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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO CARLOS
CENTRO DE EDUCAÇÃO E CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
A NATUREZA DO PSÍQUICO E O SENTIDO DA METAPSICOLOGIA
NA PSICANÁLISE FREUDIANA
Aluna: Fátima Siqueira Caropreso
Orientador: Prof. Dr. Luiz Roberto Monzani
Material apresentado
para a defesa de
doutorado ao PPG em
Filosofia da UFSCar
Agosto
2006
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Ficha catalográfica elaborada pelo DePT da
Biblioteca Comunitária/UFSCar
C293np
Caropreso, Fátima Siqueira.
A natureza do psíquico e o sentido da metapsicologia na
psicanálise freudiana / Fátima Siqueira Caropreso. -- São
Carlos : UFSCar, 2006.
268 p.
Tese (Doutorado) -- Universidade Federal de São Carlos,
2006.
1. Sistema freudiano. 2. Metapsicologia. 3. Consciência.
4. Inconsciente. 5. Representação. I. Título.
CDD: 150.1952 (20
a
)
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Para o meu pai, Henry, e para o amor
da minha vida, Richard.
Agradecimentos
Quero agradecer, em primeiro lugar, ao meu orientador, professor
Luiz Roberto Monzani, por ter aceitado me orientar, pela paciência de ler
com tanta atenção essa tese, pelas valiosas discussões, enfim, por todo apoio.
Agradeço também imensamente ao Richard por tudo o que me
ensinou desde a graduação, pela paciência diária de me ouvir e discutir
comigo, por ter me apoiado em todos os momentos.
Agradeço aos professores do departamento de filosofia, em especial
ao professor Mark Julian Cass, com que aprendi muito, e ao professor
Eduardo Baioni, pelo auxílio técnico.
Agradeço às secretárias, Rose, Cleusa e Sueli, pela paciência e
amizade.
Agradeço aos membros da banca de qualificação, Débora Morato
Pinto e Maria Lúcia Cacciola, pelas inestimáveis sugestões e críticas e aos
professores Miguel Bairrão, Francisco Bocca e Hélio Honda por terem
aceitado participar da banca de defesa.
Agradeço à Capes, pela bolsa concedida.
SUMÁRIO:
Introdução
.........................................................................................................................................................................1
Capítulo I
- Inconsciente e representação nas origens da metapsicologia........................................................................5
1) O conceito de representação em “Sobre a concepção das afasias”..............................................................................5
1.1) As hipóteses neurológicas criticadas por Freud........................................................................................................6
1.2) As hipóteses psicológicas implícitas na teoria neurológica de Meynert e Wernicke..............................................10
1.3) A desconstrução do esquema de Wernicke das afasias: a área da linguagem.........................................................11
1.4) O aparelho de linguagem.........................................................................................................................................21
1.5) Representação e consciência em “Sobre a concepção das afasias”.........................................................................27
2) O conceito de representação inconsciente nos textos freudianos de 1891 a 1895......................................................32
3) A expansão do conceito de psíquico no “Projeto de uma Psicologia”.......................................................................39
3.1) O aparelho neuronal.................................................................................................................................................39
3.2) A relação entre o psíquico e a consciência no “Projeto...”......................................................................................50
3.3) O sistema ω..............................................................................................................................................................57
3.4) Representação e consciência no “Projeto...”............................................................................................................64
Considerações finais.......................................................................................................................................................66
Capítulo II
- O aparelho psíquico: representação e consciência na primeira tópica freudiana......................................67
1) O esquema da carta 52................................................................................................................................................68
2) O capítulo 7 de “A Interpretação dos sonhos”............................................................................................................73
2.1) A relação entre o aparelho psíquico e o sistema nervoso........................................................................................74
2.2) O aparelho psíquico.................................................................................................................................................78
2.3) A relação entre os sistemas Prcc e Icc.....................................................................................................................86
2.4) As propriedades do Prcc e do Icc.............................................................................................................................91
2.5) A relação entre o psíquico inconsciente e a consciência.........................................................................................96
Considerações finais......................................................................................................................................................105
Capítulo III
- Pulsão, afeto e representação nos artigos metapsicológicos..................................................................111
1) A relação entre o psíquico inconsciente e os processos nervosos nos artigos metapsicológicos.............................112
2) O aparelho psíquico..................................................................................................................................................117
3) A relação entre a pulsão e a representação...............................................................................................................129
4) A relação entre os sistemas Prcc e Icc......................................................................................................................137
5) As propriedades do Prcc e do Icc.............................................................................................................................140
6) Representação e consciência nos artigos metapsicológicos.....................................................................................145
Considerações finais.....................................................................................................................................................152
Capítulo IV –
Aparelho psíquico e teoria pulsional na segunda tópica freudiana. .....................................................156
1) A revisão da teoria das pulsões em “Além do princípio do prazer”.........................................................................157
1.1) O “além” do pirncípio do prazer..........................................................................................................................159
1.2) O processo primário no “Projeto...”.....................................................................................................................161
1.3) O princípio do prazer............................................................................................................................................164
1.4) Repetição, trauma e desprazer..............................................................................................................................168
1.5) Compulsão à repetição e processo primário.........................................................................................................175
1.6) Da compulsão à repetição à pulsão de morte........................................................................................................178
1.7) Da pulsão de morte à pulsão de vida.....................................................................................................................181
1.8) Primeiro “versus” segundo dualismo pulsional.....................................................................................................185
1.9) Haveria, de fato, um “além” do princípio do prazer?............................................................................................188
2) A expansão do conceito de inconsciente em “O Eu e o Isso”..................................................................................193
2.1) Um novo elo na concepção de inconsciente..........................................................................................................197
2.2) A nova estrutura do aparelho.................................................................................................................................200
2.3) Representação e consciência na segunda tópica freudiana....................................................................................202
2.4) A segunda tópica e a compulsão à repetição........................................................................................................ 213
3) O “Esboço de psicanálise”........................................................................................................................................219
Considerações finais .....................................................................................................................................................230
Conclusão
.....................................................................................................................................................................235
Bibliografia
...................................................................................................................................................................260
Resumo:
O texto “Sobre a concepção das afasias”, publicado em 1891, pode ser considerado
o passo inaugural da metapsicologia freudiana, devido à reflexão aí presente sobre a
natureza da representação. A crítica empreendida por Freud às concepções neurológicas
predominantes sobre as afasias e à teoria neurológica mais geral que as embasavam acaba
levando-o a redefinir o conceito de representação, central para o que se tornaria a sua
metapsicologia. Encontramos também, nesse texto, a origem da noção de “aparelho”: Freud
apresenta aí o conceito de “aparelho de linguagem”, de cujos desenvolvimentos posteriores
resultará, em 1900, a noção de “aparelho psíquico”. Embora encontremos, nessa
monografia de 1891, uma primeira formulação dos conceitos freudianos de representação e
de aparelho, não está presente ainda, nesse momento, a idéia de um psíquico inconsciente.
Ao contrário, é notável a recusa explícita de Freud da possibilidade de existência de algo
que seja ao mesmo tempo mental e inconsciente: a mente restringir-se-ia ao consciente e,
portanto, a idéia de uma representação inconsciente, se entendida literalmente, seria uma
contradição em termos, tendo em vista as hipóteses sustentadas por Freud nesse trabalho. O
primeiro lugar em que Freud desvincula explicitamente os conceitos de “mente” e de
“consciência” é no “Projeto de uma psicologia”, texto redigido em 1895, mas publicado
postumamente em 1950. Nos textos sobre as neuroses que se intercalam entre 1891 e 1895,
podemos perceber que já há uma certa relutância de Freud em manter a identificação do
mental à consciência, mas ele não chega a descartá-la de fato, o que é feito somente no
“Projeto...”. Freud propõe aí que o psíquico seja independente e mais amplo do que a
consciência: esta deixa de corresponder a todo o psíquico e passa a ser pensada como uma
qualidade que pode vir a se acrescentar a uma pequena parte dos processos psíquicos
inconscientes. Para incorporar a noção de psíquico inconsciente em sua teoria, Freud passa
a considerar, no “Projeto...”, que a representação não é mais, como havia sido pensado em
1891, o concomitante psíquico de um processo cortical associativo; a representação passa a
ser o próprio processo cortical. Em 1895, Freud identifica claramente o psíquico
inconsciente a processos cerebrais e tenta formular uma teoria sobre esses processos em
termos neurológicos. A metapsicologia, portanto, nesse momento inicial do pensamento
freudiano, ainda é explicitamente uma neuropsicologia. Sabemos que, nos textos
metapsicológicos posteriores de Freud, essa referência explícita à neurologia desaparece.
Mas será que isso quer dizer que Freud deixou de lado sua concepção do “Projeto...” de que
os processos psíquicos inconscientes seriam processos cerebrais? A metapsicologia, de
início claramente uma neurologia, passou a ser uma pura psicologia, porque a natureza do
seu objeto de estudo passou a ser pensada de outra forma, isto é, porque Freud deixou de
acreditar que os processos psíquicos inconscientes sejam processos cerebrais? Nessa tese,
percorreremos os textos metapsicológicos de Freud tentando encontrar, por um lado, uma
resposta a essas questões e, por outro, tentando esclarecer como esse conceito de psíquico
inconsciente vai sendo desenvolvido ao longo do pensamento metapsicológico freudiano. O
que justifica o conceito de um psíquico inconsciente? Quais são suas propriedades? Que
relação há entre o inconsciente e a consciência? Qual a natureza desse psíquico
inconsciente e qual é o estatuto da metapsicologia freudiana? Essas são as questões que se
procurará desenvolver aqui.
Palavras chave: Freud; metapsicologia; representação; aparelho psíquico; inconsciente;
consciência.
1
INTRODUÇÃO
A metapsicologia freudiana foi, durante muito tempo, colocada sob suspeita por
toda uma tradição de leitura de Freud que tendeu sistematicamente a cindir o campo
psicanalítico em duas dimensões mais ou menos inconciliáveis, correspondendo cada uma
aos domínios da interpretação e do método, por um lado, e da metapsicologia, por outro. A
isso acrescentou-se uma valorização diferenciada de cada um dos lados, de acordo com a
orientação teórica dos autores. Assim, Politzer (1928) saudava a técnica psicanalítica como
a precursora direta e, na verdade, já a realizadora parcial, da psicologia concreta que ele
buscava fundar, ao mesmo tempo em que acusava a metapsicologia de retornar às
abstrações da psicologia do século 19, razão, portanto, para recusá-la em nome dos mesmos
critérios que levaram ao elogio da técnica. Nessa mesma linha, Dalbiez (1947), separava o
“método”, conquista definitiva da psicanálise em geral, da “doutrina” – isto é, a
metapsicologia –, remetida às preferências filosóficas e científicas de Freud e repudiada
mais ou menos nos mesmos termos lançados inicialmente por Politzer. Ricoeur (1965),
prosseguindo na linha de raciocínio proposta por Dalbiez, empreende a mais ampla
tentativa de compreender a psicanálise a partir da dicotomia entre um ponto de vista
energético, atrelado à explicação metapsicológica, e um ponto de vista hermenêutico,
relacionado com a interpretação. Do lado das leituras mais cientificistas da psicanálise,
encontramos, com freqüência, esse mesmo consenso sobre a dupla natureza do
conhecimento psicanalítico, com a diferença que a técnica e a interpretação são valorizadas
como métodos objetivos, que permitem a efetuação de descobertas empíricas (validáveis ou
não), enquanto que a metapsicologia é remetida apenas às tendências especulativas de
Freud (Grünbaum, 1984). O que se depreende dessas observações é uma recusa mais ou
menos generalizada da metapsicologia, entendida como devaneio metafísico e especulativo,
pelas leituras cientificistas, e como resquício cientificista e naturalista pelas leituras
humanistas.
Uma certa reversão desse quadro começa a ocorrer quando, mais recentemente,
diversos pesquisadores oriundos do campo das pesquisas neurocientíficas, na trilha aberta
pelo trabalho pioneiro de Pribram e Gill (1976) e outros autores, passam a enfatizar a
convergência entre os estudos empíricos atuais dos processos nervosos e as teses
2
metapsicológicas freudianas, sugerindo que estas possam ser recuperadas e atualizadas
nesse novo contexto. O retorno a um exame detalhado da metapsicologia freudiana, em
seus diversos aspectos, parece, assim, se justificar, entre outros motivos, como um trabalho
que forneça elementos para a avaliação da possibilidade e do alcance desses estudos
integrativos.
O texto “Sobre a concepção das afasias”, publicado em 1891, pode ser considerado
o passo inaugural da metapsicologia freudiana, devido à reflexão aí presente sobre a
natureza da representação (Simanke, 2006). A crítica empreendida por Freud às concepções
neurológicas predominantes sobre as afasias e à teoria neurológica mais geral que as
embasavam acaba levando-o a redefinir o conceito de representação, central para o que se
tornaria a sua metapsicologia. Encontramos também, nesse texto, a origem da noção de
“aparelho”: Freud apresenta aí o conceito de “aparelho de linguagem”, de cujos
desenvolvimentos posteriores resultará, em 1900, a noção de “aparelho psíquico”. Embora
encontremos, nessa monografia de 1891, uma primeira formulação dos conceitos
freudianos de representação e de aparelho, não está presente ainda, nesse momento, a idéia
de um psíquico inconsciente. Ao contrário, é notável a recusa explícita de Freud da
possibilidade de existência de algo que seja ao mesmo tempo mental e inconsciente: a
mente restringir-se-ia ao consciente e, portanto, a idéia de uma representação inconsciente,
se entendida literalmente, seria uma contradição em termos, tendo em vista as hipóteses
sustentadas por Freud nesse trabalho.
O primeiro lugar em que Freud desvincula explicitamente os conceitos de “mente” e
de “consciência” é no “Projeto de uma psicologia”, texto redigido em 1895, mas publicado
postumamente em 1950. Nos textos sobre as neuroses que se intercalam entre 1891 e 1895,
podemos perceber que já há uma certa relutância de Freud em manter a identificação do
mental à consciência, mas ele não chega a descartá-la de fato, o que é feito somente no
“Projeto...”. Freud propõe aí que o psíquico seja independente e mais amplo do que a
consciência: esta deixa de corresponder a todo o psíquico e passa a ser pensada como uma
qualidade que pode vir a se acrescentar a uma pequena parte dos processos psíquicos
inconscientes. Para incorporar a noção de psíquico inconsciente em sua teoria, Freud passa
a considerar, no “Projeto...”, que a representação não é mais, como havia sido pensado em
3
1891, o concomitante psíquico de um processo cortical associativo; a representação passa a
ser o próprio processo cortical.
Em 1895, Freud identifica claramente o psíquico inconsciente a processos cerebrais
e tenta formular uma teoria sobre esses processos em termos neurológicos. A
metapsicologia, portanto, nesse momento inicial do pensamento freudiano, ainda é
explicitamente uma neuropsicologia. Sabemos que, nos textos metapsicológicos posteriores
de Freud, essa referência explícita à neurologia desaparece. Mas será que isso quer dizer
que Freud deixou de lado sua concepção do “Projeto...” de que os processos psíquicos
inconscientes seriam processos cerebrais? A metapsicologia, de início claramente uma
neurologia, passou a ser uma pura psicologia, porque a natureza do seu objeto de estudo
passou a ser pensada de outra forma, isto é, porque Freud deixou de acreditar que os
processos psíquicos inconscientes sejam processos cerebrais? Percorreremos os textos
metapsicológicos de Freud tentando encontrar, por um lado, uma resposta a essas questões
e, por outro, tentando esclarecer como esse conceito de psíquico inconsciente vai sendo
desenvolvido ao longo do pensamento metapsicológico freudiano. O que justifica o
conceito de um psíquico inconsciente? Quais são suas propriedades? Que relação há entre o
inconsciente e a consciência? Qual a natureza desse psíquico inconsciente e qual é o
estatuto da metapsicologia freudiana? Essas são as questões que se procurará desenvolver
aqui.
Procuraremos mostrar que a reflexão neurológica inicial de Freud se prolonga na
metapsicologia que a substitui a partir de certo momento; que essa reflexão neurológica
inicial permanece subentendida na metapsicologia posterior reaparecendo de forma
explícita de quando em quando. Essa subsistência – que permite caracterizar a
metapsicologia como uma espécie de neuropsicologia especulativa, como o fizeram
diversos autores (Pribram e Gill, 1976; Solomon, 1976) – se revela, também, no modo
como os mesmos problemas cruciais abordados inicialmente são continuamente
recolocados em novos termos. Procuraremos mostrar também que os problemas que
constituem o cerne da reflexão metapsicológica freudiana dizem respeito sobretudo: 1) a
natureza do mental, que se desenvolve em torno da formulação do conceito de inconsciente
psíquico e da elaboração de uma teoria da representação que o justifique; 2) a relação
mente-corpo, principalmente a partir do momento em que a teoria do inconsciente se
4
complementa com a formulação da teoria pulsional; 3) a relação entre o mental – em si,
inconsciente, tal como é definido por Freud – com a consciência, além de um esforço de
estabelecer as condições e as propriedades desta última, ainda que de uma forma um tanto
fragmentária e inconclusa, como veremos. Trata-se, assim, de buscar esclarecer o sentido
da metapsicologia freudiana, enquanto uma estratégia para abordar esse tipo de problemas
nas condições disponíveis para a investigação psicológica na época em que Freud
desenvolve sua obra. Em outras palavras, trata-se de apresentar o eixo principal da reflexão
metapsicológica, ao longo de seu desenvolvimento, procurando fazer ressaltar, desde essa
perspectiva, as nuanças e complexidades que revestem a abordagem dessas questões em
Freud, as quais são muitas vezes passadas por alto.
O primeiro capítulo se divide em três partes. Na primeira, é realizada uma análise da
concepção de representação formulada por Freud em “Sobre a concepção das afasias”. Na
segunda, está presente um comentário de como a noção de representação inconsciente é
usada por Freud nos textos sobre as neuroses do período entre 1891 e 1895. Na terceira, é
realizada uma análise do “Projeto de uma psicologia”, texto em que aparece pela primeira
vez a noção de psíquico inconsciente. A partir da análise do “Projeto...”, tomam forma as
questões mencionadas acima, que irão nortear o restante do trabalho. No segundo capítulo,
trata-se esclarecer como essas questões são pensadas na carta 52 e no capítulo 7 de “A
Interpretação dos sonhos” (1900). No terceiro, como elas são pensadas nos artigos sobre
metapsicologia de 1915 e nos textos metapsicológicos que se intercalam entre 1900 e 1915.
O quarto capítulo também se divide em três partes. Na primeira, o texto central submetido à
análise é “Além do princípio do prazer”(1920); na segunda, “O eu e o isso”(1923) e, na
terceira, o “Esboço de psicanálise”(1938). Outros textos freudianos, publicados entre os
anos de 1920 a 1938, são também mencionados, ao longo desse quarto capítulo, à medida
que isso se faz necessário.
**
**As seguintes abreviaturas são utilizadas nas citações para se referir às edições de
obras freudianas: AE (Sigmund Freud Obras Completas, Amorrortu Editores); SA
(Sigmund Freud Studienausgabe); ZAA (Zur Auffassung der Aphasien : eine Kritische
Studie, Franz Deuticke); EP (“Entwurf einer Psychologie” / Sigmund Freud Gesammelte
Werke); AAP (Aus den Afängen der Psychoanalyse, Fischer); PP (Projeto de uma
psicologia, Imago).
5
CAPÍTULO I – INCONSCIENTE E REPRESENTAÇÃO NAS ORIGENS DA
METAPSICOLOGIA FREUDIANA
1. O conceito de representação em “Sobre a concepção das afasias”
Em “Sobre a concepção das afasias”, texto publicado em 1891, Freud faz uma
revisão das concepções predominantes na época sobre a anatomia, a fisiologia e a
patologia da linguagem. A partir da recusa dos fundamentos subjacentes a tais
hipóteses, ele formula uma teoria alternativa sobre o funcionamento normal e a
patologia da linguagem, apoiando-se, principalmente, em algumas concepções de
Hughlings Jackson e Charlton Bastian. A crítica de Freud dirige-se, em especial, à teoria
de Carl Wernicke e de Ludwig Lichtheim sobre as afasias e à teoria sobre o
funcionamento do sistema nervoso de Theodor Meynert, que fundamentava as hipóteses
de Wernicke e Lichtheim. Como apontam Solms e Saling (1986, p.397), em “Sobre a
concepção das afasias”, Freud substitui a neurologia de seus professores – no caso, de
Meynert – pela teoria evolucionista de Jackson.
Wernicke havia-se tornado uma figura dominante no cenário dos estudos sobre
as afasias desde a publicação de sua monografia “O complexo sintomático das afasias”
(1874), na qual identifica e localiza a área sensorial da linguagem na porção posterior da
primeira circunvolução temporal, apoiando-se em correlações entre lesões cerebrais
com tal localização e casos de afasia sensorial. A região cortical responsável pela
atividade motora da linguagem – a terceira circunvolução frontal – havia sido
identificada, também a partir da correlação entre sintomas e lesões cerebrais, treze anos
antes por Paul Broca. Essas duas descobertas somadas possibilitaram a Wernicke a
construção de um esquema explicativo da atividade da linguagem, a partir do qual os
diversos casos de afasias poderiam ser esclarecidos. Os vários tipos de distúrbios
afásicos foram, então, relacionados a lesões localizadas em regiões cerebrais específicas
e, assim, os casos de afasia passaram a ser inteiramente explicados a partir da
localização da lesão.
A dedução da localização cerebral de funções psíquicas a partir da associação
entre lesões e a perda de certas funções, ou seja, a partir do método clínico-patológico,
baseava-se em dois pressupostos básicos. Primeiro, na hipótese de que cada região do
6
cérebro sedia uma função diferente e, segundo, na hipótese de que cada uma dessas
funções é independente, ou seja, de que uma lesão específica pode afetar apenas uma
determinada função. Freud, em sua monografia sobre as afasias, vai procurar mostrar
que, além de apoiar-se nesses dois pressupostos básicos, a teoria de Wernicke, assim
como a de Meynert na qual se baseava, fundamentava-se também na hipótese de que os
fenômenos neurológicos e os psicológicos possuem as mesmas propriedades. Ele
argumenta que a teoria sobre o funcionamento normal e patológico da linguagem
construída a partir de tais pressupostos é insuficiente para explicar as características dos
fenômenos que pretende abordar e, a partir da recusa das teses desta teoria, procura
formular uma nova concepção sobre a “área” e o “aparelho” de linguagem, apoiando-se
em um modo alternativo de conceber a localização das funções cerebrais e a relação
entre os fenômenos psíquicos e os neurológicos. Desses esforços resultam os contornos
de uma nova concepção sobre a natureza e o modo de operação das representações.
Uma vez que as teorias de Meynert e de Wernicke apoiavam-se em certas concepções
psicológicas – as quais parecem poder ser aproximadas das do associacionismo de
James Mill, como aponta Amacher (1965) –, a crítica às hipóteses neurológicas sobre as
afasias implicou uma revisão das concepções psicológicas a elas subjacentes; nesse
movimento, a concepção sobre a fisiologia e a anatomia da linguagem proposta por
Freud acabou por conduzir a uma concepção consideravelmente distinta de
representação, fazendo com que esteja presente, nesse texto, a primeira e mais extensa
reflexão freudiana sobre o conceito de representação.
Apresentarei algumas das teses formuladas por Freud ao longo da sua crítica à
neurologia da linguagem e comentarei as implicações de tais teses para a noção de
representação. Tomarei, para isso, como ponto de partida as teorias de Wernicke e
Meynert examinadas por Freud em seu trabalho.
1.1 As hipóteses neurológicas criticadas por Freud
Segundo Amacher (1965), Meynert concebia o sistema nervoso como
funcionando de acordo com um mecanismo reflexo, transmitindo a excitação da
periferia aferente para a eferente. Nesse processo, haveria uma etapa intermediária, que
consistiria na passagem da excitação pelas fibras associativas que conectam as
diferentes partes do córtex. Quando o córtex recebesse excitação de duas vias aferentes
7
simultaneamente, formar-se-ia uma conexão entre ambas e, então, o influxo de
excitação seria levado para outra região. O córtex seria o órgão principal do cérebro, e
todas as suas outras partes seriam seus auxiliares. Ele seria constituído por duas áreas
funcionalmente distintas: uma área motora, que estaria localizada na região frontal e que
conteria imagens de movimento, e uma área sensorial, que estaria localizada na região
temporal e que conteria imagens sensoriais. Estas duas regiões se conectariam por meio
de “fibras associativas” - que seriam as fibras que ligam as diferentes regiões do córtex -
, e estariam conectadas com a periferia do sistema nervoso por meio de “fibras
projetivas”- aquelas que conduzem as informações sensoriais da periferia do sistema
nervoso ao córtex e que conduzem as informações motoras no sentido inverso. Assim,
todos os feixes de fibras do sistema nervoso ou entrariam ou se originariam no córtex.
Em sua monografia sobre as afasias, Freud comenta que algumas passagens de
Meynert sugerem que ele considerava haver uma projeção ponto por ponto da periferia
do corpo no córtex, mas, ao mesmo tempo, há outras afirmações que contradizem tal
ponto de vista. No entanto, Freud trata a teoria desse autor como se ela comportasse
essa hipótese, o que se justifica, segundo ele, pelo fato de outros estudiosos que
aceitaram os princípios da doutrina de Meynert terem propagado o conceito de uma
projeção completa e topograficamente exata do corpo sobre o córtex. Os processos
associativos corticais seriam os concomitantes físicos dos processos psíquicos. A
informação sensorial e motora que chegasse ao córtex provocaria modificações nas
células dos centros e estas se converteriam nos correlatos fisiológicos das
representações. Segundo Freud, para Meynert, a constituição das imagens mnêmicas no
córtex consistiria num processo de ocupação de células desocupadas: deste modo,
deveria haver “lacunas funcionais” no córtex, isto é, áreas carentes de função, que
possibilitariam a aprendizagem.
A teoria de Wernicke sobre as afasias consiste, como ele mesmo afirmou na
abertura da sua monografia “O complexo sintomático das afasias” (1874), em uma
aplicação dos ensinamentos de Meynert sobre a anatomia e a fisiologia do cérebro aos
processos normais da linguagem e às afasias. Nessa monografia, ele propõe que a área
da linguagem seja constituída por um centro sensorial, um centro motor e uma região
associativa que conectaria os dois centros. O primeiro giro temporal seria o centro
terminal do nervo acústico, e o primeiro giro frontal, incluindo a área de Broca, seria o
centro de onde partem os nervos que controlam a musculatura da linguagem. Em sua
monografia de 1874, Wernicke propõe que:
8
“A região inteira da primeira circunvolução primordial, o giro ao redor
da fissura de Silvius em associação com o córtex da “ínsula”, funciona
como um centro da linguagem. O primeiro giro frontal (Leuret), que é
motor na função, atua como um centro motor das imagens de
movimento; o primeiro giro temporal, que é de natureza sensorial,
pode ser considerado como o centro das imagens acústicas. Portanto, o
primeiro giro temporal pode ser considerado como o centro terminal
do nervo acústico, e o primeiro giro frontal (Leuret), incluindo a área
de Broca, como o centro terminal dos nervos que controlam a
musculatura da linguagem”. (1874,p.103)
O seguinte esquema é proposto para representar a área da linguagem:
FIGURA 1
O: Área occipital
F: Área frontal
T: Área temporal
S: Fissura de Sílvio
a: Terminação central do nervo acústico
b: Área das impressões cinestésicas para a linguagem articulada
a1: Entrada do nervo acústico no bulbo
b1: Via centrífuga da linguagem.
As imagens mnêmicas - que consistiriam em modificações permanentes do
sistema nervoso central resultantes da estimulação sensorial e dos movimentos
realizados - estariam armazenadas nos centros, e a associação entre essas imagens seria
executada pelas fibras associativas subcorticais. De acordo com Freud (1891), Wernicke
considerava que cada uma das imagens mnêmicas individuais estaria contida em uma
9
célula singular.
1
A constituição das imagens mnêmicas consistiria num processo de
ocupação de células corticais desocupadas, assim como sustentava Meynert.
Os transtornos afásicos eram considerados meras decomposições da função da
linguagem. Uma lesão em alguma das regiões constitutivas da área da linguagem
provocaria mecanicamente um prejuízo da função por ela abrigada. Em 1874, Wernicke
propõe a existência de três tipos de afasias que poderiam resultar de lesões na área da
linguagem: a “afasia sensorial”, que resultaria de lesões no centro sensorial, a “afasia
motora”, que resultaria de lesões no centro motor, e a “afasia de condução”, que
resultaria de lesões nas fibras associativas que conectam esses dois centros. Em “Novos
trabalhos sobre as afasias” (1885), Wernicke amplia o seu modelo para as afasias, a
partir da consideração dos funcionamentos subcortical e trancortical da linguagem. Tal
modificação foi influenciada por algumas hipóteses formuladas por Lichtheim
2
no
período de 1884-1885. Lichtheim acrescentou ao esquema das afasias que Wernicke
propusera em 1874 um “centro dos conceitos”, as vias subcorticais sensorial e motora e
as vias transcorticais sensorial e motora, as quais seriam exclusivas da linguagem.
Wernicke adotou a proposta de Lichtheim e introduziu, na sua monografia de 1885,
quatro outros tipos de afasias: as afasias sensorial e motora subcorticais e as afasias
sensorial e motora trancorticais. Contudo, só para o centro sensorial, para o centro
motor e para a região associativa situada entre esses centros, ele continuou
estabelecendo uma localização anatômica precisa.
1
Eggert (1977, p.26) comenta que Wernicke não atribui um traço de memória individual a uma
célula singular, mas a circuitos celulares e suas fibras associativas. Ela cita uma passagem de
Wernicke do texto “Fundamentos de psiquiatria” (1900) que demostra isso. Contudo, não é
possível dizer que a afirmação de Freud sobre Wernicke é incorreta, pois o texto deste autor
citado por Eggert foi escrito nove anos depois da monografia freudiana sobre as afasias, embora
não haja nada que confirme sua afirmação de que, para Wernicle, as imagens mnêmicas
individuais estariam armazenadas em células singulares. De qualquer forma, Freud constrói sua
crítica à teoria de Wernicke pressupondo que este defendia a hipótese em questão.
2
Greenberg (1997,p.31) comenta que Ludwig Lichtheim (1845-1915) era um seguidor e
expositor influente da visão de Wernicke, mas era uma figura menos importante, cujos
diagramas esquemáticos da função da linguagem no cérebro foram demonstrados como
10
1.2 As hipóteses psicológicas implícitas na teoria neurológica de Meynert e
Wernicke
Meynert e Wernicke consideravam que os fenômenos psíquicos eram correlatos
dos fenômenos neurológicos, embora, na maior parte das vezes, falassem desses dois
tipos de fenômenos como se eles fossem idênticos. Sendo assim, a representação
simples para Meynert e para Wernicke – pelo menos se considerarmos somente o modo
como Freud expõe a teoria desses autores – seria o correlato de um engrama contido em
uma célula singular de um centro cerebral, e este engrama, por sua vez, seria uma cópia
dos estímulos que incidissem sobre a periferia do sistema nervoso, já que os mesmos
seriam projetados no córtex sem sofrer nenhuma alteração ao longo deste percurso. Os
correlatos físicos das representações complexas resultariam de associações mecânicas
entre os correlatos das representações simples, e esta associação seria determinada,
primeiramente, pela simultaneidade da incidência dos estímulos sobre o sistema
nervoso. Deste modo, a mente seria dotada de um funcionamento totalmente passivo,
pois tanto a constituição dos correlatos das representações simples como dos correlatos
das representações complexas seriam inteiramente determinados por fatores externos.
Forrester (1983) afirma que a concepção sobre o funcionamento do sistema
nervoso que fundamentava a teoria localizacionista das afasias apoiava-se na teoria
psicológica associacionista. Amacher (1965) sugere que é pertinente comparar a visão
de James Mill sobre os processos fundamentais da mente com a visão de Meynert e que,
embora Meynert não tenha baseado explicitamente sua psicologia em James Mill, ele
pode ter derivado suas suposições psicológicas de outros autores germânicos que
incorporaram algumas das visões da tradição britânica em seus trabalhos.
Para James Mill (1829)
3
, a mente receberia e associaria os estímulos que chegam
aos orgãos sensoriais, e essa associação se daria de acordo com a contigüidade da
recepção desses estímulos, ou seja, sem uma intervenção ativa do funcionamento
mental. Os objetos externos nos enviariam impressões sensoriais, e estas se agrupariam
em nossa mente em virtude da contigüidade de sua formação. As representações
complexas consistiriam em agregados de representações simples, que resultariam de
conexões mecânicas e, portanto, todas as propriedades das primeiras já estariam
incorretos por vários pesquisadores. Laubstain (1993) faz uma análise da teoria de Lichtheim,
onde aponta as inconsistências e ambiguidades presentes em suas hipóteses.
11
presentes nas últimas, isto é, as propriedades da representação complexa consistiriam
na soma das propriedades dos elementos que a compõem. Segundo Amacher (1965),
Meynert procurou descrever os concomitantes nervosos para os processos psíquicos que
os psicólogos associacionistas haviam descrito.
A crítica freudiana vai opor-se, praticamente, a cada um dos tópicos da teoria
neurológica de Meynert e de Wernicke e, conseqüentemente, às hipóteses psicológicas a
ela subjacentes. Passemos, portanto, à análise de alguns dos argumentos usados por
Freud para sustentar uma concepção sobre a área e o aparelho de linguagem distinta
daquela que se pode encontrar na perspectiva localizacionista e que implicará na
proposição de uma noção alternativa de representação.
1.3 A desconstrução do esquema de Wernicke das afasias: a área da
linguagem
Freud analisa um a um os segmentos do esquema de Lichtheim mencionado
acima - que fora, no essencial, endossado por Wernicke - e procura afastar todas as
hipóteses que pudessem ser refutadas por dados clínicos e todas as que tivessem sido
inferidas de maneira arbitrária. Ele suprime deste esquema tudo o que não se mostrou
capaz de resistir a esse trabalho crítico, e as partes que foram mantidas são apontadas
como as verdadeiras constituintes da área da linguagem. A recusa da diferenciação entre
centros e vias associativas da linguagem, a recusa da noção de lacunas funcionais e da
idéia de projeção ponto por ponto da periferia do sistema nervoso no córtex são as que
têm conseqüências mais importantes para o conceito de representação, por isso o
comentário da crítica empreendida por Freud que se segue irá restringir-se a esses
pontos.
4
No início da sua monografia, Freud aponta que a hipótese da afasia central pode
ser considerada supérflua, dado que uma lesão na totalidade das vias de acesso tornaria
o centro inacessível e, portanto, seria clinicamente equivalente à lesão ou destruição
3
Em: Herrnstein & Boring, 1971, p.447-463.
4
Na minha dissertação de mestrado intitulada “Representação e consciência na obra inicial de
Freud” (2002) analiso passo a passo a desconstrução do esquema das afasias empreendida por
Freud em 1891. As implicações dessa crítica empreendida por Freud para o conceito de
representação são comentadas também no artigo “O conceito freudiano de representação em
Sobre a concepção das afasias” (Caropreso, 2003).
12
deste centro. Mas, para descartar de fato a hipótese dos centros de linguagem, é
necessário negar a função que lhes foi atribuída, isto é, negar que é preciso haver locais
de armazenamento das impressões sensoriais e motoras da linguagem no córtex, o que
Freud faz no quinto capítulo, ao revisar algumas hipóteses de Meynert que, como já foi
dito, estavam pressupostas e consistiam no fundamento da teoria de Wernicke.
Freud argumenta que a hipótese de Meynert da existência de centros cujas células
armazenariam as diversas impressões sensoriais e motoras fundamentava-se na
suposição de que os fenômenos neurológicos e os psíquicos deveriam possuir as
mesmas características, pois a um simples psíquico – uma impressão sensorial –
corresponderia um simples neurológico – um engrama contido em uma célula. Freud
argumenta que essa transposição de termos psicológicos em termos neurológicos,
empreendida por Meynert e mantida por seus seguidores, é um procedimento arbitrário,
pois os fenômenos psíquicos e os neurológicos não precisam apresentar necessariamente
as mesmas características. Ele, então, recusa a suposição de que cada uma das imagens
sensoriais estaria armazenada em uma célula de um dos centros corticais:
“Na psicologia, a representação simples é para nós algo elementar que
podemos diferenciar claramente de sua conexão com outras
representações. Esta é a razão por que nos sentimos tentados a
presumir que o seu correlato fisiológico, isto é, a modificação das
células nervosas que se originam pela estimulação das fibras nervosas,
seja também algo simples e localizável. Tal inferência, com certeza,
carece de todo fundamento; as qualidades desta modificação têm que
ser estabelecidas por si mesmas e independentemente de seus
correspondentes psicológicos.”
5
Freud reconhece que o fato de Wernicke ter declarado que somente os elementos
psíquicos mais simples – ou seja, as distintas percepções sensoriais – poderiam ser
localizados no córtex é um progresso, se se considera a tendência anterior da medicina
de localizar mesmo as faculdades mentais mais complexas, mas argumenta que, em
princípio, Wernicke comete o mesmo erro dos seus predecessores:
5
LA, p. 70; ZAA, p.99.
13
“...não se comete por acaso, em princípio, o mesmo erro tanto quando
se pretende localizar um conceito complicado como toda uma
faculdade ou um elemento psíquico? É justificado submergir uma
fibra nervosa, que ao longo de todo o seu curso havia sido somente
uma estrutura fisiológica sujeita a modificações fisiológicas, com sua
terminação no psíquico e dotar esta terminação de uma representação
ou recordação?”
6
Nessa passagem, Freud parece referir-se à teoria de seus opositores como se esta se
baseasse na hipótese de que os fenômenos psíquicos e os físicos fossem idênticos. Mas,
em seguida, ele reconhece que, na verdade, tais autores consideravam que as
modificações neurológicas das fibras nervosas pelos estímulos sensoriais produziriam
outras modificações nas células nervosas centrais, as quais, então, se converteriam no
“correlato fisiológico” da idéia. Ou seja, para Meynert e para Wernicke, as
modificações nas células corticais seriam tão somente os correlatos das idéias e não as
próprias idéias. Freud argumenta que a insuficiência do conhecimento a respeito dos
processos fisiológicos levou estes autores a empregarem termos psicológicos para se
referirem a fenômenos fisiológicos, misturando assim esse dois domínios, e que é
necessário estabelecer um limite preciso entre os fenômenos neurológicos e os
psíquicos, necessidade esta que já havia sido apontada por Hughlings Jackson. Diante
disto, Freud adota a mesma posição de Jackson: ele propõe que se considere que os
fenômenos psíquicos e os fisiológicos sejam “concomitantes dependentes”:
“A relação entre a cadeia de processos fisiológicos que se dá no
sistema nervoso e os processos psíquicos provavelmente não é de
causalidade. Os processos fisiológicos não cessam quando aqueles
começam; tendem a continuar, porém, a partir de um certo momento,
um fenômeno psíquico corresponde a cada parte da cadeia ou a várias
partes. O psíquico é, portanto, um fenômeno paralelo ao fisiológico
(um concomitante dependente).”
7
De acordo com a doutrina da concomitância, defendida por Jackson (1884), os
estados mentais ou conscientes e os estados nervosos ocorreriam paralelamente, mas
6
LA, p.69; ZAA, p. 97.
14
não haveria interferência de um sobre o outro. Para cada estado mental, haveria um
estado nervoso correlativo. Vejamos um exemplo dado por Jackson: em uma percepção
visual, há um circuito físico da periferia sensorial para os centros superiores e, destes,
retornando à periferia muscular. A imagem visual, que é um estado puramente mental,
surge “durante” as (e não das) atividades dos dois elos superiores dessa corrente
puramente física. O evento físico e o psíquico possuiriam naturezas diferentes, como
deixa claro a seguinte afirmação de Jackson: “(...) um estado psíquico é sempre
acompanhado por um estado físico, todavia as duas coisas têm naturezas
distintas”.(1878-79, p.160)
Essa posição de Jackson visa conferir autonomia ao seu objeto de estudo e lhe
permitir distanciar-se da confusão entre o que é físico e o que é psíquico mencionada
acima. Forrester (1983) comenta que um dos primeiros ataques aos “fazedores de
diagramas”
8
proveio de uma reunião de argumentos psicológicos e filosóficos no
trabalho de Jackson. Este estava interessado em romper com a flutuação entre termos
psicológicos e fisiológicos que afetava as teorias sobre as afasias, assim como a
neurologia em geral. De acordo com Forrester, a doutrina da concomitância – um
argumento firme para uma separação estrita entre os processos psíquicos e os físicos –
protegeu a neurologia contra um psicologismo rasteiro. Diante da necessidade de tratar
os processos psíquicos e os fisiológicos como dois tipos de fenômenos independentes,
Freud adota a concepção de Jackson segundo a qual esses dois processos, embora
concomitantes, não interferem um sobre o outro.
9
Desse modo, ao sustentar que o correlato de uma representação simples se
localiza em algo simples – ou seja, em uma célula cortical –, Meynert teria atribuído as
propriedades do fenômeno psíquico ao fenômeno neurológico: ele teria se apoiado no
pressuposto de que esses fenômenos possuem as mesmas propriedades. Freud nega a
legitimidade de tal procedimento – dessa transposição das hipóteses da psicologia
associacionista para a neurologia, apontada por Amacher (1965) – e procura formular
uma hipótese alternativa que seja capaz de contornar o que lhe parece um equívoco.
7
LA, p.70; ZAA, p.98.
8
Esse termo foi usado por Henry Head para se referir aos neurologistas que procuravam
explicar os distúrbios afásicos e o funcionamento da linguagem a partir de diagramas, como
Wernicke, Lichtheim e outros.
9
A adoção por parte de Freud da doutrina da concomitância de Jackson, contudo, não durará
muito tempo. Como veremos, já no “Projeto de uma psicologia”(1895), Freud passará a
conceber de outra maneira a relação entre o físico e o psíquico.
15
Segundo Marx (1967), o que há de mais importante na monografia de Freud sobre as
afasias é o fato dela ter apontado a ilogicidade de se construir um modelo anatômico a
partir de uma concepção psicológica, identificando, assim, uma das maiores falácias
inerentes às principais formulações psicofisiológicas da época. Após essa crítica, Freud
se pergunta qual é, então, o correlato fisiológico da representação simples e responde:
“Obviamente, nada estático, mas algo que tenha o caráter de um
processo. Este processo não é incompatível com a localização.
Começa em um ponto específico do córtex e, a partir daí, se difunde
por todo o córtex e ao longo de certas vias. Quando este fato ocorre,
deixa atrás de si uma modificação, com a possibilidade de uma
recordação na parte do córtex afetada”.
10
Dessa forma, Meynert e Wernicke teriam reduzido as antigas “faculdades”
propostas por Franz Joseph Gall a agregados de impressões sensoriais e motoras
elementares, e Freud passa a considerar essas impressões elementares como algo muito
mais complexo, ou seja, como um conjunto de intrincados processos associativos. O
córtex não sediaria uma série de faculdades - tais como o amor, a generosidade, a
criatividade e outras – como pensava Gall; nem, como pensava Meynert e Wernicke,
conteria centros povoados de impressões sensoriais. Freud sustenta que há no córtex
uma série de complexos processos . Essa hipótese também parece ter sido influenciada
pela teoria de Jackson. Em “ On affections of speech from disease of the brain” (1878-
79), este propõe que a idéia é o correlato de um processo sensório-motor. O correlato
fisiológico de uma idéia simples seria um processo e não um engrama contido em uma
célula individual. Para Freud, então, o que é simples do ponto de vista psíquico deve
corresponder a um complexo do ponto de vista neurológico. Disto segue-se que não é
possível diferenciar os correlatos fisiológicos da associação e da representação, pois o
correlato de uma representação simples é sempre um processo associativo, ou seja, para
haver representação é necessário que haja associação. Com isso, a associação deixa de
ser considerada um processo que se dá entre os correlatos das representações simples,
levando à constituição dos correlatos da representação complexa, e passa a ser a
condição necessária de todo correlato da representação. Como conseqüência, a noção
10
LA, p.71; ZAA, p. 99.
16
de centros de linguagem perde seu sentido: se não há correlatos de representações
armazenados em células corticais, não é necessário haver locais de armazenamento, isto
é, os centros de linguagem. A diferenciação anatômica e funcional entre centros e vias
associativas pode ser, com isso, recusada:
“Mediante esta refutação da existência de localizações separadas para
o representar e o associar de representações, descartamos uma razão
importante para diferenciar entre centros e vias de condução da
linguagem. Em cada parte do córtex que está a serviço da linguagem,
temos que supor processos funcionais similares e não necessitamos
apelar para os feixes de fibras brancas para a associação das
representações dentro do córtex”.
11
Então, a área da linguagem seria, para Freud, uma área exclusivamente
associativa, e a associação passa a ser considerada como um processo exclusivamente
cortical.
12
Não há áreas de armazenamento e áreas de associação; toda área da
linguagem é associativa. Como conseqüência, a distinção entre representações simples e
complexas deixa de existir no nível neurológico e o correlato da representação passa ser
pensado como sendo sempre um processo cortical associativo.
PPP
Outra hipótese, cuja recusa terá conseqüências importantes para o conceito de
representação, é a da existência de áreas desocupadas, onde as novas imagens mnêmicas
iriam sendo acumuladas. Freud emprega dois argumentos contra esta hipótese das
lacunas funcionais. O primeiro refere-se ao modo como a existência dessas lacunas foi
inferida. De acordo com ele, as áreas que apresentavam a maior superposição de lesões
nos exames post mortem de pacientes afásicos tinham sido consideradas como sendo
centros de linguagem, ou seja, como áreas cuja integridade seria indispensável para que
a linguagem funcionasse normalmente. As demais áreas foram, por exclusão,
consideradas regiões sem função. Freud argumenta que tal inferência não é correta,
11
LA, p.72; ZAA, p.101.
17
porque pode perfeitamente haver outras áreas corticais que também estejam a serviço da
linguagem, ainda que sua destruição possa ser tolerada mais facilmente e, além disso,
também é possível que uma lesão em uma região provoque uma alteração no
funcionamento de outra região, ou seja, uma lesão pode provocar uma alteração
funcional mais ou menos generalizada. Por isso, apenas o fato de lesões de
determinadas áreas não estarem associadas a casos de afasia não permite concluir que
essas regiões não sejam responsáveis por nenhuma função da linguagem e consistam
nas chamadas lacunas funcionais.
O segundo argumento de Freud dirige-se contra a função que foi atribuída a tais
lacunas, ou seja, dirige-se contra a hipótese de que a aprendizagem da linguagem
consistiria num processo de ocupação progressiva de regiões desocupadas. Usando a
analogia empregada por Freud para expressar a concepção de aprendizagem de
Meynert, esta ocorreria de uma maneira similar à expansão de uma cidade quando as
pessoas se instalam nas áreas que estão fora de suas muralhas. Freud argumenta que, se
examinamos a utilidade desta hipótese para a compreensão dos distúrbios afásicos,
vemos que o que ocorre é exatamente o oposto do que pode ser previsto pela suposição
das lacunas funcionais. Se a aprendizagem ocorresse da forma como considerava
Meynert, deveria ser possível, por exemplo, no caso de uma lesão na área da linguagem,
que a língua materna fosse prejudicada e uma adquirida posteriormente permanecesse
intacta, pois cada uma delas estaria armazenada em uma área diferente. Mas, argumenta
Freud, jamais acontece que uma lesão orgânica afete a língua materna e não afete uma
língua aprendida posteriormente; o que invariavelmente ocorre, em todas as patologias
da linguagem, é o contrário. Ele diz que, ao revisar o material pertinente, nota-se que
dois fatores determinam o caráter do transtorno de linguagem em poliglotas: a
influência da idade de aquisição da língua e a influência da prática; esses fatores operam
sempre na mesma direção, e o prejuízo da linguagem segue a ordem contrária à da
aprendizagem, ou seja, as línguas posteriormente adquiridas são as primeiras a serem
afetadas, a não ser que uma língua adquirida mais tarde tenha sido mais usada que a
materna. Portanto, pode-se inferir que: “(...)um novo conjunto de associações pode
sobrepor-se às associações já estabelecidas que intervêm na fala (...) O conjunto de
associações sobrepostas é danificado antes que o primário, seja qual for a localização
12
Segundo a teoria de Meynert, a associação entre as impressões sensoriais de um mesmo
centro seria feita por fibras associativas sub-corticais. Essa hipótese está sendo também
18
da lesão.”
13
Deste modo, a aprendizagem da linguagem não parece consistir num
processo de ocupação de áreas desocupadas e sim num processo de “sobre-associação”,
ou seja, todas aquisições da linguagem se dariam na mesma área, com as associações
sobrepondo-se umas às outras. Sendo assim, torna-se desnecessário supor a existência
das lacunas funcionais, e esta hipótese também pode ser descartada por Freud.
A hipótese de que as funções da linguagem sejam afetadas na ordem das mais
recentes para as menos recentes está de acordo com a noção de “dissolução” proposta
por Hughlings Jackson para explicar as patologias do sistema nervoso. Freud se refere a
ele como o “autor, sobre cujas opiniões tenho baseado quase todos os argumentos que
venho empregando para refutar a teoria localizacionista das afasias”
14
. Jackson
aplicou a doutrina da evolução de Herbert Spencer ao sistema nervoso e propôs que os
distúrbios nervosos consistiriam em reversões do processo de evolução, isto é, em
dissoluções das funções constituídas ao longo deste processo. Evolução significa, para
Jackson, a passagem do controle das funções nervosas dos centros inferiores – os quais
seriam mais organizados, mais simples e mais automáticos – para os centros superiores
– os quais seriam menos organizados, mais complexos e menos automáticos.
15
A
dissolução, sendo o reverso da evolução, seria um processo que se encaminharia no
sentido do menos organizado, mais complexo e menos automático para o mais
organizado, mais simples e mais automático.
16
Em todos os casos de dissolução, a
sintomatologia das patologias do sistema nervoso teria uma condição dupla: haveria
elementos positivos e negativos. Os primeiros consistiriam, do lado físico, na atividade
das partes do centro que não foram afetadas por processos patológicos; os segundos
consistiriam no esgotamento ou perda da função de alguma parte de algum dos centros.
As disposições nervosas superiores evoluiriam a partir das intermediárias, estas, a partir
abandonada.
13
LA, p.75; ZAA, p.104.
14
LA, p. 75; ZAA, p. 105.
15
Não há inconsistência, para Jackson, em falar de centros como sendo, ao mesmo tempo, mais
complexos e menos organizados. Um centro constituído apenas por dois elementos sensoriais e
dois motores, no qual esses elementos estejam bem associados, de forma que a corrente
excitatória flua facilmente dos primeiros para os segundos, embora muito simples, é altamente
organizado. Por outro lado, um centro constituído por quatro elementos sensoriais e quatro
motores, no qual a articulação entre os elementos sensoriais e motores seja imperfeita e dificulte
a passagem da corrente nervosa, embora seja um centro mais complexo que o anterior, não pode
ser considerado mais organizado, explica Jackson.
16
A dissolução total, isto é, a desintegração completa da atividade do sistema nervoso, resultaria
na morte do sujeito. Portanto, sempre que se fala de dissolução do sistema nervoso para explicar
as patologias, trata-se de uma dissolução parcial.
19
das inferiores e, estas, por sua vez, a partir da periferia sensório-motora. Apesar disto, as
disposições superiores passariam a controlar as inferiores, a partir de um certo
momento, assim como um governo evoluído a partir de uma nação passa a controlar
esta nação, exemplifica Jackson. Portanto, se o processo de evolução ocorresse dessa
maneira, o processo reverso de dissolução não seria apenas uma retirada do
funcionamento superior, mas seria também uma liberação do inferior.
Conseqüentemente, os sintomas positivos não seriam causados pela dissolução, mas
seriam permitidos por ela.
Após afastar uma a uma as hipóteses de Wernicke sobre as diferenciações na área
da linguagem, Freud conclui que esta é uma área cortical homogênea, exclusivamente
associativa, situada no hemisfério esquerdo entre as terminações dos nervos acústicos,
óticos e motores. Ele reconhece que é necessário supor a existência de uma via
subcortical motora exclusiva da linguagem, mas, segundo ele, um dano nesta via
provocaria um problema de articulação (anartria ou disartria) que não caracterizaria um
distúrbio afásico; assim, a afasia, para Freud, decorreria de um perturbação
exclusivamente cortical.
Freud passa a conceber a relação entre a anatomia e o funcionamento do sistema
nervoso de forma totalmente diferente da teoria localizacionista de Wernicke e de
Meynert. De acordo com as hipóteses desses autores, cada função da linguagem
(motora, sensorial, compreensão...) possuiria uma localização específica e tanto o
funcionamento normal como o patológico seriam explicados inteiramente a partir da
distribuição das funções na anatomia do sistema nervoso. Freud conclui que a relação
entre a fisiologia e a anatomia é muito mais complexa. Várias funções podem atuar em
uma mesma região e as diferentes funções podem interferir umas sobre as outras; não é
possível estabelecer a localização precisa das várias funções, mas apenas uma
localização geral. Por isso, Freud estabelece uma área onde transcorreriam os processos
envolvidos na linguagem e afirma que esta deve ser uma área homogênea onde ocorram
processos similares. Freud mostra que não é possível, a partir da localização de lesões,
inferir as funções abrigadas pelas diferentes partes do cérebro e, com base nesses dados,
tentar explicar o funcionamento da linguagem, como faziam os localizacionistas, ou
seja, não é possível explicar o funcionamento da linguagem com base apenas em dados
anatômicos. Para alcançar tal explicação, é preciso fazer uma análise clínica rigorosa
que permita compreender como as funções se desintegram e, a partir disso, inferir as
20
características do funcionamento normal. Os dados anatômicos podem ajudar nessa
tarefa, mas não podem ser a única ou a principal referência.
A forma como Freud concebe a relação entre os processos que constituem o
aparelho de linguagem e a sua anatomia torna possível explicar as características
funcionais do aparelho sem tomar como ponto de partida, nem como dado principal, a
localização anatômica das funções envolvidas. Essa “independência” do funcional em
relação ao anatômico, que resulta da crítica ao localizacionismo empreendida por Freud,
será de grande importância para a metapsicologia freudiana.
Solms e Saling (1986) argumentam que o ponto decisivo na história da psicanálise
foi o rompimento com o localizacionismo, em “Sobre a concepção das afasias”, e a
adoção por Freud da doutrina da concomitância de Jackson, que lhe teria permitido
pensar os processos psíquicos independentemente dos seus substratos orgânicos. Como
argumentarei adiante, na verdade, já no “Projeto de uma psicologia”, Freud abandona a
doutrina da concomitância, ao expandir a noção de psíquico em relação à de
consciência. O que parece possuir mais importância para a teoria psicanalítica, no
rompimento de Freud com o localizacionismo, é a suposição adotada, em 1891, de que
o funcionamento do sistema nervoso não é totalmente determinado pela anatomia e que,
portanto, pode ser pensado independentemente desta, e não a adoção da doutrina da
concomitância, como sustenta Solms e Saling. Isso lhe teria permitido continuar
fazendo especulações neuropsicológicas, a partir dos dados clínicos, sem ter que se
preocupar com a localização dos processos abordados. No capítulo 7 de “A
Interpretação dos Sonhos” (1900), como veremos, fica claro a importância disso para a
metapsicologia freudiana.
Freud não apenas recusa o esquema das afasias de Wernicke e Lichtheim, como
descarta também os pressupostos básicos da teoria desses autores, sem os quais suas
hipóteses se tornariam insustentáveis. Ele sustenta que uma mesma área pode abrigar
mais de uma função e que as diferentes funções não são independentes umas das outras,
o que tem como conseqüência que lesões de mesma localização possam provocar
quadros clínicos diferentes e vice-versa. Dessa forma, não seria possível inferir a função
abrigada por uma área cortical específica apenas a partir da relação entre os sintomas
afásicos e a lesão; não seria possível explicar o distúrbio apenas a partir da localização
da lesão, nem a partir desta tirar conclusões precisas a respeito do quadro clínico. Além
disso, uma vez que se considere que o simples do ponto de vista psicológico
corresponde a um complexo do ponto de vista neurológico – ou seja, que uma idéia
21
simples corresponde a um processo associativo –, não há como falar de engramas
armazenados no córtex e, portanto, de áreas de armazenamento, isto é, de centros
sediando exclusivamente cada uma das diversas funções da linguagem.
A hipótese formulada por Freud sobre a área da linguagem apresenta-se, assim,
como uma concepção alternativa da localização das funções cerebrais e da relação entre
os fenômenos psíquicos e os fisiológicos. A hipótese subjacente à teoria de Wernicke
sobre a localização de funções cerebrais compostas é em parte aceita, pois Freud aceita
que o cérebro não atua como um todo, sendo funcionalmente composto, e em parte
recusada, pois Freud recusa a hipótese de que cada uma das funções da linguagem
localize-se em uma área diferente e que todas funções sejam independentes umas das
outras.
17
Segundo ele, não é necessário haver centros sediando as diferentes funções da
linguagem: algumas dessas funções estariam localizadas numa mesma área e parte delas
seriam funcionalmente dependentes umas das outras.
Freud propõe, então, que só é possível estabelecer a região onde transcorrem o
conjunto dos processos correlativos às funções psíquicas da linguagem, sem especificar
a região envolvida em cada função, ou seja, que apenas é possível falar de uma “área da
linguagem” e não de “centros e vias associativas da linguagem”. Vejamos, agora, de que
forma, Freud concebe o “aparelho de linguagem” que tal área abrigaria.
1.4 O aparelho de linguagem
Os processos associativos que ocorrem na área da linguagem constituiriam o
aparelho de linguagem. Este corresponde, portanto, ao conjunto dos processos relativos
à linguagem. Tais processos consistiriam no último estágio da série de reorganizações
sucessivas da informação sensorial proveniente do mundo externo. Segundo Freud, os
17
Segundo Clark & Jacyna (1987, p.212), historicamente, foram propostas três concepções
principais de como o cérebro atua. De acordo com a primeira dessas concepções, o cérebro
funcionaria como um todo, com todas as suas partes possuindo significação igual, e não seria
possível nenhuma localização de funções específicas em regiões individuais. Esta posição foi
defendida por Albrecht von Haller. Franz Joseph Gall propôs uma outra hipótese, segundo a
qual as subdivisões morfologicamente separadas do cérebro (hemisférios cerebrais, cerebelo,
corpos quadrigêmeos, medula oblongata) seriam funcionalmente compostas e as diversas
funções seriam independentes umas das outras. Esta segunda concepção do funcionamento
cerebral é chamada de “teoria da localização de funções cerebrais compostas”. Pierre Jean
Marie Flourens formulou uma terceira hipótese, de acordo com a qual cada uma das grandes
subdivisões do cérebro seria funcionalmente unitária. A concepção de Meynert e Wernicke
22
estímulos que incidissem sobre a medula seriam reordenados ao longo do seu caminho
até o córtex, onde eles passariam por outros processos associativos e, então, seriam mais
uma vez reorganizados. Os complexos associativos formados por esses processos
corticais possuiriam concomitantes psíquicos que, no caso da área da linguagem,
consistiriam nas representações-palavra e, nas demais regiões corticais, nas
representações-objeto.
Freud formula essa hipótese da reorganização funcional dos estímulos em
substituição à idéia de Meynert de que haveria uma projeção topograficamente exata da
periferia do corpo no córtex. Ele recusa duas hipóteses que seriam condições
necessárias para a ocorrência dessa projeção ponto a ponto: primeiro, a de que o número
de fibras que partem da periferia seja idêntico ao das que ingressam no córtex; segundo,
a de que na passagem dessas fibras pelos núcleos de matéria cinzenta, não haja alteração
de nenhuma espécie no material conduzido.
Contra a primeira dessas hipóteses, é mencionada uma constatação de Henle,
segundo a qual o número de fibras que conecta a periferia do sistema nervoso à medula
é maior que o número de fibras que conecta esta última ao córtex. Portanto, de acordo
com as características anatômicas do sistema nervoso, só entre a periferia e a medula
seria possível haver uma projeção ponto por ponto dos estímulos. Devido a essa redução
do número de fibras na passagem pela medula, uma unidade sensorial que alcançasse o
córtex deveria corresponder a várias das unidades sensoriais que partissem da periferia.
Sendo assim, haveria, forçosamente, uma reorganização da informação sensorial ao
longo de sua condução ao córtex. A partir disso, Freud propõe que a relação entre a
periferia do sistema nervoso e a medula pode ser chamada de “projetiva”, como queria
Meynert, mas a relação entre esta e o córtex deve ser chamada de “representativa”:
“(...) uma unidade de substância cinzenta que pertence a um nível
superior não pode corresponder a uma unidade periférica, mas tem
que estar relacionada com várias de tais unidades. Isto também vale
para o córtex cerebral e é, portanto, adequado empregar termos
diferentes para esses dois tipos de representação no sistema nervoso
central. Se chamamos projeção
ao modo como a periferia está refletida
na medula espinhal, sua contraparte no córtex cerebral poderia
sobre o funcionamento cerebral concorda com a de Gall quanto a idéia de que cada região do
cérebro sedia uma função diferente e que as diversas funções são independente umas das outras.
23
convenientemente ser chamada uma representação (Repräsentation), o
que implica que a periferia do corpo não está contida ponto por ponto
no córtex cerebral e sim por fibras selecionadas com uma
diferenciação menos detalhada”.
18
Contra a segunda condição necessária para a projeção ponto por ponto dos
estímulos – ou seja, contra a hipótese de Meynert de que as fibras retêm sua identidade
mesmo após atravessar vários núcleos de matéria cinzenta – Freud argumenta que as
várias fibras provenientes de diferentes partes do sistema nervoso se conectam nesses
núcleos e que a cada fibra aferente correspondem várias fibras eferentes, em um mesmo
núcleo. Dessa forma, não é possível que a informação aferente seja exatamente igual à
eferente:
“Se seguimos o curso de um feixe sensorial aferente tal como o
conhecemos e consideramos como características suas freqüentes
interrupções nos núcleos cinzentos e sua arborização através deles,
podemos supor que o significado funcional de uma fibra muda ao
longo do seu caminho até o córtex cerebral cada vez que ela emerge
de um núcleo”.
19
Portanto, no caminho que vai da medula ao córtex, o material sensorial seria
sucessivamente reordenado de acordo com os princípios funcionais do sistema nervoso.
Assim, os estímulos que chegassem ao córtex – isto é, o material constituinte dos
correlatos das representações – possuiriam uma relação muito indireta com os estímulos
periféricos, e o processo associativo cortical faria um último rearranjo nesse material,
tornando esta relação ainda mais indireta. Desta forma, os correlatos das representações
consistiriam no estágio final de um processo de reordenação da informação periférica e,
sendo assim, as nossas representações corresponderiam apenas ao ápice desse processo,
de forma que nós desconheceríamos todas as suas determinações:
“(...) os feixes de fibras, que chegam ao córtex cerebral depois de
haver passado por outras massas cinzentas, mantêm alguma relação
com a periferia do corpo, porém já não refletem uma imagem
topograficamente exata dela. Contêm a periferia do corpo da mesma
18
LA, p.66; ZAA, p.92
24
maneira que – para tomar um exemplo do tema que nos interessa aqui
– um poema contém o alfabeto, isto é, numa disposição
completamente diferente que está a serviço de outros propósitos, com
múltiplas associações dos elementos individuais nas quais alguns
podem estar representados várias vezes e outros estar totalmente
ausentes.”
20
Certamente, Freud baseou essa hipótese sobre a reorganização dos estímulos
periféricos na teoria de Jackson (1884). Segundo este autor, o sistema nervoso
consistiria, da base ao topo, num mecanismo sensório-motor, no qual seria possível
diferenciar três níveis de evolução: os “centros inferiores”, os “intermediários” e os
“superiores’. Os centros sensório-motores superiores evoluiriam a partir dos
intermediários; estes, a partir dos inferiores, e estes, por sua vez, a partir da periferia.
Cada um desses níveis, representaria o mesmo material do nível inferior, de uma forma
diferente, além de incluir novos materiais.
21
Portanto, as informações sensoriais e
motoras seriam sucessivamente reordenadas, e o último nível de organização consistiria
no substrato neural dos processos psíquicos, de forma que estes só poderiam representar
de forma triplamente indireta as informações da periferia.
Em suma, para Freud, o aparelho de linguagem seria constituído por processos
associativos entre elementos acústicos, cinestésicos e visuais, que consistiriam no
último estágio de reorganização dos estímulos periféricos. Haveria dois processos
distintos nesse aparelho, o fisiológico e o psíquico, que transcorreriam paralelamente.
Do ponto de vista fisiológico, o aparelho seria constituído por processos associativos
funcionalmente similares, que se sobreporiam uns aos outros, ou seja, que se sobre-
associariam. Dessa forma, haveria vários níveis de funcionamento coexistindo no
aparelho de linguagem, cada um dos quais corresponderia a momentos diferentes do
desenvolvimento do indivíduo. Do ponto de vista psicológico, o aparelho de linguagem
seria constituído por representações-palavra, que, embora funcionassem como uma
unidade, consistiriam em complexos constituídos por imagens acústicas, visuais,
quirocinestésicas e glossocinestésicas. Esta hipótese sobre os elementos constituintes
da palavra já estava presente em Wernicke e em outros neurologistas a ele
19
LA, p.67; ZAA, p.94.
20
LA, p.68; ZAA, p.95.
25
contemporâneos, como Grashey, Bastian e Déjerine. O que pode ser considerado novo
na concepção de Freud sobre a representação-palavra é o modo como os processos
associativos
22
que se dão entre seus elementos constituintes são concebidos:
“Do ponto de vista psicológico, a “palavra” é a unidade funcional da
linguagem: é uma representação complexa constituída por elementos
acústicos, visuais e cinestésicos. Devemos o conhecimento desta
estrutura à patologia, a qual demonstra que as lesões orgânicas que
afetam o aparelho de linguagem ocasionam uma desintegração da
linguagem correspondente a tal constituição... Geralmente se
consideram quatro constituintes da representação-palavra: a “imagem
acústica” ou “impressão acústica”, a “imagem visual da letra” e as
“imagens ou impressões glossocinestésicas e quirocinestésicas”,
porém esta constituição parece ainda mais complicada se se considera
o provável processo de associação implícito nas diversas atividades da
linguagem”.
23
A imagem acústica seria a primeira a se formar; em seguida, formar-se-iam a
imagem glossocinestésica (da fala), a imagem visual da letra e, por último, a
quirocinestésica (da escrita). Todas as imagens se associariam à acústica; portanto, ao
menos inicialmente, todas as atividades da linguagem dependeriam de seu componente
sonoro. A fala espontânea, a fala repetitiva e a compreensão das palavras
permaneceriam sempre dependentes da imagem acústica, uma vez que a imagem
cinestésica só seria acessada por meio dela e uma vez que seria apenas por meio da
imagem acústica que a representação-palavra se associaria à representação-objeto,
associação da qual dependeria o significado das palavras. Freud afirma que, ao menos
no caso dos substantivos, é a representação-objeto que atribui significado à
representação-palavra.
A representação-objeto consistiria também num complexo associativo, mas tal
complexo não seria constituído apenas por representações acústicas, visuais e
cinestésicas, como a representação-palavra; outros tipos de imagens (táteis, olfativas,
21
Jackson diz que os centros inferior, intermediário e superior são, sucessivamente,
“representativos”, “re-representativos” e “re-re-representativos.”
22
Freud usa o termo “associação” para se referir tanto aos processos fisiológicos como aos
psicológicos.
26
etc.) poderiam vir a integrá-lo. A representação-objeto, assim como a de palavra,
possuiria como correlato um processo associativo, que consistiria no último estágio de
reorganização do material perceptivo, pois a concepção de Freud sobre o processo de
condução dos estímulos da periferia ao córtex não se restringe às informações
relacionadas à linguagem, mas refere-se ao processo de condução do material
perceptivo em geral. Além da representação-objeto ser constituída por uma variedade
maior de elementos sensoriais, a possibilidade de novos elementos se acrescentarem a
ela nunca cessaria, ao contrário da representação-palavra. Uma vez que as imagens
acústicas, visuais e cinestésicas de uma determinada palavra se constituíssem, não
haveria novos elementos a serem acrescentados àquela representação. Novas
representações-palavra poderiam constituir-se e associar-se às anteriores, mas não seria
possível que percepções diferentes da mesma palavra fossem experienciadas. Já com
relação à representação de um objeto específico, sempre haveria a possibilidade de que,
por exemplo, percepções visuais de diferentes ângulos ou percepções tácteis de suas
diferentes partes fossem experienciadas e, assim, acrescentassem novos elementos à
representação. É por isso que Freud afirma que, enquanto a representação-palavra é um
complexo fechado, a representação-objeto é um complexo aberto, pois, nesse último
tipo de representação, sempre permanece em aberto a possibilidade de que novos
elementos se acrescentem aos anteriores.
Esta concepção de objeto proposta por Freud baseia-se na concepção de objeto de
Stuart Mill (1865). Segundo este, quando dois fenômenos que nunca foram
experienciados ou pensados separadamente fossem vivenciados juntos com muita
freqüência, se produziria entre eles uma “associação inseparável”, que tornaria
impossível pensar os dois fenômenos isoladamente, a não ser que alguma experiência
subseqüente viesse dissolver a associação. De tal associação inseparável e da
“capacidade de expectativa” da mente humana – a capacidade que possuímos de, após
ter sensações reais, conceber que novas sensações possam vir a ser experienciadas em
associação com as anteriores e que, dado certas condições, as mesmas sensações podem
retornar – resultaria a idéia da existência de um objeto no mundo externo, segundo
Mill. Para ele, essa concepção de “sensações possíveis” traria consigo um caráter de
permanência que se oporia ao caráter efêmero de nossas sensações e, a partir dessa
diferenciação, seríamos levados a considerar que ambos (objeto e sensação) são coisas
23
LA, p.86; ZAA, p. 117.
27
diferentes, que as possibilidades de sensações existem independentemente de nós, ou
seja, que existem objetos externos, dos quais essas sensações provêm. Ao expor sua
concepção de objeto, Freud menciona esta idéia de Mill. Ele afirma:
“A própria representação-objeto é também um complexo de
associações composto por representações visuais, acústicas,
cinestésicas, tácteis e outras. Segundo o ensinamento da filosofia, a
representação-objeto não contém outra coisa; a aparência de uma
“coisa”, cujas “propriedades” nos são transmitidas por nossos
sentidos, se origina somente do fato de que, ao enumerar as
impressões sensoriais percebidas de um objeto, deixamos aberta a
possibilidade de que se acrescente uma grande série de novas
impressões à cadeia de associações (J. S. Mill)”.
24
Para Freud, assim como para Stuart Mill, a representação-objeto consistiria num
complexo de impressões sensoriais, e nossa idéia de uma coisa no mundo só poderia ser
uma inferência que se originaria a partir desse agregado de impressões e da capacidade
de expectativa da mente humana.
O aparelho de linguagem consistiria, então, em vários níveis de processos
associativos neurológicos concomitantes a vários níveis de processos associativos
psicológicos, os quais constituiriam as representações-palavra. Vejamos, por fim, quais
conseqüências para a formulação de um conceito de representação são acarretadas por
essa teoria sobre a fisiologia e a psicologia da linguagem proposta por Freud.
1.5 Representação e consciência no aparelho de linguagem
A reformulação da teoria sobre a neurologia e a psicologia da linguagem
empreendida por Freud em “Sobre a concepção das afasias” acaba por levar à
formulação de um conceito de representação que se distancia em alguns aspectos do que
estava subentendido nas teorias criticadas. Em vez de ser o correlato de um engrama
contido em uma célula cortical, a representação simples passa a ser concebida como o
correlato de um processo associativo e, com isso, a distinção entre representação e
24
LA, p.90; ZAA, p.122.
28
associação desaparece no nível neurológico, embora seja mantida no nível psicológico.
Uma vez que Freud propôs que o simples do ponto de vista psíquico corresponderia a
um complexo do ponto de vista neurológico, uma imagem – uma representação simples
– deve corresponder a um processo associativo e uma representação complexa, como a
da palavra, deve corresponder, portanto, a uma rede de processos associativos. Deste
modo, nos correlatos da representação, não é possível diferenciar algo simples; estes só
existem enquanto complexos, pois só com a associação surge o correlato de uma
representação. Mas, do lado psicológico, há representações simples e representações
complexas, que resultam da associação das primeiras.
25
Dessa forma, enquanto do ponto
de vista fisiológico a associação é o processo constituinte dos correlatos das
representações, do ponto de vista psicológico a associação continua sendo um processo
que se dá entre as representações simples para a constituição das representações
complexas, ou seja, nesse sentido, a associação continua sendo concebida de uma forma
próxima à concepção da psicologia associacionista.
A noção de sobreassociação foi introduzida por Freud para explicar como se dá
o processo de aprendizagem da linguagem. Ele argumenta que não é possível inferir a
existência de áreas carentes de função baseando-se apenas no fato de que lesões em
algumas regiões do cérebro não possam, freqüentemente, ser associadas à perda de
funções da linguagem, e argumenta também que, se a aprendizagem da linguagem
consistisse em um processo de expansão topográfica, os efeitos de lesões em tal área
seriam totalmente diferentes. A observação do modo como a linguagem é prejudicada
nas patologias do cérebro sugere que todas as aquisições a ela relacionadas envolvem a
mesma área e que, portanto, as representações aí se sobre-associam. Do ponto de vista
neurológico, pode-se dizer que os vários processos se sobrepõem. Os novos processos
são integrados aos anteriormente constituídos e adquirem novas propriedades, assim
como atribuem novas propriedades aos anteriores. Nesse sentido, parece ser possível
aproximar o conceito de associação de Freud à hipótese da química mental de Stuart
Mill. A associação não parece ser pensada por Freud como um processo totalmente
mecânico, como concebia James Mill. No entanto, é preciso lembrar que apenas entre os
fenômenos psíquicos seria possível diferenciar entre representações simples e
25
Freud usa, para se referir aos elementos constituintes da representação-palavra, tanto o termo “Bild”
(imagem) como “Vorstellung”(representação), termo este que é sempre usado para se referir à
representação-palavra (Wortvorstellung) e à de objeto (Objektvorstellung). Por exemplo, para se referir à
imagem de movimento da fala, ele usa tanto “Sprachbewegungsvorstellung
” como
“Sprachbewegungsbild”.
