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Universidade Estadual do Oeste do Paraná
Centro de Educação, Comunicação e Artes
Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Letras
Nível de Mestrado
Área de Concentração em Linguagem e Sociedade
A NARRATIVA DE MIGUEL SANCHES NETO: MEMÓRIA E
IDENTIDADE
ALZIRA FABIANA DE CHRISTO
Cascavel
2007
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ALZIRA FABIANA DE CHRISTO
A NARRATIVA DE MIGUEL SANCHES NETO: MEMÓRIA E
IDENTIDADE
Dissertação a ser defendida junto ao Programa
de Pós-graduação Stricto Sensu, nível de
Mestrado, em Letras, com área de concentração
em Linguagem e Sociedade, na Universidade
Estadual do Oeste do Paraná - UNIOESTE,
sob orientação do Professor Dr. Antonio
Donizeti da Cruz, como exigência parcial à
obtenção do título de Mestre em Letras.
Cascavel
2007
2
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Catalogação na Publicação elaborada pela Biblioteca Universitária
UNIOESTE/Campus de Toledo.
Bibliotecária: Marilene de Fátima Donadel - CRB – 9/924
A NARRATIVA DE MIGUEL SANCHES NETO: MEMÓRIA E
IDENTIDADE
Esta dissertação foi julgada adequada para a obtenção do Título de Mestre em Letras e
aprovada em sua forma final pelo Programa de Pós-graduação Stricto Sensu em Letras, nível
de Mestrado da Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE, em 28 de fevereiro
de 2007.
Professor Dr. Antonio Donizeti da Cruz
(Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE)
Coordenador
Apresentada à Comissão Examinadora, integrada pelos professores
Professora Drª Adelaide Caramuru Cezar
(Universidade Estadual de Londrina – UEL)
Professora Drª Rita Felix Fortes
(Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE)
Professor Drº Antonio Donizeti da Cruz
(Universidade Estadual do Oeste do Paraná – UNIOESTE)
Cascavel, 28 de fevereiro de 2007.
A Antonio, Bea e Rita...
pela formação de uma memória e identidade humana e profissional.
AGRADECIMENTOS
Agradeço primeiramente ao Colegiado do Curso de Letras da UNIOESTE Campus
de Marechal Cândido Rondon e ao Programa de Pós-Graduação em Letras por contribuírem
para a minha formação me proporcionando educação de qualidade e infra-estrutura ao estudo
e à pesquisa desde a graduação. Aos funcionários que estavam sempre dispostos a ajudar e aos
professores, que servem de exemplo a ser seguido. Agradeço pelo orgulho que tenho de fazer
parte dessa instituição.
Ao meu orientador professor Dr.Antonio Donizeti da Cruz, por me repassar, desde a
graduação, a paixão pela Arte. Com sua calma cotidiana e profissionalismo impecável,
conseguiu lidar com minhas dificuldades, deficiências, contratempos e angústias; pelo tempo
dedicado às inúmeras sessões de orientação, disponibilidade e paciência em compartilhar seu
conhecimento e pelas discussões elucidativas ao longo desses dois anos de estudos. Professor
que, além de conquistar a todos por meio do seu conhecimento, nos ensina a importância da
humildade, educação e respeito. Nesses quase seis anos tive o privilégio de me relacionar com
um exemplo de profissional e de ser humano. Obrigada por confiar em mais uma etapa da
minha carreira acadêmica e profissional.
À pessoa que orientou cada passo do meu caminho na carreira acadêmica desde a
iniciação científica. Maria Beatriz Zanchet, professora e orientadora, companheira e amiga.
Agradeço a confiança, o incentivo à minha carreira, as oportunidades, experiências
maravilhosas e a orientação rigorosa na hora certa. Espero ser capaz de retribuir o apoio que
proporcionou à minha formação como profissional e como pessoa. Agradeço de maneira
especial pela disposição em acompanhar a produção deste trabalho e pelas sugestões, as quais
foram fundamentais para as questões levantadas na investigação e os caminhos que a
dissertação tomou.
À professora Drª Rita Felix Fortes, por ser tão admirável e respeitável. Por ser esta
profissional que nos impulsiona aos estudos, à dedicação ao trabalho e especialmente, à
literatura. Agradeço pelas leituras, contribuições e sugestões ao trabalho desde as discussões
na disciplina “Linguagem Ficcional do Século XX: Literatura, Sociedade e Mito”.
A todos os professores do Programa de Mestrado em Letras, especialmente aos que
ministraram as disciplinas que cursei: Regina Coeli Machado e Silva, Eliane Cardoso
Brenneisen, Wander Amaral Camargo, Jorge Bidarra, Aparecida Feola Sella, Ivo José
Dittrich, Acir Dias da Silva e Maria José Rizzi Henriques... Levo em minha memória, o
entusiasmo e os bons exemplos de cada um de vocês.
A toda a minha família por sempre compartilharem minhas conquistas com alegria. O
reconhecimento da minha família é o fio de prumo que me faz saber que estou no caminho
certo. Agradeço principalmente aos meus pais, Sidney e Loreni, e ao meu irmão, Cristiano,
por me apoiarem neste período, que é mais difícil para aqueles que estão mais próximos. À
minha cunhada, Cris, que faz, carinhosamente, parte da nossa família. Agradeço
principalmente à minha mãe por ser minha amiga e companheira fiel de profissão, por ouvir,
sem reclamar, os meus devaneios filosóficos, sociológicos, literários e profissionais. Obrigada
pelo respeito aos meus momentos de estudo, pelos agrados nas horas certas, pelo apoio
irrestrito e pelo papel fundamental na minha vida. Este trabalho é dedicado também a vocês.
Aos amigos! Seria impossível percorrer esse caminho sem os momentos de leveza
proporcionados por eles. É impossível citar o nome de todos que tornaram essa tarefa menos
solitária. Mas citarei algumas pessoas especiais que estiveram ao meu lado durante esse
momento acadêmico, dividindo suas angústias, aflições, esperanças e alegrias: Ana Paula,
Angela, Andreia, Caio, Cezar, Clarice, Jerri, Juliana, Lana, Luiza, Kelnir, Sueli, Jordana,
Kelly, Rosselane e Rafaella. Ao Peter, amigo que, além de me proporcionar boas risadas e
atenuar o nervosismo, me socorreu, gentilmente, no momento de formatar a dissertação.
A toda a equipe de profissionais meus colegas da Escola Estadual Santa Cruz.
Agradeço pelo incentivo, pelos exemplos e pelo comprometimento para com a educação de
qualidade e a preocupação com formação do ser humano... Aos alunos que em tão pouco
tempo, fizeram de mim uma professora feliz e apaixonada pelo magistério. Agradeço pelo
carinho que sempre demonstraram a mim e à matéria que ministro... Vocês foram
fundamentais em tudo...
Especialmente a Deus: Ele que sempre me deixa sem palavras...
Quando começamos o Mestrado são tantos os conselhos, os choros, as angústias, as
partilhas... Por isso, agradeço àqueles que, a seu modo, com uma palavra, um sorriso, um
abraço, um aceno participaram desse momento, pois foi a torcida e o companheirismo que me
impulsionaram a prosseguir. Encerro esta dissertação vendo que construí muitas amizades e
fortaleci laços de solidariedade... Queria em tão pouco tempo, fazer tanto... Fiz o possível...
Chove? Nenhuma chuva cai...
Então onde é que eu sinto um dia
Em que o ruído da chuva atrai
A minha inútil agonia?
Onde é que chove que eu o ouço?
Onde é que é triste, ó claro céu?
Eu quero sorrir-te e não posso,
O céu azul, chamar-te meu...
E o escuro ruído da chuva
É constante em meu pensamento.
Meu ser é a invisível curva
Traçada pelo som do vento...
E eis que ante o sol e o azul do dia,
Como se a hora me estorvasse,
Eu sofro...E a luz e a sua alegria
Cai aos meus pés como um disfarce.
Ah, na minha alma sempre chove.
Há sempre escuro dentro de mim.
Se escuto, alguém dentro em mim ouve
A chuva, como a voz de um fim...
Quando é que eu serei da tua cor,
Do teu plácido e azul encanto,
Ó claro dia exterior,
Ó céu mais útil que o meu pranto?
(PESSOA, Fernando, 2003).
RESUMO
Este trabalho constitui uma análise do livro Chove sobre minha infância, do escritor
paranaense Miguel Sanches Neto. A obra em questão aborda a trajetória de Miguel, um
menino pobre, que alimenta o sonho de ser escritor em um universo em que as ações estão
ligadas ao cultivo da lavoura. Sanches Neto ambienta espacialmente Chove sobre minha
infância, em Peabiru, cidade na qual foi criado, situada no Noroeste do Paraná, fato que
corrobora para a mescla entre o real e o ficcional. A verificação do tema “Memória e
identidade” na obra, diz respeito, à memória e identidade individual e social. Ou seja, ao
mesmo tempo em que se verifica a (re)construção do eu por meio da memória, há, também, a
observação a respeito da constituição do espaço social, uma vez que, ao fazer o retorno à
infância por meio das memórias individuais, Miguel Sanches Neto reproduz os costumes, a
linguagem e o cotidiano do interior paranaense de meados do século XX. Em seguida, são
analisados os principais recursos literários utilizados pelo autor, especialmente, a
autobiografia, o duplo, as vozes do romance e a multiplicidade de gêneros. Esses recursos,
que desempenham um relevante papel na obra e na literatura contemporânea, são estudados
com base na teoria bakhtiniana. Esta teoria aprofunda o conceito de plurilingüismo, o qual é
visto como um dos principais expedientes da obra de Sanches Neto. A última parte deste
estudo analisa a correlação entre tempo e espaço e como são representados em Chove sobre
minha infância. Ao reproduzir a sociedade do interior paranaense, Miguel Sanches Neto não
está apenas estabelecendo um perfil histórico, social e econômico do Estado, mas, fazendo um
retorno a um modo de organização social distinta dos grandes centros industriais. na obra
de Sanches Neto uma revelação da identidade social presente no interior paranaense entre as
décadas de 1950 a 1980. Ao (re)construir esse contexto, o escritor atenta para um período de
transformação na sociedade paranaense, isto é, é a passagem de uma agricultura de
subsistência para uma agricultura mecanizada e globalizada.
PALAVRAS-CHAVE: Chove sobre minha infância; Identidade; Memória;
ABSTRACT
This task is related to an analize from the book Chove sobre minha infância written by
Minguel Sanches Neto from Parana State. This work tells Miguel’s journey as a poor boy,
who dreams to be a writer around a universe where the actions are linked to harvest and crops.
Sanches Neto adapts Chove sobre minha infancia, in Peabiru, place where he grew up,
located in the Northwestern of Parana, this fact is strengthen by the mixture of real and
fictional. The theme “Identity and Memory”, in the work, is related to and individual and
social memory and identity. On the other hand at the same time where is possible to verify a
re-build of I because of memory, there is also a childhood in the middle of the individual
memories. Miguel Sanches Neto replicates the habit, the language and the countryside daily in
the middle of XX century. Later are analyzed the main literary resource used by the author,
specially the autobiography, the couple, the voices and multiplicity of the gender. These
resources have an important role in the work and also in the contemporary literary and the
studies are based on bakthin theory. This theory is about plurilinguism concepts, which is
realized as one of the main dossier of Sanches Work. The last part of this study is to analise
the correlation between time and space and also how they are represented in Chove sobre
minha infancia. When replicate the Parana countryside society Sanches Neto is not worried
only to establish a historical, social and economic state profile, but, going back to the social
organization way distinguished form the industrial centres. There is also in the work a social
identity development in the countryside of Paraná between the 50s and the 80s. Rebuilding
this context the author considers the society transformation period of Paraná; this is the
passing of familiar agriculture to globalization agriculture.
