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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS
Programa de Pós-Graduação em Psicologia
A OBESIDADE MÓRBIDA NO CONTEXTO DA PÓS MODERNIDADE:
Um estudo de caso no Hospital da Polícia Militar de Minas Gerais
Larissa Maciel Zambolim
Belo Horizonte
2007
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FICHA CATALOGRÁFICA
Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Zambolin, Larissa Maciel
Z24o A obesidade mórbida no contexto da pós modernidade: um estudo de caso no
Hospital da Polícia Militar de Minas Gerais / Larissa Maciel Zambolin. Belo
Horizonte, 2007.
121f.
Orientadora: Jacqueline de Oliveira Moreira.
Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais, Programa de Pós-Graduação em Psicologia
Bibliografia.
1. Obesidade mórbida. 2. Sintomas clínicos. 3. Sujeito. 4. Transtornos da
alimentação. 5. Globalização. I. Moreira, Jacqueline de Oliveira. II. Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-
Graduação em Psicologia. III. Título.
CDU: 616.39
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Larissa Maciel Zambolim
A OBESIDADE MÓRBIDA NO CONTEXTO DA PÓS-MODERNIDADE:
Um estudo de caso no Hospital da Polícia Militar de Minas Gerais
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Pontifica Universidade Católica de Minas
Gerais, como requisito parcial para obtenção do título de
Mestre em Psicologia.
Orientadora: Jacqueline de Oliveira Moreira
Belo Horizonte
2007
Larissa Maciel Zambolim
A Obesidade Mórbida no contexto da Pós-modernidade: Um estudo de caso no Hospital da
Polícia Militar de Minas Gerais
Trabalho apresentado ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontífica
Universidade Católica de Minas Gerais.
Belo Horizonte, 2007.
______________________________________________________
Prof. Dra. Jacqueline Oliveira Moreira (orientadora) – PUC Minas
______________________________________________________
Prof. Dra. Andréa Maris Campos Guerra – PUC Minas
______________________________________________________
Prof. Dr. Eduardo Dias Gontijo - UFMG
HOMENAGENS
À Deus, por ter me carregado no colo em momentos de angústia.
Aos meus amados pais, pela garra e persistência em me incentivar a continuar caminhando.
Ao Ramon, meu amigo de todas as horas.
AGRADECIMENTOS
Aos meus pais, Laércio e Eunize, pelo exemplo de vida.
À minha irmã Kika, pelo incentivo em amar a vida.
Ao Ramon, por toda disponibilidade e atenção.
À Jacqueline de Oliveira Moreira e Andréa Guerra pelos ensinamentos e paciência.
À Marisa Decat e a Léa Mohallem por me acolhererem e ensinar o que é o desejo de um
analista.
À Elaine Zanolla pelas oportunidades e disponibilidade que me proporcionou.
À Simone Borges e a toda equipe de psicologia do Hospital Mater Dei pelo apoio e força.
À Marília que sempre me estendeu a mão em momentos difíceis.
“A comida é uma das melhores maneiras de compreender uma cultura e os rituais que a
envolvem. Pode-se perceber o panorama de uma cultura pelo prisma da comida.”
(SHOWALTER)
“A nossa ética não foi feita para que nos aliemos ao sujeito no papel que ele escolheu para
si: o de espectador inocente dos acontecimentos que modelam o seu destino.” (TEIXEIRA)
RESUMO
Este trabalho tratou da obesidade enquanto fenômeno epidêmico da pós-modernidade, desenvolvendo um
olhar psicanalítico sobre o problema baseando-se no conceito de novo sintoma. Para desenvolver o tema
assim apresentado, foram formuladas duas hipóteses: o cenário atual não favorece como também
possibilita e potencializa o surgimento da obesidade mórbida em seu caráter de transtorno; a forma tradicional
de tratar o sintoma clássico carece ser contextualizada nos tempos atuais. Em razão das repercussões
psicológicas da cirurgia bariátrica sobre muitos pacientes obesos, que podem ser levados tanto à morte
biológica quanto à morte psíquica, esta pesquisa teve como objetivos principais investigar as implicações
dessa cirurgia no sujeito pós-moderno, o lugar da obesidade em sua economia psíquica e as formas de
aparição de sintoma e transtornos viabilizando a relação do sujeito obeso com a comida e o mercado
capitalista. A metodologia consistiu de uma revisão bibliográfica sobre o assunto e de um estudo transversal
da obesidade em sujeitos obesos candidatos à cirurgia. A metodologia qualitativa utilizou o estudo de caso
realizado através de um testemunho e quatro entrevistas com uma paciente submetida à cirurgia de redução de
estômago. Os resultados do material analisado mostraram uma discrepância entre as promessas feitas pela
cirurgia e seus resultados efetivos, além de revelar incapacidade do sujeito em lidar com a própria realidade
sem o uso de seu corpo obeso, o que contribuiu para a criação de nova forma de doença: o consumismo
desenfreado.
Palavras-chaves: obesidade mórbida, sintoma, pós-modernidade, distúrbios alimentares
ABSTRACT
This work deals with the obesity while epidemic phenomenon of the pos- modernity which develop a
psychoanalytic point of view upon the problem, basing on the concept of new symptom. To accomplish this
subject, two hypotheses were formulated: the current scenery not only favors but makes possible and
potencialize the appearance of the morbid obesity in its disorder character; the traditional form of treating the
classic symptom needs to be contextualized nowadays. Due to the psychological repercussions of the bariatric
surgery on many obese patients, which can be taken to the biological death or the psychic death, this research
had as the main objectives to investigate the implications of that surgery in the post-modern subject, the place
of the obesity in his psychic economy and the forms of symptom appearance and disorder, making possible
the relationship of the obese subject with the food and the capitalist marketing. The methodology consisted of
a bibliographical review on this matter and of a traverse study of the obesity in obese subjects candidates to
the surgery. The qualitative methodology used the case study accomplished through a testimony and four
interviews with one patient submitted to the surgery of stomach reduction. The results of the analyzed
material showed a discrepancy among the promises of the surgery and its effective results, besides revealing
incapacity of the subject in deal with its own reality without the use of its obese body, which contributed to
the creation of a new way of disease: the wild consumption.
Key-word: morbid obesity, symptom, pos-modernity, subject, eating disorder.
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO----------------------------------------------------------------------------
10
2. Bases Discursivas--------------------------------------------------------------------------
16
2.1. Definição da Pós-Modernidade-------------------------------------------------------
16
2.2. Características da Pós-Modernidade e o encontro com a obesidade---------
25
2.3. A obesidade, a técnica e o corpo na Pós-Modernidade--------------------------
29
3. Bases Teóricas------------------------------------------------------------------------------
40
3.1. Definição de sintoma-------------------------------------------------------------------
40
3.2. A concepção freudiana de corpo e a pulsão----------------------------------------
45
3.3. Os efeitos da Pós-Modernidade na produção de sintoma ou outro/novo
sintoma-----------------------------------------------------------------------------------------
53
4. Tratamento dos Dados-------------------------------------------------------------------
66
4.1. Metodologia------------------------------------------------------------------------------
66
4.2. Análise das entrevistas-----------------------------------------------------------------
68
5. CONCLUSÃO-----------------------------------------------------------------------------
75
REFERÊNCIAS------------------------------------------------------------------------------ 81
APÊNDICES e ANEXOS ------------------------------------------------------------------ 86
APÊNDICE A – Questionário das entrevistas------------------------------------------
86
ANEXO A – Permissão do Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital da
Polícia Militar de Minas Gerais-----------------------------------------------------------
89
ANEXO B – Permissão do Comitê de Ética em Pesquisa---------------------------- 90
ANEXO C – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido------------------------- 91
ANEXO D – Transcrição do Testemunho e das entrevistas-------------------- 96
10
1. INTRODUÇÃO
“Esse grande Outro devorador, cuja demanda faz a devastação do sujeito,
tem suas múltiplas figuras de gozo contemporâneo que oferece o
capitalismo pós-moderno. O oferecimento do indivíduo para ser objeto de
consumo, para ‘fazer-se drogar, fazer-se devorar’etc. não faz, senão, dar
consistência a essa boca devoradora anônima, correspondente ao
anonimato e à solisão globalizada de nossso tempo ”. (TARRAB, 2004,
p.61).
Ao atravessarmos o limiar que separava nosso século do anterior, deparamo-nos
com uma outra realidade: o mundo que construímos está longe de ser o que queríamos
construir. Tudo bem, a consciência dessa evidência não é algo tão novo assim, mas a
sensação de irreversibilidade que temos diante dela parece que sim. A doença ambiental, o
aumento assustador no número de excluídos, problemas de saúde física e psíquica cada vez
mais agressivos e infelizmente mais comuns. O ano 2000 era futuro pouco tempo atrás. E
representava, na mente de uma cultura excessivamente voltada para o messiânico, uma
promessa de felicidade. Talvez ainda seja cedo para afirmarmos estar atravessando a noite
de nosso tempo, mas com certeza é tempo de dizer que, assim como numa noite escura,
não sabemos mais para onde ir. Substituímos nossa na razão pela nas máquinas e nos
comprimidos (talvez rebentos extremos dessa fé) e confiamos nossa redenção ao progresso,
como um devedor que tem a certeza de que terá sua dívida perdoada. Em meio a um
cenário evidentemente severo e triste, deparamo-nos com os extremos de nosso tempo: a
desnutrição e a obesidade. Extremos que nos pareciam tão distantes, mas unidos
violentamente pela força do capital e pela estrutura consumista pós-moderna. O obeso
desnutrido é a contradição máxima de um mundo que parece ter a ambigüidade como fonte
de energia para o seu metabolismo.
A obesidade em si não é um problema novo, existindo relatos sobre ela desde a
Antiguidade, mas a proporção epidêmica, já constatada pela Organização Mundial de
Saúde (OMS), atingiu um mal de nossos tempos. Reféns de um mundo caótico deparamo-
nos com países inteiros (EUA) com uma enorme parcela de sua população obesa (estima-se
que cerca de 60% dos norte-americanos sejam obesos). E dentro da gica cruel do
capitalismo, para sustentar essa doença, milhões de pessoas nos países subdesenvolvidos
são condenadas à fome. O que une um oposto ao outro? A desnutrição. Mas mais que isso,
11
todos são vítimas do espírito de nosso tempo Zeitgeist, do vazio de nosso tempo, da falta de
sentido, da liquidez de nossas crenças e de nossas verdades. Somos todos prisioneiros de
um mundo kafkiano, onde se grita para ninguém.
Tratamos da obesidade na ordem da psique. Mas enquanto morbidez de origem
multifatorial, não podemos simplesmente reduzi-la ao problema da organização psíquica do
sujeito. Em nosso trabalho relacionamos as condições sociais do mundo pós-moderno, com
sua organização voltada para o consumo, com as relações de mercado projetadas para as
relações humanas e sua ausência de centro relacionamos com a obesidade. Tentamos
mostrar que a velocidade essencialmente caótica e virtualizada do mundo atual chama a
atenção para uma outra estruturação de um aparelho psíquico diferente do proposto por
Freud em 1920 e gera implicações.
A medicina propõe uma técnica pós-moderna matematizada pelo cálculo do IMC
(Índice de Massa Corporal) para a realização da cirurgia de redução de estômago, a fim de
solucionar o problema que se alastra por todo o mundo. Observamos através da literatura
sucessos na efetivação dessa cirurgia em alguns pacientes com grande quantidade de perda
de peso, além de diminuições das comorbidades e mortalidade da população obesa
mórbida. Mas como todo sucesso vem com insucessos, tem-se observado muitas perdas de
vida também devido a diversas complicações pós-operatórias. Além disso, essa cirurgia
parece implicar em muitas outras questões que têm de ser levadas em consideração: as
repercussões psicológicas, que se não forem trabalhadas ou escutadas podem trazer graves
danos, levando o paciente à morte tanto biológica quanto psíquica, pois não sabemos o que
essa obesidade pode significar para esse sujeito. De uns anos para cá, a utilização de uma
equipe multidisciplinar se tornou obrigatória para tal processo.
Esta pesquisa propõe, portanto, tratar dessas questões considerando como objetivo
geral a investigação das implicações da cirurgia de obesidade mórbida no sujeito da pós-
modernidade pelo desvelamento do lugar que a obesidade mórbida ocupa na sua economia
psíquica. E como objetivos específicos, ou melhor, como temas centrais de nossa pesquisa
situar o contexto pós-moderno e as patologias decorrentes do mal-estar dessa cultura,
articulando-os com a questão da obesidade, perpassando pela teoria psicanalítica através da
metapsicologia do aparelho psíquico dando enfoque ao seu ponto de vista econômico, além
de pontuar os conceitos de pulsão, transtorno, sintoma e sua relação com a obesidade
12
mórbida. Propomos investigar as formas de aparição de sintoma ou transtornos no sujeito
contemporâneo, os caminhos da pulsão, tal como pulsão de vida e de morte, o excesso
pulsional e suas saídas, seja através do transtorno, seja via sintoma, na relação do sujeito
obeso com a comida, e por último o lidar do obeso com a sua imagem corporal antes e pós-
cirurgia.
Este estudo se justifica, principalmente, por abarcar as implicações psicológicas que
o sujeito pode vir a ter quando, submetido a uma cirurgia de redução de estômago, se
deparar com sua nova realidade e que saídas poderá encontrar. Esta pesquisa tornou-se
fundamental ao intuito de formalizar a teoria com a prática, através de uma revisão teórica e
um estudo empírico de estudo de caso.
Este trabalho contém três partes: Bases Discursivas, Bases Teóricas e Tratamento de
dados, subdividas em três capítulos e seus subitens, além da introdução e conclusão. Nas
bases discursivas, tentamos traçar as principais características da pós-modernidade, e como
sua lógica voltada para o consumo e o processamento de tudo considerado como
mercadoria possibilita o surgimento da obesidade enquanto doença epidêmica. A oferta
excessiva de produtos calóricos, somada à incitação midiática ao consumo, possibilita que o
sujeito tente suprir o vazio que sente pelo consumo irracional das ofertas, projetando sobre
as suas próprias experiências de vida a gica do consumo. O sujeito passa a se relacionar
com tudo como um consumidor, engolindo às pressas os momentos que vive, as pessoas
que conhece, enfim, a própria vida e se utiliza da técnica cirurgia da pós-modernidade,
a medicina para não ter de se responsabilizar por suas escolhas.
Tentamos ainda, nesse primeiro momento, traçar o perfil de um mundo que permite
o surgimento do sujeito obeso e mais ainda obeso mórbido ao fazer uma análise, ainda que
não tão profunda, das estruturas que compõem o mundo pós-moderno, como veremos ao
longo de nosso estudo. Regulando todos os processos de convivência através da gica da
mercadoria, o sujeito parece posicionar-se diante do mundo com o intuito único de usufruir
e consumir. que o consumo não diminui seu vazio. Nesse momento ele acaba ganhando
em exterioridade, talvez porque o “fechar-se” sobre si mesmo só tenha agravado seu vazio,
talvez porque o corpo maior, ou mais à mostra, ou o corpo anoréxico, ou o corpo moldado
por cirurgias plásticas, sejam, em seus extremos, mais repletos de possibilidades de sentir.
13
Sentir o olhar do outro, ainda que condenando, talvez preencha talvez a necessidade da
alteridade perdida pela lógica da reificação do consumo.
Reificação que transforma tudo e todos em coisa. O obeso se relaciona com o
mundo como se todo ele fosse algo para se consumir. As pessoas, as experiências, tudo. E
encontra, na gica do mercado capitalista, o campo ideal para esse tipo de relação
reificante. O outro é visto para trazer satisfação, assim como a comida, as experiências. Daí
a gica da purificação pelo consumo que o mercado traz. Separados pelas paredes dos
shoppings, os bons “cidadãos” consomem enquanto a maioria dos outros são alijados do
mundo capitalista e vistos como cidadãos de segunda classe”, presentes ali como reserva
para satisfazer os do primeiro grupo quando suas expectativas ultrapassarem o que as lojas,
com suas paredes higienizadas, podem oferecer.
No turbilhão gerado pela ausência de sentido, o sujeito obeso busca se encher com
tudo, com o consumo da vida em si, hiper-real e virtualizada. Encher-se com o sexo, com o
cheiro, com o toque, com os anúncios, com os circuitos de TV que o vigiam nos centros
lojistas, com os cartazes que pedem cinicamente para sorrir por estarmos sendo filmados.
Nas bases teóricas, através da teoria psicanalítica tentamos problematizar o obeso
mórbido em sua condição de sujeito e/ou assujeitado, abarcando teoricamente a
estruturação do aparelho psíquico, a teoria das pulsões, bem como a teoria sobre os
sintomas proposta por Freud e autores da contemporaneidade. Propomos que a obesidade
mórbida, da forma como se manifesta no atual momento, não é um sintoma, na acepção
clássica do termo para Freud, mas sim um novo sintoma, uma vez que uma das
características do sintoma é a capacidade de simbolizar a realidade, o que não ocorre na
psique do obeso. É justamente a incapacidade que o obeso apresenta de simbolizar sua
relação com o alimento que o leva a ingerir uma quantidade muito maior a que realmente
necessita.
O mundo atual parece apresentar uma nova organização de aparelho psíquico,
impondo a este dar conta de uma quantidade exagerada de excitações, informações e
sensações. Mostra-se impossível, portanto, questionar a obesidade do ponto de vista
psíquico sem se questionar sobre o meio em que esse aparelho psíquico se desenvolve. A
relação entre a sociedade e o surgimento do novo sintoma é bem destacada nesse segundo
capítulo, onde tratamos das características dessa nova forma da psique para lidar com o
14
assalto das forças do mundo pós-moderno ao aparelho psíquico, gerando a partir daí um
transtorno e a economia do trauma. Utilizamos a relação do obeso mórbido com a comida
para melhor explicitar essa questão.
A demonstração dos problemas tratados nas bases discursivas e teóricas se mostram
mais claramente no tratamento dos dados, no qual analisamos o lugar que a obesidade
mórbida ocupa na economia psíquica da entrevistada. Isto é feito através de um estudo de
caso realizado com uma paciente candidata a cirurgia de redução de estômago por meio de
um testemunho e quatro entrevistas realizadas do seguinte modo: uma no pré-operatório, e
as outras três sucessivamente no primeiro, segundo e terceiro mês de pós-operatório. A
cada momento sua postura em relação à obesidade e ao próprio procedimento cirúrgico
parece se mostrar sensivelmente diferente, como veremos nesse estudo.
Enfim, tentamos abordar a problemática obesidade mórbida voltando a atenção para
muito além de um corpo gordo, para um sujeito portador de uma história e que pode
encontrar na psicanálise saídas outras, sem precisar recorrer à técnica da s-modernidade
um procedimento mutilatório disfarçado em uma cirurgia bariátrica que não leva sua
condição de sujeito em consideração.
A condição do obeso é a de um sujeito preso na entropia de si mesmo e cheio de sua
própria subjetividade, refém de um mundo além de seu controle, um ser humano que utiliza
o próprio corpo como armadura, como um outro que estará sempre à sua frente, para que
não necessite enfrentar sua verdade.
Colocando a obesidade mórbida como um novo sintoma, podemos problematizá-la
de forma a buscar uma solução que a teoria clássica dos sintomas parece não oferecer.
Tratando a obesidade como um novo sintoma, tentamos contextualizar o problema em sua
condição de doença da pós-modernidade, procurando argumentar que é necessária uma
nova forma de escuta para que essa questão possa encontrar caminhos outros que não a
técnica da pós-modernidade. Este é o intuito de nosso trabalho.
Nesta pesquisa, portanto, pretende-se aprofundar o estudo sobre as patologias da
pós-modernidade, especialmente no que concernem à obesidade mórbida e suas
implicações para o sujeito, e fazer um contraponto à medicina que propõe que esse sintoma
seja resolvido através da cirurgia de redução de estômago, podendo levar o sujeito a tentar
15
substituir essa compensação a compulsão pelo alimento por outra, ou seja, substituindo
uma doença por outra.
É nesse sentido que se pode chamar a atenção para os casos em que o sujeito passa
por uma cirurgia, começa a ter uma redução de peso rápida e uma conseqüente mudança de
sua imagem corporal e responde a isso com atuações, depressão ou passagens ao ato.
16
2. Bases Discursivas
2.1. Definição da Pós-Modernidade
Temos observado transformações na sociedade contemporânea em decorrência do
processo de globalização, avanços técnico-científicos e incrementação da indústria cultural.
As relações políticas, econômicas e culturais são cada vez mais influenciadas pelo processo
de internacionalização da economia e da cultura. Nesse contexto marcado por profundas
transformações socioculturais, emergem novas modalidades de subjetivação e de
construção de identidade que, por sua vez, portam poderosos elementos de desestabilização
marcados pelo acúmulo de conhecimentos tecnológicos sem o ancoradouro de uma
evolução cultural compatível e extensiva para além da esfera elitista centralizadora da
tecnologização. Qualquer caracterização ou definição de pós-modernidade se mostra falha e
incompleta, uma vez que a principal característica da pós-modernidade é justamente essa
ausência de limites caracterizadores e uma abundância de aspectos contraditórios e
ambivalentes, que influenciam tanto no social quanto na psique humana.
Para muitos autores a pós-modernidade é caracterizada por vários aspectos: o
sentimento de nostalgia, o relativismo cultural, uma postura ambivalente ante as esperanças
trazidas pelo desenvolvimento científico, a desconfiança em relação a todos os
fundamentos éticos e antropológicos trazidos pela modernidade e posturas políticas
ambíguas e contra a política organizada.
Ao analisar o atual momento histórico, Harvey (1992) caracteriza-o como pós-
moderno, marcando uma transformação cultural iniciada por volta dos anos 1960, fazendo
parte de uma lenta transformação emergente nas sociedades ocidentais, o que aparece como
modismo na promoção publicitária e espetáculo vazio. Assim, o pós-modernismo apresenta
uma total aceitação do efêmero, do fragmentário, do descontínuo e do caótico. As
personagens se mostram confusas acerca do mundo em que vivem e de como agir com
relação a ele, onde não se tem uma referência do passado e tampouco da tradição. (...) “o
eu de hoje estupefato; de ontem, esquecido; o de amanhã, imprevisível? Os pontos de
interrogação dizem tudo” (Harvey, 1992, p.46). A crise moral que marca o pós-modernismo
é a crise do pensamento iluminista que, contrário a este, reafirma o poder de Deus sem
abandonar os poderes da razão. Na filosofia, há uma mescla de um pragmatismo americano
17
revivido com a onda pós-marxista e pós-estruturalista, desencadeando numa vigorosa
denúncia da razão abstrata e numa profunda aversão a todo projeto de emancipação humana
pela mobilização das forças da tecnologia, da ciência e da razão. E por fim, a proposta pós-
moderna arquitetônica se mostra numa estratégia pluralista e orgânica para a abordagem do
desenvolvimento como uma colagem de espaços e misturas altamente diferenciados.
Bauman (1998) se refere a cidadãos de nossa sociedade líquida e aos laços sociais
desligados que precisam conectar-se. Nenhuma das conexões que venham a preencher a
lacuna deixada pelos vínculos ausentes ou obsoletos tem, contudo, a garantia da
permanência. De qualquer modo, os laços/vínculos não precisam ser profundamente atados,
permitindo a sua dissolução em função da rápida mudança dos cenários. A conseqüente
solidão que este processo provoca traz insegurança. As alternativas de relacionamento que
poderiam eliminá-la não parecem produzir coisa diferente. Para o parceiro, o outro é a ação
a ser vendida ou o prejuízo a ser eliminado – e ninguém consulta as ações antes de devolvê-
las ao mercado, nem os prejuízos antes de cortá-los. Assim, nos relacionamentos, o outro
tende a ser um objeto descartável em potencial.
Bauman ainda sugere critérios de pureza para que se participe do jogo consumista.
Aqueles que não participam diretamente do processo de consumo são considerados como
consumidores falhos, compreendidos como um “problema” ou a sujeira” que precisa ser
removida. Analisam os centros comerciais e supermercados como templos do novo credo
consumista, cercados de câmeras de vigilância, alarmes eletrônicos e guardas armados,
separando os consumistas afortunados e felizes dos consumistas falhos, caracterizados por
pessoas incapazes de responder aos atrativos do mercado consumidor porque lhes faltam
recursos. Eles são verdadeiramente “objetos fora do lugar”. São chamados de estranhos,
que, por sua vez, são odiosos e temidos. Na cidade pós-moderna, os estranhos significam
uma coisa aos olhos daqueles para quem a “área inútil” significa “não vou entrar”, e outra
aos olhos daqueles para quem “inútil” quer dizer “não posso sair”. Os estranhos são pessoas
que você paga pelos serviços que prestam e pelo direito de terminar com esses serviços
logo que já não tragam prazer. Dessa forma, observamos traços marcantes na cultura
contemporânea como o consumo que induz a um leque de novas patologias. A sociedade
pós-industrial parece exigir consumidores.
18
Baudrillard
1
(1991) pontua que a lógica da mercadoria não só regula os processos de
trabalho e os produtos materiais, mais a cultura inteira, como também a sexualidade, as
relações humanas e os próprios fantasmas e as pulsões individuais. Tudo é
espetacularizado, evocado, provocado, orquestrado em imagens, em signos, em modelos
consumíveis, caracterizando, assim, a sociedade de consumo, em que o sujeito se reduz a
um puro objeto de gozo do Outro engolidor do mercado, e onde a busca pelas razões de
existir parece se fazer por meio dos modos de gozo consumistas propostos pela cultura
ocidental moderna.
A sociedade contemporânea vai se delineando pela pluralidade de identidades
sociais, balizadas pela multiplicidade de referências, oponentes e contraditórias. Lugar de
manifestações de novas formas de socializações, configurações diversas de valores com
aspectos de descontinuidade e fragmentação, como afirma Kumar (1997):
“A teoria pós-moderna é tão chocantemente eclética em suas origens como é
sintética e mesmo sincrética em suas manifestações. uma suposição de que não
pessoas diferentes vão querer coisas diferentes, mas que as mesmas pessoas, em
ocasiões diferentes, vão querer coisas diferentes. Contradições e circularidade são
bem-vindas. O discurso privilegiado da pós-modernidade é o cultural, ilustrado por
Charles Jenks (1989) no qual menciona a ‘explosão de informações’,
pluralismo,
um tempo de opção incessante, combinações de múltiplas tradições têm
importância, culminando em confusão e ansiedade como estado de espírito. A
cidade se mostra como um palco, um lugar para desfrute e exercício de
imaginação, tanto quanto sistema utilitarista de produção e consumo, com
diversidades de gostos e pluralidade de estilos. É um local de fantasia e
corporificação da ficção. A sociedade não tem forma e nem organização, ou
qualquer força controladora, nem na economia, na política, na história ou tradição.
Mas sim uma condição pós-moderna de fragmentação”. (KUMAR, 1997, p. 113-
118)
Kumar ainda situa a pós-modernidade em numerosos movimentos culturais dos
anos 1960, expressados na pop art, música pop, “novelle vague” no cinema e o “nouveau
roman” na literatura, o “happenig” e o ser “in”, os protestos de massa e a contenção, o
apagamento das fronteiras entre “arte” e a “vida”, o cultivo da sensibilidade através do sexo
1
“O hipermecado é já, para além da fábrica e das instituições tradicionais do capital, o modelo de toda a
forma futura de socialização controlada: retotalização num espaço-tempo homogêneo de todas as funções
dispersas do corpo e da vida social (trabalho, tempos livres, alimentação, higiene, transportes, media, cultura);
retranscrição de todos os fluxos contraditórios em termos de circuitos integrados; espaço-tempo de toda uma
simulação operacional da vida social, de toda uma estrutura de habitat e de tráfego”. Baudrillard, Jean.
Simulacros e simulação,Relógio D’água, 1991, p. 99.
19
e das drogas, e não a contemplação estética ou o estatuto intelectual, o enobrecimento das
reivindicações do “princípio de prazer” sobre as do “princípio da realidade”.
No final dos anos 1960, outros autores, como Lasch (1983) e Debord (1994),
denominam as modalidades de sociedade que se forjam de “cultura do narcisismo” e de
“sociedade do espetáculo”.
Lasch (1983), ao explicitar a “cultura do narcisismo”, pontua a existência de uma
personalidade contemporânea hábil em administrar as impressões que transmite aos outros,
ou até mesmo, ávido de admiração, desdenhe daqueles a quem manipula para obtê-la. E,
sobretudo, insaciavelmente faminto de experiências emocionais com as quais preenche
vazios interiores, aterrorizado com o envelhecimento e com a morte. Embora o narcisista
possa funcionar no mundo cotidiano, e com freqüência encantar outras pessoas, a
desvalorização de outros, junto à falta de curiosidade a respeito deles, empobrece sua vida
pessoal e reforça a experiência subjetiva de vazio. O sujeito acaba por experienciar
sensações de insatisfações difusas, vagas com a vida, e sente que sua existência amorfa é
fútil e sem finalidade. O enfraquecimento dos vínculos sociais que têm origem no estado
predominante do bem-estar social, ao mesmo tempo reflete uma defesa narcisista contra a
dependência.
O culto das relações pessoais, que se torna cada vez mais intenso à medida que
diminui a esperança de soluções políticas, esconde um profundo desencanto pelas relações
pessoais. O exibicionismo e o autocentramento ganham espaço, onde o sujeito perde em
interioridade e ganha em exterioridade. Admirar o outro em sua diferença torna-se
impossível, uma vez que o sujeito não consegue se descentrar de si próprio. A ideologia do
crescimento pessoal, superficialmente otimista, irradia um profundo desespero e
resignação, oscilações violentas de auto-estima e uma incapacidade imensa de progredir são
vistas. A sensação de auto-estima somente é aumentada na medida em que o sujeito se liga
a pessoas fortes e admiradas cuja aceitação ele deseja muito e pela qual precisa ser apoiado.