29
complexas, de acordo com o que Freud sustenta em 1891. E, como, a partir do
“Projeto...”, Freud passa a identificar a representação ao próprio processo cortical,
desapareceria totalmente a distinção entre representações simples e complexas na teoria
freudiana. Por isso, não parece ser pertinente propor uma aproximação maciça entre o
conceito freudiano de associação e aqueles propostos pelos associacionistas ingleses.
Em vez de um processo de expansão topográfica, a constituição da representação
consistiria num processo de sobre-associação, onde o significado das representações
seria transferido das mais antigas para as mais recentes, formando-se, assim, cadeias
associativas de mesma significação. Uma vez que a representação-palavra, ao menos
nos casos dos substantivos, adquiriria significado a partir da sua associação com uma
representação-objeto, haveria várias cadeias de representações-palavra que, em última
instância, denotariam o mesmo objeto. Dessa forma, para se conhecer o significado
originário de uma palavra, seria preciso percorrer a cadeia associativa no sentido
inverso ao da sua constituição, até alcançar a representação-objeto que está na sua
gênese.
26
Algumas afirmações do “Projeto de uma psicologia” (1895) e dos “Estudos
sobre a histeria” (1895) sugerem que as representações-objeto adquirem significado a
partir da sua associação com sensações corporais. Sendo assim, essas sensações
estariam na base de toda a compreensão das palavras e dos objetos; elas estariam na
base das cadeias associativas e, então, todas as palavras, em última instância,
denotariam sensações corporais (Caropreso, 2001)
Em vez de uma cópia dos estímulos que chegam à periferia do sistema nervoso,
os correlatos da representação, para Freud, consistiriam em construções deste sistema.
No processo de constituição dos correlatos da representação, a informação sensorial
externa seria reordenada de acordo com princípios funcionais do sistema nervoso;
portanto, nesse sentido, pode-se dizer que as representações seriam constituídas por um
funcionamento inato a partir de um conteúdo adquirido. Dado que a representação
corresponderia ao ápice de um processo cujos estágios anteriores – isto é, cujas etapas
de construção – nos seriam totalmente inacessíveis, nosso acesso aos estímulos externos
seria indireto, ocorrendo através de uma série de mediações.
Apesar do conceito de representação formulado por Freud se afastar, nos
aspectos comentados acima, da concepção de representação implícita nas teorias
26
Não parece ser esse o trabalho da terapia psicanalítica? Descobrir o significado originário das
nossas idéias atuais?
30
neurológicas criticadas, a identificação entre o psíquico e a consciência e, portanto,
entre representação e consciência é ainda mantida em “Sobre a concepção das afasias”.
Freud considera, nesse texto, mais uma vez seguindo Jackson, que o psíquico se
restringe ao consciente e, conseqüentemente, que toda representação é, por natureza,
consciente. Os correlatos das representações seriam processos associativos que
deixariam atrás de si modificações, que possibilitariam a rememoração, mas só quando
o mesmo processo voltasse a ocorrer a representação emergiria novamente. Dessa
forma, as modificações corticais seriam condições necessárias para a representação, mas
não suficientes. Ao falar sobre os processos associativos neurológicos concomitantes às
representações, Freud afirma:
“Este processo não é incompatível com a localização. Começa em um
ponto específico do córtex e a partir daí se difunde por todo o córtex e
ao longo de certas vias. Quando este fato tem lugar, deixa atrás de si
uma modificação, com a possibilidade de uma recordação na parte do
córtex afetada. É muito duvidoso que essa modificação esteja de
algum modo associada com algo psíquico. Nossa consciência não
contém nada que possa justificar, do ponto de vista psicológico, o
termo “imagem latente de recordação”. No entanto, cada vez que o
mesmo processo cortical volta a ser suscitado, o psíquico emerge
novamente como imagem de recordação”.
27
Nesse texto, portanto, o psíquico é identificado à consciência, e só é possível falar
de “inconsciente” para designar uma ausência de consciência, que implicaria também a
ausência de fenômenos psíquicos. De acordo com as hipóteses aqui apresentadas, a
expressão “representação inconsciente” seria contraditória se tomada com todo rigor,
pois a representação estaria inteiramente incluída no domínio dos processos conscientes.
Em 1891, como aponta Simanke (2006), a representação é ainda concebida como
um fato de percepção e, portanto, como algo necessariamente consciente. Para que as
noções de representação e de consciência possam ser desvinculadas, será preciso
formular uma teoria que conceba a representação como um fato de memória. Embora o
ensaio sobre as afasias lance as bases para uma concepção dinâmica da representação –
da qual se nutrirá toda a metapsicologia posterior –, ele não comporta uma teoria da
27
LA, p.71; ZAA, p.99, grifado por mim.
31
memória à altura das redefinições que aí se esboçam sobre a natureza do fato psíquico,
e esta lacuna constitui, nesse momento, um obstáculo ao reconhecimento do
inconsciente.
Que desenvolvimentos teóricos vão permitir a Freud incluir a noção de
representação inconsciente em sua teoria ? Nos textos sobre as neuroses do período
entre a publicação da monografia sobre as afasias e a redação do “Projeto de uma
psicologia”, Freud reconhece que é preciso supor que há processos inconscientes que
determinam os sintomas neuróticos. Nesses textos, o termo “subconsciente”, assim
como “inconsciente”, é empregado em algumas ocasiões para explicar o mecanismo
psíquico das neuroses, mas Freud não chega a atribuir definitivamente uma natureza
psíquica às representações e associações inconscientes de que fala, o que, ao que parece,
acontece somente no ‘Projeto...”. Antes de passarmos ao comentário deste último texto,
vejamos como Freud emprega esses termos em alguns de seus textos que precedem a
redação do “Projeto...”.
32
2. O conceito de representação inconsciente nos textos freudianos do
período de 1891 a 1895
No texto de 1893, “Algumas considerações com vistas a um estudo comparativo
entre as paralisias motoras orgânicas e histéricas”, embora Freud mantenha a idéia de
que os processos psíquicos são paralelos aos neurológicos, ele não mais identifica tão
claramente o psíquico ao consciente, pois introduz a idéia de processos psíquicos
“subconscientes”
28
para explicar as paralisias histéricas. Nesse texto, Freud sustenta que
as características distintivas das paralisias histéricas com relação às orgânicas se devem
ao fato de que, enquanto estas últimas são determinadas pela anatomia do sistema
nervoso – isto é, pela extensão e localização de uma lesão orgânica –, as primeiras são
totalmente independentes dos fatores anatômicos, pois não decorrem de lesões
orgânicas, mas de lesões puramente funcionais, isto é, da alteração de propriedades
funcionais do sistema nervoso independentes de danos materiais e, portanto,
relativamente independentes da estrutura física deste sistema. Do lado psíquico, essa
alteração funcional resultaria na exclusão de uma representação das associações
conscientes, o que leva Freud a dizer que a paralisia histérica resulta da “lesão de uma
representação”.
29
Uma representação lesada não seria uma representação destruída ou
cujo substrato material estivesse destruído, mas sim uma representação cujo vínculo
com o restante do psiquismo tivesse sido rompido, tornando-a, por isso, inacessível à
consciência. Ele afirma que, nas paralisias histéricas, a representação do órgão ou
função paralisada está inacessível às associações conscientes, pois todo o seu “afeto”
está envolvido em uma “associação subconsciente” exclusiva com uma recordação
traumática. O termo subconsciente aparece uma vez como substantivo: “A
impossibilidade de eliminação é notória quando a impressão permanece no
subconsciente
30
. Além disso, aparece várias vezes como adjetivo:
“(...) a concepção de braço existe no substrato material, mas ela não é
acessível às associações e impulsos conscientes porque toda a sua
28
Laplanche & Pontalis comentam que, nesse período em que foi publicado o artigo sobre as
paralisias histéricas, não parece haver diferença, no uso freudiano, entre “subconsciente” e o que
estava prestes a destacar-se sob o nome de “inconsciente” (1998, p.494).
29
Neste texto, que foi escrito em francês, Freud usa o termo “conception” para traduzir, ao que
tudo indica, o termo alemão Vorstellung.
30
AE, vol. 1, p.209.
33
afinidade associativa, por assim dizer, está saturada em uma
associação subconsciente com a recordação do acontecimento, do
trauma que produziu aquela paralisia.”
31
De acordo com a teoria presente em “Sobre a concepção das afasias”, o termo
“subconsciente” seria sinônimo de ausência de processos psíquicos e, portanto,
“representação subconsciente” seria sinônimo de ausência de representação. Desse
modo, nesse texto de 1893, ou Freud apóia suas hipóteses em uma concepção sobre a
relação entre o psíquico e a consciência diferente daquela sustentada no texto sobre as
afasias – em uma concepção em que o psíquico não é mais necessariamente consciente
– ou, quando ele fala de representações subconscientes, refere-se a representações
inexistentes, ou seja, a representações que o subsistem enquanto tais. Nesse último
caso, as expressões em que aparece o termo “subconsciente” seriam, no máximo,
expressões figuradas ou pouco rigorosas
Uma vez que Freud não esclarece em que sentido o termo subconsciente está
sendo usado, não é possível sabermos se ele continua identificando o psíquico ao
consciente – e , então, subconsciente significaria ausência de processos psíquicos, de
modo que a associação subconsciente seria um processo físico sem concomitante
psíquico – ou se ele passou a considerar que o psíquico não se limita ao consciente, isto
é, se ele adotou a hipótese de que os processos psíquicos são em parte conscientes e em
parte subconscientes e, então, suas expressões não são metafóricas, mas referem-se a
algo de real. Em suma, permanece a questão sobre se há ou não um inconsciente
psíquico para Freud nesse momento de sua teoria.
No texto de 1894, “As neuropsicoses de defesa”, Freud enuncia a questão
mencionada acima sobre a possibilidade de ocorrerem processos psíquicos na ausência
da consciência, mas não chega a tomar uma posição definitiva. Nesse trabalho, ele
formula uma hipótese sobre o mecanismo psíquico das psiconeuroses – histeria de
defesa, fobias, obsessões e psicoses alucinatórias –, de acordo com a qual sua gênese
repousaria em um esforço do eu para defender-se de uma representação intolerável.
Essa defesa consistiria na retirada do afeto atrelado à representação traumática, fazendo
com que esta representação ficasse isolada dentro da consciência e constituísse, assim, o
núcleo de um grupo psíquico secundário. Freud, no entanto, não usa o termo
31
AE, vol.1 p.209; GW, vol. 1, p. 53.
34
“subconsciente” nem “inconsciente” nesse texto. A representação patogênica, segundo
ele, estaria excluída dos processos associativos, mas permaneceria dentro da
consciência: “A representação agora debilitada fica segregada de toda a associação na
consciência (...)”
32
. Ele afirma que o divórcio entre a representação e o seu afeto ocorre
“sem consciência”, mas hesita em aceitar que esses processos que ocorrem na ausência
da consciência sejam psíquicos:
“A separação entre a representação sexual e seu afeto e o enlace deste
último com outra representação, adequada porém não inconciliável:
eis aí processos que acontecem sem consciência, que somente é
possível supor e que nenhuma análise clínico-psicológica é capaz de
demonstrar. Talvez fosse mais correto dizer: estes, de modo algum são
processos de natureza psíquica, mas processos físicos cuja
conseqüência se figura como se real e efetivamente tivesse acontecido
o expresso mediante o circunlóquio “separação entre a representação e
seu afeto” e “enlace falso” deste último.”
33
Pelo que parece, nesse texto sobre as neuropsicoses de defesa, Freud tende a
identificar os processos que se dão na ausência de consciência a processos físicos,
mantendo, assim, o psíquico restrito ao consciente, mas ele não chega a afirmar
cabalmente essa identidade.
Nos “Estudos sobre a histeria” (1895), tanto Freud como Breuer remetem os
sintomas histéricos a representações inconscientes, embora tenham opiniões distintas
sobre o mecanismo psíquico da histeria. Segundo Breuer, a cisão da atividade psíquica
poderia ocorrer em dois casos: quando ela se constituísse durante um estado psíquico
anormal – um “estado hipnóide” – ou quando ela fosse alvo de uma defesa voluntária
por parte do eu. Apenas esta última hipótese, proposta já em “As neuropsicoses de
defesa”, é aceita cabalmente por Freud nesse texto. Embora, na “Comunicação
Preliminar”, Freud compartilhe com Breuer a hipótese da histeria hipnóide, no capítulo
sobre a psicoterapia da histeria, escrito dois anos mais tarde, ele afirma que todo caso de
histeria hipnóide pode ser remetido, em última instância, a uma defesa por parte do eu.
Ele propõe que toda histeria apresente em sua gênese a separação entre uma
32
AE, vol. 3, p.53; GW, vol.1, p. 66.
33
AE, vol. 3, p.54; GW, vol. 1, p.67.
35
representação intolerável e seu afeto, isto é, um esforço defensivo do qual resulta a
divisão psíquica característica da histeria. Apesar de ambos os autores usarem o termo
inconsciente em diversas ocasiões, aparentemente nenhum deles possui ainda uma
concepção clara sobre a natureza dos processos inconscientes revelados pelas
observações clínicas.
Para Breuer, haveria dois tipos de representações inconscientes: as que fazem
parte da atividade psíquica normal e aquelas cuja existência é patológica. Segundo ele,
no funcionamento psíquico normal, as representações cuja intensidade supera um certo
limiar seriam conscientes e as que permanecessem abaixo desse limiar seriam
inconscientes. Mas estas últimas seriam “suscetíveis de consciência”, ou seja, elas se
tornariam conscientes se sua intensidade aumentasse. As representações inconscientes
determinantes da histeria, ao contrário, seriam “insuscetíveis de consciência”, isto é,
mesmo possuindo uma intensidade elevada, elas permaneceriam inconscientes.
Portanto, o campo da atividade psíquica representacional, nesse caso, seria maior que o
campo da consciência potencial:
“O campo da atividade psíquica representacional não coincide, pois,
neles, com o da consciência potencial; este é mais limitado que
aquele. A atividade psíquica representacional se decompõe em
consciente e inconsciente, e as representações, em suscetíveis e
insuscetíveis de consciência. Não podemos, então, falar de uma cisão
da consciência, mas sim de uma cisão da psique.”
34
Mas, apesar de falar que parte da atividade psíquica representacional é
insuscetível de consciência, em outra passagem, Breuer nega a possibilidade de haver
processos inconscientes de natureza psíquica:
É certo que “representação” provém da terminologia do pensar
consciente e, por isso, “representação inconsciente” forma uma
expressão contraditória. Mas o processo físico que está na base da
representação é o mesmo em seu conteúdo e em sua forma (se bem
que não quantitativamente), quer a representação passe o limiar da
consciência ou permaneça abaixo deste. Bastaria construir uma frase
34
AE, vol. 2, p.235.
36
como “substrato da representação” para evitar a contradição e escapar
àquela reprovação.”
35
De acordo com o que ele diz agora, o que se chama de representação inconsciente
seria, na verdade, um processo físico sem concomitante psíquico, ou seja, literalmente,
não haveria representações inconscientes. Há, portanto, uma contradição nos
argumentos de Breuer, pois ele afirma que a “representação inconsciente” consiste num
processo puramente físico e, logo em seguida, afirma que a atividade psíquica
representacional não se limita à atividade consciente. Na maior parte do texto, ele
parece aceitar a existência de um psíquico inconsciente, mas na afirmação acima ele
expressamente recusa tal possibilidade.
Em seu capítulo sobre a psicoterapia da histeria, Freud mantém a hipótese sobre o
mecanismo psíquico desta neurose que havia sido proposta em “As neuropsicoses de
defesa” e a estende aos dois outros tipos de histeria (hipnóide e de retenção). O material
patógeno determinante da histeria, segundo ele, seria constituído por um núcleo que
conteria as representações traumáticas e por um amplo material mnêmico constituído
por representações que, por se associarem com as traumáticas, se teriam tornado
também patógenas. Essas representações possuiriam um triplo ordenamento: elas
estariam organizadas, no sentido do núcleo à periferia, de forma linear cronológica, de
forma concêntrica, em torno do núcleo, seguindo linhas de resistência decrescente e de
forma irregular, seguindo nexos causais.
36
Na análise, as representações seriam
evocadas à medida que a resistência fosse sendo superada, na ordem contrária à da sua
constituição, isto é, das periféricas – as quais coincidiriam parcialmente com o eu – às
nucleares, que esclareceriam o significado do sintoma. Haveria, portanto, uma
seqüência ininterrupta entre as representações originárias da histeria e os sintomas, isto
é, entre as representações inconscientes e as conscientes. Freud distingue dois tipos de
representações patógenas que permaneceriam inacessíveis à consciência do paciente até
emergirem na terapia: as que são rememoradas – ou seja, as que o sujeito reconhece
como tendo sido, de fato, experienciadas – e as que não são rememoradas. Estas
últimas, embora sejam aceitas pelo paciente, devido a sua necessidade lógica e ao afeto
35
AE, vol. 3, p.233.
36
Fica claro que a noção de sobre-associação de “Sobre a concepção das afasias” está sendo
pressuposta aqui. Em 1891, Freud havia mencionado apenas o ordenamento temporal das
37
que acompanha o seu surgimento e provoca o alívio do sintoma, não são reconhecidas
como tendo sido um dia vivenciadas. Freud atribui a incapacidade de rememoração de
tais representações ao fato delas consistirem em “pensamentos inconscientes”:
“Ainda quando tudo já passou, quando o enfermo, dominado pela
compulsão lógica e convencido pelo efeito curativo que acompanha
justamente o afloramento desta representação; quando o enfermo,
digo, aceita ele mesmo que teve que ter pensado isto ou aquilo,
costuma acrescentar: “Porém, não posso recordar
que o tenha
pensado”. Em tal caso é fácil entender-se com ele: eram pensamentos
inconscientes
. Agora bem, como se deve registrar esse estado de
coisas em suas intuições psicológicas? Há que se passar por alto esse
discernimento recusado do enfermo, que não possui motivo algum
posto que o trabalho já acabou? Deve-se supor que se trata realmente
de pensamentos nunca produzidos e para os quais havia uma mera
possibilidade de existência, de modo que a terapia consistiria, então,
na consumação de um ato psíquico interceptado? É, evidentemente,
impossível enunciar algo sobre isto, ou seja, sobre o estado do
material patógeno antes da análise, até que se tenha esclarecido a
fundo suas visões psicológicas básicas, antes de tudo sobre a essência
da consciência.”
37
Nessa passagem, Freud admite que não possui uma concepção clara acerca das
representações inconscientes com que ele se depara em sua experiência clínica. Trata-se
de processos que de fato ocorreram? Ou de processos para os quais havia uma mera
possibilidade de existência, a qual não chegou a se consumar, pergunta-se ele. Em
nenhum dos textos comentados, ele esclarece em que consistiria a noção de
representação inconsciente admitida como necessária para se esclarecer o mecanismo
psíquico das neuroses, embora em “As neuropsicoses de defesa” constate-se uma
inclinação a conceber os processos inconscientes como processos físicos sem
concomitantes psíquicos. Aparentemente, nesse período, Freud ainda não possuía uma
concepção definida sobre o inconsciente, mas fica claro que a identidade entre o
representações; o ordenamento segundo nexos causais e linhas de resistência são acrescentados
agora.
37
AE, vol.2, p.304; GW, vol.1, p.306.
38
psíquico e a consciência, afirmada no texto sobre as afasias, já estava sendo
questionada. Esta questão se define no “Projeto de uma psicologia”, onde Freud formula
uma teoria em que a consciência é concebida como algo que se acrescenta a apenas uma
parte das nossas representações, recusando, assim, a identidade total entre o psíquico e o
consciente. A reflexão sobre a consciência apontada por Freud como necessária nos
“Estudos sobre a histeria” parece, assim, ter sido um dos motivos que o levaram a
redigir o “Projeto...”.
39
3. A expansão do conceito de psíquico no “Projeto de uma psicologia”
No “Projeto de uma psicologia” (1895), pela primeira vez, Freud admite
expressamente a existência de um “psíquico inconsciente”; surge na teoria freudiana a
noção de um psíquico inconsciente e dinâmico. Vimos que, em “Sobre a concepção das
afasias”, Freud adota a doutrina da concomitância de Jackson e mantém a identificação
do psíquico ao consciente. Os processos nervosos concomitantes do psíquico, diz ele,
deixam atrás de si modificações que permitem a rememoração diante da reativação do
mesmo processo, mas essas modificações no sistema nervoso não podem ser associadas
a algo psíquico. Este restringe-se ao consciente e é algo que surge em paralelo aos
processos nervosos. No “Projeto...”, Freud modifica essa hipótese. O psíquico não se
restringe ao consciente; ao contrário, a consciência corresponde a sua menor parte, e os
processos psíquicos inconscientes são os processos nervosos que antes eram
considerados como sendo os concomitantes fisiológicos do psíquico. A representação
deixa de ser concebida como o concomitante psíquico de um processo cortical
associativo e passa a ser concebida como sendo o próprio processo cortical.
Pode-se dizer que o “Projeto...” consiste em um trabalho de generalização do
ponto de vista funcional introduzido em 1891 para a abordagem dos distúrbios de
linguagem (Simanke, 2006). O conceito de aparelho de linguagem seria, assim,
ampliado dando origem à idéia de “aparelho neuronal”.
3.1) O aparelho neuronal
A proposta inicial do “Projeto de uma psicologia” – redigido em 1895, mas
publicado postumamente em 1950 – é fornecer uma psicologia científico-naturalista,
segundo a qual os processos psíquicos normais e patológicos seriam explicados a partir
de dois postulados principais: a “quantidade”(Q)
38
e o “neurônio”(N). Ele desenvolve a
idéia de um “aparelho neuronal”, cujo funcionamento e estrutura seriam determinados,
38
Freud usa as abreviaturas Q e Q’n para representar a quantidade. James Strachey, na
introdução ao “Projeto...” (AE, vol. 1, p. 325-336) comenta que não há dúvidas de que ambos os
símbolos representem a “quantidade”, porém, é inquestionável que há uma ligeira diferença
entre o que eles representam, embora esta diferença não seja explicitada por Freud. Em algumas
partes do “Projeto...”, ele parece usar Q para quantidade externa e Q’n para quantidade
psíquica, mas este uso não é perfeitamente consistente.
40
inicialmente, pelo “princípio de inércia”, isto é, por uma tendência a descarregar toda a
quantidade que alcançasse o aparelho. O objetivo manifesto é explicar todos os
processos psíquicos mecanicamente, mas, em algumas ocasiões, na impossibilidade de
cumprir essa meta, Freud recorre a justificativas biológicas; ele explica algumas
características dos processos como consistindo em aquisições condicionadas por regras
biológicas.
Em uma carta a Fliess, de 25 de maio de 1895, Freud afirma sobre sua “psicologia
para neurólogos”:
“Estou atormentado por dois objetivos: examinar que forma irá
assumir a teoria do funcionamento mental, se introduzirmos
considerações quantitativas, uma espécie de economia das forças
nervosas e, em segundo lugar, extrair da psicopatologia um lucro para
a psicologia normal. Na verdade, é impossível ter uma concepção
geral satisfatória dos transtornos neuropsicóticos se não se puder
vinculá-la com pressupostos claros sobre os processos mentais
normais.”
39
Conforme o que ele diz nessa carta, seu interesse estava voltado para a formulação
de uma teoria quantitativa do funcionamento psíquico em geral, onde fosse utilizado o
conhecimento obtido a partir das observações das neuroses. A idéia de formular uma
teoria psicológica em termos quantitativos não representava uma inovação na época em
que o “Projeto...” foi escrito. Amacher (1965) comenta que, em muitos pontos, tal texto
não faz desvios significativos da neurologia dos professores de Freud. As descrições da
inércia neuronal, da facilitação entre neurônios corticais e da experiência de satisfação
como processo cortical e psicológico básicos teriam sido essencialmente baseadas nos
conceitos que ele tinha aprendido com Brücke, Meynert e Exner. No entanto, algumas
de suas grandes inovações – a teoria dos sonhos como realização de desejos, a teoria do
mecanismo da histeria e da repressão – apareceriam de forma original no “Projeto...”,
diz Amacher. Freud, sem dúvida, foi influenciado pelas teorias dos neurólogos acima
mencionados, mas suas hipóteses parecem ir além de tais teorias pelo fato de incluirem
dados provenientes da observação das neuroses, como comenta Monzani (1989):
41
“De fato, toda a articulação das teses do “Projeto...” está vinculada à
leitura que Freud elabora, de forma inaugural, sobretudo a partir dos
histéricos. É exatamente essa prática clínica original, inédita, que
confere ao “Projeto...” sua especificidade própria e o torna um
documento único frente às mesmas tentativas nessa linha feitas pelos
contemporâneos de Freud, como Exner.” (p.118)
Pribram e Gill (1976) argumentam que o que há de único no “Projeto...” é a
revelação da importância e do significado do comportamento inconscientemente
determinado como indicador de um processo cientificamente acessível, ao passo que os
outros neurologistas tinham se preocupado meramente com o óbvio, isto é, com a
consciência. De fato, ao menos do ponto de vista da teoria freudiana, uma das coisas
que confere importância fundamental ao “Projeto...” parece ser o fato de nesse texto
encontrar-se a primeira formulação do conceito de psiquismo inconsciente. Além disso,
Freud define aí uma série de conceitos que reaparecem nos textos metapsicológicos
posteriores sem serem totalmente esclarecidos, como o de atenção, de pensamento, de
juízo e outros.
PPP
O primeiro pilar da teoria – a noção de “quantidade” – é definida como algo que
diferencia a atividade do repouso e que está submetido à lei geral do movimento. A
natureza dessa quantidade, no entanto, não é especificada. Strachey (1998a) comenta
que, embora no artigo “As neuropsicoses de defesa”, Freud tenha feito uma vaga
comparação entre a soma de excitação – conceito este que seria precursor do de
quantidade – e uma carga elétrica espalhada pela superfície de um corpo e, nos
“Estudos sobre a histeria”, tenha feito uma analogia entre a quota de afeto e uma certa
medida de excitação elétrica nas vias condutoras do encéfalo, não há nenhuma palavra
no “Projeto...” que possa ser interpretada no sentido de que Freud entendesse a
quantidade estritamente dessa forma. Pribram e Gill (1976), ao contrário, argumentam
que Freud identificou a quantidade de excitação neural com suas manifestações
elétricas, porque, embora a propriedade básica do movimento neuronal seja
neuroquímica, a neuroquímica da hiperpolarização e despolarização da membrana que
39
Masson,1986, p.129; AAP, p.107.
42
dão origem a um impulso nervoso propagado estavam ainda, em 1895, em sua infância.
Portanto, a natureza neuroquímica da quantidade não podia ser descrita, mas apenas a
sua manifestação como atividade elétrica. Os autores afirmam que as medições
neuroelétricas de potenciais eletrotônicos e impulsos nervosos propagados eram não só
comuns em 1895, mas também suficientemente recentes para empolgar a imaginação
dos neurocientistas da época. Portanto, tais idéias provavelmente teriam influenciado
Freud.
De qualquer forma, o fato é que Freud não especifica a noção de quantidade ao
longo de toda a sua obra. Em “Além do princípio do prazer”, ele afirma:
“(...)não sabemos nada sobre a natureza do processo excitatório nos
elementos do sistema psíquico, nem nos sentimos autorizados a adotar
uma hipótese a respeito dela. Assim, operamos continuamente com
um grande X que transportamos a cada nova fórmula. Admitimos
facilmente que esse processo se cumpre com energias que apresentam
diferenças quantitativas(...)”
40
O segundo postulado principal, o “neurônio”, é concebido como a unidade
material e funcional do sistema nervoso. Em 1891, W. Waldeyer havia concluído que o
neurônio era a unidade fundamental do sistema nervoso, e Freud parece ter-se baseado
nessa descoberta, pois ele afirma que seu objetivo é combinar sua teoria da quantidade
com o conhecimento sobre os neurônios fornecido pela histologia recente. Segundo o
que propõe Freud, os neurônios seriam, por hipótese, estruturalmente idênticos,
anatomicamentes independentes uns dos outros e entrariam em contato entre si por
mediação de tecido não neuronal. Eles receberiam quantidade através dos
prolongamentos celulares e a emitiram através dos cilindros do eixo (axônios). Deste
modo, sua estrutura estaria de acordo com a tendência fundamental do aparelho, pois
favoreceria a descarga da quantidade.
Com a hipótese do neurônio, Freud pode especificar as características da área
cortical homogênea exclusivamente associativa que, como havia sido proposto em
“Sobre a concepção das afasias”, constituiria a área da linguagem. Esta seria composta
por neurônios estruturalmente idênticos e, portanto, entre tais neurônios é que
ocorreriam as associações que estabeleceriam diferenciações nessa área. No “Projeto...”,
43
no entanto, essa hipótese da homogeneidade estrutural cortical é expandida, pois passa a
referir-se, nesse novo sentido, à totalidade do sistema nervoso. Uma parte de um dos
sistemas do aparelho neuronal – o sistema de memória ψ – seria composta pelas
associações lingüísticas, cujas funções serão abordadas adiante. Dessa forma, a área da
linguagem, mencionada por Freud em sua monografia sobre as afasias, corresponderia a
uma parte de um dos sistemas que integram o aparelho neuronal formulado no
“Projeto...”
A tendência primordial do aparelho seria anular todo o aumento quantitativo, isto
é, manter seu nível de quantidade igual a zero. Essa tendência pode ser entendida como
uma tendência a evitar o desprazer, pois Freud identifica, nesse momento de sua teoria,
o aumento da excitação com o desprazer e a sua diminuição com o prazer. O surgimento
da quantidade endógena – decorrente das necessidades vitais – imporia, contudo, uma
modificação a essa tendência primária. Se o aparelho recebesse apenas quantidade de
origem exógena, seria possível, em princípio, a partir do movimento reflexo,
descarregá-la totalmente e, assim, mantê-lo afastado de todo aumento quantitativo. Mas,
além de quantidade exógena, ele receberia também quantidade endógena, e esta não
poderia ser suprimida através do mecanismo reflexo unicamente. Embora os
movimentos reflexos funcionem como um meio de descarga para a quantidade
endógena, eles não seriam capazes de anular a fonte de estimulação, como o fazem em
relação à quantidade exógena, ou seja, eles não permitiriam, nesse caso, a fuga do
estímulo. A anulação de uma fonte interna de estímulos dependeria de uma atuação
mais complexa sobre o mundo, como, por exemplo, a obtenção de alimento, no caso da
fome. Seria necessário o que Freud chama de uma “ação específica” para que a
estimulação endógena pudesse cessar e, devido à sua complexidade, a execução dessa
ação teria como condição um acúmulo de quantidade no aparelho, o que imporia uma
modificação na sua tendência fundamental. Em vez de manter o nível de quantidade
igual a zero, a tendência dominante passaria a ser mantê-lo constante no nível mínimo
necessário. Assim, o princípio de inércia daria lugar a uma “tendência à constância”.
Esta última não se oporia ao princípio de inércia; ao contrário, atuaria em seu favor,
permitindo que a quantidade endógena fosse, de fato, descarregada adequadamente.
Dessa forma, a presença da estimulação de origem endógena no aparelho é que faria
com que processos mais complexos aí se desenvolvessem, pois se o aparelho tivesse que
40
AE, vol.18 p.30; SA, vol.3, p.240.
44
lidar apenas com quantidade exógena, ele se limitaria a produzir movimentos reflexos,
os quais seriam, em princípio, adequados para descarregar a quantidade exógena.
O aparelho neuronal seria composto por três sistemas de neurônios: o sistema φ,
cuja função seria receber a quantidade oriunda da periferia do sistema nervoso e
transmiti-la, enfraquecida e fracionada, ao sistema vizinho ψ; o sistema ψ, que seria um
sistema de memória, onde se formariam as representações; e o sistema ω, que
consistiria no substrato neural da consciência. Tais sistemas não se diferenciariam uns
dos outros devido à natureza dos neurônios que os compõem – uma vez que Freud
trabalhava com a hipótese de que todos os neurônios fossem estruturalmente idênticos –
, mas sim devido ao modo distinto de ação da quantidade em cada um deles. Entre os
neurônios, haveria “barreiras de contato”, as quais ofereceriam uma certa resistência à
passagem da excitação de um neurônio para outro, o que teria como conseqüência que
apenas as quantidades cuja intensidade fosse superior à da resistência das barreiras
conseguiriam passar de um neurônio para outro. Quando isto ocorresse, a barreira de
contato seria “facilitada” e, então, em uma segunda ocupação dos neurônios
correspondentes, a resistência encontrada seria menor. Dessa forma, a facilitação
diferenciada das barreiras de contato faria com que se constituíssem caminhos
diferenciados no aparelho, os quais possibilitariam a memória. Mas apenas no sistema
ψ as barreiras de contato seriam capazes de oferecer resistência à passagem da
excitação; no sistema φ, as quantidades recebidas possuiriam intensidade superior à da
resistência das barreiras de contato e, por isso, nesse sistema, tais barreiras estariam
totalmente facilitadas, não exercendo, assim, nenhuma função; o sistema φ seria, por
isso, completamente permeável à quantidade. Já em ψ – que receberia quantidade via φ
– as ocupações seriam menos intensas, uma vez que a estrutura ramificada de φ faria
com que a corrente excitatória se distribuísse por diversos caminhos, incidindo sobre ψ
em vários pontos.
41
Assim, em vez de ser ocupado muito intensamente em um ponto, o
sistema de memória seria ocupado em vários pontos menos intensamente. A quantidade
que alcançasse ψ, via φ, possuiria intensidade inferior à da resistência das barreiras de
41
No “Projeto...”, Freud não volta a se referir explicitamente a hipótese formulada em 1891
sobre a reorganização da informação sensorial no processo de condução desta da medula ao
córtex. Contudo, essa reorganização parece decorrer necessariamente da estrutura ramificada de
φ. Portanto, continuaria pressuposta na teoria a hipótese de que haveria, no processo de
condução da informação sensorial até o córtex, uma reordenação dos estímulos, resultando na
alteração da significação funcional do processo.
45
contato e, por isso, para conseguir passagem, uma mesma barreira teria que ser ocupada
a partir de dois ou mais neurônios simultaneamente, o que faria com que se
constituíssem aí caminhos diferenciados. Um grupo de neurônios ocupados cujas
barreiras de contato estivessem facilitadas entre si constituiria uma representação.
Com as hipóteses do neurônio, da barreira de contato e da facilitação, Freud tem
condições de esclarecer em que consistiriam as modificações permanentes que
resultariam dos processos associativos na área da linguagem que ele havia mencionado
em 1891, assim como precisar em que consiste a própria associação. As modificações
permanentes seriam as facilitações e, dessas últimas, resultaria a associação entre os
neurônios. Quando uma barreira de contato entre dois neurônios fosse facilitada, tais
neurônios ficariam associados. Em Sobre a concepção das afasias, o processo cortical
associativo era pensado como sendo o concomitante fisiológico da representação. No
“Projeto...”, esse processo passa a constituir a própria representação, a qual seria um
grupo de neurônios ocupados, cujas barreiras de contato estariam facilitadas entre si. A
circulação da quantidade seria um processo constituinte da representação e, por isso,
esta última seria indissociável de um componente energético. A idéia de que a
representação só surge com a associação concorda com a hipótese de que as
modificações permanentes decorrentes da passagem da quantidade se dão nos contatos
entre os neurônios e não nos próprios neurônios, pois, segundo esta última hipótese, a
constituição de traços permanentes no aparelho sempre implicaria a associação entre
dois neurônios. A representação surgiria quando o caminho facilitado estivesse ocupado
e, na ausência de ocupação, ela continuaria existindo enquanto possibilidade, dado que
as facilitações permaneceriam.
Parece ser equivocada a equiparação estabelecida por Laplanche e Pontalis(1970)
entre neurônio e representação por um lado, e afeto e quantidade por outro. Se a
representação é um processo, ela corresponde aos neurônios ocupados por quantidade.
Na ausência da ocupação, não há processo e, portanto, não há representação. No
comentário dos artigos metapsicológicos, argumentarei que o afeto não pode ser o
elemento quantitativo da representação, pois, nesse caso, a separação entre a
representação e o afeto, que resulta da repressão, implicaria na anulação da
representação.
Com a identificação da representação ao processo cortical, desaparece a distinção
que havia sido mantida no nível psicológico, em 1891, entre representações simples e
complexas. Toda representação seria complexa, uma vez que toda representação
46
corresponderia a um processo associativo. As características que, em 1891, Freud
atribui aos concomitantes neurológicos da representação passam a ser as características
da própria representação no “Projeto...”.
O sistema ψ seria ocupado não só a partir do mundo externo, mas também a
partir do interior do organismo, pois estaria, segundo a hipótese freudiana, diretamente
ligado a este. O modo de ação da quantidade endógena seria diferente do da exógena e,
por esse motivo, Freud é levado a dividir o sistema ψ em dois: “ψ do manto”, que
receberia quantidade exógena via φ, e “ψ do núcleo”, que receberia quantidade
endógena diretamente do interior do organismo e que seria, portanto, o local onde se
daria a conversão do somático em psíquico. As quantidades endógenas seriam muito
pouco intensas e, para conseguirem facilitar as barreiras de contato que separam ψ do
núcleo do interior do organismo, elas teriam que se somar. Quando conseguissem
ingressar em ψ do núcleo, elas adquiririam expressão psíquica, ou seja, dariam origem a
representações. Assim, apesar de tais quantidades serem geradas continuamente, só
periodicamente elas se converteriam em estímulos psíquicos, ou seja, só quando
adquirissem intensidade suficiente, através do mecanismo de “somação”, para ocupar o
núcleo do sistema ψ, elas se converteriam em estímulos psíquicos. Ao contrário do que
acontece em relação aos estímulos exógenos, a quantidade de origem endógena atuaria
diretamente sobre o sistema ψ. Não haveria, desse modo, nenhum mecanismo capaz de
bloquear ou fragmentar os estímulos endógenos, como o fazem as terminações nervosas
e o sistema φ, respectivamente, em relação à quantidade exógena. Além disso, a
resposta reflexa não seria eficaz como meio de descarga de tal quantidade. Portanto,
ψ
, desse lado, está exposto sem proteção às Qs, e nisto reside a ‘mola pulsional’ do
mecanismo psíquico”, diz Freud.
42
A necessidade de encontrar um meio de descarga
eficaz para a estimulação endógena é que impulsionaria o desenvolvimento de todos os
processos psíquicos mais complexos.
Então, enquanto ψ do manto conteria representações constituídas a partir de
quantidades exógenas, ψ do núcleo conteria representações constituídas a partir de
fontes internas de estimulação. Estas últimas parecem possuir as mesmas características
atribuídas ao conceito de pulsão no artigo “Pulsões e destinos das pulsões”, de 1915. No
entanto, a partir do artigo metapsicológico sobre a repressão, Freud adota a hipótese de
42
PP, p.30.
47
que a pulsão só se manifesta no psíquico a partir de uma representação, a “representação
representante de pulsão” e, a partir de então, passa a tratar a pulsão como se fosse a
própria estimulação endógena. Mas ele continua pensando as características da
estimulação endógena e as suas conseqüências psíquicas exatamente da mesma forma.
Assim, no “Projeto...”, parece encontrar-se a gênese do conceito de pulsão, embora esse
termo seja empregado uma ou duas vezes em 1895. Essas questões serão retomadas
adiante quando os artigos metapsicológicos forem comentados.
O conjunto de ocupações de ψ do núcleo constituiriam o “eu”, o qual seria o
portador do armazenamento de quantidade necessário para a satisfação das necessidades
vitais. Essa quantidade armazenada seria por ele utilizada para direcionar os processos
associativos de modo que estes alcançassem as condições necessárias para a satisfação e
impedissem a produção de desprazer. O eu atuaria através de “ocupações laterais”, isto
é, ocupando os neurônios adjacentes aos ocupados a partir de φ e deslocando, assim, o
curso da corrente excitatória. Ele teria acesso a todas as facilitações de ψ do manto e,
por isso, seria composto por uma parte constante – as ocupações do núcleo – e uma
parte variável – as ocupações ocasionais do manto, que teriam a finalidade de ali alterar
o curso associativo.
Segundo Freud, a quantidade de ocupação do eu estaria em “estado ligado”, ou
seja, na passagem da excitação de um neurônio para outro, parte dela seria retida no
primeiro, de modo que os neurônios permanecessem permanentemente ocupados. A
excitação em estado ligado, no entanto, só passaria a existir após a inibição do modo de
associação primário, o qual se caracterizaria pelo livre fluxo da quantidade pelos
neurônios, seguindo unicamente as vias melhor facilitadas, sem a retenção de nenhuma
parte da excitação na passagem de um neurônio para o outro. No processo primário, o
curso da excitação seguiria apenas o caminho melhor facilitado; no processo secundário,
ao contrário, as associações seriam direcionadas de forma a permitir que a realidade
fosse levada em consideração e, assim, a satisfação das necessidades se tornasse
possível. A inibição do processo primário, que instauraria o processo secundário, seria
inicialmente condicionada por uma regra biológica – a “defesa primária” –, segundo a
qual a ocupação de representações que geram desprazer tenderia a ser evitada. Esse
condicionamento ocorreria devido ao desprazer produzido nas repetições dos estados de
carência orgânica e dos esforços para alcançar o que Freud chama de “vivência de
48
satisfação”, vivência esta que seria estruturante do modo de funcionamento normal do
aparelho.
Na primeira vez em que o recém-nascido sentisse fome – isto é, na primeira
ocupação de ψ do núcleo –, tal ocupação levaria a respostas reflexas, como o grito, o
choro e a agitação motora, que consistiriam na única forma de eliminação da quantidade
que o recém-nascido possui. Essa reação, embora não fosse capaz de eliminar o
desprazer, uma vez que a fonte interna de estimulação não seria anulada, funcionaria
como um meio de comunicação entre a criança e o adulto, pois faria com que este
atentasse para o estado de carência do bebê. Quando o adulto executasse a ação
específica – por exemplo, quando a mãe oferecesse o seio à criança – esta, através de
ações reflexas, realizaria os movimentos necessários para a alimentação e, assim, a
recepção de estímulos internos cessaria, fazendo com que o desprazer desaparecesse.
Esta experiência é chamada por Freud de “vivência de satisfação”. Como conseqüência
de tal vivência, ocorreriam três coisas em ψ. Em primeiro lugar, o desprazer decorrente
da ocupação do núcleo de ψ cessaria; em segundo lugar, constituir-se-ia uma
representação do objeto externo, cuja percepção fora simultânea à experiência de
satisfação; e, em terceiro, formar-se-ia uma representação do movimento reflexo
executado.
43
Entre essas duas representações de ψ do manto e os neurônios nucleares se
estabeleceria uma facilitação, devido ao fato de que as primeiras teriam sido
constituídas simultaneamente à ocupação de ψ do núcleo. Uma vez estabelecidas essas
facilitações, quando o estado de excitação no núcleo reaparecesse, o processo
excitatório seguiria o caminho por elas definido e ocuparia a representação de ψ do
manto. Esta tendência para ocupar as representações-objeto em ψ do manto é o que
Freud chama de “desejo”.
44
Nesse caso, não havendo nenhuma inibição, a ocupação da
representação-objeto devido à animação de desejo seria muito intensa, de modo que
seriam despertados “signos de qualidade”
45
, ou seja, ocorreria uma alucinação. Em
conseqüência dessa alucinação, a ação reflexa – no caso, a sucção – seria executada e,
43
Todos os movimentos dariam origem a excitações sensoriais que constituiriam imagens de
movimento em ψ, segundo Freud.
44
O desejo seria uma tendência para ocupar a representação de um objeto, e a ocupação desta
representação consistiria em uma “realização de desejo”. Na segunda ocorrência do processo,
não haveria apenas uma necessidade mas já haveria um desejo, uma vez que o estado de
carência já teria se associado à representação de um objeto e, então, visaria especificamente sua
ocupação.
49
nessas condições, provocaria uma frustração. O recém-nascido se encontraria, assim,
num estado de “desamparo”.
Então, para a sobrevivência do indivíduo, seria necessário haver uma alteração
nessa tendência primária do processo associativo de seguir unicamente o caminho
melhor facilitado, de forma que a representação de desejo não fosse mais tão
intensamente ocupada e permitisse ao eu diferenciar entre uma rememoração e uma
percepção e, com isso, evitar a ocupação das representações de movimento na ausência
do objeto na realidade. Ou seja, para a sobrevivência do indivíduo, seria necessário a
substituição do modo primário de funcionamento do aparelho – do processo primário,
que se caracterizaria pelo fluxo livre da quantidade através dos neurônios – por um
modo secundário de funcionamento – pelo processo secundário, que se caracterizaria
pela retenção de uma parte da quantidade nos neurônios. A inibição do processo
primário, como dissemos, seria uma conseqüência da primeira regra biológica – a defesa
primária. Como no ressurgimento da fome, após a vivência primária de satisfação, a
ocupação muito intensa da representação desejada e das imagens motoras a ela
associadas provocaria uma intensificação do desprazer, a defesa primária faria com que
o eu, primeiro, não mais ocupasse as representações de movimento constituídas na
vivência de satisfação e, depois, faria com que ele não mais ocupasse a representação de
desejo tão intensamente.
46
Assim, os sinais de qualidade não seriam mais fornecidos na
ausência do objeto na realidade e, então, quando surgissem, eles atuariam como um
sinal de que o objeto desejado está presente e de que os movimentos necessários para a
obtenção da satisfação podem ser executados; o desamparo, com isso, seria superado.
Desse modo, o condicionamento do eu pela primeira regra biológica conduziria à
inibição do processo primário, marcando, assim, a passagem do processo primário para
o secundário, a qual coincidiria com a substituição da tendência à inércia pela tendência
à constância.
47
Esta inibição faria com que uma certa quantidade fosse retida no núcleo
45
Os signos de qualidade é que possibilitariam a consciência de uma representação, como
veremos adiante.
46
Como conseqüência da primeira regra biológica, da defesa primária, se estabeleceria uma
segunda, a da atenção. Sendo condicionado pelo desprazer no caso em que as percepções não
foram levadas em consideração, o eu aprenderia a permanecer atento a elas; ele passaria a
manter uma ocupação constante dos signos de qualidade.
47
A idéia de Jackson continua presente na teoria freudiana: um nível de organização superior se
instala e passa a dominar o inferior. Contudo, no “Projeto...”, após o estabelecimento do
processo secundário, o primário só volta a se manifestar nas patologias e nos sonhos que
consistiriam em retrogressões funcionais , no sentido jacksoniano. No capítulo 7, como
50
– ou seja, a excitação livre seria ligada – assegurando, dessa forma, a manutenção da
reserva necessária para que o eu pudesse influenciar os processos associativos, de modo
a evitar a produção de desprazer e a propiciar a satisfação das necessidades vitais.
Haveria, como foi dito, um terceiro sistema de neurônios – o “sistema ω – que
estaria relacionado com a consciência. Mas, antes de comentarmos as características
desse sistema, é necessário esclarecer como a relação entre a consciência e os demais
processos psíquicos é pensada no “Projeto...”.
3.2) A relação entre o psíquico e a consciência no “Projeto...”
No “Projeto...”, pela primeira vez, a possibilidade de um psíquico inconsciente é
claramente aceita por Freud. Na passagem abaixo, ele afirma que os processos
psíquicos existem independentemente da consciência:
“Temos tratado os processos psíquicos como algo que possa
prescindir do conhecimento dado pela consciência, existindo
independentemente de tal consciência (...) Se não nos deixarmos
desconcertar por tal fato, segue-se desse pressuposto que a consciência
não proporciona nem conhecimento completo, nem seguro dos
processos neurônicos; cabe considerá-los em primeiro lugar e em toda
a extensão como inconscientes e cabe inferi-los como as outras coisas
naturais.”
48
O aparelho neuronal descreve processos que ocorrem no sistema nervoso e que
podem ser relacionados a regiões anatômicas do cérebro. No “Projeto...”, Freud expande
o conceito de psíquico em relação ao de consciência, atribuindo uma natureza
psicológica aos processos nervosos que, em 1891, eram considerados como sendo
apenas os concomitantes neurológicos dos fenômenos psíquicos.
Em vários momentos de sua obra, Freud justifica a suposição do psíquico
inconsciente e o que ele alega é, em suma, o seguinte: os sintomas neuróticos, assim
veremos, Freud sustenta que os processos primário e secundário coexistem mesmo no
funcionamento normal do aparelho.
48
PP, p.187; EP, p.400.
51
como o fenômeno da sugestão pós-hipnótica, os sonhos e outras manifestações
psíquicas, deixam claro que os fenômenos conscientes apresentam lacunas, pois são
determinados por uma série de processos inconscientes. Apenas levando-se em
consideração esses processos, é possível preencher as lacunas da consciência e alcançar
uma compreensão das manifestações conscientes. Uma psicologia que ignore o
inconsciente, argumenta Freud, não é capaz de explicar a maior parte dos fenômenos
psíquicos e, na verdade, não pode ser uma ciência, pois esta pressupõe que os eventos a
serem explicados sejam inseridos em uma série causal coerente. Os processos
inconscientes corresponderiam a maior parte do psíquico e, na verdade, ao essencial
deste; eles seriam o “psíquico genuíno”, como afirma Freud no “Esboço de
psicanálise”(1938). Portanto, se a restrição do psíquico ao consciente é mantida, ou a
psicologia não consegue explicar quase nada ou ela terá que dedicar grande parte de
suas investigações a eventos não psíquicos e, nesse caso, talvez não houvesse
justificativa para continuar sendo uma “psicologia”. Além disso, a identificação do
psíquico ao consciente não passaria de uma convenção, e não parece haver nada de
insensato em abandonar uma convenção, se ela se mostrou inadequada. Esses são alguns
dos argumentos usados por Freud para justificar a suposição do inconsciente, aos quais
ainda teremos que retornar.
Como dito anteriormente, os processos associativos que ocorrem no sistema ψ
seriam as próprias representações, e não mais apenas os concomitantes fisiológicos das
representações, como havia sido sustentado em “Sobre a concepção das afasias”, e tais
processos seriam totalmente independentes da consciência: esta poderia ou não se
acrescentar a uma parte das representações. Freud abandona, portanto, a doutrina da
concomitância de Jackson e passa a conceber o psíquico como abarcando, além dos
fenômenos conscientes, também os processos inconscientes. Ao comentar a relação da
sua teoria da consciência com as demais, Freud afirma:
“Segundo uma teoria mecanicista avançada, a consciência é só um
aditivo aos processos fisiológico-psíquicos, cuja supressão não
alteraria nada no curso psíquico. De acordo com uma outra doutrina, a
consciência é o lado subjetivo de toda ocorrência psíquica, logo,
inseparável do processo fisiológico mental. Entre ambas situa-se a
teoria aqui desenvolvida. Consciência é, aqui, o lado subjetivo de uma
parte dos processos físicos no sistema nervoso, isto é, dos processos
52
ω; e sua supressão não deixa inalterada a ocorrência psíquica, mas
inclui em si a supressão da contribuição de ω.”
49
Parte do funcionamento cortical, aquela correspondente aos sistemas ψ e ω,
seriam os processos psíquicos. Parte desses processos psíquicos, os do sistema ω,
poderia ser consciente. Na verdade, a consciência seria o “lado subjetivo” dos processos
de ω, segundo o que diz Freud, e não os próprios processos ω. Mas o que significa ser o
lado subjetivo de tais processos? Freud não é nada claro quanto a isso. Em uma
passagem do “Projeto...”, ele diz que não se pode explicar como os processos de ω
fazem surgir a consciência e que ele tentará apenas descrever os processos paralelos aos
fenômenos conscientes. Essa afirmação parece indicar que a consciência seria um
fenômeno que se daria em paralelo aos processos nervosos. Em uma passagem do
“Esboço de psicanálise” (1938[1940]), Freud parece continuar a supor um paralelismo
entre os processos inconscientes e os conscientes. Ele afirma:
“(...) esses processos conscientes não formam séries sem lacunas,
fechadas em si mesmas, de modo que não haveria outra alternativa a
não ser adotar a suposição de uns processos físicos ou somáticos
concomitantes do psíquico, aos quais parece necessário atribuir uma
perfeição maior do que às séries psíquicas, pois alguns deles têm
processos conscientes paralelos e outros não. Isso sugere, de uma
maneira natural, por o acento, na psicologia, sobre esses processos
somáticos, reconhecer neles o psíquico genuíno e buscar uma
apreciação diversa para os processos conscientes”.
50
Segundo o que Freud diz aí, os fenômenos conscientes seriam paralelos aos
processos nervosos que constituiriam o psíquico inconsciente. Freud usa também o
termo “concomitante”. Isso sugere que, para incorporar a noção de psíquico
inconsciente em sua teoria, Freud tenha tido que deslocar a relação de concomitância,
que, em 1891, ele supunha existir entre uma parte dos processos nervosos e o psíquico,
para entre os processos psíquicos inconscientes e os conscientes. Os processos nervosos,
que antes seriam os concomitantes fisiológicos do psíquico, são identificados ao
49
PP, p.190; EP, p. 403.
50
AE, vol.23, p.155.
53
psíquico inconsciente e a série paralela, que correspondia a todo o psíquico, é mantida,
mas passa a corresponder a apenas uma parte do psíquico, isto é, à sua parte consciente.
Portanto, o psíquico consistiria em processos nervosos, alguns dos quais teriam
fenômenos conscientes paralelos e outros não.
Hughlings Jackson, autor da doutrina da concomitância adotada por Freud em
1891, parece supor que a série psíquica seria substancialmente diferente da série
fisiológica, como comentamos. Ele parece sustentar, portanto, uma posição dualista. E
Freud, seria ele também um dualista? Os fenômenos conscientes paralelos aos processos
psíquicos inconscientes não seriam processos materiais? Em outras palavras, Freud teria
trazido o dualismo de substâncias para dentro do campo do psíquico? Parte do psíquico
seria material (o inconsciente) e parte seria imaterial (o consciente)? Esperaríamos em
vão um esclarecimento de Freud sobre isso. A passagem citada acima do “Esboço de
psicanálise” é a mais clara a respeito dessas questões, e ela não nos diz muita coisa.
Deixaremos para o capítulo final uma discussão mais minuciosa sobre essa questão.
Seja como for, a consciência corresponderia, então, a uma pequena parte do
psíquico. Freud propõe que os processos psíquicos inconscientes devam ser abordados
de uma perspectiva científico-naturalista. Como consistem em processos físicos
envolvendo neurônios e quantidades, o psíquico inconsciente estaria dentro do campo
da ciência natural. Já o psíquico consciente, pelo que parece, estaria excluído desse
campo:
“Até agora, de nenhum modo discutimos que toda teoria psicológica,
além das realizações decorrentes do lado científico-naturalista
, tem de
satisfazer ainda uma grande exigência. Ela nos deve explicar aquilo
que conhecemos da forma mais enigmática através da nossa
“consciência”.
51
Com a afirmação de que os fenômenos conscientes estão “além dos
desempenhos científico-naturalistas”, Freud parece considerar que tais fenômenos
devam ser abordados a partir de uma perspectiva diferente daquela da ciência natural, o
que teria como conseqüência a proposição de uma cisão, dentro do campo da psicologia,
entre uma psicologia do inconsciente – que seria uma ciência natural – e uma teoria da
51
PP, p.186; EP, p.400, grifado por mim.
54
consciência – que requereria uma outra espécie de abordagem, a qual não chega a ser
especificada. Freud parece, nesse momento, conceber a metapsicologia como uma
teoria especulativa sobre o modo de operação de uma parte dos processos que ocorrem
no sistema nervoso, os quais constituiriam o psíquico inconsciente; a metapsicologia
seria uma “neuropsicologia especulativa”, que sustentaria o programa de uma psicologia
como ciência matural. Como argumentam Pribram e Gill (1976), o “Projeto...” é,
sobretudo, um documento neuropsicológico. As hipóteses metapsicológicas do
“Projeto...” seriam explicações neuropsicológicas.
No “Esboço de psicanálise”, Freud retoma essas mesmas idéias sobre a relação
entre o psíquico, a consciência e os processos nervosos e diz que a suposição do
psíquico inconsciente permite tratar pelo menos parte da psicologia como uma ciência
natural:
“Enquanto a psicologia da consciência nunca saiu daquelas séries
lacunares, que evidentemente dependem de outra coisa, a concepção
segundo a qual o psíquico é em si inconsciente permite configurar a
psicologia como uma ciência natural entre as outras”.
52
Como é possível perceber a partir das passagens acima mencionadas, no “Esboço
de psicanálise” Freud parece manter inalteradas suas hipóteses do “Projeto...” quanto a
esse ponto: a identificação do psíquico inconsciente com processos nervosos; a hipótese
de que a consciência é algo que surge em paralelo aos processos psíquicos inconscientes
e a conseqüente cisão, no campo da psicologia, entre uma psicologia do inconsciente,
que seria uma ciência natural, e uma psicologia da consciência, que trataria seu objeto
de estudo a partir de uma outra perspectiva, que não chega a ser definida. Portanto, a
metapsicologia, concebida na origem do pensamento freudiano como uma
neuropsicologia especulativa, parece ser pensada da mesma forma no fim da teoria
freudiana. E o período que se intercala entre 1895 e 1938? Teria Freud mantido sempre
essas mesmas hipóteses? Permanece, portanto, a questão de se Freud manteve essas
concepções sobre a metapsicologia e a natureza do psíquico inconsciente ao longo de
sua obra – se, como sustentam Pribram e Gill (1976), a metapsicologia posterior ao
“Projeto...” só ostensivamente é psicológica, mas, de fato, neuropsicológica – ou se ele
52
AE, vol.23, p. 156.
55
as abandonou após o “Projeto...” e as retomou no fim de sua obra. Essa é uma das
questões a serem desenvolvidas ao longo deste trabalho.
PPP
No “Projeto...”, portanto, Freud abandona a doutrina da concomitância, tal como
esta havia sido proposta por Jackson, e expande o campo do psíquico para além da
consciência Os processos neuronais que Freud se empenha em descrever são o psíquico
inconsciente, e não mais apenas os seus concomitantes fisiológicos. Em “As
neuropsicoses de defesa”, ele havia apresentado sua dúvida: os processos determinantes
dos sintomas neuróticos seriam processos puramente físicos que influenciam o psíquico
ou deve-se atribuir a eles uma natureza psíquica? Uma primeira resposta é fornecida no
“Projeto...”: tais processos são processos físicos, mas nada impede que eles sejam
também considerados psíquicos; nada impede que a noção de psíquico seja expandida
para abarcá-los.
A introdução do conceito de psíquico inconsciente no “Projeto...” não é algo
implícito no texto, mas explícito, como indicam as passagens citadas anteriormente. No
entanto, algumas leituras desse texto dizem exatamente o oposto, como a de James
Strachey e de Solms. James Strachey, em seu apêndice ao artigo metapsicológico sobre
o inconsciente, afirma que no “Projeto...”, com sua tentativa de explicar todo o âmbito
dos processos psíquicos em termos de neurônios e quantidades, Freud evitou
inteiramente a necessidade de postular quaisquer processos psíquicos inconscientes. Ele
parece acreditar que Freud manteve a hipótese da concomitância entre os processos
nervosos e os psíquicos e que o “Projeto...” foi uma tentativa de explicar os processos
nervosos que estariam na base do psíquico. Solms (1998) possui uma opinião
semelhante. Ele argumenta que como, no “Projeto...”, Freud ainda não possuía a noção
de processos mentais inconscientes, ele acreditava que era necessário traduzir os
processos psíquicos – isto é, conscientes – em termos físicos, pois só o substrato físico
do psíquico apresentaria uma cadeia de processos causais ininterrupta, passível de ser
abordada de uma perspectiva científico-naturalista. Ao postular processos psíquicos
inconscientes, os processos psíquicos passaram a apresentar-se como uma cadeia causal
ininterrupta, permitindo a Freud abandonar suas especulações neurológicas. Para Solms,
Freud nunca teria abandonado a doutrina da concomitância de Jackson; ele apenas teria
acrescentado a hipótese de que os eventos psíquicos são em parte conscientes e em parte
56
inconscientes. No capítulo 7 de “A Interpretação dos sonhos”, diz Solms, Freud teria
passado a figurar:
“a seqüência causal de eventos como consistindo em duas cadeias
contínuas: uma seqüência ininterrupta de processos fisiológicos e uma
seqüência igualmente ininterrupta de eventos mentais
– alguns dos
quais eram inconscientes e outros não”. (Solms, 1998, p.7)
Isso lhe teria permitido alcançar sua ambição de conceber uma psicologia como
uma ciência natural. Se Freud manteve a doutrina da concomitância de Jackson, como a
psicologia poderia ser uma ciência natural uma vez que os processos psíquicos seriam
de natureza distinta dos físicos? De acordo com a visão de Jackson, a psicologia não
poderia ser uma ciência natural. Além de sustentar que Freud sempre manteve a
doutrina da concomitância assumida em 1891, num outro artigo, Solms e Saling (1986)
argumentam que o rompimento com o localizacionismo e a adoção da doutrina da
concomitância em “Sobre a concepção das afasias” foi o momento decisivo na história
da psicanálise, pois permitiu a Freud teorizar sobre os processos psíquicos
independentemente do seu substrato orgânico.
Sem dúvida, o rompimento com o localizacionismo foi um passo decisivo na
história da psicanálise, mas o que teve mais importância nesse rompimento não teria
sido a possibilidade de conceber o funcionamento dos processos nervosos como algo
passível de ser abordado a partir de outro referencial que não o anatômico? E não, como
sustenta Solms, a adoção da doutrina da concomitância, que teria permitido a Freud
pensar o psíquico como algo independente do seu substrato orgânico? Acreditamos que
sim. A concepção sobre a relação entre o funcionamento e a anatomia do sistema
nervoso que Freud adota a partir das conclusões extraídas da sua crítica ao
localizacionismo, como argumentaremos ao comentar o capítulo 7, parece ser fator o
decisivo para a constituição da metapsicologia freudiana, pois isso é o que vai permitir a
ele continuar desenvolvendo suas hipóteses metapsicológicas após o abandono do
referencial anatômico.
A hipótese de que Freud manteve a doutrina da concomitância de Jackson,
defendida por Strachey e por Solms, e de que no “Projeto...” ainda não está presente a
noção de psíquico inconsciente parece ir contra tudo o que Freud diz explicitamente,
começando pela sua intenção manifesta de “fornecer uma psicologia científico-
57
naturalista”. Se Freud tivesse mantido a idéia de que o psíquico é algo de natureza
distinta dos processos nervosos e que se dá inteiramente em paralelo a estes, o
“Projeto..” não poderia ser uma tentativa de formular uma psicologia, mas uma tentativa
de formular uma teoria sobre o substrato neurológico do psíquico. Parece ser nisso que
Strachey e Solms acreditam. No entanto, Freud deixa claro que se trata de uma
“psicologia” em termos quantitativos e não de uma teoria sobre o substrato orgânico do
psíquico. Quanto à ausência de processos inconscientes, Freud também diz textualmente
que os processos do sistema ψ são processos psíquicos e que o psíquico é algo que
existe independentemente da consciência, não havendo como sustentar a posição de
Strachey, Solms e Saling.
3.3) O sistema ω
Freud tenta, no “Projeto...”, estabelecer as características dos processos nervosos
que teriam como “lado subjetivo” a consciência. Para incluir a consciência na teoria
sobre o aparelho, ele introduz um terceiro sistema de neurônios – o sistema ω.
Freud argumenta que é necessário introduzir um terceiro sistema de neurônios
para explicar a produção das sensações ou das qualidades conscientes, porque tais
sensações não poderiam se originar em ψ, uma vez que este sistema é responsável pela
rememoração, e esta transcorre sem qualidade; elas também não poderiam se originar
em φ, porque sabe-se que a consciência está relacionada com os níveis mais elevados do
sistema nervoso, e não poderiam originar-se no mundo externo, pois neste haveria
apenas massas em movimento. Então, é necessário postular um terceiro grupo de
neurônios – os quais constituiriam o sistema ω –, cujos estados de excitação seriam
responsáveis pela consciência, conclui Freud. Este sistema estaria conectado apenas a
ψ; portanto, a ordem dos sistemas seria: φψω.
Uma vez que as quantidades em ψ seriam pouco intensas – de modo que apenas a
ocupação simultânea de mais de um neurônio fosse capaz de facilitar as barreiras de
contato, ou seja, de modo que tal sistema permanecesse parcialmente impermeável – e
que ω poderia ser ocupado apenas a partir de ψ, a permeabilidade que caracteriza a
consciência, isto é, o fato de que a consciência deve, como a percepção, apresentar
sempre as mesmas capacidades receptivas, o que tem como condição a ausência de
traços permanentes, essa permeabilidade, enfim, deveria resultar de algo diverso da
58
intensidade da quantidade, pois esta seria ainda menos intensa do que aquela que
alcança ψ e, deste modo, incapaz de facilitar completamente as barreiras de contato.
Isso leva Freud a introduzir um novo elemento na teoria:
Vejo somente uma saída que implica rever a suposição fundamental
sobre o curso de Q’n. Até agora, só o considerei como transferência de
Q’n de um neurônio para outro. Mas o curso tem de ter ainda uma
característica de natureza temporal; pois, também para os outros
movimentos de massa do mundo externo, a mecânica dos físicos
considerou a característica temporal. Eu a chamo resumidamente o
período
. Logo, suporei que toda resistência das barreiras de contato só
valeria para transferência de Q; o período do movimento neuronal
propagar-se-ia sem inibição em todas as direções, semelhante a um
processo de indução.”
53
Então, os neurônios ω seriam permeáveis ao período; disso resultaria a
permeabilidade que caracteriza a consciência. Tais neurônios seriam sensíveis ao
período da excitação, e este estado de afecção pelo período, a partir de um mínimo de
preenchimento por quantidade, seria o fundamento da consciência. Esta, no entanto, não
resultaria apenas da sensibilidade de ω ao período, mas das diferenças no período, as
quais seriam decorrentes do fato dos órgãos sensoriais agirem como filtros, dando
passagem apenas a estímulos com períodos específicos. Sendo assim, o único motivo
que justifica o fato da consciência só surgir a partir da atividade de ω é que nesse
sistema o nível de quantidade estaria muito reduzido. Uma vez que todos os neurônios
seriam, por hipótese, estruturalmente idênticos e que o período e suas diferenças antes
de chegar a ω passariam por φ e por ψ, a única coisa que haveria de diferente em ω e
que justificaria o fato de só aí surgir a consciência é o nível muito baixo da quantidade
nesse sistema.
Apenas os surgimento das qualidades sensoriais dependeria do período; as
sensações de prazer e desprazer – que junto com as qualidades sensoriais formariam a
classe das sensações conscientes – resultariam diretamente da ocupação de ω por
quantidade. Segundo Freud, prazer e desprazer seriam conseqüências, respectivamente,
da diminuição e do aumento do nível de quantidade em ω. Haveria um limiar acima do
59
qual a ocupação de ω produziria desprazer e um limiar abaixo do qual ela produziria
prazer. Entre esses dois limiares, ω permaneceria sensível ao período:
“(...) os neurônios ω, no caso de uma certa ocupação [forte], revelam
um ótimo para receber o período
do movimento neuronal; que no caso
de ocupação mais forte resultam em desprazer; no caso de mais fraca,
prazer, até que a capacidade receptiva desapareça com a falta de
ocupação.”
54
Freud diferencia entre a produção de qualidades sensoriais e a percepção
consciente das mesmas. Para que elas fossem percebidas pelo sujeito, não bastaria o seu
surgimento, pois só quando a “atenção” do eu ocupasse os “signos de qualidade”
fornecidos por ω à ψ, uma representação seria percebida conscientemente. Essa
hipótese dos signos de qualidade é uma das mais obscuras do “Projeto...”; Freud a
introduz para explicar como seria possível a discriminação entre uma percepção e uma
rememoração. Inicialmente, ele afirma que as representações constituídas em ψ a partir
de φ despertariam signos de qualidade e que esses signos permitiriam a diferenciação
entre uma representação ocupada por quantidade de origem endógena – uma
rememoração – e uma representação ocupada por quantidade exógena – uma percepção.
Mas, logo após introduzir esta hipótese, ele conclui que os signos de qualidade, em vez
de explicarem essa discriminação, explicam a confusão entre essas duas coisas. A
confusão entre percepção e rememoração – isto é, a alucinação – resultaria do fato de
que, não só no caso de ocupações oriundas de φ, mas também de ocupações muito
intensas oriundas de ψ, ω forneceria signos de qualidade.
55
Freud, então, reconhece que
é necessário atribuir a distinção acima a um outro fator, o que o leva a formular a
hipótese de que é o condicionamento do eu pela regra biológica da defesa, como
comentamos anteriormente, que permite a discriminação em questão.
Mas o que seriam, afinal, os signos de qualidade? Seriam notícias de eliminação
da excitação de ω, diz Freud:
53
PP, p.188, EP, p.402.
54
PP, p.191; EP, p.405.
55
A alucinação resultaria de uma ocupação retroativa muito intensa de φ a partir de ψ. A
intensidade da ocupação de φ levaria ω a fornecer signos de qualidade e, então, as
representações seriam tomadas como percepções reais.
60
“(...)uma percepção, segundo meus pressupostos, sempre excita ω,
portanto, dá signos de qualidade. Dito de forma mais precisa, ela
excita em ω consciência (consciência de uma qualidade), e a
eliminação da excitação ω, [como] toda eliminação, fornece uma
notícia para ψ que é justamente o signo de qualidade.“
56
Em que consistiria a eliminação de ω? Na descarga de quantidades por meio de
movimentos:
“Se a consciência for apresentada por neurônios ω, seguem-se várias
ilações. Estes neurônios têm de ter uma eliminação, tão pequena
quanto for possível, e tem de existir um caminho para preencher os
neurônios ω com Q’n no montante mínimo indispensável. A
eliminação vai, como toda outra, para o lado da motilidade, e cabe
observar neste ponto que, através da circulação motora, evidentemente
se perde todo o caráter qualitativo, toda a especificidade do período.”
57
Então, se os signos de qualidade são notícias de eliminação da excitação ω
formadas em ψ, eles só poderiam ser representações de movimento e tais representações
não se diferenciariam em nada das demais representações de movimento que se
constituem em ψ. Mas, se os signos de qualidade são notícias de movimento e se na via
motora, como afirma Freud, a qualidade desaparece, o signo de qualidade seria sem
qualidade. Então, a eliminação de ω, que produz o signo de qualidade, teria que ser
outra coisa. No entanto, Freud não dá nenhuma pista sobre o quê.
A percepção consciente dependeria dos signos de qualidade e estes seriam
fornecidos por ω a ψ, mas, sendo assim, a consciência seria paralela a uma parte dos
processos ψ e não a uma parte dos processos ω. Se a hipótese de Freud fosse que ω
produz tais signos e que deles depende a consciência, não haveria problema, mas, como
ω os fornece à ψ, a consciência teria que ser paralela aos processos deste sistema. Dessa
forma, a função de ω seria somente produzir os signos de qualidade. Na verdade, a
56
PP, p. 235; EP, p. 451.
61
suposição do sistema ω começa a parecer ser supérflua. A única característica de ω que
não está presente nos outros sistemas é a redução do nível de quantidade. No entanto,
bastaria supor que a base material da consciência seria uma parte dos processos de ψ
onde a quantidade estivesse bastante reduzida. Essa hipótese é adotada por Freud em
uma carta a Fliess de 1896 (carta 39). Ele formula aí a hipótese de que ω seria um setor
de ψ, onde a intensidade do processo excitatório atingiria um mínimo.
58
Então, ou os
neurônios do sistema ω possuem alguma propriedade peculiar que possibilitaria a
produção de qualidades sensoriais e que justificaria a suposição de um sistema
específico para a consciência – nesse caso, no entanto, a hipótese da identidade
estrutural entre os neurônios teria que ser deixada de lado –, ou a suposição de tal
sistema permanece sem justificação. De qualquer forma, a hipótese de que a consciência
depende de signos de qualidades e de que estes seriam fornecidos de ω para ψ parece
contradizer a afirmação de Freud segundo a qual a consciência seria paralela aos
processos ω.
Freud reconhece a problematicidade dessas idéias formuladas para explicar a base
material da consciência e argumenta que isso não representa um impedimento para a
continuação da teoria:
“Apenas mediante essas suposições complicadas e pouco intuitivas
foi-me possível, até agora, incluir os fenômenos da consciência na
arquitetura da psicologia quantitativa. Não se pode evidentemente
tentar dar uma explicação sobre como processos excitatórios nos
neurônios ω trazem consigo consciência. Trata-se só de fazer
corresponder as propriedades conhecidas por nós sobre a consciência
com os processos de alteração paralela no neurônios ω. Por outro lado,
no pormenor, isto não está mal.”
59
A atividade consciente, embora restrita em relação à amplitude total do
psiquismo, exerceria um papel essencial na vida psíquica: “sua supressão não deixa
inalterada a ocorrência psíquica, mas inclui em si a supressão da contribuição de
ω
”,
57
PP, p. 190; EP, p.404.
58
AE, vol.1, p.437.
59
PP, p.189; EP, p. 403.
62
diz Freud
60
. As sensações conscientes é que tornariam possível tanto o acesso aos
objetos necessários para a satisfação das necessidades vitais como a fuga dos objetos
hostis. Tais sensações regulariam os processos psíquicos, de modo a possibilitar a
sobrevivência do indivíduo. Por isso, a consciência seria imprescindível para a
sobrevivência do sujeito.
Até aqui comentamos apenas o modo como Freud concebe os processos
neuronais relacionados à consciência perceptiva, mas haveria ainda uma segunda forma
de consciência intermediada pela linguagem, que consideraremos a seguir.