KEY WORDS:Chove sobre minha infância; Identity; Memory.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...........................................................................................................................
1. IDENTIDADE E MEMÓRIA ................................................................................................
1.1 - Da poética e do ofício: A arte e memória do mundo. .......................................................
1. 2 – Inquietação e desassossego: a busca pela verdadeira identidade. ...................................
1.3 – A formação de um menino-escritor: Memória individual e coletiva. .............................
2. O ESCRITOR E SEUS DUPLOS: VOZES INTERCALADAS .........................................
2.1 - Autobiografia e ficcionalidade: os itinerários de um herói excêntrico. ............................
2.2 - A poética do duplo e a reflexão sobre a vida. ...................................................................
2.3 - As vozes no romance e o conflito das ideologias. ............................................................
2.4 – A multiplicidade de gêneros: a voz e a cosmovisão das personagens. ............................
3. TEMPO E ESPAÇO: MEMÓRIA SOCIAL ........................................................................
3.1 - Tempo e espaço na literatura. ...........................................................................................
3.2 – Retalhos do Brasil: O contexto social paranaense. ..........................................................
3.3 – Os resquícios do patriarcalismo e os conflitos familiares. .............................................
CONCLUSÃO .............................................................................................................................
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................
INTRODUÇÃO
O presente estudo tem como objetivo elencar as principais características do romance
Chove sobre minha infância
1
(2000), do escritor paranaense Miguel Sanches Neto. O trabalho
será desenvolvido por meio de pesquisa bibliográfica, tendo em vista uma fundamentação
teórica centrada na sociologia e crítica literária. Esta dissertação, ao tentar desvendar a obra de
Miguel Sanches Neto, analisa uma das mais bem sucedidas realizações da literatura brasileira
contemporânea. Além disso, se caracteriza por ser o primeiro estudo acadêmico que
contempla a produção literária do referido escritor.
Tentando aprofundar os estudos em relação à produção de Sanches Neto, a pesquisa
pretende identificar os recursos temáticos e técnicos mais importantes e recorrentes na obra
selecionada, assim, por meio dos expedientes usados pelo escritor, tem-se o estilo literário
delineado por ele. Deste modo, a partir da obra selecionada, serão analisadas observações
acerca do tema “Identidade e memória”, bem como a respeito do real, do ficcional, da
autobiografia e do tempo e espaço social.
As reminiscências da época infantil do escritor Miguel Sanches Neto são a base
composicional de Chove sobre minha infância. A trama narrativa está ligada às recordações
da personagem Miguel, um menino pobre, que sonhava em ser escritor. Contudo, o universo
rústico do qual fazia parte, não lhe oferecia outra possibilidade senão a de repetir a trajetória
das demais pessoas que compartilhavam da mesma realidade: Trabalhar na lavoura. Sanches
Neto ambienta espacialmente o romance em Peabiru, cidade onde foi criado situada no
Noroeste do Paraná. Este expediente evidencia ainda mais o enlace entre o real e o ficcional
presente na obra.
Miguel Sanches Neto nasceu em Bela Vista do Paraíso, interior do Paraná, em 1965.
Após perder o pai em um acidente automobilístico, Miguel, juntamente com a família, muda-
1Todas as citações da obra de Sanches Neto referem-se a: SANCHES NETO, Miguel. Chove sobre minha
infância. Rio de Janeiro: Record, 2000. E serão referenciadas apenas com a abreviatura (CMI) e com a indicação
da página.
se para Peabiru, cidade na qual vive sua infância, adolescência e boa parte da juventude.
Apesar de sentir a vocação para as letras desde criança, é na adolescência que começa a
escrever seus primeiros poemas, dando início, então, a uma intensa produção literária. Após
muitas divergências familiares, inclusive devido à escolha profissional, em 1986, forma-se
em Letras na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Mandaguari (PR). No ano
seguinte, inicia carreira no magistério em escolas públicas de Curitiba e região metropolitana.
Sempre vinculado a atividades culturais, publica em 1989, textos sobre literatura no
Nicolau na época, um dos jornais culturais mais importantes do Paraná, com circulação em
nível nacional. Em 1999, foi convidado pelo então governador do Paraná Jaime Lerner
para atuar como assessor na Casa Civil. Em seguida, no dia 22 de julho, é nomeado Presidente
da Imprensa Oficial do Estado do Paraná. Miguel permanece no cargo até final de 2002. Este
período em que viveu em Curitiba, foi marcado pelo convívio intenso com Dalton Trevisan e
Wilson Martins.
Miguel Sanches Neto já teve seus textos publicados em vários periódicos e em revistas
como República e Bravo! e nos jornais O Estado de São Paulo, da Tarde e Jornal do Brasil.
Atualmente, após concluir as formações específicas especialização, mestrado e doutorado
Sanches Neto é professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa. Escreve para a Gazeta
do Povo, desde 1993 e na revista Carta , desde 2004. Professor, escritor, jornalista, poeta e
crítico literário, Miguel Sanches Neto escreve há algum tempo. Hoje, depois de uma boa parte
de seus romances e poemas terem sido publicados e consagrados em concursos, dentre eles:
“Prêmio Nacional Luís Delfino” pela obra Inscrição a giz, em 1989;Prêmio Cruz e Sousa”
pela obra Hóspede secreto, em 2002 e “Prêmio Binacional das Artes e da Cultura Brasil-
Argentina”, em 2005, reconhece-se nele um autor que vem produzindo uma obra bastante
significativa no contexto da literatura atual. Dentre suas publicações, estão: Inscrição a giz
(1989), Chove sobre minha infância (2000), Hóspede secreto (2002), Herdando uma
biblioteca (2004), Venho de um país obscuro (2005), Um amor anarquista (2005), Pisador de
horizontes (2006) e Impurezas amorosas (2006). Miguel Sanches Neto publicou também
livros de crítica e de ensaios literários, como: Entre dois tempos (1999) e Biblioteca Trevisan
(1996).
Após a publicação de Chove sobre minha infância (traduzido também para o espanhol)
e Hóspede secreto obras que receberam inúmeras apreciações por parte da crítica literária
brasileira é que Sanches Neto passa a ser reconhecido, como ficcionista, em âmbito
nacional. Do mesmo modo, a atuação do escritor na crítica literária tem sido amplamente
reconhecida. Conforme Wilson Martins, “T.S. Elliot dizia que para ser crítico um
método, ser muito inteligente. E quando diziam que os críticos erravam muito, ele respondia:
os escritores também. Crítico não se faz por formação, ser crítico é uma vocação. Espontânea,
instintiva. Aposto em Miguel Sanches Neto” (MARTINS, 1997, p. 2).
A respeito do destaque que Sanches Neto ocupa na Literatura Brasileira, Mario Sabino
afirma:
O paranaense Miguel Sanches Neto não é badalado pelos editores dos
cadernos culturais, não faz parte de panelinhas literárias, não tem
lobistas na universidade, não reivindica financiamento estatal nem
posa de injustiçado pelas ‘elites intelectuais’. Não bastassem essas
qualidades (grandes qualidades, enfatize-se), ele é um ótimo escritor.
O melhor da sua geração [...] (SABINO, 2005, p. 86).
Como romancista, Sanches Neto alcançou projeção nacional e, hoje, faz parte do
mesmo quadro em que estão inseridos Dalton Trevisan, Domingos Pellegrini, Roberto Gomes
e Cristovão Tezza. Embora esses escritores sejam contemporâneos e dividam,
conseqüentemente, a mesma paisagem cultural e geográfica, suas produções literárias seguem
trilhas bem peculiares.
A produção literária de Sanches Neto, tanto em prosa quanto em verso, é marcada pela
expressão memorialística, deste modo, em se tratando de Chove sobre minha infância, obra
mais expressiva da carreira literária do autor, faz-se necessário uma abordagem a respeito dos
mecanismos da memória. Tendo em vista que a memória está diretamente associada à
identidade, e que, por meio dela, possibilidades de uma volta ao passado para decifrar os
acontecimentos, as discussões do primeiro capítulo abordam, especificamente, esta temática.
A memória é discutida neste estudo com base em dois eixos teóricos. O primeiro,
considera a memória como individual, resultado de um mecanismo exclusivamente biológico.
Por outro lado, tem-se a concepção da memória adquirida por meio da convivência social.
Durante muito tempo, os estudiosos acreditaram que a memória pertencia somente à esfera
biológica, contudo, a partir de estudos que não conseguiram explicar o motivo pelo qual os
seres humanos conseguiam lembrar de determinados acontecimento e de outros não, passou-
se a considerar, também, a memória como um mecanismo afetivo, nesse sentido, a memória
passou a ser entendida como uma série de mecanismos sociais que estão atrelados ao fato de
um indivíduo viver em sociedade.
A enunciação memorialística de Sanches Neto, além de ser expressão humana e
individual é, também, quando transformada em elaboração literária, manifestação coletiva. Na
medida em que alusão à infância, mesmo circunstanciada na vivência individual, a
remição a todo um contexto social e cultural. Segundo Polzonoff, com o intuito de narrar sua
história, “Miguel Sanches traçou um retrato impiedoso, cruel, do povo que ergueu o Paraná
nos anos imediatamente posteriores à colonização do estado. Vale lembrar que até a década de
40 o interior do Paraná era um sertão praticamente inexplorado” (POLZONOFF, 2006, p. 5).
Ou seja, no momento em que traz à tona o seu passado, Sanches Neto expõe a história de um
série de outras pessoas, por que o que ele faz é, a partir da sua trajetória de vida, representar
outras tantas que viveram no mesmo espaço geográfico. Ao mesmo tempo, o retorno ao
passado possibilita uma reflexão, tanto em relação ao vivido quanto ao presente.
Esta faculdade proporcionada pela memória faz com que, no momento do retorno ao
passado, se repense e se descubra os motivos pelos quais os fatos aconteceram. Assim, por
meio das lembranças, o homem, além de se descobrir e se reconhecer, compreende o que se
passa no seu âmago e portanto, a formação da sua identidade. Toda a abordagem teórica é
exemplificada por meio da personagem Miguel e do seu universo narrado.
No segundo capítulo, a discussão se com base na teoria bakhtiniana a respeito das
vozes presentes no romance. A obra do teórico russo Mikhail Bakhtin, fundamental para a
abordagem de alguns tópicos desenvolvidos nesta dissertação, é bastante ampla e tem o
dialogismo como princípio constitutivo da linguagem. A partir dessa idéia, de fundo
sociológico, nasce a teoria bakhtiniana do romance, na qual estão evidenciados vários
conceitos que são apresentados neste estudo.
A teoria bakhtiniana fundamenta esta análise da obra romanesca de Miguel Sanches
Neto por apresentar e discutir vários conceitos e recursos literários, que, em Chove sobre
minha infância aparecem. Para Bakhtin, o romance não é um gênero literário dono de normas
fixas, mas um gênero maleável, que apresenta, sobretudo, a representação do homem em
sociedade. O romance é o gênero no qual os jeitos humanos são representados e é por isso que
o teórico o nomeia como pluriestilístico e plurilingüístico; Este conceito sustenta toda a teoria
de Bakhtin a respeito do gênero romanesco.
Neste capítulo, portanto, a discussão parte do conceito de autobiografia e ficção.
Chove sobre minha infância é uma obra que, em uma primeira leitura, deixa o leitor em
dúvida sobre o que é realidade e o que é ficção, tudo isso se primeiro, pelo fato de a
história narrada estar muito próxima daquela vivida pelo autor do livro e, segundo, devido ao
personagem principal ter o mesmo nome que o criador da obra. Contudo, deve-se observar
que, conforme a teoria estudada, toda obra, mesmo que esteja próxima à realidade, é ficcional.