Assim, a felicidade o ilude e a vida não é freqüentemente digna de ser vivida. O sujeito vale
pelo que parece ser mediante imagens produzidas para se apresentar na cena social.
Tornando, assim, a nossa sociedade como a da cultura do ego ideal, da perfeição, uma vez
que nos deparamos com opostos de corpos magros e esbeltos e corpos gordos e monstros;
20
ao mesmo tempo em que a sociedade seduz os sujeitos, os rejeita quando eles não têm
nada a oferecer.
Birman (1999) contextualiza a idéia de Debord da sociedade do espetáculo” com a
de Lasch da “cultura do narcisismo”, relacionando o espetáculo com a exibição e a
teatralidade. Os personagens se inscrevem e desfilam no cenário social utilizando-se, assim,
da exterioridade como forma primordial de organização da subjetividade. O sujeito é
regulado pela performatividade mediante a qual compõe os gestos para a sedução do outro
e a individualidade se transforma em objeto descartável. A alteridade e a intersubjetividade
são modalidades de existência que tendem ao silêncio e ao esvaziamento. “Vivemos numa
cartografia em que a fragmentação da subjetividade ocupa posição fundamental. (...) um
painel de esboços imperfeitos e fragmentários, em lugar de tentar produzir uma imagem
completa”. (BIRMAM, 1999, p.8).
Birman ainda pontua que a caracterização da subjetividade na cultura do narcisismo
é a impossibilidade de poder admirar o outro em sua diferença radical, que não consegue
se descentrar de si mesma. O sujeito da cultura do espetáculo encara o outro apenas como
um objeto para se usar.
“O outro estranho impuro ... O outro lhe serve apenas como instrumento
para o incremento da auto-imagem, podendo ser eliminado como um
dejeto quando não mais servir para essa função abjeta”.
(
BIRMAN, 1999,
p25)
Na medida em que o indivíduo fracassa ao glorificar o eu e a estetização da
existência, ele é rejeitado. Mais uma vez, o que parece definir a psicopatologia atual é o
destaque conferido a quadros clínicos fundados no fracasso da participação do sujeito na
cultura do narcisismo. Aspecto muito contraditório, uma vez que o capitalismo oferece
objetos de gozo, que saturam a falta-a-ser do sujeito, designando-o à condição de
consumidor feliz, lema fundamental da Sociedade do Consumo. Todos esses objetos são
bens que facilitam a vida, mas é também algo imposto ao consumo e desejo do sujeito.
Objetos que, mediante um ciclo, obrigam esse sujeito a trabalhar muito para adquiri-lo.
Esse é o imperativo do super eu, pontuado por Freud (1923), que ao mesmo tempo em que
obriga ao renunciamento do gozo o impõe, exigindo cada vez mais sacrifícios do sujeito.
Para que nada falte a esse sujeito, é necessário que ele trabalhe muito para poder consumir,
21
e quanto mais consome mais ele tem de trabalhar para saldar a sua dívida, que por sua vez
vem carregada de culpa. Isso gera, como conseqüência, uma saturação da sociedade, onde
se encontra o nada do objeto, o vazio das relações, enfim, uma sociedade sem história, sem
referências a não ser o mito de si mesma.
Não existe, portanto, uma forma única de se explicar o momento atual. Vários
rótulos foram criados. Entre eles o de sociedade do consumo, sociedade da mídia,
sociedade do espetáculo, sociedade burocrática do consumo controlado, sociedade
globalizada, sociedade pós-industrial, sociedade pós-moderna, etc. Muitos autores foram
importantes para a criação desses termos. Um dos mais representativos é o francês Jean-
François Lyotard, que num famoso livro chamado The Post Modern Condition (La
Condition Post-Moderne) “criou” a expressão pós-modernismo para explicar as novas
condições de produção e mercado, bem como o uso cada vez maior do estudo da linguagem
nas ciências e nos estudos sociais.
Obviamente diversas outras características poderiam ser citadas, mas o mais
importante é ressaltar a falta de referência moral e ética, que leva as pessoas a um vazio
existencial refletido nas práticas sociais, entre elas o consumo desenfreado. No mundo pós-
moderno o sujeito anseia pela paz, pela tranqüilidade espiritual e social, mas se preso a
contingências, num terreno movediço de incertezas e ambigüidades pessoais. O sujeito
preso às contingências e às dúvidas perde os parâmetros da própria essência, tentando
delimitar seu ser através de aspectos do mundo exterior. Um mundo que se mostra cada vez
mais sem sentido e desprovido de segurança.
Como dito acima, a sociedade na pós-modernidade tem enfrentado tempos de
incerteza e ambivalência, em que a questão do indivíduo se torna um problema e a relação
entre a sociedade e o “anormal”, o excluído, se transforma em um território extremamente
hostil no mundo através da relação de consumo.
Vejamos então: é alardeado que nossa época se caracteriza pela realização do sonho
da liberdade humana, liberdade alcançada devido ao fim dos limites territoriais, da própria
idéia de território em si, do fim do limite referencial. Ode à selvageria libertadora, que
Rosseau já pregava e que hoje é incorporada a nós através da errância e nomadismo que
conflituoso, uma vez que o normal passa a ser visto como aquele que se insere no mercado,
e o anormal como aquele que não pode consumir, que é incapaz de definir sua posição
22
projetamos na nossa idéia de inconsciente. O inconsciente seria como um animal. Livre,
sem território e sem limite às suas satisfações.
2
Ledo engano. Não existe liberdade na selvageria e na natureza. O bom selvagem é
“menos bom” do que queremos crer. Na verdade a liberdade vista como ausência de
território é nossa projeção do esquema do capital e do mercado. É o capital que não tem
território, é o capital que é livre. Os animais são seres territoriais par excellence, a natureza
não se mede a não ser através de limites e de território. Somente o capital é livre, pois o
sentido do mercado, o mercado em si, em uma triste tautologia, não se troca com nada, com
significado algum, com forma metaeconômica nenhuma.
3
O inconsciente pós-moderno é identificado com o mercado por quererem lhe
imputar uma dimensão livre e propositalmente contingente. Dimensão essa que não passa
de uma projeção das práticas de consumo.
Freud identificava o nascimento da sociedade com o nascimento da consciência do
assassinato do pai autoritário e com o sentimento de culpa decorrente dessa consciência. A
partir desse momento os filhos que se uniram estipularam regras para seu convívio.
Óbvio que não passa de uma hipótese antropológica e dificilmente podemos
enxergar, além disso, nela. Difícil crer que seres sem cultura e ainda se acostumando com
sua racionalidade pudessem sentir um nível de remorso tão sofisticado que lhes permitisse
criar o Estado Humano, e mais difícil ainda aceitar que tal assassinato tivesse influenciado
toda a humanidade.
2
Muitas das críticas que se fizeram a Freud derivam do fato de que o mesmo temia as conseqüências de suas
idéias a respeito da humanidade na mentalidade das massas. Temia um excesso de liberdade provocada pela
idéia de que a consciência e a cultura impunham proibições que iam contra os instintos e a formação natural
do homem. Pois bem, tais críticos alegavam que a sociedade pós-moderna incorporou as idéias freudianas e as
pessoas, de forma geral, continuam agindo de forma moral, de maneira que a liberação não causou danos à
sociedade. Para outros pormenores conferir Gellner, Ernest, Antropologia e política: revoluções no bosque
sagrado, Jorge Zahar Editor, Rio de Janeiro, 1997.
3
“A esfera econômica, esfera de todas as trocas, tomada em sua globalidade, não se troca com nada. Não há,
em parte alguma, uma equivalência metaeconômica da economia, nada com o que trocá-la enquanto tal, nada
com o que resgatá-la num outro mundo. Ela está de alguma maneira insolvente, é de alguma forma insolúvel
para uma inteligência global. Decorre, então, ela também, de uma incerteza fundamental.” Baudrillard, Jean,
A troca impossível,Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2002, p.10.
23
Mas ainda assim é uma hipótese interessante, porque trabalha a idéia de que para
que o “princípio do prazer”
4
pudesse ser servido seriam necessários vários sacrifícios para o
homem. Tais sacrifícios se concretizam nas normas jurídicas e sociais instituídas para
manter o controle e regular e distribuir a satisfação do prazer. Funcionam como uma
dimensão do superego, regularizando e moralizando as relações humanas.
Assim, as relações de cunho sexual, por exemplo, passaram a ser reguladas, de
forma que a busca pela satisfação não ameaçasse o desenvolvimento social e civilizacional.
Mas a concepção freudiana se aplicava perfeitamente a um mundo moderno,
pautado pela crença no racional
5
e esperançoso quanto aos avanços da técnica e a influência
desses avanços no agir moral do homem.
Pois bem, o mundo moderno falhou ao não cumprir as promessas que havia feito. E
o mundo contemporâneo coloca agora em xeque não a racionalidade e a moral, mas
todas as formas de emancipação humana e construção do social baseados na razão e na
ciência. Ao mesmo tempo essa identificação do inconsciente com a falta de território, com
a ausência de limites para a satisfação pessoal, encontrou no mercado e no consumismo
desenfreado um ambiente propício ao seu desenvolvimento, alimentando a percepção de
que a liberdade está sempre aliada ao consumo e à satisfação imediata das vontades, como
no exemplo do obeso, de que trataremos logo a seguir.
O que na verdade ocorre é a transformação dos consumidores em objetos de
consumo. Em seres sem face devorados pelo Outro perverso do mercado. As concepções
atinentes ao hedonismo e à satisfação das vontades transformam o homem no fugitivo de
4
“Estao Princípio do Prazer, como o chama, realmente acima de qualquer dúvida? Qualquer principiante
que leia Sigmund Freud sabe muito bem que o princípio está não apenas em dúvida, mas que é falso: o
próprio Freud parecia ocasionalmente imune ao seu próprio ensinamento, preservando uma espécie de estrato
lógico arcaico de uma doutrina anterior. Sabemos por intermédio de Freud – e pela literatura, pela vida que
o homem muitas vezes procura ardentemente o sofrimento. A doutrina de que o homem procura acima de
tudo a felicidade pode ser tornada verdadeira por uma definição apropriada, considerando-se “felicidade”
sinônimo de “tudo aquilo que o homem busca”. Neste caso, é claro, a doutrina de que o homem procura a
felicidade e nada mais torna-se necessária e tautologicamente verdadeira: o homem procura o que
procura.”Gellner, Ernest, Antropologia e política: revoluções no bosque sagrado, Jorge Zahar, Rio de Janeiro,
1997, p.78. A concepção de felicidade que seguiremos é a de felicidade como tudo o que buscamos.
5
A própria idéia de inconsciente deriva de uma tentativa de racionalizar a loucura, de fazer a loucura falar,
pois seu silêncio afrontava a razão vigente. Quando se percebeu que seria impossível comprimir a loucura
dentro dos parâmetros racionais existentes, criou-se o inconsciente, essa dimensão onírica e selvagem do
homem, cuja razão não penetra, mas pode ajudar a razão a encontrar muitas respostas. Uma espécie de
vingança da loucura: a mesma razão que tanto quis lhe fazer falar, hoje se pauta pelos seus ditames, se rende
às forças do inconsciente. De qualquer forma a razão livra a cara, não conseguiu fazer falar o louco, porque
ele é “diferente”, mas conseguiu anexar a seu discurso o discurso do psiquismo, do recalcamento, da pulsão,
uma razão que por permitir o “diferente” se considera mais universal do que a razão chamada clássica.
24
sua própria realidade, que não pode buscar refúgios em eventos catárticos, pois a sociedade
do espetáculo tornou todos os eventos catárticos. Um verdadeiro carnaval sem começo nem
fim.
6
“Existe uma certa complexidade ao estudar o consumo, pois as pessoas
querem comprar. É isso mesmo, essas questões de manipulação da dia
que não se deve manipular não é manipulação; podemos dizer em alguns
momentos que é `servidão voluntária`. As pessoas querem isso. A dia
vive das coisas que as pessoas querem comprar. o imposição;
simplesmente a mídia expõe aquilo que a pessoa quer. Nesse contexto a
magreza é a coisa que elas querem comprar, cabendo lembrar que o se
trata de um querer `natural`, mas um desejo a que foram induzidas de
modo perverso.” (SANTOS, 2005, p.54)
Dessa forma, quanto mais o homem se satisfaz, mais insatisfeito ele fica, mais
vazio, mais carente de um sentido real e de algo que se aproxime de uma “essência” para
sua vida. Como a idéia de sentido é a vendida pelo mercado, ele tenta ardentemente se
adaptar, consumindo, somente para descobrir que o vazio que ele sente não se preenche,
que é ele somente mais um elemento, uma “coisa”, dentro do jogo teratológico do mercado.
6
O próprio carnaval perdeu seu sentido enquanto evento catártico, já que incorporado às praticas consumistas
contemporâneas. O carnaval hoje acontece em todas as épocas do ano, de forma que dissemina a catarse
retirando seu sentido como forma de dissipação de tensões e repressões acumuladas.
25
2.2. Características da Pós-Modernidade e o encontro com a obesidade
Toda sociedade reproduz sua cultura, suas normas, suas presunções subjacentes,
seus modos de se organizar, constituindo e influenciando os indivíduos; como também todo
indivíduo determina a cultura da sociedade. O processo de socialização é efetuado pela
família, pela escola e por outros agentes de formação de caráter, além de modificar a
natureza humana para que esta se sujeite às normas sociais dominantes. SANTOS (2005)
enxerga nessas instituições o espelho da sociedade:
“Há duas diferenças fundamentais entre o uso dos espelhos pelos indivíduos e o
uso dos espelhos pela sociedade. A primeira diferença é, obviamente, que os
espelhos da sociedade o são físicos, de vidro. São conjuntos de instituições,
normatividades, ideologias que estabelecem correspondências e hierarquias que
permitem reiterar identificações até o ponto de estas se transformarem em
identidades. A ciência, o direito, a educação, a informação, a religião e a
tradição estão entre os mais importantes espelhos das sociedades
contemporâneas. O que eles refletem é o que as sociedades são. Por detrás ou
para além deles não há nada.” (SANTOS, 2005, p.48)
Esses “espelhos” sociais, enquanto processos sociais, se mostram presentes em
todos os momentos da vida do sujeito, alterando, com suas contingências, esses mesmos
sujeitos. Cada sociedade tenta resolver a crise universal da infância à sua maneira, e o
modo pelo qual ela lida com estes eventos psíquicos produz uma forma característica de
personalidade e submete-se às exigências da existência social. Todo esse processo
desencadeia um mal-estar, caracterizado pela cultura específica de cada época.
As mudanças na sociedade que desencadeiam a atual sociedade pós-moderna
impulsionam a um novo estilo de vida e, sobretudo, numa valorização excessiva da imagem
influenciada pelo consumismo, pautado pela “cultura do espetáculo” e do “narcisismo”.
socialmente uma preocupação excessiva com relação ao peso e à imagem corporal que leva
os indivíduos a adquirirem hábitos alimentares inadequados em busca do “corpo perfeito”,
ao mesmo tempo em que leva a uma vida sedentária com nutrição excessiva, que resulta
num balanço energético muito positivo que é o fator desencadeante da obesidade.
A questão do obeso reflete bem a ausência de sentido e medida que caracteriza a
sociedade pós-moderna. Uma sociedade “simulada”, “virtual”, onde a realidade se perdeu
junto às referências próprias da sociedade iluminista. Uma sociedade que se enxerga
somente em recortes radicais da própria realidade, não na realidade em si. O obeso é o
26
exemplo perfeito dessa conjuntura onde a imagem perde o vínculo com a própria realidade,
com a própria referência. E pior, no caso do obeso essa situação é mais trágica, uma vez
que a referência que se perde é o próprio sujeito.
O obeso, em sua ânsia de devorar tudo, devora a própria identidade, a própria
sexualidade, devora a si mesmo num canibalismo simbólico onde ao mesmo tempo em que
ele se enche com o simulacro da realidade, ele se esvazia de todo o sentido, de toda
peculiaridade e identidade. Sentem um homem e uma mulher obesos de costas. A
impossibilidade de identificar a sexualidade de qualquer um dos dois é latente, eles são
iguais, “coisas”, objetos consumistas que acabaram consumindo a própria subjetividade.
Triste ambigüidade a do obeso. Ao perder sua identidade e referência ele se torna
um referencial, o referencial do que é monstruoso e indesejado pela sociedade. O obeso não
está previsto na estrutura planejada da sociedade. E em uma sociedade sem conteúdo,
fundada no narcisismo, no planejamento exagerado da vida, na visão estética das relações
humanas, não pode haver pior forma de vida. É diferente do “gordo”, ou do obeso
“moderado”. O obeso é mais gordo que o gordo, ele está fora da realidade justamente por
ser o sintoma mais grotesco da degradação da própria realidade pela desmedida de
representações, pela falta de sentido, pelo excesso imagético do narcisismo de um mundo
consumista.
A ausência de medida do obeso torna o obeso medida da realidade das pessoas
acima do peso. A pessoa está “gorda”, mas não é obesa”, numa expressão sintomática de
auto-indulgência do mundo pós-moderno, um mundo cujo único parâmetro definido é o do
consumo desenfreado e da satisfação imediata das próprias vontades. Uma sociedade
“infantilizadora”, na medida em que incentiva todos a se portarem como crianças, de forma
egoística e narcisista, uma sociedade que se mede por padrões do excesso, do desenfreio,
em que a vontade de verdade e a ausência de segredos geraram a maior mentira de todas, a
mentira da própria realidade simulada. Onde as pessoas não andam, mas praticam
“jogging”. Onde cozinhar se tornou um problema, solucionado pela mentalidade dos “fast
foods”.
Num mundo onde tudo se mede pela capacidade de consumo, os limites morais e
racionais se perderam levados pela derrocada do ideário iluminista, e os próprios limites do
sujeito também implodiram, numa repetição distorcida do sacrifício do pai primevo de
27
Freud, que acabaria gerando o superego. Na sociedade s-moderna é o próprio superego
que é devorado, devorado pelo obeso, que devora suas referências, suas posturas, seus
limites.
O obeso enquanto consumidor maior da pós-modernidade, ideal na sua voracidade,
perfeito na sua falta de limites, onde a própria falta de auto-estima alimenta o anseio
consumista. Quanto pior, melhor; melhor consumidor, melhor devorador. Na tentativa
de preencher um vazio existencial que é em si mesmo produzido pelo consumismo, uma
vez que sua identidade enquanto sujeito não mais existe.
Para a medicina, essa condição de não existência do sujeito também parece
acontecer. Em termos médicos, a obesidade é definida como aumento da quantidade de
gordura corporal ou do tecido adiposo; é uma doença universal de prevalência crescente,
assumindo atualmente um caráter
epidêmico e tornando-se um dos principais problemas de
saúde pública nos dias de hoje. É também uma doença orgânica, crônica, de origem
multifatorial, resultante da combinação de fatores genéticos, metabólicos, neuroendócrinos,
dietéticos, sociais, familiares e psicológicos. A epidemia da obesidade é amplamente
influenciada pelo meio ambiente, que disponibiliza quantidades excessivas de alimento
altamente calórico e a redução da atividade física além de, com suas novidades de
progresso, contribuir negativamente para que a obesidade ocorra, uma vez que as pessoas
se movimentam cada vez menos, gastam menos gordura e acumulam mais gordura no seu
corpo. Dessa forma, pode-se afirmar que a obesidade é determinada pela associação de
vários fatores, entre eles o emocional, que contribui de forma incisiva.
O consumismo favorece a satisfação imediata e o obeso parece atender muito bem a
esse protocolo na medida em que ele parece não dar conta de barrar o excesso de
possibilidades, de objetos oferecidos, e assim devora tudo, e por fim acaba por ser rejeitado
por adquirir um corpo fora dos padrões da sociedade pós-moderna.
A questão de maior peso para o obeso parece ser que ele se perde como sujeito,
como dito acima, pois ao mesmo tempo em que a sociedade o inclui quando se “encaixa”
no protocolo perfeito de consumidor, o exclui quando se depara com a necessidade de auto-
centramento e exibicionismo, características fundamentais para se pertencer às “purezas”
da sociedade apontadas por Bauman.
28
Contudo, uma outra questão se torna pertinente. A obesidade em si e a moderada
não parecem encaixar-se também nesse protocolo. E sim um indivíduo excessivamente
gordo, o denominado obeso mórbido, que não parece ser aquele “bom de garfo” ou que
saboreia uma boa comida, e sim o portador de um “corpo monstro” que devora tudo sem
categoria, sem ao menos se dar conta ou registrar simbolicamernte o que está comendo.
Ora, um fato parece curioso, esse “corpo monstro” ao mesmo tempo que assusta tanto a ele,
o obeso, quanto aos outros da sociedade, parece também funcionar como fortaleza ou
armadura.
Pensamos, nessa perspectiva, no impacto que essa nova realidade pode causar no
funcionamento psíquico dos sujeitos como produção de novas subjetividades. O corpo
humano parece ser o lugar em que todas as formas de repressão terminam por ser
registradas, encontrando seu ancoramento, ou com doenças, magreza, obesidade, pânico,
depressões, toxicomanias.
Dessa forma, levantamos a hipótese de a obesidade mórbida, em sua dimensão
multicausal, ser uma das novas patologias da pós-modernidade. Uma das respostas que o
sujeito encontra ao se deparar com o mal-estar da contemporaneidade. Uma resposta
patológica na qual ele utiliza seu corpo para barrar a grande oferta de objetos – os gadjets
da sociedade de consumo, da qual ele não conta de negar. Dessa forma, ele se sem
recursos simbólicos para elaborar psiquicamente. Seria esse o efeito provocado pela
sociedade contemporânea, que ao mesmo tempo em que cria o obeso exageradamente
grande, o rejeita?
Pensamos ainda na possibilidade de essa patologia se estruturar em uma nova forma
de organização psíquica, através da exclusão do sujeito de desejo como também
mencionado acima. Encontramos um indivíduo cujo enfrentamento das suas dificuldades
se converteu em doença, e esta, por sua vez, passa a ser seu único modo de vida e de morte
e que ao longo do tempo vai adaptando-o ao pior, com gratificações. Esse obeso rbido
parece encontrar em sua obesidade e no impulso de comer o único meio de fazer trocas
afetivas e tolerar frustrações na vida, uma via de resolução dos seus problemas.
29
2.3. A obesidade, a técnica e o corpo na Pós-Modernidade
A obesidade é atualmente assunto de interesse universal. É uma doença metabólica
de origem genética, além de ser considerada uma doença crônica, multifatorial e
caracterizada pelo acúmulo excessivo de tecido adiposo no organismo. É fator de risco para
patologias graves, como a diabetes, doenças cardiovasculares, hipertensão, distúrbios
reprodutivos em mulheres, alguns tipos de câncer e problemas respiratórios. A obesidade
pode ser causa de sofrimento, depressão e de comportamentos de esquiva social, que
prejudicam a qualidade de vida.
Cândido citado por Shiraga (2006, p.255) também destaca que a obesidade pode ser
definida como uma doença multifatorial de regulação do apetite e do metabolismo
energético, envolvendo genética, fisiologia, bioquímica e neurociências.
O estudo da obesidade mórbida vem sendo feito não do ponto de vista médico,
mas também em outras áreas. Benedetti (2001) faz um estudo em sua dissertação sobre
Obesidade e emagrecimento - um estudo com obesos rbidos submetidos a gastroplastia,
investigando o sentido que o paciente obeso mórbido, submetido a cirurgia em prol de seu
emagrecimento, vai dar ao experienciar a obesidade, a cirurgia e o emagrecimento.
(SANTOS, 2005, p.35).
A obesidade tem sido considerada um problema de saúde publica, sobretudo nos
países desenvolvidos. Além disso, observamos o fato de que a sociedade pós-moderna vem
dando importância à estética pelo corpo esbelto e longilíneo e em decorrência disto, o
obeso acaba por experimentar sentimentos de rejeição e segregação com relação a sua
imagem. Essas mudanças na sociedade parecem ser as principais responsáveis pelo novo
estilo de vida que leva a uma vida sedentária com nutrição excessiva, resultando num
balanço energético alto, desencadeador da obesidade.
A Organização Mundial de Saúde (OMS-2003) vem reafirmar essa idéia colocando
que a globalização e o progresso científico investem na industrialização, urbanização e no
desenvolvimento econômico, influenciam significativamente nas mudanças dos hábitos
alimentares e estilos de vida das pessoas. As pessoas têm se alimentado mal, comendo
rápido e utilizando-se muitas vezes de alimentos ricos em calorias e gorduras, associados ao
aumento do tabagismo, consumo de álcool, redução das atividades físicas, sedentarismo e
30
ao uso de transportes motorizados. Nos últimos anos, tem-se evidências de literaturas
médicas trazerem um crescimento exacerbado dos índices de obesidade a ponto de se tornar
uma questão de saúde pública, alcançando proporções epidêmicas globais, com mais de um
bilhão de adultos acima do peso. No Brasil, a prevalência da obesidade aumentou muito,
em especial para as mulheres, nas quais 13,3% estão acima do peso. (MALHEIROS e
FREITAS JR., 2004, p.19).
Assim, a OMS estabelece a definição da obesidade como uma enfermidade
caracterizada pelo acúmulo excessivo de gordura corporal que associada a problemas de
saúde diminui a qualidade e expectativa de vida das pessoas.
Malheiros e Freitas Jr. (2004) apontam que as classificações do excesso de peso
podem ser calculadas a partir de um esquema matemático, o Índice de Massa Corporal
(IMC), onde se divide o peso do indivíduo pela altura ao quadrado, definindo o sobrepeso
como entre 25 e 29,9 kg/m2 e a obesidade como IMC maior que 30 kg/m2, sendo que IMC
maior ou igual a 40 kg/m2 já é classificado como obesidade mórbida. O aumento na
prevalência de sobrepeso e obesidade observados na última década aumento de três a
quatro vezes em relação ao período de 1960 a 1990 despertou o interesse pelos fatores
que levariam a elevada incidência de excesso de peso.
Os fatores relacionados à obesidade podem ser divididos em demográficos,
socioculturais, biológicos e comportamentais ou ambientais, dando ênfase para este último
que parece ser o mais importante, atualmente, para o desenvolvimento da obesidade.
Assim, a obesidade parece trazer repercussões não de ordem clínica, mas também de
ordem psíquica, sendo que as manifestações psíquicas podem ser consideradas como causa
ou efeito da obesidade.
Os comportamentos do comer e a noção de imagem corporal interferem de maneira
prejudicial na vida do obeso, fazendo surgir um sentimento de impotência e de falta de
controle nos seus relacionamentos. Os obesos graves, na maioria das vezes, respondem de
forma insatisfatória ao tratamento convencional medicamentoso, associado à dieta
hipocalórica e atividade física controlada. Enfrentam tentativas frustradas de perda de peso
e/ou manutenção deste, ao procurar serviços médicos ou alternativos, pois emagrecem e
recuperam o peso novamente em mais de duas vezes o anterior, se tornando, assim, um dos
31
grandes temores do paciente. Dessa forma, o paciente sente que seus esforços não foram
recompensados e que a perda de peso é praticamente impossível.
Deparamos, então, com a obesidade mórbida, que se caracteriza por um comer em
excesso, mal e rápido demais, associado à falta de exercício, predisposição genética e
fatores psicológicos e sociais. O corpo do obeso mórbido é um corpo excessivamente
gordo, o paciente se encontra muito acima de seu peso, basicamente à custa de gordura que
parece não ceder às orientações dietéticas ou à reeducação alimentar. São uma condição de
obesidade, que aumentam muito as chances de sérios problemas de saúde, as comorbidades;
como o nome mórbido indica, são doenças secundárias ocasionadas pela obesidade, tais
como diabetes, hipertensão arterial, problemas articulares, dificuldade de locomoção,
colesterol elevado, apnéia do sono, trombose, etc, que podem ocasionar a morte.
Assim, dentre todos os motivos citados, o tratamento clínico da obesidade
mórbida, na maioria das vezes, é frustrante, sendo a cirurgia bariátrica, atualmente,
considerada a mais bem-sucedida medida terapêutica nesse caso, pois uma ameaça à
vida do indivíduo. (NASSER e ELIAS, 2004, p.45)
Shiraga (2006) pontua que a cirurgia da obesidade envolve o entendimento do
paciente portador da obesidade mórbida em seus aspectos genéticos-familiares, sociais,
psicológicos, nutricionais e metabólicos nos quais deve-se compreender sua origem
multifatorial. O procedimento cirúrgico deve adaptar-se às características de cada paciente,
visando sempre à perda de peso sustentável, com cura, ou melhor, com controle das
doenças associadas, porém assegurando acima de tudo qualidade de vida.
Diversas técnicas de cirurgia são utilizadas e avaliadas de acordo com cada
paciente: as que restringem seu esvaziamento pelo emprego de um anel de contenção, ou de
uma banda gástrica, fazendo desvio no intestino, dificultando a ingestão alimentar e
provocando absorção, facilitando, assim, o emagrecimento; ou a gastroplastia, utilizada
na maioria dos casos. A cirurgia consiste em reduzir o tamanho do estômago em torno de
40 ml, tendo um caráter mutilador e punitivo que diminui a capacidade de recepção do
estômago, além de punir com dor o paciente que tenta transpor o limite do novo estômago.