PPP
Freud atribui a possibilidade de rememoração de uma representação à associação
desta com representações-palavra. Ele argumenta que, uma vez que a consciência
depende do despertar de signos de qualidade e que estes últimos provém de percepções,
para que uma representação ocupada pelo eu (e não a partir de φ) se tornasse consciente
seria necessário que, de alguma forma, ela produzisse uma percepção. Ele, então,
conclui que um dos componentes da “representação-palavra” – a imagem cinestésica –
é que possibilitaria isto. Como os movimentos produzem percepções, a ocupação da
imagem cinestésica da palavra levaria à produção de um signo de qualidade e, assim, a
“representação-objeto” a ela associada poderia se tornar consciente.
Freud retoma, no “Projeto...”, os conceitos de “representação-palavra” e de
“representação-objeto” que haviam sido propostos em “Sobre a concepção das afasias”.
Como vimos, a representação-palavra, de acordo com o que Freud propusera neste
último texto, seria um complexo constituído por um intrincado processo de associações,
no qual estariam presentes quatro elementos: a imagem acústica, a imagem cinestésica
da fala, a imagem visual e a imagem cinestésica da escrita. A representação-objeto seria
também um complexo associativo constituído por diversos tipos de imagens sensoriais.
A ligação entre esses dois tipos de representações se daria sempre entre a imagem
acústica da representação-palavra e, normalmente, a imagem visual da representação-
objeto.
No “Projeto...”, ao se questionar sobre a possibilidade de uma representação
ocupada pelo eu se tornar consciente, Freud retoma esses conceitos. Ele formula a
60
PP, p.190; EP. P.404.
63
hipótese de que, quando a ocupação de uma representação-objeto seguisse para a
imagem acústica da palavra e, desta, para sua imagem cinestésica, seria produzida uma
percepção, a qual levaria ao despertar de um signo de qualidade e, então, a
representação-objeto poderia tornar-se consciente:
“(...) se as imagens de recordação forem tais que uma corrente parcial
possa ir de uma delas para as imagens acústicas e para as imagens
motoras da palavra, então a ocupação das imagens de recordação é
acompanhada de notícias de eliminação, que são os signos de
qualidade, e que, em conseqüência, também são signos de
cons[ciência] da re[cordação]”.
61
Dessa forma, com a constituição das representações-palavra, os processos que
ocorressem em ψ como resultado da ação do eu, e não apenas aqueles incitados por
estimulação exógena, poderiam alcançar a consciência, surgindo, assim, a possibilidade
de rememoração. Portanto, enquanto houvesse apenas representações-objeto em ψ, além
das percepções atuais, os processos que aí ocorressem seriam inconscientes, com
exceção dos que consistissem em eliminações motoras e em alucinação. Nessas últimas,
a consciência seria imediata, ou seja, decorreria única e diretamente das propriedades
das percepções. Com a linguagem, surgiria uma segunda forma de consciência, uma
consciência mediata, isto é, intermediada pelos signos lingüísticos.
62
Sendo assim, antes
da constituição das associações lingüísticas, só seria possível pensamento consciente se
este consistisse em uma ação. De fato, Freud afirma que o pensamento consciente
63
inicialmente consiste na ocupação de imagens de movimento e, embora ele não explicite
como, a partir de um certo momento, o pensamento consciente e a ação poderiam
diferenciar-se, é possível inferir que o que tornaria isto possível seria a constituição das
associações da linguagem, as quais permitiriam que as ações fossem rememoradas e,
conseqüentemente, que não fosse mais preciso agir para pensar.
61
PP, p. 239; EP, p.456.
62
Na carta 52, fala de uma “consciência secundária”, para se referir a esse tipo de consciência.
63
Após a inibição do processo primário, ou seja, quando o desejo não fosse mais realizado pela
via alucinatória, surgiria o pensamento. Este consistiria nos processos associativos que ocorrem
entre o surgimento do desejo e a sua realização. Tais processos se caracterizariam por uma luta
entre as facilitações consolidadas e as ocupações mutáveis, em oposição à seqüência associativa
primária. Originariamente, o pensamento teria como meta a obtenção da identidade entre a
64
Dizer que a consciência perceptiva é imediata, no entanto, significa apenas que ela
não depende da intervenção de nenhum fator externo à percepção e não que as
percepções sejam efeitos diretos das propriedades dos objetos externos. As hipóteses
formuladas por Freud em “ Sobre a concepção das afasias” deixam claro que toda
representação consiste em uma construção do sistema nervoso, a partir do material
sensorial proveniente do mundo externo.
3.4) Representação e consciência no “Projeto...”
Como vimos, para que as representações pudessem ser rememoradas, seria
necessário que elas estivessem associadas a uma representação-palavra; então, antes da
constituição das associações lingüísticas, as representações-objeto seriam inconscientes.
Em sua origem – isto é, na ocasião da sua percepção –, elas poderiam ou não ter sido
conscientes. No entanto, logo em seguida, elas se tornariam inconscientes e sem acesso
a consciência até que se associassem a palavras. Portanto, a inconsciência poderia ser o
estado originário ao menos de algumas representações. A partir das hipóteses
desenvolvidas por Freud, há elementos para pensarmos que, com a constituição das
associações lingüísticas, parte das representações poderia tornar-se consciente, mas
provavelmente algumas delas não seriam associadas a palavras, de modo que um grupo
de representações permaneceria “insuscetível de consciência”, para utilizar o termo de
Breuer (1895), que será retomado no capítulo 7 por Freud. Outras representações
poderiam também permanecer nesse estado, mesmo que chegassem a ter sido associadas
a representações-palavra, devido ao bloqueio posterior dessa associação.
Portanto, podemos inferir daí a possibilidade de três tipos de representações
inconscientes: aquelas associadas a representações-palavra, mas cujos signos de
qualidade não fossem ocupados pelo eu ou não fossem despertados; aquelas que nunca
foram associadas a representações-palavra; e aquelas cuja associação com a palavra
estivesse impedida. No primeiro caso, embora inconscientes, as representações seriam
“suscetíveis de consciência”. No segundo e no terceiro casos, elas seriam “insuscetíveis
de consciência”. O último, como Freud esclarece no artigo metapsicológico sobre o
inconsciente (1915), seria o caso das representações reprimidas, responsáveis, entre
representação mnêmica correspondente ao objeto de desejo e a percepção seguida de eliminação
motora; ele constituiria, portanto, um caminho para a realização de desejo.
65
outras coisas, pela produção das neuroses. A representação inconsciente que estaria na
origem dos sintomas neuróticos seria uma representação-objeto cuja associação com a
representação-palavra tivesse sido bloqueada, para impedir sua rememoração e a
conseqüente produção de desprazer dela resultante. Haveria, assim, um grupo de
representações que permaneceria insuscetível de consciência, devido ao fato de nunca
ter sido associado a representações-palavra, e um outro grupo cujo acesso à palavra
existiu um dia, mas encontra-se atualmente impedido.
Então, segundo a teoria do “Projeto...”, o campo da consciência seria restrito em
relação ao da memória e apenas uma parte das representações – aquelas que
despertassem signos de qualidade e que tivessem esses signos ocupados pelo eu – se
tornariam conscientes. A representação é concebida aí como um fato de memória
totalmente independente da consciência, e esta é concebida como algo que pode ou não
se acrescentar a uma parte das representações desde que cumpridas certas condições.
Antes da constituição das associações lingüísticas, não haveria possibilidade de
rememoração, a não ser de representações de movimento; portanto, até então, a
consciência decorreria diretamente das propriedades da percepção. A constituição das
representações-palavra traria consigo a possibilidade de uma segunda forma de
consciência, intermediada pelos signos lingüísticos. Como uma parte das
representações-objeto possivelmente não chegaria a ser associada a representações-
palavra, poderia haver representações que permanecessem sempre “insuscetíveis de
consciência”.
A distinção entre as representações suscetíveis e as insuscetíveis de consciência
se limitaria ao fato das primeiras serem representações-objeto associadas a palavras e
das últimas serem representações-objeto sem essa associação. Tanto as representações
suscetíveis quanto as insuscetíveis de consciência seriam, no funcionamento psíquico
normal, governadas pelo processo secundário. Portanto, elas não possuiriam
propriedades distintas; apenas a presença ou ausência denculo com palavras as
distinguiria. No “Projeto..”, está presente a hipótese de um inconsciente dinâmico, de
processos inconscientes e ativos; não há ainda a hipótese do inconsciente como um
sistema, a qual irá aparecer na carta 52 (1896) e em “A Interpretação dos
sonhos”(1900). A introdução da distinção tópica entre os sistemas inconsciente e pré-
consciente, como veremos, resulta da concluo de que ambos os tipos de inconsciente,
o suscetível e o insuscetível de consciência, possuem propriedades diferentes;
66
correspondem a dois tipos de processos distintos, o que justificaria a delimitação de dois
sistemas para representar essa diferença.
Considerações finais
Em suma, em “Sobre a concepção das afasias”, há uma ampla reflexão sobre o
conceito de representação, mas a identificação entre o psíquico e o consciente é
mantida. Nos textos sobre as neuroses do período de 1891 a 1895, embora Freud fale de
representações inconscientes e subconscientes, ele não deixa claro em que tais
representações consistiriam; a existência de um psíquico inconsciente não é ainda
claramente aceita. É no “Projeto de uma psicologia”, que a idéia de um psíquico
inconsciente e representacional é pela primeira vez explicitada. A estratégia usada, em
tal texto, para desvincular as noções de psíquico e de consciência – isto é, para expandir
a primeira em relação à segunda – foi atribuir uma natureza psicológica a uma parte dos
processos nervosos, aqueles que em 1891 eram concebidos como sendo apenas os
concomitantes físicos dos eventos psíquicos e, ao que tudo indica, deslocar o
paralelismo – que, de acordo com a doutrina da concomitância sustentada no texto sobre
as afasias, definia a relação entre os processos nervosos e os psíquicos – para entre o
psíquico inconsciente e o consciente. Com isso, do ponto de vista epistemológico,
parece ser estabelecida uma cisão no campo da psicologia entre uma psicologia do
inconsciente, cujo objeto de estudo seriam os processos nervosos que constituiriam o
psíquico inconsciente e, portanto, poderia ser uma ciência natural, e uma psicologia da
consciência, que estaria exclda do campo de uma abordagem naturalista, mas cuja
abordagem Freud não parece ser capaz de especificar.
Quais são os desenvolvimentos subsequentes do conceito de psíquico
inconsciente? Como a relação entre a representação e a consciência é pensada no
restante da metapsicologia freudiana? Suas hipóteses a respeito da natureza do
inconsciente e sobre o que seria a metapsicologia são mantidas no período que se
intercala entre a redação do “Projeto...” e a do “Esboço de Psicanálise”? Ou o neurólogo
Freud foi substituído pelo psicólogo Freud, como afirma Strachey(1998b)? Essas são as
questões que irão guiar o restante desse trabalho.
67
CAPÍTULO II – INCONSCIENTE E REPRESENTAÇÃO NA PRIMEIRA
TEORIA DO APARELHO PSÍQUICO
No texto “Nota sobre o conceito de inconsciente na psicanálise” de 1912, Freud
distigue os três sentidos que a psicanálise atribui ao termo inconsciente : o descritivo, o
dinâmico e o sistemático. O termo inconsciente é usado em sentido descritivo para
designar um fato psíquico que, embora não esteja presente na consciência, não esteja
sendo percebido conscientemente, continue presente na vida psíquica. Esse é o sentido
mais geral que é atribuído à palavra inconsciente, e ele pode ser usado desde que se
parta da suposição de que, na ausência da consciência, as representações podem
continuar existindo enquanto fatos psíquicos.
Mas, além da possibilidade de continuarem existindo, mesmo que latentes na
consciência, as manifestações neuróticas, assim como o fenômeno da sugestão pós-
hipnótica, evidenciaram que as representações inconscientes continuam com
capacidade de ação na vida psíquica, sendo capazes, inclusive, de influenciarem a
atividade consciente. Há um psíquico inconsciente e “efetivo”. Com isso, passa-se de
uma concepção descritiva de inconsciente para uma “dinâmica”. Em sentido dinâmico,
o termo inconsciente designa pensamentos, representações que, apesar de sua
intensidade e de sua ação eficiente, permanecem afastados da consciência, permanecem
insuscetíveis de se tornarem conscientes. Vimos que é no “Projeto...” que, pela primeira
vez, Freud admite a existência de um psiquismo inconsciente. Nesse texto, surge a
noção de um inconsciente dinâmico e surge também a possibilidade do uso em sentido
descritivo da palavra inconsciente.
Mas há ainda o terceiro – e, segundo Freud, o mais importante – sentido
atribuído ao termo inconsciente pela psicanálise: o sistemático. A análise dos sonhos
mostrou que esse psíquico inconsciente e insuscetível de se tornar consciente é
governado por leis diferentes e, portanto, possui propriedades diferentes daquelas do
psíquico suscetível de se tornar consciente; trata-se de uma categoria psíquica à parte.
Essa constatação, diz Freud, foi o que o levou a introduzir na teoria a hipótese de um
sistema inconsciente, a qual visa estabelecer as características peculiares aos processos
psíquicos insuscetíveis de se tornarem conscientes, de tal forma que eles passem a
constituir um grupo psíquico à parte. A idéia de um sistema inconsciente aparece pela
primeira vez na carta 52, mas é apenas no capítulo 7 de “A interpretação dos sonhos”
que podemos vislumbrar o seu verdadeiro significado e o modo como a teoria do
68
aparelho psíquico permite fazer avançar a reflexão freudiana sobre a natureza do mental
e de sua relação com a consciência.
1. O esquema da carta 52
Na carta à Fliess de 6 de dezembro de 1896, conhecida como carta 52, Freud faz
algumas conjeturas sobre a organização e a gênese do aparelho psíquico que, como
apontou Laplanche (1981), podem ser consideradas como fazendo uma ponte entre o
aparelho neuronal do “Projeto...” e o aparelho psíquico proposto no capítulo 7 de “A
interpretação dos sonhos”. Freud retoma aí algumas das hipótese do “Projeto...” e
introduz modificações que antecipam a tópica apresentada no capítulo 7.
O seguinte esquema é esboçado para ilustrar a organização dos processos
psíquicos:
I II III
P - Ps - Ic - Prc - Coc
x x x x x x x x x x
x x x x x x x
Freud propõe que o mecanismo psíquico se forma por um processo de
estratificação sucessiva, isto é, que os traços mnêmicos são sujeitos a reordenações, de
acordo com novos nexos, de tempos em tempos. Essas “retranscrições” dariam origem
a diferenciações no sistema de memória, as quais representariam a operação psíquica de
épocas sucessivas da vida. Na passagem de uma época para outra, ocorreria uma
“tradução” do material mnêmico. Essa hipótese da retranscrição dos traços mnêmicos,
diz Freud, é o que haveria de novo em sua teoria:
“O essencialmente novo em minha teoria é, então, a tese de que a
memória não persiste de maneira simples, mas múltipla, está
registrada em diversas variedades de signos. Em outro momento
(afasias) afirmei um reordenamento semelhante para as vias que
alcançam desde a periferia [do corpo o córtex cerebral].”
1
69
Em “Sobre a concepção das afasias”, como vimos, Freud havia sustentado,
provavelmente baseando-se nas hipóteses de Hughlings Jackson, que a informação
sensorial que alcança a medula é sucessivamente reordenada, de acordo com princípios
funcionais do sistema nervoso, ao longo de seu percurso em direção ao córtex. Ele
propõe agora a ocorrência de um processo semelhante no nível cortical, isto é, na
constituição dos traços mnêmicos. No entanto, esse processo de reorganização se daria
ao longo do desenvolvimento do sujeito, o que nos remete também à idéia de “sobre-
associação” proposta em 1891, como discutiremos adiante. Tendo em vista o
“Projeto...”, pode-se dizer que Freud acrescenta diferenciações no interior do manto de
ψ, as quais conteriam diversos reordenamentos dos mesmos traços mnêmicos e seriam
governadas por princípios associativos distintos. Como essas várias transcrições seriam
aquisições psíquicas de fases sucessivas da vida, o sistema de memória iria se
complexificando, ao longo do desenvolvimento do sujeito, à medida que os traços
mnêmicos fossem sendo retranscritos. Segundo Freud, haveria no mínimo três tipos de
transcrições no sistema de memória, as quais são representados no esquema como “Ps”
(signos de percepção), “Ic”(inconsciência) e “Prc”(pré-consciência).
A hipótese dos neurônios como elementos componentes do sistema de memória é
mantida na carta 52
2
, o que sugere que a memória é concebida aí de forma semelhante
ao “Projeto...”. Como, de acordo com o que havia sido proposto nesse último texto, as
associações – tanto entre os neurônios que constituem a representação como entre as
representações – corresponderiam a facilitações nas barreiras de contato entre os
neurônios, pode-se supor que as diferentes transcrições de que Freud fala na carta 52 se
constituam a partir do estabelecimento de novas facilitações entre as representações.
Essa hipótese nos remete à noção de “sobre-associação” de “Sobre a concepção das
afasias”. Nesse texto, Freud havia proposto que a aquisição da linguagem consistiria
num processo de sobre-associação, isto é, que as novas associações se sobreporiam às
anteriores e, assim, se constituiriam vários níveis de processos associativos, que
representariam etapas sucessivas do desenvolvimento do sujeito. Essa hipótese, como
vimos, é proposta em substituição à idéia de que a aprendizagem da linguagem se daria
por um processo de expansão topográfica, de forma que cada correlato de representação
1
AE, vol. 1, p.274; AAP, p.151.
2
Freud afirma que as diversas transcrições estão separadas também segundo seus portadores
“neuronais”. Adiante, ele diz que P são “neurônios” nos quais se produzem as percepções (AE,
vol. 1,p.274-75).
70
possuiria uma localização distinta. Embora não seja retomada explicitamente no
“Projeto...”, não há nenhum motivo para se supor que Freud tenha abandonado aí a
hipótese da sobre-associação, uma vez que ele continua pensando a representação como
um processo com as mesmas características propostas em 1891. De qualquer forma, fica
claro que essa noção ganha destaque na carta 52 e é complementada pela suposição de
que, nos diferentes níveis, os princípios que regem os processos associativos são
alterados.
No sistema ψ do “Projeto...”, toda facilitação seria determinada pela
simultaneidade da incidência da quantidade nos neurônios e, portanto, a constituição das
representações, assim como a associação entre representações, se daria de acordo com
relações de simultaneidade. Na carta 52, Freud sustenta que há associações que ocorrem
de acordo com outros tipos de relações, como a causalidade
3
, e que a simultaneidade é o
princípio ativo apenas no primeiro sistema de memória. O nível mais elevado de
organização das representações – o Prcc – seria aquele em que as associações
lingüísticas estariam presentes. Nesse nível, o pensamento poderia se tornar consciente,
a partir da “ativação alucinatória” das associações lingüísticas. Freud mantém a idéia de
que são as associações constituintes da palavra que possibilitam a consciência do
pensamento, a qual é chamada de “consciência secundária”.
Essa idéia de que o que constitui as retranscrições são novas facilitações entre os
neurônios parece estar de acordo com a suposição feita por Freud de que, com as novas
transcrições, as anteriores persistem e apenas os seu processo excitatório é inibido. Diz
ele: “Cada reescritura posterior inibe a anterior e desvia dela o processo excitatório.”
4
Sendo assim, com os novos registros, a excitação passaria a percorrer o caminho
aberto pelas novas facilitações, de modo que o processo representacional ativo seria
aquele que segue as vias estabelecidas por último, mas as facilitações anteriores
permaneceriam capazes de ser reativadas a qualquer momento. Dessa forma, os
processos anteriores sempre permaneceriam enquanto possibilidades.
Esse processo de retranscrição ou de tradução dos traços mnêmicos poderia não
ocorrer em relação a uma parte do material representacional, com a finalidade de evitar
o desprazer que seria gerado por tal tradução. Isso é o que Freud chama de “repressão”.
As representações reprimidas seriam aquelas que não foram traduzidas – e, portanto,
3
Freud afirma que a causalidade talvez seja o princípio associativo o sistema Ic.
4
AE, vol.1, p.276; AAP, p.152.
71
ficaram de fora das transcrições posteriores, ou seja, ficaram excluídas dos processos
associativos dominantes – devido ao desprazer que seria produzido.
5
Nesse caso, diz
Freud, “a excitação é tramitada de acordo com as leis psicológicas vigentes no período
psíquico precedente e pelos caminhos de que então dispunha”.
6
Essa afirmação de
que, no caso da representação não traduzida, a excitação continua percorrendo as vias
anteriormente estabelecidas, parece apoiar a hipótese de que Freud não abandonou as
idéias de facilitação e barreira de contato do “Projeto...”. Se isso for correto, poderíamos
pensar que, na repressão, como não se constituem novas vias associativas, novas
facilitações, a excitação ficaria limitada à tramitar pelas vias anteriormente
estabelecidas. Como conseqüência dessa falta de tradução, as representações não
chegariam a ter acesso às representações-palavra, permanecendo insuscetíveis de se
tornarem conscientes pela via normal do pensamento. A repressão, segundo Freud, seria
uma “defesa patológica”, e a “defesa normal” seria aquela que ocorreria dentro de um
mesmo sistema de transcrições, a partir da inibição do desprazer gerado pela
representação.
PPP
Que modificações em relação ao “Projeto...” surgem no esquema da carta 52?
No “Projeto...”, aparece a noção de psíquico inconsciente com a independência
atribuída à representação em relação à consciência. Mas, nesse texto, a inconsciência
designa um estado da representação e não o pertencimento a um grupo psíquico com
características próprias: pode-se dizer de uma representação que ela “é” ou “está”
inconsciente, podendo ou não vir a se tornar consciente, mas não que ela “está no”
inconsciente. Agora, na carta 52, Freud começa a propor a idéia de inconsciente no
sentido sistemático – isto é, como um sistema de representações diferenciado, regido
por um princípio associativo específico –, idéia esta que é complementada no capítulo 7.
No entanto, não é possível identificar o sistema inconsciente com o psíquico
inconsciente nem com o psíquico insuscetível de consciência, pois as representações
que compõem tal sistema constituiriam apenas uma parte deste último, uma vez que as
5
A idéia de que o funcionamento psíquico é governado pela tendência a evitar o aumento do nível de
excitação no aparelho, ou a evitar o desprazer, é mantida. Em uma passagem, Freud afirma:
“Estabelecemos como base firme a tendência à nivelação quantitativa”. (AE, vol.1, p.276)
6
AE, vol. 1, p. 276; AAP, p.152.
72
representações do Ps (sistema dos signos de percepção), assim como as do Icc,
tampouco poderiam se tornar conscientes pela via normal do pensamento. Esta última
potencialidade estaria presente apenas nas representações do sistema Prc, devido ao
vínculo destas com as palavras. Então, com o desdobramento do sistema de memória
proposto por Freud, a diferenciação, já presente no “Projeto...”, entre inconsciente
suscetível e insuscetível de consciência recebe uma representação tópica. O Icc e os
sistemas que o precedem representariam este último e o Prcc representaria o primeiro.
Além disso, Freud acrescenta a hipótese de que diferentes princípios associativos
dirigem os processos representacionais e que, portanto, a diferença entre as
representações suscetíveis e as insuscetíveis de consciência não se limita a presença ou
ausência de vínculo com palavras.
Uma outra modificação com relação ao “Projeto...” é que a relação entre o
psíquico e o somático não é mencionada nem incluída no esquema. Não há nada neste
que possa ser relacionado a ψ do núcleo. Freud afirma, na carta 52, que o sistema pré-
consciente corresponde ao nosso “eu oficial” , o que parece sugerir que este não
constitui a totalidade do eu. Nesse caso, o restante do eu, sua parte “não oficial” – que
seria justamente aquela que se ligaria diretamente ao somático (ψ do núcleo), de acordo
com as idéias do “Projeto...” – teria sido omitida no esquema e, então, se poderia supor
que apenas φ e ψ do manto estariam representados neste. Apenas nos “Artigos
metapsicológicos”, de 1915, a relação entre o psíquico e o somático voltará a ser
claramente tematizada por Freud.
Apesar de não explicitar sua concepção de representação, esta parece estar sendo
pensada da mesma forma que no “Projeto...”, isto é, como consistindo num processo
envolvendo quantidade, neurônio e facilitação. Não há indicações de que essas idéias
tenham sido abandonadas; ao contrário, há várias indicações no sentido oposto. Sobre a
relação entre a representação e a consciência, Freud afirma que tanto as percepções
quanto as palavras são capazes de despertar a consciência. Sobre o mecanismo por meio
do qual as primeiras se vinculariam à consciência nada é dito. Já as representações
associadas à representações-palavra se tornariam conscientes a partir da “ativação
alucinatória” dessas últimas, diz Freud, hipótese esta que será discutida adiante no
comentário do capítulo 7. Como Freud mesmo afirma, a idéia nova introduzida em sua
teoria é a da estratificação da memória, a qual estabelece uma diferenciação clara entre
73
o psíquico suscetível e o insuscetível de se tornar consciente, dando origem, assim, à
concepção sistemática de inconsciente.
2. O capítulo 7 de “A interpretação dos sonhos”
No início do sétimo capítulo de “A Interpretação dos Sonhos”(1900), Freud
aponta a necessidade de formular uma teoria sobre o aparelho psíquico para que o
sonho, enquanto fato psíquico, pudesse ser, de fato, esclarecido:
“Tropeçamos com a impossibilidade de “esclarecer” o sonho como
fato psíquico, pois explicar significa reconduzir ao conhecido e até
agora não existe nenhum conhecimento psicológico ao qual
pudéssemos subordinar o que cabe discernir na qualidade de princípio
explicativo a partir do exame psicológico dos sonhos. Ao contrário,
veremo-nos obrigados a estabelecer uma série de novas suposições
que toquem mediante conjeturas o edifício do aparelho psíquico e o
jogo de forças que nele atuam (...)”.
7
Nos capítulos anteriores dessa obra, Freud apresentara e discutira as teses sobre os
sonhos inferidas a partir da sua interpretação. No último capítulo, ele se ocupa da
construção de uma teoria sobre a estrutura e o funcionamento psíquico em geral que
sirva de fundamento para essas teses, ou seja, uma teoria a partir da qual seja possível
compreender a possibilidade de ocorrência de um processo psíquico com as
características do fenômeno onírico. Monzani (1989) esclarece como se dá a relação
entre a interpretação e a explicação em “A interpretação dos sonhos”. Existiria, diz ele,
“uma subordinação recíproca entre interpretação e explicação, cada uma a seu nível:
a interpretação produz teses que a explicação fundamenta(p. 114). A interpretação
forneceria as teses e estas seriam então inseridas em um espaço teórico que as
fundamente. No capítulo 7, portanto, Freud se empenha em uma reflexão
metapsicológica com o objetivo de fundamentar as teses obtidas a partir da interpretação
dos sonhos.
O esquema que havia sido proposto na carta 52 é retomado, com algumas
modificações, assim como muitas das hipóteses do “Projeto...”. Pode-se dizer que o
74
aparelho psíquico é um recorte do aparelho neuronal, com alguns acréscimos e
modificações. Vejamos, em primeiro lugar, como é pensada a relação entre os
processos psíquicos e os processos nervosos nesse momento da teoria freudiana.
Haveria alguma mudança na posição de Freud quanto à natureza dos processos
psíquicos inconscientes?
2.1 A relação entre o aparelho psíquico e o sistema nervoso
As tentativas de estabelecer uma correspondência anatômica para o aparelho
psíquico – empreendidas tanto em relação ao aparelho de linguagem como em relação
ao aparelho neuronal – são abandonadas nesse momento por Freud. Mas ele não nega a
existência de tal correspondência; ao contrário, no início da seção B, ele afirma:
“Queremos deixar totalmente de lado que o aparelho psíquico
de que aqui se trata nos é conhecido também como um preparado
anatômico e tomaremos o maior cuidado para não cair na tentação de
determinar essa localidade psíquica como se fosse anatômica. Vamos
manter-nos em terreno psicológico (...)”.
8
Com a afirmação de que o aparelho psíquico é conhecido também sob a forma
de um preparado anatômico, Freud reconhece que há algo no sistema nervoso que
corresponde a tal aparelho; ele apenas se recusa a tentar identificar essa localização.
Desde “Sobre a concepção das afasias”, a localização anatômica do aparelho tornara-se
algo dispensável. Naquele texto, como vimos, Freud recusara a idéia de que cada função
da linguagem estivesse localizada em uma região distinta do cérebro e de que a
fisiologia estivesse totalmente subordinada à anatomia, o que teve como conseqüência
que apenas o modo como transcorreriam os processos fosse, de fato, importante para
explicar a linguagem. Identificar o lugar anatômico onde ocorrem os processos
envolvidos na linguagem não mais seria indispensável para o esclarecimento do seu
modo de funcionamento. Este poderia ser inferido com base, principalmente, na análise
do funcionamento normal e patológico da linguagem. Com isso, tornava-se
perfeitamente possível explicar uma função sem se recorrer a qualquer localização
7
AE, vol.5, p.506; SA, vol.2, p. 490
8
AE, vol. 5, p.529; SA, vol 2, p.512. (grifos nossos)
75
anatômica precisa. Agora, em “A Interpretação dos sonhos”, Freud abandona aquilo
que, desde o texto de 1891, tornara-se dispensável, isto é, a tentativa de identificar a
localização anatômica do aparelho. Isto não significa, no entanto, que a existência de tal
base esteja sendo negada, mas apenas que Freud não se compromete em especificá-la.
Por isso, podemos sustentar que, ao contrário do que defendem Solms e Saling (1986), o
que teve maior importância para a psicanálise no rompimento com o localizacionismo
empreendido por Freud em 1891 foi a possibilidade de se pensar os aspectos funcionais
independentemente dos anatômicos, e não a adoção da doutrina da concomitância, que
teria permitido a Freud tratar os fatos psíquicos independentemente dos neurológicos.
Essa independência do funcional em relação ao anatômico permite a Freud dar
continuidade às suas especulações metapsicológicos – as quais continuam sendo, ao
menos implicitamente, especulações sobre os processos nervosos que constituiriam o
psíquico inconsciente – na ausência de uma referencia anatômica explícita. Se o
funcionamento dos processos fosse inteiramente determinado pela localização
anatômica das funções, não seria possível especular sobre esse funcionamento sem levar
em consideração os fatores anatômicos.
Alguns autores defendem que não é apenas a localização do aparelho psíquico
que está sendo deixada de lado, no capítulo 7, mas também que as hipóteses
neurológicas estão sendo totalmente abandonadas.
9
No entanto, embora o vocabulário
psicológico passe a predominar, em várias passagens Freud volta a falar em
“neurônios”, “facilitações”, “resistências”, etc. Além disso, em algumas partes do texto,
como veremos, ele afirma claramente que os processos psíquicos aos quais se refere são
processos que ocorrem no sistema nervoso.
10
Portanto, apesar de, ao contrário do
“Projeto...”, não haver um comprometimento explícito com a neurologia, fica claro que
não há um abandono total desta em prol da psicologia.
Freud emprega a analogia do telescópio, na seção B, para esclarecer a relação
entre o “lugar anatômico” e o “lugar psíquico”. Na continuação da passagem citada
acima, ele diz:
9
Entre eles, Strachey (1998b) e Garcia-Roza (1991).
10
Na seguinte passagem, por exemplo, Freud diz o seguinte a respeito do estado ligado da
excitação no processo secundário: “A mecânica desses processos é inteiramente desconhecida a
mim; quem quiser levar a sério essas idéias deveria investigar as analogias fisicalistas e abrir
um caminho em direção à ilustração do processo de movimento da excitação neuronal”(AE,
vol. 5, p.589; SA, vol. 2 , p.569).
76
“Vamos manter-nos em terreno psicológico e somente
proporemos seguir a sugestão de imaginarmos o instrumento de que
se valem as operações mentais como se fosse um microscópio
composto, um aparelho fotográfico ou algo semelhante. A localidade
psíquica corresponde, então, a um lugar no interior do aparelho em
que se produz um dos primeiros estágios da imagem. No microscópio
e no telescópio, como é sabido, essas são, em parte, umas localizações
ideais, nas quais não se situa nenhum componente apreensível do
aparelho.”
11
Segundo essa passagem, a localidade psíquica seria virtual em relação à
localidade anatômica, assim como os primeiros estados da imagem o são em relação às
lentes do telescópio. Então, apesar de possuir uma base anatômica, o aparelho psíquico
não pode ser identificado com nenhum ponto dessa base. Na seção F, Freud afirma que
os sistemas que compõem o aparelho consistem, na verdade, em processos nervosos, do
que se pode concluir que o aparelho é um conjunto organizado de processos, visto que
ele não é nada mais que os sistemas que o compõe. Segundo a analogia mencionada
acima, então, os processos nervosos que constituem o aparelho seriam virtuais em
relação à sua localidade anatômica. Com isso, Freud parece estar resgatando a
concepção da relação entre a anatomia e o aparelho de linguagem sustentada em “Sobre
a concepção das afasias”. Neste texto, ele havia proposto que o aparelho de linguagem
consistiria em processos e que as suas diversas funções não poderiam ser restringidas a
nenhuma parte específica da sua base anatômica, o que o levou a recusar a hipótese de
centros de linguagem. Como observou Monzani:
“(...) a idéia que se delineia na construção freudiana da noção de
um aparelho de linguagem (e nós começamos a perceber as raízes e a
importância dessa noção que atravessa a obra de Freud: “aparelho”
psíquico) liga-se ao fato de que, embora ele possa estar (e
seguramente está) ancorado e mesmo enraizado em seus contornos na
realidade neuronal, enquanto totalidade, ele escapa dessa
identificação. Em outros termos, esse lugar já não é mais “estritamente
assimilável ao espaço dos tecidos do sistema nervoso”, o que provoca
a emergência, então, de uma dimensão do lugar que não se confunde
11
AE, vol. 5, p.529; SA, vol. 2, 512.
77
com a realidade neuroanatômica. Assim, de agora em diante, toma
corpo a idéia da possibilidade de articular um discurso que leva em
conta a dimensão do lugar sem que isso necessariamente implique
localizar esse lugar.”(1989, p.135)
A relação entre o aparelho psíquico e a localidade anatômica parece estar sendo
pensada nesse mesmo sentido. Embora ancorado em uma base anatômica, as funções do
aparelho não podem ser localizadas em nenhuma parte delimitada da mesma, uma vez
que “uma formação psíquica seria o cruzamento de várias séries conectivas sem um
lugar determinado na anatomia cerebral” (Monzani, 1989, p.132).
Em “Sobre a concepção das afasias”, no entanto, o psíquico era identificado à
consciência e era concebido como sendo concomitante aos processos associativos
corticais. No “Projeto...”, Freud identifica esses processos ao psíquico inconsciente e
propõe que a consciência seja o lado subjetivo de uma parte deste último, mas a relação
entre os processos que compõem o aparelho neuronal e a anatomia do sistema nervoso é
a mesma que havia entre os processos fisiológicos do aparelho de linguagem e sua base
anatômica. No capítulo 7, como discutiremos adiante, Freud parece manter a mesma
posição sustentada no “Projeto...”.
Tudo isso parece indicar que, embora não haja um comprometimento explícito
com a neurologia e embora Freud evite usar termos neurológicos e os substitua, na
maior parte do texto, por termos psicológicos, não há mudança na sua concepção sobre
a natureza física do psíquico inconsciente. Ele parece manter a hipótese de que os
processos psíquicos inconscientes sejam processos nervosos; apenas a tentativa de
explicá-los em termos neurológicos teria sido abandonada. Em uma carta a Fliess,
escrita em 22 de setembro de 1898, época em que a “A Interpretação dos Sonhos”
estava sendo redigida
12
, Freud afirma que optou por permanecer no campo psicológico
“como se” estivesse se confrontando apenas com tal campo e não “porque” se
confronta, de fato, apenas com ele. Diz ele:
“Não estou de modo algum em desacordo com você, nem tenho
a menor inclinação a deixar a psicologia suspensa no ar, sem uma base
orgânica. No entanto, à parte essa convicção, não sei como prosseguir,
12
Segundo o que nos informa Ernest Jones, Freud iniciou a redação do seu livro sobre os sonhos
por volta de dezembro de 1897 e a finalizou em setembro de 1899.(Jones, 1989, p.358).
78
nem teórica, nem terapeuticamente, de modo que preciso comportar-
me como se
apenas o psicológico estivesse em exame.”
13
No primeiro capítulo de “A Interpretação dos sonhos”, ao comentar a resistência
dos psiquiatras em aceitar que o sonho apresente uma causalidade psíquica, Freud volta
a afirmar que o fato de permanecer no domínio psicológico não implica negar a base
orgânica dos processos psicológicos e, tampouco descartar a hipótese de que uma
explicação completa destes deverá vir a incluir forçosamento os elementos biológicos aí
envolvidos:
“(...) semelhante abstinência não revela senão pouca fé na validade da
cadeia causal que se estende desde o corporal até o psíquico. Mesmo
onde a investigação permite reconhecer no psíquico a ocasião primária
de um fenômeno, um estudo mais profundo saberá descobrir, em cada
caso, a continuação do caminho que leva até a fundamentação
orgânica do psíquico.”
14
Essas passagens de Freud sugerem que sua decisão de “permanecer no campo da
psicologia” – isto é, de não dar continuidade a suas especulações neurológicas – foi
motivada pelas dificuldades encontradas para dar prosseguimento a tais especulações (a
insuficiência de um conhecimento empírico direto sobre as funções nervosas, por
exemplo). Fica claro, contudo, que Freud não vê essa abordagem exclusivamente
psicológica como algo definitivo.
2.2 O aparelho psíquico
O esquema do aparelho psíquico proposto por Freud no capítulo 7 restringe-se a
representar a relação dos processos psíquicos com a percepção e a motilidade. A relação
entre o psíquico e o somático não está representada, apesar de Freud se referir ao papel
desempenhado pela excitação de origem endógena no desenvolvimento e no
13
Masson, 1986, p.327; AAP, p.227(grifado por mim).
14
AE, vol. 4, p.67; SA, vol. 2, p. 66.
79
funcionamento do aparelho. Portanto, pensando-o em comparação com o aparelho
neuronal de 1895, o aparelho psíquico do capítulo 7 corresponderia somente a φ e ψ do
manto, assim como o esquema apresentado na carta 52.
Freud coloca em um dos extremos do esquema a percepção e, no extremo oposto,
a motilidade e reafirma que o reflexo permanece sendo o modelo de toda a operação
psíquica. Assim como no “Projeto...”, a tendência primordial do aparelho seria
descarregar o máximo possível da excitação que o alcança, e essa tendência seria
modificada devido à necessidade de dar um destino adequado para a estimulação de
origem endógena, isto é, para que as necessidades corporais pudessem ser satisfeitas. Os
processos psíquicos seriam, inicialmente, regulados automaticamente pelo “princípio de
desprazer”
15
e o prazer e o desprazer continuam sendo concebidos como sensações
decorrentes, respectivamente, da diminuição e do aumento do nível de excitação no
aparelho. Na seção C, Freud descreve o modo primordial de operação do aparelho, da
mesma forma que o faz no “Projeto...”:
“(...) o aparelho obedeceu primeiro ao afã de manter-se, dentro do
possível, isento de estímulos e, por isso, em sua primeira construção,
adotou o esquema do aparelho reflexo, que lhe permitia descarregar
imediatamente, pelas vias motoras, uma excitação sensível que lhe
alcançava a partir de fora. No entanto, as exigências da vida
perturbaram essa simples função; o aparelho também deve a elas o
impulso para seu desenvolvimento posterior. As exigências da vida o
assediam primeiro na forma das grandes necessidades corporais. A
excitação imposta pela necessidade interior buscará drenagem no
movimento que pode ser designado “alteração interna” ou “expressão
emocional”. O menino faminto chorará ou esperneará inerme. No
entanto, a situação manter-se-á imutável, pois a excitação que parte da
necessidade interna não corresponde a uma força que golpeia de
maneira momentânea, mas a uma que atua continuamente. Só pode
haver uma alteração quando, por algum caminho (no caso do menino,
pelo cuidado alheio), ocorre a vivência de satisfação
que cancela o
estímulo interno”.
16
15
Strachey (AE, vol.5, p.589, nota 9) comenta que, em suas obras posteriores, Freud chamou
este princípio de “princípio do prazer”.
16
AE, vol. 5, p.557; SA, vol.2, p.538
80
A primeira diferenciação estabelecida no aparelho é entre a percepção e a
memória. Ambas devem ser função de dois sistemas diferentes, argumenta Freud,
devido às mesmas razões apontadas no “Projeto...”: enquanto a percepção requer uma
capacidade receptiva sempre igual – portanto, o sistema por ela responsável não deve
ser modificado em nada pela excitação que recebe –, a memória requer a conservação
de traços permanentes – portanto, tal sistema deve ser permanentemente modificado, de
alguma forma, pela excitação que o percorre. A percepção fica sendo função do
primeiro sistema que compõe o aparelho, e a memória dos sistemas que se lhe sucedem.
A memória não apenas conserva o conteúdo das percepções, como também
associa tais conteúdos de acordo com determinadas leis. Para esclarecer o processo da
associação, Freud parece retomar as idéias de facilitação e resistência do “Projeto...”.
Diz ele: “O fato da associação consiste, então, no seguinte: como conseqüência de
reduções na resistência e de facilitações, desde um dos elementos Mn a excitação se
propaga melhor em direção a um segundo elemento Mn que em direção a um
terceiro”.
17
Nessa passagem, a associação não é mencionada como consistindo no
processo constituinte da representação, mas apenas como um processo que se dá entre
representações. No entanto, parece que Freud está concebendo a memória da mesma
maneira que no “Projeto”, isto é, como modificações permanentes resultantes da
excitação recebida, as quais estariam situadas entre os elementos dos sistemas e não
nos próprios elementos, o que teria como conseqüência a constituição de caminhos
preferenciais (uma seqüência de “facilitações”) para a passagem da excitação. Então, a
representação continua sendo pensada como consistindo num processo associativo. A
seguinte afirmação de Freud corrobora esta hipótese: “(...) representações, pensamentos
e produtos psíquicos em geral não podem ser localizados dentro dos elementos
orgânicos do sistema nervoso, mas, por assim dizer, entre eles, onde resistências e
facilitações constituem seus correlatos.”
18
Em várias ocasiões Freud volta a falar
17
AE, vol. 5, p. 532; SA, vol.2, p. 515.
18
AE, vol.5, p.599; SA, vol.2, p.579. Afirmações como essa e a precedente permanecem
totalmente enigmáticas se não temos a teoria do “Projeto...” em vista. Tais afirmações deixam
claro que as hipóteses neurológicas do “Projeto...” não foram abandonadas ou totalmente
substituídas por hipóteses psicológicas.
81
também de neurônios
19
, o que indica que ele mantém a hipótese de que eles é que são os
elementos constituintes do aparelho.
Freud retoma a hipótese, que havia sido apontada na carta 52 como a tese
“essencialmente nova de sua teoria”, de que haveria vários sistemas de memória nos
quais o mesmo conteúdo estaria associado de maneira distinta. Na carta 52, ele dissera
que não sabia quantos sistemas haveria, no mínimo três, provavelmente mais, e agora,
no esquema do capítulo 7, outros sistemas de memória são incluídos entre o sistema da
percepção e o do inconsciente. Ele também mantém a hipótese de que, no primeiro
sistema, as representações estariam associadas de acordo com relações de
simultaneidade e, no pré-consciente, de acordo com relações verbais. O que
caracterizaria as diferentes associações entre os mesmos traços mnêmicos seriam as
gradações da resistência nos caminhos que conduzem a excitação de uns para outros dos
elementos do sistema. Com essa afirmação, Freud parece confirmar a hipótese, que
havíamos formulado ao comentar a carta 52, de que a retranscrição dos traços mnêmicos
consistiria na constituição de novas facilitações entre eles. Ele ressalta que à ordem
atribuída aos sistemas na representação tópica não precisa corresponder a ordem
espacial real deles, apenas é necessário supor que em certos processos psíquicos os
sistemas sejam percorridos pela excitação dentro de uma determinada série
temporal”.
20
Adiante, Freud esclarece que a representação tópica do aparelho é uma
representação “auxiliar”, empregada com o objetivo de facilitar a explicação dos
fenômenos psicológicos. O esquema proposto por Freud é o seguinte:
19
Na seguinte passagem, por exemplo, Freud afirma: “Se pudéssemos confirmar que nos
sistemas
ψ
, memória e qualidade para a consciência se excluem entre si, nos abriria uma
promissora perspectiva sobre as condições da excitação nos neurônios”. (AE, vol.5, p.533)
20
AE, vol. 5, p 530; SA, vol.2, p.513.
82
Os dois últimos sistemas mnêmicos – entre os quais se situaria uma “censura” –
seriam o Inconsciente(Icc) e o Pré-consciente(Pcc)
21
. Este último estaria ligado à
consciência e governaria o acesso à motilidade voluntária. Tais sistemas
corresponderiam a dois tipos de processos. No início da seção F, Freud afirma:
“Se as consideramos com maior atenção, as elucidações psicológicas
da seção anterior não nos sugerem a suposição da existência de dois
sistemas
perto do extremo motor do aparelho, mas sim de dois
processos ou de dois modos no decurso da excitação. Para nós dá na
mesma; sempre devemos estar dispostos a abandonar nossas
representações auxiliares quando nos acreditamos em condições de
substituí-las por alguma outra coisa que se aproxime mais da realidade
desconhecida”.
22
Esses dois processos, que corresponderiam aos sistemas pré-consciente e
inconsciente, seriam os processos primários e os secundários que já haviam sido
mencionados no “Projeto...”. Portanto, essa diferenciação entre dois “modos no decurso
da excitação” seria aquela entre o estado “livre” e estado “ligado” ou “quiescente” da
quantidade. Apesar de ser uma representação menos rigorosa, a representação tópica
21
Seguindo a tradução da Amorrortu Editores usaremos, em vez de “Pcc”, “Prcc”, como
abreviatura para pré-consciente, para distinguir melhor de P (percepção).
22
AE, vol. 5, p.598; SA, vol.2, p. 578.
83
deve continuar sendo utilizada, argumenta Freud, uma vez que ela figura de maneira
mais simples a distinção em questão.
De acordo, portanto, com o que Freud diz na passagem acima mencionada, a
representação tópica dos sistemas Prcc e Icc seria uma representação auxiliar que parece
ser menos adequada para representar a distinção entre o psíquico suscetível e o
insuscetível de consciência do que o que ele chama nesse texto de “representação
dinâmica”, ou seja, aquela que representa tal distinção como dois tipos de processos.
Em “Nota sobre o conceito de inconsciente” (1912), Freud distingue entre a
idéia de um inconsciente dinâmico e a de inconsciente enquanto um sistema. Primeiro,
ele teria concluído pela existência de um inconsciente incapaz de se tornar consciente e,
entretanto, ativo. Nesse sentido é que ele fala aí de um inconsciente dinâmico.
23
Depois,
a partir da análise dos sonhos, Freud percebe que esse inconsciente dinâmico possui
características diferentes daquelas do psíquico consciente ou passível de se tornar
consciente. Para estabelecer essa distinção, é introduzida a hipótese do “sistema
inconsciente”. Assim, de acordo com o que ele diz em 1912, a distinção entre os
sistemas Prcc e Icc não implica necessariamente a distinção tópica entre esses sistemas.
A representação dos sistemas como dois lugares distintos é apenas uma forma de
representar a distinção entre o psíquico suscetível e o insuscetível de se tornar
consciente, mas não a única, nem a melhor, como diz Freud na passagem citada acima.
Para representar as características distintivas dos sistemas Prcc e Icc, pode-se usar uma
representação tópica ou pode-se pensar em dois tipos de processos, e essa última
alternativa, segundo ele, é a que parece se aproximar mais da “realidade desconhecida”.
Exprimir a diferença entre o psíquico suscetível e o insuscetível de se tornar consciente
em termos de dois tipos de processos seria mais preciso, mais de acordo com a
realidade, do que exprimi-la em termos tópicos. Então, embora no capítulo 7, Freud
utilize a idéia de sistema como sinônimo de lugar, a caracterização da noção de
inconsciente sistemático apresentada em 1912 parece não permitir essa identificação.
23
Notemos que Freud usa o termo dinâmico em um sentido diferente daquele usado no capítulo
7. Neste último, Freud contrapõe um modo de representação “tópico” a um “dinâmico”, ou seja,
uma representação dos sistemas Prcc e Icc como dois lugares diferentes a uma representação
desses como dois processos distintos. Em 1912, Freud usa o termo dinâmico no sentido de ativo
– ou seja, para designar a capacidade de ação do inconsciente – e diz que a concepção
sistemática de inconsciente vem se acrescentar à dinâmica, porque estabelece que esse psíquico
insuscetível de consciência, além de ativo, possui propriedades peculiares.
84
Que os sistemas Icc e Prcc correspondam a processos sabemos desde o início,
pois já em “Sobre a concepção das afasias”, ficara claro que Freud pensa a
representação como um processo. Contudo, a representação tópica poderia sugerir que
se trata de processos do mesmo tipo que ocorrem em dois lugares distintos, mas Freud
esclarece que não é esse o caso. A distinção entre os sistemas Icc e Prcc corresponde à
distinção entre dois tipos de processos que se sobrepõem: os primários e os secundários.
Assim como no “Projeto...”, o processo secundário resultaria da inibição do
processo primário e, portanto, seria posterior a este. Inicialmente, o pré-consciente e o
inconsciente não se diferenciariam, e a origem dessa diferenciação seria uma
conseqüência da impossibilidade do modo de atividade primário do aparelho de
satisfazer as necessidades corporais. Freud descreve a experiência de satisfação, assim
como as conseqüências de tal experiência, exatamente da mesma forma que o havia
feito em 1895. Após a vivência primária de satisfação, o ressurgimento da estimulação
endógena faria surgir uma tendência a ocupar a representação do objeto desejado com
toda sua intensidade, de forma que este objeto seria alucinado – isto é, seria produzida
uma “identidade perceptiva” e os movimentos associados à satisfação seriam
executados em vão. Essa ativação alucinatória da representação desejada seria
totalmente ineficaz para fazer a estimulação endógena cessar. Por isso, para que o
indivíduo sobreviva e o desprazer cesse, faz-se necessária uma modificação desse modo
de atividade primário do aparelho. A atividade psíquica regida pelo princípio do prazer
tem que se adequar ao “princípio de realidade”, como o nomeia Freud em 1911
24
. Em
vez de conduzir à identidade perceptiva, os processos devem passar a buscar uma
“identidade de pensamento”. A ocupação da representação desejada deve ser
parcialmente inibida, de modo que esta seja apenas rememorada e, assim, torne-se
possível a ocorrência de um processo – o pensamento – que encontre, de fato, o objeto
capaz de promover a satisfação da necessidade.
25
Disso decorreria o surgimento do
processo secundário ou do pré-consciente:
Assim se fez necessária uma segunda atividade – em nossa
terminologia, a atividade de um segundo sistema –, que não permitisse
que a ocupação mnêmica avançasse até a percepção (...) os dois
24
“Formulações sobre os dois princípios do acontecer psíquico”, AE, vol. 12.
25
O pensamento é concebido da mesma maneira que no “Projeto...”, isto é, como o processo
que se intercala entre o surgimento do desejo e sua realização. (AE, vol.5, p.558)
85
sistemas são o germe do que inserimos como Icc e Prcc no aparelho
plenamente constituído”.
26
No “Projeto...”, essa função de inibição do processo primário havia sido atribuída
ao “eu”. A “primeira regra biológica” condicionaria este a ocupar menos intensamente
a representação desejada, o que teria como conseqüência o acúmulo de uma certa
quantidade no aparelho – isto é, a quantidade livre seria ligada –, a qual seria usada para
direcionar os processos associativos, a partir das “ocupações laterais”, de forma que
estes propiciassem a satisfação das necessidades, assim como a evitação do desprazer.
Dessa forma, o processo secundário se sobreporia ao primário. No capítulo 7, Freud
atribui essa função de inibição do processo primário ao sistema Prcc e não diz nada
sobre a origem da excitação que seria usada para inibir tais processos, nem sobre o
mecanismo de tal inibição.
Nos processos inconscientes (ou “processos primários”) a excitação se
encontraria em estado livre – sua atividade estaria dirigida para a “livre descarga das
quantidades de excitação”
27
–; a excitação seria descarregada integralmente na passagem
de um elemento para o outro do sistema. Nos processos pré-conscientes (ou
“secundários”) a excitação se encontraria em “estado quiescente”: “(...) ao segundo
sistema lhe é dado conservar em estado quiescente {in Ruhe} a maioria das ocupações
energéticas e empregar no deslocamento somente uma pequena parte. ”
28
O Prcc
disporia de uma “energia de ocupação móvel”, parte da qual seria usada para direcionar
os processos associativos, de forma a propiciar a sobrevivência do sujeito, enquanto outra
parte constituiria o mecanismo da “atenção”, cuja função será discutida adiante.
29
Freud
diz o seguinte sobre as condições mecânicas dos processos secundários: “A mecânica
desses processos é inteiramente desconhecida por mim; quem quiser levar a sério essas
idéias deveria investigar as analogias fisicalistas e abrir-se um caminho em direção à
ilustração do processo de movimento da excitação neuronal.”
30
Nessa passagem, fica
claro que Freud continua identificando os processos psíquicos inconscientes a processos
nervosos.
26
AE, vol. 5, p.588; SA; vol. 2, p.568.
27
AE, vol. 5, p.589; SA, vol. 2 , p.569.
28
AE, vol. 5, p.589; SA, vol2, p.569.
29
Essas funções atribuídas ao Prcc são as mesmas que haviam sido atribuídas ao eu no
“Projeto...”.
30
AE, vol 5, p.589; SA, vol. 2, p.569.
86
Após propor que os sistemas pré-consciente e inconsciente correspondem a dois
tipos de processos, a distinção entre este último sistema e os precedentes – aqueles que
se situariam entre P e Icc – deixa de ser mencionada. Como Freud não se refere a outros
tipos de processos além do primário e do secundário, parece ser possível concluir que os
primeiros sistemas de memória estejam incluídos nos processos primários e que vários
princípios associativos regulariam as associações aí envolvidas. Os vários sistemas de
memória foram propostos por Freud para representar as diversas transcrições de um
mesmo conjunto de representações, isto é, os diferentes rearranjos das representações de
acordo com princípios associativos diferentes. Portanto, deve haver vários níveis de
processos, e as associações seriam determinadas por princípios associativos diferentes
em cada um deles. No nível superior, cujas associações seriam determinadas por
relações verbais, a excitação se encontraria em estado ligado e, nos níveis inferiores, ela
se encontraria em estado livre; em outras palavras, no nível superior ocorreriam
processos secundários e, nos inferiores, processos primários.
O processo primário estaria presente no aparelho desde sua origem – ele
representaria a tendência primordial do aparelho a descarregar toda a excitação que o
alcançasse – e o processo secundário se estabeleceria pouco a pouco a partir da inibição
do primário: “(...) os primários estão dados naquele desde o começo, enquanto os
secundários só se constituem pouco a pouco no curso da vida, inibem os primários, se
superpõem a eles, e, talvez, somente na plena maturidade consigam submetê-los ao seu
total império”.
31
Essa inibição, no entanto, não seria total e uma parte dos processos
permaneceria subtraída à influência do Prcc.
2.3 A relação entre o Prcc e o Icc
Devido ao estabelecimento tardio do processo secundário, um grande segmento
do material mnêmico permaneceria inacessível ao pré-consciente, diz Freud. Essas
representações continuariam sendo alvo do processo primário e permaneceriam
insuscetíveis de se tornarem conscientes pela via normal do pensamento, isto é, a partir
da intermediação do Prcc. Outras representações se encontrariam nesse mesmo estado,
a saber, aquelas que foram reprimidas. Mas estas teriam sido um dia pré-conscientes; no
entanto, por se tornarem substitutas de representações inaceitáveis para os processos
31
AE, vol. 5, p.592; SA, vol. 2, p. 572.
87
secundários, teriam sido excldas do Prcc, tornando a ser governadas pelo processo
primário. As representações do primeiro tipo seriam pré-condição para a existência
dessas últimas.
Para explicar a repressão, Freud começa afirmando que um conjunto de “moções
de desejos” infantis – as quais constituiriam o “núcleo do nosso ser” – permaneceriam
inapreensíveis e não inibíveis pelo processo secundário (o processo secundário não seria
capaz de inibir o desprazer por ela despertado), devido ao estabelecimento tardio deste
processo
32
; elas não chegariam a ser incorporadas ao Prcc. Essas moções de desejo
excluídas do processo secundário se dividiriam em dois grupos: aquelas cuja realização
não seria desprazerosa para o Prcc e aquelas cuja realização produziria um desprazer,
que o Prcc seria incapaz de evitar. As primeiras, embora não inibíveis e inapreensíveis
aos processos secundários, seriam direcionadas
33
por estes pelo caminho mais
adequado:
“Em conseqüência deste surgimento tardio do processo
secundário, o núcleo do nosso ser, que consiste em moções de desejos
inconscientes, permanece inapreensível e não inibível para o pré-
consciente, cujo papel ficou limitado, de uma vez por todas, a indicar
às moções de desejo provenientes do inconsciente os caminhos mais
adequados ao fim”.
34
Aquelas moções de desejo cuja realização tornara-se desprazerosa para o Prcc
permaneceriam totalmente fora da influência desse sistema:
“(...) entre estas moções de desejo indestrutíveis e não inibíveis
que provêm do infantil se encontram também aquelas cujo
cumprimento entrou em relação de contradição com as
representações-meta do processo secundário. O cumprimento de tais
32
No capítulo7, o desejo, assim como no “Projeto...”, seria a tendência de uma excitação para
ocupar uma determinada representação-objeto e a ocupação desta representação consistiria em
uma realização de desejo. Segundo Laplanche ( 1981, p.61) uma “moção” seria uma excitação
fixada em uma representação específica.
33
Essa idéia de Freud de que tais moções de desejo apesar de não inibíveis podem ser
direcionadas pelo Prcc é de difícil compreensão, pois ele não explica de que forma esse
direcionamento se daria. Tendo em vista o “Projeto...”, a única maneira de redirecionar um
processo primário seria inibindo-o parcialmente.
34
AE, vol. 5, p.592; SA, vol. 2, p.572.
88
desejos já não provocaria um afeto prazeroso, e sim um de desprazer e
justamente esta mudança do afeto constitui a essência do que
designamos “repressão”.
35
Essas moções de desejo excluídas do Prcc manteriam sempre a aspiração de
alcançar a consciência e a motilidade, isto é, atimgir a satisfação. Embora as
representações originariamente associadas ao desejo inconsciente nunca se tornassem
alvo do processo secundário, a excitação a elas associada tentaria continuamente
ingressar no Prcc. Por esse motivo, este sistema teria que manter uma pressão contínua
no sentido oposto – o que mais tarde, nos “Artigos metapsicológicos”, seria chamado de
“contra-ocupação” – para se proteger contra o avanço da excitação inconsciente. Em
alguns casos, no entanto, esse mecanismo de proteção falharia, e a excitação de desejo
conseguiria ingressar no processo secundário – isto é, ela conseguiria ocupar uma
representação pré-consciente –, o que teria como conseqüência a produção de desprazer.
Nesse caso, devido à tendência do aparelho a evitar o desprazer, a ocupação pré-
consciente de tal representação seria retirada, fazendo com que esta caísse sob o
domínio do processo primário, isto é, tornando-se inconsciente e insuscetível de se
tornar consciente. Esse processo de retirada da ocupação de uma representação pré-
consciente é chamado de “repressão”:
“Quando dizemos que um pensamento pré-consciente é
reprimido e, então, recebido pelo inconsciente, esta imagem, tomada
do círculo de representações da luta por um território, poderia nos
induzir a supor que realmente certo ordenamento é dissolvido dentro
de uma localidade psíquica e substituído por outro que se situa em
uma localidade diferente. Substituímos agora essa metáfora por uma
que parece corresponder melhor ao estado real das coisas, a saber, que
uma ocupação energética é imposta a um determinado ordenamento
ou retirada dele, de modo que o produto psíquico em questão cai sob o
império de uma instância ou se subtrai dela. De novo, substituímos
aqui um modo de representação tópico por um dinâmico; não é o
produto psíquico o que nos aparece como móvel e sim sua
inervação”
36
35
AE, vol. 5, p.593; SA, vol.2, p.573.
36
AE, vol. 5, p.598; SA, vol.2, p. 578.
89
A ocupação de uma representação pelo Prcc – ou seja, sua incorporação aos
processos secundários –, só ocorreria quando nenhum desprazer resultasse de tal
ocupação ou quando o desprazer produzido pudesse ser inibido: “o segundo sistema só
pode ocupar uma representação se está em condições de inibir o despreendimento de
desprazer que parte dela”.
37
Essa retirada da ocupação da representação (a repressão)
seria, então, uma conseqüência da tendência do aparelho a evitar o desprazer, uma
conseqüência da sua regulação pelo princípio de desprazer. Sendo assim, dois tipos de
representações permaneceriam sob o domínio do processo primário, ou seja,
permaneceriam insuscetíveis de se tornar conscientes pela via normal do pensamento: as
reprimidas e aquelas vinculadas às moções de desejo que nunca foram integradas ao
Prcc. Essas últimas, ao contrário das primeiras, nunca teriam sido incorporadas ao
processo secundário, o que quer dizer que elas permaneceram inconscientes desde sua
origem. Nos “Artigos metapsicológicos”, de 1915, Freud irá formular a hipótese de que
essas representações teriam sido alvo da “repressão primordial”, enquanto as primeiras
teriam sido alvo da “repressão propriamente dita” . No capítulo 7, essa noção de
repressão primordial ainda não se encontra presente e, portanto, não é possível dizer
que aí o sistema inconsciente coincide com o reprimido, uma vez que apenas aquelas
representações desocupadas pelo processo secundário podem ser chamadas, por
enquanto, de reprimidas; aquelas que nunca foram incluídas neste processo não podem
ser consideradas como tendo sido reprimidas.
De acordo com o que Freud havia proposto na carta 52, a repressão seria ausência
de tradução de uma representação de acordo com os princípios associativos do sistema
subseqüente ao que ela se encontra. Agora, no capítulo 7, Freud a concebe de uma
forma diferente: como a retirada da ocupação de uma representação pré-consciente, o
que teria como conseqüência a sua exclusão desse sistema, isto é, sua exclusão do
processo secundário. A repressão, então, não é mais pensada como qualquer ausência de
retranscrição de representações entre os sistemas – fato este que poderia ocorrer em
qualquer etapa da constituição do aparelho –, mas como um processo específico que se
dá entre os sistemas pré-consciente e inconsciente.
Então, parte das moções de desejo infantis permaneceria, desde a origem, excluída
dos processos secundários. No entanto, tais desejos continuariam existindo e atuando
37
AE, vol. 5, p.590; SA, vol. 2, p.571.
90
enquanto processos primários e, como conseqüência disso, representações pré-
conscientes seriam reprimidas e incorporadas a eles. Sendo assim, a superposição dos
processos secundários aos primários não significaria o desaparecimento destes últimos.
O nível de organização secundário se constituiria a partir do primário e passaria a inibi-
lo e a predominar na relação com a consciência. No entanto, uma parte dos processos
primários seria subtraída a essa inibição
38
do Prcc; ela não seria integrada ao processo
secundário, embora permanecesse sob ação da contra-ocupação e, portanto, sem acesso
à consciência.
Portanto, mesmo no funcionamento psíquico normal, os processos primários e
secundários coexistiriam. Esta idéia de que esses dois tipos de processos coexistem
representa uma novidade em relação ao “Projeto...”. Embora esses conceitos já estejam
presentes neste texto, se considera aí que, após o estabelecimento do processo
secundário, o primário é suprimido e volta a atuar apenas durante o sono e nas
patologias. Já, no capítulo 7, Freud propõe que ambos os tipos de processos
permanecem ativos mesmo no funcionamento psíquico normal da vigília. No sujeito
normal acordado, os processos secundários prevaleceriam e impediriam os primários de
se tornarem conscientes. Contudo, no sono e nas patologias, o processo primário
poderia voltar a prevalecer e recuperar o acesso à consciência. No primeiro caso, devido
à retirada parcial da inibição do sistema Prcc e, no segundo, devido a um reforço
patológico das excitações inconscientes ou a uma debilitação patológica da capacidade
de inibição pré-consciente. Notemos que o conceito de “dissolução” de Hughlings
Jackson
39
continua presente na explicação freudiana das patologias psíquicas. A
seguinte passagem deixa isso claro :
“(...) a enfermidade – ao menos a que, com acerto, se chama
“funcional” – não tem por premissa a destruição deste aparelho, ou a
produção de novas cisões em seu interior; tem que ser explicada
dinamicamente
pelo fortalecimento e o debilitamento dos
38
Eles não seriam integrados aos processos secundários, ou seja, sua excitação não seria ligada.
Contudo, eles permaneceriam sob ação da contra-ocupação e, nesse sentido, inibidos pelo Prcc.
39
Ricoeur (1977) nos chama a atenção para este fato. Diz ele: “...é o esquema jacksoniano da
liberação funcional que se encontra aqui enxertado sobre o esquema puramente tópico do
aparelho psíquico”. (p.102)
91
componentes do jogo de forças, do qual tantos efeitos permanecem
ocultos durante a função normal.”
40
Como vimos, de acordo com a noção de dissolução de Jackson, nas patologias
do sistema nervoso haveria um retorno de modos de funcionamento mais antigos, isto é,
um nível de funcionamento superior hierarquicamente e mais recentemente estabelecido
seria comprometido, o que possibilitaria que um modo de funcionamento primário
voltasse a prevalecer parcial ou totalmente.
41
Freud adota essa noção para explicar as
afasias em 1891 e a estende para a explicação dos sonhos e das psicopatologias no
“Projeto...” e no capítulo 7.
2.4) As propriedades do Icc e do Prcc
Segundo Freud, o inconsciente seria constituído por “vias facilitadas de uma vez
por todas”
42
, o que significa que nele nenhuma resistência seria oferecida à passagem
da excitação. Esta seria sempre integralmente transferida de um elemento para outro do
sistema, isto é, a excitação se encontraria, em estado livre. A única finalidade dos
processos associativos primários seria descarregar a excitação da forma mais rápida
possível seguindo, portanto, a via mais facilitada, a qual seria sempre aquela que conduz
da forma mais direta à representação desejada. Se não permanecessem sob inibição do
Prcc, esses processos inconscientes desembocariam na alucinação do objeto de desejo e
na execução dos movimentos associados à obtenção da satisfação.
Embora a relação do aparelho com o somático não seja representada topicamente,
vimos que Freud concebe o papel da excitação endógena nos processos psíquicos de
forma muito semelhante ao “Projeto...”. Apesar da questão da representação do
somático no psíquico não ser explicitamente abordada, a descrição da vivência de
satisfação deixa clara a relação de dependência do desejo em relação ao somático; o
40
AE, vol. 5, p.597; SA, vol.2, p.577.
41
O retorno dos processos primários poderia se dar em vários níveis. Na psicose, ao que parece,
os processos secundários sucumbiriam totalmente, liberando completamente o processo
primário. Já, na neurose, os processos secundários cederiam apenas parcialmente. Como aponta
Jean Claude Filloux (1988) “(...) se uma causa qualquer, somática ou psíquica, vier reforçar as
tendências reprimidas ou enfraquecer as tendências repressoras, haverá ruptura do equilíbrio e
assistiremos ao retorno do reprimido. Mas ocorre, porém, que, na maioria das vezes, a
barragem não cederá completamente e constituir-se-ão formações de compromisso(...)”. (p. 45)
42
AE, vol. 5, p.546, nota 3; SA, vol.2, p.527, nota 1.
92
impulso do desejo tem sempre uma origem somática. Portanto, parece estar implícita
uma ligação entre o inconsciente e o somático. O desejo reprimido, diz Freud, dispõe de
uma “força pulsional”
43
, a qual seria responsável pelo fato de tais desejos estarem
sempre alertas, deles ressurgirem continuamente. Uma vez que se trataria de vias
totalmente facilitadas, sempre que estas vias fossem ocupadas – e elas o seriam
continuamente, pois disporiam de tal força pulsional – nenhuma resistência seria
oferecida à passagem da excitação e, assim, o mesmo processo poderia se repetir
inúmeras vezes. Por isso, Freud diz que os processos inconscientes são indestrutíveis;
neles não haveria temporalidade:
“(...) é uma particularidade notável dos processos inconscientes
o permanecer indestrutíveis. No inconsciente, não se pode por fim a
nada, nada é passado nem está esquecido. É o que nos impressiona
muito no estudo das neuroses, em especial da histeria. Esse caminho
inconsciente de pensamento que no ataque conduz à descarga volta a
ser transitável assim que reúne a energia suficiente”.
44
No pré-consciente, ao contrário, os processos seriam “destrutíveis”
45
, ou seja, aí
as representações iriam se desvanecendo como resultado de um esforço para ligar a
excitação a elas associada:
“(...) isso mesmo que nos inclinamos a julgar trivial e que
explicamos por uma influência primária do tempo sobre os restos
mnêmicos da alma, a saber, o empalidecimento das recordações e o
debilitamento afetivo das impressões que já não são recentes, é, na
realidade, produto de alterações secundárias que são alcançadas após
árduo trabalho.”
46
Freud não explica, no capítulo 7, como se daria esse processo, mas, na terceira
parte do “Projeto...”, ele sugerira que a diminuição da intensidade afetiva das
representações resultava de repetidas tentativas, por parte do eu, de ligá-las:
43
AE, vol. 5, p.556; SA, vol. 2, p.537.
44
AE, vol. 5, p.569; SA, vol. 2, p. 550.
45
Ver nota 3, AE, vol.5, pág. 546; SA, vol.2, p. 527, nota 1.
93
“Não cabe ver aí que o “tempo”, a repetição, enfraqueça sua
capacidade afetiva, pois este fator contribui de costume justamente
para reforçar uma associação. Sem dúvida algo tem de passar-se no
“tempo”, nas repetições encarregadas dessa sujeição, e isto não pode
ser senão uma referência ao eu ou ao poder que suas ocupações
obtenham sobre a recordação (...) É preciso uma ligação
especialmente grande e repetida, a partir do eu, até que seja
equilibrada a facilitação para o desprazer”.
47
De acordo com isso, o enfraquecimento das representações e dos afetos
resultaria do modo como se daria a ocupação no processo secundário, isto é, do estado
ligado da excitação. Este enfraquecimento não seria conseqüência do tempo; ao
contrário, parece que, para Freud, a própria idéia de tempo é que seria conseqüência do
trabalho pré-consciente. Porque, neste sistema, as excitações seriam ligadas e,
conseqüentemente, as representações se desvaneceriam progressivamente, surgiria aí a
distinção entre presente e passado, ao contrário do que ocorreria no Icc, onde tudo
sempre seria atual. O processo secundário, de certa forma, trabalharia no sentido de
possibilitar o esquecimento e, como conseqüência, surgiria a idéia de tempo. O
submetimento do Icc ao Prcc – o objetivo da psicoterapia – seria a única forma de
interromper o ciclo de repetições dos processos impulsionados pelos desejos
inconscientes reprimidos.
Uma outra diferença entre os processos pré-conscientes e os inconscientes é que
estes últimos seriam incapazes de incluir algo desprazeroso em suas associações : “(...)o
primeiro sistema
ψ
[o Icc] é incapaz de incluir algo desagradável no interior da trama
de pensamento. O sistema não pode fazer outra coisa que desejar”.
48
No capítulo 7, os
processos primários são pensados como sendo, desde o início, capazes de evitar o
desprazer. Representações desprazerosas seriam automaticamente excluídas do curso
associativo primário. Essa suposição de que o processo primário exclui desde o início
caminhos que produzam desprazer parece ser contraditória com a hipótese de que a
excitação no processo primário seguiria unicamente pela via melhor facilitada. Na
verdade, nesse ponto, o processo primário é pensado de forma diferente no capítulo 7 e
no “Projeto...”. Neste último texto, o processo primário tanto pode conduzir à
46
AE, vol. 5, p.569; SA, vol. 2, p.550.
47
PP, p.253; EP, p.470.
94
alucinação e ao desamparo, no esforço de reproduzir a vivência primária de satisfação,
como pode conduzir à produção do afeto, como resultado da vivência de dor. Apenas
em um segundo momento, depois de realizado o trabalho de ligação da excitação, a
produção do afeto poderia ser inibida. Portanto, a hipótese de que o curso associativo
primário nunca leva ao desprazer é uma idéia nova que Freud introduz no capítulo 7. As
conseqüências iniciais da vivência de dor, descritas no “Projeto...”, não são retomadas
no capítulo7. No quarto capítulo deste trabalho, ao comentarmos sobre a introdução do
conceito de compulsão à repetição em 1920, voltaremos a discutir essas questões.
Os processos secundários poderiam abarcar representações desprazerosas, desde
que o desprazer decorrente da ocupação de tais representações pudesse ser inibido; o
estado ligado da excitação nos processos secundários é que permitiria isto. Em tais
processos, a ocupação de uma representação provocaria a inibição da drenagem da
excitação a partir dela e, assim, o desenvolvimento do desprazer também seria inibido.
Essa inibição do desprazer, no entanto, não seria total; o despreendimento de desprazer
seria reduzido a um mínimo que fosse útil como sinal, isto é, que indicasse ao Prcc a
natureza da representação. Nos casos em que tal inibição não fosse possível, a
representação ficaria excluída dos processos secundários, permanecendo, portanto, no
inconsciente.
Freud comenta que caso todas as representações que gerassem desprazer
estivessem também excluídas dos processos secundários, assim como ocorre nos
processos primários, o trabalho de pensamento do Prcc seria impedido: “Se tudo
permanecesse assim, o trabalho de pensamento do segundo sistema [Prcc], para o qual
faz falta dispor de todas as recordações acumuladas pela experiência, se veria
impedido”.
