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FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ
UNIVERSIDADE DE FORTALEZA - UNIFOR
CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS - CCJ
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM DIREITO
CONSTITUCIONAL
A OBSERVÂNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO
MODELO CONSTITUCIONAL PÁTRIO E DO PRINCÍPIO DA
BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES JURÍDICO-PRIVADAS
Elizabeth Alecrim Soares Coelho
Fortaleza - CE
Dezembro, 2007
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ELIZABETH ALECRIM SOARES COELHO
A OBSERVÂNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO
MODELO CONSTITUCIONAL PÁTRIO E DO PRINCÍPIO DA
BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES JURÍDICO-PRIVADAS
Dissertação apresentada como exigência
parcial para a obtenção do grau de Mestre em
Direito Constitucional, sob a orientação do
Prof.ª Dr.ª Joyceane Bezerra de Menezes
Fortaleza – Ceará
2007
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ELIZABETH ALECRIM SOARES COELHO
A OBSERVÂNCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NO
MODELO CONSTITUCIONAL PÁTRIO E DO PRINCÍPIO DA
BOA-FÉ OBJETIVA NAS RELAÇÕES JURÍDICO-PRIVADAS
BANCA EXAMINADORA
___________________________________________________
Prof.ª Dr.ª Joyceane Bezerra de Menezes
UNIFOR
___________________________________________________
Prof.º Dr.º Rosendo de Freitas Amorim
UNIFOR
___________________________________________________
Prof.º Dr.º José Maria Arruda
UNIFOR
Dissertação aprovada em:
Aos meus pais, José Airton e Sônia, exemplos
de vida, força e honestidade, por me amarem a
sua maneira, incondicionalmente, por terem
me ensinado que a vida é feita de escolhas e
que, somente eu, sou responsável pelas
minhas, meus amores, minha eterna gratidão.
Ao meu marido Máximus, meu porto seguro,
que enlouqueceu comigo nos incansáveis
finais de semana, meu amor e minha vida.
Ao nosso filho Gabriel, alegria de nossa vida,
nosso amor e nosso orgulho.
Aos meus irmãos Paula, Helena, Luciana,
Adriana e José, irmãos que eu mesma teria
escolhido, meus amores.
Ao Pedro, Victor, Gabriela, Leonardo,
Roberta, Eduarda e Suiany, sobrinhos
queridos, meus amores.
AGRADECIMENTOS
A vida exige sempre de todos nós muita pressa: agendas repletas de compromissos,
todos inadiáveis, mil atividades, mil obrigações, alguns prazeres. Quase nem temos tempo
para desfrutar de momentos importantes e transcendentes, para interpretá-los, para aprender
com eles, para incorporá-los à nossa existência. Terminar este trabalho, após tão longa
caminhada, me faz pensar em todos aqueles que, de alguma forma, colaboraram para que eu
atingisse meu objetivo, para que eu não desistisse, para tornar, enfim, o fardo mais leve.
São pessoas sem as quais eu não teria chegado até aqui. Assim, meu mais sincero e
comovido agradecimento: a Deus, que esteve comigo em cada momento; a todos os meus
familiares, pelas as horas das quais abdiquei de sua companhia, por terem compreendido e me
estimulado em mais essa ‘loucura’ .
As minhas amigas e companheiras de trabalho, Yélita e Rafaellen, por terem suprido
minha falta, sempre torcendo por mim, e a todos os funcionários do Conselho Regional de
Contabilidade do Ceará, minha segunda casa, que sempre me apoiaram.
Aos meus amigos, em especial José Martônio Alves Coelho, que sempre acreditou que
eu seria capaz, mesmo quando eu mesma duvidava.
À Universidade de Fortaleza UNIFOR, sem a qual este sonho não se teria
concretizado.
A todos os Doutores, Professores do Curso de Mestrado, que me conduziram com
percuciência por caminhos ainda não percorridos, fazendo-se, desta forma, inesquecíveis.
Aos meus colegas de mestrado, pelo esforço comum, pela troca de experiências e
aprendizado, em especial a Auricélia Melo.
Aos colegas professores da UNIFOR, pela participação, interesse e força.
Aos meus alunos do Curso de Direito, Administração, Comércio Exterior e Ciências
Contábeis da UNIFOR, pelo incentivo, pela torcida, pelo muito que com eles aprendo e por
serem sempre um estímulo ao meu crescimento profissional;
À coordenadora do Curso de Mestrado em Direito da Universidade de Fortaleza
UNIFOR, Profa. Dra. Lília Sales, um agradecimento especial pelo apoio, pela compreensão,
pela sabedoria com que sempre conduziu o curso de Mestrado, cobrando, lembrando das
‘gralhas’, mas sem perder o bom-humor e o carinho para com todos.
Aos membros de minha Banca de Defesa, Prof. Dr. Rosendo Amorim, por sua grande
capacidade, sabedoria, empenho e boa vontade, e ao Prof. Dr. Tarcísio Leite, pela sua
disponibilidade em participar deste momento.
Intencionalmente, por fim, meus agradecimentos àquela que representou muito mais
que uma Professora, uma verdadeira mestra, que partilha com imenso prazer seus
conhecimentos, ama o que faz e demonstra isso a cada momento - minha orientadora, Profa.
Dra. Joyceanne Bezerra de Menezes, que, com firmeza, discernimento, elegância e sabedoria,
soube incentivar-me a dar o melhor de mim. Creia, Professora, jamais a esquecerei. Meus
respeitos e meu eterno obrigada.
6
“E a dignidade da vida fez-se direito. A própria
vida tornara-se conteúdo fundamental dos
ordenamentos jurídicos no Estado Moderno.
Percebe-se que não basta o viver-existir.
que se assegurar que a vida seja experimentada
em sua dimensão digna, entendida como
qualidade inerente à condição do homem em
sua aventura universal.”
Cármen Lúcia Antunes Rocha
“Há homens que lutam um dia e são bons;
Há outros que lutam um ano e são melhores;
Há os que lutam muitos anos e são muito bons;
Mas os que lutam toda a vida e estes são
imprescindíveis.”
Bertold Brecht
RESUMO
Pesquisa sobre a observância dos direitos fundamentais no modelo constitucional pátrio e do
princípio da boa-fé objetiva nas relações jurídico-privadas. Na concepção do paradigma
liberal, ainda na origem do constitucionalismo moderno, os direitos fundamentais foram
concebidos como direitos do homem em face do Estado, sobretudo no que diz respeito a sua
liberdade. Nos últimos tempos observou-se, todavia, um crescimento vertiginoso do poder de
outros setores da sociedade, nem sempre atentos à existência de uma carta de direitos e
garantias dos indivíduos, os quais acabam sendo menosprezados, ameaçados e até violados
em meio às relações jurídicas privadas. Nesse contexto, não como se sustentar a noção de
que os direitos fundamentais têm como único destinatário o Estado, ou melhor, não como
se sustentar a noção de que somente as relações indivíduo-Estado se desenvolvem sob a
proteção dos direitos fundamentais, pois mesmo aquelas que envolvem os indivíduos entre si,
quer individualmente, quer em grupos, também recebem a força irradiadora dos referidos
direitos. Discute-se se essa vinculação dos particulares aos direitos fundamentais dá-se de
forma direta e imediata ou de forma indireta, mediante a intermediação do legislador e do
juiz, nessa última hipótese, por meio da concretização das cláusulas gerais, que hoje são uma
técnica legislativa de uso corrente no Brasil e que foram amplamente utilizadas quando da
elaboração do novo Código Civil. A aplicação dos direitos fundamentais, sob o primado da
dignidade da pessoa humana, tornou-se um imperativo da releitura do sistema de normas do
direito privado e de sua renovação, com vistas a atender às novas demandas surgidas
diariamente na sociedade. O princípio da boa-fé objetiva e a aplicação dos direitos
fundamentais nas relações privadas inserem-se num processo de retomada da consciência
ética no Direito Civil, sobretudo no direito das obrigações, libertando-se do cunho
estritamente voluntarista e patrimonialista, objetivando a realização dos valores supremos
inseridos no Texto Constitucional. Assim, pretende-se demonstrar que a aplicação do
princípio da boa-fé objetiva significa uma releitura dos institutos insculpidos no Código Civil,
a partir da efetivação de seu significado, urdido no caso concreto e pela perspectiva do sujeito
da relação obrigacional.
Palavras-Chave: Boa-fé. Direitos humanos. Direitos fundamentais. Direito privado.
ABSTRACT
This research is about the observation of the fundamental rights in the constitutional patriotic
model and of the principle of the objective good faith in the juridical-private relations. At the
conception of the liberal paradigm, still at the origin of the modern constitutionalism, the
fundamental rights had been conceived as men’s rights in view of the State, especially about
their freedom. At the last times we observed, however, a vertiginous growth of the other
society sectors power, not always watching out for the existence of a document about rights
and individual guarantees, that are despised at last, threatened and even violated in the middle
of the private juridical relations. In this context, there is no way to support the basic grasp that
the fundamental rights have as only addressee the State, it means, there is no what support the
basic grasp that only the individual-state relations are developed under protection of the
fundamental rights, because even the ones that approach to the individuals each other,
individually or into groups they receive the power of this rights. We discuss if this vinculation
from the individual to the fundamental rights happens in the direct and immediate way or in a
indirect way, through the mediation of a legislator and a judge, at this last hypothesis, through
the carrying out of the general clauses, that today are legislative technique on current use in
Brazil being highly used since the elaboration of new Civil Code. The apply of the
fundamental rights under the primate-ship of human person dignity, because an imperative for
readjust of the rules at the private rights system and its renovation, to deal with new demands
that appears everyday at the society. The principle of the objective good faith and apply of the
fundamental rights at the private relations are related to process of the resume the ethical
conscience at the Civil Rights, especially about the obligation rights, beewg out of the aspect
strictly voluntary and related to patrimony, searching for carrying out the supreme valves
inside the constitutional text. So, we intend to demonstrate that the apply of the objective
good faith principle means a readjust of the institutes sculpted at the Civil Code, from the
carrying out of its meaning, up to the real case and by the subject perspective of the
compulsory relation.
KEY WORDS – 1. Good faith; 2. Human rights; 3. Fundamental rights; 4. Private rights.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO............................................................................................................12
1 ANÁLISE DOGMÁTICO-TEÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS......................17
1 ANÁLISE DOGMÁTICO-TEÓRICA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS..................17
1.2 A positivação dos direitos fundamentais......................................................................20
1.3 Algumas vertentes téoricas dos direitos fundamentais...................................................23
1.4 Teorias dos direitos fundamentais..................................................................................29
1.4.1 Teoria liberal......................................................................................................30
1.4.2 Teoria institucional..............................................................................................32
1.4.3 Teoria axiológica ou teoria dos valores dos direitos fundamentais.....................33
1.4.4 Teoria democrática funcional dos direitos fundamentais....................................36
1.4.5 Teoria do Estado Social........................................................................................37
1.5 Funções dos direitos fundamentais no constitucionalismo contemporâneo..................39
2 O ESTADO CONSTITUCIONAL E SUA RELAÇÃO COM OS DIREITOS
FUNDAMENTAIS...............................................................................................................42
2 O ESTADO CONSTITUCIONAL E SUA RELAÇÃO COM OS DIREITOS
FUNDAMENTAIS...................................................................................................................42
2.2 Surgimento e consolidação do estado nacional: o modelo liberal.................................43
2.3 O Estado social...............................................................................................................50
2.4 O Estado Democrático de Direito..................................................................................58
3 UMA VISÃO TEORÉTICA DA DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS...............................................................................................................63
3.1 UMA VISÃO TEORÉTICA DA DIMENSÃO OBJETIVA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS...................................................................................................................63
3.2 Ordem de valores e a Constituição.................................................................................66
3.3 A eficácia irradiante dos direitos fundamentais.............................................................70
3.4 A constitucionalização do direito privado......................................................................74
4 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS APLICADOS NAS RELAÇÕES INTERPRIVADAS:
ALGUNS ASPECTOS DOUTRINÁRIOS..........................................................................83
4 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS APLICADOS NAS RELAÇÕES INTERPRIVADAS:
ALGUNS ASPECTOS DOUTRINÁRIOS...............................................................................83
4.1 Prolegômenos.................................................................................................................83
4.2 Teoria da aplicação imediata dos direitos fundamentais nas relações interprivadas......90
4.3 Teoria da aplicação mediata dos direitos fundamentais nas relações interprivadas.....100
4.4 Argumentação de outras teorias...................................................................................104
4.5 Algumas considerações................................................................................................108
5 A BOA-FÉ OBJETIVA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
INTERPRIVADAS.............................................................................................................110
5.1 A BOA-FÉ OBJETIVA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES
INTERPRIVADAS.................................................................................................................110
5.2 As cláusulas abertas e a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares..............................................................................................................................112
5.3 A boa-fé subjetiva e suas considerações no Código Civil Brasileiro de 1916...........114
5.4 Evolução histórica da boa-fé objetiva..........................................................................117
5.5 A boa-fé objetiva no direito comparado ......................................................................122
5.5.1 A boa-fé objetiva na Alemanha..........................................................................122
5.5.2 A boa-fé objetiva em Portugal...........................................................................125
5.6 A prevalência da observação da boa-fé objetiva no ordenamento jurídico pátrio.......127
5.7 A boa-fé objetiva como parâmetro de observação pelos juízes...................................137
CONCLUSÃO............................................................................................................144
REFERÊNCIAS..........................................................................................................149
11
INTRODUÇÃO
O presente trabalho tem por tema a observância dos direitos fundamentais no modelo
constitucional pátrio e do princípio da boa-fé objetiva nas relações jurídico-privadas e
pretende discutir paralelamente ambos os tópicos e estabelecer uma correlação entre eles,
dentro de uma perspectiva de Direito Civil-Constitucional.
1
Isso porque, a partir das
transformações pelas quais passam tanto o Direito Civil quanto o Direito Constitucional,
instados a dar respostas aos problemas postos na sociedade contemporânea, complexa e
plural, impõe-se uma nova definição de questões que classicamente se desenvolviam sob o
signo dos paradigmas liberais de autonomia da vontade e abstenção do Estado frente aos
direitos de igualdade e liberdade. É imperioso salientar que a temática não se esgota, por
óbvio, nesta pesquisa.
Noutro contexto, a fragilização do Estado Social ou do Estado Providência deu
mostras de que seus mecanismos compensatórios não são suficientes para garantir sequer a
propalada dignidade da pessoa humana, valor orientador de todo o ordenamento jurídico.
Assistimos a um crescimento vertiginoso do poder de outros setores da sociedade, nem
sempre atentos à existência de uma carta de direitos e garantias dos indivíduos, os quais
acabam sendo menosprezados, ameaçados e até violados em meio às relações jurídicas
privadas. Os interesses pessoais são hoje coordenados em grupos que congregam grande
parcela de poder, tais como sindicatos, igrejas, grupos econômicos, associações patronais e
desportivas, entre outras tantas. Assim, as mudanças operadas na sociedade afastam a idéia do
Estado como inimigo público”, pois o poder não é mais considerado uma exclusividade sua,
visto ser compartilhado por toda a sociedade.
1
Adotamos, por oportuna, a definição de Teresa Negreiros (2002, p.58) sobre o significado da perspectiva do
direito civil-constitucional que se pretende aplicar ao estudo que ora se inicia. Esclarece a autora que “a
perspectiva civil-constitucional constitui, em suma, a perspectiva de análise e de interpretação empenhada em
demonstrar e explorar a conexão entre a história do direito civil e a história constitucional - particularmente o
projeto de sociedade “justa, livre e solidária” (CF, art. 3°,I) que foi delineado nas Constituições do século XX”.
Nesse sentido, assim se expressa Gustavo Tepedino (1999, p.22):
Novos parâmetros para a definição de ordem publica, relendo o direito civil à luz da
Constituição, de maneira a privilegiar, insista-se ainda uma vez, os valores não-
patrimoniais e, em particular, a dignidade da pessoa humana, o desenvolvimento da
sua personalidade, os direitos sociais e a justiça distributiva, para cujo atendimento
deve se voltar a iniciativa econômica privada e as situações jurídicas patrimoniais.
Por outro lado, os direitos fundamentais propiciam ao cidadão não se identificarem
como destinatários da ordem jurídica, mas também como co-autores dessa mesma ordem, pois
de um lado existem os direitos fundamentais que garantem o exercício da autonomia privada
dos sujeitos e, de outro, aqueles que garantem a participação dos sujeitos no processo de
produção do ordenamento jurídico, tais como os direitos fundamentais de exercício de uma
autonomia política a partir da qual o direito legítimo é criado.
Nesse contexto, busca-se o resgate da noção da solidariedade social, como forma de dar
novos contornos ao dogma da liberdade, sobretudo econômica, que imperou no ideário
liberal, de inspiração capitalista, na tentativa de apontar caminhos para a construção de uma
sociedade mais justa e igualitária.
Pretende-se assim com a presente pesquisa sistematizar elementos para contribuir para
uma discussão inexorável, mas à qual os operadores do Direito ainda se apresentam
refratários, como se verá no decorrer da exposição, sobretudo no que concerne à cláusula da
boa-fé objetiva.
No que concerne à questão da eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares, as pesquisas de direito comparado acerca do tema indicam que a sua discussão
em outros países remonta a fins da década de 50, animada pela convicção de que não basta a
existência de uma carta de direitos formalmente assegurados e sem a possibilidade de
utilização contra outras formas de poder que não o poder político do Estado. Não basta para a
eficácia dos direitos fundamentais, que haja o reconhecimento de sua existência pelo Estado,
mas, ao contrário, é necessário que a estrutura de poder seja compatível com sua salvaguarda,
pois se o que está em causa é a posição da pessoa perante o poder, que não o estatal, torna-
se ineliminável que existam mecanismos de controle e repartição desse poder, tanto no que
concerne às liberdades públicas, quanto no que diz respeito às liberdades privadas.
No Brasil a discussão é bem mais recente e não tem grande repercussão na
jurisprudência dos Tribunais Superiores (Supremo Tribunal Federal e Superior Tribunal de
13
Justiça). Também não na legislação pátria dispositivo que discipline a matéria. Não
obstante, o reconhecimento dos direitos fundamentais nas relações interprivadas gera grande
expectativa em relação ao posicionamento e à atuação do Judiciário, pois o torna um dos
responsáveis pela conformação da autonomia privada e dos direitos fundamentais, quer pelo
reconhecimento de eficácia imediata dos mencionados direitos nas relações privadas, quer
pela interpretação das cláusulas gerais e conceitos indeterminados, inseridos na legislação
privada. Esse o aspecto mais relevante do tema ora proposto. Verifica-se a dificuldade do
operador do direito de identificar a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares na Constituição Federal, pelo fato de não haver referências normativas
textualmente expressas. Ademais, a jurisprudência constitucional não é clara e direta sobre a
matéria. Assim se refere Daniel Sarmento (2004, p.202-293) sobre o tema:
na jurisprudência brasileira ocorre um fenômeno de certa forma curioso. Não são
tão escassas as decisões judiciais para dirimir conflitos de caráter privado. Porém,
com raríssimas exceções, estes julgamentos não são precedidos de nenhuma
fundamentação teórica que lastro à aplicação do preceito constitucional ao litígio
entre os particulares. Na verdade, ainda não encontrou eco nos nossos pretórios a
fértil discussão sobre os condicionamentos e limites para aplicação dos direitos
humanos na esfera privada.
Na perspectiva social, a importância da pesquisa proposta consubstancia-se na
premência da busca de soluções para os problemas sociais que se apresentam modernamente,
em que o exercício da cidadania não pode ser amesquinhado por fórmulas meramente
retóricas e em que a Constituição não pode ser definida como “uma mera folha de papel”.
Por fim, no âmbito da ciência do direito, a pesquisa tem relevância não só para o Direito
Constitucional, em que a realização da Constituição será estudada à luz dos fatos cotidianos
da vida dos cidadãos, estes seus verdadeiros intérpretes, na lição de Peter Häberle (1997), mas
também para o Direito Privado, pois seus pilares clássicos começam a ceder espaço à
influência dos direitos fundamentais na relação indivíduo-indivíduo.
Tal influência, em termos objetivos, pode ser claramente sentida na leitura do Código de
Defesa do Consumidor e do novo Código Civil brasileiro, que em muitos dispositivos
resguardam o particular contra outros particulares ou entidades privadas que assumem tanto
poder na relação jurídica concreta, que se assemelham ao Poder Público.
14
A partir de um método jurídico-teórico-dogmático
2
, o estudo será desenvolvido em
cinco capítulos, dos quais os três primeiros destinados a assentar premissas teóricas para
contextualizar a discussão, e os dois últimos destinados à abordagem dos temas principais,
quais sejam: a análise dos principais aspectos do debate doutrinário acerca da aplicação dos
direitos fundamentais nas relações entre particulares e a aplicação da cláusula da boa-fé
objetiva no direito obrigacional.
No primeiro capítulo busca-se fazer uma análise de alguns posicionamentos teóricos
relativos à dogmática dos direitos fundamentais, incluindo o seu processo de positivação, a
tentativa de construção de uma teoria geral dos direitos fundamentais, a influência dos
diversos paradigmas estatais e as chamadas teorias dos direitos fundamentais e, por fim, uma
breve abordagem das funções dos direitos fundamentais no constitucionalismo moderno. O
objetivo do capítulo não será apresentar um conceito de direitos fundamentais, mas, antes de
tudo, passar em revista alguns aspectos do estudo dogmático dos direitos fundamentais, de
modo a contextualizar o objeto da presente pesquisa.
No capítulo II objetiva-se levar a cabo um estudo histórico dos direitos fundamentais,
desde o surgimento do Estado constitucional, passando pelos modelos liberal, social e
democrático, sempre sob a ótica da relação entre poder político e direitos fundamentais.
Busca-se estabelecer a evolução de alguns conceitos caros ao desenvolvimento dos direitos
fundamentais pela correlação tempo/espaço, numa relação temporal de busca de suas origens.
no capítulo III, intenta-se realizar a análise mais aprofundada da chamada dimensão
objetiva dos direitos fundamentais, a partir da noção de Constituição como ordem de valores e
da eficácia irradiante dos direitos fundamentais, sobretudo da noção de dignidade da pessoa
humana. Bem assim, pretende-se discutir a existência de uma constitucionalização do Direito
Civil e de que maneira essa discussão repercute nos contornos clássicos da oposição entre
Direito Público e Direito Privado.
Os principais aspectos do debate doutrinário acerca da aplicação dos direitos
2
Segundo Miracy Barbosa de Sousa Gustin e Maria Tereza Fonseca Dias (2002, p.41-42), existem algumas
vertentes teórico-metodológjcas de pesquisa jurídica. Dentre as descritas pelas autoras interessam-nos a vertente
jurídico-dogmática e a vertente jurídico-teórica, sendo a primeira definida como aquela que “considera o Direito
com auto-suficiência metodológica e trabalha elementos internos ao ordenamento jurídico. Desenvolve
investigações com vistas à compreensão das relações normativas nos vários campos do Direito e com a avaliação
das estruturas internas do ordenamento jurídico”. a vertente Jurídico-teórica acentua os aspectos conceituais,
ideológicos e doutrinários de determinado campo que se deseja investigar, relacionando-se mais diretamente,
com a esfera da Filosofia do Direito e com as áreas teórico-gerais dos demais campos jurídicos.
15
fundamentais nas relações interprivadas serão abordados no capítulo IV, partindo-se da teoria
da aplicação imediata, passando pela teoria da aplicação mediata e a análise de outras teorias,
sobretudo no modelo norte-americano.
Por fim, no capítulo V faz-se uma aproximação da cláusula geral da boa-fé objetiva e a
aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, apresentando uma
comparação entre a boa-fé subjetiva e objetiva, notícia do tema no direito comparado, sua
eficácia no ordenamento jurídico brasileiro e a boa-fé objetiva na tarefa dos juízes.
Não é demais reforçar que o presente estudo pretende uma abordagem sistemática de
alguns aspectos envolvidos na discussão acerca da vinculação das relações privadas aos
direitos fundamentais, mormente no que diz respeito ao direito obrigacional. É principalmente
a partir da aplicação da cláusula geral da boa-fé objetiva positivada no ordenamento
jurídico brasileiro, mas de aplicação ainda muito tímida nas decisões judiciais, que se espera
poder contribuir para o alargamento da abordagem ética dos assuntos postos à apreciação no
dia-a-dia, especialmente, nas decisões forenses, a fim de que os operadores do direito
comecem a se aprofundar sobre o tema e utilizar como fundamento jurídico os direitos
fundamentais, uma vez que contribuirá, ainda mais, para a melhoria da sociedade em um
Estado Constitucional em desenvolvimento.
16
1 ANÁLISE DOGMÁTICO-TEÓRICA DOS DIREITOS
FUNDAMENTAIS
O presente estudo versa sobre a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais
nas relações interprivadas e a aplicabilidade do princípio da boa-fé objetiva. Preliminarmente,
porém, impõe-se a análise de alguns aspectos atinentes à conceituação dos direitos
fundamentais, sobretudo em relação ao seu processo de positivação e consolidação nos
ordenamentos jurídicos dos países. Conforme lembra Menelick de Carvalho Netto (2003, p.
141), “os direitos fundamentais, tal como entendemos hoje, são resultado de um processo
histórico tremendamente complexo”, mas que deve ser entendido e contextualizado, pois o
seu reconhecimento e a sua efetiva proteção são a base das Constituições democráticas
modernas, as quais se confundem com a própria história do moderno Estado constitucional.
Por tal razão, não se tem a ousadia de se tentar reconstruir aqui, em sua integralidade, um
conceito tão complexo na atual teoria constitucional, mas, ao contrário, pretende-se um
esforço de depuração e catalogação de opiniões abalizadas, numa tentativa de contextualizar o
tema objeto do presente estudo.
As dificuldades no trato do tema começam a partir da terminologia dos direitos,
objeto de reflexão da pesquisadora. Muitas expressões são utilizadas para identificar os
direitos ditos fundamentais e, vale aqui a advertência, muito embora se opte pela expressão
direitos fundamentais, para designar o objeto de estudo, em várias passagens, no esteio da
opinião dos diversos autores que serão apresentados. No que pese ainda haver outros autores
que, no trato do tema, se utilizam de expressões como direitos humanos, direitos
fundamentais, direitos sociais e até direitos naturais.
Feita tal advertência, verifica-se que, em grande parte das vezes, direitos humanos e
direitos fundamentais são utilizados freqüentemente como sinônimos, a despeito das
tentativas da doutrina de explicar o alcance de cada uma das expressões. Assim, na lição de
Perez Luño (1988, p.44), a doutrina tem utilizado a expressão direitos fundamentais para
designar os direitos positivados em nível interno, enquanto direitos humanos seriam mais
utilizados para designar os direitos naturais positivados nas declarações e convenções
internacionais, assim como em relação àquelas exigências básicas relacionadas com a
dignidade, liberdade e igualdade das pessoas que não tenham alcançado um estatuto jurídico
positivo. Já Paulo Bonavides (2000, p.514), a pretexto de comentar o que chama de
promiscuidade da literatura jurídica no uso das expressões direitos humanos, direitos do
homem e direitos fundamentais, denuncia:
o emprego mais freqüente de direitos humanos e direitos do homem entre autores
anglo-americanos e latinos, em coerência aliás com a tradição histórica, enquanto a
expressão direitos fundamentais parece ficar circunscrita à preferência dos
publicistas alemães.
Não obstante, deve-se apresentar a posição de Menelick de Carvalho Netto (2003, p.
142), que assume sua preferência pela expressão direitos fundamentais, entendida como fruto
de uma conquista histórica, socialmente criada, direitos institucionalizados em uma sociedade
improvável e complexa. Mais do que direitos atemporais e a-históricos, os direitos
fundamentais são aqueles previstos em uma ordem constitucional específica, local, sendo
então a expressão que mais se amolda aos fins do presente estudo, sobretudo no que concerne
à análise da aplicação dos direitos fundamentais nas relações interprivadas e a cláusula da
boa-fé objetiva no ordenamento jurídico brasileiro.
Assim, independentemente da terminologia adotada, traz-se à colação a lição de
Norberto Bobbio (1992, p.20), em seu livro A Era dos Direitos”, no qual sustenta que o
grande desafio em se tratando da garantia e respeito à universalização dos direitos humanos,
não é o de justificá-los ou reconhecê-los, mas de como torná-los efetivos. Bobbio (1992, p.
25) assevera que o problema dos direitos humanos não é filosófico, mas jurídico e, em um
sentido mais amplo, político, senão veja-se:
Não se trata de saber quais e quantos são esses direitos, qual é sua natureza e seu
fundamento, se são direitos naturais ou históricos, absolutos ou relativos, mas sim
qual é o modo mais seguro para garanti-los, para impedir que, apesar das solenes
declarações, eles sejam continuamente violados.
3
Continuando, o autor afirma que os direitos sociais
4
são mais difíceis de proteger que os
direitos de liberdade ou que o direito internacional é de mais difícil proteção do que o direito
3
Em outro texto, intitulado “A era dos direitos”, o mesmo autor explicita queUma coisa é falar dos direitos do
homem, direitos sempre novos e cada vez mais extensos, e justificá-los com argumentos convincentes; outra
coisa é garantir-lhes uma proteção efetiva. Sobre isso, é oportuna ainda a seguinte consideração: à medida que as
pretensões aumentam, a satisfação delas torna-se cada vez mais difícil”. (BOBBIO, 1992, p.63-64).
4
A expressão direitos sociais é aqui utilizada como uma espécie do gênero direitos fundamentais. A ressalva
toma-se importante, pois a mesma não havia aparecido no texto até então. Assim, mais uma vez alertamos para a
utilização de muitas expressões a designar o mesmo fenômeno nos diversos autores, mas que nossa opção é pela
forma direitos fundamentais.
18
no interior de um determinado Estado, arrematando que são muitos os exemplos “de contraste
entre as declarações solenes e sua consecução, entre a grandiosidade das promessas e a
miséria das realizações.” (BOBBIO, 1992, p.25). Conclui afirmando que:
[...] Quando digo que o problema mais urgente que temos de enfrentar não é o
problema do fundamento, mas o das garantias, quero dizer que consideramos o
problema do fundamento não como inexistente, mas como em certo sentido
resolvido, ou seja, como um problema com cuja solução não devemos mais nos
preocupar [...]. (BOBBIO,1992, p.26)
A maior questão do constitucionalismo moderno diz respeito à efetivação dos direitos
fundamentais. Como, de fato, fazê-los sair dos textos constitucionais e fazê-los aplicáveis no
dia-a-dia dos indivíduos, da sociedade, enfim, no mundo da vida? Percebe-se que os direitos
fundamentais não mais se aplicam somente contra o Estado e tampouco basta que haja sua
previsão apenas formal no texto constitucional. É necessária a sua proteção contra toda e
qualquer violação, quer do Estado, quer de particulares, quer por imposições de ordem
econômica, social ou mesmo legal.
Sobre o tema, Paulo Bonavides (2000, p.534) sintetiza a tensão entre o que chamou de
velho e novo Direito Constitucional, afirmando que, no velho, a tensão estava voltada para a
regulamentação do próprio funcionamento do Estado, conferindo especial importância à
separação dos poderes. É o que se pode observar:
Enfim, podemos sintetizar que, ao tempo do velho Direito Constitucional o da
separação de poderes – a tensão transcorria menos no campo das relações dos
cidadãos com o Estado – a filosofia da burguesia liberal cristalizada na racionalidade
jurídica dos Códigos pacificara grandemente essas relações! do que no domínio
mais sensível e delicado das relações entre os Poderes, donde pendia, perante a força
do Estado, e a desconfiança remanescente das épocas do absolutismo, a conservação
da liberdade em toda a sua dimensão subjetiva. Nesse contexto avultava e se
mantinha sempre debaixo de suspeita o Poder Executivo, sobretudo nas monarquias
constitucionais, onde ficava mais ostensivamente sujeito aos freios e controle do
sistema parlamentar.
Neste caminho a Constituição adquire semelhanças com a lei comum, perdendo o
significado de ser a vontade política da nação.
no que concerne ao que chamou de novo Direito Constitucional, o autor afirma que
se refere:
a tensão traslada-se de maneira crítica e extremamente preocupante, para a nervosa
esfera dos direitos fundamentais. A partir de então, a sociedade procura aperfeiçoar o
sistema regulativo de aplicação desses direitos em termos de um constitucionalismo
assentado sobre as incoercíveis expectativas da cidadania postulante.
(BONAVIDES, 2000, p.539).
E conclui Bonavides (2000, p.539) que os direitos fundamentais são a sintaxe da
19
liberdade das Constituições.
Em abono à afirmação de que os direitos fundamentais são resultado de um processo
histórico de sua consolidação, no próximo tópico, analisar-se-á, em linhas gerais, o processo
de positivação desses direitos. O estudo mais aprofundado da história do poder político e sua
relação com os ditos direitos serão levados a cabo no capítulo II.
1.2 A positivação dos direitos fundamentais
A positivação dos direitos fundamentais pode ser vista sob dois aspectos principais, que
não se confundem com o aspecto filosófico da discussão do tema, que será tratada adiante: um
doutrinário, que se consubstancia nas distintas construções teóricas que serviram de base para
o desenvolvimento ideológico do processo de positivação de tais direitos; e outro
institucional, que considera a positivação dos direitos fundamentais um processo geral de
formação das regras jurídicas, relacionado com a validade de um determinado ordenamento
jurídico. Bem assim, as diferenças filosóficas, religiosas e culturais das comunidades
ensejarão concepções teóricas bastante distintas, até mesmo contrárias, o que torna difícil
estabelecer critérios gerais do referido processo de positivação.
em referência aos direitos humanos, tem-se o entendimento de Perez Luño (1986, p.
52), de que toda busca para sua fundamentação depara com o secular dilema de optar entre
uma justificação desses direitos derivada de uma ordem natural e transcendente à aceitação do
caráter positivo e empírico de qualquer declaração de direitos. Em linhas gerais, para os
defensores da concepção dos direitos fundamentais como direitos naturais, existem direitos
que o homem possui em razão mesmo de sua condição humana, sendo desnecessária sua
positivação. em sua dimensão institucional, importa menos perquirir acerca do fundamento
racional de como deve ser entendida a fundamentação de tais direitos e mais considerar as
instituições jurídico-políticas por intermédio das quais tais direitos são positivados.
Na análise dos principais pontos de vista filosóficos acerca da positivação dos direitos
fundamentais, tomar-se-á por base o texto de Perez Luño (1986, p.54-56), para quem as
correntes que mais contribuíram para dimensionar o referido processo de positivação são: a
jusnaturalista, a positivista e a realista.
De acordo com as teorias jusnaturalistas, a consagração normativa dos direitos
fundamentais tem um caráter essencialmente declaratório, porquanto decorre de direitos
20
inerentes ao homem, relativos a sua própria natureza, ou seja, a positivação é o ponto alto de
um “proceso que tiene su origen en las exigencias que la razón postula como imprescindibles
para la convivencia social” (LUÑO, 1986, p.54). E explica o referido autor que
para el jusnaturalismo el término ‘derecho’ no coincide con el derecho positivo, y,
por tanto, defiende la existencia de unos derechos naturales del individuo
originarios e inalienables, en función de cuyo disfrute surge el Estado. De ahí que
la positivación de los derechos fundamentales se presente bajo esta óptica como el
reconocimiento formal por parte del Estado de unas exigencias jurídicas previas
que se encarnan en normas positivas para mejor garantía de su protección. (LUÑO,
1986, p.54-55)
As Declarações de direitos do século XVIII expressaram a noção de supremacia dos
direitos naturais, como no caso da Declaração dos Direitos do Povo da Virgínia, de 1776, e a
Declaração Francesa, de 1789, creditando-se a tais declarações a primeira marca de transição
dos direitos humanos de liberdade para os direitos fundamentais constitucionais. Conforme
ensina Ingo Sarlet (2001, p.47), sobre a importância das referidas declarações,
com a nota distintiva da supremacia normativa e a posterior garantia de sua
justiciabilidade por intermédio da suprema Corte e o controle judicial da
constitucionalidade, pela primeira vez os direitos naturais do homem foram
acolhidos e positivados como direitos fundamentais constitucionais [...].
Ingo Sarlet (2001, p.48) ressalta a importância da Declaração dos Direitos do Homem e
do Cidadão, de 1789, uma vez que também possuía inspiração jusnaturalista, com a
vinculação essencial dos direitos fundamentais à liberdade e à dignidade humana, como
valores históricos e filosóficos.
É de se ressaltar que, sob o rótulo de jusnaturalismo, se agruparam historicamente
muitas doutrinas heterogêneas e até contrapostas, em alguns casos, o que ensejou críticas ao
caráter vago e contraditório do direito natural. Todavia, as diversas vertentes teóricas
jusnaturalistas possuem em comum o fato de advogarem a existência de postulados de
juridicidade anteriores e justificadores do direito positivo. Assim podem-se citar alguns
teóricos: Samuel Pufendorf, Immanuel Kant, Skinner, entre outros.
No que tange às teses positivistas, a linha de raciocínio é oposta à das correntes
jusnaturalistas, pois partem do pressuposto de que a juridicidade se identifica com o direito
positivo. Falar-se em direito natural, pré-existente ao Estado, anterior ao direito positivo, não
tem sentido, uma vez que a positivação dos direitos fundamentais, para os positivistas, em
linhas gerais, é entendida como um aspecto atinente às regras gerais que presidem a criação
do direito no ordenamento estatal.
21
Na visão de Perez Luño (1986, p.59-60), o progressivo descrédito da teoria dos direitos
naturais, principalmente na Alemanha do final do século XIX, início do século XX, motivado
em grande medida pela crítica positivista, fez nascer uma nova categoria de direitos,
conhecidos como direitos subjetivos públicos. Tais direitos foram concebidos com o intento
de oferecer uma configuração jurídico-positiva à necessidade de afirmar as liberdades
individuais frente à autoridade do Estado, o que lhe impunha o reconhecimento de uma
personalidade jurídica, o qual passou a ter a condição de titular de direitos e obrigações para
com os particulares, com a possibilidade de socorro a uma tutela jurisdicional das situações
subjetivas reconhecidas.
O mais famoso teórico dos direitos públicos subjetivos foi Giorgio Jellinek, no final do
século passado, para quem tais direitos foram se afirmando progressivamente em quatro fases
ou status, onde desenvolveu a doutrina dos quatro status, em que o indivíduo pode achar-se
diante do Estado. A citada doutrina é bem delineada por Robert Alexy (2001, p.247-266).
Abaixo transcreve-se a exposição do tema por Alexandre de Moraes (2002, p.500).
5
Assim, uma das posições do status constitucional corresponde à esfera de liberdade
dos direitos individuais, permitindo a liberdade de ações, não ordenadas e também
não proibidas, garantindo-se um espectro total de escolha, ou pela ação ou pela
omissão. São os chamados status negativos. Outra posição coloca o indivíduo em
situação oposta à da liberdade, em sujeição ao Estado, na chamada esfera de
obrigações; é o status passivo. O status positivo, por sua vez, permite que o
indivíduo exija do Estado a prestação de condutas positivas, ou seja, reclame para si
algo que o Estado estará obrigado a realizar. Por fim, temos o status ativo, pelo qual
o cidadão recebe competências para participar do Estado, com a finalidade de
formação da vontade estatal, como é o caso do direito de sufrágio. Conclui-se,
portanto, que a teoria dos status evidencia serem os direitos fundamentais um
conjunto de normas que atribuem ao indivíduo diferentes posições frente ao Estado,
cujo zelo também é função do Ministério Público. Portanto, garantir ao indivíduo a
fruição total de todos os seus status constitucionais, por desejo próprio do legislador
constituinte, que em determinado momento histórico entendeu fortalecer a
instituição, dando-lhe independência e autonomia, e a causa social para defender e
proteger é também função do Ministério Público, juntamente com os Poderes
Legislativo, Executivo e Judiciário.
Ao contrário da concepção jusnaturalista que enxergava no processo de positivação dos
direitos fundamentais uma natureza declaratória tão-somente, para os positivistas, esse
processo será sempre visto como de natureza constitutiva, na medida em que, antes de sua
positivação, os postulados sociais podem ser definidos como expectativas de direitos, mas não
como direitos já adquiridos.
6
(3.1)
5
Sobre a teoria dos quatro status, remetemos o leitor ao item 1.4, no final do presente capítulo.
6
Adotamos o conceito de “postulado” por Ávila (2004, p.88-89), os postulados normativos seriam normas de
“segundo grau” que não impõem um fim ou um comportamento específico, mas estruturam o dever de realizá-lo.
São descrições estruturantes da aplicação de outras normas cuja função é otimizar e efetivizar princípios e regras.
Desta forma, os postulados não se confundem com os princípios nem com as regras porque não buscam um
“fim” nem estabelecem uma “conduta”.
22
Conforme ensina Perez Luño (1986), os direitos subjetivos surgiram como uma
alternativa propositadamente técnica e asséptica da noção de direitos naturais, os quais são
considerados pelo positivismo como uma categoria abertamente ideológica. E argumenta o
autor, ainda, sobre a afirmação da positivação dos direitos fundamentais: “no tienen el
carácter de una mera declaración del derecho natural, sino que pose valor constitutivo. No
se trata, pues, de ratificar los postulados del derecho natural, sino de dar vida en el marco de
un ordenamiento a un conjunto de normas jurídicas” (LUÑO, 1986, p.58).
Por fim, para aqueles que defendem uma concepção realista do processo de positivação
dos direitos fundamentais, estes não possuem uma natureza declaratória, como apregoam os
jusnaturalistas, tampouco uma natureza constitutiva, como querem os positivistas, mas uma
natureza vinculada às condições reais, como produto das exigências econômico-sociais do
homem histórico. Destarte, a positivação dos direitos fundamentais não fica adstrita aos ideais
de direito natural, que inspiram a criação de normas positivas, nem fica condicionada aos
preceitos positivamente estabelecidos, senão que é a positivação urdida na prática concreta
dos homens. Sobre a questão, Perez Luño (1986, p.59) afirma que “será la praxis concreta de
los hombres, que son quienes a la postre sufren o se benefician de esos derechos, y quienes
con sus comportamientos contribuyen a formalos en cada situación histórica, la pauta
orientadora de su significación.”
A concepção realista ora aparece vinculada ao movimento socialista, como no caso da
obra de Karl Marx (1980), em seu livro “O Capital” (Crítica da Economia Política),
Civilização Brasileira, 1980 (3.2), ora é concebida a partir de uma perspectiva sociológica,
como no caso de Luhmann (1983, v. I, p.114). (3.3)
A despeito das três vertentes expostas se basearem em premissas distintas para a análise
da positivação dos direitos fundamentais, Perez Luño (1986, p.62) adverte que, no plano
prático, as três se condicionam mutuamente, “sendo todas ellas necesarias para el desarrollo
positivo de los derechos fundamentales”.
1.3 Algumas vertentes téoricas dos direitos fundamentais
Na busca de uma definição de direitos fundamentais, recorre-se primeiramente a Robert
Alexy (2001, p.36), em sua Teoria dos Direitos Fundamentais, muito embora se advirta que a
obra vai além da propositura de uma definição de direitos fundamentais. Formula, em
23
verdade, uma teoria geral dos referidos direitos, especialmente no que toca à análise da
estrutura da norma de direito fundamental. Assim, ao identificar o que torna um enunciado da
lei fundamental um preceito de direito fundamental, explica que a resposta pode se apoiar em
aspectos materiais, estruturais ou formais. No que concerne às definições materiais e
estruturais, tem-se que direitos fundamentais seriam aqueles que pertencem ao fundamento
mesmo do Estado, sendo, portanto, aqueles reconhecidos como tal na Constituição. Preleciona
o citado constitucionalista que essa definição foi apresentada por Carl Schmitt, para quem o
fundamento do Estado liberal de direito pertence a um grupo de direitos aqueles direitos
individuais de liberdade. (ALEXY, 2001, p.63)
A definição estrutural/material de direitos fundamentais sofre a severa crítica de
vincular o conceito de direito fundamental a uma determinada concepção de Estado, o que
excluiria normas de direito garantidoras de condições mínimas de existência, mesmo que
fundadas num catálogo de normas fundamentais, as quais não corresponderiam à estrutura de
direito de liberdade individual do Estado Liberal de Direito.
Ensina Robert Alexy (2001, p.65) que “más conveniente que la fundamentación del
concepto de norma de derecho fundamental sobre criterios materiales y/o estructurales es su
vinculación con un criterio formal, que apunte la forma de positivación”. Por tal critério,
todos os enunciados do capítulo da Constituição intitulado “direitos fundamentais” são
disposições de direitos fundamentais, independentemente do conteúdo e da estrutura que seja
atribuída a eles. Todavia, é o próprio Alexy (2001, p.34) quem adverte que este rol de direitos
fundamentais seria demasiadamente restrito, porquanto não se pode olvidar que existem
outros enunciados de direitos fundamentais, dispersos pelo texto constitucional, além da
questão relativa às normas adstritas aos direitos fundamentais. Assim, Alexy (2001, p.36-37)
argumenta que uma mesma norma estatuída diretamente pelo texto constitucional pode
expressar-se por enunciados diferentes. Tal fato se deve em razão da imprecisão dessas
normas, que são abertas tanto semântica, quanto estruturalmente. No que concerne à abertura
semântica em razão da imprecisão da norma constitucional, ensina Alexy (2001, p.37-38) que
o Tribunal Constitucional fixa o seu conteúdo em suas decisões, o que possui evidente caráter
normativo. Bem assim, no que concerne à abertura estrutural de tais normas, verifica-se que
muitas não estabelecem o titular dos direitos fundamentais ou se o Estado deve agir ou abster-
se no implemento do referido direito. Dessa forma, as decisões do Tribunal Constitucional em
casos que tais também expressam, sem dúvidas, normas. A grande questão que se apresenta,
24
na visão de Alexy (2001, p.38), é: as normas criadas pelo Tribunal Constitucional, a partir das
normas de direitos fundamentais expressas diretamente no texto constitucional, podem
também ser consideradas normas de direitos fundamentais? Concluindo, ensina Alexy (2001,
p.285) que as normas adstritas às normas constitucionais encontram uma conexão mais do que
casual com o texto da Constituição e se apresentam necessárias quando aquelas devem ser
aplicadas a casos concretos, pois somente assim se pode saber o que de fato a norma
constitucional está a proibir, ordenar ou permitir, numa relação chamada de relación de
precisión (ALEXY, 2001, p.245), ou seja, tornando preciso o texto impreciso da Constituição.