(GARRIDO JR, 2004)
Com a redução do tamanho do estômago, a pessoa passa a comer pequenas
quantidades de comida e se sente “satisfeita”. A perda de peso ocorre à medida que é
32
diminuída a quantidade de comida ingerida. A média de perda é em torno de 40% do peso
total após um ano da realização da cirurgia. Normalmente as idades limites para se
submeter à cirurgia bariátrica estão entre 18 e 65 anos. (ABC da Saúde, 2005)
A avaliação da necessidade desta cirurgia, entre outros fatores citados
anteriormente, é realizada através do cálculo do IMC. O paciente candidato à cirurgia é
definido como aquele cujo IMC encontrado é igual ou superior a quarenta, ou em alguns
casos de trinta e cinco, dependendo de suas comorbidades. Essa cirurgia é apenas oferecida
aos indivíduos que buscaram outras tentativas de perder peso, como dietas,
medicamentos e exercícios físicos que fracassaram, e apresentam obesidade estável pelo
menos cinco anos. Devem ainda apresentar ausência de patologias endócrinas
descompensadas, compreensão e cooperação satisfatórias do paciente, ausência de
dependência em relação ao álcool e drogas. Riscos operatórios aceitáveis, ou quando existir
uma patologia associada capaz de ser melhorada também é considerado. Os critérios de
seleção se referem às instruções da American Society of Bariatric Surgery Consensus
(2002).
Garrido Jr. (2004) ressalta que antes do ato cirúrgico o paciente deve tomar
conhecimento e assinar o consentimento informado, que consiste em informações
impressas a respeito do procedimento cirúrgico e seus riscos, da dieta que deve ser seguida
nos primeiros meses após a cirurgia, bem como das mudanças que devem ocorrer no estilo
de vida.
Garrido Jr.(1998) mostra que o excesso de peso na obesidade mórbida ameaça a
vida do indivíduo. O risco de mortalidade de 15% nas pessoas que têm 20% a mais de peso
para a idade sobe para 250% em indivíduos que sofrem de obesidade em grandes
proporções. Por outro lado, ele aponta que a taxa de mortalidade entre as pessoas que
aguardam a cirurgia é de 2,3%; maior do que a taxa durante a operação ou depois dela.
Complicações podem surgir tais como hérnias, infecção intra-abdominal,
pneumonia, trombose, embolia pulmonar ou até mesmo perda de peso insuficiente
(American Society of Bariatric Surgery, 2002), fora as repercussões psicológicas, tais
como, desorganizações psíquicas graves (psicose, perversão, esquizofrenias), depressões,
transtorno do comer compulsivo, problemas psicossociais, insatisfação com o próprio
corpo, discriminação e isolamento, compulsões como compras compulsivas, jogos
33
abusivos, abuso de álcool e drogas e até mesmo tentativas de auto-extermínio. Para tanto, é
importante que uma equipe multidisciplinar seja utilizada para a realização dessa cirurgia,
com a participação de um cirurgião, clínico geral, cardiologista, nutricionista,
endocrinologista, psicólogo, e em alguns casos o psiquiatra.
A participação da psicologia e em alguns casos da psiquiatria tornou-se
indispensável muito depois do nascimento da cirurgia, quando complicações psicológicas e
psiquiátricas pós-cirúrgicas, que comprometiam os resultados da cirurgia, foram
diagnosticadas.
Franques e Arenales-Loli (2006) mencionam alterações do comportamento
alimentar pré-cirúrgicos tais como bulimia nervosa, síndrome do comer noturno e ingestão
compulsiva de grandes quantidades de líquido presentes em 75% dos casos, embora a
cirurgia tivesse sido um sucesso. Além disso, a obesidade poderia ser causa da dificuldade
em tolerar ansiedade e frustrações utilizando-se da ingestão de grande quantidade de
alimentos, levando a um alívio da tensão interna causada pela situação desestabilizadora.
Ao comer, compensar-se-ia esta desestabilização psicológica, reestabelecendo-se o pseudo
“equilíbrio interno”. De qualquer forma, a dificuldade de lidar com as emoções parece
permanecer após a cirurgia e se não for resolvida, outras saídas podem ser encontradas,
principalmente porque o sujeito procura por soluções imediatas e mágicas, onde não se
precisa fazer muito esforço e se implicar com sua perda de peso. Ele espera normalizar seu
problema através da cirurgia, sem necessariamente buscar uma explicação. Como afirma
SANTOS:
“O que ainda exige mais pesquisa é: quais as conseqüências psíquicas e sociais
dessa intervenção e das transformações dela advindas que são mais complexas
do que podem parecer à primeira vista. As transformações sicas são
praticamente certas, mas as psíquicas e sócias não; elas precisam ser provocadas
de outras maneiras, que o por meio do bisturi com o paciente inconsciente.”
(SANTOS, 2005, p. 30)
Contudo, bons resultados têm se observado em alguns casos, sujeitos que
conseguem lidar com sua nova imagem corporal e condição de vida, especialmente quando
os sujeitos candidatos são escutados por um psicólogo.
Segundo Nasser e Elias (2004), no Brasil, a partir de 1999, o Ministério da Saúde,
após consultas à Sociedade Brasileira de Cirurgia Bariátrica, reconheceu a necessidade do
34
tratamento cirúrgico dos obesos mórbidos e incluiu a gastroplastia entre os procedimentos
cobertos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
Durante a fase pré-operatória, o paciente é encaminhado ao psicólogo, através do
cirurgião ou do clínico, para uma avaliação psicológica. Nesse momento, é importante que
pacientes portadores ou potencialmente sujeitos a distúrbios psicológicos graves sejam
detectados e informados à equipe, para a decisão sobre suas capacidades em suportar a
cirurgia “psiquicamente”. A avaliação psicológica do paciente candidato a cirurgia
bariátrica não obedece a algum protocolo. Cada equipe tem sua maneira de fazer o laudo.
Uns se utilizam de testes psicológicos, outros de anamneses e entrevistas com a finalidade
de identificar se o paciente está apto ou não a realização da cirurgia. Muitas vezes, o lugar
que é concedido ao psicólogo é o lugar de um “juiz severo” que vai liberar ou não o
paciente para a realização da cirurgia. (ARENALES –LOLI e PRETO, 2006)
Franques (2004), define três grupos de pacientes em condições psicológicas de
serem submetidos à cirurgia. São aqueles que não têm distúrbios psicológicos graves e
parecem em condições de lidar com o rápido emagrecimento, os que estão em condições de
se submeter à cirurgia, uma vez que continuem um acompanhamento psicoterápico e
aqueles que poderão ir à cirurgia após um longo acompanhamento psicoterápico. Mas,
apesar dessa exigência, poucos continuam os acompanhamentos após a cirurgia,
especialmente porque, na maioria das vezes, o paciente que vai em busca do psicólogo,
chega atendendo a um protocolo de preparo para a cirurgia da obesidade e não por ter
decidido fazer um tratamento.
A participação da psicologia na equipe multidisciplinar de cirurgia bariátrica
envolve muitas questões éticas, embora seja uma exigência do Sistema Único de Saúde
(SUS). O psicólogo, muitas vezes, é convocado a ocupar o lugar de quem deve decidir se
este ou aquele paciente será contra-indicado para a cirurgia ou não. A problemática
obesidade mórbida envolve muitas questões: primeiramente, a cirurgia de redução de
estômago, é uma solução apresentado pelo meio médico num contexto pós-moderno, onde
o corpo biológico é o mais importante. Numa leitura psicológica, trata-se da exclusão do
sujeito, uma vez que encontramos um outro – a ciência – que faz pelo sujeito, emagrece por
ele, sem que ele tenha de fazer nada ou perder nada com isso, e esse sujeito, obeso
mórbido, em sua maioria em risco de morte, deposita na “mão” desse outro a decisão de
35
mudar ou não toda a sua vida. Muitas vezes observamos pessoas que engordam para atingir
o IMC de 40 para não terem que se haver com a perda de peso, conseguindo, dessa forma, a
indicação da cirurgia, com a “desculpa” de ser um paciente em potencial a ter as
comorbidades:
“Nela (na cirurgia bariátrica) o emagrecer, ato de vontade, torna-se consumo de
uma ‘vontade’ alheia (do mercado). Muitos dos que se submetem a essa vontade
mercadológica apresentam-se para os outros e para si mesmos como ‘casos sem
solução’, como doentes’ para os quais a vontade própria não funciona mais.”
(LEFÈVRE, 1995, pág 23)
Como veremos nos parágrafos que se seguem, desde a modernidade o corpo é visto
como um laboratório para as técnicas e procedimentos das ciências, com mais força no
período positivista, em que um novo paradigma, que podemos chamar de antropológico,
começa a surgir tornando o homem o objeto de estudo primordial dos saberes modernos.
na pós-modernidade, o corpo passa a ser a expressão primordial da individualidade, e na
relação com o outro funciona como um dispositivo que demonstra a existência do sujeito
para o outro, uma afirmação material da existência, da realidade do sujeito.
O controle do corpo, próprio da modernidade, era direcionado por uma lógica
organicista, essencialmente tecnológica e dominadora, em que a racionalidade deveria estar
presente em todos os aspectos da vida, inclusive na formação e entendimento do sujeito.
Uma série de discursos (batizados posteriormente com a alcunha de “ciências humanas”),
acaba por trazer em seu bojo critérios e limites que margeariam e auxiliariam na definição
do que seria o sujeito, o indivíduo, ou mesmo o homem enquanto categoria ontológica.
Antes da modernidade, o corpo do homem, o pensamento do homem, a vida do
homem, os limites do homem não haviam sido estudados. Não porque não existia
metodologia ou técnica capaz de levar a cabo tal empreendimento, mas, simplesmente
porque o homem, até a modernidade, não existia. FOUCAULT (2000) explicita bem esse
raciocínio:
“O campo epistemológico que percorrem as ciências humanas não foi prescrito
de antemão: nenhuma filosofia, nenhuma análise da sensação, da imaginação ou
das paixões, jamais encontrou, nos séculos XVII e XVIII, alguma coisa como o
homem; pois o homem não existia (assim como a vida, a linguagem, o trabalho);
e as ciências humanas não apareceram quando, sob o efeito de algum
racionalismo premente, de algum problema científico não-resolvido, de algum
interesse prático, decidiu-se fazer passar o homem (por bem ou por mal, e com
maior ou menor êxito) para o campo dos objetos científicos em cujo número,
talvez, não esteja ainda provado que seja possível incluí-lo de modo absoluto;
36
elas apareceram no dia em que o homem se constituiu na cultura ocidental, ao
mesmo tempo como o que é necessário pensar e o que se deve saber”.
(FOUCAULT, 2000, p. 476)
Os saberes da modernidade, enquanto saberes eminentemente antropológicos,
acabaram por analisar, dissecar, fazer falar o homem, enquanto objeto do conhecimento. O
olhar do observador científico se volta para o outro, numa dialética do conhecer, do
catalogar, de buscar a razão presente no silêncio representado pelo homem.
Silêncio esse que se fazia mais presente no corpo humano enquanto máquina
funcional, presente na análise dos fisiologistas alemães, que, influenciados pelas idéias do
filósofo Arthur Schopenhauer, tentavam descobrir o anima, a “vontade” motora do corpo
enquanto aparato funcional. (MOREIRA, 2007)
O corpo passa a ser visto como um conjunto de órgãos, cada qual com sua função
própria, determinado pelo conjunto de técnicas e saberes que o atravessam e limitam. A
relação do sujeito com o corpo também se transforma, uma vez que simbolicamente este
passa a ser visto como a forma do ser se estabelecer no mundo. O corpo passa a ser o
último pavilhão do conhecimento humano, da técnica, do saber, do classificar, medir e
numerar, e ao mesmo tempo se torna a representação primeira do sujeito, a sua medida
perante o mundo, sua determinação.
Tal afirmação mostra sua relevância quando relacionada ao crescimento do
individualismo moderno, que se degradará no narcisismo contemporâneo gerando, entre
outras coisas, o obeso. A sensível hipervalorização do corpo na pós-modernidade é,
claramente, uma conseqüência dessa individuação do ser que usa do corpo como
tecnologia, tecnologia essa lançada no solo arenoso e multifacetado da pós-modernidade,
que oferta uma quantidade enorme de prazer ao mesmo tempo que não permite a
construção de um aparato psíquico suficientemente capaz de lidar com essa oferta. De
último pavilhão do conhecimento o corpo passa a ser o palco do prazer. Ou nas palavras de
MOREIRA:
“A busca pelo prazer inscreve a questão do corpo de uma forma mais incisiva,
pois o palco do prazer é o corpo. Desta forma, na pós-modernidade assistimos a
uma crescente hipervalorização do corpo humano como sede de acontecimentos e
fonte de prazer, provavelmente inédita na história da humanidade”. (MOREIRA,
2007, pág. 4)
37
Na relação do corpo com a cultura, com a sociedade o sujeito se não mais como
o narrador de experiências coletivas e anônimas, mas começa a inscrever em si mesmo suas
próprias experiências, através de símbolos, como a tatooagem ou o piercing, ou através da
transformação do corpo pela experimentação do mundo. Na arte abandona-se a distância
própria do espectador, bem como o locus próprio da imagética artística, pela repetição
técnica e anódica, através da reprodução industrial. De contos e lendas passa-se a narrar a
própria vida, experiência única e irrepetível, que solidifica a postura individualista e
narcísica perante o outro e o mundo. Com mais propriedade, as palavras de BENJAMIN:
“O vestígio é o aparecimento de uma proximidade, por mais distante que esteja
daquilo que o deixou. A aura é o aparecimento de uma distância, por mais
próximo que esteja daquilo que o suscita. No vestígio, apossamo-nos da coisa; na
aura, ela se apodera de nós”. (BENJAMIN apud COSTA, 2004, p. 11)
Não a relação com o tempo e a cultura no mundo atual se inscrevem na
terminologia da aura e do vestígio que Benjamin coloca tão belamente. Também a relação
do sujeito com o seu corpo, imperceptivelmente próximo e eternamente distante. O corpo
obeso, como uma aura de chumbo, se apodera do sujeito.
Assim, desde a modernidade e mais ainda na pós-modernidade, o homem ocupou o
lugar de senhor do mundo e a ciência, com seus objetos técnicos, criou a tecnologia. Tudo
parece caminhar para o artifício, especialmente o corpo. Observamos o início de uma
substituição do Ser por mecanismos implantados em nós, vistos de forma exagerada nos
transtornos na percepção da imagem corporal e nos abusos na exploração das sensações
corporais. (COSTA, 2004). O sujeito contemporâneo padece de um fascínio crônico pelas
possibilidades de transformação física anunciadas pelas próteses genéticas, químicas,
eletrônicas ou mecânicas”. (COSTA, 2004, p.77)
Com a primazia do mercado na pós-modernidade, gerando um novo tipo de
capitalismo mais voltado para a oferta não de meros produtos, mas de promessas de
felicidade, a relação do sujeito e da ciência com o corpo se reifica ao extremo, a ponto de se
instituir a crença de que a mudança no corpo pode modificar aspectos fortemente
arraigados da psique, como se retirar do obeso seu corpo mórbido implicasse também na
extirpação da morbidez de sua cabeça. O corpo se torna mais um objeto de consumo,
estampado nas capas das revistas que prometem dietas milagrosas e felicidade instantânea
ao novo magro. De forma mais radical essa promessa é feita pela cirurgia bariátrica:
38
“As pessoas pagam para ‘consumir’ o que o consumo excessivo produziu. Com
isso, o próprio corpo se transforma em objeto de consumo. Na obesidade, o
excesso de peso precisa ser ‘consumido’. As cirurgias tornam-se mercadorias
(...) o que faz os indivíduos obesos mórbidos parecerem pessoas condenadas a
consumir um excesso.”(SANTOS, 2005, p. 53)
Paralelo aos benefícios inegáveis da ciência, ela se propõe a resolver os problemas
da psique como coisa ou objeto, a considerar e reconhecer que existe um sujeito
responsável por sua história. Parece ser muito mais fácil o sujeito ocupar a posição de quem
é simples objeto, pois o liberta de um enorme peso, o de decidir. Torna-se desejável ser
magro, mesmo comendo, pois uma medicação ou uma cirurgia terá o trabalho do
emagrecimento para o indivíduo.
“De um modo geral, o problema da saúde consumizada é a de que não se trata de
uma ‘enganação’, mas de uma fantasia; no caso da bariátrica, a fantasia vendida
pelo mercado é de que o gordo emagrecido pela cirurgia ficará não-magro mas
feliz.” (LEFÈVRE, 1995, p. 23)
Segundo Le Breton (2003), o corpo, no discurso científico contemporâneo, é
pensado como uma matéria indiferente, simples suporte da pessoa. É um objeto distinto do
sujeito à disposição da ciência, uma matéria prima a ser melhorada na qual se dilui a
identidade pessoal.
Uma mudança na medicina e no modo como esta lida com o corpo e a alma é
assistida na pós-modernidade, uma vez que o outro-ciência manipula o corpo da forma que
melhor lhe convém. O dualismo proposto por Espinosa de corpo/alma parece se
transformar em corpo/homem. O corpo que se transforma cada vez mais em corpo-
máquina, sem sujeitos nem afetos. (LE BRETON, 2003).
Tais afirmações encontram respaldo também em Santos (2005) quando pontua que o
corpo na atualidade é reduzido, no campo da saúde e da doença, a uma máquina, o que nos
revela o esquema do fluxo de informações entre o organismo do indivíduo e sua
“consciência” e do entendimento desse fluxo em que se de forma complexa a relação
entre os problemas biológicos, psicossociais, históricos, etc.
Numa projeção das formas produtivas, o corpo se transforma numa máquina de
fazer coisas, o que facilita para o sujeito perceber quando o corpo não está bem, quando ele
pára de produzir como fazia normalmente. Como uma máquina com defeito, o indivíduo
precisa então ser consertado, melhorado, para que continue produzindo. Nossa civilização é
39
responsável por transformar o homo sapiens em animal laborans, ou seja, em animais
trabalhadores, máquinas produtivas que precisam de combustível, função do alimento a
partir da modernidade e da noção do corpo como conjunto de órgãos (peças) funcionais.
Novaes (2003) coloca que o corpo contemporâneo é absolutamente imperfeito, uma
vez que se torna campo de todas as experiências possíveis. O corpo transformou-se em
máquina defeituosa, “rascunho” a ser corrigido (apud Le Breton), sobre o qual a ciência
trabalha para aperfeiçoá-lo.
A perfeição é a inspiração da ciência na medida em que é proposta a
perfectibilidade física prometida pelas novas tecnologias médicas, e o corpo passa a ser a
peça principal da afirmação pessoal. O corpo se transforma em objeto a ser transformado e
modelado segundo um design do momento. O sujeito busca o olhar do outro através da
perfeição de seu corpo para poder existir. Assim, ao mudar o corpo o indivíduo pretende
mudar sua vida, modificar seu sentimento de identidade. (LE BRETON, 2003). “O homem
contemporâneo é convidado a construir o corpo, conservar a forma, modelar sua aparência,
ocultar o envelhecimento ou a fragilidade, manter sua saúde potencial. O corpo é hoje um
motivo de apresentação de si”. (LE BRETON, 2003, p.30)
A medicina que zerava os males passa a efetuar grandezas. O corpo deixa de ter
como ideal um equilíbrio de forças e passa a valorizar o avanço de sua saúde como um
aprimoramento significativo, através de uma hiperbiologização do homem. Uma
experimentação permanente, alimentada pelo mercado e pela tecnociência. (FRANQUES e
ARENALES –LOLI –org-, 2006).
Hoje, pertence-se à era em que o gozo triunfa sobre o desejo e tudo se pode. O
sujeito não se responsabiliza por si como também em sua própria história. Na cirurgia de
redução de estômago, o sujeito encontra um funcionamento concreto que preside o
distúrbio alimentar. O sujeito está numa concretude tão grande, visto no psiquismo perdido,
na implosão mental pela rede de informações, em uma mente fragmentada e sucessivos
actings, típico da era contemporânea, onde não elaboração, e a sua única saída é uma
solução mágica para o seu problema a técnica. (LEBRUN, 2004). Todo esse contexto
gera inúmeras conseqüências graves para o indivíduo tanto a nível psiquismo, quanto a
nível corporal, como veremos no próximo capítulo.
40
3. Bases Teóricas
3.1.Definição de sintoma
Toda a teorização que fundamenta a psicanálise é tributária do conceito de sintoma
e do sentido que Freud deu a esse termo. Através de seu aspecto manifesto, ele faz uma
virada em sua teoria e institui mais uma instância psíquica, o Inconsciente. A partir desse
momento, Freud abandona a concepção médica sobre o sintoma com o advento do
inconsciente.
O termo sintoma tem sua origem na palavra grega súmptòma, e significa “o que se
mantém junto”, “o que coincide”, o que supõe uma correspondência entre o sintoma e o que
ele designa
7
. O Dicionário Houaiss de Língua Portuguesa (HOUAISS, VILLAR, 2001)
nos apresenta uma série de significados para o termo:
Sintoma. s.m 1 MED. ant. acidente produzido pela doença, do qual se tira
algum presságio ou conseqüência sobre o seu curativo e esperanças dele. 2 MED
fenômeno subjetivo (dor, mal-estar, etc.) referido por um paciente acerca de sua
doença, freq.us. para estabelecer o seu diagnóstico. 2.1 MED em sentido lato,
manifestação de alteração orgânica ou funcional. 3. PSICN manifestação de
conflito psicológico. 4. ALT mal súbito. 5 p. ext. indicação da existência de
(algo); indício, sinal (os s. indicavam revolta iminente). 6 p. ext. fenômeno, sinal,
cuja interpretação leva à previsão de que algo está para acontecer, intuição,
presságio, presentimento (a preferência pelo filho mais velho suscitava-lhe
sintomas de desavenças futuras). 7. p. ext. SP infrm. aspecto semelhante;
aparência (tem um rosto fino, como s. de pássaro) ETIM gr. súmptòma, atos'
abaixamento, coincidência, encontro; infelicidade, má sorte; sintomà, pelo lat.
medv. symptoma, atis MED 'sintoma'; ver sintom (at); f. hist. 1661 symptòma,
1720 simptoma, 1720 simptoma SIN/VAR ver sinonímia de predição. COL
síndrome. NOÇÃO de 'sintoma', usar antepos. sintom. e sintom (at). ( grifos
nossos) (HOUAISS; VILLAR, 2001, p.2582)
O sintoma, em termos gerais, seria, então, uma sinalização ou manifestação de
determinada doença. Para a medicina tal conceito também é válido. A doença se torna
transparente, pelo sintoma, através de exames e/ou provas radiográficas,
anatomopatológicas, químicas e neuronais; a doença vem como verdade imediata do
sintoma.
Quinet (2000) afirma que fazer do sintoma um sinal da verdade tornou-se um ideal
da medicina. Cada vez mais aparelhos têm sido usados para se comprovar a relação do
7
Mijolla, Allain. Dicionário internacional de psicanálise. Rio de Janeiro, Imago, p.1745.
41
sintoma com a doença, ou resoluções imediatas de problemas do âmbito psíquico têm sido
encaradas em um protótipo médico, na medida em que se observa o uso de pílulas para a
impotência sexual, hormônios para os sintomas subjetivos do climatério, remédios para a
depressão, etc. Com o desenvolver da medicina desencadeado pelo avanço da era pós-
moderna, como dito acima, assiste-se cada vez mais à busca de provas científicas para que
o sintoma seja remetido a um significado único, generalizável e universal do qual se tem
uma única fórmula real. Desde a prova da anatomia patológica até a fórmula matemática,
como, por exemplo, o cálculo do IMC para se autorizar ao sujeito a realização da cirurgia
de redução de estômago. No meio de tudo isso, encontramos um sujeito possível, do
inconsciente, deformado pelos efeitos da aliança da ciência com a pós-modernidade,
localizado por uma outra definição de sintoma que não a definição dos sintomas clássicos
propostos por Freud.
Mas, afinal, o que seria a definição clássica de sintoma para Freud?
Freud (1917/1996) define sintoma como atos prejudiciais, inúteis à vida da pessoa,
indesejados e causadores de desprazer ou sofrimento. O principal dano que o sintoma causa
à pessoa consiste na quantidade de energia que ela tem de despender para lutar contra ele.
Isso acarreta um enorme empobrecimento de si mesma na medida em que se gasta essa
energia mental que outrora poderia ser utilizada em outras tarefas importantes, fazendo com
que a pessoa fique paralisada e sem energia.
Freud defende uma posição que define uma concepção leiga de sintoma, na qual os
sintomas constituem a essência de determinada doença, e curar a doença corresponde a
remover os sintomas; mas com o advento do inconsciente essa teorização toma outra
proporção, como visto acima.
Portanto, o conceito de sintoma para Freud pressupõe uma economia de energia
psíquica, muito mais do que uma dinâmica das energias; é sua expressão quantitativa,
dentro de um conceito prático, que determina o que é o sintoma.
Tal distinção pode parecer simplória, mas sabemos que é uma questão de
quantidade de energia psíquica que distingue a neurose da normalidade, uma vez que as
precondições de formação dos sintomas estão também presentes nas pessoas ditas normais.
No caso do estudo da obesidade, tentaremos entender como a economia de energia
psíquica do obeso é estruturada, uma vez que esta se refere à relação de investimento
42
pulsional do sujeito com os objetos. Queremos sugerir que o caminho da formação dos
sintomas, como já foi definido por Freud, passou por alterações sensíveis com as mudanças
ocorridas na sociedade pós-moderna. Mais à frente tentaremos demonstrar que a dinâmica
da relação dos sintomas com o aparelho psíquico, num mundo que dificulta a constituição
da subjetividade e do próprio aparelho psíquico, se mostra atualmente mais direta, se
comparada à dinâmica clássica estruturada por Freud, ou seja, o sintoma na pós-
modernidade apresenta-se de uma outra forma, como um escoamento direto e irrefreado de
energia psíquica.
O sintoma nasce de um conflito. Conflito esse que, dentro da dinâmica relacional
entre o Inconsciente e as demais estruturas do eu, se instaura quando a libido, impedida de
encontrar satisfação, é forçada a procurar outros caminhos ou objetos. É conditio sine qua
non para o nascimento do sintoma que esses objetos e caminhos que a libido procura sejam
objetos de censura em alguma parte da personalidade da pessoa, de forma que, apesar da
aderência libidinal a esses objetos alternativos, o novo método de satisfação da libido
também se mostre impossível.
As forças psíquicas antagônicas, a da libido que precisa ser satisfeita, e a do
recalque consciente que impede que essa mesma libido encontre sua satisfação, são
“conciliadas” no sintoma. Este, nesse sentido, não passa de uma forma de equilibrar as
forças opostas, já destacadas acima. Na conferência XXIII (Freud, 1917/1996), vemos
Freud pautar essa relação de equilíbrio entre a libido e a realidade:
As duas forças que entraram em luta encontram-se novamente no sintoma e se
reconciliam, por assim dizer, através do acordo representado pelo sintoma
formado. É por essa razão, também, que o sintoma é tão resistente: é apoiado por
ambas as partes em luta”. (FREUD, 1996, p.362)
Na luta acima descrita, se a realidade permanece intransigente, através do controle
próprio do ego, uma vez que é este o mecanismo psíquico que controla não a
consciência, mas que de forma mais imediata determina a relação do sujeito com os
estímulos provenientes do mundo exterior, a libido pode regredir até algum momento da
história do indivíduo onde tenha sido satisfeita, seja “em uma das organizações que
havia deixado para trás, seja em um dos objetos que havia anteriormente abandonado”.
(Freud, 1996, p. 362)
43
Na busca pela satisfação, a libido sempre vai para algum lugar. Se o recalque se
mostra por demais poderoso, ela regride para épocas anteriores e melhores. Épocas quando
sua satisfação era mais fácil, por assim dizer, mas que foram esquecidas devido a esse
mesmo recalque por parte do ego, recalque que teve lugar como dispositivo de proteção do
próprio ego. Com tais conceitos em mente, qual seria a ligação que poderíamos estabelecer
entre os “outros/novos sintomas” e a regressão?
Ao buscar alternativas para a sua satisfação, a libido se distancia do ego,
catexizando posições antes reprimidas e se afastando das formas recalcadas do ego. Longe
dessas leis a libido se mostra indócil, se rendendo às idéias inconscientes e a processos que
só se revelam possíveis na dimensão do Inconsciente.
Obviamente que as forças do ego não abandonam seu caráter recalcado facilmente,
perseguindo a força libidinal em seu percurso regressivo, caracterizando uma anticatexia
8
,
que leva a libido perseguida a escolher uma forma de expressão da própria oposição que
encontrou no ego. Geralmente tal expressão se dá pela fixação da libido em alguma
atividade ou experiência da sexualidade infantil, em objetos outrora abandonados e aos
quais, nesse momento, a libido retorna:
“Assim, o sintoma emerge como um derivado múltiplas vezes distorcido da
realização de um desejo libidinal inconsciente, uma peça de ambigüidade
engenhosamente escolhida, com dois significados em completa contradição
mútua”. (FREUD, 1996, p.362)
Ambigüidade caracterizada justamente pela presença, no âmago do sintoma, não
das energias libidinais, mas também das energias recalcadas do ego. Através do recalque e
da fixação em algum antigo momento de sua história, a libido dribla o recalque e consegue
encontrar uma espécie de satisfação real. As restrições que cercam essa satisfação não
esqueçamos que as forças recalcadas do ego acompanham a energia libidinal e também
encontram seu espaço na economia da satisfação tornam muitas vezes essa satisfação
irreconhecível.