49
Então, aquelas representações desprazerosas cuja produção de desprazer
pudesse ser inibida seriam integradas aos processos secundários, e isso permitiria que
tais processos se emancipassem da meta exclusiva de realização de desejo. Com isso,
surgiria a possibilidade de que o pensamento, em alguns casos, tivesse como finalidade
apenas o reconhecimento das percepções, como Freud propõe no “Projeto...”.
50
O
48
AE, vol. 5, p.590; SA, vol.2, p. 570.
49
AE, vol. 5, p.590; S, vol. 2, p.570.
50
No “Projeto...”, esse pensamento que teria como finalidade o conhecimento é chamado de
“pensamento teórico”. Freud propõe que ele se desdobra a partir do “pensamento prático”, que
seria a forma primária de pensamento, a qual teria como único objetivo alcançar o objeto de
desejo para possibilitar a satisfação da necessidade. Este pensar prático poderia, com o tempo,
se emancipar da sua meta de identidade e eliminação e passar a ter como meta o puro
95
processo primário, ao contrário, estaria sempre restrito a percorrer apenas as vias
associadas à representação de desejo.
PPP
Como comentamos em relação à carta 52, os sistemas pré-consciente e
inconsciente estabelecem uma diferenciação clara entre os processos suscetíveis e os
insuscetíveis de consciência. Os processos secundários (ou o Prcc), por incluírem entre
suas associações representações-palavra, seriam suscetíveis de se tornarem conscientes.
Assim como no “Projeto...”, com exceção das percepções e das sensações de prazer e
desprazer, apenas aqueles processos associativos que envolvessem palavras seriam
capazes de despertar a consciência. Os processos primários, ao contrário, seriam
insuscetíveis de consciência por dois motivos: em primeiro lugar, por permanecerem, ao
menos na normalidade, sob inibição do pré-consciente e, portanto, impedidos de se
tornarem conscientes pela via alucinatória e, em segundo lugar, por não incluírem
representações-palavra entre suas associações, o que não lhes permite alcançar a
consciência pela via normal do pensamento.
Na seção F, Freud comenta que a novidade da sua concepção de inconsciente –
em relação às concepções filosóficas e psicológicas – é a idéia de que este existe de
dois modos na vida psíquica normal, os quais coexistem:
“O que a análise das psicopatologias e seu primeiro elo, o sonho, nos
ensina de novo, é que o inconsciente – por conseguinte, o psíquico –
ocorre como função de dois sistemas separados e isso acontece dentro
da vida normal da alma. O inconsciente
existe portanto de dois modos
, que não são distinguidos pelos psicólogos. Ambos são inconscientes
no sentido da psicologia; mas em nossa concepção, um, que
chamamos Icc, é também insuscetível de consciência,
enquanto que o
outro, Prcc, recebeu de nós esse nome porque suas excitações (...)
podem alcançar a consciência.”
51
reconhecimento dos objetos. Para reconhecer os objetos em geral, seria necessário ter acesso
também às representações desprazerosas.
51
AE, vol. 5, p.602; SA, vol.2, p. 582.
96
No “Projeto...”, já estava presente a idéia de um psíquico inconsciente e
insuscetível de se tornar consciente devido à ausência de vínculos com representações-
palavra. A principal novidade do capítulo 7 em relação a este texto parece ser a hipótese
de que essas representações inconscientes formam o conteúdo dos processos primários
e, portanto, possuem propriedades distintas daquelas do psíquico que possui acesso à
consciência. Para representar essas propriedades distintivas, como Freud esclarece em
1912, é introduzida a concepção dos sistemas inconsciente e pré-consciente. Freud
também esclarece, no capítulo 7, que tipo de representações compõe o psíquico
insuscetível de consciência : não apenas o reprimido, mas moções de desejo que não
chegaram a ser incorporadas ao processo secundário, devido ao estabelecimento tardio
desse processo.
2.5) A relação entre o psíquico inconsciente e a consciência
Como a relação entre os processos psíquicos inconscientes e a consciência é
pensada no capítulo 7? Assim como no “Projeto...”, a consciência é concebida como
algo restrito em relação ao conjunto dos processos psíquicos inconscientes e posterior
em relação a esses. Na seção F, Freud afirma:
“O inconsciente é o círculo mais vasto, que inclui em si o círculo
menor do consciente; todo o consciente tem uma etapa prévia
inconsciente, enquanto que o inconsciente pode persistir nessa etapa e,
não obstante, reivindicar para si o valor íntegro de uma operação
psíquica. O inconsciente é o psíquico verdadeiramente real, nos é tão
desconhecido em sua natureza interna como o real do mundo exterior,
e nos é dado pelos dados da consciência de maneira tão incompleta
como o é o mundo exterior pelas indicações de nossos orgãos
sensoriais.”
52
Em “Sobre a concepção das afasias”, como vimos, Freud formula a hipótese de
que a informação sensorial é sucessivamente reorganizada antes de se converter no
correlato da representação, de forma que este seria uma construção do sistema nervoso a
partir dos dados sensoriais recebidos. Nesse texto, fica claro que, para Freud, o mundo
52
AE, vol. 5, p.600; SA, vol.2, p.580.
97
externo em si não nos seria diretamente acessível. Como ele mesmo diz, ao comentar o
conceito de representação-objeto, a idéia de uma coisa existente independente de nós
pode ser uma inferência feita a partir das nossas sensações. Da mesma forma que o
mundo externo, os processos psíquicos inconscientes seriam em si mesmos
inacessíveis
53
e teriam que ser inferidos a partir dos dados da consciência: “cabe inferi-
los do mesmo modo que as outras coisas naturais”, como é afirmado no “Projeto...”
54
.
Freud, no entanto, afirma a existência de tais processos e os identifica a processos
nervosos.
No artigo metapsicológico sobre o inconsciente, de 1915, Freud retoma essa idéia
expressa no capítulo 7 sobre a incognoscibilidade do inconsciente em si e acrescenta
algo a ela:
“Assim como Kant nos alertou para que não julgássemos a percepção
como idêntica ao percebido incognoscível, descuidando o
condicionamento subjetivo dela, assim a psicanálise nos adverte que
não temos que substituir o processo psíquico inconsciente, que é o
objeto da consciência, pela percepção que esta tem dele. Como o
físico, tão pouco o psíquico é necessariamente na realidade tal como
nos aparece. Não obstante, ficaremos satisfeitos com a constatação de
que a correção da percepção interior não oferece dificuldades tão
grandes como a da percepção exterior, e que o objeto interior é menos
incognoscível que o mundo exterior.
55
Freud acrescenta, em 1915, que o psíquico inconsciente é menos incognoscível
para nós do que o mundo exterior, mas ele não esclarece o porquê disso. Por que a
correção da percepção interna seria mais fácil que a da percepção externa é uma questão
que fica em aberto.
O inconsciente corresponde à maior parte dos processos psíquicos e à parte
principal destes. O inconsciente é o psíquico verdadeiramente real, como diz Freud,
53
Os processos inconscientes poderiam se tornar conscientes por duas vias: pela via do Prcc, ou
seja, ao serem modificados de acordo com relações verbais, e pela via alucinatória, no sonho e
na psicose. O modo como Freud concebe o sonho mostra que, mesmo pela via alucinatória, o
inconsciente não se torna consciente sem sofrer alterações por parte do pré-consciente, isto é,
sem ser alvo da elaboração secundária. Na verdade, o pré-consciente reelabora todo conteúdo
perceptivo, como comentaremos adiante.
54
PP, p.187; EP, p.401.
98
uma vez que o efeito consciente seria apenas “uma repercussão psíquica remota do
processo inconsciente, que, como tal, não se torna consciente”.
56
Mas como, afinal, a
consciência é concebida no capítulo 7?
Embora não esteja representada nos esquemas da seção B, Freud diz que a
“percepção-consciência” seria a operação psíquica de um sistema particular, ao qual ele
atribui a designação abreviada Cc. Tal sistema se situaria ao lado do Prcc – seria o
último sistema da extremidade motora do aparelho – e suas características mecânicas
seriam semelhantes àquelas do sistema P: apresentaria sempre as mesmas capacidades
receptivas, isto é, seria um sistema no qual nenhuma modificação permanente dos
processos que aí ocorressem se conservaria. Freud define a consciência como “um
orgão sensorial para a concepção {Auffassung} de qualidades psíquicas”
57
, cuja função
seria direcionar a “atenção” que atua no Prcc. Parte da energia de ocupação móvel de
que esse sistema disporia, como vimos, seria usada como “atenção”, enquanto outra
seria usada para inibir e direcionar os processos.
58
Ao produzir qualidades, o sistema
consciente, de alguma forma que não nos é explicada, atrairia a atenção pré-consciente e
esta “sobre-ocuparia” aqueles processos dos quais proviesse a excitação da consciência.
Disso decorreria a tomada de consciência de um processo representacional. No
“Projeto...”, quem perceberia seria o eu, pois a atenção é uma função que lhe é
atribuída, agora, no capítulo 7, essa função é atribuída ao Prcc; este seria o agente da
percepção consciente.
Assim como no “Projeto...”, uma coisa é um processo fazer surgir qualidade,
outra é algo ser de fato percebido conscientemente. Para que uma representação fosse de
fato conscientemente percebida, seria preciso que a qualidade por ela despertada fosse
focalizada pelo mecanismo da atenção. Freud esclarece apenas o papel que a
consciência exerceria no aparelho e as condições que os processos psíquicos
inconscientes teriam que satisfazer para se tornarem aptos a despertar a consciência. O
modo de funcionamento desse sistema Cc permanece um enigma, o que não nos causa
surpresa, se lembramos dos problemas relacionados ao sistema ω do “Projeto...”. Neste
55
Freud, vol. 14, p.167; SA, vol.3, p.130.
56
AE, vol. 5, p.600; SA, vol. 2, p.580.
57
AE, vol.5, p.566; SA, vol. 2, p.547.
58
Em algumas ocasiões, Freud usa o termo “atenção da consciência”, mas, na verdade, a
atenção é uma função do Prcc, como demonstra a seguinte afirmação: “O sistema Prcc não só
bloqueia o acesso à consciência, mas preside o acesso à motilidade voluntária e dispõe do
99
texto, a consciência era concebida como o lado subjetivo de uma parte dos processos
neuronais – isto é, dos processos ω –, os quais seriam sensíveis ao período da
quantidade. O sistema ω forneceria signos de qualidade a ψ, e estes seriam ocupados
pela atenção, que seria uma das funções do eu. As sensações de prazer e desprazer,
assim como a atenção às representações perceptivas, seriam indispensáveis para o
funcionamento adequado do aparelho, por isso, a consciência teria um papel
fundamental neste. Como diz Freud, sua supressão não deixaria inalterada as
ocorrências psíquicas. No capítulo 7, esse mesmo papel é atribuído à Cc, e, embora
Freud não fale mais em signos de qualidade, ele atribui a tal sistema a mesma função
que havia sido atribuída ao sistema ω.
Como no “Projeto...”, a consciência era concebida como o lado subjetivo dos
processos do sistema ω, argumentamos que Freud parece deslocar o paralelismo entre
os processos nervosos e os psíquicos, que havia sido sustentado em 1891, para entre
uma parte dos processos psíquicos inconscientes – que são identificados a processos
nervosos – e os fenômenos conscientes. Essa hipótese é mantida no capítulo 7? A
consciência continua sendo pensada como o lado subjetivo de uma parte dos processos
psíquicos inconscientes? Embora não afirme isso explicitamente, parece que essa
continua sendo a posição de Freud.
Na seção F, Freud retoma o exemplo do telescópio, mas, agora, para se referir à
relação entre os sistemas psíquicos e a consciência. Ele afirma:
“Tudo o que pode ser objeto de nossa percepção interior é virtual,
como a imagem dada no telescópio pela propagação dos raios de luz.
Mas os sistemas, que, por sua vez, não são nada psíquicos e nunca
podem ser acessíveis à nossa percepção psíquica, estamos justificados
em supô-los semelhantes às lentes do telescópio, que projetam a
imagem”.
59
Na seção B, como vimos, Freud havia feito uma analogia entre a localidade
anatômica e a lente do telescópio e entre os sistemas psíquicos e o ponto virtual onde se
constitui a imagem. Comentamos que, com tal analogia, Freud parece retomar a
envio de uma energia de ocupação móvel, uma parte da qual nos é familiar como
atenção.”(AE, vol.5, p.602)
59
AE, vol. 5, p.599; SA, vol.2, p.579.
100
concepção proposta em “Sobre a concepção das afasias” sobre a relação entre o
aparelho de linguagem e a anatomia cerebral. Embora possua uma base anatômica, o
aparelho não é identificado com essa base e nem se considera que a anatomia do sistema
nervoso determine inteiramente os processos envolvidos na linguagem. Pode-se supor,
assim, que é nesse sentido que Freud diz, no capítulo 7, que a localidade psíquica é
virtual em relação à anatômica.
Na passagem acima da seção F, Freud diz que o objeto da consciência está para
os sistemas psíquicos assim como o ponto virtual está para a lente do telescópio. Além
disso, Freud diz que os sistemas não são psíquicos, afirmação esta que parece reiterar
que os processos psíquicos aos quais correspondem os sistemas são processos nervosos.
Somando esses dois conjuntos de afirmações, chegamos à conclusão de que os
processos psíquicos inconscientes seriam virtuais em relação à anatomia do sistema
nervoso e os fenômenos psíquicos conscientes seriam virtuais em relação aos processos
psíquicos inconscientes. Dessa forma, talvez seja possível pensarmos que Freud
manteve a hipótese de que os fenômenos conscientes seriam concomitantes a uma parte
dos processos que constituem o campo do psíquico. A consciência continuaria sendo
pensada como algo que poderia se acrescentar a uma parcela dos processos psíquicos,
isto é, que poderia se acrescentar a processos que possuam determinadas características.
No quarto capítulo do seu livro sobre os sonhos, Freud diz: “o tornar-se consciente é
para nós um ato psíquico particular, diferente e independente do processo de
estabelecer-se ou tornar-se representado (...)”
60
. Parece continuar presente a hipótese
de que os processos psíquicos inconscientes sejam processos nervosos, enquanto a
consciência acompanha, é “concomitante” a uma parte desses processos nervosos.
PPP
Freud afirma que “o aparelho psíquico – que, com o orgão sensorial dos sistemas
P, está voltado para o mundo exterior –, é ele mesmo mundo exterior para o orgão
sensorial da Cc, cuja justificação teleológica descansa nessa circunstância.”
61
Inicialmente, apenas as excitações provindas de P e aquelas relacionadas ao prazer e ao
desprazer – isto é, certas oscilações quantitativas dentro do aparelho – seriam capazes
60
AE, vol. 5, p.162; SA, vol.2, p. 160.
61
AE, vol. 5, p.603; SA, vol.2, p.583.
101
de se tornar conscientes. Essa excitação proveniente de P teria que passar por um
complexo processamento antes de se converter em sensação consciente, diz Freud. Ela
teria que percorrer todo o aparelho e passar pelo Prcc, sistema este que submeteria todo
conteúdo perceptivo a novas elaborações:
“Nosso pensamento desperto (pré-consciente) se comporta em relação
a um material perceptivo qualquer de modo idêntico que o faz em
relação ao conteúdo onírico. Compete-lhe, imediatamente, colocar
ordem nesse material, estabelecer relações e adequá-lo a expectativa
de uma trama inteligível”.
62
De acordo com isso, as percepções não despertariam diretamente a consciência.
Todo processo que se tornasse consciente teria uma etapa prévia inconsciente. Portanto,
a consciência continuaria sendo posterior à memória; continuaria sendo concebida como
algo que pode se acrescentar a uma representação dependendo de certas condições.
Freud argumenta novamente, como no “Projeto...”, que a consciência “não é um reflexo
supérfluo do processo psíquico consumado”.
63
As sensações de prazer e desprazer, ao
direcionarem os processos associativos, assim como a percepção dos objetos externos,
contribuiriam para a sobrevivência do sujeito, pois permitiriam a fuga do que lhe
representa perigo e a aproximação ao que lhe é benéfico. Esse direcionamento da
atenção exercido pela consciência teria, então, uma função imprescindível no desenrolar
dos processos psíquicos, e parece ser nesse sentido que Freud diz que a consciência não
é um reflexo supérfluo dos demais processos psíquicos. No “Projeto...”, Freud deixa
claro que a regulação exercida pelas sensações de prazer e desprazer, assim como a
atenção às percepções, são indispensáveis para a sobrevivência do sujeito, tanto que aí a
atenção consistia na segunda regra biológica, e a regulação dos processos a partir das
sensações de desprazer era definida como a primeira regra biológica.
As percepções poderiam surgir no aparelho por duas vias distintas: a partir da
recepção de excitação de origem exógena ou a partir da ocupação do sistema P por
excitação proveniente do interior do aparelho, isto é, dos sistemas de memória. O fluxo
de excitação que percorreria o aparelho do sistema P até a via motora é chamado por
Freud de “progressivo”, e a excitação que o percorreria no sentido inverso, ou seja, dos
62
AE, vol. 5, p.495; SA, vol.2, p.480.
63
AE, vol. 5, p.603; SA, vol. 2, p.583.
102
sistemas de memória ao sistema P, caminharia em sentido “regressivo”. Na vigília, a
excitação em sentido progressivo predominaria, embora também pudesse ocorrer nesse
estado fluxos regressivos, pois uma das etapas da rememoração comum consistiria na
ocupação regressiva do sistema P, como veremos. No estado de sono, ao contrário,
devido ao cessar quase total da corrente progressiva, da redução parcial da atividade do
Prcc – isto é, da liberação do processo primário – e da atração exercida pelas
recordações próximas à percepção, o fluxo regressivo se tornaria bem mais intenso e,
conseqüentemente, a ocupação do sistema P poderia produzir alucinações.
64
Esse
percurso regressivo da excitação teria como resultado a transformação dos pensamentos
em imagens sensoriais – isto é, a partir desse processo os pensamentos seriam
transpostos em percepções e, como toda percepção, seriam capazes de alcançar a
consciência e atrair sobre si a atenção pré-consciente. A reativação alucinatória das
representações poderia ocorrer também, em condições patológicas, durante a vigília, ou
seja, na presença de um fluxo progressivo de excitação intenso. Esses processos
regressivos que conduzem à alucinação, tal como ocorre nos sonhos e nas psicoses,
resgatariam o modo de atividade primário do aparelho: em primeiro lugar, devido ao seu
caráter alucinatório e, em segundo lugar, por submeterem o material representacional
aos princípios formais primários, isto é, aqueles vigentes nos primeiros sistemas Mn.
Nesse sentido é que Freud diz que a “regressão tópica” é também uma “regressão
temporal” e uma “regressão formal”. Essa idéia de regressão tópica foi proposta por
Breuer nos “Estudos sobre a histeria” e já estava presente no “Projeto...”, onde Freud
propõe que a alucinação resultaria de uma ocupação regressiva do sistema φ a partir de
ψ.
Então, a consciência originalmente decorreria apenas das sensações de prazer e
desprazer e das percepções, e estas últimas poderiam surgir no aparelho por dois
caminhos distintos. Freud mantém, ainda, a idéia de que com a associação dos processos
às palavras, surgiria um novo tipo de consciência, intermediado pelas associações
lingüísticas. Antes da constituição das representações-palavra, os processos psíquicos
seriam regulados automaticamente pelas sensações de prazer e desprazer. Com a
associação de tais processos a palavras, eles de certa forma, se tornariam independentes
64
No sonho, devido ao cessar parcial da atividade pré-consciente, o processo primário seria liberado –
ocorreria um processo de dissolução no aparelho - e tentaria alcançar a consciência e a motilidade pela
via progressiva. Como o Prcc barraria essa tentativa, o processo inconsciente, atraído pelas representações
próximas ao sistema perceptivo, tomaria o sentido regressivo e acabaria produzindo uma alucinação.
103
dessa regulação imposta pelo prazer e pelo desprazer. Ao comentar o papel dos signos
lingüísticos nos processos associativos, Freud diz que é a associação com a
representações-palavra que tornaria possível o acesso, por parte da ocupação pré-
consciente, a representações desprazerosas, o que aperfeiçoaria o modo de operação do
aparelho, pois instauraria uma regulação dos processos mais fina, do que aquela
primária, exercida pelas sensações de prazer e desprazer:
“É provável que inicialmente o princípio de desprazer regule
automaticamente os deslocamentos da ocupação; mas é muito possível
que a consciência destas qualidades agregue uma segunda regulação,
mais fina, que até pode contrariar a primeira e que aperfeiçoa a
capacidade de operação do aparelho, uma vez que, em oposição à sua
disposição originária, o habilita para submeter à ocupação e à
elaboração também aquilo que se liga a um despreendimento de
desprazer”.
65
Na seção E, Freud diz que é o estado ligado da excitação no processo secundário
que faz com que este tenha acesso a uma parte das representações desprazerosas; na
seção F, ele afirma que tal acesso é possibilitado pela associação dos processos a
representações-palavra. Essas duas afirmações sugerem que é a constituição das
representações-palavra que instaura os processos secundários, isto é, que permite o
ligamento da excitação em estado livre. Essa hipótese será explicitada no artigo
metapsicológico sobre o inconsciente, de 1915.
Ao contrário do “Projeto...”, Freud não especifica no capítulo 7 por que a palavra
é capaz de produzir a consciência. Há uma afirmação na seção B que, somada a uma
idéia presente na carta 52, permite formular uma hipótese a este respeito. Nesta carta,
Freud diz que a consciência do pensamento está ligada à “reanimação alucinatória” da
representação-palavra. No capítulo 7, ele afirma que “o recordar intencional e outros
processos parciais de nosso pensamento normal correspondem a uma marcha para
trás {Rückschreiten} dentro do aparelho psíquico”.
66
De acordo com a hipótese do
aparelho psíquico, pela via regressiva um pensamento se tornaria percepção – este seria
o mecanismo responsável pela ativação alucinatória de uma imagem perceptiva. Se o
65
AE, vol. 5, p.604; SA, vol.2, p.584.
104
que permite a consciência do pensamento – a rememoração – é sua associação com
palavras e se a rememoração ocorre pela via regressiva, nesse processo as palavras
seriam transpostas em percepções e, como toda percepção, poderiam alcançar a
consciência e atrair sobre si a atenção. Então, a consciência do pensamento seria
possibilitada pela reativação alucinatória da representação-palavra, como diz Freud na
carta 52. O termo alucinatório significaria aí apenas que o processo se daria pelo mesmo
caminho da alucinação. Essa reativação da palavra teria que ser pouco intensa para não
se confundir com uma alucinação de fato, ou seja, tratar-se-ia de uma reativação
alucinatória controlada pelo processo secundário.
Essa hipótese sobre o mecanismo pelo qual as associações lingüísticas poderiam
despertar a consciência, no entanto, difere daquela apresentada no “Projeto...” e torna
problemático entender por que apenas a palavra possibilitaria a consciência do
pensamento. Em 1895, como vimos, Freud havia formulado a hipótese de que a palavra
seria capaz de produzir signos de qualidade devido ao seu elemento cinestésico. A
ocupação deste último, como todo movimento, produziria uma percepção e, portanto,
como toda percepção, seria capaz de despertar signos de qualidade e atrair sobre si a
atenção. Essa hipótese do “Projeto...” é incompatível com a idéia de que é a reanimação
alucinatória da palavra que permite a rememoração, pois, no aparelho psíquico, a
percepção produzida pelos movimentos – no caso, pela ocupação da imagem cinestésica
da palavra – não se daria pela via regressiva, mas pela progressiva. A idéia de que é a
partir da sua ativação alucinatória que a palavra se torna percepção e desperta a
consciência parece tornar dispensável a suposição do “Projeto...” de que só o elemento
cinestésico da palavra poderia produzir qualidades e, na verdade, parece tornar
dispensável também a suposição de que só a palavra seria capaz de fazê-lo.
Uma vez que a percepção só alcançaria a consciência após passar por todos os
sistemas que separam os dois extremos do aparelho – tendo em vista que os sistemas
consistem, na verdade, em vários níveis de processos, podemos dizer que a informação
sensorial exógena só se torna consciente após passar por uma série de processos -, a
rememoração teria uma primeira etapa regressiva, na qual as palavras seriam transpostas
em percepções, e uma segunda etapa progressiva, a partir da qual a percepção se
tornaria consciente. Assim, a percepção ordinária – isto é, aquela produzida pela
recepção de estímulos exógenos – se daria por um processo progressivo, e a
66
AE, vol. 5, p.536; SA, vol. 2, p.518.
105
rememoração possuiria duas etapas: uma regressiva e outra progressiva, assim como a
alucinação. A diferença entre a rememoração e a alucinação seria apenas quantitativa.
Freud propõe a existência de uma censura entre os sistemas Cc e Prcc, assim
como a que haveria entre este último sistema e o Icc, a qual entraria em função acima de
um certo limite quantitativo, de modo que pensamentos de pouca intensidade se
subtrairiam a sua ação. Com essa hipótese, ele parece estar propondo que, mesmo entre
os processos que envolvessem palavras, haveria alguns que não poderiam se tornar
conscientes devido a sua baixa intensidade, que parece implicar que há, de certa forma,
um “insuscetível de consciência” no Prcc. Dois fatores tornariam um processo pré-
consciente apto a despertar a consciência: estar associado a palavras e possuir uma
intensidade acima de um certo limiar. No entanto, esses processos “aptos a despertar a
consciência” só a despertariam de fato se não fossem barrados pela censura presente
entre o Prcc e a CC. Sendo assim, com exceção das percepções e das sensações de
prazer e desprazer, apenas aqueles processos que estivessem associados a palavras, que
possuíssem uma certa intensidade e que não fossem barrados pela censura poderiam se
tornar conscientes. Freud afirma com referência ao Prcc: “(...) suas excitações –
certamente obedecendo também a certas regras e, talvez, só depois de superar uma
nova censura, mas sem consideração pelo sistema Icc – podem alcançar a
consciência.”
67
Contudo, o que seria essa censura e como ela atuaria permanece um
enigma.
Considerações finais
O que podemos concluir, a partir desta análise do capítulo 7, a respeito das
questões que este trabalho tem como objetivo desenvolver? Em primeiro lugar, sobre a
natureza do psíquico inconsciente e sobre o estatuto da metapsicologia, argumentamos
que não há nada nesses textos que indique que houve uma mudança substancial na
posição de Freud em relação ao que havia sido sustentado no “Projeto...”: Freud
manifesta sua intenção de deixar de lado a tentativa de estabelecer uma correspondência
anatômica para o aparelho, o que, como dissemos, já poderia ter sido feito desde 1891,
pois a forma como ele passa a conceber desde esntão a relação entre os processos que
67
AE, vol. 5, p.602; SA, vol.2, p.582.
106
compõe o aparelho e a anatomia tornaria dispensável recorrer-se à anatomia para
explicar tais processos. No entanto, não há motivos para concluirmos que a
identificação entre os processos psíquicos inconscientes e os processos nervosos tenha
sido descartada. Ao contrário, na seção F, fica claro que essa hipótese foi mantida;
Freud, de fato, parece abandonar provisoriamente a tentativa de fornecer uma
explicação neurológica para os fatos psíquicos, mas ele não teria deixado de acreditar na
possibilidade de tal explicação. A sua intenção de “permanecer no campo psicológico”,
manifesta no início da seção B, não teria decorrido de uma mudança em sua concepção
acerca da natureza do psíquico inconsciente. A passagem da carta a Fliess mencionada
acima nos sugere que essa decisão de permanecer no campo da psicologia tornou-se
necessária, nesse momento, devido às dificuldades encontradas para dar continuidade a
suas especulações neurológicas. Tais dificuldades o teriam o levado a formular sua
teoria metapsicológica “como se” apenas o psicológico estivesse em exame. Várias
afirmações posteriores de Freud, como veremos, ressaltam sua crença na provisoriedade
dessa medida.
A representação parece continuar sendo pensada, no capítulo 7, como um
processo psíquico, totalmente independente da consciência, que envolveria neurônios,
resistências, facilitações; enfim, embora Freud não tematize explicitamente esses
conceitos, ele os menciona algumas vezes ao se referir à memória, o que nos leva a crer
que a representação continua sendo concebida da mesma forma que no “Projeto...”. As
referências de Freud aos processos psíquicos como processos nervosos nos permitem
descartar a hipótese de que, quando volta a falar em neurônios e facilitações, ele está
empregando metáforas neurológicas para se referir a alguma coisa de diferente do
sistema nervoso. No entanto, na carta 52 e no capítulo7, surgem algumas modificações
na forma como a memória é concebida, que tornam sua abordagem mais complexa.
Em primeiro lugar, na carta 52, Freud propõe a hipótese de que o sistema de
memória possui vários princípios associativos, cada um dos quais predominaria em uma
etapa do desenvolvimento do sujeito. Ao longo desse desenvolvimento, as
representações seriam sucessivamente rearranjadas, de forma que um mesmo conteúdo
mnêmico poderia possuir qualidades distintas em diferentes períodos da vida. Para
representar a estratificação da memória, Freud introduz o esquema tópico, no qual cada
uma dessas etapas de constituição da memória corresponderia a um sistema mnêmico
diferente. Esse esquema permite estabelecer uma diferenciação mais clara entre os
processos suscetíveis e os insuscetíveis de consciência. No “Projeto...”, já estava
107
presente a hipótese de que a consciência corresponde a uma pequena parte do campo da
representação; de que algumas representações podem nunca ter sido conscientes e de
que é o vínculo com a palavra que determina a suscetibilidade à consciência de uma
representação; mas não havia, em 1895, uma distinção tópica entre o campo psíquico
suscetível e o insuscetível de se tornar consciente. Ambos estariam incluídos no sistema
ψ e o que os diferenciaria seria apenas a presença ou não de vínculos com palavras e,
em caso negativo, o motivo da ausência de tal vínculo.
Na seção B do capítulo 7, Freud retoma a hipótese da estratificação dos sistemas
de memória e, na seção F, ele afirma que os sistemas Prcc e Icc, na verdade,
correspondem a dois tipos de processos: os processos primários e os secundários, que já
haviam sido mencionados no “Projeto...”. Ele esclarece aí que a representação tópica é
uma representação auxiliar que se aproxima menos da realidade do que outra que
figurasse o psíquico suscetível e o insuscetível de consciência como dois tipos de
processos. Com isso, Freud acrescenta à hipótese de que existe um psíquico insuscetível
de consciência e ativo apresentada no “Projeto...”, a hipótese de que esses processos
psíquicos possuem propriedades diferentes daquelas do psíquico suscetível de se tornar
consciente. Em 1912, Freud afirma que foi a análise dos sonhos que o levou a esta
conclusão e que, para representá-la, ele introduziu a noção de um sistema inconsciente.
À idéia de um inconsciente dinâmico, acrescenta-se, então, no capítulo 7, a do
inconsciente enquanto um sistema, a qual visa demarcar as características peculiares ao
inconsciente descoberto pela psicanálise.
Os processos insuscetíveis de consciência não seriam apenas, como no
“Projeto...”, aqueles excluídos das associações verbais, mas seriam processos primários
e, por isso, eles seriam indestrutíveis, atemporais, regidos unicamente pelo princípio do
prazer. Aqueles suscetíveis de consciência seriam processos secundários e, portanto,
levariam em conta a realidade, seriam destrutíveis, comportariam a idéia de tempo. A
equiparação entre o sistema inconsciente e o psíquico insuscetível de consciência, por
um lado, e entre o sistema pré-consciente e o suscetível de consciência, por outro,
parece não ser coerente com a suposição de que haveria uma censura entre os sistema
Prcc e Cc. O fato de alguns processos pré-conscientes serem barrados por tal censura
parece implicar a existência de algo insuscetível de consciência no Prcc. Mas Freud não
se refere a essa questão. Apenas em 1923, no texto “O Eu e o Isso”, ele irá reconhecê-
la.
108
Freud especifica também, no capítulo 7, qual é o conteúdo do sistema Icc: as
moções de desejo desde a origem inconscientes e as representações que, por se
associarem a tais moções de desejo, foram reprimidas. A associação entre o sistema Icc
e os processos primários, e entre o Prcc e os processos secundários, portanto, introduz
características distintivas entre os processos psíquicos suscetíveis e os insuscetíveis de
consciência. Esta hipótese e a das sucessivas transcrições do mesmo conteúdo mnêmico,
de acordo com princípios associativos distintos, parecem ser as principais novidades que
surgem na forma como a memória é concebida nesse período da teoria freudiana.
A relação dos processos psíquicos com o somático torna-se mais obscura no
capítulo 7, e algumas das funções que eram atribuídas, no “Projeto....”, ao eu são
transferidas ao sistema Prcc. Embora Freud continue pensando o desenvolvimento do
aparelho psíquico como resultante da necessidade de dar um destino adequado para a
excitação de origem endógena, a relação entre o psíquico e o somático não se encontra
representada topicamente, ao contrário do “Projeto...”. Contudo, está implícita uma
ligação do sistema inconsciente com o somático, pois daí resulta o fato dos desejos
pertencentes a tal sistema estarem “sempre alertas”.
PPP
A relação entre os processos psíquicos e a consciência é pensada de forma muito
próxima ao “Projeto...”: a consciência seria restrita e secundária em relação ao campo
das representações. No entanto, ela teria uma função fundamental no aparelho e seria
imprescindível para seu funcionamento e para a manutenção da vida. Argumentamos
que não parece ser possível afirmar que Freud abandonou a hipótese de que a
consciência seria concomitante a uma parte dos processos psíquicos inconscientes,
embora ele também não retome explicitamente essa hipótese.
As características dos processos que comporiam o substrato material da
consciência – isto é, dos processos do sistema Cc – tornam-se mais obscuras que no
“Projeto...”. Freud diz apenas que tal sistema seria sensível a qualidades e que sua
função seria regular os processos do Prcc, mas seu mecanismo está longe de ter sido
plenamente explicado.
As condições que tornariam um processo psíquico apto a despertar a consciência
são próximas aquelas consideradas no “Projeto...”. Com exceção das percepções e das
sensações de prazer e desprazer, apenas aqueles processos associados a palavras, que
109
possuíssem uma certa intensidade, que não fossem barrados pela censura que atuaria
entre o Prcc e o Cc, e que fossem focalizados pelo mecanismo da atenção se tornariam,
de fato, conscientes. Tudo isso deixa claro que, para Freud, a consciência é o menos
provável no psíquico; ela é mais a exceção do que a regra.
Embora a noção de signos de qualidade não seja explicitamente retomada no
capítulo 7, é mantida aí a hipótese de que, para uma representação ser percebida
conscientemente, ela teria que alcançar o sistema Cc, que faria surgir qualidades, e ser
ocupada pelo mecanismo da atenção. As hipóteses da censura e da dependência da
possibilidade de consciência em relação à intensidade do processo não eram
mencionadas no “Projeto..”, mas, como veremos adiante, nos artigos metapsicológicos,
há indicações de que a censura esteja relacionada com o mecanismo da atenção, de
forma que apenas a necessidade de que o processo apresente uma determinada
intensidade parece representar uma novidade em relação ao “Projeto...”. Tendo em vista
essas condições que os processos pré-conscientes teriam que cumprir para de fato se
tornarem conscientes, podemos dizer que, na verdade, apenas uma parte dos processos
pré-conscientes – não a totalidade dos processos que comporiam esse sistema –
constituiriam o psíquico passível de consciência. Todo processo capaz de despertar a
consciência pela via normal do pensamento seria pré-consciente, mas o inverso não
seria verdadeiro.
Ao comentarmos o “Projeto...”, dissemos que a partir deste texto, é possível
inferir a possibilidade de três tipos de representações inconscientes: aquelas que nunca
teriam sido associadas a representações-palavra, aquelas que teriam perdido o seu
vínculo com a palavra e aquelas que estariam ligadas a palavras, mas cujos signos de
qualidade não fossem ocupados pelo eu. As duas primeiras seriam inconscientes e
insuscetíveis de consciência, e a terceira seria inconsciente, mas suscetível de
consciência. Dessa forma, as representações inconscientes e insuscetíveis de
consciência seriam representações-objeto que não possuiriam vínculos com palavras.
No capítulo 7, a representação inconsciente parece ser pensada da mesma forma;
contudo, agora, Freud propõe que o psíquico insuscetível de consciência consista em
processos primários, o que lhes confere características próprias que o distinguem dos
processos suscetíveis de consciência.
Quando pensamos no capítulo 7 em relação ao “Projeto...”, ficamos com a
impressão de que muitas hipóteses são omitidas no primeiro texto ou permanecem
apenas subentendidas. As dificuldades com que Freud se deparou neste último texto
110
tornam essa sua postura compreensível; fica claro, porém, que Freud não descartou, de
fato, as teses do “Projeto...”. Ele parece ter se preocupado, no capítulo 7, em
desenvolver suas hipóteses a respeito de apenas uma parte do aparelho neuronal, isto é,
do sistema ψ, e optado por omitir as questões mais problemáticas.
111
III. PULSÃO, AFETO E REPRESENTAÇÃO NOS ARTIGOS
METAPSICOLÓGICOS
O objetivo dos artigos metapsicológicos de 1915, segundo o que Freud afirma no
texto “Complemento metapsicológico à doutrina dos sonhos” (1917[1915]), é
esclarecer e aprofundar as hipóteses teóricas que poderiam ser colocadas na base de um
sistema psicanalítico.
1
Freud dá continuidade à especulação metapsicológica
desenvolvida no “Projeto...”, no capítulo 7 e em alguns textos intermediários entre este
último e os artigos sobre metapsicologia. De acordo com o que nos informa Strachey
(1998c), a intenção de Freud era publicar em um mesmo livro, além dos cinco artigos
que chegaram de fato a ser publicados separadamente, outros sete artigos, um dos quais
trataria especificamente da questão da consciência. Apesar de tê-los escrito, Freud não
os publicou e apenas um deles foi encontrado e publicado postumamente; dos outros
seis nunca se teve notícia, o que, muito provavelmente, deve ter contribuído para a
presença de algumas lacunas nas explicações de várias noções nos artigos
metapsicológicos que chegamos a conhecer. Em várias ocasiões, em vez de continuar a
reflexão sobre algum fato relacionado à consciência, por exemplo, Freud a interrompe e
diz que retomará tal reflexão no artigo que versará exclusivamente sobre essa questão.
Mas, sem dúvida, esse não é o único motivo responsável pelos problemas presentes nos
textos metapsicológicos. Em 1915, muitas das hipóteses que haviam sido bem
estabelecidas no capítulo 7, já estão sendo questionadas por Freud, o que acabará
levando-o, mais tarde, a formular o esquema da segunda tópica. Como se sabe, alguns
textos que se intercalam entre o capítulo 7 e os artigos metapsicológicos
2
iniciam e
desenvolvem questões que são tratadas em 1915. Esses textos serão mencionados ao
longo do comentário dos artigos sobre metapsicologia, à medida que isso se fizer
necessário.
1
AE, vol.14, p.221, nota 1.
2
Principalmente: “Formulações sobre os dois princípios do acontecimento psíquico” (1911), a
terceira parte de “Observações psicanalíticas sobre um caso de paranóia descrito
112
1) A relação entre o psíquico inconsciente e os processos nervosos nos
artigos metapsicológicos
Ao comentarmos o capítulo 7, argumentamos que, nesse texto, Freud abandona a
tentativa de estabelecer uma correspondência anatômica para o aparelho psíquico,
embora ele reconheça a existência de tal base anatômica. Argumentamos também que,
embora o vocabulário psicológico passe a predominar e Freud manifeste sua intenção
de permanecer dentro do campo da psicologia, ele parece não ter abandonado a hipótese
de que os processos psíquicos inconscientes sejam processos nervosos e que apenas a
tentativa de explicá-los em termos neurológicos estava sendo deixada de lado. Como
fica essa questão nos artigos metapsicológicos e no período que antecede 1915?
Em alguns dos textos do período entre “A interpretação dos sonhos” e os artigos
sobre metapsicologia, Freud faz algumas afirmações que nos permitem inferir que ele
mantém aquela mesma postura de 1900. Embora não queira se comprometer, no
momento, em tratar os processos psíquicos inconscientes de uma perspectiva
neurológica, Freud parece manter a hipótese de que tais processos sejam processos
nervosos que, um dia, poderão ser explicados enquanto tais. Em “O chiste e sua relação
com o inconsciente” (1905), Freud diz:
“(...) já em “A interpretação dos sonhos”(1900) tentei, em harmonia
com Lipps, situar o “psíquico genuinamente eficaz” nos processos
psíquicos em si inconscientes e não nos conteúdos da consciência (...)
As experiências acerca da deslocabilidade da energia psíquica ao
longo de certas vias associativas e acerca da quase indestrutível
conservação dos traços dos processos psíquicos, tem me sugerido, de
fato, tentar essa figuração do desconhecido. Para evitar um mal
entendido devo acrescentar que não pretendo proclamar como esses
caminhos as células e feixes, nem os sistemas de neurônios que estão
tomando o seu lugar hoje, embora seja forçoso que esses caminhos
sejam figuráveis, de uma maneira que ainda não sabemos indicar, por
certos elementos orgânicos do sistema nervoso”.
3
autobiograficamente”(1911[1910]), “Nota sobre o conceito de inconsciente na psicanálise”
(1912) e “Introdução ao narcisismo” (1914).
3
AE, vol.8, p.141.
113
Em O interesse pela psicanálise(1913), mais uma vez, Freud deixa claro que
essa abordagem dos processos inconscientes a partir das categorias da psicologia da
consciência é adotada devido à dificuldade encontrada, no momento, em tratar tais
processos de uma perspectiva fisiológica:
“De fato, desde o lado do seu nexo com o consciente, com o qual tem
tantas coisas em comum, é fácil descrever o inconsciente e perseguí-lo
em seus desenvolvimentos. Contudo, hoje, parece não haver
possibilidade de se aproximar dele pelo lado do processo físico.
Portanto, tem que continuar sendo objeto da psicologia.”
4
Em “Introdução ao narcisismo (1914), Freud afirma:
“(...) deve-se recordar que todas as nossas provisoriedades
psicológicas deverão, um dia, se assentar no terreno dos substratos
orgânicos”.
5
Em todas essas passagens, Freud ressalta a provisoriedade de uma abordagem
exclusivamente psicológica do psíquico inconsciente e deixa claro que sua opção por
permanecer no campo da psicologia não resultou de uma mudança no seu modo de
conceber a natureza do psíquico inconsciente. Nos artigos metapsicológicos, ao que
tudo indica, ele mantém essa mesma postura.
Na segunda parte do artigo “O inconsciente”, Freud volta a se manifestar contra
aquele “localizacionismo” que ele havia criticado em “Sobre a concepção das afasias”.
Ele argumenta novamente que, embora não seja possível localizar cada uma das
funções psíquicas em regiões anatômicas delimitadas, é preciso reconhecer que o
psíquico possui uma base anatômica. No entanto, devido à impossibilidade atual de
esclarecer a relação entre o psíquico e a anatomia, “provisoriamente”, tal relação terá
que ser deixada de lado:
4
AE, vol.13, p.181
.
5
AE, vol.14, p.76; SA,vol.3, p.46.
114
“Nossa tópica psíquica provisoriamente nada tem a ver com a
anatomia; se refere a regiões do aparelho psíquico, onde quer que
estejam situadas dentro do corpo, e não a localidades anatômicas”.
6
O próprio Freud destaca a palavra “provisoriamente”, provavelmente para
enfatizar que a existência de uma base anatômica continua sendo pressuposta. Nos
artigos metapsicológicos, assim como no capítulo 7, ele manifesta sua intenção de
deixar de lado a tentativa de estabelecer a localização anatômica do aparelho psíquico,
mas não deixa de nos chamar a atenção para a provisoriedade dessa medida. Não há
nada nesses textos de 1915 que indique que ele abandonou a hipótese de que os
processos psíquicos inconscientes sejam processos físicos do sistema nervoso.
7
Ao
contrário, em “O inconsciente” (1915), fica claro que sua opção por tratar o psíquico
inconsciente de uma perspectiva psicológica – a partir das categorias da psicologia da
consciência, como diz Freud – resultou da conveniência desse tipo de abordagem, e não
de alguma crença sobre a natureza do seu objeto de estudo. Em “O interesse pela
psicanálise” (1913), como vimos, isso já havia sido dito.
Na primeira parte do artigo metapsicológico sobre o inconsciente, onde elabora
uma justificativa do conceito psicanalítico de inconsciente, Freud levanta a questão de
se os estados psíquicos de caráter latente não deveriam ser considerados processos
somáticos dos quais o psíquico (o consciente) pudesse brotar de novo – hipótese que ele
sustentara em 1891 – em vez de serem considerados fatos psíquicos. Ele agora responde
negativamente a essa questão, argumentando que essa hipótese se baseia na igualação
entre o psíquico e o consciente, a qual não passa de uma convenção infrutífera, pois:
“(...)Dilacera as continuidades psíquicas, nos precipita nas
dificuldades insolúveis do paralelismo psicofísico, está exposta a
reprovação de que sobrestima sem fundamentação visível o papel da
consciência e nos compele a abandonar antes do tempo o âmbito da
indagação psicológica, sem nos oferecer recompensas em outros
campos”.
8
6
AE, vol.14, p.170; SA, vol.3, p.133
.
7
Em algumas passagens Freud se refere explicitamente ao “sistema nervoso” ou à “energia
nervosa” ao falar dos processos psíquicos. Por exemplo: “Pulsões e seus destinos”(AE, vol. 14,
p.115), “O inconsciente”(AE, vol. 14, p.185).
8
AE, vol.14, p.164; SA, vol. 3, p.126.
115
Freud parece querer dizer que, se partíssemos do pressuposto de que o psíquico
restringe-se ao consciente, só nos restaria considerar os processos inconscientes que
determinam os fenômenos conscientes como processos puramente somáticos e, nesse
caso, o âmbito do psicológico ficaria muito limitado. Uma psicologia que se restringisse
à investigação da consciência não conseguiria explicar grande parte das manifestações
psíquicas. Por outro lado, se os processos inconscientes que determinam os conscientes
não fossem abordados de uma perspectiva psicológica, não se conseguiria explicá-los e
descrevê-los satisfatoriamente a partir de outro referencial, ao menos por enquanto. No
entanto, nada impede que a noção de psíquico seja estendida para além das fronteiras da
consciência e passe a abarcar também fatos inconscientes. Essa é a posição adotada por
Freud desde o “Projeto...”; os processos inconscientes devem ser considerados
processos psíquicos. Mas seriam eles também processos físicos ? Freud argumenta, na
continuação do texto, que o que se sabe, com certeza, acerca da natureza dos processos
psíquicos inconscientes é que:
“(...) em seus caracteres físicos, nos são totalmente inacessíveis;
nenhuma representação fisiológica, nenhum processo químico pode
nos comunicar sua essência. Por outro lado, se comprova que mantêm
o mais amplo contato com os processos psíquicos conscientes; com
um certo rendimento de trabalho podem ser transpostos nestes, ser
substituídos por estes; e admitem ser descritos com todas as categorias
que aplicamos aos atos psíquicos conscientes, como representações,
aspirações, decisões, etc. E ainda de muitos desses estados latentes
temos que dizer que não se distinguem dos conscientes se não,
precisamente, porque lhes falta a consciência. Por isso, não
vacilaremos em tratá-los como objetos de investigação psicológica, e
no mais íntimo enlace com os atos psíquicos conscientes.”
9
Então, ao mesmo tempo em que se depara com dificuldades para explicar o
psíquico inconsciente em termos de suas propriedades físicas, Freud percebe que as
categorias da psicologia da consciência podem ser adequadas para explicá-lo, o que o
leva a adotar esse tipo de abordagem. Mas fica claro, como dissemos anteriormente, que
9
AE, vol.14, p.164; SA, vol. 3, p.127.
116
tal escolha não se encontra relacionada com nenhuma hipótese sobre a natureza
irredutivelmente mental do psíquico inconsciente. As várias afirmações de Freud de sua
crença na possibilidade de que um dia “as provisoriedades psíquicas se assentassem no
terreno dos substratos orgânicos”, indicam que ele mantém ainda a hipótese da
identificação entre o psíquico inconsciente e os processos nervosos defendida no
“Projeto...”. A seguinte passagem da 24
a
das “Conferências de introdução à
psicanálise”(1915-1916) deixa isso claro:
“O edifício da doutrina psicanalítica, que nós temos criado, é na
realidade uma superestrutura destinada a receber algum dia seu
fundamento orgânico; mas todavia não o conhecemos.”
10
A opção de tratar o psíquico inconsciente de uma perspectiva psicológica não
levou, em nenhum momento, a um abandono total do referencial neurológico. Na
verdade, os pressupostos neurológicos básicos do aparelho neuronal do ‘Projeto...”
continuam constituindo a base da teoria freudiana:
Não apenas aportamos a nosso material empírico certas convenções
na qualidade de conceitos básicos, como nos servimos de muitas
premissas
complexas para nos guiarmos na elaboração do mundo dos
fenômenos psicológicos. Já mencionamos a mais importante delas; só
nos resta destacá-la de maneira expressa. É de natureza biológica,
trabalha com o conceito de tendência (possivelmente, da adequação a
fins) e diz: O sistema nervoso é um aparelho que tem a função de se
livrar dos estímulos que o alcançam, de reduzi-los ao nível mínimo
possível; dizendo de outro modo, é um aparelho que, se possível,
queria se conservar isento de todo estímulo.”
11
Podemos concluir, portanto, que, no período de 1900 a 1915, não houve nenhuma
alteração significativa na concepção freudiana sobre a relação entre os processos
psíquicos inconscientes e os processos nervosos. Sua intenção, enunciada no capítulo 7
de “A interpretação dos sonhos”, de permanecer no campo da psicologia, não decorreu
10
AE, vol.16, p.354
11
AE, vol.14, p.115; SA, vol.3, p. 83.
117
de nenhuma mudança em sua concepção sobre a natureza do mental. Vejamos, agora,
diante desse quadro, como o aparelho psíquico é repensado por Freud nos artigos
metapsicológicos.
2) O aparelho psíquico
Como já mencionamos anteriormente, Freud mantém, nos artigos
metapsicológicos, as mesmas hipóteses do “Projeto...” sobre a tendência fundamental da
atividade psíquica e sobre o desenvolvimento inicial do aparelho. Em “Pulsões e
destinos das pulsões” (1915), ele retoma claramente essas hipóteses. Em sua origem, o
funcionamento psíquico seria guiado pela tendência a descarregar da forma mais direta
possível, pela via motora, toda a excitação recebida. No entanto, a necessidade de
satisfazer as necessidades vitais levaria à modificação dessa tendência inicial do
aparelho e o obrigaria a manter um certo nível de excitação, passando a levar em conta a
realidade externa e a tentar atuar sobre esta. A necessidade de dar um destino adequado
à excitação de origem endógena seria impulsora de toda a atividade psíquica.
Em “Formulações sobre os dois princípios do acontecimento psíquico” (1911),
texto onde faz uma recapitulação das hipóteses do “Projeto...” sobre a gênese dos
processos psíquicos, Freud diz que esse funcionamento psíquico que leva em conta a
realidade é regido pelo “princípio de realidade” e contrapõe este tipo de funcionamento
àquele originário, regido unicamente pelo princípio do prazer. Freud acrescenta aí a
hipótese de que a substituição do princípio de prazer pelo de realidade não aconteceria
de uma só vez, pois as pulsões sexuais permaneceriam mais tempo sob o domínio do
princípio do prazer do que as pulsões egóicas. Estas últimas cederiam antes que as
primeiras ao princípio de realidade, devido à impossibilidade de satisfação que elas
encontrariam, desde o início, em um funcionamento regido unicamente pelo princípio
do prazer. As pulsões sexuais, ao contrário, devido ao seu caráter auto-erótico inicial,
poderiam ser originariamente satisfeitas sem terem que levar em conta a realidade. Essa
ausência de frustração faria com que as pulsões sexuais demorassem mais que as
egóicas para se submeterem ao princípio de realidade. Esse acréscimo à sua teoria sobre
a gênese da atividade psíquica é decorrente da introdução da noção de pulsão e da
primeira dualidade pulsional na teoria freudiana, ocorrida ao longo do período que
separa esse texto do “Projeto...”.
118
No capítulo 7, Freud havia formulado a hipótese de que o aparelho psíquico
seria composto por uma série de sistemas de memória, cada um deles regido por
princípios associativos diferentes, os quais se situariam entre a percepção e a via
motora. Três dos sistemas de memória tinham sido ali especificados: Icc, Prcc e Cc. Na
seção F do capítulo 7, Freud diz que os sistemas Prcc e Icc consistem, na verdade, em
dois tipos de processos – os processos primário e secundário – e, a partir de então, ele
não mais menciona os outros sistemas de memória que haviam sido inseridos, na
representação tópica, entre P e Icc. Esses sistemas, ao que parece, estariam incluídos
nos processos primários; princípios associativos distintos deveriam, assim, estar
presentes nesses processos. A excitação proveniente do mundo externo incidiria sobre
P, de onde seguiria para Icc, Prcc e, enfim, Cc. Embora a relação do aparelho psíquico
com o somático não seja representada no esquema, está implícito no texto que o
somático tem que estar conectado ao sistema inconsciente. Sendo assim, tanto os
processos incitados no aparelho a partir da estimulação exógena, como aqueles incitados
pela estimulação endógena ocorreriam no mesmo sentido.
Nos artigos metapsicológicos, grande parte dessas hipóteses passam a ser
questionadas. Apenas os sistemas Icc, Prcc e Cc continuam presentes em sua teoria; os
demais sistemas de memória incluídos nos esquemas da carta 52 e do capítulo 7 não
voltam a ser mencionados. Freud manifesta, ao longo dos artigos, sua dúvida sobre a
necessidade de diferenciar entre os sistemas Prcc e Cc. Apenas em “Complemento
metapsicológico a doutrina dos sonhos” (1917), o penúltimo artigo escrito, ele conclui
que é preciso distinguir entre esses dois sistemas por razões que veremos adiante. Nos
artigos anteriores, Freud se refere ao “Cc ou Prcc” ou a qualquer um desses sistemas
indistintamente. A relação dos sistemas com a excitação de origem endógena volta a ser
objeto da reflexão metapsicológica e também a noção de “eu” reaparece na teoria. No
entanto, o papel do eu na tópica não está ainda bem especificado; não há uma
correspondência estrita que possa ser estabelecida entre o eu e algum dos sistemas; suas
funções parecem estar distribuídas entre os vários sistemas que a compõem, como
veremos adiante.
A relação entre os sistemas de memória e os órgãos da percepção e da
motilidade torna-se confusa nos artigos metapsicológicos. Freud oscila continuamente
entre duas hipóteses distintas: aquela proposta no capítulo sete e uma outra, que se
aproxima daquela do “Projeto...”. Em uma passagem de “O inconsciente”, por exemplo,
ele diz:
119
“Nas raízes da atividade pulsional os sistemas se comunicam
entre si da maneira mais ampla. Uma parte dos processos aí excitados
passam pelo Icc como por uma etapa preparatória, e na Cc alcançam a
conformação psíquica mais alta; outra parte é retida como Icc. Mas o
Icc é alcançado também pelas vivências que provêm da percepção
exterior.”
12
De acordo com esta passagem, o sistema Icc estaria ligado tanto ao somático
quanto ao sistema P, que receberia a excitação de origem externa. A excitação exógena
incidiria sobre P e deste seguiria para o Icc, para o Prcc e para Cc. De acordo com isso,
todo processo pré-consciente, fosse ele incitado por excitação exógena ou endógena,
teria uma etapa prévia inconsciente. Uma vez que o sistema Cc estaria ligado à via
motora, os sistemas Icc, Prcc e Cc estariam situadas entre a percepção (P) e a motilidade
(M), assim como no esquema do capítulo 7. No entanto, ainda nesse artigo sobre o
inconsciente, Freud apresenta uma outra hipótese sobre a relação dos sistemas com P.
Ele diz:
“(...) nossa atividade psíquica se move seguindo dois circuitos
contrapostos: ou avança desde as pulsões, através do sistema Icc, até o
trabalho do pensamento consciente, ou uma incitação de fora atravessa
o sistema da Cc e do Prcc até alcançar as ocupações icc do eu e dos
objetos”.
13
Nessa passagem, em oposição à afirmação anterior, Freud afirma que as
excitações exógenas incidem diretamente sobre o sistema da consciência. A percepção
se situaria ao lado da motricidade e do sistema Cc, no outro pólo da tópica. Nesse caso,
os processos incitados no aparelho por excitação exógena e endógena ocorreriam ao
longo de dois caminhos distintos; haveria, como diz Freud, dois circuitos contrapostos
na atividade psíquica: o relativo aos processos induzidos por excitação endógena, que
ocorreriam no sentido de Icc a Cc, e os induzidos por excitação exógena que se dariam
na direção inversa. Essa segunda hipótese assemelha-se mais àquela do “Projeto...”.
12
AE, vol.14, p.190; SA, vol.3, p.152.
13
AE, vol.14, p.200; SA, vol.3, p.162.
120
Nesse texto, como vimos anteriormente, uma parte do sistema de memória – ψ do
manto – receberia quantidade de origem exógena, a partir do sistema φ, e outra parte –
ψ do núcleo – estaria em contato direto com a estimulação corporal. Assim, os
processos impulsionado por excitação endógena e exógena se dariam em circuitos
opostos, mas, no “Projeto”, o sistema responsável pela percepção (φ) e aquele
responsável pela consciência não estavam diretamente ligados. Contudo, Freud não se
atém por muito tempo a essa segunda hipótese. No “Complemento metapsicológico à
doutrina dos sonhos”, ele parece retomar a hipótese do capítulo 7. Ao se questionar
sobre os destinos das moções de desejo que se formam no Prcc no processo de formação
do sonho, ele diz:
“A reflexão nos diz que poderia tramitar por três caminhos
diferentes: ou pelo que seria normal na vida de vigília, que parte do
Prcc e se esforça por abrir passagem até a consciência; ou obter uma
descarga motora direta se esquivando à Cc; ou tomar esse outro
caminho inesperado que a observação nos faz seguir realmente (...) O
processo iniciado dentro do Prcc e reforçado pelo Icc toma um
caminho retrocedente através do Icc até chegar à percepção, que se
impõe à consciência.”
14
Novamente, a percepção é colocada ao lado do Icc, na extremidade oposta à da
motilidade e da consciência. Devido a essas oscilações de Freud, fica muito difícil
concluir algo de definitivo sobre a relação entre a percepção e os sistemas de memória
nos artigos metapsicológicos. Fica claro apenas que o modelo do capítulo 7 já está
sendo questionado nesse período, mas Freud não chega a descartá-lo de fato. Como
veremos no próximo capítulo, essa questão se resolve somente em “Além do princípio
do prazer”(1920). Nesse texto, Freud desloca definitivamente o sistema responsável
pela percepção para junto daquele responsável pela consciência; na verdade, ele passa a
tratá-los como se formassem um único e mesmo sistema.
PPP
14
AE, vol.14, p.225; SA, vol.3, p.183.
121
Na seção F do capítulo 7, Freud reconhecera que a diferenciação entre os
sistemas Prcc e Icc corresponde, na verdade, à diferenciação entre dois tipos de
processos; a representação desses sistemas como duas localidades psíquicas distintas
não foi abandonada, mas Freud admitira que ela consistia numa representação auxiliar
que se aproximava menos da realidade do que aquela que apresenta o pré-consciente e o
inconsciente como dois tipos de processos. Essa hipótese é mantida nos artigos
metapsicológicos, porém Freud lhe acrescenta um novo elemento.
Em “O Inconsciente”, Freud se pergunta se a passagem do sistema Icc ao Prcc
acontece mediante novas transcrições das representações – suposição esta que ele
chama de “tópica” – ou mediante uma mudança de estado, mediante o surgimento de
um modo de ocupação distinto das mesmas representações – suposição esta que ele
chama de “funcional”. Freud responde essa questão apenas na última parte do artigo,
onde, a partir da análise das manifestações das neuroses narcísicas, ele chega à seguinte
conclusão:
“(...) acreditamos saber agora onde reside a diferença entre uma
representação consciente e uma inconsciente. Elas não são, como
acreditávamos, diversas transcrições do mesmo conteúdo em lugares
psíquicos diferentes, nem diversos estados funcionais de ocupação no
mesmo lugar, se não que a representação consciente abrange a
representação-coisa mais a correspondente representação-palavra, e a
inconsciente é a representação-coisa somente. O sistema Icc contém as
ocupações de coisa dos objetos que são as ocupações de objeto
primárias e genuínas; o sistema Prcc nasce quando essa representação-
coisa é sobre-ocupada pelo enlace com as representações-palavra que
lhe correspondem. Tais sobre-ocupações, podemos conjeturar, são as
que produzem uma organização psíquica mais alta e possibilitam a
rendição do processo primário pelo secundário, que governa no
interior do Prcc (...) A representação não apreendida em palavras, ou o
ato psíquico não sobre-ocupado, fica então para trás, no interior do
Icc, como algo reprimido”.
15
15
AE, vol.14, p.198; SA, vol.3, p.160.
122
Freud retoma, assim, os conceitos de representacão-palavra (Wortvorstellung) e
representação-objeto (Objektvorstellung) formulados em “Sobre a concepção das
afasias” para explicar a diferenciação entre representações pré-conscientes e
inconscientes.
16
Embora esses conceitos não sejam esclarecidos, é possível inferir que
o que ele chama, nos artigos metapsicológicos, de representação-coisa
(Sachvorstellung) corresponde ao que é chamado de representação-objeto em 1891. Em
“O Inconsciente”, a representação-objeto passa a designar o par constituído pela
representação-palavra associada à representação-coisa.
Deste modo, enquanto houvesse apenas representações-coisa no aparelho, só
poderia haver processo primário. Mais tarde, as representações-palavra se constituiriam
e se associariam a uma parte das representações-coisa, sobre-ocupando-as. Como
resultado, surgiria no aparelho um nível de organização superior: o Prcc. Esse nível de
organização superior corresponderia ao processo secundário e, portanto, a diferenciação
entre o Icc e o Prcc continua sendo identificada aquela entre o processo primário e o
secundário. O sistema Icc corresponderia ao processo primário, do qual apenas
representações-coisa fariam parte, e o sistema Prcc correponderia ao processo
secundário, do qual fariam parte representações-coisa associadas a representações-
palavra. A novidade em relação ao capítulo 7, ao que parece, é que Freud especifica, em
1915, que é a palavra que possibilita a ligação da excitação em estado livre; que o
surgimento do processo secundário é uma conseqüência da sobre-ocupação produzida
pela representação-palavra. Essa hipótese não será mantida por muito tempo. Como
veremos, em “O eu e o isso”, ela é abandonada.
No “Projeto...”, já estava presente a idéia de que seria a associação com as
representações-palavra que tornaria uma representação suscetível de se tornar
consciente. Desde esse texto, já se podia inferir que o psíquico suscetível de consciência
corresponde às representações associadas a palavras e que o psíquico insuscetível de
consciência corresponde às representações não associadas a palavras. Mas no
“Projeto...” não se encontra formulada a hipótese de que é a sobre-ocupação produzida
pela palavra que permite a substituição do processo primário pelo secundário. De
acordo com o que Freud propõe aí, o processo secundário teria como condição a
inibição do processo primário, a qual seria determinada, antes de tudo, pela primeira
16
Embora Freud se refira à representação “consciente” e não à “pré-consciente”, é da
representação pré-consciente que ele está falando nessa passagem. Nessa parte do texto, ele não
123
regra biológica. Com essa inibição, surgiria um acúmulo de quantidade no aparelho, que
seria usado para instituir o processo secundário. Vimos que, no capítulo 7, Freud
também atribui à palavra a capacidade de tornar uma representação suscetível de
consciência, mas ele não afirma que é a palavra que produz a substituição do processo
primário pelo secundário, embora isso possa ser inferido a partir do que é aí
desenvolvido.
Em suma, Freud mantém nos artigos metapsicológicos, a hipótese do capítulo 7
de que o Prcc corresponde ao processo secundário e o Icc ao processo primário, mas ele
acrescenta que é a constituição das representações-palavra que faz surgir essa
diferenciação no aparelho e explicita a hipótese de que o conteúdo do Prcc consiste em
representações-coisa associadas a representações-palavra e o conteúdo do Icc em
representações-coisa somente.
Na carta 52, Freud tinha apresentado a idéia de que a memória seria constituída
por um processo de estratificação sucessiva; no qual, ao longo do desenvolvimento do
indivíduo, o mesmo material mnêmico seria reordenado de acordo com novos princípios
associativos. No capítulo 7, Freud retoma essa hipótese: assim como na carta 52, ele
sustenta que existem vários sistemas de memória, cada um dos quais sendo regido por
um princípio associativo diferente. O últimovel seria aquele onde as representações
estariam organizadas de acordo com relações verbais. No entanto, quando passa a tratar
os sistemas Icc e Prcc como dois tipos de processos, Freud não se refere mais aos
demais sistemas de memória que, na representação tópica do aparelho, precederiam o
Icc. Foi preciso assumir, então, que esses sistemas que não são mais mencionados
estariam incluídos no processo primário. Como comentamos anteriormente, essa
hipótese de que os traços mnêmicos sejam reordenados – isto é, de que novas
associações são estabelecidas entre eles ao longo do desenvolvimento – nos remete à
noção de “sobre-associação” de “Sobre a concepção das afasias”, segundo a qual as
novas associações se sobreporiam às anteriores, reorganizando-as e, assim, vários níveis
de processos associativos iriam se formando. De acordo com a teoria do capítulo 7, o
nível mais elevado da memória seria regido pelo processo secundário e envolveria
representações-palavra; a hipótese proposta em “O Inconsciente” sobre o modo como se
dá a distinção entre o Icc e o Prcc sugere que Freud continua concebendo, nesse
momento, a memória de forma muito semelhante. Ele é, inclusive, mais explícito a esse
diferenciou ainda entre os sistemas Cc e Prcc.
124
respeito, quando afirma que é a sobreocupação da representação-coisa por parte da
representação-palavra que produz um nível de organização psíquico superior, no qual
consiste o Prcc. O aparelho psíquico seria formado, então, por vários níveis de
processos associativos, sendo que apenas o mais elevado seria suscetível de consciência,
todos os outros permanecendo insuscetíveis de consciência no estado normal de vigília.
Essa concepção do aparelho psíquico é, na verdade, uma extensão do conceito de
aparelho de linguagem proposto em 1891.
PPP
No capítulo 7, Freud havia afirmado que o processo secundário se sobreporia ao
primário, mas uma parte do material psíquico – mais especificamente, das moções de
desejo, como diz ele – permaneceria como processo primário, devido ao
estabelecimento tardio do processo secundário. Portanto, o processo primário e o
secundário coexistiriam, embora o último predominasse sobre o primeiro na vigília
normal. Parte dessas moções de desejo que nunca chegaram a integrar o Prcc – as quais
constituiriam o “núcleo do Icc” – seriam desprazerosas do ponto de vista do Prcc: esta
seria a pré-condição para a repressão. Elas tentariam continuamente ingressar no Prcc e,
em alguns casos, conseguiriam ocupar uma representação desse sistema, a qual se
tornaria também desprazerosa devido ao seu enlace associativo com a representação
inconsciente. Como conseqüência, a ocupação pré-consciente de tal representação seria
retirada, e a representação seria excluída dos processos secundários. Nisso consistiria o
essencial do mecanismo da repressão: a retirada da ocupação pré-consciente de uma
representação, que faria com que esta voltasse a ser regida pelo processo primário e
permanecesse insuscetível de consciência. Dessa forma, o Icc seria constituído pelas
representações que nunca foram pré-conscientes – essas formariam o seu núcleo – e
pelas representações reprimidas, isto é, aquelas que estiveram integradas no pré-
consciente, mas foram reprimidas. Freud mantém essas mesmas hipóteses nos artigos
metapsicológicos, mas ele lhes acrescenta alguns novos elementos.
Em primeiro lugar, Freud esclarece que essas moções de desejo que compõem o
núcleo do Icc são o que ele denomina pulsões ou “representantes de pulsão”, um ponto
que terá que ser discutido adiante; em segundo lugar, ele introduz o conceito de
“repressão primordial” (Urverdrängung). Segundo ele, aquele material psíquico que
constitui o núcleo do Icc teria sido alvo da repressão primordial e esta seria condição
125
para a “repressão propriamente dita”, como é chamado em 1915, o que era
simplesmente designado como “repressão” no capítulo 7. Em terceiro lugar, Freud
introduz a noção de “contra-ocupação” para explicar e distinguir o mecanismo dos dois
tipos de repressão.
Na terceira parte de “Sobre um caso de paranóia descrito autobiograficamente”
(1911[1910]), (o“caso Schreber”), há uma descrição da repressão muito próxima
daquela presente no artigo metapsicológico sobre a repressão. Ali, Freud distingue três
fases da repressão. Na primeira etapa, ocorreria uma “fixação”, ou seja, uma inibição do
desenvolvimento de uma pulsão e a conseqüente permanência de tal pulsão em um
estado mais infantil. Nesse caso, diz Freud, “a corrente libidinal respectiva se comporta
a respeito das formações psíquicas posteriores como uma que pertença ao sistema do
inconsciente, como uma reprimida”.
17
Essa primeira etapa da repressão seria pré-
condição para a ocorrência da “repressão propriamente dita”, a qual corresponderia à
segunda etapa da repressão. A repressão propriamente dita partiria dos sistemas
suscetíveis de consciência, diz Freud, e se voltaria contra os derivados psíquicos
daquelas pulsões fixadas. Quando essas últimas pulsões, devido ao seu fortalecimento,
conseguissem se infiltrar nos sistemas conscientes, surgiria um conflito entre elas e as
pulsões de acordo com o eu, o que acabaria levando à repressão. Freud discrimina ainda
uma terceira fase da repressão, que consistiria no “retorno do reprimido” devido ao
fracasso da repressão, o que teria como conseqüência a regressão do desenvolvimento
libidinal.
Em “A Repressão”, Freud retoma essa descrição exposta no caso Schreber e
acrescenta a ela a hipótese de que a primeira etapa da repressão consistiria na repressão
primordial. A fixação da pulsão, mencionada em 1911, seria um resultado desta
repressão primordial. Diz ele:
“(...) temos razões para supor uma repressão primordial
, uma primeira
fase da repressão que consiste em que ao representante psíquico da
pulsão (representante-representação) se nega a admissão na
consciência. Assim, se estabelece uma fixação
; a partir desse
momento, o representante em questão persiste imutável e a pulsão
continua ligada a ele”.
18
17
AE, vol.12, p.62. Nessa passagem fica claro que a repressão incide sobre as pulsões sexuais.
18
AE, vol.14, p.143; SA, vol.3, p.109.
126
Então, nos artigos metapsicológicos, Freud passa a diferenciar entre uma
“repressão primordial” – que consistiria na recusa da pulsão por parte do pré-consciente
ou do processo secundário, o que teria como conseqüência a fixação desta no Icc – e a
“repressão propriamente dita” – que consistiria na retirada da ocupação pré-consciente
de uma representação, à qual o representante de pulsão se tivesse associado.
19
A
ocupação subtraída seria aquela da representação-palavra. Como vimos, quando a
representação-coisa fosse sobre-ocupada pela palavra, ela passaria a fazer parte do nível
de organização superior, isto é, do Prcc; quando tal sobreocupação fosse retirada, a
representação-coisa deixaria de fazer parte do Prcc e voltaria a ser incorporada ao Icc
(ao processo primário). A representação reprimida seria, portanto, aquela representação-
coisa que perdeu o seu vínculo com a palavra (no caso da repressão propriamente dita)
ou aquela que nunca teve esse vínculo (no caso da repressão primordial). Apenas em
1915, Freud expõe claramente esta idéia que já estava implícita desde o “Projeto...”. No
artigo metapsicológico sobre o inconsciente, ele afirma:
Agora podemos formular de maneira precisa isso que a repressão,
nas neuroses de transferência, recusa à representação rechaçada: a
tradução em palavras (...) A representação não apreendida em
palavras, ou o ato psíquico não sobre-ocupado, fica para trás, no
interior do Icc, como algo reprimido.”
20
Sendo assim, o reprimido primordial consistiria naquelas representações-coisa que
nunca foram sobre-ocupadas pelas representações-palavra – que nunca fizeram parte do
Prcc – e o reprimido propriamente dito consistiria naquelas representações-coisa que
perderam seu vínculo com a palavra, por terem sido associadas ao reprimido primordial
e se tornado fonte de desprazer para o Prcc. Com isso, apenas agora parece ser possível
dizer que o sistema Icc seja constituído pelo reprimido: pelo reprimido primordial e pelo
reprimido propriamente dito. No capítulo 7, já estava presente a hipótese de que o
núcleo do Icc é constituído por representações que nunca se tornaram pré-conscientes,
19
Como Freud já havia dito no capítulo 7, duas forças cooperariam para a repressão
propriamente dita: a repulsão por parte do pré-consciente e a atração exercida pelos desejos
inconscientes.
127
mas não havia ainda o conceito de repressão primordial; só as representações
rechaçadas do Prcc eram consideradas como tendo sido reprimidas e, portanto o
reprimido podia ser apenas uma parte do sistema inconsciente. Além disso, Freud
introduz, em 1915, a hipótese de que as representações alvo da repressão primordial são
os “representantes de pulsão”; no capítulo 7, estas eram chamadas de “moções de
desejo”.
Nos artigos metapsicológicos, Freud especifica mais minuciosamente qual seria o
mecanismo da repressão. Na terceira parte do caso Schreber, ele havia dito que a
fixação que seria pré-condição para a repressão propriamente dita, consistiria em um
processo passivo, enquanto esta última consistiria em um processo essencialmente ativo.
