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Por 1895, não sei bem como, achei-me estudando Direito na Faculdade de Paris, ou
melhor, não estudando. Vagabundo da minha mocidade, após ter tentado vários fins para a minha
vida e de todos igualmente desistido — sedento de Europa, resolvera transportar-me à grande
capital. Logo me embrenhei por meios mais ou menos artísticos, e Gervásio Vila-Nova, que eu mal
conhecia de Lisboa, volveu-se-me o companheiro de todas as horas. Curiosa personalidade essa de
grande artista falido, ou antes, predestinado para a falência.
Perturbava o seu aspecto físico, macerado e esguio, e o seu corpo de unhas quebradas
tinha estilizações inquietantes de feminilismo histérico e opiado, umas vezes — outras,
contrariamente, de ascetismo amarelo. Os cabelos compridos, se lhe descobriam a testa ampla e
dura, terrível, evocavam cilícios, abstenções roxas; se lhes escondiam a fronte, ondeadamente, eram
só ternura, perturbadora ternura de espasmos dourados e beijos sutis. Trajava sempre de preto, fatos
largos, onde havia o seu quê de sacerdotal — nota mais frisantemente dada pelo colarinho direito,
baixo, fechado. Não era enigmático o seu rosto — muito pelo contrário — se lhe cobriam a testa os
cabelos ou o chapéu. Entanto, coisa bizarra, no seu corpo havia mistério — corpo de esfinge,
talvez, em noites de luar. Aquela criatura não se nos gravava na memória pelos seus traços
fisionômicos, mas sim pelo seu estranho perfil. Em todas as multidões ele se destacava, era olhado,
comentado — embora, em realidade, a sua silhueta à primeira vista parecesse não se dever salientar
notavelmente: pois o fato era negro — apenas de um talhe um pouco exagerado —, os cabelos não
escandalosos, ainda que longos; e o chapéu, um bonet de fazenda — esquisito, era certo —, mas
que em todo o caso muitos artistas usavam, quase idêntico.
Porém, a verdade é que em redor da sua figura havia uma auréola. Gervásio Vila-Nova
era aquele que nós olhamos na rua, dizendo: ali, deve ir alguém.
Todo ele encantava as mulheres. Tanta rapariguinha que o seguia de olhos fascinados
quando o artista, sobranceiro e esguio, investigava os cafés… Mas esse olhar, no fundo, era mais o
que as mulheres lançam a uma criatura do seu sexo, formosíssima e luxuosa, cheia de pedrarias…
— Sabe, meu caro Lúcio — dissera-me o escultor, muita vez —, não sou eu nunca que
possuo as minhas amantes; elas é que me possuem…
Ao falar-nos, brilhava ainda mais a sua chama. Era um conversador admirável, adorável
nos seus erros, nas suas ignorâncias, que sabia defender intensamente, sempre vitorioso; nas suas
opiniões revoltantes e belíssimas, nos seus paradoxos, nas suas blagues. Uma criatura superior —
ah! sem dúvida. Uma destas criaturas que se enclavinham na memória — e nos perturbam, nos
obcecam. Todo fogo! todo fogo!
Entretanto, se o examinávamos com a nossa inteligência, e não apenas com a nossa
vibratilidade, logo víamos que, infelizmente, tudo se cifrava nessa auréola, que o seu gênio —
talvez por demasiado luminoso — se consumiria a si próprio, incapaz de se condensar numa obra
— disperso, quebrado, ardido. E assim aconteceu, com efeito. Não foi um falhado porque teve a
coragem de se despedaçar.
A uma criatura como aquela não se podia ter afeto, embora no fundo ele fosse um
excelente rapaz: mas ainda hoje evoco com saudade as nossas palestras, as nossas noites de café —
e chego a convencer-me que, sim, realmente, o destino de Gervásio Vila-Nova foi o mais belo: e
ele um grande, um genial artista.