Nas narrativas clariceanas, a percepção do outro ocorre como um momento de
despertar, em um “instante-já” eruptivo de emoções, de amor. Em A maçã no escuro, A
paixão segundo G.H., Uma aprendizagem ou o livro dos prazeres ou nas formas breves
de narrativas – “Amor”, “A partida do trem”, “A legião estrangeira”, “Os desastres de
Sofia”, “Preciosidade”, “A menor mulher do mundo” – o ser desperta, simultaneamente,
para si, para o outro e para o amor num momento de “suas núpcias consigo mesmo”
(LE, p. 96). Isso acontece, epifanicamente, quando o ser vivencia o outro que é ele
mesmo e tem “A coragem de ser o outro que se é e de nascer do próprio parto, e de
largar no chão o corpo antigo” (LE, p. 96).
Sabemos que a criação do Universo é uma incógnita, um nó górdio indecifrado,
mas no reino da ficção é possível dizer que o Universo em “núpcias consigo mesmo”,
criou a vida, a Natureza, e esta gerou e criou o sapiens-demens que somos. Esse ser que,
como escreveu Edgard de Assis Carvalho, sabe saborear sentidos, paisagens,
bifurcações, cantos, amores, essa mistura encantadora, esse entrelaçamento complexo
de ruelas sombrias e tortuosas (2002: 04). O ser humano é uma fração da natureza.
Amando, sorrindo e cuidando tranquilamente da vida que carregava em seu
ventre, Pequena Flor era o clímax da Natureza, gozo da vida acontecendo ali-mesmo,
direto. Mesmo sem ter consciência do que sentia e de quem era, essa pequena pigmeu
vivenciava aquilo que Clarice chamou de “estado de graça”, algo difícil de ser
frequentemente alcançado pelos seres humanos.
Os animais entravam com mais freqüência na graça de existir do que os
humanos. Só que eles não sabiam, e os humanos percebiam. Os humanos tinham
obstáculos que não dificultavam a vida dos animais, como raciocínio, lógica,
compreensão. Enquanto que os animais tinham esplendidez daquilo que é direto
e se dirige direto (ALP, p. 133).
Como a personagem Ana, Pequena Flor “fazia obscuramente parte das raízes
negras e suaves do mundo” (L.F, p. 21), estava na remotidão da vida, vida que só é. Nos
humanos, esse estado de graça não pode durar muito tempo, pois seria a negação da
própria vida, o mesmo que viver apenas um lado da existência, pois a vida é feita de
luta, sofrimento, perplexidade e alegrias. Durando muito tempo, o estado de graça
transformaria a vida em algo muito rígida, não transitória, fixa, e a condição humana
perderia, assim, a fluidez, a fugacidade, a mutabilidade. Sendo permanente, o estado de
graça, a condição genérica do homem deixaria de transitar entre a rigidez de um cristal e