Em “O inconsciente”, isso recebe uma formulação mais precisa. Na quarta parte deste
artigo, Freud argumenta que, como a representação reprimida continua tendo
capacidade de ação dentro do Icc, ela conserva alguma forma de ocupação. Portanto, no
caso da repressão propriamente dita, ocorreria uma subtração da ocupação pré-
consciente e a conservação da ocupação inconsciente ou a substituição da ocupação pré-
consciente por uma inconsciente. Mas, continua ele, é preciso supor, além da subtração
da ocupação por parte do Prcc, um outro mecanismo que impessa a representação
reprimida de voltar a penetrar no Prcc; se a representação reprimida continua ativa no
Icc, é necessário haver algum mecanismo que a mantenha afastada do Prcc. Freud
introduz, então, para dar conta disso, a noção de “contra-ocupação”. No caso da
repressão propriamente dita, além da subtração da ocupação pré-consciente, deveria
haver uma “contra-ocupação” por parte desse sistema, que teria como objetivo manter a
representação reprimida distante. A contra-ocupação seria o único mecanismo
responsável pela repressão primordial, uma vez que, nesse caso, como a representação
nunca teria sido sobre-ocupada pelo Prcc, não haveria a subtração da ocupação, a qual
consistiria na primeira etapa da repressão propriamente dita. Segundo Freud, a energia
usada na contra-ocupação seria a mesma retirada da representação reprimida, no caso
desse último tipo de repressão. Em suma, dois mecanismos seriam responsáveis pela
repressão propriamente dita – a subtração da ocupação e a contra-ocupação – enquanto
que apenas esta última atuaria na repressão primordial.
Pelo que parece, a contra-ocupação é pensada por Freud como um mecanismo
semelhante à “ocupação lateral” do “Projeto...”. Há uma idéia no texto, pelo menos, que
20
AE, vol.14, p.198; SA, vol.3, p.160.
128
nos permite fazer essa aproximação. Ao descrever a repressão na histeria de angústia,
Freud diz que a ocupação pré-consciente retirada de uma representação se dirige para
uma representação a ela associada, a qual se torna uma representação substitutiva, e que
essa última passa a exercer, para o sistema Cc (Prcc), a função de uma contra-ocupação,
isto é, proteger esse sistema contra a emergência na Cc da representação reprimida. Essa
idéia de que o deslocamento da ocupação para uma representação associada funciona
como uma contra-ocupação, pois impede a emergência da representação da qual a
ocupação foi retirada, nos permite formular a hipótese de que o mecanismo da contra-
ocupação é o mesmo que o da ocupação lateral – ou, pelo menos, encontra-se muito
próximo deste. Como vimos no “Projeto...”, esse seria o mecanismo usado pelo eu para
direcionar os processos associativos, com o objetivo de impedir a ocupação de
representações desprazerosas e propiciar o acesso às representações desejadas. Tal
mecanismo consistiria na ocupação das representações proximamente associadas
àquelas da qual se pretende desviar o curso associativo. Quando uma representação
adjacente é ocupada, ela atrairia a corrente excitatória, pois a ocupação de uma
representação lateral funcionaria como uma facilitação maior, segundo o princípio da
simultaneidade. Dessa forma, a ocupação de uma representação adjacente àquela que se
pretende excluir seria o mecanismo pelo qual se realizaria essa exclusão. Isso permite
compreender a afirmação de Freud em “O Inconsciente”, mencionada acima, segundo a
qual a ocupação de uma representação substitutiva funciona como um contra-ocupação
para o Prcc, mencionada acima.
Essa noção de contra-ocupação nos permite supor como seria mantida a separação
entre o processo primário e o secundário e sobre como o processo secundário manteria o
seu predomínio no aparelho. O Prcc se constituiria a partir da sobre-ocupação das
representações-coisa por parte das representações-palavra – processo pelo qual surgiria
no aparelho um campo da atividade psíquica onde a energia permaneceria em estado
ligado. Essa sobre-ocupação das representações-coisa talvez possa ser identificado
como o que funciona como uma contra-ocupação para as representações que não são
incorporadas ao processo secundário. Então, a sobre-ocupação de uma parte das
representações-coisa por parte da palavra seria, ao mesmo tempo, a contra-ocupação
que manteria outra parte das representações-coisa inconscientes, isto é, a sobre-
ocupação de uma parte das representações-coisa, que cria o Prcc, seria o mecanismo
responsável pela repressão primordial. As representações que fossem incorporadas ao
129
Prcc seriam as que passam a funcionar como contra-ocupações para aquelas que
constituem o núcleo do Icc.
A repressão primordial, segundo Freud, incidiria sobre os representantes de pulsão
e a repressão propriamente dita sobre os derivados deste. Mas o que seria a pulsão e o
seu representante?
3) A relação entre a pulsão e a representação
Freud começa o artigo “Pulsões e destinos da pulsão” (1915) expondo a sua
concepção sobre o desenvolvimento da ciência. Nenhuma ciência, argumenta ele, inicia
com conceitos básicos claros, definidos com precisão. O início da atividade científica
consiste em descrever fenômenos, ordená-los e inseri-los em conexões. No entanto,
mesmo para a descrição dos fenômenos, é necessário partir de certas idéias abstratas
extraídas de outro lugar, e não dos fenômenos observados. Essas idéias abstratas são as
que vêm a constituir posteriormente os conceitos básicos de uma ciência. Esses
conceitos básicos, ao princípio, admitem um certo grau de indeterminação, e sua
validade é garantida pela remissão ao material empírico e pela sua adequação na
explicação dos fatos observados. Com o avanço da exploração científica, tais conceitos
vão sendo delimitados com maior exatidão, até que seja possível dar-lhes a forma de
definições, o que não significa que, a partir de então, eles permaneçam inalteráveis, uma
vez que mesmo os conceitos básicos fixados em definições podem experimentar uma
mudança constante em seu conteúdo.
A pulsão, segundo Freud, seria um conceito básico desse tipo: imprescindível para
tornar os fatos psicológicos compreensíveis, contudo, no momento, bastante obscuro em
si mesmo. Esse preâmbulo de Freud parece querer ressaltar que, embora esteja claro que
o conceito de pulsão é fundamental para a explicação dos fatos psicológicos, ainda não
é possível determiná-lo com precisão. A concepção de pulsão formulada no artigo sobre
as pulsões é um pouco modificada em “A repressão” (1915), onde Freud introduz a
noção de “representante de pulsão”, e essa modificação parece ser mantida nos demais
artigos metapsicológicos.
Para introduzir a noção de pulsão em “Pulsões e seus destinos”, Freud retoma
aquela diferenciação entre o modo de ação dos estímulos exógenos e dos endógenos
sobre o aparelho neuronal, que havia sido discutida no “Projeto...”, texto este onde
parece encontrar-se a gênese da noção de pulsão. O estímulo pulsional é concebido
130
como um estímulo proveniente do interior do corpo que atua continuamente sobre o
aparelho psíquico: ao contrário dos estímulos exógenos, os estímulo pulsionais não
atuariam como uma força de choque momentânea, nem poderiam ser totalmente
eliminados mediante ações reflexas; eles atuariam como uma força constante, e sua
eliminação exigiria a execução de uma “ação específica” sobre o mundo. Tampouco
haveria possibilidade de fuga perante a estimulação pulsional. Toda a complexidade da
atividade psíquica decorreria, assim, da necessidade de satisfazer as necessidades
pulsionais. No “Projeto...”, Freud havia dito que o fato do sistema ψ do núcleo estar
exposto sem proteção às quantidades de origem endógena funcionava como a “mola
pulsional do mecanismo psíquico”
21
. No artigo metapsicológico sobre as pulsões, ele
torna a afirmar que:
“(...) as pulsões, e não os estímulos externos são os genuínos motores
dos progressos que têm levado o sistema nervoso (cuja produtividade
é infinita) a seu atual nível de desenvolvimento.”
22
Em “Pulsões e destinos da pulsão” (1915), Freud diferencia claramente o estímulo
endógeno da própria pulsão. A pulsão seria o “representante psíquico” dos estímulo
endógenos; seria a expressão psíquica de tais estímulos e não os próprios estímulos. A
pulsão é definida aí da seguinte forma:
“(...) a “pulsão” nos aparece como um conceito fronteiriço entre o
psíquico e o somático, como um representante {Repräsentant}
psíquico dos estímulos que provêm do interior do corpo e alcançam a
alma, como uma medida da exigência de trabalho que é imposta ao
psíquico em conseqüência de sua ligação com o corporal”.
23
Esse mesmo sentido fora atribuído ao conceito de pulsão em duas ocasiões
anteriores: na terceira parte do caso Schreber
24
e em uma passagem agregada aos “Três
ensaios...” poucos meses antes da redação do artigo metapsicológico sobre as pulsões.
25
21
PP, p.194.
22
AE, vol.14, p.116; SA, vol.3, p.84.
23
AE, vol. 14, p.117; SA, vol. 3, p.85.
24
AE, vol.12, p.68.
25
AE, vol.7, p.153.
131
De acordo com tais definições, a pulsão seria algo que representaria os estímulos
orgânicos no psíquico. Tendo em vista as hipóteses do “Projeto...”, as pulsões seriam as
representações que se constituiriam em ψ do núcleo. No momento em que os estímulos
endógenos, a partir do processo de somação, conseguissem ingressar no núcleo, surgiria
uma pulsão, a qual representaria no psíquico uma necessidade corporal do organismo.
A partir do texto “A repressão”, contudo, a pulsão passa a ser concebida de uma
outra forma: Freud passa a diferenciar entre ela e o seu representante psíquico. A
pulsão seria o estímulo orgânico que é representado no psíquico pelo “representante de
pulsão” (Triebrepräsentanz
), e não mais aquilo que representa os estímulos orgânicos no
psíquico. Ela só se manifestaria neste último através desse seu representante. Freud
parece manter essa segunda concepção de pulsão nos demais artigos metapsicológicos.
Na seguinte passagem de “O Inconsciente”, ele explicita sua hipótese sobre a relação
entre a pulsão e a representação:
“Uma pulsão nunca pode passar a ser objeto da consciência; só a
representação que é sua representante pode sê-lo. Mas, tão pouco no
interior do inconsciente pode estar representada a não ser pela
representação. Se a pulsão não aderisse a uma representação nem
saísse à luz como um estado afetivo, nada poderíamos saber dela.
Então, sempre que falamos de uma moção pulsional inconsciente ou
de uma moção pulsional reprimida, não é senão por um inofensivo
descuido da expressão. Não podemos aludir se não a uma moção
pulsional cujo representante-representação é inconsciente, pois outra
coisa não entra em conta”.
26
Então, a partir do texto “A repressão”, a pulsão passa a ser concebida como algo
que é representado no psíquico pela instância que Freud denomina “representante-
representação”, definindo-se como um estímulo orgânico que é representado no
psíquico. A noção de pulsão estaria, portanto, inteiramente no domínio do biológico;
seria algo pertencente à esfera do biológico, que é ou pode ser representado no psíquico
por uma representação. Quando a excitação pulsional ingressasse no domínio do
psíquico, ela seria envolvida nos processos que correspondem às representações,
ganhando assim expressão psíquica. Pensando nos termos do “Projeto...”, a pulsão
132
corresponderia ao estímulo endógeno antes deste ingressar em ψ do núcleo; quando este
estímulo ingressasse no núcleo, ele produziria facilitações, as quais se associariam às
representações-coisa que estariam sendo constituídas no manto de ψ simultaneamente à
ocupação do núcleo. Esse complexo associativo entre as facilitações do núcleo e do
manto que se constituem simultaneamente corresponderia a uma parte do representante
de pulsão; o outro componente seria a “quota de afeto”. Em “A repressão”, Freud
esclarece em que consistiria esse representante. Ele diz:
“Nas elucidações anteriores consideramos a repressão de um
representante de pulsão, entendendo por aquela uma representação ou
um grupo de representações ocupadas a partir da pulsão com uma
determinada quota de energia psíquica (libido, interesse). Contudo, a
observação clínica nos compele a decompor o que até aqui
concebemos como unitário, pois nos mostra que junto a representação
{Vorstellung} intervém algo diverso, algo que representa
{räpresentieren} a pulsão e pode experimentar um destino de
repressão totalmente diferente do da representação. Para este outro
elemento do representante psíquico, tem adquirido carta de cidadania
o nome de “quota de afeto”; corresponde à pulsão na medida em que
esta tenha se separado da representação e encontrado uma expressão
para sua quantidade em processos que tornam-se registráveis para a
sensação como afetos”.
27
Freud está distinguindo, então, dois componentes do representante de pulsão : a
representação e a “quota de afeto”. Essas seriam as duas formas pelas quais uma pulsão
poderia se manifestar no psíquico. A representação continua sendo pensada da mesma
forma desde o “Projeto...”: como a ocupação de traços mnêmicos; portanto, como um
processo. Ali, os traços mnêmicos corresponderiam às facilitações; esta mesma hipótese
parece estar pressuposta no capítulo 7. Nos artigos metapsicológicos, contudo, Freud
não se manifesta a esse respeito. Ele apenas afirma, em “O Inconsciente”, que “a
representação consiste em ocupações – no fundo, de traços mnêmicos”.
28
A quota de
afeto parece corresponder ao aspecto quantitativo da pulsão. Mas o que seria o afeto?
26
AE, vol.14, p.173; SA, vol.3, p.136.
27
AE, vol.14, p.147; SA, vol.3, p.113.
28
AE, vol.14, p.174; SA, vol.3, p.137.
133
O afeto parece ser pensado também de forma muito próxima ao “Projeto...”.
Embora Freud utilize, em algumas ocasiões, o termo afeto em um sentido mais genérico
– como correspondendo ao aspecto qualitativo da quantidade de energia pulsional
29
–,
desde o “Projeto...” ele é pensado como o aspecto qualitativo de um processo específico
que se dá no aparelho. Neste último texto, o afeto era concebido como o resultado de
um aumento no nível de quantidade produzido a partir da rememoração de uma
representação relacionada a uma vivência de dor. Para explicar como é possível que um
aparelho, cuja tendência principal seria manter o nível de excitação o mais baixo
possível, seja capaz de produzir quantidade, Freud introduziu a hipótese dos “neurônios-
chave” ou “neurônios secretores”. Esses neurônios, quando ocupados a partir de uma
representação, secretariam quantidade no aparelho. Quando ocorresse uma vivência de
dor – isto é, uma irrupção muito intensa de quantidade exógena no aparelho – seria
estabelecida uma facilitação entre as representações perceptivas relacionadas a essa
vivência (Freud as chama de “representações de objetos hostis”) e os neurônios-chave.
Posteriormente, a rememoração da representação hostil, devido a sua associação com os
neurônios-chave, faria surgir no aparelho uma descarga de quantidade que produziria
desprazer. Esse desprazer produzido pela ocupação dos neurônios-chave é o que Freud
chamou de afeto.
No capítulo 6 de “A Interpretação dos sonhos”, na parte em que Freud discute o
papel dos afetos no sonho, essa concepção de afeto do “Projeto...” parece ser retomada:
Vejo-me obrigado a representar (...) o despreendimento de afeto
como um processo centrífugo dirigido até o interior do corpo e
análogo aos processos de inervação motora e secretória
”.
30
Essa mesma hipótese sobre o afeto parece ser mantida também nos artigos
metapsicológicos, como indica a seguinte passagem de “O Inconsciente”, já mencionada
anteriormente:
“(...) as representações são ocupações – no fundo, de traços
mnêmicos –, enquanto que os afetos e sentimentos correspondem a
29
Laplanche e Pontalis referem-se apenas a esse sentido do termo no “Vocabulário de
psicanálise”.
30
AE, vol.5, p.465; SA, vol.2, p.451.
134
processos de descarga cujas exteriorizações últimas são percebidas
como sensações”.
31
Em uma nota de rodapé desse mesmo artigo, Freud especifica em que consistiria
esse processo de descarga:
“A afetividade se exterioriza essencialmente em uma descarga motora
(secretória, vasomotora) que provoca uma alteração (interna) do
próprio corpo sem relação com o mundo exterior(...)”.
32
Parece difícil, assim, sustentar a interpretação de Laplanche e Pontalis (1998,
p.9) segundo a qual o afeto seria a expressão qualitativa da quantidade de energia
pulsional em geral e das suas variações. Freud parece conceber o afeto como o efeito de
um processo de descarga específico, semelhante àquele produzido pelos neurônios-
chave do “Projeto”, e não como o aspecto qualitativo da energia pulsional, como
sustentam Laplanche e Pontalis.
O representante de pulsão consistiria, assim, em uma representação que
possuísse uma associação capaz de produzir o afeto – ou seja, uma associação com algo
do tipo dos neurônios-chave do “Projeto...”. No entanto, não sabemos o porquê do
estabelecimento de tal associação. Segundo Freud, a repressão poderia fazer com que a
representação e o afeto tivessem destinos diferentes. O destino da representação seria
sempre o mesmo: permanecer no inconsciente. Os destinos do afeto poderiam ser três:
ser sufocado, vir à tona como um afeto qualitativamente distinto ou ser transposto em
angústia. Em algumas ocasiões, Freud se refere ao destino dos dois componentes do
representante de pulsão de uma forma que parece sugerir que a separação entre a
representação e o afeto resultante da repressão consista na separação entre os traços
mnêmicos e a excitação que os ocupa. Por exemplo, em “A Repressão”, ele diz: quando
formos descrever um caso de repressão teremos que rastrear separadamente o que, em
virtude dela, foi feito da representação, por um lado, e da energia pulsional que adere
a esta, por outro.”
33
Mas, se fosse essa a hipótese sustentada por Freud, a repressão
teria como conseqüência que a representação deixasse de existir – que ela permanecesse
31
AE, vol.14, p.174; SA, vol.3, p.137.
32
AE, vol.14, p.175; SA, vol.3, p.138.
33
AE, vol.14, p.147; SA, vol. 3, p.113.
135
inativa – uma vez que, como Freud deixa claro em “O Inconsciente”, ela consistiria em
ocupações de traços mnêmicos e que, portanto, esses traços sozinhos não seriam a
representação, mas apenas representariam a possibilidade da mesma ressurgir. Então, se
a repressão produzisse a separação entre a excitação e os traços mnêmicos, ela teria
como conseqüência o desaparecimento da representação. Conseqüentemente, esta não
poderia “continuar ativa no inconsciente” como Freud afirma que acontece. Além disso,
se o objetivo da repressão fosse anular a representação, sempre que os traços mnêmicos
fossem novamente ocupados a partir do interior do corpo, a repressão teria fracassado e
teria que ser posta em ação novamente. Sem dúvida, não é disso que se trata, pois Freud
repete inúmeras vezes que as representões reprimidas continuam ativas no
inconsciente. Ele é bem claro sobre isso, ao dizer que “a representação reprimida
continua tendo capacidade de ação dentro do Icc; portanto, deve ter conservado sua
ocupação. O subtraído deve ser algo diverso.”
34
Na quarta parte do artigo metapsicológico sobre o inconsciente, Freud afirma o
seguinte sobre os processos inconscientes:
Em si e por si eles não são incognoscíveis, e ainda são insuscetíveis
de existência, porque muito prematuramente ao sistema Icc se
superpôs o Prcc, que tem arrastado até si o acesso à consciência e à
motilidade.”
35
A menos que Freud estivesse querendo dizer que os processos inconscientes são
insuscetíveis de existência para a consciência, essa passagem contradiz inúmeras outras
nas quais ele repete que o reprimido permanece ativo no inconsciente e que as
representações pertencentes ao sistema inconsciente continuam tendo capacidade de
ação e se desenvolvendo com maior liberdade do que quando estavam incluída no Prcc.
Tudo indica que, com a afirmação acima, Freud não queria dizer que os processos
inconscientes são insuscetíveis de existência em si, tanto é que no início da seção
seguinte à que contém a passagem acima, ele ressalta :
Seria errôneo imaginar que o Icc permanece em repouso enquanto
todo o trabalho psíquico é efetuado pelo Prcc, que o Icc é algo
34
AE, vol.14, p.177; SA, vol.3, p.139.
136
periclitado, um orgão rudimentar, um resíduo do desenvolvimento. Ou
supor que a comunicação entre os dois sistemas se limita ao ato da
repressão, em que o Prcc lançaria ao abismo do Icc tudo o que lhe
parecesse perturbador. O Icc é algo vivo, suscetível de
desenvolvimento, e mantém com o Prcc toda uma série de
relações(...)”.
36
É preciso supor, portanto, que, na repressão, a retirada da ocupação pré-consciente
da representação faz com que esta perca o seu vínculo com a palavra e volte a ser
integrada ao processo primário, isto é, que ela permaneça no inconsciente. Como, na
normalidade, seria o Prcc que teria o controle da afetividade, ao ser excluída dos
processos secundários a representação perderia também a sua associação para a
afetividade, ou, ao menos o Prcc se esforçaria para isso. Em alguns casos, contudo, os
processos inconscientes conseguiriam retomar o acesso à afetividade. Isso poderia dar-
se de duas formas: diretamente, isto é, a afetividade seria evocada diretamente pela
representação inconsciente e se manifestaria como angústia; ou indiretamente, por meio
de uma representação substitutiva pré-consciente, isto é, por uma representação pré-
consciente associada ao reprimido; neste caso, o afeto seria qualitativamente modificado
de acordo com a representação substitutiva. Esses seriam, pois, dois dos destinos
possíveis para o afeto após a repressão: ser transposto em angústia ou ser
qualitativamente modificado. O primeiro deles poderia levar a um quadro de histeria de
angústia, e o segundo, a um quadro de neurose obsessiva. Um outro destino possível
para o afeto, segundo Freud, seria o sufocamento , isto é, el não voltar a ser suscitado.
Neste caso, a repressão teria sido bem sucedida, desde que a representação reprimida
associada ao afeto não conseguisse se manifestar no pré-consciente por outro meio.
37
Então, dos três destinos possíveis para o afeto, só a sua sufocação seria uma
conseqüência direta da repressão, os outros dois destinos seriam já manifestações do
“retorno do reprimido”. Pelo que parece, toda repressão produziria inicialmente o
sufocamento do afeto. No entanto, este pode continuar sufocado ou voltar a ser
35
AE, vol.14, p.185; SA, vol.3, p.146.
36
AE, vol.14, p.187; SA, vol.3, p.149.
37
Haveria ainda a possibilidade de que a representação inconsciente transferisse sua excitação
para uma inervação corporal – que ocorresse uma conversão –, se instalando, assim, um quadro
de histeria de conversão.
137
suscitado de alguma das duas maneiras descritas. A seguinte afirmação de Freud, parece
corroborar isso:
“É possível que o despreendimento do afeto parta diretamente do
sistema Icc, em cujo caso tem sempre o caráter da angústia (...) Mas,
com freqüência, a moção pulsional tem que aguardar até encontrar
uma representação substitutiva no interior do sistema Cc. Depois, o
desenvolvimento do afeto se faz possível a partir deste substituto
consciente, cuja natureza determina o caráter qualitativo do afeto.
Temos afirmado que na repressão se produz um divórcio entre o afeto
e sua representação, depois do qual ambos vão ao encontro de seus
destinos separados. Isto é insuperável desde o ponto de vista
descritivo; mas o processo real é, por regra geral, que um afeto não faz
sua aparição até que se tenha consumado a irrupção em uma nova
substituição {Vertretung} do sistema Cc.”
38
Então, como, na normalidade, o Prcc dominaria a afetividade, a exclusão de uma
representação do Prcc ou a sua manutenção fora deste, no caso do reprimido primordial,
teria como conseqüência o impedimento, para tal representação, de evocar o afeto. A
associação para o afeto continuaria existindo – e, portanto, a possibilidade de seu
ressurgimento –, mas sem poder ser ativada. Ao discutir se há ou não afetos
inconscientes, Freud procura esclarecer esse ponto. Ele diz o seguinte:
“(...) na comparação com a representação inconsciente surge uma
importante diferença: após a repressão, aquela continua existindo no
interior do sistema Icc como formação real, enquanto que aí mesmo ao
afeto inconsciente corresponde apenas uma possibilidade de evocação,
à qual não é permitido se desenvolver.”
39
O afeto, portanto, não poderia ser inconsciente no mesmo sentido em que a
representação: ao contrário desta, ele não continuaria ativo no inconsciente, pois a
associação entre a representação e a afetividade seria bloqueada devido à repressão.
Esta, portanto, resultaria no sufocamento do afeto. Contudo, os processos inconscientes
38
AE, vol.14, p.175; SA, vol.3, p.138
39
AE, vol. 14, p.174; SA, vol.3, p.137.
138
tentariam continuamente retomar o acesso à afetividade e, em alguns casos,
conseguiriam isso de uma das duas formas que discutimos anteriormente: direta ou
indiretamente, por meio de uma representação substitutiva pré-consciente.
4) A relação entre os sistemas Icc e Prcc
A hipótese apresentada no capítulo 7 de que a diferença entre o Prcc e o Icc não se
encontra presente desde a origem do aparelho psíquico é mantida nos artigos
metapsicológicos. Inicialmente, só haveria o processo primário, e este envolveria apenas
representações-coisa. Com a constituição das representações-palavra, uma parte das
representações-coisa seriam sobre-ocupadas e, assim, surgiria um nível de organização
mais elevado no aparelho – o processo secundário – e, dessa forma, seria estabelecida a
distinção entre Icc e Prcc. No entanto, parte das representações-coisa não seriam
associadas a palavras e continuariam sendo governadas pelo processo primário.
Portanto, assim como ocorre no capítulo 7, após o estabelecimento do processo
secundário, este passaria a predominar, mas o processo primário não seria suprimido por
ele. Ambos os tipos de processos passariam a coexistir. As representações que nunca
tivessem sido incluídas nos processos pré-conscientes – isto é, aquelas que tivessem
sido alvo da repressão primordial – constituiriam o núcleo do sistema Icc. Formulamos
a hipótese de que a própria sobre-ocupação de uma parte das representações-coisa pelas
palavras seria o que manteria a outra parte delas excluída do Prcc, ou seja, seria aquilo
que funcionaria como contra-ocupação para as representação excluídas do processo
secundário. A sobre-ocupação das representações-coisa, que produz a emergência do
Prcc, e a repressão primordial seriam, então, dois aspectos do mesmo processo. Essas
representações que são objeto da repressão primordial formariam parte dos
representantes de pulsão, e elas nunca teriam chegado a se integrar ao Prcc. Além de
manter uma parte das representações no Icc e, portanto, sem acesso à Cc, os processos
secundários passariam a governar a afetividade e interromperiam o acesso a esta por
parte do Icc.
Ao reprimido primordial viria se acrescentar o reprimido propriamente dito, ou
seja, aquelas representações pré-conscientes que, por terem sido associadas ao
reprimido primordial – isto é, por terem se tornado derivados deste –, teriam se tornado
também desprazerosas e excluídas do Prcc. O reprimido propriamente dito e o
reprimido primordial formariam o conteúdo do Icc; este seria constituído por
139
representações-coisa que nunca teriam sido associadas a representações-palavra ou que
perderam o vínculo com estas. Mas não bastaria uma representação pré-consciente ser
ocupada partir do reprimido primordial para que ela fosse alvo da repressão
propriamente dita: em alguns casos, as representações ocupadas a partir do Icc
conseguiriam permanecer incluídas no processo secundário durante algum tempo ao
menos. Segundo Freud, alguns dos derivados do reprimido primordial não seriam alvo
da repressão propriamente dita, mas permaneceriam no Prcc e poderiam, às vezes, se
tornar conscientes. Haveria duas condições para que as representações ocupadas a partir
do Icc conseguissem permanecer incluídas nos processos secundários: uma primeira
condição seria a existência de um certo distanciamento da representação em relação ao
reprimido primordial – ou seja, a presença de certo número de desfigurações ou elos
intermediários entre eles; outra condição seria que a intensidade da ocupação
inconsciente da representação pré-consciente não excedesse um certo limite:
“(...) nem se quer é certo que a repressão mantenha afastados do
consciente a todos os derivados do reprimido primordial. Se estes se
distanciaram o suficiente do representante reprimido, seja pelas
desfigurações que adotaram ou pelo número de elos intermediários
que se intercalaram, têm, sem mais, livre o acesso ao consciente. É
como se a resistência que o consciente lhes opusesse fosse uma função
do seu distanciamento a respeito do originariamente reprimido.”
40
Freud diz não saber até onde esse distanciamento em relação ao reprimido
primordial teria que chegar para que a representação pudesse permanecer incluída no
processo secundário. No entanto, é certo que “se trata de deter-se antes que se chegue
a determinada intensidade na ocupação do inconsciente, superada a qual o
inconsciente irromperia em direção à satisfação”.
41
Talvez esses dois fatores possam ser relacionados: quanto maior fosse a
proximidade entre a representação reprimida e a pré-consciente, maior seria a
intensidade da ocupação inconsciente desta última. Portanto, quanto mais elos
intermediários houvesse entre as duas representações ou quanto maior a desfiguração,
menor seria a intensidade da ocupação inconsciente da representação pré-consciente e
40
AE, vol. 14, p.144; SA, vol.3. p.110.
41
AE, vol. 14, p.145; SA, vol.3, p.111.
140
maior seria a chance dela permanecer incluída no processo secundário e não se tornar
alvo da repressão. Dessa forma, os derivados do reprimido conseguiriam permanecer
incluídos nos processos secundários, se suas intensidades permanecessem abaixo de um
certo limite, superado o qual eles seriam alvo da repressão propriamente dita.
42
Esses derivados do reprimido que conseguem permanecer no Prcc são aquelas
representações a partir das quais se poderia mais facilmente chegar ao inconsciente na
análise. A hipótese de Freud de que o Prcc nasce com a sobre-ocupação das
representações-coisa pelas representações-palavra deixa claro que todo o Prcc – e,
portanto, tudo o que pode se tornar consciente – tem suas raízes no inconsciente e está,
em última instância, associado ao reprimido primordial. Por isso, em princípio, seria
possível, partindo-se de uma representação qualquer consciente, chegar-se ao
inconsciente, o que poderia ser alcançado mais facilmente, a partir dos derivados do
reprimido primordial.
Então, a separação entre o Prcc e o Icc seria algo alcançado com um grande
dispêndio de energia psíquica e a contra-ocupação seria o mecanismo usado pelo pré-
consciente para isso. Na verdade, tal separação muito dificilmente – ou provavelmente
nunca – poderia ser mantida totalmente, uma vez que os processos inconscientes
tentariam continuamente ingressar no Prcc e, em alguns casos, conseguiriam
permanecer aí ao menos durante certo tempo.
5) As propriedades dos sistemas Icc e Prcc
No “Projeto...”, como já comentamos anteriormente, aparece na teoria freudiana o
conceito de um inconsciente dinâmico. Freud propõe, neste texto, que há um psíquico
inconsciente e ativo, podendo este ser suscetível ou não de se tornar consciente. No
capítulo 7, Freud acrescenta a isso a hipótese de que os processos inconscientes e
insuscetíveis de se tornarem conscientes possuem características diferentes daquelas
presentes nos processos suscetíveis de consciência. Portanto, o inconsciente não é
apenas algo ativo que coexiste com os processos conscientes, mas também algo que
possui propriedades particulares. Para representar essas propriedades particulares, Freud
introduz a distinção tópica entre os sistemas Prcc e Icc e sustenta que esses dois
42
A repressão propriamente dita incidiria sobre os derivados do reprimido primordial. Esses
derivados do reprimido primordial excluídos do Prcc poderiam voltar a ingressar nesse último
141
sistemas correspondem, na verdade, a dois tipos de processos: os processos secundários
e os primários. Segundo essa distinção, a diferença essencial entre o psíquico
insuscetível e o psíquico suscetível de consciência é que, nos processos correspondentes
ao primeiro, a excitação se encontraria em estado livre, enquanto que, nos processos
correspondentes ao segundo, ela se encontraria em estado ligado. No artigo
metapsicológico sobre o inconsciente, Freud acrescenta a essas hipóteses a idéia de que
é o vínculo com a palavra que produz o ligamento da excitação e que, portanto, faz
surgir o processo secundário, ou o Prcc. Desde o “Projeto...”, já estava presente a
hipótese de que a constituição das representações-palavra é que tornaria uma parte dos
processos de pensamento capazes de despertar a consciência; que seria a palavra que
permitiria a rememoração. No entanto, no “Projeto...”, o estado ligado não resultaria da
associação com as palavras: Freud não formula aí a hipótese de que seriam estas que
instaurariam o processo secundário. No capítulo 7, Freud faz certas afirmações que nos
permitem inferir essa relação entre a palavra e o processo secundário; contudo, só em
“O inconsciente”, ele estabelece, de fato, a dependência do estado ligado em relação à
palavra.
Freud dedica uma seção do artigo “O Inconsciente” às propriedades particulares
do sistema Icc. A primeira delas seria o estado livre da excitação. Ao comentar a
distinção entre o estado livre e o ligado da excitação, a qual consistiria no fundamento
da distinção entre o Prcc e o Icc, Freud diz o seguinte: Creio que esta distinção
continua sendo até hoje nosso entendimento mais profundo sobre a essência da energia
nervosa e não vejo como poderíamos prescindir dela.”
43
Essa afirmação de Freud, mais
uma vez, indica que ele não abandonou a hipótese de que os processos psíquicos sejam
processos nervosos.
O estado livre da excitação seria a principal característica própria do inconsciente;
na verdade, parece que todas as demais decorreriam desta. Outra propriedade do Icc,
que também já havia sido mencionada no capítulo 7, seria a ausência de temporalidade.
Freud especifica que isso quer dizer que os processos inconscientes não estão ordenados
de acordo com relações temporais e que eles não são modificados pelo transcorrer do
tempo:
sistema. Esse seria o caso em que ocorreria um “retorno do reprimido”.
43
AE, vol.14, p.147; SA, vol.3, p.147.
142
“Os processos do sistema Icc são atemporais, quer dizer, não estão
ordenados conforme o tempo, não se modificam pelo transcurso deste,
nem, em geral, têm relação alguma com ele. Também a relação com o
tempo segue do trabalho do sistema Cc.”
44
Ao comentarmos o capítulo 7, formulamos a hipótese de que a ausência da idéia
de tempo seria conseqüência da indestrutibilidade dos processos inconscientes e que
essa indestrutibilidade, por sua vez, resultaria do estado livre da excitação. A ligação da
excitação seria o processo através do qual as representações e os afetos perderiam sua
intensidade e se desvaneceriam gradativamente, fazendo com que surgisse a distinção
entre o passado e o presente. No inconsciente só haveria o presente; o passado existiria
apenas para o Prcc.
A submissão total ao princípio do prazer é mencionada como outra das
características particulares dos processos do sistema Icc, a qual também já havia sido
mencionada no capítulo sete: representações capazes de evocar desprazer estariam
completamente excluídas dos processos primários. Além disso, tais processos não
levariam em consideração as exigências do mundo externo. Só após a sua inibição
isto é, após a ligação de uma parte da excitação –, o mundo externo passaria a ser
levado em consideração. O Icc, portanto, estaria totalmente imerso na realidade psíquica
e ignoraria completamente a realidade exterior.
Freud menciona ainda, nos artigos metapsicológicos, duas outras características
próprias aos processos do sistema inconsciente: a ausência de negação e a ausência de
contradição, esta última resulta logicamente da primeira, pois, sem a negação, não é
possível haver contradição. Segundo Freud, a negação seria introduzida pelo trabalho da
censura entre Prcc e Icc. Ela seria, diz ele, “um substituto da repressão de nível mais
alto”.
45
Não haveria negação no Icc porque neste sistema não haveria palavras nem
relações verbais, e a negação só existiria na linguagem. Sem esta última, não seria
possível haver negação e, conseqüentemente, não seria possível haver contradição. As
relações lógicas surgiriam com o estabelecimento da linguagem, estando presentes,
portanto, apenas nos processos pré-conscientes. Então, no Icc, representações, que do
44
AE, vol. 14, p.184; SA, vol.3, p.145.
45
AE, vol. 14, p.183.
143
ponto de vista do Prcc são contraditórias, coexistiriam sem se influenciarem, sem
entrarem em conflito.
No texto de 1925, “A negação”, Freud desenvolve a afirmação do artigo ‘O
Inconsciente”, segundo a qual a negação seria o substituto da repressão de nível mais
alto. É possível que o reprimido consiga permanecer no Prcc, diz ele, desde que seja
negado. Assim, a negação seria uma alternativa do Prcc para lidar com o que é
desprazeroso, sem reprimi-lo ou sem mantê-lo reprimido. O que viria à consciência,
nesse caso, seria a negação daquilo que não é aceito. Dessa forma, mesmo não sendo
aceito, o reprimido conseguiria se tornar consciente, pois devido a sua negação, o
desprazer por ele produzido seria evitado. Freud afirma, em 1925: “A negação é um
modo de tomar conhecimento do reprimido; na verdade, já é um cancelamento da
repressão, ainda que não, está claro, uma aceitação do reprimido”.
46
Esse processo
parece estar na base do mecanismo da “formação reativa” descrito por Freud.
Então, resume Freud, os traços que se deve esperar encontrar nos processos
pertencentes ao sistema Icc seriam: “ausência de contradição, processo primário
(mobilidade das ocupações), caráter atemporal e substituição da realidade exterior pela
psíquica”.
47
Em contrapartida, os processos que constituem o Prcc seriam processos
secundários e, portanto, estariam submetidos ao princípio de realidade, isto é,
transcorrerriam levando em consideração as exigências do mundo externo. A principal
característica do Prcc seria o estado ligado da excitação e a submissão ao princípio de
realidade. Desde o “Projeto...”, o processo secundário é pensado como um tipo de
funcionamento que surge no aparelho devido à necessidade de se levar em consideração
o mundo externo e, assim, propiciar a satisfação das necessidades orgânicas e a fuga da
dor. Isso é o que imporia a realidade externa à realidade psíquica, a única da qual o
inconsciente teria conhecimento.
Como conseqüência do estado ligado da excitação, no Prcc as representações
estariam ordenadas de acordo com o tempo. Além disso, as representações pré-
conscientes influenciariam umas às outras; haveria, diz Freud, capacidade de
comunicação entre as representações. Ao contrário do que ocorreria no Icc, duas
representações contraditórias não coexistiriam pacificamente, mas entrariam em
46
AE, vol.19, p.253; SA, vol. 3, p.373.
47
AE, vol.14, p.184; SA, vol.3, p.146.
144
conflito, o que acabaria provocando a exclusão de uma delas do Prcc. A capacidade das
representações de se influenciarem umas às outras resultaria da presença de relações
lógicas no Prcc, o que, por sua vez, resultaria da presença de representações-palavra
nesse sistema. Na verdade, assim como todas as propriedades do Icc parecem decorrer
do estado livre da excitação nesse sistema, as propriedades do Prcc decorreriam direta
ou indiretamente da presença das palavras. Até certo ponto, isso é evidente pois as
palavras é que fariam emergir o sistema Prcc. A presença de relações lógicas, das quais
resultaria a capacidade de comunicação entre as representações e a possibilidade delas
se tornarem conscientes, resultariam diretamente do vínculo com as palavras. A
temporalidade e a possibilidade de levar em conta a realidade externa resultariam do
estado ligado da excitação; portanto, resultariam indiretamente das palavras.
Freud aponta ainda como propriedades do sistema Prcc-Cc “a introdução de uma
censura ou de várias” e o “exame de realidade”. Como já comentamos anteriormente,
no artigo “O Inconsciente”, onde Freud distingue entre as propriedades do Icc e as do
Prcc, ele ainda não diferenciou entre os sistemas Prcc e Cc. Quando tal distinção é
estabelecida, no artigo “Complemento metapsicológico à doutrina dos sonhos”, o exame
de realidade e as censuras são mencionados como sendo funções do sistema Cc. No
entanto, logo em seguida nesse mesmo artigo, Freud as atribui ao eu. Como
comentaremos adiante, o eu não pode coincidir com o Prcc, nem com o Cc; na verdade,
embora Freud se refira a ele em algumas ocasiões, não é possível situá-lo com precisão
na tópica. Essa ambigüidade de Freud quanto ao agente do exame de realidade e da
censura não nos permite atribuir tais funções ao Prcc nem ao Cc; o que se sabe é que a
atividade pré-consciente, por estar submetida ao princípio de realidade, tem como
condição o exame de realidade.
48
Todas as demais propriedades permanecem, após ser
estabelecida a distinção entre Prcc e Cc, pertencentes ao primeiro sistema.
Resta-nos, então, discutir o papel que o sistema responsável pela consciência
exerceria no aparelho.
48
Segundo Freud, o critério usado para estabelecer a realidade de uma representação perceptiva
seria a possibilidade de modificá-la mediante uma ação motora. Aquilo que a ação fosse capaz
de alterar seria atribuído ao mundo externo, seria considerado real pelo eu, enquanto que aquilo
que não fosse passível de modificação pela ação seria considerado parte do eu.
145
6) Representação e consciência nos artigos metapsicológicos
Comentamos anteriormente que Freud hesita, nos artigos metapsicológicos, em
distinguir entre os sistemas Prcc e Cc. Em “O Inconsciente”, ele afirma que um ato
psíquico em geral passaria por duas fases, entre as quais operaria como seletor um tipo
de exame, uma censura. Na primeira fase, tal ato seria inconsciente e pertenceria a este
sistema. Se não fosse rechaçado pela censura, ele passaria para a segunda fase, passaria
a integrar o sistema Cc e, caso contrário, caso fosse recusado pela censura,
permaneceria como reprimido no Icc. No primeiro caso, o processo psíquico não seria
ainda consciente, mas “suscetível de consciência”, isto é, poderia ser objeto da
consciência sempre que se apresentassem certas condições. Devido a essa
suscetibilidade de consciência, diz ele, chamamos ao sistema da consciência também de
“pré-consciente”. Freud, nesse ponto, apresenta sua dúvida quanto a diferenciar ou não
entre os sistema Prcc e Cc:
Se se chegasse a averiguar que o tornar-se consciente do pré-
consciente é, por sua vez, co-determinado por uma certa censura,
deveríamos isolar entre si com rigor os sistema Prcc e Cc.
Provisoriamente basta estabelecer que o sistema Prcc participa das
propriedades do sistema Cc, e que a censura rigorosa está em função
na passagem do Icc ao Prcc (ou Cc).”
49
Adiante, nesse mesmo artigo, Freud conclui que, de fato, é preciso supor a
presença de uma censura também entre o Prcc e o Cc, ou seja, que os processos
suscetíveis de consciência (os pré-conscientes) tenham que superar uma censura para se
tornarem conscientes. Mas, apesar de, já no artigo sobre o inconsciente, Freud
reconhecer que é preciso supor a presença dessa censura atuando sobre os processos
pré-conscientes – a qual decidiria sobre o tornar-se consciente e implicaria distinguir os
sistema Prcc e Cc – ele continua se referindo a esses dois sistema indistintamente. Ele
ainda se refere ao sistema “Prcc(Cc)” ou “Cc(Prcc)”. Somente a partir do artigo
“Complemento metapsicológico a doutrina dos sonhos”, o penúltimo dos artigos
metapsicológicos a ser escrito, ele passa a diferenciar, de fato, entre os dois sistemas.
49
AE, vol.14, p.169; SA, vol.3, p.132.
146
Nesse texto, ele reconhece que até então não havia separado claramente entre os dois
sistemas e que é preciso fazê-lo.
Ao passar a tratar o sistema Cc como um sistema independente do pré-consciente,
Freud passa a se referir ao sistema Cc (P). Não fica claro, no entanto, se ele está
identificando os dois sistemas, se Cc e P seriam o mesmo sistema, ou se ambos
estariam apenas ligados. De qualquer forma, há uma nítida modificação em relação ao
que é proposto no capítulo 7. Nesse último texto, como vimos, o sistema P e o sistema
Cc se localizavam cada um em uma das extremidades do aparelho. Agora, Freud passa a
se referir a eles como se fossem um único sistema ou, então, como se fossem dois
sistemas ligados. Mas onde esse sistema Cc (P) estaria situado? No lugar
correspondente a P na tópica do capítulo 7? Ou na extremidade oposta, correspondente a
Cc? Ou ambas as extremidades estariam ligadas, de forma que Cc(P) estaria conectado
tanto ao sistema Icc quanto ao sistema Prcc? Essa última hipótese parece ser a mais
frutífera para a teoria mas Freud não esclarece essa questão.
50
Contudo, sabemos que o
sistema Cc (P) tem que estar ligado ao Prcc, pois foi justamente a existência de uma
censura entre ambos que levou Freud a distingui-los; portanto, a primeira alternativa
parece poder ser descartada.
Como já comentamos, nos artigos metapsicológicos, Freud é bastante ambíguo
quanto à localização do sistema P. Ele ora o situa ao lado do Prcc-Cc, propondo que a
atividade psíquica siga dois circuitos opostos: um que parte dos estímulos externos e
segue pelo Prcc-Cc até chegar ao sistema Icc, e outro que parte das pulsões e alcança Cc
por intermédio do Icc.
51
Ora ele situa P ao lado do sistema Icc, assim como no capítulo
7, e sustenta que os estímulos externos alcançariam P, seguiriam pelo Icc, pelo Prcc e,
enfim, alcançariam o sistema Cc. A identificação entre Cc e P e a união dos dois pólos
do aparelho resolveria a questão da localização de P, pois colocaria tal sistema em
ligação tanto com o sistema consciente e o pré-consciente, quanto com o inconsciente.
Contudo, o percurso da excitação pelos sistemas continuaria indefinido, assim como a
relação entre a consciência e a percepção. Esta se tornaria consciente imediatamente,
uma vez que P e Cc seriam o mesmo sistema ou estariam ligados? Mas, nesse caso, a
50
Em uma nota agregada em 1919 ao capítulo 7, Freud diz: “A posterior ampliação desse
esquema de desenvolvimento linear deverá incluir a suposição de que o sistema que segue ao
Prcc é aquele ao qual temos que atribuir a consciência, vale dizer, P = Cc”.(AE, vol. 14, nota 11,
p.535). Nessa passagem, Freud parece estar propondo a junção das duas extremidades do
aparelho. No entanto, nos artigos metapsicológicos, isso ainda não fica claro.
.51
AE, vol.14, p.200.
147
consciência precederia a representação? Parece não ser essa a hipótese de Freud, pois
um pouco antes de estabelecer a separação entre o Prcc e o sistema Cc e de associar este
último a P no texto “Complemento metapsicológico à doutrina dos sonhos”, Freud volta
a afirmar sua hipótese do capítulo 7, segundo a qual todo conteúdo perceptivo seria
submetido à elaboração secundária antes de se tornar consciente, o que implica que a
excitação proveniente do mundo externo, entes de alcançar Cc, passaria pelo Icc e pelo
Prcc. Essa hipótese poderia ser conciliada com a união das duas extremidades do
aparelho, pois P estaria ligado ao Icc, e o percurso da excitação, no caso das percepções,
poderia continuar sendo o mesmo proposto no capítulo 7, isto é, P-Icc-Prcc-Cc. Só que
isso só seria possível se os sistemas P e Cc não estivessem sendo identificados de fato,
uma vez que essa identificação implicaria que as percepções se tornassem conscientes
imediatamente, sem serem elaboradas. Se essa fosse a hipótese sustentada por Freud –
de que P e Cc não são o mesmo sistema, mas apenas estão em conexão e que o percurso
da excitação continua sendo o mesmo do capítulo 7 – surgiriam algumas modificações
no modo de conceber a formação do sonho e a rememoração.
No capítulo 7, Freud havia concebido o sonho como possuindo uma primeira
etapa em sentido progressivo, na qual as moções de desejo inconscientes se associariam
a conteúdos pré-conscientes, uma segunda etapa em sentido regressivo, na qual o
processo onírico seria transposto em percepções, e uma última etapa, novamente em
sentido progressivo, na qual o conteúdo do sonho sofreria a elaboração secundária e
acabaria, enfim, conseguindo se impor à consciência. A rememoração, por sua vez,
possuiria uma primeira etapa regressiva, do Prcc até P e uma segunda etapa progressiva,
de P até Cc. Com a união das duas extremidades do aparelho, essa última etapa do
sonho e da rememoração poderia ser descartada, uma vez que P estaria diretamente
ligado a Cc. Dessa forma, o curso dos processos se tornaria menos tortuoso, embora a
elaboração secundária, no caso do sonho, tivesse que ser explicada de outra forma.
Contudo, a ambigüidade de Freud quanto à relação entre a percepção e os processos
psíquicos não nos permite concluir nada de definitivo a respeito da relação entre tais
processos, a consciência e a percepção. Ao contrário do que faz a respeito dos sistemas
Prcc e Icc, Freud não esclarece quais seriam as características do sistema Cc (P). A
relação entre a representação e a consciência torna-se, nos artigos metapsicológicos,
muito mais obscura que no “Projeto...” e no capítulo 7, provavelmente porque Freud
pretendia publicar um outro artigo que trataria exclusivamente da consciência.
148
Ao comentarmos o capítulo 7, observamos que Freud não especifica aí, ao
contrário do que ocorre no “Projeto...”, qual seria o mecanismo pelo qual as
representações-palavra possibilitariam a consciência; no entanto, ele afirma que a
rememoração comum consiste em um processo regressivo. Na carta 52, ele havia dito
que a consciência do pensamento resultaria da reanimação alucinatória da palavra, uma
vez que a reativação alucinatória das representações é pensada, no capítulo 7, como
consistindo em um processo regressivo, do Prcc a P, e que seria a palavra que
possibilitaria a rememoração, tudo indica que a reativação alucinatória das palavras
seria o mecanismo pelo qual o pensamento poderia se tornar consciente. Mas, nesse
caso, como argumentamos, não seria possível compreender por que a consciência do
pensamento dependeria da palavra, uma vez que as representações-coisa, como acontece
no sonho, poderiam também ser transpostas em percepções. Nos artigos
metapsicológicos Freud levanta essa questão. Ele diz:
“As representações-palavra provêm, por sua parte, da percepção
sensorial da mesma maneira que as representações-coisa, de modo que
poderíamos colocar essa pergunta: Por que as representações-objeto
não podem se tornar conscientes por meio de seus próprios restos de
percepção?”.
52
A resposta de Freud é a seguinte:
“É que provavelmente o pensar se desenvolve dentro de sistemas tão
distanciados dos restos de percepção originários que nada
conservaram de suas qualidades e, para se tornarem conscientes,
necessitam de um reforço de qualidades novas. Além disso, mediante
o enlace com palavras, podem ser providos de qualidade mesmo
aquelas ocupações que não puderam levar consigo qualidade alguma
das percepções, porque correspondiam a meras relações entre as
representações-objeto.”
53
Freud reconhece que a hipótese de que a palavra permite a consciência ao ser
transposta em percepção deixa em aberto a questão de por que as representações-coisa
52
AE, vol.14, p.198; SA, vol.3, p.160.
149
não poderiam se tornar conscientes sem o auxílio da palavra, visto que também
poderiam ser transpostas em percepções, como ocorre na alucinação. Além disso, é
preciso reconhecer que há coisas no psíquico que se tornam conscientes mesmo sem
nunca terem sido percepções, como as relações entre as representações. Isso implica que
deve haver alguma propriedade exclusiva das palavras que justificasse a dependência da
rememoração em relação a elas; em outras palavras, que deve haver alguma propriedade
exclusiva da palavra que a torne capaz de produzir qualidades, de atribuir qualidade
mesmo àquilo que nunca foi percepção. Freud não apresenta, no entanto, nenhuma
hipótese sobre qual seria essa propriedade da palavra. Notemos que a hipótese do
“Projeto...”, de que o elemento cinestésico da palavra é que possibilitaria a consciência
por produzir percepções no aparelho, era muito menos problemática que sua hipótese
posterior, pois atribuía a uma característica exclusiva das representações-palavra a
capacidade de fazer surgir qualidade no aparelho. Na verdade, a hipótese do “Projeto...”
parecia resolver a questão. No entanto, nos artigos metapsicológicos, Freud não volta a
se referir à ela. Ele continua, nesses artigos, concebendo a possibilidade de
rememoração de uma representação como sendo dependente da associação com
representações-palavra, mas parece não possuir uma hipótese definida sobre como isso
se daria.
Deste modo, Prcc e Cc passam a ser considerados como dois sistemas diferentes.
Sabemos que o Prcc corresponde aos processos secundários e que tais processos são
suscetíveis de se tornarem conscientes devido ao seu vínculo com representações-
palavra. Assim como no capítulo 7, não bastaria estar associado à palavra – isto é,
pertencer ao processo secundário – para, de fato, despertar a consciência. A
representação-palavra tornaria os processos suscetíveis de consciência, mas uma parte
desses processos teria que vencer uma censura para se tornar consciente. Parte do
conteúdo do Prcc estaria submetido a essa censura, a saber, aquele setor que consiste em
derivados do reprimido primordial. O restante do conteúdo do Prcc seria suscetível de
consciência sem censura:
“Um setor muito grande deste pré-consciente provém do
inconsciente, tem o caráter de seus derivados e sucumbe a uma
53
AE, vol.14, p.199; SA, vol.3, p.160.
150
censura antes que possa se tornar consciente. Outro setor do Prcc é
suscetível de consciência sem censura.
54
Freud restringe, então, em 1915, a ação da censura – só os derivados do reprimido
estariam a ela submetidos. Esses derivados do inconsciente poderiam ou não sucumbir à
repressão propriamente dita. Aqueles que escapassem à repressão permaneceriam
submetidos à censura situada entre o Prcc e o Cc; dela dependeria se eles conseguiriam
ou não se tornar conscientes. Vimos que, já no capítulo 7, Freud havia mencionado a
existência de uma censura entre os sistema Prcc e Cc, a qual, segundo ele, atuaria sobre
processos com intensidade que ultrapassasse certo limite; abaixo deste limite, os
processos pré-conscientes não poderiam se tornar conscientes. Sobre a relação entre a
censura e a intensidade dos processos, Freud afirma, nos artigos metapsicológicos, que
aqueles derivados do inconsciente que superassem certa intensidade sucumbiriam à
repressão, pois, caso contrário, conseguiriam se impor à Cc. Essa afirmação nos sugere
duas coisas: primeiro, que o que se torna alvo da repressão propriamente dita é aquele
processo derivado do reprimido primordial que atinge certa intensidade; segundo, que a
intensidade do processo pré-consciente, de alguma forma, está relacionada com o
tornar-se consciente. Processos muito intensos necessariamente se imporiam à
consciência; a censura seria incapaz de contê-los.
Freud volta a se referir ao mecanismo da “atenção” nos artigos metapsicológicos.
No “Projeto...”, ele havia formulado a hipótese de que a percepção consciente de uma
representação dependeria, além do despertar de signos de qualidade, da focalização de
tais signos pela atenção. Esta seria um mecanismo do eu, que consistiria na ocupação
dos signos de qualidade. No capítulo 7, embora Freud não retome a hipótese dos signos
de qualidade, ele volta a mencionar o mecanismo da atenção e passa a considerá-lo
como uma função do sistema Prcc. Em “O Inconsciente”, Freud parece propor que
haveria uma relação entre o mecanismo da atenção e a censura entre o sistema Prcc e
Cc. Ele afirma:
“(...) muito do que participa das propriedades do sistema Prcc não se
torna consciente; e todavia chegaremos a saber que certas orientações
da atenção deste sistema são restritivas do tornar-se consciente”.
55
54
AE, vol.14, p.188; SA, vol.3, p.150.
151
Essa afirmação de Freud sugere que o que seria censurado na barreira entre o Prcc
e o Cc seria aquilo que não fosse alvo da atenção, e a afirmação abaixo sugere que a
atenção continua sendo concebida de forma muito próxima ao “Projeto...”:
“(...) a existência da censura entre entre Prcc e Cc nos adverte que o
tornar-se consciente não é um mero ato de percepção, mas que
provavelmente se trata também de uma sobre-ocupação, um posterior
progresso da organização psíquica”.
56
No “Projeto...”, o mecanismo da atenção é pensado como uma sobre-ocupação
dos signos de qualidade que se constituem no sistema ψ. Para uma representação se
tornar consciente, não bastaria ela despertar os signos de qualidade, seria necessário
também que esses signos fossem focalizados pelo mecanismo da atenção. As afirmações
acima sugerem que Freud continua concebendo a relação entre a representação e a
consciência de forma muito semelhante em 1915. As representações pré-conscientes
censuradas seriam aquelas que, embora possuíssem todos os requisitos necessários para
se tornarem conscientes, não fossem focalizadas pela atenção. Dessa forma, Freud teria
mantido a hipótese de que o tornar-se consciente depende, entre outras coisas, da
focalização das representações pelo mecanismo da atenção.
Em algumas ocasiões, ao longo dos artigos metapsicológicos, Freud volta a se
referir ao eu. Na carta 52 e no capítulo 7, como vimos, o conceito de eu praticamente
tinha desaparecido da teoria. Com a consolidação da primeira dualidade pulsional e,
depois, com a introdução do conceito de narcisismo, o eu volta a ganhar espaço na
teoria freudiana; contudo, fica claro que Freud não consegue conciliar o eu com sua
hipótese sobre a estrutura do aparelho psíquico; dito de outra forma, não consegue
inseri-lo no esquema da primeira tópica. Em nenhum momento, nos artigos de 1915,
Freud formula uma hipótese sobre em que consistiria o eu, nem estabelece nenhuma
relação precisa entre ele e as três instâncias. Como aponta Mezan: “O conceito de ego,
alimentado de várias direções, espraia-se pelos territórios do pré-consciente e do
inconsciente(...)”. (1991, nota 88, p.219)
55
AE, vol. 14, p.189; SA, vol.3, p.151.
56
AE, vol.14, p.190; SA, vol.3, p.152.
152
No artigo “Complemento metapsicológico à doutrina dos sonhos”, Freud aponta
que a censura entre os sistemas e o exame de realidade seriam funções do eu. Um pouco
antes de fazer tal afirmação, nesse mesmo artigo, ele afirma que o sistema Cc seria o
responsável pelo exame de realidade. De imediato, isso poderia nos sugerir que o eu
corresponde à Cc; no entanto, logo em seguida, Freud afirma que o eu ocupa o sistema
Cc (P), assim como ocupa os sistema Prcc e Icc
57
, o que implica que ele não pode
corresponder a nenhum desses três sistemas. Na verdade, ele teria que estar situado fora
da tópica.
As funções do eu e a sua situação tópica permanecem, portanto, totalmente
obscuras. Como se sabe, a necessidade de reintroduzir o eu na tópica psíquica foi um
dos motivos que levou Freud a rever sua teoria e a formular a hipótese da segunda
tópica. Os artigos de 1915 já parecem consistir numa primeira tentativa de revisão da
primeira teoria do aparelho psíquico, a qual deixa bem claro os seus limites. O eu, a
percepção e a consciência parecem ser os conceitos mais problemáticos para Freud
nesse período de sua teoria.
Considerações finais
O que podemos concluir, a partir da análise do período da obra freudiana tratado
neste capítulo, a respeito das principais questões que norteiam essa tese?
Na segunda parte do artigo metapsicológico sobre o inconsciente, Freud volta a
declarar sua intenção de deixar de lado a relação entre o aparelho psíquico e a anatomia
do sistema nervoso; contudo, ele enfatiza que essa é uma postura “provisória”. Assim
como no capítulo 7, não há nada que indique que ele tenha abandonado sua hipótese de
que os processos psíquicos inconscientes sejam processos que ocorrem no sistema
nervoso. No texto de 1913, “O Interesse pela psicanálise”, e no artigo metapsicológico
sobre o inconsciente, Freud expõe de maneira bem clara os motivos que o levaram a
abordar os processos psíquicos inconscientes a partir de um referencial psicológico.
Hoje, diz ele, não parece haver possibilidade de abordar tais processos enquanto
processos físicos, mas é possível descrevê-los a partir das categorias da psicologia da
57
Freud diz que no sonho os três sistemas seriam parcialmente desocupados pelo eu.
153
consciência e, então, é preciso adotar esse tipo de abordagem. Novamente fica claro que
essa decisão não decorreu de alguma hipótese nova sobre a natureza do psíquico
inconsciente, mas sim da sua conveniência e viabilidade. Em várias passagens, como
vimos, Freud expressa sua crença em que um dia “as provisoriedades psicológicas se
assentem no terreno dos substratos orgânicos”. Tudo isso nos permite concluir que
também não houve, nesse período da teoria freudiana, nenhuma alteração na posição de
Freud quanto à natureza física do psíquico inconsciente e quanto ao estatuto da
metapsicologia.
No capítulo 7, Freud introduz a hipótese de que o sistema Icc corresponda aos
processos primários, enquanto que o sistema Prcc corresponderia aos processos
secundários. Com isso, ele estabelece propriedades distintivas entre o psíquico
suscetível e o insuscetível de se tornar consciente. As características distintivas entre os
processos pré-conscientes e os inconscientes – algumas das quais já são mencionadas
no capítulo 7, enquanto outras podem ser inferidas a partir desse texto – também são
explicitadas em 1915. No artigo metapsicológico sobre o inconsciente, Freud introduz a
hipótese de que é a constituição da representação-palavra que faz emergir o processo
secundário: quando as representações-coisa fossem sobreocupadas pela palavra
emergiria um nível de organização mais elevado, que corresponderia ao Prcc. A
representação-palavra é que seria, então, a responsável pelo ligamento de uma parte da
excitação em estado livre. Parte das representações-coisa, contudo, não receberia esse
sobre-ocupação da palavra; esta parte constituiria o “reprimido primordial”. É possível
inferir do texto que é essa sobre-ocupação de uma parte das representações-coisa que
funcionaria como contra-ocupação para as demais representações e que, nos termos do
“Projeto...”, as representações-coisa ocupadas por representações-palavras funcionariam
como ocupações laterais para aquelas que não possuíssem tal sobre-ocupação. Essas
representações desde a origem inconscientes constituiriam apenas uma parte do Icc;
neste se encontrariam também as representações que tivessem sido alvo da “repressão
propriamente dita” – isto é, aquelas que foram pré-conscientes, mas que, por terem
entrado em associação com o reprimido primordial e por terem adquirido certa
intensidade, foram posteriormente desocupadas pelas palavras. Desde o “Projeto...”,
podemos inferir que as representações insuscetíveis de se tornarem conscientes são
representações-coisa – ou representações-objeto como as chama Freud em 1891 – que
não possuam vínculo com palavras, mas é apenas nos artigos metapsicológicos que
Freud expõe essa hipótese claramente.
154
No capítulo 7, Freud havia dito que uma parte das “moções de desejo infantis
nunca chegaria a integrar o sistema Prcc. Essas moções formariam o núcleo do
inconsciente e seriam pré-condição para a repressão. Nos artigos metapsicológicos,
Freud chama essas moções de desejo, primeiro, de pulsões e, depois, de representantes
de pulsão, e esta última é a hipótese que prevalece. Os representantes de pulsão teriam
assim sido alvo da repressão primordial. Apenas com a introdução desta última
hipótese, passa a ser possível afirmar que o sistema inconsciente seria constituído pelo
reprimido, desde que se entenda por isso o conjunto formado pelo reprimido primordial
e o reprimido propriamente dito. Nos artigos metapsicológicos, Freud sugere que a
repressão primordial atua sobre os representantes de pulsões sexuais. Estas e as
representações que, por terem se tornado derivadas delas, tivessem sido alvo da
repressão propriamente dita formariam, então, o conteúdo do Icc.
Nos artigos metapsicológicos, assim como no capítulo 7, não parece ter havido
mudança nas hipóteses freudianas sobre a função que a consciência exerce nos
processos psíquicos. As condições que tornariam um processo psíquico apto a se tornar
consciente parecem também terem sido mantidas. Freud apenas especifica que a censura
entre Prcc e Cc atua sobre os derivados do reprimido e parece sugerir que o mecanismo
da atenção é o agente censurador nesse caso. A principal mudança em relação ao
capítulo 7 e ao “Projeto...” parece ser o obscurecimento da relação entre a consciência, a
percepção e a representação. Freud possuía uma hipótese mais clara sobre isto em 1895
e em 1900, mas, em 1915, essa hipótese está sendo questionada.
Como vimos, Freud situa a percepção ora em um ora em outro dos extremos do
aparelho. Quando passa a distinguir de fato entre os sistemas Prcc e Cc, ele começa a se
referir ao sistema Cc (P), o que indica que a percepção e a consciência ou são o mesmo
sistema ou estão conectadas. Com isso, fica claro que Freud não situa mais a percepção
no extremo oposto ao que estaria situado o sistema Cc, como o faz no capítulo 7, mas
não sabemos se ele uniu as duas extremidades do aparelho ou se ele apenas deslocou a
percepção para o extremo oposto. No segundo caso, estaria sendo pressuposto que as
percepções se tornariam conscientes antes de serem representadas, ou seja, que a
consciência da percepção precede a constituição da representação. No primeiro, tanto
poderia ter sido mantida a hipótese anterior de que a informação sensorial percorre
todos os sistemas antes de se tornar consciente, quanto poderia estar sendo pressuposto
que a consciência da percepção precede a representação. A afirmação de Freud segundo
a qual todo conteúdo perceptivo seria elaborado antes de se tornar consciente, parece
155
indicar que ele não passou a adotar essa última hipótese. No entanto, como as suas
afirmações são contraditórias neste ponto não é possível concluirmos nada de definitivo
a esse respeito. Ficamos com a impressão de que Freud não sabe muito bem o que fazer
com a consciência – como quando deixa claro sua dúvida, nesses artigos, quanto a
distinguir ou não entre os sistemas Prcc e Cc – e com a percepção. Na verdade, desde o
“Projeto..”, não parece haver justificativa para se postular um sistema exclusivo para a
consciência. Como observou Simanke (1994), os artigos de metapsicologia, muito mais
do que uma sistematização do saber psicanalítico até então produzido, apresentam o
quadro de uma teoria como que se debatendo de encontro aos seus limites.
156
CAPÍTULO IV: O APARELHO PSÍQUICO E A TEORIA PULSIONAL NA
SEGUNDA TÓPICA
Neste quarto capítulo, abordaremos, em primeiro lugar, a introdução do conceito de
compulsão à repetição e da hipótese do novo dualismo pulsional em “Além do princípio do
prazer” (1920). Em seguida, analisaremos a reformulação da tópica em “O eu e o isso” e,
então, passaremos para a questão de como a relação entre representação e consciência é
pensada no período que vai de “Além do princípio do prazer” até as “Novas conferências
de introdução à psicanálise” (1932). Por último, comentaremos algumas questões
trabalhadas por Freud no “Esboço de psicanálise” (1938), que modificam, acrescentam ou
ressaltam algum dos pontos da teoria freudiana abordados até aqui.
1. A revisão da teoria das pulsões em “Além do princípio do prazer”
É surpreendente que alguns leitores de Freud tenham encontrado, em “Além do
Princípio do Prazer”, um desvio da teoria freudiana em direção à filosofia. Mezan (1991),
por exemplo, afirma que, com o conceito de pulsão de morte, a dimensão especulativa se
introduz na psicanálise, que até então havia pretendido ser uma ciência. E quando fala em
especulação, fica claro que ele se refere à filosofia. Monzani (1989) menciona outros
exemplos desse tipo de leitura. Isso é surpreendente, entre outros motivos, porque Freud
alerta explicitamente o leitor contra esse tipo de interpretação. No quarto capítulo desse
texto, após formular a hipótese de que o esforço por restabelecer um estado anterior seria
uma característica universal das pulsões, ele diz que seguirá até as últimas conseqüências
essa hipótese antes de prosseguir e, então, nos adverte de que, mesmo que possa passar tal
impressão, ele não tem nenhuma pretensão de abordar algo místico ou “profundo”:
“Não importa se o que disto resulte, tenha ar de “profundo” ou soe algo
místico; por nossa parte, sabemo-nos bem livres da reprovação de buscar
semelhante coisa. Pretendemos alcançar os sóbrios resultados da
157
investigação ou da reflexão baseada nela, e desejamos que esses
resultados não tenham outro caráter que o da certeza.”
1
Nas últimas páginas do texto em questão, Freud afirma:
“Poderiam me perguntar se estou convencido das hipóteses aqui
desenvolvidas, e até onde o estou. Minha resposta seria: nem eu estou
convencido, nem peço aos demais que creiam nelas. Parece-me que nada
tem a fazer aqui o fator afetivo do convencimento. É plenamente lícito se
entregar a uma argumentação, persegui-la até onde leve, só por
curiosidade científica”.
2
Adiante, ele observa que só a combinação entre o fático e o meramente cogitado
permitirão dar continuidade a suas investigações: é a mesma concepção de ciência
apresentada em “Pulsões e seus destinos” que está sendo sustentada em “Além do princípio
do prazer”. Na introdução de “Pulsões e seus destinos” (1915), como vimos, Freud
argumentara que os conceitos básicos da ciência comportam, a princípio, certo grau de
indeterminação e que sua validade é garantida pela remissão ao material empírico e pela
adequação aos fatos observados. Com o avanço da investigação, esses conceitos vão sendo
delimitados com maior exatidão, o que não significa que eles permaneçam inalteráveis,
uma vez que todo conhecimento científico está sempre sujeito a modificações. Fica claro
então que, para Freud, a ciência não exclui a especulação teórica; ao contrário, ela não
pode prescindir dela.
Prevendo, então, que talvez alguns leitores tendessem a ver algo de “profundo” nas
suas especulações, que pudesse escapar à sua pretensão científica, Freud chama a atenção
do leitor contra tal interpretação. Mas, mesmo que essa advertência passasse despercebida,
a remissão constante de Freud aos dados da biologia revela sua preocupação em encontrar
um apoio científico para suas hipóteses.
O texto “Além do princípio do prazer” está repleto de questões biológicas. O tempo
todo Freud busca na biologia dados que auxiliem e fundamentem suas hipóteses.
1
AE, vol.18, p.37; SA, vol. 3, p.247
2
AE, vol.18, p.57; SA, vol. 3, p.267
158
Lembremos que, no “Projeto de uma psicologia”, ele já havia feito o mesmo e que, em
outros momentos, já havia afirmado que é a biologia quem poderia elucidar a questão das
pulsões. As remissões de Freud à filosofia, nesse texto de 1920, sempre são feitas com certo
cuidado. Ele faz questão de deixar claro, ao mencionar certas concepções filosóficas, que
não está as colocando no mesmo nível daquelas obtidas a partir dos dados clínicos e
biológicos.
Na 32
a
das “Novas conferências de introdução à psicanálise”, após expor a idéia de
pulsão de morte, Freud diz o seguinte:
“Talvez vocês digam, encolhendo os ombros: “Isto não é ciência
da natureza, é filosofia schopenhaueriana”. Mas, por que, senhoras e
senhores, um pensador audaz não poderia haver inferido o que uma
trabalhosa e sóbria investigação de detalhe confirmaria? Além disso, tudo
já foi dito alguma vez, e muitos disseram coisas semelhantes antes de
Schopenhauer.”
3
Essa passagem deixa claro que a introdução do novo dualismo pulsional não
resultou de especulações metafísicas e que Freud não se voltou nesse momento para a
filosofia, como propõe Mezan. Freud enfatiza que a hipótese da pulsão de morte foi inferida
a partir de suas investigações psicanalíticas e que sempre teve em vista a elaboração de uma
ciência natural.
A seguinte passagem de “Além do princípio do prazer” parece afastar ainda mais a
idéia de que teria havido, nesse momento, uma mudança substantiva no estatuto da
metapsicologia freudiana:
“Ao julgar nossa especulação acerca das pulsões de vida e de morte, nos
inquietará que apareçam nela processos tão inimagináveis como que uma
pulsão seja forçada a sair fora por outra (...) e coisas parecidas. Isto só se
deve ao fato de nos vermos obrigados a trabalhar com os termos
científicos, isto é, com a linguagem figurada própria da psicologia (mais
corretamente: da psicologia profunda). De outro modo, não poderíamos
3
AE, vol.22, p.100.
159
nem descrever os fenômenos correspondentes; mais ainda: nem se quer os
teríamos percebido. É provável que os defeitos de nossa descrição
desapareçam se, em lugar dos termos psicológicos, pudéssemos já usar os
fisiológicos ou químicos. Mas, na verdade, também estes pertencem a
uma linguagem figurada, ainda que nos seja familiar há mais tempo e seja,
talvez, mais simples.”
4
Mais uma vez Freud afirma se ver forçado a usar termos psicológicos na formulação
das hipóteses metapsicológicos, assim como reafirma sua crença na provisoriedade das
concepções puramente psicológicas. O psíquico inconsciente parece continuar a ser
concebido como uma parte dos processos que ocorrem no sistema nervoso, e a
metapsicologia, como uma teoria provisória que um dia, talvez, pudesse ser substituída pela
biologia, a física ou a química, mas não pela filosofia. Portanto, parece que, até esse
momento, não houve passagem, nem da neurologia para uma psicologia auto-suficiente
nem de algumas dessas duas para a filosofia. Freud demonstra estar mantendo a mesma
postura sobre a natureza física do psíquico inconsciente e sobre o estatuto da
metapsicologia.
1.1) O “além” do princípio do prazer
Iniciaremos o comentário de “Além do princípio do prazer” retomando algumas
hipóteses do “Projeto...”, pois, como argumentaremos, a relação entre esses dois textos é
bastante elucidativa.
No “Projeto...”, Freud estabelecera como princípio fundamental da atividade
nervosa o “princípio de inércia”. A tendência originária dos neurônios seria libertar-se
totalmente da quantidade, e manter o seu nível igual a zero (Q = 0). O princípio de inércia,
contudo, seria infringido desde o início, devido a sua incapacidade de promover a descarga
da excitação proveniente do interior do corpo. A excitação endógena, ao contrário da
exógena, não poderia ser descarregada por meio de movimentos reflexos; estes não seriam
capazes de fazer cessar a recepção da excitação. Para fazer cessarem os estímulos
endógenos, seria necessário uma “ação específica”, cuja realização teria como condição que
4
AE, vol.18, p.58; SA, vol.3, p.268
160
houvesse certo nível de quantidade armazenado no aparelho. Portanto, a estimulação
endógena imporia uma modificação à tendência primária para a inércia: a saber, imporia a
substituição da tendência a manter o nível de Q=O pela tendência a manter esse nível
constante, no nível mínimo necessário. A tendência à constância não se oporia ao princípio
da inércia; ao contrário, atuaria em seu favor, permitindo que a quantidade endógena fosse,
de fato, descarregada.