Ao complementar a relação de precisão, afirma Alexy (2001, p.246) que existe uma
outra entre as normas de direitos fundamentais diretamente previstas na Constituição e
aquelas deduzidas das decisões dos Tribunais Constitucionais, qual seja, a relação de
fundamentação. Segundo essa relação de fundamentação, o Tribunal Constitucional, ao
interpretar as normas previstas diretamente no texto constitucional, realiza-o exatamente
porque existe um artigo expresso que estabelece um rol de direitos fundamentais diretamente
propostos no texto constitucional. Em outras palavras, o rol de direitos fundamentais previstos
na Constituição não é exaustivo, mas é o que fundamenta a existência de normas adstritas às
normas diretamente previstas. E dessa forma conclui Alexy (2001, p.70) que “las normas de
derecho fundamental pueden, por ello, dividirse en dos grupos: en las normas de derecho
fundamental directamente estatuidas por la Constitución y las normas de derecho
fundamental a ellas adscriptas.”
No que diz respeito à estrutura das normas de direito fundamental, ainda na esteira dos
ensinamentos de Robert Alexy (2001, p.274), considera-se de fundamental importância a distião
entre regras e prinpios. Trata-se da base da fundamentão jusfundamental e uma chave para a
solução de problemas centrais da dogmática dos direitos fundamentais. Assim, tanto regras quanto
princípios são prescrições de dever ser, ambos podendo ser formulados com a ajuda de expressões
dnticas sicas de mandato, de permissão e de proibão. Porém, a distinção entre regras e
princípios o se em termos de grau, mas em qualidade. Como ensina Alexy (2001), os
princípios o normas que ordenam que algo seja realizado na maior medida possível, dentro das
possibilidades jurídicas e reais existentes, consistindo em mandatos de optimización que están
caracterizados por el hecho de que pueden ser cumplidos en diferente grado y que la medida de
cumplimiento no sólo depende de las posibilidades reales sino tambn de las judicas” (ALEXY,
2001, p.86). Já as regras contêm determinões no âmbito do que é fática e juridicamente posvel.
25
Assim, as regras o normas que podem ser cumpridas ou o, pois “si una regla es válida,
entonces de hacerse exactamente lo que ella exige, ni más ni menos. (ALEXY, 2001, p. 87)
Em linhas gerais, do esboço da visão de Alexy (2001, p.85) ora apresentada, exsurge o
caráter argumentativo e normativo de uma teoria material dos direitos fundamentais, o que
se mostra possível sob os auspícios de uma teoria dos princípios, que engloba não a
perspectiva deontológica, mas também uma perspectiva axiológica, centrada em valores.
A teoria geral criada por Alexy não se encontra infensa a críticas, como de resto a obra
de todos os autores que pretenderam a criação de uma teoria geral dos direitos fundamentais.
Juan Carlos Gavara de Cara (1994, p.74) argumenta que Alexy (2001) pretende a fixação de
um esquema explicativo aplicável a todos os direitos fundamentais de uma determinada
Constituição ou todos os direitos fundamentais de um determinado tipo, como os direitos de
liberdade, de igualdade e assim por diante. No entanto, afirma Gavara de Cara (1994, p.75)
que uma teoria geral dos direitos fundamentais é uma teoria ideal, que trata de resolver em um
único esquema de explicação, e, portanto, de maneira integrativa, os diversos problemas
relativos aos direitos fundamentais. Gavara de Cara (1994) adverte que tal fato pode levar a
uma vinculação teórica de distintos tipos de direitos fundamentais, o que vai de encontro ao
objetivo de uma teoria geral, uma vez que seu escopo é, contrariamente, estabelecer um
sistema de princípios neutro e que conta de todos os elementos da realidade descrita, para
que possa ser considerada como correta. Ademais, acrescenta que as classificações que
distinguem direitos diferentes, tais como os de liberdade, igualdade e prestação, são
construções doutrinárias não deduzidas do sentido dos direitos fundamentais que agrupam,
correndo o risco de tentar explicar, de maneira conjunta, diferentes objetos de direitos
fundamentais. (DE CARA, 1994, p.75)
Assinaladas as advertências de Gavara de Cara (1994) sobre a problemática da teoria
geral dos direitos fundamentais, sobretudo no que concerne à proposta de Alexy (2001),
verificou-se que as observações feitas não invalidam o modelo interpretativo por este
proposto, o que pode ser observado a partir das análises de outros autores de nomeada, a
exemplo de J.J. Gomes Canotilho (1993), no mesmo esforço de construção de uma teoria
geral dos direitos fundamentais.
Para J. J. Gomes Canotilho (1993), uma teoria geral dos direitos fundamentais deve
fundamentar-se em três traços principais: é uma teoria dos direitos consagrados na
26
Constituição; é uma teoria jurídica e deve ser geral, afirmando, de início, que seus estudos
sobre direitos fundamentais dizem respeito a uma teoria dos direitos fundamentais
positivamente vigentes. Bem assim, afirma que os direitos fundamentais constituem uma
categoria dogmática, podendo ser analisados sob uma perspectiva analítico-dogmática, a qual
se encarrega de formular e analisar conceitos fundamentais; sob uma perspectiva empírico-
dogmática, pois os direitos fundamentais, para ter verdadeira força normativa devem tomar
em conta as suas condições de eficácia e o modo como o legislador, os juízes e a
administração os aplicam nos casos concretos e, por fim, uma perspectiva normativo-
dogmática, a qual impõe a fundamentação racional e jurídico-normativa dos juízos de valor.
(CANOTILHO, 1993, p.496-497)
Ressalta Canotilho (1993, p.497) que o estudo dos direitos fundamentais se mostra
cabível a partir daqueles direitos jurídico-positivamente constitucionalizados e, citando Cruz
Villalon, conclui que “sem esta positivação jurídico-constitucional, os ‘direitos do homem são
esperanças, aspirações, idéias, impulsos, ou até, por vezes, mera retórica política’, mas não
direitos protegidos sob a forma de normas (regras e princípios) de direito constitucional.”
7
Não obstante, a despeito do reconhecimento de que os direitos fundamentais devem ser
estudados a partir daqueles positivados constitucionalmente, Canotilho afirma que tal
positivação não lhes retira a qualidade de “elementos legitimativo-
fundamentantes” (CANOTILHO, 1993, p.498) da ordem jurídico-constitucional positiva.
Tampouco lhes reconhece a condição de realidades jurídicas efetivas por sua simples
positivação, sendo necessário o processo de constitucionalização, assim entendido, como “a
incorporação de direitos subjetivos do homem em normas formalmente básicas, subtraindo-se
o seu reconhecimento e garantia à disponibilidade do legislador ordinário” (CANOTILHO,
1993, p. 498). Também José Carlos Vieira de Andrade (1987, p.32) ressalta a importância do
estudo dos direitos fundamentais em sua dimensão constitucional positiva, não só pelo fato de
estarem previstos em preceitos da Constituição, mas, sobretudo, porque mesmo que as
formulações sejam idênticas às de direitos naturais,
o sentido dos direitos fundamentais não é o mesmo quando estão integrados numa
constituição concreta. As normas que os contém são interpretadas, reguladas e
aplicadas num quadro global da Constituição e sofrem, por isso, pelo seu lado e
necessariamente, a influência das fórmulas de organização do poder político, dos
7
Ressalta Canotilho (1993, p.497) que o estudo dos direitos fundamentais se mostra cabível a partir daqueles
direitos jurídico-positivamente constitucionalizados e, citando Cruz Villalon, conclui que “sem esta positivação
jurídico-constitucional, os ‘direitos do homem são esperanças, aspirações, idéias, impulsos, ou até, por vezes,
mera retórica política’, mas não direitos protegidos sob a forma de normas (regras e princípios) de direito
constitucional.”
27
princípios constitucionais gerais e mesmo das posições relativas entre os diversos
direitos.
Bem assim, ressalta esse constitucionalista português que os direitos fundamentais
previstos numa Constituição são mais concretos e específicos, pois são mais próximos do real,
por serem de aplicação imediata, o que obriga a formulações mais claras e “de mais perfeita
intencionalidade” (ANDRADE, 1987, p.32), além da possibilidade de seu desdobramento em
novos aspectos ou mesmo em novos direitos, diante da pressão das necessidades práticas de
proteção jurídica dos particulares.
Noutro dizer, Jorge Miranda (1998, p.9) define direitos fundamentais nas dimensões
formal e material, esses entendidos como “os direitos ou as posições jurídicas subjetivas das
pessoas enquanto tais, individual ou institucionalmente consideradas, assentes na constituição,
seja ela formal ou material”. Todavia, adverte para o fato de que tal definição implica
necessariamente dois pressupostos básicos: não direitos fundamentais sem reconhecimento
de uma esfera própria das pessoas, mais ou menos ampla, frente ao poder político, e não
direitos fundamentais em Estados Totalitários. Afirma ainda, o citado autor, que não
verdadeiros direitos fundamentais sem que as pessoas estejam em relação imediata com o
poder, beneficiando-se de um estatuto comum e não separadas em razão de grupos ou das
condições a que pertençam; não direitos fundamentais sem Estado ou, pelo menos, sem
comunidade política integrada. (MIRANDA, 1998, p.8)
Como conclusão acerca de uma teoria geral dos direitos fundamentais, impende
mencionar a lição de Marcelo Campos Galuppo (2003), para quem os direitos fundamentais
representam a constitucionalização daqueles direitos humanos que gozaram de alto grau de
justificação ao longo da história dos discursos morais e que são, por isso, reconhecidos como
condições para a construção e o exercício dos demais direitos. Há, portanto, um conteúdo
mínimo de direitos fundamentais que caracterizam o direito de um Estado Democrático e,
apesar de os direitos básicos originalmente consistirem em direitos de defesa do cidadão
contra o Estado ou direitos negativos, eles agora se transformaram nos princípios basilares da
ordem jurídica, transformando assim o conteúdo das liberdades individuais ou subjetivas no
conteúdo de normas fundamentais que penetram e moldam o direito objetivo. Para o referido
autor, existem alguns direitos que revelam o conteúdo básico dos direitos fundamentais, que
são:
a) Direitos à maior medida possível de iguais liberdades individuais de ação;
28
b) Direitos fundamentais que resultam da elaboração politicamente autônoma do
status de membro de uma associação voluntária sob o direito;
c) Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de adjudicação
de ações protetivas e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica
individual;
d) Direitos fundamentais a iguais oportunidades de participação em processos de
formação da opinião e da vontade pública nos quais os cidadãos exercitam sua
autonomia política e através dos quais eles positivam um direito legítimo;
e) Direitos fundamentais à provisão de condições de vida que sejam socialmente,
tecnologicamente e ecologicamente assegurados. (GALUPPO, 2003, p.235)
Uma definição dos direitos fundamentais não pode se basear em um critério absoluto e
único. Por serem construídos historicamente, não são redutíveis a uma única realidade.
Segundo ensina Marcelo Galuppo (2003), a definição de direitos fundamentais deve
considerar que o direito moderno existe na tensão entre o seu caráter histórico e
contingente que o liga indissoluvelmente ao fato de ser um sistema de ação que recorre
inclusive à força para sua concretização (faticidade) e sua dimensão de justificação racional
que o liga indissoluvelmente à exigência de fundamentação (validade). Afirma que “estes são
os direitos que os cidadãos precisam reciprocamente reconhecer uns aos outros, em dado
momento histórico, se quiserem que o direito por eles produzidos seja legítimo, ou seja,
democrático” (GALUPPO, 2003, p.236). Por fim, esclarece que a menção ao fato de que os
cidadãos precisam reconhecer uns aos outros e não que o Estado precisa lhes atribuir, diz
respeito ao núcleo do Estado Democrático de Direito, que, ao contrário do Estado Liberal ou
do Estado Social, “não possui uma regra pronta e acabada para a legitimidade de suas normas,
mas reconhece que a democracia é não um estado, mas um processo que ocorre pela
interpenetração entre autonomia privada e autonomia pública que se manifesta na sociedade
civil, guardiã de sua legitimidade.” (GALUPPO, 2003, p.237)
1.4 Teorias dos direitos fundamentais
No estudo dos direitos fundamentais, verifica-se que seu sentido foi se tornando cada
vez mais complexo, a partir da reunião de realidades diferentes, tais como a liberdade pessoal,
o direito a voto e o direito à segurança pessoal. Isso porque os direitos fundamentais
29
pressupõem concepções de Estado e de constituição que influenciarão a atividade
interpretativa das normas constitucionais. Assim, preleciona Gomes Canotilho (1993, p.505)
que a interpretação da constituição “pré-compreende uma teoria dos direitos fundamentais, no
sentido de uma concepção sistematicamente orientada para o caráter geral, finalidade e
alcance intrínseco dos direitos fundamentais.”
Na lição de Vieira de Andrade (1987, p.54), “nesse domínio, nota-se que pouco ou
quase nada desaparece: num processo acumulativo, cada mudança é um acrescento e o
passado permanece, ainda que também modificado.”
Dessa forma, existem várias teorias que buscam uma unidade de sentido ao conjunto de
direitos fundamentais, expondo, “em medida mais ou menos exacta, a diversidade de aspectos
existente, com suas tensões, permitindo, a partir daí colocar toda uma série de questões de
sentido importantes para a interpretação em geral e para a solução de problemas concretos de
regime.” (ANDRADE, 1987, p.55)
A doutrina dos direitos fundamentais contemporânea anota a existência de diversas
teorias de direitos fundamentais. O professor Bockenford (1993, p.47-66) apresenta o resumo
mais conhecido e importante de tais teorias, no qual abordam-se cinco delas. Em tais teorias,
anota Alexy (2001, p.36-37), estão expressas as concepções básicas do tipo de direito
fundamental a que se reportam, mas elas são genéricas quanto ao fim e à estrutura dos direitos
fundamentais. Assim, não se pode afirmar a superioridade, nem a aglutinação de qualquer das
teorias, mas tão-somente a importância de seu conhecimento e estudo para a própria teoria da
Constituição
8
(4.1). É mister o conhecimento das mesmas para entender o objeto do presente
estudo sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações interprivadas e o princípio da
boa-fé objetiva.
Segue-se à análise de algumas dessas teorias acerca dos direitos fundamentais, a
começar pela teoria liberal.
1.4.1 Teoria liberal
No constitucionalismo liberal, os direitos fundamentais eram considerados os direitos de
liberdade do indivíduo contra o Estado, constituindo-se essencialmente em direitos de
8
É importante destacar também que a classificação apresentada pelo professor Canotilho (1993, p.516 e ss.)
apresenta a mesma tipologia.
30
autonomia e direitos de defesa (CANOTILHO, 1993, p.506). Trata-se de uma teoria
subjetivista, pois “o indivíduo (o sujeito) é a medida jurídica real dos direitos” (ANDRADE,
1987, p.56), limitando-se a competência do Estado à garantia e à regulação da liberdade em
abstrato e relegando aos titulares dos direitos a competência para estabelecer o momento e o
modo de seu exercício. A liberdade, para tal teoria, não aparece qualificada por nenhum
objetivo ou fim, pois a determinação de seu uso compete ao seu titular, dentro dos limites
estabelecidos pela norma geral.
Gavara de Cara (1994, p.76), reportando-se à análise de Carl Schmitt, ao denominado
princípio de distribuição do Estado burguês, assim se manifestou:
Dicho principio plantea que la esfera de libertad del individuo es anterior al
Estado, o que permite deducir que la libertad del individuo es ilimitada en
principio, mientras que la facultad del Estado de invadirla es limitada en principio.
Los derechos fundamentales serían la concreción del principio de distribución en el
sentido de plasmar las competencias que los individuos poseen. Esta esfera de los
individuos no se define como presocial (anterior a la formación de la sociedad),
sino como preestatal (anterior al momento de creación del Estado.)
Ainda na concepção liberal, qualquer intervenção legislativa, salvo aquelas
imprescindíveis em caso de colisão de direitos, com vistas a resguardar a liberdade dos
envolvidos, seria considerada restrição desses direitos, não podendo o Estado reclamar para si
a intervenção no cumprimento das tarefas constitucionais relativas aos direitos fundamentais.
É, como ensina Vieira de Andrade (1987, p.57), “corolário da idéia de laissez faire, da
omissão como regra do comportamento estatal.”
A concepção liberal de direitos fundamentais recebeu algumas críticas, sendo a primeira
delas o fato de que concebe a liberdade em abstrato, pressupondo uma autonomia privada
absoluta e que muitas vezes não leva em conta as reais condições sociais de exercício da
liberdade, muitas vezes essenciais para o dito exercício. Ademais, tal concepção não considera
a própria restrição da liberdade necessária ao convívio social, sendo a liberdade, pois, limitada
já em princípios.
No que concerne à atuação do Estado, consoante referida teoria o Estado não tem
nenhuma obrigação de garantir a liberdade jurídica, uma vez que a sua realização material fica
a cargo exclusivo do indivíduo e da sociedade. Seria “el individuo es considerado de un modo
autárquico y autosuficiente.” (DE CARA, 1994, p.77)
Por fim, como assinala Gomes Canotilho (1993, p.507), a efetivação real da liberdade
constitucionalmente garantida não é hoje apenas tarefa de iniciativa individual, mesmo em se
31
tratando das liberdades clássicas,
pois não é possível a garantia da liberdade sem a intervenção dos poderes públicos
[...] o homem situado, não abdica de prestações existenciais estritamente necessárias
à realização de sua própria liberdade, revelando, nesse aspecto, a teoria liberal uma
completa cegueira em relação à indispensabilidade dos pressupostos sociais e
econômicos da realização da liberdade.
Os defensores atuais da teoria liberal não pretendem a abstenção do Estado na garantia
dos direitos fundamentais, pois, na visão de Vieira de Andrade (1993), está demonstrada a
necessidade de intervenção estatal para a realização da liberdade, por meio da implementação
de condições jurídicas, políticas, sociais de que depende o gozo de tais direitos por parte dos
cidadãos. Trata-se não obstante de uma reação ao processo de objetivação e socialização dos
direitos fundamentais, que “manifesta acentuação do caráter defensivo e subjetivo dos
direitos, reconhecendo aos dados sociais apenas o papel de condição de exercício, para que
não se subverta o entendimento tradicional das liberdades como direitos subjectivos contra o
poderes públicos.” (ANDRADE, 1987, p.58).
1.4.2 Teoria institucional
A teoria institucional dos direitos fundamentais, cujo expoente máximo é Peter Häberle,
na dicção de J. J Gomes Canotilho (1993, p.1304), parte da afirmação de que os direitos
fundamentais não se esgotam em sua vertente individual, ou seja, não possuem uma dimensão
exclusivamente subjetiva, mas possuem um caráter duplo: individual e institucional. Assim,
não são apenas direitos subjetivos, mas princípios normativos de tipo institucional, que
regulamentam as relações sociais e os fatos materiais em que ditas relações são válidas. A
medida dos direitos não é mais o indivíduo, como na teoria liberal, mas a instituição.
As considerações acerca da dimensão institucional dos direitos fundamentais definem a
própria liberdade como uma instituição, tendo os titulares de direitos como partícipes da
instituição, o que orienta sua ação com vistas à realização de certos fins. Trata-se, pois de uma
“liberdade consignada” (ANDRADE, 1987, p.59). Nos escólios de Gavara de Cara (1994, p.
77):
estas consideraciones sobre los derechos fundamentales no son válidas únicamente
para las garantías institucionales o las garantías de instituto, sino para todos los
derechos fundamentales en general y, en particular, para los derechos de libertad.
Esto es posible si se considera que la libertad jurídica es un instituto, un hecho
objetivo que se desarrolla y se realiza mediante una configuración jurídica. La
libertad individual necesita relaciones sociales garantizadas institucionalmente,
complexos de normas que determinen su orientación, su garantía, su contenido y su
finalidad.
32
No mesmo sentido, explica Böckenförde (1993, p.53) que a concepção institucional dos
direitos fundamentais parte da noção da liberdade como instituto “que se opone en forma
objetivada, según la peculiaridad del correspondiente ámbito vital, como algo dado y
configurado. Ainda no dizer do mesmo autor, dentre as conseqüências jurídicas dessa teoria
para a interpretação dos direitos fundamentais, pode-se destacar, principalmente, que a mesma
abre um espaço para uma configuração e normatização legais dos direitos fundamentais
consideravelmente maior do que na teoria liberal, tendo em vista que a lei não se apresenta
como uma intervenção e limitação na esfera de liberdade do indivíduo, mas como forma de
favorecimento e realização dessa liberdade, escapando, assim, da rigorosa limitação
legislativa da competência de regulação resultante do princípio da distribuição do Estado de
Direito. Bem assim, a liberdade dos direitos fundamentais não é mais tida como uma
liberdade em si, como na teoria liberal, mas sim orientada a determinados interesses,
“concretamente a la realización del sentido objetivo-institucional de la garantía de la
libertad.” (BÖCKENFÖRDE, 1993, p.54)
Gomes Canotilho (1993) ressalta, de outra sorte, que muito embora a teoria institucional
dos direitos fundamentais tenha o mérito de ter salientado a dimensão objetiva dos direitos
fundamentais, é passível de algumas críticas substanciais, pois a faceta institucional dos
direitos fundamentais é apenas uma de suas dimensões, mas não a única, aparecendo ao lado
das dimensões individual e social dos mesmos. Alerta ainda que o enquadramento dos direitos
fundamentais no “mundo institucional” pode acarretar a “paragem” dos próprios direitos, na
medida em que as instituições sejam consideradas mais como subsistemas de estabilização do
que como formas de vida e relações sociais e jurídicas, necessariamente mutáveis no mundo
evolutivo do ser social” (CANOTILHO, 1993, p.508). Por último, aduz que o critério de
ponderação de bens utilizado pela teoria institucional conduz a uma perigosa relativização dos
direitos fundamentais, além de não oferecer clareza e segurança no caso de conflito de bens
constitucionais.
Ainda como restrição à aplicação da teoria institucional, alerta Vieira de Andrade (1987,
p.60) que a mesma pode contribuir para fortalecer objetivamente certos direitos fundamentais,
“mas corre o perigo de transformar os direitos em meros reflexos jurídicos, dependentes afinal
dos deveres institucionais e, portanto, vulneráveis à estatização.”
1.4.3 Teoria axiológica ou teoria dos valores dos direitos fundamentais
33
Para esta teoria, tanto quanto em relação à teoria institucional, os direitos fundamentais
adquirem prioritariamente o caráter de normas objetivas, pretendendo regular um sistema de
valores, de bens, um sistema cultural, o qual se constituem em fatores de integração. A
legitimação do ordenamento positivo estatal e jurídico se na medida em que representa
esse sistema de valores. Assim, os direitos fundamentais são valores jurídico-
constitucionalmente protegidos, resultando daí, conforme preleciona Vieira de Andrade (1987,
p.61), que não se está mais diante de posições jurídicas subjetivas, “mas perante normas,
princípios objectivos que reconhecem ou atribuem um certo estatuto aos indivíduos”
Assevera, ainda, o referido constitucionalista, que a liberdade individual corresponde à
realização do valor respectivo e se justifica no quadro geral de valores comunitariamente
estabelecido.
Segundo ensina Böckenförde (1993, p.57), a teoria axiológica dos direitos fundamentais
tem seu ponto de partida na teoria da integração de Rudolf Smend, caracterizando seu
conteúdo do seguinte modo:
Así como el Estado mismo en su ser social se presenta en permanente estado de
integración y, a decir la verdad, como proceso de integración (en) de una
comunidad de valores, de culturas y de vivencias, así también los derechos
fundamentales se presentan como factores constitutivos determinantes de este
proceso, son elementos y medio de la creación del Estado. Fijan valores
fundamentales de la comunidad, norman un sistema de valores o de bienes, un
sistema cultural, a través del cual los individuos alcanzan un status material, se
integran (deben integrarse) objetivamente como un pueblo y en un pueblo de
idiosincrasia nacional.
Segundo esta teoria, a liberdade, bem como os direitos em geral, tornam-se relativos,
podendo ser, inclusive, objeto de controle jurídico. A liberdade passa a ser liberdade para a
realização dos valores expressos nos direitos fundamentais e no marco de uma ordem de
valores instaurado pelos direitos fundamentais em seu conjunto. Segundo Rafael Naranjo de
la Cruz (2000, p.46), “se relativiza la libertad, en la medida en que se justifica una
diferenciación de su uso, en función de que contribuya o ponga en peligro al valor.”
Abre-se espaço para que as normas jurídicas venham a interpretar e concretizar o
sentido dos preceitos de direitos fundamentais. Da mesma forma, os direitos fundamentais
passam a não ser mais direitos de defesa e de oposição contra o Estado, mas assumem o
caráter de normas comunitárias assumidas pelos cidadãos.
Vieira de Andrade (1987), analisando a posição de Smend, afirma que o Estado
constrói-se por meio de um processo de integração (cultural) em que, ao lado da integração
34
pessoal e funcional, cabe um papel importante à integração material ou real. É nesse contexto
que o citado autor compreende os direitos fundamentais como um sistema cultural de bens e
valores que cria para os indivíduos um estatuto integrador, “isto é, capaz de os inserir na
continuidade espiritual que constitui o Estado.” (ANDRADE, 1987, p.62)
As conseqüências jurídicas da aplicação da teoria axiológica para a interpretação dos
direitos fundamentais são comparáveis àquelas da teoria institucional, no que tange à
objetivação e orientação material da liberdade de direito fundamental. Não obstante,
consoante lembra Böckenförde (1993), se os direitos fundamentais se apresentam como
decisões axiológicas, sua interpretação deve ser, em primeiro plano, uma questão de
averiguação do sentido de valor neles expressos e da inserção desse valor no sistema de
valores que lhe serve de base, “lo que solo es averiguable a través de la correlación con la
consecuencia valorativa espiritual-cultural del momento.” (BÖCKENFÖRDE, 1993, p.62).
Em igual medida, a liberdade se relativiza de modo especial pela referência axiológica de
cada direito fundamental, pois está determinada à realização e cumprimento do valor expresso
pelo direito fundamental, ensejando a conclusão de que se protege a “liberdade valiosa”,
sendo certo que o conceito de valor ou do que é valioso se em virtude da competência
definidora estatal. (BÖCKENFÖRDE, 1993, p.62)
Rafael Naranjo (2000, p.46) consigna que se critica a teoria ora apresentada, em razão
de possibilitar a exposição do direito a correntes valorativas de cada época, o que faria com
que os direitos estivessem sujeitos a um contínuo processo de configuração social, com
destaque para o papel do Estado na definição do que é valioso.
Por fim, merece registro a observação de Gavara de Cara (1994) de que a lógica da
concepção valorativa sobre os direitos fundamentais não se esgota na determinação de uma
escala de valores superiores sobre inferiores, alertando para a possibilidade da ordem de
valores, utilizada para justificar decisões sobre ponderações em matéria de direitos
fundamentais, poder converter-se, na prática, em fórmula de encobrimento de um
decisionismo judicial ou interpretativo, o que faz nestes termos:
La lógica de la concepción valorativa sobre los derechos fundamentales no se agota
en la determinación de una escala de valores superiores sobre inferiores. El orden
de valores se utiliza para justificar decisiones sobre ponderaciones en materia de
derechos fundamentales, lo que en la práctica puede convertir la utilización del
orden de valores en una formula de encubrimiento del decisionismo judicial o
interpretativo. (DE CARA, 1994, p. 78)
A teoria axiológica dos direitos fundamentais, baseada na teoria da Constituição como
35
integração de Smend, abre caminho para a idéia de dimensão objetiva dos direitos
fundamentais e sua função irradiadora no sistema jurídico, o que será analisado mais adiante
no presente estudo: a idéia de que os direitos fundamentais proclamam um sistema de valores
sobre o qual repousa a unidade.
1.4.4 Teoria democrática funcional dos direitos fundamentais
Para a teoria democrático-funcional dos direitos fundamentais, a garantia do âmbito de
liberdade que esses podem significar verifica-se em virtude da importância que possuem no
processo democrático de construção da vontade política, pois o ponto de partida de tal teoria é
a concepção dos direitos fundamentais com base na sua função pública e política.
Conforme explica Böckenförde (1993), os direitos com referências democráticas, tais
como os de liberdade de opinião, liberdade de imprensa e liberdade de associação, ganham
papel preponderante em relação aos demais, pois os direitos fundamentais assumem seu
sentido e principal significado como fatores constitutivos de um livre processo de produção
democrática do Estado e um processo de formação da vontade política. Na sua percepção
los derechos fundamentales alcanzan su sentido y su principal significado como
factores constitutivos de un libre proceso de producción democrática (esto es, que
transcurre de abajo a arriba) del Estado en ello radica la coincidencia con la
doctrina de la integración y de un proceso democrático de formación de la
voluntad política. (BÖCKENFÖRDE, 1993, p. 60)
Vieira de Andrade (1987, p.64) destaca que a referida teoria tem simultaneamente uma
perspectiva “situacionista” e funcionalizante, na medida em que parte de uma perspectiva
jurídico-política e se situa numa posição constituinte, buscando a matriz constitucional de
reconhecimento dos direitos fundamentais. Sob tal ponto de vista, os direitos fundamentais
são inteligíveis a partir da relação com a função pública e democrática que desempenham.
Entre as conseqüências da aplicação da mencionada teoria para a interpretação dos
direitos fundamentais, pode ser destacado o fato de a liberdade deixar de ser encarada como
uma faculdade do particular, para se converter em garantia do processo democrático, como
resumiu Böckenförde (1993, p.61), ao afirmar que los derechos fundamentales no se le
reconocen al ciudadano para que disponga libremente de ellos, sino en su calidad de
miembro de la comunidad y, con ello, también en interés público.” Releva também destacar
que o caráter voluntário da liberdade de direito fundamental se torna vinculado, considerando-
se que, se relevância jurídica da liberdade acontece em virtude da realização de uma função
36
pública politicamente necessária, então não se pode admitir que seu exercício esteja cometido
à análise subjetiva do titular da liberdade. Esta se converte “en un servicio publico (Amt),
también en un deber.” (BÖCKENFÖRDE, 1993, p.62)
No mesmo sentido, Vieira de Andrade (1987) assevera que os direitos, segundo a teoria
ora apresentada, não são medidos pelos seus portadores, assim como não são livremente
disponíveis: são deveres ou competências vinculadas. Deduz-se, pois, que a teoria exprime
uma preocupação da sociedade em garantir uma ordem político-estatal estável e efetiva,
mesmo com prejuízo da livre decisão individual, convertendo-se a liberdade em um meio e
não em um fim, “como se o processo democrático fosse o verdadeiro sujeito dos direitos
fundamentais.” (ANDRADE, 1987, p.65)
Rafael Naranjo de la Cruz (2000) critica a teoria democrático-funcional dos direitos
fundamentais por entender que não se pode pôr em dúvida a existência de determinados
direitos fundamentais, nos quais se manifesta de forma particularmente evidente seu caráter
objetivo, como pressuposto da construção da vontade democrática do povo, como no caso das
liberdades de opinião e informação ou de reunião. Não obstante, isso não permite condicionar
sua própria existência como direito a esse efeito, pois prescinde do componente de liberdade
individual que reside em cada um dos direitos fundamentais, concluindo que:
la puesta de los derechos fundamentales al servicio de una función no es compatible
con su consideración como fines en si mismos en nuestro Derecho constitucional.
La medida de su valor se encuentra, así, en su propio contenido, no por el
contrario, en principios ajenos a ellos. (LA CRUZ, 2000, p.48)
1.4.5 Teoria do Estado Social
Na lição de Gomes Canotilho (1993), a teoria social parte da tripla dimensão que deve
ser assinalada aos direitos fundamentais: a dimensão individual (pessoal), a dimensão
institucional e a dimensão processual. A dimensão individual caracteriza-se pela permanência
da concepção subjetiva de liberdade, mas não nos termos preconizados pela teoria liberal, mas
com uma dimensão social, tendo em vista que não se exige mais a abstinência estatal em face
dos direitos, mas, ao contrário, exige-se a intervenção pública estritamente necessária à
realização desses direitos: “a intervenção estadual é concebida não como um limite, mas
como um fim do Estado.” (CANOTILHO, 1993, p.509)
Com efeito, a dimensão processual da teoria impõe ao Estado não a realização dos
direitos sociais, mas permite ao cidadão participar da efetivação das prestações necessárias ao
37
seu livre desenvolvimento.
Esta teoria, conforme assevera Vieira de Andrade (1987, p.67), distingue-se de todas as
outras anteriores, pois é compatível, pelo menos em parte, com elementos liberais,
institucionais ou de valor. Define direitos sociais como direitos de um novo tipo que, por
pressuporem a administração de recursos escassos, “só podem ter uma medida legislativa, não
podendo a constituição, nem determinar-lhes o conteúdo, nem delegar essa determinação à
autonomia privada.”
A teoria social dos direitos fundamentais pretende superar a dicotomia existente entre
liberdade jurídica e liberdade real, pois considerando que a garantia jurídica da liberdade
delimitativa, concebida sob a égide da teoria liberal, mostra-se insuficiente para assegurar a
liberdade dos direitos fundamentais como liberdade também real, a teoria reconhece que os
direitos fundamentais têm um caráter não só delimitativo-negativo, mas que ao mesmo tempo
facilitam pretensões de prestação social perante o Estado.
Böckenförde (1993, p.64) salienta o duplo aspecto que exsurge da concepção acima
exposta:
De un lado, la obligación del Estado derivada de los derechos fundamentales de
procurar los presupuestos sociales necesarios para la realización de la libertad de
los derechos fundamentales, una especie de posición de garante para la
implantación de la libertad e a realidad constitucional, y, del otro, el procuramiento
de pretensiones de derecho fundamental a tales prestaciones estatales, o, en su caso,
a la participación en instituciones estatales o procuradas por el Estado que sirven a
la realización de la libertad de los derechos fundamentales.
Depreende-se da exposição da teoria que a mesma não se mostra incompatível com a
dimensão subjetiva dos direitos fundamentais e tampouco pretende destruí-la, mas acresce
que o Estado deve intervir para que as liberdades individuais se realizem na prática. Apregoa
que a liberdade não pode ficar reduzida a sua formulação nominal no texto constitucional,
tudo reconhecendo a dependência, a interdependência e as diferenças de condição dos
indivíduos ou grupos.
A teoria social trouxe considerável avanço na compreensão multidimensional dos
direitos fundamentais, o que não lhe afasta as críticas, pois, como preleciona Gomes
Canotilho (1993, p.509), a teoria não esclarece quais as garantias efetivamente concedidas aos
cidadãos quanto à realização dos direitos sociais, bem como não esclarece se haverá
efetivamente direitos de quota-parte dos cidadãos na realização dos direitos fundamentais ou
se se trata tão-somente da simples questão de organização e administração.
38
Na lição de Vieira de Andrade (1987, p. 68), a teoria, ao tempo em que contribui para o
alargamento da visão global dos direitos fundamentais, levanta a grande questão relativa à
harmonia do conjunto dos referidos direitos, mostrando como, ao lado dos direitos
tradicionais, outros aparecem, a exigirem uma reconsideração dogmática equilibrada que evite
os exageros de um liberalismo reducionista ou de uma socialização total.”
Da análise das teorias acima apresentadas, verifica-se que todas encontraram fervorosos
defensores e críticos severos. O que importa no âmbito do presente estudo é demonstrar que
não existe uma única forma de apresentar uma abordagem dogmática dos direitos
fundamentais, pois estes apresentam concepções que variam em função das diversas formas
de organização social, sobretudo no que tange à contenção de abusos nas múltiplas relações
de poder na sociedade. Não obstante, no presente estudo assumem especial relevo as teorias
que ressaltam o aspecto objetivo dos direitos fundamentais. Isso porque, foi a partir da
aceitação dessa dimensão objetiva e da força irradiante dos valores constitucionais por todo o
ordenamento jurídico, inclusive na esfera privada, que se apresentou a discussão sobre uma
possível vinculação dos particulares aos direitos constitucionalmente assegurados, e, no caso
do princípio da boa-fé objetiva, como essa eficácia irradiante adentra a interpretação das
cláusulas gerais do direito privado.
1.5 Funções dos direitos fundamentais no constitucionalismo contemporâneo
Na afirmação de Perez Luño (1988), o constitucionalismo atual não seria o que é sem os
direitos fundamentais, pois as normas que estabelecem os direitos fundamentais, juntamente
com aquelas que consagram a forma de Estado e o sistema econômico, são decisivas para
definir o modelo constitucional de uma sociedade. um estreito nexo de interdependência
“genético y funcional, entre el Estado de Derecho y los derechos fundamentales, ya que el
Estado de Derecho exige e implica para serlo garantizar los derechos fundamentales,
mientras que éstos exigen e implican para su realización al Estado de Derecho.” (LUÑO,
1988, p.19)
Nessa perspectiva, reconhecem-se os direitos fundamentais como possuidor de uma
dupla dimensão: uma objetiva e outra subjetiva. Em sua significação objetiva
9
os direitos
fundamentais representam as bases do consenso sobre os valores de uma sociedade
9
A questão da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e suas implicações, sobretudo no que concerne ao
tema do presente estudo, qual seja, a sua aplicação nas relações privadas e o princípio da boa objetiva, será
analisada com mais profundidade no capítulo III. (DIMOULIS; MARTINS, 2007).
39
democrática, ou seja, sua função é a de sistematizar o conteúdo axiológico objetivo do
ordenamento democrático escolhido pelos cidadãos, comportando a garantia essencial de um
processo político livre e aberto, como elemento informador do funcionamento de qualquer
sociedade pluralista.
Ainda na visão de Perez Luño (1988), na medida em que o Estado Liberal de Direito
evoluiu para formas de Estado Social, os direitos fundamentais dinamizaram sua significação,
agregando à sua função de garantidor das liberdades existentes, “la descripción anticipadora
del horizonte emancipatorio a alcanzar” (LUÑO, 1988, p.21), pois, com o tempo, os direitos
fundamentais deixaram de ser meros limites ao exercício do poder político, para definir um
conjunto de valores ou fins diretivos da ação positiva dos poderes públicos.
Outrossim, como conjunto de valores básicos de uma sociedade, os direitos
fundamentais, em sua dimensão objetiva, passaram a ter uma função de conformadores do
ordenamento infraconstitucional, sendo ponto de partida para a interpretação e aplicação de
dito ordenamento.
em sua dimensão subjetiva, os direitos fundamentais têm a função de tutelar a
liberdade, a autonomia e a segurança dos cidadãos, não em suas relações com o Estado,
mas em relação aos demais membros da sociedade. Não se trata, pois, da dimensão subjetiva
classicamente estruturada em bases liberais, mas de uma dimensão subjetiva repensada a
partir dos influxos axiológicos constitucionais, superando-se a concepção puramente formal
de igualdade entre os diversos membros da sociedade. Isto porque, com a passagem do Estado
liberal para o Estado social de Direito, supõe-se a extensão da incidência dos direitos
fundamentais a todos os setores do ordenamento jurídico, incluindo não as relações
públicas, mas também as relações entre os particulares, tema objeto do presente estudo.
Além das funções descritas pelas dimensões objetiva e subjetiva dos direitos fundamentais,
vale registrar o esforço de sistematização que se tornou clássico, desenvolvido por Jellinek
10
[6], e
que se tornou ponto de partida para outros estudos doutrinários, conhecido como teoria dos quatro
status. Tal teoria tomou por base as posições que o indiduo pode assumir perante o Estado, quais
sejam: status subjectiones ou passivo; status negativo; status civitatis ou positivo e status ativo.
Em apertada síntese, o status passivo diz respeito à posição do cidadão frente ao Estado,
na condição de submissão aos deveres impostos pelo mesmo. O status negativo é consectário
10
Sobre o tema, ver Luño (1988, p.24-25).
40
da personalidade de que são detentores os homens, pois enseja uma parcela de liberdade em
relação à interferência dos poderes públicos. O status positivo diz respeito à possibilidade de o
cidadão exigir do Estado algumas prestações em seu favor e, por fim, o status ativo é
concernente aos direitos políticos exercidos pelos cidadãos, como forma de possibilitar a
interferência direta destes sobre a formação da vontade estatal.
Perez Luño (1998) adverte que tais status foram concebidos prioritariamente como
instrumentos de defesa dos interesses individuais, mas, na medida em que se foi adquirindo
consciência de que o desfrute de direitos e liberdades por todos os membros da sociedade
exigia garantir cotas de bem-estar econômico que permitissem a participação ativa na vida
comunitária, surgiu a necessidade de agregar-se um novo status aos demais previstos por
Jellinek, a saber, o status positivus socialis, na forma a seguir transcrita:
Este nuevo status, que comprende el reconocimiento de los denominados ‘derechos
económicos, sociales y culturales, no tiende a absorber o anular la libertad
individual, sino a garantizar el pleno desarrollo de la subjetividad humana, que
exige conjugar, a un tiempo, sus dimensiones personal y colectiva. Por ello, estos
derechos se integran cabalmente en la categoría ovni comprensiva de los derechos
fundamentales, a cuya conformación han contribuido decisivamente. (LUÑO, 1988,
p. 25).
Ante as teorias expostas, pode-se assim considerar que a teoria do efeito horizontal,
surgido na Alemanha, numa reflexão política, tendo por ênfase a proteção dos interesses de
classes e grupos sociais mais fracos diante do poder de particulares que, diante da ficção
jurídica da igualdade de todos, exerciam um poder social. Entretanto, diante do caráter direto
da aplicação da norma constitucional, as relações entre particulares ficam submetidas aos
direitos fundamentais mediante atuação do Estado-juiz. O particular está diretamente ligado
ao direito infraconstitucional, sobretudo ao direito privado e penal, do qual é o destinatário
normativo por excelência. Assim, no decorrer deste estudo, vai-se verificar que a teoria do
efeito horizontal é meramente indireto, necessitando dos medias, isto é, da intermediação das
cláusulas gerais do direito infraconstitucional, como a da boa-fé objetiva, sobre a qual incide
o “efeito de irradiação” e, evidentemente, da decisão do juiz que interpreta e aplica tal
cláusula. (DIMOULIS; MARTINS, 2007, p.113-114)
41
2 O ESTADO CONSTITUCIONAL E SUA RELAÇÃO COM OS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
O estudo histórico dos direitos fundamentais assume grande importância não só como
mecanismo hermenêutico, mas considerando que sua análise remonta ao surgimento do
moderno Estado Constitucional, justamente no seio do qual se asseguram e se reconhecem a
dignidade da pessoa humana e os direitos fundamentais do homem. Assim, afirma Ingo Sarlet
(2001, p.38) que a história dos direitos fundamentais pode ser considerada, de certa forma,
também a história da limitação do poder.
Nesse diapasão, cumpre primeiramente fazer uma pequena análise do estudo da história
das instituições e sua importância para a compreensão do fenômeno que se dispõe a estudar,
qual seja, a aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas e sua correlação com o
princípio da boa-fé objetiva.
Isso porque a história pode se constituir em fértil campo de reflexão para o jurista, pois,
na feliz advertência de Rodrigo Pelais Banhoz e Luiz Edson Fachin (2002, p.72) “desconhecer
propositadamente o passado é, de alguma forma, negar o que o presente pode ter de
contraponto” advertência lançada a propósito de analisar as possibilidades, entre outros
fatores, de aprofundamento dos estudos jurídicos com a utilização da história e em crítica à
acepção jurídica conceitualista e avessa à experiência que dominou os estudos jurídicos, sob a
influência, sobretudo, do positivismo jurídico.
O estudo dos direitos fundamentais, independentemente do prisma de sua abordagem,
não pode prescindir do estudo da história. Gisele Cittadino (2001, p.102) explica que os
direitos fundamentais positivados recebem uma validação da comunidade, enquanto fazem
parte da consciência ético-jurídica de uma coletividade histórica, formada por homens
concretos. Nesse sentido, os estudos do direito, da hermenêutica e da história apresentam-se
absolutamente indissociáveis.
11
Noutra toada, Hespanha (1997) adverte para o fato de que o estudo da História do
Direito constitui-se importante fonte de estudo crítico das disciplinas dogmáticas jurídicas,
tendo por missão questionar o pressuposto básico de tais disciplinas, qual seja, o de que o
direito dos dias atuais é sempre “o racional, o necessário, o definitivo”. E afirma que essa
missão acometida ao estudo histórico do direito é levada a cabo, sublinhando que
o direito existe sempre em sociedade e que, seja qual for o modelo usado para
descrever as suas relações com os contextos sociais (simbólicos, econômicos, etc.),
as soluções jurídicas são sempre contingentes em relação a um dado envolvimento
(ou ambiente). São, nesse sentido, sempre locais. (HESPANHA, 1997, p.15)
Assim, para a compreensão do conjunto dos direitos fundamentais que se extrai da
Constituição brasileira, passa-se a analisar os contributos dos diversos estágios evolutivos do
Estado moderno, quais sejam, o Estado Liberal, o Estado Social e o Estado Democrático de
Direito.
2.2 Surgimento e consolidação do estado nacional: o modelo liberal
Na fase anterior à instauração do poder político da burguesia ascendente, vigia na
Europa o Direito Canônico, que regulava a conduta dos membros da Igreja, fixando, a partir
de uma rigorosa censura, suas relações hierárquicas e seus tribunais. Na visão de Rogério
Gesta Leal (1997, p.46), essa formatação do Direito Canônico explica em grande medida a
origem formal da concepção do Direito e das leis, até hoje dominante no Ocidente. Em que
pese o predomínio da Igreja nas relações de poder, sobretudo ligado à autoridade espiritual do
Papa, nos diversos reinos europeus e na vida comunitária, impõe-se uma prática jurídica e
administrava que afirma a autoridade de um poder real, que é exercido não em razão da
divindade, mas em razão de princípios profanos. Isso acontece na medida em que o poder
deixa de ser exercido sobre um território ocupado por pessoas protegidas e passa a existir
sobre um território cujos habitantes possuem cada vez mais direitos e deveres definidos, os
quais não podem ser infringidos sequer pelo monarca que governa de maneira absoluta.
Assim, a Europa desse período vai assistir à formação dos Estados-nação monárquicos, cujo
11
A mencionada autora afirma que “os direitos fundamentais positivados constitucionalmente recebem uma
validação comunitária, na medida em que fazem parte da consciência ético-jurídica de uma determinada
comunidade histórica. A dignidade humana, assegurada pelos direitos fundamentais vistos como princípios, não
significa um valor abstrato, mas autonomia ética de homens concretos. Ao adotar tais compromissos, o
constitucionalismo comunitário consegue estabelecer não apenas um vínculo entre direitos fundamentais e
democracia participativa, mas, ao mesmo tempo, revela como o direito, hermenêutica e história são temas
absolutamente indissociáveis.’ (CITTADINO, 2001, p.102).