Posteriormente, a discussão em torno do mito do duplo, a elucidação de uma teoria
que demonstra como os homens são formados a partir do olhar do outro. O ser humano é,
simultaneamente, individual e coletivo. Na medida em que possui uma personalidade que lhe
é singular, ele é individual, contudo, sabe-se que essa mesma personalidade é formada a
partir de um ponto de vista alheio, o outro, assim, no caso do menino Miguel, sua
personalidade foi formada tanto pelos costumes e modos que herdou do pai, quanto os
herdados do padrasto, mesmo que esses fossem repelidos.
As proposições sobre as vozes apresentadas nos romances e suas ideologias, Bakhtin
defende que a maior característica desse gênero literário é, justamente, a expressão desses
pontos de vistas diversificados. Em meio a uma grandiosidade de vozes, o artista escolhe as
que mais se assemelham ao universo narrado para representar, por meio de suas personagens.
Essas vozes que se apresentam no romance são marcadas pela relação dialógica, ou melhor,
por seres que são inacabados e que estão em processo. Em sua obra, Sanches Neto se vale da
história individual do menino Miguel para expor uma série de outras histórias e, portanto, as
vozes sociais constituídas social e historicamente, conforme aponta Bakhtin.
Do mesmo modo, a intercalação de gêneros é um recurso usado pelo criador da obra
para dar vazão e espaço a outras vozes no romance. Por meio da multiplicidade de gêneros
que são expostos em um romance, deixam claras as idéias e o universo ao qual a personagem
pertence. A intercalação de gêneros, além de demonstrar a visão das personagens sobre
determinado aspecto, amparo ao escritor naquilo que ele está afirmando. Ou seja,
geralmente, os gêneros reforçam a idéia apresentada pelo escritor, eles podem, também,
servir para ampliar o campo de vista do leitor, possibilitando a ele mais uma visão sobre os
fatos e sobre a história.
No último capítulo, as discussões estão relacionadas ao tempo e ao espaço na
literatura. Isto é, como o tempo e o espaço estão diretamente ligados em uma obra de arte. Na
medida em que a obra literária expressa características da sociedade ou de um determinado
grupo social, a necessidade de uma localização no tempo e no espaço, caso contrário, o
sentido que se quer repassar, pode não ficar claro. De acordo com a teoria bakhtiniana, o
tempo é entendido como um conjunto de relações vinculado às épocas históricas, contudo,
não somente a uma época, ele está vinculado à vida, uma vez que esta está amparada em um
tempo e em um espaço.
Nesse sentido, ao falar da sua trajetória marcada por conflitos e contradições, o
personagem Miguel, expõe um determinado grupo social, localizado em um tempo e espaço.
Chove sobre minha infância expõe uma época de transição social e econômica da sociedade
paranaense. A mecanização agrícola e o conseqüente aumento da urbanização, em meados da
década de 1960, é muito bem explanada pelo autor. Essas transformações resultantes da nova
ordem econômica, causam uma acentuada mudança nos costumes e modo de organização
desse universo rural. Ao mesmo tempo em que evoca as reminiscências do escritor, a obra
aborda a identidade social presente neste cenário alheio às outras regiões e centros urbanos do
país.
Em alguns momentos deste estudo são apresentados poemas da obra Venho de um país
obscuro
2
, em que o eixo temático se aproxima daquele em discussão no romance. A intenção,
contudo, não é partir para uma abordagem da teoria sobre lírica e, sim, exemplificar que
Sanches Neto recorre à mesma temática em um outro gênero literário.
Este, portanto, é um trabalho que pretende aprofundar o estudo sobre a produção
literária de Miguel Sanches Neto, este que é um dos mais importantes escritores no panorama
de literatura brasileira atual.
2 Todas as citações de Venho de um país obscuro referem-se a: SANCHES NETO, Miguel. Venho de um país
obscuro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005. E serão referenciadas com a abreviatura (VPO) e com a
indicação da página.
1. IDENTIDADE E MEMÓRIA
O meu fim evidente era atar as duas pontas da vida, e restaurar na velhice a
adolescência. Pois, senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui.
Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se me faltassem os
outros, vá; um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde;
mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo. O que aqui está é, mal
comparando, semelhante à pintura que se põe na barba e nos cabelos, e que
apenas conserva o hábito externo, como se diz nas autópsias; o interno não
agüenta tinta. Uma certidão que me desse vinte anos de idade poderia
enganar estranhos, como todos os documentos falsos, mas não a mim
(Machado de Assis).
1.1 - Da poética e do ofício: A arte e memória do mundo.
De acordo com Emil Staiger:
A palavra ‘Poética’ é de origem grega e abrevia a expressão poietike
téchne. [...] Uma poesia vale como irrepreensível, quando corresponde a
modelos existentes. modelos de vários tipos. O poeta pode imitar
Homero, Píndaro, Sófocles ou Menandro. Assim, o ensinamento prático
pressupõe um conhecimento de todas as possibilidades da criação poética.
A poética tem que fazer um inventário, reunir e ordenar os modelos e dar
uma visão de conjunto (STAIGER, 1975, p. 180-81).
Por poética, aqui, entende-se não somente a disciplina responsável por tratar dos
assuntos poéticos, ou seja, da técnica e da estética da poesia, “a poética ensina em que
consiste a essência da poesia; ordena os modelos existentes e com isso cria o problema de
gênero; orienta os inexperientes que pretendem ocupar-se com a atividade poética”
(STAIGER, 1975, p. 181), mas, poética no sentido de criação literária, de produção de
imagens e de abstração do conteúdo ficcional. Ou seja, a literalidade que se apresenta na
produção literária de Miguel Sanches Neto e, principalmente, no livro Chove sobre minha
infância.
Na Poética (1990), Aristóteles postulou a noção clássica de arte. A poesia, segundo o
filósofo, em todas a suas formas, seria a imitação das ações dos homens, a mímesis. A
diferenciação entre os tipos de poesia consistiria, em três aspectos: “a epopéia, o poema
trágico, bem como a comédia, o ditirambo e, em sua maior parte, a arte do flauteiro e a do
citareiro, todasm a ser, de modo geral, imitações. Diferem entre si em três pontos: imitam
ou por meios diferentes, ou objetos diferentes, ou de maneira diferente e não a mesma”
(ARISTÓTELES, 1990, p. 19).
Nessa perspectiva, a criação poética artística está ligada, primeiramente, à ação do
homem em imitar. O que diferencia um gênero artístico do outro são apenas as abordagens
assuntos, formas e meios uma vez que todos eles são, por excelência, de natureza imitativa.
Quanto a isso, Aristóteles afirma: “Parece, de modo geral, darem origem à poesia duas causas,
ambas naturais. Imitar é natural ao homem desde a infância e nisso difere dos outros
animais, em ser o mais capaz de imitar e de adquirir os primeiros conhecimentos por meio da
imitação – e todos tem prazer em imitar” (ARISTÓTELES, 1999, p. 21-22). Assim, a idéia de
poesia, na sua origem, estava voltada à imitação, isto é, à relação existente entre criação
poética – literária – e as ações dos homens.
Conforme a visão aristotélica, tudo o que se produz enquanto expressão artística é,
antes de tudo, imitação daquilo que se tem conhecimento. Ou melhor, as artes têm como
conteúdo principal a apreensão da realidade; por meio das artes são reveladas as
peculiaridades dos homens em suas sociedades: O modo como estão organizados, como
pensam, agem, os seus costumes, etc. Desta forma, as artes possibilitam a manifestação da
memória e da identidade de um sujeito individual ou da sociedade, na qual ele está inserido.
Ao tecer discussões acerca do tema identidade e memória, primeiramente, deve-se
deixar claro que esses dois conceitos estão interligados, ou seja, são inseparáveis, pois, na
medida em que a memória propicia a criação das imagens, também está atuando como
criadora de identidade pessoal e intransferível. Ao rememorar acontecimentos, fatos, lugares e
sentimentos, o homem cria a possibilidade de explicitar aquilo que faz parte da sua existência,
das suas experiências, da sua subjetividade, quer dizer, a sua essência e o que de mais
profundo na sua constituição, portanto, a sua identidade.
Nesse sentido, identidade e memória são as grandes responsáveis pela constituição,
manutenção e continuidade do ser humano. São elas que garantem o seguimento das tradições
e das crenças, ou seja, daquilo que identifica o homem como pertencente a determinada
sociedade. Por se tratarem de assuntos relacionados à essência humana e àquilo que de
mais subjetivo nos homens e nas sociedades, é que identidade e memória são temas
recorrentes na literatura de todos os tempos.
Neste estudo, a verificação do tema identidade e memória nas obras de Miguel
Sanches Neto, diz respeito, neste estudo, à memória e identidade individual e social. Ou seja,
ao mesmo tempo em que estar-se-á verificando a (re)construção do eu, por meio da memória,
também haverá a observação a respeito da constituição do espaço social na obra do autor.
Sanches Neto ambienta espacialmente a obra Chove sobre minha infância em Peabiru, cidade
na qual foi criado, situada no Noroeste do Paraná, fato que corrobora para a mescla entre o
real e o ficcional. Ao mesmo tempo em que realiza essa representação do espaço social,
Miguel Sanches Neto faz também uma (re)construção da sua trajetória de vida. Tanto os
poemas quanto as obras em prosa apresentam episódios muito próximos daqueles vividos pelo
autor.
Ao fazer o retorno à infância por meio das memórias individuais, Miguel Sanches
Neto reproduz os costumes, a linguagem e o cotidiano do interior paranaense de meados do
século XX. Deste modo, ele não está, apenas, estabelecendo um perfil histórico, social e
econômico do Estado, mas, fazendo um retorno a um modo de organização social distinta dos
grandes centros industriais. em suas obras uma revelação da identidade social presente no
interior paranaense entre as décadas de 1950 a 1980. Ao (re)construir esse contexto, o escritor
atenta para um período de transformação na sociedade paranaense, isto é, é a passagem de
uma agricultura de subsistência para uma agricultura mecanizada e globalizada.
A trajetória de Miguel Sanches Neto
3
, personagem principal do romance Chove sobre
minha infância, representa a trajetória de todas as pessoas que viviam no Paraná na época
abordada no romance. A respeito da relação existente entre o papel do romance e a expressão
dos fenômenos sociais, Lukács afirma:
O mundo descrito em cada romance o é construído com ações concretas
de homens concretos em situações concretas, mas é uma espécie de
recipiente, de ambiente construído de forma abstrata , em que os homens
são inseridos a posteriori, desaparece a ligação necessária entre o caráter e
a ação (LUKÁCS, 1999, p. 112).
O romance é a (re)produção da sociedade em todos os sentidos, uma vez que os
discursos são fenômenos sociais. É por meio da expressão artística, aqui especificamente da
literatura, que são representadas os vários estilos, maneiras e jeitos dos homens em sociedade.
A literatura é o meio pelo qual todos os modelos sociais recebem representação.
Deste modo, ao recriar a sociedade paranaense, especificamente, do interior do Estado,
Miguel Sanches Neto traz à baila uma das características da literatura: a representação das
ações do homem em sociedade, isto é, de como ele se organiza socialmente.