No “Projeto...”, Freud definira que as sensações de prazer e desprazer
correspondem, respectivamente, à diminuição e ao aumento do nível de excitação no
aparelho. O aumento da excitação acima de certo nível produziria desprazer, e a sua
diminuição abaixo de certo nível produziria as sensações de prazer. Entre ambos, haveria
um nível intermediário de ocupação, que possibilitaria o surgimento e a percepção das
qualidades sensoriais. Freud sugerira uma identificação entre a tendência primária à inércia
e a tendência da vida psíquica para “evitar o desprazer”: “Uma vez que é certamente
conhecida por nós uma tendência da vida psíquica para “evitar desprazer”, estamos
tentados a identificá-la com a tendência primária para a inércia
.”
5
Apenas no capítulo 7 de “A Interpretação dos sonhos”, Freud passa a falar em um
“princípio de desprazer”, que posteriormente será chamado de “princípio do prazer”.
Segundo o que ele propõe neste texto, o sistema inconsciente – o processo primário – seria
regido exclusivamente pelo “princípio do prazer”. O Prcc seria regido pelo que, em
“Formulações sobre os dois princípios” (1911), Freud chamou de “princípio de realidade”.
Essas hipóteses do capítulo 7 sobre a relação entre o sistema Icc e o princípio do prazer, por
um lado, e entre o Prcc e o princípio de realidade, por outro, são mantidas inalteradas nos
artigos metapsicológicos de 1915, com o acréscimo da hipótese de que as pulsões sexuais
permaneceriam mais tempo sobre o domínio exclusivo do princípio do prazer do que as que
pertencem ao eu. Mas, em “Além do princípio do prazer”, Freud acaba concluindo que o
funcionamento regido pelo princípio do prazer não é originário: haveria uma forma de
funcionamento anterior, a qual obedeceria a uma “compulsão à repetição”. Contudo, pode-
se argumentar que esse funcionamento psíquico que estaria para “além do princípio do
prazer” só representa uma “novidade” em relação às hipóteses sobre o aparelho psíquico
apresentadas a partir de “A interpretação dos sonhos” e que o funcionamento regido pela
5
PP, p.190.
161
compulsão à repetição já estava, de certa forma, presente no “Projeto...”. Em 1920, Freud
parece resgatar hipótese antigas, que haviam sido deixadas de lado na primeira tópica,
assim como explicitar hipóteses que permaneceram implícitas em toda teoria, como é o
caso do próprio conceito de pulsão de morte, assim como, é claro, introduzir novas
hipóteses, como a do novo dualismo pulsional.
1.2)O processo primário no “Projeto...”
Os conceitos de “processo primário” e de “processo secundário” já se encontram
formulados no “Projeto”. O processo primário consistiria em um tipo de funcionamento
guiado exclusivamente pela tendência à inércia, isto é, anterior ao surgimento da tendência
à constância. Seria um processo no qual toda a excitação seguiria pela via melhor facilitada,
sem sofrer nenhum tipo de inibição ou direcionamento. Nesse momento, Freud reconhece
que esse funcionamento primário poderia conduzir à reativação de representações que,
mesmo em sua origem, produziram apenas desprazer. Isso ocorreria nas primeiras
repetições de uma vivência de dor.
A dor foi definida como a irrupção de grandes quantidades oriundas do mundo
externo na direção de ψ, como conseqüência da falha dos dispositivos de proteção desse
sistema contra quantidades exógenas – esses dispositivos, segundo Freud, consistiriam nas
próprias terminações sensoriais. A dor produziria, em primeiro lugar, um grande aumento
no nível da excitação em ψ, sentido como desprazer; em segundo lugar, uma tendência à
eliminação da excitação; e, em terceiro, uma facilitação entre esses caminhos de eliminação
e a representação do objeto que provocou a dor (“objeto hostil”). Quando a representação
do objeto hostil fosse ocupada novamente desde a percepção ou por alguma via associativa,
haveria uma liberação de quantidade no aparelho, que geraria desprazer – isto é o que Freud
chama de “afeto” – e uma inclinação para a desocupação da representação do objeto hostil.
6
Assim como a vivência de satisfação teria como conseqüência o surgimento do “estado de
desejo”, o qual inicialmente conduziria à alucinação e a uma vã descarga motora, a
vivência de dor teria como conseqüência o surgimento do afeto e a defesa primária
6
Para explicar essa liberação de quantidade no aparelho, Freud introduz a hipótese dos “neurônios-chave”,
que seriam neurônios que secretariam quantidade no aparelho. Na ocasião da vivência de dor, as
representações constituídas em ψ estabeleceriam uma associação com esses neurônios secretores.
162
excessiva. Esse tipo de funcionamento, no qual toda a excitação seguiria automaticamente
pela via melhor facilitada, tendo como conseqüência alucinação e desamparo ou afeto e
defesa primária, é o que Freud chama no “Projeto...” de “processo primário”:
“Designamos como processos psíquicos primários a ocupação de
desiderativa até a alucinação, o total desenvolvimento de desprazer
trazendo consigo o gasto total de defesa; por outro lado, designamos como
processos psíquicos secundários todos os processos que só são
possibilitados por uma boa ocupação do eu e que são uma moderação dos
apresentados acima.
7
O processo secundário surgiria a partir da inibição e do redirecionamento do
processo primário pelo “eu”. Com as repetições da vivência de satisfação e o conseqüente
desamparo, o aparelho aprenderia a não ocupar tão intensamente a representação de desejo,
nem as representações de movimento a ela associadas. Como conseqüência, certo nível de
quantidade seria retido no núcleo de ψ, isto é, parte da excitação permaneceria em estado
ligado, dando início à formação do eu. Com esse armazenamento de quantidade, o curso
associativo seria parcialmente inibido e não mais seguiria unicamente pelas vias melhor
facilitadas. A partir de então, a ocupação da representação hostil e a defesa primária
excessiva passariam a ser inibidas pelo eu.
A inibição da alucinação e da descarga motora seriam condicionadas
biologicamente pelo desprazer. Já a inibição da ocupação intensa da representação do
objeto hostil seria um processo gradual, alcançado após várias repetições do mesmo
processo, e que pressuporia a constituição do eu.
8
Freud esclarece isso na terceira parte do
7
EP, p.422; PP, p. 204.
8
Podemos nos perguntar por que a não ocupação da representação hostil não é condicionada biologicamente
pela primeira regra biológica, assim como ocorre em relação às conseqüências da vivência de satisfação. Por
que, nesse último caso, é necessário ocorrer um processo de gradual ligação da excitação afetiva por parte do
eu? Freud se faz essa pergunta e a resposta que ele oferece é a seguinte:
“Poder-se-ia perguntar por que essa defesa de pensar não se dirigiu contra a recordação ainda capaz de
afeto. Contudo, aí, podemos supor, que a segunda regra biológica levantou-se contra ela, que ela exigiria
atenção caso um signo de realidade estivesse presente, e a recordação indomada fosse ainda capaz de
extorquirr signos de qualidade reais. (AAP, p. 472; PP, p.255)
A segunda regra biológica – a regra da atenção – teria, assim, se sobreposto à primeira. As primeiras
repetições da representação hostil seriam alucinatórias e, portanto, produziriam “signos de qualidade reais”.
Diante de tais signos, a regra da atenção falaria mais alto que a da defesa. Essa explicação de Freud não
163
“Projeto..”, onde ele observa que o pensamento, entre outras coisas, pode conduzir ao
desprazer, devido à ocupação de representações que pertenceram à vivência de dor. Então,
ele afirma:
Caso se siga o destino de tais percepções, como imagens de recordação,
nota-se que as repetições iniciais ainda despertam tanto afeto como
também desprazer, até que, com o tempo, perdem tal capacidade. Ao
mesmo tempo, elas sofrem uma outra modificação. No início, retinham o
caráter de qualidades sensoriais; quando não são mais capazes de afeto,
também o perdem e tornam-se semelhantes a outras imagens
recordativas.”
9
Trata-se, nesse caso, de “recordações ainda indomadas”, mas, então, pergunta-se
Freud: o que acontece com as “recordações” capazes de afeto até que elas sejam
“domadas”? Sua resposta é que é preciso uma ligação grande e repetida, por parte do eu,
para que a facilitação para o desprazer seja equilibrada. Como tais representações
formaram-se por ocasiões de vivências de dor, essa ligação seria mais trabalhosa para o eu
do que a ligação das demais representações:
“Como traços de vivências de dor, elas (conforme nossa suposição sobre a
dor) foram ocupadas a partir de Qφs muito grandes e adquiriram uma
facilitação muito intensa para liberação de desprazer e de afeto. É preciso
uma ligação repetida e particularmente grande a partir do eu, até que essa
facilitação para o desprazer seja contrabalançada.”
10
Então, o eu inicialmente não teria condições de impedir a ocupação de tais
representações ou, mesmo, de inibi-las parcialmente. Gradualmente, ele iria adquirindo
poder sobre elas, por meio de repetidas tentativas de ligá-las. Antes de serem ligadas, não
parece resolver o problema, pois as primeiras repetições da representação de desejo seriam também
alucinatórias. Talvez a diferença possa ser explicada pelo fato das facilitações estabelecidas pela vivência de
dor serem bem maiores que as decorrentes da vivência de satisfação.
9
EP, p. 470; PP, p.253.
10
EP, p. 471; PP, p. 254.
164
seria possível impedir nem inibir sua recordação e, tampouco, o desprazer resultante.
Depois de ligadas, a ocupação destas representações se limitaria a um mínimo que
permitisse apenas sinalizar ao curso associativo que aquele caminho conduz ao desprazer e
deve ser abandonado.
Na primeira parte do “Projeto...”, Freud descreve a vivência de dor e suas
conseqüências e estabelece que, a partir de certo momento, o eu passa a inibir a ocupação
da representação do objeto hostil. Na terceira parte desse texto, ele procura esclarecer como
isso ocorreria. Tratar-se-ia de um processo gradual e, até que estivesse completo, ou seja,
até que as representações fossem domadas, não seria possível evitar sua ocupação.
Encontra-se formulada, portanto, no “Projeto...” – mais especificamente, na sua terceira
parte –, a hipótese de que há um processo no aparelho que faz retornar representações que,
em sua origem, foram desprazerosas, ou seja, a idéia de um processo “repetitivo” que
ocorre enquanto as representações ainda não foram ligadas e que não poderia ser evitado
até que alcançada a ligação. Mas esse processo estaria “para além do princípio do prazer”?
Para responder essa questão é necessário retomarmos o conceito de princípio do prazer, tal
como Freud o define nos textos posteriores ao “Projeto...”.
1.3) O princípio do prazer
No “Projeto...”, Freud não fala em um “princípio do prazer”. No início do texto, ele
enuncia o princípio de inércia e, adiante, diz que “está tentado” a identificar a tendência da
vida psíquica para evitar o desprazer com a tendência inicial à inércia. Se partimos da
hipótese de que tal identificação está mesmo pressuposta na teoria, então teríamos que dizer
que esse funcionamento repetitivo que antecede a ligação da representação não está para
além do princípio do prazer. O princípio de inércia, em sua forma originária, aspiraria a
libertar-se de quantidade pela via mais direta possível: em um funcionamento por ele
regido, a quantidade sempre tramitaria pelo caminho melhor facilitado. Contudo, o caminho
melhor facilitado, em algumas ocasiões, acabaria levando ao desprazer, como é o caso das
primeiras repetições dos estados de desejo e das primeiras ocupações da representação do
objeto hostil após a vivência de dor. Mas, mesmo nesses casos, o processo associativo
estaria sendo guiado pelo princípio de inércia, pois é justamente a tendência a buscar a via
165
mais direta possível de descarga da quantidade que faz com que a ocupação prossiga pelo
caminho melhor facilitado, o qual acaba levando à produção de desprazer. Como esse
processo guiado unicamente pela tendência à inércia acaba levando ao desprazer, ocorre
uma mudança nessa tendência originária. O aparelho aprende – é condicionado pela
primeira regra biológica – a não ocupar tão intensamente as representações associadas à
vivência de satisfação, o que tem como conseqüência o armazenamento de certo nível de
quantidade em seu interior. Com isso, a tendência primária seria substituída pela tendência
à constância. Mas, mesmo após estabelecida essa modificação do princípio de inércia, ainda
poderiam tornar a ocorrer processos primários relacionados à vivência de dor enquanto as
recordações hostis permanecessem “indomadas”, isto é, enquanto elas não tivessem sido
ligadas.
Então, retornando à questão anteriormente colocada, o processo repetitivo do
“Projeto...” não estaria para além da tendência a evitar o desprazer de que Freud fala neste
texto, se consideramos que esta seja identificada ao princípio de inércia. Mas a noção de
princípio do prazer é formulada, de fato, apenas no capítulo 7 de “A interpretação dos
sonhos”; portanto, é em relação a essa formulação que devemos tentar compreender a
hipótese proposta em 1920 de que haveria um funcionamento que antecederia aquele regido
pelo princípio do prazer.
PPP
No capítulo 7, embora não mencione explicitamente um “princípio de inércia” e
nem uma “tendência à constância”, Freud parece manter hipóteses muito semelhantes às do
“Projeto...”. Na seção C, ele afirma:
“(...) o aparelho seguiu primeiramente o empenho de se manter o mais
possível livre de estímulos e, por isso, assumiu, em sua primeira
construção, o esquema do aparelho reflexo, que lhe permitia eliminar
prontamente, por vias motoras, uma excitação sensível que o alcançasse a
166
partir do exterior. Mas a urgência da vida perturba essa função simples
(...)”.
11
Então, haveria uma tendência inicial a descarregar a excitação pela via reflexa, a
qual seria modificada pela necessidade de fazer cessar a estimulação endógena; no entanto,
apenas na seção E, Freud refere-se a um “princípio do desprazer”. Ele afirma aí que o
decurso da excitação dentro do aparelho é regulado automaticamente pelas percepções de
prazer e desprazer; mais adiante, ele declara, com todas as letras, que o “princípio do
desprazer” é que exerce essa regulação. O processo primário – que Freud faz corresponder
ao sistema inconsciente – seria regulado exclusivamente pelo princípio de desprazer.
Devido à necessidade de lidar com as excitações endógenas, surgiria um segundo tipo de
funcionamento, o processo secundário, que corresponderia topicamente ao sistema pré-
consciente. O processo primário, assim como no “Projeto...”, seria aquele dirigido para a
livre descarga, isto é, o processo no qual a excitação se encontraria em estado “livre”,
enquanto que, no processo secundário, a excitação se encontraria em “estado ligado”.
Freud volta a mencionar o que no “Projeto...” foi chamado de vivência de dor com o
objetivo de esclarecer a regulação que o princípio do desprazer exerceria sobre o processo
primário. Inicialmente, ele parece estar assumindo as mesmas hipóteses do “Projeto...”:
Suponha-se que sobre o aparelho primitivo atue um estímulo perceptivo
que seja a fonte de uma excitação de dor. Seguir-se-ão exteriorizações
motoras desordenadas até que uma delas livre o aparelho da percepção e,
ao mesmo tempo, da dor, e esta será repetida imediatamente a cada
reaparição da percepção (algo assim como um movimento de fuga), até
que a percepção desapareça outra vez. Mas aqui não restaria nenhuma
inclinação para reocupar, alucinatoriamente ou de outra maneira, a
percepção da fonte de dor. Pelo contrário, persistiria no aparelho primário
a inclinação para abandonar a imagem mnêmica penosa, assim que ela
fosse, de algum modo, evocada, porque o transbordar de sua excitação até
a percepção provocaria desprazer (mais exatamente, começaria a provocá-
lo ).”
12
11
SA, vol.2, p. 538; AE, vol.5, p.557.
12
SA, vol.2, p.569-70; AE, vol.5p.589.
167
Essa descrição é muito semelhante à descrição da vivência de dor presente no
“Projeto...”. No entanto, nem no capítulo 7, nem nos artigos metapsicológicos, volta a ser
mencionada a hipótese de que, como conseqüência da vivência de dor, surgiria um
funcionamento primário no aparelho que produziria afeto e defesa primária excessiva, o
qual seria modificado gradualmente a partir de repetidas tentativas de ligar as
representações de objetos hostis. Desaparece, portanto, a idéia de que haveria um tipo de
funcionamento primário no aparelho que conduz à reativação de representações
desprazerosas, o qual não poderia ser evitado enquanto as representações não fossem
ligadas. Parece surgir a hipótese de que os processos incitados a partir do interior do
aparelho possuiriam, desde o início, a capacidade de inibir a ocupação de representações
que conduzem ao desprazer. Esta sensação surgiria apenas a partir de processos incitados
pela excitação proveniente do mundo externo – o que Freud, desde o “Projeto...” define
como “dor”. Portanto, o que seria uma aquisição secundária no “Projeto...” passa, no
capítulo 7, a fazer parte do funcionamento psíquico desde sua origem. Isso se torna mais
claro com a conclusão a que Freud chega logo em seguida:
“Como conseqüência do princípio de desprazer, então, o primeiro sistema
ψ é incapaz de incluir algo desagradável no interior da trama de
pensamento. O sistema não pode fazer outra coisa que desejar”.
13
No processo primário, tal como este passa a ser concebido no capítulo7, as
representações relacionadas à vivência de dor seriam completamente excluídas dos
processos associativos. Não há mais a fase em que as representações permaneceriam
“indomadas” e que não seria possível evitar sua ocupação. O processo secundário, ao
contrário dos primários, poderia incluir entre suas associações representações
desprazerosas, pois tal sistema, diz Freud, “ocupa uma recordação de tal forma que inibe a
drenagem a partir dela e, portanto, também a drenagem até o desenvolvimento de
13
AE, vol.5, p. 590.
168
desprazer”.
14
Em suma, a situação é a seguinte no capítulo 7: haveria um funcionamento
primário do qual estariam excluídas todas as representações desprazerosas e haveria um
funcionamento secundário que teria acesso a representações desprazerosas, pois sua forma
de ocupação inibiria a liberação de desprazer. Esse processo primário, segundo Freud, seria
regulado exclusivamente pelo princípio de desprazer; já no processo secundário, o princípio
reitor consistiria em uma modificação do princípio de desprazer, que será chamada, em
1911, de “princípio de realidade”. Então, no capítulo 7, um funcionamento regido
exclusivamente pelo princípio do desprazer define-se como aquele no qual, desde o início,
a reocupação de representações que conduzem à liberação de desprazer pode ser evitada, de
forma que estas fiquem excluídas do curso associativo. É difícil entender como isso seria
possível, tendo-se em vista o funcionamento do aparelho do “Projeto”. Como conciliar a
idéia de uma quantidade em estado livre e a possibilidade desta evitar caminhos bem
facilitados? Contudo, Freud não desenvolve essas questões no capítulo 7.
Tudo se passa, portanto, como se apenas as conseqüências da vivência de satisfação
fossem mantidas na teoria nesse momento; Freud parece deixar de lado as conseqüências
iniciais da vivência de dor, tal como tinham sido propostas no “Projeto...”. Só o “processo
primário” relacionado à vivência de satisfação é mantido na teoria. De posse dessas
informações, vejamos agora que tipo de funcionamento Freud propõe, em 1920, como
estando para “além do princípio do prazer”.
1.4) Repetições, trauma e desprazer
Freud inicia o texto de 1920, recapitulando suas hipóteses sobre o princípio do
prazer:
“Na teoria psicanalítica, supomos sem hesitação que o decurso dos
processos mentais é regulado automaticamente pelo princípio do prazer,
ou seja, acreditamos que ele é, em todos os casos, incitado por uma tensão
desprazerosa e, então, toma uma tal direção que seu resultado final
14
AE, vol.5, p.590.
169
coincide com um rebaixamento dessa tensão e portanto com uma evitação
do desprazer ou uma produção de prazer.”
15
Ele parece manter a hipótese do capítulo 7 de que o funcionamento guiado pelo
princípio do prazer é, desde o início, capaz de evitar a reocupação de representações que
um dia estiveram associadas à produção de desprazer:
“Sabemos que o princípio do prazer é próprio de um modo de trabalho
primário
do aparelho psíquico, que é desde o início inapto e ainda
altamente perigoso para a auto-preservação do organismo em meio às
dificuldades do mundo exterior. Sob a influência das pulsões de auto-
conservação do eu, ele é substituído pelo princípio de realidade
que, sem
renunciar ao propósito final de uma obtenção de prazer, exige e consegue
o adiamento da satisfação, a desistência de diversas possibilidades de
alcançá-la e a tolerância temporária do desprazer no longo rodeio para o
prazer.”
16
Após retomar essas hipóteses, Freud levanta a questão da legitimidade de se supor
que o princípio do prazer rege soberano todos os processos psíquicos. Alguns processos,
argumenta ele, como no caso dos sintomas neuróticos, acabam gerando desprazer, mas
trata-se, nesses casos, de um “desprazer de percepção” – uma busca de satisfação por parte
do inconsciente que representa algo desprazeroso do ponto de vista de sua apreensão pré-
consciente. Há também o desprazer que o processo secundário aprende a tolerar na espera
por uma satisfação real. Esses casos não contradizem o domínio do princípio do prazer, mas
há outros fatos que talvez forneçam novos dados. A reação do aparelho psíquico frente ao
perigo exterior pode fornecer novo material e novas hipóteses sobre o problema em
questão, diz Freud, no fim da primeira parte do texto; essa reação talvez imponha alguma
modificação à hipótese de que o princípio do prazer seja o princípio originário que governa
todos os processos psíquicos. E ele acaba concluindo, na conclusão da terceira parte, que é
15
SA, vol.3, p. 217; AE, vol. 18, p.7.
16
SA, vol.3 p. 219-20; AE, vol.18, p.9, grifos do autor.
170
legítimo supor a existência de um funcionamento que antecede a vigência do princípio do
prazer e que seja condição para que este passe a vigorar. Vejamos, então, quais são os fatos
que lhe permitem chegar a essa conclusão.
Freud menciona, em primeiro lugar, o caso do sonho das neuroses traumáticas,
sonhos que reconduzem os enfermos à situação traumática, fazendo-os despertar
aterrorizados. A única maneira de conciliá-los com a hipótese de que todo sonho é uma
realização de desejo seria atribuindo-os a “enigmáticas tendências masoquistas do eu”, ao
contrário dos sonhos de angústia, que Freud não tivera muita dificuldade de subsumir a sua
hipótese da realização onírica de desejo. Sem tirar mais conclusões, Freud passa, então, a
falar a respeito dos jogos infantis. As crianças repetem nos jogos inúmeras situações por
elas vivenciadas, algumas das quais – como no caso da célebre brincadeira do carretel
descrita por Freud – consistitiram em experiências desprazerosas. Surge, assim, a questão:
“ o esforço de processar psiquicamente algo impressionante, de se apoderar inteiramente
disso, pode exteriorizar-se de maneira primária e independente do princípio do prazer?
17
A resposta de Freud, por enquanto, é que apenas com base no estudo dos jogos
infantis não é possível tirar essa conclusão, uma vez que, mesmo sob o império do princípio
do prazer, haveria meios suficientes para converter em objeto de recordação e elaboração
psíquica o que fosse em si mesmo desprazeroso. Mesmo os jogos infantis que repetem
situações desagradáveis poderiam ser pensados como estando sob o domínio do princípio
do prazer: a repetição, neles, de experiências desprazerosas pode ser vista, por exemplo,
como uma tentativa de se apoderar da situação, de vivenciar de forma ativa algo que antes
foi vivenciado de forma passiva. Freud se volta, então, para o fenômeno da transferência.
Ao falar a respeito da transferência, ele usa pela primeira vez o termo “compulsão à
repetição”. Experiências reprimidas, das quais o enfermo não pode se recordar, acabam
sendo repetidas como vivências atuais na situação analítica, após a repressão ter sido
parcialmente amenizada. A “compulsão à repetição” que se manifesta como transferência é
uma manifestação do reprimido inconsciente. A repressão, assim como a resistência que
depois se opõe ao retorno do reprimido, é uma operação executada pelo eu. Tanto a
repressão como a resistência podem ser compreendidas como estando a serviço do princípio
do prazer: elas teriam como finalidade evitar o desprazer que seria despertado se as
17
SA, vol.3, p. 226; AE, vol.18, p.16.
171
representações reprimidas fossem liberadas. Portanto, a oposição à recordação, levada a
cabo pela resistência, parece estar totalmente a serviço do princípio do prazer. Mas, e a
compulsão à repetição, pergunta-se Freud, é possível conciliá-la com esse princípio?
Algumas repetições transferenciais seriam facilmente conciliáveis com o princípio
do prazer: aquelas cuja satisfação representasse um prazer para o sistema inconsciente e, ao
mesmo tempo, um desprazer para o pré-consciente. Mas há outras que não parecem poder
ser compreendidas dessa forma:
“O fato novo e digno de nota que nós agora temos que descrever é que a
compulsão à repetição também traz de volta vivências do passado que não
contêm nenhuma possibilidade de prazer, que tampouco naquele momento
puderam ser satisfações, nem mesmo das moções pulsionais desde então
reprimidas
.
18
Os neuróticos repetem situações afetivas que, mesmo quando atuais, produziram
desprazer. Trata-se de vivências relacionadas a pulsões que estavam destinadas a conduzir à
satisfação, mas que produziram somente desprazer. Apesar de tais experiências terem sido
feitas em vão, uma compulsão impõe sua repetição. A mesma compulsão à repetição dos
neuróticos pode ser encontrada na vida de pessoas normais, nos fenômenos chamados por
Freud de “compulsão de destino”: movidas, na verdade, por impulsos da primeira infância,
mas aparentemente pelo “destino”, algumas pessoas não neuróticas repetiriam sempre, ao
longo da vida, vivências desprazerosas idênticas.
Esses dois fenômenos – a repetição transferencial de situações que, mesmo em sua
origem, levaram apenas ao desprazer e as compulsões de destino – levam Freud a concluir
que é legítima a suposição de que existe na vida psíquica uma compulsão à repetição, que
se instauraria para além do princípio do prazer:
“Em vista dessas observações feitas a partir do comportamento na
transferência e a partir do destino dos seres humanos, devemos ter
coragem de supor que existe realmente na vida psíquica uma compulsão à
18
SA, vol.3 p. 230; AE, vol.18, p.20.
172
repetição que se instaura mais além do princípio do prazer. Nós também
nos inclinaremos agora a relacionar a essa compulsão os sonhos dos que
padecem de neurose traumática e o impulso para o jogo da criança.”
19
Após mencionar os sonhos traumáticos e os jogos infantis, sem extrair deles a
conclusão de que é possível supor um funcionamento independente do princípio do prazer,
Freud chega a dois fenômenos que parecem tornar legítima tal suposição. Na verdade,
como observa Monzani (1989), nenhum desses fenômenos tomados isoladamente, mas
apenas o arranjo formado por eles, é o que permite a introdução desse “além do princípio
do prazer”.
Apenas em raros casos, argumenta Freud, a compulsão à repetição se manifesta em
estado puro, sem a interferência de outros motivos; na maior parte dos casos, satisfação
pulsional e compulsão à repetição estariam em íntima relação. O caso menos duvidoso,
observa Freud, é o do sonho traumático. Mas, mesmo nos demais fenômenos, diz ele, há
bastantes coisas não explicadas para justificar a introdução dessa nova hipótese:
“O que resta é suficiente para justificar a hipótese da compulsão à
repetição, e esta nos parece como mais originária, mais elementar, mais
pulsional que o princípio do prazer que ela destrona”
20
Uma vez estabelecido que há uma compulsão à repetição que estaria para além do
princípio do prazer, Freud aponta para a necessidade de esclarecer qual seria a função dessa
compulsão, em que condições ela afloraria e que relação haveria entre ela e o princípio do
prazer. É ao pensar sobre a reação do aparelho psíquico à irrupção de excitações muito
intensas – o que agora é definido como “trauma” – que Freud encontra uma resposta para
essas questões levantadas. Com a noção de trauma proposta agora em 1920, Freud retoma,
em muitos aspectos, a de vivência de dor do “Projeto...”. O trauma resultaria da falha dos
mecanismos destinados a proteger o aparelho de excitações muito intensas; nesses casos,
não seria mais possível evitar que este fosse inundado por grandes magnitudes de estímulo
19
SA, vol.3, p. 232; AE,vol.18, p.22.
20
SA, vol.3, p. 233; AE, vol.18, p.23
173
e, então, sua tarefa mais urgente passaria a ser “dominar o estímulo, ligar psiquicamente
as magnitudes de estímulo que irromperam, para conduzi-los, então, à sua tramitação.”
21
A dor – que, no “Projeto...”, correspondia ao que agora Freud chama de trauma –
passa a ser definida como o desprazer decorrente do rompimento da proteção anti-estímulo
em um ponto específico. Diante da dor, ocorreria uma intensa contra-ocupação, na qual se
empenhariam as excitações de vários outros sistemas, tendo como resultado um
rebaixamento de toda a operação psíquica. Essa contra-ocupação teria como objetivo
“ligar” a excitação que produz desprazer. A ligação parece continuar sendo concebida,
nesse momento da teoria, da mesma forma como o fora anteriormente, como sugere a
seguinte afirmação de Freud :
“Talvez possamos dar margem à suposição de que a ‘ligação’ da energia
que aflui para dentro do aparelho psíquico consiste em um translado do
estado de livre fluir até o estado quiescente”
22
Com essas considerações pode ser respondida a questão a respeito da função do
processo que obedece à compulsão à repetição e da relação deste processo com aquele
guiado pelo princípio do prazer. Para que o princípio do prazer pudesse iniciar seu domínio,
haveria uma tarefa prévia a ser realizada: transpor a excitação em estado livre para o estado
ligado. Um funcionamento regido pela compulsão à repetição teria, então, a função
primordial de ligar a excitação; só após essa ligação, o princípio do prazer passaria a
vigorar. Com isso, diz Freud, chegamos a “uma perspectiva sobre uma função do aparelho
psíquico que, sem contradizer o princípio do prazer, é contudo independente dele e parece
mais originária que o propósito de obter prazer e evitar desprazer”
23
Freud conclui, então, que a realização de desejo é a função do sonho sob o domínio
do princípio do prazer e que, se há um funcionamento que antecede e é independente deste
princípio, então, deve haver sonhos que expressam esse tipo de funcionamento, isto é, deve
haver sonhos que visam adquirir domínio sobre os estímulos e que não consistem, portanto,
em realizações de desejo.
21
SA, vol.3, p. 239; AE, vol.18, p.29
22
SA, vol.3, p.241; AE, vol.18, p.31.
23
SA, vol.3, p. 242; AE, vol.18, p. 31.
174
Enquanto as representações não fossem ligadas, não seria possível evitar que elas
fossem ocupadas, mesmo que as suas ocupações levassem ao desprazer. Só após a ligação,
surgiria a possibilidade de evitar a ocupação de certas representações ou de ocupá-las
apenas de maneira inibida. A ligação da excitação teria como condição essas sucessivas
repetições de um mesmo processo. Os fenômenos que levam Freud a concluir que é
necessário supor um funcionamento que anteceda o princípio do prazer são principalmente
aqueles que retomam situações que, mesmo em sua origem, foram desprazerosas. Freud
parece retomar, assim, as conseqüências da vivência de dor do “Projeto...” e isso é
justamente o que havia sido deixado de lado a partir do capítulo 7. No “Projeto...”, fora
formulada a hipótese de que a reocupação das representações hostis e a liberação de
desprazer decorrente não podiam ser evitadas enquanto o eu não adquirisse domínio sobre
tais representações, isto é, enquanto essas não fossem ligadas. Esse domínio seria obtido
apenas após sucessivas tentativas, por parte do eu, de ligar essas representações. Esse
processo que se intercalaria entre a vivência de dor e a possibilidade de inibir a ocupação
das representações hostis havia sido deixado de lado, como vimos, a partir do capítulo 7 e
parece estar sendo retomado em “Além do princípio do prazer”. Mas é preciso lembrar que,
nesse último texto, o “eu” ainda não foi formalmente reintroduzido na tópica psíquica – o
que ocorre em 1923, no texto “O eu e o isso” – e, assim, demarcarmos a diferença entre os
dois textos. No “Projeto...”, o eu é que seria o responsável pela ligação das representações
hostis relacionadas à vivência de dor. Em “Além do princípio do prazer”, Freud sustenta
que o funcionamento que obedece à compulsão à repetição tem como função a ligação da
excitação, mas não atribui a tarefa de ligação a nenhuma das instâncias psíquicas. Nos
“Artigos metapsicológicos”, ele havia formulado a hipótese de que as representações-
palavra produziriam a ligação de uma parte das representações e a conseqüente
diferenciação entre os sistemas pré-consciente e inconsciente. Essa hipótese, como veremos
adiante, será abandonada em “O eu e o isso”, permanecendo indefinido qual parte do
aparelho seria responsável pela ligação da excitação. De qualquer forma, já estava presente,
no “Projeto...”, a idéia de um processo primário repetitivo que seria condição para que a
ocupação de certas representações desprazerosas pudesse ser inibida; que seria, portanto,
condição para que o “princípio do prazer”, tal como este é pensado a partir do capítulo7,
pudesse entrar em ação.
175
Com a introdução do conceito de compulsão à repetição, o processo primário parece
voltar a ser pensada de forma muito semelhante como o era no “Projeto...”. No capítulo 7,
o processo primário seria regido “exclusivamente pelo princípio do prazer”, e isso
significava que tal processo não incluiria, entre suas associações, representações
desprazerosas. Essa capacidade surgiria somente no processo secundário. Tendo em vista
essa forma de conceber o princípio do prazer, o funcionamento regido pela compulsão à
repetição, de fato, seria anterior ao seu domínio. Mas se o princípio do prazer for
identificado ao princípio de inércia do “Projeto...” – isto é, se por princípio do prazer
entendêssemos a tendência do aparelho a descarregar sua excitação da forma mais direta
possível – então não seria possível dizer que a compulsão à repetição antecederia sua
vigência, como observamos anteriormente.
Apenas a vivência de satisfação e suas conseqüências, tal como descritas no
“Projeto...”, parecem estar sendo consideradas na concepção sobre o aparelho psíquico do
capítulo 7 e dos artigos metapsicológicos. Não há mais, nesses textos, a idéia de processos
primários que levariam à produção de afeto e, portanto, ao desprazer. A vivência de dor e
suas conseqüências desaparecem nesse momento da teoria e parecem ser retomadas apenas
em “Além do princípio do prazer”. Podemos dizer, tendo isso em vista, que o “passo além”
de Freud em 1920 é, em certa medida, um retorno às origens da metapsicologia.
1.5) Compulsão à repetição e processo primário
Deste modo, segundo o que é proposto em 1920, só após a ligação da excitação
surgiria a possibilidade de evitar ou inibir os caminhos que conduzem ao desprazer e o
processo primário parece voltar a ser pensado como um funcionamento no qual a excitação
segue unicamente pelas vias mais facilitadas. Podemos inferir que, como as excitações
traumáticas produziriam facilitações muito intensas, no processo primário os caminhos que
levassem a representações traumáticas não poderiam ser evitados. Na verdade, qualquer
caminho facilitado só poderia ser evitado ou inibido após a ligação. Antes dessa, toda a
excitação se deslocaria pelos caminhos que apresentassem menor resistência. Em “Além do
princípio do prazer”, mais uma vez, Freud recorre às noções de resistência e facilitação para
falar a respeito da constituição das representações. Ele diz: “em seu avanço de um elemento
176
ao outro, a excitação tem que vencer uma resistência e justamente a redução desta cria o
traço permanente da excitação (facilitação)”.
24
Com a introdução da hipótese da compulsão à repetição, apenas uma das
características atribuídas ao sistema inconsciente na primeira tópica deixa de pertencer a
esse sistema ou ao processo primário: a regulação exclusiva pelo princípio do prazer. As
demais características anteriormente atribuídas ao sistema inconsciente são mantidas, uma
vez que elas resultariam, em última instância, do estado livre da excitação e que, em 1920,
Freud continua identificando o sistema inconsciente ao processo primário, ou seja, a idéia
de que o inconsciente corresponde ao processo primário e que esse processo seria aquele no
qual a excitação se encontra em estado livre é mantida, mas o inconsciente deixa de ser
regido exclusivamente pelo princípio do prazer. Como argumentamos, a hipótese do
capítulo 7 sobre um processo no qual a excitação se encontraria em estado livre e, ao
mesmo tempo, no qual certos caminhos, mesmo que muito facilitados, seriam evitados,
parece contradizer os princípios da teoria freudiana. Agora, Freud estaria abandonando essa
hipótese que parece nunca ter-se encaixado muito bem na sua teoria.
Se há um funcionamento que precede a regulação pelo princípio do prazer e se este
princípio só entra em ação após a ligação da excitação, a conseqüência disso seria que o
princípio do prazer atua apenas no processo secundário. No capítulo 7, Freud já havia
identificado o processo primário à excitação em estado livre e o processo secundário à
excitação em estado ligado. De acordo com as hipóteses introduzidas em 1920, teríamos
que pensar, então, que o princípio do prazer atuaria no processo secundário e que o
processo primário seria guiado pela compulsão à repetição. Vejamos o que Freud diz a esse
respeito:
“Visto que todas as moções pulsionais afetam os sistemas inconscientes,
dificilmente seria uma novidade dizer que obedecem ao processo psíquico
primário; e, disto, a identificar o processo psíquico primário com a
ocupação livremente móvel, e o processo secundário com as alterações da
ocupação ligada ou tônica de Breuer, não há mais que um pequeno passo.
Então, a tarefa dos estratos superiores do aparelho psíquico seria ligar a
excitação das pulsões que entram em operação no processo primário. O
24
AE, vol.18, p.26; SA., vol. 3, p.236.
177
fracasso dessa ligação provocaria uma perturbação análoga a da neurose
traumática; só após uma ligação alcançada, poderia se estabelecer o
império irrestrito do princípio do prazer (e de sua modificação no
princípio de realidade). Mas, até esse momento, o aparelho psíquico teria
a tarefa prévia de dominar ou ligar a excitação, não em oposição ao
princípio do prazer, mas independentemente dele e em parte sem levá-lo
em consideração.”
25
Mas notemos que Freud afirma, nessa passagem, que a ligação da excitação é
condição para que se inicie o “império irrestrito” do princípio do prazer. Portanto, não
podemos concluir disso que este princípio só surge após a ligação, mas apenas que seu
império tem início apenas após essa ligação, isto é, a partir da instauração do processo
secundário. Nas últimas páginas de “Além do princípio do prazer”, Freud procura
esclarecer isto. De qualquer maneira, desaparece a idéia de que os processos primários
seriam regulados exclusivamente pelo princípio de prazer: esses processos obedeceriam
primariamente – e, talvez, de forma predominante – a compulsão à repetição. Em “O
problema econômico do masoquismo” (1924), Freud diz que apenas uma parte do processo
primário é regida pelo princípio do prazer, questão à qual teremos ainda que retornar.
O sistema inconsciente sempre foi pensado como aquele que conteria, por um lado,
representações desde a origem inconscientes – isto é, aquelas que nunca teriam sido
integradas aos processos secundários – e, por outro lado, representações que pertenceram
ao processo secundário, mas que acabaram sendo reprimidas. Às primeiras teria sido
negada a possibilidade de ligação e, às segundas, a possibilidade de permanecerem
incluídas nos processos ligados. Essas representações teriam, então, ficado condenadas a se
repetirem indefinidamente; elas nunca perderiam suas intensidades; por isso, Freud afirma
que os conteúdos do inconsciente são indestrutíveis. No inconsciente, o funcionamento
repetitivo não poderia ser ultrapassado, a menos que essas representações fossem
incorporadas aos processos secundários. Nesse sentido, parece ser possível afirmar que,
desde a primeira tópica, poderia ser atribuído aos processos inconscientes um caráter
repetitivo.
No capítulo 7 e nos artigos metapsicológicos, já estava presente a hipótese de
que no inconsciente tudo se repetiria, com exceção daquilo que fosse capaz de produzir
25
AE,vol. 18, p.34; SA, vol.3, p.244.
178
desprazer. A partir de 1920, essa exceção é deixada de lado: os processos primários ou
inconscientes não podem fazer outra coisa a não ser voltar a ocupar caminhos estabelecidos
anteriormente, seguindo apenas as vias melhor facilitadas. Isso, na verdade, é uma
conseqüência necessária para um sistema constituído “por vias facilitadas de uma vez por
todas”, como diz Freud no capítulo 7, referindo-se ao Icc.
Esse funcionamento guiado pela compulsão à repetição antecederia aquele guiado
pelo princípio do prazer, tal como este princípio é pensado no capítulo 7. Mas a compulsão
à repetição não antecederia o “princípio de inércia” do “Projeto...”: ela seria antes a
manifestação da tendência primordial do aparelho a livrar-se de toda a excitação da forma
mais direta possível. À primeira vista, a forma mais direta possível seria o caminho melhor
facilitado e, de início, por hipótese, esse caminho seria sempre seguido. Mas, devido à sua
ineficácia para satisfazer a própria tendência à inércia, a partir de certo momento ele teria
que ser ao menos parcialmente deixado de lado. A compulsão à repetição seria, portanto, a
manifestação mais primitiva da inércia na vida psíquica, e só em 1920 Freud explicita algo
que há muito tempo parecia estar implícito na teoria: a tendência primordial do aparelho é
conduzir à morte.
1.6) Da compulsão à repetição à pulsão de morte
O passo seguinte de Freud, em “Além do princípio do prazer” é tentar esclarecer a
relação existente entre a compulsão à repetição e a dimensão pulsional. Tal compulsão,
conclui ele, é uma característica universal das pulsões e, talvez, da vida orgânica em geral:
Uma pulsão seria um esforço, inerente ao orgânico vivo, de reprodução
de um estado anterior, a que o vivo teve que renunciar sob o influxo de
forças externas perturbadoras; seria um tipo de elasticidade orgânica ou,
se se quiser, a exteriorização da inércia na vida orgânica”.
26
Notemos que, nesse momento, Freud está ampliando a noção de pulsão em relação a
suas formulações anteriores e passando a pensá-la de uma outra forma. Até então, a pulsão
26
AE,vol.18, p.36; SA, vol.3, p.246.
179
havia sido concebida como a “expressão psíquica” dos estímulos endógenos ou como a
estimulação endógena que se expressa no psíquico. Embora oscile entre essas duas
definições, a pulsão era um conceito que dizia respeito exclusivamente ao aparelho
psíquico. Como todo funcionamento psíquico, a atividade pulsional seria regida, em última
instância, pela tendência a descarregar a excitação. Mas, agora, em “Além do princípio do
prazer”, a pulsão passa a ser um conceito muito mais amplo, que não se limita ao psíquico,
mas que diz respeito à totalidade do ser vivo. Freud a define como “um esforço inerente ao
orgânico vivo de reprodução de um estado anterior”. Portanto, a pulsão passa a ser
pensada como uma tendência, um impulso inerente a todo o vivo, que é essencialmente um
esforço de repetição, uma compulsão a repetir um estado anterior. A pulsão não se
restringe mais à expressão ou àquilo que se expressa no psíquico: ela passa a ser algo
muito anterior ao surgimento do psíquico, algo que surge com a vida.
A pulsão seria, então, um esforço inerente a toda vida de reproduzir um estado
anterior. Mas que estado seria esse? Qual seria a meta final de toda a vida ? A resposta de
Freud é: “A meta de toda a vida é a morte; e retrospectivamente: O inanimado esteve aí
antes que o vivo”.
27
Desde sua origem, a vida possuiria a tendência a retornar ao estado
inorgânico. Regressar ao inorgânico é livrar-se de toda a excitação, é retornar a um estado
de ausência total de estimulação. Se estendermos isso ao aparelho psíquico, chegamos à
hipótese de que a tendência primordial que governa esse aparelho é uma tendência a anular
toda a excitação. Com isso, mais uma vez, voltamos ao “Projeto...”, em especial, voltamos
às primeiras páginas desse texto, ao princípio de inércia. Lá, a tendência primária do
aparelho era livrar-se de toda a excitação; mas agora, em “Além do princípio do prazer”,
Freud explicita algo que permanecera implícito até então: a tendência primordial à inércia é
expressão de uma tendência à morte. Monzani (1989, p.219) observa que, com a
introdução da noção de pulsão de morte, Freud explicita algo que esteve presente
implicitamente, desde o “Projeto...”, em toda a teoria.
No “Projeto”, contudo, o princípio de inércia era concebido como um princípio que
regia a atividade nervosa; agora, Freud o coloca como algo inerente à vida. Quando a vida
se originou, com ela teria surgido uma tendência a retornar ao estado anterior de ausência
de estimulação, ao estado inanimado; teria surgido, portanto, uma tendência à morte.
27
AE, vol.18, p.38; SA, vol.3, p.248
180
Quando as propriedades da vida foram suscitadas na matéria inanimada, teria surgido a
primeira pulsão: a de regressar ao inanimado. Na origem, diz Freud, morrer devia ser fácil,
um curto caminho vital seria percorrido. Por isso, a vida deve ter sido criada e recriada
inúmeras vezes. Mas as alterações surgidas nas condições externas teriam imposto à
substância viva desvios cada vez maiores do seu caminho vital originário. Os estímulos
externos seriam, assim, os responsáveis pela complexificação da vida. As hipóteses
desenvolvidas até aqui, portanto, conduzem à idéia de que a morte é uma tendência
primordial da vida e de que a manutenção da vida resultaria de fatores externos à mesma.
Haveria, portanto, uma pulsão de morte, mas não haveria, ainda, uma pulsão de vida. Não
haveria um “esforço inerente ao orgânico” de se manter no estado animado.
Mas a hipótese das pulsões de auto-conservação não se opõe à suposição de que a
vida pulsional serviria à morte? Tendo em vista essa última hipótese, argumenta Freud, as
pulsões de auto-conservação seriam apenas pulsões parciais destinadas a assegurar o
caminho até a morte peculiar do organismo. De certa forma, essas idéias também
estavam pressupostas no “Projeto...”: haveria uma tendência originária a eliminar toda a
excitação pela via mais direta possível, mas essa forma primária de resposta não propiciaria
a cessação da excitação endógena. Esta exigiria uma ação específica sobre o mundo e,
como conseqüência, o aparelho aprenderia a tolerar um certo nível de excitação. Enfim,
esse processo que, em última instância, sempre aspirou apenas à descarga da excitação,
acabaria por preservar a vida. Mas essa vida que permanece e se desenvolve não seria nada
mais do que um rodeio que se interpõe no caminho que sempre teve como objetivo último
conduzir à máxima eliminação possível dos estímulos.
Sob essa luz, as pulsões de auto-conservação apenas aparentemente teriam como
objetivo a preservação da vida; na verdade, elas estariam também a serviço da tendência à
morte. Como a eliminação da excitação endógena, da excitação de origem pulsional, não
seria possível pela via reflexa, impor-se-ia um adiamento da descarga e a aprendizagem de
certos caminhos, o que teria como resultado uma permanência maior na vida. No
“Projeto...”, Freud afirma que o desamparo inicial do organismo é a mola pulsional de todo
o desenvolvimento psíquico; mas esse desenvolvimento psíquico só ocorre, porque, devido
ao estado de desamparo originário, o organismo não seria capaz de alcançar, sem certas
inibições e aprendizagens, a eliminação total da excitação. Nesse sentido, por trás de todo o
181
desenvolvimento psíquico, parece sempre ter estado presente o objetivo primário de
retornar ao estado originário de ausência total de estimulação.
De início, Freud conclui, em “Além do princípio do prazer”, que o quadro dos
fenômenos vitais consistiria apenas em rodeios para alcançar a morte peculiar de cada
organismo: o que nos surge como um esforço por manter-se na vida – isto é, a manifestação
das pulsões de auto-conservação – seria apenas um caminho peculiar de cada organismo
para a morte. O organismo só quer morrer à sua maneira, como diz Freud.
Ele conclui, portanto, que as manifestações das pulsões de auto-conservação podem
ser conciliadas com a hipótese da pulsão de morte. Mas há algo que parece escapar a essa
tendência à morte: as pulsões sexuais. Freud tentará, a partir delas, justificar que ainda é
possível falar de um dualismo pulsional.
1.7) Da pulsão de morte à pulsão de vida
De início, o que Freud alega escapar à tendência à morte não são as manifestações
das pulsões sexuais como um todo, mas apenas as das células germinativas. Assim, pelo
menos à primeira vista, apenas a atividade sexual com fins de reprodução se oporia a
tendência à morte e, portanto, só uma pequena parte das atividades impulsionadas pelas
pulsões sexuais se oporia à pulsão de morte. Mais adiante, ele acaba concluindo que há algo
que permite pensarmos que todas as pulsões sexuais atuariam a favor da vida e contra a
morte.
Freud afirma que as pulsões sexuais assegurariam a união entre duas células
germinativas: elas seriam as verdadeiras pulsões de vida e se oporiam às pulsões de morte.
Haveria, assim:
“(...) como que um ritmo hesitante na vida dos organismos; um dos
grupos pulsionais se lança, impetuoso, até adiante, para alcançar o mais
rápido possível a meta final da vida; o outro, tendo chegado até certo
lugar desse caminho, se lança até atrás para retomá-lo desde certo ponto e,
assim, prolongar a duração do trajeto”
28
182
Freud chega, então, a algo que escapa à pulsão de morte: a fusão de duas células
germinativas, que seria assegurada pelas pulsões sexuais. Com isso, se estabelece uma
oposição entre as pulsões de morte – que incluiriam as pulsões de auto-conservação – e as
pulsões sexuais, que seriam as pulsões de vida. Chegado a isso, a seguinte questão se
coloca: se toda pulsão seria um esforço inerente ao orgânico de retornar a um estado
anterior, a compulsão à repetição seria a manifestação pura de toda pulsão, e não apenas da
pulsão de morte. Mas, então, é preciso esclarecer o que é que as pulsões sexuais repetem,
qual é o estado anterior e originário ao qual elas aspirariam retornar. As pulsões de morte
visariam regressar ao estado inanimado; Com a origem da vida, teria surgido essa pulsão
que visa retornar ao inanimado. Mas, e a pulsão de vida, a que estado anterior ela aspiraria
retornar? Para tentar encontrar uma resposta para essa questão, Freud coloca uma outra: o
que a reprodução sexual, ou sua precursora – a cópula entre dois protistas – aspira repetir?
Ele encontra uma pista para resolver essa questão em suas incursões pela biologia.
Há dados que indicam que a cópula entre dois protistas – a qual seria a precursora da
reprodução sexual dos animais superiores – tem um efeito rejuvenescedor sobre ambos.
Além disso, certas formas de estimulação possuem esse mesmo efeito sobre o organismo.
Se a composição do líquido nutritivo em que o organismo subsiste for alterada, isso tem
sobre ele o mesmo efeito rejuvenescedor que a pula. Ao contrário, se os protistas são
deixados em seus próprios resíduos, eles vão-se degenerando progressivamente. Isso
permitiria extrair a seguinte conclusão: o que possui a capacidade de renovar a vida é o
aumento da estimulação e, portanto, não apenas a fusão de duas células germinativas e o
surgimento de um novo ser vivo trabalhariam no sentido contrário a morte, mas também o
aumento da estimulação produzido pelo contato entre dois corpos ou por outras formas de
estimulação. Assim, podemos identificar, não só na atividade sexual que conduz à fusão
entre duas células germinativas, mas também nas manifestações sexuais em geral, algo que
se opõe à morte: a promoção do contato entre dois corpos, que produziria um aumento da
estimulação sobre o organismo. No texto “Três ensaios sobre uma teoria da sexualidade”
(1905), Freud definira a sexualidade como uma atividade que visaria obter prazer a partir
da estimulação de uma zona erógena. A conclusão a que ele chega agora de que o aumento
da estimulação fortalece a vida parece tornar possível pensarmos que não apenas as
28
AE, vol.18, p.40; SA, vol.3, p.250
183
atividades sexuais com fins de procriação, mas todas as atividades sexuais, sejam
consideradas como trabalhando em oposição à morte:
“Imaginaríamos, então, que as pulsões de vida ou sexuais, ativas em cada
célula, são as que tomam por objeto a outras células, neutralizando
parcialmente suas pulsões de morte, a dizer, os processos provocados por
estas últimas, e mantendo-as, desse modo, na vida(...)
29
A constatação de que o aumento da estimulação fortalece a vida está totalmente de
acordo com a suposição de Freud de que o processo vital leva, por razões internas, à
nivelação das tensões químicas. A pulsão de morte trabalharia no sentido da diminuição da
excitação, e a pulsão de vida no sentido do seu acréscimo. Mas as pulsões sexuais não
visariam em última instância a descarga da excitação? O contato entre dois corpos não seria
um objetivo intermediário da pulsão sexual, isto é, uma etapa intermediária do processo
impulsionado por tal pulsão, cujo objetivo final seria a descarga da excitação? Freud não
chega, no entanto, a levantar essas questões.
Permanece também em aberto a questão sobre a qual estado originário as pulsões
de vida aspirariam retornar. Os dados biológicos analisados não fornecem uma resposta
para essa questão, embora forneçam a Freud uma pista para esclarecê-la. Se as pulsões
sexuais tivessem como finalidade primordial promover o contato entre dois corpos, o
estado originário ao qual elas aspirariam regressar deveria ser um estado de fusão entre os
mesmos. Uma vez que esse estado deve ser tão originário quanto àquele aspirado pela
pulsão de morte e que ambas as pulsões devem estar presentes desde o início da vida, a
conclusão a que essas idéias conduzem é: a substância inanimada, ao tornar-se animada, se
dividiu em várias partes, as quais desde então passaram a aspirar a reunir-se novamente.
Com a vida, teria surgido uma tendência para retornar ao inanimado – a pulsão de morte –,
assim como uma tendência para retornar ao estado anterior de coesão e indiferenciação – a
pulsão de vida. Esse é o caminho para o qual as hipóteses conduzem, mas não parece haver
nada na biologia que forneça apoio para essa suposição. Diante dessa situação, Freud
levanta a questão:
29
AE,vol.18, p.49; SA, vol.3, p.259.
184
Aventuraremos, seguindo a indicação do filósofo poeta, a hipótese de
que a substância viva foi desgarrada, a raiz de sua animação, em pequenas
partículas que desde então aspiram a se reunir por meio das pulsões
sexuais? E que estas pulsões, nas quais persiste a afinidade química da
matéria inanimada, superam pouco a pouco, ao longo do reino dos
protistas, as dificuldades que opõe a esta aspiração um meio carregado de
estímulos que fazem perigar a vida, meio que obriga a formação de um
estrato cortical protetor? Que estas partículas de substância viva
dispersadas alcançam assim o estado pluricelular e finalmente transferem
às células germinais, em concentração suprema, a pulsão à reunião? Este
é, creio, o ponto em que devemos interromper”.
30
Há na filosofia – Freud cita a teoria mítica que Platão faz Aristófanes desenvolver
em “O banquete”– uma idéia que fornece exatamente aquilo que está sendo procurado, isto
é, que deriva uma pulsão sexual da necessidade de restabelecer um estado anterior.
Contudo, não há apoio científico para essa hipótese. Ele, então, levanta a questão acima,
mas a deixa em aberto. Permanece sem resposta definitiva a pergunta a respeito de qual
seria o estado originário ao qual as pulsões de vida aspirariam regressar.
Se a finalidade primária das pulsões de vida fosse retornar a um estado originário de
fusão, então tal finalidade não seria também a morte, uma vez que esse estado de fusão
seria igualmente o estado inanimado? Em última instância, o estado visado não seria o
estado de ausência de vida? O fato do contato entre dois corpos promover o aumento da
estimulação, tendo como conseqüência o fortalecimento da vida, não seria uma
conseqüência secundária? Nesse sentido, a pulsão sexual não seria também, ao fim e ao
cabo, uma pulsão de morte? Durante todo o texto de Freud, ficamos com a impressão de
que, por mais que ele se esforce, parece difícil escapar à hipótese de que a morte estaria por
trás de todos os fenômenos vitais.
30
AE, vol.18, p.57; SA, vol.3, p.267.
185
1.8) Primeiro versus segundo dualismo pulsional
De início, em “Além do princípio do prazer”, Freud coloca as pulsões de auto-
conservação como estando entre as pulsões de morte. Haveria, então, uma oposição entre
pulsão de auto-conservação e pulsão sexual: as primeiras serviriam à morte, e as segundas
serviriam à vida. Mas os fatos relacionados ao narcisismo já haviam mostrado a dificuldade
de se manter uma oposição entre pulsões de auto-conservação e pulsões sexuais. Freud é
levado a perceber que o eu é o reservatório genuíno e originário da libido, que ele é,
portanto, parte dos objetos sexuais, o que torna necessário reconhecer que uma parte das
pulsões do eu é de natureza libidinal. Em um segundo momento, em “Além do princípio do
prazer”, Freud corrige a hipótese anterior, segundo a qual as pulsões do eu seriam pulsões
de morte:
“Vemo-nos ainda mais obrigados a destacar o caráter libidinal das pulsões
de auto-conservação agora que ousamos dar outro passo: discernir a
pulsão sexual como o Eros que tudo conserva, e derivar a libido narcisista
do eu a partir das quotas libidinais com que as células do soma aderem
umas às outras. Pois bem, logo nos enfrentamos com o seguinte problema:
Se também as pulsões de auto-conservação são de natureza libidinal,
talvez não tenhamos outras pulsões além das libidinais. ”
31
Se as pulsões de auto-conservação são pulsões libidinais, então que lugar restaria
para as pulsões de morte? O dualismo pulsional deveria ser deixado de lado? Freud não
aceita, de forma alguma, essa conclusão. Ele argumenta que deve ser mantida a hipótese de
que haveria no interior do eu outras pulsões que as libidinais, mesmo que não seja possível
indicá-las e sugere que talvez a agressividade possa ser considerada como manifestação da
pulsão de morte, de forma que haveria, assim, uma oposição entre amor e ódio. Essa
hipótese de que a agressividade seria uma das manifestações das pulsões de morte
apresenta uma série de complicações, entre outros motivos porque, como Freud mesmo
31
AE, vol.18, p.51; SA, vol.3, p.261.
186
reconhece, há uma estreita relação entre a sexualidade e a agressividade. Mas não cabe
entrar aqui nesta questão.
Atentemos para outra coisa: o conceito de narcisismo impôs a identificação, ao
menos parcial, entre pulsões de auto-conservação e pulsões sexuais. Num primeiro
momento, em “Além do princípio do prazer”, Freud argumenta que as pulsões de auto-
conservação são também pulsões de morte. Na verdade, desde o “Projeto...”, estava
implícito que o desenvolvimento e a preservação do organismo eram conseqüência da
dificuldade de se alcançar a eliminação da excitação endógena pela via reflexa. Portanto, o
que produz a manutenção da vida teria tido sempre, como meta última, a eliminação total
da tensão, as pulsões de auto-conservação estariam a serviço da morte. A vida, como diz
Freud, seria apenas uma rodeio para a morte. Mas a oposição entre pulsões sexuais e
pulsões auto-conservação não pode ser mantida: essas últimas mostram-se também como
pulsões libidinais. Então, temos dois fatores a considerar: por um lado, o fato de que as
pulsões de auto-conservação sejam perfeitamente conciliáveis com a hipótese da pulsão de
morte. Aliás, parece ser uma conseqüência necessária da hipótese de que haveria uma
tendência primordial no organismo para a morte, a idéia de que a atividade das pulsões de
auto-conservação apenas secundariamente acabaria conservando a vida. Dessa forma, o
impulso primário que estaria por trás das pulsões de auto-conservação seria o impulso para
a morte. Por outro lado, contudo, não é possível sustentar a oposição entre pulsões sexuais e
pulsões de auto-conservação: ao menos parte dessas últimas seriam também sexuais. Diante
disso, Freud deixa de lado a relação antes estabelecida entre pulsões de auto-conservação e
pulsões de morte e propõe que as primeiras estariam, ao contrário, entre as pulsões de vida.
Mas não há como esquecer que as pulsões de auto-conservação parecem também servir à
tendência à morte. Não seria legítima a conclusão de que ao menos parte das pulsões
sexuais são também pulsões de morte?
Vemos que a dualidade entre pulsões de vida e de morte de forma alguma é algo
facilmente justificável. Mas Freud mantém essa nova dualidade pulsional – que, na
verdade, está em um plano muito diferente da anterior – a despeito da dificuldade de
encontrar justificativas suficientes para ela. Ao se perguntar se a hipótese da pulsão de
morte não deveria ser descartada, ele responde:
187
“Uma vez que discernimos como a tendência dominante da vida psíquica,
e talvez da vida nervosa em geral, a de rebaixar, manter constante,
suprimir a tensão interna de estímulo (o “princípio de Nirvana”, segundo a
terminologia de Barbara Low [1920,73]), do qual é expressão o princípio
do prazer, esse constitui um dos nossos mais fortes motivos para crer na
existência de pulsões de morte”.
32
O conceito de pulsão de morte seguir-se-ia necessariamente da hipótese dessa
tendência originária da vida psíquica, do princípio de Nirvana, tal como Freud o denomina
agora. Lembremos do que Freud afirma ao propor o princípio de inércia no “Projeto...”: ele
diz ali que as observações clínico-patológicas, em especial os fatos relacionado à histeria e
à compulsão, sugeriram a concepção da excitação nervosa como quantidade em fluxo e, a
partir dessa consideração, foi possível estabelecer o princípio de inércia como o princípio
fundamental da atividade nervosa. Como argumentamos, a hipótese da pulsão de morte
parece estar implicada na tendência originária do aparelho a descarregar toda a excitação.
Se, conforme o que Freud diz no “Projeto...”, os fatos clínicos levaram a suposição dessa
tendência fundamental do sistema nervoso, então a noção de pulsão de morte também
estaria ancorada em fatos clínicos. Haveria, portanto, justificativa para mantê-la.
As pulsões de vida, embora produzindo manifestações mais claras, parecem mais
difíceis de serem justificadas do que as pulsões de morte, tendo em vista as premissas da
teoria. A única coisa que parece seguramente estar em oposição à morte é a fusão das
células germinativas, mas a suposição de que a tendência originária das pulsões sexuais
seria a tendência à união entre dois corpos e de que só em um momento posterior tal
tendência teria sido transferida para as células germinativas já parece obscurecer um pouco
a oposição entre pulsões de vida e de morte. Freud reconhece que essa nova dualidade
pulsional proposta não apresenta o mesmo grau de certeza que os passos anteriores do
desenvolvimento de sua teoria sobre as pulsões. Ele afirma em “Além do princípio do
prazer”:
“Não desconheço que o terceiro passo da doutrina das pulsões, este que
empreendo aqui, não pode reivindicar a mesma certeza que os dois
32
AE, vol.18, p.54; SA, vol.3, p.264.
188
anteriores, a saber, a ampliação do conceito de sexualidade e a tese do
narcisismo (...)”.
33
No final do sexto capítulo, Freud observa:
“(...) poder-se-ia perguntar: Para que desenvolver trabalhos como os
apresentados nessa seção e por que, além disso, comunicá-los? Pois bem,
é que não posso negar que algumas das analogias, enlaces e nexos
apontados nele me pareceram dignos de consideração”.
34
Freud deixa claro, assim, que a hipótese do novo dualismo pulsional não apresenta o
mesmo grau de certeza que os desenvolvimentos anteriores da teoria das pulsões, mas ele
argumenta que, apesar desta incerteza e dos problemas que parecem envolver essa hipótese,
é válido desenvolvê-la e comunicá-la, pois ela aponta para algo digno de consideração.
Voltaremos a comentar os problemas implicados pela hipótese do novo dualismo pulsional
na conclusão deste capítulo.
1.9) Haveria, de fato, um além do princípio do prazer?
No último capítulo de “Além do princípio do prazer”, Freud retorna à questão da
relação existente entre a compulsão à repetição e o princípio do prazer. Do fato de que
alguns processos não estejam sob o domínio do princípio do prazer não se segue que eles se
oponham a tal princípio, insiste Freud. O funcionamento regido pela compulsão à repetição
seria pré-condição para que o princípio do prazer passasse a imperar. Como a compulsão à
repetição prepararia o terreno para o princípio do prazer, ela não se oporia a esse princípio,
mas, ao contrário, atuaria em seu favor. A ligação da quantidade, que surgiria como
conseqüência da compulsão à repetição, seria uma função preparatória, destinada a
acomodar a excitação para poder tramitá-la definitivamente no prazer da descarga.
O princípio do prazer, argumenta Freud em seguida, seria uma tendência que estaria
a serviço de uma função: a de fazer com que o aparelho psíquico ficasse isento de excitação
33
AE,p.57; SA, vol.3, p.267
34
AE, vol.18, p.59; SA, vol.3, p.269.
189
ou mantivesse o nível de excitação constante. Esse princípio estaria a serviço do que Freud
chama agora de “Princípio de Nirvana” o qual, tal como Freud o define em “Além do
princípio do prazer”, abarcaria tanto a tendência à inércia, quanto a tendência à constância,
como deixa claro a seguinte afirmação de Freud, já mencionada anteriormente:
“discernimos como a tendência dominante da vida psíquica, e talvez da vida nervosa em
geral, a de rebaixar, manter constante, suprimir a tensão nervosa interna de estímulo (o
“Princípio de Nirvana , segundo a terminologia de Bárbara Low[1920])”.
35
Freud argumenta, no início do sétimo capítulo, que não se pode decidir por uma
dessas duas versões, mas que “a função assim definida participaria da aspiração mais
universal de todo o vivo a voltar atrás, até o repouso do mundo inorgânico”.
36
Então, o
princípio do prazer seria uma tendência à serviço de uma função (o princípio de Nirvana), e
essa função participaria da aspiração mais universal de todo o ser vivo para regressar ao
repouso do mundo inorgânico. Dessa forma, o princípio do prazer também estaria, em
última análise, a serviço dessa última aspiração, ou seja, da pulsão de morte. Mais adiante,
isso é enunciado explicitamente: “o princípio do prazer parece estar diretamente a serviço
das pulsões de morte”.
37
Antes, ao propor que houvesse um além do princípio do prazer, Freud ressaltara que
esse além não se oporia ao princípio do prazer, mas, ao contrário, atuaria em seu favor.
Quando Freud estabelecera que o estado originário ao qual as pulsões aspirariam regressar
seria o estado inanimado e que, portanto, ao menos parte das pulsões seriam pulsões de
morte, já podíamos inferir dali que não haveria uma oposição entre a pulsão de morte e o
princípio do prazer e que a compulsão à repetição atuaria em favor do princípio do prazer.
Assim, podíamos inferir que, de certa forma, a pulsão de morte tampouco se oporia a esse
princípio, mas igualmente atuaria em seu favor. No entanto, na verdade, seria mais correto
estabelecer a relação inversa entre essas noções, o que Freud faz na afirmação acima: o
princípio do prazer estaria diretamente a serviço das pulsões de morte.
No fim do último capítulo, Freud se pergunta se as sensações de prazer e desprazer
poderiam ser produzidas tanto pelos processos em estado ligado quanto por aqueles em
35
AE, vol.18, p.54; SA, vol.3, p.264.
36
AE,vol.18, p.60; SA, vol.3, p.270.
37
AE, vol.18, p.61; SA, vol.3, p.271.
190
estado livre. Ele responde que sim e que o processo primário é capaz de produzir sensações
muito mais intensas em ambos os sentidos. A partir disso, Freud extrai a seguinte
conclusão:
“ (...) os processos primários são os mais prematuros no tempo; no início
da vida psíquica não há outros, e podemos inferir que, se o princípio do
prazer não atuasse já neles, nunca teria podido se estabelecer para os
posteriores. Chegamos, assim, a um resultado no fundo nada simples: o
afã de prazer se exterioriza no início da vida psíquica com maior
intensidade do que mais tarde, mas não tão irrestritamente; se vê forçado a
admitir freqüentes rupturas. Em época de maior maturidade, o império do
princípio do prazer está muito mais assegurado (...)”.
38
Nessa passagem, Freud está afirmando que o princípio do prazer já se manifesta nos
processos primários, mas que apenas em um momento posterior – nos processos
secundários – ele se tornaria o princípio dominante; no processo secundário, seu império
estaria mais assegurado, pois neste seria possível inibir o surgimento de desprazer. No
processo primário, o princípio do prazer não seria soberano, pois teria que admitir
freqüentes interrupções, como conseqüência da ação da compulsão à repetição. Então, tanto
a compulsão à repetição como o princípio do prazer já se manifestariam no processo
primário. Adiante será preciso retomarmos essa questão.
Assim, quando surge a vida, surge a pulsão de vida e a de morte. Essas pulsões
manifestam-se como uma compulsão à repetição. Mas, desde o início, estaria também
presente uma tendência para evitar o desprazer e buscar o prazer. Se fosse possível
identificar aumento da excitação e desprazer e sua diminuição e prazer, seria possível
também identificar pulsão de morte e princípio do prazer. A tendência a anular toda a
excitação seria, ao mesmo tempo, uma tendência para buscar o prazer. Mas, apenas no
“Projeto...”, Freud havia estabelecido uma relação assim simples entre as sensações de
prazer e desprazer e a variação do nível de excitação. Em textos posteriores, como nas
“Conferências de introdução à psicanálise”(1915-1916) e em “Além do princípio do
prazer” (1920), ele admite que não parece ser possível estabelecer essa relação simples e
191
várias vezes lamenta o fato de não possuir uma concepção satisfatória a respeito das
sensações de prazer e desprazer. Os fenômenos do masoquismo, assim, como outras
manifestações da sexualidade, colocam em questão a identificação entre prazer e
diminuição do nível de excitação. Essa complexidade que parece envolver o surgimento das
sensações de prazer e desprazer não permite, como Freud havia cogitado no “Projeto...”,
identificar a tendência a anular toda a tensão, com a tendência a evitar o desprazer. De
qualquer forma, o texto “Além do princípio do prazer” estabelece que o princípio do prazer,
tal como é pensado no capítulo 7 e nos artigos metapsicológicos, não é o princípio
dominante desde o início: ele não predomina nos processos primários. Esse texto estabelece
também que a atração pela morte está por trás de toda atividade vital, desde o seu
surgimento. Já a respeito da tendência para se manter na vida, apesar do enorme esforço
feito por Freud, não terminamos de ler o texto convencidos de que ela exista ou, ao menos,
de que ela seja tão originária quanto a tendência à morte. Parece não ser possível
reconhecer uma simetria entre as duas classes de pulsões.
PPP
Monzani (1989) argumenta que, com a introdução do conceito de pulsão de morte,
Freud apenas explicita algo que, desde o “Projeto...” e ao longo de toda obra, esteve
presente de forma implícita na teoria. Ao introduzir tal noção em “Além do princípio do
prazer”, Freud estaria apenas conferindo direito de cidadania explícito a algo que sempre
esteve, de alguma forma, presente, observa Monzani. Acrescentamos a essa interpretação
que, ao introduzir a noção de compulsão à repetição, Freud também não está acrescentando
uma hipótese totalmente nova a sua teoria, mas sim retomando, em uma nova roupagem,
hipóteses iniciais que haviam sido deixada de lado a partir do capítulo 7. Com isso não
pretendemos sugerir que “Além do princípio do prazer” apenas repete e explicita hipóteses
que estavam presentes já no “Projeto...” e em outros textos metapsicológicos. Como nos
adverte o próprio Monzani, vários novos conceitos são introduzidos e a reformulação da
teoria que Freud empreende nesse momento e que acaba culminando no texto de 1920 e em
“O eu e o isso”, foi impulsionada, principalmente, por novas evidências obtidas e novas
38
AE, vol.18, p.61;SA, vol.3, p.271
192
hipóteses formuladas ao longo desse período, entre elas, a teoria do narcisismo. Não
pretendemos defender que “Além do princípio do prazer” é apenas uma retomada do
“Projeto...”, mas talvez seja plausível pensarmos que a reformulação da teoria que se faz
necessária e que Freud empreende nos anos 20, em medida considerável, leva-o a retomar
hipóteses iniciais, que já se encontravam presentes no “Projeto...”, mas que foram deixadas
de lado nas obras freudianas que se seguiram. De fato, a metáfora do movimento espiralado
usada por Monzani parece adequada para representar o movimento do pensamento
freudiano, em particular, quanto ao ponto aqui em discussão. Ao longo da teoria freudiana,
como afirma esse autor, “ as mesmas questões são abordadas, “esquecidas”, retomadas, mas
não no mesmo nível em que estavam sendo tratadas anteriormente.”(Monzani, 1989, p.303)
2. A expansão do conceito de inconsciente em “O Eu e o Isso”
Freud começa o texto “O Eu e o Isso” retomando o que ele diz ser a premissa básica
da psicanálise: a diferenciação do psíquico em consciente e inconsciente. Mais uma vez, ele
193
afirma que a psicanálise chegou ao conceito de inconsciente a partir da observação das
patologias psíquicas e que a suposição do psíquico inconsciente é a única coisa que permite
submeter à abordagem científica esses processos patológicos. Ele retoma, então, sua
concepção de inconsciente com o objetivo, como veremos adiante, de expor seus limites e a
necessidade de repensá-la.
As representações permanecem inconscientes, porque alguma força impede que elas
se tornem conscientes: haveria uma contra-ocupação, como Freud esclareceu nos artigos
metapsicológicos de 1915, bloqueando o acesso à consciência dessas representações. Tanto
no caso das representações desde a origem inconscientes, quanto no caso daquelas que
foram alvo da “repressão propriamente dita”, o que manteria as representações sem acesso
ao Prcc e ao Cc seria a presença e a ação dessa contra-ocupação. O inconsciente reprimido
– isto é, o sistema Icc que seria constituído pelo reprimido primordial e pelo reprimido
propriamente dito – constituiria uma classe de inconsciente: aquela cujas representações
permanecem insuscetíveis de se tornarem conscientes. Haveria ainda outra classe de
inconsciente: a formada pelas representações suscetíveis de consciência, que corresponderia
ao sistema Prcc. Os sistemas Icc e Prcc, como fica claro já no capítulo 7, corresponderiam
a dois tipos de processos: o primário e o secundário, respectivamente. Em 1915, Freud
esclarecera que a sobre-ocupação produzida pela representação-palavra é que seria
responsável pelo estabelecimento do processo secundário.