43
apogeu se deu com Luís XIV.
Na dicção de Rogério Gesta Leal (1997, p.48), esse é o período do Renascimento, que
pretende a ruptura com o dogmatismo em favor de uma crítica científica, substituindo a
pela razão, e torna o homem o centro das preocupações existenciais. Nesse período “a figura
do Estado confunde-se com a pessoa do Rei, e sua função é muito mais política e de
manipulação dos interesses do soberano do que em relação a qualquer outra situação.”
De grande importância no contexto de nascimento dos Estados modernos, os
movimentos da revolução comercial e o mercantilismo, justamente por fazer emergir um novo
setor na economia, qual seja, a burguesia, que vai revolucionar as relações de poder na idade
moderna. Na verdade, o governo monárquico controlava todos os ramos da atividade
econômica, direta ou indiretamente. Essa postura, em linhas gerais, desagradava à burguesia,
que, de início, pretendia ver garantidas apenas suas liberdades comerciais, de modo a não ter
que repartir lucros ou vencimentos com o setor público.
Esse o contexto em que surge o Renascimento, o qual se caracterizou como um
movimento cultural cujos objetivos principais eram o rompimento com os valores e tradições
de um passado, juntamente com a criação de uma nova postura que identificasse as propostas
da burguesia emergente. Da perspectiva do poder político, desfaz-se a idéia de poder
medieval, fundado sobre a dupla autoridade do Papa, em questões espirituais, e do Imperador,
em questões temporais, superando-se a escolástica, doutrina oficial da Igreja católica, a partir
da libertação de valores como a admiração, a adoração, a obediência, o respeito e o desapego,
para a assunção de novos valores, como individualidade, liberdade, criatividade, participação
e enriquecimento. É a razão, pois, que assume a tarefa de fundamentar os novos valores,
assim como o poder real torna-se ilimitado e absoluto.
No que concerne ao domínio jurídico, observa-se que a unificação do direito é um dos
objetivos almejados pelos reis absolutistas, como forma de eliminar particularismos regionais
e locais e destruir os privilégios de certos grupos sociais. Os costumes são cada vez mais
substituídos por leis, tanto quanto o processo oral é substituído pelo processo escrito, com o
intuito de dar maior segurança jurídica. Não obstante, a despeito do processo de substituição
do costume pela legislação escrita, em se tratando de Direito Civil, aquele ainda permanece
como fonte principal. John Gilissen analisa o fenômeno descrito da seguinte forma:
O costume permanece assim a fonte principal do direito civil. Mas muda de caráter:
os soberanos ordenam a redução a escrito dos costumes; uma vez escrito e
44
homologado (o que quer dizer reconhecido oficialmente), deixa de ser um
verdadeiro costume para se tornar uma lei de origem consuetudinária. Os soberanos
reservam-se o direito de o modificar e interpretar. (GILISSEN, 1986, p.248)
Observa-se ainda uma crescente influência do Direito romano, com o rápido declínio do
Direito canônico, como fonte do Direito laico. O Direito romano era encarado como um
direito erudito e era usado em caráter supletivo das leis e costumes, com vistas a preencher as
lacunas do direito em vigor. A Alemanha, no século XVII, até meados do século XVIII,
tornou-se o principal centro de estudos do Direito romano na Europa, sendo que, somente
com a entrada em vigor do Código Civil alemão, o Direito Romano deixou de ser o direito
supletivo na maior parte daquele país. Assim, ensina John Gilissen, o Direito romano
encontrou nesse país, no século XIX, seus mais brilhantes representantes, como Hugo
(1764-1844) e Savigny (1779-1861), ambos da Escola Histórica do Direito. Daí resultou o
desenvolvimento de uma dogmática de Direito privado, baseada no positivismo científico e na
ciência das Pandectas.
Voltando à questão do surgimento dos Estados modernos, estes se formam a partir do
reforço recebido pelo poder dos reis e grandes senhores territoriais, sendo que esse reforço de
poder ensejou o enfraquecimento constante do feudalismo. Ao mesmo tempo, cada reino
desenvolveu um sistema jurídico próprio, centrado nas tradições e costumes locais, nas
legislações e decisões reais ou senhoriais e assim foram paulatinamente se formando os
direitos dos Estados modernos.
É importante registrar que esses numerosos sistemas não evoluíram todos da mesma
forma, sofrendo a influência de fatores políticos, econômicos e sociais, o que explica a
unificação do direito sob o signo dos particularismos locais.
sob a influência das idéias políticas e jurídicas dos pensadores dos séculos XVII e
XVIII
12
, tais sistemas sofreram grandes transformações, desaparecendo os últimos vestígios
do feudalismo. Em linhas gerais, John Gilissen (1979, p.131) resume o período nos termos a
seguir transcritos:
As revoluções Americana (1776) e Francesa (1789) concretizam as idéias novas nos
textos das constituições e de leis. Os últimos vestígios de feudalismo desaparecem,
com algumas exceções apenas; as liberdades públicas garantem direitos subjetivos
aos cidadãos, livres e iguais perante o direito; a soberania passa das mãos dos reis e
dos príncipes para a Nação; a unificação do direito prossegue no quadro estatal.
Cada Estado soberano tem o seu próprio direito, fixado por órgãos legislativos; a lei
torna-se, quase por toda parte, a fonte principal do direito.
12
Sobre o tema, remetemos à leitura das obras de Gilissen (1979) e Leal (1997).
45
Não sem razão, as leis se tornam a principal fonte do direito nesse período. Como foi
dito anteriormente, a razão assumiu o papel de conformadora dos valores do novo segmento
social ascendente: a burguesia. Assim, o racionalismo iluminista, calcado na idéia da razão
como a base de uma ordem política abstratamente realizável, é que explica a idéia de uma lei
ou constituição que seja a criadora de uma comunidade política.
Para Gomes Canotilho (1993, p.252), é a dimensão “abstratizante” do racionalismo
iluminista que “explicará a crença dos políticos e doutrinadores liberais não na validade
geral e universal das suas construções constitucionais, mas também no dogma da força
conformadora absoluta das normas abstractas e gerais”. E conclui o citado constitucionalista
português que daí advém a “teoria da lei geral e abstracta, produto da razão, manifestação da
vontade geral, inquebrantavelmente vinculativa de todos os cidadãos e aplicável a todas as
situações por ela contempladas.”
De par com o Renascimento como movimento cultural da burguesia, que se
mencionar o liberalismo, tanto como doutrina política, como movimento econômico, base do
capitalismo e da economia de livre mercado. Eric Hobsbawm (1995, p.114-115) resumiu os
principais valores liberais como sendo
a desconfiança da ditadura e do governo absoluto; o compromisso com um governo
constitucional com ou sob governos e assembléias representativas livremente eleitos,
que garantissem o domínio da lei; e um conjunto aceito de direitos e liberdades dos
cidadãos, incluindo a liberdade de expressão, publicação e reunião. O Estado e a
sociedade deviam ser informados pelos valores da razão do debate público, da
educação, da ciência e da capacidade de melhoria (embora não necessariamente de
perfeição) da condição humana.
Da perspectiva econômica, em linhas gerais, o liberalismo propunha o lucro, o
desenvolvimento industrial e a propriedade privada como centro das prioridades para as
iniciativas governamentais. A agricultura também passou por profundas modificações,
assumindo a terra o papel de mercadoria, um bem lucrativo a ser monopolizado por grupos
privados.
A princípio na Inglaterra e posteriormente nos outros países europeus, o processo de
industrialização trouxe profundas mudanças na vida da sociedade, a começar pelo significado
do trabalho. Conforme afirmam Myriam Becho Mota e Patrícia Ramos Braick (1999, p.273),
acerca do significado de trabalho “o que antes significava dor, humilhação e pobreza passou a
designar fonte de propriedade, riqueza, produtividade e até mesmo a expressão da condição
humana. O trabalho passou a dignificar o homem e a qualificá-lo, tornando-se indicador de
46
posição social.”
No que tange ao sistema de Direito, ensina Gomes Canotilho (1993, p.254) que toda a
construção constitucional liberal tem em vista dar segurança jurídica, protegendo a economia
das intervenções do príncipe na esfera jurídico-patrimonial dos súditos, inclusive com a
possibilidade de revogação e alteração de leis. Assim, “o laço que liga ou vincula às leis
gerais às funções estaduais protege o sistema de liberdade codificada do direito privado
burguês e a economia de mercado.”
Bem assim, ao lado da perspectiva econômica do liberalismo burguês, que se
mencionar o liberalismo político e sua função de permitir a implantação da política burguesa,
a partir da influência parlamentar. No ordenamento político burguês, o que Habermas (1984,
p.93) chama de esfera pública passa a ser o princípio organizador dos Estados de Direito e,
assim,
a esfera pública com atuação política passa a ter o status normativo de um órgão de
automediação da sociedade burguesa com um poder estatal que corresponda às suas
necessidades. O pressuposto social dessa esfera pública ‘desenvolvida’ é um
mercado tendencialmente liberado, que faz da troca na esfera da reprodução social, à
medida do possível, um assunto particular das pessoas privadas entre si,
completando assim, finalmente, a privatização da sociedade burguesa.
As constituições liberais concebiam o indivíduo como sujeito unificador da ordem
jurídica, mormente sob duas perspectivas diferentes: de um lado a que acentua o
desenvolvimento do sujeito moral e intelectual e, de outro, a que parte do desenvolvimento do
sujeito econômico livre no meio da livre concorrência.
É sob a égide da doutrina liberal que surge o Estado de Direito, cujo arcabouço
constitucional foi dirigido à contenção do exercício arbitrário, abusivo e ilegítimo de poder.
Assim, os poderes públicos passam a ser regulamentados por leis gerais, devendo ser
exercidos nos estritos limites das leis que os regulam. Também se assiste à
constitucionalização dos direitos naturais. No Estado de Direito, pugna-se não pela
submissão dos poderes públicos às leis gerais, mas também pela subordinação das leis a um
limite material de reconhecimento de alguns direitos fundamentais, considerados
constitucionalmente invioláveis.
47
No resumo de Carlos Ari Sundfeld (2000, p.40), as pedras de toque no novo modo de
conceber as relações entre indivíduo e Estado são: “(a) a supremacia da Constituição; (b) a
separação de poderes; (c) a superioridade da lei; e (d) a garantia dos direitos individuais.”
O Estado de Direito, da perspectiva teórica, assume seu pleno desenvolvimento a partir
da concepção positivista-formalista, sobretudo na obra de Hans Kelsen, intitulada Teoria Pura
do Direito (1999). Para Perez Luño (1986, p.222-223), os traços principais do Estado de
Direito podem ser resumidos a uma aparente despolitização do Estado, o qual aparece como
um mero instrumento neutro e disponível para garantir o laissez faire, ou seja, para garantir
juridicamente o livre jogo dos interesses econômicos e uma identificação do conceito de
Estado de Direito com o princípio da legalidade, significando a submissão da administração à
lei e a possibilidade de controle judicial de seus atos.
13
Nessa época, e de grande importância para o Direito privado até os dias atuais, m à
lume os primeiros códigos, significando a união material de vários elementos antes dispersos.
O esforço de codificação atingiu na França seu apogeu, na medida em que Napoleão
conseguiu dar azo a um grande esforço de sistematização legislativa, pois de 1804 a 1810
foram sucessivamente promulgados um Código Civil, um Código Comercial, um Código de
Processo Penal, um Código Penal e um de Instrução Criminal. Tais Códigos influenciaram a
codificação de muitos países, entre eles o Brasil.
A necessidade de codificação, na França, foi afirmada desde o início da Revolução
Francesa, sendo o Código Civil um documento que é o reflexo das questões políticas e sociais
de seu tempo. Como assevera Gilissen (1979), o mesmo fora redigido e discutido no momento
em que Bonaparte consolida seu poder pessoal, refletindo “a tendência para conciliar as
conquistas civis e políticas da Revolução com o desejo de estabilidade econômica e social,
13
Aqui, a integra do pensamento de Perez Luño (1986, p.222-223). sobre os traços principais do Estado de
Direito na visão de Hans Kelsen, os quais podem resumir-se a: “a) Una aparente despolitización del Estado,
que, lejos de proponerse la realización de fines políticos propios, aparece como un mero instrumento neutro y
disponible para asegurar el laissez faire. esto es. para garantizar el libre juego de los intereses económicos.
Para ello se consuma la fractura entre sociedad y Estado al independizar la organización y reproducción del
poder político de cualquier conexión con la sociedad. Estos presupuestos se traducen, en la practica, en la
cobertura ideológica de los intereses de la burguesía. El Estado liberal de Derecho funciona como un Estado al
servicio de la burguesía para lo que dificulta el ejercicio del derecho de asociación, abandona el mercado a los
económicamente poderosos y reconoce una libertad e igualdad en el plano formal que no tienen
correspondiendo en el social y económico; b) Tendencia hacia a la identificación del concepto de Estado de
Derecho con el principio de legalidad, lo que implica lo sometimiento de la administración a la ley, así como la
posibilidad del control jurisdiccional de sus actos. Ahora bien. la supresión de cualquier referencia al contenido
material de la legalidad y del Estado de Derecho o, lo que es igual entre el Estado y el Derecho. De ahí resulta
sencillo concluir, como Kelsen hará expresamente, que todo Estado, pero el mero hecho de serio, es Estado de
Derecho”.
48
baseada na família e na propriedade. Mantém-se a abolição dos direitos feudais; é garantida a
liberdade civil de todos os indivíduos: liberdade de contratar, de testar etc.” (GILISSEN,
1979, p.454)
Os Códigos tinham por escopo dar maior conhecimento do direito e maior segurança
jurídica a todos os cidadãos e não apenas aos juristas, recebendo caráter oficial do Estado e
formando um sistema. A maior crítica ao processo de codificação de base liberal é que, sob o
manto de uma racionalidade e abstração, os Códigos criaram categorias congruentes com o
momento histórico de sua criação, mas com pretensões de validade perpétua. Bem assim, a
partir de um cientificismo e de uma neutralidade, o sujeito foi apresentado como um ente
abstrato e distanciado da realidade social, o que ensejou um afastamento cada vez maior das
regras previstas, sobretudo no Código Civil, da realidade vivida pela sociedade.
A derrocada do liberalismo consolidou-se a partir dos movimentos das classes
trabalhadoras, dos movimentos não tradicionais da direita radical, os quais surgiram, a partir
do que ensinou Eric Hobsbawm (1995, p.122-123), “do ressentimento de homens comuns
contra uma sociedade que os esmagava entre a grande empresa, de um lado, e os crescentes
movimentos trabalhistas de outro” mas, sobretudo, do movimento de extrema direita, rotulado
de “fascismo”, principalmente em sua forma italiana com Mussolini e na sua versão alemã,
com Hittler.
Aliás, vale registrar a crítica ao estadualismo oitocentista formulada por Hespanha
(1997), ao afirmar que a instituição Estado, na forma concebida pela teoria política liberal
(rigorosa separação entre sociedade civil e Estado; distinção da natureza dos poderes do
Estado e poderes conferidos aos particulares; criação de mecanismos de participação do
cidadão na sociedade política, notadamente a representação; identificação do direito com a lei
e instituição da justiça oficial como única instância solucionadora de conflitos), apresenta-se
em crise. Nesse sentido, destaca que:
a igualdade como objectivo político, vê-se confrontada com as pretensões de
garantia da diferença; o interesse geral tende a ceder perante as pretensões
corporativas ou particularistas; o centralismo debate-se com todas as formas de
regionalismo; o império da lei é atacado, tanto em nome da irredutibilidade de cada
caso e da liberdade de apreciação do juiz a isso ligada, como em nome de ideais de
concertação e de negociação; a intenção racionalizadora capitula diante das
pretensões liberais mais radicais. Em suma, o Estado abandona progressivamente o
imaginário político. (HESPANHA, 1997, p.32)
No que tange às relações entre o Estado Liberal e os direitos fundamentais, remete-se ao
texto presente no item 1.4.1 do capítulo 1.
49
Deixa-se registrado que, nesse período, a relação interindividual na compreensão do
contrato era tido apenas segundo o pacta sunt servanda. Havia aqui apenas influência da boa-
subjetiva, nem cabendo a discussão quanto à boa-fé objetiva. A prestação contratual
circunscrevia ao pactuado no instrumento contratual, porquanto não cabia a inclusão dos
deveres anexos da boa-fé.
2.3 O Estado social
Como ponto de partida, pode-se afirmar que o Estado social representa historicamente o
intento de adaptação do Estado tradicional Estado liberal-burguês às condições sociais da
civilização industrial e pós-industrial, com os seus novos e complexos problemas, mas
também com suas grandes possibilidades técnicas, econômicas e organizativas. É, pois, uma
fase, ou o resultado de uma longa transformação por que passou o Estado Liberal clássico e,
conseqüentemente, é parte do histórico Estado de Direito, quando incorpora os direitos sociais
para além dos direitos civis.
A idéia do mercado como ente regulador da vida em sociedade e garantia do livre
desenvolvimento dos indivíduos tornou-se incompatível com o ideal do Estado, pois a força
deste, estando diretamente ligada ao nível moral e material de seus cidadãos, apresenta-se
contraditória com a miséria econômica da maioria da população. De igual forma, a
estabilidade do Estado de Direito ou burguês apresentava-se ameaçada por um incipiente
movimento em prol da revolução social, surgido a partir do momento em que as classes
oprimidas começam a ter acesso à cultura e, com isso, a tomar maior consciência de sua
situação. Como conclui Manuel García-Pelayo (1982, p.15), “la corrección por el Estado de
los efectos disfuncionales de la sociedad industrial competitiva no es solo una exigencia
ética, sino también una necesidad histórica, pues hay que optar necesariamente entre la
revolución o las reformas sociales.”
O Estado social representa assim a tentativa de adaptação do Estado burguês, dito
tradicional, às condições sociais da civilização industrial e pós-industrial, com suas novas
demandas, principalmente a tentativa de remediar as péssimas condições de vida das camadas
mais desamparadas da população. Não obstante, o que começou como uma política setorial de
alguns países, tornou-se uma política social generalizada, que não pretende mais ser uma
reação às demandas sociais, senão uma tentativa de programação integrada e sistemática da
atuação do Estado.
50
Segundo adverte Habermas (1984, p.261), a transformação sócio-estatal do Estado
liberal “se caracteriza pela continuidade, e não por algo como uma ruptura com as tradições
liberais.”
Assim, o Estado Social propôs a substituição do individualismo, apolitismo e
neutralidade do Estado Liberal, incapaz de satisfazer a exigência de liberdade e igualdade
reais, por mecanismos que fossem capazes de implementar uma justiça social.
Mais uma vez citando Habermas (1984, p.262), este, ao comentar o processo de
transformação sócio-estatal do Estado Liberal de Direito, explicita que o Estado Social, na
continuação da tradição jurídica do Estado Liberal e na tentativa de assegurar um
ordenamento jurídico global do Estado e da sociedade, avança cada vez mais no sentido de ele
mesmo tornar-se o portador da ordem social, com a necessidade de assegurar, “para além das
definições negativas e denegatórias dos direitos liberais básicos, uma determinação positiva
de como se deve realizar a justiça com a intervenção social do Estado.”
14
O Estado social considera tarefas próprias ajudar seus cidadãos, assegurando-lhes
assistência frente à enfermidade, à falta de condições de vida ou à degradação do meio
ambiente. Daí porque esse modelo de Estado ser chamado de Estado assistencial ou Estado do
bem-estar (welfare state)
Um dos marcos legislativos mais importantes da fase inicial de implantação do Estado
Social pode ser apontado como sendo a Constituição de Weimar, a qual representou um
abandono do primado do não intervencionismo estatal (laissez faire) em favor de um
intervencionismo dos poderes públicos no processo econômico, com vistas ao implemento da
produção, como forma de garantia do pleno emprego e valorização do trabalho.
No dizer de Perez Luño (1986), a mudança do Estado Liberal para o Estado Social de
Direito suscitou uma série de questões teóricas e práticas, sobretudo envolvendo o papel dos
órgãos públicos no desenvolvimento existencial dos indivíduos. Assim é que a Administração
passa a ser responsável pela tarefa
de proporcionar a la generalidad de los ciudadanos las prestaciones necesarias y
los servicios públicos adecuados para el pleno desarrollo de su personalidad
reconocida no solo a través de las libertades tradicionales, sino también a partir de
la consagración constitucional de los derechos fundamentales de carácter
14
É importante que se esclareça que apesar de utilizarmos o texto de Habermas na definição de elementos do
Estado Social, da leitura de sua obra depreende-se que o mesmo é critico desse modelo estatal, o que não
invalidade a sua análise estrutural aqui apresentada.
51
económico, social y cultural. Al propio tiempo, el Estado social de Derecho
pretende asumir el cometido de reestructurar y equilibrar las rentas mediante el
ejercicio de la política fiscal [....]. (LUÑO, 1986, p. 224)
De outra parte, o Estado Social pressupõe o fim da separação entre Estado e sociedade,
passando o Estado a assumir a responsabilidade pela transformação do ordenamento
econômico e social, com vistas à realização material de igualdade. A questão funda-se no fato
de que a concepção liberal de lei foi esvaziada “em seus dois elementos a generalidade
como garantia da igualdade e a correção, isto é, a verdade como garantia da justiça a tal
ponto que o preenchimento de seus critérios formais não basta mais para uma normatização
adequada da nova matéria”. Assim, no lugar de uma garantia formal, precisa aparecer, pelo
contrário, uma garantia material que prescreve, aos pactos de interesses, regras programáticas
de uma justiça distributiva.” (HABERMAS, 1984, p.262)
Diferentemente do Estado Liberal, no qual Estado e sociedade eram concebidos como
sistemas autônomos, no Estado Social, aquele assume a competência e responsabilidade para
a estruturação da ordem social.
Merece registro, por oportuno, a apresentação feita por García-Pelayo (1982, p.21)
acerca da interação de Estado e sociedade no Estado Social, afirmando que o Estado Liberal
era concebido como una organización racional orientada hacia ciertos objetivos y
valores y dotada de estructura vertical o jerárquica, es decir, construida
primordialmente bajo relaciones de supra y subordinación. Tal racionalidad se
expresaba capitalmente en leyes abstractas (en la medida de lo posible
sistematizadas en códigos), en la división de poderes como recurso racional para la
garantía de la libertad y para la diversificación e integración del trabajo estatal, en
una organización burocrática de la administración.
Já o Estado Social, por seu turno, na dicção do mencionado constitucionalista,
parte da experiencia de que la sociedad dejada total o parcialmente a sus
mecanismos autorreguladores conduce a la pura irracionalidad y que solo la acción
del Estado hecha posible por el desarrollo de las técnicas administrativas,
económicas, de programación de decisiones, etc, puede neutralizar los efectos
disfuncionales de un desarrollo económico no controlado. Por consiguiente, el
Estado no puede limitarse a asegurar las condiciones ambientales de un supuesto
orden social inmanente, ni a vigilar los disturbios de un mecanismo autorregulado,
sino que, por el contrario, ha de ser el regulador decisivo del sistema social y ha de
disponerse a la tarea de estructurar la sociedad a través de medidas directas o
indirectas […]. (GARCÍA-PELAYO, 1982, p. 23)
Da perspectiva econômica, o Estado Social teve por base a preocupação com o respeito
à economia de mercado capitalista, bem como o respeito à propriedade dos bens de produção,
mas com a garantia de uma transformação democrática, abandonar o dogma do laissez faire
em nome de um intervencionismo dos poderes públicos no processo econômico, tendente ao
52
incremento constante da produção.
No que diz respeito aos valores basilares do Estado Social, tem-se que os principais
valores do Estado Liberal não são repudiados, antes, ao contrário, pretende-se fazê-los mais
efetivos, conferindo, desta feita, um conteúdo material à liberdade, à propriedade individual, à
igualdade e à segurança jurídica.
Assim, não existe a possibilidade de se redefinir a liberdade individual sem que esta seja
dotada de condições existenciais mínimas que tornem possível seu exercício real. A partir
desse novo posicionamento acerca da liberdade, assiste-se a uma mudança no papel
desempenhado pelo princípio da dignidade da pessoa humana no ordenamento jurídico: se nos
séculos XVIII e XIX se pensava a liberdade como uma exigência da dignidade da pessoa
humana, para o Estado Social, a dignidade humana, materializada em pressupostos
socioeconômicos, é uma condição para o exercício da liberdade.
Segundo preleciona Manuel García-Pelayo (1982, p. 26), a propriedade individual passa
a ter como limite os interesses gerais da comunidade e setoriais daqueles que participam da
produção. Da mesma forma, a segurança formal tem de ser acompanhada de segurança
material, por intermédio de instituições como salário mínimo, segurança de emprego,
assistência médica, entre outras, de modo que a segurança jurídica e a igualdade perante a lei
sejam complementadas com condições mínimas de vida com a correção das desigualdades
econômico-sociais.
O mesmo autor, ao analisar os principais valores e fins do Estado Social, traça, com
precisão, a linha divisória entre o modelo liberal e o social. De um lado, se o Estado
tradicional sustentava-se na justiça comutativa, o Estado Social sustenta-se na justiça
distributiva. Se aquele assegurava direitos sem menção de conteúdo, este distribui bens
jurídicos de conteúdo material. Se para o primeiro a função básica era a legislativa, para o
segundo o papel do Estado é de gestor, cujas condições impor-se-ão à legislação mesma.
Enquanto o primeiro limitava-se a assegurar uma justiça legal formal, o Estado Social busca
uma justiça legal material. Se na esfera liberal os valores burgueses se contrapunham a um
aumento da atuação estatal, no Estado Social o único que pode assegurar a vigência dos
53
valores sociais é o Estado, a partir de mecanismos institucionais adequados.
15
Uma das principais características do Estado Social foi sua conversão em empresário,
principalmente a partir da estatização de empresas, seja pela criação de empresas sob a forma
jurídica privada, seja pela participação conjunta com o capital privado em empresas mistas.
Tal fenômeno se deu por razões distintas e provocou uma hipertrofia do Estado, que
atualmente caminha no sentido oposto, ou seja, no sentido da diminuição do seu tamanho, a
partir de conceitos como liberação, privatização e desregulação.
No que diz respeito ao sistema jurídico, é justamente nessa redefinição dos papéis do
Estado, no Estado Social, que vai acontecer a ruptura do sistema clássico de Direito Privado,
pois a evolução jurídica, após o término da Primeira Guerra Mundial, acompanha a evolução
social e “acarreta o surgimento de uma complicada mistura de tipos que, de início, foi
registrada sob a rubrica publicização do Direito Privado” e que mais tarde reconheceu-se que
“elementos de Direito Público e elementos de Direito Privado se interpenetraram mutuamente
até a incognoscibilidade e a indissolubilidade.” (HABERMAS, 1984, p.178)
Nessa toada, merece registro o novo papel que a separação de poderes assumiu no
Estado Social. Indiscutivelmente, o dogma da separação dos poderes foi um dos pilares do
constitucionalismo liberal
16
, que, entre outros méritos, recebe o crédito de ter servido de base
para a luta pelos ideais de liberdade e democracia, implantando na consciência ocidental o
“sentimento valorativo dos direitos e garantias individuais” (BONAVIDES, 2001, p.64).
Todavia, no Estado Social não merece mais o mesmo destaque, considerando-se que o
constitucionalismo deixou de basear-se no individualismo clássico, tradicional, para aceitar
uma dimensão social, que não apenas assegure a proteção dos direitos fundamentais do
homem perante o Estado, mas que assegure a sua participação na formação da vontade do
Estado, de modo a capacitar esse Estado a garantir, de forma cada vez mais efetiva, a
15
García-Pelayo (1982, p.27), ensina que a partir dos pressupostos acima descritos, “el Estado social ha sido
designado por los alemanes como el Estado que se responsabiliza por ‘la procura existencial’ (Deseinvorsorge),
concepto formulado originalmente por Forsthoff y que puede resumirse del siguiente modo. El hombre
desarrolla su existencia dentro de un ámbito constituido por un repertorio de situaciones y de bienes y servicios
materiales e inmateriales, en una palabra. por unas posibilidades de existencia a las que Forsthoff designa
como espacio vital.”
16
Sobre o tema leciona Paulo Bonavides (2001, p.64) que o principio da separação de poderes teve seu apogeu
nos primórdios do constitucionalismo moderno, que norteou a organização política do novo Estado liberal-
democrático, afirmando que esse princípio - que nas origens de sua formulação foi, talvez, o mais sedutor,
magnetizando os construtores da liberdade contemporânea e servindo de inspiração e paradigma a todos os
textos de Lei Fundamental, como garantia suprema contra as invasões do arbítrio nas esferas da liberdade
política”.
54
realização concreta, e não meramente formal, dos direitos dos cidadãos.
No que concerne aos direitos fundamentais, com o advento do Estado Social
observaram-se muitas mudanças na concepção de tais direitos se comparados com o modelo
liberal. A principal delas, e que será estudada com mais detalhamento no próximo capítulo,
diz respeito à assunção de uma faceta positiva por parte dos direitos fundamentais, ou seja,
não basta a abstenção estatal diante dos ditos direitos, mas sua atuação efetiva de modo a
propiciar ao cidadão o direito de participar desse bem-estar social.
Assim, os direitos fundamentais passam a ser definidos como direitos de segunda
dimensão, caracterizados pela prestação, por parte do Estado, dos chamados direitos sociais.
Na visão de José Afonso da Silva (2001, p.289), os direitos sociais são definidos como
dimensões dos direitos fundamentais do homem, que devem ser proporcionados pelo Estado
de maneira direta ou indiretamente, a partir de normas constitucionais que “possibilitem
melhores condições de vida aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização dos
desiguais.”
Nesse modelo de Estado, a função principal é garantir a ordem social e a segurança
jurídica, assumindo os direitos fundamentais o papel de garantia da liberdade individual,
sendo que uma teoria dos direitos fundamentais do Estado Social centra-se nos pressupostos
sociais da liberdade, pretendendo superar um desdobramento entre liberdade jurídica e
liberdade real, desdobramento próprio do modelo liberal, num quadro de maior distribuição
das riquezas sociais.
Esse processo de “socialização” dos direitos fundamentais redundou numa maior
“objetivação” dos mesmos ou, melhor dizendo, o homem, que antes era visto como portador
abstrato de direitos e interesses “pré-sociais”, agora é situado e inserido na sociedade, razão
por que os direitos são concebidos em planos sociais ou pós-sociais. A conseqüência mais
imediata dessa chamada objetivação dos direitos fundamentais enseja o reconhecimento de
uma função social dos direitos, que ultrapassa o limite individual, como no caso do direito de
propriedade, por exemplo. Demais disso, em se tratando de direitos de prestação, os limites de
seu exercício não se encontram mais na vontade individual e sim na existência de recursos
sociais, politicamente definidos, trazendo ao Estado o ônus de criar condições efetivas para a
realização dos direitos.
55
Nesse diapasão, direitos clássicos, sobretudo a liberdade contratual (além do direito de
propriedade acima mencionado), são bastante modificados. A autonomia da vontade passou a
sofrer limitações, pois, como lembra Habermas (1984, p.179), “à medida que as relações
jurídicas se equivalem de modo social-típico, os próprios contratos também procuram tornar-
se esquematizados.” Assim, a noção de liberdade contratual, que havia sido concebida como
projeção da liberdade individual, passou a contar com outros pontos de intervenção do
Estado, quer por parte do legislador, quer pelo poder de revisão da vontade dos contratantes
pelo juiz.
Especialmente no que diz respeito às relações contratuais, tema que interessa mais de
perto em razão da aplicação do princípio da boa-fé objetiva, que será estudado mais
detalhadamente no capítulo V, verificou-se que no final do século XIX, início do século XX, a
autonomia privada passou a ser contida pela interferência do Estado, na busca por uma justiça
social não alcançada pelo modelo liberal de contrato.
Sobre a questão afirmou Rogério Ferraz Donnini (1999, p.6) que o “modelo liberal de
contrato causa perplexidade àqueles que buscam a justiça, pois situações absolutamente
desiguais e desproporcionais, que causavam prejuízos a um dos contratantes, eram
consideradas legais, embora evidentemente imorais.”
Destarte, passou a existir uma limitação à liberdade de contratar, de modo que fossem
contidos abusos nas relações contratuais advindos, sobretudo, de desigualdades econômicas
das partes, concluindo o citado civilista que houve “a proclamação efetiva da preeminência
dos interesses coletivos sobre os de ordem privada, com acentuação tônica sobre o princípio
da ordem pública, que sobreleva ao respeito pela intenção das partes, que a vontade destas
obrigatoriamente tem de submeter-se àquele.” (DONINI, 1999, p.8)
É nesse contexto que surge a discussão acerca da aplicação dos direitos fundamentais
nas relações privadas, considerando-se que o Estado deve resguardar o indivíduo não
contra sua ingerência indevida, mas também garantir a autonomia individual em face de
interferências de detentores do poder, mesmo que nas relações interprivadas. Isso porque,
conforme preleciona Juan Maria Ubillos (1997), o direito formal e igual para todos tende a
fazer o forte cada vez mais forte e o fraco cada vez mais fraco, pois quem carece de um poder
social próprio ou de uma proteção, acaba por não poder realizar sua liberdade jurídica frente
aos detentores de poder social. Assim, os poderes privados hoje constituem uma ameaça ao
56
desfrute efetivo dos direitos fundamentais não menos inquietante do que a representada pelo
poder público. E arremata o citado autor: “la libertad realizable para todo el mundo en
principio, se volatiza, se va progresivamente convirtiendo en una formula vacía. La
desigualdad social se convierte en la falta de libertad social.” (UBILLOS, 1997, p.243)
Por fim, torna-se necessário, ainda que de forma breve, analisar a validade das
concepções do Estado Social ou se este modelo se encontra defasado. Isso porque, nos dias
atuais, debate a doutrina um retorno a concepções liberais no que concerne ao modelo de
atuação do Estado, ou melhor, o neoliberalismo, assentado, sobretudo, na denúncia de um
papel excessivamente ativo do Estado e na sua ineficiência na produção de resultados. Os
teóricos liberais contemporâneos criticam o Estado Social sob o argumento de que a
redistribuição de bens que este opera “é globalmente ineficaz e que leva até a efeitos
contrários ao que era desejado” (ROSANVALLON, 1997, p.49). Assim, afirmam tais teóricos
que a redistribuição almejada pelo Estado social apresenta-se como uma forma de
regulamentação das relações sociais e das situações sociais e, em assim sendo, mesmo que
não seja perfeito, o mercado seria o mais indicado para assegurar “em todos os casos uma
melhor conjunção dos imperativos de eficácia e justiça.” (ROSANVALLON, 1997, p. 49)
Verifica-se que o debate está circunscrito à estatização/privatização, deixando duas
únicas possibilidades de realização das demandas de progresso social: ou o Estado ou o
mercado.
No entender de Pierre Rosanvallon (1997), entretanto, é possível um futuro para o
Estado social que deve ser necessariamente plural, com a substituição da lógica unívoca da
estatização por uma combinação de três elementos:
a) socialização, esta entendida como a desburocratização e racionalização da gestão de
grandes equipamentos e funções coletivas;
b) descentralização de serviços públicos para torná-los mais próximos dos usuários;
c) autonomização, ou seja, transferência para coletividades não públicas tarefas de
57
serviço público. (ROSANVALLON, 1997, p.85-86)
17
Noutro giro, ainda que existam críticas ao modelo do Estado Social, no que tange aos
direitos fundamentais, forçoso é reconhecer que este representou a superação do caráter
negativo desses direitos, os quais deixam de ser considerados uma mera limitação do poder
estatal para se transformarem em instrumentos de controle de sua atividade positiva, que deve
ser orientada para a participação dos indivíduos e dos grupos no exercício do poder. Isso sob a
égide do princípio democrático da soberania popular e os limites que dito princípio estabelece
aos órgãos que dela dependem. Esse o tema do próximo tópico, qual seja, a influência dos
princípios democráticos na construção do chamado Estado Democrático de Direito.
2.4 O Estado Democrático de Direito
A constatação prática de desvirtuamento da aplicação da necessidade de realização
material dos anseios reais e dos direitos dos cidadãos, sobretudo em razão de fenômenos
claramente contrários aos cânones do Estado social
18
ensejaram um esforço da doutrina no
sentido de tentar estabelecer uma conexão dos princípios democráticos com os postulados do
Estado Social e do Estado de Direito.
Com efeito, buscou a doutrina uma forma de demonstrar a correlação direta entre a
liberdade de participação política do cidadão, como possibilidade de interferir no processo
decisório do Estado e as demais liberdades individuais. Assim, os direitos fundamentais
passaram a ser considerados como parâmetros de legitimação da ordem democrática, na
medida em que buscam reconhecer a igualdade, perante a lei e em oportunidades, a liberdade
real e o direito de participação na conformação do processo político.
Existe, pois, estreita correlação entre os direitos fundamentais e a realização do
17
Muito embora não seja objetivo do presente estudo uma analise aprofundada do remodelamento do Estado
Social ou Estado Providência a partir dos três elementos acima descritos, atualmente observa-se no Estado
brasileiro que, a despeito da “desestatização” promovida na estrutura da administração pública, sobretudo em
relação à descentralização de serviços públicos pela via contratual e da tentativa de fortalecimento do chamado
terceiro setor, os resultados ainda não se apresentam expressivos em relação a uma redução da demanda do
Estado e uma maior qualidade na prestação de serviços públicos-essenciais. Ademais, as mudanças em nome de
uma maior autonomia dos entes estatais não representam uma novidade na história administrativa brasileira, pois
“no Brasil demuito existem entidades, sobretudo autárquicas, com certo grau de independência em relação
ao Poder Executivo, como é o caso das universidades públicas e da Ordem dos Advogados do Brasil, bem como
inúmeras entidades que exercem função reguladora, sendo exemplos o CADE, o Banco Central e o Conselho
Monetário Nacional, entre outras.” (LOPES; SAMPAIO, 2002, p.68).
18
Perez Luño (1986, p.229) aponta como fenômenos contrários aos postulados do Estado Social, sobretudo o
“centralismo de Estado, marcadas desigualdades sociales y económicas, sociedades multinacionales y grandes
monopolios típicos del neocapitalismo e manipulación de la opinión publica a través de mass-media”.
58
princípio democrático.
19
A democracia, nesses termos, deve incorporar, antes de tudo, as mais importantes
conquistas da teoria democrática representativa, com suas técnicas de representação, seus
procedimentos, apontando o conjunto de eleitores de uma comunidade como base de
determinação do convívio social. Dessa forma, a democracia participativa no Estado
Democrático de Direito, com espeque na lição de Mário Lúcio Quintão Soares (2003, p.407) ,
“se manifesta na estruturação de processos que ofereçam aos cidadãos possibilidades efetivas
de aprendizado de democracia, de participação nos processos decisórios, de exercício do
controle crítico nas divergências de opinião e da produção de inputs políticos democráticos.”
Gomes Canotilho (1993, p.409) define a teoria da democracia participativa como sendo
aquela que almeja a realização da idéia de democracia como “poder do povo”, juntando todas
as suas componentes, quais sejam, as individualistas, coletivistas, ideal radical democrático,
autodeterminação individual e domínio do povo.
Existe, pois, uma dinâmica dialética entre os direitos fundamentais e o princípio
democrático. Em abono a essa tese, Gomes Canotilho (1993) aponta o fato de que o princípio
democrático, ao pressupor a participação igual de todos os cidadãos, liga-se aos direitos
subjetivos de participação e associação. Da mesma forma, os direitos fundamentais, como
direitos subjetivos de liberdade, autorizam a atuação pessoal na defesa do poder
antidemocrático e asseguram o exercício da democracia mediante exigências de garantias de
organização e de processos com transparência, consubstanciadas no princípio majoritário e na
justiça eleitoral.
Os direitos fundamentais, os quais irradiam sua inflncia por todo o ordenamento judico,
atuam legitimando as ões do Estado, garantindo a liberdade individual e limitando o poder estatal,
sendo, por conseguinte, de vital imporncia para a concretizão do Estado Democtico de
Direito.
No caso brasileiro, a Constituição de 1988 estabeleceu, em seu art. 1°, caput, que a
República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem por
fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do
19
Segundo ensina Gomes Canotilho (1993, p.431), “os direitos fundamentais tem uma função democrática dado
que o exercício democrático do poder: (1) significa a contribuição de todos os cidadãos [...] para seu exercício;
(2) implica participação livre assente em importantes garantias para a liberdade desse exercício (o direito de
associação, de formação de partidos, de liberdade de expressão, são, por ex., direitos constitutivos do próprio
princípio democrático); (3) coenvolve a abertura do processo político no sentido da criação de direitos sociais,
econômicos e culturais, constitutivos de uma democracia econômica, social e cultural.”
59
trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político.
Verifica-se assim que os direitos fundamentais e a realização do princípio democrático
estão organicamente ligados por expressa determinação constitucional. A soberania afirma a
independência do Estado brasileiro e sua autonomia, consubstanciada na capacidade de criar a
sua própria ordem jurídica. Demais disso, a soberania, qualificada de popular, nos termos
preconizados pelo art. 14 da Carta Magna, será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto
direto e secreto, com igual valor para todos. A vontade popular é o conceito basilar do
princípio democrático, pois acrescido ao fato de a soberania ser um dos fundamentos do
Estado brasileiro, o parágrafo único do citado art. consigna que todo o poder emana do
povo, que o exerce diretamente ou por meio de representantes eleitos, nos termos da
Constituição. Assim, na lição de Vital Moreira e Gomes Canotilho (1984, p.70), “a vontade
popular não é apenas fundamento da ação do Estado, mas sim também, antes disso,
fundamento da organização e legitimação do próprio Estado.”
De outra parte, o direito de sufrágio possui natureza de direito subjetivo dos cidadãos,
não sendo simples forma de organização do princípio democrático, mas base objetiva desse
princípio.
Já a dignidade da pessoa humana apresenta-se como referência constitucional
unificadora de todos os direitos fundamentais, incluindo não os direitos pessoais, mas
também os direitos sociais, econômicos e políticos.
20
Para Ingo Sarlet (2001, p.103), com o reconhecimento expresso da dignidade da pessoa
humana como princípio fundamental da Constituição, reconheceu a Carta Constitucional que
“é o Estado que existe em função da pessoa humana, e não contrário, que o homem
constitui a finalidade precípua e não meio da atividade estatal.”
A afirmação no texto constitucional da observância da dignidade da pessoa humana,
que, de início parece óbvia, pretende a garantia contra tantas iniqüidades praticadas ainda nos
dias de hoje contra os seres humanos. Sem adentrar à questão, mas a título de exemplificação,
pode-se mencionar a aniquilação de culturas minoritárias, exploração do trabalho infantil, da
20
Merece aqui o registro da posição precursora de José Afonso da Silva (2000, p.147) sobre a posição de
eminência da dignidade da pessoa humana, afirmando que “a eminência da dignidade da pessoa humana é tal
que é dotada ao mesmo tempo da natureza de valor supremo, principio constitucional fundamenta] e geral que
inspira a ordem jurídica. Mas a verdade é que a Constituição lhe mais do que isso, quando a põe como
fundamento da República Federativa do Brasil constituída em Estado Democrático de Direito. Portanto não é
apenas um princípio da ordem jurídica, mas o é também da ordem política, social, econômica e cultural Daí a sua
natureza de valor supremo, porque está na base de toda a vida nacional”.
60
prostituição infantil, escravização de trabalhadores do campo, péssima qualidade dos serviços
de saúde gratuitos, dos serviços de educação, que não garantem um serviço público de
qualidade, prerrogativa daqueles que podem pagar caras mensalidades escolares, enfim,
dominação, exploração, humilhação, principalmente dos integrantes das camadas da
população menos aquinhoadas economicamente.
Ainda sobre o princípio da dignidade da pessoa humana, este atua a um tempo como
limite e tarefa do Estado. Como limite, o princípio impõe ao Estado o respeito à dignidade
inerente a cada ser humano e que é inalienável. Como tarefa cometida ao Estado, a dignidade
da pessoa humana obriga a este que
guie suas ações tanto no sentido de preservar a dignidade existente ou até mesmo de
criar condições que possibilitem o pleno exercício da dignidade, sendo portanto
dependente (a dignidade) da ordem comunitária, que é de se perquirir até que
ponto é possível ao indivíduo realizar, ele próprio, parcial ou totalmente suas
necessidades existenciais básicas ou se necessita, para tanto, do concurso do Estado
ou da comunidade. (SARLET, 2001, p.108)
Como conclusão do presente tópico, vale transcrever o entendimento de Mário Lúcio
Quintão Soares (2003, p.419) acerca da relação entre direitos fundamentais e o princípio
democrático, para quem
o desenvolvimento do sistema de direitos fundamentais no Estado democrático de
direito e sua efetividade exigem que se recorra aos princípios da proteção jurídica,
da defesa dos direitos e abertura da via judiciária (como imposição constitucional ao
legislador), à garantia de processo judicial, à criação de direito subjetivo público em
círculo de situações juridicamente protegidas, às garantias de justiça e aos direitos
processuais fundamentais, e, finalmente, ao principio da constitucionalidade. Este
sistema de direitos fundamentais, dotado de princípios norteadores e assecuratórios,
propicia a concretização da cidadania plena e coletiva, consubstanciando a
legitimidade do estado democrático de direito.
A preocupação com o fator social, no capítulo da ordem econômica da Lei Maior de
1988, é notória. Os princípios que norteiam a atividade econômica estão atrelados à noção de
democracia política, estando nitidamente permeados, de um lado, por finalidades, tais como a
justiça social, desenvolvimento econômico (redução das desigualdades regionais e sociais),
proteção ao consumidor e ao meio ambiente e, de outro, pela garantia da liberdade de
iniciativa. Têm-se, assim, visão social extremada, legítima garantia para possível intervenção
estatal, mas que encontra limites na livre iniciativa e na livre concorrência, como também nas
normas constitucionais e legais disciplinadoras dos processos administrativos.
Em síntese: o paradigma mudou e o Estado passou a intervir no campo econômico,
regulando-o, sendo sujeito participante direto da concretização das garantias sociais. Surgiu,
61
então, a necessidade de busca da plenitude democrática, uma vez que o Estado não poderia
continuar sendo somente o garantidor e regulador das relações interindividuais, incumbindo-
lhe, sobretudo, a tarefa de compor a sociedade, mediante a redistribuição da plus valia a
camadas cada vez mais amplas da população.
No próximo capítulo será aprofundada a análise da dimensão objetiva dos direitos
fundamentais, sob a ótica das mudanças que essa teoria representou para o estudo dos ditos
direitos.