Assim como na obra em prosa, a obra lírica, Venho de um país obscuro, tem como
motivo principal as reminiscências da infância, conforme Bueno, “o que mais toca no autor de
Venho de um país obscuro (2005) é sua matéria, e sua matéria é a memória. O poeta é um
escavador de verdades desse país obscuro que se chama o coração dos homens” (BUENO,
2000, p. 1). Verifica-se, portanto, como a memória se faz presente nos poemas de Sanches
Neto. Ao reviver por meio das recordações a sua infância, o autor visibilidade a um
contexto pouco abordado, até o momento, pela literatura brasileira: a sociedade paranaense.
Desta forma, poesia é, também, o meio pelo qual os poetas expõem seus pensamentos, suas
angústias, sua visão em relação à sociedade e à vida de uma forma geral. No entanto, fazer
3 O protagonista do romance Chove sobre minha infância, recebe o nome do próprio escritor, assim, a trama
narrativa gira em torno das ações que alicerçam a vida do menino Miguel Sanches Neto.
poesia não é somente se reportar a um tema ou assunto; o ofício do poeta está diretamente
voltado ao trabalho com as palavras, à lapidação dos sentidos, ou seja, à arte de transformar as
palavras em algo que vai além da sua significação habitual.
Percebe-se, portanto, que a poesia, assim como a prosa ficcional, apresenta enquanto
conteúdo, as ações do homem e sua relação com a sociedade. Conforme Theodor Adorno
(1975), arica é um gênero pertencente à esfera social, ou seja, não é somente subjetiva. Ao
contrário, ela é, também, expressão do social e é devido a isto que tem sido tão rebatida e
desinteressante aos olhos da sociedade burguesa, justamente por criticar e proporcionar
reflexões em relação às ações praticadas pelos homens pertencentes a essa esfera social e
econômica. Sobre este aspecto, Adorno afirma:
Esta universalidade do conteúdo lírico, entretanto, é essencialmente social.
entende o que diz o poema aquele que divisa na solidão deste a voz da
humanidade; mesmo a solidão da palavra lírica é preestabelecida pela
sociedade individualista e por fim atomizada, tal como inversamente sua
vinculação universal vive da densidade de sua individuação [...] Esse
pensamento, contudo, essa interpretação social da lírica, como aliás a todas
as obras de arte, não deve em conseqüência visar sem mediação a assim
denominada posição social ou situação de interesse das obras ou até mesmo
de seus autores (ADORNO, 1975, p. 201).
De acordo com essa perspectiva, se o poema expressa o mundo, ao mesmo tempo
expressa as suas falhas e degradações. A revelação dessas mazelas sociais fora amplamente
observadas pelos “poetas malditos”
4
, ou seja, diante de um mundo em transformação,
Baudelaire, Mallarmé e Rimbauld denunciam as converções sociais das suas épocas.
Nesse sentido, sabe-se que o conteúdo principal das obras de arte sempre foram as
ações humanas, isto é, as obras sempre representaram as identidades sociais. Ao mesmo
tempo, essa (re)construção individual e social é possível devido ao mecanismo da
4 Grupo de Poetas influenciados pelo extremo subjetivismo. Suas produções literárias tinham como tema
principal o devaneio, o erotismo obsessivo, a melancolia, o namoro com a imagem da morte, a depressão, a
dúvida, a ironia, o entusiasmo e o tédio. Essa tendência fora iniciada no Romantismo, contudo, permanece na
esfera da história literária, até hoje.
memória. Na atualidade, as artes têm se empenhado em apresentar conteúdos do passado, em
outras palavras, memórias individuais que universalizam todo um modo de organização
social.
As discussões a respeito da arte pós-moderna para a autora de A poética do pós-
modernismo (1991), Linda Hutcheon iniciam-se a partir das contradições que há entre a arte
do presente e a do passado. Para a teórica, o que constitui a arte pós-moderna é, exatamente,
esse olhar crítico do presente em relação ao passado, “porém, não se volta jamais ao passado
sem haver distância, e na arquitetura pós-moderna essa distância foi assinalada pela ironia”
(HUTCHEON, 1991, p. 62). Atualmente, nas artes, um confronto entre o passado e o
presente. Ou seja, contraditoriamente à época atual em que um valor excessivo pelo novo,
a arte pós-moderna “nos faz voltar para um passado repensado, para verificar o que tem de
valor nessa experiência passada, se é que ali existe mesmo algo de valor” (HUTCHEON,
1991, p. 62).
No entanto, Hutcheon salienta que esse passado contido na arte pós-moderna, não é
um passado de estimas; para ela, trata-se, antes de tudo, de reencontro reflexivo, quer dizer:
Não é um retorno nostálgico; é uma revalidação crítica, um diálogo irônico
com o passado da arte e da sociedade, a ressurreição de um vocabulário de
formas arquitetônicas criticamente compartilhado [...] Suas formas estéticas
e suas formações sociais são problematizadas pela reflexão crítica
(HUTCHEON, 1991, p. 20).
Sabe-se, portanto, que na produção artística atual pós anos 60 uma espécie de
rememoração e reconstrução por meio da literatura, pintura, cinema, música, teatro e dança
– proporcionando uma reflexão crítica em relação ao passado individual e social. Deste modo,
a arte pós-moderna, marcada pelo “retorno ao passado”, possibilita o reconhecimento da
realidade social, histórica e existencial e o entendimento dos discursos e de suas identidades.
Conforme Hutcheon:
Nem mesmo as obras contemporâneas mais autoconscientes e paródicas
tentam escapar aos contextos histórico, social e ideológico nos quais
existiram e continuam a existir, mas chegam mesmo a colocá-los em relevo.
Isso se aplica tanto à música como à pintura; é tão válido para a literatura
quanto para a arquitetura (HUTCHEON, 1991, p. 45).
Considerando todas as artes, e especificamente a literatura, Linda Hutcheon afirma que
a ficção nunca deixou de apresentar aquilo que é a versão dos homens em relação à realidade,
nesse sentido, a ficção tem como conteúdo principal as relações dos homens em sociedade,
especificamente, nos romances atuais: “A ficção é apresentada como mais um entre os
discursos pelos quais elaboramos nossas versões da realidade, e tanto a elaboração como sua
necessidade são o que se enfatiza no romance pós-modernista” (HUTCHEON, 1991, p. 64).
Essa característica em relação à produção literária pós anos sessenta está presente,
também, na Literatura Brasileira. Segundo os críticos literários, o que ocorreu nos anos
sessenta à produção atual, é uma intensa reconstrução da “realidade brasileira” e do vivido. A
diversidade social e cultural do país contribui para essa reconstrução e, desta forma, o que
nos textos literários atuais, não são documentações, mas testemunhos de exclusões e de vidas
que se encontram à margem.
Assim, a quebra do silêncio por parte de Miguel Sanches Neto proporciona a análise
da vida de pessoas do campo e da cidade e, ao mesmo tempo, aborda questões políticas e
ideológicas da época. Um período assinalado pela industrialização e pelo êxodo rural. Suas
obras não configuram somente a existência de um Brasil rural, arcaico e patriarcalista, mas a
emergência de um Brasil capitalista e moderno.
Ao rememorar a sua infância, Miguel Sanches Neto coloca em evidência as
características da realidade social paranaense e as transformações ocorridas nesse contexto
devido ao sistema econômico vigente. Nesse sentido, o escritor faz um registro da memória
coletiva, pois se vale dos signos sociais que identificam determinado grupo ou época. Ao
mesmo tempo, esse universo representado pelo autor é aquele que faz parte da sua abstração
de idéias, ou seja, na medida em que arte é a representação do homem, o que o artista faz é
reproduzir o mundo do qual ele faz parte.
1. 2 – Inquietação e desassossego: a busca pela verdadeira identidade.
A literatura do final do século XX e início do XXI tem sido marcada por um intenso
desassossego, ou seja, pela presença de narradores e personagens que exibem uma certa
inquietação e perturbação diante do mundo que o circunda. A esse respeito Pinto (2006)
afirma: “a tensão [...] simultaneamente pessoal e coletiva, existencial e política, mostra a face
ambígua do homem do seu tempo: fugitivo de si mesmo, atraído por um mundo que tantas
vezes tenta renegar. Desassossegado” (PINTO, 2006, p. 62). O termo “desassossego tem
origem na obra escrita por Fernando Pessoa entre 1913 e 1935, intitulada Livro do
desassossego. Neste livro, o poeta deixa clara a condição do eu que vive atormentado no
plano existencial. De acordo com Pinto, essa forma de representação do eu,
É antes um movimento que transcende a esfera do indivíduo. Mutilado,
fragmentado, dividido é o homem moderno, capaz de perceber sua pertença
ambígua a tempos e mundos que se separam. É a aguda percepção da
história, com suas mudanças e rupturas, que a consciência moderna oferece.
Pessoa viveu radicalmente uma experiência que era coletiva. E seu
desassossego, mesmo se representado de maneira tão intensa e pessoal, não
lhe é exclusivo. É do homem do século XX (PINTO, 2006, p. 62).
Fernando Pessoa então, expressa uma literatura que tem como base a inquietude
existencial, característica que persiste até os dias atuais e que é, segundo alguns teóricos e
críticos literários, o conceito fundador da representação literária do século XXI. É como se o
homem vivesse em um constante exílio ou estranhamento, causado pelos impasses
identitários.
Chove sobre minha infância é a representação dessa literatura que tem como pano de
fundo os desencontros existenciais. A mistura elaborada na obra: o autor se confunde com o
narrador, a presença de imagens em meio ao texto, a mescla entre realidade e ficção, o
passado que o atormenta e o presente incompreendido são expedientes que reproduzem essa
falta de fixação existencial. É a escrita de um autor que nasceu no interior do Paraná em uma
época em que a sociedade local passava por uma intensa mudança econômica e social, assim,
a obra resgata esse passado coletivo, além daquele individual do escritor. Ao mesmo tempo,
é a história nacional recente que, até então, não era contada nos livros. Para resgatar esse
passado individual e coletivo o autor apresenta uma série de pontos de vista, de perspectivas –
do narrador, dos personagens. O Miguel Sanches Neto adulto sai do espaço e tempo de origem
e perde a referência, ao voltar para Peabiru, o narrador diz:
Deixo o carro numa esquina e caminho em silêncio pelas ruas do passado.
[...] No labirinto repleto de armadilhas, encontro um bar íntimo sem
nenhuma pessoa conhecida. Quero ficar com as paredes, com o velho
ladrilho e os vidros sujos eles doem menos do que a humana ruína. Peço
uma cerveja, uma mulher me serve e não pergunto onde andarão os outros
donos, que tinham um sobrinho roqueiro o Beleza que nunca nos
cobrava as bebidas. Bebo em silêncio, olhando cada detalhe. O balcão é o
mesmo, talvez seja outra a mesa de sinuca, garrafas de pinga que datam
do dilúvio. Chove lá fora e olhando a paisagem embaçada é como se fosse a
mesma de antigamente. A mulher se aproxima do balcão para perguntar se
sou daqui. Respondo seco. – Fui. – Muita gente que partiu tem voltado, mas
não conheço ninguém. Sou nova na cidade. Não digo nada, apenas olho as
árvores do outro lado da rua, a velha praça e o local onde havia uma
televisão. Ali, nós, crianças pobres, assistíamos velhas novelas. Onde o
senhor mora? – Numa cidade chamada memória. – Não sei onde fica – diz a
mulher enquanto me vira as costas para atender um jovem (CMI, p. 253-
54).