Ao criar um substituto para a satisfação frustrada, regredindo a estados de
desenvolvimento anteriores, onde a satisfação libidinal era menos restrita, o sintoma repete
essa forma de satisfação, fixando-se nela, mas de forma deformada pela censura do ego que
8
A catexia pode ser entendida como uma força que segue o mesmo sentido da energia instintual primária,
sendo a anticatexia uma força que age em sentido contrário.
44
surge no conflito entre as energias libidinais e as de cunho recalcado, transformando a
satisfação em uma sensação, via de regra, de sofrimento ou desconforto, o que torna, para o
indivíduo que experimenta o sintoma, este irreconhecível enquanto satisfação. Ora, se a
finalidade da pulsão é a busca da satisfação de necessidades, que saídas a libido encontraria
caso isso não acontecesse?
O maior objetivo da pulsão é a satisfação de necessidades a qualquer custo, como
veremos logo adiante. Dessa forma, a pulsão pode encontrar e deixar pontos de fixação para
trás. Esses pontos de fixação são os chamados elementos na formação dos sintomas – como
já explicitado anteriormente, que, por sua vez, se fazem de substituto das satisfações
frustradas. Assim, Freud (1916-17) menciona que os sintomas, ditos neuróticos, são o
resultado de um conflito ocasionado pela frustração da pulsão quando impedida de
encontrar satisfação pelas vias diretas. O tipo de satisfação que o sintoma consegue tem
algo de estranho para o sujeito, na medida em que a pulsão regride a épocas em que esses
objetos satisfaziam o sujeito, e agora não o satisfazem mais. Dessa forma, o sintoma se faz
irreconhecível para o sujeito, dando motivo para com que este sofra e se queixe dele. A
pulsão se satisfaz no sintoma, fato este paradoxal, uma vez que gera desprazer.
Freud (1917) explica esse estranhamento identificando na formação do sintoma o
retorno a um auto-erotismo difuso, do tipo que proporcionava o instinto sexual nas
primeiras satisfações. É que a satisfação erótica do indivíduo nasce da descoberta de seu
corpo e do seu relacionamento com corpos alheios, como o de sua mãe, por exemplo. Os
sintomas, nesse nível, representam um abandono dos objetos, ou mesmo, um abandono da
própria realidade externa:
Em lugar de uma modificação no mundo externo, essas satisfações substituem-
na por uma modificação no próprio corpo do indivíduo: estabelecem um ato
interno em lugar de um externo, uma adaptação em lugar de uma ação...”
FREUD, 1996, p.368)
Enfim, ao retornar a questão levantada anteriormente, da relação entre os “outros/
novos sintomas” e a regressão, como aconteceriam os caminhos da formação desses outros
ou novos sintomas na pós-modernidade? Trataríamos de um sintoma diferente, de formação
sensivelmente distinta dos sintomas clássicos e que nos levaria a enquadrar a obesidade
mórbida nesse conceito.
45
3.2. A concepção freudiana de corpo e a pulsão
As manifestações corporais aparecem na gênese da psicanálise. A idéia de um corpo
psíquico sempre foi cara a Freud. Um corpo afetado pelo pensamento, atravessado pela
linguagem, e marcado pela angústia. A pulsão nasce nesse espaço físico representando as
exigências de ordem somática que são demandadas ao psíquico, que passa a ser sensível
aos movimentos pulsionais. Freud ainda propõe um aparelho que recebe o impacto do
mundo exterior e que vivencia o encontro sempre traumático com o campo do Outro, com a
linguagem. Lacan reinterpreta essa idéia dizendo que sobre esse pedaço de carne irrompe a
pulsão, uma energia excessiva, endógena, mas exterior ao aparelho psíquico. Destaca ainda,
no que concerne à segunda teoria das pulsões de Freud, a importância da pulsão de morte
que, segundo ele, estará presente enquanto potência, e afirma também que toda pulsão é
virtualmente uma pulsão de morte. Não vamos nos aprofundar na visão lacaniana por não
ser este o nosso marco teórico, mas é importante colocarmos aqui uma idéia adotada de
Lacan para ilustrar os termos de nossa argumentação:
“O corpo, tal como a psicanálise o concebe a partir de sua experiência clínica,
está enlaçado em três dimensões: a da imagem em que nos reconhecemos, a do
real, do gozo e a do simbólico das marcas inconscientes que recebemos do Outro
na nossa história”.(VIDAL, 2000, p.9)
Então, retornemos ao início. Freud, a princípio, caracteriza o corpo de forma dúbia.
Em uma primeira instância, anatômica/biológica, em que o corpo se apresenta como uma
dimensão meramente presencial do sujeito. É o chamado Corpo “Bio”, que se faz pela
presença de instintos e pela satisfação de necessidades, o que equivale à manifestação da
pulsão de autopreservação. A segunda dimensão, chamada de Corpo “Psíquico”, se
apresenta como instância pulsional/representacional, ou instância eminentemente
erótica/sexual, voltada para a satisfação não somente de necessidades, mas também de
desejo, desencadeando os processos próprios à pulsão sexual.
O corpo Bio, como dito anteriormente, é a dimensão presencial do sujeito, em que
ele assume sua identidade no mundo na forma de um fenômeno, um bloco, uma unidade,
localizado em um espaço psicofísico”. (MOREIRA, 2007). Tal dimensão, na teoria inicial
de Freud, se mostra essencialmente orgânica, carente de uma capacidade representacional e
não permeada, em última instância, “pelo sexual” (MOREIRA, 2007) O que importa
46
inicialmente para o conceito de corpo Bio, em Freud, é a “carnalidade”, a concepção
essencialmente moderna do corpo como uma máquina, onde suas diversas funções e órgãos
deveriam estar em pleno funcionamento para a sua sobrevivência.
Somente com a introdução dos conceitos de libido
9
e narcisismo
10
, é que Freud
começa a ver no corpo Bio uma dimensão afetada e atravessada parcialmente pelo substrato
da pulsão de natureza sexual, abrindo uma brecha na aparência de organicidade quase
absoluta que caracterizava o corpo Bio. A pulsão de autopreservação está ligada
inarredavelmente ao corpo, trabalhando no espaço construído pelas necessidades deste.
Antes de repensar sua teoria das pulsões, Freud identificava a pulsão de autopreservação
como uma pulsão elementar, da ordem das necessidades, relacionada à fome, ao sono e às
demais premências biológicas do corpo.
Após a inclusão dos conceitos acima mencionados na problemática freudiana, o
corpo Bio passa a ser visto como um espaço onde as pulsões parciais se manifestam e se
alojam. É essencial lembrar que, em Freud, as pulsões parciais têm origem em impulsos
motores e se caracterizam pelo suporte ou contribuição dada por um órgão receptor de
estímulos (pele, mucosas, órgão sensorial). Dessa relação entre pulsão e corpo Freud
desenvolve o conceito de “Zona Erógena”. (MOREIRA, 2007)
A pulsão se originaria, portanto, de um funcionamento corporal do ser vivo, onde
partiria de uma borda corporal, as chamadas “zonas erógenas”, contornaria um objeto (o
mais variado possível) e retornaria à fonte, o próprio corpo, fechando, assim, seu circuito.
O alvo da pulsão seria seu trajeto de ir e vir em busca da satisfação que nunca é alcançada
plenamente, pois sempre deixa um resto. Dessa forma, como dito anteriormente,
entenderíamos o fato de a pulsão estar situada na fronteira entre o psíquico e o somático,
um representante psíquico dos estímulos que se origina dentro do organismo e alcança a
mente, e que só é conhecida por meio de seus representantes. (FREUD, 1915)
Por mais imperativo que o enunciado de um corpo meramente carnal fosse na época
em que Freud construiu sua teoria, ela rompe com esse paradigma ao revelar a presença dos
estímulos pulsionais no corpo Bio.
9
Energia sexual psíquica.
10
O termo narcisismo significa, em referência à mitologia grega, o amor a si próprio ou o investimento
libidinal em si mesmo.
47
Através da mecânica e da economia da dor no indivíduo, Freud coloca a idéia de um
ego corporal, fundamental para o desenvolvimento de uma psicofisiologia, em que o corpo
é visto não mais como um simples objeto, mas uma dimensão em que a resposta aos
estímulos origina sensações não somente externas, mas também internas. Sensações essas
identificadas como um processo essencial para o conhecimento do corpo pelo indivíduo.
Nesse momento podemos nos aprofundar no conceito de corpo psíquico ou
pulsional, ou da dimensão representativa do indivíduo, uma vez que, por mais que a
concepção biológica do corpo, enquanto sistemas intricados de redes neuroniais,
musculares, seja essencial para entender o problema dos sintomas e de suas novas formas
de manifestação, é somente com o estudo do incidente pulsional sobre essas redes que
podemos compreender a teoria dos sintomas em toda sua importância:
“O corpo da psicanálise se modula no dizer. Freud o delimitou a partir dos ditos
da histérica que revelaram uma dimensão simbólica contrária à própria
anatomia. Porém o corpo nem sempre fala pela via simbólica do sintoma. Às
vezes emudece e, no lugar onde falta a angústia, um órgão pode ser lesionado
(...) (VIDAL, 2000, p. 8-9)
Da mesma forma que a pulsão de autopreservação caracteriza o corpo Bio, é a
pulsão sexual que caracteriza o corpo Psíquico. O seu conceito representa as relativamente
constantes mudanças de fase e de lugar que transformam a energia presente nos processos
sexuais orgânicos em energia sexual psíquica. Como é notório, a teoria vestibular de Freud
sobre as pulsões, articulada através dos referidos conceitos de pulsão de autopreservação
e pulsão sexual, passa por uma profunda reformulação no que tange à abrangência das
pulsões na vida psíquica do sujeito. Com a introdução do conceito de narcisismo (1914),
em que o eu pode ocupar o lugar de um objeto sexual, a libido narcísica passa a ser a
manifestação da força das pulsões, portanto a oposição entre as pulsões do eu versus
pulsões sexuais torna-se ultrapassada uma vez que uma parte das pulsões do eu, as pulsões
de autoconservação, tem uma natureza libidinal, própria das pulsões sexuais, o que
formalmente impossibilitaria a permanência das categorias elaboradas quando da primeira
tópica:
“O narcisismo é então visto como o complemento libidinal para o egoísmo da
pulsão de autoconservação. Ele entra assim numa definição estrutural do Eu: o
Eu retém um investimento narcísico permanente que nenhum destino jamais
esgotará” (FREUD, 1917 apud MIJOLLA, 2005, p.1223)
48
Ele cria a partir disso o conceito de Pulsão de Vida (1920), que abrange, além das
necessidades, a pulsão sexual, tendendo a constituir unidades cada vez maiores, isto é, não
apenas a conservar as unidades vitais existentes, mas também estabelecer laços ou ligações;
a pulsão de vida é também designada pelo termo “Eros”.
Freud opõe à pulsão de vida o conceito de pulsão de morte, “Tanatos”, pulsão essa
que faz os seres vivos tenderem para um estado sem vida. A pulsão de morte reconduz o
indivíduo a um estado anorgânico, ou seja, um estado de repouso absoluto (o maior prazer
possível). Voltadas inicialmente para o interior e tendentes à autodestruição, as pulsões de
morte seriam secundariamente dirigidas para o exterior, manifestando-se sob a forma
agressiva ou destrutiva. Ela não pode manifestar-se isoladamente, pois o que chamamos de
pulsão de morte é o que remete o sujeito à vida; o seu trabalho reconhece-se, em particular,
através das compulsões à repetição que sempre deixam um resto que impele a uma nova
repetição quando ela está intimamente coligada com Eros.
A compulsão à repetição é um processo incoercível e de origem inconsciente, pelo
qual o indivíduo se coloca ativamente em situações penosas, repetindo assim experiências
antigas sem se recordar do protótipo e tendo pelo contrário a impressão muito viva de que
se trata de algo plenamente motivado na atualidade.
No decorrer da vida do sujeito, as pulsões passam por vicissitudes, caminhos ou
destinos. Freud os enumera em: a reversão ao seu oposto, o retorno em direção ao próprio
eu, o recalcamento sintoma, como acima conceituado e a sublimação. Freud sugere
ainda que a pulsão seja definida através de quatro referências, tomadas sempre no seu
conjunto, quais sejam: sua fonte, sua força ou pressão, sua finalidade e seu objeto. Ressalta-
se aqui aquilo que Freud ensina de maior relevância: o objeto é o que de mais variável
na pulsão. E esse corpo possui zonas ou fontes pulsionais privilegiadas que definem certos
estádios especiais de desenvolvimento oral, anal e fálico. Dessa forma, são as
representações representativas da pulsão no inconsciente que indicam as demandas do
sujeito ao Outro, como também as demandas do Outro ao sujeito presentificadas nas
modalidades da pulsão. Neste estudo, vamos nos ater apenas à pulsão oral por se tratar da
obesidade.
49
A pulsão oral se situa na primeira fase da evolução libidinal, quando a criança
estabelece com a mãe a relação de amor a partir do seio. O prazer sexual está ligado de
forma dominante à excitação da cavidade oral e dos lábios que acompanha a alimentação.
A atividade de nutrição fornece as significações eletivas que se exprimem e se organizam a
partir das relações de objeto. Assim, as relações de amor com a mãe serão marcadas pelo
paradigma da pulsão oral, se por um lado, ativo, o comer e, por outro, passivo, o de ser
comido, sobre o seio para depois se deslocar para outros objetos. Assim, todo o psiquismo é
concebido como um sistema de domínio de excitações o aparelho psíquico, nos quais os
representantes da pulsão funcionam como operadores contra e a favor dessas excitações. A
pulsão é original, na medida em que o corpo do bebê é um corpo pulsional desde o
nascimento. A pulsão é a energia que move o aparelho psíquico, além de ser a representante
psíquica dos estímulos que se originam dentro do organismo e alcançam a mente.
O conceito freudiano (1920) de aparelho psíquico nos mostra que há uma
comparação a uma vesícula viva que é submetida à pressão de excitações externas e
internas que tem por função o escoamento livre da energia e o alívio das tensões,
obedecendo, assim, ao princípio de prazer. Esse escoamento livre de energia pode levar a
um princípio de inércia ou nirvana, onde não se teria alguma energia e o organismo
atingiria um estado total de prazer, ocasionando a morte, como dito anteriormente ao
mencionarmos a pulsão de morte. Para que isso não ocorra, a vesícula desenvolve uma
camada protetora, as barreiras de contato, para se manter o mínimo de energia possível que,
por sua vez, origina as excitações internas, responsáveis pelo estímulo da fome, por
exemplo. Dessa forma, o trabalho mais bem-sucedido do aparelho psíquico consiste na
transformação da energia livre externa em energia vinculada interna –, na busca de
satisfação das necessidades.
Nesse aspecto, é importante também citar a constituição da demanda e do desejo no
que diz respeito ao aspecto da oralidade e da constituição de si a partir do outro, como
pontuado acima no mecanismo de operação do aparelho psíquico em busca da satisfação de
necessidades. Peguemos, por exemplo, a necessidade do alívio da tensão interna da fome
que deve ser satisfeita: esse processo se através da chamada experiência de satisfação. O
bebê, ao nascer, sente um enorme desprazer, ocasionado pelo aumento de suas tensões
internas eliciado pelo estímulo fome. A mãe busca satisfazer essa necessidade de fome
50
através da amamentação, em busca da sobrevivência desse infans. Porém, desde sua
primeira experiência de satisfação, a criança não recebe o leite, mas também o afeto.
Essa sensação é única e se perde para sempre, tornando os seres humanos desamparados
por natureza. Assim, nas suas amamentações subseqüentes, essa criança terá uma demanda
de satisfação de suas necessidades biológicas e uma demanda de amor, em busca da
lembrança da primeira sensação afetiva sentida. Contudo, ao demandar amor, essa criança
também alucinará o prazer proporcionado e sentido pelo seio, instaurando, a partir daí, o
desejo.
No caso do obeso, parece haver uma fixação na própria angústia que se transforma
em uma mudança extremada das características corporais, acumuladas através da
alimentação e gordura; o obeso se opõe contra a pressão da realidade construindo para si
sua própria armadura. Cercando-se da extrema falta de sentido e de real do mundo, ele se
enche de sentido, ao mesmo tempo em que se esvazia de referenciais e limites, tornando-se
ele mesmo hiper-real, demonstrando sua realidade através de seu tamanho e de sua
oposição aos padrões que a virtualidade pós-moderna nos vende. Só é real o que resiste, e o
obeso, gravitando em suas próprias angústias e em seu próprio vazio, tem em seu corpo
deformado um resumo da deformação da realidade.
O acordo entre as forças conflituosas parece encontrar no corpo do obeso não só sua
expressão, mas também sua morada simbólica. Mista de satisfação exagerada, com culpa e
sofrimento físico, a obesidade se torna o real da doença psíquica, no sentido de expressão
simbólica que se opõe não só à satisfação total da libido, mas também à pressão da
realidade.
Os sintomas representam, por vezes, eventos que realmente ocorreram na vida do
indivíduo, mas por outras representam fantasias dele, uma vez que verdade e fantasia
podem ser combinadas nas tentativas dos sujeitos de descrever suas lembranças infantis. A
tênue separação entre real e fantasia no campo do simbólico nos autoriza a não nos
determos demasiadamente nessa distinção, uma vez que, no que tange à obesidade, a
conseqüência do conflito parece não simbolizar em um sintoma.
A relação existente entre a conjuntura social e a obesidade deve ser tratada se
quisermos explicitar a caracterização da obesidade como um sintoma diferente, um outro
ou novo sintoma, de formação sensivelmente distinta dos sintomas clássicos, como dito
51
anteriormente. Não a oferta exagerada de uma alimentação altamente calórica, mas toda
a estrutura simbólica da sociedade pós-moderna possibilita a obesidade enquanto epidemia.
A própria dinâmica das relações sociais, influenciando a dinâmica da estrutura subjetiva
das pessoas, contribui para o crescimento constante dessa condição.
52
3.3 Os efeitos da Pós-Modernidade na produção de sintoma ou outro/novo sintoma
Por mais que durante as outras épocas da humanidade tenham existido pessoas
obesas, somente na pós-modernidade tal doença passou a apresentar aspectos epidêmicos.
Mais que um mal individual representa uma condição maléfica da própria sociedade
11
. Já se
falou da incapacidade de definirmos ou mesmo nomearmos o presente momento do mundo.
Muitos nomes foram levantados, como sociedade do espetáculo, sociedade do capitalismo
tardio, sociedade do consumo organizado, pós-modernismo, pós-modernidade.
Obviamente quando usamos o prefixo “pós”, sugerimos uma condição anterior. No
caso em tela a modernidade seria tal condição. A idéia principal é que, apesar de termos
passado pela modernidade, não sabemos qual é o momento que estamos atravessando, por
isso é impossível denominá-lo. Talvez o termo pós-modernidade seja o último ranço de um
mundo com referenciais que ainda temos, a modernidade como medida, parâmetro para o
momento posterior. Nada nos remete mais à modernidade do que sua superação
12
.
Podemos dizer que o que caracteriza nosso período é a ausência do que podemos
chamar de “centro”. Centro no sentido de referência, de ponto de apoio. Vivemos um
momento em que todos os saberes são questionados, todas as formas de organização social
são colocadas em xeque enquanto formas de dominação. Momento em que a cultura e a
ciência são instrumentais e “instrumentalizantes”, tentando dominar a natureza e as
experiências subjetivas através de um processo reificante que acabará por transformar as
pessoas, tornando-as também instrumentos dentro de uma orquestração violenta e fria do
social.
Não podemos ignorar que muito do que foi dito para caracterizar a pós-modernidade
na verdade soa como um mal-canalizado ódio contra a própria modernidade, como se:
“o horror original da classe média ao testemunhar o surgimento do moderno os
primeiros Corbusiers, brancos como as primeiras Catedrais do século XII quando
11
A obesidade denuncia, no corpo do sujeito, a falha da modernidade em sua tentativa de regular todos os
aspectos da vida humana pela racionalidade e pela ciência. O controle geral das pulsões proposto pela época
moderna gerou, no balanço final, um acúmulo de energias libinais insatisfeitas e reprimidas, energias que
acabaram moldando o indivíduo narcisista da pós-modernidade.
12
Tal idéia se torna mais forte quando constatamos que a maior proposta dos saberes da pós-modernidade é
justamente desconstruir os saberes modernos, mostrando suas incongruências e seu caráter essencialmente
político.
53
recém construídas, as primeiras obras de Picasso, retratando cabeças humanas com
dois olhos em um perfil, parecidas com um linguado, a chocante “obscuridade”
das primeiras edições de Ulysses ou de “The Waste Land” , essa aversão dos
primeiros filisteus, spiessbürger, bourgeois, ou conformistas de Main Street,
tivesse repentinamente ressuscitado, infundindo as críticas mais recentes do
modernismo com um espírito ideologicamente muito diferente, cujo efeito é, no
geral, despertar no leitor uma simpatia igualmente arcaica pelo protopolítico”.
(JAMESON, 1991, p. 81)
Mas, independentemente disso, temos que o descrédito criado pelas críticas aos
saberes da modernidade gerou um estado de extrema desconfiança em relação às formas de
se regular a vida humana e uma ausência completa de centros e pontos referenciais.
Para suprir essa ausência, ou mesmo se aproveitar dela, o mundo nos oferece uma
multiplicidade de formas de vida, uma multiplicidade de formas de saber e uma igual
multiplicidade de formas de sentido, contra a falta de referência e o excesso do sentido.
Pensemos na televisão. A televisão se mostra hoje não somente como um aparelho
que nos prende com entretenimento e informação, mas como uma sólida parede simbólica
13
onde uma situação de fluxo total nos relaciona com e nos relembra a situação de fluxo total
que enxergamos através dela (JAMESON, 1991, p. 94).
A realidade multifacetada da sociedade é representada na televisão pelo videoclip,
pelo jornalismo em tempo real, pela espetacularização do mais simples dos fatos. Tudo isso
permeado pelos intervalos comerciais, apresentados em uma ferocidade estonteante que não
nos permite escolher ou pensar sobre o que vemos.
Nossa relação simbólica com a televisão diz muito sobre nossa relação com o
mundo contemporâneo. Da mesma forma que o fluxo total da TV não nos permite criar um
aparato simbólico capaz de registrar e lidar com o que vemos, a realidade ultraveloz,
essencialmente periférica, carente de referências, dificulta a constituição da nossa estrutura
subjetiva, que cada um vai fazer individualmente.
Com a dessacralização do saber e da cultura, ainda na modernidade, o mal estar da
civilização pode ser identificado com uma busca incessante por formas sólidas de se
encarar o mundo, pontos de apoio e firmeza que a crítica da modernidade acabou por retirar
de debaixo dos nossos pés: “A modernidade não é uma nau Kantiana estável, cujo piloto
conhece perfeitamente bem seu rumo. Estamos num mar desconhecido, e muitos de nós
estão enjoados”. (MORRISON, 2006, p. 353)
13
A definição de simbólico aqui não é a definição psicanalítica de simbólico.
54
Essa dessacralização acima denunciada gerou no homem o pensamento de que os
tais pontos de apoio por ele buscado são de natureza essencialmente material, não restando
outra fuga a não ser se entregar às concepções reificantes e instrumentalizantes da
realidade.
Para entendermos a obesidade, enquanto sintoma de formação distinta da concepção
clássica, é fundamental atentarmos para esses fatos. O mundo em que o obeso, doente
social, surge é um mundo essencialmente infantilizado, materializado, em que promessas de
satisfação imediata são apresentadas a todo o momento, pelas TVs e pelos outdoors. Onde
o avanço tecnológico garante não a ausência de esforço, mas também um excesso de
formas de satisfação pulsional, uma exacerbação de formas de gozar.
“Nosso tempo, todavia, é o de uma época dos criminosos sem culpa, pois
nossa sociedade, longe de proibir o gozo, estimula-o. Ordena a gozar.
Agora, portanto, o sujeito sente-se culpável de não poder gozar
completamente.(...) Os sujeitos desorientados, sempre culpáveis por não
gozar completamente, encontram-se na sua 25 hora com sua
responsabilidade de gozo. Mas não estão à altura de assumi-la, pois
perderam a bússola do desejo.” ( TORRES, 2007, p. 53-54)
Num mundo infantilizado e egoísta, retira-se do obeso até mesmo a
responsabilidade pelo ato de emagrecer. Alguém emagrece “para ele”, até na tentativa de
“cura” o obeso é reificado. Retira-se o corpo da pessoa, mas ao mesmo tempo retira-se a
pessoa do corpo, uma vez que ela é vista como uma coisa, para se moldar e abrir, para se
transformar e consertar, para se disputar e descartar.
O corpo e seus excessos na alimentação pode nos mostrar os desvios que um sujeito
faz para lidar com os efeitos da sociedade em sua vida.
A idéia ganha mais força se pensarmos que são as forças sociais e suas diversas
expressões que auxiliam na formação do indivíduo. Através de suas relações com o meio
exterior, a dinâmica de sua subjetividade, suas relações de controle e satisfação vão se
estruturando.
Podemos trabalhar esses conceitos com a ajuda da seguinte citação de SILVEIRA e
FURLAN:
“Corpo e alma são interpenetrados de história e articulados através de diferentes
contextos discursivos, os elementos co-construtores de múltiplos focos de
subjetivação, de forma que se torna imprescindível associá-los ao processo de
55
edificação da própria identidade histórica do indivíduo”. (SILVEIRA; FURLAN,
1990, p.175)
A própria alma, não como conceito ontológico pré-dado, mas como conseqüência de
poderes e saberes que atravessam o indivíduo, criando determinado tipo de sujeito,
apresenta sérias dificuldades para se formar em um paradigma cuja característica é a
ausência de solidez, de determinação.
O fluxo extenuante das relações contemporâneas se determina ainda pela dinâmica
própria do mercado. O mercado que em sua liberdade absoluta, caracterizada pela falta de
território, converte o ideal humano em um ideal egoístico e narcisista, em que as relações
afetivas possuem sentido somente dentro de uma concepção que envolve vantagens para as
pessoas. A partir do momento em que tais relações se tornam desvantajosas, são
abandonadas e substituídas por outras diferentes. O corpo é visto também como uma forma
de satisfação desse ideal narcisista como visto no primeiro capítulo, sendo moldado para
um padrão de beleza que nos serve para identificar parte das forças que ajudam a formar a
alma do homem pós-moderno:
“A alma, prisão do corpo. Dessa maneira, ao inverter a clássica preposição
platônica quanto ao binômio corpo e alma (lembremos, para Platão, o corpo é a
prisão da alma), Foucault desnuda o elemento anímico de seu suposto caráter
mistificador transcendental, pois faz da alma o foco da atuação do poder/saber
sobre o corpo a alma do delinqüente, do louco, do aprisionado, do sexualizado,
por exemplo , enquanto elemento discursivo semiótico para o acesso e o
exercício dessas forças sobre ele”. (SILVEIRA; FURLAN, 1990, p.176)
Podemos acrescentar aos exemplos a alma do obeso, criada através de suas relações
com as forças do mercado, que lhe impõem uma realidade a do consumidor perfeito,
voraz e sem limites e lhe exige outra, a realidade dos corpos magros e esbeltos,
suscintando-lhe vergonha, horror, feiúra e rejeição. A voracidade da obesidade manifesta o
tratamento obscuro e inquietante que recobre o ato familiar de comer. (SANTORO, 2003,
p. 52).
Em nenhum momento de nossa história como nos tempos que estamos vivendo
agora, caracterizado por uma civilização do trauma, que também é uma civilização das
vaidades variáveis, e onde a pulsão se revela ainda mais em sua face mortal, encontramos
uma gama tão vasta de distúrbios alimentares como na atual. Mas em nenhum momento
estivemos tão fragilizados para lidar simbolicamente com o mundo como agora. A estrutura
56
subjetiva do indivíduo encontra sérias dificuldades para se fortalecer, pois num mundo de
fluxo total e instrumentalização não resta mais tempo para se constituir uma alma.
“O anoréxico, que pretende nada comer; o bulímico, que quer tudo comer;
o toxicômano, que tenta obturar a falta com narcóticos; e o transgressor,
que pede sempre um pouco mais de gozo, são tipos clínicos que aspiram a
evitar a separação.” (TORRES, 2007, p. 53)
Assim afirma Laurent (2007): desde a segunda teoria das pulsões em Freud e com a
teorização de Lacan, que o sujeito prefere o gozo à autoconservação, e que o narcisismo
não é barreira contra a pulsão de morte. Em nossa civilização, o sujeito pode escolher
“entregar-se à morte” de várias maneiras. A overdose não se restringe aos comportamentos
suicidas, como as toxicomanias de drogas pesadas. O sujeito pode se matar no trabalho,
escolher esportes perigosos, viagens estranhas, tentar ser astronauta amador ou apresentar
apetite multiforme pelo risco. Pode também escolher o suicídio político, transformar-se em
homem-bomba e gozar de sua morte.
Num mundo de fluxo total não existe tempo para que as forças que compõem a
subjetividade das pessoas se condensem, nem mesmo os conflitos psíquicos conseguem se
equilibrar perfeitamente. Tal questão explica por que os sintomas na pós-modernidade,
sobretudo o da obesidade, aparecem com uma satisfação direta da pulsão, o que será
mencionado logo adiante por diferentes escolas que interpretam o fenômeno de maneira
diversificada, mas que têm pontos em comum.
Segundo Schwartzman (2004), o sujeito expressado nos sonhos, nos lapsos, nos
atos falhos, parece desaparecer. Observamos uma exclusão da condição humana de sujeito
na sociedade pós-moderna e o aparecimento de novas formas de subjetivação e uma nova
psicopatologia.