62
3 UMA VISÃO TEORÉTICA DA DIMENSÃO OBJETIVA DOS
DIREITOS FUNDAMENTAIS
No constitucionalismo liberal, conforme visto nos capítulos precedentes, os direitos
fundamentais possuíam uma dimensão subjetiva e caracterizavam-se exclusivamente como
direitos de defesa do cidadão contra o Estado, tendo como parâmetro tão somente a liberdade
e autonomia do indivíduo. Ao Estado cabia, pois, a regulação da liberdade em abstrato, tendo
o indivíduo a competência para fixar o modo de sua utilização, de acordo com o marco
estabelecido pelas leis.
As primeiras mudanças na abordagem subjetivista dos direitos fundamentais
começaram a ser observadas com o surgimento da teoria institucional e a teoria da
integração.
21
Em linhas gerais, para a primeira, os direitos fundamentais deixam de apresentar
somente uma dimensão subjetiva, mas se entremostram também como princípios normativos
de tipo institucional, que regulamentam as relações sociais e os fatos materiais em que ditas
relações são válidas. Já para a segunda, a teoria da constituição como integração, a dimensão
meramente subjetiva dos direitos fundamentais resta superada, porquanto esta concebe o
Estado em permanente processo de integração de uma comunidade, de seus valores e de sua
cultura. Como os direitos fundamentais fixam os valores principais de uma comunidade e
normatizam um sistema de valores, tornam-se meios determinantes desse processo de
integração e criação do Estado.
Ao aprofundar a análise da teoria da integração, ensina Gavara de Cara (1994) que entre
as distintas formas de integração destacam-se a integração pessoal, a funcional e a material. A
integração pessoal implica que a integração do Estado se faz por meio de pessoas capazes de
criar uma coesão parlamentar que integre não somente os cidadãos ligados aos governantes,
mas a totalidade do povo, de modo a estabelecer uma unidade política. As formas de
integração funcional ou processual, esclarece o citado autor, tendem a criar um sentido
coletivo, mediante processos que desenvolvam a substância espiritual da comunidade que
21
Sobre a conceituação das teorias mencionadas, remetemos à leitura do capitulo I itens 1.2.3 e 1.2.4.
constitui seu conteúdo objetivo, ou seja, a integração funcional se realiza mediante “procesos
de conformación de la voluntad comunitaria en el sentido de la permanente creación de las
condiciones necesarias para el establecimiento de una comunidad basada en las distintas
voluntades.” (DE CARA, 1994, p.81).
Por fim, a forma de integração material, que é assinalada como a que mais interessa,
uma vez que os direitos fundamentais estão incluídos como fatores de seu conteúdo material,
implica a existência de conteúdos substantivos para a realização do Estado, concebidos como
fins estatais.
22
Essa visão conferiu novos contornos ao estudo dos direitos fundamentais, até então
analisados sempre à luz do princípio da legalidade. A partir desse princípio, os direitos
fundamentais eram considerados, no âmbito de atuação da Administração Pública, como
direitos administrativos especiais. Entretanto, verificou-se que os direitos fundamentais não
poderiam ser estudados como parte do Direito Administrativo, nem do direito de polícia e
tampouco como parte do Direito Privado, sendo parte do Direito Constitucional.
A teoria da integração constitui o antecedente mais próximo da concepção axiológica
dos direitos fundamentais, que embasa a dimensão objetiva desses direitos. Essa nova
dimensão abre outras possibilidades de utilização dos mesmos, ligadas à legitimação do
Estado e à hermenêutica em geral, pois como os direitos fundamentais proclamam um sistema
de valores, que dão unidade à ordem jurídica, então seus efeitos se irradiam por todo esse
ordenamento. Muito importante no processo de consolidação da concepção objetiva dos
direitos fundamentais foi o advento dos direitos de segunda geração, os quais dominaram o
século X.
Conforme explica Paulo Bonavides (2000, p.518), os direitos de segunda geração
23
são
os direitos sociais, culturais e econômicos bem como os direitos coletivos ou de
coletividades introduzidos no constitucionalismo das distintas formas de Estado
Social, depois que geminaram por obra da ideologia e da reflexão antiliberal deste
século.
A par das teorias acima expostas, outro marco muito importante para o reconhecimento
da dimensão objetiva dos direitos fundamentais foi a decisão da Corte Constitucional alemã,
em 1958, no caso Lüth, a qual reconheceu que cláusulas gerais de Direito Privado devem ser
interpretadas à luz dos valores sobre os quais se assenta a Constituição, com base nos direitos
22
Na dicção de Gavara de Cara (1994, p.82). “La integración material expresaría el contenido material que
posibilitaría la integración del pueblo de modo permanente, renovándose y desarrollándose continuamente.”
64
fundamentais.
24
Ingo Sarlet (2001, p.143), ao comentar a decisão mencionada, afirma que o
julgamento da Corte Constitucional alemã deu continuidade a uma tendência que se
manifestava em outros arestos daquela Corte, ficando consignado que
os direitos fundamentais não se limitam à sua função precípua de serem direitos
subjetivos de defesa do indivíduo contra os atos do poder público, mas que, além
disso, constituem decisões valorativas de natureza jurídico-objetiva da Constituição,
com eficácia em todo o ordenamento jurídico e que fornecem diretrizes para os
órgãos legislativos, judiciários e executivos.
Böckenförde (1993, p.107), ao analisar as mudanças introduzidas pelo novo
posicionamento do Tribunal Constitucional no citado caso, esclarece que a decisão apresenta
uma evidente estrutura dual, pois junto aos direitos fundamentais como direitos subjetivos
tradicionais frente ao poder público, aparecem os direitos fundamentais como normas
objetivas, que expressam conteúdo axiológico de validade universal e estabelecem um
correlativo sistema de valores.
Desde então, a questão envolvendo a dimensão objetiva dos direitos fundamentais
tornou-se uma das mais debatidas não na doutrina e jurisprudência alemãs, como também
em outros países, como é o caso da Espanha.
25
23
As gerações ou dimensões dos direitos fundamentais dizem respeito às fases de transformações históricas pelas
quais passaram os referidos direitos tanto em relação ao seu conteúdo, como em relação à sua titularidade,
eficácia e efetivação. Assim, na lição de Ingo Sarlet (2001, p.49), fala-se em três gerações de direitos, “havendo,
inclusive, quem defenda a existência de uma quarta geração”. Em linhas gerais, os direitos de primeira geração
são marcados pelo individualismo, pico do pensamento liberal-burguês, notadamente a doutrina iluminista e
jusnaturalista, segundo a qual o fim precípuo do Estado é a realização da liberdade do indivíduo. São de primeira
geração o direito à vida, à liberdade, à propriedade e à igualdade perante a lei, incluindo ainda os direitos de
liberdade de expressão coletiva. Já os direitos de segunda geração são direitos de liberdade por meio do Estado e
englobam não direitos de cunho positivo, mas as denominadas liberdades sociais ligadas ao indivíduo. Por
fim, os direitos de terceira geração, também chamados de direitos de solidariedade ou de fraternidade (SARLET,
2001, p.2) os quais se desprendem do indivíduo e destinam-se à proteção de grupos humanos, sendo de
titularidade difusa ou coletiva. São exemplos o direito à paz, à autodeterminação dos povos, ao desenvolvimento,
ao meio ambiente e qualidade de vida, à conservação e utilização do patrimônio histórico e cultural e o direito à
comunicação.
24
Segundo ensina Daniel Sarmento (2003) “tratava-se de discussão relativa à legitimidade de um boicote contra
um filme dirigido pela cineasta Veit Harlan, de passado nazista, organizado pelo presidente do Clube de
Imprensa de Hamburgo, Erich Lüth, em 1950. A produtora e a distribuidora do filme insurgiram-se contra o
boicote e obtiveram decisão injuntiva da Justiça Estadual de Hamburgo, determinando sua cessação, com base
no art. 826 do Código Civil alemão, segundo o qual ‘quem causar danos intencionais a outrem, e de maneira
ofensiva aos bons costumes, fica obrigado a compensar o dano’. Irresignado com o julgamento, Lüth interpôs
queixa constitucional (verfassungsbeschwerde) para o Tribunal Constitucional. Este acolheu o recurso,
fundamentando-se no entendimento de que cláusulas gerais do direito privado, como os ‘bons costumes’
referidos no art. 826 do BGB, tem de ser interpretados ao lume da ordem de valores sobre a qual se assenta a
Constituição, levando em consideração os direitos fundamentais, o que não fora feito pela Corte de Hamburgo”.
(SARMENTO, 2003, p.261-262). Sobre o tema, ver também Hesse (1995, p.58).
25
Daniel Sarmento (2003, p.263) traz à colação um precedente do Tribunal Constitucional, qual seja a sentença
21/81, em abono à afirmação feita de que a jurisprudência constitucional espanhola recepcionou a dimensão
objetiva dos direitos fundamentais.
65
A objetivação dos direitos fundamentais deu-se sob a égide dos processos de
democratização e socialização, sendo certo que, para a comunidade, a relevância desse
processo não se limita ao reconhecimento de que a liberdade é um valor social e, portanto,
que aos poderes públicos impende assegurarem, além de respeitarem, efetivamente as
condições de autonomia da vontade individual. Mais além, os direitos fundamentais agora
pressupõem também a solidariedade, a responsabilidade comunitária pelos indivíduos, de
modo a garantir o exercício efetivo de tais direitos.
A despeito do reconhecimento da importância da superação da perspectiva
individualista dos direitos fundamentais, típica do pensamento liberal, algumas críticas
também são lançadas pela doutrina à aceitação incondicional da dimensão objetiva de ditos
direitos. A seguir far-se-á uma análise de ambas as vertentes.
3.2 Ordem de valores e a Constituição
Após impor-se sobre uma larga tradição positivista, que na sua versão mais radical
pretendeu um absoluto distanciamento entre Direito e Moral, bem como a visão
jusnaturalista
26
de que ambas as esferas se fundem, baseando-se o Direito em valores
universais e transcendentais, desvinculados de qualquer cultura, surge a aceitação da força
normativa dos valores no ordenamento constitucional. Contudo, não são valores relativos a
uma moral imutável e supra-histórica, mas valores que possuem uma dimensão cultural e que
se integram à consciência ético-jurídica de uma comunidade histórica concreta.
Assim, ao se afirmar a aceitação da dimensão objetiva dos direitos fundamentais, isso
não significa somente que as posições jurídicas subjetivas pressupõem um preceito de direito
objetivo que as preveja. Significa, isso sim, que os direitos fundamentais não podem ser vistos
apenas do ponto de vista dos indivíduos, mas valem juridicamente também do ponto de vista
da comunidade, como valores ou fins consagrados por seus integrantes.
Vieira de Andrade (1987) preleciona que essa dimensão comunitária se expressa sob
duas diferentes perspectivas de vista, a saber: a dimensão objetiva sob a perspectiva ou
dimensão valorativa, que vai integrar o próprio conteúdo de sentido dos direitos
fundamentais, e a dimensão objetiva como perspectiva ou dimensão jurídica estrutural, a qual
26
Convém salientar que não é objetivo do trabalho proceder a uma análise exaustiva acerca das linhas de
pensamento positivista e jusnaturalista, cingindo-se a pesquisa à abordagem dos referidos marcos teóricos como
importantes referenciais para a estruturação da teoria da ordem de valores da maneira como a mesma se
apresenta nos dias atuais.
66
produz autonomamente, para além das posições jurídicas subjetivas, outros efeitos jurídicos.
Será legítimo afirmar a dimensão objetiva dos direitos fundamentais como dimensão
valorativa, desde que esta seja tomada a partir da noção de responsabilidade social dos
indivíduos e não somente tendo por base a vontade de seus titulares. Não se trata, pois, de
simplesmente negar o caráter absoluto e incondicional dos direitos fundamentais, mas de se
admitir a possibilidade de condicionamento e “até sua restrição para salvaguarda de interesses
da comunidade ou dos direitos dos outros.” (ANDRADE, 1987, p.146)
Noutro pensar, não se trata também de aceitar uma natureza dupla aos direitos
fundamentais, ou seja, de reconhecer que os direitos são simultaneamente deveres dos
indivíduos por representarem valores coletivos.
27
Conclui o citado constitucionalista português que a previsão dos direitos implica a
afirmação de valores sociais, e que estes impõem tarefas de responsabilidade estatal, mas isso
não significa que cada direito possua, como reverso, um dever fundamental de seu titular
ativo, com uma instrumentalização dos poderes subjetivos em relação a finalidades sociais e
que “o Estado, através de sua competência para definir o interesse público e vigiar o seu
cumprimento, determine o conteúdo e controle do exercício dos deveres e, por essa via, dos
direitos individuais - Isso seria a destruição da liberdade e da autonomia da pessoa
humana.” (ANDRADE, 1987, p.149)
De outra parte, a dimensão objetiva como dimensão jurídica estrutural é definida como
produtora de efeitos jurídicos, os quais, diferentemente da dimensão objetiva enquanto
expressão de valores, ensejam uma visão complementar e suplementar da dimensão subjetiva.
Não é demais lembrar que segundo a concepção da dimensão objetiva enquanto expressão de
valores, os valores comunitários são tidos como contrapostos aos direitos individuais.
Já no que tange à dimensão objetiva como dimensão jurídica estrutural, alguns preceitos
constitucionais produzem efeitos que não são remetidos integralmente às posições jurídicas
que reconhecem, ou ainda, porque estabelecem deveres e obrigações, sem a correspondente
atribuição de direitos aos indivíduos, daí porque atuam numa dinâmica complementar e
27
Conforme propõe Vieira de Andrade (1987, p.147) acerca do tema: “Se assim fosse, os direitos fundamentais
constituiriam ‘uma unidade essencial com deveres fundamentais de natureza jurídica ou cívica, quer perante os
outros cidadãos, quer perante a colectividade’, tendo ‘não apenas uma função pessoal e individual, mas também
uma função extra-individual em relação ao estado democrático e ao empenhamento na construção do
socialismo’. Julgamos, porém, que assim não é e que o relevo da dimensão objectiva não pode ser levado tão
longe: nem a generalidade dos direitos tem a natureza de deveres, nem a sua função, ou se assim se quiser, a sua
função principal e caracterizadora é outra que não seja a dignidade da pessoa humana individual’
67
suplementar da dimensão subjetiva. Assim, “a dimensão objectiva, em vez de comprimir,
reforça agora a imperatividade dos direitos individuais e alarga a sua influência no
ordenamento jurídico e na vida da sociedade.” (ANDRADE, 1987, p.161)
Na visão do citado autor, em matéria de direitos fundamentais, mais do que aceitar o
direito subjetivo como um mero reflexo do direito objetivo, existe uma autonomização da
dimensão subjetiva, que toda a disciplina da matéria visa à garantia de valores ligados à
dignidade humana dos indivíduos. Nada obstante, não se trata de representar a dignidade
como um valor abstrato, senão como uma autonomia ética das pessoas humanas concretas, o
que enseja a conclusão de que
ao predomínio no plano axiológico e funcional de uma (irredutível) dimensão
subjectiva há-de naturalmente corresponder, no plano jurídico-estrutural, lugar
central da posição jurídica subjectiva. [...] Estas posições subjectivas constituirão,
assim, o núcleo de cada preceito ou conjunto de preceitos conexos em matéria de
direitos fundamentais: será com base nessas posições, à volta delas e a partir delas
que se organiza todo o sistema constitucional de protecção e promoção da dignidade
da pessoa humana. (ANDRADE, 1987, p.162)
A concepção dos direitos fundamentais como ancorados em valores provocou intensas
reações. A crítica mais conhecida contra a ordem de valores foi desenvolvida por Ernest
Forsthoff, defensor da concepção liberal dos direitos fundamentais. Este considerava que uma
argumentação com base em valores significava o abandono da positividade do direito, pois os
valores possuem uma dimensão espiritual e, portanto, sem caráter jurídico, senão filosófico.
68
Ademais, ressaltou que esse método de interpretação supõe a supressão da lei
constitucional, a insegurança do Direito Constitucional, a desformalização da Constituição e
implica a impossibilidade de controlar o subjetivismo nas sentenças que aplicam e
estabelecem valores, o que poderia levar à tirania dos valores. (FORSTHOFF apud DE
CARA, 1994, p.84)
No Brasil, cumpre destacar a visão crítica de Giselle Cittadino (2001) em relação à
concepção dos direitos fundamentais como ordem de valores, pois, segundo a autora, essa
visão teleológica dos direitos fundamentais se organiza em torno da concepção de que as
normas, práticas e instituições apenas podem ser justificadas em seus próprios contextos
históricos e, em algumas circunstâncias, um aniquilamento da confiança nas tradições
28
.
Assim é que verdadeiras atrocidades são praticadas sob a roupagem de normalidade,
tornando-se necessário um certo distanciamento reflexivo em relação às tradições que
conformam a identidade da comunidade. Principalmente quando não se pode confiar nas
tradições, é possível tomar “os direitos fundamentais como resultado de um processo
reflexivo a partir do qual os indivíduos podem conservar uma certa distância em relação às
suas próprias tradições e aprender a entender a figura do outro a partir de sua própria
perspectiva.” (CITTADINO, 2001, p.105-106)
Dessa forma, ainda que os direitos fundamentais representem uma idéia normativa de
uma cultura particular, no caso a Europa, tais direitos, afirma a autora, possuem uma
pretensão de universalidade que não se compraz com a idéia de valores enquanto bens
preferidos, inclusive porque os mesmos, ao contrário de representar um eurocentrismo
incompatível com valores culturais distintos, podem ser aplicados em outros contextos e
outras culturas. Nesse sentido, enquanto idéia moral,os direitos fundamentais podem ser por
todos compartilhados a partir de experiências comuns de violação da integridade e de
ausência de reconhecimento.” (CITTADINO, 2001, p.105-106). Não se trata aqui de uma
moral objetiva que pressupõe a existência de princípios universais e inalteráveis, mas
historicamente construída, que decorre de uma razão prática, propagada por meio da história.
E conclui sua crítica aos direitos fundamentais como valores, afirmando que
28
A autora cita como exemplos das mencionadas circunstâncias “as câmaras de gás na Alemanha nazista, as
múltiplas formas de violação da dignidade humana nas experiências totalitárias do leste europeu, a tortura e os
desaparecimentos nas ditaduras militares latino-americanas”, as quais, quando praticadas sob uma aparência de
normalidade, aniquilam qualquer confiança nas tradições e impedem uma vida “consciente’ sem desconfiar de
toda continuidade que se afirme indiscutivelmente e que pretenda extrair sua validade desse caráter não
questionável. (CITTADINO, 2001, p.105).
69
os direitos fundamentais são normas legítimas de caráter obrigatório e não podem
ser vistos como valores que, ao contrário das normas, estabelecem relações de
preferência. De outra parte, mesmo na hipótese de um contexto histórico favorável
quando podemos confiar nas tradições a visão teleológica dos direitos
fundamentais, ao considerá-los uma expressão valorativa de seu próprio sistema
cultural e, portanto, um bem preferido e compartilhado por todos, parece
desconhecer as relações de poder assimétricas presentes nas democracias
contemporâneas. Afinal, as intervenções ilegítimas do poder social, engendradas
tanto pelos imperativos do poder administrativo-burocrático como pelos
mecanismos do mercado, constituem, nas sociedades contemporâneas, limites à
visão teleológica dos direitos fundamentais [....]. (CITTADINO, 2001, p.106)
Como adverte José Eduardo Faria, em prefácio ao livro Pluralismo, direito e justiça
distributiva, de Gisele Cittadino (2001), a globalização dos mercados e a internacionalização
do sistema financeiro, com valores como ganhos incessantes de produtividade, acumulação
ilimitada e livre circulação de capitais, contaminaram todas as demais esferas da vida social.
Bem assim, com a ampliação da pobreza e da marginalização, nem mesmo o respeito ao outro
como ser moral é reconhecido, impedindo o reconhecimento dos mesmos direitos e garantias
que cada cidadão reconhece para si. Nesse contexto, com tamanho prevalência da lógica
mercantil,
os anseios e expectativas formadas ao longo de tensos e conflitivos processos de
construção e reconstrução política, em cujo âmbito o tipo de sociedade corresponde
a uma certa concepção de moralidade, são sumariamente desqualificados e
desconfirmados. (FARIA. In: CITTADINO, 2001, prefácio)
Não obstante, afirma o citado autor que, em reação a todas essas mudanças, impõe-se a
tentativa de retomar o debate ético, retornando-se a questões como o reconhecimento da
dignidade da pessoa humana, da manutenção das redes sociais, da atribuição ao poder público
da responsabilidade pela equalização de oportunidades, “enfim, as velhas, porém muitas vezes
esquecidas, questões de justiça distributiva e do bem comum, que vinculam Estado e
cidadania.” (FARIA. In: CITTADINO, 2001, prefácio)
As críticas aqui lançadas, muito embora aparentemente pertinentes, na verdade, não
infirmam a concepção dos direitos fundamentais como ordem de valores, haja vista que é
justamente essa retomada do debate ético o cerne da teoria da dimensão objetiva.
Esse é o argumento que justifica a opção do presente estudo pela dimensão objetiva dos
direitos fundamentais, quer na análise da sua aplicação nas relações entre particulares, quer na
abordagem do princípio da boa-fé objetiva.
3.3 A eficácia irradiante dos direitos fundamentais
70
O reconhecimento da eficácia irradiante dos direitos fundamentais apresenta-se como
uma das mais importantes conseqüências da dimensão objetiva dos mesmos direitos
fundamentais, significando que os valores que os respaldam exercem influência por todo o
ordenamento jurídico, apresentando-se como vetor de interpretação das normas legais e
vinculando o legislador, a administração e o Judiciário. Conforme afirma Daniel Sarmento
(2003, p.279)
a eficácia irradiante, nesse sentido, enseja a humanização da ordem jurídica, ao
exigir que todas as suas normas sejam, no momento da aplicação, reexaminadas pelo
operador do direito com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da
igualdade substancial e da justiça social, impressas no tecido constitucional.
Dos efeitos irradiante e vinculante dos direitos fundamentais, importa salientar que o
artigo 5º, parágrafo da Constituição Federal de 1988 menciona que: “as normas
definidoras dos direitos e garantias fundamentais m aplicação imediata”. Emerge daí que
todas as disposições que definem direitos e garantias individuais, sociais e políticas são
diretamente e imediatamente vinculantes.
No que concerne à interpretação constitucional e controle de constitucionalidade, o
consectário mais importante da eficácia vinculante dos direitos fundamentais é a interpretação
conforme o direito.
Nesse tipo de interpretação, decorrente do método hermenêutico-concretizador
29
reconhece-se a supremacia da Constituição sobre todo o ordenamento jurídico, não sob a
perspectiva de sua supremacia hierárquica, ou seja, uma supremacia formal, mas como
parâmetro de controle da constitucionalidade das leis, reconhecida como supremacia material.
Esse método de interpretação torna imprescindível que não se permita que um preceito legal
fique sem qualquer função útil ou acolha critérios e soluções absolutamente contrárias às do
legislador constituinte, significando, assim, que as leis é que devem ser interpretadas de
acordo com a Constituição e não o contrário.
29
O método hermenêutico-concretizador é definido por Canotilho (1993, p.214) como aquele que “arranca da
idéia de que a leitura de um texto se inicia pela pré-compreensão do seu sentido através do intérprete. A
interpretação da Constituição também não foge a esse processo: é uma compreensão de sentido, um
preenchimento de sentido juridicamente criador, em que o intérprete efectua uma actividade prático-normativa,
concretizando a norma para e a partir de uma situação histórica concreta”. Esse método, ainda no dizer de
Canotilho, assenta-se no pressuposto do primado do texto constitucional em face do problema.
71
Conforme preleciona Paulo Bonavides (2000, p.474), esse método de interpretação
constitucional
30
decorre da natureza rígida da Constituição
31
, da hierarquia das normas
constitucionais e do caráter de unidade que a ordem jurídica necessariamente ostenta.
Essa hierarquia das normas, aliás, é o meio de atuação da própria Constituição, que não
se restringe a mecanismos de solução de conflitos entre normas dimanadas de diversas fontes,
mas abarca os valores consubstanciados no modelo constitucional vigente. Assim, o respeito à
Constituição, na visão de Pietro Perlingieri (1997, p.10), implica não somente a observância
de certos procedimentos para emanar a norma (infraconstitucional), mas, também, a
necessidade de que o seu conteúdo atenda aos valores presentes (e organizados) na própria
Constituição.” Ainda sobre a importância da interpretação conforme a Constituição, ensina
Paulo Ricardo Schier (1999, p.145), ao tratar do conceito de filtragem constitucional, que esta
toma como ponto de partida a noção de preeminência normativa da Constituição, expressando
a idéia de que “toda a ordem jurídica deve ser lida à luz da Carta Fundamental e passada pelo
seu crivo”. Destarte, as normas que não se coadunem com os valores constitucionais devem
ser eliminadas, e essa aferição de compatibilidade deve ser feita a partir de três componentes
principais: primado da interpretação conforme com a Constituição - impondo a interpretação
das normas infraconstitucionais a partir do sentido mais concordante com a Constituição;
anulação das normas de direito ordinário desconformes com a Constituição, porquanto
inválidas e, em terceiro lugar, o reconhecimento de que as normas constitucionais aplicam-se
diretamente, salvo quando não sejam exeqüíveis por si mesmas, independentemente da
existência de lei ordinária.
32
A interpretação conforme a Constituição, que teve seu desenvolvimento ligado à
jurisprudência do Tribunal Constitucional alemão, dá-se, para além dos limites da presunção
de constitucionalidade das leis e atos do poder público, quando entre várias possibilidades de
interpretação plausíveis e alternativas, existe alguma que permita compatibilizá-la com a
Constituição. Trata-se da escolha de uma linha de interpretação da norma entre outras tantas
que o texto comportaria, impondo-se seu aproveitamento sempre que possível, de modo a se
30
Paulo Bonavides (2000, p.474) ressalta que em rigor não se trata de um princípio de interpretação da
Constituição, mas de um princípio de interpretação da lei ordinária de acordo com a Constituição.
31
É importante salientar que os constitucionalistas em geral apontam o princípio da supremacia da Constituição
como decorrência lógica do princípio da rigidez constitucional. Contudo, no Brasil, Nagib Slaibi Filho ensina
que se exatamente o inverso, ao entendimento de que o princípio da rigidez para a reforma da Constituição é
um dos consectários da supremacia constitucional. (SLABI FILHO, 2000, p. 40).
32
Sobre a questão da filtragem constitucional, da preeminência normativa da Constituição e do primado da
interpretação conforme, ver Schier (1999).
72
buscar uma interpretação que não seja a mais óbvia do dispositivo. Igualmente, a
interpretação conforme a Constituição determina a exclusão da interpretação ou interpretações
que sejam contrárias à Constituição.
Feita uma análise, ainda que perfunctória, da interpretação conforme a Constituição,
cumpre assinalar que a eficácia irradiante dos direitos fundamentais assume especial
importância no Brasil, pois a Constituição de 1988 apresenta-se fortemente marcada pelos
valores de solidariedade e valorização da dignidade da pessoa humana, o que impõe a
releitura da legislação infraconstitucional, muitas vezes editada em contextos diversos, como
é o caso do novel Código Civil, que mesmo vindo à lume sob a égide do citado diploma
constitucional, ainda conserva forte influência individualista, patrimonialista e liberal, nem
sempre privilegiando a pessoa humana em suas disposições.
33
Tal eficácia dos direitos fundamentais manifesta-se, sobretudo, em relação à aplicação e
interpretação das cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados, aspecto que assume
especial relevo na presente pesquisa no que tange à interpretação do princípio da boa-fé
objetiva na legislação civil.
De outra parte, a partir do reconhecimento da eficácia irradiante, tem-se destacado o
processo de constitucionalização do Direito Civil, o que, no dizer de Daniel Sarmento (2003,
p.281), “representa verdadeira virada copernicana para esse ramo do Direito, ao infiltrá-lo
com novos valores menos individualistas e patrimonialistas e mais voltado para a tutela da
personalidade humana, nas suas múltiplas dimensões.” Ainda no paralelo dos direitos
fundamentais e relações privadas, pontifica o citado autor:
Uma das mais importantes conseqüências da dimensão objetiva dos direitos
fundamentais é o reconhecimento da sua eficácia irradiante . Esta significa que os
valores que dão lastro aos direitos fundamentais penetram por todo o ordenamento
jurídico, condicionando a interpretação das normas legais e atuando como impulsos
e diretrizes para o legislador, a administração e o Judiciário. A eficácia irradiante
nesse sentido, enseja a ‘humanização’ da ordem jurídica, ao exigir que todas as suas
normas sejam, no momento de aplicação, reexaminadas pelo operador do direito
com novas lentes, que terão as cores da dignidade humana, da igualdade substantiva
e da justiça social, impressas no tecido constitucional.(grifo do autor)
(SARMENTO, 2004, p.154 -158)
33
Esse o entendimento de Teresa Negreiros (1998), que por oportuno, merece ser transcrito: “O direito civil
voltado para a tutela da pessoa humana é chamado a desempenhar tarefas de proteção, e estas especificam-se a
partir de diferenciações normativas correspondentes a diferenciações que implodem a concepção outrora unitária
de indivíduo, dirigindo-se, não a um sujeito de direito abstrato dotado de capacidade negocial, mas sim a uma
pessoa situada concretamente nas suas relações econômico-sociais o caso, no âmbito do direto contratual, das
normas de proteção do consumidor, ao locatário, ao usuário de plano de saúde etc. - as chamadas person-
oriented rules).
73
Trazendo ao tema desta pesquisa, a eficácia irradiante dos direitos fundamentais
manifesta-se, sobretudo, em relação à interpretação e aplicação das cláusulas gerais e
conceitos jurídicos indeterminados, presentes na legislação infraconstitucional. Conceitos
como boa-fé, ordem pública, interesse público, abuso de direito, bons costumes, dentre tantos
outros, abrem-se, pela sua plasticidade, a uma verdadeira reconstrução, edificada à luz dos
direitos fundamentais.
Por fim, releva destacar a profunda alteração dos limites entre Direito Público e Direito
Privado, o que será analisado a seguir mais detalhadamente.
3.4 A constitucionalização do direito privado
O Direito, como ciência social que é, deve ser permeável aos influxos das mudanças
sociais, pois viver é conviver e ninguém vive isolado, o que impõe a conclusão de que a
conduta do homem deve compatibilizar-se com a dos demais homens, e isso significa que
haverá uma interferência intersubjetiva de condutas. Nessa toada, o Direito surge como um
conjunto de princípios e regras destinados a ordenar a coexistência dos homens, representando
a dimensão normativa da estrutura social. Assim qualquer alteração na realidade social
implica a transformação dessa dimensão normativa e vice-versa.
A definição positivista de que Direito é norma, representando uma disciplina autônoma
em relação à ordem social, muito não atende aos reclamos da sociedade contemporânea,
estando superada, o que representa profundas mudanças no Direito Civil dos dias atuais.
Segundo ensina Luis Edson Fachin (2000, p.1),
o jurista, sob pena de omissão e cumplicidade farisaica, deve captar a mensagem
para o seu tempo, não lhe cabendo acastelar-se em elucubrações vãs, na ânsia de
interpretar fossilizados textos legais, em função de vírgulas ou reticências. Não pode
limitar-se a uma postura estática na defesa de uma ordem senil, que não assimila o
impacto das exigências sociais.
No mesmo sentido assevera Pietro Perlingieri (1997, p.2) que a afirmação da autonomia
da ciência jurídica em relação à realidade social é herança que ainda pesa sobre os juristas e
que “levou à criação de uma cultura formalista, matriz de uma teoria geral do direito sem
(explícitas) infiltrações de caráter político, econômico, sociológico: como se o direito fosse
imutável, eterno, a-histórico. insensível a qualquer ideologia”.
Não obstante, até agora os civilistas em geral não aceitam sem reservas a normatividade
constitucional como fonte de padrões hermenêuticos passíveis de fundamentar as novas
74
condições sociais a que se dirige a atuação dos institutos de Direito Privado. Ao contrário,
tende-se a afirmar a separação entre Direito Público e Direito Privado, como campos
normativos que traduzem interesses dicotômicos, tudo isso se refletindo na dogmática civil
clássica, que não apresenta uma abertura para as mudanças ocorridas.
34
A separação entre Direito Público e Direito Privado, que remonta ao Direito romano,
assumiu para a Escola da Exegese o caráter de ramos rigidamente separados, pois, segundo
essa Escola, os princípios constitucionais equivaleriam a normas políticas, destinadas ao
legislador e, apenas excepcionalmente, ao intérprete das normas de Direito Privado. Gustavo
Tepedino (2000, p.3) ressalta que o equívoco de tal concepção, até hoje, é bastante difundida,
acaba por relegar a norma constitucional, situada no vértice do sistema a elemento
de integração subsidiário, aplicável apenas na ausência de norma ordinária
específica e após terem sido frustradas as tentativas, pelo intérprete, de fazer uso da
analogia e da regra consuetudinária.
Todavia, a despeito da crítica apresentada, alerta o autor que tal entendimento
apresentava-se consentâneo com a lógica individualista oitocentista, tendo o Código Civil
como referência legislativa exclusiva no âmbito das relações de Direito Privado.
(TEPEDINO, 2000, p.3)
A vinculação entre as premissas do Estado Liberal e o surgimento das codificações de
Direito Privado é bastante estreita. Como foi visto no capítulo precedente, o Estado Liberal
surge para salvaguardar a liberdade individual frente ao seu maior inimigo, representado então
pelo Estado Absolutista, e isso se traduz na idéia de que o Direito vincula positivamente o
Estado, o qual só pode fazer o que a lei expressamente permite, e negativamente o cidadão,
que pode fazer tudo que não esteja proibido em lei. Um dos postulados básicos do liberalismo
assenta-se na separação entre Estado e sociedade civil, aquele sem qualquer possibilidade de
interferência no jogo das forças sociais.
Segundo a concepção liberal, a posição do Estado na economia tem um conteúdo
eminentemente negativo, pois a riqueza e o bem-estar coletivos são o somatório da riqueza e
bem-estar individuais, que, por sua vez, resultam da atividade particular, sem qualquer
intervenção do Estado.
34
Segundo explica Teresa Negreiros (2001, p.344), existe uma tendência a se “buscar nos instrumentos clássicos
da dogmática civil frestas que não chegam a iluminar a amplitude das mudanças ocorridas, restando
comprometida a sua abordagem sistemática. A ineficiência ou, quando menos, a insuficiência de tais
instrumentos dogmáticos deve-se, a nosso ver, à invalidade do seu postulado fundamental, qual seja, a
demarcação de uma linha divisória precisa entre o direito público e o direito privado, como dois campos
normativos que traduzem interesses, por natureza, dicotômicos”.
75
A liberdade, no liberalismo, é considerada uma função social, porquanto atua como
ponto de equilíbrio entre os interesses particulares e o interesse geral, então satisfeito. Ana
Prata (1979/80, p.27), citando Adam Smith, resume essa visão de que a soma dos interesses
individuais leva à satisfação do interesse geral, afirmando que
o assegurar a liberdade individual garante a racionalização do processo produtivo e
distributivo dos bens e da satisfação das necessidades: o empresário livre, que corre
o risco da sua actividade por sua conta exclusiva, organizará da melhor forma a sua
produção, com base na sua própria experiência e nos seus próprios problemas, pois o
interesse em que a empresa funcione em condições ótimas é o seu interesse
exclusivo e ninguém melhor que ele é juiz das condições de sua prossecução; o
consumidor, por seu lado, é o melhor juiz das suas próprias necessidades, pelo que a
procura livre no mercado é o melhor orientador da produção, e, simultaneamente,
das condições da oferta, pois, num mercado fluido, cada produtor tem de lutar para
colocar os seus produtos a preço sempre mais baixo e com qualidade cada vez
maior, sem o que sua produção não será comprada.
A partir dessa perspectiva, a sociedade era decomposta em sociedade civil, definida
como o conjunto dos indivíduos privados e o Estado, assim como decomposto era o
ordenamento jurídico, apresentando-se, de um lado o ius privatum, como direito regulador da
sociedade civil, e o ius publicum, como direito regulador do Estado.
Essa a explicação, segundo Juan Maria Bilbao Ubillos (1997, p.237), para o fato de ter o
Código Civil se transformado no centro do sistema normativo, “tornando-se a verdadeira carta
constitucional da sociedade autosuficiente” ao assegurar a autonomia da vontade e a liberdade
contratual como fontes de regulação da sociedade privada.
Assim, o Direito Privado constituía-se em autêntico baluarte da liberdade, sendo certo
que essa liberdade burguesa não era uma liberdade política, e sim uma esfera de autonomia
sem intromissão do Estado em relação, sobretudo, à propriedade. Por tal razão afirmou
Konrad Hesse (1995, p.38) que o Direito Privado regula as relações dos particulares do ponto
de vista da liberdade individual, à margem das relações políticas e das Constituições,
concluindo que “llegó el Derecho Privado a ser el Derecho constitutivo de la sociedad
burguesa, junto al cual el Derecho Constitucional tenia una importancia secundaria.”
Nesse mesmo sentido é a conclusão de Ana Prata (1979/80, p.33), ao afirmar que a
Constituição traduzia a forma de organização do poder político, definindo os limites à
atividade do Estado, ao tempo em que garantia os cidadãos contra os abusos daquele, ou seja,
“daí que a Constituição não fosse, não a lei fundamental da ordem jurídica de uma
colectividade politicamente organizada, mas sim e apenas o estatuto da organização política
da sociedade.”
76
O modelo liberal, com sua filosofia abstencionista, de desconsiderar as demandas de
igualdade real, entra em crise, quando a consciência da marginalização se generaliza e essa
população excluída passa a organizar-se politicamente para combater o modelo vigente.
Exatamente sob os influxos do princípio democrático, o Estado passou a intervir ativamente
na ordenação das relações sociais, de modo a que estas se ajustem, na medida do possível, aos
valores consagrados na própria Constituição. Sobre a questão ensina Jurgen Habermas (1984,
p.173) que
por um lado, concentração de poder na esfera privada do intercâmbio de
mercadorias e, por outro, a esfera pública estabelecida, com a sua institucionalizada
promessa de acesso a todos, reforçam uma tendência dos economicamente mais
fracos: contrapor-se, agora com meios políticos, a quem seja superior graças a
posições de mercado.[...] Apoiadas nessa possibilidade formalmente permitida de
participação política, as camadas pobres, bem como as classes ameaçadas de
pauperização, procuravam conquistar uma influência que deveria compensar
politicamente a igualdade de oportunidades que é violada no setor econômico.
No que concerne aos direitos fundamentais e o Direito Privado, observa-se que muitas
são as causas que vão gradualmente dando ensejo à intervenção do Estado nas relações
privadas. Primeiramente, passou o Estado a atuar como garantidor da concorrência do
mercado, o que não conseguiu impedir que este se afastasse do modelo concorrencial e
assumisse uma dimensão monopolista. Tal fato evidenciou que a simples garantia formal de
igualdade, consubstanciada na autonomia individual, não assegurava a realização das
necessidades do homem. Assim, o Estado vai paulatinamente assumindo tarefas de realização
do bem-estar dos cidadãos e de garantidor de valores mínimos da sociedade, à medida que
tenta minimizar as conseqüências que as desigualdades reais acarretam.
É dessa forma, sob os influxos da idéia de igualdade e do princípio democrático, que a
concepção liberal dos direitos fundamentais passa por acentuadas transformações, pois, ao
lado de uma dimensão subjetiva, a qual resguardava o indivíduo contra o abuso do Poder do
Estado, os direitos fundamentais assumem uma dimensão objetiva, lastreada, como foi visto
anteriormente, na noção de igualdade de todos no uso e fruição de tais direitos. A democracia
passa então a ser uma condição e uma garantia dos direitos fundamentais de própria liberdade
do homem.
Com o trânsito do Estado Liberal para o Estado Social de Direito
35
se desmascara a
ficção que vinculava o desfrute da liberdade na esfera social somente à afirmação do princípio
da igualdade jurídica. Segundo Bilbao Ubillos (1997, p.264) “el Estado no se limita a su
35
Sobre a questão da mudança de paradigmas do Estado Liberal para o Estado Social de Direito, chamamos a
atenção para o capítulo II do presente estudo.
77
función tradicional de garante das libertades, asume también el papel de promotor de esas
mismas libertades, para que no se conviertan en meras fórmulas vacías y pueden ser
disfrutadas por todos.”
Neste ponto assume relevo a relação entre o Direito Constitucional e o Direito Privado,
pois na sociedade industrial organizada como Estado Social multiplicam-se relações que não
podem ser enquadradas nem como Direito Público nem Direito Privado, constatando
Habermas que após a Primeira Guerra Mundial,
a evolução jurídica também acompanha até certo ponto a evolução social e acarreta
o surgimento de uma complicada mistura de tipos que, de início, foi registrada sob a
rubrica publicização do direito privado, mais tarde aprendeu-se a considerar o
mesmo procedimento também sob o ponto de vista imerso, o da privatização do
Direito Público: elementos do Direito Público e elementos de Direito Privado se
interpenetram até a incognoscibilidade e a indissolubilidade. (HABERMAS, 1984,
p.178)
As mudanças das relações entre o Direito Privado e o Direito Constitucional expressam
uma transformação nas tarefas, na qualidade e nas funções de cada um dos setores jurídicos. A
relação entre ambos os ramos do Direito alterou-se de uma inicial autonomia para uma
complementariedade e dependência. É o que conclui Konrad Hesse (1995, p.81):
Si la valoración precedente de la naturaleza y de las tareas del actual Derecho
Constitucional y del actual Derecho Privado es correcta, ambos aparecen como
partes necesarias de un orden jurídico unitario que recíprocamente se
complementan, se apoyan y se condicionan. En tal ordenamiento integrado, el
Derecho Constitucional resulta de importancia decisiva para el Derecho Privado y
el Derecho Privado de importancia decisiva para el Derecho Constitucional.
A clássica nitidez caracterizadora da distinção entre Direito Público e Direito Privado
encontra-se hoje arrefecida com a crescente publicização do direito aplicado às relações
interprivadas e uma privatização das normas aplicáveis à atividade do Estado. No dizer de
Ana Prata (1979/80, p.52-53), a crise de separação entre o Direito Público e o Direito Privado
vai além da simples reorganização de categorias conceituais: “a orientação mais comum é a
que se pode reconduzir à fórmula ‘publicização do direito privado’, mas também não falta
quem fale em recontratualização da vida econômica, isto é, numa espécie de reprivatização do
direito público.”
Não obstante, vale analisar com um pouco mais de detalhamento o que se chama na
doutrina de constitucionalização do Direito Civil. Seria lícito afirmar que, a partir do processo
de objetivação dos direitos fundamentais e do arrefecimento das fronteiras entre o Direito
Privado e o Direito Constitucional, ocorre um processo de publicização do Direito Civil?
78
Uma análise da aproximação do Direito Civil e do Direito Constitucional exige, de
início, uma avaliação do conceito de Constituição como norma jurídica, bem como da
importância da normatização dos princípios jurídicos, pois, na lição de Teresa Negreiros
(2001, p.348), “parece correto afirmar que a cruzada empreendida no sentido de normatização
dos princípios pressuposta pelos estudos da doutrina especializada encontra estreitas
conexões com a consolidação da nova ordem constitucional.” Registre-se, por oportuno, que a
teoria dos princípios teve o importante papel de flexibilizar a interpretação dos Códigos e da
legislação de Direito Privado, textos esses que pretendiam regulamentar, de maneira
exaustiva, as relações de Direito Privado. Todavia, fazer referência à supremacia da
Constituição como ordem de valores é fazer referência aos princípios. Como resume Gustavo
Kloh Muller Neves (2002, p.14), além do fato de que os princípios são fundamentais para
uma funcionalização dos institutos jurídicos de Direito Privado,
qualquer bandeira levantada por uma ordem justa em uma sociedade cujos
patamares jurídicos contemplem o pluralismo não pode prescindir dos princípios, os
quais, metodologicamente, são de todo adequados para a flexibilidade e as quebras
necessárias em um sistema que contemple a discordância.
Segundo Joaquim Arce y Florés-Valdez (1991, p.22 e ss), a Constituição, tomada em
sua base jurídica, significa uma superação de sua antiga condição de mero documento
político, de origem popular ou comunitária e que se limita a garantir os direitos individuais e a
separação de poderes, concepção esta que remonta ao final do Séc. XVIII. A Constituição, de
um lado, configura e ordena os poderes por ela construídos e, de outro, estabelece os limites
do poder e o âmbito das liberdades e dos direitos fundamentais. E sintetiza o referido autor
que
La Constitución, de esta suerte, limitando al poder, reconoce u otorga verdaderos
derechos al ciudadano frente a la organización estatal. Y, porque así lo determina,
vincula también, además de los poderes públicos, a los propios ciudadanos,
erigiéndose, en definitiva, en verdadera norma jurídica de carácter general. Logra,
pues, superar una condición meramente política, no ausente pero tampoco exclusiva
y, desde luego, compatible con aquella condición normativa. (FLÓRES-VALDEZ,
1991, p.23)
A Constituição situa-se, pois, no ápice do ordenamento jurídico, acima, portanto, das
demais normas desse ordenamento, principalmente porque incorpora o sistema de valores
essenciais de convivência da sociedade, que vão nortear e informar a interpretação desse
ordenamento, nos limites estabelecidos pela dimensão objetiva dos direitos fundamentais,
acima exposta. Sobre o tema afirma Gustavo Tepedino (2000, p.11) que o legislador
contemporâneo deve valer-se de prescrições que consagrem expressamente valores a serem
preservados, princípios axiológicos com teor normativo e eficácia imediata, levando todas as
79
demais regras do sistema a serem interpretadas de maneira homogênea e de acordo com um
critério objetivamente definido.
36
A força normativa dos princípios e a Constituição como um conjunto de regras e
princípios, na esteira do estudo realizado no capítulo I, é definida por Gomes Canotilho
(1993) como uma perspectiva teorético-jurídica, tendencialmente principalista do sistema
constitucional, como sistema processual de regras e princípios, assumindo particular
importância, não porque fornece suportes rigorosos para solucionar certos problemas
metódicos, mas porque permite respirar, legitimar, enraizar e caminhar o próprio sistema.
37
Concorda-se com Gustavo Muller Neves (2002) quando este afirma que em uma ordem
constitucional pluralista como a brasileira, o papel dos princípios é fundamental para a efetiva
consecução dos objetivos do Estado Democrático de Direito, voltado para a valorização da
pessoa humana e a criação de uma sociedade justa, livre e solidária. E o que se depreende do
excerto a seguir colacionado
é inegável que a renovação e a funcionalização do Direito Civil, voltadas para a
valorização da pessoa, e a criação de uma sociedade livre, justa e solidária, não
prescindem da teoria dos princípios como marco teórico, nem da Constituição como
repositório primaz destes princípios.