Esse fragmento mostra como o personagem não consegue manter um vínculo de
pertença com o local de origem, é como se ele fosse um estrangeiro; o que lhe resta são
apenas as memórias incertas, aquelas que mais lhe afligem do que consolam. Contudo, o
relato da trajetória pessoal não tem qualquer intenção de individualizar sua história, uma vez
que ela também deriva de outras histórias. A transição social e econômica pela qual o
universo narrado esteve submetido, deixa no caminho das pessoas que a ele pertenciam um
sentimento de desacerto identitário, de desconsolo, de exílio, visto que toda mudança deixa no
homem a dúvida e a incerteza sobre a próxima novidade, ou melhor, sobre aquilo que
novamente lhe causa estranhamento. Por isso, Miguel é a representação desse homem
hesitante, que vive entre o passado e o presente, entre a memória e a história, num mundo em
que o vazio afetivo se destaca. A dor é funda e é fruto das tempestuosas relações familiares,
devido a isso, as feridas não cicatrizam tão facilmente. Contudo, o que o narrador busca é
uma verdade sobre os fatos, uma identidade individual e coletiva.
A memória é um fenômeno construído social e individualmente, essa base de
fundamentação a torna indissociável da noção de identidade, “quando se trata de memória
herdada, podemos dizer que uma ligação fenomenológica muito estreita entre a memória e
o sentimento de identidade” (POLLAK, 1992, p.5). A noção de identidade diz respeito ao
conjunto de características pelos quais é reconhecível tanto um ser individual quanto uma
coletividade. Segundo Hall (2000), a consciência não é autônoma, ao contrário, ela é
constituída de acordo com o que outras pessoas pensam. É a formação de uma auto imagem
de si, para si e para os outros. De acordo com Pollak, é “a imagem que uma pessoa adquire ao
longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói e apresenta aos outros e a si
própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida da
maneira como quer ser percebida pelos outros” (POLLAK, 1992, p. 5).
O sujeito, desta forma, é um ser intermediado pelo “exterior” e “interior”, ele é
formado a partir do que outras pessoas lhe transmitem em relação aos valores, sentidos e
símbolos, ou seja, à cultura que ele habita. Segundo Hall, “o sujeito ainda tem um núcleo ou
essência interior que é o ‘eu real’, mas este é formado e modificado num diálogo contínuo
com os mundos culturais ‘exteriores’ e as identidades que os mundos oferecem” (HALL,
2000, p. 11). De acordo com esta concepção, a identidade contempla o espaço existente entre
“interior” e “exterior”, isto é, entre o mundo íntimo e particular e o mundo público.
Os sujeitos se autoprojetam as identidades culturais e, à medida em que internalizam
os significados e valores, contribuem para a coerência necessária entre sentimentos subjetivos
e lugares objetivos que ocupam na sociedade. Para Hall, “a identidade então costura [...] o
sujeito à estrutura. Estabiliza tanto os sujeitos quanto os mundos culturais que eles habitam,
tornando ambos reciprocamente mais unificados e predizíveis” (HALL, 2000, p. 12). Deste
modo, pode-se dizer que a memória é, por excelência um elemento que sustenta o sentimento
de identidade, tanto individual quanto coletiva, “na medida em que ela é também um fator
extremamente importante do sentimento de continuidade e de coerência de uma pessoa ou de
um grupo em sua reconstrução de si” (POLLAK, 1992, p. 5).
A identidade é produzida e se manifesta tendo como referência o “outro”. De acordo
com Pollak (1992), “se assimilarmos aqui a identidade social à imagem de si , para si e para
os outros, um elemento dessas definições que necessariamente escapa ao indivíduo e, por
extensão, ao grupo, e este elemento, obviamente, é o Outro” (POLLAK, 1992, p. 5). No
mesmo sentido, a identidade não é, apenas, um conjunto de características que diferenciam
uns sujeitos dos outros, ao contrário, é um processo que se modifica o tempo todo e que
constitui a complexidade do sujeito. É nesse processo que se verifica como as representações
não são construídas somente por meio das experiências pessoais, antes, elas se constituem a
partir das experiências dos outros “daqueles que nos cercam e que nos levam a crer nisto ou
naquilo, que nos dizem quem somos” (CORACINI, 2003, p. 219).
Assim, a subjetividade sempre se constitui em relação a um outro, por isso é conhecida
como algo incessantemente em construção. Nessa concepção, há a revelação de que o sujeito é
heterogêneo, isto é, não possui forma fixa e definida, sua identidade é cindida, dispersa e
sempre reconhecida pela diferença, uma vez que essa diferença, segundo Hall, revela o eterno
adiamento de preencher a falta que nos constitui. Como esta falta nunca é completamente
preenchida, não um ajuste completo. O que ocorre são apenas momentos de identificação.
De acordo com Eckert-Hoff, “Há sempre a costura dos fios (em busca de preencher a falta) e,
ao mesmo tempo, a sutura de fios (as marcas, cicatrizes que ficam), que emergem pela
porosidade da língua fazendo ecoar as vozes que habitam em nós” (ECKER-HOFF, 2003, p.
274).
Devido ao exterior ser uma forma constitutiva do sujeito, a identificação constrói-se na
dispersão de múltiplas vozes costuradas constantemente. Um único sujeito possui identidades
contraditórias e as empurra em diferentes direções, embora permaneçam cicatrizes, elas estão
dispostas de tal modo que nossas identificações são deslocadas pela constante presença de
discursos dos outros. Para Hall, as identificações são compreendidas “como uma construção,
como um processo nunca completado como algo sempre em processo” (HALL, 2000, p.
106). O que significa que os sujeitos estão sempre em busca de preencher essa falta.
Todavia, o outro não deve ser considerado oposto ao eu, ele é um outro ponto de vista
sobre os fatos, uma complementação, ele proporciona ao eu uma outra visão além daquela
estabelecida. Conforme Bhabha,
O lugar do Outro não deve ser representado, como às vezes sugere Fanon,
como um ponto fenomenológico fixo oposto ao eu, que representa uma
consciência culturalmente estrangeira. O Outro deve ser visto como a
negação necessária de uma identidade primordial cultural ou psíquica
que introduz o sistema de diferenciação que permite ao cultural ser
significado como realidade lingüística, simbólica, histórica. Se, como
sugeri, o sujeito do desejo nunca é simplesmente um Eu Mesmo, então o
Outro nunca é simplesmente um Aquilo Mesmo, uma frente de identidade,
verdade ou equívoco (BHABHA, 2001, p. 86).
O outro, portanto, não deve ser considerado absoluto, o que ocorre sempre é uma troca
entre o eu e o outro, de forma que se completa mutuamente. A identificação possui um grande
valor semântico. Deste modo, o sujeito não é completamente livre de seus discursos e
sentidos, nem totalmente assujeitado, ele está, sempre, se movendo entre a incompletude e o
desejo de ser completo, marcado pela ilusão de ser a fonte entre o si mesmo e o outro que o
constitui. Conforme Hall (2000), Freud chamava a identidade de “a mais remota expressão
de um laço emocional com outra pessoa” (2000, p. 17). O pai da psicanálise caracterizava a
identificação como ambivalente. Segundo Hall, para Freud a identificação,
Trata-se, no primeiro caso, de uma ‘moldagem de acordo com o outro’,
como uma compensação pela perda dos prazeres libidinais do narcisismo
primal. Ela está fundada na fantasia, na projeção e na idealização. Seu
projeto tanto pode ser aquele que é odiado quanto aquele que é adorado.
Com a mesma freqüência com que ela é transportada de volta ao eu
inconsciente, ela ‘empurra’ o eu para fora de si mesmo (HALL, 2000, p.
107).
Conforme escreve Hall, a concepção de identidade não se caracteriza por ser estável,
ou seja, por apresentar um eu sem transformações, ao contrário, para ele, a identidade está em
constante transformação, em mudança, as quais acontecem devido às vicissitudes históricas.
Para Hall, “esta concepção não tem como referência aquele segmento que permanece, sempre
e já, ‘o mesmo’, idêntico a si mesmo ao longo do tempo [...] as identidades estão sujeitas a
uma historicização radical, estando constantemente em processo de mudança e
transformação” (HALL, 2000, p. 108).
A identidade, portanto, é a relação estabelecida entre cultura e significado, ou seja, a
compreensão do que são os significados envolvidos nas sociedades se tornam claros por
meio da compreensão dos sujeitos por ela produzidos. A esse respeito Woodward afirma:
A representação inclui as práticas de significação e os sistemas simbólicos
por meio dos quais os significados são produzidos, posicionando-nos como
sujeito. É por meio dos significados produzidos pelas representações que
damos sentido à nossa experiência e àquilo que somos. Podemos inclusive
sugerir que esses sistemas simbólicos tornam possível aquilo que somos e
aquilo no qual podemos nos tornar (WOODWARD, 2000, p. 17).
Os sujeitos são formados pelas representações características das sociedades nas quais
estão inseridos. Os valores, os costumes, o modo de organização social de cada membro da
sociedade é determinado por um conjunto de pensamentos coletivos, isto é, de idéias comuns
entre os sujeitos nela inseridos.
Em Chove sobre minha infância, Miguel volta à sua infância e traz à lembrança o
mundo em que se formou. Mesmo a narrativa partindo da sua trajetória individual, o livro
possibilita o registro de todo um período histórico. O desejo do personagem central é dar
continuação a sua história familiar. Devido ao seu nome ser o mesmo do avô, o menino sente-
se responsável por mudar a trajetória de fracassos da família Sanches Neto: “A reverência às
raízes não foi algo que escolhi, ela veio na hora do registro. Recebi o mesmo nome de meu
avô, responsabilidade que mais tarde, bem mais tarde, fui compreender” (CMI, p. 18).
Sobre o mesmo tema, no poema “Olvidado Vivo”, o eu lírico afirma:
Nasci com o nome de meu avô.
É que meu pai não o tinha conhecido.
Acabei sendo uma espécie de compensação.
Também não conheci meu pai, só que não tive um filho.
Trago no nome apenas um vazio.
Meu avô e meu pai eram analfabetos,
Como pesa este nome: Miguel Sanches Neto (VPO, p. 29).
Nesta perspectiva, o narrador explica o quanto fundamental fora o nome que recebera.
Devido a ele, desde a primeira infância, o menino se sentiu responsável por efetuar uma
mudança na história da família Sanches Neto. Ao mesmo tempo, ele declara que a forma
como mudaria essa trajetória de mau êxito, seria por meio das letras. Ou seja, através dos
estudos, ele poderia libertar a família de um passado de esquecimento a que as classes
incultas do país sempre estiveram submetidas. Ao se valer da trajetória familiar, Sanches Neto
revela um outro contingente social e econômico do Brasil em um dado momento histórico.
Contudo, a herança do nome não era vista com bons olhos por todos que o rodeavam,
conforme o narrador, algumas pessoas, especialmente, seu padrasto e sua família, atribuíam as
fragilidades do menino à sua descendência familiar,
Sempre tive que pagar o preço de ter um sobrenome espanhol. Minha
ascendência explicava todos os meus defeitos. Briguento, irritadiço,
violento, orgulhoso, teimoso. Tudo isso era sinônimo de espanhol e estava
em meu sobrenome. No começo, a força destas poucas letras me assustava,
mas o seu poder foi tão reverenciado que acabei por aceitar a personalidade
que me era imposta pelas pessoas com quem convivia. Fiz-me espanhol,
mais espanhol do que de fato sou. Filho do pai diziam alguns que haviam
conhecido o outro Sanches. Isso era ora elogio, ora agressão. Mas tomei
tudo como algo positivo, puxara aos meus, saíra aos meus antepassados [...]
(CMI, p. 17-18).
As palavras verbalizadas pelo menino expressam como o outro influencia na formação
de uma identidade individual, ou seja, Miguel tinha, devido à carga genética, características
que lembravam seu pai e seu avô, contudo, além disso, ele ouvia das pessoas com as quais
convivia, que ele de fato, se parecia com o pai e que possui muitas particularidades que
lembravam a família Sanches Neto, assim, o menino, ao ouvir repetidas vezes que seu
comportamento era semelhante ao dos seus antepassados, foi incorporando, cada vez mais
atributos que pertenciam aos seus parentes espanhóis.
