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Vocês — note-se em parêntese — era todo o mundo, menos Gervásio… E o
Fonseca, de resto, um pobre pintorzinho da Madeira, "pensionista do Estado", de
barbichas, lavallière, cachimbo — sempre calado e oco, olhando nostalgicamente o
espaço, à procura talvez da sua ilha perdida… Um santo rapaz!
Depois de muito se conversar sobre teatro e de Gervásio ter proclamado que
os atores — ainda os maiores, como a Sara, o Novelli — não passavam de meros
cabotinos, de meros intelectuais que aprendiam os seus papéis, e de garantir —
"creiam os meus amigos que é assim" — que a verdadeira arte apenas existia entre
os saltimbancos; esses saltimbancos que eram um dos seus estribilhos e sobre os
quais, na noite em que nos encontráramos em Paris, logo me narrara, em
confidência, uma história tétrica: o seu rapto por uma companhia de pelotiqueiros,
quando tinha dois anos e os pais o haviam mandado, barbaramente, para uma ama
da serra da Estrela, mulher de um oleiro, do qual, sem dúvida, ele herdara a sua
tendência para a escultura e de quem, na verdade, devido a uma troca de berços,
era até muito possível que fosse filho — a conversa deslizou, não sei como, para a
voluptuosidade na arte.
E então a americana bizarra logo protestou:
— Acho que não devem discutir o papel da voluptuosidade na arte porque,
meus amigos, a voluptuosidade é uma arte — e, talvez, a mais bela de todas.
Porém, até hoje, raros a cultivaram nesse espírito. Venham cá, digam-me: fremir em
espasmos de aurora, em êxtases de chama, ruivos de ânsia — não será um prazer
bem mais arrepiado, bem mais intenso do que o vago calafrio de beleza que nos
pode proporcionar uma tela genial, um poema de bronze? Sem dúvida, acreditem-
me. Entretanto o que é necessário é saber vibrar esses espasmos, saber provocá-
los. E eis o que ninguém sabe; eis no que ninguém pensa. Assim, para todos, os
prazeres dos sentidos são a luxúria, e se resumem em amplexos brutais, em beijos
úmidos, em carícias repugnantes, viscosas. Ah! mas aquele que fosse um grande
artista e que, para matéria-prima, tomasse a voluptuosidade, que obras irreais de
admiráveis não altearia!… Tinha o fogo, a luz, o ar, a água, e os sons, as cores, os
aromas, os narcóticos e as sedas — tantos sensualismos novos ainda não
explorados… Como eu me orgulharia de ser esse artista!… E sonho uma grande
festa no meu palácio encantado, em que os maravilhasse de volúpia… em que
fizesse descer sobre vós os arrepios misteriosos das luzes, dos fogos multicolores
— e que a vossa carne, então, sentisse enfim o fogo e a luz, os perfumes e os sons,
penetrando-a a dimaná-los, a esvaí-los, a matá-los!… Pois nunca atentaram na
estranha voluptuosidade do fogo, na perversidade da água, nos requintes viciosos
da luz?.. Eu confesso-lhes que sinto uma verdadeira excitação sexual — mas de
desejos espiritualizados de beleza — ao mergulhar as minhas pernas todas nuas na
água de um regato, ao contemplar um braseiro incandescente, ao deixar o meu
corpo iluminar-se de torrentes elétricas, luminosas… Meus amigos, creiam-me, não
passam de uns bárbaros, por mais requintados, por mais complicados e artistas que
presumam aparentar!
Gervásio insurgiu-se: "Não; a voluptuosidade não era uma arte. Falassem-lhe
do ascetismo, da renúncia. Isso sim!… A voluptuosidade ser uma arte?
Banalidade… Toda a gente o dizia ou, no fundo, mais ou menos o pensava…
E por aqui fora, adoravelmente dando a conhecer que só por se lhe afigurar
essa a opinião mais geral, ele a combatia.