Em uma ordem constitucional que admita uma interpretação pluralista e aberta,
como a nossa, o conhecimento do papel dos princípios por parte dos operadores do
direito é imprescindível. Apenas assim poderemos dar o correto atendimento aos
objetivos fundantes de nosso Estado Democrático de Direito, que são
compromissórios, amplos, flexíveis e normativos, e, portanto, princípios.” (NEVES,
2002, p.16)
O reconhecimento dessa força normativa dos princípios constitucionais consolida a
noção de que o Direito Privado pode ser interpretado à luz dos princípios como o da
solidariedade social, da dignidade da pessoa humana, da função social da propriedade, entre
outros, os quais foram consagrados na Constituição de 1988, princípios que imprimem novos
contornos às situações estritamente patrimoniais prevalentes no Código Civil em obséquio a
36
Eis o que diz na íntegra o nominado civilista: “o legislador contemporâneo, instado a compor, de maneira
harmônica, o complexo de fontes normativas, formais e informais, nacionais e supranacionais, codificadas e
extracodificadas, deve valer-se de prescrições narrativas e analíticas, em que consagram expressamente critérios
interpretativos, valores a serem preservados, princípios fundamentais como enquadramentos axiológicos com
teor normativo e eficácia imediata, de tal modo que todas as demais regras do sistema, respeitados os diversos
patamares hierárquicos, sejam interpretadas e aplicadas de maneira homogênea e segundo conteúdo
objetivamente definido.” (TEPEDINO, 2000, p.11).
37
Na lição de Gomes Canotilho (1993, p.170) “a respiração obtém-se através da textura aberta dos princípios; a
legitimidade entrevê-se na idéia de os princípios consagrarem valores (liberdade, democracia, dignidade)
fundamentadores da ordem jurídica; o enraizamento prescruta-se na referência sociológica dos princípios a
valores programas, funções e pessoas; a capacidade de caminhar obtém-se através de instrumentos processuais e
procedimentais adequados, possibilitadores da concretização, densificação e realização prática (política,
administrativa, judicial) das mensagens normativas da constituição”.
80
situações existenciais, em que o sujeito passa a ser o centro do sistema normativo.
Pietro Perlingieri (1997, p.23), em lapidar síntese, exprime o sentimento acerca da
necessidade de mudança na aplicação e interpretação das normas de Direito Privado,
baseando-se na realidade de seu país, o que não torna a lição menos oportuna para o caso
brasileiro, como se depreende do texto transcrito:
É impossível verificar o que de relevante aconteceu nestes últimos anos na justiça
civil e na cultura jurídica, tão condicionadas no nosso país por um desenvolvimento
econômico nem sempre apreciável pela qualidade e assim (tão) profundamente
diversificado e desequilibrado. Não é suficiente evidenciar a grave diferença entre as
garantias formais e potenciais e aquelas que concretamente encontram atuação na
jurisprudência vivente, na história de todos os dias, que é sim, história da empresa,
dos problemas produtivos, distributivos e financeiros, mas é também história dos
desfavorecidos, dos tantos marginalizados, por escolha ou necessidade do ciclo
produtivo. [...] É necessário que, com força, a questão moral entendida como efetivo
respeito à dignidade da vida de cada homem e, portanto, como superioridade deste
valor em relação a qualquer razão política da organização da vida em comum, seja
reposta ao centro do debate na doutrina e no Foro, como única indicação idônea a
impedir a vitória de um direito sem justiça.
Admite-se, assim, que a Constituição vincula tanto o legislador, ao editar normas de
Direito Privado, quanto o juiz e os demais órgãos estatais, quer no que tange às relações de
família, quer nas novas concepções acerca da função social do contrato ou da propriedade
privada. A Constituição possui “uma força geradora do Direito Privado”. (FACHIN, 2000, p.
72).
Nesse processo de aplicação da Constituição nas relações com o Direito Privado,
assume o princípio da dignidade da pessoa humana, insculpido no art. 1°, III, da Constituição
Federal, um valor central, galgando a posição de “valor-fonte de todos os
valores.” (MARTINS-COSTA, 2002, p. 181)
Quando o tema é o princípio da dignidade da pessoa humana, a doutrina parece
convergir em relação ao reconhecimento de sua posição de supremacia, pois é a dignidade da
pessoa humana o valor supremo para cuja proteção se orienta ideologicamente o sistema
jurídico. E a possibilidade de reconhecimento das diferenças, em nome de um princípio
democrático, deixa de ser um mero sistema político e passa a revestir a própria noção de
Estado de Direito, pois este não é somente aquele que cumpre os princípios formais de
legalidade, do equilíbrio entre os poderes e da publicidade. É, antes de tudo, “o Estado que
reconhece e protege o exercício mútuo das liberdades.” (RABENHORST, 2001, p.47)
E conclui Eduardo Rabenhorst (2001, p.48-49) sobre a dignidade da pessoa humana e a
81
democracia:
O que caracteriza a democracia é exatamente a falta de fundamentos absolutos
(transcendentes e religiosos) e a diversidade de valores. Se existe algum fundamento
último para democracia, ele não pode ser outra coisa senão o próprio
reconhecimento da dignidade humana. Mas tal dignidade é, ela própria, destituída de
qualquer alicerce religioso ou metafísico. Trata-se apenas de um princípio
prudencial, sem qualquer conteúdo pré-fixado, ou seja, uma cláusula aberta que
assegura a todos os indivíduos o direito à mesma consideração e respeito, mas que
depende, para sua concretização, dos próprios julgamentos que esses indivíduos
fazem acerca da admissibilidade das diversas formas de manifestação da autonomia
humana. Assim concebida, a dignidade humana deixa de ser um conceito descritivo
para tornar-se o próprio ethos da moralidade democrática.
Por fim, cumpre registrar que uma das discussões mais intrigantes advindas da aceitação
da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e de sua eficácia irradiante consiste naquela
referente à aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, pois a
depender da corrente doutrinária que se adote, exsurgirá o reconhecimento de uma eficácia
imediata ou mediata desses direitos. Advirta-se, entretanto, que independentemente da
aceitação de uma possível eficácia imediata dos direitos fundamentais nas relações inter-
privadas, interessa, para um posterior cotejo com o princípio da boa-fé objetiva, a aplicação
de tais direitos por intermédio da interpretação das cláusulas abertas, ínsitas na legislação
infraconstitucional. Esse o tema do próximo capítulo, qual seja, a análise dogmática das
correntes teóricas acerca da aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas.
82
4 OS DIREITOS FUNDAMENTAIS APLICADOS NAS
RELAÇÕES INTERPRIVADAS: ALGUNS ASPECTOS
DOUTRINÁRIOS
4.1 Prolegômenos
Das conseqüências advindas da discussão acerca da publicização do Direito Privado ou
mesmo da superação da dicotomia entre Direito Público e Direito Privado, certamente uma
das mais importantes e que mais tem provocado discussões doutrinárias diz respeito a uma
vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais, seja direta ou indiretamente, ou,
melhor dizendo, até que ponto influi a Constituição na órbita privada, no que tange à eficácia
dos direitos fundamentais. As mudanças políticas operadas na sociedade e no Direito
Constitucional trouxeram à baila a certeza de que os contornos clássicos de definição e
aplicação dos direitos fundamentais não mais atendem aos reclamos de uma sociedade
complexa como a sociedade contemporânea. Cada vez mais autores estão convencidos da
unidade do ordenamento jurídico e da imperiosa necessidade de proteger as liberdades
também frente aos poderes de fato, baseados na noção de que a tutela dos direitos
fundamentais seria incompleta se não protegesse de algum modo os indivíduos frente aos
ataques que provenham de sujeitos privados, discussão que, como visto anteriormente, sempre
foi obscurecida pela definição clássica de vinculação somente do poder público aos direitos
fundamentais.
Na feliz lição de Vieira de Andrade (1987, p.274), o Estado, a partir de sua concepção
social e democrática, vai aparecer na vida social metamorfoseado em várias figuras jurídicas
e, em alguns casos, equiparado a um sujeito privado. De outra parte, algumas entidades
privadas passaram a exercer tarefas de interesse coletivo ou passaram a atuar de forma
decisiva nas condutas dos cidadãos em áreas sociais, o que ensejou um arrefecimento da
dicotomia público versus privado, e, em conseqüência, na diferença entre Direito Público e
Direito Privado como critério distintivo da relevância dos direitos fundamentais. Assim, a
importância do tema da aplicação dos direitos fundamentais nas relações particulares surge,
de acordo com o citado constitucionalista, a partir de uma dupla abordagem, consubstanciado
em duas direções concorrentes: a primeira diz respeito aos direitos fundamentais como
princípios constitucionais que não podem deixar de aplicar-se em toda a ordem jurídica,
inclusive em relação ao Direito Privado, o que foi amplamente analisado no capítulo
antecedente, a partir do estudo da dimensão objetiva; e a segunda privilegia a noção de que
existe a necessidade de proteger os particulares não apenas perante o Estado, mas também
perante outros indivíduos ou entidades privadas que, pelo menos, estejam equiparadas a
verdadeiros poderes, jurídicos ou de fato.
É nesse sentido que Vasco Manoel Pascoal Dias Pereira da Silva (1982, p.43) afirma
que, a partir do crescimento horizontal do Estado e do alargamento do rol dos atores políticos,
e com a introdução do sufrágio universal, houve uma multiplicação das instâncias mediadoras
das relações entre o indivíduo e o Estado, acarretando para essas relações uma dimensão
coletiva, fruto da mediação de organismos como partidos políticos, sindicatos e associações,
que, entre outros, “não se limitam a pretender conquistar ou influenciar o poder, mas que vão,
elas próprias, adquirindo, gradualmente, um estatuto de poder”. Nesse contexto, o poder deixa
de ser um privilégio do Estado e passa a ser compartilhado pela sociedade, o que impõe a
discussão acerca da vinculação das entidades privadas aos direitos fundamentais, em
contraposição à clássica concepção de validade somente contra o Estado, uma vez que não faz
sentido limitar tal aplicação se este (o Estado) deixou de ser a única fonte de poder
potencialmente violadora dos direitos fundamentais do cidadão.
Afora os entes coletivos de intermediação entre indivíduos e Estados, cumpre registrar
também a pressão de grupos ou empresas multinacionais ou transnacionais no exercício dos
direitos fundamentais individuais, dentro de um contexto globalizado. Globalização, segundo
ensina Habermas (2001, p.84), “caracteriza a quantidade cada vez maior e a intensificação das
relações de troca, de comunicação e de trânsito para além das fronteiras nacionais” alertando
o autor para o fato de que o conceito de globalização descreve um processo e não um estado
final. Ainda segundo o autor alemão, a dimensão mais importante da globalização constitui a
globalização econômica, caracterizada pelo fato de que
as transações econômicas globais, comparadas às atividades voltadas para o
nacional, movimentam-se em um nível nunca antes atingido e influenciam de
modo imediato e mediato – as economias nacionais em escala até então
desconhecida. (HABERMAS, 2001, p. 85).
84
Como consectário da globalização econômica, afirma o autor que uma unanimidade
quanto à ascensão vertiginosa da influência das empresas transnacionais com suas cadeias de
produção mundiais (HABERMAS, 2001, p.85).
Assim, o fenômeno do poder, como manifestação de uma situação de desigualdade, não
é prerrogativa do Estado, mas inerente a toda a organização social. Esse poder não está
mais concentrado no aparato estatal, mas disseminado na sociedade. Juan Maria Bilbao
Ubillos (1997, p.242) afirma que o poder, que coloca um sujeito ou grupo em condições de
influir eficazmente no comportamento de outros, é precisamente a capacidade de determinar
ou condicionar de algum modo a conduta de outras pessoas.
Nesse contexto é que se torna importante a proteção dos direitos fundamentais do
cidadão não somente em face do Estado, mas em relação a todas as situações de poder. Sobre
a questão, afirma Vasco Manoel Pereira da Silva (1982, p.43):
Na verdade, tendo sido os direitos fundamentais concebidos para a defesa do
cidadão face ao poder e tendo deixado este de ser privilégio do Estado, não faria,
mais, sentido, não alargar a proteção dos cidadãos através dos direitos fundamentais
a todas as situações de poder. A liberdade do cidadão contra o poder não se pode
dirigir, apenas, contra o poder do Estado, mas, também, contra o poder econômico, o
poder empresarial, o poder sindical, o poder da comunicação social, etc.
O exercício dos direitos fundamentais do cidadão frente ao poder dos órgãos do Estado
se encontra assegurado de forma institucional e procedimental por meio das garantias
fundamentais da Constituição do Estado de Direito e da legislação infraconstitucional. Assim,
na defesa contra o abuso do poder estatal, os indivíduos contam com grande aparato
constitucional e legal de meios de salvaguarda de seus direitos, inclusive judiciais, o que
enseja a conclusão de que el poder estatal ha perdido así sustancialmente su aspecto
terrorífico y amenazador para el ciudadano” (BÖCKENFÖRDE, 1993, p.84).
Noutra toada, a segurança da liberdade do cidadão frente ao poder social não obedece
ao mesmo regramento, até mesmo pelo fato de que a liberdade geral e igual para todos é
abstrata e não real. Sobre a questão preleciona Böckenförde (1993, p.85) que
la moderna sociedad, en la forma que se ha hecho realidad por obra y desde la
Revolución Francesa, recibe su constitucn fundamental en el ámbito socioeconómico
desde una triple garantía jurídica: de la igualdad judica, de la libertad de adquisición y
de la garantía de la propiedad adquirida. Ciertamente, esta constitución fundamental no
asegura aún, ciertamente, desde si misma la libertad y la posibilidad de desarrollo reales,
ya que la libertad, como libertad de la personalidad general e igual para todos, continua
siendo abstracta: solo oportunidad y posibilidad.
85
E continua o mencionado autor, afirmando que as relações socioeconômicas de poder
podem impedir o surgimento da liberdade como liberdade real, fazendo com que não se possa
verificar a realização da liberdade juridicamente garantida. E isso acontece quando o
indivíduo ou grupos inteiros de pessoas não dispõem de quase nenhuma segurança e
independência social, de maneira que lhes faltam os pressupostos para a realização de sua
liberdade jurídica. E conclui Böckenförde (1993, p.85):
para que exista libertad para todos, el Estado mismo debe también canalizar,
delimitar, más allá de la garantía jurídica formal de la libertad, el poder social
existente o en formación, e impedir que ponga en juego por entero su superioridad
frente a los no-poderosos, y ahogue la libertad jurídica de estos. Solo así se puede
producir, al menos de manera aproximada, ‘la igualdad de los puntos de partida’,
entendida como la oportunidad para la realización de la libertad.
Todavia, a própria realização da liberdade jurídica igual para todos traz em si novas
desigualdades sociais, na medida em que os próprios indivíduos são diferentes. Pretender
anular as diferenças individuais em nome de uma liberdade real de desenvolvimento do
indivíduo é anular a própria liberdade, pois liberdade significa necessariamente a assunção da
desigualdade social. (BÖCKENFÖRDE, 1993, p.86).
Impõe-se, pois, a conclusão de que o princípio da legalidade, em seus contornos
clássicos, está, de fato, a exigir uma releitura e ampliação em face do poder privado e das
desigualdades sociais. Com isso preconiza-se que as normas constitucionais devem ser
aplicadas não somente em relação ao Estado e aos agentes do Poder Público, mas também aos
particulares.
A liberdade geral, sob pena de tornar-se cláusula vazia, deve ser protegida mediante a
salvaguarda dos direitos fundamentais.
As relações assimétricas de poder representam limites ao pleno exercício dos direitos
fundamentais pelos cidadãos. Tais relações são caracterizadas pelas intervenções ilegítimas do
poder social, quer pelo poder administrativo-burocrático, quer pelos mecanismos de mercado,
e põem em risco a visão teleológica dos direitos fundamentais, ou seja, a visão segundo a qual
tais direitos são considerados “uma expressão valorativa de seu próprio sistema cultural e,
portanto, um bem preferido e compartilhado por todos.” (CITTADINO, 2001, p.106).
Ainda na seara da obrigação de proteger os cidadãos nas relações privadas, outra
realidade não pode ser desconsiderada: a ameaça dos poderosos que controlam os
mecanismos do mercado de produção e de consumo, na forma denunciada por Carlos Roberto
86
Siqueira Castro (2003, p.237), que em síntese muito oportuna, assim se manifesta:
tendo a desigualdade em todas as escalas se tornado a argamassa de sustentação das
sociedades na era pós-industrial, a implantação da segregação entre indivíduos e
grupos que detêm o poder gerou o surgimento de uma nova fonte de ameaça social:
a ameaça dos poderosos, que controlam os mercados de produção e consumo de que
depende a vida humana, contra a multidão de debilitados social e economicamente
que se esfola nas engrenagens da sobrevivência na sociedade de massas. Na verdade,
as ameaças que hoje o Estado faz pesar sobre o exercício dos direitos humanos
tornam-se cada dia mais secundárias nas nações de desenvolvimento cultural e
político, comparada as agressões que os indivíduos e detentores de poder social
fazem pesar sobre as liberdades daqueles destituídos de influência ou sem condições
materiais de participar minimamente da concorrência pela vida em padrões
aceitáveis de dignidade.
Tal fato, e isso interessa muito especialmente ao desenvolvimento do tema da boa-fé
objetiva, conforme se verá adiante, enseja a conclusão de que, de um lado os detentores do
poder social podem não impor sua própria vontade em uma situação jurídica concreta,
como se torna evidente que as partes envolvidas nos pactos não possuem a mesma liberdade
para discutir e estabelecer as cláusulas pactuadas e exigir seu cumprimento, mormente quando
a uma das partes não resta outra alternativa a não ser aceitar uma proposta ou condições
impostas unilateralmente, caso típico dos contratos de adesão, tão comuns nos dias atuais. Na
dicção de Juan Maria Ubillos (1997, p.244-245), “el ejercicio de la libertad contractual por
el contratante en posición de superioridad anula la libertad de la parte más débil, que se
encuentra en un estado de necesidad”.
Dessa forma, o poder privado manifesta-se como tal nas situações em que haja uma
assimetria entre as partes, de modo a estabelecer-se, de um lado, uma relação de dominação
de uma das partes, quer por razões econômicas ou sociais, e, de outro, de sujeição da parte
hipossuficiente.
O aspecto mais inquietante na análise do poder social é que, diferentemente do poder
público, que tem suas decisões controladas pelo Judiciário, aquele tende a receber uma certa
dose de impunidade em relação a eventuais abusos, em nome da autotutela de determinados
poderes privados. Isso porque existe uma tendência de subtrair suas decisões do controle
judicial.
Assim, mister reconhecer que as relações entre os cidadãos e o Estado não esgotam a
área de conflitos entre o poder e a liberdade do indivíduo. Não é demais lembrar que o poder
de influência e comando na vida dos cidadãos não é mais monopólio do Estado e sim de
outros centros de comando social, que decidem sobre o mercado de bens e serviços
87
indispensáveis à vida humana e, por conseguinte, sobre a existência dos indivíduos e da
coletividade.
Como arremata Juan Maria Ubillos (1997, p.250), em se tratando de aplicação dos
direitos fundamentais nas relações privadas,
El derecho no puede ignorar el fenómeno del poder privado. Tiene que afrontar esa
realidad y dar una respuesta apropiada, que no podrá venir, desde luego, por la vía
de una adhesión incondicional al dogma de la autonomía privada. La sacralización
de este principio, que hoy aparece seriamente erosionado en la experiencia del
tráfico jurídico privado, ha servido tradicionalmente para apuntalar la inmunidad
de estos poderes, privando de garantías efectivas a quienes ven menoscabada
injustificadamente su libertad.
Por fim, sobre o exercício de poder privado e a necessidade de extensão da eficácia dos
direitos fundamentais também nas relações privadas, cumpre lembrar que não se pode admitir
que existam duas concepções acerca da proteção dos direitos do homem, uma pública e outra
privada. Explicando melhor o raciocínio, não se pode admitir que o homem tenha seus
direitos resguardados contra o Estado e que nas relações sociais, com seus semelhantes, não
possa se valer da mesma proteção.
Tal entendimento equivaleria a legitimar a contraposição de duas éticas baseadas no
mesmo fundamento da dignidade humana: a ética pública, vinculada ao respeito dos direitos
fundamentais, ao lado da ética privada, liberada de semelhante dever. (CASTRO, 2003, p.
240).
Noutro dizer, a resposta pura e simples à questão da vinculação dos entes privados aos
direitos fundamentais traz mais inquietações do que certezas. Hoje, doutrina e jurisprudência,
tanto pátria quanto alienígena, não apresentam dissensão no que concerne aos ditos efeitos
horizontais dos direitos fundamentais. Existe, de certa maneira, um sentimento constitucional
generalizado de que o Direito Privado, ainda que com regramentos e contornos diferentes
daqueles de Direito Público, não pode existir como um “gueto” infenso aos princípios
insculpidos no texto constitucional, sobretudo quando a questão versa sobre o reconhecimento
e a observância do princípio da dignidade da pessoa humana.
Assim, primeiramente cabe assinalar que se os direitos fundamentais surgiram como
forma de proteção dos indivíduos frente ao poder do Estado, qual seria o fundamento apto a
justificar a extensão dessa proteção às ações privadas? Tal questionamento inicial resta
superado a partir das considerações tecidas acima em relação ao poder privado e da forma
como o mesmo pode interferir na vida dos indivíduos e das coletividades, merecendo,
88
portanto, a proteção quanto a eventuais abusos. Contudo, se o fundamento de extensão da
proteção constitucional dos direitos fundamentais é a necessidade de proteção contra os
abusos do poder privado, resta estabelecer o modo como se deve dar a propalada vinculação:
se de maneira direta ou indireta, o que será analisado nos tópicos que se seguem.
Um segundo ponto a ser examinado diz respeito à convivência da racionalidade própria
do direito privado com as técnicas de proteção dos direitos fundamentais. Como
compatibilizar a proteção pública a tais direitos e à autonomia da vontade individual, que se
apresenta como um dos pilares dessa mencionada racionalidade do Direito Privado? E
compatibilizados os mecanismos de atuação de um e outro sistema, a quem estaria cometida
essa tarefa de analisar as questões relativas à vinculação? Ao legislador ou aos juízes?
Com efeito, argumenta-se que a liberdade individual encontra-se ameaçada se os
direitos fundamentais constitucionais começarem a ser impostos aos direitos de propriedade
privada e à liberdade de contratação. De outra parte, existem aqueles que, mesmo sem negar a
influência dos direitos fundamentais nas relações privadas, não admitem uma aplicação direta
dos mesmos nas relações particulares, como é o caso dos defensores da vinculação mediata,
que será objeto de estudo mais adiante.
Por fim, cabe indagar se os direitos fundamentais vinculam em graus diferentes as
entidades privadas. As entidades privadas mais dotadas de poder social estariam mais
diretamente vinculadas aos direitos fundamentais? Vale aqui, desde já, lembrar que quando se
trata de relações interprivadas, as partes envolvidas são igualmente detentoras de direitos
fundamentais protegidos constitucionalmente. Tal indagação também será objeto de análise,
sobretudo no tópico relativo às conclusões.
De toda sorte, o reconhecimento da ineficiência dos mecanismos de defesa dos cidadãos
frente ao poder privado constitui-se um dos mais fortes argumentos à necessidade de revisão
da doutrina tradicional acerca dos direitos fundamentais. A conexão das teorias relativas à
aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas e o princípio da boa-fé objetiva
exsurgem a partir da existência de correntes doutrinárias diferentes que militam em favor da
aplicação direta de tais direitos nas relações privadas ou em favor de sua aplicação apenas
indireta ou mediata, a partir da intermediação do legislador e do julgador nos casos concretos.
Essas as questões que serão analisadas a seguir.
89
4.2 Teoria da aplicação imediata dos direitos fundamentais nas relações
interprivadas
O fato de reconhecer-se a aplicação dos direitos fundamentais nas relações
interprivadas, por si só, não esclarece muito acerca da amplitude, forma e força de tal
aplicação. Primeiramente, a questão da vinculação de particulares aos direitos fundamentais
foi discutida na doutrina alemã, e recebeu o nome de “eficácia externa dos direitos
fundamentais”, inspirada no direito das obrigações. Segundo Vasco Manoel Pereira da Silva
(1982), no âmbito das obrigações, a idéia de que os direitos de crédito possuíam uma eficácia
somente entre as partes envolvidas foi dando lugar à afirmação de que possuiriam um duplo
efeito: um interno, dirigido ao devedor e que lhe impõe a obrigação de saldar a prestação
assumida, e um efeito externo, segundo o qual as demais pessoas têm obrigação de respeitar o
direito de crédito, devendo, outrossim, não dificultar ou impedir o cumprimento da obrigação.
Dessa forma, “enquanto que o primeiro constitui o fulcro da própria relação obrigacional, o
segundo, obrigando os terceiros a uma atitude negativa, de respeito pelo direito constituído
pelos titulares primários da relação creditícia, aparece como seu complemento.” (SILVA,
1982, p. 41).
Entretanto, a doutrina tem combatido a terminologia eficácia externa dos direitos
fundamentais”, pois não se trata de uma mera transposição de uma relação obrigacional
concebida entre o particular e o Estado, para a esfera das relações privadas. Trata-se, isso sim,
de saber se as normas de direitos fundamentais, válidas nas relações entre o indivíduo e o
Estado, podem ou não ser aplicadas nas relações entre particulares e em que medida essa
vinculação acontece.
A primeira corrente que despontou acerca do tema milita em favor de uma aplicação
imediata dos direitos fundamentais nas relações privadas, com início na Alemanha, a partir da
formulação de Hans Cari Nipperdey, posteriormente seguida por Walter Leisner, ao
estabelecer a doutrina do Drittwirkung der Grundrechte, ou da eficácia imediata ou direta dos
direitos fundamentais nas relações privadas. Segundo Nipperdey, consoante lição de García
Torres e Jiménez-Blanco (apud UBILLOS, 1997, p.271), na atual sociedade de massas,
determinados grupos dispõem de importantes parcelas de poder social e econômico, poder
este capaz de atingir os direitos de um grande mero de indivíduos, sendo certo que a
Constituição garante alguns desses direitos contra a interferência indevida ou mesmo contra o
abuso do poder público, como é o caso dos direitos de liberdade de locomoção, de liberdade
90
de reunião, de inviolabilidade do domicílio, entre outros. De outra parte, existem preceitos
constitucionais que reconhecem direitos fundamentais que garantem a cada cidadão uma
esfera de liberdade que não se dirige tão-somente contra o Estado. É o caso da garantia
constitucional da dignidade da pessoa humana, do direito do livre desenvolvimento da
personalidade, da liberdade de expressão, da liberdade de consciência, da proibição de
discriminação ou da liberdade de associação, entre outros.
Ainda como prelecionam García-Torres e Jiménez-Blanco, a Constituição alemã
assegura proteção expressa aos direitos violados pelos poderes públicos, bem como somente
as violações de direitos levadas a cabo por tais poderes possuem a proteção da reclamação
constitucional. Partindo desse material normativo, Nipperdey afirma que existem alguns
direitos fundamentais que vinculam somente o poder público. Não obstante, existem normas
sobre direitos fundamentais que não dizem respeito a uma esfera de liberdade que deve ser
protegida frente ao Estado, mas também garantem a cada cidadão um status em suas relações
com outros particulares e, em especial, com outros grupos e organizações cujo descomunal
poderio na sociedade moderna ameaça o indivíduo isolado e impotente. Mas advertem os
autores citados que a eficácia horizontal não se detém aos casos de manifesta desigualdade
entre as partes, pois o direito constitucional concede aos particulares uma determinada
posição jurídica em suas relações com outros particulares.
38
A noção da aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas tem
respaldo na concepção de que os direitos fundamentais são aplicáveis a toda ordem
constitucional, em razão dos princípios da unidade da Constituição e de sua força normativa e,
dessa forma, seriam invocados por seu titular como direitos subjetivos, cujo limite de
exercício seria encontrado na dignidade da pessoa humana.
38
Segue transcrito o texto original de García Torrez e Jiménez-Blanco (1986, p.22): existen normas sobre
derechos fundamentales que no solo dicen relación a una esfera de libertad que proteger frente al Estado, sino
que también garantizan a cada ciudadano un status sociales en sus relaciones jurídicas con los demás y, en
especial, con los formidables Sozialmãthte, los grupos y organizadores cuyo descomunal poderío en la moderna
sociedad amenaza al individuo aislado e impotente y frente a los que el Estado debe intervenir justamente para
defender el inerme ciudadano. Pero la Drittwirkung no se detiene en esos casos de manifiesta desigualdad entre
las partes porque el Derecho constitucional, con efecto constrictivo u obligatorio (mit zwingender Wirkung),
concede a los particulares una determinada posición jurídica en sus relaciones con los otros particulares,
abstracción hecha de su poder e influencia.”
91
Isso porque não se pode admitir que o direito privado permaneça à margem da
Constituição, não havendo como sustentar que os direitos fundamentais vinculem apenas o
poder público. Ingo Sarlet (2000, p.122) chegou mesmo a defender o que chamou de eficácia
absoluta dos direitos fundamentais no âmbito do direito privado e das relações entre
particulares. Para tanto, buscou apoio em Smend e adotou um conceito de Constituição como
ordem de valores
39
da qual se podem extrair diretamente regras para resolver juridicamente os
casos concretos. (UBILLOS, 1997, p.271).
No mesmo sentido, Walter Leisner (apud UBILLOS, 1997, p.273), partindo de uma
analogia entre as formas de ingerências públicas e privadas nas esferas jurídicas protegidas
pelos direitos fundamentais, afirma que é cada vez menos relevante a situação jurídica do
agressor de tais direitos, pois a consciência jurídica não pode resultar indiferente diante do
que ocorre com as posições subjetivas de valor nas relações entre horizontais. Bem assim,
afirma que a liberdade deve ser entendida em sentido global, não se admitindo que os direitos
fundamentais signifiquem algo somente em relação ao Direito Público e nada em relação ao
Direito Privado, pois estes se constituem na última proteção do conteúdo nuclear da liberdade.
A partir da discussão na doutrina alemã, a questão ganhou outros contornos e espalhou-
se para outros países.
Em Portugal, a Constituição, em seu art. 18, 1, preconiza que “os preceitos
constitucionais respeitantes aos direitos, liberdades e garantias são directamente aplicáveis e
vinculam as entidades públicas e privadas”. Segundo a lição de Vieira de Andrade (1987, p.
281), a simples determinação do referido art. 18 sobre a aplicação dos direitos fundamentais,
por si só, não se apresenta suficiente para resolver a questão acerca da aplicação direta ou
indireta dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, na medida em que o
preceito não diz em que termos se processa essa vinculação e se tal vinculação far-se-á nos
mesmos moldes da vinculação em relação aos poderes públicos.
Argumenta o citado constitucionalista português que a solução da questão também não
pode ser deduzida do conceito de liberdade previsto na Constituição portuguesa. Esta
apresenta uma tendência socializante e deve compatibilizar as forças e interesses do Estado e
da sociedade, que não se apresentam apartados entre si. Deve ainda garantir a justiça social.
39
Sobre a questão da Constituição como ordem de valores e a dimensão objetiva dos direitos fundamentais,
remetemos o leitor para a leitura dos capítulos I e III, respectivamente.
92
De outra parte, a mesma Constituição reconhece o valor da autonomia privada. Assim, a
liberdade que os direitos fundamentais visam a garantir não é apenas um valor abstrato, mas,
sobretudo, o poder de autodeterminação dos indivíduos concretos, e “é por sua vez em nome
da liberdade geral ou da liberdade negocial que se defendem certas compressões à
aplicabilidade dos preceitos constitucionais nas relações entre particulares.” (ANDRADE,
1987, p.282).
Conclui assim Vieira de Andrade (1987) que o problema da vinculação direta ou
indireta dos particulares aos direitos fundamentais continua em aberto, a despeito do referido
artigo 18 e sua determinação de aplicação às entidades particulares.
Não é esse o entendimento de Gomes Canotilho e Vital Moreira (1984, p.166) acerca do
tema. Ambos defendem uma aplicação imediata/direta dos direitos fundamentais nas relações
entre particulares, como conseqüência do mandamento constitucional acima mencionado.
Assim argumentam os autores:
O texto da Constituição não faz qualquer restrição, e o facto de se dizer que os
direitos fundamentais são directamente aplicáveis e vinculam as entidades privadas
parece não poder deixar de ler-se no sentido de que os direitos fundamentais
previstos nesse artigo têm uma eficácia imediata perante entidades privadas.
Aplicam-se também às relações entre os particulares e o Estado.
Mesmo admitindo-se a aplicação direta dos direitos fundamentais nas relações privadas,
ainda remanesce a questão acerca da extensão dessa eficácia, ou seja, vale para todos os
direitos e para todas as relações privadas em que se exprime uma relação de poder ou de
dependência. Na visão dos referidos autores portugueses, a Constituição lusitana faz aplicar
diretamente os direitos fundamentais nas relações privadas, sem qualquer restrição ou
limitação, não sendo legítimo limitar essa eficácia. E concluem os autores que
a aplicação dos direitos, liberdades e garantias às relações entre particulares só não
tem lugar no caso daqueles direitos que expressamente ou pela natureza podem
valer perante o Estado [...] e pode ser restringida legalmente nos mesmos termos
em que o pode ser nas relações entre os particulares e o Estado ou outras entidades
públicas, podendo princípio da autonomia negocial privada, na medida em que seja
um bem constitucionalmente protegido, funcionar como fundamento dessa restrição.
(CANOTILHO; MOREIRA, 1984, p.166).
No Brasil, Ingo Sarlet (2000, p.151) defende a aplicação imediata dos direitos
fundamentais nas relações privadas, à exceção daqueles direitos que são exclusivamente
dirigidos ao poder público. Ensina o mencionado constitucionalista que a discussão acerca da
aplicação direta ou indireta dos direitos fundamentais nas relações privadas, além dos
argumentos jurídicos, sempre apresenta um viés político e ideológico, sendo que uma opção
93
pela eficácia imediata traduz uma decisão por um constitucionalismo de igualdade, com vistas
à realização efetiva dos direitos fundamentais no âmbito do Estado Social e Democrático de
Direito. Bem assim, aduz o professor que mesmo aqueles que advogam a tese da aplicação
apenas mediata dos direitos fundamentais entre privados, como no caso de Dürig e Hesse,
admitem a necessidade de proteção de tais direitos na hipótese de atores privados poderosos.
Acresce a sua tese o argumento de que todos os direitos fundamentais, independentemente da
discussão acerca de sua qualidade suprapositiva ou jusnaturalista, encontram guarida no
princípio, igualmente positivado, da dignidade da pessoa humana, o qual vincula diretamente
não só o Estado, mas também os particulares.
Na mesma linha de raciocínio milita Daniel Sarmento (2004, p.277), afirmando que o
ordenamento brasileiro tem como base uma Constituição fortemente voltada para o social, e,
por conseguinte, não se configura como mero limite ao poder do Estado em favor da liberdade
individual, nos seguintes termos:
A Constituição e os direitos fundamentais que ela consagra não se dirigem apenas
aos governantes, mas a todos: que têm de conformar seu comportamento aos
ditames da Lei Maior. Isto porque, a Constituição de 1988 não é apenas a Lei
Fundamental do Estado brasileiro. Trata-se, na verdade, da Lei Fundamental do
Estado e da sociedade, porque contém os principais valores e diretrizes para a
conformação da vida social do país, não se limitando aos papéis mais clássicos das
constituições liberais, de organização da estrutura estatal e definição das relações
entre governantes e governados.
40
No mesmo sentido, é o entendimento de Carlos Roberto Siqueira Castro (2003, p.238),
ao afirmar que
o sentimento constitucional contemporâneo passou a exigir que o princípio da
dignidade do homem, que serve de estrutura ao edifício das Constituições da era
moderna, venha fundamentar a extensão da eficácia dos direitos fundamentais às
relações privadas, ou seja, a eficácia externa, também denominada direta ou
imediata, que na prática coincide com o chamado efeito horizontal do elenco de
direitos, de liberdades e de garantias que através dos tempos granjearam assento nos
estatutos supremos das nações.
Em nível jurisprudencial, as decisões dos Tribunais Superiores brasileiros não se
apresentam infensas à aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares,
muito embora ainda se apresentem como decisões isoladas e não como uma tendência na
adoção da teoria aqui discutida. Assim é que são registradas algumas decisões no Supremo
Tribunal Federal, como no caso do Recurso Extraordinário (RE) n. 161.243, publicado no
40
É de se registrar que o autor reconhece, apesar de expressar sua opinião favorável a vinculação imediata dos
particulares aos direitos fundamentais, que a simples afirmação de que a Constituição dirige-se a todos não basta
para resolver a questão, sendo necessário estabelecer os graus em que os direitos fundamentais vinculam os
particulares. (SARMENTO, 2004, p.278).
94
Diário de Justiça de 19/12/1997, sendo relator o Ministro Carlos Velloso, no qual se discutia a
aplicação de benefícios concedidos a trabalhadores franceses e que estavam sendo negados a
um trabalhador, em razão deste não possuir a mesma nacionalidade dos demais. O tribunal
entendeu descabida a discriminação, que não deveria prevalecer em face da autonomia da
empresa.
Em outro precedente, o Recurso Extraordinário n. 160.222, publicado no Diário de
Justiça de 1/9/1995, sendo relator o Ministro Sepúlveda Pertence, no qual se discutia a afronta
ao direito fundamental à intimidade de funcionárias da empresa de roupas íntimas De Millus,
as quais eram submetidas a revista íntima após o expediente de trabalho. A questão envolvia
ainda a aceitação, por parte das funcionárias de cláusula do contrato de trabalho que
autorizava tal procedimento, sob pena de dispensa das mesmas. O Tribunal entendeu que o
direito à intimidade deveria prevalecer em relação ao ajuste de vontades firmado, ainda que
livremente.
no Recurso Extraordinário n. 158.215, publicado no Diário de Justiça de 7/6/1996,
sendo relator o Ministro Marco Aurélio, o Tribunal reconheceu a necessidade de observância
do devido processo legal mesmo em se tratando de entidade privada, pois o caso versava
sobre a exclusão de associado de uma cooperativa, sem a garantia do contraditório e ampla
defesa no caso.
No Superior Tribunal de Justiça destaca-se a decisão do Ministro Ruy Rosado de Aguiar
Jr. no HC 12547/DF, publicado no Diário de Justiça de 12/2/2001, no qual entendeu o relator
ser atentatória ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana a prisão civil de
devedora que, em alienação fiduciária em garantia, deixou de pagar dívida bancária assumida
para comprar um veículo táxi, dívida esta que se elevou de R$ 18.700,00 (dezoito mil e
setecentos reais) para R$ 86.858,24 (oitenta e seis mil, oitocentos e cinqüenta e oito reais e
vinte e quatro centavos), em 24 meses. A ordem, no caso, foi concedida por unanimidade, sob
o fundamento de que se exigir o total da remuneração da devedora, pelo resto de seu tempo
provável de vida, a título de pagamento de juros, constitui-se uma “ofensa ao princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana, aos direitos de liberdade de locomoção e de
igualdade contratual e aos dispositivos da LICC sobre o fim social da aplicação da lei e
obediência aos bons costumes”. Por seu brilhantismo e por assentar algumas premissas
básicas da teoria que ora se apresenta, vale transcrever alguns trechos do voto do relator:
95
A Constituição de 1988 enuncia no seu primeiro artigo que o estado democrático de
direito tem como princípio fundamental a dignidade da pessoa humana (art. 1°, inc.
III). No seu artigo terceiro define a construção de uma sociedade justa como
objetivo da República (art. 3°, inc. I) e inclui, entre os direitos fundamentais, os
direitos à liberdade e à igualdade (art. 5°, caput). Com isso, considerou a dignidade
da pessoa humana como núcleo do sistema, norma orientadora do ordenamento
constitucional e do infraconstitucional, dignidade que deve ser preservada porquanto
sem ela não a efetivação dos direitos da personalidade.
[...]
Cuida-se de estabelecer a vinculação entre aquele princípio fundamental da
dignidade da pessoa humana e mais os direitos fundamentais e definem os valores
da personalidade, com a norma judicial a ser aplicada no caso concreto. 3. Surge
então a questão relacionada com a eficácia horizontal ou em relação a terceiros, da
norma constitucional sobre a relação de direito privado.
[...]
Não me parece que a eficácia na relação de direito privado seja somente indireta,
pois bem pode acontecer que o caso concreto exija a aplicação imediata do preceito
constitucional, quando inexistir norma infraconstitucional que admita interpretação
de acordo com a diretiva constitucional, ou faltar cláusula geral aplicável naquela
situação, muito embora esteja patente a violação ao direito fundamental. Cumpre
atentar para a advertência de Robert Alexy: ‘Se algumas normas da Constituição não
devem ser tomadas a sério, afigura-se difícil fundamentar, porque outras devem ser
consideradas quando surgir alguma dificuldade. uma ameaça de dissolução da
Constituição. Assim, a decisão fundamental sobre os direitos fundamentais que
ser em favor de uma completa vinculação jurídica no contexto da possibilidade de
sua judicialização’. (Colisão e ponderação como problema fundamental da
dogmática dos direitos fundamentais, in Recht. Vernut. Diskurs, tradução Gilmar
Ferreira Mendes). Ingo Sarlet observa, acredito, com absoluto acerto, que
possibilidade de se transpor diretamente o princípio vinculante dos direitos
fundamentais para a esfera privada quando se cuida de relações desiguais de poder
(p.338) entre as grandes corporações empresariais e o particular, porque similar à
desigualdade que se estabelece entre o indivíduo e o Estado.
Nos Tribunais estaduais, a questão não se apresenta diferente dos Tribunais superiores.
No Tribunal de Justiça do Distrito Federal, destaca-se decisão em matéria de direito de
família, numa ação negatória de paternidade, em que o fundamento para o provimento da
apelação foi o da preservação da dignidade da pessoa humana, princípio inserido no Texto
Constitucional de 1988. A ementa é a que se segue:
Ação negatória de paternidade. Indeferimento da inicial. 1 - A Constituição de 1988
insere em seus princípios fundamentais o da dignidade da pessoa humana, do qual
decorre a possibilidade de a pessoa saber quem são seus pais e quais são seus filhos,
o que, com o atual avanço científico, que possibilita a realização de exame de
paternidade com certeza quase absoluta, pode ser feito a qualquer tempo, sem
limitação temporal. 2 - Segue-se daí que a ação negatória de paternidade, a exemplo
da de investigação, atende não apenas ao interesse do pai, mas também dos filhos,
interessados que são na verdadeira paternidade, fato que os irá marcar para o resto
de vida, com reflexos, inclusive, na personalidade. 3 - É ação que, em última análise,
preserva a dignidade humana, reflete na personalidade, afasta incertezas, fortalece
laços afetivos ou os torna tênues ou até pode lhes colocar fim:. (APC
20010510044605. Turma, Relator: Desembargador Jair Soares. DJ de
12/06/2002).
O Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, precursor na aplicação direta dos direitos
96
fundamentais nas relações entre particulares, registra uma série de decisões
41
que abonam a
tese acima apresentada. Entre elas destaca-se a Apelação Cível 70004348763, na qual se
considerou descabida a anulação de doação feita entre cônjuges casados pelo regime da
separação obrigatória de bens, quando o casamento tenha sido precedido de união estável. A
decisão partiu do regramento constitucional de proteção da dignidade da pessoa humana, para
considerar descabida a presunção de incapacidade por implemento de idade, afirmando:
a restrição imposta no inciso II do art. 1641 do Código vigente, correspondente ao
art. 258 do Código Civil de 1916, é inconstitucional, ante o atual sistema jurídico
que tutela a dignidade da pessoa humana como Cânone maior da Constituição
Federal, revelando-se de todo descabida a presunção de incapacidade pelo
implemento de idade. (APC 700043487769. Relator: Desembargador Maria
Berenice Dias. Julgado em 27/08/2003).
No Tribunal de Justiça do Paraná foi julgado um caso curioso em que se reconheceu a
aplicação da proteção constitucional diretamente no caso concreto que envolvia particulares.
Na hipótese, um taxista de cabelos compridos fora punido pela associação de motoristas com
o desligamento da freqüência de rádio instalado em seu veículo, sob o fundamento de que a
legislação municipal e as normas internas da associação exigiam que os motoristas dirigissem
com cabelos curtos. Decidiu o Tribunal em tal caso que as regras estatutárias e regimentais da
associação são inconstitucionais, pois afrontam os princípios constitucionais da liberdade
individual, isonomia e dignidade da pessoa humana, concluindo que constitui discriminação
injusta exigir que o motorista de táxi tenha que dirigir de cabelos curtos, porquanto acaba por
restringir, indevidamente, o âmbito da personalidade uma vez que o corte de cabelo deve ser
entendido como expressão da personalidade e individualidade da pessoa que deve ser
protegido e não amesquinhado pelo Estado Democrático de Direito (APC 124094600.
Relator: Desembargador Accacio Cambi. Julgado em 9/9/2002).
Como visto a doutrina e a jurisprudência constitucional brasileiras assumem a
possibilidade da eficácia direta dos direitos fundamentais; já entre os civilistas que advogam a
tese da aplicação direta dos direitos fundamentais, destaca-se Pietro Perlingieri, reconhecendo
que
as normas constitucionais- que ditam princípios de relevância geral - são de direito
substancial, e não meramente interpretativas; o recurso a elas, mesmo em sede de
interpretação, justifica-se; do mesmo modo que qualquer outra norma, como
expressão de um valor do qual a própria interpretação não pode subtrair-se.
41
Merecem registro ainda as decisões de 2003 do mesmo Tribunal, de números 70006535876, Relator
Desembargador Luiz Felipe Brasil Santos, e 70005342548, Relator Desembargador Carlos Alberto Álvaro de
Oliveira. A primeira diz respeito a direito real de habitação de imóvel que servia de residência aos companheiros
e a segunda diz respeito ao conflito entre a liberdade de manifestação de opinião crítica e a honra.
97
A partir da força normativa dos princípios, como categoria de normas que são, o citado
civilista admite expressamente a aplicação imediata, afirmando que
o existem, portanto, argumentos que contrastem a aplicação direta: a norma
constitucional pode, também sozinha (quando não existirem normas ordinárias que
disciplinem a fattispecie em consideração), ser a fonte de disciplina de uma relação
jurídica de direito civil. Esta é a única solução possível, se se reconhece a
preeminência das normas constitucionais e dos valores nela expressos em um
ordenamento unitário, caracterizado por tais conteúdos. (PERLINGIERI, 1997, p.11).
