente a condição de Martim diante das pedras, poder-se-ia
dizer que era exatamente na fase da cosmogênese que se encontrava o personagem:
estava em contato com as primeiras substâncias formadoras do mundo, da vida; estava
vivenciando a pré-consciência do mundo e dele mesmo.
As pedras não representam apenas os alicerces da Terra-mãe
46
. Em algumas
concepções, o Universo inteiro está alicerçado nelas. Segundo Campbell, a doutrina da
Guirlanda de Flores ou Avatamsaka expressa bem isso. No sutra budista, o Universo
inteiro é descrito como uma imensa rede de pedras preciosas. Em cada uma de seus
pontos de intersecção, uma pedra reflete a luz de todas as demais. A ênfase não está
tanto nas pedras, mas no que é refletido nelas, por elas (Campbell, 2006: 40). Elas são
as matérias visíveis que dão formas a outras formas.
Clarice tinha consciência dessa matéria antiga do mundo. Não somente em A
maçã no escuro, mas em outros textos a escritora se referiu várias vezes às pedras. Na
crônica “Antes de o homem aparecer na terra”, ela confessa que ganhou uma pedra de
Vila Velha cuja época vinha da “última glaciação da Terra, 360 milhões de anos. (...)
minha pedra é portanto de antes do aparecimento do homem na Terra. Amo as pedras”
(DM, p. 344). Em certo momento de sua trajetória Martim expressa algo semelhante:
“Eu te amo, disse seu olhar para uma pedra” (ME, p. 24).
O que significa essa afirmação de Clarice: “amo as pedras”?
Uma possível resposta ou entendimento dessa declaração pode ser encontrado
nos Sermões alemães do Mestre Eckhart (1260-1328).
Para esse pensador, religioso e místico especulativo do Ocidente, o Céu derrama
sua força no Sol e nas estrelas, e as estrelas derramam sua força na terra. Assim se
formam o ouro e todas as pedras preciosas na terra. Essas pedras conservam as mesmas
forças que as construíram e são capazes de produzir efeitos maravilhosos, onde umas
46
O “Dicionário de símbolos” aponta para essa imagem da pedra como símbolo da Terra-mãe. (2005:
697).
têm até mesmo a força de atrair ossos e carne. O Céu derrama sua força nas estrelas. As
estrelas derramam sua energia nas pedras, plantas e animais. Por isso, cada pedra e cada
erva é um pequeno abrigo das estrelas na terra (Eckhart, 2006: 298. Sermão 54ª). E
todos eles carregam a força do Céu e o brilho das estrelas. Como disse Morin, “cada ser
e cada erva tem uma estrela”.
Na cosmovisão do Mestre Eckhart tanto quanto na de Clarice, Deus é o tudo, o
todo e o nada. No Universo, todas as coisas constituem um único corpo celeste: “Deus
cósmico”, como Clarice pensava. Em uma de suas crônicas, “Conversa descontraída:
1972”, confessa: “Espanta-me a Natureza neste mundo que é Deus” (DM, p. 397). De
forma enfática o narrador de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, esclarece:
“(...) Deus foi nascido da Natureza e por sua vez Ele interferiu nela” (ALP, p. 70).
Assim, quem se entrega a Natureza, entregá-se a Deus que é o selvagem coração da
vida. Ele não é ausente e distante, nem reside no Céu, mas está presente em todas as
coisas e tudo está nele. Não é transcendente, e sim imanente a todos os seres. O Deus
que desperta no homem é o mesmo que sonha no animal, que respira na planta e que
dorme na pedra.
Amar as pedras é o mesmo que amar a ancestralidade do mundo, o enraizamento
cósmico do ser-no-mundo, amar a vida antes da vida. Não deixa de ser também uma
forma de amar a Deus, pois quem declara seu amor às pedras, declara-se a Ele, ama-O,
pois na pedra Deus se faz matéria, realidade de Ser-o-que-É. Para Eckhart, “Deus toca
todas as coisas sem ser ele mesmo tocado” (2006: 110). Na obra inteira de Clarice, Deus
está presente em todas as coisas e em todos os seres, Deus se faz matéria para poder
tocar e ser tocado pelo homem. Na cosmovisão dessa escritora, o homem é um nada que
potencialmente é um tudo. É um ser que traz tudo que é misteriosamente interessante
em um ser vivo.
Em alguns momentos, na visão de Clarice, o homem aparece como um
tesouro que se disfarça ou como aquele ser que nem sempre se conta da preciosidade
que há dentro dele mesmo.
O aparecimento das pedras torna-se importante no contexto do romance por um
outro motivo: miticamente elas estão ligadas à gênese do homem.
Na mitologia grega uma aproximação entre a origem do homem e as pedras,
algo que é relembrado por Ernest Cassirer ao analisar o pensamento do filósofo Max
Müller.
Cassirer estabelece uma relação importante entre linguagem e mito, mas também
entre mito e homem, a origem do homem associada às pedras. Recorre a Muller porque,
de algum modo, esse filósofo lembra a lenda de Deucalião e Pirra, que, depois de salvos
por Zeus do grande dilúvio que exterminou o gênero humano, converteram-se nos
progenitores de uma nova raça; ao atirarem pedras por sobre os ombros, as pedras se
transformavam em seres humanos. As pedras se faziam homens, seres de carne, osso e
sangue. Para Cassirer, essa origem dos homens, a partir da pedra é algo simplesmente
incompreensível, mas seria concebível se recordássemos que, em grego, os homens e as
pedras se designam pelos mesmos nomes, ou pelo menos, com som semelhante
(Cassirer, 1992: 18).
Além disso, o dicionário de Jean Chavalier e Alain Gheerbrant aponta para mais
uma relação entre o homem e as pedras. Elas ocupam um lugar de distinção nos mitos,
lendas e toda a simbologia.
Segundo a lenda de Prometeu, procriador do gênero humano, as pedras
conservam um odor humano. A pedra e o homem apresentam um movimento
duplo. O homem nasce de Deus e retorna a Deus. A pedra bruta desce do céu;
transmutada, ela se ergue em sua direção. O templo deve ser construído com
pedra bruta, não com pedra talhada (Chavalier, Gheerbrant; 2005: 696.
Destaque dos autores).
De acordo com esse dicionário, em algumas tradições semitas, o homem nasce
das pedras e em certas lendas cristãs o próprio Cristo nasce de pedras
47
, mas não
esclarece essa questão.
Nas lendas e mitos, as pedras são vistas como elemento de construção, de
criação e como símbolo do nascimento do homem e da vida. Elas desempenham um
papel importante nas relações entre homem e natureza, entre o visível e o invisível da
realidade - como acontece quando são usadas como instrumentos de clarividência dos
xamãs e com o altar dirigido ao céu. As pedras aproximam o céu e a terra. Há, ainda,
uma estreita relação entre a alma humana e as pedras
48
, sugere o citado dicionário, mas
também sem aprofundar essa questão.
Como a ficção literária, a mitologia mescla o real de imaginário e aproxima o
homem do impossível. Aproxima o ser humano dele mesmo; religa tempos e povos
tendo em vista seu caráter universal e sua sutileza de se adaptar às diferenças.
47
Cf. Jean Chevalier, Alain Gheerbrant. Dicionário de mbolos: mitos, sonhos, costumes, gestos,
formas, figuras, cores, números. Tradução: Vera da Costa e Silva (et al.). Rio de Janeiro: José Olympio,
2005, p. 696-7.
48
Idem.
Como concluiu Müller, “a mitologia é inevitável, é uma necessidade inerente à
linguagem, se reconhecermos nesta a forma externa do pensamento”. Mesmo que para
esse autor o mundo mítico seja essencialmente um mundo de ilusões (Cassirer, 1992:
19-20), ele é o mundo sem o qual certos diálogos e certas verdades não existiriam.
Cassirer e toda a simbologia destacada por Chavalier e Gheerbrant sugerem que
a origem do homem está miticamente associada às pedras. Portanto, a aventura mítica
de Martim tinha que necessariamente se deparar com pedras em seu caminho e estas
serem também um caminho para ele chegar a ele mesmo. Elas não se apresentam,
portanto, como um entrave e sim como um degrau a ser galgado. Sendo as matérias
mais antigas do mundo, anteriores à vida, representantes do mundo mineral, elas servem
para construir casas e muros, edifícios e fortalezas, mas no caso de Martim elas se
apresentam, por um lado, como um ritual de passagem para que o homem possa avançar
em seu itinerário, evoluir em sua condição espiritual e humana. Por outro, elas servem
como bases para a construção de edifícios subjetivos, alicerces de uma nova linguagem,
pois Martim queria se tornar um homem concreto num mundo concreto, ele que queria
ser herói.
Martim entra em contato com pedras “arredondadas e mortas como pedras da
lua” e com outras que pareciam “pedrarias do sol” (ME, p.41 e 42) que o olhavam
diretamente. Foi nesse contato com o não-humano que esse homem se enraizou ainda
mais em sua condição material e começou a despertar uma nova sensibilidade humana.
Ele encontra na dureza das pedras uma nova sensibilização de seu ser, de sua mente que
começava a entender vagamente algumas coisas. As pedras em seu caminho surgem na
narrativa como uma forma dele erguer seus primeiros pilares subjetivos, existenciais ou
um novo edifício de significado para as novas palavras que ele tanto queria.
Ao ver inúmeras pedras diante de si, Martim exercitou primeiramente um “faz
de conta”: imaginou que estava diante de um auditório de homens sem cultura, o que se
tornou fundamental para ele elaborar um sermão.
Semelhantemente a Martim que se sentou numa pedra enquanto olhava para
outras que pareciam homens, Lóri, protagonista de Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres, também “sentou-se para descansar e em breve” começou também a fazer de
conta.
Fazia de conta que ela era uma mulher azul porque o crepúsculo mais tarde
talvez fosse azul, faz de conta que fiava com fios de ouro as sensações, faz de
conta que a infância era hoje e prateada de brinquedos, faz de conta que uma
veia não se abrira e faz de conta que dela o estava em silêncio alvíssimo
escorrendo sangue escarlate, e que ela não estivesse pálida de morte (...), faz de
conta que amava e era amada, faz de conta que não precisava morrer de
saudade, faz de conta estava deitada na palma transparente da mão de Deus,
não Lóri mas o seu nome secreto que ela por enquanto ainda não podia
usufruir, faz de conta que vivia e não que estivesse morrendo pois viver afinal
não passava de se aproximar cada vez mais da morte, faz de conta que ela não
ficava de braços caídos de perplexidade quando os fios de ouro que fiava se
embaraçavam e ela não sabia desfazer o fino fio frio, faz de conta que ela era
sábia bastante pra desfazer os nós de corda de marinheiro que lhe atavam os
pulsos, faz de conta que tinha um cesto de pérolas para olhar a cor da lua
pois ela era lunar, faz de conta que ela fechasse os olhos e seres amados
surgissem quando abrisse os olhos úmidos de gratidão, faz de conta que tudo o
que tinha não era faz de conta (...) (ALP, p. 14-5).
Depois disso, Lóri ficou cansada do esforço de animal libertado. Para ela, esse
exercício de “faz de conta” era mais do que uma brincadeira de criança. Era um meio de
construir verdades inventadas para ela mesma. Ela “precisava no meio do faz de conta
falar a verdade de pedra opaca que contrastasse com o faz de conta verde-cintilante”
(ALP, p. 14).
Essa “verdade de pedra” é a mais dura que uma pessoa pode elaborar para si
mesma e uma das primeiras coisas que Martim fez como homem que está se fazendo.
Nesse contexto, a grande questão “o que é que um homem faz? ganha, aqui, uma
possível resposta: o homem é um ser que sente a dureza da vida, que sonha, imagina,
cria. É o único animal que cria para ele mesmo a realidade e a verdade de que precisa
para viver. Um ser que pode construir sua vida existencial sobre a areia movediça ou
sobre um alicerce de pedras. Martim quer um alicerce existencial tão sólido como uma
rocha: “Às cegas, embora, e tendo como bússola apenas a intenção, Martim parecia
querer começar pelo exato começo. E reconstruir a seu modo pela primeira pedra, até
que chegasse ao instante em que houvera desvio” (ME, p. 139). Essa é sua liberdade de
escolha.
Para Clarice, a inverdade é um meio de se chegar à verdade. A ficção é uma
forma de realidade e a vida é um grande e mágico “faz de conta”. Portanto, fazer de
conta é um meio de viver a vida, de suportar a dura realidade de pedra. E é nesse “faz de
conta” que muitas realidades são vividas e construídas, o que faz o homem superar a
dicotomia entre real e imaginário: o homem enche sua vida real de imaginário e banha o
imaginário na vida realmente humana. É, também, por meio desse exercício que o ser
humano acrescenta ao mundo o que ao mundo falta, integra-se ao mundo circundante e
transforma a prosa do mundo em poesia de vida.
Martim se relaciona com as pedras assim como uma criança que cria de forma
real um “faz de conta”
49
para viver, algo que é fundamental para sua formação de
pessoa. Além de ser um exercício de liberdade, a importância desse ato imaginativo
constitui uma função fundamental para o ser humano: criar, transfigurar, brincar,
construir, imaginar possíveis existências e uma outra ordem para as coisas do mundo.
Ao exercitar essa função era como se ele quisesse ressaltar a importância do
imaginário na formação da vida adulta ou lembrar que o adulto nunca deve esquecer
esse lado criança de sua vida. Pois um homem que vive em harmonia consigo mesmo
exercita, ao mesmo tempo, seu lado criança e seu lado adulto, seu lado sapiens e seu
lado demens; vive tanto o prosaico como o poético, o lúdico e o onírico, o que é prático
e o que é imaginário, subjetivo. O ser humano se apresenta de forma complexa porque
traz em si essa marca da bipolaridade, de caracteres antagônicos e complementares:
sapiens e demens (sábio e louco), faber e ludens (trabalhador e lúdico), empiricus e
imaginarius (empírico e imaginário), prasaicus e poeticus (prosaico e poético) (Morin:
2003: 58). Ao exercitar esse “faz de conta”, Martim estava exercitando o outro lado de
sua natureza.
Contrariando a gica racionalista ocidental, na cosmovisão de Clarice
sempre esse exercício de rejuntar muito mais do que separar os opostos. Rejunta alma e
corpo, espírito e matéria, finalidade e causalidade, sentimento e razão, essência e
existência, determinismo e liberdade, animalidade e humanidade. Tudo isso constitui a
complexa condição humana.
Semelhantemente ao mito do qual fala Müller, Martim transforma pedras em
homens, mas, ao contrário desse mito, isso não acontece porque ele joga pedras por
cima do ombro. Pela força transfiguradora que tem o olhar, Martim as pedras e
imagina um auditório de homens sem cultura para quem dará um sermão. Tudo
acontece como se imaginar e ver fossem uma só coisa; ele transforma pedras em
homens imaginários.
Ao fazer isso, Martim fez o avesso daquilo que diz o mito de Perseu e a
Górgona.
49
A esse respeito ver: Fernanda Mara Colucci Fonoff. Martim: pescador de palavras (Estudo d’A maçã
no escuro, de Clarice Lispector). São Paulo: USP, 2002, p. 57-8. (Dissertação de mestrado).
Diz o mito que no longínquo oeste de Argos, viviam três irmãs. Uma delas,
Medusa, fora uma das sacerdotisas da deusa Palas Athena. Medusa tinha os cabelos
dourados e uma grande beleza, mas quando Athena percebeu que ela era tão quanto
bonita, infligiu-lhe uma punição. Cada mecha de seus cabelos transformou-se em uma
serpente venenosa. Seus olhos, que tinham sido uma vez a fonte do amor, eram agora
como túmulos de pedra fria. Suas faces rosadas adquiriram a cor lívida da morte. Seu
sorriso, que fazia o coração dos amantes estalar dentro do peito, tornara-se algo
pavoroso. A boca escancarada, a língua protuberante, uma máscara grotesca que
encarava o mundo, um horror ante o qual todos quedavam aterrorizados
50
.
Em A sabedoria dos antigos, Francis Bacon outros dados importantes sobre
esse mito. Diz ele que Medusa era um mostro terrível e ameaçador que apenas com seu
olhar transformava os homens em pedra. Ela era uma das Górgonas, a única mortal, pois
as outras não estavam sujeitas ao devir. Perseu foi enviado por Athena para degolar
Medusa tendo em vista os horrores que cometia. O guerreiro recebeu de três deuses
armas e dons: Mercúrio deu-lhe asas para os pés; Plutão, um elmo; Athena, um escudo
espelhado. Mas, mesmo estando assim tão bem provido e equipado, não avançou contra
Medusa diretamente, preferindo antes desviar-se do caminho e visitar as Graias. Eram
estas meias-irmãs das Górgonas e já haviam nascido velhas, de cabelos brancos. Tinham
um único olho e um único dente para todas, que usavam por turnos. As Graias
emprestaram a Perseu o olho e o dente. Depois, achando-se preparado para a missão,
voou ao encontro do monstro. Encontrou-a dormindo, e, temendo contemplá-la caso ela
despertasse de súbito, pôs-se de costas e observou-a pelo espelho, valendo-se do reflexo
para cortar-lhes a cabeça (Bacon, 2002: 40).
No mito relatado por Müller, o homem nasce das pedras. No mito de Perseu e a
Medusa, o homem morre petrificado. Talvez esses dois mitos não estejam em oposição,
pois um fala da origem e o outro do destino final do ser humano. Um mito diz que o
homem nasce das pedras e o outro diz que o homem acabará num túmulo de pedra.
Se, por um lado, Martim pode ter um parentesco ou uma origem comum com as
pedras (já que o homem é matéria do cosmos), por outro ele é o avesso do mito da
Medusa. Enquanto o olhar desse monstro mata, o olhar de Martim cria, faz nascer,
mesmo que imaginariamente. A Medusa transforma a vida em algo estável, duro,
50
Uma versão ampliada desse mito encontra-se em: Jean Lang. Mitos universais: mitos e lendas dos
povos europeus. Tradução: Vilma Maria da Silva. São Paulo: Landy, 2003.
petrificado. Martim transforma a não-vida em vida, o inanimado em animado,
transforma pedra em carne silenciosa.
Na narrativa de A maçã no escuro, uma grande relação das pedras com o
auto-entendimento. Encontramos aqui, mais uma vez, a relação entre pedras e
conhecimento. O Mestre Eckhart ensina que pedra é sinônimo de conhecimento
51
. Para
Eckhart, é exatamente o não-saber que nos conduz a um nível mais alto do
conhecimento e nos aproxima da natureza incriada onde Deus e o ser humano fazem um
só. Portanto, as pedras ofereciam um conhecimento silencioso inseparável da silenciosa
condição na qual o homem estava-sendo.
51
Cf. Dicionário de símbolos, (2005: 697).
O SERMÃO
Embora Martim procurasse o mar, seu renascimento não ocorrera na água;
embora quisesse encontrar o oceano, o que ele encontra é um descampado, um deserto
de pedras e é nele que o personagem se descortina e se aprofunda.
As pedras conferem a esse homem uma experiência profunda e concreta, pois ele
vinha de uma sociedade marcadamente superficial na qual vivia a superficialidade da
vida e nela Martim era incapaz de se escutar e entender as mensagens profundas que
estão inscritas nas entrelinhas da vida; era incapaz de entender o seu silêncio que ecoava
na mudez das pedras.
O homem estava buscando recomeçar sua vida própria, vida que nunca tinha
sido própria, pois da forma como vivia ele nunca tinha sido ele mesmo. Encontra-se
num processo de redescoberta e aprendizagem de si. O contato com o reino mineral foi
fundamental para ele, porque não aprendizagem profunda sem silêncio e sem escuta
do inaudível do mundo e de si mesmo. Nesse deserto, o desafio de Martim era escutar a
voz muda das pedras e estabelecer, a priori, um diálogo com elas. Diante das “pedras
que pareciam homens sentados”, tem a primeira sensação de estar renascendo para si,
pois é sua primeira tentativa de criar a fala. Na verdade, o que nele queria nascer era a
linguagem e, com ela, um sopro de cultura.
Essa vontade criativa em Martim, essa marca da condição humana, o leva a
querer, por conta própria, criar uma nova estrutura para a sua vida, um alicerce exterior
para refazer as bases interiores de seu ser e de sua existência societária e vice-versa. Em
certos momentos, Martim se assemelha ao estado das pedras: “Sentou-se numa pedra e
muito teso ficou olhando (...) como se pensar tivesse se reduzido a ver” (ME, p. 27 e
29). O discurso inteiro se passa com o protagonista sentado numa pedra, porque achava
o mundo grande demais e o homem não passava de um grão da existência do que tudo
no mundo. Diante do infinitamente grande, o homem reconhece sua pequenez, pára,
contempla, pensa, imagina o que fazer de si mesmo. Ele está sentado: imaginando,
pensando. Na verdade, sua única ligação com o crime concreto ocorre por meio de um
pensamento de extrema curiosidade: ‘como é que isso pôde acontecer a mim?’” (ME,
p. 39).
Nessa fase da narrativa, de forma heróica
52
, ele ensaia tímidos pensamentos,
mas não tem, ainda, a capacidade para evocar o verbo. Sem nada falar, o homem
comunga com as pedras o silêncio, com animais e plantas compartilha o fenômeno da
vida e com os outros homens tem em comum a necessidade da palavra e do
entendimento. O personagem traz dentro de si um coração que pulsa e murmura
lembranças perdidas, ecos do seu passado, e sombras de incompreensões. Mas, à
semelhança de uma estátua, Martim carrega consigo a dureza da solidão. Se estátua
fosse, ele seria rachado pela necessidade de falar, carência de criar sentidos e vínculos
que somente as palavras podem criar. Com palavras é capaz de inventar mundos e sem
elas mundos existenciais podem ruir. Martim sente necessidade de falar e sofre por não
poder verbalizar o que quer. O homem é esse ser cuja palavra não dita tem o peso de
uma pedra no estômago.
Ao recusar a linguagem dos outros, o significado corrente, codificado, da
palavra crime, busca a construção de novas palavras, portadoras de outros significados e
sentidos para sua vida e para seu suposto ato cometido: ter matado a sua mulher.
Sem o domínio da linguagem, despido dessa máscara verbal e societária, o
homem sente necessidade de se revestir novamente de palavras para rever seu ato. Num
primeiro momento, Martim recusa as palavras dos outros como forma de revolta e
negação das limitações do mundo societário, limitações criadas pelas próprias palavras.
Num segundo momento, quando quer falar, ele não tem o sucesso que tem a
personagem Joana ao criar a palavra “Lalande”. Essa personagem de Perto do coração
selvagem não sabe repetir as coisas: “Não sei repetir, sei uma vez as coisas”, afirma
Joana. Quando pequena, ela gostava de brincar inventando palavras. Era uma forma de
esquecer o seu passado. Ao criar palavras era como se criasse uma nova realidade, um
outro instante-já, agora-mesmo. A mesma coisa que Martim quer. Mas o que quer dizer
“Lalande”? A própria Joana explica:
É como lágrimas de anjo. Sabe o que é lágrimas de anjo? Uma de narcisinho,
qualquer brisa inclina ele de um lado para o outro. Lalande é também mar de
madrugada, quando nenhum olhar ainda viu a praia, quando o sol não nasceu.
Toda vez que eu disser: Lalande, você deve sentir a viração fresca e salgada do
mar, deve andar ao longo da praia ainda escurecida, devagar, nu. Em breve
você sentirá Lalande (PCS, p. 170).
52
Na crônica “Sem heroímo”, Clarice dizia: “(...) compreender já é heroísmo” (PNE, p. 25).
Essa explicação que a própria Joana ao homem com quem dialoga é
esclarecedora: diz que essa palavra é tão vasta como o descampado no qual estava
Martim, tão forte como a dureza das pedras que estavam diante desse homem e tão
vazia como esse personagem que buscava um sentido para si.
“Lalande” tem o mistério e a sedução que têm as palavras novas, mas é um
nome que nada diz, como “extrósima”, neologismo criado por Clarice na crônica
“Brasília: esplendor”, palavra essa que nem mesmo ela sabia o que queria dizer. A
autora não sabe como nomear o espanto que a toma por dentro, as sensações e emoções
sentidas diante de Brasília. “Extrósima” é um neologismo que tenta expressar o
inexpressível, que tenta comunicar o indizível. Na língua portuguesa, essas palavras não
fazem nenhum sentido, mas nos textos dessa escritora ocupam um propósito: expressam
a busca de um sentido que não pode ser expresso pelas palavras. Criá-se palavras para
tentar expressar o que não pode ser dito por meio delas, o sentido de uma coisa é maior
do que as palavras que tentam nomeá-la.
Martim fracassa onde Joana teve sucesso. Mas seu fracasso poderia ter se
tornado um “momento de graça” se ele tivesse percebido que um novo mundo, uma
outra realidade, um novo ser não se constrói somente com novas palavras, mas também
com ressignificações, interpretações de linguagens antigas. Na jornada de Martim, as
novas significações e interpretações funcionariam como porto seguro e como bússola
que guiariam as ações humanas dentro do labirinto societário e existencial no qual ele
estava.
“Um duro tempo de explicações” exigia desse homem uma releitura de seu
passado e uma fala que o expressasse. É diante das pedras, desse “auditório improvisado
e sem cultura”, que Martim tenta ensaiar um discurso, mas falha em sua tentativa,
porque as palavras ainda estavam atrás do que fica atrás do pensamento, ecoavam como
pensamentos longínquos e não como verbo que cria aquilo que ele evoca.
“Martim estava por sua própria conta” (ME, p. 131) e até agora tinha conseguido
andar sozinho, mas para se refazer ainda mais era necessário definir o que queria para
saber o que desejava, quais eram suas motivações, o que ele procurava, para onde ir;
como quase todos os personagens criados por Clarice, esse homem é levado a saber
quem ele é. Esse trabalho exigia paciência, mas, acima de tudo, uma jornada interior de
esquecimento e rememorização, uma viagem introspectiva ao seu passado mais remoto
esquecido por ele mesmo. Não se trata, aqui, de pura introspecção intimista ou um
subjetivo subjetivista, mas de um processo de descobertas constantes, portanto de
subjetivação.
Na verdade, em alguns momentos esse homem vivia um paradoxo:
não acreditava em falar talvez com medo de, ao falar, ele próprio terminar
por não reconhecer a mesa sobre a qual comia”, mas, ao mesmo tempo “ele
queria falar porque não uma lei que impeça um homem de falar (ME, p. 41-
2).
“É verdade que até agora ele não tivera sequer tempo de pensar no seu crime”, e
esse era o momento necessário dele encarar seu medo de falar, enfrentar aquilo que o
fez fugir, pois “sentia-se inferior aos acontecimentos que ele criara com o crime”:
rebentara com seu hábito de vida e estava sinceramente espantado pelo fato da desgraça
também o ter atingido e que ele estivesse à altura dela (ME, p. 39).
Nesse aspecto, o sermão às pedras que aparece no início da primeira parte do
romance é mais do que ilustrativo: é fundamental para a compreensão da condição de
Martim.
Benedito Nunes considera o “sermão às pedras” um episódio parodisticamente
emoldurado por famosas peças do fabulário místico encontrado no Sermão aos pássaros
de São Francisco e no Sermão aos peixes de Santo Antônio, sermões que figuram essa
atitude da consciência solitária, que se inventa na medida em que se expressa e que se
disfarça na expressão alcançada (Nunes, 1995: 51-2). Mas Nunes não avança nessa
questão.
De forma paródica, há uma grande aproximação entre o “Sermão de Santo
Antônio” aos peixes, pronunciado pelo Padre Antônio Vieira e o “sermão às pedras”
proferido por Martim. No primeiro, os peixes se convertem em homens. No segundo,
são as pedras que se convertem em homens sentados.
No Sermão de Santo Antônio (aos peixes)
53
, Vieira afirma que Santo Antônio
deixa as praças, vai-se às praias; deixa a terra, vai-se ao mar, e começa a dizer
a altas vozes: que me não querem ouvir os homens, ouçam-me os peixes”. E
acrescenta ele: “quero hoje, à imitação de Santo Antônio, voltar-me da terra ao
mar, e que os homens se não aproveitam, pregar aos peixes (Vieira, 2003:
318).
53
Usarei aqui o sermão de Padre Antônio Vieira no qual o mesmo profere um sermão os peixes. Esse
sermão foi pregado na cidade de São Luís do Maranhão, ano de 1654. Daqui em diante, cada vez que eu
me referir ao Sermão de Santo Antônio aos peixes estarei me referindo a esse sermão (2003: 317-340).
Em A maçã no escuro, Martim deixa a cidade e as praças, vai ao descampado, ao
deserto do mato; procura o mar, mas não são os peixes o alvo de seu sermão, pois ao
mar ele nunca chegou. Martim encontra somente um deserto cheio de pedras, e começa
a dizer palavras não pronunciadas, porque da sua boca nenhum verbo saía: eram
palavras pensadas em seu interior, ditas para ele mesmo, ecos de sua antiga linguagem.
O mais interessante é que todo o sermão desse homem é um sermão mudo, pois
ao perder a linguagem dos outros, ele perdeu também o poder de evocar o verbo. A
única coisa pronunciada foi: “Não sei mais falar, disse então para o passarinho, evitando
olhá-lo por uma certa delicadeza de pudor” (ME, p. 31). Ele fala para dizer que perdeu a
fala, “a linguagem dos outros”, a linguagem comum aos homens.
Martim podia até acreditar que a coisa se esclarecia sozinha com o tempo, mas
quer “um modo de falar que o levasse mais depressa ao entendimento” (PNE, p. 24).
O sermão para as pedras surge exatamente no momento em que esse homem
deseja se livrar do peso do passado que ainda se fazia presente em sua vida.
Ele imagina um sermão e fala em pensamentos para um “auditório” que o espera
como se espera um viajante com as últimas notícias. Tal auditório parece estar ao
mesmo tempo fora e dentro do próprio Martim, um lugar onde as palavras não precisam
sair para serem pronunciadas e ouvidas. No fundo, ele está em silêncio tentando
exercitar o verbo que futuramente usaria, uma possível justificativa sobre seu ato de
cólera; por meio desse sermão silencioso, ele está preparando a sua futura absolvição.
Seu esforço para falar não é um “cacoete”, mas uma “tentativa de substituir o
julgamento alheio pelo próprio, numa tentativa de aprofundar a própria perplexidade”
(LE, p. 69).
Para tanto, Martim certifica-se de que sairia inteiro e absorvido desse
julgamento, pré-requisito essencial para ele obter a coragem e a segurança de promover
o ‘perigoso confronto’ e de ‘se encarar e, se necessário, de se horrorizar’. No sermão às
pedras, para se isentar, ele fala em terceira pessoa. Como advogado de defesa, agora, na
encosta, inscrevia-se no banco dos réus embora houvesse também a perigosa garantia
de ser seu próprio carrasco (Martins, 1996: 129). Mas esse homem está muito confiante
em seu discurso porque seu auditório não é mais inteligente do que ele.
No Sermão de Santo Antônio aos peixes o alvo são os peixes, mas por meio
destes o seu autor queria alcançar os homens. Martim dirige seu sermão às pedras, mas
o seu alvo é atingir a ele mesmo.
Começa o seu sermão dizendo:
- Eu era como qualquer um de vocês, disse então muito subitamente para as
pedras pois estas pareciam homens sentados.
Dito isto, Martim de novo mergulhou num silêncio total como meditação. Estava
rodeado de pedras. O vento que soprava ardente transpassava-o como ao
descampado. Oco e tranqüilo, ele olhou a luz oca e tranqüila (...)