“... os modos de subjetivação predominantes na cultura: (...) em uma
sociedade em que as formações discursivas apagam o sujeito do
inconsciente, em que a felicidade e o sucesso são imperativos
superegóicos, a depressão emerge como a histeria na sociedade
vitoriana como sintoma do mal-estar produzido e oculto pelos laços
sociais.” (SCHWARTZMAN, 2004, p.131)
Schwartzman (2004) se utiliza da Escola de Paris para melhor contextualizar esse
processo, pontuando que as novas patologias se caracterizam por produzirem transtornos e
57
não sintomas. O sujeito parece não conseguir traduzir um conflito psíquico em um sintoma
clássico caracterizado por Freud, e se utiliza do corpo para tal. Um excesso de excitação
parece invadir o aparelho psíquico sendo superior naquele momento à sua capacidade de
processamento. Desencadeando, com isso, um empobrecimento do funcionamento psíquico
e uma não possibilidade de construção representativa, mas a exacerbação de uma expressão
de outra natureza: alterações físicas juntamente com algum tipo de ação compulsiva.
Assim, as manifestações psicopatológicas que integram o grupo das novas
patologias parecem indicar que a pulsão está se expressando por algum tipo de ação ou pela
somatização. Esses transtornos, aparentemente psicossomáticos, caracterizam-se pela
transformação de um sofrimento emocional em uma lesão no corpo. Segundo a Escola de
Paris, existem três setores para o escoamento pulsional à economia psíquica humana; um do
pensamento e/ou mentalização, outro da ação e outro da vida somática, para enfim
desencadear a eclosão das circunstâncias facilitadoras à somatização.
“Há risco da eclosão de uma somatização quando, por ocasião de um
aumento de pressão sobre o aparelho psíquico – provocado por excitantes
tanto externos quanto internos, ou por uma combinação de ambos –, os
recursos de enfrentamento pela mentalização ou pela via da ação são
insuficientes.” (SCHWARTZMAN, 2004, p.134)
Segundo a Escola de Paris, a urgência pulsional leva também a uma economia do
trauma, uma vez que um excedente de excitação que ameaça a integridade do aparelho
psíquico em direção à eclosão do movimento e à desorganização decorrente de um trauma.
Essa desorganização se dá através de um excesso de excitação que invade o aparelho
psíquico superior a sua capacidade de processamento em determinado momento. E esse,
por sua vez, tenta se defender procurando equilibrar-se através de três saídas: fazendo uma
diminuição geral de suas atividades, numa ruptura dos recursos do aparelho psíquico na
produção de somatizações num ataque das forças pulsionais ao organismo e numa repetição
compulsiva de uma determinada ação, como numa tentativa de expelir o excedente
pulsional numa procura de busca de alívio através da repetição do vazio.
Dessa forma, os transtornos parecem se apresentar para além da definição de
transtorno psicossomático, pois ora se utiliza de um esforço de contenção da força pulsional
(num movimento de retorno sobre si mesmo), ora de um extravasamento acelerado da
pulsão numa tentativa de escoamento da pressão que ela exerce. Os transtornos ou
58
patologias atuais parecem apontar para seu objetivo mais direto, o escoamento ou
represamento pulsional sem objeto. uma urgência pulsional e uma temporalidade
imediata levando o encaminhamento pulsional no funcionamento psíquico a um
encurtamento do caminho pulsional em direção ao seu objetivo, a satisfação de
necessidades.
Assim, no que tange à formação dos sintomas, sobretudo na obesidade, podemos
teorizar que parece não existir tempo hábil para que o conflito se instaure nos termos
freudianos gerando um sintoma, uma vez que a fixação libidinal não mais se
regressivamente. Como num fluxo imediato, as energias libidinais se prendem
imediatamente aos acontecimentos, sendo repreendidas pelo controle do ego quase que
concomitantemente, gerando o conflito.
As forças do ego, que antes acompanhavam a energia libidinal em seu processo de
recalque, tentando impedir sua satisfação, não mais precisam se voltar em um processo de
anticatexia. Como a satisfação das necessidades e desejos atualmente se mostra
praticamente imediata, é preciso que as forças repressivas atuem também de forma
imediata; o conflito se instaura em uma dinâmica energética muito rápida e violenta, que
não permite a decantação do conflito de forma efetiva.
Em outras palavras, devido à fragmentação da realidade e ao fluxo total desta,
estamos sujeitos à fragmentação de nossa constituição subjetiva, de forma que, como
personagens de um romance kafkiano, estamos presos a contingências incontroláveis e que
não podemos vivenciar completamente a ponto de podermos entendê-las.
No caso do obeso enxergamos claramente a prisão que a nova ordem construiu ao
seu redor. Refém de uma contingência que lhe oferece a todo o momento os objetos que lhe
proporcionam satisfação, e incapaz de realizar simbolicamente sua relação com esses
objetos, o obeso se apresenta, numa triste ambigüidade, como consumidor perfeito,
mencionado anteriormente, e também como mercadoria, produto ordenado nas filas dos
supermercados e lojas de fast food.
O sujeito pós-moderno, refém de um mercado devorador vive o império das forças
que o atravessam e o determinam, dificultando para o indivíduo desenvolver um substrato
simbólico capaz de coordenar as catexias das energias em conflito.
59
Dessa forma, as fixações tomam lugar quase que concomitantemente ao conflito,
que não tempo para que a energia libidinal regresse a épocas da história do indivíduo
onde sua satisfação era mais simples e tranqüila. Na verdade, devido à espetacularização de
todos os fatos, bem como o fluxo total de informações e uma hipertrofia da cadeia
burocrática estatal, ferramentas incrivelmente potentes no processo de reificação do
indivíduo, é de duvidar, inclusive, se o indivíduo pode constituir sua história psíquica.
Nesse sentido, não é de admirar que as formas do aparelho psíquico lidar com os conflitos
se mostrem todas cada vez mais diretas e simplificadas.
A dificuldade representativa presente no sintoma se transforma, na economia
energética do transtorno, na causa de alterações de ordem física ou de alguma ação de
natureza compulsiva, como se alimentar excessivamente. Diferente do sintoma, que sinaliza
a presença de uma doença, ou algo recalcado, acompanhando seu desenvolvimento e sendo
uma das formas de sua manifestação, o transtorno é, por sua vez, a somatização direta do
conflito. A transformação seria de sofrimento emocional em uma lesão no corpo. Ou a
transformação radical deste, como no caso do obeso. Com uma ressalva: no transtorno não
há nenhuma possibilidade de simbolização.
Esses fenômenos ou outra definição de sintoma parecem expressar-se por meio de
uma pobreza representacional e de inúmeras atuações. Além de estarem vinculados a uma
economia pulsional onde a satisfação se expressa de maneira direta em compensação às
frustrações da vida, e onde também a satisfação pulsional passa essencialmente pelo
imperativo do gozo
14
, como visto anteriormente.
Kristeva (2002), através da Escola Estruturalista, afirma que pressionado pelo
estresse, impaciente por ganhar, por desfrutar e morrer, o sujeito economiza suas
representações psíquicas. Esse fenômeno do mundo pós-moderno aparece como
dificuldades ou incapacidades de representação que chegam até a matar o espaço psíquico.
Essas novas sintomatologias encontram um denominador comum, qual seja, a dificuldade
de se representar. A vida psíquica do sujeito parece situar-se entre os sintomas somáticos e
a transformação dos desejos em imagens, mostrado no fragmento abaixo:
14
Gozo é um conceito lacaniano que vai falar de um sofrimento prazeroso e que faz uma articulação com a
dimensão econômica da metapsicologia. Eventualmente irei usar esse conceito no sentido em que se faz
paralisante do movimento desejante, mas essencialmente irei tratá-lo como pulsão de morte.
60
“Não se dispõe nem do tempo nem do espaço necessários para constituir
uma alma. A simples suspeita de tal preocupação parece ridícula,
deslocada. Umbilicado sobre seu quanto-a-mim, o homem moderno é um
narcisista, talvez cruel, mas sem remorso. O sofrimento o prende ao corpo
ele somatiza. Quando se queixa, é para melhor comprazer-se na queixa,
que ele deseja sem saída. Se não está deprimido, empolga-se com objetos
menores e desvalorizados, num prazer perverso que não conhece
satisfação. Habitante de um espaço e de um tempo retalhados e acelerados
tem, com freqüência, dificuldade de reconhecer em si mesmo uma
fisionomia”. (KRISTEVA, 2002, p. 14)
Melman (2003), também da Escola Estruturalista, defende que uma nova forma
de pensar, de julgar, de comer, de transar, de se casar ou não, de viver a família, a pátria, os
ideais, de viver-se. A emergência de uma nova economia psíquica é evidente. A saúde
mental não se origina mais numa harmonia com o Ideal, mas com um objeto de satisfação.
Estamos lidando com uma mutação que nos faz passar de uma economia organizada pelo
recalque a uma economia organizada pela exibição do gozo. Isso implica em deveres
radicalmente novos, impossibilidades, dificuldades e sofrimentos diferentes.
A Escola Lacaniana defende que nós ex-sistimos no sintoma. De um lado ele é
envelope formal; de outro, pedaço de outro, pedaço de nós mesmos, acontecimento de
nosso corpo, que posso reconhecer como meu, tendo acesso ao significante do Outro em
mim. Mas, nessa civilização, o envelope formal do sintoma parece de uma forma
contingente, uma vez que o sujeito se apresenta igual em presença de objetos de gozo.
(LAURENT, 2007, p. 173-174)
Assim, ainda segundo Laurent, o sintoma depende da civilização. novos
sintomas cada vez que os significantes mestres deslocam no Outro. Não entraremos nessa
questão neste trabalho, essa consideração foi feita apenas como ilustração.
Desse modo, cada um, através de sua história, vai construindo formas de lidar com
esse algo faltante, por vezes denominado de vazio. O corpo é constituído e modificado pela
história específica de cada um, história essa carregada de valores e significados. A relação
com o alimento, por exemplo, começa nas relações primárias mãe-bebê, e acompanha o
indivíduo por toda a vida em todas as suas relações afetivas.
No caso dos distúrbios alimentares, em específico na obesidade, é necessário que se
saiba de que modo ao longo da história do sujeito se organizou a relação com a comida ao
ponto de se instaurar um descontrole do comportamento alimentar, levando na maioria das
61
vezes a significar algo para o sujeito que dele se utiliza como via de resolução dos seus
problemas, como uma defesa psicológica.
A comida e o afeto se combinam desde o primeiro momento em que a mãe alimenta
o seu filho. Nesse aspecto, o alimento pode ser visto como uma gratificação substituta,
como um equivalente de afeto, compensação ou recompensa e, sobretudo, na sua ausência
pode ser visto como uma punição, um abandono ou uma rejeição. Assim, sente-se algo e
então se come. Denominamos esse sentir algo, nesse momento, de fome. Mas, o que seria a
fome? Uma necessidade? Um desejo? Temos fome de quê? Parece-nos que nomear a fome
a partir de uma perspectiva psicanalítica é algo complicado na medida em que a fome,
assim como o ato de comer, diz da história de vida do sujeito.
Ao retomarmos a problemática Corpo Bio e Corpo Psíquico, observamos um hiato
entre as funções vitais e um “outro corpo”, o corpo psicológico. Parece inexistir uma
correspondência rigorosa entre a necessidade biológica e a necessidade psicológica. Assim,
como saciá-las ambas? Parece também que a saciação ou um apaziguamento completo não
se torna possível, pois a pulsão se satisfaz parcialmente. Então algo está sempre sendo
buscado, ou melhor, desejado. Desta transação, parece ainda ficar algo inassimilável que
obriga o ser falante a buscar tal harmonia que, por sua vez, será jamais concluída. Esse
resto inassimilável faz parte da constituição psíquica de todo o ser humano, como um resto
que gera a compulsão à repetição. E lidar com esse resto é um tanto quanto complicado.
Assim, os sujeitos criam formas particulares de sobrevivência. Por vezes, esquecem
que esse resto, ou algo inassimilável existe. Contudo, quando ocorre um conflito psíquico,
como: a frustração, ansiedade, angústia, decepção, depressão..., esse resto fica evidente.
Recalcati (2002), na Escola Lacaniana, considera que o discurso social atual
sustenta a necessidade de uma saturação do vazio como modalidade da supressão da falta e
do desejo em um empuxo ao preenchimento do vazio e assassinato da falta. A obesidade é
o fenômeno psicopatológico que parece ilustrar os efeitos devastadores dessa saturação: o
corpo é reduzido a um mero receptáculo de objetos. Receptáculo cuja capacidade de
recolher aparece-nos como ilusoriamente infinita. O obeso identifica literalmente o vazio
com o vazio do estômago. A obesidade se oferece então como paradigma clínico da
civilização contemporânea, através de um impulso ao consumo do objeto, gerando no
sujeito um empuxo ao preenchimento imediato do vazio.
62
Ainda na perspectiva de Recalcati, a obesidade é definida como um fenômeno
psicopatológico que elucida os efeitos devastadores da estruturação das sociedades
capitalistas com seu empuxo à satisfação, em que o corpo se reduz a ser um continente de
objetos não de desejo, mas de gozo. Ao passo que o objeto real visa à compensação da falta
no nível do simbólico, na medida em que faz com que o sujeito o consuma ferozmente.
(ZUCCHI, 2002, p.21)
(...) frente a um Outro que sufoca todo apelo do sujeito através da
oferta de objetos, a obesidade indica uma posição de passividade
do sujeito que não está em condições de promover nenhuma forma
de desmame dessa oferta ilimitada e asfixiante do Outro.
(RECALCATI, 1998, p.8)
A função da palavra e do sentido fica submetida à presença maciça do corpo, uma
vez que a constituição do corpo a partir do Outro torna-se defeituosa e impulsiona o sujeito
a uma busca de unificação de si pelas vias das alterações corporais, submetendo o
simbólico, a função da palavra e do sentido a uma presença maciça do corpo. (ZUCCHI,
2002, p. 17)
Assim, a obesidade não tem o caráter de distúrbio alimentar, mas também, da
oralidade e da auto-imagem. Ao alimentar-se o sujeito obeso é tomado pela ansiedade e
pela angústia e após comer, surge a depressão e a culpa motivada pela ação do supereu. O
glutão devora tudo sem categoria, visto que coloca mais comida do que o prato suporta.
Está presentificado num comer de forma exagerada, na medida em que ele apresenta
episódios de ingestão de grande quantidade de comida em pequeno espaço de tempo. A
função do alimento é nutritiva e de fazer laço social. O obeso experimenta um sentimento
de falta de controle diante do alimento, numa fixação ao ato do sugar e morder, como se
quisesse resgatar o vínculo com o outro materno. O alimento aparece no processo da pós-
modernidade com uma perda de sua importância, especialmente como mantenedor do laço.
O alimento baliza também, num estágio muito precoce, um movimento de alienação
ao Outro pelo aleitamento e um movimento de separação do Outro pelo desmame. O
alimento parece vir aplacar o vazio, a angústia, o desamparo e a ansiedade de sempre
separação. O comer é utilizado como a forma mais eficiente e concreta de preencher vazios,
e os vazios são tantos que esse comer torna-se excessivo. Então, esse comer leva ao
adoecimento, no corpo, no psíquico, à obesidade, obesidade em grandes proporções, à
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obesidade rbida, na impossibilidade de pôr em palavras o seu mal-estar, através do qual
ele se utiliza, por meio de seu corpo gordo, para servir de anteparo s perturbações externas.
“O homem depende profundamente da imagem, pois é com ela que faz
seu corpo. O corpo da psicanálise não é o dos órgãos nem o da carne. O
corpo resulta da imagem que se configura como totalidade antecipada,
sobrepondo-se à carência e ao desamparo do recém-nascido. A imagem
terá sempre a função de suprir essa carência e guardará a marca da
primeira dependência do Outro permanecendo irredutível na alienação do
sujeito. Cabe a cada um confrontar-se com a estupidez não acidental
mas estrutural – que lhe é própria, devido ao enraizamento do pensamento
na imagem do corpo.” (VIDAL, 2000, p.7-8)
Ora, o que significaria então, dentro dessa perspectiva, ser obeso ou tornar-se
obeso? Uma necessidade-outra de saciação não se sabe ao certo de quê, a qualquer custo,
até de sua própria vida?
Sabe-se pelo menos que é um modo de satisfação. Algo aconteceu a esse infans, que
agora adulto tende a repetir esse modo de satisfação oral (fixação oral) que se encontra
em conflito com a sua autopreservação. Esse ato de comer compulsivamente parece lhe
proporcionar um certo equilíbrio psíquico. O alimento parece vir como um remédio que vai
consertar o buraco proporcionando ao sujeito uma sensação de conforto e alívio. A criança
parece não ter dado conta de se separar da mãe; o alimento é a tentativa de alienação a essa
mãe, e conseqüentemente, à sociedade, que aparece como um outro deformado.
No caso da compulsão do obeso, ou da maioria das novas patologias, ou patologias
atuais, parece-nos que o aparelho psíquico sofre com uma desmedida excitação, como
mencionado, desmedida essa impossível de ser processada por ele, fragilmente formado
pelo mundo pós-moderno. Dessa forma, as forças pulsionais em conflito acabam sendo
represadas ou escoadas independentemente de sua fixação em um objeto. O gozo se torna
ele mesmo o próprio objeto de fixação
Fixado no gozo, o sujeito abandona sua própria identidade, uma vez que não
consegue estabelecer uma mediação entre o corpo e sua organização emocional. O corpo
acaba separado do sujeito, preso ao gozo do consumo desenfreado. O corpo se torna um
receptáculo para as promessas de gozo que o Outro do mercado oferece, torna-se “coisa”,
ao engolir diversas outras coisas que esse mesmo mercado lhe empurra.
Nessa perspectiva, qual seria a fonte de prazer para esse sujeito? Que prazer seria
esse a ponto de lhe custar a própria vida? Qual seria o seu meio de saciação ou satisfação?
64
Parece haver nesse mecanismo uma satisfação de uma outra ordem e que algumas vezes
contraria o que se entende por prazer, pois o prazer também tem determinações
inconscientes e é isso o que faz com que um sujeito coma muito além do necessário, para a
manutenção de seu organismo vivo. Até mesmo descontroladamente...
Adoecer no corpo, adoecer no psíquico, tendo como pano de fundo destas reflexões
a idéia de que corpo e mente não se separam jamais. Um corpo que fala muitas vezes grita,
um corpo que sofre, porquanto está vivo. Um corpo que abriga um ser e um ser que habita
um corpo. Esse corpo que precisou por muito tempo de um adoecimento, da obesidade para
sobreviver, e agora essa obesidade carregada de uma história é convocada a desaparecer
urgentemente para que esse corpo sobreviva uma outra vez. Este sujeito obeso, agora
paciente, é encaminhado à cirurgia. Esse paciente portador de distúrbio emocional
decorrente da obesidade, vítima de preconceitos e discriminações sociais, além de dono de
uma imagem de si, corporal, distorcida da realidade, disforme de tão gorda, acarretadora de
uma não aceitação do próprio corpo, baixa auto-estima, se submete ou é submetido a um
procedimento técnico, cumprindo sua condição pós-moderna de alienação ao outro.
Priorizado pela sociedade consumista e globalizante na ética da satisfação e não na do
desejo.
Na ética da satisfação, esse paciente se submete a uma cirurgia de redução de
estômago, é acometido por uma redução de peso rápida e uma conseqüente mudança de sua
imagem corporal; além de implicações psíquicas, se exclui totalmente da responsabilidade
pelo seu emagrecimento.
O obeso fechado em seu corpo como se estivesse preso no corpo de outro,
irreconhecível por ele mesmo, cercado do peso do próprio vazio, gravitando na órbita do
próprio gozo inesgotável. O corpo coisa do obeso acaba sendo tratado como tal pela
medicina. Com procedimentos como a cirurgia de redução de estômago, o obeso é mais
uma vez tratado como coisa, reificado em essência, visto apenas como um corpo a ser
transformado.
Através de números, gráficos e procedimentos, o obeso é submetido a todo um
processo de reificação de sua subjetividade, é transformado em coisa, para ser operado,
modificado e talvez “consertado”. Mas, a cirurgia remove o corpo, mas não remove a
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compulsão do indivíduo em relação à sua alimentação nem aos conflitos psíquicos que
geraram seu problema.
Será possível a criação de defesas criativas para proteger esse psiquismo da loucura,
depois que o comer for interditado pela cirurgia? Teria condição o paciente de acessar áreas
mais profundas da sua vida mental que chegassem perto de uma possibilidade simbólica ou
permaneceria excessivamente aprisionado a concretude de seus atos? O sujeito obeso
sabe comunicar-se via corpo oral (corporal), ao passo que alguma coisa parece ter rompido
lá atrás que impossibilitou que fosse simbolizado.
Terá esse psiquismo condições de resgatar seu corpo falante e reconduzir sua
própria história? Conseguirá caminhar por outra forma que não a oral, uma vez que a busca
de bem-estar, alívio e afago que a comida traz fica comprometida depois da cirurgia, pois o
comer excessivo não será mais possível pela interdição que o novo funcionamento
fisiológico acarreta? Nesse sentido, optamos por ir a campo na tentativa de melhor entender
o que se passa com esse psiquismo, o que será introduzido no capítulo seguinte.
66
4. Tratamento dos dados
4.1 Metodologia
A pesquisa de campo foi realizada através de um estudo transversal da obesidade
mórbida e dos sujeitos obesos candidatos à cirurgia de redução de estômago, inscritos na
rede hospitalar. Foi utilizada uma metodologia qualitativa por meio de estudo de caso,
realizado com uma amostra pica, baseado em testemunho e entrevistas semi-estruturadas
constituídas através de quatro questionários, para se obter um acompanhamento do
desempenho do sujeito até o seu terceiro mês de cirurgia. O testemunho e a primeira
entrevista foram realizados no pré-cirúrgico e as três entrevistas subseqüentes foram
realizadas no pós-cirúrgico.
O testemunho consiste em colher depoimentos de pessoas que detêm informação.
Este recurso permite a exploração dos conhecimentos das pessoas, mas também de suas
representações, crenças, valores, opiniões, sentimentos, esperanças, desejos, projetos, etc,
sem que o sujeito crie resistência. (LAVILLE e DIONNE, 1999, p.183).
Segundo Laville e Dionne (1999), a entrevista consiste na maneira como se chega
ao objeto de estudo. Apresenta caráter flexível e perda de uniformidade tanto nas perguntas
quanto nas repostas. Sua flexibilidade permite um contato mais íntimo entre entrevistador e
entrevistado, favorecendo a exploração em profundidade de seus saberes, bem como de
suas representações, de suas crenças e valores. As entrevistas foram preparadas
antecipadamente com temas particularizados e questões abertas, além de conterem plena
liberdade quanto à retirada eventual de algumas perguntas, quanto à ordem em que essas
perguntas estão colocadas e ao acréscimo de perguntas improvisadas.
O estudo de caso consiste em um estudo de uma pessoa ou de um grupo, de uma
comunidade, de um meio, ou então um estudo que faz referência a um acontecimento
especial, uma mudança política, um conflito. Segundo Laville e Dionne (1999), a vantagem
mais significativa dessa estratégia de pesquisa consiste na possibilidade de
aprofundamento, pois oferece os recursos concentrados em um determinado caso.
(LAVILLE e DIONNE, 1999, p.155).
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A amostra típica é criada a partir das necesidades do estudo, o pesquisador seleciona
casos julgados exemplares ou típicos da população-alvo ou de uma parte dela. (LAVILLE e
DIONNE, 1999, p.170).
Assim, para a coleta de dados foi utilizada a combinação de duas técnicas e
instrumentos: testemunho e entrevistas semi-estruturadas.
Os temas selecionados para o questionário da entrevista tiveram o objetivo de
abarcar informações quanto às implicações dos pacientes na tomada de decisão para o pré-
operatório e suas respostas à cirurgia, além de investigar o lugar que a obesidade mórbida
ocupa na economia psíquica do sujeito, na investigação do obeso e sua relação com o
alimento, com o seu corpo, sua imagem corporal, sua sexualidade, sua relação amorosa e
com sua família.
Definiu-se a amostragem por duas pacientes do sexo feminino, com a idade entre 30
e 40 anos por estarem inseridas em plena atividade de trabalho, sendo assim responsáveis
por suas escolhas, tal como financiador de sua cirurgia. Optou-se por não fazer a definição
da escolaridade e condições socioeconômicas na amostra, em primeiro momento.
Foram realizadas seleções aleatórias nas pacientes que internaram no Hospital da
Polícia Militar de Minas Gerais, Belo Horizonte, em cada domingo precedente à realização
da cirurgia no período de Maio a Outubro de 2006, obedecendo aos critérios estabelecidos
acima. Após inúmeras tentativas de realização das entrevistas, optou-se por selecionar
apenas uma entrevistada. Houve muita dificuldade em achar a amostra definida, além de
recusas e escassez de pacientes.
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4.2 Análise das Entrevistas
A candidata selecionada foi S.C.R., 36 anos, sexo feminino, casada, três filhos e
moradora da Grande BH. Segundo seu prontuário dico, ela pesava 95 kg, media 1,60m,
totalizando um IMC de 37,1. Tinha uma hipertensão de difícil controle como comorbidade,
segundo o médico, e fazia uso de 150mg de efexor e 2mg de rivotril para o controle de sua
ansiedade.
Ao abordar a paciente, internada na enfermaria feminina à espera de sua cirurgia,
ela estava conversando com a colega de internação. Quando lhe foi solicitado que
participasse da pesquisa “A obesidade mórbida como um sintoma psíquico no sujeito pós-
moderno: Um estudo de caso no Hospital da Polícia Militar de Minas Gerais”, ela
prontamente começou a falar ao entrevistador, sem dar tempo de começar a gravar seu
testemunho. Foi-lhe solicitada a autorização para que seu testemunho e sua entrevista
fossem gravados, antes que perdêssemos mais alguma informação. No decorrer de sua
primeira entrevista, aconteceram algumas interrupções demonstradas quando o gravador foi
desligado, uma por solicitação da enfermagem que precisou ministrar um medicamento,
outra pelo médico e outra pela copeira. Nas entrevistas subseqüentes, a entrevistada
solicitou que fosse desligado o gravador quando precisou beber água, ir ao banheiro e
atender ao telefone (Anexo E).
O estudo da entrevista mostra a inadequação do sujeito ante sua realidade
psicofísica, assim como sua dificuldade/resistência em compreender o processo a que está
se submetendo ao passar pela cirurgia. Muitos dos que se submetem à vontade
mercadológica consumo de uma vontade” alheia, do mercado apresentam-se para os
outros e para si mesmos como casos sem solução, como doentes para os quais a vontade
própria não funciona. Realizamos um estudo transversal considerando as teorizações sobre
a obesidade mórbida bem como suas implicações na pós-modernidade, na teoria
psicanalítica e a posição do sujeito submetido ao processo de emagrecimento através da
cirurgia bariátrica.
Para a entrevistada parece haver uma contradição fundamental entre as “promessas”
que a cirurgia faz, enquanto objeto de consumo, e as reais conseqüências, físicas e
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psíquicas, de sua efetivação. No caso analisado, ao lidar com essa contradição o sujeito
parece se culpar, e projetar sua angústia em outras formas de compulsão.
Nossa entrevistada, S.C.R. passa por três momentos plenamente identificáveis nas
entrevistas realizadas no pré e no pós-operatório. O primeiro momento pode ser
identificado como repleto de expectativas. No discurso constante da primeira entrevista,
S.C.R. projeta no procedimento cirúrgico a esperança de um retorno “àquela vida boa”
além de conseguir emprego e começar a trabalhar (p. 25). A cirurgia é vista como um
apanágio para solucionar os problemas da vida desse sujeito, problemas esses
evidentemente mais profundos do que o excesso de peso. A cirurgia promete a retomada da
“auto-estima” (p. 24), como ela menciona: “Que ela traga a minha auto-estima de volta,
aquela alegria que eu tinha de vestir uma roupa, me sentir bem, poder ir a um clube,
freqüentar um clube, colocar a roupa que eu quiser, não ficar preocupada que os outros
estão olhando para mim, que a minha banha está sobrando, que está feia aquela roupa que
eu vesti...”(p. 24). Eu vou emagrecer e a minha vida vai mudar completamente” (p. 28).
Resta claro que o procedimento cirúrgico é visto pelo sujeito como um artifício mágico,
que afastaria, junto ao excesso de peso, os problemas de seu cotidiano, lhe trazendo uma
nova vida.
Essa postura fica clara na análise do caso, ao nos depararmos, no discurso da
paciente, várias vezes com palavras como “depressão”, “ansiedade”, “desemprego”, “auto-
estima”. A cirurgia não promete resolver somente o problema de peso, mas criar uma vida
“perfeita”, sem problemas e dificuldades. A reiteração dessas expressões nos diz muito
sobre como a paciente projeta o papel do procedimento cirúrgico e dos seus problemas em
sua vida. Ela responsabiliza completamente o outro (o outro médico, o outro cirurgia, o
outro depressão, o outro família, o outro desemprego) por sua posição diante das suas
responsabilidades enquanto sujeito na vida. Ela se aliena de sua responsabilidade culpando
os demais das diversas adversidades em sua vida. O próprio corpo é visto por ela como um
“outro” a ser culpabilizado. Enquanto sujeito ela não pertence ao seu próprio corpo, e
enxerga no mesmo um causador das questões a que ela é submetida. Relacionar-se dessa
forma com o corpo é uma maneira de não se implicar em sua vida.