Entre os civilistas brasileiros que explicitamente advogam a tese de aplicação direta dos
direitos fundamentais nas relações entre particulares, a partir de sua interferência direta no
Direito Civil, destacam-se Gustavo Tepedino e Luiz Fachin.
Gustavo Tepedino afirma que o constituinte definiu princípios e valores bastante
específicos no que concerne às relações de Direito Civil, mormente quando se trata de
propriedade, dos direitos de personalidade, na política de relações de consumo, da atividade
econômica privada, da empresa e da família, deslocando para a tábua axiológica da
Constituição o ponto de referência antes localizado no Código Civil. Assim, não parece haver
dúvidas, afirma o citado civilista, de que o texto constitucional deverá intervir nas relações de
Direito Privado, determinando os critérios interpretativos de cada uma das leis especiais
(TEPEDINO, 1998, p.160).
para Luiz Fachin (2000, p.34), o Direito Constitucional penetra, hoje, em todas as
disciplinas e, em conseqüência, de igual forma no Direito Civil, na medida em que as normas
constitucionais, com destaque para os princípios vinculantes e de caráter normativo, são
aplicáveis no domínio juscivilístico. A aplicação dos princípios constitucionais, no entender
do referido autor, não pode ser reduzida pelas regras de Direito Privado nas relações concretas
entre particulares, pois “as coordenadas constitucionais têm limite nos próprios princípios,
não podendo, assim, a solução concreta da legislação infraconstitucional, especial ou
ordinária, contrastar essa diretiva máxima do Estado Democrático de Direito”. Por essas e
outras razões, afirma o autor: “os princípios e as regras constitucionais se aplicam direta e
imediatamente nas relações interprivadas” (FACHIN, 2000, p.33).
A despeito dos argumentos lançados em prol de uma eficácia direta dos direitos
fundamentais nas relações particulares, doutrina e jurisprudência consignam críticas a esse
posicionamento. Merecem registro, entre os argumentos mais utilizados, as posições
doutrinárias que não reconhecem os direitos fundamentais como sistema de valores, bem
como as que militam em favor da necessidade de preservação da liberdade de decisão, da
98
autonomia da vontade e dos indivíduos em suas relações com outros particulares.
42
Aliás,
alguns civilistas, receosos de que a aplicação dos direitos fundamentais venha a acabar com a
própria disciplina do Direito Privado, afirmam que a recepção de princípios constitucionais
com eficácia vinculante, sem a mediação do legislador de Direito Privado, acabaria com a
autonomia desse Direito, representando um risco à liberdade contratual e à segurança jurídica,
pois, em se tratando da esfera privada, os princípios constitucionais não poderiam ter primazia
em relação à autonomia da vontade.
Konrad Hesse (1995)foi quem melhor sistematizou as críticas à aplicação direta dos
princípios constitucionais a começar pelo reconhecimento de que a ausência de intermediação
legislativa, acrescida da abertura semântica dos princípios constitucionais, seria uma fonte de
insegurança jurídica e poderia representar uma sobreposição do Poder Judiciário ao papel da
lei, esta fundamental no processo democrático. Para Hesse (1995), em um conflito entre
privados, todos os interessados gozam de proteção dos direitos fundamentais e se estes atuam
a favor e contra as partes de uma relação jurídico-privada, produzir-se-á então uma colisão de
direitos fundamentais, cometendo, conseqüentemente, ao Direito Civil a complicada tarefa de
“encontrar por si mismo el modo y la intensidad de la influencia de los derechos
fundamentales que entran en consideración. (HESSE, 1995, p.60). Outra crítica de Hesse
(1995) diz respeito ao fato de que, mediante o recurso imediato aos direitos fundamentais,
ameaça perder-se a identidade do Direito Privado, principalmente no que tange ao seu
princípio fundamental, a autonomia privada “si las personas en sus relaciones recíprocas no
pudieran renunciar a las normas de derechos fundamentales que son indisponibles para la
ación estatal.” (HESSE, 1995, p.61).
Tais críticas, entretanto, não merecem acolhida. No que diz respeito à segurança
jurídica, tem-se que tal princípio hoje deve ser interpretado à luz do conteúdo socializante das
Constituições, especialmente a brasileira. Assim, os valores de cunho individualista cedem
espaço aos valores de solidariedade social, buscando a promoção do pleno desenvolvimento
do ser humano. A aplicação da Constituição, quer por intermédio da legislação
infraconstitucional, quer diretamente, pode ser considerada fator de insegurança se o que
estiver em jogo for o interesse particular e não o da coletividade. Para Teresa Negreiros (2002,
p.88), ao reconhecer-se a função promocional do Direito, “a aplicação direta da Constituição,
ao invés de uma ameaça, funcionará como fator de reforço e de garantia para a consecução
42
Segundo preleciona Juan Maria Bilbao Ubillos, entre os maiores críticos da eficácia imediata dos direitos
fundamentais nas relações privadas encontram-se E. Forslhoff, G. Amato e Scheuner.
99
das mudanças necessárias à transformação do status quo”.
Também em relação à atuação judicial, a mesma se legitima se desenvolvida dentro
dos parâmetros ditados pelo legislador, quer constitucional, quer de direito privado. O que se
busca é a releitura funcionalizante do sistema à luz dos valores impressos nos princípios
constitucionais, de modo a lhes dar efetividade. Não se trata, pois, do fim do Direito Civil,
mas de reconhecer-se que a pessoa é o seu centro e não mais o patrimônio ou simplesmente o
indivíduo. Aliás, cumpre lembrar que, até mesmo para a garantia da preservação da
personalidade do homem, sua autodeterminação e privacidade, faz-se necessária a
salvaguarda dos direitos fundamentais contra os abusos do poder privado, como se
demonstrou nos itens antecedentes.
Finalmente, quanto à autonomia privada, a aplicação direta dos princípios
constitucionais nas relações privadas, antes de buscar seu aniquilamento, visa a, cada vez
mais, garantir seu exercício real. A autonomia da vontade, plasmada na pressuposição de uma
liberdade meramente formal, nos moldes do modelo vigente no Século XIX, não garante o
efetivo exercício dessa vontade. Isso porque, uma liberdade real jamais será produzida a partir
somente da autonomia da vontade das partes, principalmente considerando-se as relações
assimétricas de poder como as estabelecidas em sociedades complexas e plurais como as
atuais. Reafirma-se com isso que o temor de dissolução do sistema de Direito Privado e de
seu pressuposto básico, a autonomia da vontade, não tem fundamento. Ao contrário, com a
Constituição como centro do sistema, seus princípios ganham força normativa, contribuindo
para a renovação das técnicas de interpretação a serem aplicadas pelo intérprete do Direito
Civil.
Rebatidas as críticas apresentadas à teoria da vinculação imediata das relações
interprivadas aos direitos fundamentais, passar-se-á a analisar as premissas da corrente que
defende a aplicação apenas mediata dos direitos fundamentais entre privados, o que será feito
no próximo tópico.
4.3 Teoria da aplicação mediata dos direitos fundamentais nas relações
interprivadas
A teoria da eficácia mediata (Mittelbare Drittwirkung) desenvolveu-se a partir das idéias
de Günther Dürig, o qual defendia um caráter objetivo dos direitos fundamentais, porquanto
reflexos de uma ordem de valores aplicáveis a todo o ordenamento jurídico. Não obstante,
100
opunha-se o autor à possibilidade de aplicação imediata dos direitos fundamentais nas
relações entre privados, pois tal concepção acabaria por gerar uma estatização do Direito
Privado e um virtual esvaziamento da autonomia privada.
Na lição de Juan Maria Bilbao Ubillos, a aplicação mediata dos direitos fundamentais
entre privados se consegue condicionando a operatividade de ditos direitos à mediação de um
órgão do Estado, quer seja o legislador, quer seja o juiz, estes sim vinculados aos direitos
fundamentais. A concepção dos direitos fundamentais como direitos subjetivos públicos tem
por base, em todo seu desenvolvimento, a idéia da proteção da autonomia da vontade como
motor do tráfico jurídico e do Direito Privado em geral. Assim, na esteira do pensamento de
Dürig, a partir do reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e sua
eficácia irradiante no ordenamento jurídico, tais direitos aplicar-se-iam nas relações privadas,
somente na ausência de normas específicas jurídico-privadas, e indiretamente, a partir da
interpretação e integração de cláusulas abertas e conceitos indeterminados, criados pelo
legislador, este sim destinatário precípuo dos direitos fundamentais. Para esse autor, em
síntese apresentada por Vieira de Andrade (1987, p.276),
os direitos fundamentais serão, primariamente, os direitos de defesa da liberdade
contra o poder do Estado e não se justifica que eles vinculem também os
particulares. Submeter a actividade dos sujeitos privados aos mesmos vínculos que
limitam a acção do Estado significaria transformar os direitos em deveres,
invertendo o sentido. É certo que o Estado, precisamente enquanto sujeito passivo
dos direitos fundamentais, tem também o dever de proteger esses direitos contra
ataques que lhe sejam movidos (mesmo) por entidades privadas. que essa
proteção deveria fazer-se através do direito privado.
Os defensores da vinculação mediata dos direitos fundamentais nas relações privadas
entendem que os direitos fundamentais, a despeito de constituírem-se em uma ordem objetiva
de valores que irradiam seus efeitos por todo o ordenamento jurídico, não governam as
101
relações privadas, mas somente as influenciam.
43
Assim, os conflitos são disputas de Direito
Privado, a serem resolvidos por regras de direito privado, mas tais regras devem ser
interpretadas à luz das normas de direitos fundamentais.
Entre os adeptos de tal corrente doutrinária destaca-se Konrad Hesse (ano), autor
segundo o qual a aplicação imediata dos direitos fundamentais é ao legislador, em primeiro
lugar, porquanto a quem se comete a tarefa de estabelecer o alcance concreto desses direitos,
impondo uma sistemática e indispensável adequação dos valores de liberdade à peculiar
estrutura de relações formalmente igualitárias. Dessa forma, os direitos fundamentais teriam
eficácia frente aos particulares na proporção estabelecida pelo legislador. Nesse sentido a
dicção de Vieira de Andrade (1987, p.264), ao afirmar que a força vinculativa dos direitos
fundamentais em relação aos agentes públicos dirige-se, em primeiro lugar, ao legislador,
enquanto órgão do Estado”, afirmando que o poder de livre escolha do legislador é
especialmente restringido ou limitado pela Lei Fundamental, “que se preocupa mais uma vez
em acentuar muito particularmente a força jurídica vinculante dos direitos dos cidadãos mais
intensamente ligados à sua dignidade de homens livres” (ANDRADE, 1987, p.264).
Ao lado do legislador como intermediário entre os direitos fundamentais e as relações
privadas, assume destaque o papel exercido pelos juízes, ao tomarem tais direitos
constitucionalmente assegurados como critério de integração e interpretação das normas de
Direito Privado, balizando o conteúdo preciso das cláusulas gerais e dos conceitos
indeterminados típicos do Direito comum. Nessa perspectiva, partindo-se da noção de que os
direitos fundamentais são concebidos como um sistema de valores e expressão de uma
determinada concepção de dignidade da pessoa humana, é que tal conceito pretende ter
43
Essa corrente doutrinária foi desenvolvida a partir da decisão do Tribunal Constitucional alemão no caso Luth
(ver capítulo Hl, item, 3.1). A referida decisão assim explicava a questão: “No existe duda que el propósito
principal de los derechos básicos es proteger la esfera de libertad del individuo contra la invasión del poder
publico: ellos son la fortaleza del ciudadano contra el estado. Ello emerge como resultado del desarrollo de su
historia intelectual y su adopción en las constituciones de diversos estados como lo muestra su historia
política.... Pero es igualmente indudable que la Constitución, lejos de pretender ser un ordenamiento
valorativamente neutral (referencias) ha establecido un orden objetivo de valores en su capitulo de derechos
fundamentales. y que en consecuencia expresa y refuerza la validez de los mismos (referencias). Este sistema de
valores, centrado en el libre desarrollo de la personalidad humana y de su dignidad en la comunidad social,
debe aplicarse, en tanto que axioma constitucional, en todos los âmbitos del derecho: debe dirigir e informar el
legislador. la administración y ai poder judicial Del mismo modo influye naturalmente sobre el derecho civil
ninguna regia de derecho privado puede estar en contradicción con él y cada una de esas regias debe ser
interpretada conforme a su espiritu. La influencia del sistema de valores de los derechos fundamentales es clara
en aquellas disposidones del derecho privado que son imperativas y forman parte del orden publico.....JMS
cláusulas generales como el articulo 826 del BGB, por medio del cual el comportamiento humano se mide con
estándares supralegales tales como “conducta debida “, permiten a los tribunales responder a esta influencia
desde que ai decidir lo que se exige por dichos mandatos sociales en un caso particular, deben partir desde el
sistema de valores adoptado por la sociedad en su constitución en un momento dado de su desarrollo espiritual
y cultural” (LINETZKY, 2003, p.14).
102
vigência em todo o ordenamento jurídico, servindo de parâmetro para o juiz. Esse
entendimento reforça a posição central dos direitos fundamentais dentro do sistema
constitucional, como expressão da escolha realizada pelo constituinte.
Não se trata, pois, de uma interpretação voluntária ou subjetiva do juiz a aplicação dos
valores sociais às normas privadas, muito menos de uma aplicação mecânica intrínseca ou
própria dos conceitos indeterminados do Direito Privado, mas a aplicação das normas
constitucionais a partir de sua supremacia no ordenamento. Essa a discussão mais importante
no que concerne à vinculação dos particulares aos direitos fundamentais e à cláusula da boa-fé
objetiva, que será objeto de análise no próximo capítulo.
Forte na lição de Juan Mana Ubillos (1997, p.307) esse caráter de fundamento material
de todo o ordenamento jurídico e a peculiar força vinculante de que estão dotados convertem
os direitos fundamentais em valores absolutos em todo tipo de relações, incluindo as jurídico-
privadas.
A grande crítica à doutrina da aplicação mediata dos direitos fundamentais por
intermédio da lei se faz considerando que esta não tem o poder de reconhecer todas as
possibilidades de afronta aos direitos inscritos no texto constitucional, inclusive porque a
atuação do legislador, no que tange aos direitos fundamentais nas relações privadas, tem
caráter meramente declaratório e não constitutivo.
Ademais, existe sempre o risco de, em vez de dar ensejo a uma interpretação das regras
de Direito Privado a partir de valores consubstanciados nos direitos fundamentais, de se
modificar, derrogar ou até mesmo criar uma nova regra, sobretudo no que respeita à atuação
judicial.
Contudo, a despeito da disputa acerca da aplicação direta dos direitos fundamentais ou
apenas indireta nas relações privadas, existem evidentes pontos de convergência entre ambas
as correntes. O principal deles diz respeito ao fato de que os que admitem a eficácia indireta
reconhecem que os direitos fundamentais têm influência nas disputas privadas, principalmente
como princípios norteadores da decisão concreta. os que advogam a eficácia imediata
reconhecem que o grau dessa vinculação será diferente, dependendo do direito e do tipo de
relação privada de que se trate e, ainda, que será diferente da forma como impõe sua
vinculação contra os atos do Estado. Assim, o conteúdo dos direitos subjetivos advindos da
aplicação imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares deve ser
103
analisado também no caso concreto.
Da análise dos pontos divergentes e convergentes das teorias acima expostas, verifica-se
que a diferença da perspectiva prática entre uma e outra corrente doutrinária apresenta-se
mitigada, na medida em que em ambos os casos há necessidade de ponderação de elementos a
partir do caso concreto, quer se admita a aplicação imediata, quer a mediata, a partir da
mediação do legislador e da atuação dos juízes. A esta pesquisa, entretanto, interessa a
aplicação dos direitos fundamentais a partir das cláusulas gerais e dos conceitos
indeterminados previstos na legislação privada. Não que com isso se esteja negando a
possibilidade de aplicação imediata dos direitos fundamentais nas relações entre particulares,
pois se concorda com os argumentos lançados de que as normas constitucionais não são
meramente interpretativas e sim de direito substancial, e que os direitos fundamentais não se
dirigem apenas aos governantes e sim a todos, incluída, a toda evidência, a sociedade. Não
obstante, mesmo em se tratando de aplicação de cláusulas gerais, entendem-se os direitos
fundamentais como tendo posição central no sistema de valores e como expressão de um
modelo de dignidade da pessoa humana e, nesse sentido, repita-se, não se apresentam como
de aplicação voluntária ou subjetiva do juiz, mas de aplicação vinculada das normas
constitucionais a partir de sua supremacia no ordenamento. Daí a importância da discussão da
aplicação dos direitos fundamentais nas relações privadas e o princípio da boa-fé objetiva,
conforme se verá no capítulo V.
4.4 Argumentação de outras teorias
Além das teorias da vinculação imediata ou direta e mediata ou indireta dos direitos
fundamentais, outras teorias são apresentadas pela doutrina, com destaque para o
desenvolvimento da questão nos Estados Unidos, onde o tema assumiu contornos bastante
diversos do que se desenvolveu na Europa.
Assim, a doutrina registra as teorias da convergência estadista, desenvolvida
principalmente por Jurgen Schwab, bem como a teoria da state action americana. De acordo
com a primeira teoria, as intromissões de particulares nos direitos fundamentais poderiam ser
imputadas ao ordenamento jurídico estatal, que, de maneira implícita ou explícita, autorizou-
as, negando qualquer tipo de eficácia direta dos direitos fundamentais em relações privadas,
de vez que tais direitos só podem ser opostos em face do poder jurídico estatal.
104
Segundo prelecionam García Torres e Jimenez-Blanco (1986), Schwab, ao criticar a
influência direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, a doutrina acerca do tema
traduz-se num problema de instâncias processuais. Com efeito, o autor alemão parte da idéia
de que qualquer direito privado que se projete sobre a esfera jurídica de outra pessoa tem por
base sempre o ordenamento estatal, na medida em que o Direito Privado, como todo o Direito,
desenvolve-se como um sistema de mandatos ou proibições. Dessa forma, qualquer agressão a
um direito fundamental provém, em última análise, do próprio Estado e deve desencadear
idênticos mecanismos de proteção. E arrematam os autores espanhóis, sobre a teoria de
Schwab:
todos los derechos privados están al menos en partes cubiertos por un derecho
fundamental, y si cualquier poder jurídico del Estado define los derechos de los
particulares contraviniendo el derecho fundamental que los protege, este debe
desarrollar su función defensiva propia en el campo del Derecho público. (GARCÍA
TORREZ; JIMENEZ-BLANCO, 1986, p.36).
Já em relação à segunda teoria, esta preconiza que a Corte Suprema americana define os
direitos fundamentais como sendo direitos primariamente dirigidos contra o Poder Público, o
que não exclui a possibilidade de ofensa aos direitos fundamentais por particulares, mas a
indagação sobre se a lesão partiu de uma ação estatal ou de uma ação privada não enseja uma
resposta positiva ou negativa e sim o fato de saber-se qual o direito a prevalecer no caso
concreto, ou seja, a posição mais relevante na estrutura constitucional deve ser reconhecida
como digna de proteção fundamental.
Segundo Juan Maria Bilbao Ubillos (1997, p.XV), manteve-se nos Estados Unidos a
tese liberal de que a Constituição é um limite à atuação dos poderes públicos, sendo uma
norma que tem como única finalidade a regulação das relações entre os indivíduos e o Estado.
Como conseqüência dessa concepção, tem-se que os direitos reconhecidos nas sucessivas
emendas acrescidas ao texto original da Constituição somente vinculam o listado e não podem
ser invocados senão na presença de uma ação estatal (state action), sendo que as condutas
privadas, por não estarem vinculadas ao crivo constitucional, não têm que se ajustar aos
cânones constitucionais. No mesmo sentido é a lição de Ingo Sarlet (2001, p.134), ao aduzir
que
105
nos Estados Unidos continua prevalecendo a tese liberal de que os direitos
fundamentais constitucionalmente reconhecidos apenas vinculam o Estado e são
invocáveis tão-somente em face de uma atuação estatal (state action)
presumidamente ilícita, de tal sorte que as condutas eminentemente privadas
encontram-se imunes a este tipo de controle e não são aferidas em face da
Constituição.
Além da tese liberal, Daniel Sarmento (2004, p.228) aponta outra justificativa para a
adoção da doutrina da state action nos Estados Unidos, vinculada ao pacto federativo.
Naquele país compete aos Estados e não à União legislar sobre Direito Privado e, dessa
forma, a state action preservaria o espaço de autonomia dos Estados, evitando, assim, que haja
intervenção na disciplina das relações privadas, a pretexto da aplicação da Constituição pelas
cortes federais.
Assim, a doutrina americana costuma definir o fenômeno da state action como sendo o
endereçamento de certas normas constitucionais somente ao Estado e a seus agentes, restando
liberadas as pessoas privadas da mesma regulamentação.
Esse o entendimento de Bernard Schwartz, que, ao tecer comentários sobre racial
equality, afirma que a proibição de discriminação dirige-se tão-somente ao Estado e ao
legislador e não ao particular, que não estaria proibido de discriminar, como uma forma de
expressão de suas preferências pessoais. É o que se depreende quando afirma o autor que a
proibição de igual proteção refere-se à ação estatal. Ao Estado e não ao particular é
endereçada a cláusula da igual proteção, que não se aplica no campo das condutas privadas,
ainda que discriminatórias.
44
De outra parte, ainda segundo a lição do mencionado autor norte-americano, a
aplicão da state action acontece quando a ão foi praticada por um agente ou agência
formalmente identificada como integrante da estrutura do Estado. Principalmente se a
ão discriminatória parte do legislador, não restam vidas acerca da presença da state
action, não fazendo diferença se a legislão é ou não justa, mas se foi aplicada de
maneira discriminaria. Em resumo, o que constitui a state action é a atual aplicão da
lei e não a maneira como foi escrita.
45
Não obstante, diante do alargamento das funções do Estado e do crescente
44
Confira-se o texto original do mencionado autor “The prohibition against denial of equal protection refers ex-
clusively to state action. The state, not the private individual is the addressee of the Equal Protection Clause. It
erects no shield against merely private conduct, however discriminatory; it does not forbid a private party to
discriminate on the basis of race in the conduct of his personal affairs as an expression of his own personal
predilections.” (SCHWARTZ, 1972, p.317).
106
arrefecimento dos limites entre público e privado, sobretudo em razão do chamado poder
privado, os órgãos judiciais norte-americanos ampliaram os conceitos de poder público e ação
estatal, de modo a resguardar a aplicação de direitos fundamentais em relação ao indivíduo.
Isso porque se apresentou muito difícil uma precisa distinção de atos dos poderes públicos e
atos de particulares ou de organizações privadas em alguns casos concretos.
Duas foram as principais linhas de ação encontradas para ampliar o conceito de ação
estatal. Em primeiro lugar, a Suprema Corte Americana passou a estender a tutela dos direitos
constitucionais interprivados quando um particular ou entidade privada exerce função própria
do Estado e quando existem pontos em comum entre a atuação do particular e do Estado, de
modo que se possa imputar ao Estado a responsabilidade pela conduta oriunda do particular.
46
Assim, para que algumas controvérsias entre particulares, em princípio excluídas da
proteção constitucional, pudessem ser amparadas, aumentou-se o conceito de poder público e
de ação estatal, de modo a compatibilizar-se a necessidade de proteção com o princípio de que
os direitos fundamentais vinculam somente as autoridades e órgãos estatais, tão caro àquela
cultura jurídica.
Vitor Ferreles Comella afirma que mesmo em se tratando de uma concepção restrita ao
âmbito de aplicação constitucional, existem muitos exemplos de conflitos entre particulares
que se apresentam como conflitos entre o particular e o Estado. Assim, afirma o autor que um
possível conflito entre a liberdade de expressão e o direito à reputação, nos Estados Unidos se
transforma em uma colisão entre a liberdade de expressão e o interesse do Estado em que os
particulares sejam compensados por uma lesão indevida em sua reputação, eliminando-se o
componente interindividual do conflito, que aparece como um conflito entre um direito
individual e um interesse estatal.
47
45
É o que diz o texto de Schwartz (1972, p317), ao afirmar que: The requirement of ‘state action’ is met when
action has its source in a person or an agency formally identifiable as a state instrumentality, regardless of the
position of the particular officer or agency in the govenmental hierarchy. When the source of challenged action
is legislatíve in nature, there can be no doubt that state action is involved, whether it involves a statute, an ordi-
nance, or an administrative rule or regulation. It makes no difference that the legislation is fair on its face, if it is
applied in a discriminatory manner: the actual administration of the law, not the manner in which it is written,
constitutes ‘state action’. ”
46
Nesse sentido as lições de Ubillos e lngo Sarlet. O primeiro o faz nos seguintes termos: “dos han sido las vias
apuntadas en la jurisprudência da La Corte Suprema para ampliar con carácter excepcional el radio de acción de
las garantias constitucionales: el ejercicio por un sujeito aparentemente privado de una función propia del Estado
y la existência de contactos o complicidades suficientemente significativas como para implicar al Estado en la
conducta de un actor privado.”(UBILLOS, 1997, p.XV). Ingo Sarlet afirma que existem duas linhas de
argumentação que se destacam em casos que tais: “a) quando um particular ou entidade privada exerce função
estatal típica; b) quando existem pontos de contato e aspectos comuns suficientes para que se possa imputar ao
Estado a responsabilidade pela conduta oriunda do particular.” (SARLET, 2001, p.134).
47
GERTZ, ROBERT WELCH, 1974
107
Outro exemplo trazido à colação pelo autor diz respeito ao limite admissível das
expressões de ódio racial. Apresenta-se, na hipótese, uma possível tensão entre a liberdade de
expressão e o direito de igualdade, mas, em termos constitucionais, diz-se existir um conflito
entre a liberdade de expressão e os interesses estatais em proteger os direitos de grupos que
historicamente tenham sido objeto de discriminação.
48
Por último, menciona o exemplo de uma associação privada e a possibilidade de excluir
mulheres. A princípio trata-se de um conflito entre a liberdade de associação e o direito das
mulheres de não serem discriminadas. Todavia, a tradução constitucional desse conflito
estabelece-se como uma colisão entre a liberdade de associação e o interesse do Estado em
erradicar a discriminação contra mulheres.
49
4.5 Algumas considerações
Como foi mencionado anteriormente, no que diz respeito à vinculação dos
particulares aos direitos fundamentais, quer direta, quer indiretamente, releva destacar que o
debate teórico tende a receber um tratamento conciliatório da doutrina, no sentido de arrefecer
a dicotomia apresentada. Assim, diz Vasco Manoel Pascoal Dias Pereira da Silva (1992) que
na verdade o problema posto à análise até o presente ponto deste estudo, ou seja, da aplicação
imediata ou mediata dos direitos fundamentais é um falso problema, à medida que, partindo
da noção de unidade do sistema jurídico, quando se aplica uma norma não é ela que está
sendo aplicada, senão todo o sistema jurídico, razão pela qual “entre Constituição e norma de
Direito Privado a aplicar não se verifica um hiato, mas um contínuo fluir” (SILVA, 1982, p.
46). E conclui o citado autor que a questão da aplicabilidade mediata ou imediata não possui
muito sentido, pelo menos nos termos em que tem sido colocada, pois a expressa
determinação do texto constitucional de aplicação imediata dos direitos e garantias
individuais, dispositivo este que também se encontra plasmado no texto da Constituição
brasileira de 1988 (art. 5°, § 1°)
50
pode significar que tais preceitos buscam a regular
situações concretas da vida, quer sua aplicação seja mediata ou imediata. O que se pretendeu
em verdade foi estabelecer-se uma forma de compatibilização dos preceitos constitucionais
com os de Direito Privado, o que pode dar-se tanto no âmbito do Direito Constitucional,
quanto no do Direito Privado.
No mesmo sentido a lição de Gomes Canotilho (1993, p.595), que, ao analisar as
48
R. A. V. v. CITY OF ST. PAUL, 1992 apud COMELLA.
49
ROBERTS v. UNITED STATES JAYCEES, 1984 apud COMELLA.
108
tendências atuais do tema, afirma que “o problema da eficácia dos direitos, liberdades e
garantias na ordem jurídica tende hoje para uma superação da dicotomia eficácia
mediata/eficácia imediata a favor de soluções diferenciadas” reconhecendo-se, de início, que a
eficácia dos direitos fundamentais nas relações particulares insere-se no âmbito da função de
proteção destes direitos, a partir de sua dimensão objetiva e irradiadora de valores para todo o
ordenamento jurídico.
A partir dos argumentos lançados, impõe-se a conclusão de que não devem existir
fórmulas apriorísticas, uniformes e definitivas para a questão, senão uma análise da aplicação
dos direitos fundamentais a partir do caso concreto.
Como foi dito na parte final do item 4.2 deste capítulo, a diferença da perspectiva
prática entre a corrente da aplicação imediata ou apenas mediata apresenta-se mitigada, na
medida em que em ambos os casos necessidade de ponderação de elementos a partir do
caso concreto, quer se admita a aplicação imediata, quer a mediata; a partir da mediação do
legislador e da atuação dos juízes.
Não obstante, cabe novamente a advertência de que no presente estudo interessa a
aplicação dos direitos fundamentais a partir dos princípios e das cláusulas gerais previstos
na legislação privada, principalmente a boa- objetiva, o que será objeto de discussão no
próximo capítulo.
50
Cumpre aqui esclarecer o sentido da aproximação dos textos das Constituições brasileira e portuguesa. Ambos
os textos constitucionais expressamente consignam a aplicação imediata dos direitos individuais, muito embora a
Constituição portuguesa reconheça, além da mencionada aplicação imediata, a vinculação direta das entidades
privadas aos ditos direitos. Todavia, mesmo com a inscrição dessa vinculação imediata no texto constitucional,
os debates doutrinários sobre o assunto em Portugal apresentam-se acalorados, não havendo um consenso sobre
a forma de vinculação. O mesmo acontece no Brasil, cujo texto constitucional não consigna expressamente a
vinculação dos particulares aos direitos fundamentais, mas que apresenta entre os fundamentos do Estado a
dignidade da pessoa humana, o que propicia a aplicação desses direitos nas relações interprivadas, sobretudo
como forma de garantia contra os abusos do poder privado. Assim, a aproximação dos dispositivos
retromencionados tem o escopo de demonstrar que mais do que uma questão formal de redação dos dispositivos
constitucionais, trata-se de uma questão de estabelecer-se a forma de correlação entre o Direito Privado e o
Direito Constitucional.
109
5 A BOA-FÉ OBJETIVA E OS DIREITOS FUNDAMENTAIS
NAS RELAÇÕES INTERPRIVADAS
O princípio da boa-objetiva é um locus privilegiado a abrigar a discussão da eficácia
dos direitos fundamentais.
A positivação desse princípio se dá, sobretudo, por intermédio da cláusula geral da boa-
objetiva, que no Direito brasileiro encontra-se inserida na legislação privada, tanto no
Código de Defesa do Consumidor, quanto no novo Código Civil, a qual possibilita a aplicação
dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, quer de maneira mediata, quer
imediata, consoante visto nos capítulos precedentes.
A importância da abordagem centra-se precisamente no fato de que o contrato
tradicional, que tem por base o modelo liberal, estritamente lastreado na autonomia da
vontade, não mais corresponde aos anseios da sociedade, porquanto vinculado a um momento
histórico superado, o que tem levado não o Direito Civil, mas o Direito em geral, a buscar
novas possibilidades de abordagem, sob pena de entrar em irremediável declínio. Lembrando
Luiz Edson Fachin, os fatos impõem-se ao Direito, ainda que contra a letra estrita dos
Códigos.
Aliás, torna-se oportuno lembrar que todo o processo de “codificação” do Direito,
baseado nos postulados de serem ilimitadas tanto a propriedade privada quanto a livre
manifestação da vontade do sujeito, perderam prestígio nos temas atuais. Grande parte desse
prestígio foi granjeada a partir da necessidade de construção de uma doutrina neutra e
atemporal, a-histórica, baseada em operações lógicas, tendendo, assim, à imutabilidade.
Entretanto, conforme se pretendeu demonstrar nos capítulos precedentes, mormente no
capítulo II, as profundas mudanças sociais advindas das mais variadas experiências históricas
impuseram a conclusão da inviabilidade do dogma da neutralidade dos sistemas. Os
ordenamentos jurídicos são formados a partir de processos históricos e não são neutros. No
entanto, tal afirmação, ao contrário de desmerecer o sistema jurídico de Direito Privado,
impõe sua releitura a partir dos valores fundamentais insertos na Constituição.
51
O princípio da boa-fé objetiva insere-se num processo de retomada da consciência ética
no Direito Civil, sobretudo no direito das obrigações, libertando-se do cunho estritamente
voluntarista e patrimonialista, objetivando a realização dos valores supremos inseridos no
texto constitucional, com destaque para o valor relativo à dignidade da pessoa humana.
Pretende-se demonstrar que a aplicação do princípio da boa-fé objetiva significa uma releitura
dos institutos insculpidos no Código Civil, a partir da efetivação de seu significado, urdido no
caso concreto e pela perspectiva do sujeito da relação obrigacional.
52
Releva destacar que a ética da boa-fé não se circunscreve aos contratos já firmados, mas
tem aplicação desde a fase pré-contratual e deve ser trazida à discussão de modo a aumentar
sua aplicação no Direito brasileiro. Assim, deve a mesma servir de parâmetro tanto para as
partes que têm interesse em sua aplicação quanto para a doutrina e jurisprudência,
possibilitando uma melhor aplicação no âmbito das discussões judiciais.
Nos tópicos que se seguem, analisar-se-ão mais detidamente a relação das cláusulas
abertas e a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, e, no que
concerne especificamente ao princípio da boa-fé objetiva, apreciar-se-á sua relação com a
boa-fé subjetiva, seu desenvolvimento histórico, a boa-fé no direito comparado e, por fim, a
boa-fé objetiva na tarefa dos juízes.
51
Conforme afirma Maria Celina Bodin, em prefácio ao livro de Teresa Negreiros (2002, p.10), “reconhece-se
como inadequada a concepção do direito civil como sendo politicamente neutro, da sociedade como apartada do
Estado e, sobretudo, da Constituição como indiferente às relações interprivadas.”
52
‘Essa mudança de paradigma do Direito Civil no sentido de sua “despatrimonialização” em favor do sujeito
foi oportunamente resumida por Teresa Negreiros (2002, p.18) como sendo um consectário da noção do Direito
Civil voltado para a tutela da dignidade da pessoa humana. Para tanto, este ramo do Direito é “chamado a
desempenhar tarefas de proteção, e estas especificam-se a partir de diferenciações normativas correspondentes a
diferenciações que implodem a concepção outrora unitária de indivíduo, dirigindo-se, não a um sujeito de direito
abstrato dotado de capacidade negociai, mas sim a uma pessoa situada concretamente nas suas relações
econômico-sociais [...].” Em outra obra de sua autoria a mesma autora se refere a essa “despatrimooialização” do
Direito Civil a partir da funcionalização das relações inter-subjetivas a princípios-valores como os da dignidade
da pessoa humana , da justiça social e da igualdade substantiva. (NEGREIROS, 1998, p.171).
111
5.2 As cláusulas abertas e a aplicação dos direitos fundamentais nas
relações entre particulares
As cláusulas abertas ou gerais podem ser definidas como uma técnica de legislar em que
se estabelecem modelos jurídicos abertos ou indeterminados, os quais, pela vagueza
semântica, autorizam a incorporação de princípios, normalmente estranhos ao corpo das leis
que integram os Códigos. A conseqüência mais direta de sua incorporação às leis modernas é
a possibilidade de renovação de sua leitura a partir de indicações de programas voltados para
a realização do bem da coletividade.
53
Em contraposição à técnica legislativa das cláusulas gerais, menciona a doutrina a
técnica casuística, também chamada de cnica de regulamentação por fattispecie
54
. Karl
Engish ensina a diferença entre ambas, ressaltando que a casuística “é aquela configuração da
hipótese legal (enquanto somatório dos pressupostos que condicionam a estatuição) que
circunscreve particulares grupos de casos na sua espécie própria” (ENGISH, 1983, p.228).
as cláusulas gerais, em contrapartida, são uma formulação da hipótese legal que, em termos
de grande generalidade, abrange e submete a tratamento jurídico todo um domínio de
casos” (ENGISH, 1983, p. 229).
55
Ainda sobre a diferença das cláusulas gerais e do casuísmo,
escreveu o citado autor:
o verdadeiro significado das cláusulas gerais reside no domínio da técnica
legislativa. Graças à sua generalidade, elas tornam possível sujeitar um mais vasto
grupo de situações, de modo ilacunar e com possibilidade de ajustamento, a uma
conseqüência jurídica. O casuísmo está sempre exposto ao risco de apenas
fragmentária e ‘provisoriamente’ dominar a matéria jurídica. Este risco é evitado
pela utilização das cláusulas gerais. (ENGISH, 1983, p.234).
Assim, como são dotadas de grande abertura semântica, as cláusulas gerais
56
[53] não se
prestam a dar respostas a todos os problemas da realidade, tampouco podem ser aplicadas aos
casos concretos pelo processo de subsunção do fato à norma, processo típico da
regulamentação por fattispecie. Como ensina Judith Martins-Costa (1998, p.29), em artigo
53
Judith Martins-Costa ensina que as cláusulas gerais constituem uma técnica legislativa característica da
segunda metade do Século XX que transformou radicalmente o modo de legislar casuisticamente, típico do
movimento codificatórío do Séc. XIX, assumindo a lei características de concreção e individualidade peculiares
aos negócios privados. (MARTINS-COSTA, 1998, p.27).
54
A técnica de regulamentação pela fattispecie é muito utilizada no direito penal em que as condutas devem
amoldar-se o mais exatamente possível ao tipo descrito pela norma para que esta tenha incidência no caso
concreto. Assim, o legislador fixa no texto da norma todo o regramento que fará com que ela tenha incidência
sobre o fato concreto.
55
Karl Engish adverte que, embora apareçam como conceitos contrapostos, a casuística e as cláusulas gerais nem
sempre são mutuamente excludentes. Ao contrário, podem ser complementares, como no caso dos dispositivos
legais exemplificativos. Sobre a questão ver Engish. (1983, p.228 e seguintes).
112
lapidar sobre as cláusulas gerais,
Na verdade, por nada regulamentarem de modo completo e exaustivo, atuam
tecnicamente como metanormas, cujo objetivo é enviar o juiz para critérios
aplicativos determináveis ou para outros espaços do sistema ou através de variáveis
tipologias sociais, de usos e costumes objetivamente vigorantes em determinada
ambiência social. Em razão dessas características essa técnica permite capturar, em
uma mesma hipótese, uma ampla variedade de casos cujas características específicas
serão formadas por via jurisprudencial e não legal.
Noutro pensar, como crítica ao atual sistema de cláusulas gerais no direito brasileiro,
Gustavo Tepedino (2000, p.11) afirma que “uma cláusula geral, por si, pouco ou nada
significa”, pois se aplicadas sob a perspectiva estritamente formal, nos moldes como é feita a
aplicação no sistema das codificações, não traduzem qualquer novidade. Tanto é fato que a
cláusula geral da boa- prevista no Código Comercial brasileiro, desde 1850, portanto, não
teve qualquer aceitação na jurisprudência brasileira.
Contudo, o citado autor salienta a necessidade de se desenvolver a técnica das cláusulas
gerais, tanto pelo legislador quanto pelo intérprete das normas, pois o legislador
contemporâneo deve valer-se de prescrições normativas, nas quais fiquem expressos os
critérios interpretativos, os valores a serem preservados, princípios fundamentais como
enquadramentos axiológicos com teor normativo e eficácia imediata, “de tal modo que todas
as demais regras do sistema, respeitados os diversos patamares hierárquicos, sejam
interpretadas e aplicadas de maneira homogênea e segundo conteúdo objetivamente
definido” (TEPEDINO, 2000, p. 11).
Exsurge, pois, evidente o reconhecimento da imposição do catálogo de direitos
fundamentais, previsto na Constituição como fonte de aplicação e interpretação das cláusulas
56
De grande didatismo é o estudo do Professor Nelson Nery Júnior (2003, p.406) na tentativa de estabelecer os
conceitos e diferenças entre princípios, cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados. Na visão do citado
autor, princípios gerais de direito “são regras de conduta que norteiam o juiz na interpretação da norma, do ato
ou negócio jurídico” e que não se encontram positivados no sistema normativo. Quando um princípio geral é
positivado deixa de ser princípio geral e passa a ser considerado cláusula geral. em relação aos conceitos
jurídicos indeterminados, aos quais o Professor prefere chamar de princípios “legais” Indeterminados, estes são
definidos como “palavras ou expressões indicadas na lei, de conteúdo e extensão altamente vagos, imprecisos e
genéricos” (NERY JÚNIOR, 2003, p.407) que estabelecem as soluções aplicáveis aos casos concretos, mas
delegam ao juiz a função de realizar a subsunção do fato à norma, de modo a dizer se a norma atua ou não no
caso. É, pois, a lei que enuncia o conceito indeterminado e as conseqüências advindas, razão pela qual não se
pode falar em atividade judicial criadora. Finalmente, o autor define cláusulas gerais como sendo as “normas
orientadoras sob forma de diretrizes , dirigidas precipuamente ao juiz, vinculando-o ao mesmo tempo em que lhe
dão liberdade para decidir. As cláusulas gerais são formulações contidas na lei, de caráter significativamente
genérico e abstraio, cujos valores devem ser preenchidos pelo juiz. autorizado para assim agir em decorrência da
formulação legal da própria cláusula geral, que tem natureza de diretriz.” (NERY JÚNIOR, 2003, p.408). A
diferença entre as cláusulas gerais e os conceitos indeterminados radica precisamente no fato de que estes, uma
vez diagnosticados pelo juiz no caso concreto, já indicam a solução preestabelecida na lei e aquelas, ao contrário,
permitem ao juiz uma escolha de valores que vão preencher os claros para aquele caso concreto.
113
gerais. Não que não se reconheça a aplicabilidade direta dos ditos direitos fundamentais,
independentemente da existência de tais cláusulas, nas relações entre particulares, mas a par
da vinculação de todos aos ditames constitucionais, existe a questão de “como” se dará essa
vinculação. A simples afirmação vaga e desprovida de mecanismos concretos de sua
efetivação não é suficiente para o reconhecimento desses direitos na prática diária da
sociedade. Assim, a renovação da perspectiva não só de aplicação direta dos direitos
fundamentais, mas também de previsão pelo legislador das cláusulas gerais, mais
especificamente da boa-fé objetiva, é importante instrumento de efetiva realização de valores
constitucionais.
A cláusula da boa-fé objetiva é uma das mais célebres cláusulas gerais, positivada pela
primeira vez no § 242 do Código Civil alemão. E como se verá mais adiante, é dirigida
precipuamente ao juiz, com vistas a conferir-lhe um mandato de adequação das normas
jurídicas aos casos concretos, para que este crie ou desenvolva ditas normas por intermédio da
utilização de elementos que podem estar fora do sistema de Direito Privado.
5.3 A boa-fé subjetiva e suas considerações no Código Civil Brasileiro de
1916
O princípio da boa- não somente no Direito brasileiro, mas na quase totalidade dos
ordenamentos jurídicos dos países, sempre teve muita importância no direito das coisas,
principalmente ligado à teoria do usucapião e à da aquisição dos frutos. No âmbito do direito
das obrigações, teve aplicação restrita o princípio, notadamente em razão de fatores históricos,
tais como a existência do Estado Liberal, o predomínio absoluto do voluntarismo jurídico, a
obediência ao direito estrito e a metodologia da escola da exegese, a qual, em nome da
aplicação da teoria da separação dos poderes de Montesquieu, reduziu em muito o poder
criativo da jurisprudência.
114
Nesse contexto veio à lume o Código Civil brasileiro de 1916, baseado no mais puro
voluntarismo e numa visão patrimonialista do Direito Civil, razão pela qual não se encontrava
insculpida regra geral que se referisse expressamente à boa- na formação ou execução dos
contratos. Entretanto, a inexistência de artigo explícito sobre a aplicação da boa-fé não
impediu sua vigência no direito das obrigações pátrio, sobretudo em razão da atuação
jurisprudencial, a qual sempre reconheceu, no processo hermenêutico de interpretação dos
pactos, a necessidade de estabelecer-se a justa medida à vontade que se interpreta, pois como
ensina Clóvis do Couto e Silva(1976, p.33), “o contrato não se constitui de duas volições, ou
de uma oferta ou uma aceitação, isoladamente, mas da fusão desses dois elementos”, de modo
a “evitar-se o subjetivismo e o psicologismo a que se chegaria sem dificuldade, caso o
interesse de ambas as partes não fosse devidamente considerado”.
Assim, na análise da boa-fé no Código Civil brasileiro, exsurge o conceito de boa-fé
subjetiva, a qua, no dizer de Orlando Gomes (1995, p.42), é mais um vetor de interpretação
do contrato do que um imperativo de sua estrutura, significando que “o literal da linguagem
não deve prevalecer sobre a intenção manifestada na declaração de vontade, ou dela
inferível”. Esta a regra inserida no art. 85 do antigo Código Civil, a qual determinava que
“nas declarações de vontade se atenderá mais à sua intenção que ao sentido literal da
linguagem”.
Como nos contratos existem quase sempre interesses antagônicos das partes
contratantes, e o que se busca é a harmonização de tais interesses, impõe-se uma atuação ética
das partes durante toda a relação jurídica contratual, sendo defeso o emprego de astúcia e de
deslealdade.
Assim, a chamada boa-fé subjetiva é definida como um “estado de consciência”, um
estado psicológico da pessoa, sua intenção, seu convencimento de estar agindo de forma a não
prejudicar a outrem, forte na lição de Alinne Arquete Leite Novais (2000, p.22). Segundo
preleciona Judith Martins-Costa (1999, p.411-412),
a expressão boa-fé subjetiva denota ‘estado de consciência, ou convencimento
individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito (sendo) aplicável, em regra,
ao campo dos direitos reais, especialmente em matéria possessória. Diz-se subjetiva
justamente porque, para a sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do
sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção. Antitética à
boa-fé objetiva é a má-fé, também vista subjetivamente como a intenção de lesar a
outrem.
