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Mas ainda assim é uma hipótese interessante, porque trabalha a idéia de que para
que o “princípio do prazer”
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pudesse ser servido seriam necessários vários sacrifícios para o
homem. Tais sacrifícios se concretizam nas normas jurídicas e sociais instituídas para
manter o controle e regular e distribuir a satisfação do prazer. Funcionam como uma
dimensão do superego, regularizando e moralizando as relações humanas.
Assim, as relações de cunho sexual, por exemplo, passaram a ser reguladas, de
forma que a busca pela satisfação não ameaçasse o desenvolvimento social e civilizacional.
Mas a concepção freudiana se aplicava perfeitamente a um mundo moderno,
pautado pela crença no racional
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e esperançoso quanto aos avanços da técnica e a influência
desses avanços no agir moral do homem.
Pois bem, o mundo moderno falhou ao não cumprir as promessas que havia feito. E
o mundo contemporâneo coloca agora em xeque não só a racionalidade e a moral, mas
todas as formas de emancipação humana e construção do social baseados na razão e na
ciência. Ao mesmo tempo essa identificação do inconsciente com a falta de território, com
a ausência de limites para a satisfação pessoal, encontrou no mercado e no consumismo
desenfreado um ambiente propício ao seu desenvolvimento, alimentando a percepção de
que a liberdade está sempre aliada ao consumo e à satisfação imediata das vontades, como
no exemplo do obeso, de que trataremos logo a seguir.
O que na verdade ocorre é a transformação dos consumidores em objetos de
consumo. Em seres sem face devorados pelo Outro perverso do mercado. As concepções
atinentes ao hedonismo e à satisfação das vontades transformam o homem no fugitivo de
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“Estará o Princípio do Prazer, como o chama, realmente acima de qualquer dúvida? Qualquer principiante
que leia Sigmund Freud sabe muito bem que o princípio está não apenas em dúvida, mas que é falso: só o
próprio Freud parecia ocasionalmente imune ao seu próprio ensinamento, preservando uma espécie de estrato
lógico arcaico de uma doutrina anterior. Sabemos por intermédio de Freud – e pela literatura, pela vida – que
o homem muitas vezes procura ardentemente o sofrimento. A doutrina de que o homem procura acima de
tudo a felicidade só pode ser tornada verdadeira por uma definição apropriada, considerando-se “felicidade”
sinônimo de “tudo aquilo que o homem busca”. Neste caso, é claro, a doutrina de que o homem procura a
felicidade e nada mais torna-se necessária e tautologicamente verdadeira: o homem procura o que
procura.”Gellner, Ernest, Antropologia e política: revoluções no bosque sagrado, Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
1997, p.78. A concepção de felicidade que seguiremos é a de felicidade como tudo o que buscamos.
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A própria idéia de inconsciente deriva de uma tentativa de racionalizar a loucura, de fazer a loucura falar,
pois seu silêncio afrontava a razão vigente. Quando se percebeu que seria impossível comprimir a loucura
dentro dos parâmetros racionais existentes, criou-se o inconsciente, essa dimensão onírica e selvagem do
homem, cuja razão não penetra, mas pode ajudar a razão a encontrar muitas respostas. Uma espécie de
vingança da loucura: a mesma razão que tanto quis lhe fazer falar, hoje se pauta pelos seus ditames, se rende
às forças do inconsciente. De qualquer forma a razão livra a cara, não conseguiu fazer falar o louco, porque
ele é “diferente”, mas conseguiu anexar a seu discurso o discurso do psiquismo, do recalcamento, da pulsão,
uma razão que por permitir o “diferente” se considera mais universal do que a razão chamada clássica.