De acordo com a narrativa, tanto a família materna quanto a paterna apresenta um
itinerário de fracassos. A família de Nelsa chegara ao Paraná na época em que o estado estava
sendo ainda desbravado. Zé-Zabé, seu pai, viera de Minas Gerais com o intuito de melhorar as
condições de vida da família recentemente formada. Por outro lado, a família espanhola
Sanches Neto chegara ao Brasil no início do século XX, época em que os estrangeiros
haviam fracassado na lavoura de café no interior de o Paulo. Aos poucos e por meio de
depoimentos de pessoas ligadas à família, Miguel vai narrando as oportunidades que seus
antepassados buscavam no interior paranaense.
À medida em que o menino vai narrando a trajetória familiar, vão surgindo indícios da
formação da sua personalidade. Logo aos quatro anos é marcado por uma falta irreparável: a
morte do pai que era, até então, um homem admirável para o menino:
Ele era dois. Tinha o dom de mudar, de se levantar de seu fracasso,
entusiasmando a todos. O pai era um herói nestas artes de dar a volta por
cima, de esquecer as derrotas, de acreditar na sua capacidade de superar os
problemas. E era um homem alegre, que cultivava amigos, querido entre os
comerciantes da cidade, financiadores de sua vida improdutiva. Comprava
fiado em todos os lugares e, por mais que não pagasse, sempre tinha
crédito. Pequeno deus da sobrevivência, ele se deixava derrubar sob os
efeitos da bebida, nos fins de noite, quando sua capacidade de acreditar
numa mudança era desmentida: não, naquele dia não conseguiria mais
ganhar nenhum tostão. Era o desempregado, o desiludido que voltava para
casa sem nada nos bolsos. Pela manhã, uma vez mais, ele exibiria sua
confiança, sairia limpo e barbeado, a cabeleira preta bem penteada (CMI,
p.11-12).
É a morte do pai, um ente tão importante, que fará com que o menino resolva mudar o
destino, especialmente, dos homens da sua família. A partir da morte do pai, Miguel abraça-se
a si mesmo, aos cadernos e aos livros. Dona Nelsa é a primeira que o estimula a seguir o
caminho traçado pelas letras. É a mãe que costura para as prostitutas, as quais vão à casa de
Miguel alegres e perfumadas. São elas que valorizam o trabalho da mãe do menino, que a
pagam bem pelo trabalho realizado, e que enchem a casa de perfume e de risadas. Com os
retalhos de tecidos das roupas delas, Dona Nelsa faz roupas para toda a família. Assim, é a
mãe que mantém o universo familiar em equilíbrio, e acima de tudo, é a ela que o ensina a
desenhar as primeiras letras e a escrever o seu nome:
A mãe é uma grande professora e está me ensinando a escrever. Sofro
bastante porque não consigo pegar direito no lápis e a mãe brinca que tenho
o mesmo jeito desengonçado do pai, que também não sabia segurar
corretamente o lápis. – Mas você não vai ser como ele, não. Tem que
aprender a manter o lápis deitado. Não sabia que era tão difícil, ele fica em
pé e a mãe diz que assim é pior e que eu nunca vou ter letra bonita. – Pra ter
letra redonda é preciso segurar levemente o lápis e deixar que ele fique
inclinado sobre a abertura dos dedos. Eu não aprendo a segurar o lápis, mas
vou aprendendo as letras. A mãe escreve no caderno e eu copio. A letra
dela é mais bonita, mas eu consigo, com minha letra feia, imitar as palavras
[...] Depois de virar a folha do caderno, ela repete meu nome e pede pra eu
fazer o mesmo várias vezes [...] Esta letra é a mãe, escreve redondo, com o
mesmo cuidado com que costura [...] Eu escrevo tremido, com as letras
separadas, porque não consigo ficar muito tempo parado. que pra
aprender a escrever eu fico [...] E ela me soletra e eu vou montando, letra
por letra, o nome da mãe. Em seguida, ela copia seu nome numa folha em
branco e fico repetindo até a mão doer. A mãe está escolhendo arroz na
mesa e pára pra me observar. depois de algum tempo percebo que ela
tem os olhos úmidos. – O seu pai ia gostar de ver você assim. Então tento
segurar melhor o lápis, como se fosse pra tirar uma fotografia a ser enviada
pra alguém distante. Tão distante que nem se lembra de aparecer em meus
sonhos (CMI, p. 40-41-42).
A entrada do padrasto na família faz com que Miguel, órfão de pai, se sinta órfão da
mãe e da avó – que, com o casamento da nora, mudara-se da casa do menino:
À noite, deito sozinho no quarto vazio. Não estou acostumado a dormir só,
a vó sempre ficava conversando comigo e era gostoso saber que ao lado, na
outra cama, havia alguém que acordaria a qualquer gemido meu. Agora sua
cama está vazia e eu não sei bem como vamos preencher o espaço deixado
por ela. O armário está com minhas roupas, trazidas do quarto da mãe.
Mas mesmo assim muito espaço sem nada. Durmo lembrando do pai. O
que ele estaria pensando disso tudo? Também ficaria afastado da mãe dele,
coisa que nunca tinha acontecido antes. Com a partida da vó, meu pai fica
órfão, assim como eu. Não terá a mãe ao seu lado toda semana, levando
flores pro cemitério, limpando o túmulo, queimando velas e fazendo
orações. A mesma tristeza o pai deve estar sentindo no cemitério. [...]
Vou até o outro quarto [...] Daí descubro o homem deitado na cama da mãe.
Agora, quando chover, não poderei mais dormir com ela, nem com a
(CMI, p. 71-72).
A presença do padrasto muda completamente os hábitos da família. Sebastião, quando
vai morar com Nelsa, logo se revela centralizador e autoritário. O padrasto é quem vai negar
as habilidades do menino, já que considerava as contas mais importantes que as letras,
Miguel, já de início, se sente desprezado: “Também mostrei pro Sebastião, que folheou os
cadernos sem dar muita importância, me perguntando se eu sabia fazer continhas. Não,
conheço os números mas não sei fazer contas. Você tem que aprender, quando puder vou te
ensinar. É mais importante saber as quatro operações do que ler” (CMI, p. 75).
Deste modo, Sebastião é mais um dos homens que cercam Miguel e que se apresentam
como detentor do poder e autoridade. Este homem desagrada ao menino por que desconhece o
afeto, só valoriza o movimento da enxada, o suor, a colheita e o ofício de fazer dinheiro. À
medida que os anos vão passando, Sebastião é quem impede o menino de ultrapassar seu
grupo social e cultural. Ao invés de dar liberdade a Miguel para ele saldar as dívidas morais
da família, o padrasto o obriga a assumir uma vida agrária. Nesta perspectiva, a condição de
trabalhador braçal entra em atrito com o desejo de constituição de uma cultura letrada.
Devido a este conflito, Miguel se volta contra o padrasto e tudo aquilo que seus
valores representavam. As brigas, na adolescência, se tornam mais intensas, contudo, a força
do menino para alcançar seu objetivo não esmorece. O menino percebe que essa vida que o
faz sofrer é a mesma que lhe forças para lutar sozinho. Os anos passam e ele é sempre
submetido a novas experiências: as aventuras com os amigos, a primeira namorada, os
chiqueiros, a venda da soja, a sujeira e a pobreza das ruas, ações que, algumas vezes, o
fizeram sofrer e se desencantar, mas foram fundamentais para o seu amadurecimento. A luta
travada entre Sebastião e Miguel é a contraposição entre o trabalho braçal e o “ócio
literário”:
Estou indo sozinho pra casa. E quem ainda tem as pernas firmes não está
totalmente fora de combate. É cedo demais pra dizer que o rapaz que
caminha sob a chuva está vencido. Ele só está machucado. O pai comemora
a vitória. Agora as terras ficarão na mão do Carlos. consegui provar
pra todo mundo que não sirvo pra lavoura e nem pro comércio. E o pai de
família não errou, este é o filho à-toa, o que só presta pra ler. Não vamos ter
dele agora. Ele ainda tem dois braços, não são fortes, mas é alguma
coisa (CMI, p. 233).
Assim, ao longo das suas vivências, e depois de se afirmar como uma identidade
problemática, Miguel vai percebendo que todas as experiências foram importantes. As mãos
que trabalharam a terra, que provaram os restos, as sementes, as laranjas, as fatias de abacaxi,
as pequenas mãos hábeis para o toque e carinhosas para a escrita aprendem as letras, os livros
e os corpos e o menino compreende que, mesmo sozinho, é possível caminhar com as próprias
pernas e escrever: “Ao longo da vida vão nascendo outros braços. Quando que está
nascendo o terceiro braço, você amputa um dos velhos pra receber o novo” (CMI, p. 209). As
palavras do narrador demonstram as transformações às quais os seres humanos estão
submetidos, ao mesmo tempo, representam os ganhos e as perdas ao longo da vida, as novas
adaptações e idéias que surgem com o passar dos anos e, conseqüentemente, as mudanças
identitárias.
“Por onde ando esbarro em meu passado [...] Quando é que morreu esta cidade que
insiste em viver em mim?” (CMI, p. 252). Ao voltar à cidade natal, o protagonista não
reconhece aquele lugarejo, ele não pertence àquele lugar, nem à história das pessoas que por lá
permaneceram: “Os jovens não me conhecem e nos velhos não me reconheço” (CMI, p. 253).
Ele também não sabe o que fazer com suas memórias, com seu passado e com sua história.
Contudo, Miguel reconhece que, se venceu na vida, alcançou seu objetivo de ser escritor e
saldou a dívida moral do pai, foi com ajuda de todas as pessoas que por ela passaram. Adulto,
Miguel reconhece que sua identidade é formada tanto pela convivência com a família de Nelsa
e de Antonio Sanches quanto com Sebastião. Assim, a formação de seu caráter é um exemplo
de como o outro exerce um papel fundamental para a consolidação de uma identidade, ou seja,
à medida que as outras pessoas falavam que ele se parecia com o pai, o menino vai adquirindo
hábitos e atitudes que eram singulares àquele. Da mesma maneira, mesmo negando o universo
de Sebastião, Miguel adquire características do padrasto.
Miguel Sanches Neto, portanto, ao compor seu romance, se vale, também, de um eu
desassossegado, que objetiva descobrir sua verdadeira identidade. A história do menino que se
torna um adulto realizado profissionalmente exemplifica como a subjetividade é formada pela
relação do interior e exterior e pelas vozes com as quais se tem acesso ao longo do caminho.
1.3 – A formação de um menino-escritor: Memória individual e coletiva.
Miguel Sanches Neto, ao organizar Chove sobre minha infância, o faz a partir de
expedientes que tematizam o cotidiano que fez parte da sua infância e adolescência. O
romance transita entre a ficção e a memória, visto que apresenta a trajetória de Miguel, um
menino pobre, que alimentava o sonho de ser escritor em um universo oposto ao sonhado o
agrícola. Ao mesmo tempo é a (re)construção de uma vida que esteve entrelaçada por
dúvidas, agonias, carências, vazios e, principalmente, um dramático relacionamento familiar,
resultante da contrariedade do padrasto em relação ao gosto do menino pela leitura e escrita.