E complementa a mencionada doutrinadora que
115
a boa-fé subjetiva denota, portanto, primariamente, a idéia de ignorância, de crença
errônea, ainda que escusável, acerca da existência de uma situação regular, crença (e
ignorância escusável) que repousam seja no próprio estado (subjetivo) da ignorância
(as hipóteses do casamento putativo, da aquisição da propriedade alheia mediante a
usucapião), seja uma errônea aparência de certo ato (mandato aparente, herdeiro
aparente, etc.) (MARTINS-COSTA, 1999, p.411-412).
Entretanto, essa concepção de boa-fé fundada no voluntarismo e no individualismo,
consubstanciada no Código Civil, passou a não mais atender às novas exigências criadas pela
sociedade moderna, que passou a clamar por mais segurança e razoabiliadade nos pactos
firmados, fugindo do sentido subjetivo e interior. Conforme ensina Bruno Lewicki (2000, p.
56),
para além de uma análise de uma possível má-fé subjetiva no agir, investigação
eivada de dificuldades e incertezas, faz-se necessária a consideração de um patamar
geral de atuação, atribuível ao homem médio, que pode ser resumido no seguinte
questionamento: de que maneira agiria o bonus pater familiae, ao deparar-se com a
situação em apreço? Quais seriam suas expectativas e as suas atitudes, tendo em
vista a valoração jurídica, histórica e cultural do seu tempo e da sua comunidade?
Dessa forma, foi ganhando importância a noção de boa- como regra de conduta,
pautada nas circunstâncias do caso concreto, a partir da concepção de comportamento do
homem médio diante de cada situação. Tal regra de conduta cria uma previsibilidade de
atuação dos outros nos ajustes firmados, pois “não seria seguro nem razoável que, sob o olhar
complacente do Direito, pairasse entre as pessoas um eterno ponto de interrogação sobre a
conduta dos outros, num hobbesiano cenário de desconfiança generalizada” (LEWICKI, 2000,
p.57).
Nesse sentido foi concebida a doutrina da boa-fé objetiva, em contraposição à boa-fé
subjetiva, esta caracterizada pela crença e aquela balizada pela lealdade, o que será abordado
nos próximos tópicos.
57
57
Teresa Negreiros (1998, p.11-12) afirma que em sistemas jurídicos nos quais existe uma diferença ortográfica
ou semântica para a boa-fé objetiva e subjetiva, como no caso do alemão, não existem dúvidas acerca da
dualidade de sentidos imputáveis à boa-fé, o que não ocorre em sistemas nos quais não existe tal
diferenciação. Assim, trás a autora â colação exemplos de autores que entendem não haver a distinção entre boa-
subjetiva e a boa-fé objetiva, apesar de consignar que a doutrina dominante admite a dualidade de sentidos
para a expressão. Ainda sobre o tema, merece registro a lição de Menezes Cordeiro em torno da diferença
semântica do direito alemão em matéria de boa-fé. Segundo esse autor, O BGB refere-se à boa-fé objetiva como
sendo Treu und Glauben ao passo que a expressão utilizada para designar a boa-fé subjetiva é guter Glauben. Por
tal razão, conclui o autor, o BGB, que refere de forma repetida a boa-fé, “aproveitando a diversidade lingüística
possibilitada pela língua alemã, contrapõe com clareza, a boa-fé objectiva e subjectiva”. (CORDEIRO, 2001, p.
327).
116
5.4 Evolução histórica da boa-fé objetiva
A noção de boa-fé no Direito remonta aos romanos, principalmente ligada a três setores
principais, quais sejam, as relações de clientela, os negócios contratuais e a proteção
possessória. Em relação à clientela, ensina Judith Martins-Costa (1999) que por traduzir
relações entre indivíduos juridicamente desiguais, o cidadão livre e o cliente, as relações eram
dominadas pela fides, consubstanciada tanto no poder do patrão quanto no dever do Cliens e
na promessa de proteção. No que tange aos contratos, registra-se a presença da fides em
contratos internacionais (MARTINS-COSTA, 1999, p.113)
58
, o que acabou incorporando, em
última análise, à prática jurídica romana os contratos consensuais, considerando-se que a
regra até então eram os contratos formais. A difusão dos contratos despidos de formalidade
fez com que a fides já não se definisse como fit quod dicitur, mas como uma fides não formal,
traduzida na fórmula age quod agis, ou seja, “informa o teu comportamento àquele desenho
de ação ao qual tu e tua contraparte consentiram”. A esta fides, preleciona Judith Costa, é que
se agrega a qualidade de “bona” (MARTINS-COSTA, 1999, p.115).
59
no período clássico,
especialmente em relação ao campo dos negócios jurídicos, o conceito de fides bona se
modifica, assumindo a conotação de norma de comportamento no tráfico negocial, fazendo da
mesma fonte de criação de deveres de cumprimento e fonte de exigibilidade judicial desses
deveres, expurgando-se a conotação de regra moral. no que tange aos direitos reais,
sobretudo em relação ao instituto da usucapio, a expressão assumiu significado de “estado de
ignorância” do beneficiário da usucapião (COUTO E SILVA, 1980, p.45).
60
58
Menciona Judith Martins-Costa (1999, p.115) o tratado firmado entre Roma e Cartago, do qual noticia
Políbio, que continha regra segundo a qual “cada uma das partes contraentes prometia sobre a própria -
publica fides, ou seja, sobre a que liga a coletividade ao respeito das convenções livremente pactuadas - a
assistência do cidadão da outra cidade para a proteção dos interesses nascidos dos negócios privados.”
59
Segundo Paolo Frenzza, citado por Judith Costa, “é uma fides que constringe a quem prometeu a manter sua
promessa não segundo a letra, mas segundo o espírito; não tendo em vista o texto da fórmula promissória, mas
ao próprio organismo contratual posto em si mesmo: não seguindo valor normativo externo ao negócio
concretamente posto em si (o contexto verbal da promessa), mas fazendo do próprio concreto intento negocial a
medida da responsabilidade daqueles que fizeram nascer.” (FRENZZA apud MARTINS-COSTA, 1999, p.115).
60
Sobre a questão do significado da boa-fé no Direito Romano, Clóvis do Couto e Silva(1980, p.45) ressalta a
polêmica travada entre os romanistas Bruns e Watcher a respeito da boa-fé. Discutiam ambos, partindo do
conceito de boa-fé necessária à aquisição da usucapião, se o conceito possuía significado unívoco no direito
romano tanto para o direito das obrigações como para os direitos reais, como defendia Bruns, ou se, ao contrário,
possuía uma significação para o direito obrigacional de caráter objetivo e outro para os direitos reais, de caráter
subjetivo, como pregava Watcher.
117
No Direito Canônico a boa-fé fora tratada considerando-se dois setores principais.
Primeiramente a boa- em relação à proteção possessória foi considerada mais do que um
“estado de ignorância”, pois introduziu-se o conceito de boa-fé “como ausência de pecado” ou
como estado contraposto à má-fé. Também a boa-fé fora tratada no âmbito dos contratos
consensuais atribuindo à igreja um valor moral à promessa ou ao consentimento, e a quebra
da promessa ou do consentimento era considerada mentira, consistindo esta num pecado
semelhante aos “pecados da língua”. Verifica-se, pois, que a boa-fé para o Direito Canônico
passou a ter significado uníssono, diferentemente do Direito romano, em que a boa-fé poderia
assumir uma feição subjetiva ou técnico-objetiva, conforme se referisse a questões
possessórias ou do direito das obrigações, respectivamente. No Direito Canônico a boa-fé
passou a ser definida como “a consciência íntima e subjetiva da ausência de pecado, isto é, de
se estar agindo corretamente, de não se estar lesando regra jurídica ou direito de
outrem” (MARTINS-COSTA, 1999, p.131).
Com o fim da idade média tem início a economia capitalista e as ciências passaram a ter
como modelo o racionalismo individual. A autoridade, que na idade média dava legitimidade
ao conhecimento, deixa de ter importância, passando a razão humana a questionar as verdades
estabelecidas por este critério
61
. Nesse momento a ratio se desprende definitivamente da fides,
em nome da criação de instrumentos jurídicos mais simples e mais afinados com os novos
tempos, surgindo como corolário da necessidade de simplificação e sistematização, a noção
de codificação e unificação das fontes do direito.
Inspirado pelo mito da lei, como fonte suprema de produção jurídica, a ascensão
econômica, política e cultural da burguesia, o racionalismo jurídico, o contratualismo, o
individualismo e o liberalismo, vem à lume o Código Civil francês, marco inicial dos grandes
sistemas codificados.
A boa-fé, já definida como uma cláusula geral, tem sua aplicação diminuída em razão da
escola exegética, a qual concebia o Código como um sistema completo e pleno de todas as
relações jurídicas civis, sem a possibilidade de interpretação dos dispositivos legais, uma vez
que as respostas aos casos concretos estariam todas previamente estabelecidas nas normas.
Trata-se da aplicação do brocardo amplamente divulgado in claris non fit interpretatio. Nas
relações privadas ganha tamanha importância o princípio do consensualismo que a autonomia
61
Sobre essa mudança de paradigmas da idade média para o Estado Liberal remetemos o leitor ao capitulo II do
presente estudo.
118
da vontade é erigida à categoria de dogma.
Assim, não se admitiam limites legais ou judiciais à vontade das partes livremente
ajustada. Igualmente, considerava-se que a justiça contratual estaria assegurada
simplesmente pelo fato de ser decorrente da vontade livre dos contratantes. Como ensina
Judith Costa (1999, p.203)
essas ‘vontade livre’ e ‘igualdade’ eram a tradução jurídica da concepção econômica
do liberalismo. A liberdade de iniciativa econômica, que está na base do capitalismo.
era a liberdade efetivamente perspectivada pelos autores do Código para derrubar, de
uma vez por todas, os entraves decorrentes do Ancien gime à liberdade de
circulação de mercadorias, impostos pelos privilégios feudais, pelas corporações,
grêmios e monopólios fiscais.
A autonomia da vontade passou a significar também a segurança contra a atuação do
Estado na esfera privada, o que fez com que a referida autonomia se tornasse o eixo central de
toda a teoria dos contratos. Nesse contexto, o princípio da boa-fé foi esvaziado pela noção da
força obrigatória dos contratos e pela manifestação da vontade livre dos contratantes.
Ademais, como o Código foi concebido como um sistema completo, a sua aplicação judicial
não autorizava a interpretação, por mais injustas que fossem as conseqüências de sua
aplicação.
Diante da importância que o Código Napoleônico viria a exercer pelo mundo, a vertente
objetiva da boa-fé restaria relegada a um segundo plano nos diplomas oitocentistas.
Entretanto, a primeira guerra mundial trouxe substanciais mudanças no que tange às
relações contratuais, principalmente na Alemanha, o que ensejou o surgimento do BGB, em
1896, e da Constituição de Weimar, em 1919.
É justamente no Direito germânico que se desenvolve a doutrina da boa-fé objetiva, da
forma como é modernamente concebida, pois a cláusula geral de boa-fé, insculpida no § 242
do BGB, espraiou seus efeitos por toda a teoria contratual alemã.
É certo que o reconhecimento do princípio da boa-fé, inserto no dispositivo acima
mencionado, não se deu de imediato após a vigência do BGB. Na lição de Clóvis do Couto e
Silva (1980, p. 46),
nas codificações européias do inicio do século, sobressai pela sua importância o
Código Civil germânico. Este Código Civil tem a característica de conter o § 242.
que mais tarde, deveria constituir o elemento fundamental para uma compreensão
absolutamente nova da relação obrigacional. Não se pense: contudo, ser o aludido §
242, no pensamento dos autores do Código Civil alemão, algum dispositivo
específico, conferindo ao juiz poderes extraordinários de criação jurídica, ao ponto
119
de transformar a sua figura no símile do pretor romano. Nada mais inexato: o § 242
não significava outra coisa senão mero reforço ao § 157, no qual se determinava a
regra tradicional de interpretação dos negócios jurídicos segundo a boa-fé.
Dessa forma, iniciou-se o reconhecimento de que o princípio da boa-fé é uma fonte
autônoma de direitos e obrigações, principalmente a partir do estudo realizado por Hermann
Staub
62
, publicado em 1902, o qual estabeleceu no direito germânico o conceito de violação
positiva do contrato
63
. A partir da “descoberta” de Staub, ensina Clóvis Couto e Silva (1980, p.
49), “começa a grande transformação da relação obrigacional, admitindo-se a existência de
deveres acessórios ou implícitos, instrumentais e independentes, ao lado da obrigação
principal”.
O contexto histórico mais uma vez se altera, pois com a revolução industrial inicia-se a
revolução do consumo, tendo como característica principal a massificação das relações
privadas, em que a contratação individual é substituída pela contratação coletiva.
Como ensina Cláudia Lima Marques, existe uma outra realidade contratual que enseja
uma nova definição de contrato, diferentemente da relação estabelecida pelo contrato
tradicional, pois
62
Segundo ensina José Carlos da Silva Filho (2003, p.315-316), a expressão violação positiva do contrato, ou
quebra positiva, foi cunhada por Staub, partindo da tese de que, no sistema alemão, existiam outras formas de
inadimplemento contratual que não as duas previstas no BGB quanto ao tema, quais sejam, a impossibilidade de
cumprimento e a mora. Essas duas formas de inadimplemento diziam respeito a uma inatividade do devedor, mas
existiam outros casos em que o devedor violava o contrato por meio de uma atuação positiva, quer pelo
cumprimento defeituoso da avença que causasse danos, quer pela realização de atos que deveriam ser omitidos,
sugerindo o autor que fosse aplicada analogicamente a mesma solução para a mora, prevista no § 326 do BGB.
63
Muito embora exista uma diferença conceitual entre a violação positiva do contrato e a quebra antecipada do
contrato, assinalada na doutrina brasileira por Ruy Rosado Aguiar Júnior (1991, p.124-130) e Jorge Cesar
Ferreira da Silva (2002, p.215-230), entende Clóvis do Couto e Silva (1980) que o conceito de violação positiva
do contrato desenvolvido por Staub revela a aplicação no Direito germânico do conceito da common low de
antecipated breach of contract e o faz nos seguintes termos: “Um aspecto não suficientemente salientado é a
circunstância de a aplicação do principio da boa-fé, com a criação ou compreensão científica dos deveres
secundários ou anexos, aproximar o conceito de relação obrigacional vigorante no Direito germânico com o da
common law. Começava a reconhecer-se no princípio da boa- uma fonte autônoma de direitos e obrigações;
transforma-se a relação obrigacional manifestando-se no vínculo dialético e polêmico, estabelecido entre
devedor e credor, elementos cooperativos necessários ao correto adimplemento. Fundamental para essa
modificação foi o estudo de H. Staub, Positive Vertragsverletzung, publicado em 1902, no Festschrififur das
deutsche Juristentag, e, que, AO MEU VER, REVELA A APLICAÇÃO NO DIREITO GERMÂNICO DO
CONCEITO DA COMMON LAW DE ANTECIPATED BREACH OF CONTRACT. (COUTO E SILVA, 1980,
p.47). Em outra passagem do mesmo texto, novamente retoma o autor a discussão acerca das idéias de Staub,
mais uma vez afirmando que “a partir da obra de H. Staub, em que se manifesta no Direito germânico o conceito
de “quebra antecipada do contrato”, inicia-se uma nova concepção de relação obrigacional, com deveres
secundários vinculados ao princípio da boa-fé.” (1980, p. 49)
120
na sociedade de consumo, com seu sistema de produção e de distribuição em grande
quantidade, o comércio jurídico se despersonalizou e os métodos de contratação em
massa, ou estandardizados, predominam em quase todas as relações contratual?
entre empresas e consumidores. (MARQUES, 1999, p.49).
Diante de tal quadro, a jurisprudência, libertando-se cada vez mais da concepção restrita
de separação de poderes e reconhecendo no ordenamento positivado um sistema aberto,
passou a responder aos novos fatos, aceitando que a boa-fé possui valor autônomo, não
relacionado com a vontade. Por ser autônomo, preleciona Clóvis do Couto e Silva (1980, p.
54) que
a extensão do conteúdo da relação obrigacional não se mede com base somente
nela (a vontade), e, sim, pelas circunstâncias ou fatos referentes ao contrato,
permitindo-se construir objetivamente o regramento do negócio jurídico, com a
admissão de um dinamismo que escapa, por vezes, até mesmo ao controle das
partes.
A modificação operada pela jurisprudência contribuiu para o arrefecimento do dogma
da autonomia da vontade, propiciando um tratamento objetivo da relação obrigacional. E
mais, assistiu-se a um crescente intervencionismo do Estado nas relações contratuais, de
modo a garantir a aplicação de uma justiça contratual, uma vez que a propalada liberdade das
partes contratantes, na concepção liberal, era meramente formal.
Forte na lição de Rogério Ferraz Donini (2000, p.74-75), segundo o qual “o princípio da
autonomia da vontade não autoriza que se pactue contrariamente aos ideais de justiça”, o
contrato passou a ter uma função social, que sempre esteve presente na teoria contratual, mas
“só não foi utilizada porque se acreditava que ela seria obtida pela simples atuação dos
contraentes, o que não aconteceu satisfatoriamente”.
Nesse contexto surge a teoria da boa-fé objetiva, de início, como ressaltado
anteriormente, a partir da atuação jurisprudencial e, na atualidade, expressamente consignada
no Código de Defesa do Consumidor e no Código Civil brasileiro. Tal aplicação tão ampla
baseia-se no fato de que a boa-fé encontra-se identificada com valores fundamentais do texto
constitucional e apresenta-se como importante instrumento de garantia de aplicação dos
direitos fundamentais em geral, mas especialmente nas relações entre particulares. Sobre a
questão merece destaque o entendimento de Célia Slawinski (2000, p.85), a seguir transcrito:
Assim sendo, é igualmente incontroverso que a presença da cláusula geral da tutela
da dignidade da pessoa humana - princípio constitucional fundamental - através do
qual restou evidenciada a imposição de valores existenciais sobre as situações
patrimoniais, consistiu em fator decisivo para a nova postura metodológica adotada
pelo legislador infraconstitucional. Nessa linha, é possível dizer que foi, atendendo
às diretrizes ditadas pelo Constituinte de 1988, que o legislador do Código de Defesa
121
do Consumidor [...], em momento de extrema felicidade, no tocante à observância
dos princípios fundamentais - da dignidade da pessoa, da solidariedade social e da
igualdade substancial, integrantes do Estado Social de Direito, optou por prestigiar
incisivamente os princípios da boa-fé e do equilíbrio das prestações, que
inequivocamente, restringem a importância antes conferida à vontade individual.
Do que foi exposto, pode-se concluir que o reconhecimento do princípio da boa-fé
objetiva, como instrumento de realização dos direitos fundamentais nas relações
interprivadas, é fruto da consolidação histórica de valores ligados à dignidade da pessoa
humana. No próximo item ter-se-á uma ligeira noção do desenvolvimento da boa-fé objetiva
no direito comparado. Diz-se aqui ligeira noção, pois apesar de ser inegável contribuição um
estudo aprofundado de Direito comparado, nesta pesquisa o objetivo precípuo é analisar a
questão no cenário brasileiro.
5.5 A boa-fé objetiva no direito comparado
5.5.1 A boa-fé objetiva na Alemanha
O sistema de codificação alemão diferiu em grande medida do sistema francês, marcado
pelo formalismo exegético. Primeiramente o conceito da boa-fé no direito das obrigações
originou-se da prática comercial alemã e da influência das decisões do OAG Lubeck
(Oberappelationsgericht zu Lubeck) (MARTINS-COSTA, 1999, p.209)
64
, decisões que
destacavam a boa-fé de forma tópica. Bem assim, do ponto de vista teórico, algumas correntes
de pensamento influenciaram a estruturação e sobrevivência do BGB, com destaque para o
jusracionalismo, as escolas histórica e pandectista, além da jurisprudência dos conceitos.
Segundo Maria Cristina Cereser Pezzella (1998, p.134), o legislador alemão não aderiu
sem restrições à teoria da vontade, preferindo a teoria da declaração, e em menor medida, a
teoria da confiança, quando da elaboração do BGB. Para a teoria da vontade, defendida por
Savigny e prevalente na doutrina alemã durante a passagem do século passado para o atual,
“engendrava a invalidade do negócio sempre que fosse verificada uma divergência entre a
vontade interna e a declaração, desprezando quaisquer requisitos”. a teoria da declaração
centra sua atenção no que foi exteriormente manifestado, subdividindo-se em duas formas: a
primeira privilegia a expressão literal da declaração, produzindo efeitos desde que observada
a forma, independentemente do objetivo querido; a segunda forma, um pouco mais branda,
64
Confronte Judith Costa (1999, p.209), trata-se de um Tribunal superior de apelação comercial criado para
atender às necessidades comerciais das quatro cidades livres de Lubeck, Hamburg, Bremen e Frankfurt, fundado
em 1815 e com sede em Lubeck.
122
chamada teoria da confiança, “considera inválido o negócio se a divergência existente entre a
vontade real e o sentido objetivo da declaração foi conhecida ou passível de ser conhecida
pela contraparte” (PEZZELLA, 1998, p.134).
Coube a Jhering, em 1861, a concepção da teoria da culpa in contrahendo, fundada na
divergência entre a vontade interna e a declaração, desprezados quaisquer outros requisitos na
teoria da vontade. Segundo tal teoria, surgiria para o declarante a obrigação de indenizar
quando o negócio findasse anulado por haver desconformidade entre a declaração e a vontade.
A indenização teria o escopo de resguardar o interesse contratual negativo, repondo a parte
lesada na situação que estaria se o negócio não se tivesse concluído.
Conforme ensina Menezes Cordeiro (2001, p.530), para Jhering a culpa in contrahendo
é um instituto de responsabilidade civil pelo qual, “havendo nulidade no contrato, uma das
partes que tenha ou devesse ter conhecimento do óbice, deve indenizar a outra pelo interesse
contratual negativo”.
Entretanto, reconhecendo insuficiente a teoria da culpa in contrahendo, a teoria da
responsabilidade passou a considerar valido o negócio sempre que divergisse a declaração da
vontade, em caso de dolo ou culpa, mas que estivesse de boa-fé a contraparte. Passou-se a
privilegiar a aparência exterior da vontade, presumindo-se desejado esse efeito aparente
65
.
Assim, a partir da Primeira Grande Guerra Mundial e sob os influxos de uma crescente
preocupação ética com o enquadramento do indivíduo e sua responsabilidade, ampliou-se o
uso do princípio da boa-fé objetiva na integração da vontade, em obséquio à proteção da
65
Nesse contexto é que ganha importância a teoria dos atos existenciais, oriundos das relações contratuais de
fato, denominada ainda de teoria dos atos socialmente típicos (NEGREIROS, 1998, p.243). Segundo tal teoria,
operou-se a máxima objetivação da vontade, identificando-se o suporte fático da vontade, sem conexão da
mesma com seu lastro psicológico ou subjetivo quer em relação a atos praticados por incapazes, quer em relação
a contratos massificados, retirando-se a vontade do indivíduo do centro do sistema do direito obrigacional em
tais casos. È o que ensina Tereza Negreiros (1998, p.245-6) ao comentar decisões judiciais acerca da aplicação
da mencionada teoria, quando conclui: é precisamente com base na boa-fé objetiva que se justifica, à luz da
referida teoria, a criação de vínculo obrigacional resultante de uma radical objetivação da vontade [...]. Firma-se,
portanto, a tese segundo a qual o comportamento das partes, num contexto de massificação dos contratos, é
suficiente para qualificar, em razão da tipicidade social de uma tal conduta, aquela relação como uma relação
jurídica, de natureza contratual , da qual surgem obrigações que, descumpridas, ensejam a responsabilização do
devedor inadimplente. Trata-se de mais um aspecto das transformações por que vem passando o direito das
obrigações desde que se lhe retirou a vontade do indivíduo como centro de toda investigação jurídica.” Impõe-se,
ainda sobre a aludida teoria lembrar que a doutrina ainda se divide acerca de considerar tais atos como sendo
negócios jurídicos ou simples ato-fato, pois como lembra Clóvis do Couto e Silva (1980, p.71-2), tais atos
independem da vontade, sendo portanto, suscetíveis de anulação. Salienta o autor, entretanto, que ambas as
concepções “têm sua base no fato de não parecer ético, nem razoável, pretender invalidar um ato jurídico que
recai sobre coisas necessárias, sem as quais não pode uma pessoa razoavelmente existir”. E conclui o autor
“Assim, explica-se porque o ato existencial, por não depender da vontade, constitui-se em ato-fato ou ato
material, em que não se cogita, nem se investiga a existência da vontade.”
123
confiança, com vistas ao restabelecimento da justiça contratual material.
Para o estudo da boa-fé na Alemanha, de especial importância é a referência ao
mencionado § 242 do BGB, o qual estabelece a cláusula geral de boa-fé, assim redigido: “o
devedor deve cumprir a prestação tal como o exija a boa-fé, com consideração pelos costumes
do tráfego jurídico” (MARTINS-COSTA, 1999, p.187).
66
Tal dispositivo contribuiu para uma nova visão da relação jurídica obrigacional,
limitando muito a importância da autonomia da vontade
67
, ensejando a atuação criativa dos
juristas, mormente dos juízes, no preenchimento da cláusula geral insculpida no dispositivo
mencionado. Outro fator importante é o fato de reconhecer-se à boa-fé um valor autônomo,
baseando-se o mencionado § 242 nas mesmas idéias que fundamentaram a exceptio doli
generalis do Direito romano, frente à qual poderia evitar-se que se exigissem de modo não
eqüitativo as prestações. Conforme ensina Luis Díez-Picazo, na tradução espanhola de Franz
Wiacker, (1986, p.20) a exceptio doli “fue el instrumento jurídico a través del cual los
juristas romanos hicieron posible una aplicación de la bona fides, dotandola de una
protección mayor y más eficaz y arbitrando los médios necesarios para una solución más
equitativa de los problemas jurídicos”. Assim, a execptio doli “es una medida de defensa del
demandado frente a la actio ejercitada dolosamente que permite paralizarla precisamente a
causa de la contravención de la buena que ella producé” (1986). Na visão do citado autor,
não se pode dizer que subsista a exceção de dolo no direito atual, exatamente como prevista
no direito romano. Sem embargo, afirma que o reconhecimento da boa-fé como um limite ao
exercício dos direitos subjetivos obriga a reconhecer ao sujeito passivo do direito subjetivo
exercido contra os ditames da boa-fé, “unos medios de defensa per exceptionem que llevan a
enervar, repeler o detener la pretensión del titular del derecho y que estos medios se les
puede llamar genéricamente de exceptio doli” (1986, p.21).
66
Esclarece a autora que o texto apresentado é tradução de Menezes Cordeiro.
67
Segundo Clóvis do Couto e Silva (1980, p.54), o aspecto mais importante da boa-fé em relação à criação
judicial no caso concreto é o fato de que esta possui um valor autônomo, não relacionado com a vontade. “Por
ser independente da vontade, a extensão do conteúdo da relação obrigacional não se mede com base somente
nela, e, sim, pelas circunstâncias ou fitos referentes ao contrato, permitindo-se construir objetivamente o
regramento do negócio jurídico, com a admissão de um dinamismo que escapa, por vezes, até mesmo ao controle
das partes”.
124
De grande importância, outrossim, é o estudo de Hermann Staub, mencionado no
tópico anterior, o qual acresceu às formas de inadimplemento contratual até então aceitas a
noção de violação positiva do contrato, ou seja, o comportamento do devedor que faz o que
não deveria fazer e, com seu comportamento, traz dificuldades para o cumprimento da
avença. O referido estudo foi fundamental para o reconhecimento da boa-fé como fonte
autônoma de direitos e obrigações. Esses deveres secundários advindos da boa-fé vão
surgindo no desenrolar da relação obrigacional, pois sua existência demanda uma análise das
circunstâncias do caso concreto, desde antes da celebração do contrato até seu integral
cumprimento, e interessam à “exata satisfação dos interesses globais envolvidos nas relações
obrigacionais complexas. Os deveres secundários são relativos à pessoa e ao patrimônio da
contraparte” (PEZZELLA, 1998, p.137).
68
Na visão atual, o princípio da boa-fé norteia todo o ordenamento jurídico e permite ao
juiz a elaboração da solução aplicável não só ao caso concreto, mas também às conseqüências
jurídicas daí decorrentes, num processo de concreção indispensável ao preenchimento de
cláusulas gerais, de sentido indeterminado, como é o caso do conceito de boa-fé objetiva.
5.5.2 A boa-fé objetiva em Portugal
Segundo ensina Clóvis do Couto e Silva, o Código Civil português contém quatro
artigos da mais alta relevância a respeito da boa-fé. Assim é que o art. 227 do referido
diploma estabelece que quem negocia com outrem para a conclusão de um contrato deve,
tanto nas preliminares, quanto na formação dele, proceder segundo regras de boa-fé, sob pena
de responder pelos danos que culposamente causar à outra parte. Tal dispositivo admite que
não no cumprimento do contrato, mas desde a fase de negociação, existem direitos e
deveres resultantes da boa-fé.
68
Jorge Cesar Ferreira da Silva (2002, p.78-9), citando Stoll, autor a quem coube a sistematização da idéia de
deveres acessórios na relação obrigacional no ordenamento alemão, afirma que “toda relação obrigacional
implica uma duplicidade de interesses. Num primeiro plano, as partes vinculam-se visando o objeto da prestação,
cabendo ao resultado da atuação do devedor atingir o cumprimento. Trata-se, pois, de um interesse positivo:
que se fazer algo para que um determinado resultado seja atingido. De fundo, por sua vez, outro interesse.
Toda relação expõe a pessoa ou os bens de uma parte à atividade da outra, que pode, com essa atividade,
provocar danos a tais bens ou colocá-los em perigo. Incide então a boa-fé, a regular uma série de deveres
dedicados a evitar situações danosas. Esses deveres, assim, ao contrário dos anteriores, veiculam um interesse
negativo: que se fazer algo (ou tomar determinadas medidas) para que um determinado resultado não seja
atingido. Esses deveres são por ele chamados de “deveres de proteção” (schutzpflichten), frequentemente
representados em deveres de aviso e de conservação (Anzeige - und Erhattungspfflichten)”.
125
Ainda com base na lição do civilista, o art. 239 contém disposição peculiar do Direito
português, estabelecendo a regra mais importante a respeito da interpretação integradora da
vontade e do princípio da boa-fé.
Determina o referido dispositivo que na falta de disposição especial, a declaração
negocial deve ser integrada em harmonia com a vontade que as partes teriam tido se
houvessem previsto o ponto omisso, ou de acordo com os ditames da boa-fé, quando outra
seja a solução por eles imposta (COUTO E SILVA, 1980, p.67).
Assim, de acordo com o aludido dispositivo, chega-se à concreção da boa-fé se não for
possível integrar a vontade das partes e
Nesse sentido, afirma-se que a boa-fé enriquece o conteúdo da obrigação de modo
que a prestação não deve apenas satisfazer os deveres expressos, mas também é
necessário verificar a utilidade que resulta para o credor da sua efetivação, quando
por mais de um modo puder ser cumprida. (COUTO E SILVA, 1980, p.68).
o art. 762, n. 2, do Código português determina que no cumprimento da obrigação,
assim como no exercício de direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé.
Assim, muito embora o cumprimento da avença deva ser integral, a formulação do referido
dispositivo impõe a boa-fé como limite ao exercício do direito relativo ao cumprimento do
contrato, quando o exercício de resolução configurar-se como abusivo.
Na hipótese, o que se verifica é que a resolução da avença torna-se impossível de um
lado e, em contrapartida, o beneficiário não pode recusar-se a aceitar a prestação não integral.
Por fim, o tantas vezes citado civilista, ao analisar o art. 434, n. 2, do Código
português, o qual estabelece a hipótese mais comum de aplicação da boa-fé, pois determina
que desde que haja um adimplemento substancial está legitimado o contratante ao preço
estipulado, sujeito tão-somente a uma reconvenção ou a uma ação em reparação por omissões
ou defeitos na execução, conclui que o princípio agasalha a possibilidade de revisão das
cláusulas contratuais ou até mesmo a rescisão do contrato, caso as circunstâncias em que se
realizou a avença sofram alteração anormal, afetando desmesuradamente os princípios da boa-
fé e desde que não sejam cobertas pelos riscos normais do contrato.
O Código Civil português contempla, dessa forma, a teoria da base negocial, a mais
drástica forma de intervenção no princípio da autonomia da vontade, atrelada à aplicação da
teoria da imprevisão no direito português.
69
69
No que concerne as modificações supervenientes que atingem o contrato, temos que no Direito brasileiro,
126
Vista, em apertada síntese, a aplicação da cláusula da boa-fé no Direito alemão e no
Direito português, passar-se-á, no próximo tópico, a uma análise da aplicação do princípio da
boa-fé objetiva no ordenamento jurídico brasileiro.
5.6 A prevalência da observação da boa-fé objetiva no ordenamento
jurídico pátrio
Conforme foi visto no tópico que tratou do conceito de boa-subjetiva, o Código Civil
brasileiro de 1916 não consignava uma regra genérica que se referisse expressamente à boa-fé
na formação ou execução dos contratos.
Entretanto, tanto a doutrina quanto a jurisprudência pátrias reconheciam que o princípio
da boa-fé, independentemente de sua positivação, poderia ser aplicado, pois seria um
consectário direto de necessidades éticas essenciais, sem as quais inexiste qualquer sistema
jurídico.
70
diferentemente do Direito português, o Código Civil de 2002 adotou a teoria da onerosidade excessiva, na esteira
do que está previsto no Código Civil Italiano sobre a questão. É o que se depreende da leitura do art 478 do
citado diploma legal, a seguir transcrito: “Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de
uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para outra em virtude de
acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Parágrafo único:
os efeitos da sentença que decretar a resolução do contrato retroagirão à data da citação.” Não obstante, ensina
Ruy Rosado Aguiar Júnior (1991, p.52). que o Código Civil de 16, por não contemplar expressamente a regra a
ser aplicada em casos de modificação ou extinção dos contratos por força de circunstâncias supervenientes,
permitia “a aplicação da teoria da alteração da base objetiva do negócio, de maior flexibilidade”. Ainda sobre o
tema observa Otávio Luiz Rodrigues Júnior (2002, p.155) que houve a inserção de uma nova figura no campo
contratual que é a da resolução do contrato como um dos meios de preservar o equilíbrio contratual, em
contraposição à sistemática vigente antes da edição do novo Código Civil, segundo a qual praticamente se
poderia rescindir um contrato em razão de atos ilícitos. E assim, fundamenta o autor o surgimento da nova figura
mencionada: “o direito de resolução obedece a uma nova concepção, porque o contrato desempenha uma função
social, tanto como a propriedade. Reconhece-se, assim, a possibilidade de se resolver um contrato em virtude do
advento de situações imprevisíveis, que inesperadamente venham a alterar os dados do problema, tornando a
posição de um dos contratantes excessivamente onerosa”.
70
O Superior Tribunal de Justiça registra alguns casos em que figurou como relator o então Ministro Ruy Rosado
Aguiar, como é o caso do RESP 32890/SP, DJ de 12/12/94, no qual se afasta a incidência de fraude à execução na
circunstância em que o credor, com o objetivo de resguardar seu crédito, deveria ter registrado a execução intentada
contra a construtora, que acabou vendendo dezenas de apartamentos a terceiros de boa-fé, que não tinham como
desconfiar da transação, até porque foi esta efetuada com a concorrência da CEF. Em tais circunstâncias entendeu o
relator que o credor tinha obrigação de adotar medidas oportunas para evitar a alienação dos imóveis aos
adquirentes de boa-fé, dever que era decorrente da boa-fé objetiva. Em outro excerto, também da lavra do Ministro
Ruy Rosado Aguiar Jr., publicado no DJ de 18/12/95, p. 44573, verificou-se que em razão de compromisso público
assumido pelo Ministro da Fazenda, por intermédio de “memorando de entendimento”, de que haveria a suspensão
de execução judicial devida bancária de devedor que se apresentasse para acerto de contas, gerou nos mutuários a
justa expectativa de que essa suspensão ocorreria uma vez preenchidos os requisitos. Assim, entendeu o Relator que
o direito à suspensão apresentava-se fundado no principio da boa-fé objetiva, que privilegia o respeito a lealdade. Já
no RESP 10721 l/SP DJ de 3/2/97, Relator Ministro Ruy Rosado Aguiar Júnior, restou assentado o dever de
proteção, advindo da boa- objetiva, a cliente de estabelecimento comercial que estaciona seu veículo em lugar
destinado pela empresa, como um serviço extra destinado a seus clientes e tem seu veiculo furtado. Entendeu,
ainda, que não houve um contrato de depósito, mas a empresa que se beneficia do estacionamento tem dever de
proteção, como consectário do princípio da boa-fé objetiva. Outro acórdão que merece registro é o RESP
256274/SP, DJ de 18/12/00, 4ª. Turma, sendo Relator mais uma vez o pioneiro Ministro Ruy Rosado Aguiar Júnior,
127
No que tange às relações de consumo, a Lei n. 8.078/90, o Código de Defesa do
Consumidor, expressamente consignou o princípio da boa- em dois dispositivos, quais
sejam, o art. e o art. 51. Este, ao tratar das cláusulas abusivas nos contratos de consumo,
afirma serem nulas de pleno direito, entre outras, as cláusulas contratuais relativas ao
fornecimento de produtos e serviços que estabeleçam obrigações iníquas, abusivas, que
coloquem o consumidor em desvantagem, ou sejam incompatíveis com a boa-fé e a eqüidade.
Aquele, o art. 4°, ao estabelecer a Política Nacional de Relações de Consumo, determinou que
esta tem por objetivo o atendimento das necessidades dos consumidores, o respeito a sua
dignidade, saúde e segurança, a proteção de seus interesses econômicos, a melhoria de sua
qualidade de vida, bem como a transparência e harmonia das relações de consumo,
estabeleceu, ainda, que a referida política deverá obedecer, entre outros, ao princípio da
harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo e a compatibilização
da proteção do consumidor com a necessidade de desenvolvimento econômico e tecnológico,
de modo a viabilizar os princípios nos quais se funda a ordem econômica, sempre com base
na boa-fé e equilíbrio nas relações entre consumidores e fornecedores.
Quanto à regra insculpida no art. 4°, verifica-se que a mesma tem o caráter de princípio
orientador da interpretação dos contratos, de modo a conciliar a proteção do consumidor e os
ditames constitucionais sobre a ordem econômica
71
, ou seja, a boa-fé atua não na defesa do
débil, mas em garantia da ordem econômica, à medida que enseja a compatibilização de
interesses antagônicos.
Conforme lição de Ruy Rosado Aguiar Jr., a aproximação dos termos ordem econômica
e boa-fé serve para realçar que esta não é apenas um conceito ético, mas também econômico,
ligado à funcionalidade econômica do contrato e a serviço da finalidade econômico-social que
o contrato persegue. Nessa perspectiva, o princípio assume duas facetas, uma externa, na qual
o contrato assume uma função social, definido como um dos fenômenos da ordem econômica,
e outra interna, definindo-se como um vínculo funcional que estabelece uma planificação
econômica entre as partes, que devem comportar-se com o objetivo de garantir a realização
dos fins do contrato e a plena satisfação das expectativas dos participantes do negócio. Assim,
no qual se discute o direito a lucros cessantes e o período a ser considerado para a sua fixação. Entendeu o Relator
que a avaliação do período a considerar para os lucros cessantes deve ser feita de acordo com a boa-fé objetiva, que
impõe ao lesado colaborar lealmente, praticando atos que estavam ao seu alcance, para evitar a continuidade do
prejuízo.
71
Na visão de Ruy Rosado Aguiar Jr. (1995, p.23), esse aspecto acima mencionado traz à tona um aspecto nem
sempre considerado na boa-fé, consistente com sua vinculação com os princípios socioeconômicos que presidem
o ordenamento jurídico nacional no âmbito da economia.
128
ensina o citado civilista,
o art. se dirige para o aspecto externo e quer que a intervenção na economia
contratual, para a harmonização dos interesses, se dê com base na boa-fé, isto é, com
a superação dos interesses egoísticos das partes e com a salvaguarda dos princípios
constitucionais sobre a ordem econômica através do comportamento fundado na
lealdade e na confiança. (AGUIAR JÚNIOR, 1995, p. 22).
A disciplina do Código do Consumidor impõe a conclusão de que o princípio da
autonomia da vontade deve ceder passo aos ditames éticos da boa-fé objetiva. Aliás, como
preleciona Célia Barbosa Slawinski (2000, p.85), é preciso salientar que “existe uma íntima
relação entre as razões que levaram o legislador do Código de Defesa do Consumidor (CDC)
a prestigiar a boa-fé objetiva e os valores fundantes do texto constitucional”, principalmente
dos valores ligados à dignidade da pessoa humana, por intermédio do qual ficou evidenciada a
imposição da prevalência dos valores existenciais
72
. sobre as situações patrimoniais,
precisamente sob os influxos de uma dimensão objetiva dos direitos fundamentais e sua força
irradiante a partir do texto constitucional, para todo o ordenamento jurídico, conforme visto
no capítulo III do presente estudo.
Quanto à previsão estabelecida no art. 51, IV, do Código de Defesa do Consumidor, a
mesma tem âmbito de atuação mais extenso do que a exceptio doli generalis do Direito
romano, o que, aliás, já foi demonstrado anteriormente, quando analisado o princípio da boa-
fé na Alemanha.
O referido artigo trata de determinar as cláusulas contratuais consideradas abusivas. Do
disposto no aludido dispositivo, verifica-se que a abusividade pode ser detectada tanto a partir
da principal obrigação pactuada, como também a partir da violação de deveres de conduta
anexos ou acessórios, impostos pela boa-fé objetiva.
73
72
Sobre a prevalência de princípios existenciais sobre situações patrimoniais, ver a obra de Teresa Negreiros
(2002, p.29), na qual a autora propõe uma nova classificação dos bens a partir do que chama de paradigma da
essencialidade, segundo o qual o critério que deve ser utilizado para a distinção dos contratos é o da
imprescindibilidade e utilidade do bem existencial contratado, substituindo-se o critério de sua utilidade
exclusivamente patrimonial. É o que se depreende do trecho a seguir transcrito: “a intenção desta pesquisa é
relacionar algumas das mais importantes inovações que a teoria contratual vem sofrendo - mediante o estudo dos
chamados “novos princípios do contrato”: boa-fé, equilíbrio econômico e função social [...] Com base em tais
princípios e na metodologia que os mesmos encarnam, propõe-se o reconhecimento do paradigma da
essencialidade [...], procurando-se demonstrar a sua utilidades como meio de adequação da dogmática contratual
à ordem civil-constitucional.
73
Nesse sentido merece destaque o entendimento de Cláudia Lima Marques (2002, p.788) ao propor a
sistematização dos vários tipos de cláusulas abusivas inseridas no art. 51 do CDC, o que faz nos seguintes
termos: “se na quarta edição identificamos 15 tipos de cláusulas identificados pela jurisprudência, agora,
gostaríamos de organizá-las conforme a dogmática alemã, isto é, partindo da cláusula geral de boa- para
identificar o abuso. Se a abusividade nas cláusulas é violação de um dever de conduta (anexo, acessório ou
principal) imposto pela boa-fé ou é a autorização contratual para uma prática que viole a boa-fé objetiva, que
deve guiar todas as condutas dos fornecedores perante os consumidores.” E conclui a citada civilista,
129
No que tange ao novo Código Civil brasileiro, Lei n. 10.406, de 10 de janeiro de 2002, a
boa-fé objetiva foi incorporada em três dispositivos diferentes, a saber: os arts. 113, 187 e
422, com três funções básicas. A primeira função, inserida no art. 113, é a de ser uma norma
de interpretação dos negócios jurídicos. Reza o referido dispositivo que os negócios jurídicos
devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração. Na atividade
interpretativa, conforme ensina Judith Costa (2002, p.61), a boa-fé tem a função de restringir
a autonomia da vontade, impondo certos deveres nem sempre presentes nas declarações de
vontade,limitando o exercício de direitos na formação e execução dos contratos, reforçando
o poder das declarações negociais no seu sentido habitual”.
A boa-fé como cânone interpretativo deve considerar a “finalidade da relação jurídica
sub judice, e, neste (sic) sentido, condicionar a sua interpretação às circunstâncias concretas
do caso em exame na medida em que reveladoras desta (sic) finalidade” (NEGREIROS, 1998,
p.233). Assim, a boa-fé como regra de interpretação deve seguir a finalidade da relação
jurídica à luz das circunstâncias concretas, mas sempre lembrando que o princípio da boa-
não permite, em sua concreção, a existência de parâmetros prévios, tamanha é a importância
das circunstâncias específicas de cada caso concreto.
Conforme ensina Menezes Cordeiro (2001, p.649), nessa perspectiva a boa-fé objetiva
tem uma natureza supletiva tendencial”, significando que não é possível determinar-se, em
termos abstratos, áreas imunes à boa-fé, pois “ela é susceptível de colorir toda a zona de
permissibilidade, actuando ou não consoante as circunstâncias”. Daí porque conclui o autor
português que a boa-fé “reduz a margem de discricionariedade da actuação privada, em
função de objetivos externos”. (CORDEIRO, 2001, p.649)
Ressalte-se, pois, dos comentários acima colacionados que na função de cânone
interpretativo dos contratos, a boa-fé deve ser analisada sob uma perspectiva teleológica, ou
seja, a partir das expectativas das partes quanto à produção dos efeitos dos pactos, sendo então
vedados atos que sejam prejudiciais ou estranhos a essa produção de efeitos desejada pelas
partes. A feliz conclusão de Menezes Cordeiro (2001, p.649) “a boa não contemporiza,
pois, com cumprimentos formais; exige, numa atitude metodológica particular perante a
realidade jurídica, a concretização dos escopos visados”.
apresentando o que chama de ponto “c” das cláusulas abusivas: “c.l) as que violam deveres principais de
prestação ou deveres impostos pelo CDC, c.2) violam deveres anexos de cooperação; c.3) violam deveres anexos
de informação; c.4) violam deveres anexos de cuidado, deveres auxiliares ou anexos ã prestação principal.
130
Ainda sobre o tema, impende destacar que essa finalidade a que remonta a boa-fé como
cânone de interpretação dos contratos não deve ser posta em termos individuais, mas em
termos sociais, o que pode impor deveres que não necessariamente têm origem na vontade das
partes. Essa a opinião de Teresa Negreiros (1988, p.235), com a qual se concorda, e que se
encontra vazada nos seguintes termos:
Deve-se anotar que esta finalidade é posta em termos sociais, e não individuais,
donde se justifica que a sua consideração resulte em deveres não necessariamente
reconduzíveis à vontade das partes. Na verdade, mesmo quando limitada
aparentemente a uma função interpretativa, a boa-fé acaba por configurar-se como
uma fonte de deveres ou de limitação a direitos subjetivos.