Até esse momento, Freud havia dividido o aparelho psíquico em Icc, Prcc e Cc.
Esse esquema – que foi chamado de primeira tópica – será modificado em “O Eu e o Isso”.
Mas, como argumentaremos, não se trata da substituição de uma tópica pela outra, mas sim
da superposição de novas instâncias sobre as antigas e da expansão do campo psíquico
“insuscetível de consciência”.
PPP
Ainda na primeira parte de “O Eu e o Isso”, Freud afirma que a diferença do
aparelho entre Icc, Prcc e Cc revelou-se insuficiente na prática. Os fatos mais significativos
que atestaram essa insuficiência foram os relacionados ao “eu”. Ao comentarmos os
artigos metapsicológicos de 1915, observamos como o eu não se encaixava em nenhum dos
194
sistemas psíquicos até então definidos. Suas funções pareciam estar distribuídas entre as
três instâncias. Essa dificuldade de encaixá-lo no modelo da primeira tópica é, segundo o
que diz Freud, umas das evidências mais importantes a respeito da insuficiência da divisão
do aparelho em Icc, Prcc e Cc.
O sistema pré-consciente sempre fora pensado como a instância que governaria o
acesso à motilidade e a instância da qual dependeria o acesso à consciência. A função da
repressão também havia sido pensada como sendo exercida pelo Prcc. Segundo as idéias até
então apresentadas, a repressão consistiria, primeiro, na retirada da ocupação pré-
consciente de uma representação; essa ocupação retirada dirigir-se-ia para uma outra
representação, o que atuaria como uma contra-ocupação para a representação que perdeu
sua ocupação. Tanto o ato da repressão como a manutenção do reprimido – que se
manifestaria como “resistência” no trabalho clínico – seriam processos pré-conscientes. Na
primeira tópica, portanto, o mecanismo da repressão e da resistência eram pensados como
dizendo respeito à relação entre o os sistemas inconsciente e pré-consciente. Tais
mecanismos seriam funções pré-conscientes que, de certa forma, constituiriam o sistema
inconsciente.
Mas, agora, Freud reconhece que há algo de errado nessas suposições, pois a
repressão e a resistência devem ser reconhecidas como processos que ocorrem de forma
inconsciente. Trata-se, diz ele, de processos que são inconscientes da mesma forma como o
é o reprimido, vale dizer, que externalizam afetos intensos sem se tornarem conscientes e
que só se tornam conscientes se realizado certo esforço. Em suma, trata-se de processos
capazes de exercer efeitos na consciência, não obstante, sendo em si mesmos insuscetíveis
de consciência. Com isso, coloca-se um problema: algumas das funções atribuídas ao Prcc
são insuscetíveis de consciência, logo haveria no Prcc também um inconsciente insuscetível
de tornar-se consciente. Esse fato representa realmente uma grande novidade na teoria?
Em certo sentido, não. Desde o capítulo 7, está pressuposto que haja representações
no Prcc que não podem se tornar conscientes. Lembremos que Freud propõe, nesse texto,
que haveria uma censura entre os sistemas Prcc e Cc, embora ele não especifique em que
consistiria tal censura, nem que tipo de representação seria barrada por ela. Ele afirma
apenas que as excitações pré-conscientes só poderiam alcançar a consciência se superada a
censura que haveria entre os dois sistemas. Nos artigos metapsicológicos, Freud retoma a
195
hipótese de que haveria uma censura entre tais sistemas e esclarece que seria o setor do
Prcc constituído por derivados do reprimido primordial que estaria submetido a essa
censura. Embora esse setor do pré-consciente submetido à censura não fosse responsável
pelas funções da repressão e da resistência, já está presente, desde o capítulo 7 , a idéia de
que haveria um “insuscetível de consciência” no Prcc, o que já nesse momento coloca
problemas à identificação deste sistema com o setor psíquico suscetível de consciência, ral
como é estabelecido por Freud. Se há representações pré-conscientes que são barradas por
uma censura e que, portanto, permanecem sem acesso à consciência, isso implica na
suposição de representações pré-conscientes “insuscetíveis de se tornarem conscientes”,
mesmo que por razões diversas das representações do sistema inconsciente.
Mas, se a repressão e a sua manutenção, que sempre foram funções atribuídas ao
Prcc, ocorrem de maneira inconsciente – e não parece ser o caso de atribuir essa
inconsciência à ação de uma censura entre Prcc e Cc, uma vez que seriam os derivados do
reprimido que estariam submetidos a ela – então, torna-se problemático considerá-las
funções pré-conscientes. Um dos dois sistemas – o Prcc ou o Icc – deve ser repensado.
A teoria do aparelho psíquico desenvolvida entre 1900 e 1915 pressupõe que a
manutenção do inconsciente – isto é, a contra-ocupação que mantém as representações que
o constituem sem acesso ao Prcc e ao Cc – se deva à mesma força responsável pela
repressão. Assim, se a repressão fosse uma função do sistema inconsciente, este teria que
ser pensado como englobando não só as representações sob ação da contra-ocupação, mas
também a própria contra-ocupação. Ou seja, o sistema Icc teria que ser expandido para
englobar, além do reprimido primordial e do reprimido propriamente dito, a própria função
da repressão e aquela que se manifesta como resistência. Esse problema que, na verdade, já
poderia ser colocado mesmo na ausência da referência ao eu, só é levantado por Freud em
1923, quando sua preocupação se torna inseri-lo novamente no esquema do aparelho
psíquico.
PPP
No “Projeto...”, o conceito de “eu” estava claramente definido. O sistema ψ do
núcleo corresponderia à parte constante do eu e ψ do manto à sua parte variável, segundo o
196
que propõe Freud. Na carta 52 e no capítulo 7 de “A Interpretação dos sonhos”, o eu não é
mais explicitamente tematizado, e a relação entre os sistemas que comporiam o aparelho e a
excitação somática não é representada no esquema da primeira tópica, embora esteja
implícito que haveria uma conexão entre o sistema inconsciente e o interior do corpo. É
comum a idéia de que o eu corresponde ao sistema pré-consciente na primeira tópica, mas
Freud não estabelece em momento algum essa identificação.
Quando o eu reaparece nos artigos metapsicológicos, Freud atribui a ele algumas
das funções do Prcc, como a função de atenção e o exame de realidade. Em “O Eu e o
Isso”, outras das funções pré-conscientes são a ele atribuídas, como o acesso à motilidade,
o acesso à consciência e a repressão. Na verdade, sempre esteve implícito que o eu seria o
responsável pela repressão, pois o conflito psíquico que desembocaria na repressão sempre
foi pensado como ocorrendo entre as pulsões egóicas e as pulsões sexuais. O fato do eu ser
o responsável pela repressão e desta última ocorrer de forma inconsciente, implicava que
ele não pudesse ser totalmente identificado ao Prcc. Portanto, ele teria que estar distribuído
entre o Icc e o Prcc, se fosse mantido o esquema da primeira tópica. Mas, além disso, o
sistema Icc teria que ser ampliado para abarcar não só o reprimido, mas também a
repressão, como acabamos de comentar. Qual é a solução encontrada por Freud? Ele deixa
de lado a idéia do inconsciente enquanto sistema; o termo inconsciente passa a ser usado
para designar apenas o que é insuscetível de consciência, e este passa a abarcar bem mais
do que o reprimido. Na acepção sistemática, inconsciente significava um processo
particular – o processo primário – com características distintas do psíquico suscetível de
consciência, como vimos. Agora, essa parte correspondente ao processo primário, que antes
era o sistema Icc, passa a corresponder à instância Isso e o campo do insuscetível de
consciência deixa de se restringir apenas aos processos psíquicos primários.
Com essas modificações introduzidas em “O Eu e o Isso”, Freud dá um passo além
em sua teoria sobre o psiquismo inconsciente. Recapitulemos, então, brevemente, os passos
seguidos na evolução desta teoria.
2.1) Um novo elo na concepção de inconsciente
197
Primeiramente, a partir da investigação da histeria, assim como da observação do
fenômeno da sugestão pós-hipnótica, Freud concluira que havia processos psíquicos
inconscientes e insuscetíveis de consciência e, entretanto, ativos e capazes de influenciar a
atividade psíquica consciente. Em 1912, no artigo “Nota sobre o conceito de inconsciente”,
ele afirma que sua primeira descoberta foi que havia um “inconsciente dinâmico”. Em
seguida, após o abandono da hipnose, Freud percebera que essa parte da vida psíquica
insuscetível de se tornar consciente, ao menos em parte, teria sido alvo de um mecanismo
de defesa – isto é, da repressão – e que a mesma força que reprime continua exercendo
uma pressão contínua para impedir o retorno do reprimido à consciência. Quando Freud
começou a analisar os sonhos, outra característica do psíquico inconsciente pôde ser
percebida: o setor do psíquico que permanece insuscetível de consciência possui
propriedades peculiares, distintas daquelas da parte do psíquico suscetível de consciência.
Trata-se de um processo psíquico diferente, que Freud chamou de processo primário. As
características do processo primário tornavam compreensíveis tanto as singularidades do
sonho quanto as dos sintomas neuróticos. Freud acrescentou, então, em sua teoria, a idéia
de sistema. Haveria um sistema psíquico inconsciente – que corresponderia ao processo
primário – cujas representações, no funcionamento normal, além de permanecerem
insuscetíveis de consciência, seriam regidas por leis diferentes daquelas que regem o
psíquico suscetível de se tornar consciente. A essa última parte do psíquico Freud passou a
chamar de Prcc ou processo secundário. Essa separação do psíquico em uma parte
suscetível e outra insuscetível de consciência, contudo, sempre teve algo que não se
encaixava muito bem, pois, como comentamos há pouco, desde o capítulo 7, Freud supunha
que alguns dos componentes do Prcc seriam “barrados por uma certa censura” e teriam o
acesso à consciência impedido. Nos artigos metapsicológicos de 1915, Freud explicitou
algo que há muito estava implícito: permanecem insuscetíveis de se tornarem conscientes
aqueles processos que não possuam vínculos com representações-palavra. Ficou claro,
então, o porquê de uma representação não poder se tornar consciente quando ela não possui
vínculo com palavra, isto é, quando ela não está incorporada no processo secundário, mas
permaneceu sem explicação o porquê de algumas representações, mesmo inseridas no
processo secundário, não poderem alcançar a consciência, ou seja, permanece sem
198
explicação o fato de alguns processos pré-conscientes serem barrados por uma segunda
censura.
A noção de inconsciente “dinâmico”, tal como Freud a expôs em 1912, já estava
formulada no “Projeto de uma psicologia”. Na carta 52 e no capítulo 7 de “A Interpretação
dos sonhos”, Freud introduziu a idéia de inconsciente no sentido sistemático. Em “Além do
princípio do prazer”, Freud esclarece algo mais: o processo primário, que constitui o
sistema Icc, seria regido, ao menos em parte, por um princípio que antecede o princípio do
prazer, tal como este havia sido pensado desde “A interpretação dos sonhos” . Em “O Eu e
o Isso”, outro passo é dado no desenvolvimento do conceito de inconsciente: Freud
reconhece que a parte do psíquico inconsciente e insuscetível de consciência não se
restringe àquela parte correspondente ao sistema Icc da primeira tópica, isto é, não se
restringe ao processo primário. Haveria mais coisas insuscetíveis de consciência no
psíquico do que o conjunto formado pelo reprimido primordial e pelo reprimido
propriamente dito; não é só a parte do aparelho regida pelo processo primário que
permanece insuscetível de se tornar consciente. Diante disso, a divisão do aparelho em Icc,
Prcc e Cc tem que ser abandonada. O conceito de inconsciente sistemático e também o de
um sistema pré-consciente tem que ser descartados.
Em “O Eu e o Isso”, a parte do psíquico insuscetível de consciência torna-se mais
ampla que aquela regida pelo processo primário e a parte do psíquico suscetível de se tornar
consciente torna-se mais restrita que aquela regida pelo processo secundário. Na primeira
tópica, esses domínios eram identificados; o Prcc (ou o processo secundário), correspondia
ao suscetível, e o Icc (ou o processo primário) ao insuscetível de se tornar consciente. Em
1923, o processo primário deixa de corresponder a todo o psíquico insuscetível de
consciência: esse é o novo elo no desenvolvimento do conceito de inconsciente que está
presente no texto em questão. Se pensamos na primeira tópica em sua relação com a
segunda, tudo se passa como se o processo primário – que correspondia ao sistema
inconsciente – se convertesse no Isso e seu vínculo com o pulsional fosse explicitado, e o
processo secundário – que correspondia ao Prcc – passasse a corresponder ao Eu e ao
Supereu. A diferença principal é a desvinculação entre o processo secundário e a
suscetibilidade de consciência. Portanto, trata-se da superposição das novas instâncias às
antigas e da expansão do campo do psíquico insuscetível de consciência.
199
A distinção no aparelho entre uma parte inconsciente e uma parte pré-consciente
passa a dizer respeito apenas ao que é insuscetível e ao que é suscetível de consciência e
apenas o sentido “dinâmico” de inconsciente, tal como Freud o formula e 1912, é mantido,
sendo o sistemático abandonado. Ainda na primeira parte de “O eu e o isso”, Freud
anuncia a novidade:
“Reconhecemos que o Icc não coincide com o reprimido; continua sendo
correto que todo reprimido é icc, mas nem todo Icc é, por sê-lo, reprimido.
Também uma parte do eu, Deus sabe quão importante, pode ser icc, é
seguramente icc. E este Icc do eu não é latente no sentido do Prcc, pois se
assim fosse não poderia ser ativado sem se tornar consciente, e o torná-lo
consciente não encontraria dificuldades tão grandes. Visto que nos vemos
constrangidos a estabelecer um terceiro Icc, não reprimido, devemos
admitir que o caráter da inconsciência perde significação para nós. Passa
a ser uma qualidade multívoca, que não permite as amplas e excludentes
conclusões a que havíamos querido aplicá-la.”
39
Em “O Eu e o Isso”, os termos inconsciente e pré-consciente deixam de designar
lugares ou tipos de processos, e passam a designar apenas qualidades psíquicas, ou seja,
suscetibilidade ou não de consciência. Por “inconsciente” designa-se o psíquico
insuscetível de consciência: ativo, capaz de agir sobre a consciência, porém incapaz de se
tornar consciente. Por “pré-consciente”, designa-se o suscetível de consciência: aquela
parte do psíquico que não poderia ser ativada sem tornar-se consciente, como diz Freud na
passagem acima. Como veremos adiante, no “Esboço de psicanálise”, esse uso dos termos
inconsciente e pré-consciente será novamente modificado.
2.2) A nova estrutura do aparelho
39
AE,vol.19, p.19-20; SA, vol.3, p. 287.
200
A divisão do aparelho em sistema inconsciente, pré-consciente e consciente dá
lugar, em 1923, à divisão entre Isso, Eu e Supereu. O Isso seria insuscetível de
consciência, e o Eu e o Supereu seriam ambos, em parte, suscetíveis e, em parte,
insuscetíveis de se tornarem conscientes.
Já no capítulo 7, Freud havia deixado claro que a representação “tópica” era uma
representação auxiliar, utilizada por razões didáticas e que, na verdade, os sitemas Icc e
Prcc corresponderiam a dois tipos de processos distintos: o primário e o secundário. Essa
diferenciação não seria originária, mas surgiria com a constituição das representações-
palavra (essa última hipótese é explicitada por Freud em 1915). O processo secundário se
sobreporia ao processo primário e, no funcionamento psíquico normal de vigília, este
último permaneceria sem acesso à consciência. Continua havendo alguma relação entre as
três novas instâncias e os processos primário e secundário?
A instância Isso assume o lugar do sistema Icc da primeira tópica, mas agora seu
caráter pulsional e sua relação com o somático é explicitada. Assim como o ψ do núcleo do
“Projeto...”, o Isso seria o pólo pulsional do aparelho, pois estaria em contato direto com as
excitações de origem endógena. O Isso corresponderia, então, ao processo primário. Na 31
a
.
das “Novas conferências de introdução à psicanálise” (1933), Freud atribui a essa instância
exatamente as mesmas características atribuídas ao sistema inconsciente na primeira tópica
(inclusive, surpreendentemente, a regulação exclusiva pelo princípio do prazer, questão à
qual retornaremos adiante). Também nas “Novas conferências...”, Freud afirma que mesmo
as partes insuscetíveis de consciência do Eu e do Supereu não são “primitivas e irracionais”
como o Isso. Dessa afirmação talvez possamos inferir que mesmo a parte insuscetível de
consciência do Eu e do Supereu correspondem ao processo secundário. Ao menos temos
certeza de que não se trata de processo primário; contudo, Freud deixa totalmente sem
explicação o porquê dessas partes do Eu e do Supereu permanecerem sem acesso à
consciência: apesar de consistirem em processos secundários, elas permaneceriam
insuscetíveis de consciência, sem que uma razão para isso seja apresentada.
Podemos formular, no entanto, a conjectura de que o processo secundário volta a ser
pensado de maneira semelhante a como era pensado no “Projeto...”, isto é, que estaria
sendo deixada de lado a hipótese, explicitada nos artigos metapsicológicos de 1915, de que
o processo secundário seria instituído pelas palavras. No “Projeto...”, o estabelecimento do
201
processo secundário precedia a constituição das representações-palavra. O processo
primário, por conduzir a um aumento de desprazer – portanto, devido à regra biológica da
defesa primária –, seria inibido, instituindo-se, assim, o processo secundário. O
estabelecimento desse último processo seria independente da constituição das palavras e
não implicaria no surgimento de um campo do psíquico que seria suscetível de consciência.
Dessa forma, tendo em vista as hipóteses do “Projeto..”, podemos pensar que, de início, o
processo secundário permaneceria insuscetível de consciência e que, em um segundo
momento, com a constituição das representações-palavra, uma parcela do processo
secundário tornar-se-ia suscetível de consciência. Com isso, a idéia de que, embora o Eu e o
Supereu correspondessem a processos secundários, parte de seus processos permaneceriam
insuscetíveis de consciência, se tornaria compreensível. Mas Freud não formula
explicitamente essas considerações: ele não esclarece o que tornaria parte do Eu e do
Supereu insuscetível de consciência.
A hipótese de Freud de que o Eu seria uma parte do Isso diferenciada devido ao
contato com a realidade nos permite pensar que a relação entre Isso e Eu talvez seja
semelhante à que havia entre o sistema inconsciente e o pré-consciente: o Eu emergiria a
partir do Isso – assim como, anteriormente, o Prcc do Icc – e esse processo se deveria ao
fato de se tornar necessário levar em consideração as exigências do mundo externo. Desde
o “Projeto...”, Freud trabalha com a hipótese de que o processo primário deveria ser ao
menos parcialmente inibido para que o organismo pudesse sobreviver. Por ignorar o mundo
externo, o funcionamento primário conduziria a um aumento de desprazer e, como
conseqüência da sua desadaptação, ele teria que ser inibido e dar lugar ao secundário.
Essa hipótese de que o Eu seria uma parte do Isso que se teria diferenciado devido
ao contato com os estímulos do mundo externo sugere que as hipótese jacksonianas
continuam presentes na teoria: assim como, na primeira tópica, o Prcc emergiria a partir do
Icc e, em certo momento, passaria a predominar sobre este, na segunda tópica, o Eu
emergiria a partir do Isso e passaria a predominar no funcionamento normal.
PPP
202
O reprimido, segundo Freud, consistiria em um setor do Isso. Esse reprimido que é
representado no esquema como um setor do Isso é o que ele chama de reprimido
propriamente dito, isto é, aqueles conteúdos que foram excluídos do processo secundário;
no restante do Isso, estaria, então, o reprimido primordial. Em 1923, Freud reconhece a
possibilidade do aparelho conter memórias hereditárias – hipótese esta que já havia sido
mencionado em textos anteriores – as quais teriam sido vivências do eu que, por terem se
repetido com freqüência e também devido a sua intensidade, teriam sido transpostas em
impressões no Isso e passado a ser transmitidas por herança :
“As vivências do eu parecem no início perderem-se para a herança, mas,
se são repetidas com a suficiente freqüência e intensidade em muitos
indivíduos que se seguem uns aos outros geracionalmente, se transpõem,
por assim dizer, em vivências do Isso, cujas impressões são conservadas
por herança. Desse modo, o Isso hereditário abriga em seu interior os
restos de inumeráveis existências-eu (...)”.
40
Parte do Isso – e, portanto, parte dos conteúdos psíquicos insuscetíveis de
consciência – seria assim constituída por memórias herdadas. Talvez essas memórias
herdadas correspondam parcialmente ao reprimido primordial de que Freud falara em 1915.
Não entraremos aqui na questão da relação do Supereu com as demais instâncias,
pois isso nos distanciaria dos temas focalizados por essa tese. Portanto, passaremos, agora,
para a consideração da questão da consciência nesse novo contexto.
2.3) Representação e consciência na segunda tópica freudiana
Nos artigos metapsicológicos (1915-17), de início, Freud não se referia à
consciência como um sistema independente; apenas no texto “Complemento
metapsicológico à doutrina dos sonhos” (1917), os sistemas consciente e pré-consciente
passaram a ser, de fato, diferenciados. Mas, ao estabelecer essa diferenciação, Freud passa a
falar em um sistema P-Cc. Em uma nota agregada, em 1919, ao capítulo 7 de “A
interpretação dos sonhos”, Freud também propõe essa união entre as duas extremidades do
203
aparelho (P e Cc). Observamos que não fica claro se ele está propondo que ambos são um
único sistema ou se P e Cc estariam apenas conectados. No capítulo 7 de “A interpretação
dos sonhos”, a percepção e a consciência haviam sido situadas em extremos opostos do
aparelho. Essa diferenciação entre um sistema responsável pela percepção e outro
responsável pela consciência já estava presente no “Projeto...”, onde o sistema φ recebia a
excitação exógena, a qual atravessaria o sistema de memória ψ, para só se tornar consciente
em ω. Portanto, no “Projeto...”, assim como no capítulo 7, o processo de constituição da
representação precederia o “tornar-se consciente”. Quando, nos artigos metapsicológicos,
Freud passa a não mais diferenciar entre P e Cc, isso não implica, de imediato, que a
relação entre a representação e a consciência teria passado a ser pensada de forma diferente,
pois a união das duas extremidades do aparelho, se P e Cc tivessem sido mantidos como
dois sistemas distintos, não implicaria necessariamente que toda percepção – que toda
recepção de quantidade exógena – se tornasse consciente imediatamente. Nos artigos
metapsicológicos, Freud afirma duas coisas distintas a respeito do percurso que seria
seguido pela excitação, como comentamos anteriormente: ora ele fala como se esse
percurso fosse o mesmo do esquema do capítulo 7, ora ele fala como se o caminho
percorrido pela excitação exógena fosse o oposto. Então, de fato, essa questão fica em
aberto nos artigos de 1915. Mas, de qualquer maneira, parece evidente que Freud está
repensando suas hipóteses a esse respeito. A relação entre a representação e a consciência
permanece aí, no entanto, bastante indefinida.
Em “Além do princípio do prazer”, esse problema ganha maior definição: Freud
continua falando em um sistema P-Cc e parece abandonar definitivamente a idéia de que a
excitação oriunda do mundo externo incidiria sobre o Icc, passaria pelo Prcc e, só então,
chegaria ao sistema consciente. Os sistemas P e Cc, de fato, deixam de ser diferenciados:
tratar-se-ia de um único sistema que receberia a excitação exógena diretamente.
41
Freud
formula a hipótese de que o fato de tal sistema permanecer sempre igualmente receptivo –
isto é, dele não ser modificado pela excitação que o percorre – talvez decorra justamente da
sua localização, do fato dele estar em contato direto com a excitação proveniente do mundo
externo:
40
AE, vol.19, p.39;SA, vol.3, p.305
204
“O sistema Cc se singularizaria, então, pela particularidade de que nele,
diferentemente do que ocorre em todos os outros sistemas psíquicos, o
processo de excitação não deixa atrás de si uma alteração permanente de
seus elementos, mas se esgota, por assim dizer, no fenômeno do tornar-se
consciente. Semelhante desvio da regra geral deve ser explicado por um
fator que seja exclusivo deste sistema; bem, esse fator, que falta a todos os
outros sistemas, poderia ser a situação do sistema Cc que acabamos de
expor: seu choque direto com o mundo exterior.”
42
Freud propõe, então, que a excitação exógena se choque primeiro com o sistema Cc;
depois, ela seguiria para os sistemas de memória. Ele afirma que, no sistema Cc, o processo
excitatório se tornaria consciente, mas não deixaria como seqüela traços permanentes, os
quais se formariam somente nos sistemas de memória contíguos. A permeabilidade que
caracterizaria a consciência é uma hipótese antiga na teoria; a novidade que aparece nesse
momento é o fato de primeiro algo se tornar consciente e depois vir a ser representado.
Freud tenta relacionar a permeabilidade que caracterizaria a consciência com sua
localização, isto é, com o fato do sistema por ela responsável se chocar diretamente com as
excitações do mundo externo. Ele formula, então, algumas hipóteses a respeito de como um
sistema desse tipo poderia ter-se constituído. Apoiando-se nas indicações da embriologia de
que o sistema nervoso central teria provindo da ectoderme, ele passa a especular a respeito
da origem do sistema consciente. Um organismo vivo primitivo, que consistisse em uma
vesícula indiferenciada de substância estimulável, com a recepção contínua de estimulação
acabaria tendo sua superfície externa diferenciada, até um ponto em que não pudesse
ocorrer mais modificações, de forma que esta superfície acabaria se tornando totalmente
permeável à excitação. Dessa forma, teriam sido criadas as condições para que surgisse a
consciência:
“Dessa forma, ao final do processo, haveria se formado um córtex tão
crivado pela ação dos estímulos, que ofereceria as condições mais
41
Na carta 39 a Fliess, Freud havia proposto um esquema semelhante, no qual a percepção e a consciência
estavam ligadas e precederiam o sistema de memória.
42
AE, vol.19, p.25; SA, vol.3, p.235.
205
favoráveis a recepção destes e já não seria suscetível de posterior
modificação. Transpondo ao sistema Cc, isso significaria que a passagem
da excitação já não poderia imprimir nenhuma alteração permanente em
seus elementos. Eles estariam modificados ao máximo no sentido deste
efeito, ficando então habilitados para gerar consciência.”
43
A camada mais externa poderia, mesmo, ter-se tornado inorgânica, passando a
funcionar, então, como uma superfície protetora, que barraria ao menos parte dos estímulos.
Com isso, ter-se-ia se estabelecido uma camada mais externa inorgânica, que filtraria a
estimulação, e uma camada imediatamente contígua, totalmente permeável aos estímulos.
Os processos dos extratos mais profundos da vesícula passariam, então, a transcorrer de
maneira diferente; neles, os estímulos deixariam atrás de si modificações permanentes.
Freud retoma, em “Além do princípio do prazer”, praticamente as mesma hipóteses do
“Projeto...”, para explicar em que consistiriam essas modificações permanentes:
“Em que consistiu essa modificação da substância e do processo
excitatório que decorre dentro dela? (...) Uma suposição possível seria
que, em seu avanço de um elemento ao outro, a excitação tem que vencer
uma certa resistência e, justamente, a redução desta cria o traço
permanente da excitação (facilitação); poder-se-ia pensar, então, que no
sistema Cc já não subsiste nenhuma resistência de passagem dessa índole
entre um elemento e outro”
44
Nos organismos superiores, especula Freud, o estrato cortical receptor de estímulos
da antiga vesícula teria sido internalizado no corpo e deixado atrás de si, na superfície, os
órgãos sensoriais.
Na segunda sessão de “O Eu e o Isso”, Freud retoma essa hipótese, já apresentada
em “Além do princípio do prazer”, de que a consciência estaria na superfície do aparelho
psíquico: sobre ela incidiriam diretamente os estímulos provenientes do mundo externo.
Mas, além das percepções externas, as sensações e os sentimentos – isto é, processos que
se originam no interior do corpo – também se tornariam conscientes. A consciência dos
43
AE, vol.19, p.26;SA, vol.3, p.236.
206
estímulos externos, assim como aquela das sensações provenientes do interior do corpo,
seria, de certa forma, “imediata”, ou seja, não dependeria da intermediação de outros
fatores. Mas e o pensamento? Como sabemos, a resposta de Freud, desde o “Projeto...”, é
que o pensamento torna-se consciente por meio das palavras. Freud retoma, em 1923, essa
hipótese, mas agora ele admite que o pensamento com palavras não é a única forma de
pensamento consciente; há pensamentos que se tornam conscientes a partir apenas da
ativação de imagens visuais.
A seguinte questão é levantada: são os pensamentos que, consumando-se em algum
lugar do interior do aparelho com deslocamentos de energia psíquica, vêm à superfície que
faz nascer a consciência ou é a consciência que vai até eles? Ou seja, para se tornar
consciente, o processo de pensamento deve-se dirigir à superfície onde se localiza a
consciência ou seria essa superfície que, de alguma forma, iria até o processo de
pensamento? A resposta de Freud é: nem uma coisa, nem outra e, então, ele retoma as
hipóteses que haviam sido explicitadas nos artigos metapsicológicos de 1915. Para algo se
tornar pré-consciente – lembremos que, agora, isso quer dizer apenas “suscetível de
consciência” – é preciso que adquira uma conexão com representações-palavra. Nesse
sentido, a diferença entre um processo suscetível e um insuscetível de consciência é que o
primeiro está associado a representações-palavra, e o segundo não. Mas como as palavras
poderiam fazer surgir a consciência?
Lembremos que, no “Projeto...”, Freud havia formulado a hipótese de que as
associações lingüísticas possibilitariam a consciência de uma representação devido às suas
imagens de movimentos: estas, ao serem ativadas, como todo movimento, produziriam
percepções e fariam surgir signos de qualidade. No capítulo 7 de “A Interpretação dos
sonhos”, Freud retomou a hipótese de que as palavras tornariam os processos pré-
conscientes suscetíveis de consciência, mas ele não retoma a idéia de que seria
especificamente a imagem de movimento contida na representação de palavra o que
tornaria possível o surgimento da consciência. Nos artigos de 1915, ele diz que a palavra
produziria consciência ao ser transposta em percepção.
Então, após o “Projeto..”, ele não mais atrela a possibilidade de consciência à
imagem de movimento em especial. Em “O Eu e o Isso”, ele volta a dizer que a palavra
44
AE,vol.19, p.26;SA, vol.3, p.236.
207
faria surgir a consciência ao ser transposta em percepção. Mas, nesse momento, Freud
expande sua concepção a respeito da possibilidade de consciência do pensamento. Tudo
aquilo que um dia foi percepção, diz ele, pode se tornar novamente consciente:
“Essas representações-palavra são restos mnêmicos; uma vez foram
percepções e, como todos os restos mnêmicos, podem se tornar de novo
conscientes (...); com exceção dos sentimentos, o que a partir de dentro
quer se tornar consciente tem que tentar se transpor em percepções
exteriores. Isto se torna possível por meio dos traços mnêmicos”.
45
O pensamento não depende exclusivamente das representações-palavra para tornar-
se consciente: haveria processos de pensamento que se tornariam conscientes a partir da
reativação de imagens visuais. Esse pensamento visual, característico do sonho, é um tipo
de pensamento mais antigo, tanto ontogeneticamente, quanto filogeneticamente. Trata-se,
diz Freud, “de um tornar-se consciente muito imperfeito”.
Desde o “Projeto..”, está presente a hipótese de que a rememoração comum – isto é,
aquela que não fosse alucinatória – só seria possível por meio das palavras. Agora, Freud
admite que há também rememorações que consistem em ativações de imagens visuais, e ele
afirma que a diferença entre esse tipo de rememoração e a alucinação se deve apenas à
diferença na intensidade do processo. A consciência dependeria de que um traço mnêmico
fosse transposto em percepção, o que parece consistir em uma ocupação regressiva dos
sistemas de memória até o sistema responsável pela consciência. Uma regressão desse tipo,
dependendo da sua intensidade, teria como conseqüência uma simples rememoração ou
uma alucinação. Entre a alucinação e a simples rememoração, haveria apenas uma
diferença de intensidade. Essa hipótese que, na verdade, já estava insinuada desde o
capítulo 7, onde Freud diz que a rememoração consiste em um processo regressivo, é
apresentada mais explicitamente em “O Eu e o Isso”.
Embora o pensar com palavras não seja a única forma de pensamento consciente,
ele seria uma forma de pensamento mais evoluída: as palavras permitiriam que o
pensamento se libertasse das imagens concretas. No “Projeto..”, Freud afirmara que o
pensamento em sua origem consistiria na reativação de imagens de movimento;
208
inicialmente, pensar seria, de alguma forma, mover-se. A partir de certo momento, o
pensamento se tornaria independente da ação. Podemos, com as hipótese introduzidas em
1923, acrescentar que, além do pensamento que consistiria em ação, haveria outra forma de
pensamento primária, que se daria a partir da reativação de imagens visuais, o que talvez já
correspondesse a um nível mais desenvolvido de pensamento. Assim, primeiro o
pensamento seria ação; depois, reativação de imagens visuais; e, por último, reativação de
palavras. Este último seria, provavelmente, a marca distintiva do homem perante os outros
animais.
Freud mantém, no entanto, a hipótese de que o que tornaria uma representação pré-
consciente seria sua ligação com palavras e que tornar consciente algo inconsciente
dependeria de reestabelecer o vínculo com as palavras. No artigo metapsicológico sobre o
inconsciente (1915), ao se perguntar por que as representações-objeto precisariam das
palavras para se tornarem conscientes – isto é, por que elas mesmas não poderiam se tornar
conscientes uma vez que também são oriundas da percepção –, Freud responde que
“provavelmente o pensar se desenvolve em sistemas tão distantes dos restos de percepção
originários que nada conservaram de suas qualidades e, para se tornarem conscientes,
necessitam de um reforço de qualidades novas
46
Poderíamos pensar que, embora o
pensamento não dependesse exclusivamente das palavras, estas o assegurariam e o
aperfeiçoariam. O fato é que, embora Freud reconheça que a palavra não é a única coisa por
meio da qual algo pode ser rememorado, ele continua vinculando a pré-consciência – e,
portanto, a suscetibilidade de consciência – às representações-palavra. Permanece, assim,
essa contradição, cujo exame será retomado, como veremos, no “Esboço de psicanálise”.
Freud conclui, então, que tanto o processo correspondente ao pensamento quanto as
sensações corporais, para se tornarem conscientes, teriam que alcançar o sistema P-Cc, mas
as representações só poderiam atingir este sistema a partir da intermediação das palavras,
enquanto que as sensações corporais o fariam diretamente. Por isso, ele afirma que uma
representação pode ser consciente, pré-consciente ou inconsciente. Já para as sensações
essa segunda possibilidade estaria excluída; elas só poderiam ser inconscientes ou
conscientes. A representação pré-consciente continua sendo pensada como aquela associada
à palavra, e a inconsciente como a não associada.
45
AE,vol.19. p.22;SA, vol.3, p.289.
209
O processo secundário, como já observamos, não parece mais ser pensado como
algo que necessariamente dependa das palavras: partes do Eu e do Supereu seriam
inconscientes, mesmo não correspondendo ao processo primário. Portanto, ou há um
terceiro tipo de processo não mencionado – não podemos excluir essa possibilidade,
embora Freud não forneça nenhuma indicação quanto a isso – ou pode haver processo
secundário sem palavras. Poderíamos, ainda, pensar em uma outra alternativa: todo
processo secundário estaria associado às palavras, contudo nem tudo que está associado à
palavra seria suscetível de consciência. As hipóteses de Freud que acabamos de comentar
parecem excluir essa possibilidade, pois, se o Eu e o Supereu são em parte inconsciente e
em parte pré-consciente e se o que torna algo pré-consciente é a associação com a palavra,
então a parte inconsciente do eu e do supereu não comportaria representações-palavra.
Como sabemos que as partes do Eu e do Supereu inconscientes não consistem em processo
primário, então, ou trata-se de processo secundário ou de outro tipo de processo. Uma vez
que Freud nunca mencionou um terceiro processo – um terceiro estado da excitação que
não seria nem o ligado nem o livre – a primeira alternativa parece ser a mais plausível.
Portanto, nem todo processo secundário precisa ocorrer com representações associadas a
palavras. Assim, a suposição de 1915 de que essas representações instituiriam o processo
secundário estaria sendo deixada de lado e este processo parece voltar a ser pensado de
forma próxima à que era no “Projeto...”, ou seja, como algo que para surgir não depende da
constituição de representações-palavra. Apenas uma parte do processo secundário
envolveria essas representações; com isso, processo secundário e suscetibilidade de
consciência – e pré-consciência – ficariam desvinculados.
PPP
Em relação à consciência, a principal mudança que surge em “Além do princípio do
prazer” e em “O Eu e o Isso” é, em primeiro lugar, a explicitação da identificação entre os
sistemas P e Cc. Não há mais, como no “Projeto...” e no Capítulo 7 do livro sobre os
sonhos, um sistema responsável pela recepção da excitação de origem exógena e outro
responsável pela consciência: ambas as funções passam a ser desempenhadas pelo mesmo
46
AE,vol.14, p.199; SA, vol.3, p.160.
210
sistema, o qual agora é denominado “P-Cc” (“W-Bw”) ou apenas “Cc”. Como
conseqüência dessa identificação, surge uma mudança importante na forma como a relação
entre a consciência e a representação é pensada. No Projeto e no capítulo 7, assim como
em algumas passagens dos artigos metapsicológicos, Freud considerara que a excitação
proveniente do mundo externo incidiria sobre um primeiro sistema (φ ou P), daí seguiria
para os sistemas de memória (ψ ou Prcc e Icc), para só então chegar ao sistema responsável
pela consciência (ω ou Cc). Portanto, tratava-se de uma hipótese segundo a qual primeiro
ocorreria o processo de constituição da representação e, depois, o despertar da consciência,
que seria, assim, sempre algo posterior à constituição da representação. Uma representação
se constituiria e, mesmo que correspondesse a uma representação de algo externo, poderia
ou não vir a tornar-se consciente. No capítulo 7, Freud diz que todo conteúdo, antes de ser
consciente, sofre o processo da elaboração secundária e que essa elaboração se daria na
passagem da excitação pelos sistemas Icc e Prcc. Portanto, até então, havia sido
estabelecido que a memória precederia a consciência.
Com a identificação entre os sistemas P e Cc e com a localização desse sistema na
superfície do aparelho, a relação entre representação e consciência tem que ser pensada de
forma distinta, embora Freud não chegue a discutir essa questão. Se a excitação proveniente
do mundo externo incide diretamente sobre a superfície responsável pela consciência, para,
em seguida, chegar aos sistemas de memória, isso parece implicar que a percepção torne-se
consciente antes de ser representada, isto é, antes da constituições dos traços de memória.
Deste modo, em relação às percepções oriundas do mundo externo, desapareceria a antiga
hipótese de que a memória precederia a consciência. Quanto às representações constituídas
a partir da excitação endógena, continuaria valendo a hipótese anterior de que elas teriam
que percorrer os sistemas de memória antes de se tornarem conscientes
Mas, se as percepções externas primeiro se tornam conscientes para depois serem
representadas – ou seja, se o processo de elaboração secundária não mais antecederia a
consciência de uma percepção –, isso implica que nossas percepções e nossas
representações sejam pensadas como sendo uma cópia fiel dos estímulos externos, como
correspondendo ponto a ponto aos estímulos que incidem sobre a periferia do sistema
nervoso? Não parece possível tirar essa conclusão, se lembramos das idéias formuladas por
Freud em “Sobre a concepção das afasias”. Neste texto, Freud defendera que, no processo
211
de condução dos estímulos externos da medula ao córtex, esses estímulos sofreriam
sucessivos rearranjos, de forma que, entre aquilo que tivesse partido da periferia e aquilo
que chegasse ao córtex, haveria uma relação bastante indireta. Tendo isso em vista,
podemos concluir que, mesmo se aquela informação que chegasse ao córtex cerebral se
tornasse consciente imediatamente, ainda assim não seria possível dizer que o que se torna
consciente seria uma cópia fiel daquilo que ingressou no sistema nervoso. Portanto, de
qualquer maneira, teria sido mantida a hipótese proposta em “Sobre a concepção das
afasias” de que nossas percepções e nossas representações consistiriam no resultado
conjunto de uma forma determinada pelo sistema nervoso e de um conteúdo adquirido.
Essa precedência da percepção em relação à memória parece abrir a possibilidade de
que a memória reorganize as percepções, uma vez que a representação consiste em um
processo associativo que ocorre após a percepção. Isso teria como conseqüência que a
rememoração de algo nunca fosse exatamente igual a sua percepção. Outra questão que
podemos levantar é se estaria implicado nas idéias defendidas por Freud que toda
percepção – ou seja todo material proveniente do mundo externo – seria necessariamente
percebido conscientemente. Mais uma vez, a resposta parece ser não e podemos justificá-la
a partir das idéias do “Projeto...”, as quais são retomadas no capítulo 7. Nesses dois textos,
Freud diferencia o surgimento de qualidades sensoriais – o que resultaria da operação do
sistema Cc – do fato de algo ser percebido conscientemente. Para algo ser conscientemente
percebido, seria preciso que o mecanismo da atenção do Eu (Projeto) ou do Prcc (capítulo
7) focalizasse os signos de qualidade produzidos pelo sistema responsável pela consciência.
Portanto, haveria a possibilidade de que as percepções, mesmo que produzindo qualidade,
não fossem de fato percebidas. Essa relação entre a atenção e o surgimento da qualidade
sensorial pode ser pensada mais ou menos da mesma forma, apesar da modificação da
relação entre a percepção e a consciência ocorrida em 1923. Em “Nota sobre o bloco
mágico” (1925[1924]), embora não fale explicitamente em um mecanismo da “atenção”,
Freud dá indicações de que essa hipótese ou algo muito semelhante continua sendo
pressuposto na teoria:
“Tenho suposto que inervações de ocupação são enviadas e recolhidas
novamente em golpes periódicos rápidos desde o interior até o sistema P-
212
Cc, que é completamente permeável. Enquanto o sistema permanece
ocupado desse modo, recebe as percepções acompanhadas de consciência
e transmite a excitação até os sistemas mnêmicos inconscientes; assim que
a ocupação é retirada, a consciência se extingue, e a operação do sistema é
suspensa. Seria como se o inconsciente, por meio do sistema P-Cc,
estendesse ao encontro do mundo exterior umas antenas e as retirasse
rapidamente depois que estas tiraram amostras de suas excitações.
47
No texto de 1925, “A negação”, Freud retoma essa hipótese, mas especificando que
a ocupação inconsciente parte do eu. Ele diz:
“(...) de acordo com nossa suposição, a percepção não é um processo
puramente passivo, uma vez que o eu envia de maneira periódica ao
sistema de percepção pequenos volumes de ocupação por meio dos quais
toma amostras dos estímulos externos, para voltar a se retirar após cada
um desses avanços tateantes
.
48
A consciência de uma percepção continua dependendo de que algo produzido no
sistema P-Cc seja alvo de uma ocupação que parte do interior do aparelho, isto é, continua
havendo algo como um mecanismo da “atenção” pressuposto na teoria. Portanto, apesar da
união dos sistemas P e Cc, a hipótese de que o surgimento de qualidades sensoriais não
implica necessariamente a consciência dessas qualidades parece estar sendo mantida.
No capítulo 7, Freud formulara a hipótese de que, no sonho, haveria primeiro um
processo em sentido progressivo (do Icc até o Prcc); em seguida, ocorreria um processo
regressivo (do Prcc até P); e, em uma última etapa, de novo um processo progressivo, que
corresponderia à elaboração secundária (de P até Cc). Com a identificação entre P e Cc, o
processo do sonho teria que ser pensado de forma diferente. Não parece mais haver
necessidade de um processo em sentido regressivo, tal como na primeira tópica. A
regressão tópica, aliás, não pode mais ser representada na segunda tópica, uma vez que o
aparelho não possui mais aquela estrutura linear e uma direção preferencial para o curso
47
AE, vol.19, p.247; SA, vol.3, p.369.
48
AE, vol.19, p.256; SA, vol.3, p.376.
213
dos processos. Além disso, a elaboração secundária teria que ser explicada de uma outra
forma. Contudo, Freud não desenvolve nem explicita essas questões.
Uma última questão que ainda temos que tratar nesse capítulo refere-se ao além do
princípio do prazer que Freud propusera em 1920. Como o conceito de compulsão à
repetição e de princípio do prazer são inseridos na nova tópica proposta por Freud?
2.4) A segunda tópica e a compulsão à repetição
É curioso o fato de Freud não mencionar nem uma vez sequer o conceito de
compulsão à repetição em “O Eu e o Isso”. Ficamos esperando que ele esclareça como esse
conceito se encaixa no esquema da segunda tópica, mas nada nos é dito a respeito. Tudo se
passa, em “O Eu e o Isso”, como se Freud nunca tivesse proposto a existência de um
“além” do princípio do prazer. Nesse texto, Freud volta a mencionar o princípio do prazer
como o princípio que governa de forma soberana o processo primário, que, agora,
corresponde ao Isso. Ele afirma, na segunda parte do texto em questão, que o princípio do
prazer impera irrestritamente no Isso e que o eu se empenha em substituí-lo pelo princípio
de realidade. Ficamos com a impressão de que as hipóteses do capítulo 7 e dos artigos
metapsicológicos estão sendo retomadas: haveria um funcionamento primário governado
pelo princípio do prazer e, a partir de certo momento, surgiria um segundo nível de
funcionamento, o qual seria regido pelo princípio de realidade. A diferença seria apenas
que agora Freud não fala mais nos sistemas inconsciente e pré-consciente, mas em Isso e
Eu.
Mas será que Freud abandonou, já em 1923, a suposição de que haveria um
funcionamento regido pela compulsão à repetição que antecederia o princípio do prazer?
Será que Freud está falando em princípio do prazer, em “O Eu e o Isso”, exatamente no
mesmo sentido atribuído a esse conceito no capítulo 7 e nos artigos metapsicológicos?
Lembremos que, nesses dois momentos anteriores, Freud pensava em um funcionamento
regido pelo princípio do prazer como aquele que não podia incluir entre suas associações
representações que produzissem desprazer. Será que é nesse sentido que Freud está
pensando o princípio do prazer ao dizer que este princípio governa irrestritamente o Isso?
Ou será que ele está pensando em “princípio do prazer” em um sentido mais amplo,
214
identificando-o com o princípio de inércia tal como este fora concebido no “Projeto...”, isto
é, como um funcionamento onde a quantidade estaria em estado livre e fluiria pelos
caminhos melhor facilitados, produzindo uma descarga imediata pela via mais direta
possível? Se fosse nesse segundo sentido que a noção de princípio de prazer estivesse sendo
usada, não poderíamos dizer que Freud teria abandonado a idéia de que haveria um
funcionamento que estaria para além do “princípio do prazer”, tal como este fora pensado
no capítulo 7 e em 1915.
Embora Freud não seja totalmente explícito a esse respeito, algumas de suas
afirmações sobre o princípio do prazer parecem sugerir que esse princípio não está sendo
pensado no mesmo sentido do capítulo 7 e de 1915. Por exemplo, na seguinte passagem de
“O Eu e o Isso”, ele afirma:
“as pulsões eróticas nos parecem em geral mais plásticas, desviáveis e
deslocáveis que as pulsões de destruição. E, a partir disso, pode-se
continuar dizendo que esta libido deslocável trabalha a serviço do
princípio do prazer a fim de evitar estase e facilitar descargas. Nisto é
inegável certa indiferença quanto ao caminho pelo qual ocorra a descarga,
desde que ocorra. Tomamos conhecimento deste traço como característico
dos processos de ocupação no isso.”
49
Em “O problema econômico do masoquismo”, texto publicado, em 1924, Freud
esclarece que, em “O Eu e o Isso”, estava identificando princípio de prazer a princípio de
nirvana e que tal identificação não pode ser mantida. Ele afirma:
“identificamos apressadamente o princípio do prazer-desprazer com este
princípio de Nirvana. Se fossem idênticos, todo desprazer deveria
coincidir com uma elevação, e todo prazer com uma diminuição da tensão
de estímulo presente no psíquico; o princípio de Nirvana (e o princípio de
prazer, supostamente idêntico a ele) estaria por completo a serviço das
pulsões de morte, cuja meta é conduzir a inquietude da vida à estabilidade
49
AE, vol.19, p.45;SA, vol.3, p.311.
215
do inorgânico, e teria por função alertar contra as exigências da pulsão de
vida (...) Pois bem; esta concepção não pode ser correta (...)”
50
Freud argumenta que essa identificação não pode ser correta, pois é indubitável que
existem tensões prazerosas e distensões desprazerosas. Talvez as sensações de prazer e
desprazer surjam como resultado do ritmo, do ciclo temporal, da quantidade de estímulo,
hipótese essa que já havia sido apresentada em 1920. Freud estabelece, então, que o
princípio do prazer e o princípio de Nirvana são duas coisas diferentes e que o primeiro
consiste em uma modificação do segundo. O princípio de Nirvana estaria diretamente a
serviço da pulsão de morte, e a sua modificação em princípio do prazer talvez tenha surgido
como conseqüência da perturbação produzida pela pulsão de vida:
“De qualquer forma, deveríamos nos precaver de que o princípio de
Nirvana, súdito da pulsão de morte, tenha experimentado no ser vivo uma
modificação pela qual tornou-se princípio do prazer; e, daqui em diante,
teríamos que evitar considerar esses dois princípios como um só. Se
seguirmos essa reflexão, não será difícil deduzir o poder do qual partiu
essa modificação. Só pode ser da pulsão de vida (...) Assim, obtemos uma
pequena, mas interessante, série de interdependências: o princípio de
“Nirvana” expressa a tendência da pulsão de morte; o princípio do
“prazer” representa a exigência da libido, e sua modificação, o princípio
de “realidade”, o influxo do mundo exterior.”
51
Haveria um princípio originário – o princípio de Nirvana – que estaria diretamente a
serviço das pulsões de morte. A pulsão de vida imporia uma modificação a esse princípio,
fazendo surgir o princípio do prazer, e o mundo externo imporia ainda uma segunda
modificação, dando origem ao princípio de realidade. Freud esclarece, em seguida, que
nenhum desses princípios é totalmente destituído pelos outros. Todos continuam ativos, às
vezes de forma pacífica, às vezes de forma conflitiva. Essas afirmações indicam que Freud
não abandonou a hipótese de que haveria um funcionamento que antecederia aquele regido
50
AE,vol.19, p.165;SA, vol.3, p. 343.
51
AE, vol.19, p.166;SA,vol.3, p.344.
216
pelo princípio do prazer e podemos inferir que quando ele afirma, em “O Eu e o Isso”, que
o princípio do prazer rege irrestritamente o Isso, não quer dizer que tenha abandonado suas
hipótese de 1920, mas apenas que ele está identificando aí princípio do prazer com
princípio de Nirvana; em outras palavras, ele estaria usando o conceito de princípio de
prazer em um sentido mais amplo, não totalmente correto, como acaba reconhecendo em
“O problema econômico do masoquismo”. Esse esclarecimento de Freud, em 1924, parece
tornar compreensível, então, o fato dele não mais mencionar a compulsão à repetição no
texto “O Eu e o Isso” e voltar a falar do princípio do prazer como imperando de forma
soberana no Isso. Se o princípio do prazer estava sendo identificado com o princípio de
Nirvana, então o Isso seria, em sua origem, governado por este princípio e, em um segundo
momento, entraria em ação também um segundo princípio regulador, o princípio do prazer.
O estabelecimento da terceira modificação, do princípio de realidade, marcaria o
surgimento da diferenciação entre o Isso e o Eu.
No texto “A perda de realidade na neurose e na psicose” (1924), Freud se refere a
essa parte do Isso regida pelo princípio do prazer como consistindo em um “mundo de
fantasia, um âmbito que, em certo momento, foi segregado do mundo exterior real pela
instauração do princípio de realidade e que, desde então, ficou liberado, como uma
“reserva”, das reivindicações da necessidade da vida (...)”
52
Essa parte do Isso regida pelo
princípio do prazer – esse mundo de fantasia – , funcionaria, pelo que parece, como o
sistema inconsciente da primeira tópica, ou seja, consistiria em processos dos quais
estariam excluídas todas as representações capazes de produzir desprazer.
Em 1924, Freud não menciona o conceito de “compulsão à repetição”. Contudo,
esse conceito reaparece – exatamente da forma como havia sido pensado em 1920 – na 32
a
das “Novas conferências de introdução à psicanálise” (1932), onde é feita uma
recapitulação da doutrina das pulsões. A retomada do conceito de compulsão à repetição
nesta conferência e o esclarecimento de Freud em “O problema econômico do
masoquismo” a respeito da relação entre o princípio de Nirvana e o princípio do prazer
indicam que a hipótese de que haveria um funcionamento originário repetitivo, que
antecederia a vigência do princípio do prazer, não foi, de forma alguma, abandonada.
Tendo em vista as hipóteses apresentadas por Freud em 1924, esse funcionamento seria o
217
originário e, a partir de certo momento, dividiria o governo do Isso com o que Freud chama
de princípio de prazer. O funcionamento originário, regido apenas pelo princípio de
Nirvana, seria aquele que estaria “para além” do princípio do prazer. Nele, a compulsão à
repetição se manifestaria em estado puro. Em um segundo momento, sob a influência das
pulsões de vida, o princípio do prazer entraria em ação. A partir de então, coexistiriam no
Isso dois tipos de funcionamentos: um guiado exclusivamente pelo princípio de nirvana –
que se caracterizaria por uma compulsão à repetição – e outro guiado pelo princípio do
prazer.
Lembremos que, em 1920, Freud diz que a vigência do princípio do prazer teria
como pré-condição a ligação da excitação. Mas, se o Isso corresponde ao processo primário
e se o Isso em parte é regido pelo princípio do prazer, então, deve haver algo de errado. Ou
o processo primário não implicaria excitação em estado livre, ou o princípio do prazer não
tem como condição a ligação, ou por “ligação” Freud está entendendo outra coisa. De fato,
Freud não nos fornece nenhuma pista a esse respeito e a relação do “além do princípio do
prazer” com a nova estrutura do aparelho permanece bastante indefinida. Para complicar
ainda mais as coisas, no “Esboço de psicanálise” (1938), Freud volta a identificar princípio
do prazer e princípio de nirvana, ou seja, ele volta a fazer o que havia julgado incorreto em
1924. É curioso que, em 1938, no momento em que Freud faz uma síntese final dos pontos
principais de sua teoria, o conceito de “compulsão à repetição” não seja mencionado nem
uma vez sequer, embora Freud se refira à natureza regressiva das pulsões.
PPP
Percebemos que, a partir da reformulação da teoria das pulsões em “Além do
princípio do prazer”, Freud passa a conceder uma atenção maior ao ponto de vista
quantitativo, apesar de que muitas questões relativas principalmente à compulsão à
repetição e ao processo de ligação da excitação permaneçam bastante indefinidas. No texto
“Análise terminável e interminável”, de 1937, Freud manifesta seu reconhecimento dessa
lacuna que permanece em sua teoria.
52
AE, vol.19, p.197; SA, vol.3, p.360
218
Nesse texto de 1937, Freud ressalta o papel essencial da metapsicologia – e, em
especial do fator quantitativo – para a compreensão dos processos psíquicos. Ele se
pergunta se é possível tramitar de maneira duradoura um conflito pulsional e acaba por
concluir que essa questão não pode ser solucionada sem se recorrer à “bruxa
metapsicologia”. Esta representaria, para a psicanálise, a reflexão teórica sem a qual
nenhuma ciência pode-se desenvolver. Diante da impossibilidade de responder a essa
questão a partir dos dados fornecidos pela experiência, é preciso voltar-se para a
metapsicologia, para verificar se, teoricamente, é possível conceber uma tramitação total do
conflito, ou seja, um ligamento total da excitação envolvida no conflito pulsional. Freud
observa, então, que o fator decisivo, nesse caso, é a intensidade das pulsões e ressalta a
importância de se levar em conta o fator quantitativo para a compreensão dos processos
psíquicos. O ponto de vista econômico, diz ele, não recebeu, ao longo de sua obra, a mesma
atenção que o dinâmico e o tópico. É necessário, portanto, um aprofundamento da
consideração do aspecto quantitativo, pois este é essencial para a compreensão dos
processos psíquicos e, inclusive, para o esclarecimento de questões clínicas, tais como as
que são tratadas em “Análise terminável e interminável”. Freud mostra ter chegado ao fim
de sua obra com a certeza de que a psicanálise não pode prescindir da referência à
metapsicologia e de que dentro desta é preciso dar maior atenção ao aspecto quantitativo, o
qual segundo ele teria ficado em segundo plano no desenvolvimento da teoria
metapsicológica. Todas essas questões convergem para esse texto que pode ser considerado
o derradeiro testamento intelectual de Freud, que é o “Esboço de psicanálise”, com o qual é
possível arrematar essa análise do percurso da metapsicologia.
219
3. O “Esboço de psicanálise”
Na última apresentação sintética de sua obra – que foi escrita em 1938, mas
publicada postumamente, em 1940, com o nome de “Esboço de Psicanálise” –, Freud
não apenas retoma os pontos principais de sua teoria, mas também revê e modifica
algumas hipóteses que haviam sido antes estabelecidas. Algumas das idéias expostas
por Freud nesse texto mostram-se relevantes para a compreensão das questões aqui
tratadas e serão discutidas na seqüência.
Freud inicia a primeira parte do “Esboço de psicanálise” (1938) afirmando que a
psicanálise possui uma “premissa fundamental”: a hipótese do aparelho psíquico. Da
nossa vida psíquica, diz ele, conhecemos de forma direta, por um lado, o sistema
nervoso, que é o órgão corporal e cenário material da vida psíquica e, por outro lado, os
atos de consciência, que nos são dados imediatamente. Ao que está entre ambos – entre
a anatomia do sistema nervoso e a consciência – não possuímos acesso direto, e é nessa
lacuna que se encaixa a hipótese de um aparelho psíquico. A psicanálise postula que há
processos que transcorrem nesse órgão corporal da mente que, de alguma forma,
produzem nossas experiências conscientes. Mas não apenas elas, pois a maior parte
desse aparelho opera de forma inconsciente. A hipótese do inconsciente consiste, diz
Freud, no segundo postulado fundamental da psicanálise.
Nenhuma das duas coisas às quais temos acesso direto – a anatomia do sistema
nervoso e os dados da consciência – possibilitariam sozinhas a compreensão da vida
mental. Tentar simplesmente relacioná-las também já se revelou infrutífero, como
argumentara Freud, já em 1891, em sua crítica ao localizacionismo. É justamente essa
recusa do localizacionismo que Freud retoma agora no início do “Esboço de
psicanálise”: ele argumenta que, como de nada adianta tentar relacionar os atos de
consciência com a anatomia do sistema nervoso – o que no máximo nos forneceria uma
localização precisa dos fenômenos da consciência que não auxiliaria em nada na
compreensão do psíquico –, a psicanálise insere entre ambos a hipótese do aparelho
psíquico. Como vimos, esse fora o ponto de partida da teorização freudiana: foi
justamente essa recusa das localizações cerebrais que o levou a introduzir a hipótese do
“aparelho de linguagem” em “Sobre a concepção das afasias”, precursor do aparelho
psíquico que aparece em “A interpretação dos sonhos”.
Desde “Sobre a concepção das afasias”, estava pressuposto que a formulação de
uma teoria sobre o aparelho de linguagem prescindia de referência necessária à
220
anatomia. Contudo, apenas em “A interpretação dos sonhos”, foi deixada de lado a
tentativa de estabelecer uma correspondência anatômica, mesmo que geral, para o
aparelho. É claro que isso nunca implicou na suposição de que o aparelho não possuísse
uma base anatômica, pois Freud sempre reconheceu que ela existia. Mas, ao contrário
da referência à anatomia, da consciência não se pode abrir mão: mesmo que lacunar e
determinada por fatores desconhecidos, ela é o ponto de partida de qualquer tipo de
conhecimento sobre a mente e sobre o mundo. Como qualquer outra ciência, a
psicanálise parte dos dados fornecidos pela consciência, mas, ao contrário das demais
psicologias ao menos, ela se singulariza pela forma como a concebe. Para a psicanálise,
a consciência corresponderia a uma pequena parte do psíquico, que é determinada pelo
restante do mesmo, isto é, pelos processos psíquicos inconscientes. A hipótese de um
psíquico inconsciente é, então, a segunda das suposições fundamentais da psicanálise,
como argumenta Freud. Partindo dos dados fornecidos pela consciência e de posse da
suposição de que há processos inconscientes, a psicanálise busca construir sua teoria
sobre o aparelho psíquico. Este aparelho faria, então, a intermediação entre as duas
únicas coisas às quais se tem acesso direto: a anatomia do sistema nervoso e a
experiência consciente.
No “Esboço...”, Freud mais uma vez justifica a hipótese de um psíquico
inconsciente. Ele argumenta:
“Muitos, situados tanto dentro como fora da ciência, se conformam
em adotar o suposto de que a consciência é, só ela, o psíquico, e então,
não resta a fazer, na psicologia, nada mais que distinguir, no interior
da fenomenologia psíquica, entre percepções, sentimentos, processos
cognitivos e atos de vontade. Contudo, há acordo geral de que esses
processos conscientes não formam séries sem lacunas, fechadas em si
mesmas, de modo que não haveria outra alternativa a não ser adotar a
suposição de uns processos físicos ou somáticos, concomitantes do
psíquico, aos quais parece ser preciso atribuir uma perfeição maior do
que às séries psíquicas, pois alguns deles têm processos conscientes
paralelos e outros não. Isto sugere, de uma maneira natural, pôr o
acento na psicologia sobre esses processos somáticos, reconhecer
221
neles o psíquico genuíno e buscar uma apreciação diversa para os
processos conscientes.”
1
A psicanálise não apenas postula a existência desses processos somáticos, que
constituem o psíquico inconsciente, como os considera o “psíquico genuíno”. Essa
passagem, já mencionada em outras ocasiões, parece ser uma das mais claras a respeito
de como Freud concebe a natureza do psíquico inconsciente. Essa concepção acerca do
inconsciente aparece pela primeira vez no “Projeto de uma psicologia” e, como
argumentamos em diversos momentos ao longo desse trabalho, é mantida por toda a
obra. Agora, nessa síntese final de sua teoria, Freud se preocupa em deixar claro, talvez
até mais do que em qualquer outro momento, o que é que ele entende por psíquico
inconsciente: trata-se de processos somáticos (nervosos) alguns dos quais podem ser
acompanhados de consciência.
Na oitava parte do “Esboço...”, Freud comenta que a tarefa da psicanálise, assim
como a da física, consiste em descobrir, por trás das propriedades do objeto investigado
que nos é dada por nossa percepção, suas outras propriedades. A psicanálise busca
preencher as lacunas dos fenômenos da consciência, inferindo certo número de
processos que em si são indiscerníveis:
“Achamos o recurso técnico para preencher as lacunas de nossos
fenômenos da consciência, e dele nos valemos como os físicos da
experimentação. Por este caminho, inferimos certo número de
processos, que em si e por si são “indiscerníveis”, os intercalamos
dentro dos que nos são conscientes e quando dizemos, por exemplo:
“Aqui interveio uma recordação inconsciente”, isto quer dizer: “Aqui
ocorreu algo completamente inapreensível a nós, mas que, se tivesse
nos chegado à consciência, só teríamos podido descrevê-lo assim e
assim.”
2
Como ressalta Freud, são esses processos inconscientes que a psicanálise postula
que permitem configurá-la como uma ciência natural tal como as outras:
1
AE, vol.23, p.155.
2
AE, vo.23, p.198.
222
“ Enquanto a psicologia da consciência nunca saiu daquelas séries
lacunares, que evidentemente dependem de outra coisa, a concepção
segundo a qual o psíquico é em si inconsciente permite configurar a
psicologia como uma ciência natural entre as outras. Os processos de
que se ocupa são em si tão indiscerníveis como os de outras ciências,
químicas ou físicas, mas é possível estabelecer as leis a que
obedecem, perseguir seu vínculos recíprocos e suas relações de
dependência, sem deixar lacunas por longos trechos – ou seja, o que se
designa como entendimento do âmbito dos fenômenos naturais em
questão.”
3
Nessa passagem, Freud mais uma vez argumenta que a psicanálise é uma ciência
natural, que pode ser colocada ao lado das demais, como a química e a física. Ao longo
de toda a sua obra, ele insistiu nisso: os conceitos metapsicológicos são construções
auxiliares que devem ser aperfeiçoados à medida que a investigação científica evolua.
Mas não é apenas que os conceitos psicológicos devam ser aperfeiçoados: várias vezes
Freud manifesta sua esperança de que um dia eles possam ser substituídos por conceitos
físicos ou químicos. O seguinte comentário de Freud revela sua esperança de que não
apenas a teoria metapsicológica um dia fosse substituída por uma teoria neurológica,
mas também que a técnica psicanalítica pudesse se tornar desnecessária. Após
reconhecer, na segunda parte do “Esboço...” , que não há garantia de obter êxito no
tratamento das neuroses a partir da intervenção psicanalítica, Freud diz:
“Aqueles que seguiram nossas considerações só por interesse
terapêutico talvez nos dêem as costas com menosprezo após essa
nossa confissão. Mas a terapia nos ocupa aqui unicamente na medida
em que ela trabalha com meios psicológicos; no momento não temos
outros. Talvez o futuro nos ensine a influir de forma direta, por meio
de substâncias químicas específicas, sobre os volumes de energia e
suas distribuições dentro do aparelho psíquico.”
4
3
AE, vol. 23, p.156.
4
AE, vol.23, p.182.
223
O aparelho psíquico descreve processos nervosos, utilizando-se, talvez
provisoriamente, de termos psicológicos; a terapia consegue, por meio da linguagem,
desvendar nexos, liberar repressões e produzir, às vezes, o alívio dos sintomas. Essa era
a psicanálise possível na época de Freud, mas ele parece ter tido sempre a esperança de
que um dia fosse possível descrever em termos neurológicos o funcionamento do
aparelho psíquico e intervir por meio de substâncias químicas diretamente sobre esse
funcionamento, sem que fosse preciso o lento, tortuoso e incerto trabalho da análise. A
questão aqui não é saber se um dia seria possível de fato substituir a terapia
psicanalítica por uma terapia farmacológica, mas sim discutir quais seriam as
implicações do próprio fato de Freud considerar essa possibilidade. Se Freud concebe a
possibilidade de se intervir sobre os processos psicológicos a partir de “substâncias
químicas”, isso deixa claro que ele concebe tais processos como consistindo em
processos físicos. Este pode ser, portanto, um argumento adicional para mostrar que
Freud manteve sua opinião sobre a natureza física dos processos psíquicos
inconscientes.
PPP
Na segunda parte do “Esboço de psicanálise”, Freud retoma a hipótese do novo
dualismo pulsional, mas agora ele recusa algo que até então havia sido sustentado: o
caráter regressivo das pulsões de vida. Lembremos que o primeiro passo de Freud, em
“Além do princípio do prazer”, fora argumentar que havia justificativa para se supor um
funcionamento psíquico que não fosse regido pelo princípio do prazer, mas sim pela
compulsão à repetição. Em seguida, ele concluíra que o funcionamento regido pela
compulsão à repetição teria a função de ligar a excitação e que, portanto, tal
funcionamento antecederia e seria condição para que o princípio do prazer se tornasse o
princípio dominante. Então, ele se perguntara pela relação existente entre a compulsão à
repetição e o pulsional, respondendo que a compulsão à repetição é uma característica
universal das pulsões. A pulsão, dissera ele, é “um esforço inerente ao orgânico vivo de
reproduzir um estado anterior; ela é a exteriorização da inércia na vida orgânica”. Seria
preciso, portanto, reconhecer que a pulsão é a expressão da natureza conservadora do
ser vivo. O passo seguinte fora esclarecer qual seria o estado originário ao qual a pulsão
aspiraria regressar: o estado de ausência total de estimulação. Assim, Freud chegara à
noção de pulsão de morte. Mas deveria haver também, argumentara ele, um outro tipo
224
de pulsão que se opusesse à pulsão de morte: deveria haver também pulsões de vida.
Mas, se a compulsão à repetição fosse uma característica universal das pulsões, as
pulsões de vida também buscariam retomar um estado anterior. Qual seria esse estado
originário ao qual elas aspirariam regressar? Freud não encontrara uma resposta
satisfatória para essa pergunta, embora tenha reconhecido qual é o caminho a que suas
hipóteses levam: o estado visado em última instância pela pulsão de vida deve ser tão
originário quanto aquele visado pela pulsão de morte; portanto, seria preciso supor que
o estado inorgânico, que antecedeu o surgimento da vida, fosse também um estado de
ausência de divisão, uma vez que as pulsões de vida visariam produzir o contato entre
dois corpos. Mas Freud não encontrara nada que justificasse essa suposição e deixara
em aberto a pergunta pelo estado originário que a pulsão de vida buscaria restabelecer.
Mesmo assim, ele mantivera a hipótese de que as pulsões de vida, assim como as de
morte, possuiriam uma natureza conservadora.
No “Esboço de psicanálise”, Freud recusa a possibilidade de atribuir esse caráter
conservador também para as pulsões de vida. Na segunda parte do texto, de início, ele
retoma a hipótese sustentada em “Além do princípio do prazer” de que toda pulsão seria
de natureza conservadora. Ele afirma:
“Chamamos “pulsões” às forças que supomos por trás das tensões de
necessidade do isso. Representam as requisições que o corpo faz à
vida psíquica. Ainda que causa última de toda atividade, são de
natureza conservadora; de todo estado alcançado por um ser brota um
afã de reproduzir esse estado tão logo este seja abandonado”.
5
Nessa passagem, ele está apenas reafirmando o que havia sido proposto em
1920. Contudo, logo em seguida, ele argumenta que essa natureza conservadora, na
verdade, é uma característica apenas das pulsões de morte: não seria possível atribuí-la
também às pulsões de vida, uma vez que isso implicaria em supor que a substância viva
foi dividida com o surgimento da vida e, a partir de então, passou a aspirar regressar ao
estado de unidade anterior:
5
AE, vol.23, p. 146.
225
“Se supomos que o vivo surgiu mais tarde que o inerte e foi gerado a
partir deste, a pulsão de morte responde à fórmula consignada, a saber,
que uma pulsão aspira ao regresso a um estado anterior.
Diferentemente, não podemos aplicar a Eros (ou pulsão de amor) essa
fórmula. Isso pressuporia que a substância viva foi outrora uma
unidade logo desgarrada e que agora aspira a sua reunificação”.
6
Nada correspondente a isso é conhecido na história da substância viva, diz
Freud, portanto, não há justificativa para se atribuir esse caráter conservador também às
pulsões de vida. Quais são as implicações disso para a teoria?
Se apenas as pulsões de morte aspirariam o retorno a um estado anterior, a
compulsão à repetição seria uma característica apenas das pulsões de morte e não, como
havia sido sustentado em “Além do princípio do prazer”, uma característica universal
das pulsões. Mas, se o princípio originário que regula os processo psíquicos é o de
Nirvana, isso implicaria na suposição de que a pulsão de morte antecederia o
surgimento da pulsão de vida: esta última entraria em ação apenas em uma etapa
posterior do funcionamento do aparelho. De fato, em “O problema econômico do
masoquismo” (1924), Freud parece defender essa hipótese. Nesse texto, como vimos,
ele sustenta que o princípio de Nirvana expressa a tendência da pulsão de morte,
enquanto que o princípio de prazer, que consiste em uma modificação do primeiro,
representa a exigência da libido. De acordo com isso, teria que se supor que a pulsão de
morte entra primeiro em ação, sob influxo do princípio de Nirvana, e que, apenas com o
surgimento do princípio do prazer, a pulsão de vida se manifestaria. Isso conduz à
hipótese de que a morte é o que está por trás de todos os processos psíquicos e levanta a
questão de por que a vida teria se afirmado a despeito dessa tendência originária para a
morte. As pulsões de auto-conservação, como comentamos, podem ser pensadas como
servindo às pulsões de morte e, mesmo assim, acabarem preservando a vida. O que não
se encaixa nesse esquema, à primeira vista, são as pulsões sexuais, as quais não parecem
poder ser conciliadas com a tendência à morte. Aparentemente, apenas estas se opõem à
hipótese – que se impõe em todos os momentos – de que toda pulsão é pulsão de morte,
embora um olhar mais atento talvez revele que nem elas se opõem, de fato, à morte.
6
AE, vol.23, p.147.
226
Mas Freud, apesar de recusar o caráter conservador das pulsões de vida, mantém
a hipótese de que ambas as pulsões seriam originárias. Na seguinte passagem, essa idéia
parece estar presente:
“Nós representamos um estado inicial da seguinte maneira: a íntegra
energia disponível de Eros, que a partir de agora chamaremos
“libido”, está presente no eu-isso todavia indiferenciado e serve para
neutralizar as inclinações de destruição simultaneamente presentes.
7
De fato, parece haver um impasse na teoria. Como conciliar a suposição de que
o princípio originário do aparelho é o de Nirvana, que seria expressão da pulsão de
morte, com a hipótese de que ambas as pulsões estejam presentes desde o início? Isso
parece conduzir à hipótese de que também o princípio de prazer teria que estar presente
desde a origem, pois, segundo o que Freud afirma em 1924, ele seria a expressão da
pulsão de vida. Em “Além do princípio do prazer’, Freud afirmara que, se o princípio do
prazer não estivesse presente desde a origem, ele não poderia se estabelecer em uma
etapa posterior, o que parece sugerir que ambos os princípios ( de prazer e de Nirvana)
teriam que ser igualmente originários, embora entrassem em ação em momentos
distintos do desenvolvimento do aparelho psíquico. Teríamos que pensar, então, que o
princípio do prazer e a pulsão de vida existiriam “em potência” desde a origem do
aparelho, embora se manifestassem apenas em uma etapa posterior.