- Imaginem recomeçou então inesperadamente quando estava certo de que
nada mais tinha a lhes dizer imaginem uma pessoa que tenha precisado de um
ato de cólera, disse para uma pedra pequena que o olhava com um rosto calmo
de criança (ME, p. 37-8).
“Vindas” de todas as partes para a conspiração, as pedras têm aquilo que os
homens estão perdendo: paciência para ouvir e esperar. Algumas são arredondadas,
outras pequenas e infantis, algumas grandes e pontudas, todas sentadas para um
“comício da inocência. Era um auditório desigual onde se misturava infância e
maturidade” (ME, p. 42). Martim compara esse auditório com aquele para quem, pela
primeira vez, ele falara: “tinha bebido e fizera um discurso numa casa alegre onde as
mulheres também pareciam jóias sentadas porque era de madrugada e o trabalho
terminara, e elas eram infantis e maduras” (ME, p. 43). Ele sabia que certas pessoas
carregam no peito a infância e na memória a maturidade, acreditava que todos os
momentos de doçuras eram momentos de verdade e de intensidade e que uma música
ouvida podia fazer parar toda a máquina e estatelar por um instante o mundo. Isto ele
sabia e era isso que informara às pedras (ME, p. 43-4).
Silencioso e pacientemente, esse auditório de “homens sentados” espera a
continuação do sermão. Assim como Joana, Martim não se sente obrigado a seguir o
passado, e com uma palavra podia inventar um caminho de vida (PCS, p. 33). Portanto,
ele deve ser muito prudente, tentar encontrar o pensamento ou a palavra certa que
expresse a verdade necessária, pois, à semelhança de Joana, ele sabe que a verdade pode
estar no contrário do que pensara: “Martim recomeçou mais devagar e procurou pensar
com muito cuidado pois a verdade seria diferente se você a dissesse com palavras
erradas” (ME, p. 40-2).
Dizia ele:
Imaginem uma pessoa que era pequena e não tinha força. Ela na certa sabia
muito bem que toda a sua fortuna reunida (...) seria suficiente para comprar
um único ato de cólera. E na certa também sabia que esse ato teria que ser bem
rápido, antes que a coragem acabasse, e teria mesmo que ser histérico. Essa
pessoa, então, quando menos esperava, executou esse ato; e nele investiu toda a
sua pequena fortuna (ME, p. 38).
De certa forma, Martim sabia que as palavras tinham o mesmo estatuto das
pedras: quando bem usadas, elas teriam o poder de construir grandes e sólidas obras.
Suas palavras pensadas deveriam não somente “mover-se através da forma interior”,
como dizia Mestre Eckhart, mas deveria dar forma a seu interior vazio e
despersonalizado.
“Era importante para ele próprio o que ele lhes estava dizendo” (ME, p. 45), pois
ele representava para os outros e as palavras poderiam condená-lo ou libertá-lo, formá-
lo ou deformá-lo, revelar uma verdade ou ocultá-la para sempre. O personagem
vivencia, pois, um grande drama da condição humana: o ser e o dizer. Para o homem ser
teria que construir uma forma de dizer que melhor o expressasse. Para melhor se
expressar deveria construir um discurso que falasse dele e por ele. Entre o ser e o dizer
uma complexa relação: a palavra não pode se mostrar sem ser inventada e não pode
ser inventada sem revelar aquele que a inventou.
O sermão às pedras se torna uma narrativa do personagem dentro da narrativa do
narrador de A maçã no escuro. Por um lado, Martim tenta esquecer sua antiga vida
abandonando a linguagem dos outros, o paraíso do consenso. Por outro, ele tenta se
reconstruir tentando inventar novas palavras, uma nova linguagem. Tenta criar uma
nova palavra que o recrie, mas para criar essa palavra ele tem que se recriar por
completo. Por meio de seu discurso, ele tenta superar seu passado e reconstruir sua vida.
O seu sermão não passa de um discurso dentro de outro discurso, uma voz criada pelo
narrador para dialogar com o personagem e esclarecer os mistérios que povoam o
universo da escritura, do ser e do dizer.
O discurso às pedras era falado e ouvido pelo próprio Martim. Se, por um lado,
“Martim entra em contato com seu próprio discurso, a fim de que haja possibilidade de
elaboração e transformação” (Fonoff, 2002: 64), por outro, ouvir seu discurso
imaginário funciona como se, em certos momentos, para o homem se auto-regenerar,
tivesse que, necessariamente, ouvir suas próprias palavras falando dentro de si, palavras
que como pedras constroem o alicerce subjetivo e imaginário do homem.
Depois de um tempo,
refeito, então, recomeçou o seu sermão para as pedras:
- Com um ato de violência essa pessoa de quem estou falando matou um mundo
abstrato e lhe deu sangue”. Com isso, “aquele homem acabara de se
desprender definitivamente (ME, p. 40).
A cada esclarecimento, Martim se desprende mais e mais do seu passado. A cada
avanço que ele dá em seu discurso, mais se redescobre:
Bastante espantado com o que acabara de pensar, o homem se interrompeu com
curiosidade: “então foi isso o que me aconteceu?” Era a primeira vez que lhe
ocorria. Ainda se perguntou com uns restos de escrúpulos: “foi isso mesmo o
que me aconteceu?” (ME, p. 39).
Talvez esse tenha sido o seu maior esforço de vida: para compreender o que
desconhecia de sua história, Martim se sente obrigado a se tornar compreensivo para si
mesmo; sente-se obrigado a transformar a não-inteligência em entendimento, o não-
querer em vontade; sobrepor a idéia à visão, o dizer ao ver, a palavra à coisa nomeada.
As pedras tem a função da escuta, quase a mesma que tem um analista diante de
seu divã: fazer o outro se escutar. Tudo se passa como se Martim se autopsicanalizasse
diante das pedras ou desse outro que é só matéria e silêncio.
É provável que Martim, ao criar um sermão, estivesse mentindo para seu
auditório, mas ele ignorava em que ponto exato estava a sua mentira. Se quisesse,
poderia ter dito: “E tanto menti que comecei a mentir até a minha própria mentira”
(PNE, p. 26). Aqui o que menos importa é a dicotomia entre verdadeiro ou falso, entre
mentira ou sinceridade, entre ficção ou realidade, e sim as conclusões a que chegara
esse homem com o que dissera. O mais importante é o sentido que Martim dava às
coisas que descobrira sobre sua história passada: “se não era a verdade, passaria a sê-la”
(ME, p. 39).
No Sermão de Santo Antônio (aos peixes) pregado pelo Padre Antônio Vieira
uma crítica e protesto contra a sociedade da época que não sabia escutar o que era
importante e que não valorizava o essencial. Diz o pregador desse sermão: “que
havemos de pregar aos peixes? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes boas
qualidades de ouvintes: ouvem e não falam” (2003:319).
Por outro lado, e bem distante, pergunta-se o narrador de A maçã no escuro:
“Que poderia ele [Martim] afinal dizer, e que uma pedra entendesse? ‘Que o tempo ia
afortunadamente passando’, pois tempo era o duro material da pedra” (ME, p. 46).
As pedras têm as mesmas boas qualidades que os peixes: ouvem e não falam.
Para Martim isso é importante, porque se a mudez não diz nada, pelo menos não
mentem, se as pedras não dizem a verdade também não dissimulam, ao contrário das
palavras que podem dizer mais e menos do que ele quer. Elas antecedem ao homem e
podem ultrapassá-lo. Se fossem mal ditas, poderiam deformá-lo, condená-lo.
Para Martim, o importante é o que ele pode entender com esse sermão que não é
compreendido pelas pedras, mesmo estas se parecendo com homens. Para ele, não basta
ter nascido: quer sentir o heroísmo nascendo dentro de si. Entender alguma coisa de si
era heroísmo nascendo no homem. Na visão de Clarice, entender é uma forma de ver
e é um ato heróico, porque o entendimento ergue uma viga a mais para o homem se
conectar com o mundo circundante, amplia a lente de leitura da realidade. Ao entender,
o homem se vê naquilo que ele vê, encontra-se na coisa entendida. O homem se
apresenta como o único ser que quer entender, se entender e ser entendido.
À semelhança do Sermão de Santo Antônio (aos peixes), o sermão de Martim às
pedras também critica a ordem societária na qual vivia, pois esse homem viveu “um
longo passado de embotamento tendencioso”. Em sua sociedade, vivia uma experiência
existencial de impotência e descaracterização. Depois de uma breve pausa em seu
discurso, Martim reinicia o seu sermão de onde parou:
imaginem uma pessoa que tenha precisado de um ato de cólera, disse para uma
pedra pequena que o olhava com um rosto calmo de criança. Essa pessoa foi
vivendo, vivendo; e os outros também imitavam com aplicação. Até que a coisa
foi ficando muito confusa, sem a independência com que cada pedra está no seu
lugar. E não havia sequer como fugir de si porque os outros concretizavam com
impassível insistência, a própria imagem dessa pessoa: cada cara que essa
pessoa olhava repetia em pesadelo tranqüilo o mesmo desvio. Como explicar a
vocês (...) que cada cara havia falhado, e que esse fracasso tinha em si uma
perversão como se um homem dormisse com outro homem e assim os filhos não
nascem. ‘A sociedade estava tão chata’ (...) Havia um erro e não se sabia onde
estava (ME, p. 38).
Continuou: “- Imaginem uma pessoa continuo então que não tinha coragem
de se rejeitar: e então precisou de um ato que fizesse com que os outros a rejeitasse, e
ela própria então não pudesse mais viver consigo” (ME, p. 38). A sociedade parecia ser
um grande sistema panóptico que, por um lado, desencorajava uma pessoa a ser ela
mesma e, por outro e indiretamente, colocava a possibilidade da máscara como uma das
condições de viver societalmente: a pessoa disfarçava o que era para se tornar o que
nunca seria.
No seu antigo sistema societário, Martim não se sentia ele mesmo. Por isso,
agora, diante das pedras, ele usara o que aprendera enquanto membro daquele antigo
sistema: para poder falar de si, de sua história e de seus atos, ele usa o truque de se
mascarar, assume a persona de outra pessoa para poder dizer o que lhe importava. Com
o disfarce que o sermão permitia, com essa máscara, ele atinge ou se aproxima da sua
condição, de sua verdade de ser. Disfarçando-se para as pedras ele se aproxima de si
mesmo. Acontece aqui o inverso do que acontecia no antigo teatro grego cujos atores se
disfarçavam para não se revelarem em cena. Essa é uma das artes da escritura, algo que
Clarice soube usar e dar a sua marca pessoal. Para essa escritora, a inverdade se torna
um meio de se chegar à verdade. A ficção é um meio de atingir a realidade, que a
realidade tem muito de ficção.
Como muitas pessoas, Martim sente-se satisfeito quando consegue enganar
alguém, mas sua satisfação vem do fato dele usar conscientemente o truque de se
disfarçar para atingir o que deseja:
então ficou satisfeito como sempre que conseguia enganar alguém. Talvez
tivesse vaga consciência de que estava representando e se vangloriando, mas
fingir era uma nova porta que, no primeiro esbanjamento de si mesmo, ele podia
se dar ao luxo de abrir ou fechar (ME, p. 38).
Diante das pedras, desses seres que não são nem inferiores nem superiores a ele,
diante desses “homens sem culturas” que nada exigem dele a não ser ele mesmo,
Martim se sente limitado por não usar a palavra, mas também se sente diante de um
vasto universo de possibilidades de ações: ele se “colocava no próprio coração da
liberdade”. Está livre até de seus próprios rótulos sobre si mesmo. Aceita e reconhece a
falta de cultura que sempre o encabulara, pois
ele costumara fazer interminavelmente uma lista sempre renovada dos livros
que pretendera ler mas sempre aparecia obras novas e isso o embaraçava, ele
que não dava sequer conta dos jornais; pretendera até se aprofundar em
‘psicologia coletiva’ já que sempre lidara com números e já que sempre fora um
homem que facilmente imitava a inteligência: mas nunca tivera tempo, sua
mulher o arrastava para o cinema, para onde ele ia com alívio (ME, p. 41).
Essa sensação de liberdade é acrescida por um relance de extrema vida que
emana das pedras. Isso transmite ao homem um doloroso impulso de felicidade vazia:
Martim achava que até morrer seria sempre muito feliz (ME, p. 42).
Foi por meio desse sermão que o homem percebeu que as palavras haviam, de
algum modo, ultrapassado o que ele quisera dizer. Por um lado, sente-se vitorioso:
conseguiu organizar algum pensamento, algumas palavras. Por outro, sente-se
fracassado: algo havia escapado de suas intenções. Essa sensação de fracasso o
acompanha durante toda a sua trajetória, atravessa todo o romance.
Martim disse o que tinha a dizer. Sente-se satisfeito, mas também se sente
cansado como se houvesse um erro em alguma coisa em seu sermão. “Em algum ponto
não identificável, aquele homem ficara preso num círculo de palavras. ‘Esquecera de
informar alguma coisa?’” (ME, p. 44). Mas o que? Pergunta-se. Esquecera de dizer “que
o tempo aí, enquanto isso, passando”; não disse que nunca se especializara realmente
num único desejo e que por isso nunca tivera um ponto de partida; não mencionou que
sempre bancou o “espertinho” no mundo dos negócios chegando até a enganar a um
amigo e “esquecera de contar que, prometendo uma vez se casar, não deixara o seu
novo endereço” (ME, p. 45).
coisas que deveríamos ver e não vemos. Coisas que deveríamos ouvir e não
ouvimos; outras que deveríamos dizer e não dizemos nem a nós mesmos, mas isso,
como pensava Martim, somente aquele que vive tal experiência é capaz de
compreender.
Diferentemente de Ermelinda que tem medo de passarinho e acha esquisita uma
árvore se mexer, Martim carrega consigo outros medos, cicatrizes próprias do humano:
o medo do escuro, da morte e da esperança, e o medo de ser incompreendido. Foi esse
medo que o fez negar informações em seu discurso. Seu esquecimento parece muito
mais como uma estratégia em seu discurso: o homem se disfarça revelando-se e revela-
se se mascarando. O fato é que ele é completamente sincero para as pedras. Não fala
toda a verdade, apesar de ter conseguido alguma sobre si mesmo: descobriu que “não
cometera um crime para se dar a oportunidade de saber o que um homem quer” (ME, p.
129), já que tal oportunidade “nasce casualmente com um crime” (ME, p. 129) e
descobriu que não havia cometido um crime vulgar.
O homem disse o que era para dizer e, mesmo tendo esquecido o que somente
depois lembrou, esse fato o deixa mais leve, mais satisfeito. Ele “começou a achar sua
vida passada boa, e uma espécie de nostalgia encheu seu peito” (ME, p. 45).
No final de seu discurso, sentado em uma pedra, lugar onde transcorre todo o
seu sermão, o homem em um instante toma consciência de que tudo aquilo não passava
de um jogo:
foi quando, entregue ao jogo, de repente tomou consciência deste com um
choque de reconhecimento (...) Com um choque o homem olhou para as pedras
que agora não passavam de pedras, e ele de novo não passava de um
pensamento (ME, p. 47).
Poderíamos dizer que nessa fase do sermão, Martim é possuído por um
pensamento que não se verbaliza e por uma fala que ocorre no pensamento. Percebe-
se ao longo do sermão que, em termos de significado, não diferença entre pensar e
falar. Para esse homem, pensar e falar ocupam a mesma relevância em sua constituição
de sujeito. Ambos assumem a mesma importância porque em qualquer um deles o
coração e a razão juntam-se para criar sentidos, dar orientações, proporcionar
esclarecimentos.
Durante o sermão, Martim estava com um pássaro em suas mãos. Uma das
últimas coisas ditas por ele homem foi que “um homem se concretiza na grande cólera”
(ME, p. 47), ou seja, num ato de transgressão, num crime. Sem perceber a fragilidade
que tem uma vida quando ela fica presa em uma mão, Martim fica estupefato ao abrir
sua mão: “viu então que o passarinho estava morto. O homem espiou-o. Até as pernas já
pareciam velhas e estremeciam leves à brisa. O bico era duro. Sem ânsia, a ave” (ME, p.
48).
Em A maçã no escuro, vários pássaros. Eles são partes de suas paisagens,
sempre dizem alguma coisa ao leitor, informam algum estado de ser dos personagens,
gorjeiam para esclarecer alguma passagem da história. O pássaro que aparece no início
da trajetória de Martim é o mesmo que fica preso em suas mãos durante seu sermão às
pedras. O que essa ave representa nesse contexto?
O pássaro está em oposição às pedras. Estas representam o peso dos fatos:
“Fatos são pedras duras. Não como fugir. Fatos são palavras ditas pelo mundo” (HE,
p. 71). Por meio do sermão, Martim encara os fatos de seu passado: “olhava curioso as
pedrinhas dos fatos, seculares pedrinhas, irredutíveis, imperecíveis. Afogado num mar
de seixos” (ME, p. 179). A ave representa o contrário disso: a vida e a liberdade que ele
nunca tinha sentido, mas que tanto se agarrava. Diferentemente de Martim, Ermelinda
confessa:
‘acho mais bonito uma pedra que um passarinho’ com isso talvez quisesse
dizer, quem sabe, que uma pedra lhe parecia mais próxima da vida que o
passarinho que no seu vôo lhe lembrava a morte, o que, naturalmente,
significaria que ela tinha medo de morrer (ME, p. 150).
Ermelinda pensava assim porque tinha alguns problemas de ordem prática muito
intensos: “seu processo de viver simplesmente não lhe dava o que ela queria” (ME, p.
150) e, por isso tinha medo de tudo que possuía vida. Nunca havia sentido a liberdade, a
“explendidez” do amor, o gozo de estar viva. Evitava até falar sobre ela mesma.
Olhe esta samambaia! Disse ela para o homem porque uma pessoa não pode dizer ‘eu te
amo’” (ME, p. 151). Vitória tem razão ao afirmar que “o mundo é demais para
Ermelinda porque ela é muito sensível” (ME, p. 252). O medo a fez viver como se
estivesse afastada de si mesma. Sua vida tinha sido uma negação da própria vida.
Os medos e visões dessa mulher não eram os mesmos de Martim. Seu sermão
tem a grande função de fazê-lo encarar seu passado, livrá-lo do peso dos fatos e, ao
mesmo tempo, construir a leveza necessária para ele caminhar sem dor e sem culpa,
livre como um passarinho. Tudo se passa como se das pedras fosse possível surgir ou
construir uma forma leve e suave de existência, como pode ser percebido na complexa
relação entre Perseu e a Medusa.
Esse mito não termina com a decapitação da Górgona. Ao cair sobre as pedras, o
sangue venenoso da Medusa faz nascer um cavalo alado, Pégaso; o peso da pedra
reverte-se no seu contrário: leveza. Se o olhar da Górgona transformava vida em pedra,
depois de morta seu sangue transforma pedra em vida, dureza em leveza. O mito nos faz
crer que “a natureza de um ser é ora dureza ora moleza” (Tse, 2001: 15); revela que um
mesmo ser é capaz de destruir e criar, de fazer o pior e o melhor; ensina-nos que onde
reina a repetição, a criatividade deve emergir mais forte como resposta a rigidez do
mundo; e que a forma de olhar é capaz de transfigurar a natureza das coisas; ou naquilo
que os olhos vêem prosa, a veia do coração deve encontrar a fonte de poesia.
Com seu sermão, Martim quer algo parecido: ele “matou um mundo abstrato e
lhe deu sangue” (ME, p. 40); foi seu ato de desprendimento total do passado e a
tentativa de liberdade, de uma nova vida, algo que poderia vir por meio da
reinvenção da linguagem. Aqui, a morte do pássaro ganha mais um significado: a
demonstração do abandono definitivo da “linguagem dos outros” e seu fracasso ao
tentar inventar uma nova palavra que o fizesse caminhar mais leve. É sabido que esse
homem tenta se reconstruir como sujeito pela reconstrução da linguagem, como se
soubesse que somente “a linguagem permite a emergência do espírito humano,
necessário a todas as operações cognitivas e práticas, inerentes a toda organização
social” (Morin, 2002: 38). Sem uma nova linguagem, não poderia voar alto, libertar-se
de seu passado.
Inicialmente, Martim fugia de um crime e agora, “de novo a cólera do homem
acabara de se tornar um crime” (ME, p. 48). Mais uma vez ele fica admirado com seu
ato. Se seu crime anterior parecia uma realidade muito distante, ter matado o passarinho
torna-se uma realidade extremamente perto. Se Martim queria se livrar da culpa que o
perseguia, agora é possuído por outra: ele matou quem amara: o passarinho. Ele queria
entender seu ato de cólera contra sua mulher, e agora fica curioso sobre o que pode um
homem cometer, fazer. Antes, ele tinha dúvida sobre a natureza de sua cólera, agora tem
a certeza do que cometera e do que é capaz: “é que ele se tornara um homem perigoso”
(ME, p. 48). Um crime o fez fugir. Um outro o fez levantar das pedras e continuar sua
jornada: “devagar levantou-se, evitando pensar que matara exatamente o que mais
amara” (ME, p. 48).
O pássaro morto em suas mãos mostra que ele matou uma vida. E ainda não
estava preparado para viver a liberdade que tanto desejava. Atrás de si havia suas
pesadas pegadas. À sua frente havia uma longa jornada e a promessa de outra vida.
Depois de depositar o passarinho sob uma grande árvore, Martim “recomeçou a
andar como se soubesse para onde ia. Os passos ocupavam-no” (ME, p. 49), mas ele
caminha com o peso que tem a incompreensão de um ato na vida de um homem; avança
não como um pássaro que voa alto, mas como alguém que sente nos pés a dureza de
viver com um passado não resolvido.
A ÁRVORE
A árvore é uma imagem recorrente em suas narrativas clareceanas. Essa imagem
se apresenta como uma metáfora da vida, do conhecimento e do amor. No início da
narrativa de A maça no escuro, o cenário é apresentado: Martim dorme num lento
jardim sem lua, árvores haviam ali crescido e se enraizado no solo, bruscos tufos saiam
da terra. A árvore é uma grande metáfora da obra, principalmente de como se faz um
homem”. Essa metáfora pode ser interpretada de inúmeras maneiras. O jardim parece
ser a imagem do paraíso, lugar da gênese da vida e do homem. O solo significa a
natureza. As raízes, o enraizamento da vida - vegetal e animal - na natureza. A árvore
em pé, representa o homem. O alto da copa da árvore, o destino do homem.
Em A maçã no escuro, Clarice chega a comparar a condição de Martim ao
estado de uma árvore:
Como uma planta, ele estava alerta a si mesmo e ao mundo, com aquela mesma
tensão delicada com que a grossa planta é planta até as suas últimas
extremidades, com aquela delicada tensão com que a planta cega sente o ar
onde suas duras folhas se engastam. O homem todo se reduzira a essa espécie
de vigilância (ME, p. 84-5).
O sentido imagético das árvores também aparece nos contos e nas histórias
infantis. Inserido em A legião estrangeira, o conto “Viagem a Petrópolis”, oferece uma
rápida e importante imagem de uma árvore. A Sra Mocinha, protagonista da narrativa,
depois de tanto andar e de se despertar para a vida, sente-se cansada e se senta
numa pedra que havia junto de uma árvore, para poder apreciar. O céu estava
altíssimo, sem nenhuma nuvem. E tinha muito passarinho que voava do abismo
para a estrada. A estrada branca de sol se estendia sobre um abismo verde.
Então, como estava cansada, a velha encostou a cabeça no tronco da árvore e
morreu (LE, p. 64).
“Ninguém podia morrer sem antes resolver a própria morte”, diz o narrador de A
maça no escuro (ME, p. 102). A Sra Mocinha “era uma dessas pessoas que morrem sem
se saber o que realmente aconteceu com elas” (ME, p. 91). Ao termino da leitura do
conto, ninguém fica sabendo se essa Sra. resolveu sua morte antes mesmo dela morrer.
Essas árvores que se apresentam no conto e no romance acima se tornam
analogias da “árvore da vida” da qual fala o Gênesis. Uma árvore precisa está enraizada
em solo firme para abrir sua folhagem aos céus. Enraíza-se na terra para se levantar às
alturas. Como disse o poeta Paul Valéry, “no ar livre, a árvore abre aos poucos para as
primícias milhares verdes lábios... Quanto mais se enraíza, mais se eleva” (2005: 104,
sic).
Em A maçã no escuro a árvore representa “a raiz da vida”, o enraizamento do
homem na terra e no mundo vegetal, mas também o nascimento, vida em gestação,
renascimento do homem. Martim está enraizado no terreno da natureza e dele deve se
levantar para atingir a altura de um ser humano.
Logo que Martim começa sua caminhada percebe que “o lugar onde se achava
era longe de ser confuso como no escuro seus pés dormentes haviam imaginado” (ME,
p. 21). Foi com cautela que ele
constatou as poucas árvores dispersas pela distancia. O infinito chão era seco e
avermelhado. Não se tratava de um mato como ele calculara pelo galho que lhe
batera no rosto. Tinha por acaso adormecido perto de um dos raros arbustos do
descampado (ME, p. 21).
Dorme debaixo de uma árvore. Um galho desse raro arbusto que ali havia
crescido toca seu rosto. Acorda, levanta, anda. Mais à frente, Martim caminha tentando
reconstruir sua vida e seu futuro. É nessa caminhada que ele diante de si outra
árvore:
A árvore que ele viu era de pé. Na beleza do silêncio, a árvore. Foi assim que o
homem profundamente viu. Olhou face a face a minúcia com que a beleza da
árvore era inútil. Trezentas mil folhas tremiam na árvore tranqüila (ME, p. 48-
9).
Em “Viagem a Petrópolis”, a árvore representa a morte, ou a vida que morre de
tanto viver. “A árvore da vida” vida e retira a vida que ela deu. Morrer com a cabeça
encostada no tronco da árvore significa que com sua morte o ser humano volta a ser o
que ele era antes de nascer. Voltou a ser o que sempre fora. Portanto, ela é, ao mesmo
tempo, árvore da vida e da morte, pois morte e vida fazem parte do mesmo ciclo. A
morte é “um ritual de vida”, como pensava Ermelinda (ME, p.102). A vida trás em si
mesma a morte. Cada ser vivo trás em si aquilo que o faz morrer. “Possuímos em nós
aquilo que nos faz desaparecer” (Valéry, 2005: 122).
Henri Atlan tem razão ao afirmar que, no Gênesis, a árvore da vida também é a
árvore da morte. Todos os seres vivos fazem parte dessa grande árvore, pois nasceram
dela, vivem dela/nela e morrerão debaixo dela, como a Sra Mocinha. A vida não
depende de nós, mas nós dependemos da vida. Somos, assim, aquilo que a vida
possibilita ser e aquilo que a nossa criatividade permite fazer com a vida que vivemos.
Somos um galho, uma folha, uma flor, uma semente, mas nunca a raiz ou a seiva
da árvore da vida, pois ela não depende de nenhum de nós. A vida do ser humano é
como se fosse apenas uma estação inserida num grande ciclo que não pára de se refazer,
renovar-se, transfigurar-se. A vida dura somente uma estação e é durante apenas uma
estação que o homem deve crescer, florir, frutificar e jogar suas sementes para o futuro.
Martim estava reiniciando sua aventura biológica e seu destino humano. A Sra
Mocinha estava terminando sua aventura na terra. Ao morrer ela participa da tragédia
cósmica, coisa que a personagem Lóri compreendia muito bem, pois para ela: “A
tragédia de viver existe sim e nós a sentimos” (ALP, p. 94). Pelo nascimento,
participamos da aventura biológica; pela existência, participamos do destino humano;
pela morte, participamos da tragédia cósmica. O ser mais comum e a vida mais banal
participam dessa aventura, desse destino, dessa tragédia (Morin, 2002: 48).
Outra árvore
Nem sempre vida e conhecimento se completam. O conhecimento pode destruir
a própria vida que ele conhece e a vida é muito mais ampla do que qualquer
conhecimento, pois seja ele qual for, o conhecimento é apenas um lado da existência
humana, apenas uma interpretação que o homem elabora para se entender, entender o
que lhe acontece e ser entendido pelos outros.
A árvore que está presente na primeira parte do romance A maça no escuro
difere daquela que está presente na narrativa infantil Quase de verdade. Nessa narrativa
uma árvore enorme chamada figueira, planta que se alimenta da chuva, e do Sol
retira a energia de sua vida (QV, 1999). Mesmo sendo constantemente adubada, essa
figueira nunca dera figos. Certo dia, ela “se esforçou para pensar”. Seu pensamento
“apodreceu e virou inveja”, porque “a vida do galo e da galinha era uma verdadeira
festa” e as galinhas botavam ovos, e ela nem fruto conseguia dar.
De bonita e boazinha, a figueira passou a pensar ainda mais e seu pensamento
“virou vingança”: queria se vingar das galinhas, queria os ovos para vender e ficar
milionária. Como as galinhas colocavam ovos na claridade do dia, a árvore fez um
acordo com uma bruxa para que durante a noite seus galhos e folhas ficassem tão claros
quanto o Sol, pois somente assim, sem as galinhas dormirem, elas colocariam ovos
durante a noite achando que era dia. Assim, “durante o dia a figueira não passava de
uma figueira comum”, mas à noite ela se transformava em uma grande árvore iluminada
como um sol.
Depois de alguns dias, ela ficou “meio surda”, “meio endoidecida” com o
barulho das galinhas; pensa novamente e se arrepende. Faz um exame de
autoconsciência e volta a ser normal. Ela nunca chegou a frutificar como aquela linda
jabuticabeira que aparece no final da história, jabuticabeira que dava “uma fruta
redonda e preta que só existe no Brasil” (QV), mas a figueira nunca mais foi mau.
Nas narrativas infantis de Clarice, encontramos coelho pensante, cachorro
falante, galinha com vida íntima e até árvore pensante. Os pensamentos da figueira são
bons e ruins. É uma árvore viva que sintetizava em si o bem e o mal, a bondade e a
maldade, a escuridão e a clareza. Por não dar frutos, não gera sementes, não multiplica a
espécie nem alimenta a vida de ninguém. Essa árvore pode ser vista como aquela que
aparece no Gênesis: a árvore do conhecimento do bem e do mal, ou do conhecimento
bom e mau.
Em O livro do conhecimento, Henri Atlan nos chama atenção para um ponto
fundamental: a árvore do conhecimento não é somente a “do conhecimento do bem e do
mal”, como se traduz na maioria das vezes. Numa tradução literal, ela é também a
‘árvore do conhecimento, bom e mau’, de vida e de morte misturadas (Atlan, 1999: 21).
Em A maçã no escuro a árvore representa a unidade da vida. Ela sintetiza em si
todas as antíteses. Em Quase de verdade, a árvore simboliza a dualidade: luz e
escuridão, ganância e humildade, vingança e perdão; tem o poder de ser generosa e
malvada, tem o conhecimento bom e mau.
Na cosmovisão clariceana, a árvore é recorrente porque é uma imagem que diz
muito de nossa própria condição humana. É uma imagem de enraizamento e de
abertura. É um organismo vivo em ascensão para o céu. Na tradição filosófica dos
Upanixades, o universo é visto como uma árvore invertida: suas raízes estão no céu e
seus ramos se estendem por toda terra. Trata-se, portanto, da árvore da vida.
Clarice conhecia a filosofia dos Upanixades. Na epígrafe do romance A maçã no
escuro, ela cita uma passagem de “Vedas (Upanichade)” que diz:
Criando todas as coisas, ele entrou em tudo. Entrando em todas as coisas,
tornou-se o que tem forma e o que é informe; tornou-se o que pode ser definido
e o que não pode ser definido; tornou-se o que tem apoio e o que não tem apoio;
tornou-se o que é grosseiro e o que é sutil. Tornou-se toda espécie de coisas:
por isso os sábios chamam-no o Real.