Da mesma forma, Venho de um país obscuro contempla o percurso de um eu lírico que
faz um retorno à infância. Essa viagem ao passado não é apresentada de forma nostálgica, mas
sim como uma avaliação de um tempo em que as dificuldades eram latentes. Conforme
Secchin:
Quase todo o livro, com exceção do bloco final, dedicado às esculturas de
Aleijadinho, gira em torno desse país, a infância, do qual fomos para
sempre desterrados, mas para o qual tentamos incansavelmente refluir,
munidos do passaporte da escrita e do sonho. O problema é que, no real, o
passaporte está vencido, o rosto que ele estampa não é nosso, e a região que
queremos (re)visitar sumiu do mapa muito tempo” (SECCHIN, 2005, p.
105).
As palavras do crítico abordam justamente a característica central das obras de
Sanches Neto, ou seja, o retorno ao passado e a volta a um “país obscuro” de ausências,
angústias e vazios atitudes que proporcionam o entendimento do presente. Assim, o
escritor se vale da única maneira de retorno à infância: a memória, a imaginação e a palavra.
Em uma criação literária, o artista representa as suas idéias e o mundo que o
circunscreve, desse modo, o escritor delega ou repassa aos personagens criados aquilo que
pensa. É de praxe na literatura de todos os tempos, haver a presença das reminiscências nas
obras literárias. Na Literatura Brasileira, escritores como João Guimarães Rosa, Graciliano
Ramos, Érico Veríssimo, José Lins do Rego, Oswald de Andrade, dentre muitos outros,
também se valeram deste expediente como matéria composicional. Conforme Ramos, “as
memórias literárias não passam pela autoria, por aquele que lembra, mas pelo narrador que
traz para o texto um somatório de experiências de linguagem; e estas experiências são sempre
revigoradas por possibilidades líricas” (RAMOS, 2004, p. 45). Sendo assim, as memórias são
apresentadas nas obras literárias por meio de dois aspectos: a capacidade humana de recuperar
as coisas vividas e a potencialidade do imaginário em verbalizar cenas e fatos. Nesta
perspectiva:
A expressão da temporalidade em um texto de caráter subjetivo,
comprometido com a história de quem conta, extrapola o real vivido.
Aquilo que se convencionou chamar de realidade em relação ao passado,
dificilmente pode ser definido ou isolado com precisão. Não se pode
confundir a realidade com aquilo que é contado, pois as memórias escritas
dão ao texto certas garantias de realidade mas, ao mesmo tempo, elas se
escrevem e se constroem muito mais pelas possibilidades da invenção. Se
uma permuta entre o real e o imaginário, muito mais espaço para a
fantasia (RAMOS, 2004, p. 48).
Na lírica, a presença da memória também é constante. Na Antigüidade, alguns povos
acreditavam que era dever do poeta perpetuar as tradições. O poeta era incumbido, devido ao
conhecimento da arte e da linguagem, de perpetuar costumes, mitos, histórias e tradições.
Como o gênero lírico é determinado pela rima e pelo ritmo, os quais facilitam a
memorização, a lírica está intimamente ligada à memória. Além de facilitar a lembrança dos
conteúdos, segundo Staiger, o gênero lírico é, essencialmente, o da recordação: “o passado
como objeto de narração pertence à memória. O passado como tema do lírico é um tesouro de
recordação” (STAIGER, 1975, p. 55). De acordo com a afirmativa do teórico, o gênero lírico
utiliza a memória como fonte principal de composição.
Fica evidente, portanto, que a presença das reminiscências nas obras literárias tanto
na lírica quanto na prosa diz respeito à aptidão em relação à construção da linguagem e à
manipulação das palavras, isto é, as memórias são reconstruídas devido à capacidade dos
seres humanos em narrar. Conforme Ramos:
As memórias sempre trabalham esteticamente com as lembranças de um
sujeito que é exclusivo [...] o diálogo com o presente atualiza o passado,
permitindo a reconstituição da vida pela linguagem, quando as lembranças
não serão uma realidade, mas interpretações das coisas findas e do próprio
destino pessoal (RAMOS, 2004, p. 52).
O ser humano é formado por suas memórias. Todas as suas ações são originárias de
um antecessor, seja ele um indivíduo, uma sociedade ou uma época, além disso, faz parte da
natureza humana esse retorno às memórias ancestrais de forma coletiva ou individual, pois ele
é, também, formado pelo repasse de conhecimento através da convivência social, uma vez que
é por meio da socialização que o homem, vai, aos poucos, adquirindo as idéias e consciência.
Conforme Marx e Engels (1998), são três os pressupostos para a existência humana. O
primeiro diz respeito à produção dos meios que satisfazem as necessidades dos homens; para
“fazer história” os homens precisam beber, comer, morar e vestir-se, ou seja, produzir a
própria vida material, “e isso mesmo constitui um fato histórico, uma condição fundamental
de toda a história que se deve, ainda hoje como há milhares de anos, preencher dia a dia, hora
a hora, simplesmente para manter os homens com vida” (MARX E ENGELS, 1998, p. 21). O
segundo pressuposto da história constitui-se na satisfação da primeira necessidade, ou melhor,
na satisfação das necessidades básicas, a partir disso, surgem outras necessidades e, segundo
os sociólogos, essa produção de novas necessidades é o primeiro ato histórico.
O terceiro pressuposto que intervém no desenvolvimento histórico: “É que os homens,
que renovam a cada dia sua própria vida, passam a criar outros homens, a se reproduzir”
(MARX E ENGELS, 1998, p. 23). Nesse sentido, essa terceira relação corresponde à
convivência familiar, aos papéis de homem e mulher e de pais e filhos. A família, que
inicialmente é a única relação social, com o tempo, produz outras relações e estas um aumento
da população, o que, conseqüentemente, gera outras necessidades. Esses três aspectos da
atividade social devem ser vistos como três momentos diferentes que existem desde os
primeiros homens e estão presentes até os dias atuais na história humana. De acordo com
Marx e Engels:
Produzir a vida, tanto a sua própria vida pelo trabalho, quanto a dos outros
pela procriação, nos aparece portanto, a partir de agora, como uma dupla
relação: por um lado como uma relação natural, por outro como uma
relação social social no sentido em que se estende com isso a ação
conjugada de vários indivíduos, sejam quais forem suas condições, forma e
objetivos. Disso decorre que um modo de produção ou um estágio
industrial determinados estão constantemente ligados a um modo de
cooperação ou a um estádio social determinados, e que esse modo de
cooperação é, ele próprio, uma “força produtiva”; decorre igualmente que a
massa das forças produtivas acessíveis aos homens determina o estado
social, e que se deve por conseguinte estudar e elaborar incessantemente a
“história dos homens” em conexão com a história da indústria e das trocas
(MARX & ENGELS, 1998, p. 23-24).
Assim, de início, manifesta-se uma dependência material dos homens entre si, esta
dependência está atrelada às necessidades e aos modos de produção e é tão antiga quanto o
ser humano. Ao serem verificadas as relações históricas originárias, descobre-se que o homem
tem consciência, porém,o se trata de uma consciência pura, ela é produzida coletivamente,
a partir das experiências de vida, as marcas deixadas pela convivência em sociedade é que vão
determinar a consciência de cada indivíduo. A linguagem, para os sociólogos, é tão antiga
quanto “a consciência real, prática, que existe também para os outros homens, que existe,
portanto, também para mim mesmo e, exatamente como a consciência, com a necessidade dos
intercâmbios com os outros homens” (MARX e ENGELS, 1998, p. 24-25). Onde existe
relação, a linguagem se faz presente, seja ela qual for.
Assim, cada etapa da história dos indivíduos tem um resultado material, isto é, uma
soma de forças produtivas, uma relação que se dá entre a natureza desses próprios indivíduos.
Nas palavras de Marx e Engels:
Criado historicamente e transmitidos a cada geração por aquela que a
precede, uma massa de forças produtivas, de capitais e de circunstâncias
que, por um lado, são bastante modificados pela nova geração, mas que, por
outro lado ditam a ela suas próprias condições de existência e imprimem
um determinado desenvolvimento, um caráter específico; por conseguinte
as circunstâncias fazem os homens tanto quantos os homens fazem as
circunstâncias” (MARX E ENGELS, 1998, p. 36).
A partir dos pressupostos teóricos de Marx e Engels, verifica-se como se dá o processo
de socialização dos indivíduos. Ou seja, desde a infância o repasse de conhecimento e
informações por parte de seus antecessores e isso irá amparar aquilo que ele apreenderá da
realidade e que fará parte da sua subjetividade. Por subjetividade entende-se também a
memória individual e, neste caso, esta se estrutura a partir de uma memória coletiva, isto é, a
memória do grupo ao qual pertence. Essa memória coletiva torna possível ao sujeito o
encontro com a identidade do grupo, bem como a sua fixação em um meio social.
Segundo Chauí, “a memória é uma atualização do passado ou a presentificação do
passado e é também o registro do presente para que permaneça como lembrança” (CHAUÍ,
1995, p. 128). Conforme a filósofa, no início dos estudos sobre a memória, muitos
pesquisadores julgaram esse mecanismo como sendo um fato especificamente biológico.
Portanto, para os estudiosos daquela época, a memória, seria, apenas um registro cerebral de
fatos, acontecimentos, coisas, pessoas e relatos. Após muitos trabalhos realizados, os
pesquisadores percebem que essa teoria de memória explicada somente a partir da Biologia
não se sustenta. Isto acontece porque não conseguiam explicar o mecanismo da lembrança,
isto é, “que selecionamos e escolhemos o que lembramos e que a lembrança tem, como a
percepção, aspectos afetivos, sentimentais, valorativos (há lembranças alegres e tristes,
saudades, há arrependimento e remorso)” (CHAUÍ, 1995 p. 128).
A memória biológica, portanto, não poderia explicar o esquecimento. Ou seja, se o
cérebro “capta” e armazena tudo o que é vivenciado, então como explicar o esquecimento de
alguns acontecimentos? A partir daí, passou-se a perceber que, além de componentes
biológicos, a memória efetua-se pelos componentes afetivos que se fazem presentes na vida
individual dos sujeitos: “Podemos dizer que, em nosso processo de memorização, entram
componentes subjetivos para formar as lembranças” (CHAUÍ, 1995, p. 128).
Assim, os componentes objetivos seriam atividades “físico-fisiológicas e químicas”,
isto é, a capacidade biológica de armazenamento cerebral. Por outro lado, por componentes
subjetivos entende-se a importância dos fatos para cada sujeito, ou melhor, a impressão que os
indivíduos têm diante dos fatos; a importância de cada um deles; tudo isto vai determinar a
memória individual de cada sujeito: “Mesmo que nosso cérebro grave e registre tudo, não é
isso a memória e sim o que foi gravado com um sentido ou com significado para nós e para os
outros” (CHAUÍ, 1995, p. 128). Por meio desses estudos, portanto, a memória passa a ser
vista sob outro aspecto, ou seja, já não existe mais a crença de que “memória” seja somente de
um mecanismo psicológico ou biológico, mas que, por memória entende-se uma série de
mecanismos sociais que estão atrelados ao fato de um indivíduo viver em sociedade.
Henri Bergson
5
, por meio de uma abordagem física da memória, defende em Matéria
e memória (1999), a concepção de memória ligada à matéria, isto é, à afirmação de que
espírito e consciência são análogos. Assim, Bergson declara aquilo que vai ser um dos pontos
mais relevantes das suas afirmações: consciência significa, principalmente, memória. Nesse
sentido, apesar de todas as variações possíveis, memória e consciência estão definitivamente
unidas, sendo difícil, em certo sentido, distinguí-las. Uma pretensa consciência que não
envolvesse uma certa conservação do passado pereceria e renasceria a cada instante, e isso
seria a própria definição de inconsciência. Consciência, ao contrário, é a memória, isto é, a
“conservação e acumulação do passado no presente”, apesar de trilhar um caminho altamente
individual.