Apesar dessas últimas considerações de Freud em 1938, muitas questões
permaneceram em aberto em relação ao segundo dualismo pulsional e a hipótese de que
haveria um além do princípio do prazer.
PPP
Freud retoma, no “Esboço de psicanálise”, a nova divisão do aparelho psíquico
que havia sido proposta em 1923, mas ele modifica algumas de suas hipóteses
anteriores.
Em “O Eu e o Isso”, Freud havia sustentado que a hipótese de um “sistema”
inconsciente deveria ser deixada de lado e que se passasse, então, a designar pelo termo
7
AE, vol.23, p.147.
227
inconsciente o insuscetível de consciência e, pelo termo pré-consciente, o suscetível de
consciência. O sistema inconsciente da primeira tópica (o processo primário) passou a
ser chamado de Isso e o seu vínculo com o pulsional foi explicitado. O Eu continuou
correspondendo ao processo secundário, mas Freud reconheceu que só parte dele era
suscetível de consciência, pois haveria também processos secundários insuscetíveis de
consciência. Então, todo processo do Isso seria inconsciente, e o Eu seria em parte
suscetível e em parte insuscetível de tornar-se consciente. Tendo em vista o uso que
Freud propôs dos termos pré-consciente e inconsciente em “O Eu e o Isso”, poderíamos
dizer que o Eu é em parte pré-consciente e em parte inconsciente.
No “Esboço...”, inicialmente Freud parece retomar a mesma hipótese de 1923
sobre o emprego dos termos pré-consciente e inconsciente. Ele diz:
“(...) preferimos chamar “suscetível de consciência” ou pré-consciente
a todo o inconsciente que se comporta dessa maneira – ou seja, que
pode trocar com facilidade o estado inconsciente pelo estado
consciente (...) Outros processos psíquicos, outros conteúdos, não têm
um acesso tão fácil ao tornar-se consciente (..) Para estes reservamos o
nome de “o inconsciente genuíno”.
8
Nessa passagem, as mesmas hipóteses de 1923 perecem ser retomadas, mas, em
seguida, Freud parece se contradizer ao afirmar que “nem todo pré-consciente é
suscetível de consciência”. Ele mantém a hipótese de que a linguagem seria condição
para a suscetibilidade de consciência, mas fala como se o pré-consciente fosse em parte
suscetível e em parte insuscetível de tornar-se consciente. Todo eu seria pré-consciente,
mas apenas parte desse eu – aquela conectada com as palavras – seria suscetível de
consciência. Todo o Isso – e apenas ele – seria estritamente inconsciente:
“O inconsciente é a qualidade que governa de maneira exclusiva no
interior do Isso. Isso e inconsciente se copertencem de maneira tão
íntima como eu e pré-consciente(...)”.
9
8
AE, vol.23, p.157.
9
AE, vol.23, p.160.
228
Com essa equivalência estabelecida entre inconsciente e Isso e pré-consciente e
Eu, Freud parece estar retomando o uso das noções de pré-consciente e inconsciente em
sentido sistemático, o qual havia sido abandonado desde 1923. No fim da quarta parte
do “Esboço...”, ele ressalta que o Isso corresponde ao processo primário e o Eu ao
secundário. Portanto, por um lado, haveria o inconsciente ou Isso, que corresponderia ao
processo primário e, por outro lado, haveria o pré-consciente ou Eu, que corresponderia
ao processo secundário. O que haveria de diferente em relação à primeira tópica, além
dos novos nomes e da introdução do Supereu seria o reconhecimento de que apenas
parte do processo secundário é suscetível de consciência e também o abandono da
hipótese introduzida em 1915 de que é a palavra que instaura o processo secundário.
Voltaremos a essa última questão mais adiante.
Em suma, podemos dizer que Freud faz dois usos diferentes dos conceitos de
pré-consciente e inconsciente. Em um deles, que é introduzido em 1923 e parece ser
mantido nas “Novas conferências de introdução à psicanálise”, a acepção sistemática
desses conceitos é deixada de lado e eles passam a designar apenas suscetibilidade ou
insuscetibilidade de consciência. De acordo com isso, o Isso corresponderia ao processo
primário e seria inconsciente, enquanto o Eu corresponderia ao processo secundário e
seria em parte pré-consciente e em parte inconsciente. No “Esboço de psicanálise”,
Freud usa os termos em questão de outra maneira: o inconsciente passa a ser equivalente
ao Isso e a corresponder ao processo primário; enquanto que o pré-consciente seria
equivalente ao Eu e corresponderia ao processo secundário. Conforme essa formulação,
nem todo pré-consciente seria suscetível de consciência. Com exceção dessa última
hipótese – a qual não é explicitada na primeira tópica – essa segunda versão parece
resgatar as idéias da primeira tópica.
Uma vez que o “Esboço...” é o lugar em que Freud se refere pela última vez a
essas questões, não podemos afirmar nada de conclusivo a respeito. Em outros
momentos da sua obra, nós o vemos empregar um conceito de uma forma diferente do
que há pouco havia sido utilizado e, em uma ocasião subseqüente, se justificar dizendo
que estava fazendo um uso impreciso do conceito em questão. Não podemos esquecer
também que se trata de um texto inacabado, publicado postumamente, assim como o
“Projeto...”. O que fica estabelecido, sem nenhuma ambigüidade é que, nessa última
etapa de sua obra, Freud reconhece que há processos secundários que não podem se
tornar conscientes e que, portanto, o campo do psíquico insuscetível de consciência é
mais amplo do que se havia pensado na primeira tópica, isto é, este campo contém mais
229
do que o processo primário ou o sistema inconsciente. Também a dependência do
processo secundário em relação à palavra é recusada.
PPP
Em “O Eu e o Isso”, Freud mantivera a hipótese de que seria o enlace com
representações-palavra que tornaria um processo pré-consciente. Ele admitira que nem
toda rememoração dependeria de palavras, mas mantivera a hipótese de que seria a
palavra que tornaria uma representação pré-consciente. Comentamos que parecia haver
uma contradição nessas suposições, pois, nesse texto de 1923, o termo pré-consciente
era usado para designar a suscetibilidade de consciência e, embora Freud reconhecesse
que a rememoração – isto é, a suscetibilidade de consciência – não dependia
exclusivamente de palavras, ele não abandonara a hipótese de que são estas que
tornariam um processo pré-consciente.
Como acabamos de comentar, no “Esboço de psicanálise”, Freud atribui outro
sentido ao termo pré-consciente. Este volta a ser usado como sinônimo de processo
secundário. Ele argumenta também, agora, que apenas parte do pré-consciente está
ligada à representações-palavra:
“O interior do eu, que abarca sobretudo os processos cognitivos, tem a
qualidade do pré-consciente. Esta qualidade é característica do eu,
corresponde só a ele. Contudo, não seria correto fazer da conexão com
os restos mnêmicos da linguagem a condição do estado pré-
consciente: ao contrário, esta é independente daquela, ainda que a
presença dessa conexão permita inferir com certeza a natureza pré-
consciente do processo. Não obstante, o estado pré-consciente,
singularizado, por uma parte, pelo seu acesso à consciência e, por
outro, pelo seu enlace com restos de linguagem, é algo particular, cuja
natureza esses dois caracteres não esgotam.”
10
Tendo em vista o uso do termo pré-consciente no “Esboço...”, podemos inferir
dessas afirmações de Freud que ele está propondo que o processo secundário não
10
AE, vol.23, p.160.
230
dependa das representações-palavra: apenas parte do processo secundário possui
conexão com essas representações. Com isso, Freud confirma a suposição que
levantamos, ao comentar o texto “O Eu e o Isso”, de que aí, embora não o afirmasse
explicitamente, Freud deixara de pensar o processo secundário como algo que surge
como resultado da constituição da representações-palavra e voltara a pensá-lo de forma
semelhante ao “Projeto...”, onde o estabelecimento do processo secundário é
independente e precede a constituição das palavras. A mesma posição parece estar
sendo defendido no “Esboço...”: o estabelecimento do processo secundário não
dependeria da constituição das palavras e apenas parte desse processo – aquela que está
conectada com os restos mnêmicos da linguagem – seria suscetível de se tornar
consciente. Freud não desvincula suscetibilidade de consciência e associação com a
linguagem, mas apenas processo secundário e suscetibilidade de consciência, mas fica
estabelecido que o processo secundário – o estado ligado da excitação – não surge como
conseqüência da constituição das representações-palavra, como havia sido sustentado
nos artigos metapsicológicos de 1915.
Considerações finais:
Em “Além do princípio do prazer”, Freud propõe que há um funcionamento que
antecede a regulação exclusiva pelo princípio do prazer. Argumentamos que esse
funcionamento apenas está para “além” do princípio do prazer tal como este é pensado
no capítulo 7 e nos artigos metapsicológicos. A hipótese de um funcionamento
repetitivo, que não poderia ser evitado até que ocorresse a ligação da quantidade, já
estava presente no “Projeto de uma psicologia”; contudo, esta hipótese havia sido
deixada de lado a partir do capítulo7 e só é retomada em 1920. Mas, embora Freud
estabeleça que o princípio do prazer só se torna dominante após a ligação da excitação,
ele mantém a hipótese de que ele está em ação já no processo primário. Em “O Eu e o
Isso”, o conceito de compulsão à repetição não é explicitamente retomado; Freud afirma
que o princípio do prazer governa sem restrições o Isso. Em 1924, no texto “O problema
econômico do masoquismo”, ele esclarece que estava identificando o princípio do
prazer ao princípio de Nirvana e que tal identificação não é correta. O princípio
originário que governa o aparelho seria o de Nirvana – o qual estaria diretamente a
serviço da pulsão de morte. O princípio do prazer seria uma modificação do princípio de
231
Nirvana, decorrente da perturbação produzida pelas pulsões de vida, e haveria ainda o
princípio de realidade, que entraria em ação devido à necessidade de levar em
consideração as exigências do mundo externo. Mas, se o princípio do prazer é uma
modificação do princípio de Nirvana, ele não pode ser tão originário quanto este último.
Em 1924, Freud estabelece, então, uma relação bastante clara entre os princípios: o
princípio de Nirvana seria o originário e estaria a serviço da pulsão de morte; o
princípio do prazer entraria em jogo a partir da emergência das pulsões de vida, em uma
etapa posterior; e, por último, o princípio de realidade entraria em ação diante da
necessidade de levar em consideração as exigências do mundo externo. Este último
consistiria em uma modificação do princípio do prazer, da mesma forma como o
princípio do prazer consistiria em uma modificação do princípio de Nirvana. O
surgimento de um novo princípio regulador não implicaria no desaparecimento dos
antecedentes, de modo que todos coexistiriam. Essa relação estabelecida por Freud
entre os vários princípios propostos e as pulsões parece implicar na antecedência da
pulsão de morte em relação à pulsão de vida. A pulsão de morte parece a mais
fundamental.
O fato de Freud recusar, em 1938, o caráter regressivo da pulsão de vida parece
reafirmar a antecedência da pulsão de morte e deixar claro que não há uma simetria
entre as duas classes de pulsões, pois o funcionamento originário repetitivo seria
expressão unicamente da pulsão de morte. Esta idéia está totalmente de acordo com as
idéias apresentadas em 1924 que acabamos de comentar. Contudo, Freud volta a dizer
também, em 1938, que ambas as classes de pulsões são originárias, de modo que
permanece essa contradição na teoria. Argumentamos que uma saída seria supor, como
defende Freud em 1920, que algo pode estar presente em potência desde o início,
embora só entre de fato em ação em uma etapa posterior. Argumentamos também que a
todo momento ficamos com a impressão de que a pulsão de morte está por trás de todos
os fenômenos vitais. Mesmo as pulsões sexuais parecem poder ser pensadas como
estando, em última instância, à serviço da morte. Freud, no entanto, insiste em manter a
hipótese do novo dualismo pulsional.
Em “O Eu e o Isso”, Freud abandona a hipótese de “sistema” inconsciente e pré-
consciente, ao expandir o campo do psíquico insuscetível de consciência para além do
processo primário. Observamos que, de certa forma, desde a primeira tópica já era
possível inferir que parte do processo secundário permaneceria insuscetível de
consciência. Em 1923, a instância Isso passa a corresponder ao processo primário, e o
232
Eu e o Supereu ao processo secundário, mas este último deixa de ser pensado como
sendo necessariamente suscetível de consciência. Além disso, é abandonada a hipótese
introduzida em 1915, segundo a qual a palavra instauraria o processo secundário. Esse
processo volta a ser pensado de maneira semelhante ao “Projeto...”, isto é, como
antecedendo e sendo independente das representações-palavra.
Em 1920, Freud havia afirmado que o princípio do prazer entraria em ação após
a ligação da quantidade. Com a reformulação da tópica, o Isso passa a corresponder ao
processo primário; portanto, nele a excitação se encontraria em estado livre. Contudo,
Freud afirma que uma parte do Isso seria regida de forma dominante pelo princípio do
prazer, o que implica que o domínio deste último não tenha como condição a ligação da
excitação, como parecia ser o caso. Segundo Freud, a entrada em vigor do princípio de
realidade marcaria a diferenciação entre o Isso e o Eu, de forma que os dois princípios
estariam em ação no Isso: o de Nirvana e o de prazer. De acordo com isso, parece que
apenas o princípio de realidade teria como condição a ligação da excitação; a hipótese,
apresentada em 1920, de que tal ligação seria condição para que o princípio do prazer se
tornasse dominante parece não fazer sentido se levarmos em conta a afirmação de Freud
de que o princípio do prazer governa de forma dominante em uma parte do Isso. Essa é
outra questão que permanece em aberto. De qualquer maneira, Freud mantém a idéia de
que haveria um funcionamento que antecederia aquele regido pelo princípio do prazer, o
qual estaria diretamente a serviço da pulsão de morte e se caracterizaria por uma
compulsão à repetição.
PPP
A indefinição quanto à relação entre a memória, a percepção e a consciência,
que está presente nos artigos metapsicológicos de 1915, desaparece em 1920. Em
“Além do princípio do prazer” e em “O Eu e o Isso”, Freud identifica claramente o
órgão responsável pela recepção dos estímulos externos (P) com aquele responsável
pela produção de qualidades sensoriais (Cc) e afirma a precedência da percepção-
consciência em relação à memória. Comentamos que essa modificação implica uma
série de modificações nas hipóteses que haviam sido desenvolvidas na teoria até então.
A consciência perceptiva passa a ser pensada como um fenômeno que precede a
constituição da representação. Visto que esta última consistiria em um processo
associativo, parece ser preciso supor que a memória sempre reorganiza as pecepções, o
233
que teria como conseqüência que uma rememoração de alguma coisa sempre seria
diferente da percepção atual dessa coisa. O mecanismo de formação do sonho teria que
ser explicado de maneira distinta e a hipótese de que toda percepção antes de se tornar
consciente sofreria um processo de “elaboração” pela memória parece estar sendo
deixada de lado. No capítulo 7 de “A interpretação dos sonhos”, Freud havia descrito o
mecanismo da elaboração secundária, que estaria presente não só no sonho, mas em
toda percepção, a partir do percurso que a excitação proveniente do mundo externo
percorreria antes de chegar ao sistema responsável pela consciência. Ou seja, seria
justamente o fato de toda excitação sensorial percorrer os sistemas de memória antes de
alcançar o sistema Cc que explicaria que todo conteúdo perceptivo fosse alvo de uma
elaboração antes de se tornar consciente. Com a inversão da relação entre a memória e
a consciência, essa hipótese da elaboração secundária não parece poder mais ser
sustentada. Primeiro, os estímulos externos dariam origem a percepções conscientes
para, depois, seguirem para os sistemas de memória e constituir as representações.
Contudo, não parece haver razão para supormos que nossas percepções seriam cópias
fiéis dos estímulos que incidem sobre a periferia do sistema nervoso, tento em vista as
hipóteses desenvolvidas por Freud desde 1891 sobre o processo de condução das
informações sensoriais da periferia do sistema nervoso ao córtex.
Apesar dessas modificações, Freud parece manter a hipótese da existência de
algo como um mecanismo da “atenção”, o que indica que a idéia de que nem tudo o que
produz qualidade é de fato conscientemente percebido continua presente na teoria. Em
“O Eu e o Isso”, Freud reconhece que o pensamento com palavras não é a única forma
de pensamento que se pode tornar consciente, pois há também pensamentos que se
tornam conscientes a partir da ativação de imagens visuais. Contudo, ele reafirma a
idéia de que seria o vínculo com as repersentações-palavra que tornaria um processo
suscetível de consciência. Portanto, permanece essa contradição: o que torna um
processo suscetível de tornar-se consciente é a associação com as palavras, mas a
palavra não é a única coisa por meio da qual um processo de pensamento se torna
consciente em estado normal, isto é, sem ser de forma alucinatória.
PPP
Argumentamos no início deste capítulo que, nesse último período de sua obra,
Freud parece manter as mesmas hipóteses sobre a natureza do psíquico inconsciente e
234
sobre o estatuto da metapsicologia. Com isso, se fecha a questão que colocamos no
início: se Freud manteve as mesmas hipóteses defendidas no “Projeto...” por toda a obra
ou se em algum momento ele as abandonou para retomá-las posteriormente. No
“Esboço de psicanálise”, Freud expõe, talvez de forma mais clara do que em qualquer
outro texto, sua hipótese de que o psíquico inconsciente consiste em processos
nervosos. Ele também parece ser bem mais claro do que nos textos precedentes sobre a
relação entre o psíquico inconsciente e a consciência: haveria uma relação de
“paralelismo” ou de “concomitância” entre eles. Essas idéias permearam toda a obra,
mas elas são apresentadas de forma bem mais explícita em seu início – isto é, no
“Projeto...” – e no seu fim – no “Esboço...”. O percurso aqui realizado procurou
explicitar a relativa unidade do projeto metapsicológico freudiano e a consistência com
que são sustentados, nessa reflexão, suas idéias centrais e suas primeiras intuições.
235
CONCLUSÃO
Em “Sobre a concepção das afasias”, Freud demonstra que os pressupostos sobre os
quais se assentava a concepção localizacionista das afasias eram insustentáveis. Essa
concepção se baseava no pressuposto de que cada uma das diferentes funções da linguagem
estaria localizada em uma região específica do córtex e de que as várias funções seriam
independentes umas das outras. Apenas isso tornaria possível inferir, a partir das
manifestações clínicas das afasias, a localização da lesão, assim como a partir desta inferir
as características do distúrbio. Outro pressuposto presente nas teorias localizacionistas,
aponta Freud, era o de que os fenômenos fisiológicos possuiriam as mesmas características
dos fenômenos psicológicos. A um simples psíquico – uma idéia simples – corresponderia
um simples fisiológico – um engrama contido em uma célula cortical. Nenhum desses dois
pressupostos seria legítimo, segundo o que defende Freud e, assim, a teoria sobre eles
construída também não se sustentaria. Retomemos esses dois pontos da crítica freudiana.
Freud argumenta que a relação entre a localização anatômica e o funcionamento do
sistema nervoso não é tão simples como supunha o localizacionismo A partir da análise de
vários casos de afasias e de dados sobre como as funções da linguagem são prejudicadas
nessas patologias, Freud conclui que é preciso supor que as várias funções dependam umas
das outras e que uma mesma área possa abrigar mais de uma função. Disso se segue que
não é possível, a partir da localização da lesão, inferir qual é a função por ela
desempenhada, assim como não é possível, a partir das características dos sintomas, inferir
a localização da lesão. De acordo com isso, a localização anatômica deixa de ser tão
importante para a compreensão do funcionamento da linguagem como o era da perspectiva
localizacionista. Freud, assim como Jackson, chama a atenção para a necessidade de
atentar para os sintomas positivos da doença – para o funcionamento que, a despeito das
lesões, permanece ocorrendo – e não apenas para os sintomas negativos, como fazia o
localizacionismo.
Freud propõe que a área da linguagem seja uma área homogênea, onde ocorreriam
processos funcionais similares, e explica as características desses processos levando em
consideração, principalmente, as características clínicas dos transtornos de linguagem.
236
Podemos dizer que, em relação à abordagem localizacionista, a perspectiva freudiana retira
parte da importância dada à anatomia e reforça a importância da análise dos dados clínicos.
O melhor exemplo disso é a forma como Freud infere as características da aprendizagem da
linguagem. Segundo a hipótese localizacionista, haveria áreas corticais carentes de função –
as chamadas “lacunas funcionais” – as quais seriam gradualmente ocupadas no processo de
aquisição da linguagem. Qual é o argumento que Freud usa para mostrar que essa hipótese
é insustentável? Ele diz que a forma como a existência das lacunas funcionais foi inferida
não é legítima, pois não se pode concluir, do fato de lesões em determinadas áreas não
serem associadas a perturbações da linguagem, que essas áreas não comportem nenhuma
função: é possível, por exemplo, que lesões em certas áreas sejam melhor toleradas do que
em outras. Mas o principal argumento que Freud utiliza para recusar a hipótese das lacunas
funcionais baseia-se no modo como a linguagem é prejudicada em decorrência de lesões
cerebrais. Se a aquisição da linguagem ocorresse da forma como supunha Meynert, teria
que ser possível, no caso de lesões na área da linguagem, que uma aquisição mais recente
permanecesse intacta, enquanto uma mais antiga fosse perdida. Se cada aquisição ocupasse
um lugar diferente, o conteúdo perdido seria simplesmente aquele contido na área
lesionada. Contudo, diz Freud, a desintegração da linguagem decorrente de lesões cerebrais
nunca ocorre assim aleatoriamente. Uma aquisição mais recente nunca se mantém intacta
enquanto uma aquisição mais antiga é prejudicada. As aquisições lingüísticas, seja qual for
a lesão, sempre são perdidas na ordem das mais recentes para as mais antigas, a menos que
uma aquisição recente tenha sido mais utilizada que uma anterior. Como apontou Jackson,
as lesões na área da linguagem provocam um processo de dissolução funcional. Desse
conceito e das experiências que o suportam, Freud conclui que todas as aquisições da
linguagem se dão na mesma área, que as representações aí se sobre-associam.
Então, a partir da forma como a linguagem se desintegra nas afasias, Freud conclui
que a concepção de Meynert sobre a maneira como os correlatos das idéias se distribuem
no córtex não pode ser mantida e formula uma hipótese substitutiva, mais adequada, a seu
ver, aos fatos clínicos tais como ele os considera. Parece já estar claro, nesse momento,
para Freud, que a neurologia não pode ser construída independentemente da observação
clínica cuidadosa dos sintomas neurológicos: a análise dos sintomas forneceria dados mais
valiosos para a compreensão do funcionamento cerebral do que os dados anatômicos
237
isoladamente. Essa “independência” relativa do funcional em relação ao anatômico e essa
possibilidade de formular hipóteses sobre o funcionamento do sistema nervoso a partir,
sobretudo, de dados clínicos patológicos é, acreditamos, a premissa que vai permitir a
Freud continuar desenvolvendo suas especulações “neuropsicológicas”, mesmo longe dos
laboratórios de anatomia e de fisiologia, durante o restante de sua obra. Por isso,
argumentamos, contrariamente ao que defende Solms e Saling (1986), que o mais
importante na ruptura de Freud com o localizacionismo não foi a adoção da doutrina da
concomitância, mas a concepção da independência relativa do funcional em relação ao
anatômico. É isso o que vai-lhe permitir continuar desenvolvendo sua metapsicologia, isto
é, sua teoria sobre as propriedades dos processos cerebrais que compõem o psíquico
inconsciente. Argumentamos que, a partir do capítulo 7 de “A interpretação dos sonhos”,
Freud deixa de lado aquilo que, desde seu texto de 1891, já poderia ser descartado: a
tentativa de estabelecer uma localização anatômica precisa para o aparelho. Concordamos,
assim, em linhas gerais, com a seguinte observação de Solomon (1976):
“A teoria da mente em Freud, que ele já começou a formular de maneira
sistemática em 1895, começa com uma aceitação explícita de um modelo
neurofisiológico e parcialmente neuroanatômico (...) Freud nunca
abandona seu modelo neurofisiológico (...) ele abandona as limitações
neuroanatômicas desse modelo”. (p.40)
A partir do capítulo 7, contudo, ele deixa de formular sua teoria do aparelho
psíquico em termos explicitamente neurofisiológicos, mas nunca deixou de acreditar que
este aparelho consistia em processos nervosos, nem que sua teoria sobre o aparelho
psíquico fosse uma teoria sobre a parte dos processos cerebrais que correspondem ao
psíquico. O modelo neurofisiológico do “Projeto...” nunca foi abandonado; o que teria sido
descartado, “provisoriamente”, seria apenas a tentativa de estabelecer uma correspondência
anatômica para o aparelho e a tentativa de explicar seus processos em termos de
“neurônios” e de “quantidade”. Como observa Solomon (1976):
Freud perde as esperanças de que a neurologia progredirá
suficientemente no decorrer de sua vida para que possa completar o
238
modelo neuroanatômico. Assim que suas esperanças juvenis dão lugar à
urgência da idade avançada, Freud substitui o modelo dependente-da-
anatomia do “Projeto”, por um “aparelho psíquico” independente quase
espacial o qual nos fornece – em termos contemporâneos – uma
localização funcional dos processos psíquicos sem que fiquemos na
dependência de traçar um mapa deste aparelho sobre o cérebro”. (p.53)
PPP
Voltando ao texto sobre as afasias, Freud critica ali também outro dos pressupostos
da concepção localizacionista de Meynert e Wernicke: o de que os fatos fisiológicos e os
psicológicos possuam as mesmas características. Segundo ele, nesse pressuposto baseia-se
a hipótese de que a uma idéia simples corresponderia um engrama contido em uma célula
individual, assim como a distinção, no plano neurológico, entre a associação e a
representação. Ele aponta para a necessidade de desfazer essa confusão entre o fisiológico e
o psíquico, decorrente da falta de conhecimento suficiente acerca do fisiológico. Freud
conclui, então, que a um simples psíquico – a uma idéia simples – sempre corresponde um
complexo neurológico – um processo associativo e, seguindo os passos de Jackson, adota,
nesse momento, a doutrina da concomitância e mantém a restrição do psíquico ao
consciente.
Vimos que nos textos dos anos seguintes Freud já manifesta sua dúvida quanto a
identificar o psíquico ao consciente. Em 1894, ele levanta a questão dos processos
inconscientes que estão por trás das neuroses serem ou não processos somáticos dos quais a
consciência poderia surgir, ou se eles deveriam ser considerados fatos psíquicos. A primeira
resposta, como vimos, está no “Projeto” e a justificativa para tal resposta aparece nos textos
posteriores: no artigo metapsicológico sobre o inconsciente de 1915 e também no “Esboço
de psicanálise” (1938). No “Projeto...”, Freud passa a chamar de psíquico aqueles processo
neurológicos que, em 1891, haviam sido considerados como sendo apenas os correlatos
fisiológicos do psíquico. A representação deixa de ser o concomitante psíquico de um
processo cortical associativo e passa a ser definida como o próprio processo cortical. Esses
processos corticais associativos constituiriam o psíquico inconsciente e a consciência seria
o “lado subjetivo” de apenas uma parte desses processos. Mas, ao defender essas hipóteses
239
no “Projeto...”, não estaria Freud fazendo exatamente o que ele criticara no ensaio sobre as
afasias, ou seja, confundindo o domínio do psíquico e do neurológico? Lembremos da
seguinte questão por ele levantada em 1891:
“É justificado submergir uma fibra nervosa, que ao longo de todo o seu
curso havia sido somente uma estrutura fisiológica sujeita a modificações
fisiológicas, com sua terminação no psíquico e dotar essa terminação de
uma representação ou recordação?”
1
A resposta dada por Freud a essa questão em 1891 foi negativa: ele sustenta ali que
o psíquico seria algo que surgiria concomitantemente a uma parte dos processos
associativos corticais. Hipótese esta bastante complicada, pois, embora coloque o psíquico
na dependência do processo físico, uma vez que todo evento psíquico seria necessariamente
acompanhado de processos físicos, afirma que um não é a causa do outro e que ambas as
séries física e psíquica não interferem uma sobre a outra. No artigo metapsicológica sobre o
inconsciente, Freud comenta que a restrição do psíquico ao consciente, entre outras coisas,
nos coloca diante das dificuldades do paralelismo psicofísico. Caso se postule que o
psíquico se restringe ao consciente, os processos inconscientes, que a experiência clínica
indubitavelmente atestam existir, têm que ser considerados processos puramente somáticos.
Uma vez que os fatos inconscientes interferem sobre os conscientes, que eles produzem
efeitos sobre os mesmos, a doutrina da concomitância não pode ser sustentada, pelo menos
tal como é descrita em 1891, pois seria necessário supor que os processos fisicos
(inconscientes e não psíquicos) interferissem sobre os psíquicos. Aceitando isso, estaríamos
diante da antiga dificuldade de explicar como dois fenômenos de natureza distinta podem
agir um sobre o outro. Nesse caso, uma psicologia que não quisesse se restringir apenas aos
fenômenos conscientes teria que transitar entre dois domínios distintos: o do psíquico
(consciente) e o do físico (inconsciente, mas que, como diz Freud, preenche as lacunas da
consciência).
Mas se, como diz Freud em 1894, atribui-se uma “natureza psíquica” aos processos
inconscientes, então parece haver duas alternativas. Uma delas é manter o paralelismo
1
LA, p.69; ZAA, p.97.
240
psicofísico e afirmar que a série psíquica é em parte consciente e em parte inconsciente;
Solms e Strachey parecem crer que essa é a hipótese adotada por Freud. Outra alternativa
seria abandonar o paralelismo e colocar todo o psíquico no âmbito do físico; ou seja, o
psíquico consistiria em processos físicos, parte dos quais seria consciente e parte não.
Nesse caso, todo o psíquico seria material, e a psicologia estaria totalmente dentro do
campo da ciência natural e seria, em última instância, indissociável da neurologia.
Poderíamos afirmar, com segurança, que essa é a hipótese assumida por Freud, uma vez
que ele repete inúmeras vezes que a psicanálise é uma ciência natural e que os processos
inconscientes, para ele, são processos cerebrais, desde que não levássemos em conta o que
ele diz a respeito da consciência. Freud afirma que a consciência está fora do campo da
ciência natural, embora não fique claro se ele pensa isso como uma impossibilidade
provisória ou definitiva. Sabemos que uma psicologia que se restrinja aos dados
conscientes não poderia se configurar como um ciência natural, porque, como é esclarecido
em 1915, a consciência não forma uma série causal ininterrupta. Mas o fato de Freud
afirmar que a consciência surge concomitantemente aos processos psíquicos inconscientes
dá margem para pensarmos que sua natureza não seria material, embora, de forma alguma,
possamos inferir isso com certeza: a natureza da consciência permanece indeterminada.
Outra alternativa ainda, talvez a mais estranha de todas, seria assumir um dualismo
dentro do psíquico. Os processos inconscientes que determinam os conscientes seriam
processos físicos que ocorrem no córtex, mas seriam também psíquicos e, então, o psíquico
seria em parte inconsciente e material e em parte consciente e de natureza distinta e
imaterial. Dessa forma, o paralelismo e o dualismo substancial por ele implicado teriam
sido mantidos, mas, em vez de se tratar de um dualismo entre o físico e o psíquico, tratar-
se-ia de um dualismo já presente dentro do âmbito do psíquico. O psíquico seria em parte
material (sua parte inconsciente) e em parte imaterial (sua parte consciente). Portanto, parte
da psicologia estaria dentro do campo da ciência natural – a psicologia do inconsciente – e
parte dela estaria fora do campo da ciência natural. À primeira vista, pode parecer que as
hipóteses de Freud inclinam-se mais para essa última alternativa. Mas será possível
sustentar isso?
Argumentamos, ao longo do desenvolvimento da tese, que, no “Projeto...”, Freud
identifica explicitamente o psíquico inconsciente a processos nervosos. Neste texto, Freud
241
dá uma resposta à questão levantada em “As neuropsicoses de defesa” (1894) sobre dever
ou não atribuir uma “natureza psíquica” aos processos inconscientes, e a resposta é: sim,
são processos psíquicos quanto à sua função, mas são também processos físicos.
Argumentamos que, nos textos metapsicológicos subseqüentes, embora Freud não seja
mais tão explícito como no “Projeto...” em relação a este ponto, há várias indicações de que
ele manteve essa identificação do psíquico inconsciente a processos nervosos, o que volta a
ser afirmado explicitamente no “Esboço de psicanálise” (1938). Uma das questões que este
trabalho tinha como objetivo responder era se, no período que se intercala entre a redação
do “Projeto...” e a publicação do “Esboço...”, a posição de Freud se mantinha inalterada ou
se, no “Esboço...”, Freud está retomando suas idéias iniciais, abandonadas em algum
momento do período intermediário de sua obra. Concluímos que a primeira alternativa
parece ser a que melhor corresponde ao texto de Freud: as inúmeras passagens em que
Freud afirma sua crença na provisoriedade da abordagem exclusivamente psicológica do
inconsciente, além de várias outras de suas considerações, que comentamos ao longo desse
trabalho, parecem permitir chegar a essa conclusão.
Tendo isso em vista, parece ser possível afirmar que a hipótese defendida por Solms
e Saling de que Freud manteve a doutrina da concomitância, mas apenas postulou que a
série psíquica seria em parte consciente e em parte inconsciente não pode ser sustentada.
De fato, não parece haver nada que a justifique: a incerteza que fica nos textos freudianos é
quanto a natureza da consciência, pois, a respeito do inconsciente, a posição de Freud é
clara. Resta-nos, portanto, as outras duas possibilidades: ou todo o psíquico consistiria em
processos cerebrais – isto é, Freud seria defensor de um materialismo psicológico (o que,
se levamos em conta suas influências mais diretas, parece bastante plausível). Ou Freud
teria instaurado um dualismo de substâncias dentro do domínio do psíquico. O dualismo
não se daria, para ele, entre a mente e o corpo, mas entre a mente (consciente) e a mente
(inconsciente); parte do psíquico seria “material” e parte “imaterial”. Com isso, os
problemas implicados pelo dualismo substancial seriam trazidos para dentro do campo do
mental. Como esses dois fenômenos psíquicos poderiam interagir – e a experiência clínica
deixa claro que eles interagem – sendo eles de naturezas distintas?
Portanto, o principal problema que se coloca é o da relação entre o psíquico
inconsciente e a consciência. A obscuridade dessa relação no pensamento freudiano
242
impossibilita dar uma solução definitiva a esse impasse. Seria a consciência o efeito de uma
parte dos processos físicos que ocorrem em nosso cérebro? Ou seria a consciência um
fenômeno de natureza distinta que emergiria em paralelo a uma parte dos processos
cerebrais? Retomemos, para discutir essa questão, as poucas passagens em que Freud se
refere explicitamente à relação entre os processos nervosos e a consciência. No “Projeto...”,
ele diz:
“(...) consciência é, aqui, o lado subjetivo de uma parte dos processos
físicos no sistema nervoso, isto é dos processos ω; e sua supressão não
deixa inalterada a ocorrência psíquica, mas inclui em si a supressão da
contribuição de ω ”.
2
No “Esboço de psicanálise”, podemos ler:
“...esses processos conscientes não formam séries sem lacunas, fechadas
em si mesmas, de modo que não haveria outra alternativa a não ser adotar
a suposição de uns processos físicos ou somáticos concomitantes do
psíquico, aos quais parece necessário atribuir uma perfeição maior do que
às séries psíquicas, pois alguns deles têm processos conscientes paralelos
e outros não. Isso sugere, de uma maneira natural, por o acento, na
psicologia, sobre esses processos somáticos, reconhecer neles o psíquico
genuíno e buscar uma apreciação diversa para os processos conscientes.”
3
Nessa última passagem, Freud propõe uma relação de paralelismo (ou de
concomitância) entre os processos físicos – que constituiriam o psíquico inconsciente – e os
fenômenos conscientes.
4
Essa afirmação de Freud no “Esboço de Psicanálise” parece ser a
mais clara de que podemos dispor a respeito de como ele concebe a relação entre os
processos inconscientes e a consciência. Mas dizer que a consciência surge
concomitantemente aos processos físicos inconscientes – ou que ela é o lado subjetivo
2
PP, p.187; EP, p.400.
3
AE, vol.23, p.156.
4
Freud parece usar os termo “concomitante” e “paralelo” como sinônimos.
243
desses processos – implica supor que se trata de fenômenos de natureza distinta?
5
Embora
nunca tenha dito isso claramente, a sua afirmação de que os processos psíquicos
conscientes não podem ser abordados desde uma perspectiva científico-naturalista pode dar
margem para esse tipo de interpretação. Mas essa não parece ser a única alternativa
concebível. O seguinte comentário de Chomsky é pertinente ao problema em questão:
“Nós não somos forçados, como o foi Descartes, a postular uma segunda
substância quando lidamos com fenômenos que não podem ser expressos
em termos de matéria em movimento (...) É uma questão interessante
saber se o funcionamento e a evolução da mentalidade humana podem ser
acomodados dentro do esquema das explicações físicas, assim como é
entendido atualmente, ou se existem princípios novos, agora
desconhecidos, que precisam ser revelados, talvez princípios que surgem
apenas em níveis mais altos de organização do que os que agora podem
ser submetidos à investigação física”. (Em: Nagel, 1976, p.35)
Seria por serem de natureza distinta que os fenômenos conscientes não poderiam ser
abordados de uma perspectiva científico-naturalista? Ou se trataria de uma limitação da
nossa capacidade de conhecimento? Essa impossibilidade seria provisória ou definitiva?
Na filosofia da mente atual, há uma concepção da relação mente-corpo, chamada de
“dualismo de propriedades”, que sustenta, conforme explica Teixeira (2000), que os estados
mentais sejam uma “propriedade especial” que emerge da substância material.
6
Ao
contrário do emergentismo materialista, o dualismo de propriedades sustenta que tal
propriedade especial não pode ser descrita em termos físicos. Os estados subjetivos seriam
produzidos pelo cérebro; no entanto, eles nunca poderiam ser integralmente mapeados em
termos de estados cerebrais. Trata-se, portanto, de uma posição materialista – pois não se
postula uma substância adicional – que, no entanto, nega a possibilidade de reduzir o
mental às propriedades físicas do cérebro. O adepto do dualismo de propriedades não
acredita na possibilidade de que uma descrição física do mundo possa ser tão completa a
5
Nagel faz o seguinte comentário, pouco esclarecedor, a esse respeito: “Dizer que a consciência é o “lado
subjetivo” de um certo tipo de processo neurofisiológico não é compatível com o dualismo, mas também pode
ser um erro chamar isto de materialismo. (1976, p.32)
244
ponto de nela poder ser incluídos também os fenômenos mentais conscientes, mas aceita a
existência de uma conexão causal entre o físico e o mental.
Essa hipótese do dualismo de propriedades – que como todas as outras formuladas
para conceber a relação mente-cérebro não deixa de ser problemática
7
– é interessante por
manter-se dentro de uma postura materialista e, ao mesmo tempo, recusar a possibilidade
de explicar o mental em termos de processos físicos. Essa seria uma alternativa para
pensarmos que, do fato de Freud afirmar que a consciência não pode ser abordada de uma
perspectiva científico-naturalista, não se segue necessariamente que os estados conscientes
sejam fenômenos de natureza distinta. Mas não podemos concluir que Freud tivesse em
mente uma concepção desse tipo. Suas afirmações a respeito da relação entre o psíquico
inconsciente e a consciência são muito vagas, para permitirem tal tipo de inferência. Com
certeza, essa é uma questão que permanece em aberto.
Como argumentamos anteriormente, temos que pensar a concepção de Freud a
respeito da relação mente-cérebro em duas etapas. Por um lado, haveria a relação entre os
processos nervosos e a mente inconsciente e, por outro, a relação entre os processos físicos
que compõem a mente inconsciente e a consciência. A respeito da primeira dessas relações,
Freud é bem mais explícito do que a respeito da segunda: ele deixa claro que os processos
psíquicos inconscientes são processos cerebrais e manifesta sua crença em que um dia eles
possam ser explicados enquanto tais. Os processos cerebrais que constituiriam o psíquico
inconsciente apresentariam certa organização específica. Dada uma certa organização dos
processos, eles adquiririam propriedades que poderiam ser chamadas de mentais. Portanto,
Freud parece supor que parte do sistema nervoso abriga processos com uma organização tal
que faz emergir propriedades que podem ser chamadas de mentais.
Freud parece aplicar ao psíquico a idéia de Jackson a respeito da organização do
sistema nervoso. Como vimos, segundo este autor, o sistema nervoso possuiria três níveis
diferentes de evolução: o inferior, o intermediário e o superior. Os nível superior evoluiria a
partir do intermediário, este a partir do inferior e, este, a partir da periferia nervosa. Na
6
Os principais defensores dessa idéia, no sécula XX, foram Thomas Nagel e David Chalmers. (Teixeira,
2000, p.92).
7
Teixeira aponta que o dualista de propriedades se encontra no seguinte impasse: ou ele admite a existência
de características específicas do cérebro que seriam responsáveis pela consciência e, nesse caso, sua posição
seria auto-contraditória. Ou ele admite que qualquer elemento do mundo material poderia, em princípio,
produzir uma mente, o que levaria ao pampsiquismo.
245
normalidade, o nível superior prevaleceria sobre os inferiores; nas patologias, contudo, ele
sucumbiria total ou parcialmente, possibilitando uma liberação dos processos inferiores. A
forma como Freud concebe a relação entre os processos primários e os secundários parece
poder ser pensada de forma muito semelhante. Os processos de nível superior – os
secundários – surgiriam a partir dos de nível inferior – dos primários – como conseqüência
da sobre-associação produzida pelas palavras. Na normalidade, os processos secundários
prevaleceriam, podendo sucumbir total ou parcialmente nas patologias. Podemos pensar
que há uma relação do mesmo tipo entre os processos psíquicos inconscientes e os demais
processos nervosos (aqueles que não podem ser descritos como psíquicos): alguma
modificação nas características dos processos nervosos faria emergir as propriedades do
processo primário, as quais poderiam ser chamadas de mentais.
Então, poder-se-ia dizer que, dos demais processos nervosos emergiria o processo
primário, deste emergiria o processo secundário e, deste, emergiriam aqueles processos
acompanhados de consciência? Haveria entre a consciência e o processo secundário uma
relação semelhante àquela que há entre o processo primário e o secundário? O problema é
que não sabemos se a consciência emerge desse processos nervosos – que corresponderiam
ao sistema Cc – ou se ela é um fenômeno paralelo de natureza distinta. Enfim, o problema é
que não sabemos em que exatamente Freud pensava quando dizia que a consciência é o
“lado subjetivo”, “concomitante” ou “paralela” a uma parte dos processos que
corresponderiam ao psíquico inconsciente. De qualquer forma, sabemos que há uma
diferença entre os processos psíquicos inconscientes e os conscientes. Enquanto os
primeiros podem ser abordados de uma perspectiva científico-naturalista, os segundo não
podem sê-lo. Como dissemos anteriormente, não podemos inferir disso que a consciência
seja algo de natureza distinta; que seria por sua natureza ser diferente daquela dos processos
psíquicos inconscientes que ela estaria fora do campo da ciência natural. Seria a
consciência um fenômeno emergente em relação a parte dos processos psíquicos
inconscientes, mas que, assim como propõe o dualismo de propriedades, não poderia ser
explicado em termos físicos? Essa impossibilidade seria definitiva ou provisória? Freud
teria mantido uma postura materialista? Não é possível respondermos de forma definitiva
essas questões. Com relação à consciência, tudo isso não passa de mera especulação.
246
Podemos dizer que em Freud, o grande enigma psicológico é a consciência, o que o coloca
ao lado dos neurocientistas e filósofos da mente atuais.
Mas, voltemos à questão anterior: a partir do “Projeto...”, Freud passa a considerar
legítimo “submergir uma fibra nervosa(...) com sua terminação no psíquico e dotar essa
terminação de uma representação ou recordação?”
8
, ao contrário do que defendia em
“Sobre a concepção das afasias”? Parece que sim, uma vez que ele passa a considerar que
uma representação é um processo cortical associativo e não mais o concomitante psíquico
desse processo. Freud teria, então, passado a fazer aquilo que ele condenou em 1891, ou
seja, misturar os domínios do psíquico e do fisiológico? Parece não ser possível falar em
misturar dois domínios, pois, para que eles fossem misturados, seria preciso que eles
fossem mesmo distintos. O fato é que, a partir do “Projeto...”, ao menos uma parte do
psíquico passa a ser concebida como consistindo em processos nervosos; portanto, não se
trata de misturar o domínio do psíquico e o do fisiológico, mas de identificá-los
parcialmente. Parte dos processos nervosos constituem o que Freud chama de psíquico
inconsciente; contudo, continua valendo o alerta anterior de Freud, pois, em “Sobre a
concepção das afasias”, quando alertava contra a confusão entre o psíquico e o fisiológico,
Freud se referia especificamente aos dados da nossa consciência. Ele diz:
“Na psicologia, a representação simples é para nós algo elementar que
podemos diferenciar claramente de sua conexão com outras
representações. Esta é a razão porque nos sentimos tentados a presumir
que o seu correlato fisiológico (...) seja também algo simples e
localizável”.
9
Nesse momento, representação ainda é pensada como algo necessariamente
consciente. Como vimos, Freud adere à doutrina da concomitância e procura diferenciar
claramente a representação de seu correlato fisiológico. Portanto, quando alerta para a
confusão entre o psicológico e o fisiológico, Freud está entendendo, por psicológico, o
consciente. A psicologia da consciência diferencia entre representação e associação; essa
diferenciação, contudo, não pode ser atribuída ao correlato fisiológico da representação,
8
L.A., p. 69; ZAA, p.97.
9
LA, p.70,; ZAA, p.99.
247
argumenta Freud. Mas, quando ele passa a identificar a representação a esse mesmo
correlato fisiológico de que ele fala em 1891, continua sendo necessário diferenciar entre as
características do que agora passa a ser a representação – um processo associativo cortical
– e as características da sua experiência consciente. Na nossa experiência consciente,
parece haver distinção entre representação e associação, mas a representação em si mesma
é indissociável do processo associativo que a constitui. Portanto, continua sendo preciso
distinguir entre as propriedades da nossa experiência consciente e aquelas dos processos
fisiológicos que correspondem ao psíquico inconsciente.
PPP
Por que falar em um psíquico inconsciente? Retomemos os argumentos usados por
Freud para justificar a sua suposição do inconsciente.
No artigo metapsicológico sobre o inconsciente, Freud argumenta que a
identificação do psíquico ao consciente não pode ser justificada, em primeiro lugar por que
ela consiste em uma “convenção inadequada”: convencionou-se em algumas doutrinas
filosóficas e psicológicas, que o psíquico é o consciente. Contudo, conclui Freud, essa
convenção não é adequada, em primeiro lugar, porque ela “sobrestima sem fundamentação
visível o papel da consciência”. A experiência clínica com as neuroses lhe revelara que há
coisas no psíquico para além da consciência, que há idéias que permanecem afastadas da
consciência, inacessíveis a ela e, não obstante, capazes de influir sobre a atividade psíquica
consciente. A partir de sua experiência clínica, Freud conclui que a identificação do
psíquico ao consciente – a hipótese segundo a qual toda representação é consciente – não
pode ser justificada. Trata-se de uma convenção que se revela contra-producente. Parece
plausível, portanto, abandoná-la e substituí-la por uma melhor, por uma que pareça se
adequar mais aos fatos ou ser mais fecunda. E é exatamente isso o que Freud faz: ele
estabelece que o psíquico é muito mais do que a consciência, que a consciência é algo que
pode vir a se acrescentar a uma pequena parte das nossas representações. Como diz Freud
em “O Eu e o Isso”: “a consciência é uma qualidade do psíquico que pode se agregar a
outras qualidades ou faltar”.
10
10
AE, vol. 19, p.15.
248
Não podemos esquecer que a suposição de um psíquico inconsciente deriva de
observações clínicas. A teoria freudiana não foi construída a partir de puras especulações
teóricas, nem a partir de experiências de laboratório, como as demais psicologias
contemporâneas ao surgimento da psicanálise. O fenômeno da sugestão pós-hipnótica,
assim como os sintomas neuróticos, tinham deixado claro que é possível haver idéias
ausentes na consciência e, no entanto, ativas e capazes de exercer efeitos sobre ela. Esses
fatos convenceram Freud de que há representações insuscetíveis de consciência e ativas no
psíquico, isto é, de que há um inconsciente dinâmico. A análise dos sonhos, posteriormente,
lhe revelou que esse inconsciente era regido por leis diferentes daquelas que regem o
psíquico suscetível de consciência. O sonho mostrou também que a existência de um campo
psíquico insuscetível de consciência não está presente apenas nas psicopatologias, mas faz
parte da vida psíquica normal. Enfim, Freud constrói suas hipóteses a partir de dados
clínicos. Se suas observações clínicas revelaram que há no psíquico algo que parece possuir
todas as características de uma representação, mas permanece inconsciente, assim como
revelaram que os dados conscientes são lacunares, então a hipótese de que toda
representação é consciente não parece mais dever ser sustentada; ela não possui
justificação, uma vez que a vinculação exclusiva entre a representação e a consciência
consiste em uma mera convenção e que uma convenção se justifica pela sua potencialidade
explicativa. Também não é possível supor que essas representações afastadas da
consciência permaneçam nesse estado por serem pouco intensas, de forma que haveria
apenas uma diferença de intensidade entre o psíquico suscetível e o insuscetível de
consciência. As neuroses mostram que, ao contrário, representações excessivamente
intensas podem permanecer insuscetíveis de se tornarem conscientes.
Em várias ocasiões, Freud chama a atenção para esses fatos. Em “O Eu e o Isso”,
por exemplo, ele argumenta:
Para a maioria das pessoas de formação filosófica, a idéia de algo
psíquico, que não seja também consciente, é tão inconcebível, que lhes
parece absurda e descartável por mera aplicação da lógica. Creio que isto
se deve unicamente a que nunca tenham estudado os fenômenos da
hipnose e do sonho, que – prescindindo inteiramente do patológico
impõe forçosamente essa concepção. Sua psicologia da consciência
249
certamente é incapaz de solucionar os problemas do sonho e da
hipnose.”
11
Na continuação do mesmo texto, ao comentar que, mesmo fora da consciência, as
representações continuam existindo de forma latente, Freud diz:
“(...)Os filósofos, sem dúvida, objetarão: “Não, o termo “inconsciente” é
inteiramente inaplicável aqui; a representação não era nada psíquico
enquanto se encontrava no estado de latência”. Se já neste ponto o
contradisséssemos, cairíamos em uma disputa verbal, com a qual nada
ganharíamos.
Mas vejamos, chegamos ao termo ou conceito de inconsciente por outro
caminho: pelo processamento de experiências nas quais desempenha um
papel a “dinâmica” psíquica. Averiguamos – isto é, nos vimos obrigados a
supor – que existem processos psíquicos ou representações muito intensos
(...) que, como quaisquer outras representações, podem ter plenas
conseqüências para a vida psíquica – inclusive conseqüências que podem
se tornar conscientes na qualidade de representações –, só que eles
mesmos não se tornam conscientes.”
12
Então, o fato é que Freud é levado a concluir, a partir da sua experiência clínica, que
a restrição do psíquico ao consciente, ao contrário da suposição de que há um psíquico
inconsciente, não possui fundamentação nem justificação suficiente. Trata-se, na verdade,
de uma convenção inadequada. No artigo metapsicológico sobre o inconsciente, Freud
alega um segundo motivo pelo qual a identificação do psíquico ao consciente é uma
convenção inadequada: ele afirma que, além de superestimar sem fundamentação visível o
papel da consciência, tal identificação “restringe em muito o campo da investigação
psicológica e nos precipita nas dificuldades do paralelismo psicofísico.” A consciência,
como diz Freud inúmeras vezes, é lacunar; os fenômenos conscientes, além de
corresponderem a apenas uma parte do psíquico, são determinados por processos
inconscientes e, muitas vezes, principalmente no caso das psicopatologias (mas não
11
AE, vol. 19, p.15; S.A, vol. 3, p.283.
12
AE, vol. 19, p.16; SA, vol.3, p.283.
250
nelas), só podem ser compreendidos tendo em vista essa determinação. Uma psicologia
que lide apenas com a consciência não poderia explicar uma série de manifestações
psíquicas, tais como os sintomas psicopatológicos, os sonhos, os atos falhos, pois a
compreensão desses não pode prescindir da referência ao inconsciente. Thomas Nagel
descreve da seguinte maneira a situação de Freud ao postular a existência de um psíquico
inconsciente:
“Freud parece ter chegado nessa suposição pelo seguinte processo de
raciocínio: se for tentado construir a ciência da psicologia lidando apenas
com processos conscientes, a tarefa parece ser impossível, porque existem
demasiadas lacunas causais evidentes. O material consciente é
fragmentário e não é sistemático, e portanto, improvavelmente será
compreendido teoricamente em termos que não vão além. É natural supor
essas lacunas preenchidas por processos neurofisiológicos, os quais de
tempos em tempos originam estados conscientes. E os propósitos da
unidade teórica são mantidos supondo que, em vez de uma alternação e
interação entre os processos físicos inconscientes e processos mentais
conscientes, existe um sistema físico causalmente completo, entretanto,
com alguns processos que como complemento têm a propriedade da
consciência, ou tem concomitantess conscientes. Assim o mental surge
como o efeito de um certo tipo de processo físico.
Uma reflexão maior, contudo sugere que talvez seja um erro
identificar o mental com esses efeitos conscientes, e que ele deveria ser
identificado com os próprios processos físicos (...) já que a natureza
verdadeira dos processos mentais que se apresentam à consciência é
física, com a consciência sendo apenas uma qualidade adicional deles, não
pode haver objeção em também descrever como mentais esses processos
intermediários, ocorrendo no mesmo sistema físico, os quais não se
apresentam à consciência apesar de eles em muitos detalhes poderem ser
física e funcionalmente semelhantes aos que se apresentam a ela.”
13
13
Nagel, 1976, p. 27.
251
Mas, se a restrição do psíquico ao consciente é uma convenção inadequada,
continua Freud no artigo metapsicológico sobre o inconsciente, a suposição de um psíquico
inconsciente é, ao contrário, “necessária, legítima e pode ser provada.” É necessária, diz
ele, porque os dados da consciência são lacunares e não podem ser compreendidos sem a
suposição de um psíquico inconsciente. O fato de tal suposição torná-los compreensíveis –
ou seja, o fato da suposição de processos psíquicos inconscientes preencher as lacunas
encontradas nos atos conscientes e lhes atribuir um sentido – torna legítima sua suposição.
Além disso, a suposição de um psíquico inconsciente pode ser considerada legítima
também porque, para estabelecê-la, não foi necessário nos afastarmos do nosso modo
habitual de pensamento, que se tem por correto, argumenta Freud.
A cada um de nós, diz ele, a consciência fornece somente o conhecimento dos nossos
próprios estados psíquicos. A hipótese de que outro homem possua também consciência é
uma inferência, um raciocínio a que chegamos por analogia sobre a base das
exteriorizações e ações desse outro, a fim de tornar compreensível sua conduta. Essa é a
única maneira que possuímos para compreender o comportamento alheio. A psicanálise
propõe apenas que esse mesmo raciocínio se volte para a própria pessoa, embora não
tenhamos nenhuma inclinação espontânea para isso. Agindo de tal forma, todos os atos e
exteriorizações que notássemos em nós e não conseguíssemos relacionar com o restante de
nossa vida psíquica seriam julgados como se pertencessem a uma outra pessoa e seriam
esclarecidos atribuindo-se a esse outro uma vida psíquica própria. A partir desse raciocínio,
chegamos a suposição de um inconsciente, de uma atividade psíquica que permanece
excluída da nossa consciência, embora a influencie. Dessa forma, diz Freud: “A suposição
psicanalítica da atividade psíquica inconsciente nos aparece, por um lado, como uma
continuação do animismo primitivo, que em todo lugar espelhava homólogos de nossa
consciência (...)”.
14
A suposição do inconsciente pode ainda ser provada, uma vez que, a partir dela, foi
possível construir um procedimento que permite influenciar com êxito sobre o curso dos
processos conscientes: esse êxito, diz Freud, pode ser tomado como uma prova da
existência do inconsciente. Também os experimentos hipnóticos, em particular o fenômeno
14
AE, vol.14, p.167; SA, vol. 3, p.130.
252
da sugestão pós-hipnótica, manifestariam de maneira palpável a existência e o modo de
ação do inconsciente.
PPP
Não só é necessário e legítimo supor a existência do inconsciente, como é preciso
reconhecer nele o “psíquico genuíno”, como diz Freud em 1938: o psíquico inconsciente
consistiria em processos nervosos. No “Projeto...”, Freud tenta explicá-los a partir de
conceitos neurológicos. A partir do capítulo 7, no entanto, ele abandona quase totalmente
os termos neurológicos e passa a usar termos psicológicos para formular sua teoria sobre o
aparelho psíquico. Essa mudança levou alguns estudiosos do pensamento freudiano a
afirmarem que, a partir de “A interpretação dos sonhos”, Freud abandonou a neurologia e
voltou-se para a psicologia. Argumentamos, ao longo deste trabalho, que há boas razões
para supormos que Freud não abandonou, em nenhum momento, a suposição de que o
psíquico inconsciente consista em processos cerebrais e que, a partir do capítulo 7, ele
apenas abandona, “provisoriamente”, a tentativa de explicá-los em termos neurológicos. A
justificativa para isso, é dada por Freud em outras ocasiões.
Na carta à Fliess de 22 de setembro de 1898, como vimos, ele comenta que precisa
se comportar “como se” apenas o psicológico estivesse em exame, porque não sabe como
prosseguir, embora não tenha “nenhuma inclinação para deixar a psicologia suspensa no ar
sem uma base orgânica”. Argumentamos que essa colocação de Freud sugere que ele não
passou a conceber o psíquico inconsciente de uma forma diferente depois do “Projeto...”,
deixando de acreditar que ele consiste em processos nervosos; o que aconteceu foi que ele
percebeu que explicá-los em termos neurológicos ainda não era possível. Contudo, como
vimos, em várias passagens posteriores, ele dá mostras de acreditar que um dia isso seria
possível. No artigo de 1915 sobre o inconsciente, Freud esclarece que, por um lado, não
havia como fornecer uma explicação para os processos inconscientes em termos físicos, por
outro, era possível descrevê-los com as categorias aplicadas aos atos psíquicos conscientes.
Diante disso, ele optou por abordá-los utilizando-se dessas categorias. Tal tipo de
abordagem, no entanto, seria provisória: no texto de 1914 sobre o narcisismo, como vimos,
Freud manifesta claramente sua crença na provisoriedade das concepções psicológicas.
253
Freud teria, então, adotado, provisoriamente, metáforas psicológicas para formular
sua teoria metapsicológica. No entanto, alguns leitores de Freud, como Garcia Roza
(1991), consideram que, no “Projeto...”, Freud usou metáforas neurológicas para abordar o
psíquico. Procuramos mostrar que, ao contrário, ele estava ali tentando construir sua teoria
nos termos que ele acreditava serem os mais adequados. As dificuldades encontradas nesse
empreendimento teriam-no levado a deixar de lado, provisoriamente, sua tentativa de
explicar os processos psíquicos em termos de “neurônios”, “quantidade”, enfim, a partir de
conceitos neurológicos. Mas notemos que alguns dos conceitos neurológicos do “Projeto..”
se mantêm por toda a obra, como, por exemplo, a noção de ocupação (“Besetzung”), a
própria noção de “quantidade”, a idéia de “estado ligado” e “livre” da mesma, entre outros.
Em algumas ocasiões isoladas – por exemplo, no capítulo 7 –, ele volta a falar em
“facilitação”, “resistência” e mesmo em “neurônios”. No entanto, Freud passa, a partir de
1900, a não se comprometer mais explicitamente com a neurologia, como o faz no
“Projeto...”. Como apontam Pribram e Gill (1976), a metapsicologia posterior ao
“Projeto...” só ostensivamente é psicológica, mas, de fato, é neuropsicológica, embora a
neurologia tenha-se tornado implícita, em contraste com seu enunciado explícito no
“Projeto...”.
15
Freud construiu sua neuropsicologia utilizando metáforas psicológicas. Sua
esperança parecia ser de que um dia a metapsicologia pudesse ser substituída por uma
neuropsicologia explícita.
PPP
Para fecharmos a questão a respeito da justificativa da suposição de um psíquico
inconsciente parece relevante comentarmos brevemente algumas considerações feitas por
Jerome Wakefield (1992). Este autor sistematiza de forma muito pertinente a justificativa
freudiana para a suposição do psíquico inconsciente, além de ressaltar o quanto Freud é
atual do ponto de vista da psicologia cognitiva, que se desenvolve no fim do século 20.
Wakefield (1992) comenta que a psicologia do fim do século 19 era uma ciência da
consciência. Brentano e William James, por exemplo, devotaram capítulos inteiros de seus
principais trabalhos para mostrar que estados mentais inconscientes são uma
impossibilidade e um absurdo. Em contraste com essa psicologia do século 19, diz ele, a
psicologia cognitiva do último quarto do século 20 quase não estava mais preocupada com
15
Pribram & Gill, 1976, p.8.
254
a consciência. O domínio de processos inconscientes na explicação do pensamento e das
ações foi reconhecido, e o foco principal da psicologia cognitiva passou a ser
“representações mentais conscientes e inconscientes”. Segundo Wakefield, Freud teria sido
a figura de maior destaque na transformação da psicologia de uma ciência da consciência
para uma ciência de representações mentais. A maior contribuição de Freud para a
psicologia moderna teria sido a separação por ele estabelecida entre representação e
consciência.
Embora não tenha sido quem “descobriu” o inconsciente, Freud desempenhou um
papel de grande importância na transformação da psicologia de uma ciência da consciência
para uma ciência das representações mentais, argumenta Wakefield, porque ele forneceu o
argumento mais sistemático, persuasivo e fundamentado para essa mudança. Além disso,
reconstruído em termos modernos, o argumento freudiano para justificar a idéia de um
psíquico inconsciente seria exatamente o mesmo usado pelos cognitivistas contemporâneos.
Esse argumento pode ser repartido em três componentes e resumido como se segue.
A primeira parte do argumento envolve a seguinte questão conceitual: “mental” não
significa “consciência”. A definição do termo “mental” não requer que estados mentais
sejam conscientes. A “significação” de um termo de tipo natural e a “essência” à qual esse
termo se refere são coisas distintas. A definição da “essência” de um termo natural cabe à
investigação científica, não se trata de uma questão puramente semântica. Por exemplo, a
palavra “água” foi inicialmente definida por referência ao líquido incolor encontrado nos
rios, lagos, etc. Mesmo antes de se descobrir qual é a “essência” da água, foi possível
inferir, a partir de certas evidências, que o gelo também era água. Posteriormente,
descobriu-se a estrutura molecular da água (H2O), e esta estrutura permitiu compreender
por que se tratava da mesma substância. Quando isso ocorreu, “água” não passou a
significar H2O. A significação do termo água continuou sendo a mesma anterior, mas, a
partir de então, a essência da água passou a ser considerada sendo H2O. Uma vez que se
conhece que H2O é a essência da água, se for encontrada outras coisas que possuem essa
mesma essência, tais coisas também poderão ser chamadas de água. Portanto, decidir que
coisas do mundo podem ser chamadas de água é uma questão que deve ser estabelecida a
partir da investigação científica. Da mesma forma, o fato do termo “mental” ter sido
definido primeiramente por referência a pensamentos, desejos, crenças, etc., “conscientes
255
não implica que só possa ser considerado mental aquilo que é consciente. Assim como não
são apenas as substâncias líquidas que podem ser consideradas como sendo água, embora
esse último termo tenha sido definido inicialmente por referência ao líquido. “Mental” não
significa “consciente”, da mesma maneira como “água” não significa “líquido”. E, mesmo
antes de se descobrir qual é a essência do que é significado por um termo, é possível inferir
que há outras coisas que também podem ser nomeadas por esse termo. Isso foi o que
ocorreu com Freud. Mesmo sem conhecer a “essência” do mental, ele percebeu, a partir dos
sintomas neuróticos, dos sonhos, da sugestão hipnótico, que havia processos inconscientes
que, legitimamente, poderiam ser chamados de mentais. Se fatos empíricos revelam que há
fenômenos com as mesmas características daquilo que se chama de mental e que não são
conscientes, não há nenhum problema em considerar tais fenômenos como sendo mentais,
assim como é legítimo considerar o gelo como sendo água embora ele não seja líquido,
mesmo antes de se conhecer a estrutura molecular subjacente à água. Portanto, não
nenhum problema conceitual que impeça, em princípio, a suposição de uma mente
inconsciente. Se há ou não justificativa para fazê-lo, é uma outra questão que deve ser
resolvida pela investigação científica; trata-se de uma questão factual e não de uma questão
semântica.
Estabelecido que “mente inconsciente” não é uma impossibilidade conceitual, o
segundo passo da argumentação é decidir se essa suposição é “teoricamente” possível,
argumenta Wakefield. Para isso, em primeiro lugar, é preciso definir qual é a essência do
mental e então estabelecer se coisas com essa essência podem ser inconscientes. É claro
que, caso se parta do pressuposto de que a consciência é a essência do mental, supor que há
mente inconsciente seria impossível; contudo, para Freud, a consciência não constitui a
essência do mental, mas apenas uma qualidade que se acrescenta a uma pequena parte
deste. Wakefield argumenta que a essência do mental para Freud é a representacionalidade
de estados cerebrais, mas ele considera que essa era uma suposição implícita na teoria.
Procuramos mostrar aqui que de fato essa era a essência do mental para Freud, mas que
essa era, para ele, uma suposição explícita: mental para Freud é, sobretudo, o
representacional, isto é, processos cerebrais com características específicas que se referem a
um objeto, a um estímulo corporal, a uma palavra.
256
Wakefield observa que a postulação de uma essência é, em grande parte, a
postulação de uma causa subjacente ao fenômeno manifesto, a partir do qual a categoria foi
selecionada em primeiro lugar. Por exemplo, o movimento de elétrons é a essência da
eletricidade, porque os fenômenos que primeiramente foram usados para nomear
eletricidade são, em última instância, explicáveis pelo processo subjacente do movimento
de elétrons. Uma vez que o movimento de elétrons foi estabelecido como a essência do
fenômeno especificado, qualquer outro processo que tenha a mesma essência pode ser
legitimamente categorizado como eletricidade. Mas, mesmo antes da essência ser
conhecida, um fenômeno podia ser descoberto como fazendo parte da categoria
eletricidade, a partir de evidências indiretas de que ele compartilha a mesma essência do
fenômeno original. Wakefield argumenta que, assim como a maioria dos cientistas
cognitivos atuais, Freud acreditava que o fator explicativo relevante do mental é a estrutura
representacional dos estados cerebrais, independentemente do estatuto consciente ou não do
estado. A consciência seria apenas algo que se pode acrescentar a um estado cerebral com
estrutura representacional. Esta estrutura é a essência do mental e é independente da
consciência; portanto, é legítima a suposição de uma mente inconsciente.
Wakefield chama a atenção para o fato de que Freud, assim como os cientistas da
cognição atuais, estava ciente de que considerar a representacionalidade dos estados
cerebrais a essência do mental é uma postura provisória e que uma resposta real sobre essa
essência requer uma especificação detalhada da natureza do sistema representacional do
cérebro. Nesse sentido, nem Freud, nem os cientistas cognitivos chegaram realmente a
conhecer a essência do mental. Wakefield cita a seguinte passagem de Freud, do texto
“Algumas lições elementares sobre psicanálise” (1940 [1938]), onde ele se refere a essa
questão:
“Se alguém perguntar o que é propriamente o psíquico, seria fácil lhe
responder remetendo-o a seus conteúdos. Nossas, percepções,
representações, recordações, sentimentos e atos de vontade, tudo isso
pertence ao psíquico. Mas, se essa inquirição prosseguisse e agora
quisesse saber se todos esses processos possuem um caráter comum que
nos permitisse apreender de uma maneira mais próxima a natureza ou,
como também se diz, a essência do psíquico, seria mais difícil dar uma
resposta.
257
Se fosse dirigida uma pergunta análoga a um físico ( por exemplo, acerca
da essência da eletricidade), sua resposta – até há pouco tempo – teria
sido: “Para explicar certos fenômenos supomos umas forças elétricas que
são inerentes às coisas e partem delas. Estudamos esses fenômenos,
achamos suas leis e ainda alcançamos aplicações práticas.
Provisoriamente nos basta. Quanto à essência da eletricidade, não a
conhecemos; talvez mais tarde, com o progresso de nosso trabalho, a
encontraremos. Confessamos que desconhecemos justamente o mais
importante e interessante de todo o assunto, mas isso não nos perturba por
hora. Nunca foi de outro modo nas ciências naturais.”
16
Então, seria teoricamente possível, segundo Freud, conceber uma mente
inconsciente, porque se parte do pressuposto de que a essência do mental – a
representacionalidade dos estados cerebrais – pode se realizar na ausência da consciência.
Essa essência do mental só será de fato compreendida quando for possível especificar as
características dos estados cerebrais que lhes conferem sua representacionalidade. Mas,
mesmo antes de se alcançar esse esclarecimento, é legítimo supor que a consciência não é
uma propriedade inerente a todo o mental, portanto, é legítima a suposição de uma mente
inconsciente.
A terceira etapa da argumentação para justificar os estados mentais inconscientes é
estabelecer que tais estados não são apenas conceitualmente e teoricamente possíveis, mas
que eles existem realmente. Desde o início de suas investigações sobre as neuroses, Freud
se depara com fatos que podem ser tomados como evidências empíricas de que há
processos mentais inconscientes: a sugestão pós-hipnótica, os sintomas neuróticos, os atos
falhos, e tantos outros. Wakefield comenta que os estudos de caso de Freud constituem
longos argumentos a favor da necessidade de se postular representações inconscientes para
explicar o pensamento e o comportamento dos pacientes. Na verdade, a evidência empírica
de que há processos mentais inconscientes foi o ponto de partida de toda a investigação
freudiana.
Freud não elabora sua argumentação da maneira sistemática como expõe Wakefield.
Contudo, pode-se argumentar que esses três níveis de argumentação de fato são
16
AE, vol.23, p.284.
258
desenvolvidos por Freud de maneira dispersa ao longo de sua obra. Se fatos empíricos
impuseram a necessidade da suposição de uma mente inconsciente e se não há nenhum
impedimento semântico, nem teórico, para essa suposição, então é plenamente legítimo
estabelecê-la.
PPP
Segundo Freud, a suposição de um inconsciente psíquico permite configurar a
psicologia como uma ciência natural. O inconsciente pode ser abordado de uma perspectiva
científico-naturalista, uma vez que consiste em processos neurofisiológicos e que constitui
uma cadeia causal completa. Já a consciência, segundo os termos do “Projeto...”, estaria
para além dos desempenhos científico-naturalistas. Uma psicologia que lidasse
exclusivamente com os dados da consciência não poderia se configurar como uma ciência,
porque a consciência não forma uma cadeia causal ininterrupta; os fenômenos conscientes
são determinados por processos inconscientes. Freud, contudo, procura – e sua maior
tentativa nesse sentido está no “Projeto...” estabelecer as condições que tornam possível a
consciência, isto é, ele formula hipóteses para explicar os processos nervosos que estariam
na base da experiência consciente. Ao propor que a consciência seja concomitante a uma
parte dos processos psíquicos inconscientes e, ao mesmo tempo, ao procurar formular
hipóteses sobre esses processos nervosos concomitantes da consciência, Freud diferencia
dois tipos distintos de abordagem da consciência: um científico – o que busca estabelecer
os processos neurofisiológicos dos quais a consciência seria concomitante – e um que não
seria científico – que se volta para a aspecto fenomenológico da consciência. Freud estaria
interessado, sobretudo, na primeira dessas abordagens. Solomon (1976) faz o seguinte
comentário sobre esta questão:
“(...) podemos ver, no “Projeto...”, o reconhecimento de um ponto
crucial filosófico ou metodológico – a separação do relato científico e
“naturalístico” de funções psicológicas, e a espécie de relato muito
diferente que emerge da introspecção ou da descrição fenomenológica. É
apenas o primeiro que interessa a Freud.”(p.49)
259
De um lado, estão os processos nervosos “concomitantes” da consciência e, do
outro, a nossa experiência subjetiva consciente. Como se dá a passagem de um para o outro
– ou seja, como os processos cerebrais fazem emergir a experiência consciente – é o grande
problema, para o qual ainda hoje não foi obtida uma resposta satisfatória. Em Freud, não
podemos sequer afirmar, com certeza, que os estados conscientes seriam resultantes de
processos cerebrais, uma vez que a afirmação de Freud de que a consciência é paralela ou é
concomitante aos processos nervosos dá margem para se pensar que ele defendia um
dualismo. Solomon considera que, no “Projeto..”, Freud regressa a um dualismo cartesiano.
Argumentamos que essa hipótese parece bastante problemática, pois ela traria o dualismo
substancial e os problemas por ele implicados para dentro do campo do psíquico. Embora
não possamos negar em definitivo que Freud trabalhasse com tal hipótese, não parece
também haver motivos para pensarmos que ela é provável. Freud certamente não
desconhecia os problemas implicados por tal tipo de concepção: sua opção talvez tenha
sido não se comprometer explicitamente com qualquer hipótese a respeito da natureza da
consciência, justamente por estar ciente dos enormes problemas que esta questão envolvia.
Como já comentamos, na teoria freudiana, o grande problema não é o inconsciente, mas
sim a consciência, o que, entre outros motivos, o coloca numa situação bastante próxima à
do contexto atual. Ao contrário do que ocorre em relação à natureza da consciência, a
concepção de Freud a respeito da natureza do psíquico inconsciente parece ter alcançado
um grau muito maior de clareza. Embora tenha abandonado parcialmente a tentativa de
descrevê-lo em termos neurológicos, ele não abandonou a esperança de que um dia isso
pudesse tornar-se possível e de que sua metapsicologia pudesse ser um dia substituída por
uma neuropsicologia.
260
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