Para Clarice, o real é o todo e é no todo que o homem se enraíza. O ser humano
não é a imagem de uma árvore invertida com suas raízes no céu e seus ramos sobre a
terra. Ele tem um duplo enraizamento: no cosmos e na terra, na matéria física do
universo e na esfera viva, na natureza e fora dela.
A árvore é a imagem da vida e do conhecimento. Tanto a vida como o
conhecimento precisa de um terreno firme para se construir. Como uma árvore, o ser
humano precisa de um solo firme para pisar, mas seus galhos se movimentam com as
correntezas de vento. Sem suas raízes o homem fica solto, sem memória, sem
identidade, perdido. Como afirma o autor de Um sopro de vida, “Se me desenraizo fico
de raiz exposta ao vento e a chuva” (SV, p. 27). Para criar um personagem, como
Ângela, o exercício é semelhante ao de quem ara a terra para plantar uma árvore que
ainda não nasceu: uma semente. Como disse o criador de Ângela, “para criá-la eu tenho
que arar a terra” (SV, p. 27).
É sabido que o homem pertence à “árvore da vida”, mas ao saborear da “árvore
do conhecimento” ele compromete a sua própria vida. Essa é a primeira demonstração
que vida e idéias estão sempre imbricadas. Se antes ele vivia a unidade da vida, depois
ele passa a conviver com a dualidade da existência. A transgressão do homem implica
numa apartação com a unidade da vida. A partir de Adão, a humanidade conheceu a
dualidade da vida.
Para reencontrar sua unidade, Martim teria que se religar a tudo que o antecedia,
a tudo que existia fora dele e dentro de si mesmo, pois como pensa Ermelinda “não
um fato que não se ligue a outro, e sempre há uma grande coincidência nas coisas” (ME,
p. 85). Seu crime e sua fuga atendem a um grande projeto de religação do homem para
viver sua unidade de ser-no-mundo.
Deveria reconstituir todas as relações que fazem de um homem um ser humano
complexo que um homem se faz inserido em um conjunto de relações. Ele é o único
animal que, para viver, precisa se transformar numa teia de relações voltada para todos
os lados: para o passado: enraizado a aurora da vida, nos seus ancestrais, na história de
sua espécie; para cima: ligado a Deus, aos sonhos; para baixo: enraizado na natureza, na
matéria; para os lados: relacionado com seus semelhantes, com a cultura; para frente:
ligado as possibilidades de um futuro; para dentro de si mesmo: enovelado em seu
próprio coração, agarrado aos seus próprios desejos. O homem é esse ser relacional. Ele
constrói as relações que o constroem.
No final da primeira parte do romance, percebe-se que Martim estava em contato
com tudo e esse contato funcionava como uma forma de entendimento e de crescimento.
Sentia tudo. Entendia as coisas como um todo. As coisas se passavam nele e ele crescia
como uma planta cresce viçosa no estrume das vacas. Semelhante a uma planta que
precisa estar enraizada para crescer e abrir sua folhagem ao céu, o homem estava
enraizado em todas as direções para viver humanamente, pois um homem desenraizado
perde o contato com o essencial da vida, com a profundidade de si mesmo.
Depois de tudo isso, Martim “obscuramente inquietava-se por começar a se
sentir superior às plantas, e por sentir-se de algum modo homem em relação a elas (ME,
p. 92). Ele queria pertencer a vidas mais evoluídas. “O homem estava incomodadamente
crescendo” (ME, p. 92). “Levantou-se e urinou sereno olhando para o céu. As nuvens
passavam altas. Ficou de pé, estúpido, modesto, aureolado. Sua unidade se dava como
unidade” (ME, p.93).
ANIMALIDADE
Se o corpo é uma lâmpada, e ele se queima,
Isso significa que não há mais eletricidade?
A fonte de energia permanece.
Podemos descartar o corpo e prosseguir.
Nós somos a fonte.
Essa reflexão poética de Joseph Campbell (2003: 103-4), ilustra bem o espírito
da trajetória de Martim, um homem em busca de seus fundamentos perdidos, de suas
raízes, das suas fontes escondidas nele mesmo. Somente depois de muito tempo é que
Martim descobre que seu querer era a fonte de sua vida: “(...) ele agora tocara na fonte
de tudo isso, e do viver: ele quisera... De um modo geral e profundo, ele quisera” (ME,
p. 175).
Nas narrativas de Clarice o ser humano é fonte de vida e de criação, algo que
Lóri de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, chegou a esquecer: “Na sua
humildade esquecia que ela mesma era fonte de vida e de criação” (ALP, p. 82). Como
falei anteriormente, em A maçã no escuro o personagem retorna a si e convida o
leitor a escutar aquela voz que fala dentro de si mesmo; voz ouvida nesse instante-já,
agora-mesmo, mas que traz os ecos da sua ancestralidade.
Depois de seu enraizamento no reino mineral e vegetal pedras e plantas -
Martim está preparado para uma relação mais exigente e complexa: a relação com os
animais.
É importante ressaltar que no Gênesis a Natureza e os animais antecedem a
criação do homem. Conhecedora dessa obra, Clarice tinha consciência disso, mas se
fazia uma pergunta para qual nunca encontrou resposta: “Por que Deus fez os bichos
antes de fazer as pessoas?” (OE, p. 82). Na narrativa bíblica “Os bichos eram a própria
natureza, nós éramos os seres a quem as coisas se davam” (ME, 224). Aqui, na narrativa
paródica de A maçã no escuro, a escritora altera a ordem da criação: homem, mundo e
animais se fazem, simultaneamente. A reconstrução de Martim acontece numa teia de
relações complexas que, ora o afastam, ora o aproxima dos animais e seu mundo
circundante.
Desde o início de sua aventura, Martim vê-se ao lado de bichos. É levado a
experimentar a Lei Natural da qual Clarice fala em uma de suas crônicas (PNE, p. 60), a
sentir a realidade viva e autêntica de um animal. Ele adere à realidade imediata e, assim,
cada coisa é vista de forma singular e impessoal, única e universal.
Primeiramente, aparece no caminho desse homem um pássaro que, num jogo de
“soltar-pegar”, o acompanha durante muito tempo de sua trajetória. Depois surge um
rato com o qual Martim se identifica, porque vê nesse animal algo de sua atual
condição: “Era pouco o que ele era agora: um rato. Mas enquanto rato, nada nele era
inútil. A coisa era ótima e profunda. Dentro da imensidão de um rato, aquele homem
cabia inteiro” (ME, p. 37). Posteriormente, aparecem as vacas e, mais adiante, um cão e
outros pássaros. Os bichos são seu contrário e seu complemento. Oferecem-no os
primeiros contatos com as fontes da vida primordial. Eles mostram ao personagem que
é possível viver sem medo do prazer e o recebe sem culpa; falam de uma outra forma de
viver sem acusações, culpa ou perdão: “os animais não se acusam nem se perdoam”
(ME, p. 162).
É bom relembrar que na primeira parte de A maçã no escuro, o protagonista está
em gestação dentro de si mesmo, como se estivesse dentro de um ovo prestes a eclodir.
Por que os pássaros são seu primeiro contato com o mundo animal? Porque o pássaro é
a evolução de um ovo, e este simboliza vida íntima e abertura espiritual. É importante
notar que o ovo é outra imagem recorrente nas narrativas clariceanas. Simboliza a
riqueza e os mistérios da vida interior, a gênese do ser, a vida em gestação, mas também
a sua precariedade, pois representa uma fase, uma transição. O ovo sintetiza em si o
particular e o geral, o exterior e o interior, origem e desenvolvimento, vida e
crescimento, o macrocosmo e o microcosmo. Nascidos de ovos, os pássaros aparecem
como um chamado interior para a liberdade interior do ser.
É que nas trevas os pássaros haviam percebido a acidez da aurora e, muito
antes que esta raiasse para uma pessoa, eles a respiravam e começaram a
despertar. Havia um pássaro, especialmente, que faltou deixar Martim doido.
Era um que chamava a companheira no escuro; com paciência e calma,
chamava, chamava (ME, p. 180).
Os pássaros que aparecem para Ermelinda surgem como um chamado para essa
liberdade interior:
Os pássaros voando pareciam esperar sem pressa que ela se reunisse a eles.
Eles, eles que não tinham pressa, eles que tinham a certeza. E que voavam
esperando. Esperando que ela se reunisse àquela serena e perturbadora
liberdade... (ME, p. 155).
Esse chamado ancestral inquieta, desorganiza, desestrutura a pessoa na esfera de
relações societárias, afetivas e cotidianas, mas é ele quem elimina as diferenças gritantes
entre os homens e entre estes e outros animais. Por meio dele, a substância humana se
abre à substância universal, animalidade e humanidade coabitam o mesmo ser-no-
mundo.
Como um pássaro rompe a casca do ovo para alçar vôo, o homem precisa
romper com certas circunstâncias ou limitações para ganhar vida nova. É a ruptura da
casca do ovo que permite a ave nascer e ganhar o mundo. Com Martim é diferente: ele
rompe com a sociedade, com o mundo exterior e a linguagem comum, e volta-se para
dentro de si como se fosse um pinto que retorna ao ovo para de se reconstruir. De
forma geral, os bichos representam isto: “Eles às vezes clamam do longe muitas
gerações e eu não posso responder senão ficando inquieta. É o chamado” (AV, p. 48).
Além das aves, há diversos animais que transitam constantemente pelas
narrativas clariceanas. São cães, gatos, tartaruga, coelho, cavalo, macacos, peixe,
galinhas, vacas e até mesmo baratas. Como percebeu Yudith Rosenbaum, a presença
dos bichos na obra dessa escritora torna-se um eixo fundamental na compreensão de sua
cosmovisão (Rosenbaum, 2002: 78). Para Clarice, os bichos representam a coisa
primeira que é fonte de geração. Guardam o mistério da vida impessoal que ela chama
de “it” e “o ‘it’ vivo é Deus” (AV, p. 28). Portanto, os animais são as matérias vivas
mais próximas de Deus. Encarnam “o sentido secreto do mundo” (AV, p. 35).
A crítica literária identificou na obra de Clarice o caráter ôntico dos animais,
ou seja, o ser que se encontra dentro dos animais que desfilam em suas narrativas,
apesar de não ter se dedicado profundamente a estudar a animalidade nos seus textos.
Na ficção de Clarice, os bichos representam as forças da natureza, o impulso selvático
da vida ancestral, a matéria primordial da vida; expressam o outro lado da natureza
humana. Neles estão as raízes do homem, desse “ancestral homem moderno”, nas
palavras de Conceição Almeida.
Na tentativa de se reconstruir pela raiz, Martim chega a atingir o “it”, o
impessoal da matéria viva, sente a vida fluir e, “por circunstâncias casuais, estava mais
perto do coração do boi, e olhava. Se é verdade que se lhe perguntasse para que, não
saberia responder, é também verdade que se uma pessoa fizesse apenas o que entende,
jamais avançaria um passo” (ME, p. 127).
O fascínio da escritora por bichos se deve, em grande parte, porque eles têm o
“olho primitivo, inocente. Olho desumanizado, que não tem linguagem. Olho que não
conhece a linguagem, pois conhece a coisa de que a linguagem fala, procurando”
(Pessanha, 1965: 72). Esse olhar “desumanizado” oferece ao homem aquilo que seu
olhar humano não consegue enxergar. Oferece ao espírito de uma pessoa aquilo que
ela não consegue mais sentir e à razão aquilo que ela não consegue mais farejar.
Em toda sua instintividade, impessoalidade e “autodesconhecimento”, a vida
animal é vista por ela como um meio de se chegar mais próximo do conhecimento e da
condição humana. Na singularidade de um animal pode-se encontrar, por oposição ou
aproximação, aquilo que marca a singularidade do homem. Os animais são meios da
gente saber que somos gente, meios de sabermos o que perdemos e o que adquirimos ao
longo de nossa hominização. Por meio de suas narrativas, Clarice coloca em ação todo
um processo de redescoberta do humano por meio da descoberta da animalidade.
Empregando as palavras de Morin, diria que, para ela, “A humanidade não se reduz, de
modo algum, à animalidade, mas sem animalidade não há humanidade” (2002: 34).
Ao evocar a presença dos animais, a escritora sempre tem um propósito: reforçar
os elos perdidos entre a Natureza e o homem, o que amplia a condição dos personagens,
pois é perante os animais que o homem mostra “‘o que ele é’: seu sentido, sua essência”
(Pessanha, 1965: 71). Em sua obra, o ser humano está religado aos animais por uma
mesma condição: a vida. Todos respiram o mesmo sopro, estão inseridos no mesmo
ciclo de nascimento/vida/morte e “todos gozam a mesma oportunidade” (ME, p. 57).
Em certo momento essa escritora confessa: “Os animais foram feitos para que os
homens soubessem (...) Faço o impossível para a gente saber que é gente” (Lispector
apud Borelli, 1981: 55). Para ela, assim como para Boris Cyrulnik, os animais
oferecem-nos um artifício comparativo que favorece a tomada de consciência. Os
bichos nos permitem apreender melhor a animalidade que permanece em nós e
sublinhar, assim, a importância da dimensão humana (Cyrulnik, 1993: 28-9). Portanto,
os bichos que se apresentam em A maçã no escuro são fundamentais para se
compreender a condição de Martim, desse homem que “cometera um ato total”, mesmo
sem ser “um homem total” (ME, p. 219).
Os animais não estão tão distantes do ser humano. Neles existe o instinto de
preservar a própria vida. Como nos lembra o filósofo oriental Lie Tse, o saber dos
animais é de natureza semelhante ao dos humanos. Eles têm o instinto – que não
tomaram dos homens de preservar a vida (2001: 49). Os bichos têm um saber ou uma
forma particular de apreender a realidade. Martim percebeu isso numa tarde. Enquanto
pensava, surge à sua frente um cão negro. “Foi esse cão que o alertou vagamente e
pareceu lhe lembrar outras realidades” (ME, p. 57). O personagem forçou-se a se
lembrar do que é importante e do que deveria fazer. “Além do mais, do longe veio-lhe o
cheiro das vacas, o que sempre nutre de enlevo uma pessoa: o cheiro de vacas
amanhecidas veio misturado com a grande distância que ele enxergou” (ME, p. 80).
Os bichos são capazes de sentir, perceber e compreender o que lhes acontece em
seu mundo circundante. Em A maçã no escuro, representam os vários estágios de
evolução subjetiva, espiritual e cognitiva do homem. Ao se comparar a um rato, o
protagonista percebe instintivamente que, ao tentar garantir sua vida, havia fugido de
um ato e que isso foi apenas um ensaio de ações verdadeiramente humanas para o
futuro. O rato mostra que o protagonista tem todos os sentidos de que um animal
precisa para buscar o que lhe falta, é um ser capaz de cuidar de si e ocupar um lugar no
mundo. É a demonstração de que “aquele homem se tornara finalmente real, um rato
verdadeiro, e qualquer pensamento dentro dessa inteligência nova era um ato, embora
rouco como de voz ainda nunca usada” (ME, p. 37).
Martim não mais se satisfaz somente em ter as mesmas condições das plantas e
de um rato. Não quer “mais o intenso sono das plantas”, nem somente “a prudência em
sobreviver que havia nos ratos ariscos” (ME, p. 105).
Por meio de experiências, rememorizações e criatividade, o personagem
consegue, aos poucos, os sentidos necessários à sua reconstrução. Martim “tinha agora
todos os sentidos que um rato tem, e mais um com o qual constatava o que acontecia: o
pensamento” (ME, p. 93). Ele quer um novo meio de se materializar, algo que o faça
continuar evoluindo subjetivamente e atingir a condição de uma pessoa. Para tanto,
precisa dar a seu corpo as qualidades que a matéria em si não comporta e a “dimensão
que uma planta não tem” (ME, p. 97), precisa encontrar nos animais aquela “alegria de
viver” que um homem necessita para guiar seus instintos na luta pela vida e na
redescoberta de seu ser.
Como um pinto que se esforça a sair do ovo, Martim busca, “em doloroso
esforço, libertar-se enfim do reinado dos ratos e das plantas e alcançar a respiração
misteriosa de bichos maiores” (ME, p. 97). Sua aventura torna-se uma audácia e um
risco, mas “Um homem um dia tinha que arriscar tudo. Sim, ele fizera isso” (ME, p.
130). Arriscou a ter uma experiência mais profunda. Se, por um lado, isso representa
um perigo, por outro é um caminho de salvação. É por meio de um grande risco que um
homem pode descobrir sua grandeza e se tornar aquilo que tem de acontecer: ele
mesmo. De certa forma, ele sabia que “A salvação é pelo risco, sem o qual a vida não
vale a pena!”, como disse Clarice (DM, p. 161).
Mesmo já tendo passado pelas experiências da despersonalização, do vazio e do
silêncio primordial e mesmo depois de seu contato com as pedras, as plantas, o pássaro
e o rato, não é fácil para esse homem se libertar de tudo que passou para viver a
respiração profunda de bichos maiores. Nesse caso, as vacas que representam vida mais
evoluída, mamíferos mais próximos do ser humano. Havia nele muito mais um esforço
do que uma realização. O homem se torna um animal esforçado, mas sua reconstrução
ainda não está completa, pois não se livrou totalmente de seu passado.
Martim “tinha vindo de uma cidade onde o ar estava cheio dos sacrifícios de
pessoas que, sendo infelizes, se aproximavam de um ideal” (ME, p. 93). Se pudesse
expressar em palavras aquilo que está nas entrelinhas de seu crime e de sua fuga, ele
mesmo reafirmaria as palavras de Campbell ao se referir a nossa realidade: “o mundo
está cheio de pessoas que deixaram de ouvir a si mesmas, ou ouviram apenas os outros,
sobre o que deviam fazer, como deviam se comportar e quais os valores segundo os
quais deviam viver” (Campbell, 1990: 157).
Numa realidade assim, o ser humano não pode mergulhar em si mesmo, sente-se
incapaz de encontrar suas raízes e de construir um sentido para sua vida. Para alcançar a
respiração de animais maiores, Martim tem que escutar o grito ancestral dentro de si,
aquele “chamado” do qual falou Clarice, pois somente assim será capaz de redescobrir
sua dimensão de bicho e de humano. O personagem tenta recuperar aquilo que o homem
contemporâneo está esquecendo, menosprezando: suas raízes animais, seus laços com a
Natureza e com Deus.
A literatura de Clarice e, especialmente, A maçã no escuro, traz um grande
questionamento sobre o estado de ser do homem que parece afastado de si e perdido em
seu mundo. O processo de civilização ou de racionalização da vida, apartou o ser
humano da capacidade de se aprofundar emsua natureza. Em Um sopro de vida, Ângela
Pralini resiste a esse processo, porque ser consumida por ele seria o mesmo que perder-
se dentro de si: “Civilizar minha vida é expulsar-me de mim. Civilizar minha existência
a mais profunda seria tentar expulsar a minha natureza e a supernatureza” (SV, p. 67).
Para Clarice, o homem está civilizado demais e, por isso, “a humanidade está ficando
dura” (SV, p. 156).
Em toda obra da escritora uma grande preocupação com a racionalização que
pode criar uma humanização desumanizante. O homem contemporâneo sofre de crise
existencial, trilha caminhos impróprios, está apartado de seu próprio caminho; não sabe
como orientar sua mente, como ouvir seu silêncio, que rumo dar a seus passos e o que
fazer com sua própria vida; busca, mas não sabe traçar seu destino, caminha sem uma
finalidade, duvida do que ele mesmo é, faz e sente. Os textos de Clarice sinalizam que o
progresso científico e técnico alienou o ser humano, afastando-o de si, da Natureza e de
Deus. No auge de sua experiência de despersonalização, a personagem G.H. percebeu
isto. Para ela, “a humanidade está ensopada de humanização, como se fosse preciso; e
essa falsa humanização impede o homem e impede a sua humanidade” (PSGH, p. 157-
8).
O ser humano está perdendo aquilo que em uma de suas crônicas Clarice
denominou de “sensibilidade inteligente” (DM, p. 148). Inteligência, aqui, não é a
mesma coisa que “sensibilidade inteligente”. Esta é mais importante do que a outra para
viver, entender e conhecer os outros. É algo que permite a elaboração de um
conhecimento que não se adquire com a inteligência. Como esclareceu a autora,
Suponho que este tipo de sensibilidade, uma que não se comove como por
assim dizer pensa sem ser com a cabeça, suponho que seja um dom. E, como um
dom, pode ser abafado pela falta de uso ou aperfeiçoa-se com uso (DM, p. 148-
9).
Por falta de uso, o ser humano está perdendo a capacidade de sentir “estremecer
em mim o mundo” (AV, p. 31); está abafando o dom de ouvir a si mesmo e em si
próprio a voz de sua ancestralidade ou de sua animalidade. Está perdido no mundo e
sozinho dentro dele mesmo.
Ao colocar o homem face a face com os animais, Clarice pretendia reconciliar
animalidade e humanidade, matéria e espírito, imanência e transcendência em um
ser. Os animais são a matéria viva que preserva o sopro primordial e que por isso estão,
ao mesmo tempo, mais próximos das pessoas e mais próximos do Deus imanente e do
cosmo.
Não basta estar próximo aos animais. É necessário ouvir o grito ancestral dentro
de si, sentir “o chamado” abrir-se a seus instintos adormecidos e apagados pelo excesso
de razão. Não basta estar com ele. É preciso senti-los, entendê-los em seu silêncio e
murmúrios. Era disso que falava o narrador de Água viva, ao afirmar:
Às vezes eletrizo-me ao ver bicho. Estou agora ouvindo o grito ancestral dentro
de mim: parece que não sei quem é mais a criatura, se eu ou o bicho. E
confundo-me toda. Fico ao que parece com medo de encarar instintos abafados
que diante do bicho sou obrigada a assumir (AV, p. 45).
No conto “A partida do trem”, Dona Maria Rita Alvarenga Chagas Souza Melo
vive carregada com o peso de tantos nomes que formam seu nome, o que representa a
carga da tradição que a constitui, as máscaras societárias com as quais ela se apresenta
aos outros. Vivendo dessa maneira - em torno de um nome para os outros - sente-se
afastada de si mesmo, não consegue ser, ou simplesmente ouvir seu “eu” que fala em
seu interior. Diversas vezes Clarice disse uma pessoa não é seu nome e sim um “eu”:
“eu sou um eu” (VCC, p. 16). Se não consegue se chamar por um “eu”, Dona Maria
Rita não consegue, portanto, ser ela mesma. Mas certo dia sente dentro de si aquele
chamado para a vida natural, “animalítica”, sua liberdade interior, algo que a fez
abandonar seu marido, Eduardo, mesmo sem deixar de amá-lo. Depois de muitos anos
casada, essa velhinha ouviu e atendeu os apelos do seu “lado forte”. Como ela disse,
“nesse lado forte eu sou uma vaca, sou uma cavala livre e que pateia no chão, sou
mulher da rua, sou vagabunda e não uma ‘letrada’” (OED, p. 32). É esse lado forte
que a chama para perto de si e da Natureza: “quero é tomar banho nua no rio barrento
que se parece comigo, nua e livre! Viva! Três vivas! Eu abandono tudo! tudo! e assim
não sou abandonada” (OED, p. 34). A trajetória de Martim, a história de G.H. e esse
conto mostram que o ser humano não vive para se realizar por meio de um status
societal, uma situação econômica ou posição política, mas para realizar a razão de seu
ser, de existência propriamente humana.
Para fazer seus personagens atingirem o humano do homem, Clarice os conduz a
impessoalidade da vida, ao “it dos animais”, essa forma de “vida animalítica” (AV, p.
44). Essa impessoalidade é substância comum a todos os seres. Por meio de um longo
processo e domesticação cultural, o ser humano se afastou desse estado de ser e viver.
Para ouvir seu grito ancestral, para tocar sua animalidade e compreender os bichos, não
é preciso humanizá-los, mas de certa forma, deixar o animal dentro de si uivar, grunhir,
rosnar. Quem humaniza os bichos é porque não os entendem em sua condição de “ser-
puro-olho-que-vê-a-vida-ai”, como fala Pessanha. Clarice dizia respeitar os seres como
são, pois não os humanizavam: “Não humanizo bicho porque é ofensa de respeitar-
lhe a natureza eu é que me animalizo. Não é difícil e vem simplesmente. É não
lutar e é só entregar-se” (AV, p. 45).
Em sua cosmovisão, não é só de gente que vive o homem. Os bichos são
fundamentais para o crescimento subjetivo, psíquico e existencial do ser humano. “Ter
contato com a vida animal é indispensável à minha saúde psíquica” (SV, p. 59-60).
Quem não gosta de bichos é porque não aprendeu a ouvir e a se relaciona com sua
animalidade. Como disse Clarice “quem teme a própria animalidade não gosta de
bicho” (Lispector, apud Borelli, 1981: 55). Os textos dessa escritora exigem essa escuta
de si e dos personagens para que possamos nos aproximar daquilo que somos, de nossa
“vida animalítica”, do nosso grito ancestral.
. Os seres humanos são levados, assim, a experimentar a “Lei Natural” da qual ela
fala em uma de suas crônicas, pois o natural é o maior mistério que existe. Em suas
narrativas, a Natureza é sempre sobrenatural: fala, murmura, canta. Em A maçã no
escuro, o homem se animaliza, “grunhe”, “rosna”, mas os animais não conseguem falar
como nas narrativas infantis da escritora, como acontece em Quase de verdade.
Publicada em 1967, esta história é narrada pelo próprio protagonista, o cachorro
Ulisses, e a escritora, Clarice, assume o papel de escutar e registrar a voz do cão, esse
latido da natureza. O cão aparece como se fosse o autor dessa narrativa. Entre humano e
animal ocorre uma inversão: os bichos passam do silêncio e do “escuro da vida” para
habitar o mundo do diálogo. “O silêncio obriga a falar” (ME, p. 230). Neles, é o coração
que fala, porque a razão não atrapalha. Os animais mostram que um coração confuso
não fala nada que uma mente possa entender e aquilo que uma mente entende nem
sempre chega ao coração. Somos racionais e emocionais, seres de consciências, mas
movidos por paixões. Sem equilibrar uma e outra o ser humano se torna um animal
confuso, um bicho que não sabe o que fazer consigo mesmo.
Mais uma vez, para escrever a história Quase de verdade, a escritora se apoiou
em suas experiências com cães. Clarice teve dois cães de estimação: Dilermando,
comprado em Nápoles e deixado para trás por não poder carregar o cão em suas longas
viagens e constantes mudanças de países, e Ulisses, com quem dizia dialogar, pois se
entendia muito bem com ele como se fossem duas pessoas. Dentre outras coisas, essa
narrativa mostra essa relação de entendimento e diálogo mudo entre Ulisses e a
escritora.
Somente quem teme a própria animalidade não gosta de bicho. Mágico é como
eu e meu cachorro nos entendemos sem palavras: nossos olhos se cruzam e
uma compreensão que nasce e que é incompreensível pela minha consciência e
pela consciência dele; um entendimento que é nosso mas que nos ultrapassa
e que não captamos (Clarice apud Borelli, p. 55).
Essa experiência foi transportada para outras narrativas. Ângela Pralini,
personagem de Um sopro de vida, relata:
Meu cão me revigora toda. Sem falar que dorme às vezes aos meus pés
enchendo o quarto da cálida vida úmida. O meu cão me ensina a viver. Ele
fica ‘sendo’. ‘Ser’ é a sua atividade. E ser é minha mais profunda intimidade
(...) Meu cachorro é tão cachorro como um homem é tão homem. Amo a
cachorrice e a humanidade cálida dos dois (SV, p. 59-60).
Clarice se comporta como uma daquelas pessoas das quais fala Lie Tse. Segundo
este filósofo, “No princípio dos tempos, as pessoas prudentes e inspiradas conheciam
perfeitamente a natureza e os sentimentos dos seres, compreendiam os sons emitidos
por todos os seres, sabiam juntá-los e acolhê-los como humanos” (Tse, 2001: 50).
Algumas das narrativas clariceanas têm o mesmo aspecto das mitologias
primitivas dos povos que viviam da caça. Essas mitologias “expressam o ser humano e
os animais como um todo figuras semi-humanas e semi-animais” (Campbell, 2004:
26).
Além de suas histórias infantis caminharem nessa direção, alguns contos da
autora também se aproximam disso, como, por exemplo, a história da menor mulher do
mundo que é uma interface entre o animal e o humano.
Pequena Flor
Retomo aqui um conto ao qual me referi anteriormente: “A menor mulher do
mundo”. Não é à toa que ele está inserido em Laços de família, coletânea de contos
escritos nos intervalos, ao mesmo tempo em que A maçã no escuro. Esses contos
dialogam constantemente com esse romance. Os personagens dessa coletânea podem ser
vistos como facetas de Martim, seres que vivenciam ou não aquilo que está na base da
constituição desse ser-no-mundo.
Vivendo no Congo Central, Pequena Flor, a menor dos menores pigmeus do
mundo é um ser que a gulodice do mais fino sonho jamais pudera imaginar” (LF, p.
70). Com seus quarenta e cinco centímetros, sua fotografia foi publicada em tamanho
natural no suplemento colorido dos jornais de domingo.
Essa imagem está muito próxima daquela que antropólogos e cientistas fazem de
nossos antepassados. Essa pequenina mulher é a réplica de nossos ancestrais, pois,
como lembra André Langaney, nossos
antepassados em geral são não menos especializados, como também
menores que seus descendentes. O ancestral comum aos macacos e aos homens
devia, pois, ser bem menor que seus descendentes australopitecos, que, pelo que
se por seu esqueleto, media um metro de altura. (...) Seria mais correto vê-lo
como um pequeno primata, que subia ao longo dos troncos, ou passava de galho
em galho agarrando-se com os membros superiores (Langaney, 2002: 23).
A macaquinha Lisette, o macacão-pequeno personagens do conto “Macacos”,
Pequena Flor, Martim e cada um de nós pertence aos mesmos “laços de família”. À
semelhança do que aconteceu com a mulher que viu a foto dessa pequena “mulher” no
jornal, se colocássemos a fotografia de Pequena Flor diante de nossos olhos veríamos “a
distância insuperável de milênio” (LF, p. 72), mas perceberíamos também os traços que
milenarmente nos aproximam dela.
Pequena Flor está contaminada pela necessidade de amar, pelo desejo de ser
feliz, de brincar, de proteger-se e “ter uma árvore para morar, sua, sua mesmo... pois é
bom possuir, é bom possuir, é bom possuir” (LF, p. 75), como disse ela a Pretre, o
cientista, quando este dominava a palavra silenciosa dos sinais. Não vivia o conflito
entre ter e ser como acontece com Laura de “A imitação da rosa”.
Pequena Flor não tem o desejo de ser, pois era em si aquele “olho que resiste
olhando o sol de frente”, como fala Pessanha (1965: 66), mas tem o desejo de ter, esse
ancestral desejo que acompanha o homem moderno. Como nos diz o exemplo da
família que desejou possuir essa pequenina pigméia, o ser humano deseja possuir até
mesmo outro ser humano somente para si. Tal desejo impregna as relações de afeto, de
amor e está enraizado na cultura humana. Afastada da cultura humana, esse pequenino
ser ainda não tinha sido contaminada pela vaidade de ter outro ser.