Dando prosseguimento à análise das funções da boa-fé no Código Civil brasileiro, tem-
se que no art. 187, que se encontra assim redigido, “também comete ato ilícito o titular de um
direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo fim econômico ou
social, pela boa-fé e pelos bons costumes”, a boa-fé caracteriza-se como limite para o
exercício de um direito subjetivo, pois aquele que for exercido em desconformidade com a
boa-fé será caracterizado como ilícito.
74
Essa função limitadora do exercício de direitos subjetivosveda ou pune o exercício de
direito subjetivo quando caracterizar abuso da posição jurídica” (AGUIAR JÚNIOR, 1991, p.
248)
75
.
É justamente no âmbito dessa função limitadora que são estudadas as situações do
venire contra factum proprium, tu quoque, suppressio e surrectio. Para Teresa Negreiros
(2002), a função limitadora da boa-fé objetiva em relação ao exercício de direitos subjetivos,
na tradição da Europa continental, resulta na teoria dos atos próprios. Por tratar-se de resumo
extremamente feliz, vale transcrever a lição da mencionada professora:
de uma forma geral, a teoria dos atos próprios importa reconhecer a existência de
um dever por parte dos contratantes de adotar uma linha de conduta uniforme,
proscrevendo a duplicidade de comportamentos, seja na hipótese em que o
comportamento posterior se mostrar incompatível com atitudes indevidamente
tomadas anteriormente (tu quoque), seja na hipótese em que, embora ambos os
comportamentos considerados isoladamente não apresentem qualquer
irregularidade, consubstanciam quebra da confiança se tomados em conjunto (venire
contra factum proprium). (NEGREIROS, 2002, p.142)
74
Sobre as críticas formuladas ao referido dispositivo, ensina Judith Costa que o mesmo tem caráter objetivo e
prescinde de comprovação de dolo ou culpa, mas que o titular exceda os limites impostos pelo fim económico ou
social, pela boa-fé e os bons costumes. (MARTINS-COSTA; BRANCO, 2002, p.62-63).
75
Ruy Rosado Aguiar Júnior (1991, p.248) colaciona como exemplo de limitação do exercício de direito
subjetivo a proibição do exercício de resolver o contrato por inadimplemento, ou de suscitar a exceção do
contrato não cumprido quando o incumprimento é insignificante, em relação ao contrato total. Trata-se do
princípio do adimplemento substancial, que, segundo o citado autor, deriva da boa-fé e “exclui a incidência da
regra legal que permite e resolução quando não observada a integralidade do adimplemento”.
131
Sobre o venire contra factum proprium, este significa a proteção contra a atuação
contraditória da parte em relação a um comportamento assumido anteriormente. Segundo Ruy
Rosado Aguiar Jr. (1991, p.248), “depois de criar uma certa expectativa, em razão de conduta
seguramente indicativa de determinado comportamento futuro, quebra dos princípios de
lealdade e de confiança se vier a ser praticado ato contrário ao previsto, com surpresa e
prejuízo à contraparte”.
76
Explicitando o princípio, Menezes Cordeiro (2001, p.745) explicita
que o venire contra factum proprium enseja dois comportamentos da mesma pessoa, lícitos
em si e diferidos no tempo”. Todavia, o primeiro, o factum proprium, é contraditório em
relação ao segundo.
Não obstante, adverte Teresa Negreiros (2002, p.147) que não basta afirmar-se que o
princípio do venire contra factum proprium consubstancia o exercício de uma posição jurídica
em contradição com o comportamento anterior que enseja a quebra da boa-fé porque se volta
contra as expectativas criadas, pois não são todas as expectativas criadas na outra parte
contratante que são contrárias à boa-fé, mas apenas aquelas que “à luz das circunstâncias do
caso, estejam devidamente fundadas em atos concretos (e não somente em indícios)
praticados pela outra parte, os quais, conhecidos pelo contratante, o fizeram confiar na
manutenção da situação assim gerada”. Nessa linha, a boa-fé objetiva pode ser invocada como
forma de preservar o contratante que sofreu prejuízos com a quebra da confiança por parte do
outro contratante que agiu de forma injustificada.
Já em relação ao tu quoque, ensina Menezes Cordeiro (2001, p.837) que se trata de uma
fórmula que traduz “com generalidade, o aflorar de uma regra pela qual a pessoa que viole
uma norma jurídica não poderia, sem abuso, exercer a situação jurídica que essa mesma
norma lhe tivesse atribuído”. Assim, o contratante que descumpriu norma, seja contratual, seja
legal, não pode, posteriormente, exigir do outro contratante que cumpra a norma que eleja
descumprira, sob pena de afronta à boa-fé objetiva.
77
O princípio inspirador do tu quoque é, em última análise, o mesmo que inspira o
76
Como exemplo cita Ruy Rosado Aguiar Jr. (1991, p.249) aquele que vende um estabelecimento comercial e
auxilia, por alguns dias, o novo comerciante, inclusive preenchendo pedidos e novas encomendas, fornecendo
seu próprio número de inscrição fiscal, não pode depois cancelar tais pedidos sob o fundamento do uso indevido
de sua inscrição. Outro exemplo diz respeito ao credor que concordou, durante a execução do contrato de
prestações periódicas, com o pagamento em lugar ou tempo diverso do convencionado, não pode surpreender o
devedor com a exigência do cumprimento literal da avença.
77
Como exemplos de tu quoque cita Ruy Rosado Aguiar Jr. (1991, p.250) o caso de condômino que viola regra
do condomínio e deposita móveis em área de uso comum, ou a destina para uso próprio, não pode exigir do outro
comportamento obediente ao preceito. Ou ainda, quem está em mora, ao tempo em que sobrevêm
circunstâncias modificadoras da base do negócio, não pode pretender a revisão ou resolução judicial.
132
princípio da exceção do contrato não cumprido, qual seja, o de preservação do sinalagma
genético nos contratos bilaterais, pois se o equilíbrio contratual deve ser preservado nos
termos da avença pactuada, não se pode permitir que o contratante faltoso pretenda obter
qualquer vantagem a partir da sua própria falta. E nessas hipóteses pode haver invocação da
boa-fé objetiva com vistas à preservação do sinalagma original.
No que concerne à suppressio, tem-se que “um direito não exercido durante um
determinado lapso de tempo não poderá mais sê-lo, por contrariar a boa fé”
78
(AGUIAR
JÚNIOR, 1991, p.249). Menezes Cordeiro (2001, p.799) ensina que a suppressio teve origem
na jurisprudência, sendo suas manifestações mais antigas constatadas no domínio da venda de
ofício comercial. A favor do comprador, nas seguintes circunstâncias:
A questão esquematiza-se desta forma: os §§ 346 ss. HGB, na versão em vigor na
altura, permitiam ao vendedor na compra e venda comercial, havendo mora do
comprador no levantamento da coisa, a sua venda de ofício, atribuindo-lhe, ainda,
uma pretensão pela diferença do preço. A lei não fixava, porém, um prazo para o
exercício destas faculdades. Podia, pois acontecer que o vendedor, dando a
impressão de se ter desinteressado do contrato viesse, mais tarde, inesperadamente, a
actuar as pretensões, de modo ruinoso para o comprador. Entendeu-se, bem, haver
aí, em certas circunstâncias, uma demora desleal no exercício do direito, contrária à
boa-fé.
A consagração dogmática da suppressio dar-se-ia, entretanto, de forma definitiva, a
partir das perturbações econômicas causadas pela Primeira Grande Guerra Mundial, em
alguns casos em razão do desequilíbrio extremo entre as partes, advindo do exercício
retardado de alguns direitos, somado à alteração imprevisível nos preços de certas
mercadorias; em outros, funcionando como um contrapeso do interesse do devedor em relação
ao direito de revalorização monetária do credor. Mais uma vez, vale-se da expressão de
Menezes Cordeiro, que com a precisão peculiar, assim explicou esse fenômeno:
A revalorização monetária conta-se entre os avanços mais significativos
proporcionados pela boa à Ciência do Direito. Na sua base está a superação, por
razões sociais imperiosas, do princípio nominalista, fixado por lei, através de pura
acção jurisprudencial. Admitindo a possibilidade de revalorização monetária, por
força da inflação, o RG protege, no essencial, a posição do credor. A suppressio vai
funcionar como contrapeso dessa protecção, assegurando, desta feita, o interesse do
devedor: a boa requer pela equivalência das prestações e pelo equilíbrio das
situações das partes, que se proceda a reajustamentos destinados a compensar a
depreciação monetária (CORDEIRO, 2001, p.801).
a surretio é definida por Ruy Rosado Aguiar Jr. (1991) como a outra face da
suppressio e consiste no nascimento de um direito, sendo nova fonte de direito subjetivo,
78
O comprador que não retira as mercadorias não pode depois obrigar ao vendedor a guarda dos bens por tempo
indeterminado; o contrato de prestação duradoura, que tenha passado sem cumprimento durante longo tempo,
por falta de iniciativa do credor, não pode ser exigido, se o devedor teve motivo para pensar extinta a obrigação e
programou sua vida nessa perspectiva. Exemplos de Ruy Rosado Aguiar Jr. (1991, p.249).
133
conseqüente à continuada prática de certos atos”. Menezes Cordeiro (2001) preleciona que
quem desenvolveu a noção de surretio foi Jürgen Schmidt, analisando a possibilidade de
discrepância entre o sentido social de uma regulação jurídica e a efetividade social e a
tentativa que faz o Direito de eliminar essa discrepância. Nesse contexto, Menezes Cordeiro
(2001, p.816) assim resume o pensamento de Jürgen Schmidt:
Para Jürgen Schmidt, as regras codificadas quanto ao influxo da efectividade sobre a
regulação jurídica constituem, até pela sua diversidade, legis speciales. Sobre elas,
como complementação do Direito legislado, ergue-se a lex generalis, susceptível de
revestir dois aspectos: ora faz desaparecer um direito que não corresponda à
efectividade social é a suppressio ora faz surgir um direito não existente antes,
juridicamente, mas que, na efectividade social, era tido como presente – é a surretio.
Por fim, retomando as funções da boa-fé previstas no Código Civil brasileiro, tem-se o
art. 422, que determina: “os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do
contrato, como em sua execução, os princípios da probidade e boa-fé.” Tal preceito, que deve
informar todos os contratos, uma vez que se encontra nas disposições gerais do capítulo,
estabelece uma norma de conduta para os contratantes, a ser observada durante todo o
processo obrigacional. Fixa assim o novo Código uma base ética para o cumprimento dos
contratos, que resgata a noção de solidariedade e respeito às expectativas dos contratantes no
direito contratual.
Além da função integradora da obrigação, a boa-fé apresenta-se ainda como fonte de
direitos e obrigações, também chamados deveres secundários ou anexos, os quais atuam desde
a fase de formação do contrato. Tais deveres oriundos da aplicação da boa-fé objetiva
remontam à necessidade de cooperação e proteção dos interesses recíprocos, ínsitos na relação
obrigacional. Sobre a questão comenta Clóvis do Couto e Silva (1976, p.39) que, em termos
gerais,
no contrato o dever bilateral de proteção. que impede que uma das partes cause à
outra algum dano, em razão da sua atividade. Existem, assim, deveres do credor, que
não são deveres para consigo mesmo, mas sim deveres jurídicos. Muitos deles
consistem em conduta determinada, em comunicar algo, em indicar alguma
circunstância, em fornecer informações, cuja omissão pode causar dano ao outro
figurante.
O primeiro aspecto que deve ser ressaltado em relação aos deveres acessórios impostos
pela boa-fé objetiva à relação obrigacional diz respeito ao fato de que tais deveres não têm sua
origem necessariamente na vontade dos contratantes. Esse o entendimento de Menezes
Cordeiro (2001, p.615) ao afirmar que:
Os deveres acessórios de proteção nada têm a ver com a regulação contratual e com
a sua execução fiel pelas partes. Visam, na verdade, obstar a que, na ocasião do
134
efectivar das prestações e dadas as possibilidades reais de agressão e ingerência
provocadas por essa conjuntura, as partes se venham a infligir danos mútuos. A
relação com o contrato, caso exista e seja ela qual for, não explica nem orienta esses
deveres: eles radicam em níveis diversos da ordem jurídica, profundos sem dúvida,
mas alheios à autonomia privada.
Na visão de Jorge César Ferreira da Silva (2002, p.54),
os deveres decorrentes da boa-fé podem [...] não ser declarados pelas partes, não ser
por elas queridos ou ser por elas totalmente desprezados. Não obstante, participarão
do conteúdo jurídico da relação, assim como participa desse conteúdo toda
normatividade legal (em sentido estrito) não declarada ou querida pelas partes.
Isso porque toda obrigação envolve um complexo de relações jurídicas voltadas para o
adimplemento do ajuste feito entre as partes. Entretanto, a relação jurídica obrigacional enseja
duas espécies de deveres, quais sejam, deveres de prestação e deveres de proteção ou deveres
genéricos de conduta.
Nessa toada, verifica-se que toda relação obrigacional possui deveres que a
identificam, centrados na espécie de prestação que a obrigação em questão veicula” (SILVA,
2002, p.70). Esses deveres são aqueles que identificam o tipo de obrigação assumida e são
chamados de deveres principais. Ao lado dos deveres principais, existem aqueles que também
dizem respeito diretamente à prestação, mas que não apresentam qualquer particularidade
que as individualize” (SILVA, 2002, p.71). Esses são os chamados deveres secundários,
também denominados na doutrina como laterais, instrumentais ou anexos.
79
Sobre a natureza dos mencionados deveres acessórios, afirma Menezes Cordeiro (2001,
p. 641) que se obteve uma certa unidade “em torno da sua natureza legal”. Já para Jorge César
Ferreira da Silva (2002), grande parte da doutrina tem sustentado a natureza contratual dos
deveres laterais, incluídos os deveres de proteção, principalmente em razão da atuação do
princípio da boa-fé como regra de colmatação da normatividade obrigacional, deslocando-se a
questão central do tema da seara da identidade de tais deveres para os limites da
contratualidade de deveres que não diretamente se vinculam à realização da prestação
primária ou secundária” (SILVA, 2002, p.88), com o propósito de se evitar um alargamento
exagerado dos deveres abrangidos pelo vínculo.
Diante de tal quadro, coube à doutrina sistematizar os deveres acessórios, com vistas a
estabelecer quais aqueles incluídos no vínculo obrigacional, ainda que não ligados
79
Não faz parte do objetivo do presente estudo traçar o histórico do desenvolvimento da noção de deveres
acessórios e suas subdivisões, razão pela qual remetemos à leitura da obras de Menezes Cordeiro, Ruy Rosado
Aguiar Jr. e Jorge César Ferreira da Silva.
135
diretamente ao cumprimento da prestação dos deveres principais.
Em síntese muito feliz, Judith Martins-Costa (1999, p. 439) assim enumerou os deveres
acessórios oriundos da aplicação da boa-fé objetiva: a) os deveres de cuidado, previdência e
segurança; b) os deveres de aviso e esclarecimento; c) os deveres de informação; d) o dever
de prestar contas; e) os deveres de colaboração e cooperação; f) os deveres de proteção e
cuidado com a pessoa e o patrimônio da contraparte; e g) os deveres de omissão e de segredo.
Os mencionados deveres incumbem tanto ao devedor quanto ao credor e, como ensina a
mencionada autora,
não estão orientados diretamente ao cumprimento da prestação ou dos deveres
principais [...]. Estão, antes, referidos ao exato processamento da relação
obrigacional, isto é, à satisfação dos interesses globais envolvidos, em atenção a
uma atividade finalística, constituindo o complexo conteúdo da relação que se
unifica funcionalmente. Dito de outro modo, os deveres instrumentais ‘caracterizam-
se por uma função auxiliar da realização positiva do fim contratual e de proteção à
pessoa e aos bens da outra parte contra os riscos de danos concomitantes’, servindo,
‘ao menos as suas manifestações mais típicas, o interesse na conservação dos bens
patrimoniais ou pessoais que podem ser afetados em conexão com o contrato
(MARTINS-COSTA, 1999, p.440)
Ruy Rosado Aguiar Jr. (1991) apresentando outro critério para a classificação dos
deveres acessórios, afirma que estes podem ser classificados quanto ao momento de sua
constituição, dividindo-se em: a) deveres próprios do momento de constituição do contrato
(de informação, de segredo e de custódia); b) deveres da etapa de celebração do contrato
(equivalência das prestações, clareza, explicitação); c) deveres da etapa do cumprimento do
contrato (dever de recíproca cooperação para garantir os fins do contrato; satisfação dos
interesses do credor); e d) deveres após a extinção do contrato (dever de reserva, dever de
segredo, dever de garantia da fruição do resultado do contrato).
Especificamente no que pertine ao dever de informar, tem-se que o mesmo se
encontrava expresso no antigo Código Civil, no art. 94, que disciplinava a omissão dolosa, e
nos arts. 1.443 a 1.446, que regulavam o contrato de seguro. Com o advento do Código do
Consumidor, várias regras foram incluídas com o escopo de regulamentar o dever de
informação. Entre outras, destaca-se a regra insculpida no art. 6°, III, o qual prescreve como
direito básico do consumidor “a informação adequada e clara sobre os diferentes produtos e
serviços, com especificação correta de quantidade, características, composição, qualidade e
preço; bem como os riscos que apresentam”.
Bem assim, o capítulo relativo às práticas comerciais, regulado pelos arts. 29 e
136
seguintes do Código do Consumidor, estabelece uma série de condutas relativas ao dever de
informação, concernentes à veracidade da oferta e da publicidade.
Como visto, a boa-fé objetiva resta eficazmente disciplinada na perspectiva legislativa,
incumbindo aos juízes a sua realização no âmbito da aplicabilidade ao caso concreto. Essa a
questão a ser tratada no próximo tópico.
5.7 A boa-fé objetiva como parâmetro de observação pelos juízes
A aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, como
salientado anteriormente, está a exigir novas posturas do juiz, com vistas a conceder proteção
a direitos que extrapolam a ordenação privada e não se esgotam no âmbito do Direito Civil,
mas são uma imposição dos dias atuais, principalmente diante da constatação de que o Direito
Civil clássico, mesmo depois da edição do novo Código Civil, não é bastante para fornecer
essa mencionada proteção. Menezes Cordeiro (2001, p.654), em sua obra clássica sobre boa-
fé, chega mesmo a afirmar que “a colocação, no Direito privado, do tema do controle, pelo
juiz, do conteúdo dos contratos, pressupõe o abandono, também no Direito Privado, da
autonomia, como mero dogma formal, e a substituição pela regra da autonomia efectiva”.
Alguns elementos do Direito Civil clássico, mormente igualdade formal, a absoluta
autonomia da vontade, o princípio intangível da força obrigatória dos contratos, não podem
mais servir de parâmetro exclusivo para aplicador do Direito na análise dos casos concretos
postos a sua apreciação. Como lembra Luiz Edson Fachin (2000, p.258),
dada a ligação entre a sociedade e o fenômeno jurídico, não obstante a preocupação
a partir de conceitos, faz-se mister que o operador do direito esteja atento à realidade
circundante; é necessário ter em mente o contexto social e histórico, reconhecendo-
se, então, o conjunto de normas, preceitos, princípios e valores desta sociedade e
deste momento histórico.
Segundo preleciona Clóvis do Couto e Silva (1980, p.53), o princípio da boa-fé
direciona-se, sobretudo, ao juiz, pois o instiga a “formar instituições para responder aos novos
fatos, exercendo um controle corretivo do Direito estrito, ou enriquecedor do conteúdo da
relação obrigacional, ou mesmo negativo em face do Direito postulado pela outra parte”. O
conceito da boa-fé, como conceito aberto que é, exige do juiz a tarefa de adequar a aplicação
judicial aos novos fatos sociais, pois toda cláusula geral permite atividade criadora do mesmo.
No mesmo sentido é o entendimento de Franz Wieacker (1986, p.37), ao analisar a
criação judicial do direito a partir da concretização das cláusulas abertas. Vale transcrever sua
137
lição:
La ética social puede perfectamente establecer máximas hic et nunc, esto es, líneas
directrizes de la conducta social, pero no esquemas normativos de validez general
bajo los cuales pueda subsumirse un determinado supuesto de hecho mediante
juicios analíticos. ‘Buena fe’ o ‘buenas costumbres’ no son moldes acabados, que el
juez calca sencillamente sobre el material que colocado debajo, sino una
extraordinaria tarea que tiene que realizar el próprio juez en la situación
determinada de cada caso jurídico.
Como um princípio que está permanentemente a exigir sua conformação a partir dos
elementos do caso concreto, o princípio da boa-fé objetiva permite ao juiz uma margem de
livre apreciação para sua concreção.
80
A despeito disso, essa livre apreciação em absoluto se
confunde com o arbítrio
81
, pois a missão do julgador é a materialização das valorações ou dos
princípios encontráveis na Constituição, onde ao menos encontra uma direção previamente
traçada pelo legislador.
A boa-fé tem função integradora da obrigação, servindo como fonte de direitos e
obrigações paralelas ao acordo de vontades, a par de servir de vetor de interpretação das
cláusulas do contrato. Segundo lembra Ruy Rosado Aguiar Jr., os voluntaristas insistem em
reduzir o âmbito de atuação da boa-fé nos contratos ao que restou manifesto pelas partes na
avença, mas a aplicação da boa-fé extrapola esses limites, na medida em que a sua utilização
implica a criação da regra para o caso, de acordo com dados objetivos que o próprio caso
apresenta, “atendendo à realidade social e econômica em que o contrato opera, ainda que isso
leve para fora do círculo da vontade” (AGUIAR JÚNIOR, 1995, p.25). Nessa toada,
consoante ensina Clóvis do Couto e Silva (1980, p.54),
o aspecto capital para a criação judicial é o fato de a boa-fé possuir valor autônomo
em relação à vontade. Por ser independente da vontade, a extensão do conteúdo da
relação obrigacional não se mede com base somente nela, e, sim pelas
circunstâncias ou fatos referentes ao contrato, permitindo-se ‘construir
objetivamente o regramento do negócio jurídico, com a admissão de um dinamismo
que escapa, por vezes, até mesmo ao controle das partes.
80
Ensina Maria Cristina Pezzella (1998, p.140) que “a concreção é um método que utiliza padrões, parâmetros
identificáveis para a solução de casos concretos, admitindo um tipo de construção jurisprudencial, pois os
princípios gerais do direito e os conceitos jurídicos indeterminados são pautas de valoração que carecem de
preenchimento valorativo”.
81
José Carlos Moreira da Silva Filho (2003, p.377-378) estabelece etapas para a aplicação de um rigor
metodológico na atuação do juiz para uma correta aplicação do princípio da boa-fé objetiva. Assim, o juiz, ao
deparar-se com uma relação contratual específica, deve: a) analisar o âmbito da norma, isto é de que modo o tipo
de relação contratual se desenvolve no contexto da região e do país, quais as conseqüências de sua aplicação, que
finalidades busca a atingir e quais os efeitos demandados pelos destinatários, qual o influxo que recebe das
dimensões da vida social que lhe são conexas; b) conhecer os que os principais trabalhos doutrinários encerram
sobre o tema; c) pesquisar a jurisprudência pátria e as próprias decisões tomadas anteriormente; d) atentar para
as circunstâncias peculiares do caso sub judice e confrontar com todo esse material produzido, procurando
cimentar em todos esses passos um fluxo coerente, de modo a permitir uma maior clareza e a construção de uma
objetividade, sempre a partir do caso analisado, que se apóia profundamente na própria revelação do fenômeno
jurídico.
138
Nesse passo, a par de facultar ao juiz a determinação da existência de deveres
acessórios, não expressamente previstos pelas partes, mas inerentes à finalidade buscada na
avença, observa-se ainda a necessidade de aplicação de uma máxima de conduta ético-
jurídica, que impede a atuação contrária à boa-fé.
Por força da lealdade a que as partes reciprocamente estão coligadas, não se permite que
o comportamento prévio de uma delas, gerador de justificada expectativa, seja contrariado
posteriormente em prejuízo da outra.
82
Na aplicação da cláusula da boa-fé, o juiz parte do princípio de que toda “a inter-relação
humana deve pautar-se por um padrão ético de confiança e lealdade indispensável para o
próprio desenvolvimento normal da convivência social” (AGUIAR JÚNIOR, 1995, p.25).
De todo o exposto acerca do princípio da boa-e a atuação judicial, resta consignar que
os juristas em geral, e em especial os juízes, na esteira do ensinamento pontificado por Mário
lio de Almeida Costa (1980, p.75), devem ter não a consciência da “missão fundamental
que lhes pertence no encontro da massificação, pluralismo, tecnicismo e tecnocracismo que
caracterizam a sociedade contemporânea, mas, ainda, que saibam ser-lhes possível corresponder
à tarefa solicitada, dispondo de metodologia, normas, conceitos e princípios adequados”. Esse
papel do juiz em face dos fatos concretos se revela a partir da dinâmica da vida, em
contraposição aos sistemas cristalizados representados pelos códigos de leis, pois a vida, na sua
protéica diversidade, constantemente apresenta ao Direito novas ou renovadas exigências de
tutela, assim como reclama a solução de paralelos conflitos de interesses.
E, em correspondência a essas permanentes sugestões e solicitações, também no
mundo axiológico-normativo e da construção dogmática se produzem verdadeiras
descobertas, que não são outra coisa do que tentativas para melhor compreender e
solucionar a realidade jurídica - portanto, ao serviço de mais uma justa e realizada
existência individual e coletiva. Progresso moral acompanhando progresso técnico
(COSTA, 1980, p.75).
É fato que a tradição do Direito Constitucional é mais recente se comparada à tradição
privatista que remonta aos romanos. Tal fato gera uma grande dificuldade para alguns juristas
que trabalham com Direito Civil em aceitar a Constituição como fonte do sistema. Sobretudo
no Brasil, quando se trata de atuação judicial, essa constatação se faz de modo mais
contundente. Tanto é assim que o Ministro José Delgado (2002, p.183), do Superior Tribunal
de Justiça, citando Celso Albuquerque de Mello, afirma que o Poder Judiciário,
82
Excerto colhido da Apelação Cível 589073956, relatado pelo então Desembargador do Tribunal de Justiça do
Rio Grande do Sul Ruy Rosado Aguiar. (BRASIL. Tj, 2007, 0n line)
139
principalmente os tribunais superiores em Brasília, adota uma postura ultrapassada em Direito
Constitucional, sendo que seus integrantes ignoram que o espírito da Constituição de 1988
“era de ser, como dito pelo Presidente da Assembléia Constituinte, Ulisses Guimarães, uma
Constituição cidadã e os nossos Tribunais Superiores transformaram em uma Constituição
reacionária dentro do espírito de seus ministros”.
O fato é que a jurisprudência dos Tribunais brasileiros ainda apresenta-se reticente em
relação à aplicação dos princípios correlatos da dignidade da pessoa humana, da solidariedade
social e da boa fé. Numa pesquisa aos bancos de dados do STF, verifica-se que nos últimos
três anos não foram proferidas decisões que consignassem expressamente a dignidade da
pessoa humana ou a solidariedade social como fundamentos de qualquer decisão.
83
No STJ a
realidade não é mais alentadora, muito embora se possa registrar um número maior de
decisões baseados na dignidade da pessoa humana e no princípio da boa-fé objetiva.
84
Como
exemplos da aplicação do princípio da boa objetiva na resolução ou modificação de
cláusulas contratuais, podem-se destacar os arestos da lavra da Ministra Nancy Andrighi
relativos a contratos de leasing mercantil, com índice de correção em moeda estrangeira,
reconhecendo que a liberação da limitação cambial gerou excessiva desproporção entre os
contratantes na prestação da avença, com a conseqüente quebra do princípio da boa-fé
objetiva.
83
A mencionada pesquisa foi realizada no site oficial de jurisprudência do STF, cujo endereço é www.stf.gov.br.
considerando como critérios de pesquisa as expressões dignidade da pessoa humana e solidariedade social.
84
Pesquisa realizada no site oficial de jurisprudência do STJ, cujo endereço é www.stj.gov.br. considerando
como critérios de pesquisa as expressões dignidade da pessoa humana e boa fé objetiva.
140
Bem assim, em julgamento do RESP 35682 l/RJ, reconheceu a mesma relatora que
deveria ser mantida situação na qual proprietários de duas unidades condominiais faziam uso
de áreas de propriedade comum, exclusivamente, pois eram os únicos com acesso ao local, e
por mais de trinta anos, manutenção devida em respeito à boa objetiva, conforme
demonstrado a partir das circunstâncias concretas do caso.
85
Ainda no âmbito do STJ, convém
destacar a atuação do Ministro Ruy Rosado Aguiar, hoje aposentado, na relatoria de alguns
expressivos precedentes
86
. Entre os mais interessantes é de se mencionar o RESP 272739/MG,
versando a causa sobre alienação fiduciária, tendo sido formulado pedido de busca e
apreensão de veículo. Reconheceu o relator a quebra do princípio da boa fé objetiva, com base
no adimplemento substancial das prestações, pois faltava o pagamento da última apenas.
87
Tratando-se de seguro acidente, em caso em que era discutido o termo a quo para
cobrança do referido seguro, reconheceu o citado relator que a boa objetiva impede que
uma parte alegue contra outra um fato que ela mesma não aceita. A ementa do acórdão está
vazada nos seguintes termos:
Seguro acidente. Invalidez permanente. Prescrição.Termo ‘a quo’.
- A prescrição da ação de cobrança do seguro por acidente no trabalho somente flui
desde a data em que o seguro toma conhecimento inequívoco da existência da
invalidez permanente, através de laudo médico elaborado para esse fim, indicando
causa, sua natureza e extensão, não se considerando suficiente ter realizado
consultas, tratamentos ou recebido diagnósticos.
- Não aceitando a seguradora os dados de que dispunha em seu departamento
médico como suficientes para caracterizar a incapacidade coberta pelo seguro, nem
reconhecendo como bastante o laudo apresentado pelo segurado ao propor a ação, o
que determinou a realização de perícia em juízo, não pode ela invocar aquelas datas
anteriores para a fluência do prazo prescricional, pois se ela mesma não aceita
aqueles fatos como reveladores da incapacidade, não pode esperar que sejam
considerados para a contagem do prazo que marcaria a inércia do titular do direito.
- A boa objetiva, que também está presente no processo, não permite que uma
parte alegue contra a outra um fato que ela não aceita e para o qual exige prova
judicializada. Recurso conhecido e improvido.
88
No âmbito dos Tribunais estaduais, a realidade é muito semelhante, pois se registram
alguns precedentes que tomam como fundamento decisório diretamente o princípio da
dignidade da pessoa humana ou da boa objetiva, sem que os mesmos representem uma
rotina ou se apresentem em número expressivo. É o caso do acórdão proferido na Apelação
Cível 2002.01.1.0453576 - DF, da lavra do Desembargador Mário Machado, versando sobre
contratos conexos de financiamento hipotecário de seguro de vida. No que tange à boa
85
RESP 356821/RJ. Rel Min. Nancy Andrighi, 3ª. Turma, DJ de 5/08/2002.
86
Conferir também o AGA 47901/SP; 4ª. Turma, DJ de 31/10/1994, sobre furto de estacionamento.
87
RESP 272739/MG. Rel: Min. Ruy Rosado de Aguiar. 4ªTurma.
88
DJ de 2/4/2001. RESP 184573/SP. 4*Tunna. DJde 15/03/1999.
141
objetiva, assim se manifestou:
O princípio da boa objetiva, consagrado na legislação consumerista, e, agora,
também, no Código Civil (art. 422), entre outras, na moderna teoria contratual,
possui a função de fonte de novos deveres especiais de conduta durante o vínculo
contratual, os denominados deveres anexos. São eles os deveres de informação, de
cooperação e de cuidado. Interessa, no caso, o segundo, o de cooperação. Por este
dever, o contratante, na execução do contrato tem a obrigação de colaborar para o
cumprimento do contrato, conforme o paradigma da boa objetiva, agindo com
lealdade e transparência, não impedindo ou obstruindo a normal consecução das
finalidades contratuais.
Entretanto, mesmo com todos os precedentes jurisprudenciais citados, o fato é que
comparando-se o número de excertos encontrados com o número de precedentes localizados,
estes ainda são minoria, considerando-se o universo pesquisado. Esse fato não passa
despercebido à doutrina que reconhece a timidez da aplicação do princípio da boa fé, como se
depreende da opinião de Teresa Negreiros (2002, p.21), ao firmar que “ainda pouco veiculada
pela doutrina e pela jurisprudência nacionais, a tutela da dignidade da pessoa humana é
expressamente invocada pela jurisprudência em outros países”
No mesmo sentido a lição de Ruy Rosado Aguiar Jr. (1991, p.159) ao aduzir que a
prática judiciária brasileira é arredia ao uso de cláusulas gerais, tratando da boa objetiva,
bem como se apresenta amplamente dominada pelo dogma da supremacia da vontade.
Não obstante, é no texto constitucional que se encontram os objetivos, princípios e
valores que devem permear todo o ordenamento jurídico. Urge reconhecer-se que o Direito
Civil não é politicamente neutro, como preconizou o projeto liberal, e que a Constituição
aplica-se diretamente às relações entre os particulares.
A releitura funcionalizante dos institutos clássicos do Direito Civil, a partir dos
princípios constitucionais, traz em si a noção de que a idéia de que os sujeitos são iguais e
livres não atende mais às necessidades da sociedade atual. Dessa forma, assim como os
direitos fundamentais assumem uma função tutelar, não contra o Estado, mas contra todas
as formas de seu amesquinhamento, também assim o Direito Civil assume a mesma feição
tutelar. Onde antes reinava absoluto o indivíduo, sua liberdade e sua vontade, imperam agora
a pessoa, sua dignidade e solidariedade em relação aos demais integrantes da sociedade.
Mas o que significa, na prática, essa função tutelar e como compatibilizá-la com a
autonomia da vontade, que ao fim e ao cabo, ainda se apresenta como postulado fundamental
do Direito Civil? Na verdade, partindo do princípio fundante da dignidade da pessoa humana,
142
é que se fará o equacionamento entre a vontade individual e a solidariedade social,
acentuando-se a “dimensão social dos valores individuais” (NEGREIROS, 2002, p. 38).
Na lição de Teresa Negreiros (2002, p.93), a textura aberta dos princípios
constitucionais em comparação à técnica predominantemente casuística presente nos Códigos
faz com que a valorização da Constituição contribua para “a renovação das técnicas de
interpretação que passam a ser utilizadas pelo intérprete do direito civil”. E essa propalada
mudança de postura no sentido de uma maior efetividade das normas constitucionais passa,
necessariamente, pelo impulso da militância jurídica, aqui compreendida não só a
magistratura, mas membros do Ministério Público, defensores públicos, advogados,
professores de direito, entre outros.
Quando se considera a boa-fé e a tarefa dos juízes, conclui-se que há, na aplicação do
mencionado princípio, uma verdadeira criação do Direito por parte do juiz, sempre vinculada
à pauta axiológica fixada pela Constituição, pois ao juiz não é dado, na sociedade atual, fixar-
se somente no princípio da estrita legalidade, que, como foi visto anteriormente, assume, nos
dias de hoje, novos contornos. E mais, as categorias e conceitos do Direito Civil devem ser
preenchidos pelos valores constitucionais, principalmente a partir da força normativa atribuída
aos seus princípios, pois isso impõe ao aplicador do direito “a tarefa de reordenar
valorativamente o direito civil”. (NEGREIROS, 2002, p.56). Vale, por absolutamente
oportuna, a afirmação de Teresa Negreiros (2002, p.56-57), a seguir transcrita:
A leitura do direito civil segundo o modo de ver constitucional concebe o intérprete
e aplicador do Direito como protagonista da reconstrução do sistema jurídico, não
mais centrado no Código, mas na Constituição. Neste (sic) contexto tem-se bem a
medida da importância dada ao intérprete, a quem compete, nas palavras
convidativas de Pietro Perlingiere, a elaboração de um sistema fundado nos valores
presentes no ordenamento jurídico vigente.
E sob essa perspectiva, tem-se que o reconhecimento da aplicação dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares assume uma função decisiva em se tratando da
aplicação do princípio da boa pelos Tribunais brasileiros. Essa aplicação dos direitos
fundamentais na esfera interprivada se não nos moldes do Direito Civil e seus contornos
clássicos, mas a partir do arcabouço constitucional e, somente a partir da difusão desse
entendimento, é que se terá o efetivo reconhecimento da dignidade da pessoa humana como
princípio reorientador das relações patrimoniais.
143
CONCLUSÃO
Os direitos fundamentais, conforme restou assentado, são uma conquista histórica,
previstos em uma ordem constitucional específica e se constituem no grande desafio do
Direito Constitucional moderno, pois mais do que reconhecê-los, importa hoje saber como
torná-los efetivos. Como impedir que, a despeito das declarações solenes, esses direitos sejam
violados.
Ditos direitos caracterizam o “direito” de um Estado Democrático e, apesar de terem
sido caracterizados em princípio como direitos de defesa contra o Estado, hoje se
transformaram nos princípios basilares da ordem jurídica, transformando, assim, o conteúdo
das liberdades individuais ou subjetivas no conteúdo de normas fundamentais que penetram e
moldam o direito objetivo.
Parte-se, pois, da análise de algumas vertentes teóricas da dogmática dos direitos
fundamentais, para, em seguida, s realizar um estudo histórico desses direitos, considerando
não somente a importância hermenêutica de tal abordagem, mas também o fato de que seu
surgimento remonta ao surgimento do moderno Estado constitucional, no seio do qual se
reconhece e se busca assegurar a dignidade da pessoa humana.
Conforme visto no decorrer da pesquisa, de grande importância para o estudo realizado
é a mudança do paradigma liberal, segundo o qual os direitos fundamentais possuíam uma
dimensão apenas subjetiva, cujo parâmetro era tão-somente a liberdade e autonomia do
indivíduo, em sua perspectiva formal e abstrata. Segundo esse modelo, ao Estado era
cometida a tarefa de resguardar a liberdade individual, abstendo-se de interferir na esfera
pessoal dos cidadãos, sendo que os direitos fundamentais representavam uma garantia contra
a ingerência do Estado na liberdade individual.
Sob os influxos dos processos de socialização e democratização, a liberdade
paulatinamente passou a ser conceituada como um valor social, passando o Estado a assumir a
tarefa de assegurar, além de respeitar, o efetivo exercício da liberdade individual.
Demonstrou-se que os direitos fundamentais assumem uma dimensão objetiva,
significando que não podem ser vistos apenas da perspectiva do indivíduo, mas valem
juridicamente do ponto de vista da comunidade, como valores ou fins consagrados por seus
integrantes.
Consectário direto da dimensão objetiva dos direitos fundamentais foi o reconhecimento
de sua eficácia irradiante, ou seja, os valores manifestos nos direitos fundamentais exercem
influência por todo o ordenamento jurídico, apresentando-se como vetor de interpretação das
normas legais e vinculando o legislador, a administração e o Judiciário.
Dessa forma, o Direito Privado, antes o grande baluarte da liberdade individual, agora
passa a ser interpretado à luz dos princípios constitucionais, ensejando um arrefecimento da
distinção público/privado. A Constituição situa-se no ápice do ordenamento jurídico, acima,
portanto, das demais normas, principalmente porque incorpora o sistema de valores essenciais
de convivência da sociedade, que informa a interpretação desse ordenamento.
Nesse contexto é que se desenvolveu a presente pesquisa, pois de um lado reconhece-se
a necessidade de se proteger o indivíduo não somente contra o Estado, mas contra todas as
formas de agressão, ainda que advindas de entes privados. De outro, conclui-se que é
imperiosa uma renovação e funcionalização do Direito Civil, a partir da valorização da pessoa
humana e com vistas à criação de uma sociedade livre, mais justa e solidária. Isso tudo sem
desconsiderar o sistema próprio do Direito Privado e a existência ainda da autonomia da
vontade.
A aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares apresenta-se,
assim, a partir de uma dupla abordagem, sendo a primeira que considera os direitos
fundamentais como princípios constitucionais, com dimensão objetiva, que não podem deixar
de ser aplicados em toda a ordem jurídica, inclusive no Direito Privado, e uma segunda
abordagem que privilegia a noção de que a necessidade de proteger os indivíduos não
somente contra o Estado, mas, de igual forma, contra outros indivíduos ou entidades privadas
que sejam equiparadas a poderes quer jurídicos, quer de fato. Como ficou demonstrado, o
poder, como manifestação de desigualdade, não é prerrogativa do Estado, mas inerente e
disseminado na sociedade.
145
Os direitos fundamentais são normas de caráter obrigatório e não valores que expressam
relações de preferência. Desconhecer as relações assimétricas de poder nas sociedades
contemporâneas significa pêr em risco a própria teleologia dos direitos fundamentais: a
liberdade individual fica ameaçada diante da desigualdade entre a força daqueles que
controlam os mercados de produção e de consumo e a debilidade dos excluídos desse
processo.
Na verdade, forçoso é reconhecer que as ameaças advindas do Estado são hoje cada vez
menores se comparadas às ameaças oriundas da própria sociedade. Acresça-se a isso o fato de
que as decisões do poder público são controladas pelo Judiciário, o que nem sempre acontece
com as interferências do poder privado, que tende a receber uma parcela de impunidade, em
nome da autotutela dos interesses privados.
Por tudo isso se reconhece a aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares, justificando-se a extensão desses direitos às relações privadas pela premência de
proteção contra os abusos do poder privado.
Bem assim, é possível a convivência da racionalidade própria do Direito Privado com as
técnicas de proteção dos direitos fundamentais, que buscam regular situações concretas da
vida, quer se admita a aplicação imediata dos direitos fundamentais nas relações entre
particulares, quer se admita essa aplicação de maneira apenas mediata.
O reconhecimento da dimensão objetiva dos direitos fundamentais e sua força
irradiadora no ordenamento jurídico fazem arrefecer a dicotomia eficácia imediata/mediata,
nos termos apresentados na pesquisa, em nome do reconhecimento de que as soluções devem
ser apresentadas no caso concreto. Ou seja, não existem fórmulas apriorísticas, uniformes e
definitivas para se determinar se os direitos fundamentais têm aplicação direta nas relações
privadas ou aplicação indireta, por intermédio da atuação do legislador e do juiz no processo
de concreção das cláusulas gerais e dos conceitos indeterminados. O fato é que se reconhece
possibilidade de aplicação dos direitos fundamentais nas relações entre particulares, sendo
que, independentemente de se admitir uma aplicação imediata ou somente mediata, da
perspectiva prática, em ambos os casos a necessidade de ponderação de elementos a partir
do caso concreto.
146
Os direitos fundamentais não são normas meramente interpretativas, e sim direito
substancial. Não se dirigem apenas aos governantes, mas a toda sociedade. Assim, opina-se
que sua aplicação no Direito Privado, a partir do princípio da boa-fé objetiva, dá-se dentro da
perspectiva de que os direitos fundamentais são o centro do sistema de valores e constituem-
se como expressão de um modelo de dignidade da pessoa humana. Nesse sentido, os direitos
fundamentais não são de aplicação voluntária ou subjetiva do juiz, mas de aplicação
vinculada, tendo em conta a supremacia das normas constitucionais no ordenamento jurídico.
O princípio da boa- é materializado, sobretudo, na cláusula da boa-fé objetiva, a qual
constitui-se numa cláusula geral que demanda um esforço de concretização do aplicador do
direito, a qual foi positivada em dois diplomas legais recentes: o Código de Defesa do
Consumidor e o novo Código Civil brasileiro. Seu reconhecimento, como ficou demonstrado,
insere-se num processo de retomada da consciência ética no Direito Civil, principalmente no
direito das obrigações, imprimindo novas feições ao cunho patrimonialista e voluntarista que
sempre orientou o estudo desse ramo do Direito. Sua aplicação busca a realização de valores
supremos inseridos no texto constitucional, principalmente a dignidade da pessoa humana.
O princípio da boa-fé objetiva estabelece, sobretudo, a obrigatoriedade de respeito às
expectativas dos contratantes com a realização da avença, antes, durante e depois da
realização do contrato. Possui, assim, uma função integradora da obrigação, que impõe um
dever de lealdade entre as partes.
É ainda fonte de direitos e obrigações acessórias que remontam à necessidade de
cooperação e proteção dos interesses recíprocos na relação obrigacional. Dessa forma,
conclui-se que a relação jurídica não se define mais somente a partir da autonomia da
vontade, mas consubstancia-se como uma relação de cooperação entre as partes, que impõe a
obrigação de agir com lealdade e correção. Por isso, apresenta-se ainda como limitadora do
exercício de direitos subjetivos.
Por fim, verificou-se que a boa-fé objetiva direciona-se, sobretudo, aos juízes, exigindo-
lhes a assunção de novas posturas, com vistas a conceder proteção a direitos que extrapolam a
ordenação privada, mas não se esgotam no âmbito do Direito Civil. Por exigir uma
conformação do Direito a partir dos elementos do caso concreto, a boa-fé possibilita ao juiz
realizar a materialização dos princípios encontráveis na Constituição.
147
Não obstante, a aplicação do referido princípio, tanto quanto a proteção dos direitos
fundamentais nas relações entre particulares, principalmente no caso brasileiro, está a
demandar uma mudança de mentalidade da militância jurídica. a partir do efetivo
reconhecimento e aplicação da dignidade da pessoa humana como centro das ações
interprivadas é que se poderá sonhar com uma sociedade mais justa, mais solidária, que
reconheça no outro um indivíduo também detentor de direitos e de expectativas, merecedor de
respeito. Não basta ao Estado reconhecê-los formalmente; deve buscar concretizá-los,
incorporando-os ao dia-a-dia dos cidadãos para que a eficácia dos direitos fundamentais nas
relações entre particulares tenha por escopo alcançar restrições em que os agentes econômicos
provocam vulnerações aos bens jurídicos tutelados constitucionalmente.
Finaliza-se o presente trabalho homenageando o jurista Paulo Bonavides (2000, p.601),
a quem, com muita propriedade, enfatiza o problema central trazido pelo presente estudo:
Quem governa com grandes omissões constitucionais de natureza material
menospreza os direitos fundamentais e os interpreta a favor dos fortes contra os
fracos. Governa, assim, fora da legítima ordem econômica, social e cultural e se
arreda da tridimensionalidade emancipativa contida nos direitos fundamentais da
segunda, terceira e quarta gerações.
148
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