Ela responsabiliza o corpo por uma série de dramas de sua vida pessoal, acreditando
verdadeiramente que a remoção” do mesmo garantirá uma vida melhor. Em suas palavras:
70
“então a minha expectativa é essa, de arrumar um emprego, sair para trabalhar e começar a
ser um pouco feliz novamente, que muito tempo eu não sou” (p. 25).
Percebe-se pela fala da paciente que sua relação com o corpo é de extrema
agressividade, beirando a violência. Ela fala sobre “esconder a gordura” (p. 17), e menciona
que “’aquela’ barriga no espelho caindo na frente, é uma amargura para mim. Eu xingo
mesmo”. O epíteto ‘aquela’ nos parece no mínimo curioso, uma vez que “aquela” diz de
uma barriga que não é dela.
Nesse primeiro momento, ao nos depararmos com a relação da entrevistada com seu
corpo, sua imagem corporal, sua sexualidade, relação amorosa, familiar com o alimento,
temas centrais de nossa pesquisa, percebemos que sua obesidade mórbida ocupa um lugar
de novo sintoma em sua economia psíquica, uma vez que não se trata do conceito de
sintoma postulado por Freud, mas de algo além usado como anteparo diante suas
frustrações, seus conflitos e suas angústias no mundo. Dessa forma, enquanto sua condição
de sujeito, a obesidade mórbida se mostra para ela como um escudo, uma desculpa que a
protege de enfrentar o vazio que cerca sua vida. Ela preenche o vazio com o tamanho
excessivo de seu corpo, lançando contra ele a responsabilidade por uma vida que ela não
quer viver, por decisões que ela não quer tomar e por um emagrecimento pelo qual ela não
quer se responsabilizar e que, portanto, deverá ser feito por um “outro”. Comportamento
característico do sujeito na pós-modernidade que encontra no transtorno ou novo sintoma
uma forma de existir.
O não se implicar, demonstrado em sua condição de assujeitada, leva a paciente a
culpar e responsabilizar o “outro”, especialmente por seu problema de obesidade, como dito
anteriormente. A identificação desse outro é feita por ela diversas vezes em seu discurso.
Ele é identificado com a “ansiedade”, a “depressão”, com a “família”, com o
“desemprego”. Em diversos momentos a ouvimos dizer, o que merece destaque, de que a
culpa de sua obesidade é de suas relações afetivas, sua ansiedade, sua depressão, do estado
de saúde de sua avó, de sua segunda gravidez, do relacionamento com o marido, de seus
problemas financeiros. A entrevistada parece ser tomada por pensamentos sobre comida,
especialmente em seus momentos de angústia mencionados acima e exemplificado em
vários momentos das entrevistas. Como em uma de suas falas a seguir: “... na hora que eu
vou dormir eu tomo um copo duplo de Toddy, se eu acordar de madrugada e quiser comer
71
mais alguma coisa, uma fruta, alguma coisa, eu vou e como também, entendeu? Então,
quando eu estou com problema financeiro, o que é mais comum hoje... principalmente por
ter ficado desempregada, para poder cuidar da minha mãe né, que estava acamada, não
podia trabalhar, não tinha nem como trabalhar porque não tinha outra pessoa para cuidar
dela... hoje eu posso te dizer, (...) que o meu maior problema de ansiedade é o desemprego.
Hoje é o desemprego” (p. 10). “Eu vejo alguma coisa, quero mastigar e quero comer. Não
porque estou com fome. Comer porque eu quero comer. (...) Eu roubo comida de
madrugada na geladeira (...)” (p. 15).
No momento seguinte ela novamente tenta arrumar explicações para a sua
obesidade, dizendo que acredita que o seu problema é “hereditário; a minha mãe é gorda,
eu sou gorda...” (p. 11). Em todos os momentos ela projeta nesse outro” a
responsabilidade por sua obesidade mórbida. O comer passa a ser um ato com motivações
muito além da de saciar a fome. E o controle sobre o ato de comer se mostra seriamente
comprometido, mesmo inexistente, não simbolizado: “Eu vou comendo, comendo,
comendo, e enquanto eu não vejo o fim... Se tiver na minha casa, que faz muito pizza, eu
quero comer dois, três, quatro pedaços de pizza” (p. 14). Alimenta-se de tudo, inclusive dos
restos, até o fim, engolindo toda a ansiedade, depressão, conflitos familiares, financeiros...
Ao longo das entrevistas, enquanto os meses vão se avançando, o resultado mágico
esperado pela entrevistada parece não se cumprir. No primeiro mês de cirurgia, ela
menciona que a cirurgia é uma reeducação forçada. “Porque não cabe, não adianta colocar,
porque não cabe, e se comer, vai passar mal. (...) Eu cheguei a vomitar umas três vezes
por insistir em comer coisas que não devia, né? E realmente você não consegue mesmo
comer”. (p. 29). Relata também que ainda tem cabeça e olho de gordo e não adianta
emagrecer e continuar a olhar a comida como um gordo.
No segundo mês, ela parece sentir uma frustração quando relata ter sentido dor ao se
alimentar, além de ter vomitado demais e de não ter perdido a quantidade de peso esperado,
o que é demonstrado no relato a seguir: “Eu me sinto muito empazinada muito, muito
rápido. E, sinto assim, com uma colher, duas, eu começo a sentir muito dor no esôfago
mesmo, até mesmo para estar fazendo a digestão” (p. 33). Logo em seguida, afirma que a
gente altera, fica bem, começa a emagrecer, e logo a gente quer entrar no ritmo de vida de
trabalhar, estudar, fazer as coisas diferentes, né? Então, à medida que isso não vai
72
acontecendo, a gente vai ficando ansiosa. Então...” (p. 33). Nesse momento, o sujeito agora
não tão obeso começa a aparecer e com ele o vazio, a falta, o desamparo constitutivos de
todo sujeito que até então a obesidade encobria. Como no fragmento a seguir: Mas
entram assim outros fatores que... E depois, é muito interessante quando a gente faz a
cirurgia, porque até então a gente acha que todo problema da gente é a obesidade, né? É o
tamanho, é o peso... você vai perdendo peso e que não é isso. Existem outros fatores,
outras coisas, né, que deixam com que você fique ansiosa.” (p. 28)
Como mencionado, a obesidade dessa entrevistada parece ser considerada um
novo sintoma a partir do momento que sua obesidade não diz de um conflito ou algo
simbolizado, sendo assim um sintoma em questão, pois a entrevistada parece substituir a
sua compulsão por comida pelo consumo. Algo melhor explicado logo adiante. Outra
consideração é importante de ser destacada, ela se descobre ainda ansiosa tal como antes da
cirurgia ou até mais.
Ao longo do seu terceiro mês, ela parece arrumar uma alternativa, ou melhor, uma
saída para a sua ansiedade”, que sabemos ser algo muito mais do que uma ansiedade. A
entrevistada parece, mais uma vez, não se implicar e não se responsabilizar por sua vida e
suas decisões perante esta. A paciente se descobre impelida a comprar, o que é observado
no relato a seguir: “Aquele problema que eu tinha antes, da compulsão pela comida, eu não
estou tendo mais, né, eu estou conseguindo controlar tranqüilo, com suco, com alguma
coisa light, né?” (...) “Eu quero recorrer às compras. Eu quero ir ao supermercado, eu quero
comprar... mesmo que eu não coma, eu quero comprar. Sempre comprando. Eu gosto de
fazer compra. Por incrível que pareça, toda vez que eu me sinto triste, sinto que eu não
tenho mais esse problema com a obesidade... não tenho em termos. Porque, segundo o meu
médico, se eu continuar comendo doces, coisas calóricas, né, eu não vou perder peso. (...)
Porque às vezes eu me vejo comendo doce, um chocolate, né? E eu estou totalmente
proibida de comer essas coisas, pelo menos seis meses. Então, quando eu não recorro a
isso, aonde que vem o sentimento de culpa, então eu recorro às compras. Eu gosto de
comprar, estar saindo para fazer compras” (p. 38).
Podemos observar a partir desse momento que o “problema obesidade mórbida”,
relatado pela paciente como justificativa de fazer a cirurgia para a resolução de seus
problemas, continua... embora de uma outra maneira. A entrevista relata que apesar de mais
73
magra, não consegue emprego, sua ansiedade continua e a dívida da cirurgia, dos remédios,
das vitaminas, cálcios vão entrando em questão.
Nas novas formas de sintoma ou transtornos observamos uma urgência corporal, o
sujeito parece se apagar por trás de manifestações no corpo, além de esses sintomas não
causarem enigma para ele, não havendo, assim, um deciframento, ocorrendo uma
prevalência de uma compulsão. A entrevistada, na sua última entrevista, parece substituir
sua compulsão à comida pela compulsão ao consumo, ambos gadgets da pós-modernidade.
Retomando, então, que lugar a obesidade mórbida ocuparia na economia psíquica da
entrevistada? Como citado no segundo capítulo, o corpo e seus excessos na alimentação
pode nos mostrar os desvios que um sujeito faz para lidar com os efeitos da sociedade em
sua vida.
Retira-se o corpo da pessoa, mas ao mesmo tempo retira-se a pessoa do corpo, uma
vez que ela é vista como uma coisa, para se moldar e abrir, para se transformar e consertar,
para se disputar e descartar. As novas patologias se caracterizam por produzirem
transtornos e não sintomas. O sujeito parece não conseguir traduzir um conflito psíquico em
um sintoma clássico caracterizado por Freud, e se utiliza do corpo para tal. Um excesso de
excitação parece invadir o aparelho psíquico, sendo superior naquele momento à sua
capacidade de processamento, desencadeando, com isso, um empobrecimento do
funcionamento psíquico e uma não possibilidade de construção representativa, mas a
exacerbação de uma expressão de outra natureza: alterações físicas juntamente com algum
tipo de ação compulsiva. Isto vem expresso num discurso social atual que sustenta a
necessidade de uma saturação do vazio como modalidade da supressão da falta e do desejo
em um empuxo ao preenchimento do vazio e assassinato da falta.
“Uma clínica do consumo é a clínica que se centra em substituir a
heroína por metadona e que se conhece como redução de danos, que
considera o consumo incurável. A clínica do consumo é a clínica
cognitivista para as anoréxicas e os fóbicos; é a clínica das
regulamentações da ingestão de comida para as bulímicas. A clínica do
consumo é o condutivismo mesclado à religiosidade das comunidades
terapêuticas, que fazem de uma regulamentação da vida, do tempo e do
gozo uma resposta ao consumo.(...)... e a lista é, em nossa cultura,
interminável, como o é a lista de produtos que se fazem de semblantes
do objeto que falta e que são, ao mesmo tempo, produtores do plus de
gozar”. (TARRAB, 2004, p. 55-56)
74
A obesidade é o fenômeno psicopatológico que parece ilustrar os efeitos
devastadores dessa saturação: o corpo é reduzido a um mero receptáculo de objetos.
Receptáculo cuja capacidade de recolher aparece-nos como ilusoriamente infinita. O obeso
identifica literalmente o vazio com o vazio do estômago. O consumo aparece então como a
ponte, o contato, a relação imprescindível do indivíduo com as outras coisas que não ele.
(LEFÈVRE, 1995)
A obesidade se oferece então como paradigma clínico da civilização
contemporânea, através de um impulso ao consumo do objeto, gerando no sujeito um
empuxo ao preenchimento imediato do vazio.
75
5. CONCLUSÃO
Ao longo deste trabalho tentamos contextualizar a obesidade mórbida como um
novo sintoma/ transtorno, trabalhando a relação do sujeito obeso mórbido na sociedade pós-
moderna. Acreditamos que a obesidade, na condição de mal epidêmico, começa a surgir
na pós-modernidade devido a diversos fatores, muitos dos quais analisados em nosso
trabalho, em destaque à OMS. A falta de referências e a conversão de tudo em mercadoria
seriam alguns desses fatores, além de estarmos vivendo a era da imagem, que se apresenta
hoje como o grande poder. Tudo é imagem. Seja a da televisão, a da internet, a dos jornais e
a das revistas, mas também a imagem dos shoppings, do corpo malhado e perfeito, dos
outdoor e das roupas. A imagem e a estética se confundem ou mesmo se fundem. O sujeito
fica paralisado, tornando-se um voiyeur. ainda uma mentalidade imediatista no sujeito
pós-moderno, sendo isso fruto de um avanço na tecnologia que permite uma diminuição do
tempo no transporte, na veiculação das imagens e notícias pelos meios de comunicação, na
fabricação de bens de consumo e praticamente em todos os setores que a ciência abrange.
O corpo, na lógica pós-moderna, é visto como um rascunho a ser riscado e
rabiscado, como menciona Breton. A cirurgia não se mostra como uma solução para o
problema do obeso, uma vez que o trata da mesma forma que ele sempre foi tratado, como
coisa a ser manipulada, cortada, mercanciada em relação às suas esperanças de uma vida
mais feliz e menos problemática. O sujeito é alijado do processo, resta somente a presença
degradante do corpo monstruosamente grande, monstruosamente alheio, como alguém que
o sujeito sempre coloca antes de si para não precisar enfrentar os problemas da própria
vida. Nesse processo ele retira de si sua responsabilidade por emagrecer, da mesma forma
que não se prepara para as implicações desse acontecimento. O sujeito é reificado, é
transformado em coisa pela cirurgia, que lhe retira os pedaços, o livra de seu corpo, mas o
livra também de sua escolha e de sua vontade. No fim das contas retira-se o corpo do
obeso, mas não o obeso do corpo. Todos os motivos que geraram a obesidade permanecem
ali, projetados talvez em outras formas de compulsão, como o consumo desenfreado, ou
outra maneira de transacionar a ausência da “proteção” que o corpo obeso concedia.
Proteção contra a vida, contra o mundo, contra as responsabilidades e as implicações de sua
escolha como sujeito.
76
Inserido na lógica do mercado, o paciente, mercantizado, reificado, acaba tendo de
encarar o ato de emagrecer dentro dessa mesma lógica. A cirurgia é medida por meio de
sua efetividade enquanto método de emagrecimento através de números, e totalmente
desconsiderada em sua relação com a conformação psicológica do sujeito. O procedimento
é vendido para ele como um mal necessário, uma dor para curar todas as dores ele é
informado das implicações que se seguem à cirurgia, mas prefere se submeter. Talvez da
mesma forma que ele enxerga seu corpo como um outro projetado para protegê-lo,
enxergue que é esse mesmo corpo, alter em relação a ele, que será submetido ao
procedimento, que existe um distanciamento entre ele, enquanto sujeito, e “aquilo” que será
recortado pela cirurgia. Que o corpo inclusive merece passar por isso, por essa dor, por esse
castigo, que o corpo deve ser alijado e alienado, como o sujeito fora até aquele momento
por causa dele. É o corpo que vai, não eu. A fuga da responsabilidade de se implicar, seja
pela obesidade, seja pela escolha de emagrecer, seja pelo fato de a cirurgia não apresentar
os resultados esperados, a condição de obesa, que sempre serviu à paciente como um
escudo para enfrentar o mundo e o vazio da própria vida, não se esvai com a remoção do
corpo obeso. Mesmo porque, como argumentamos ao longo de todo o texto, a cirurgia
contra a obesidade mórbida é vendida como um produto de consumo, um artifício mágico
que promete a solução para todas as angústias da vida do obeso. Da mesma forma que
compra todo o seu problema, o obeso imagina poder comprar a solução para este.
O tratamento psicológico por que passam esses sujeitos se mostra na maior parte das
vezes precário e insuficiente, salvo algumas exceções, se atendo somente a preparar o
paciente para os riscos e conseqüências da cirurgia. A entrevistada narra sua vida como se
estivesse num vendaval de problemas, todos eles geradores da obesidade e gerados pela
obesidade. E enxerga a cirurgia como uma forma de solução imediata para todos eles.
Encarnada como o próprio sujeito da condição pós-moderna, a entrevistada mostra em seu
depoimento, no seu segundo mês de cirurgia, que seus problemas estão muito além do
peso, mas são em última instância projetados nele, compondo o corpo monstro que, ao
mesmo tempo em que é combatido como um obstáculo para a vida, é desejado como um
escudo que a protege dessa mesma vida, dessa mesma realidade.
A questão do procedimento cirúrgico é muito séria, uma vez que se a psique do
sujeito não for escutada, a realidade que esse indivíduo enfrentará depois que o
77
procedimento ocorrer pode ser irreversível. Sem o seu corpo para se proteger o sujeito terá
que enfrentar a realidade sem poder projetar na comida a satisfação imediata que ele busca.
A cirurgia não soluciona a psique desmantelada do sujeito, não auxilia na consolidação de
seu aparelho psíquico, ao contrário, o aliena e retira-lhe a responsabilidade por suas
escolhas, uma vez que o sujeito terá inclusive alguém para emagrecer para ele, para
escolher ainda por ele.
Dentro desse cenário, a psique do sujeito é desconsiderada, violentada junto ao
corpo mutilado, que é visto como um erro que precisa ser consertado. Desconsiderado em
relação ao emagrecimento, que antes fora tentado através de medicamentos, o aparelho
psíquico do sujeito não está preparado para a vida sem aquele corpo, sem o escudo que ele
construiu a partir de uma desenfreada autofagia, a partir do ato cruel do engolir a si mesmo,
como um centro de gravidade forte demais, como um buraco negro que se dobra sobre seu
próprio centro.
A psicologia poderia oferecer uma alternativa à cirurgia ao oferecer uma escuta
mediante a, história desse sujeito obeso mórbido, investigando quando foi que ele se perdeu
como sujeito e o fez se utilizar de uma obesidade em grandes proporções para lidar com a
sociedade, sua família, enfim se posicionar diante da vida. Assim, ele tem a chance de se
responsabilizar por sua vida, de levar a cabo as decisões necessárias para uma vida digna.
Contudo, a pressa da pós-modernidade muitas vezes não permite que esse trabalho seja
feito tal como a elaboração do sujeito e implicação em suas questões perante a vida.
Constatamos também que na dissertação que o sintoma aparece de uma outra forma
na nossa cultura, as teorias clássicas, como a acepção tradicional dos sintomas, por
exemplo, não condizem ao caso da entrevistada, uma vez que a contextualização com que o
sujeito se depara é outra dos conceitos clássicos de sintoma estabelecido por Freud. Diante
de um mundo que exige dele a apreensão por demais imediata de sua realidade, o aparelho
psíquico parece funcionar de uma forma outra. um escoamento imediato de energia.
Ignorar essa realidade é abstrair o sujeito das condições de vida que ele sempre enfrentou,
criando um sujeito idealizado, onde as categorias teóricas supostamente se aplicariam. Não
podemos ignorar a realidade pós-moderna do sujeito, sob pena de recairmos na mesma
lógica reificante da cirurgia bariátrica.
78
A obesidade se insere na classe dos novos sintomas, a partir do momento em que,
diferentemente do sintoma em sua acepção clássica, ela (ou sua causa) não faz parte da
subjetividade do sujeito, não sendo por ele simbolizada, mas simplesmente por ir além de
uma somatização, é observada uma forma de escoamento da pulsão de forma violenta e
imediata. A projeção libidinal e o recalque da satisfação são desvirtuados em suas
características mais essenciais, para responder à velocidade terrível do mundo atual.
Velocidade essa a que estamos todos sujeitos ou assujeitados, e que controla
inclusive muitas formas terapêuticas de se lidar com os problemas de nossa época. O tempo
das pílulas e dos comprimidos, o tempo das dietas milagrosas e das cirurgias que prometem
“remover” a angústia das pessoas como se fosse nada mais que gordura em excesso.
A psicologia não pode ignorar a história e a verdade do sujeito sob pena de se
inscrever na mesma linguagem dos outros métodos terapêuticos que se responsabilizam por
emagrecer o paciente e curar todos os seus problemas e angústias. Ela deve atentar para o
sujeito em sua realidade singular, em sua relação específica e única com a sociedade e com
o mundo real.
Constatamos também que a obesidade mórbida passou a representar, de forma
extrema, as disparidades e contradições do mundo atual, o gordo desnutrido, o excesso de
vazio, o corpo que não se enquadra em nenhum tipo de forma simbólica de corpo, que
perde a sua própria sexualidade, sua própria posição e identificação no mundo. Por
consumir demais, expoente perfeito da lógica do capital, o obeso consome seu próprio ser,
seu próprio ego, o obeso se consome. E não sabe disso. Não pode saber. O mundo o aliena,
o transveste em coisa, e ele acredita nisso. Reproduz o discurso do mercado e da reificação,
potencializa seu vazio e se protege da consciência desse vácuo pela armadura frágil de seu
corpo inelutável.
Inexplicável como o mundo que o criou, o obeso se apresenta para a psicologia em
todo o seu silêncio e ausência, personificados na presença opressora de um corpo
grotescamente deformado pela compulsão e pela tentativa desesperada de não sentir mais o
vazio e angústia do existir. A medicina promete consertar o corpo, moldá-lo, transformá-lo
através da técnica. Mas ela não trata da angústia, não a resolve, não pode retirá-la com
cortes de bisturi e pontos cirúrgicos. O obeso e sua solidão. A solidão de uma realidade
coisificada, petrificada em medidas e quilogramas. A solidão da desmedida em um mundo
79
que se pretende certo e racional demais. A solidão do excesso em um mundo que vende a
prática do excessivo ao mesmo tempo em que alija de sua ordem aqueles que se rendem a
ela. A solidão repleta do obeso. Enfim, ao longo desse trabalho procuramos fazer um
apanhado teórico através de uma contextualização da cultura da nossa época, a pós-
moderna e suas conseqüências psíquicas nos sujeitos, especialmente nos obesos mórbidos,
na tentativa de num outro momento propor saídas para esse sujeito que não usar de
anteparo o seu corpo como escudo para as adversidades da vida.
A entrevistada narra sua vida como se estivesse num vendaval de problemas, todos
eles geradores e gerados pela obesidade. E enxerga a cirurgia como uma forma de solução
imediata para todos eles. Encarnada como o próprio sujeito da condição pós-moderna, a
entrevistada mostra em seu depoimento que seus problemas estão muito além do peso, mas
são em última instância projetados nele, compondo o corpo monstro que ao mesmo tempo
em que é combatido como um obstáculo para a vida é desejado como um escudo que a
protege dessa mesma vida, dessa mesma realidade. A questão do procedimento cirúrgico é
muito séria, uma vez que se a psique do sujeito não for escutada, a realidade que esse
indivíduo enfrentará depois que o procedimento ocorrer poderá ser irreversível. Sem o seu
corpo para o proteger o sujeito terá que enfrentar a realidade sem poder projetar na comida
a satisfação imediata que ele busca. A cirurgia não soluciona a psique desmantelada do
sujeito, não auxilia na consolidação de seu aparelho psíquico, ao contrário, o aliena e retira
do mesmo a responsabilidade por suas escolhas, uma vez que o sujeito terá inclusive
alguém para emagrecer para ele, para escolher ainda por ele.
Enfim, chegamos a uma das hipóteses de que o que caracteriza o tempo em que
vivemos é sua ausência de centro. A vontade de verdade da modernidade levou-nos a
concluir que, em última instância, não existe verdade nenhuma. Não somente Deus morreu,
mas também a razão; todos os nossos “geradores” de sentido se foram. Preso a essa
sociedade onde o centro não mais existe, o sujeito acaba enfrentando o absurdo de uma
forma narcísica, projetando o centro em si mesmo. A partir daí todas as suas relações
acabam sendo virtualizadas e voltadas para sua auto-satisfação. O outro só lhe serve
enquanto alguém que pode lhe trazer algum tipo de benefício. Sua posição diante do outro e
do mundo é meramente estratégica, de maneira a potencializar seu auto centramento. Mas,
quanto mais fechado em si mesmo, mais vazio. Talvez suportar a inconsistência do Outro e
80
sua ausência de garantias sem sucumbir totalmente às pressões da cultura seja das saídas
para o sujeito.
81
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86
APÊNDICES e ANEXOS
APÊNDICE A – Questionários da Pesquisa
Um dia antes da cirurgia: PRIMEIRA ENTREVISTA
Você consegue identificar quando ficou obeso?
Sempre foi assim? Nasceu assim?
Em que /Tem situações em que você come mais?
Você tem alguma explicação psicológica para a sua obesidade? Ou acha que a sua
obesidade tem algum significado?
Você é calma? Nervosa? Perde o controle fácil? É feliz? Triste? Quando fica ansiosa ou
nervosa, o que costuma fazer? Como costuma resolver seus problemas? Você é impulsivo?
Como é o seu hábito alimentar? O que gosta de comer?
Você tem capacidade de autocontrole perante a comida? Vocome muito? Você come
depressa, devagar? Repete? O quanto você come é determinado pela fome que você sente?
Gosta de comer sozinha ou em grupo? Como é a hora das refeições em sua casa? Você se
envergonha de seus hábitos alimentares?
Sente que a comida controla a sua vida?
Quando você se sente ansioso, você tende a comer muito? Você se volta para a comida para
avaliar algum tipo de desconforto?
Como você se vê? O que pensa que as pessoas ao seu redor acham de você?
Você se olha no espelho? Como gosta de se vestir? Se sente gorda? Excessivamente gorda
ou arredondada? Você tem evitado usar roupas que a fazem notar as formas de seu corpo?
Você já teve ou tem vergonha do seu corpo? Você se imagina cortando fora porções de seu
corpo? Qual é no seu entender, seu peso ideal? Como você se sente em relação a seu peso?
Você faz dietas? Você já se sentiu tão mal a respeito do seu corpo que chegou a chorar?
E a sua família? Como vocês se relacionam?
Você está satisfeita com o seu relacionamento sexual?
Trabalha? Como é no trabalho?
Você já fez tratamento p emagrecer? Quais?
87
E a cirurgia?
Como ficou sabendo desse método de emagrecimento?
Você acha que precisa emagrecer? Você escolheu fazer a cirurgia?
O que você espera da cirurgia? O que acha que vai acontecer com você?Quais suas
expectativas em relação a cirurgia? Como vai fazer quando ficar ansiosa e não puder
descontar na comida?
Primeiro Mês - SEGUNDA ENTREVISTA
Como foi a primeira semana do seu pós-operatório? E seu primeiro mês?
Você emagreceu? Quanto?
Como se sente? Você tem tido alguma dificuldade? Ou tem tido dúvidas?
Como está seu comportamento alimentar?
Você acha que alguma coisa mudou?
A cirurgia tem correspondido as suas expectativas?
Como está fazendo quando lhe ocorre alguma frustração e você não podem recorrer ao
impulso do comer como antes?
Como sua família e seus amigos têm percebido esse pos operatório?
Segundo Mês – TERCEIRA ENTREVISTA
Como foi o seu segundo mês de pós-operatório?
Você emagreceu? Quanto?
Como se sente? Você tem tido alguma dificuldade? Ou tem tido dúvidas?
Como está seu comportamento alimentar?
Você acha que alguma coisa mudou?
A cirurgia tem correspondido as suas expectativas?
Como está fazendo quando lhe ocorre alguma frustração e você não podem recorrer ao
impulso do comer como antes?
Como sua família e seus amigos têm percebido esse pos operatório?
88
Terceiro Mês – QUARTA ENTREVISTA
Como foi seu terceiro mês de pós-operatório?
Você emagreceu? Quanto?
Como se sente? Você tem tido alguma dificuldade? Ou tem tido dúvidas?
Como está seu comportamento alimentar?
Você acha que alguma coisa mudou?
Como está fazendo quando lhe ocorre alguma frustração e você não podem recorrer ao
impulso do comer como antes?
Como sua família e seus amigos têm percebido esse pos operatório?
89
ANEXO A – TERMO DE AUTORIZAÇÃO
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Pró-Reitoria de Pesquisa e de Pós-Graduação
Comitê de Ética em Pesquisa
Belo Horizonte, 9 de maio de 2006.
De: Prof. Heloísio de Rezende Leite
Coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa
Para: Larissa Maciel Zambolim
Mestrado em Psicologia
Prezado(a) pesquisador(a),
O Projeto de Pesquisa CAAE 0267.0.213.000-05 “A obesidade rbida como um sintoma
psíquico no sujeito pós-moderno: um estudo de caso no Hospital da Polícia Militar de
Minas Gerais” foi aprovado no Comitê de Ética em Pesquisa da PUC Minas.
Atenciosamente,
Heloísio de Rezende Leite
Coordenador do Comitê de Ética em Pesquisa – PUC Minas
Av. Dom José Gaspar, 500 - Prédio 43 sala 107 - Fone: 3319-4517- Fax: 3319-4517
CEP 30.535-610 - Belo Horizonte - Minas Gerais - Brasil
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ANEXO B- Aprovação do Projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa
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ANEXO C – TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
N.ºRegistro CEP: CAAE 0267.0.213.000-05
Título do projeto:
A obesidade mórbida como um sintoma psíquico no sujeito pós-moderno: Um
estudo de caso no Hospital da Polícia Militar de Belo Horizonte – MG.
Este termo de consentimento pode conter palavras que você não entenda. Peça ao
pesquisador que explique as palavras ou informações não compreendidas completamente.
1. Introdução
Você essendo convidado(a) a participar da pesquisa - A obesidade mórbida como
um sintoma psíquico no sujeito pós-moderno: Um estudo de caso no Hospital da Polícia
Militar de Belo Horizonte - MG. Se decidir participar dela, é importante que leia estas
informões sobre o estudo e o seu papel nesta pesquisa. Sua participação não é obrigatória e
a qualquer momento você pode desistir de participar e retirar seu consentimento. É preciso
entender a natureza e os riscos da sua participação e dar o seu consentimento livre e
esclarecido por escrito.