Com seu espírito científico, Pretre metodicamente examinou com o olhar a
“barriguinha do menor ser humano do mundo”. Somente então, percebeu “o segredo do
próprio segredo”, a vida dento da vida a pulsar diante de seus olhos. Pela primeira vez
desde que a conhecera, o explorador sentiu mal-estar. “É que a menor mulher do mundo
estava rindo” (LF, p.74). Talvez ele tenha reconhecido sua face na face dela, captado na
animalidade a sua humanidade. Aquilo que o narrador de A maçã no escuro falou com
relação a Martim se aplica perfeitamente à condição de Pretre diante de Pequena Flor:
O homem olhou-o com fixidez. Em trégua de luta, mediu a sede do outro. No seu
olhar não havia misericórdia mas humano reconhecimento e, como se as duas
lealdades se encontrassem olharam-se limpos nos olhos. Que aos poucos foram
se enchendo de alguma coisa mais pessoal (ME, p. 57).
Na menor mulher do mundo encontram-se outras marcas constitutivas do
humano do homem. Esse pequeno ser “estava rindo, quente, quente. Pequena Flor
estava gozando a vida... estava tendo a inefável sensação de ainda não ter sido comida.
(...) Era um riso como somente quem não fala ri” (LF, p.73-4).
Seu riso não era igual ao de Ermelinda ao usar um “sorriso de faceirice” para
disfarçar uma palavra que a revelaria. O sorriso de Pequena Flor não é seu disfarce, mas
sua revelação. Riso que é sua palavra não falada, linguagem não verbal. Rir é seu gozo
distraído, um daqueles que acontece quando se está tranqüilo consigo mesmo,
quando se tem carinho para consigo próprio, coisa que, em certo momento, Vitória
percebeu existir em Martim, pois ele mesmo com fome sorria: “via-se a fome na sua
cara mas ele, numa capacidade de crueldade feliz, sorria. Não ter carinho por si mesmo
era o começo de uma crueldade para com tudo” (ME, p. 67).
Como o choro, o riso e o sorriso são as manifestações primeiras e invariantes da
condição humana. O sorriso, o riso e as grimas nos são inatos. Para Morin, essa é uma
característica profunda, constitutiva da natureza humana e sobre as quais as culturas
elaboram as suas semióticas diversas, mas sem nunca lhes anular as significações
antropológicas originais. Não se pode afirmar que o sorriso, o riso e as grimas
surgiram com o sapiens, mas que é somente neste que aparecem com intensidade e
instabilidade (Morin, 1991: 105).
Para Clarice, não é a razão a marca diferencial entre o animal e o ser humano,
pois os animais pensam, assim como toda a Natureza: “Cuidado que a Natureza pensa”,
diz Ângela em Um sopro de vida (p. 123). A diferença entre um animal e um ser
humano reside na intensidade com que cada um vive e se sente, e não naquele tempo
“redondo, lento, incontável por um calendário” (ME, p. 97) que nada conhece e nada diz
sobre a vida. Nem sempre os ponteiros do relógio estão em sintonia com as pulsações
da veia, com os desejos do coração e com os sonhos de uma mente. A vida não é
medida e sim sentida. Não vive mais aquele que viveu mais tempo, mas aquele que
experimentou a vida com mais intensidade.
O tempo da vida e da existência humanas, do prazer e da felicidade, da liberdade
e da plenitude desconhecem os ponteiros do relógio, pois “em menos de dois segundos
pode-se viver uma vida e uma morte e uma vida de novo. Esses dois ínfimos segundos
como forma de contar toscamente o tempo devem ser a diferença entre o ser humano e o
animal” (DM, p. 126). Cada instante é único e um único momento bem vivido pode ter
a dimensão de uma vida inteira. “se em um instante se nasce, e se morre em um instante,
um instante é bastante para a vida inteira” (ME, p. 116). É assim que uma pessoa pode
viver muitas vidas em uma só.
Aquele sorriso de Pequena Flor expressa a intensidade do que ela sente, mas
Pretre, o explorador, queria, mas não conseguiu, classificá-lo, pois ela ria “tão delicado
como é delicada a alegria”; sente no peito morno aquilo que nós chamamos de Amor:
“Ela amava aquele explorador amarelo” (LF, p. 74), como amava também sua bota.
Sente amor sem vaidade, porque
na umidade da floresta não desses refinamentos cruéis e amar é não ser
comido, amar é achar bonito uma bota, amar é gostar da cor rara de um
homem... amor é rir de amor a um anel que brilha. Pequena Flor piscava de
amor e ria quente, quente, grávida, quente (LE, p.74-5).
Amar é reconhecer o outro como legítimo outro na relação, algo diferente
daquele sentimento de posse da família que a queria para ela. Sorrir com
tranqüilidade diante de Pretre demonstra sua segurança diante do estranho, sensação de
quem ama sem medo de se entregar ao desconhecido que pode devorá-lo. A história que
certa vez Ermelinda ouviu parece ser verdadeira, ou seja, que “os bichos precisam de
um mínimo de segurança ao estarem juntos para ao menos terem a garantia primária de
não serem interrompidos” (ME, p. 111). A sensibilidade dessa pequena “mulhera faz
parente de nós mesmos, pois todos nós somos animais dependentes de carinho, atenção,
amor, cuidados
54
, o que passa pela importância do outro em nossas vidas.
54
A esse respeito ver:
MATURANA, Humberto. Emoções e linguagem na educação e na política.
Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998
.
Nas narrativas clariceanas, a percepção do outro ocorre como um momento de
despertar, em um “instante-já” eruptivo de emoções, de amor. Em A maçã no escuro, A
paixão segundo G.H., Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres ou nas formas breves
de narrativas “Amor”, “A partida do trem”, “A legião estrangeira”, “Os desastres de
Sofia”, “Preciosidade”, “A menor mulher do mundo” – o ser desperta, simultaneamente,
para si, para o outro e para o amor num momento de “suas núpcias consigo mesmo”
(LE, p. 96). Isso acontece, epifanicamente, quando o ser vivencia o outro que é ele
mesmo e tem “A coragem de ser o outro que se é e de nascer do próprio parto, e de
largar no chão o corpo antigo” (LE, p. 96).
Sabemos que a criação do Universo é uma incógnita, um górdio indecifrado,
mas no reino da ficção é possível dizer que o Universo em “núpcias consigo mesmo”,
criou a vida, a Natureza, e esta gerou e criou o sapiens-demens que somos. Esse ser que,
como escreveu Edgard de Assis Carvalho, sabe saborear sentidos, paisagens,
bifurcações, cantos, amores, essa mistura encantadora, esse entrelaçamento complexo
de ruelas sombrias e tortuosas (2002: 04). O ser humano é uma fração da natureza.
Amando, sorrindo e cuidando tranquilamente da vida que carregava em seu
ventre, Pequena Flor era o clímax da Natureza, gozo da vida acontecendo ali-mesmo,
direto. Mesmo sem ter consciência do que sentia e de quem era, essa pequena pigmeu
vivenciava aquilo que Clarice chamou de “estado de graça”, algo difícil de ser
frequentemente alcançado pelos seres humanos.
Os animais entravam com mais freqüência na graça de existir do que os
humanos. Só que eles não sabiam, e os humanos percebiam. Os humanos tinham
obstáculos que não dificultavam a vida dos animais, como raciocínio, lógica,
compreensão. Enquanto que os animais tinham esplendidez daquilo que é direto
e se dirige direto (ALP, p. 133).
Como a personagem Ana, Pequena Flor “fazia obscuramente parte das raízes
negras e suaves do mundo” (L.F, p. 21), estava na remotidão da vida, vida que só é. Nos
humanos, esse estado de graça não pode durar muito tempo, pois seria a negação da
própria vida, o mesmo que viver apenas um lado da existência, pois a vida é feita de
luta, sofrimento, perplexidade e alegrias. Durando muito tempo, o estado de graça
transformaria a vida em algo muito rígida, não transitória, fixa, e a condição humana
perderia, assim, a fluidez, a fugacidade, a mutabilidade. Sendo permanente, o estado de
graça, a condição genérica do homem deixaria de transitar entre a rigidez de um cristal e
a fugacidade de uma fumaça solta ao ar. Como está dito em Uma aprendizagem ou o
livro dos prazeres, “Era preciso não esquecer que o estado de graça era apenas uma
pequena abertura para o mundo que era uma espécie de paraíso mas não era a entrada
nele, nem dava o direito de se comer dos frutos de seus pomares” (ALP, p. 134). Ele é
apenas um instante, um momento que vem, em graça, revelar nossa grandeza e pobreza.
Durante esse estado o ser humano se sente divino, completo. Depois que passa, a
condição humana mostra sua face: “depois do estado de graça a condição humana se
revelava na sua pobreza implorante, aprendia-se a amar mais, a esperar mais. Passava-se
a ter uma espécie de confiança no sofrimento e em seus caminhos tantas vezes
intoleráveis” (ALP, p. 134). É nesse estado é importante para o homem viver com
humildade.
Pequena Flor mostra a nossa condição, nossa animalidade e humanidade; ela é
um ser de nossa “legião estrangeira” capaz de devolver ao homem o espelho que revela
sua face esquecida. “Nós, seres vivos, por conseqüência os humanos, filhos das águas,
da Terra, e do Sol, somos uma formiga, talvez um feto, da diáspora cósmica, algumas
migalhas da existência solar, um frágil broto da existência terrestre” (Morin, 2002: 27).
Somos, todos nós, frutos da mesma árvore que produziu Pequena Flor. Filhos de um
parto ancestral, sementes que a menor “mulher” do mundo plantou no planeta. Nós
pertencemos à mesma espécie e temos o mesmo enraizamento.
Clarice põe em foco o problema da identidade humana que está para além de
visões culturalistas, reducionistas, fragmentarias. Talvez ela tenha percebido, assim
como Morin, que
nossa identidade animal foi, por muito tempo, mascarada pela civilização
ocidental, cujos progressos foram pagos com uma terrível regressão de
consciência, chegando a considerar os animais como maquinas e, pior, como
objetos manipuláveis à vontade... Submetemos a natureza vegetal e animal,
pensamos ter nos tornado senhores e donos da Terra, ou mesmo os
conquistadores do cosmo, mas apenas acabamos de descobrir nosso laço
matricial com a biosfera, sem a qual não poderíamos viver, e devemos
reconhecer nossa muito sica e muito biológica identidade terrestre (Morin,
2002: 48-9).
Na cosmovisão de Clarice não há diferenças gritantes entre o homem e o animal.
O homem se apresenta como um animal. Em Uma aprendizagem ou o livro dos
prazeres, ela afirma que nós somos os macacos de nós mesmos (p. 129). Referindo-se a
seu cão Ulisses, afirma ainda: “Ele é: bicho. Eu sou bicho” (PNE, p. 56). Em diálogo
com Lóri, Ulisses é enfático ao dizer que nós somos a Natureza:
- Mas há muitas coisas, Lóri, que você ainda desconhece. E há um ponto em que
o desespero é uma luz e um amor.
- E depois?
- Depois vem a Natureza.
- Você está chamando a morte de Natureza.
- Não, Lóri, estou chamando a nós de Natureza (ALP, p. 1278).
A obra de Clarice nos afasta de um certo “antropologismo que define o homem
como oposto de animal; a cultura em oposição a natureza” (Morin, 1991:18). Essa
escritora oferece à Antropologia uma visão para além do antropologismo, ou seja, para
além de uma concepção insular de homem, visão fechada em si mesma. Em sua obra “A
natureza não é desordem, passividade, meio amorfo: é uma totalidade complexa. O
homem não é uma entidade isolada em relação a essa totalidade complexa: é um sistema
aberta, com relações de autonomia/dependência organizadora no seio de um
ecossistema” (Morin, 1991: 27).
Nas narrativas clariceanas, o ser humano encontra nos animais um passado que,
se não é dele, lhe serve como religação e autodescoberta. Como percebeu Nunes, para
Martim que se impõe a obrigação de ser, um dos momentos mais decisivos de sua
experiência de renovação é a descoberta e a tentativa de assimilação dos elementos
sensíveis, brutos, penumbrosos, proliferante e fortes da vida num curral de vacas. Nessa
atmosfera de entranhas palpitantes, ele encontra, sob forma de vida ativa, de matéria
operante, que segue curso impassível, o sórdido, o fecal (Nunes, 1976: 99).
Seu contato com as vacas no curral não ocorreu de forma espontânea ou
planejada. Antes, Martim obedientemente cavava, limpava e podava os canteiros,
trabalho que o deixava com uma sensação de insatisfação. Trabalhava silenciosamente
como se seu labor operasse duplamente: fora e dentro dele. Seu trabalho braçal e
objetivo que até então consistia em cuidar do canteiro e consertar as coisas da fazenda
repercutia em sua vida íntima, subjetiva, como se tudo que ele constrói na fazenda,
construísse dentro dele mesmo. Tudo que ele faz de forma objetiva, também o
reconstrói de forma subjetiva. De certa forma, o trabalho que o homem faz, também o
faz homem.
Esse trabalho se complexificou quando, propositalmente, Vitória, a dona da
fazenda, perguntou-lhe: “E o curral!? Interrogou-o um dia atenta, o senhor nunca
limpou o curral!” (ME, p. 94). É assim que, do silêncio das pedras e das plantas, ele
passa para o curral, lugar onde “uma pessoa não escapava de certos pensamentos. Ali
ele não escaparia de sentir, com horror e alegria impessoal, que as coisas se cumprem
(ME, p. 95). Lidar com as vacas era mais difícil do que com as plantas, trabalho que
exige mais dele. Enquanto as vacas têm a “perfeita objetividade que não precisa mais
ser demonstrada, (...), ele, no curral, se reduzira ao fraco homem: essa coisa dúbia que
nunca foi de uma margem a outra” (ME, 96).
Diante desse novo local de trabalho, mais uma vez ele sente a impessoalidade,
mas a mantêm em leve repressão de si próprio, pois tem medo de se tornar ele mesmo e
cair emborcado no chão”. Assim como os animais que estão entre o céu e a terra e
vivem na impessoalidade, o homem quer alcançar a individualidade necessária para seu
avanço.
É com muito esforço e sacrifício que ele se aproxima do curral, pois até então
não passava de um homem habituado a calcular e a rejeitar a desordem. Esse lugar
“onde se faziam vacas” mexe com tudo que até então ele construíra intimamente. Era
um lugar que exalava a fragrância fresca de estrume e urina de vacas. Algo que o
incomoda profundamente, mesmo sabendo que
O cheiro cru era o de matéria-prima desperdiçada. Ali se faziam vacas. Por
nojo, o homem que repentinamente se tornara de novo abstrato como uma unha,
quis recuar; enxugou com o dorso da mão a boca seca como um médico diante
de sua primeira ferida (ME, p. 95).
Diante desse cheiro,
Uma pessoa pouco corajosa poderia vomitar à fragrância imunda, e ao ver a
atração que as moscas tinham por aquela chaga aberta, uma pessoa limpa
podia se sentir mal diante da tranqüilidade com que as vacas de pé molhavam
pesados o chão. Martim era essa pessoa pouco corajosa que nunca tinha posto
mãos na parte íntima de um curral. No entanto, embora desviando os olhos, ele
a contragosto pareceu entender que as coisas se tivessem arranjado de modo a
que num estábulo um dia tivesse nascido um menino. (....) que Martim ainda
não estava preparado para tal avanço espiritual. Mais que temer, era um pudor.
E hesitou à porta, pálido e ofendido como uma criança ao lhe ser revelada de
chofre a raiz da vida (ME, p. 95).
Enquanto Dona Maria Rita Alvarenga Chagas Souza Melo, do conto “A partida
do trem”, “preferia o cheiro vivo de estrume por mais nojento que fosse” (OED, p. 36),
Martim sente repugnância, nojo, temor e pudor, mas sente ali “alguma coisa que
nenhuma pessoa e nenhuma consciência lhe pudesse dar, ali no curral lhe fosse dado
ele recebia” (ME, p. 105). Como percebeu Fonoff, “Diante do curral, Martim sente-se
desprotegido. As emoções o invadem, de forma a romper a cápsula de que se revestiu”
(2002: 72).
A entrada do personagem no curral surge como a possibilidade de uma ruptura
definitiva com sua forma mecanizada de ver e pensar, de sentir, agir e ser-no-mundo. É
uma experiência dos sentidos. Ato de coragem e superação de suas repulsas, de seu nojo
do estrume. Trata-se de uma experiência ambígua e arriscada: para atingir a concretude
de um homem, ele teria que se tornar novamente abstrato em meio a uma realidade
objetiva e forte.
É no curral que se intensifica o trabalho interno de reconstrução de si, algo que
exige a superação do seu nojo. Vencer o nojo quebraria “a tendência da personagem
racionalizar seus sentimentos e de conservar a mesmice” (Fonoff, 2002: 72). Vencê-lo
significa se aproximar não apenas das vacas que não sentiam nojo de seu estrume, não
somente das plantas que no estrume cresciam viçosas, mas, ao superar seu nojo, estaria
ele mais próximo da natureza Divina, pois “só Deus não tem nojo” (ME, p. 95).
O curral, lugar de forte “mornidão amoniacada do ar” (ME, p. 97), representa as
metamorfoses da Natureza, da vida. Num curral, nada é desperdiçado, tudo é matéria
prima de transformação e recriação: o estrume das vacas alimenta plantas viçosas, que
alimentam animais e estes, por sua vez, alimentam os homens. Na podridão do húmos a
vida pulsa mais forte.
No curral, decomposição e regeneração, vida, morte e renascimento, podridão e
frescor fazem parte do mesmo ciclo. É em meio a fezes e urinas que nascem plantas e
moscas, ovelhas e bezerros, assim como um dia nasceu o menino Cristo entre vacas
num estábulo. O curral também é uma imagem de síntese entre Natureza e cultura,
espaço construído pelo homem para ser habitado por bichos, lugar que guarda animais
domesticados e preserva a força selvagem da vida original. Cheio de sensibilidade bruta,
esse lugar está aberto à “brutalidade” de Martim que, inicialmente, resiste a se abrir para
o curral.
Embora esse homem ainda não tenha plena consciência de sua ligação com
aquele lugar onde vacas ruminam, ele sente alguma coisa acontecer consigo. Sente a
clareza de seus pensamentos se unirem ao desconhecido e estranho local onde “se
faziam vacas profundas”. Foi assim que nele surgiu o sentimento de pertencimento ao
curral: “Martim respirou profundamente. Pertencia agora ao curral” (ME, p. 98).
Num “suspiro resignado” e profundo, o homem tentou imitar as vacas para
entendê-las e se sentir como elas. Antes, a imitação tinha sido um sacrifício: “agora
entendo a imitação: é um sacrifício! eu me sacrifiquei!” disse Martim (ME, p. 223).
Agora, tudo é uma questão de como saber imitar para transformar o que poderia ser
cópia em algo original. O homem sabia que a imitação também pode ser criativa,
original: “quando a imitação é original ela é a nossa experiência” (ME, p. 324). Martim
toma forma de bicho, olha para o curral como uma vaca olha e percebe que
O curral era um lugar quente e bom que pulsava como uma veia grossa. Era à
base dessa larga veia que homens e bichos tinham filhos. Martim suspirou
cansado com enorme esforço: acabara de ‘descortinar’. Era a partir dessa veia
larga que um grande animal atravessa um riacho espalhando água que brilha
o que o homem já havia visto, tendo porém tido apenas aquele mínimo aviso de
beleza que agora repousava em base profunda. Era por causa dessa pulsação
que as montanhas eram longe e altas. Era por isso que as vacas molhavam o
chão com um barulho forte. Era à base de um curral que o tempo é
indefinidamente substituído pelo tempo. Era por causa desse latejar que levas
migratórias saíam de zonas frias para as temperadas. Aquele aquele era um
lugar quente que pulsava (ME, p. 98).
Suspirar profundamente e imitar as vacas, garante ao homem aquilo de que ele
precisa: uma experiência mais profunda e intensa, algo que desperta nele o
sentimento de pertencimento que o acompanha durante toda sua trajetória. Martim
chegou longe demais, não pode recuar, é impelido a avançar. Como disse o narrador de
A maçã no escuro,
também é verdade que, a essa altura, a alegria de viver já o tomara, essa
alegria fina que às vezes nos toma no meio da própria vida como se a mesma
nota de música se intensificasse: essa alegria o tomara e o guiava
instintivamente na luta (ME, p. 97).
Tudo isso funciona como uma preparação espiritual para o personagem entrar de
fato no curral, assim como essa experiência é apenas um ritual para ele dar mais um
passo e se aprofundar em si. Era dessa maneira que aquele homem cresce
subjetivamente e avança pacientemente. Ao olhar profundamente o curral, Martim
percebe que naquela “imundície penumbrosa havia algo de oficina e de concentração
como se daquele enleio informe fosse aos poucos se aprontando concreta mais uma
forma” (ME, p. 95).
Dentro do curral, aquele homem estava dando novas formas às formas
existentes e se formando como pessoa. É verdade que em alguns momentos escapavam
os elos do que estavam acontecendo, como também é verdade que um homem não
consegue ter nas mãos todos os fios que tecem a tapeçaria de sua existência. Martim
está descobrindo aquele lugar onde vacas dormiam, mas está também se descobrindo
nele, descortinando. Sua vida não é mais contada em dias ou anos, não é mais vivida
linearmente, mas em forma de aspirais, “mas em aspirais tão largas que ele não
poderia vê-las assim como não via a larga linha de curvatura da terra. Havia algo que
era essência gradual e não para se comer de uma vez” (ME, p. 108).
Essas descobertas mostram que o homem recomeça a viver e a se relacionar
consigo e com o mundo de outra maneira. O curral lhe deu outra forma de concepção do
que estava acontecendo. Diante das vacas Martim recomeça a compreender a sua vida e
as mulheres de forma mais universal vendo em cada coisa uma dimensão de si e a
extensão de seus pensamentos. Ao entrar no curral, o homem entra em uma parte de sua
vida inacessível à razão instrumental, a compreensão cartesiana. Com sua sensibilidade
inteligente, ele começa a entender o que antes não entendia, começa a aceitar o que era
inaceitável e descobrir o que não imaginava ser necessário à existência de uma pessoa.
Tratando das vacas, o desejo de ter mulheres renasceu com calma. Ele o
reconheceu logo: era uma espécie de solidão. Como se seu corpo por si mesmo
não bastasse. Era o desejo, sim, ele bem se lembrou. Lembrou-se de que mulher
é mais que o amigo de um homem, mulher era o próprio corpo do homem. Com
um sorriso um pouco doloroso, acariciou então o couro feminino da vaca e
olhou em torno: o mundo era masculino e feminino (ME, p. 108).
No curral cheio de humo, nesse lugar pouco nobre e repugnante, o homem se
“descortina”, participa da “orgia muda” do mundo e se sente em irmanação com a “vida
pura”, em contato direto com a placenta da vida da qual um animal, ao parir, se alimenta
para repor suas forças. Martim percebia que “tudo estava se manifestando para [ele],
assim como as flores se abrem em determinado momento e nunca estamos perto para
ver. Mas ele estava. Pela primeira vez estava presente no momento em que acontece o
que acontece” (ME, p. 115). Semelhante à Pequena Flor, esse homem está em “face das
coisas”, em êxtase. Como percebeu Nunes, ao cair em êxtase diante da vida impessoal
da Natureza, Martim vislumbra a conexão de sua existência com a de todo o universo.
São nesses momentos que ele “descortina”, instantes de êxtase selvagem, sem
entendimento explícito e sem palavras que o expresse (Nunes, 1976: 99-100).
O personagem vive aquilo que o Upanixade Kena chama de “êxtase de um
despertar”, algo que ocorre quando a mente desperta de sua inércia e se conecta com o
todo maior do que ela e do que o próprio ser. O “êxtase do despertar”
é um estado onde o homem sai de si. É uma condição de liberdade liberdade
do fardo das acumulações da mente. (...) o homem está além de si, porque ele
saiu de sua natureza adquirida, tendo recuperado seu estado espiritual natural.
Por estar além de si, ele recebe o que lhe cabe! (Mehta, 2003: 40).
Ao fazer Martim superar seu nojo do estrume e entrar no curral, Clarice antecipa
a experiência radical que G. H. iria vivenciar anos depois, quando essa mulher come a
massa branca da barata morta. G.H. descobre que ela e a barata participam da mesma
teia da vida, ambas são feitas de matérias nuas, ancestrais, inumanas, e que possuíam a
mesma identidade. Tal experiência não está muito distante daquela que Ana do conto
“Amor” penosamente descobriu diante de um leproso: “com horror descobria que
pertencia à parte forte do mundo (...) Seria obrigada a beijar o leproso, pois nunca seria
apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada” (LF, p.
270). Portanto, G.H vivencia o que Martim ensaiou, e este enfatiza a experiência que
Ana sentiu. No contato com o inumano exterior, esses personagens redescobrem sua
humanidade por dentro.
Todas essas narrativas e experiências mostram que “todas as criaturas não são a
partir de si mesmas. (...) Elas também não se dão a si mesmas” (Eckhart, 2006: 85). Por
meio do outro, do estranho, do inumano, dos seres imundos, G.H., Ana e Martim
sentem-se mais próximos deles mesmos, de todos os seres e de Deus, como se um ser
sozinho não pudesse existir-no-mundo. Na cosmovisão de Clarice, existir-com-o-outro
“já é uma ênfase”, como diz o narrador desse romance (ME, p. 127).
Essas histórias e exemplos mostram que em certos momentos de sua vida, uma
pessoa se no limite de si mesma, na beira do abismo do não-sentido e é nessas
circunstâncias que ela entra ou encontra um sentido mais elevado de espiritualidade,
transcendência, algo inacessível à sua lógica corriqueira, instrumental ou analítica. Cada
um toca em si mesmo um ponto que o põe em comunhão com todos os seres. Os
personagens clariceanos não explicam o sentido da vida. Buscam-no vivendo.
Esse é o sentido da fuga de Martim. A cada passo que dá, constrói um caminho
que no fundo é um descaminho. Enquanto foge de seu crime, troca de pele como a
serpente: deixa de ser homem e se iguala a um animal, depois se iguala a um vegetal; de
vegetal atinge a condição de “coisa”, matéria bruta. Ao chegar a esse extremo, ele tem
que construir um caminho de volta à sua condição. Voltar a si mesmo, renascer para si
próprio. Como a Fênix que renasce de suas próprias cinzas, seu renascimento ia “da
condição de coisa à condição de animal, da de animal à de homem, e da de homem a si
mesmo, ao único...” (Valéry, 2005: 115).
Esse trajeto relembra ao homem que ele, antes de ir mais longe, deve reviver os
diferentes níveis do ser, os diferentes reinos que compõem o macrocosmo: o reino
mineral, o reino vegetal e o reino animal.
Seria isso talvez o que Martim cada dia aguardava ali em pé? Como se nesse
vergar-se da claridade lhe ensinasse como se faz a união harmoniosa não
inteligível mas harmoniosa – como se nesse vergar-se da claridade para a
escuridão se fizesse enfim a união das plantas, das vacas e do homem que ele
começara a ser (ME, p. 128).
A união harmoniosa com o todo ocorre com o reconhecimento de que o homem,
Martim, é apenas uma centelha da vida que habita o cosmo.
Todas essas experiências encaminham os personagens para o mais humano, do
qual fala a própria Clarice. O que não quer dizer para um “super- humano” e sim para
um humano fundamental, primordial ou em uma palavra, para a humildade de ser.
ARBORESCÊNCIAS
- E as palavras, têm vida?
- Palavras para eles têm carne aflição pentelhos – e
a cor do êxtase.
Manoel de Barros
Agora temos de admitir que não podemos
conhecer a nós mesmos, podemos
somente saber sobre nós
D. H. Lawrence
HUMILDADE
Familiarizar-se com o curral e com as vacas foi um exercício de humanidade e
de humildade. Leloup lembra que a palavra humildade tem como raiz o termo latino
húmus [terra] que, em hebraico faz lembrar adam, assim como Adão significa argila,
terra vermelha. O homem humilde é Adão. Ser homem é reconhecer-se terroso,
argiloso. Independentemente da cor da pele, somos todos feitos de argila. A humildade
é a própria condição para ser aquilo que se é: ser humano. Esse é a verdade de nossa
humanidade (Leloup, 2002: 31).
Em A maçã no escuro, Clarice se referiu várias vezes a essa condição de
humildade. Ela emprega esse termo no sentido cristão, como um ideal a ser alcançado
ou não. Em “Humildade”, o poeta D. H. Lawrence (2001: 189) diz que
Atualmente, falar de humildade é um pecado contra o
Espírito Santo.
É uma fuga furtiva da responsabilidade
Da nossa própria consciência.
Clarice tinha uma grande admiração literária por esse poeta: “D.H. Lawrence é a
minha grande admiração literária. Me inflamo com ele. Tem todos os defeitos da
espécie humana, mas é fogo puro” (In: Bloch, 1989: 10). Mas a visão dessa escritora
sobre a humildade não está completamente de acordo com a reflexão de seu admirado.
Para ela, falar sobre humildade é um meio de tocar na dimensão da vida extremamente
humana, vida que precisa de ideal para se descobrir o que é. Nesse aspecto, Cristo é o
grande ideal de ser humilde. Falar disso não, portanto, uma fuga da consciência, mas
uma abertura a ela, a outra dimensão do humano.
Desde a experiência da despersonalização, do vazio e do silêncio, Martim não
estava se preparando apenas para se tornar homem, mas humano e humilde. De todas as
experiências vividas por esse homem, somente a do curral torna-se a mais forte e
exigente a esse respeito, porque ela coloca-o diretamente em contato com a sua
animalidade.
A humildade é um exercício de vida, uma forma de ser que vem de uma maneira
de conhecer, conhecendo-se. O homem não nasce humano, torna-se humano, o que
exige desprendimentos, rupturas, religações, esforço, autoconstrução, autoconhecimento
ou em uma palavra, exige aprendizagens. Em seu processo de humanização,
autodescoberta e humildade, Martim aprende que a vida é um processo e seu objetivo é
viver e ser um processo: “Quem sabe se o nosso objetivo estava em sermos o processo”,
como diz o narrador de A maçã no escuro (ME, p. 173).
A noção de humildade está ligada à raiz do homem, o que esclarece o porquê
dos personagens clariceanos quererem retornar às fontes, às suas raízes. Lóri, por
exemplo, encontra sua humildade em suas raízes ancestrais: “sua altivez vinha da
certeza obscura de que suas raízes eram fortes, e que sua humildade não era apenas
humildade humana: é que qualquer raiz era forte, e sua humildade vinha da certeza
obscura de que todas as raízes eram humildes, terrosas e cheias de úmido vigor na sua
modéstia nodosa de raiz” (ALP, p. 43).
Tanto em Clarice quanto em Leloup, a humildade é uma referência direta a
condição fundamental do homem, a sua condição primordial; está, portanto, ligada à
noção de humanidade. O homem humilde expressa a condição genérica do ser humano.
Ao contrário de uma pessoa desesperada, o homem humilde sabe que a vida é feita de
etapas, de avanços e recuos, de rupturas e continuidades; é cheia de ciclos e
metamorfoses, permeada de estações que devem ser vividas cada uma a seu tempo,
porque não se vive tudo de uma única vez. Para viver é necessário paciência, coisa que
Martim descobriu por meio de seu trabalho: “sua humildade se tornou instrumento de
paciência: ele trabalhava sem parar, as valas se abriam fundas” (ME, p. 144). As coisas
obedecem a seu ritmo próprio. Assim como é aos poucos que se respira é aos poucos
que uma pessoa vive.