2. Objetivo
O objetivo deste estudo é estudar os aspectos psicológicos ligados às conseqüências
da cirurgia de redução de estômago quando a obesidade significa algo para o paciente.
Queremos entender os desdobramentos emocionais gerados pela obesidade mórbida a fim
de contribuir para o tratamento psicológico desses pacientes. É um estudo de base
psicanalítica que lançará mão de conceitos desta teoria para discussão do assunto.
3. Procedimentos do estudo
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
Pró-Reitoria de Pesquisa e de Pós-Graduação
Comitê de Ética em Pesquisa
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Se concordar em participar deste estudo, você será solicitado a dar um testemunho e
algumas entrevistas, gravadas, sobre sua relação com a obesidade e a sua cirurgia, afim de
podermos acompanhar o seu processo antes e depois da cirurgia. Ao assinar este
consentimento informado, você autoriza a utilização das informações adquiridas nas
entrevistas e no testemunho, tendo como objetivo respaldar um avanço teórico. A fim de
respaldar um avanço teórico, a pesquisadora lançaria mão dos dados obtidos no testemunho e
nas entrevistas que serão escritos e trabalhados teoricamente. Este tipo de trabalho cerca-se
de sigilo acerca da identidade do paciente sendo indispensável mascarar todos os dados e
detalhes que possam identificar a pessoa do analisado.
4. Riscos e desconfortos
Pode haver um risco de desconforto para vode ter informações suas relatadas,
ainda que tenha a certeza do sigilo de sua identidade e do mascaramento de todos os dados
que possam identificá-lo.
5. Benefícios
A participação na pesquisa não acarretará gasto para você, sendo totalmente gratuita.
O conhecimento que você adquirir a partir da sua participação na pesquisa poderá
beneficiá-lo com informações e orientações futuras em relação ao seu
problema/tratamento/situação de vida, especialmente em relação à modificação de hábitos
de vida, alimentação, trabalho e um melhor conhecimento dos fatores de risco sobre a
obesidade, beneficiando-o de forma direta ou indireta.
O tratamento poderá ou não trazer benefícios a você, mas as informações obtidas por
meio do estudo poderão ser importantes para a descoberta de novos
tratamentos/técnicas/tecnologia, capazes de diminuir os problemas existentes em relação
aos efeitos psicológicos da cirurgia de redução de estômago.
As consultas, os procedimentos relacionados ao estudo e a terapêutica utilizada serão
inteiramente gratuitos.
Se diagnosticado algum problema, este será tratado e/ou encaminhado para
tratamento apropriado.
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6. Custos/Reembolso
Você não terá nenhum gasto com a sua participação no estudo e também não receberá
pagamento pela sua participação.
7. Caráter Confidencial dos Registros
Algumas informações obtidas a partir de sua participação neste estudo não poderão
ser mantidas estritamente confidenciais. A pesquisadora, agências governamentais locais, o
Comitê de Ética em Pesquisa da instituição onde o estudo está sendo realizado, ou seus
representantes, podem precisar consultar seu registro. Você não será identificado quando o
material de seus registros for utilizado, seja para propósitos de publicação científica, seja
educativa, mas não é incomum que vo se reconheça no caso. Ao assinar este
consentimento informado, você autoriza as inspeções em seus registros.
8. Participação
Sua participação nesta pesquisa consistirá em dar um testemunho e responder a
entrevistas. É importante que você esteja consciente de que a participação neste estudo de
pesquisa é completamente voluntária e de que você pode recusar-se a participar ou sair do
estudo a qualquer momento, sem penalidades ou perda de benefícios aos quais você tenha
direito de outra forma. Em caso de você decidir retirar-se do estudo, deverá notificar à
pesquisadora. A recusa em participar ou a saída do estudo não influenciarão nos seus
cuidados nesta instituição.
9. Para obter informações adicionais
Você receberá uma cópia deste termo onde consta o telefone e o endereço do
pesquisador principal, podendo tirar suas dúvidas sobre o projeto e sua participação, agora
ou a qualquer momento. Caso você venha a sofrer uma reação adversa ou danos
relacionados ao estudo, ou tenha mais perguntas sobre o estudo, por favor, ligue para a Sra.
Larissa Maciel Zambolim, no endereço: Rua Alagoas, 1453, apto 1502, bairro
Funcionários, telefones: 9119 7383 e 3225 2383. Se tiver perguntas com relação a seus
direitos como participante do estudo clínico, você também poderá contatar uma terceira
parte/pessoa, que não participa desta pesquisa, Heloísio de Resende Leite, coordenador do
Comitê de Ética em Pesquisa da PUC Minas, no telefone 3319-4298 ou por e-mail:
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10. Declaração de consentimento
Li ou alguém leu para mim as informações contidas neste documento antes de
assinar este termo de consentimento. Declaro que fui informado sobre as inconveniências,
riscos, benefícios e eventos adversos que podem vir a ocorrer em conseqüência do
testemunho e das entrevistas.
Declaro que tive tempo suficiente para ler e entender as informações acima. Declaro
também que toda a linguagem técnica utilizada na descrição deste estudo de pesquisa foi
satisfatoriamente explicada e que recebi respostas para todas as minhas dúvidas. Confirmo
também que recebi uma cópia deste Termo de Consentimento. Compreendo que sou livre
para me retirar do estudo em qualquer momento, sem perda de benefícios ou qualquer outra
penalidade.
Dou meu consentimento de livre e espontânea vontade e sem reservas para
participar como paciente deste estudo.
Nome do participante (em letra de forma)
Assinatura do participante ou representante legal Data
Atesto que expliquei cuidadosamente a natureza e o objetivo deste estudo, os possíveis
riscos e benefícios da participação no mesmo, junto ao participante e/ou seu representante
autorizado. Acredito que o participante e/ou seu representante receberam todas as
informações necessárias, que foram fornecidas em uma linguagem adequada e
compreensível e que ele/ela compreenderam essa explicação.
Assinatura do pesquisador Data
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ANEXO D
TESTEMUNHO: 06/08/2006
Entrevistador – A gente está falando porque você vai fazer a entrevista. Não é isso, S.?
Entrevistado Isso. Pois é, então, uma das coisas que é bem discutida assim na reunião é
que o gordo, ele sempre tem a cabeça de gordo. Então a gente tem que estar sempre
procurando fazendo algo melhor e trabalhar na cabeça da gente essa questão da... “Eu vou
operar o estômago”. Então, Nem que eu queira comer, não vai caber. Então, para você fazer
essa cirurgia, você tem que estar bem ciente que às vezes pode até ser que não vai ser fácil,
mas você tem que estar fazendo uma tentativa muito grande mesmo e procurar a fazer tudo
certo. Por exemplo, a entrar mesmo numa dieta boa, uma alimentação boa... Porque a
redução de estômago, pelo que foi me passado, através até mesmo da médica que vai me
operar, ela...
Entrevistador – Qual é o nome dela?
Entrevistado Capitã M. Ela é uma reeducação alimentar forçada. Porque você não vai
agüentar mais a comer. Então o psicológico seu, ele tem que ser talvez até mais trabalhado
do que tudo, porque por mais que você queira comer você não vai agüentar comer. E
vem a série de outros problemas que vêm surgindo, né? A depressão: “Ah, porque eu não
vou poder comer”, a depressão: “Porque eu quero e não posso”... Eu estou assim com uma
cabeça bem legal. Eu estou procurando... Por ter procurado fazer várias dietas e não ter
conseguido, eu estou procurando assim... A minha intenção, ao sair daqui, é estar entrando
mesmo com os produtos lights, tirar o açúcar da minha vida, fazer caminhada... Sabe? O
que eu estou pensando mesmo em fazer é isso. Porque é horrível você querer comprar uma
roupa, você querer vestir uma coisa e não te servir... Né? A gente fica com auto-estima
embaixo. Então eu acredito assim, que a ansiedade, ela está ligada sim a você comer, mas
não acredito que seja somente isso não. Eu acredito também que ansiedade leva à
depressão, que leva à comida. Entende? Eu acho que eles estão meio que interligados. Eu
não acredito que seja uma coisa não. Agora, noite, dias em que você está mais
nervosa, mais ansiosa... Por exemplo, no meu caso, eu levanto a noite inteira para comer. A
noite inteira. Então, eu durmo e acordo com fome. Dou uma dormida e acordo com fome
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novamente. Entende? Então eu acredito também que essa ansiedade, ela faz parte de uma
certa depressão. Eu acho que toda pessoa obesa, de certa forma, entre aspas, ela é uma
pessoa que tem depressão.
Entrevistador – Você acha que (você tem...) depressão?
Entrevistado Eu acho que sim. Eu acho que a pessoa pode até não associar uma coisa à
outra, mas eu acho que tem a ver as duas coisas. E por isso você fica ansiosa e acaba
ficando deprimida, entendeu? Eu acho que uma coisa leva à outra. Né? Então... Eu estava
até comentando aqui, que eu quero se Deus quiser depois que eu terminar de fazer essa
cirurgia e caminhar tudo certo, eu quero sentar e tirar esses remédios de depressão da minha
vida.
Entrevistador – Você toma remédio para depressão?
Entrevistado Tomo. Eu tomo remédio para depressão, tomo remédio para dormir, né,
justamente por causa da ansiedade. E os problemas para mim é motivo de comer. Entende?
O meu problema é motivo de eu comer. Eu, quando eu estou com problema, no primeiro
momento do choque, eu paraliso. Eu fico paralisada. depois que passa aquele primeiro
momento, que as coisas o se assentando, vai vindo os problemas, eu dobro a minha
comida, entendeu? Eu vou comendo, comendo, comendo, até não agüentar mais. Mesmo
sem fome. Por isso que eu acho que a cabeça de gordo é sempre... Você não opera a cabeça.
A doutora psicóloga, ela sempre fala isso para você, você opera o estômago, mas não opera
a cabeça. Por isso a necessidade do controle psicológico, né, para gente estar sempre...
Como é que fala?... Equilibrando, sempre... Como que eu vou te falar, como que eu vou te
dizer a palavra certa?... Para estar mesmo equilibrando uma coisa com a outra, né, sabendo
como jogar essa ansiedade para fora. Por isso a necessidade do grupo, de estar participando,
estar colocando ali cada um os seus problemas, seus medos, seu dia-a-dia, o que está
acontecendo, né? Estar pondo isso para fora em forma de palavras, não em forma de
ansiedade para que isso não se torne comer.
(O gravador é desligado)
(Reinício)
EntrevistadoBom eu tenho três filhos, né? Uma de 17 anos, já vai fazer 18 agora, um de
13 anos, e uma neném de 03 anos. E sou casada há 20 anos. Muitos dos meus problemas da
depressão também são devido à minha vida mesmo, à vida cotidiana mesmo; eu sou uma
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pessoa muito preocupada em resolver o problema de todo mundo. Inclusive, quando eu
resolvi fazer essa cirurgia, foi porque eu estava lendo um livro que fala sobre auto-estima,
né, baixa auto-estima, e nesse livro fala que a gente quando está preocupada... a gente que é
muito preocupada em ajudar os outros, a gente esquece da gente, e quando a gente vai olhar
para a gente um pouquinho, igual eu fiz agora, a gente se sente culpada. Porque a gente
pensa assim... fala assim: “Mas eu não tenho esse direito. Eu tenho três filhos para olhar, eu
tenho casa, eu tenho marido, tenho tudo, por que eu vou parar e vou me cuidar? Eu não
posso fazer isso, eu tenho muita coisa para fazer, eu tenho eles para cuidar, então a minha
obrigação é cuidar deles e não de mim”. Então esse livro me ensinou e me ensinou que não
é assim, né, que você tem que parar e cuidar de você mesma. Mesmo porque senão você
nem vai dar conta de cuidar da sua família. Né? É uma família normal, como todas as
outras, talvez até um pouco mais agitada por alguns problemas de família que a gente teve
assim meio sérios...
(O gravador é desligado)
(Reinício)
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PRIMEIRA ENTREVISTA: 06/08/2006
Entrevistador Você consegue identificar quando que voficou mais obesa, que você
começou a engordar?
Entrevistado Bom, eu acho que foi depois da minha segunda gravidez. Depois que eu
engravidei eu fui para 80 e tantos quilos e de para eu não consegui mais perder esse
peso.
Entrevistador – Aconteceu alguma coisa?
EntrevistadoVários fatores. A doença da minha mãe... Né? A minha mãe ficou três anos
acamada... Quer dizer, ela não é mãe, ela é avó. Mas ela me criou e eu chamava de mãe.
Então eu sou neta única de filho único. E o meu pai já havia falecido. Então ficou Deus e eu
para cuidar dela. Sozinha mesmo. Então esse foi um dos fatores também que me levou... Aí
eu tive depressão pós-parto dessa última filha minha...
Entrevistador – Da terceira?
Entrevistado – Da terceira, né? Eu tive depressão pós-parto...
Entrevistador – E daí você não perdeu peso da segunda para terceira?
Entrevistado – Não perdi peso.
Entrevistador – Aí você engravidou da terceira...
Entrevistado – Engravidei com 80 quilos.
Entrevistador – E teve depressão pós-parto...
Entrevistado E tive depressão pós-parto, justamente pelo momento que eu estava
vivendo, né? Quando a mamãe adoeceu, eu estava grávida de dois meses. E aí o estado dela
demência foi só ficando pior, pior, pior e isso tudo trouxe uma ansiedade muito grande para
mim.
Entrevistador – A sua mãe ficou doente na segunda gravidez ou na terceira gravidez?
Entrevistado – Na terceira gravidez. Na última gravidez.
Entrevistador – Ah, tá. Na segunda você engordou, mas não teve alguma coisa assim?
Entrevistado Não, simplesmente de comer mesmo, sabe? Por ter fome, de comer, por
estar bem demais e achar: “Estou grávida, posso comer, comer, comer”. Sabe? Não houve
nenhum problema em particular não.
Entrevistador – Em que situações, S., você come mais, você nota que você come mais?
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Entrevistado Quando eu estou preocupada com dívida. Dívida me faz comer muito.
Preocupação com meus filhos me faz comer muito, né, situações de doença, se tem
problemas de escola com meus filhos... Tudo isso me faz comer bastante.
Entrevistador – O que você sente?
EntrevistadoEu sinto que... eu como até sem sentir que eu estou comendo, eu sinto com
fome. Eu não sinto nada, eu sinto fome. Nada em especial para dizer que eu tenho que
comer. Eu acabei de jantar, aí eu vou e como um pedaço de torta, aí acabei de comer aquilo,
mais tarde eu tomo...
Entrevistador – Como chama isso?
Entrevistado Ansiedade. eu acabo de tomar aquilo, na hora que eu vou dormir eu
tomo um copo duplo de Toddy, se eu acordar de madrugada e quiser comer mais alguma
coisa, uma fruta, alguma coisa, eu vou e como também, entendeu? Então, quando eu estou
com problema financeiro, o que é mais comum hoje... Principalmente por ter ficado
desempregada, para poder cuidar da minha mãe, né, que estava acamada, não podia
trabalhar, não tinha nem como eu trabalhar porque não tinha outra pessoa para cuidar dela...
Hoje eu posso te dizer, que o meu maior problema de ansiedade é o desemprego. Hoje é o
desemprego.
Entrevistador – Você sempre foi ansiosa?
Entrevistado – Sempre fui resolvida. Adoro resolver muitas coisas ao mesmo tempo.
Gosto de trabalhar, voltar, chegar, fazer... e gosto de fazer milhares de coisas.
Entrevistador – E como é que chama isso de novo?
Entrevistado – Ansiedade. (risos)
Entrevistador E você acha alguma explicação... A gente está falando disso. Você acha
alguma explicação psicológica para a sua obesidade ou acha que a obesidade tem algum
significado?
Entrevistado Não, eu acho muito hereditário; a minha mãe é gorda, eu sou gorda... Eu
puxei muito, sou muito parecida com ela, fisicamente falando; a voz, o tom de voz, o jeito
de brincar, as características assim... Eu sou ela escrita. Tem pessoas que acha que nós
somos irs, porque ela é muito conservada, então... Eu sou muito parecida com ela. Eu
acho que é muito genética assim.
(O gravador é desligado)
100
(Reinício)
Entrevistador – Explicação psicológica, né?
EntrevistadoIsso. É, igual eu te falei, hoje o meu maior problema mesmo é a questão do
trabalho. Eu quero trabalhar, porque eu gosto... Por exemplo, eu vou arrumar uma casa, eu
coloco roupa na máquina, esfrego o banheiro, arrumo os quartos, venho varrendo, tiro a
roupa da máquina, afogo a comida e vou lavando as vasilhas... Eu faço tudo ao mesmo
tempo. Quando eu termino de fazer uma coisa, antes de arrumar a casa, eu fiz tudo ao
mesmo tempo, entendeu? Então, isso eu sempre fui; sempre fui elétrica, sempre fui
resolvida...
Entrevistador Pois é, eu estou te perguntando se você acha que quando você fica desse
jeito, isso te ajuda a engordar mais um pouquinho. Quando você falou que vai tendo os
problemas lá, você vai e toma um copo de suco, depois come uma alguma outra coisa...
Entrevistado – Acho que sim. Acho que sim.
(O gravador é desligado)
(Reinício)
Entrevistador – Vou te perguntar: você e calma?
Entrevistado – Não.
Entrevistador – Nervosa?
Entrevistado – Nervosa.
Entrevistador – Perde o controle fácil?
Entrevistado Facílimo. Eu estou até trabalhando isso na terapia. Eu não tenho um pingo
de paciência com nada. Eu sou super... coronelozona, tudo meu é sim, sim, não, não, oito
ou oitenta, sou muito intranqüila... Intranqüila ao ponto de eu voar nas pessoas. Eu não
gosto de discussão, eu gosto de bater. Sou bem brava.
Entrevistador – Então perde o controle fácil.
Entrevistado Facílimo. Facílimo. Eu não tenho muita paciência para muita coisa não.
Com tudo na minha vida é assim.
Entrevistador – Com tudo?
Entrevistado – Tudo.
Entrevistador – É feliz, triste?...
Entrevistado – Sou triste.
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Entrevistador – Triste?
Entrevistado – Sou uma pessoa muito triste, muito melancólica.
Entrevistador – Você sabe dizer por quê?
Entrevistado Porque eu vivo em busca... Eu sou uma pessoa que gosto muito de ajudar
as pessoas, eu gosto de estar sempre fazendo tudo por alguém. E eu procuro aprender que
não é porque eu faço que os outros têm que fazer para mim. Mas a ter esse perfil de
entender isso, e eu sei disso e eu tenho que ter conhecimento, um esquecimento aí.
Porque eu sou muito boa para todo mundo, mas quando eu preciso, eu não consigo entrar
negócio bom para mim. Então caio naquela coisa da cobrança, né? É uma cobrança interna,
é uma cobrança íntima, mas existe a cobrança. Mesmo que eu não e cobre da pessoa,
mas eu me cobro: Poxa, mas eu sempre fiz tudo o que eu pude, e agora que eu preciso...”
Eu sou uma pessoa rancorosa também, tá?
Entrevistador Quando você fica ansiosa, ou nervosa, ou triste, ou quando perde o
controle, o que você costuma fazer?
Entrevistado – Geralmente eu brigo muito. Grito muito, brigo muito.
Entrevistador – E quando você está ansiosa, o que você faz?
Entrevistado Ansiosa? É, como. Como. Quando eu não discuto, eu como. Dependendo
da situação, se não der para brigar, aí eu vou comer.
Entrevistador – E como que você costuma resolver os seus problemas?
Entrevistado – Na briga. Eu sou brigona.
Entrevistador Hum, hum. Como que é o seu habito alimentar e o que você gosta de
comer?
Entrevistado Comida. Estava terminando de falar com ela, eu não sou muito de comer
coisinhas assim, mas eu adoro, por exemplo, comida; sentar e comer bastante comida,
bastante massa... macarrão eu não sou muito ligada não, mas eu gosto muito de massa, eu
gosto de sorvete, eu gosto muito... O único doce assim que eu gosto. Eu não sou muito de
comer doce não. O que me engorda não é doce, eu gosto de comida.
Entrevistador – Tá. Você tem capacidade de autocontrole perante á comida?
Entrevistado – Não.
Entrevistador – Não?
Entrevistado – Não.
102
Entrevistador – Como que é?
Entrevistado Eu vou comendo, comendo, comendo, e enquanto eu não vejo o fim... Se
tiver na minha casa, que faz muito pizza, eu quero comer dois, três, quatro pedaços de
pizza.
Entrevistador – Então cai na próxima pergunta. Você come depressa, devagar?...
Entrevistado – Depressa demais. Eu engulo, não mastigo.
Entrevistador – Muito? Come muito?
Entrevistado – Muito.
Entrevistador – Repete?
Entrevistado – Muito. Às vezes, assim, quatro vezes.
Entrevistador Essa pergunta a gente vai falar um pouquinho. O quanto você come é
determinado pela fome que você tem?
Entrevistado – Eu acredito que sim. Necessariamente não.
Entrevistador – Toda vez que você come é porque está com fome?
Entrevistado – Não. Com certeza não. Às vezes eu como por comer.
Entrevistador – Como é esse negócio de comer por comer?
Entrevistado Comer porque eu quero comer. Eu vejo alguma coisa, quero mastigar e
quero comer. Não porque eu estou com fome.
Entrevistado – Que sensação que dá?
Entrevistado – Prazer.
Entrevistador – Gosta de comer sozinha ou em grupo?
Entrevistado – Eu gosto de comer escondido, sozinha. Principalmente de madrugada.
Entrevistador – Mais de madrugada? E como é a hora da refeição na sua casa?
Entrevistado Geralmente todo mundo sentado à mesa, nós sempre fazemos as refeições
juntos, né, e geralmente muito.
Entrevistador – Você tem vergonha de comer perto deles?
Entrevistado Morro de vergonha. Eu roubo comida de madrugada na geladeira, a hora
que o meu marido vê, no outro dia ele me critica, eu choro...
Entrevistador – Você não gosta que ele veja?
103
Entrevistado Não, porque ele me critica. Mas eu roubo comida o tempo todo. Se eu
souber que tem um pudim na geladeira, eu não durmo, fico a noite inteira comendo aquele
pudim. Isso me deixa muito triste.
Entrevistador – Enquanto não acaba...
Entrevistado Eu não paro de comer. Isso me deixa muito triste. Porque eu tenho que
roubar comida, comer escondida.
Entrevistador – Você sente que a comida, Shirley, controla a sua vida?
Entrevistado – Não, não tanto assim não.
Entrevistador Nesse caso aí, enquanto não come o pudim, não termina de comer, você
não consegue dormir. E controla o seu sono nessa hora?
Entrevistado É. Eu nunca tinha parado para pensar nesse sentido não, mas se você for
analisar bem, é isso mesmo, né?
Entrevistador – Hum, hum. Quando você se sente ansiosa, você tende a comer muito?
Entrevistado – Muito.
Entrevistador Vo se volta para a comida para aliviar algum tipo de desconforto?
Tristeza...
Entrevistado – Também
Entrevistador – ...Nervoso?...
Entrevistado – Também. É, é verdade.
Entrevistador Agora eu vou passar para outra pergunta. Como vose vê? O que pensa
que as pessoas ao seu redor acham de você?
Entrevistado – Isso é para o lado da comida ou se é para mim... Eu sou meio antipatizada.
Entrevistador – Como que é?
Entrevistado Eu estou trabalhando isso na terapia também. Por ser muito brava, muito
sim, sim, não, não, eu sou meio mal compreendida. O meu direito começa onde termina o
dos outros. E eu não aceito, não pisem no meu calo não, não encostem no meu calo que eu
já viro onça. Então eu sou muito brava. Então, por isso eu sou antipatizada.
Entrevistador Em relação assim mais corporal, de estar um pouco mais gorda, como
você se vê em relação a isso?
Entrevistado – Feia, gorda, frustrada, triste...
Entrevistador – Como você acha que as pessoas te vêem?
104
Entrevistado – Eu acho que as pessoas me vêem como uma pessoa mal amada, uma pessoa
amarga, briguenta... Porque eu sou briguenta.
Entrevistador – Você se olha no espelho?
Entrevistado – Olho. Olho. Não tenho o menor problema com isso.
Entrevistador – E como é que é quando você se vê?
Entrevistado Uma tristeza, uma amargura. Na hora que eu vejo aquela barriga enorme
caindo na frente, aquilo é uma amargura para mim. Eu xingo mesmo.
Entrevistador – E como é que você gosta de se vestir?
Entrevistado – Sempre tentando esconder a gordura, né? Uma roupa sempre discreta,
sempre mais preto... Sempre tentando esconder a gordura.
Entrevistador – Se sente gorda?
Entrevistado – Muito.
Entrevistador – Excessivamente gorda ou arredondada ou um pouco?
Entrevistado – Excessivamente gorda e arredondada. As duas coisas juntas.
Entrevistador – Você já tem evitado usar roupas que fazem notar a forma do seu corpo?
Entrevistado Não tenho mais roupa, não tenho mais roupa que me sirva. Então, assim,
não que eu tenho evitado, é porque já tenho mesmo mais.
Entrevistador – E quando tinha, você evitava?
Entrevistado – Evitava.
Entrevistador – Você já teve ou tem vergonha do seu corpo?
Entrevistado – Tenho muita vergonha do meu corpo. Muito.
Entrevistador Você se imagina cortando fora porções do seu corpo? Cortando alguma
parte: ou a barriga, ou o braço, ou...?
Entrevistado – Imagino.
Entrevistador – Que parte?
Entrevistado Por exemplo, a plástica da minha barriga, né, que eu quero fazer,
abdominal, seio... Não tenho o menor problema. Mesmo porque eu fiz seios. Está com
um ano que eu operei os seios agora.
Entrevistador – Tirou um pouquinho?
Entrevistado – Tirei um pouco. Tinha muita pele e eu tirei.
Entrevistador – Qual é, no seu entender, o seu peso ideal?
105
Entrevistado – 56 quilos.
Entrevistador – Você está com...?
Entrevistado – 95.
Entrevistador – Como é que era assim, sem número?
Entrevistado – Como assim?
Entrevistado Sem número. Como que você se sentia, que roupa que você gostava de
usar?... Assim, sem saber o peso que... Como que você sabe ser um peso bom?
Entrevistado Olha, tem muito tempo que eu não sei isso, né? Tenho 20 anos de
casamento e de lá para cá eu só venho engordando. Então eu não sei muito como te dar essa
resposta não. Porque antes eu vestia saia. Eu era muito magra; eu tinha 47 quilos,
quando eu casei. Então eu era assim muito, muito, muito, muito magra. E era evangélica,
então a maioria das minhas roupas sempre foi saia. Eu não gostava de vestir calça, por ser
muito magra, e calça me deixava mais magra do que eu era. Aí eu tinha muita vontade
de engordar. Eu tinha muita vontade de engordar quando eu era magra. Tomava remédio
para engordar.
Entrevistador – Mesmo?
EntrevistadoPara engordar. Porque eu não comia; eu não era de comida. Tinha pavor de
comer. Eu passa dias, dias e dias sem me alimentar. Não tinha vontade de comer.
Entrevistador – E como você mudou assim?
Entrevistado – Depois do casamento.
Entrevistador – E quando você localiza a segunda gravidez?
Entrevistado – A segunda gravidez foi terrível. Eu passei por problemas terríveis.
Entrevistador Você falou que começou a engordar mesmo foi na segunda gravidez.
Depois da segunda.
Entrevistado – Isso.
Entrevistador – E quando você casou também, você começou a engordar também?
Entrevistado – Não, porque eu já casei grávida.
Entrevistador – Da primeira filha, né?
Entrevistado Da primeira filha. Então eu até fiquei com um corpo legal. Eu fiquei com
60 e poucos quilos; para a minha altura, eu fiquei com um corpo bonito.
Entrevistador – E quais problemas que foram esses da segunda gravidez?
106
Entrevistado – Problemas muitos sérios, né?
Entrevistador – A terceira foi a sua mãe, não foi?
Entrevistado É. A segunda o meu marido matou uma pessoa numa briga de trânsito,
eu perdi casa, perdi tudo, tive que mudar, tive que sair de onde eu morava, né, não tive
resguardo, tive que cuidar dele... ele ficou preso durante quatro meses dentro de um quartel,
eu tive que cuidar dele, cuidar das crianças... Foi um sofrimento muito grande.
EntrevistadorVoltando no tempo, como você se sente em relação ao seu peso? Você faz
dieta?
Entrevistado – Muita. Eu já tentei todas. Eu já tomei todas as drogas possíveis.
Entrevistador Você se sentiu tão mal a respeito do seu corpo que você chegou a
chorar?
Entrevistado – Muitas vezes. Muitas vezes.
Entrevistador – E a sua família, como vocês se relacionam?
Entrevistado Ó, o tempo inteiro... O meu marido é uma pessoa muito crítica. O tempo
inteiro é me criticando por causa desse corpo. Né? Todo mundo da minha casa me critica.
Até a pequenininha. Até a pequenininha agora começou.
Entrevistador – 03 anos?
Entrevistado É. Ela os outros falarem, logicamente ela vai repetir. Mas eu estou com
uma filha adolescente também que está obesa. Muito obesa, sabe? E não quer tratamento,
porque ela... Ah, eu tenho uma filha com 17 anos, ela é semi-especial. Ela é uma criança
especial. Ela tem a mente de nove anos de idade.
Entrevistador – É a mais velha ou da meio?
Entrevistado A mais velha. Ela tem uma mente de nove anos. Então ela rejeita qualquer
tipo de dieta. Eu levei na endocrinologista, na nutricionista, mas ela rejeita qualquer tipo
de dieta.