Humildade é não somente uma postura de aceitação, mas um exercício de
abertura ao outro e ao mundo, porque o homem se mostra como um animal que não
consegue viver apenas para si mesmo. Ao contrário de um animal, o ser humano não
pode viver sem um “por quê” e sem um “para quem”. Isso o torna um animal carente,
mas é de carência que é feita a condição humana. Como disse Martim: “nossa carência
nos sustenta” (ME, p. 329). É assim que a vida de uma pessoa liga-se a outras porque
ela é um ser relacional, criativo e de linguagem, coisas que sem o outro não existiam.
Sua existência está ligada à existência dos outros.
Além de Cristo, um outro símbolo de pessoa humilde é São José, porque não
pensou somente nele mesmo, cuidou do que não era seu como se fosse realmente dele,
foi um homem que pensou para além de si, pensou no futuro da humanidade. Clarice
dedicou uma de suas crônicas a “A humildade de São José”: “São José é o símbolo da
humildade. Ele sabia que não era o pai da Criança e cuidava da virgem grávida como se
ele a tivesse germinado. São José é a bondade humana. Ele é o que vela pela
humanidade” (DM, p. 158).
Uma pessoa assim, nunca pensa somente em si, porque quem assim age fecha-se
nela mesma, afasta-se dos outros e isso a distancia da humildade. Ser humilde é dizer
sim à vida, porque “tudo no mundo começou com um sim” (HE, p. 11). Em seus
Sermões, Mestre Eckhart enfatiza que “é o ‘não’ que queima no inferno. (...) Assim, se
quiserdes ser perfeitos, deveis ser então livre do ‘não’” (Eckhart, 2006: 66-7). O “não” é
uma negação, algo que separa a razão da paixão, o eu do outro, o bem do mal. Vivido de
forma interna, ele separa o sujeito de seus próprios desejos, porque, ao assumir o “não”,
o sujeito nega uma parte de sua existência e por isso não pode se sentir inteiro, em
comunhão com o todo porque não se aceita, pois está apartado dele mesmo.
Ninguém pode sentir a grandeza de um amor dizendo “não” a ele. O amor é um
“sim”. O sim é uma forma de abraçar, de estar-junto, aceitar, amar, e amar é aceitar, é
dizer sim ao que está acontecendo. Uma das primeiras posturas de homem humilde
assumidas por Martim foi reconhecer seu desejo e aceitá-lo:
É que diante daquela extensão de terra enorme e vazia, em sufocado esforço
Martim penosamente se aproximava (...) de alguma coisa a que um homem a
chamaria humildemente de desejo de homem mas a que um homem montado não
poderia fugir à tentação de chamar e missão de homem. (...) Ali, confuso sobre
um cavalo assustado, ele próprio assustado, num segundo apenas de olhar
Martim emergiu totalmente e como homem. (...) Martim estava de algum modo
humilde (ME, p. 114).
Ser humilde é ser você mesmo diante dos outros, de seu próprio coração e de
Deus; é dizer “sim” a seus desejos, afirmá-los; é não temer ficar nu diante da grandeza
do amor; é não evitar, mas aceitar o que tem de acontecer e nem tirar proveito de certas
situações como Martim havia tirado em sua antiga vida de engenheiro quando
pensava em números, dinheiro.
A humildade contrapõe-se á arrogância, ao orgulho e à vaidade que se
apresentam como estupidez, falta de sensatez, de inteligência, de simplicidade. Em certo
momento, Martim teve que superar seu nojo e sua vaidade para alcançar essa
humildade: “Foi com esforço sobre-humano que Martim procurou vencer cada dia a
vaidade de pertencer a um campo tão grande que crescia sem sentido” (ME, p. 146). Por
outro lado, Vitória não demonstra nenhuma humildade ao atribuir tantas tarefas a
Martim e ao se mostrar arrogantemente superior e dona de tudo na fazenda. “Humildade
é o contrário do orgulho, é uma libertação da estupidez; e a modéstia é a liberdade da
vaidade. Humildade-Orgulho; Modéstia-Vaidade” (Leloup, 2002: 34).
O homem humilde aceita suas próprias limitações, se aceita como é e olha para
os outros como eles são: “Humilde, ainda quis se forçar a aceitar também isto:
desconhecê-los” (ME, p. 333). É necessária muita humildade para uma pessoa
reconhecer suas carências e seus medos como assim o fez Ermelinda, ou para
reconhecer sua irmandade na condição de um leproso e beijá-lo, como aconteceu com
Ana do conto “Amor”.
Ser humilde é aceitar também sua própria grandeza sem ser arrogante, como
G.H, que, depois de um mergulho em si mesma, reconhece sua humanidade numa
barata e Martim quando, no curral, percebe e aceita a urgência que tem de ter prazeres
com uma mulher e assume que “mulher era o próprio corpo do homem” (ME, p. 108)
ou quando, “a seu modo, ele assumira o seu crime e sentia-se um homem inteiro, alto,
sereno” (ME, p. 131).
Talvez no curral ele tenha chegado próximo ao estado de graça alcançado por
Pequena Flor, porque se, por um lado, nesse estado ele reconhece sua grandeza, por
outro, reconhece sua fragilidade, fugacidade e simplicidade de ser-no-mundo. Depois do
estado de graça, uma pessoa se melhor, admite certas coisas, sentidos ao “por
que” de sua vida e tem mais clareza de “para quem” ele vive. O homem se torna mais
humilde.
É assim que, nos contos e romances de Clarice, encontramos personagens que
vivenciam a ignorância com “esplendidez”, como um deus que, por amor, expõe seu
coração. Encontramos seres humanos vivendo de forma plena e profunda graças à
aceitação de si e à espontaneidade do seu coração.
Até chegar a esse ponto, Martim havia passado por experiências fundamentais
para sua reorganização subjetiva, sua reconstrução humana. Como afirma o narrador de
A maçã no escuro, as pedras abriram seu coração de pedra, os bichos abriram seu
segredo de carne e os homens não foram simplesmente ‘os outros’, mas um ‘nós’; o
mundo é um grande vislumbre que se reconhece quando se sonha com ele (ME, p. 221).
IMITAÇÃO
Na segunda parte de A maçã no escuro, Martim se faz a pergunta: “Que é que
um homem faz?”
O leitor que deseja encontrar uma resposta para essa questão teque perceber a
vida e trajetória completa do personagem. Na primeira parte dessa narrativa, se o leitor
ficar bastante atento, encontrará algumas pistas ou rastros deixados por Martim em
busca de resposta para sua questão. O leitor não pode caminhar em direção inversa à de
Martim.
“Que é que um homem faz?”
Ao se fazer essa pergunta, o personagem mostra que não conhece plenamente
sua condição. Reconhece-se apenas como um ser ininteligível, carente de uma resposta
de si: “Como o ser humano fez um dia uma pergunta sobre si mesmo, tornou-se o mais
ininteligível dos seres vivos” (OED, p. 113). Com esse questionamento, ele quer saber o
que é comum ao gênero humano e a ele mesmo, pois como afirmou o narrador do conto
“As águas do mar”, “É fatal não se conhecer” (OED, p. 114); quer, ainda, saber o que
torna um homem semelhantemente diferente de outros, qual é a marca inconfundível,
universal, do humano.
Quem faz uma pergunta a si mesmo se reconhece com necessidades, incompleto,
carente. Até mesmo para se fazer uma pergunta é necessário um certo grau de
consciência, porque exige muito do sujeito inquiridor. Era por isso que Macabéa jamais
se perguntou sobre si mesma: ela é uma moça que
não se conhece senão através de ir vivendo à toa. Se tivesse a tolice de se
perguntar ‘quem sou eu?’ cairia estatelada e em cheio no chão. É que ‘quem
sou eu?’ provoca necessidade. E como satisfazer a necessidade? Quem se
indaga é incompleto (HE, p. 15).
Afastado de sua antiga vida, Martim “parecia procurar um argumento que o
protegesse. Precisa defender o que, com enorme coragem, conquistara há duas
semanas”: deixado de ser inteligente (ME, p. 33). Foi no auge da “sua estupidez” - nas
palavras de Clarice - que ele encontrou o que a intelectualidade nunca lhe proporcionou:
liberdade, felicidade e “por descuido até prazer tivera” (ME, p. 33).
O argumento capaz de protegê-lo, seu truque para se despir da culpa, era admitir
que sua vida inteira tinha sido uma imitação da vida de outros.
imitei? Mas sim! Pois se, imitando o que seria ganhar o primeiro lugar no
concurso de estatística, ele ganhara o primeiro lugar no concurso de estatística!
Na verdade, concluiu então muito interessado, apenas imitara a inteligência,
com aquela falta essencial de respeito que faz com que uma pessoa imite. E com
ele, milhões de homens que copiavam com esforço a idéia que se fazia de um
homem, ao lado de milhares de mulheres que copiavam atentas a idéia que se
fazia de mulher e milhares de pessoas de boa vontade copiavam com esforço
sobre-humano a própria cara e a idéia de existir; sem falar na concentração
angustiada com que se imitavam atos de bondade ou de maldade (ME, p. 34).
Em sua vida anterior ao crime, Martim usa a imitação como forma de integração
social, mas agora, ao relatar a experiência desse jeito, assume a imitação como
estratégia de autodefesa, pois quer se livrar de sua vida passada que sempre fora
associada à inteligência, à racionalidade, a um homem de cultura; vida não autêntica,
cheia de obrigações e mimetismos.
Ao olhar para seu passado, admite, assim, que nunca tinha sido de fato
inteligente, pois menos inteligência em repetir o que os outros fazem, do que na
inovação, criação e transgressão das normas do “velho sistema de inutilmente pensar”
(ME, p. 33), sistema que transformava o pensamento em algo prático, objetivo,
numérico. Nesse momento da narrativa, o personagem acredita que “se conseguisse se
provar que nunca tinha sido inteligente, então se revelaria também que seu passado fora
outro, e se revelaria que alguma coisa no fundo dele próprio sempre fora inteiro e
sólido” (ME, p. 33). Foi mais do que uma estratégia e menos do que um sacrifício
admitir isso: ‘na verdade apenas imitei a inteligência assim como poderia nadar como
um peixe sem o ser’ (ME, p. 34). Somente muito tempo depois, esse homem entende
realmente a imitação:
Alguém tinha que se sacrificar, eu quis simbolizar o meu próprio sofrimento! Eu
me sacrifiquei! eu quis o símbolo porque o símbolo é a verdadeira realidade e
nossa vida é que é simbólica ao símbolo, assim como macaqueamos a nossa
própria natureza e procuramos nos copiar! Agora entendo a imitação: é um
sacrifício! eu me sacrifiquei! disse ele para Deus (...) (ME, p. 223).
Como estatístico, Martim passou a vida inteira imitando a vida que um homem
normal poderia viver.
Fenômeno não restrito apenas à dimensão humana, a imitação também é comum
entre algumas espécies de animais. Em O paradigma perdido: a natureza humana,
Morin, ao falar da emergência duma protocultura, mostra algumas pequenas inovações
que, aos poucos, vão se integrando ao comportamento de uma ordem cultural maior. O
estudo contínuo dos macacos da ilha de Kyushu permitiu a ele detectar alguns
comportamentos inovadores que funcionam simultaneamente como integradores da
cultura e padronizadores de uma certa ordem estabelecida.
Um grupo de macacos que vivia na orla da floresta tinha o costume de se
alimentar de tubérculos que limpavam com a mão, depois de os terem
desenterrados; houve um jovem que se aproximou incidentalmente da costa e
deixou cair um tubérculo ao mar, donde o retirou, descobrindo assim que a
água do mar não economizava a limpeza manual como trazia ainda a
vantagem de temperar o fruto. Adquiriu o hábito de mergulhar no mar os seus
tubérculos, foi imitado por outros jovens, mas não pelos velhos; no entanto, o
hábito espalhou-se no decurso da geração seguinte (Morin, 1991: 43).
Essa experiência mostra que a origem da modificação de uma estrutura social
pode estar associada a um acontecimento aleatório. Morin na inovação o embrião
emergente de uma nova cultura e na imitação uma maneira de padronização daquilo que
inicialmente é inovador. A sociedade ou a cultura é tecida por padrões e desvios, por
repetições e imitações, inovações e transgressões; jogo de elementos contraditórios e
complementares.
A inevitável experiência de imitar opera, ainda, como construtora de segurança
psicológica do indivíduo, como um degrau de evolução subjetiva e interior do sujeito ou
como um pertencimento ao mundo societalmente construído. Em suas reflexões,
Eckhart nos oferece um certo número de pontos de referência que reforçam essa idéia.
Para ele a imitação funciona como “‘degraus’” de intensidade ou ritual de proximidade
da Única Presença. “ ‘O primeiro degrau do homem interior, do homem novo, como diz
Santo Augustinho, é aquele em que ele procura viver à imitação de homens bons e
santos, mas ainda segurando-se nas cadeiras ou nas paredes e ainda se nutre de leite’
(Eckhart apud Leloup, 2003: 86).
No exemplo dado por Morin, percebe-se que a inovação quando passa a ser
imitada torna-se padrão. Dessa forma, quando em sua antiga vida Martim imitou alguns
comportamentos humanos, queria a segurança de pertencer ao tipo padrão de um
homem ou “modelo” de homem. Não buscava o desvio, mas a repetição, pois dentro do
padrão, da norma, não poderia ser julgado pelos seus atos.
Viver dessa maneira é, por um lado, confortável e, por outro, extremamente
desconfortável: enquanto imitava, Martim sentia “alguma coisa velha e podre em algum
lugar inidentificável da casa”. “O desconforto é a única advertência de que se está
copiando, e nós nos escutamos atentos embaixo dos lençóis”, “e a gente dorme
inquieta” (ME, p. 34).
À semelhança de uma máscara, a imitação torna uma pessoa comum às outras, é
um jeito de se aproximar do coletivo anônimo, societário. Mas é, também, algo que
distancia o homem dele mesmo, daquilo que é intimamente:
Mas tão distanciados estamos pela imitação que aquilo que ouvimos nos vem
tão sem som como se fosse uma visão que fosse tão invisível como se estivesse
nas trevas que estas são tão compactas que mãos são inúteis (ME, p. 34).
De modo imperativo, Eckhart percebeu esse lado negativo da imitação. Para ele,
ser igual é mau e enganador. “Se eu me faço igual a outro homem e se encontro um
homem que me é igual, então esse homem se comporta como se fosse eu; e ele não o é e
engana” (Eckhart, 2006: 107-8). Um homem pode se anular no outro e este pode
distanciar um homem dele mesmo.
Recorrer à imitação é necessário, e despir-se dela também o é. Superá-la é
fundamental, porque, no caso de Martim, até mesmo sua compreensão era feita com a
linguagem alheia e de palavras dos outros. A inovação, portanto, poderia vir pela
desobediência: “Mas restava a desobediência. Então através do grande pulo de um
crime duas semanas ele se arrisca a não ter nenhuma garantia, e passara a não
compreender” (ME, p. 34).
O crime foi, na verdade, uma transgressão ou um “pulo necessário em pleno dia”
para que ele passasse das experiências da repetição às experiências da inovação, da
criatividade. O crime é o primeiro ato de Martim nessa direção. “... com esse crime
executara o seu primeiro ato de homem. Sim. Corajosamente fizera o que todo homem
tinha que fazer uma vez na vida: destruí-la. Para reconstruí-la em seus termos” (ME, p.
130).
Ambíguo e escorregadio, obscuro e confuso, esse homem é possuído por aquilo
que Edgard de Assis Carvalho reconhece como a marca fundamental da condição
humana: a experiência da repetição e a experiência da criatividade. Para Carvalho,
Vivemos atolados nas experiências da repetição e da criatividade.
Contraditórias e simultaneamente complementares, elas agem como pulsões
inconscientes que nos induzem de um lado aos confortos das regulações
prosaicas e, por outro, ao caos do imaginário poético no qual determinismo e
causalidade não têm vez (Carvalho, 2001: 11).
Ao exercitar sua natureza criativa, o ser humano explora novas possibilidades,
concebe sonhos possíveis, utopias realizáveis, algo que pode conduzi-lo a uma
reconciliação do ser com ele mesmo, com outros homens e com a natureza. Martim
descobre suas potencialidades criativas no seio da criatividade da Natureza ou, nas
palavras de Ilya Prigogine, ele desenvolve sua “criatividade humana no seio da
criatividade natural como um todo” (2001: 19).
O crime de Martim foi um ato de transgressão criativa, pois rompeu a ordem
societalmente constituída que diz: “não matarás”. Com esse ato, o personagem atesta
uma mudança radical em sua vida: deixa de viver as experiências da repetição para
habitar o reino da liberdade, inovação e criatividade. Nesse aspecto, não compreender o
que lhe acontecia era a demonstração máxima de sua liberdade, abandono total da forma
mimética de pensar e ser. Depois do crime, Martim busca uma melhor maneira de ser,
um outro jeito de viver e habitar o mundo.
A galinha
A personagem Laura também tentou recorrer à imitação. Não me refiro, aqui, a
Laura, galinha da história infantil A vida íntima de Laura, mas a Laura do conto “A
imitação da rosa”.
Escrita em 1974, A vida íntima de Laura, foi dedicada a Pedro e Paulo, filhos de
Clarice com Maury Gurgel Valente. Como mulher e escritora, ela sempre se interessou
pela vida íntima dos seres. Chegou a confessar que ela mesma só sabia ser íntima: “só
sei ser íntima. Aliás, eu sei em todas as circunstâncias ser íntima” (OED, p. 118).
Enraizada em uma experiência real da autora, nessa pequena história, ela expõe seu
entendimento sobre vida e intimidade e expressa a simpatia e afeto que sentia por
galinhas.
No dia 20 de outubro de 1976, em depoimento na sede do Museu da Imagem e
do Som do Rio de Janeiro, ela confessa a Affonso Romano de Sant’anna, João
Salgueiro e Marina Colasanti, que sempre se deu muito bem com vacas e galinhas. Ao
falar sobre “o pensamento de Laura Galinha” afirma:
Eu fiz porque galinha sempre me impressionou muito. Quando eu era pequena,
eu olhava muito para uma galinha, por muito tempo, e sabia imitar o bicar do
milho, imitar quando ela estava com doença e isso sempre me impressionou
tremendamente. Aliás, eu sou muito ligada a bicho, tremendamente. A vida de
uma galinha é oca... uma galinha é oca! (OE, p. 162).
Essa narrativa não deixa de ser uma homenagem a uma antiga galinha que ela
criou chamada Laura, nome que transportou para a história.
Clarice sabia que não é fácil falar de intimidade. Por um lado, porque a vida
íntima de um ser é sempre misteriosamente sedutora e complexa. Por outro, porque
“falar consiste em dizer tudo” (ME, p. 257) para tentar ser compreendido e tornar o
objeto da fala algo inteligível. Portanto, somente quem observa atentamente uma
galinha é capaz de saber relatar a vida íntima desse ser. Nesse aspecto, A vida íntima de
Laura parece ser um desdobramento do conto “Uma galinha”, inserido na coletânea
Laços de família, de 1960. A Marcos Rabelo, Clarice esclarece que escreveu esse conto
“entre meia hora ou quarenta minutos, o tempo de bater na máquina” (CI, p. 35). Em
ambos, assim como em A maçã no escuro, ela expressa “o gosto que sempre tivera por
bichos, uma das formas acessíveis de gente” (PNE, p. 70). Manifesta ainda seu
conhecimento sobre a vida das galinhas. Disse aos filhos: “Quando eu era do tamanho
de você ficava horas e horas olhando para as galinhas. Não sei por quê. Conheço tanto
as galinhas que podia nunca mais parar de contar” (VIL, s.p.).
Escrita em tom oral, a história mostra que Laura é “meio marrom, meio ruiva, e
de pescoço muito feio”, uma galinha que “pensa que pensa. Mas em geral não pensa
coisíssima nenhuma” (VIL, s.p.). Semelhante a Luís, o galo, ela é vaidosa, gosta de
estar bem-arrumada. Como acontece com outros personagens das narrativas clariceanas,
o mais importante dessa galinha não é sua aparência física nem seu nome, e sim a vida
que ela leva por dentro.
Diferentemente dos humanos, as galinhas “mostram o que está-aí para quem
tiver olhos de ver. Apenas o simples e terrível isto-mesmo, brilhando de ser o apenas-
ele original” (Pessanha, 1965: 66). Não usam disfarces, nem imitam ninguém, o que não
ocorre com os “seres humanos” que “são muito complicados por dentro. Eles até se
sentem obrigados a mentir”, afirma Laura, a galinha (VIL, s.p.).
A história investe na autenticidade do ser e traz um tom altamente educativo,
pois era intenção da escritora falar de algo rio e instrutivo para seus filhos. Clarice
sabia que a tomada de consciência não é algo espontâneo, mas fruto de um olhar para si
e para o outro, algo capaz de reconhecer que o outro também é um eu e vice-versa.
Um dos ensinamentos mais diretos é contra o preconceito racial. Num quintal
cheio de galinhas havia uma bem diferente: carijó. As outras não a discriminavam por
ser ela de outra raça. “Elas até parecem saber que para Deus não existem essas bobagens
de raça melhor ou pior” (VIL, s.p.).
A galinha Laura é uma outra forma de ser gente. A cor de suas penas ou seu jeito
de ser tem pouca importância dentro da narrativa. Com essa história, a autora convida o
leitor a um olhar complexo capaz de ver na superficialidade da pele humana ou nas
“penas” de uma galinha a profundidade e unidade de todos os seres, “como se tudo na
verdade fosse essencialmente feito de prazer” (ME, p. 91). Essa unidade consiste na
condição de cada coisa ser uma consigo mesma, algo que Ângela Pralini de Um sopro
de vida soube explicar: “existe a unidade dos seres pela qual cada coisa é uma consigo
mesma – consiste em si, adere a si mesma” (SV, p. 107).
Essa concepção de Clarice não está distante das recentes descobertas da
genética. Por meio destas, sabemos, hoje, que são nossos genes, essas porções de
cromossomos encerrados em nossas células, que determinam o que nós somos:
indivíduos da espécie humana. Cientistas como André Langaney, Jean Clottes, Jean
Guilaine e Dominique Simonnet ao falarem sobre A mais bela história do homem
(2002) ressaltam isso. Entre eles, André Langaney é enfático ao afirmar que
Os genes humanos não são, em absoluto, originais. A maior parte desses genes
é idêntica aos dos chimpanzés. Alguns são mesmo semelhantes aos da mosca ou
do plântano! Nós somos parentes muito próximos dos demais primatas, mas
também dos mamíferos e de todo o mundo vivo (Langaney, 2002: 18).
A genética mostra a diversidade e o tronco comum de todas as espécies. As
pesquisas e estudos de Edgar Morin abraçam e confirmam essas idéias. Para ele
,
dentre
todos os primatas vivos, o chimpanzé é o mais próximo do homem em todos os sentidos
(Morin, 1991: 44). Os chimpanzés e os gorilas estão muito próximos dos seres
humanos: 98% dos genes são idênticos. Os 2% de genes originais indicam uma
reorganização, com certeza muito importante, do patrimônio hereditário. É a pequena
diferença que faz a grande diferença (Morin, 2002: 31) em termos de entendimento
sobre a vida humana e animal..
Langaney lembra que, durante muito tempo, os antropólogos fizeram
classificações raciais a partir da cor da pele - os brancos, os negros, os amarelos - sem
perceber que a maior parte das populações do mundo possui toda gama de todos os
grupos sangüíneos. Há, sem dúvida, milhares de sistemas genéticos diferentes e uma
grande diversidade humana em aspecto físico, mas inexistem genes de brancos ou de
negros. Brancos e negros possuem os mesmos genes, pois o material genético de todos
os seres humanos sempre foi composto pelo mesmo estoque ancestral comum à nossa
espécie. As diferenças entre as pessoas não podem mais ser vista pela cor da pele
(Langaney, 2002: 52-8).
Clarice nunca acreditou em diferenças raciais. Por meio de sua escritura, mostra
que percebia as diferenças entre seres e coisas, mas sempre apostou na unidade que há
entre elas. Como Ângela Plalini de Um sopro de vida, ela queria
A mistura colorida, confusa e misteriosa da natureza. Que unidos vegetais e
algas, bactérias, invertebrados, peixes, anfíbios, répteis, aves, mamíferos
concluindo o homem com os seus segredos (SV, p. 39).
Em Outros escritos, especificamente em “Conversas C/P.” Clarice afirma:
“Todo mundo é um pouquinho diferente, e todo mundo também é igual” (OE, p. 81). O
conjunto de sua obra mostra que foi assim que ela construiu seus personagens: cada um
é um e cada um revela uma faceta de todos os outros; eles são, simultaneamente,
diferentes e iguais entre si. “Cada ser é um outro ser, indubitavelmente uno embora
quebradiço, impressões digitais únicas ad secula seculorum” (SV, p. 59).
Essa escritora sempre apostou nos mistérios do coração e na beleza dos gestos
humanos, investia esforços cognitivos para se aprofundar no interior de cada ser, pois
via nisso o lugar de enraizamento de todas as diferenças. Por meio de suas narrativas,
buscou reconciliar o homem consigo mesmo com o intento de reunir todos os homens.
Martim e G.H. são exemplos disso. Como disse Martim: “A natureza humana (...) é uma
só” (ME, p. 271). Era assim que buscava tocar a unidade dos homens no interior de cada
personagem e vice-versa. Como afirma Olga Borelli, ela “procurava nunca dissociar os
extremos: bem e mal, amor e ódio, divino e diabólico” (Borelli, 1981: 34).
Para Clarice, as qualidades de um ser ou de uma pessoa não residem na cor da
pele, nem na unidade genética dos indivíduos e sim em sua vida subjetiva: “o que vale
mesmo é ser bonito por dentro. Você tem beleza por dentro?” (VIL, s.p.)
55
.
Em seus esforços para reunir aquilo que estava aparentemente disperso, a
escritora faz seus personagens passarem pela conversão do olhar: do exterior em direção
ao interior de si para encontrar aí a ligação com os outros. O reconhecimento das
diferenças não anula os laços entre as pessoas, os pontos comuns que há entre elas.
“Toda pessoa se sente diferente. Por que não se unem mentalmente ligadas pela
diferença fazendo da diferença a diferença comum?” (Lispector apud Borelli, 1981: 49).
A vida íntima de Laura ensina aquilo que jamais deve ser esquecido: para além
das diferenças que separam os seres, há os pontos comuns que os unem. Os sentimentos,
as emoções e o amor devem unir aquilo que os olhos e a mente separam. A unidade das
diferenças deve se dar por dentro como se fosse um grande sentimento de irmanação e
liberdade.
A interioridade deixa de ser um esconderijo do sujeito narcísico e passa a ser o
lugar onde reside o segredo da existência do outro. Toda investigação de si próprio não
é válida senão quando o eu encontra em si as vozes e os apelos do Outro. Conhecer a si
próprio é uma etapa inicial e fundamental para o conhecimento da realidade
circundante. Ao praticar incansavelmente o “conhece-te a ti mesmo” socrático, com
vista a conquistar alguma liberdade interior por meio do domínio de si, os personagens
clariceanos acabam encontrando em si a imagem de seus semelhantes, tocam o humano
do humano presente em todos nós.
O conjunto da obra clariceana - assim como o apelo socrático - não pode ser
visto apenas como um vago convite à introspecção, mas como um caminho que se abre
à riqueza de uma interioridade comum a todos os homens, algo ocultado pelos excessos
de pragmatismos e fragmentações e pelos abusos da razão analítica, cartesiana. O
caminho para si, a busca por essa liberdade está marcada por mistérios e dores. “
55
Em 1952, usando pseudônimos como Tereza Quadros, Helen Palmer e Ilka Soares, Clarice Lispector
começou a escrever em alguns jornais do Rio de Janeiro “páginas femininas”, colunas dirigidas às
mulheres. Mesmo considerando que a beleza de uma pessoa estava em seu interior, nessas colunas ela
publica conselhos, receitas e segredos de beleza feminina, dicas sobre postura e comportamento da
mulher. Isso expressa seu caráter vaidoso e seu cuidado para com a aparência exterior das pessoas, o que
não diminui sua valorização do mundo interior ou da beleza de alma dos seres humanos. Em grande parte,
esses pequenos textos foram reunidos e publicados na coletânea Correio Feminino. Editora Rocco, 2006.
‘Libertar’” era uma palavra imensa, cheia de mistérios e dores” (BF, p. 12). Mas a
conquista dessa liberdade permite a eles deixarem acender neles a centelha de sua
transcendência, algo que guardam em comum com todos os outros homens. Longe de
afastar o sujeito do mundo circundante, a liberdade interior desliga-o das ilusões e
aparências enganosas sobre si mesmo e os outros.
A moça
A galinha Laura traz uma das marcas do ser humano, algo presente também na
outra Laura, a do conto “A imitação da rosa”: o recuo a seu interior e o gosto pela vida.
O papel da imitação na vida humana está mais fortemente presente nesse conto do que
naquela história infantil. Martim está mais próximo dessa Laura do que da outra, a
galinha.
Inserido em Laços de família, a narrativa desse conto foi inspirada em uma
notícia real de alguém que adoecera. Acontece aqui aquilo que já apontei alhures:
Clarice transforma fatos cotidianos em ficção literária, em outras palavras,
essa ficção tem claramente marcas auto/biográficas (a barra indica o corte
dado pela cultura, ou seja, a ficcionalização biográfica, que a linguagem da
qual se serve é um fato da cultura, uma ‘construção’ (...) Um ‘pedaço de
verdade histórica’ é trabalhado como ficção. A história que daí nasce é uma
história que pertence assim a dois campos, dois registros, o da ficção e o da
auto/biografia (Kanaan, 2002: 45).
Na crônica “Explicação inútil”, Clarice fala dos momentos que antecederam a
confecção desse conto:
Houve nesse dia rosas que me mandaram, e que reparti com uma amiga. Houve
essa constante na vida de todos, que é a rosa como flor. E houve tudo o mais
que não sei, e que é o caldo de cultura de qualquer história (PNE, p. 70).
muito em comum entre as duas Lauras. Ambas não eram inteligentes nem
boas, mas “tinham vida íntima e coisas a não contar” (LE, p. 41), “tinham também seus
sentimentos secretos” (LF, p. 45). Possuíam a delicadeza de sentimentos que ninguém
imaginaria que ambas tivessem. Laura, a galinha, “tem seus pensamentozinhos e
sentimentozinhos” (VIL, s.p.). Laura, a moça, chegou a surpreender Carlota, sua amiga,
com “a delicadeza de sentimentos” além de que “ninguém imaginaria que Laura tivesse
também suas ideiazinhas” (LF, p. 44).
Lenta e “com um ardor de burra ela [Laura, a moça] lera sem entender” (LF, p.
36) a “‘Imitação de Cristo’”. Para ela, Cristo era a grande tentação de um homem, mas
“sentira que quem imitasse Cristo estaria perdido perdido na luz, mas perigosamente
perdido” (LF, p. 36).
Como Macabéa, Laura nunca havia entendido “o que havia de bom em ser
gente”. Ela “nunca ambicionara senão ser a mulher de um homem” (LF, p37). Mesmo
sentindo-se exausta, passava as camisas de seu marido, Armando. Não sentia
mais aquele ponto vazio e acordado e horrivelmente maravilhoso dentro de si.
Não mais aquela terrível independência. Não mais a facilidade monstruosa e
simples de não dormir (...) que em sua discrição a fizera subitamente super-
humana em relação a um marido cansado e perplexo (LF, p. 38).
Armando era alto. Laura, baixa. “Ele tinha saúde graças a Deus, e ela castanha.
Ela castanha como obscuramente achava que uma esposa devia ser” (LF, p. 41). O rosto
de Laura
tinha uma graça doméstica, os cabelos eram presos com grampos atrás das
orelhas grandes e pálidas. Os olhos marrons, os cabelos marrons, a pele
morena e suave, tudo dava a seu rosto não muito moço um ar modesto de
mulher (LF, p. 35).
É um rosto de quem vive esperando uma confirmação do outro. Era muito
parecida com Ermelinda, pois esta “parecia estar sempre escondendo que compreendia.
E seu rosto se mantinha quase deliberadamente informe e suspenso à espera de uma
confirmação?” (ME, p. 69). “Era um rosto de quem fez da própria desistência uma arma
e um insulto para os outros” (ME, p. 68).
Fisicamente, Laura em nada se parece com Martim. Em termos de
comportamento, hábito, em muito se parece com ele. Ambos têm um gosto exagerado
pelo método. Planejam minuciosamente todas as coisas e atividades que farão.
Elaboram listas de coisas a serem feitas. Vivem “... com uma cautela diária em não
escorregar para um ato verdadeiro, e portanto incomparável, e portanto inimitável, e
portanto desconcertante” (ME, p. 34). Ele tenta se encaixar no padrão de um homem
trabalhador. Ela se esforça para se adequar à imagem de mulher casada e dedicada.
Laura tenta impressionar Carlota. Martim quer o reconhecimento de Vitória, por isso fez
uma lista de instrumentos para seu trabalho que não passava de ‘uma pá, duas foices’”
(ME, p. 104).
Enquanto Vitória, para provocar Martim, lista atividades para ele executar,
Laura enumera as atividades que tem a fazer e, assim, cumprir o papel de boa esposa e
mulher exemplar.
Com seu gosto pelo método, (...) agora planejava arrumar a casa antes que a
empregada saísse de folga para que, uma vez Maria na rua, ela não precisasse
fazer mais nada, senão ) calmamente vestir-se; 2º) esperar Armando
pronta; 3º) o terceiro o que era? Pois é. Era isso mesmo o que faria. E poria o
vestido marrom com gola de renda creme. Com seu banho tomado (LF, p. 35).
“Ordeira e comum”, sempre atenta às normas cotidianas, tinha o devido
“cuidado para não importunar os outros” (LF, p. 41). “Se eu faço o que fazem outros,
dificilmente me poderiam criticar”. Essas palavras do filósofo oriental Chuang Tzu
(1995: 59-60) expressam bem o pensamento de Laura. Querer ser uma mulher perfeita,
ideal para os outros é algo que lhe conforto e a faz agir: “com familiaridade naquela
íntima riqueza da rotina” (LF, p. 40), mas não a deixa completamente feliz, pois não se
sente ela mesma. Ela é o contrário da personagem Ângela Pralini do conto “A partida do
trem”
56
, mulher que dizia: “Sou o que sou e não o que pensas que sou” (OED, p. 29).
Laura poderia dizer o inverso: sou o que pensas que sou e não sou o que sou. Poderia
afirmar, ainda, a mesma coisa que Ermelinda disse: “sou alguém que faz outra pessoa
me ver” (ME, p. 187), pois sua vida inteira foi uma representação do papel que os
outros esperavam dela. Essas duas mulheres não demonstravam gostar tanto de si
mesmas. O que Laura e Ermelinda não sabiam é que “para ela existir como pessoa,
dependia muito de seu gostar dela” (DM, p. 53).
“A imitação da rosa” e “A partida do tremrevelam um dos fundamentos da
vida cotidiana: de uma forma ou de outra, uma pessoa está sempre fazendo aquilo que
as outras esperam ou não que ela faça. Laura foi se construindo para os outros. Queria a
todo custo agradar o marido e impressionar sua amiga Carlota que a desprezava por
gostar tanto da rotina. Esta mulher é o oposto de Laura: moça ambiciosa, sorri com
56
Esse conto foi publicado inicialmente em 1974. A personagem Ângela Pralini que aparece nessa
narrativa, reaparece posteriormente no diálogo Autor/Ângela Pralini, diálogo que tece o livro Um sopro
de vida: pulsações, publicado postumamente, em 1978.
força, corajosa e, principalmente, original, o que tanto a impressionara. “... ao contrário
de Carlota, que fizera de seu lar algo parecido com ela própria, Laura tinha tal prazer em
fazer de sua casa uma coisa impessoal; de certo modo perfeita por ser impessoal” (LF,
p. 37).
Certo dia, de manhã cedo numa feira, ela comprara algumas “miúdas rosas
silvestres”. Colocou-as em um jarro na sala. De repente, ao olhá-las atentamente, abre
os olhos como se estivesse acordando de um cochilo e percebe que elas estão em sua
completa e tranqüila beleza: “nunca vi rosas tão bonitas”, “como são lindas, pensou
Laura, surpreendida” (LF, p. 43). Não foi simplesmente a beleza que a impressionou,
mas o fato de perceber na miudez das rosas a grandeza de se ser o que se é. Sentiu-se
constrangida, incomodada, perturbada com aquela extrema beleza, como se beleza não
fosse para ser admirada e desejada de perto. As rosas têm a perfeição que toda coisa
bela parece ter.
Depois de passar o momento de estranhamento, constrangimento e perturbação,
Laura tem a idéia de pedir a Maria, sua empregada, para ir deixar as rosas a Carlota,
numa tentativa de ser admirada por esse gesto, pois “dar as rosas era tão bonito como as
próprias rosas” (LF, p. 44).
Em seu vago entendimento, sabia que a beleza foi feita para ser dada,
uma coisa bonita era para se dar ou para se receber, não apenas para se ter. E,
sobretudo, nunca para se ‘ser’. Sobretudo nunca se deveria ser a coisa bonita. À
coisa bonita faltava o gesto de dar. Nunca se devia ficar com uma coisa bonita,
assim, como que guardada dentro do silêncio perfeito do coração (LE, p. 47).
Era sabido que quem dá o que é belo se reveste da simplicidade e humildade que
a torna admirável. E ter o que admirar em si é uma forma do ser humano se gostar,
assim como é necessário se gostar para poder se dar a alguém. Laura tenta se comportar
como uma pessoa que está à procura da beleza de viver e percebe que a beleza das
coisas é sempre importante, mas a graciosidade dos gestos humanos é sempre
grandiosa.
a beleza das coisas e uma forma bela de olhá-las. Por meio da conversão do
olhar - de fora para dentro de si - os personagens clariceanos encontram em seu interior
essa forma de reconhecer a beleza e encanto das pequenas coisas ao seu redor. Laura
não é o melhor exemplo de personagem que encontra em seu interior essa beleza de ser.
Mesmo assim, sem esperar, surpreende-se com as rosas e consigo mesma.
Por nunca ter tido nada, num primeiro momento, sente-se seduzida a dar as rosas
à sua amiga. E nesse “querer dar, mais do que no se dar, algo se fizera: ela ganhara o
mínimo destino de que também o breve inseto precisa” (ME, p. 163). Era, portanto,
mais fácil dar e se livrar daquela perfeição que tanto a incomodava. Num segundo
momento, encantada com a beleza das rosas, acha mais fácil ficar com elas, pois
ninguém saberia de sua intenção em dá-las. Mesmo sabendo que a beleza acabaria
rápido, pois as rosas morreriam em breve, Laura as quer para si. Agora, dá-las exigia
“seu heróico sacrifício” (LF, p. 49).
Enquanto Laura é possuída pela “perfeição tentadora das rosas” (LF, p. 48),
Martim percebe a beleza que em toda tentação: “O caminho era duro e bonito; a
tentação era a beleza” (ME, p. 144). Falo “enquanto”, porque A maçã no escuro e os
contos de Laços de família foram escritos simultaneamente:
Depois de A cidade sitiada veio A maçã no escuro, que eu escrevi... Foi
engraçado, porque eu escrevi por duas vezes dois livros ao mesmo tempo. Laços
de família e A maçã no escuro foram escritos ao mesmo tempo. Eu ia para um
conto, escrevia e voltava para A maçã no escuro (OE, p. 150 destaques da
autora).
Diante da fugaz, tranqüila e perfeita beleza, Laura é possuída por “um conflito
interior nascido na própria mulher: sabia-se agora possuída de duas tendências opostas,
uma altruísta e outra egocentrista, tendências que a conduziam a caminhos diversos”
(OE, p. 50). No fundo de si mesma, está disposta a trocar o refinado gesto de dar pela
beleza da coisa possuída. Ela sabia que uma pessoa não muda de idéia de um momento
para outro. Mesmo assim, exigiu de si uma postura mais coerente e humana: “uma
pessoa tinha que ter coerência, seus pensamentos deviam ter congruência: se
espontaneamente resolvera cedê-las a Carlota, deveria manter a resolução de dá-las”
(LF, p. 48). Foi o que fez, mesmo desejando o contrário.
Quando Maria levou as rosas, Laura sentiu que dentro de si faltava uma rosa ou
algo igualmente belo. Diferentemente da galinha que nunca imitou ninguém, a moça
desse conto, “com os lábios secos, procurou um instante imitar por dentro de si as
rosas” (LF, p. 50). Ao contrário de Martim que imitara o jeito de ser de outros homens,
num primeiro momento Laura quer possuir as rosas, sua tranqüilidade e beleza. Num
segundo momento, ela quer ser as rosas. Como era impossível, tentou imitá-las por
dentro.
Um certo mal-estar se estabelece entre o ter e o ser. Ao olhar para as rosas,
percebe que elas nada têm, simplesmente são o que são e nisso reside sua beleza e
perfeição. Por não poder tê-las, Laura deseja sê-las: ser aquilo que jamais poderia
possuir. A beleza de ser o que se é, torna-se uma tentação e um desafio para ela e para
qualquer ser humano. Essa beleza não é diferente daquele tesouro que Sofia descobriu
em si mesma sem querer e sem imitar ninguém.
Laura identifica nas rosas qualidades semelhantes às de Cristo: são tranqüilas,
luminosas, perfeitas: “Aquela última instância: a flor. Aquele último aperfeiçoamento: a
luminosa tranqüilidade” (LF, p. 48).
Não tenta imitar a perfeição de Cristo, mas a das rosas. Quando Armando chega
do trabalho a encontra sentada no sofá. Ela sorri para ele
para ensinar-lhe docemente a confiar nela. (...) Para que ele enfim
desmanchasse a ansiosa expectativa do rosto, que sempre vinha misturada com
a infantil vitória de ter chegado a tempo de encontrá-la chatinha, boa e
diligente, e mulher sua. Ela ia sorrir para que de novo ele soubesse que nunca
mais haveria o perigo dele chegar tarde demais (LF, p. 51).
Quando Armando abriu a porta, “a luz inundou violeta a sala”. Sua mulher está
“sentada com as mãos cruzadas no colo, com a serenidade do vaga-lume que tem luz”
(LF, p. 52). Laura resistiu à tentação de ter as rosas, mas não resistiu à tentação de ser:
“No olhar castanho e inocente o embaraço vaidoso de não ter podido resistir” (LF, p.
52). Ela não percebe que a beleza das rosas diz que a beleza da vida está na forma
simples e autêntica de ser-no-mundo e de se relacionar com-o-outro. É essa beleza,
assim como a sabedoria, a bondade e a verdade que acrescentam ao mundo algo
extremamente humano.
Como disse alhures, Laura tentou imitar as rosas em sua perfeição e
“desabrochada e serena, ali estava” (LF, p. 53). “Ela se deu os privilégios da insensatez
sem ser insensata” (ME, p. 250). Passou de um extremo a outro da existência: do
excesso de racionalidade ao excesso de demência; está em casa e, ao mesmo tempo, em
outro lugar, perdida não no mundo, mas dentro de si. Encontra-se “luminosa”, mas
“inalcançável” em seu mundo. Está iluminada pela beleza do que aconteceu
instantes, mas perdida na luz que a ilumina, perigosamente perdida.
A necessidade de imitar surge nessa mulher quando ela quer se tornar perfeita
para os outros. O final de sua história mostra que a perfeição não é humana. Ela
fracassa. Quem se achar perfeito está perdido. Esta é a verdade que, aos poucos, Martim
vai descobrindo, pois seu crime também não havia sido perfeito. O ser humano está no
mundo para testemunhar sua beleza e sofrer o perigo de viver.
Como quase todos os personagens clariceanos, Martim busca uma verdade para
si por meio de suas perguntas: “Que é que um homem faz?”, “O que é que um homem
quer?”. Vitória sabia que “um dos meios mais fundos de se conhecer estava na maneira
como se respondia ao que se via” (ME, p. 259). Mas, ao se fazer essas perguntas,
Martim se como um mistério para si mesmo, torna-se um mistério dentro do qual
viaja. O homem se torna esse ser para quem cada interrogação lançada no ar
corresponde a falta de uma resposta que é trabalhada na escuridão de seu ser. O sentido
não reside na resposta, mas na busca por ela. A verdade não é dada a ninguém, mas a
sua busca é partilhada por todos nós.
O TRABALHO
Depois de ter se feito homem, Martim quer fazer coisas própria de um homem:
“que é que um homem faz?”.
Existe uma idéia bastante difundida de que por meio do trabalho, o homem
constrói a si próprio e seu lugar. O mundo seria, assim, tanto dado ao homem como
construído por ele para ele mesmo. È possível encontrar a pertinência dessa idéia e sua
confirmação em A maçã no escuro, mas, nesse romance, o trabalho assume outras
dimensões.
Poucas narrativas de Clarice enfatizam o trabalho como este romance. A crítica
literária quase nunca aborda essa questão na obra da escritora e quando resolve falar
dessa obra nunca aborda o trabalho de Martim como algo constitutivo e complementar a
sua reconstrução subjetiva, pessoal.
Esse homem havia passado por experiências profundas, mergulhos
introspectivos fundamentais para alcançar estados avançados da consciência, mas ele
não poderia ficar apenas nesse mergulho dentro de si mesmo, como um pinto que não
consegue sair do ovo. Nessas introspecções, Martim acessou zonas sentimentais,
emocionais, percepções e pensamentos. Trilhou um caminho de autoconhecimento que
é o primeiro pré-requisito para sua auto-realização. Mas para se tornar completo é
necessário também um mergulho na realidade circundante, pois é na dialogia do interior
com o exterior que o sujeito se constitui. É nesse movimento que o sujeito descobre o
conhecimento de si inserido no mundo e o conhecimento sobre o mundo encontra no
homem o lugar do seu enraizamento e sentido. Depois de sair do seu mergulho
introspectivo, Martim está apto a agir, a trabalhar, a fazer aquilo que um homem faz. A
vida contemplativa, introspectiva, segue um ritmo diferente da vida laboriosa, mas sem
contemplação e introspecção o trabalho se torna insuportável.
Todo o labor desse personagem acontece no campo, pois ele havia fugido da
cidade e se refugiado numa fazenda comandada por Vitória. “A base da fazenda era o
auto-controle daquela mulher, que Francisco [o empregado] desprezava como se
despreza o que não flui. Mas, dela, ele esperava a força, senão ele não teria por que
obedecê-la” (ME, p. 64). Enquanto Lucrécia de A cidade sitiada, sai do rural para morar
na emergente cidade de São Geraldo, Martim foge da cidade e vai para o campo. Nem
um nem outro buscava trabalho, mas Martim descobre que o labor é uma parte
importante de sua reconstrução, é algo quase inevitável.
“Trabalhar é uma sina” dizia Clarice em uma de suas crônicas (PNE, p. 61). É
uma condição do homem se fazer, de descobrir suas potencialidade, personalidade, de
se tornar aquilo que é. A condição humana é atravessada pelo labor. É tanto dada quanto
construída interna e externamente, psíquica, existencial e societalmente. Martim não
trabalha não por dinheiro, mas num processo de servidão voluntária na fazenda sob as
ordens de Vitória, a proprietária. “Ele olhava-a, escutava-a, e opunha uma resistência
muda. A mulher cada vez mais queria que a árvore fosse derrubada, como se a
repugnância que o homem demonstrava por esse trabalho a excitasse” (ME, p. 247).
A fazenda não é apenas o refúgio de Martim, mas o da própria Vitória, mulher
que veio para esse lugar porque queria uma vida simples, cheia de silêncio, ordem e
firmeza. Para ela, a fazenda era quase uma fuga ou refúgio de sua vida antiga, agitada.
É verdade que viver no campo viera dar uma paixão à sua pureza; é verdade
que nos primeiros meses ela fora tocada pela plenitude da preguiça com que as
plantas cresciam eretas, e que nos primeiros meses a natureza viera dar um
ardor à sua confusão. (...) Mas era também verdade que, por caminhos já
impossíveis de serem retraçados, ela terminara caindo na brutalidade
truculenta de uma pureza moral; e suas artérias se haviam enrijecido como as
de um juiz (ME, p. 276).
Curiosa e inquieta, interessada em tudo do mundo, Vitória afirma que estuda no
livro aberto da vida, mas, na verdade, ela é uma colecionadora de pensamentos. As
paisagens da fazenda expressam outros aspectos subjetivos da personalidade de sua
dona: a fazenda é áspera, está com ar de desprezo, quase abandonada, velha, sem vigor,
quase seca. O depósito abandonado parece uma dimensão da existência de Vitória, uma
parte de seu ser ou de sua vida que ela tenta afastar: lugar onde colecionava seus
pensamentos, memórias esquecidas e outras coisas que foi obrigada a silenciar dentro de
si. Ela carrega essa espécie de depósito imaginário no qual tranca aqueles assuntos sobre
os quais evita falar a não ser sem estado de extrema necessidade ou descontrole, como
aconteceu certa vez ao conversar com Ermelinda:
- Ermelinda, disse Vitória fechando os olhos bravamente, três anos você diz:
‘tenho medo de passarinhos’. Há três anos você diz: ‘que coisa esquisita quando
a árvore se mexe’. três anos eu ouço os seus silêncios. E não suporto mais
sua infância no leito (...). Moramos junto, está bem, você tinha que morar em
alguma parte; também sei que você uma vez cuidou de meu pai, mas também sei
que foram apenas os três dias de que precisei! Sei de tudo. Mas disse
claramente a você que que queria calma, queria Queria calma. Senão por
que é que eu não vendi o sítio quando titia morreu? Responda! Por que é que
não vendi e vim para cá, que nem conhecia isto aqui direito? E se tivesse
vendido, teria dinheiro na mão e continuaria a morar na cidade. É isso mesmo
acrescentou admirada – e eu teria ficado onde sempre vivi...
- Vitória despertou com súbita violência: o que esqueci de perguntar era se você
também queria calma quando veio para cá. Este, Ermelinda, é um lugar para
uma pessoa serena como eu. (...) três anos você me incomoda, tenho que lhe
dizer isto. E hoje lhe digo ainda mais: basta. Você altera minha vida com suas
com sua espera. É intolerável (ME, p. 77).
A chegada inesperada de Martim perturbou a ordem das coisas, alterou as
relações entre os residentes e ameaçou o poder gerencial da fazenda. Sentindo-se
ameaçada pelo estranho, Vitória tem a intenção de aproveitar o homem para “mil
tarefas”. Seu trabalho junto ao homem é sempre muito delicado, astucioso, algo que
exige sutileza e precisão, força de vontade e suavidade na expressão. Vitória procura
todos os tipos de afazeres para o homem se ocupar. De certa forma, ela tem o trabalho
de fazê-lo trabalhar. Seu medo é que Martim, por ser engenheiro, mandasse na fazenda.
Em conversa com Ermelinda ela confessa: “é um homem que veio para trabalhar, se não
prestar vai embora, e se ele pensa que por ser engenheiro vai mandar, está muito
enganado!” (ME, p. 76). O suposto saber do homem ameaça a mulher. Ela manda com
medo de ser mandada por ele. Faz de conta que sabe das coisas para se proteger do
suposto saber do engenheiro.
Entre ambos se estabelece uma relação complexa, conflituosa e silenciosa.
“Entre Martim e Vitória estabelecera-se uma muda relação mecanizada e em pleno
funcionamento: constituída da coincidência da mulher querer mandar e dele aquiescer
em obedecer” (ME, p. 94).
Vitória vive “armada” no duplo sentido da palavra. Armada com uma
“garrucha” e armada no sentido metafórico do termo, pois vive se protegendo de
Martim, esse estranho, misterioso e fascinante homem.
O trabalho do personagem deveria restituir a ordem das coisas como estavam
antes dele chegar a fazenda ou como são desejadas por Vitória. Ele exerce as atividades
impostas pela mulher para se sentir útil, mas, sobretudo, como um exercício humilde de
se aproximar daquilo que tanto queria: saber o que um homem faz.
É verdade que em A maçã no escuro, à primeira vista, o trabalho aparece como
um meio do personagem reconstruir a fazenda, o mundo, mas Martim não pensa que
“Trabalhar era um dever. ‘Um dever para com a sociedade’” (BF, p. 30), mas como um
meio dele rememorar seu passado, refazer-se como homem e superar a sensação de
inutilidade, confusão e falta de sentido na vida, algo tão comum ao ser humano quando
este vive no ócio.
O fato de Martim trabalhar no campo é uma estratégia de Clarice para fazer o
homem reencontrar os ritmos mais antigos, mais rudimentares da própria vida, aqueles
ritmos genuínos dos quais a vida humana precisa. Num ritmo lento, rudimentar, pesado,
o personagem encontra no trabalho rural aquilo que o homem moderno já perdeu:
enraizamento na própria vida, aprofundamento nele mesmo e abertura ao mundo
relacional com o outro; ganha um sentido prático para sua vida que até então era
somente abstrata. O trabalho garante uma identidade, um pertencimento, algo que pode
também ser denominado de dignidade, coisa que, mesmo sem ter consciência, Macabéa
chegou a tocar por meio do seu emprego: “E a moça ganhara uma dignidade: era enfim
datilografa” (HE, p. 15).
Tudo se passa como se o homem pudesse se tornar homem quando pratica
uma atividade, quando exerce um trabalho ou profissão. Somente muito tempo depois,
no final de sua trajetória, é que Martim tem consciência do que aconteceu com ele
quando começou a trabalhar: “ ‘Um homem sem vocação deveria ao menos ter a
vantagem de ser livre’, divagou Martim absorto. Mas todos o chamavam a exercer um
mister” (ME, p. 275).
O ser humano se apresenta como uma criatura que prefere fazer
alguma coisa do que ficar no ócio absoluto; ser de criatividade, de labor; ser que gosta
de se sentir útil aos outros e a si mesmo, algo que o trabalho favorece.
A atividade rural é complementar a tudo que o personagem vinha passando até
então. Por não exigir uma especialidade profissional, o labor na fazenda exige um
homem com potencialidades genéricas. Em sua antiga vida, ele tinha uma especialidade:
era engenheiro, profissional especializado em uma área do saber, trabalhador
intelectual. Naquela realidade, “se uma pessoa não se especializava, se perdia
facilmente, como se diz de médico. Era muito difícil ser global e no entanto manter a
forma” (ME, p. 169). Era difícil ser global, mas ele descobre no campo o caráter
genérico do trabalho, algo claramente exposto pelo próprio Martim diante das perguntas
de Vitória:
O que é que o senhor sabe fazer?
- Mais ou menos de tudo.
Estou perguntando sua profissão, disse um pouco áspera.
Ah.
(....)
- Sou engenheiro, minha senhora” (ME, p. 61).
Não tenho trabalho para engenheiro.
O homem voltou-se para ir embora e, sem interromper os passos, repetiu sem
nenhuma insistência:
- Faço de tudo (ME, p. 61-2).
Ele cava, limpa, poda e concerta coisas diversas. Este trabalho o deixa mais
próximo da terra, das plantas, dos animais e das pessoas. Torna-se fundamental para o
homem, porque é nesse contato direto que ele apreende certos saberes e redefine o que
quer: “em leve desespero de felicidade olhou o campo e as ervas e as moscas: e tudo se
fazia sozinho, tudo tinha a sabedoria do viver” (ME, p. 253). O campo se apresenta
como o lugar cheio de saberes sobre a vida e o ser, saberes perdidos pelo homem ao se
afastar da Natureza e ao erguer as vigas de sua existência em torno da racionalização e
do pragmatismo. No campo se encontra saberes da tradição diante dos quais o saber
especializado é quase inútil. A especialidade de Martim não o ajuda nas atividades
rurais. Agora, no campo, livre da postura de engenheiro, esse homem age sem querer
saber que a Natureza é irredutível a fórmulas matemáticas e que a natureza humana não
se explica exclusivamente pela razão. Ele não pensa na ordem das coisas, vivia-as,
trabalhando.
A fazenda parece ser a extensão de sua vida, paisagem externa daquilo que
internamente lhe acontece. Percebe-se que a natureza desse trabalho está aliada a
natureza do homem, pois esta é um constante exercício de redescoberta, o que torna o
homem um desafio e um trabalho para si mesmo.
Em A maçã no escuro, o labor braçal e rural contrapõe-se a atividade intelectual
que Martim desenvolvia antes de seu crime. Não deixa de ser também uma resposta ao
ritmo do tempo e do labor que ele levava inserido na sociedade das tecnologias
avançadas, resposta a atual sociedade dita do trabalho que consome o sujeito e
desvaloriza a vida, a subjetividade do homem.
O campo aparece como lugar a partir do qual se desenvolveria novos
pensamentos, palavras, valores e novas relações do homem com a Natureza, com ele
mesmo e com o outro. É nesse lugar que Martim define o que quer: “Oh Deus, não era
nada fácil para aquele homem exprimir o que queria. Ele queria isto: reconstruir” (ME,
p. 131).
Martim faz na fazenda o que deseja para sua vida íntima: quer passar sua vida a
limpo e refazer sua forma de viver, pensar, compreender, falar ou, em uma palavra,
reconstruir-se por dentro.
Maritm trabalhava – olhava e trabalhava, passando o mundo a limpo. Seu
pensamento rude continuava no entanto a se ancorar obstinadamente no que ele
considerava mais primário de onde ele gradualmente passaria a compreender
tudo, desde uma mulher que lhe perguntara durante anos ‘que horas são’ até o
sol que se erguia todos os dias e as pessoas então se levantavam da cama,
compreender a paciência dos outros, compreender porque uma criança era o
nosso investimento e a seta que disparamos. Seria isso que ele queria? não se
sabe propriamente. Ele por enquanto estava se moldando, e isso é sempre lento;
ele estava dando forma ao que ele era, a vida se fazendo era difícil como arte se
fazendo” (ME, p. 143).
Essa idéia de olhar e passar o mundo a limpo tem o mesmo sentido que Alberto
Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, expressou em uma de suas poesias:
Passar a limpo a Matéria
Repor no seu lugar as cousas que os homens desarrumaram
Por não perceberem para que serviam
Endireitar, como uma boa dona de casa da Realidade,
As cortinas nas janelas da Sensação
E os capachos às portas da Percepção
Varrer os quartos da observação
E limpar o pó das idéias simples...
Eis a minha vida, verso a verso (Pessoa, 2005: 89).
Olhar, trabalhar e passar o mundo a limpo constituem um único processo, ao
mesmo tempo, interno e externo por meio do qual o homem afina a arte de se fazer,
fazendo o mundo, algo que ocorre num processo dialógico constante. Martim está em
reconstrução interna e isto não obedece as ordens de Vitória, nem a programas
predeterminados. É um trabalho indireto, informal e imprevisível, movido pela intuição
de viver, pelo gosto de existir-no-mundo.
As tarefas de Martim ganham, portanto, configurações mais precisas, sentidos
mais claros quando ele começa a cuidar do curral e se torna realmente uma pessoa
humilde. Seu labor é tão humilde quanto o de José, pai de Cristo, que era um
carpinteiro, homem que trabalhava duro, modelando, construindo e reconstruindo
objetos. Antes, Martim se sentia abstrato demais: “sua alma se tornara abstrata, e seu
pensamento era abstrato: ele poderia pensar o que quisesse, e nada aconteceria. (...) Seu
próprio corpo era abstrato” (ME, p. 46).
No curral, a função ou objetivo de seu trabalho se evidencia: o homem deveria
se tornar objetivo.
Se a destruição primeira e grosseira ele a obtivera com o ato de cólera, o
trabalho mais delicado estava ainda por se fazer. E o trabalho delicado era
este: ser objetivo. (...) O que seria a experiência mais estranha para um homem.
Que Martim se lembrasse, nunca ouvira falar de um homem objetivo (ME, p,
137).
É preciso coragem para se aventurar na tentativa de concretização do que ele
pensa, sente e é. No primeiro dia de reconstrução, ele pediu de si apenas objetividade,
mas esta só vinha como “um vertiginoso relance” (ME, p. 139-40). Ele encontrou
fatores favoráveis e desfavoráveis para a sua penosa tarefa de se auto-construir:
Seu trabalho de construção da realidade, havia em desfavor de Martim a
novidade das coisas não serem mais óbvias; ele esbarrava a cada momento.
Contra si, também, havia a consciência do tempo precioso. Embora Martim
tivesse uma grande vantagem: se a vida era curta, os dias eram longos. Ainda a
seu favor ele tinha o fato de saber que devia andar em linha reta, pois seria
pouco prático perder o fio da meada. A seu favor tinha um perigo à espreita: é
que havia um gosto e uma beleza em uma pessoa se perder. A seu desfavor tinha
ainda o fato de entender pouco. Mas sobretudo a seu favor tinha o fato de que
não entender era o seu limpo ponto de partida. Esbem: isso era uma primeira
tentativa de reconstrução e com um limpo ponto de partida (ME, p. 140).
Sua missão seria recriar seu interior e, a partir deste, reconstruir o mundo de
forma objetiva.
Como se vê, esse primeiro dia de objetividade foi sonambúlico. Se ele procurava
passar do espírito de geometria para o de finesse, as coisas obstinadamente não
tinham uma finesse alcançável pela sua grande boca e pelas suas mãos pouco
hábeis. Foi, pois, grande esforço espiritual o seu (ME, p. 142).
Martim sabia que não era suficiente se tornar humano. Era necessário também
humanizar o mundo, pois como Vitória, ele pensou: ‘por Deus, se não criássemos um
mundo, este mundo apenas divino não nos receberia” (ME, p. 128). Ambíguo, esse
pensamento tem duplo sentido. Esse mundo inventado, criado, ao qual se referiu o
personagem, pode ser tanto exterior quanto interior, societal quanto psíquico, objetivo
quanto subjetivo. De uma forma ou de outra, o homem exerce sua natureza de criatura
criativa, animal criador: inventa o que não existe e recria a existência dada. O homem é
esse ser inacabado que nasce para se fazer: “um dia depois que nascemos nós nos
inventamos” (ME, p. 217). Como Morin, Clarice não concebe o ser humano ou a
humanidade como algo de dado, de fixo, mas sim como o produto de um devir sempre
muito ambivalente (Morin, Cyrulnik, 2004: 28).
O mundo e a vida humana são inacabados, estão em constante reconstruções. O
ser humano é um ser de criação e auto-criação. Há pessoas que desejam mudar o mundo
para, com isso, mudar sua forma de viver. Martim pega um descaminho: quer mudar sua
vida íntima para, assim, poder transformar o mundo, desafio de herói, esforço espiritual
de quem pretende se superar: “punha-se por dentro em estado espiritual de trabalho:
uma espécie de transe em que aprendera a cair quando precisava” (ME, p. 146).
Somente “quando o mundo estivesse refeito dentro dele, ele então saberia agir. E sua
ação não seria a ação abstrata do pensamento, mas a real” (ME, p. 139).