Entrevistador – Ela está mais gordinha?
Entrevistado Está muito gorda. Ela está uns 20 quilos acima do peso dela. Ela está bem
obesa. Mas se recusa a fazer qualquer tratamento.
Entrevistador – Você está satisfeita com o seu relacionamento pessoal?
Entrevistado Péssima. Eu não tenho mais relacionamento pessoal muito tempo.
muito tempo eu não tenho mais, justamente por causa do corpo.
107
Entrevistador – Trabalha?
Entrevistado – Estou desempregada.
Entrevistador – Tem quanto tempo?
Entrevistado – Quatro anos. Justamente o tempo que eu fiquei cuidando da mamãe.
Entrevistador – Já fez tratamento para emagrecer?
Entrevistado – Vários.
Entrevistador – Quais?
Entrevistado Todos possíveis. Eu tomei todas as drogas. Já teve dia que chegou um
médico e falou comigo assim: “Ó, não existe droga nenhuma no mercado que você possa
tomar para emagrecer”. O meu organismo se tornou resistente a todas elas. E onde foi
que chegou ao caso da cirurgia.
Entrevistador – Terapia pra emagrecer, já fez?
Entrevistado – Não.
Entrevistador – E a cirurgia?
Entrevistado – O quê?
EntrevistadorVocê falou aí que tomou todos os remédios, até que chegou na cirurgia.(O
gravador é desligado)
(Reinício)
Entrevistador Estava falando da cirurgia. Como você ficou sabendo desse método de
emagrecimento?
Entrevistado – Aqui mesmo no hospital, através do grupo de obesidade, com o meu
médico.
Entrevistador – Como você começou a freqüentar?
Entrevistado – O meu médico, o meu endocrinologista me encaminhou.
Entrevistador – Ele te encaminhou para cirurgia, te contou dela?...
Entrevistado Isso. Ele me encaminhou para o grupo de obesidade... o, eu passei por
um endócrino que falou que não tinha mais remédio para me dar para emagrecer. Então ele
propôs para mim o grupo de obesidade. Chegando lá, o doutor Rui, o Major Rui, né, que
sempre tratou de mim, é que é o diretor desse grupo. E eu comecei a discutir com ele a
possibilidade de estar fazendo essa cirurgia.
Entrevistador – E aí entrou no processo.
108
Entrevistado – Entrei no processo.
Entrevistador – Você acha que precisa emagrecer?
Entrevistado – Muito.
Entrevistador – Você escolheu fazer a cirurgia?
Entrevistado – Escolhi. Na pura garra.
Entrevistador – Ou alguém que te indicou?
Entrevistado – Não, não.
Entrevistador – Você que pediu?
Entrevistado – Eu pedi ao médico para fazer.
Entrevistador – O que você espera dela?
Entrevistado Que ela traga a minha auto-estima de volta, aquela alegria que eu tinha de
vestir uma roupa, me sentir bem, poder ir a um clube, freqüentar um clube, colocar a roupa
que eu quiser, não ficar preocupada que os outros estão olhando para mim, que a minha
banha está sobrando, que está feia aquela roupa que eu vesti... Entende? Eu espero ser
muito feliz.
Entrevistador – O que acha que vai acontecer com você?
EntrevistadoEu acho que tudo em mim vai melhorar. Porque até onde eu sei, as pessoas
que tiveram sucesso na cirurgia, a tendência é só melhorar. Só melhorar.
Entrevistador – Quais suas expectativas?
Entrevistado Depois da cirurgia a minha expectativa é de conseguir emprego, começar
trabalhar e retornar àquela vida boa. Porque eu vejo, que às vezes eu reclamava do meu
serviço, de estar cansada e tudo mais, mas aquilo era uma vida boa, entendeu? Odeio
serviço de casa. Eu gosto de sair cedo, trabalhar e voltar à noite para casa. Então a minha
expectativa é essa, de arrumar um emprego, sair para trabalhar e começar a ser um pouco
feliz novamente, que muito tempo eu não sou.
Entrevistador E a última pergunta: como vai fazer quando ficar ansiosa e não puder
descontar na comida como agora?
Entrevistado Ah, eu estou interada do processo, né, de terapia, eu vou procurar sempre
estar dentro do grupo da terapia, né, e com essa cabeça que eu tenho hoje, que eu sei que
não vou conseguir mais comer, porque foi feito todo um processo, um trabalho, né, para
que eu pudesse entender isso... A primeira coisa também que ele falou para mim: “Você
109
tem que prestar bastante atenção, porque não tem volta, você vai querer comer e não vai
poder”. Então eu espero estar fazendo uma terapia, estar descontando isso numa terapia, e
em outras coisas também que, a partir do momento que eu emagrecer, eu vou poder fazer.
110
SEGUNDA ENTREVISTA – 14/09/2006
Entrevistador – Como foi à primeira semana do seu pós-operatório.
Entrevistado Bom, foi bem difícil, né? A fome foi bastante, eu tive muita dificuldade
para não alimentar, né, tendo fome, e também foi muito dificuldade estar alimentando
somente aquela sopa, né, aquela água que a gente tem que estar tomando.
Entrevistador – Como que é? Tem que comer... Como que é a primeira semana? Não pode
comer nada?
Entrevistado Não, na primeira semana é líquido mesmo. líquido: suco, água,
gelatina... Né? E isso foi difícil. Porque eu ainda tenho olho de gordo e a cabeça de gordo,
né? Então é complicado você ter que alimentar, o seu organismo estar pedindo algo mais
forte e a gente não poder dar para o seu organismo isso. Então foi bem difícil a primeira
semana.
Entrevistador – Hum, hum. E dor?
Entrevistado Não, dor eu não tive muita não. Muito pelo contrário, eu não cheguei a
tomar nenhum analgésico para dor. Foi super tranqüilo. Esse lado da dor foi super
tranqüilo. Só mesmo a fome. O que não é muito comum. Porque com outras pessoas com as
quais eu conversei, quase ninguém teve fome. eu acho assim que entrou mesmo esse
lado meu da ansiedade, né? Porque quase ninguém teve fome. E eu fiquei suspensa de
tomar o meu antidepressivo, né, ansiolítico, então eu acho que foi mais difícil ainda para
mim.
Entrevistador – Então, qual foi o período para você mais difícil, de pós-operatório?
Entrevistado A primeira semana. A primeira, a segunda semana... segunda semana e
meia. Da terceira semana para foi assim mais controlado. Né? Mas a primeira e a
segunda foi bem difícil.
Entrevistador – E como você tem se sentido?
Entrevistado Bom, agora eu estou bem. Agora eu estou conseguindo lidar com isso
melhor, né? Mesmo porque agora também eu já comecei a tomar o remédio que é para
ansiedade, e eu estou conseguindo lidar com isso melhor; com a fome, ver e não comer, né?
É tomar um suco ao invés de comer uma coisa calórica, é tomar uma água ao invés de
comer alguma coisa calórica... Mas agora está bem mais fácil.
111
Entrevistador – Hum, hum. E tem tido alguma dificuldade?
Entrevistado Não. Até agora não. Sabe? Eu acho que a gente fica ansiosa, assim, para
ver o resultado. Mas está muito recente, né? Tem um mês de operada, né, está tudo
muito recente. Mas a gente fica querendo que o tempo passa, para eu ver se realmente vai
dar certo, como deu nas outras pessoas. Mas dificuldade pessoal, de alguma coisa, não,
tranqüilo.
EntrevistadorE essa hora que você falou, que olha a comida e tem olho de gordo? Você
acha que você está com alguma está com alguma dificuldade?
Entrevistado É, mas agora, como eu disse antes, é mais controlado, né? Por exemplo,
ontem a minha vizinha ofereceu um pé-de-moleque, eu não comi. Se fosse antes, quando eu
estava com fome, né, eu comeria. Por exemplo, na primeira semana de operada, eu
arrisquei, coloquei um chocolate na boca e deixei derreter. Porque eu tinha vontade mesmo
de comer. Agora está tranqüilo. Eu vejo e não consigo mais. Então, assim, é uma
dificuldade que agora eu estou conseguindo lidar melhor com ela.
Entrevistador – Tem tido dúvida?
Entrevistado – Não. Não, tranqüilo.
Entrevistador – De como comer, de tudo o que pode fazer?...
Entrevistado Não, eu sei tudo o que eu posso comer. Às vezes tem uma desobediência,
né? Por exemplo, como uma fritura... Eu sei que não pode. Por exemplo, essa semana eu
andei abusando, ontem fiquei mais tranqüila, tomar iogurte light, jantar mais saladinha...
Né? Porque às vezes tem um abuso. Eu acho que até o segundo mês a gente tem toda a
dieta da nutricionista e então não tem essa dúvida.
Entrevistador – Ah, tá, tem uma direção do que pode e o que não pode.
Entrevistado – Isso. Isso. E também, assim, mesmo da cabeça da gente, a gente já sabe, né,
o que vodeve fazer, o que não deve, né? Mesmo porque a gente lida com dieta durante
muitos anos, né? Para chegar a essa cirurgia de redução, a gente lida com dieta durante
muito tempo. Então, assim, a gente sabe as coisas que são calóricas ou não. Então, até
agora eu ainda não tive dúvida nenhuma não.
Entrevistador – Tá. Tem se sentido insegura, ansiosa?...
Entrevistado Muito, muito ansiosa, né? Mas entram assim outros fatores que... E
depois, é muito interessante quando a gente faz a cirurgia, porque até então a gente acha
112
que todo problema da gente é a obesidade, né? É o tamanho, é o peso... você vai
perdendo peso e vê que não é só isso. Existem outros fatores, outras coisas, né, que deixem
com que você fique ansiosa. Então, anota da gente, quando está gorda, é só assim. O que os
médicos falam para a gente, o tempo todo, que não é isso. Né? Mesmo porque a gente
como leiga, como não saber como lidar com as coisas, a gente: “Não, eu vou emagrecer e a
minha vida vai mudar totalmente”. E não é assim, é uma constante luta. Realmente, eu
tenho me sentido mais leve, mais disposta a fazer as coisas... Mas a ansiedade de outros
problemas, do cotidiano da vida, elas continuam, né? Então, é isso é que leva a gente a até
comer mais. Até mesmo porque se você não vigiar, pela experiência que eu tive essa
semana, você volta a comer. Então, eu estou procurando ficar o máximo fora de casa,
ocupar minha mente, ocupar o meu tempo, porque senão a gente volta a comer mesmo.
Entrevistador Sim. Essa pergunta você acabou me respondendo: como é que está o
seu comportamento alimentar. Tem mais alguma coisa a acrescentar?
Entrevistado Tranqüilo. Assim, eu procuro sempre estar me alimentando de iogurte, um
leite desnatado, eu procuro evitar massa, quando eu como massa é massa, não consigo
comer outro tipo de coisa e faço questão de não comer, né?...
Entrevistador – Não está conseguindo comer como antes?
Entrevistado Não, não, de jeito nenhum, de maneira alguma. Eu cheguei a vomitar
umas três por insistir em comer coisas que não devia, né? Então eu cheguei a vomitar
umas três vezes. E realmente você não consegue mesmo comer.
Entrevistador – Você acha que alguma coisa mudou?
Entrevistado Ah, com certeza. Com certeza. Hoje é muito mais fácil para mim poder
estar fazendo... porque, na verdade, o que eu queria dizer antes, é que quando a gente está
lendo uma apostila, que a gente ganha no hospital, para fazer o preparo para a cirurgia, a
gente vê a apostila com um olho. Depois que opera, você vê com outros olhos. Você vê que
realmente é tudo muito complexo, tudo muito diferente do que tudo aquilo que a gente
tinha visto antes. Então você muda totalmente o seu modo de alimentar; você procura estar
comendo coisas mais saudáveis, sente fome, come uma fruta, não vai procurar um bolo, não
vai procurar um pão... Então a gente muda completamente o modo de a gente alimentar.
Então, é onde entra... a redução, ela é uma reeducação alimentar forçada. Porque não cabe.
Não adianta colocar, porque não cabe, e se comer, vai passar mal.
113
Entrevistador – Sim. Você emagreceu?
Entrevistado – Emagreci já 11 quilos, nesse primeiro mês. 11 quilos.
Entrevistador – A cirurgia tem correspondido às suas expectativas?
Entrevistado Com certeza. Muito. Muito. Eu quero... assim, é igual eu falei antes, a
gente fica ansiosa para que chegue o tempo mais rápido e você ver, né, assim, o que isso
tudo vai trazer. Mas isso tudo faz parte da ansiedade, né? Pessoas que são ansiosas, que não
agüentam esperar o amanhã, como eu, né? Então, faz parte dessa ansiedade.
Entrevistador A última pergunta. Como é que voestá fazendo quando fica muito
ansiosa, ocorre alguma coisa que você fica receada, uma frustração e não consegue comer
como antes?
Entrevistado Eu saio. Saio, vou passear, vou espairecer, vou andar... Né? Procuro beber
água, bastante líquido, bastante água... Né? E procuro sair. Geralmente é sair.
Entrevistador Igual você falou agora mesmo, quando você não pode comer bolo e
chocolate, tem que um iogurte, ou uma fruta?
Entrevistado Eu não me sinto nem um pouco frustrada por isso. Sabe? Eu acho
tranqüilo, acho até muito bom. Na nora, a gente pensa: “Nossa, poxa, eu poderia”. Porque,
na verdade, você poderia estar comendo sim, dentro do limite. Tudo tem o seu limite, né?
Mas como eu ainda não dou conta de estar comendo essas coisas, eu tomo um iogurte, um
suco, ou como uma fruta, tranqüilamente, e saio; para não ficar ali o tempo todo que
poderia, que eu queria, né, e não dou conta, eu saio.
Entrevistador – Então alguma coisa estar fazendo ao invés de comer.
Entrevistado – Isso. Com certeza.
Entrevistador – Tá bom, obrigada.
(O gravador é desligado)
(Reinício)
Entrevistador Você teve dor? Voltando àquela pergunta, a primeira pergunta, “como foi
a sua primeira semana de pós-operatório”, e eu te perguntei se vo tinha tido dor.
Refazendo.
Entrevistado – Bom, tive muita dor. Depois do pós-operatório, lá no hospital. Inclusive, eu
achei que a dor não ia passar, era uma dor insuportável. E, juntamente, vinha os gases, né?
114
Então o aparelho digestivo fica assim totalmente dolorido mesmo. É muito dor. Depois da
cirurgia é muita dor.
Entrevistador – Tá bom.
115
TERCEIRA ENTREVISTA: 06/10/2006
Entrevistador – Então, hoje é dia 06 de outubro de 2006, a Shirley está fazendo dois meses
de cirurgia, e a primeira pergunta que eu vou fazer é como é que foi esse segundo mês de
pós-operatório.
Entrevistado Tá. Esse segundo mês foi mais complicado, senti dor ao me alimentar,
agora na última semana, às vezes está difícil ficar em casa, não seu comer, mas sem
beliscar o tempo inteiro, né? Vomitei demais essa semana, tudo o que eu comia, voltava.
Senti a necessidade de estar me alimentando, comendo sempre, e também acho que não
estou perdendo o peso que eu deveria. Talvez por falta de exercício físico também, né?
Onde me cobraram de fazer, e eu ainda não fiz exercício físico nenhum. E eu senti
necessidade, semana passada, de estar comendo algo doce. Coisa que muito tempo não
acontecia, né? Eu fiz um brigadeiro para poder estar comendo, comi. E depois desse
brigadeiro é que eu comecei a sentir mal. Eu comecei a fazer vômito, eu comecei a não
conseguir me alimentar direito, e também estou sentindo um pouco de dor quando eu vou
comer.
Entrevistador Tá. Você falou como está se sentindo, eu ia te perguntar isso. Tem
alguma coisa para completar? É a segunda pergunta: como está se sentindo.
Entrevistado – Não, é isso mesmo. Só isso.
Entrevistador Tem tido alguma dúvida quanto a essa cirurgia ainda, o pós-operatório,
como você deve comer, as coisas que você deve fazer?...
Entrevistado Dúvida? Não. Assim, eu não tenho muita dúvida não. É mesmo às vezes
uma falta de preparo mesmo, para poder estar fazendo tudo aquilo que eu sei que tem que
fazer. Eu leio bastante a apostila; toda vez que eu tenho dúvida, eu volto na apostila. Eu fui
muito bem orientada quanto à minha alimentação. Agora, nesse segundo mês agora inicia
um processo mais difícil. Porque, segundo os psicólogos e os médicos, a gente tem que
estar colocando normalmente, a comida normal, né, para a gente estar comendo. E eu ainda
não consigo fazer isso. Para mim, quanto mais macia, melhor.
Entrevistador – Comida normal, o quê? Arroz, feijão?...
116
Entrevistado Arroz, feijão, uma carne, né? Carne eu como. Como com muita
facilidade. Eu não tenho dificuldade nenhuma em comer carne. Mas arroz, as outras coisas
mais duras, eu ainda tenho muita dificuldade. Eu prefiro um legume, do que um arroz.
Entrevistador Sim, eu ia te perguntar então como está o seu comportamento alimentar...
Como você tem comido? Ou não comido? Ou comido muito?
Entrevistado Não, mudou bastante. Mudou bastante. Eu tenho comido bem mais salada,
brócolis, couve-flor... Eu tenho feito uma alimentação bem mais saudável do que antes. Eu
acho até interessante, porque a gente muda completamente o hábito alimentar da gente. A
gente tem necessidade mesmo de estar mudando. Mesmo porque a gente não consegue estar
comendo outras coisas, né? E fora essa necessidade que eu tive de comer chocolate, o resto
é totalmente diferente. Então, assim, a minha alimentação hoje é bem mais saudável.
Entrevistador – Você falou “não consegue”? Como que é isso? Vamos pegar um iogurte.
Entrevistado Não, iogurte... tudo o que é mole, tudo o que é macio, eu consigo estar
comendo, né? Eu não consigo comer, igual eu disse no início mesmo, é o arroz, é o
macarrão... eu ainda sinto dificuldade assim para estar comendo uma macarronada... Uma
sopa não, mas uma macarronada eu sinto.
Entrevistador – Como que é essa dificuldade?
Entrevistado Eu me sinto muito empanzinada muito, muito rápido. E, sinto assim, com
uma colher, duas, eu começo a sentir muito dor no esôfago mesmo, até mesmo para estar
fazendo a digestão. A digestão é muito difícil, desses alimentos. Então eu prefiro estar
evitando.
Entrevistador – Hum, hum. Tem se sentido insegura, ansiosa?...
Entrevistado – Ansiosa, bastante.
Entrevistador – É?
EntrevistadoBastante. Mesmo porque essa questão do desemprego... Eu acho que é uma
conseqüência, né: a gente altera, fica bem, começa a emagrecer, e logo a gente quer entrar
no ritmo de vida de trabalhar, estudar, fazer as coisas diferentes, né? Então, à medida que
isso não vai acontecendo, à medida que isso não vai acontecendo, a gente vai ficando
ansiosa. Então...
EntrevistadorVocê imagina que isso ia acontecer antes da cirurgia, que depois que você
fizesse a cirurgia isso tudo ia mudar?
117
Entrevistado Eu não imaginava muita diferença não. Porque eu estava muito ansiosa
antes de fazer a cirurgia. Eu não digo que a minha ansiedade mudou em muita coisa não.
EntrevistadorVocê falou que emprego diferente, que você vai imaginar que vai ser tudo
diferente.
Entrevistado Ah, eu tive uma resposta semana, quando eu cheguei para procurar
emprego, de uma pessoa falando comigo: “Pois é, então agora a gente vai poder te ajudar,
vai ficar bem mais fácil, porque você vai estar bem mais magra”. A gente sente isso assim,
né, essa discriminação; a gente sente ela assim, ninguém mais esconde essa discriminação
que tem não, né? Então a gente sente que pode ser diferente. Você pode colocar uma roupa
melhor, você pode estar se arrumando melhor, para estar se apresentando, né? E isso pesa
muito para a gente poder estar arrumando emprego.
Entrevistador . Acho que você também já falou para essa pergunta. Voacha que
acha alguma coisa mudou? Você emagreceu, quanto?...
Entrevistado Eu perdi dez quilos, né, até agora, e não acho que é uma boa medida,
uma boa perca, né? No meu ponto de vista, eu não acho. Mas também eu não sei como
funciona esse processo. Porque tudo é muito novo para mim, então eu não sei como
funciona essa perca de peso, né? Eu sei que com dieta comum talvez eu não conseguiria
estar perdendo esses dez quilos. E a minha alimentação realmente é muito reduzida, é muito
pouca, eu sei que eu vou perder mais, e isso me deixa mais tranqüila, mais confortada em
relação a peso. E acho que deveria... Tem pessoas que eu conheço, que fez na mesma data
que eu, que perdeu muito mais peso que eu. Eu poderia estar perdendo mais, né? Eu não
estou feliz com essa quantidade de peso não.
Entrevistador Tá. A cirurgia tem correspondido às suas expectativas? Acabou de
responder um pouquinho, né?
Entrevistado É, tem. Tem, assim, na medida de que a cada tempo, a cada mês é um
tempo diferente, né, a gente perde um tanto de peso diferente, né?
Entrevistador – Você queria estar perdendo mais?
Entrevistado Eu queria estar perdendo mais, né? Acho até que se tivesse um pouco mais
de esforço, da minha parte, de estar perdendo, eu poderia estar perdendo mais peso sim.
Acho que às vezes a falha é minha e não da cirurgia. Às vezes eu quero introduzir
alimentos que não devem ser introduzidos naquela época, e eu às vezes pulo por cima
118
disso, diante da minha ansiedade, acho que dou conta de estar alimentando e vou lá e como.
Então, eu acho que até isso atrapalha mesmo a minha perca de peso.
Entrevistador Eu ia te fazer essa pergunta, você introduziu. Como que você está
fazendo quando você tem alguma frustração ou fica ansiosa e que você não pode comer
como antes?
Entrevistado – Eu durmo. Eu durmo, eu saio... A maioria das vezes eu saio. Eu procuro...
Entrevistador – Sim, você me falou aí há pouco que às vezes você come mesmo assim.
Entrevistado Às vezes como e vomito, né? A maioria eu como, vomito. Mas eu tenho
procuro muito é sair para rua. Eu prefiro ficar na rua, estar tomando um suco, um chá, né,
levo a minha garrafinha, do que estar dentro de casa, alimentando.
Entrevistador – Está levando a garrafinha sempre com você?
Entrevistado – Sempre comigo.
Entrevistador – Com o quê?
Entrevistado – Chá... A maioria das vezes é chá.
Entrevistador – E você toma ela quanto?
Entrevistado – Em quanto espaço de tempo?
Entrevistador – É, por que você toma? Dá vontade? O que acontece?
Entrevistado – Sim, porque às vezes eu sinto fome.
Entrevistador – Aí você toma a garrafinha?
Entrevistado – Eu tomo chá.
Entrevistador – Tá. E a fome diminui?
Entrevistado – Diminui.
Entrevistador – Como que a sua família e seus amigos têm percebido você agora com dois
meses de cirurgia?
Entrevistado Bom, muitas pessoas falam que ainda não está dando para perceber muita
diferença não. Porque foram dez quilos, né? E a maioria das pessoas fala que não dá. O
meu esforço vê uma diferença grande, acha que eu... também não é muito de comentar, ma
sacha que eu emagreci bastante. Os meus filhos também. Agora, as outras pessoas assim
acham que ainda não está naquele processo de estar dando para perceber uma mudança não.
Entrevistador – Tá bom, obrigada.
119
QUARTA ENTREVISTA: 02/11/2006
Entrevistador Estamos indo então para o terceiro mês de cirurgia da Shirley, hoje é dia
02 de novembro de 2006, e a primeira pergunta é: você emagreceu mais um pouquinho?
Entrevistado – Emagreci. Eu já emagreci 16 quilos, nesses três meses.
Entrevistador – E me fala como você se sente. Você tem tido alguma dificuldade? Como é
que está o seu comportamento alimentar nesse terceiro mês?
Entrevistado Bom, nesse terceiro mês agora eu tive alguns problemas, né, de
alimentação. Algumas coisas, alguns alimentos que não consegui estar ingerindo, né, eu
passei para minha médica, ela mandou assim que eu voltasse e começasse de novo a comer
tudo muito cozidinho, né, bem passadinho. Mas em questão se sentir, eu estou achando
ótimo essa questão de... dessa reeducação alimentar, na verdade, né? Eu acho que o melhor
de tudo dessa cirurgia para mim, até agora, está sendo como me alimentar. Por exemplo,
ficar coma salada, com o suco... coisas que eu não conseguia fazer antes de estar
operada. Estou tendo dor? Sim. Estou passando mal, às vezes vomito muito quando como
alguma coisa que não devo comer, alguma coisa mais dura... Mas quando chega... assim,
quando eu consigo alimentar direitinho, comendo a salada, comendo as coisas que eu
consigo comer, é muito bom, a sensação de estar podendo fazer essa reeducação alimentar.
Muito bom.
Entrevistador S., e me conta do seu terceiro mês. Como é que está? Alguma coisa
mudou, teve mudanças na auto-estima?...
Entrevistado Ah, com certeza, né? Eu comecei a colocar roupa que muito tempo eu
não vestia, comecei a vestir... Esse terceiro mês é o mês que a gente começa mesmo a ver
as diferenças do corpo, as diferenças de peso mesmo, de mudança até no rosto, mudança
em geral. Esse mês é igual eu já tinha dito antes, né, eu estou com um pouco de dificuldade
em questão de alimentação, então está sendo mês também que eu mais estou perdendo
peso. Porque comigo está sendo o contrário: em vez de estar sendo os dois primeiros meses,
esse mês é que está sendo o mês para mim de verdade, de perca de peso. Justamente por
causa desse mal todo que eu estou passando. Mas também esse mês é o mês que eu mais
tenho perdido peso, é o mês que eu mais tenho me alimentado com salada... Eu não tenho
sentido muita vontade de alimentar. Aquele problema que eu tinha antes, da compulsão
120
pela comida, eu não estou tendo isso mais, , eu estou conseguindo controlar tranqüilo,
com suco, com alguma coisa light, né? E antes eu tinha essa dificuldade, eu não conseguia.
Entrevistador E entrando na próxima perguntam, pegando essa palavra “compulsão”,
antes você tinha compulsão pela comida. E eu te faço essa pergunta todo s, eu vou te
fazer: como que você está fazendo quando ocorre alguma frustração e você não pode... ou
tristeza, ou depressão, ou ansiedade, e você não pode recorrer ao... ( ... ) da compulsão de
comer como antes.
Entrevistado Eu quero recorrer ás compras. Eu quero ir a supermercado, eu quero
comprar... mesmo que eu não coma, eu quero comprar. Sempre comprando. Eu gosto de
fazer compra. Por incrível que pareça, toda vez que eu me sinto triste, sinto que eu não
tenho mais esse problema com a obesidade... Não tenho em termos. Porque, segundo o meu
médico também, se eu continuar comendo doces, coisas calóricas, né, eu não vou perder
peso. Então eu ainda tenho essa preocupação sim. Porque eu estou no início da minha
cirurgia, está muito recente, então para mim ainda é uma preocupação perder peso também.
Porque às vezes eu me vejo comendo um doce, um chocolate, né? E eu estou totalmente
assim proibida de comer essas coisas, pelo menos nesses seis meses, nos primeiros seis
meses. Então, quando eu não recorro a isso, aonde que vem o sentimento de culpa, então
eu recorro às compras. Eu gosto de comprar, estar saindo para fazer compras.
Entrevistador E a vida emocional, sentimental?... Como que a sua família tem te visto,
como que está essa compulsão aí para a sua família?...
Entrevistado Bom, o meu esposo sempre comenta que eu ainda estou sem medida,
sempre estou colocando no prato além daquilo que eu consigo comer, né? Ainda estou com
olho de gorda ainda.
(O gravador é desligado)
(Reinício)
Entrevistado Bom, por outro lado, esse terceiro mês para mim está sendo difícil, porque
a auto-estima está aumentando, está melhorando e eu estou com muita vontade de começar
a trabalhar e não consigo emprego. Então isso me faz ficar triste, me faz ficar deprimida,
vem as confusões, os conflitos, as contendas dentro de casa, porque eu quero estar
ajudando, quero estar cooperando também com o orçamento da casa e eu não tenho dado
conta disso. E eu fico mais triste, e a fuga, né, que antes era na comida, e agora eu não
121
posso mais estar comendo, estar colocando a comida como opção, eu recorro às compras,
às vezes sair, às vezes dormir... Eu recorro muito, eu fico muito quieta, eu quero ficar
sozinha, eu quero dormir, para poder estar passando o tempo rápido, para ver se no outro
dia acontece algo diferente na minha vida, né? E é isso.
Entrevistador – E a sua família, como é que ela tem visto você?
Entrevistado Bom, o meu esposo até agora, no momento, ele tem estado preocupado,
justamente pelo fato de eu não estar trabalhando, como que vai fazer para poder estar
pagando a cirurgia. A dívida da cirurgia, a dívida dos remédios, de tudo o que eu tenho que
tomar, porque tem todo um processo depois dessa cirurgia; são vitaminas, são cálcios... Né?
São coisas que eu não posso ficar sem, e são coisas que trazem problemas para a gente.
Porque aí entra a minha angústia, a minha tristeza, porque eu preciso estar trabalhando para
contribuir, e no momento eu não tenho conseguido emprego.
Entrevistador – Tá bom, S. Acabamos a entrevista, eu vou desejar boa sorte para você.
Entrevistado – Obrigada.
Entrevistador – É a nossa última.
Entrevistado – Obrigada.
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