E mais:
‘Da reconstrução do mundo dentro de si, ele passaria à reconstrução da
Cidade, que era uma forma de viver e que ele repudiara com um assassinato;
era para isso que o tempo era curto’. ‘Acho que não sou nada tolo!’, pensou
fascinado (ME, p. 136).
De acordo com o Gênesis, tudo foi dado a Adão. Em A maçã no escuro, tudo
fora dado a Martim, mas tudo fora, por ele, desmontado. “Tudo lhe fora dado, sim. Mas
desmontado e aos pedaços. (...) Tudo era dele para o que quisesse fazer. No entanto a
própria liberdade o desamparava” (ME, p. 141). Por meio de um suposto crime, o
personagem desmonta um mundo, remontando-o em seus termos, procura se libertar do
trabalho, trabalhando, assim como quer superar seu passado, relembrando-o e
reconstruir sua vida, vivendo-a de outra forma. Martim é uma daquelas “Poucas pessoas
[que] teriam tido a oportunidade de reconstruir em seus próprios termos a existência”
(ME, p. 141).
Sem dicotomizar exterior e interior, Clarice põe seu personagem a exercitar um
labor, mas tudo que ele faz serve para sua feitura interna, para se tornar sujeito
linguajante. O personagem vai ganhando forma a cada reforma que ele faz na fazenda.
O labor de reconstrução da fazenda e o trabalho de feitura interna do personagem estão
amalgamados. São dois processos que ocorrem simultaneamente. Em vários momentos,
eles se confundem e se fundem um no outro.
O trabalho mostra a natureza do homem: um ser criando e se recriando a cada
criação sua. Nas entrelinhas do romance parece existir os alicerces invisíveis de uma
outra ordem societária fundada na desordem e reorganização da linguagem, pois é esta
que organiza e reorganiza a cultura e a sociedade. Portanto, o processo de criação e
auto-criação perpassa pela linguagem.
O trabalho desse homem consiste em erguer dentro de si alicerces subjetivos,
existenciais, cosmovisões, bases de uma nova linguagem por meio da qual passaria a
existir, expressar-se e reconstruir ou ressignificar o mundo. Seu labor assume uma
natureza especifica: aperfeiçoá-lo como pessoa, refazer sua personalidade.
Em sua obra, O trabalho como vida, Dietmar Kamper estabeleceu essa relação
entre trabalho e aperfeiçoamento da personalidade. Para esse pensador, o trabalho é uma
atividade que busca potencializar o ser humano:
o trabalho vendo o homem como uma obra que deve ser trabalhada e que é
aperfeiçoada em meio a esse trabalho. O trabalho é responsável pela criação do
novo homem e esse novo homem é um dos sonhos mais antigos da tradição
européia, seria a pedra filosofal, o ouro buscado pelos alquimistas, e seria,
também, a quintessência buscada pelos alquimistas que sempre foi
compreendida como um movimento ascendente na matéria, no qual os quatro
elementos acabam se aperfeiçoando, acabam ficando mais nobres, e o resultado
seria um processo de espiritualização que teria de pôr termo nesta
mencionada ascensão ao céu, esta despedida da Terra (Kamper, 1997: 52).
O processo de feitura interna de Martim consiste também em ele gostar de si e
do mundo, pois sem gostar de si próprio um homem se torna muito cruel para consigo e
para com o mundo, não consegue viver o amor sem o qual a vida humana parece bruta,
sem poesia. Sem desenvolver o amor próprio, Martim não poderia gostar de outras
pessoas, da vida e nem poderia amar Vitória, como dizia amá-la.
Quando o trabalho está ligado ao coração, ajuda o homem a ter consciência de si,
de seu verdadeiro ser; auxilia o sujeito a orientar seu fazer e seu dizer. Seu labor não
deixa de ser uma tentativa de criar palavras que o expresse, pois o homem é um animal
que precisa de palavras para compreender as coisas, para ser compreendido e se
compreender:
Porque acontece que ele queria a palavra. Enquanto fosse quem era estaria
preso à sua própria respiração à espera de que ela o unisse a si mesmo, vivendo
com essa palavra na ponta da língua, com a compreensão quase por se revelar,
nessa tensão que termina por se confundir com a vida, e que é ela própria,
acontece que ele queria a palavra. (...) Mas a palavra, a palavra ele ainda não a
tinha (ME, p. 166).
As palavras lhe dariam um outro entendimento de si e de seus objetivos: “se
conseguisse esse modo de compreender, ele mudaria os homens” (ME, p. 167). Para
Martim a mudança do mundo não viria pelos movimentos sociais ou pela luta de classe,
mas pela mudança de pensamento, pelas novas visões e pelas das palavras ou
ressignificação delas.
“Inquieto, ele se sentia culpado se não transformasse, pelo menos
com o pensamento, o mundo em que vivia” (ME, p. 145).
Como um dia o verbo se fez carne, a palavra assim como o pensamento - se
torna uma ação poderosa de criação e de transformação do homem e, portanto, da
cultura, da sociedade e da vida. Martim não é um pregador da palavra, mas acreditava
no poder que o verbo tem. “Arrastado pela insensatez a que podia levar o pensamento
lógico”, ele age como se estivesse “embebedado de si mesmo” (ME, p. 167). Para esse
homem, a palavra não é somente um meio de divulgar conhecimentos, mas é o próprio
conhecimento. Uma pessoa só conhece aquilo que as palavras expressam, só sabe aquilo
que as palavras dizem. Assim, o inventor a palavra precisa dela para ter acesso ao que
não conhece de si mesmo. Conhecer um novo verbo é conhecer mais uma dimensão de
si, e aprofundar-se em si é mergulhar no desconhecido que não tem palavras que o
expresse. A mudança no mundo viria pelo conhecimento e sua transformação
aconteceria de fato quanto ele se auto-conhecesse dentro do conhecimento que tem. Foi
assim que ele pensou:
Mesmo que ele falasse de seu ‘descortinar’ a uma pessoa apenas, esta pessoa
contaria a outra, como numa ‘numa cadeia de boa vontade’. Ou então pensou
ele desenvolto essa pessoa transformada pelo conhecimento seria percebida
por outra, e esta outra por outra, e assim por diante. (...) Pois que eram as
pessoas senão a conseqüência de um modo de compreender e de amar de
alguém já perdido no tempo? (ME, p. 168).
O homem é o animal que transformou seu grunhido em palavra e esta se tornou a
voz de um homem, voz que é sempre dirigida ao outro. Sua reconstrução tinha que
necessariamente recomeçar pelas palavras: “sua reconstrução tinha de começar pelas
próprias palavras, pois palavras eram a voz de um homem” (ME, p. 131). O dizer o e
fazer se tornam matérias que recebem conteúdo e forma que vêm do ser. O trabalho
interno de Martim consiste em adequar uma forma de fazer ao seu ser e este às palavras
que o expressam. Uma coisa se adequando a outra, porque “Ser era um fazer” (OED,
p. 31), e porque fazer é uma forma de se expressar, assim como falar é uma maneira de
ser gente. Campbell dizia que “Sua vida é fruto do seu fazer” (Campbell, 1990: 171).
Mas também é verdade que o fazer é fruto do seu ser. Ao criar, o homem se cria a si e o
mundo. Tudo o que ele faz, o faz humano.
Para Martim, falar é importante, mas a forma de expressar a palavra é
fundamental: “E agora pensava que antes de falar era essencial saber como é que se
fala” (ME, p. 253). Ele busca um jeito de dizer, pois a palavra diz mais quando encontra
a forma certa de ser dita. É na estética da fala, da palavra, que um homem se diferencia
de outro; é na forma de dizer que a poesia revela todo seu mistério e sedução. Ao buscar
uma forma de dizer, ele busca alcançar outras dimensões da realidade que somente a
palavra bem dita pode atingir. O desafio desse homem é unir conteúdo e forma, voz e
sentido, carne e verbo, razão e emoção, ação e reflexão, prosa e poesia.
Com tudo isso, Martim experimenta o que Clarice denomina de “trabalho de
viver”, porque a vida é uma construção lenta e contínua, dolorida e prazerosa. Em sua
luta pela vida, portanto, nesse trabalho de viver, o homem se reconstrói contra a
possibilidade do absurdo, da morte, contra o caos e do vazio. Nesse esforço, uma pessoa
transpira, chora e mancha de sangra a própria vida. Essa é a diferença entre quem
somente nasce, vive e morre daqueles que fazem do suor, das grimas e do sangue
derramado um caminho de salvação, de grandeza humana.
Fazer-se a si mesmo é uma dos trabalhos mais árduos da vida; labor de herói que
não tem medo de manchar a vida com seu próprio sangue sem o qual a vida não seria
realmente própria; desafio de escritor que se põe de corpo inteiro em cada palavra que
escreve para sentir o sabor de ser, do seu ser. O trabalho de se fazer exige a arte de se
expressar seja pela fala ou pela escrita.
Sem encontrar a palavra que tanto havia procurado, Martim sente necessidade de
escrever, essa outra forma de trabalho e criação.
ESCREVER
Sem encontrar a palavra que tanto havia procurado, Martim sente necessidade de
escrever, essa outra forma de trabalho e criação.
Esse homem havia tentando falar e fracassado. Portanto, até agora “nada se
passara dizível em palavras escritas ou faladas” (ALP, p. 15).
Certa noite, no escuro do deposito onde dorme, Martim acende uma lamparina,
põe os óculos, pega uma folha de papel e um lápis. Ele não confiava em palavras
faladas. “A linguagem falada mentia” (LE, p. 31). Oralizada, a palavra tem um sentido.
Escrita, tem outro. Ao escrever, o homem solta a palavra, retendo-a. Liberta de si o
verbo para que, uma vez escrito, possa habitar o outro, o leitor. No que diz, expõe-se ao
outro e, principalmente a si mesmo. Risco que Martim corre.
Tentado pela escrita, esse homem se senta na cama. Sente a necessidade de uma
reorientação dos sentidos e das ações, necessidade de um verbo que recolha aquilo que
foi espalhado, necessidade de uma palavra que fale, para que seu ser não seja engolido
pelo abismo. Mas se depara com um problema: não sabe escrever e “assim como
aprendera a calcular com números, dispôs-se a calcular com palavras” (ME, p. 170).
Segundo Clarice, para quem escreve seu “grande labor é a própria concepção”
(In: Bloch, 1989: 8). No curral, Martim tinha ampliado, mas não construído
completamente sua cosmovisão nem sua concepção; sua subjetividade não estava bem
formada. Houve, portanto, uma dissonância entre a intenção de escrever e o ato de fato.
Mesmo ausente, a palavra era a ação e a intenção daquele homem. Ele tem a intenção de
escrever, mas “não teve o desplante de rabiscar a primeira letra” (ME, p. 170). Desvia-
se da escrita. Acaba calculando. Ele não discerne que números e palavras não dizem as
mesmas coisas e nem obedecem a mesma gica, mesmo que ambos possam dialogar e
se complementarem em certas circunstâncias.
Martim se diante do desafio de enfrentar o fantasma da folha em branco,
fantasma com o qual a própria Clarice se deparava constantemente. Na crônica “como é
que se escreve?”, ela confessa que não se considerava escritora e insiste que “fora das
horas em que escrevo, não sei absolutamente escrever” (DM, p. 157). Diante da folha
em branco, perguntava-se: “Como é que se escreve? O que se diz? E como dizer? E
como começar? E que é que se faz com o papel em branco nos defrontando tranqüilo?
(DM, p. 156). Clarice respondia a essas dúvidas e indagações escrevendo porque, para
ela, a escrita acontece como um exercício de abertura e descoberta. Aprende-se a
escrever, escrevendo. E esse aprendizado está sujeito a erros que são essenciais, é
guiado pela coragem e parasitado pela preguiça, movido pela esperança e por
sentimentos mais fortes do que qualquer pensamento.
Se Clarice resolve o fantasma do papel em branco, escrevendo, Martim diante do
papel fica intimidado. Vê-se diante de um paradoxo constitutivo de seu ser: a linguagem
que pode libertá-lo é a mesma que o impede de se realizar, manifestar-se como humano.
Esse homem havia rejeitado a linguagem dos outros, mas não conseguiu criar uma
linguagem própria. Tudo que quisesse dizer ou escrever ainda se apresenta codificado
pela linguagem dos outros que ele negara. É interessante notar que mesmo sem saber
escrever, esse homem conta com as ferramentas próprias de todo o escritor: “tinha uma
experiência, tinha um lápis e um papel, tinha a intenção e o desejo ninguém nunca
teve mais que isto” (ME, p. 172).
Por menor que seja essa folha, encará-la é sempre um grande desafio. Diante do
papel em branco, o personagem sente “o vazio em que um homem se encontra quando
vai criar” (ME, p. 171). A folha em branco espelha o estado interno do personagem.
Esse papel representa o vazio no qual todas as palavras podem encontrar forma e
expressão; é o nada no qual tudo pode surgir, tomar forma, expressão, direção,
contorno; é o espaço de infinitas possibilidades enquanto o homem “era sua própria
impossibilidade” (ME, p. 174).
Martim tem consciência de que as palavras nos antecedem e nos ultrapassam.
Tentam-nos. Sentiu-se tentado por elas, mas sentiu também que sua única maneira de
salvação é se entregar a tentação: escrever. Na crônica “Escrever”, Clarice confessa que
o processo de escritura é uma maldição, mas ressalta que
é uma maldição, mas uma maldição que salva. (...) Salva a alma presa, salva a
pessoa que se sente inútil, salva o dia que se vive e que nunca se entende a
menos que se escreva. Escrever é procurar entender, é procurar reproduzir o
irreproduzível, é sentir até o último fim o sentimento que permaneceria apenas
vago e sufocador. Escrever é também abençoar uma vida que não foi abençoada
(DM, p. 134).
Martim procura entender o que lhe acontece. Pela escrita, deseja expressar os
sentimentos vagos e sufocantes que está vivendo, quer se unir apaixonadamente à
palavra, mesmo sabendo que jamais conseguirá se expressar completamente por meio
dela, mesmo sentindo que o verbo jamais conseguirá revelar os mistérios e a totalidade
de seu ser. Nesse momento, ele só tem um lápis, um pedaço de papel e o desejo de tocar
a palavra ausente, desejo de fisgar “a coisa” que é maior do que qualquer palavra, mas
que somente esta pode se aproximar. Martim é um reflexo da própria Clarice, pois esta
sempre quis atingir por meio da palavra alguma coisa que fosse e transmitisse
tranqüilidade ou simplesmente a verdade mais profunda existente no ser humano e nas
coisas (Lispector, 2004: 77).
De certa forma, é isso que Clarice confessa em entrevista a Pedro Bloch: “A
palavra até me repugna e cansa. A coisa sempre significa muito mais” (In: Bloch, 1989:
11 destaques da autora). Entre o sujeito que quer falar e a palavra não falada surge,
então, um abismo que só pode ser ultrapassado pela própria linguagem.
Martim ainda não pode se “salvar”. Primeiro porque sem se expressar, o homem
não pode atribuir sentido a si e ao outro, portanto é incapaz de se construir como pessoa.
Segundo, porque aquele abismo a ser superado, algo que pode acontecer com a
reconciliação entre o ser e a palavra. Foi assim que “como um velho que não aprendeu a
ler ele mediu a distância que o separava da palavra. E a distância que de repente o
separou de si mesmo” (ME, p. 172-3).
Para ocorrer essa reconciliação entre o ser a palavra, Martim necessita de técnica
e de humildade que a escrita requer. É importante esclarecer que Clarice emprega o
termo humildade em dois sentidos:
Quando falo em ‘humildade’, refiro-me à humildade no sentido cristão (como
ideal a poder ser alcançado ou não); refiro-me à humildade que vem da plena
consciência de se ser realmente incapaz. E refiro-me à humildade como técnica.
(...) Humildade como técnica é o seguinte: só se aproximando com humildade da
coisa é que ela não escapa totalmente. Descobri esse tipo de humildade (PNE,
p. 25).
O primeiro sentido de humildade foi tratado anteriormente. É o segundo tipo
que interessa agora. A dificuldade de Martim em escrever passa, também, pela falta
daquela arte de se aproximar da coisa de forma indireta, “sem querer querendo”.
Escrever é encontrar um modo de falar que melhor expresse o que se entende para, com
isso, ser entendido.
Falada ou escrita, a palavra é um instrumento que aproxima o homem daquilo
que ele é, de seu ser. Mas na escrita, o homem se expõe muito mais, pois quem escreve
é interpretável pela escrita. O homem que interpreta, torna-se um sujeito sujeitado a
interpretação dos outros. Por meio desse processo, o sujeito se revela ocultando-se, se
oculta, revelando-se. Sem conseguir transformar o que pensa e o que sente em palavras
escritas, Martim se pergunta: “Afinal que é que está me acontecendo?” (ME, p. 171).
Essa pergunta ecoa dentro do leitor de A maçã no escuro. Além dela, outras
sussurram: foi somente o fato dele não conseguir falar que o levou a tentar escrever?
Por que alguém sente necessidade de escrever?
Uma possível compreensão dessa questão é dada pela poetiza e romancista
Antonine Maillet que confessou:
escrevo porque tenho a impressão ou o sentimento de que o mundo é inacabado,
como se Deus, que criou o mundo em seis dias e que descansou no sétimo, não
tivesse tido tempo de fazer tudo. Acho o mundo pequeno demais, a vida
demasiada curta, a felicidade insuficiente. Escrevo para acabar o mundo, para
acrescentar à criação o oitavo dia (Maillet apud Reeves, 2002: 43).
Nessa concepção, o livro é o registro de vozes que sonham o mundo, vozes que,
tatuadas no silêncio do papel, reinventam a humanidade e reconstrói o homem a cada
instante. Homem e mundo se apresentam como inacabados. Por meio da escrita, Clarice
Lispector enfrenta a sensação de inacabamento, não diretamente do mundo, mas de si,
do ser: escrever é salvar a vida, dar a si o que lhe falta. “Eu escrevo como se fosse para
salvar a vida de alguém. Provavelmente a minha própria vida”, diz o autor de Um sopro
de vida (SV, p. 13).
A palavra escrita é, assim, a ferramenta de construção do dia seguinte e um dos
tijolos dos pilares do tempo e da existência humana. Ao recorrer à palavra escrita, o
homem se torna o artesão do oitavo dia. Cria algo a existir, como acontece com Martim
diante do papel branco: “E aquele homem de óculos de repente se sentiu singelamente
acanhado diante do papel branco como se sua tarefa não fosse apenas a de anotar o que
já existia mas de criar algo a existir” (ME, p. 171).
O homem traz em si a mesma sensação de inacabamento que enxerga no mundo
e escreve numa tentativa de revelar a si o que ninguém pode esclarecer. Ao escrever,
uma pessoa tenta inventar em si a parte dela e do mundo que permanecem, ao mesmo
tempo, inacabados, estranhos e inacessíveis a ela mesma. Assim, escrever é acrescentar
a si e ao mundo o que lhes falta, pois esse processo recria a criatura que o Criador deu
vida, refaz a realidade circundante. Nós, humanos, não somos o ponto final da criação,
somos mais uma voz da sinfonia das estrelas. Sempre em gestação, o homem se torna
um ser a-ser, como já falei anteriormente.
As palavras que buscamos nos inserem nelas mesmas. Somos parte do que
dizemos, das palavras que usamos para nos comunicarmos com o outro. Somos sujeitos
comunicantes, linguajantes. Portanto, “um homem, afinal, tem a obrigação de ser
responsável pelo que diz, de saber sobre o que fala, e de entender o que se passa com
ele” (ME, p. 181). É o que acontece com Martim: pela escrita, o homem tenta ampliar
sua visão de si, do outro, do mundo. Não é somente o livro que constrói o dia seguinte.
É a palavra que arquiteta o oitavo dia, ao homem o sonho do amanha, a alegria de
viver para além do agora-mesmo.
A necessidade de escrever sentida por Martim não é menos intensa do que
aquela que própria Clarice costumava sentir. Para essa escritora escrever era vital.
Como percebeu Kanaan, “A linguagem escrita desempenha para Clarice um papel
essencial, pelo qual pode agir sobre o mundo, criar, experimentar, gerando um modo
singular de subjetivação, marcado pela liberdade no uso que dela faz” (2002: 197).
Ela considerava que a escrita possibilita a emergência da subjetivação e ocorre o
processo de “pertencimento”, uma forma de tocar uma dimensão da existência que
somente a escrita é capaz, principalmente quando se escreve palavras vivas, pulsantes
como a veia onde o sangue corre.
Como Ermelinda que morria de medo de passar sua vida inteira sem ter a
oportunidade de dizer certas coisas e as coisas certas, Martim não pode passar a vida
inteira a espera da palavra exata para depois escrever. Para “quem tinha o tempo de uma
vida apenas, teria que condensar-se com arte e truques” (ME, p. 153). Feita de arte e de
truques, o processo de escrever busca a palavra capaz de captar o instante-já, capaz de
salvar um coração que está a beira do abismo.
Ao escrever, o homem precisa se despojar do que pesa em si, precisa não pensar.
Para conseguir isto, Martim necessita perder mais uma coisa para conseguir outra:
perder o sentido do que quer para a coisa se apresentar como verbo, como se o desafio
fosse escrever sem intenção predeterminada: “para começar a escrever era preciso
começar por se abster da força e apresentar-se à tarefa como quem nada quer” (ME, p.
170).
Não é somente a tomada de consciência e o desejo de anotar os acontecimentos
que despertam em Martim o desejo pela escrita. Sua tentativa de criar a palavra e uma
forma de expressá-la diz que, ao homem, não basta ter nascido, porque não é o
nascimento que o inclui no mundo humano. É a linguagem que o insere no mundo da
cultura, do outro, que o torna homem. Escrita ou falada, o surgimento da linguagem
marca o segundo nascimento da vida de uma pessoa. Em diálogo com Edgar Morin,
Boris Cyrulnik percebeu isto. Para ele, o homem nasce biologicamente na Natureza e,
depois, tem seu segundo nascimento com o domínio da palavra, e com esta marca-se a
condição de ser humano (Morin; Cyrulnik, 2004: 23).
Ao tentar escrever, o personagem quer passar sua vida a limpo, coisa que
somente mais tarde ele finalmente entendeu. Quer, sobretudo, fazer nascer em si a sua
humanidade, um novo ser subjetivo.
Se escrever é um exercício de liberdade, como pensava Clarice, Martim ainda
não é totalmente livre, pois não domina a técnica e não tem a sensibilidade de se
expressar pela escrita. Seus dias estavam cheios de coisas a serem relatadas, cheios de
pensamentos, descobertas, necessidades, mas nada era dizível em palavras escritas.
Escrever é, para ele, uma tentativa de usar palavras que em uma frase revele a verdade
de seu ser; é buscar pequenos fragmentos de verdade interiores que somente a escrita
pode fisgar, mesmo que jamais possa traduzir completamente o que se sente, se pensa,
se é.
Esse homem deseja falar, mas se emudece. Quer escrever, mas falha: “Assim,
pois, sentado, quieto, Martim falhara. O papel estava branco” (ME, p. 174). algo no
ser humano que é impossível de ser comunicado ao outro, e é disso de que somos feito e
é isso que marca nossa condição. Significa dizer que a vida não é relatável. O que se
vive é maior do que as palavras que expressam o vivido. A realidade faz um homem
falar, mas também se calar. Como percebeu Nunes, “o momento da vivência,
instantâneo, escapa à palavra que o expressa. Viver não é vivível: a narrativa, enlace
discursivo de significações, recria aquilo que se quis reproduzir” (Nunes, 1988:
XXVII).
Martim percebe que o verbo falhara quando ele quisera exprimir seu pensamento
e que seu pensamento falhara quando ele quisera exprimir sua realidade interior. Esse
homem vive o drama que Alberto Caeiro traduziu em uma de suas poesias dizendo:
“assim como falham as palavras quando queremos exprimir qualquer pensamento,
assim falham os pensamentos quando queremos pensar qualquer realidade, assim é a
essência da realidade o existir, não o ser pensada” (Pessoa, 2005: 114).
As palavras mostram seu poder de fazer o sujeito falar ou calar. Calado, naquela
clara escuridão do deposito, ele “de novo dispôs-se bravamente a começar e umedeceu
com a língua a ponta do lápis” (ME, p. 170). Esse gesto expressa a realidade do que ele
sentia: escrever é falar com a ponta dos dedos, é retirar da língua a palavra que se
comunica em silêncio ao outro que a lê. Mas Martim não era um realizador. tinha a
intenção e mesmo assim se sentia nu diante do papel e da palavra que ainda estava atrás
do pensamento, palavra que é a busca incessante do escritor.
É perceptível que, até aqui, a escrita se apresenta como uma busca, uma procura
incessante: “(...) escrever é procurar”, dizia Clarice (in: Borelli, p. 53). Tal busca marca
a trajetória de Martim, porque é uma das marcas da obra dessa autora. Borelli afirma
que, para Clarice, “sua ação na vida sempre correspondia a uma busca” (Borelli, 1988:
XXIII).
algo que se torna evidente quando se começa a escrever. Em uma
entrevista a Pedro Bloch, a escritora afirma: “existe um grande problema de busca, de
procura, com enormes estagnações ao mesmo tempo” (Lispector. In: Bloch, 1989: 10).
Nessa mesma entrevista ela esclarece: “não sei o que quero, e, quando descobrir, não
preciso mais. Acho que quero entender. Quando escrevo não é para me exprimir. No ato
de escrever, vou descobrindo, aprendendo” (In: Bloch, 1989: 10).
O literário e biográfico mais uma vez se fundem nos textos de Clarice. Destinada
a expressar o mundo e o inexpressivo da vida, a linguagem está fadada ao fracasso e o
sujeito está condenado a buscar o que está além de si. Sem jamais conseguir “a coisa”
que a linguagem pretende alcançar, o homem constrói poesia, arte, literatura, outros
meios de se aproximar da “coisa” que habita o desconhecido ou simplesmente da
“coisa” sem nome, da qual tanto falou Clarice. Isso demonstra que a condição humana é
uma eterna busca de sentido, de descoberta e auto-descoberta. O ato de escrever tenta
levar o sujeito ao desconhecido e é este desconhecido que pode elevar sua humanidade a
limites recém-descobertos. É isso que o conduz “a renovadas formas de saberes sobre o
mundo, a vida, o outro e a si mesmo. De outro modo, teríamos a estagnação e,
consequentemente, a morte” (Kanaan, 2002: 176).
Toda escrita é uma aposta, não somente na possibilidade de escrever e de dizer,
mas muito mais ainda na legitimidade de pronunciar a palavra ‘eu’, na legitimidade do
‘eu’ se dizer a si próprio e para o mundo. Martim já experimentou o mistério de querer e
agora está possuído por ele. Olhou novamente o papel vazio. Receoso como quem não
pode “tocar na rosa proibida do jardim” (ME, p. 175), esse homem tem medo de tocar
na palavra.
O leitor dessa narrativa não sabe a quem o personagem destinaria o que
pretendera escrever. Nesse aspecto, Martim e Clarice se tornam uma pessoa, pois
Clarice “quando escrevia não pensava num possível leitor e nem mesmo em si: ‘é a
coisa o que importa’” (Borelli, 1988: XXIII). Talvez tenha sido isto que fez o
personagem mais uma vez tentar escrever. “Tirou os óculos, esfregou os olhos
cansados, botou os óculos de novo. (...) ele se sentiu pronto para tarefa mais humilde.
Modesto, aplicado, míope, simplesmente anotou: ‘coisas que preciso fazer’” (ME, p.
176). O leito nada fica sabendo sobre o que o personagem precisa fazer. Ele não diz, o
que faz desse “não dito” o segredo desse homem, o desconhecido com o qual lida o
escritor.
O personagem vive o conflito entre o que deseja para si e a palavra que torna
esse desejo compreensivo para ele mesmo e para o outro, conflito entre razão e emoção.
O coração sente aquilo que a razão não sabe expressar. Por outro lado, embora saiba ser
impossível chegar à essência das coisas, a razão quer sempre ultrapassar o coração. É
nessas horas que a razão conhece seus limites, porque ela não pode tudo conhecer.
O exercício de conhecimento exige aquilo que um escritor deve exigir de si em
seus textos: humildade com as palavras, coisa que Martim percebe. Talvez tenha sido
isso que o fez mudar: antes ele queria anotar o que fazer. Agora, quer anotar o que
saber, porque é esse saber que possivelmente o orientará o seu fazer: “mais humilde
ainda o homem se tornou. Até mesmo uma frase tão modesta como ‘coisas que preciso
fazer’, pareceu-lhe ambiciosa demais. E num ato de contrição riscou-a. Escreveu menos
ainda: ‘Coisas que tentarei saber: número 1’” (ME, p. 176).
Nele existe a liberdade de uma fala se refazer; ele se a liberdade de
refazer seu pensamento e de rever sua visão com o intuito de se aproximar do que quer.
Mas não consegue ainda listar, identificar claramente, o que quer saber. “Mesmo assim
insistiu em continuar e, ao lado da ‘coisa número 1’ a tentar saber, escreveu ‘Aquilo’,
pois o que ele conseguia era aludir. E releu a frase” (ME, p. 176). Emocionado, achou a
frase perfeita, pois reconhecia nela tudo o que quisera dizer.
Martim não está equivocado quando pensa que escrever se torna, assim, um ato
de alusão:
‘não tem importância porque, se com essa frase eu pelo menos cheguei a sugerir
que a coisa é muito mais do que conseguir dizer, então na verdade eu fiz muito:
eu aludi!E então Martim ficou contente como um artista: a palavra ‘aquilo’
continha em si tudo o que ele não conseguia dizer! Escreveu então: Número 2:
como ligar ‘aquilo’ que eu souber com o estado social’” (ME, p. 177)
Nada mais ele acrescenta a lista. Esse homem perdera a prática de pensar,
esquecera todo vocabulário e não conseguia nada além de vagas palavras. O
personagem não se comporta como o escritor ou poeta que, na falta da palavra exata,
recorre ao verbo inexato para se fazer comunicante. Mas, como Clarice, Martim sabe a
arte de usar uma palavra para fisgar o que não é palavra, captar a parte de si que ele
desconhece e a parte da realidade que o envolve e o ultrapassa.
A Sra. Xavier, do conto “A procura de uma dignidade” também se deparou com
“aquilo” e “aquilo” não é algo entendível, mas sentido: é o desejo que não tem nome,
que não se entende. Desejo que pede somente aceitação, libertação, entrega de si ao
desconhecido que nos habita, desconhecido que guarda nossa fraqueza e grandeza. É
esse “aquilo” que permite a Sra. Xavier viver a “revolução do corpo” e que permite
Martim viver a parte de si incomunicável ao outro, mesmo que esteja na presença dele.
Esse homem está tentando construir a sua singularidade, sua grandeza numa
tentativa de reorganizar o mundo a partir disso. Mais uma vez ele fracassa quando quer
escrever, pois, como a Sra. Xavier, ele não sabe o que fazer com “aquilo”, seu desejo:
Martim não soube o que fazer de seu desejo e como aplicá-lo. De pensamento
em pensamento a maioria deles lhe escapando refletiu que se falhara na
criação do futuro, restava-lhe ainda o passado já criado. Num desejo intenso,
ele queria ter enfim alguma coisa na mão (ME, p. 179).
Marcado por essa condição própria do ser humano de não se realizar
completamente, o homem ri dolorosamente, por heroísmo. A expressão objetiva e
humilde de um pensamento é difícil, exige o esforço heróico de resistir àquilo que pode
consumi-lo. Martim precisa se fazer como herói de si mesmo.
VERDADE INVENTADA
Como o poeta que inventa “memórias da infância”
57
, muitas vezes percebemos
Martim tentando criar suas próprias memórias e recriar significativamente sua história.
Sua tentativa era ainda mais ousada: imaginariamente, ele quer criar um passado que lhe
enraizamento, história de vida e, ao mesmo tempo, o faça vislumbrar novas
perspectivas para seu futuro. Talvez ele soubesse daquilo que, em certo momento da
narrativa, o professor lhe falou: “o homem moderno não encontra mais ligação na
perene ligação dos antigos” (ME, p. 213). Hoje, as relações tornaram-se frágeis, a
realidade se caracteriza pela referencialidades e tudo isso abre uma “ferida grande
demais
58
” na subjetividade do sujeito.
Talvez seja por isso que Martim cria memórias, inventa realidades, cria-as para
reencontrar sua ligação com os antigos, com suas raízes ancestrais há muito esquecidas
pelos afazeres cotidianos, pelas convenções societárias que o apartavam do mundo e
dele mesmo; relata-as vagamente para não esquecê-las e, com isso, ao leitor a sua
história ficcionalmente verdadeira. Ele elabora e ao leitor sua “verdade inventada”, a
única possível. Essa verdade é a mesma que a narradora de Água Viva quer para si, a
única pertinente para ela: “Não quero ter a terrível limitação de quem vive apenas do
que é passível de fazer sentido. Eu não: quero é uma verdade inventada” (AV, p. 20).
Martim não quer viver apenas do que é passível de fazer sentido para ele e para
os outros. O homem tem essa capacidade de não viver somente dentro do limite do que
é passível de fazer sentido societariamente; ele é capaz de inventar até mesmo as
condições da própria invenção, é capaz de criar verdades para viver.
À semelhança da narradora de A paixão segundo G.H., o narrador e o próprio
protagonista de A maçã no escuro, criam, juntos, o que aconteceu, recriam a vida,
mesmo reconhecendo que a vida não é relatável. No ato de criar, Martim encontra a
“coisa”, e relatá-la é uma forma possível de se recriar com ela, tomar consciência do
que lhe aconteceu. Criar não é um exercício de mera imaginação e sim um arrisco de se
ter a realidade, como diz a narradora de A paixão segundo G.H. Era isso que ele queria
57
Refiro-me ao poeta brasileiro Manoel de Barros que escreveu dois livros de prosas poéticas intitulados,
respectivamente “Memórias inventadas: a primeira infância” (2003) e “Memórias inventadas: a segunda
infância”. São Paulo: Planeta (2006).
58
Refiro-me aqui, ao conto “A bela e a fera ou a ferida grande demais”, um dos últimos contos escritos
por Clarice Lispector antes de sua morte, 1977. O conto está na coletânea A bela e a fera, que reúne
também os primeiros contos da escritora, antes mesmo dela aparecer com seu romance de estréia.
com seu sermão às pedras e com sua tentativa de escrever. Tudo se passa como se o
desafio maior de um ser humano fosse reconstruir sua história, encontrar sua ligação
ancestral, reinventar a própria vida, dar-lhe sempre novos contornos, nuances e sentidos.
O leitor é cúmplice dessa verdade inventada, pois se o leitor não compartilha o
momento em que o personagem viveu o acontecimento, comunga o momento de sua
elaboração pela escrita. Embora o fato relatado tenha acontecido antes da escrita, é no
momento da escrita que ele ressurge e assume o primeiro plano na cena, sendo que o
narrador se dirige ao seu leitor no momento presente, momento em que escreve o texto
(Dinis, 2001: 87). Como é comum nas narrativas clariceanas, o narrador nunca tem
nome. Muitas vezes, ele assume a condição não de personagem, mas do personagem: as
mesmas inquietações, dúvidas e questionamentos. A busca de essência e de
rememoração do personagem se confunde com a busca de essência do narrador. Martim
quer o seu ser essencial, a mesma coisa que quer descobrir o narrador que tenta captar a
substância imutável do homem dentro das mutações constantes que o envolvem.
Não longe de Martim está a personagem G.H. que sente a necessidade de
transmitir lembranças do que foi vivido sem saber. Esses dois personagens mostram que
ao criar memórias e reinventar sua história, o ser humano se aproxima de sua natureza,
religa-se aquilo que ele é e ao que sempre foi.
Quem cria, inventa para si aquilo que quer ver. Talvez seja isso que esteja
presente nas palavras do poeta Manoel de Barros quando este afirma: “Tudo o que não
invento é falso” (Barros, 2003). Uma história de vida inventada é uma vida prenhe de
significados. Para esse poeta, a criação é um ato de verdade e a verdade é uma criação
humana. É exatamente por isso que Clarice afirma logo no início da narrativa de A hora
da estrela, seu último romance publicado em vida: “Se essa história não existe, passará
a existir. Pensar é um ato. Sentir é um fato. Os dois juntos sou eu que escrevo o que
estou escrevendo” (HE, p. 11). Escrever seria lembrar-se do que nunca existiu (DM, p
385), porque somente no momento da escritura é que as coisas aparecem de forma
consciente.
O exercício de criar é o mesmo de se recriar, por isso Martim e G.H, sentem
vontade de criar suas histórias e verdades. Eles se descobrem ou tomam consciências de
si por meio de cada coisa que inventam. A invenção cria a verdade que o homem
precisa para si e é essa verdade que o orienta, que o faz caminhar no escuro. Mesmo
sem nada dizer, Martim sabe que a vida de um homem é organizada em torno de
algumas verdades sem as quais tudo pareceria ilusão.
Ao tentar criar palavras, Martim tenta reinventar uma realidade menos
superficial do que a que ele vivia anteriormente, realidade que não o permitia construir
ligações profundas. Sua realidade anterior era fragmentária. Seu cotidiano racionalista e
técnico, típico de sua vida de engenheiro que não propiciava a contemplação da
totalidade do viver. Sua forma cotidiana de viver não lhe permitia a transcendência.
Analisando o romance Perto do coração selvagem, Pontieri afirma que, ao projetar seu
futuro e criar imaginariamente o que está por vir, Joana percebe que “o inexistente passa
a existir pelo poder criador do pensamento”. “Percebe também que o verdadeiro poder
da linguagem, falada ou escrita, é o de criação, não o de reprodução” (Portieri, 1999:
105).
No mundo da ficção, verdade e inverdade caminham abraçadas. Tudo é
igualmente falso, porque tudo é igualmente verdadeiro. Clarice criava vidas imaginárias
para tocar em realidades profundas. Martim rompe com seu passado, mas sente
necessidade de reconstruí-lo; para tanto ele desce até seu subsolo existencial. Cria
memórias para poder se apossar do que nunca teve com clareza: sua vida antiga, sua
ligação ancestral. Sua imaginação o faz penetrar nos labirintos obscuros da existência e
da vida.
Com sua fuga e sua tentativa de criação de outra linguagem, ele quer ultrapassar
os mecanicismos que o consumia, as leis e os condicionantes societários, mas deseja
também a sua vida outros significados e elaborar sonhos possíveis de um mundo
humanamente melhor, mas um mundo adequado aos seus desejos e sonhos, visões e
valores: uma nova realidade que estivesse em sintonia com sua verdade de ser-no-
mundo, um novo mundo reinventado por uma nova linguagem.
Por meio da escrita, a narradora (a própria Clarice), cria o acontecimento por
achar que o que foi vivido não é possível de ser fielmente relatado. Dos fatos fica o
que se sente, a repercussão dos mesmos nos indivíduos. O fato transforma-se, pois, em
sentimento, sensação, sentido, lembrança. Pensar seria, assim, um ato de compreender a
repercussão do fato na vida íntima da pessoa.
Por meio da narrativa, a escritora tenta captar a ressonância dos fatos na vida
íntima dos personagens. Na singularidade de um personagem ela toca naquilo que a
vida tem de mais geral. O mais profundo, verdadeiro e íntimo da vida se enraíza dentro
do mundo subjetivo e imaginário de cada homem. Martim é um exemplo disso: um
homem com fome de saber de si mesmo.
A FOME
Desde o Gênesis até os dias atuais, entre todos os animais, o homem é o único
que se sente tentado a comer da árvore do conhecimento, como se viver não fosse
suficiente e conhecer a vida e a si mesmo fosse fundamental. O homem é o único ser
vivo que não se contenta em somente viver. Quer conhecer sua própria vida, pensar
sobre sua condição, senti-la; quer conhecer o bem e o mal, o certo e o errado, a luz e a
escuridão, o pecado e a virtude; em uma palavra, ele é o único animal que quer saber o
que significa viver e morrer, mas quer também sentir a plenitude indizível de ser um ser
vivo.
Nas narrativas de Clarice Lispector, seus personagens se apresentam com fome
de saber de si, mais do que dos outros. Mas não desejam se alimentar somente do
conhecimento sobre a vida. Desejam comer a própria placenta da vida, nutrir-se do
próprio sangue que pulsa na veia, como aconteceu com Martim que ao perceber a sua
mão ferida chupou seu próprio sangue:
Até que uma vaga de grande luz desfez a tensão da expectativa, e Martim pôde
olhar a mão. Esta ardia, e o sangue porejava fino. Esquecido da perseguição,
muito interessado agora, seus lábios secos chuparam o arranhão com uma
avidez de carinho como uma pessoa que está só. (ME, p. 31).
Martim é tentado a conhecer a própria vida, vivendo-a intensamente. Viver
sangra e é com sangue que se ganha a vida. O homem quer viver conhecendo e quer
conhecer tudo isso vivendo.
Os personagens clariceanos têm essa fome de viver. A narradora de Água viva
come a própria placenta, pois queria vida sangrenta (AV, p. 38). Em Um sopro de vida,
Ângela Pralini sabia que “a vida é pouco a pouco. Hoje dou meio passo, depois de
amanha dou mais meio passo”. Para Martim é aos poucos que se respira e é aos poucos
que se vive (ME, p. 115). Em certo momento, Ângela se sente friorenta, humilhada e
faminta. Ao contrário de Martim, ela era impaciente: queria “engolir a vida de um
trago e depois talvez algo como morrer. Mas meu próprio sangue é lento” (SV, p. 135).
Lóri, protagonista de Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres, expressa essa
fome de modo intenso e radical:
com curiosidade meiga, envolvida pelo cheiro de jasmim, atenta à fome de
existir, e atenta à própria atenção, parecia estar comendo delicadamente viva o
que era muito seu. A fome de viver, meu Deus. Até que ponto ela ia na miséria
da necessidade: trocaria uma eternidade de depois da morte pela eternidade
enquanto estava viva (ALP, p. 140)
59
.
Depois disso, come uma fruta: não uma maçã e sim uma pêra.
Primeiramente, Clarice se refere a Deus, senhor da eternidade, portanto, senhor
do passado, do presente e do futuro. Em segundo lugar revela que a condição humana é
marcada pela necessidade, pela falta, pela carência. O homem não deseja mais a
eternidade do além-morte, mas a eternidade do aqui-vida. Penso que, como os
personagens de Clarice, Adão e Eva desejavam não somente o conhecimento, mas a
eternidade do “instante-já” em que viviam. Comeram o que era mortal e se
redescobriram vivos.
Em sua infância, quando morava em Recife, Clarice Lispector teve um aflitivo e
dramático encontro com a eternidade. Sua irmã juntou dinheiro e comprou um chiclete
para ela. Explicou-lhe que aquela espécie de bala nunca se acabava, durava a vida
inteira. Perplexa e boba com esse fato, a menina começou a chupar o docinho do
chiclete até acabar a doçura. Depois ficou mastigando e poderia mastigar para sempre.
Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava
gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie
de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito. Eu não quis
confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição.
Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar. Até que não suportei
mais, e, atravessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair
no chão de areia. (...) Eu estava envergonhada diante da bondade de minha
irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra da boca
por acaso. Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim (DM, p. 189-91).
A eternidade parece assustar o ser humano, ser um peso sobre a vida. A
eternidade dura demais para uma vida humanamente vivida. Se a vida é feita de ciclos e
metamorfoses, viver eternamente é fugir da vida como ela é, pois negaria a morte
necessária. São as pequenas morte que alimentam a vida, uma vida. A eternidade
pertence aos deuses e não aos humanos. O homem sabe que sua vida dura pouco tempo,
59
Essa mesma passagem está em um fragmento de crônica contido em A descoberta do mundo, chamado
“A fome”: “Meu Deus, até que ponto vou na miséria da necessidade: eu trocaria uma eternidade de depois
da morte pela eternidade enquanto estou viva” (DM, p. 134).
mas é capaz de se aprofundar nele mesmo como uma árvore que se enraíza no chão para
encontrar nas profundezas a seiva que fará seus galhos se abrirem aos céus. Vivendo
eternamente, não haveria a fome de viver intensamente. A fome busca sua satisfação
nos momentos que se vive. De instante em instante, a cada momento, o homem busca a
satisfação plena de seu ser, de sua condição. A fome de viver busca a fruta da vida que
deseja ser comida. A fome é humana. É ela que nos liga aos outros.
O homem tem fome de alimento, de vida e conhecimento. Muitas vezes, tenta
satisfazer a fome de viver se alimentando do conhecimento (como Adão e Eva), outras
vezes, tenta satisfazer sua fome de conhecimento se alimentando de novas e intensas
experiências de vida (como Martim que faz de si mesmo a grande experiência de
autoconhecimento).
O que nos mantêm vivos é essa “fome arcaica”, pois a comida é sempre
passageira, é sempre circunstancial, desfaz-se para dar lugar novamente ao que nunca
acaba: a própria vontade de comer, de sentir novos sabores/saberes, já que na etimologia
da palavra “saber” encontra-se a palavra “sabor”. No final do romance, ao repetir
desamparado que estava com fome, Martim “deveria agradecer a Deus” por isso, “pois a
necessidade o sustentava” (ME, p. 334). A fome de viver é o atestado que ainda se está
vivo; ela só acaba quando a morte chega. A vida se alimenta da fome de viver e existir.
Em A maçã no escuro a fome está ligada diretamente à árvore. O primeiro
encontro de Martim com um outro homem ocorre na fazendo. Ele vê Francisco, o
empregado da fazenda, comendo sob uma árvore. O cheiro da comida o fez desejar o
alimento. Mesmo tendo caminhado bastante, ele não queria a árvore para descansar,
mas desejou o alimento que sob ela Francisco comia. Como Eva tentada diante da
árvore do conhecimento, Martim, diante de uma árvore, do homem e do cheiro da
comida, se sente tentado, pela primeira vez:
perto dele, porém, estava o homem sentado no chão sob a árvore. O homem
comia, e o cheiro de comida fria nauseou Martim de desejo. Seu rosto se tornou
urgente, tímido e vil como quando uma cara implora. O cheiro voltou-lhe cru ao
nariz, ele quase vomitou de nojo, tão puro estava de comida. Mas seu corpo
ganhara um impulso novo, os passos difíceis o ultrapassaram e em breve ele
estava à frente do homem, olhando-o com minuciosa sofreguidão (ME, p.56).
A comida que parecia repugnante passa a ser palatável. O cheiro que
inicialmente lhe dera nojo se transforma em atração. “Faminto que estava, os cheiros o
excitavam como a um cachorro esperançoso” (ME, p. 58). O homem sentia fome de
comer, mas com ela veio também o desejo de conhecer o sabor da comida. Uma outra
fome surgiu nele: “desta vez ele quis, numa primeira fome inesperada, dar um nome”
(ME, p. 113). Esse foi o momento em que se sentiu tentado, pela segunda vez: sentiu
vontade de falar, tentado que foi pela palavra. Foi nesse momento que ele falou com
alguém desde que saiu fugido do hotel. Sob a árvore, o saber se apresenta como
sinônimo de sabor. Sentir o sabor da comida era conhecer a coisa pela boca, pelo
paladar, pelos sentidos, pois durante algum tempo Martim vinha exercitando e
reconhecendo a realidade circundante por meio de seus sentidos.
No Gênesis, Adão foi tentado pelo conhecimento e pela própria vida: o fruto foi
oferecido. Em A maçã no escuro o alimento foi desejado. Martim deseja o alimento que
Francisco saborosamente come sob a árvore. Francisco era formado pelo pão e pela
palavra, homem culturalizado, ser societário. Martim estava em formação, buscava uma
nova linguagem, mas desejava o pão que alimenta o homem, a comida, e, por enquanto,
ele só tinha o desejo e a própria fome que o constituía, que o fazia buscar sua satisfação.
A fome que pode matar um homem também pode fazê-lo viver. A fome de Martim não
foi completamente satisfeita com a comida.
Sua fome aumentou. Agora ela era sentida no coração. “Seu coração faminto
dominou desajeitado o vazio” (ME, p. 52). Não era saciada com comida, pois era fome
de afeto, de prazer, de sentimentos, de ser, fome existencial. Certa vez Martim sentiu
necessidade de se comunicar,
Sentou-se no bordo da cama, a cabeça feliz entre as mãos. Não sabia por onde
começar a pensar. Então lembrou-se de seu filho que um dia dissera na hora do
jantar: não quero esta comida! A mãe retrucara: que comida vo quer? O
menino terminara dizendo com o doloroso espanto da descoberta:
- Nenhuma!
Ele, Martim, então lhe dissera:
- É muito simples: se você não está com fome, não precisa comer.
Mas a criança começara a chorar:
- Não estou com fome, não estou com fome...
(...)
O menino respondera:
- Estou chorando porque não estou com fome. (ME, p. 123).
A criança não era compreendida, porque o que ela sentia não era fome de
alimento e sim uma outra ainda maior: fome de atenção, de afeto, de existência.
Para Clarice, é essa fome que diferencia o animal do humano, pois é ela que faz
um homem: “uma pessoa se mede pela sua fome – não existe outro modo de se
calcular” (ME, p. 124). Era por isso que Martim se alegrara:
sua alegria vinha de que ele estava com fome, e quando um homem tem fome ele
se alegra (...) E é verdade que na encosta a grande carência lhe renascera. Era
estranho que ele não tivesse comida mas que se rejubilasse com a fome. Com o
coração batendo de grande fome, Martim se deitou. Ouviu seu coração pedir, e
riu alto, bestial, desamparado (ME, p. 124).
Mesmo com fome sorri, mostra sua “capacidade de cruel feliz”, pois sorrir é ter
carinho por si mesmo e “não ter carinho por si mesmo era o começo de uma crueldade
para com tudo” (ME, p. 76).
A pergunta que a personagem Ângela Pralini faz é extremamente pertinente e
esclarecedora dessa passagem. Ângela se pergunta: “Mas por que esse desejo e fome de
prazer?” Ela mesma responde: “Porque o prazer é o máximo da veracidade de um ser. É
a única luta contra a morte (SV, p. 152). O sujeito que desperta para o prazer
reconhece nele a fonte de sua realização ou satisfação. A fome de viver expressa o
desejo de prazer e o prazer manifesta a natureza da vida do ser desejante. Assim como a
fome e a sede, o desejo acompanha toda a vida do homem. Ele “é o motor da vida
humana. À semelhança da fome, ele sempre ressurge depois que o objeto é digerido”
(Leloup, 2006: 94).
Clarice chegou a afirmar que “uma pessoa reconhece o que deseja” (ME, p. 53).
Acredito que o desejo revela o homem para si mesmo: diz o que a pessoa quer sentir,
revela sua carência, seu ser mais íntimo. O desejo pode fazer o sujeito se reconhecer
como ele é. Portanto, uma pessoa não reconhece apenas o que deseja, mas se reconhece
naquilo que é desejado. “O ponto essencial do desejo é o ponto essencial do sujeito, ou
seja, o próprio ser vivo” (Leloup, 2006: 87).
Como percebeu Olga de Sá, a grande carência, a grande fome é o que resta ao
narrador de A maçã no escuro, é o que resta ao homem, a Martim (2004: 91). Humilde e
deslumbrado, o homem declara algumas vezes que está com fome,
com tanta fome que preciso ser mais de um, preciso ser dois, dois? Não! três,
cinco, trinta, milhões; um é difícil de carregar, preciso de milhões de homens e
mulheres, e da tragédia da aleluia. ‘Não creio’: a grande carência renascera
(ME, p. 334).
Não é somente fome que o homem sente. A sede também o possui. A
experiência de chupar o sangue de sua própria mão cortada, significa que Martim sentia
a fome de viver, como já falei. Mas foi nesse exato momento, “que lhe despertou a sede,
o sangue na boca deu-lhe uma atitude guerreira que logo em seguida passou” (ME, p.
31). Mais à frente, continuando sua caminhada, Martim se senta numa pedra com um
passarinho na mão. Seus olhos ardiam e sua boca estava seca de sede (ME, p. 40-1).
A sede representa a abertura do homem para a vida espiritual, emocional, para o
outro e para o amor. Na hora em que Martim feriu sua mão, ele estava na presença de
um pássaro, ser vivo não humano, mas que despertava nele a fome de viver
livremente e o desejo de sentir profundamente a vida que ele levava por dentro. Mesmo
sem saber, Martim deseja, sente porque vive, pois “quem vive sabe, mesmo sem
saber que sabe” (HE, p. 12). A fome acompanha a sede. Temos uma e temos a outra.
Queremos viver e amar. Queremos a terra da vida e o mar das emoções profundas.
Somos poeira de terra que o sopro da vida nos empurra para o fundo do mar.
Os personagens clariceanos vivem em carne viva e todos desejam beber
diretamente da fonte de água viva. A experiência da sede e sua relação com o afeto, a
sensibilidade e a abertura para o outro e o amor acontece perfeitamente no conto “O
primeiro beijo”.
Durante uma excursão de ônibus, um rapaz conversava com sua manorada. Ela
não era a primeira mulher que ele beijara, dizia ele. Às vezes, ele ficava quieto, sem
quase pensar, apenas sentindo. Mas a concentração no sentir era difícil no meio da
euforia e gritalhada dos companheiros. Se, para algumas pessoas, estar no meio da
multidão é uma forma de se achar consigo mesmas, o rapaz, ao contrário, não se sente
ele mesmo no meio da multidão. Foi nesse meio que ele sentiu sede: “brincar com a
turma, falar bem alto, mais alto que o barulho do motor, rir, gritar, pensar, sentir, puxa
vida! Como deixava a garganta seca” (FC, p. 172-3).
A sede aumentou e se tornou maior do que ele próprio; invadiu todo o seu corpo.
Quando o ônibus parou, ele foi o primeiro a chegar ao chafariz de pedra. Como quem
“pega no escuro uma maçã sem deixá-la cair”, ele, de olhos fechados, colou sua boca no
orifício de onde jorrava a água. “O primeiro gole fresco desceu, escorrendo pelo peito
até a barriga” (FC, p. 173). Ele sentiu a vida voltando, encharcando seu interior arenoso
até saciá-lo.
Quando abriu seus olhos, surpreendeu-se com o que viu: percebeu diante de seus
olhos dois olhos de pedra, olhos de estátua a olhar para ele. “Viu que era estátua de
mulher e que era da boca da mulher que saía a água (...) A vida jorrava dessa boca, de
uma boca para outra” (FC, p. 174). Ao sentir o líquido da boca dessa mulher de pedra
que nada enxergava e nada sentia, o rapaz se sentiu renovado por dentro: despertou para
si, para seu próprio desejo. Ao contrário de Martim que por opção e coragem deixou a
vida racional, largou sua vida inteligente para viver a inocência primordial, o rapaz,
mesmo sem querer, perdeu a inocência ao tomar consciência do seu próprio desejo e de
sua condição de homem. Descortinou-se.
A estátua é símbolo da mulher, da sensibilidade e a água que de sua boca jorrava
é o líquido germinador da vida e do afeto. Ele estava encharcado pela vida, pois na boca
de uma estátua ele sentiu o que não tinha sentido no beijo de sua namorada: sentiu a
sensibilidade da pedra em seus lábios e a vida fluir da não vida; sentiu o lado sensível
da concretude do mundo e a volúpia do desejo em sua carne viva; mas também se sentiu
perturbado, atônito diante daquela mulher de pedra que estava nua.
Percebeu que uma parte de seu corpo, sempre antes relaxada, estava agora com
uma tensão agressiva, e isso nunca lhe tinha acontecido. Até que, vinda da
profundeza de seu ser, jorrou de uma fonte oculta nele a verdade. Que logo o
encheu de susto e logo também de um orgulho antes jamais sentido: ele...
Ele se tornara homem (FC, p. 174-5).
A água representa o manancial da subjetividade emergente. O rapaz sente um
susto do prazer ao beber da água do chafariz, descobriu sensações, mergulhou no
mundo profundo dos desejos. No conto “As águas do mundo”, a mulher
60
“com a
concha das mãos cheia de água, bebe em goles grandes, bons” (OEN, p. 115) a água do
mar. Tudo leva a crer que essa mulher tinha sede de vida profunda, sede de sentimentos
oceânicos, por isso ela não somente mergulhou no mar, mas bebeu de suas próprias
águas para sentir sua profundeza e mistérios dentro dela mesma. Assim como faltava a
essa mulher sentir “o mar por dentro como o líquido espesso de um homem” para ela se
sentir “toda igual a si mesma” (OEN, p. 115), assim acontecia com o rapaz do conto “O
primeiro beijo”. Mesmo que tivesse namorada e que tivesse beijado uma mulher,
ao beber dessa fonte de água viva, ele se redescobre, senti-se todo igual a ele mesmo,
sente-se homem porque seu desejo havia sido despertado, mesmo que tenha acontecido
60
Como nesse conto, em “O primeiro beijo”, o rapaz não tem nome próprio. Em muitas outras narrativas
de Clarice, os personagens se apresentam sem nomes. Em A maçã no escuro, poucos m nomes:
Martim, o protagonista, Vitória, a dona da fazenda, Ermelinda, sua prima, Francisco, o empregado. Os
outros, apenas entrevistos: o pai, o filho, o alemão, o professor, o prefeito, os policiais, a mulata, a menina
preta (Cf. Sá, 2004: 70).
diante de quem nada sentia: a estátua. Talvez a sede do rapaz fosse sede de amor e de
prazer, e sua namorada não era nenhuma fonte fluida que pudesse saciá-lo.
A sede do rapaz satisfez-se ao encontrar a fonte que, por está jorrando água,
desejava ser bebida. A fonte tem sede de ser bebida. A fome e a sede, juntas,
simbolizam a carência humana e o desejo humano, extremamente humano de ser. Uma
pergunta paira no ar: qual o desejo mais profundo de um homem? É o desejo de ser
homem, assegura Clarice.
Martim é movido por um desejo irresistível de ser. Para Nunes, esse desejo “está
na origem de todos os desejos e de todas as inquietações passionais, sem excetuar o
amor do Absoluto, que a inquietação mística exprime” (1976: 112). Talvez tenha sido
essa a tentação de Eva e de Adão e a mesma de Martim: desejaram ser. Queriam a
satisfação humana de ser “sendo o que é”, satisfação que sentiu o autor de Um sopro de
vida ao dizer: “satisfaço-me em ser”, pois “de certo tudo estar sendo o que é” (SV, p.
13).
Um conhecimento torna-se muito mais tentador quando fala sobre o próprio
sujeito, de sua vida, sua condição, seu estado de ser-no-mundo. Desde a narrativa
bíblica até hoje, a grande tentação do homem é a de “Ser”. Se uma pessoa quer ser
alguma coisa é porque ela ainda não o é. O homem é esse Ser que vive num contínuo
processo de descoberta, de reconstrução; por ser um Ser inacabado e imperfeito, vive
nesse eterno estar-sendo, o que transmite uma sensação de ainda não ser. A vida se
torna assim um ser-não-ser.
A satisfação de ser vem quando uma pessoa aceita o oposto de si mesma,
quando se rende ao seu desejo e adquire o conhecimento de sua condição de ser-no-
mundo. Nem Adão, nem Eva, nem Lóri, nem Martim queriam somente o conhecimento,
mas, principalmente, o autoconhecimento, pois sem se conhecerem, o mundo não faria
sentido para eles.
Esse conhecimento e autoconhecimento tornam o homem responsável por si
mesmo e por seus atos, pois é com essa forma de saber que o homem passa a se olhar a
partir de então e a olhar para o outro e para o mundo. Somente quando Martim tem
adquirido certa consciência de si é que ele passa “a pertencer a seus próprios passos. Ele
era dele mesmo” (ME, p. 118). “Martim estava muito satisfeito consigo mesmo” (ME,
p.119), assim como o autor de Um sopro de vida está satisfeito em ser ele próprio.
Sem se conhecer, uma pessoa não sabe quem é, o que deseja; não tem noção do
que fazer no mundo e com o que conhece. Muitos dos personagens clariceanos
carregam esse desejo de ser, pois ser é a primeira condição para poder se amar e amar o
outro. Martim, por exemplo, desde seu crime é movido por uma grande sede de
autoconhecimento e afeto, mas também por uma grande fome de viver ou de
experimentar sua própria vida.
A maçã no escuro termina onde poderia estar começando ou recomeçando, pois
mesmo depois de Martim ter conseguido uma certa consciência de si, ele ainda não
consegue saber exatamente de onde veio e como será sua vida daí em diante. Sabe
somente que ele tem uma grande fome e um “modo instável de pegar no escuro uma
maçã – sem que ela caia” (ME, p. 334).
É por meio desse “modo instável” ou por essa forma de viver não programada
que os personagens clariceanos tentam satisfazer sua fome. É nessas tentativas que
experimentam sua vida em sua profundidade e “esplendidez”. Movido por essa fome,
Martim quer ser ele mesmo, por isso quer a vida como ela é porque “viver era a
conquista máxima” (ME, p. 263).
A vida é experimentada no íntimo de cada um. Mede-se um homem pelo
tamanho de sua fome e pela coragem de se aventurar em busca de suas realizações. A
trajetória desse personagem mostra que um homem não vive somente do que é possível.
Vive também das impossibilidades. Como ele, “de algum modo cada um de nós oferecia
sua vida a uma impossibilidade” (ME, p. 317).
O ato heróico de Martim é apostar sua vida na aventura incerta, na
impossibilidade, vendo esta como um caminho de descoberta, aprendizagem e
realização. A aventura heróica desse homem é experimentar a impossibilidade de viver.
Ele não fez de sua vida uma acomodação e sim uma tentativa, mesmo que esta estivesse
sujeita ao fracasso. Um homem pode até não saber de onde vem nem para onde vai, mas
não deixa de querer experimentar sua vida. Como afirma Martim: “não se sabe de onde
se vem e não se sabe para onde se vai, mas que nós experimentamos, nós
experimentamos!” (ME, p. 193).
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OBRAS DE CLARICE LISPECTOR:
A maçã no escuro (romance). Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Água viva (ficção). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
A paixão segundo G. H. (romance). Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Um sopro de vida: pulsações (romance). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
A descoberta do mundo (crônicas). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Onde estivestes de noite (contos). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1994.
Quase de verdade (infantil). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
O mistério do coelho pensante (infantil). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
A vida íntima de Laura (infantil). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Para não esquecer (crônicas). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Laços de família (Contos). Rio de Janeiro; Rocco, 1998.
Outros escritos. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
A hora da estrela (romance). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
A via crucis do corpo (contos). Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
A bela e a fera (contos). Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1995.
Perto do coração selvagem (romance). Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres (romance). Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
O Lustre. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1996.
Como nasceram as estrelas: doze lendas brasileiras. (infantil). Rio de Janeiro: Rocco,
1999.
De corpo inteiro. (entrevistas). Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
Correio feminino. Rio de Janeiro: Rocco, 2006.
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