Para Bergson, a memória coincide e se identifica com a própria consciência, e é por
5 Neste trabalho serão apresentadas duas perspectivas em relação à memória: Henry Bergson a defende de
acordo com os aspectos psicológicos e individuais. Por outro lado, Maurice Halbwachs a como um
mecanismo social. Para ele a memória é constituída por meio da participação do indivíduo em um grupo social.
intermédio dela que “o nosso passado nos segue inteiramente, a cada momento e o que
sentimos, pensamos e quisemos desde a primeira infância está lá, inclinado sobre o presente,
que ele está por absorver em si, premente à porta da consciência” (BERGSON, 1999, p. 164).
Em A memória coletiva (2004), M. Halbwachs não estuda a memória em si, mas seus
quadros sociais. Conforme o sociólogo, as lembranças não são individuais, embora o
indivíduo seja a primeira testemunha à qual pode apelar. Elas são coletivas, isto é, são
lembradas pelos outros, mesmo que somente a uma pessoa digam respeito. Halbwachs afirma:
Não estamos ainda habituados a falar da memória de um grupo, mesmo por
metáfora. Parece que uma tal faculdade não possa existir e durar a não ser
na medida em que está ligada a um corpo ou a um cérebro individual.
Admitamos todavia que haja, para as lembranças, duas maneiras de se
organizar e que possam ora se agrupar em torno de uma pessoa definida,
que as considere de seu ponto de vista, ora distribui-se no interior de uma
sociedade grande ou pequena, de que elas são outras tantas imagens
parciais. Haveria então memórias individuais e, se o quisermos, memórias
coletivas. Em outros termos, o indivíduo participaria de duas espécies de
memórias (HALBWACHS, 2004, p. 57).
Assim, o autor relaciona a memória à participação em um grupo social, de forma que,
quando nos lembramos, deslocamo-nos de um grupo a outro, em pensamento, da mesma
forma que o esquecimento é explicado pelo desapego aos grupos, distância ou isolamento.
Para Halbwachs, a recordação dos fatos se efetiva por meio da memória social, ou seja, as
lembranças são coletivas e as recordações acontecem devido às reminiscências do grupo
social: “Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, que este
ponto de vista muda conforme o lugar que ali eu ocupo, e que este lugar mesmo muda
segundo as relações que mantenho com outros meios” (HALBWACHS, 2004, p. 51).
Halbwachs não considera a memória individual como condição suficiente para o ato de
lembrar e reconhecer e nem a reconstituição ou depoimentos dos outros para a transformação
da imagem em lembranças. Segundo o teórico, é preciso que haja pontos de contato entre as
memórias individuais, para que as lembranças sejam reconstruídas sobre base comum. A
duração da memória estaria relacionada à força e duração do grupo; o lugar ocupado no
conjunto define as pessoas e os fatos a serem lembrados ou esquecidos.
Nesse sentido, a memória individual é compreendida dentro de uma memória mais
ampla, que o autor chama de memória coletiva, esta não explica todas as lembranças, mas as
noções e imagens dos meios sociais dos quais fazemos parte envolvem as recordações
individuais. Os sentimentos e pensamentos mais pessoais emergem nos meios de
circunstâncias sociais.
Halbwachs circunscreve as lembranças e a significação aos grupos; o sentido dos
acontecimentos muda quando o sujeito muda de grupo. Desta forma, é focalizado o presente.
Nesta definição de Halbwachs é possível estabelecer uma relação com a teoria histórico-
cultural. O sujeito lembra de determinada situação motivado por um elemento do presente.
Para o teórico francês, estes elementos de pontos de contato entre memórias individuais,
podem ser palavras, objetos ou fotos.
Ecléa Bosi, em Memória e sociedade: lembranças de velhos (1994), salienta que o
mecanismo da memória permite a relação do “corpo presente com o passado” e, interfere no
processo atual das representações. Para ela, “pela memória, o passado não vem à tona das
águas presentes, misturando-se com as percepções imediatas, como também empurra,
“desloca” estas últimas, ocupando o espaço todo da consciência. A memória aparece como
força subjetiva ao mesmo tempo profunda e ativa, latente e penetrante, oculta e invasora
(BOSI, 1994, p. 47).
É, portanto, do atual e do presente que surge a necessidade do recordar. Conforme
Bosi, geralmente, a lembrança não corresponde à revigoração; ao contrário, o recordar seria a
maneira de refletir, por meio de imagens do passado, sobre o presente. De acordo com Bosi:
Na maior parte das vezes, lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir,
repensar, com imagens e idéias de hoje, as experiências do passado. A
memória não é sonho, é trabalho. Se assim é, deve-se duvidar da
sobrevivência do passado, ‘tal como foi’, é que se daria no inconsciente de
cada sujeito. A lembrança é uma imagem construída pelos materiais que
estão, agora, à nossa disposição, no conjunto de representações que povoam
nossa consciência atual (BOSI, 1994, p. 55).
Assim, mesmo que uma lembrança a respeito da infância, por exemplo, pareça a mais
nítida possível, ela não é a mesma. Com o passar dos anos, as pessoas se transformam,
adquirem novas percepções, idéias, juízos e valores, do mesmo modo, o ato de lembrar o
passado, no presente, adquire outras características devido às mudanças de ponto de vista.
Desta forma, as imagens que se tem do passado vem à tona sob um outro ângulo de apreensão,
não é mais aquela visão que se tinha dos fatos no momento em que aconteceram, mas,
sobretudo, a concepção do presente em relação ao ocorrido.
Ao mesmo tempo, a memória é a grande responsável pelo processo contínuo da
natureza humana, isto é, as recordações possibilitam a renovação e o rejuvenecimento da
espécie humana. Ou seja, entende-se por memória, a base para a consciência atual e para as
ações presentes do sujeitos. Essa forma de pensar e agir conscientemente é, ao mesmo tempo,
proporcionada pelas memórias ancestrais e pela subjetividade de cada sujeito. Segundo Hegel:
“É passado concentrado no presente que cria a natureza humana por um processo de contínuo
reavivamento e rejuvenecimento” (HEGEL apud BOSI, 1994, p. 74-75).
Conforme Bosi (1994), cada sujeito “vê” o objeto ou o fato ocorrido de formas
distintas. As imagens que se tem de algo são construídas a partir do fator externo, isto é, de
acordo com o fator/grupo social, no qual se está inserido. Nesse sentido, é importante salientar
que cada sujeito que se debruçar sobre determinado objeto, o transformará. Por outro lado,
ressalta-se, também, que muitas das imagens atuais são frutos de diálogos e troca de
experiências, fatores que, ao longo do tempo, resultam na resolução de determinados objetos.
A narrativa e a linguagem são os fatores responsáveis pelo ato de construir um
determinado acontecimento por meio das lembranças. Ainda de acordo com Bosi, a narrativa
é “uma forma artesanal de comunicação”. A respeito dessas trocas por meio da linguagem,
Achard defende que a memória está diretamente ligada à produção de sentidos, isto é, se hoje
sabemos sobre determinado assunto, é porque passamos por situações semelhantes. A
memória por sua vez, não é responsável ela restituição de frases escutadas no passado, mas
sim pela capacidade de fazer julgamentos de verossimilhança sobre o que é reconstituído
através do contar e recontar histórias.
Para Durand, a memória, ao contrário do que defende Bergson em Matéria e memória,
não é intuição do tempo: “A memória, longe de ser intuição do tempo, escapa-lhe no triunfo
de um tempo ‘reencontrado’, logo negado” (DURAND, 2002, p. 401). Segundo o teórico, a
memória não não está às ordens do tempo como permite um redobramento dos instantes
vividos e uma revivificação do presente, ou seja, as reminiscências permitem aos homens uma
reflexão do passado e uma atualização do presente. A memória é o meio pelo qual o homem
refaz o seu passado para entender o presente. Por outro lado, é através da memória que os
objetos e os acontecimentos tornam-se perene: “Porque a memória, permitindo voltar ao
passado, autoriza em parte a reparação dos ultrajes do tempo” (DURAND, 2002, p. 402). A
respeito da memória da infância, Durand afirma que A memória pertence de fato ao domínio
do fantástico, dado que organiza esteticamente a recordação. É nisso que consiste a aura
estética que nimba a infância; a infância é sempre e universalmente recordação da infância, é
o arquétipo do ser eufêmico, ignorante da morte, porque cada um de nós foi criança antes ser
homem” (DURAND, 2002, p. 402).
Segundo o teórico, jamais se deve afirmar que a memória ou as saudades da infância
são aspectos distintos do homem adulto, uma vez que, são as memórias precedentes as
infantis que caracterizam o ser na idade adulta: “A nostalgia da experiência infantil é
consubstancial à nostalgia do ser”. (DURAND, 2002, p. 402). Nessa perspectiva, a memória
conta de resolver os problemas e os recalcamentos da infância. Ou seja, a partir da
reconstrução dos acontecimentos, entendem-se os motivos pelos quais os fatos ocorreram; os
problemas da infância se resolvem a partir do momento que um distanciamento dos fatos
acorridos:
A memória é poder de organização de um todo a partir de um fragmento
vivido, como a pequena Madalena do Temps perdu. Esse poder reflexógeno
seria o poder geral da vida: a vida não é devir cego, mas sim capacidade de
reação, de regresso. A organização que faz com que uma parte se torne
“dominante” em relação a um todo é bem a negação da capacidade de
equivalência irreversível que é o tempo (DURAND, 2002, p. 403).
A respeito da memória como imagem, o autor assinala que ela assegura ao homem “a
continuidade da consciência e a possibilidade de regressar, de regredir, para além das
necessidades do destino” (DURAND, 2002, p. 403). Ela possibilita, além de uma regressão,
uma visita ao que há de mais profundo no ser e que é fundamental para as suas representações,
ou melhor, a memória assegura ao homem a possibilidade de ir até a sua formação; ao que
de mais profundo: ao seu espírito e a sua essência. Nesse sentido, o resgate memorialístico
feito por Miguel Sanches Neto cria a possibilidade de, por meio do reencontro com o passado,
compreender o universo responsável pela sua formação.
A perspectiva de que a memória é uma interpretação pessoal do passado é explicitada
pelo narrador de Chove sobre minha infância quando este justifica ao leitor a presença das
reminiscências e o reencontro com um passado doloroso. O narrador diz:
Por que mexer nestas coisas que doem?, me perguntaram. Descansar a
ferida apenas para sofrer mais do que normalmente se sofre nesta vida em
que nada cicatriza completamente? Sofrer com a lembrança é um
reconforto. Tudo passou e sobrevivemos, tivemos força para manter a
sanidade, para seguir nosso caminho. A dor do passado, ao contrário da dor
do presente, é uma espécie compungida de felicidade. Sim, sinto prazer
olhando aquele tempo, me vendo sozinho no mundo, órfão em vários
sentidos [...] esta não é uma obra de memórias, apenas de retalhos, alguns
falsificados pelas recordações e pela fantasia (CMI, p. 17).
Em Chove sobre minha infância, a imagem de Miguel Sanches Neto – a personagem –
é construída pelo Miguel Sanches Neto o autor. O nome da personagem principal, assim
como o título da obra, proporcionam ao leitor o tema essencial da narrativa. “Chove sobre
minha infância” antecipa o sentido real do livro, ou seja, na medida em que chuva significa
purificação, “chove sobre minha infância” seria um retorno à infância, marcada por
contradições e sofrimentos, para que, por meio da reconstrução dos fatos, eles pudessem ser
entendidos. Após revisitar seu passado, ele estaria apto a se inserir, de forma segura, no
futuro, visto ter exorcizado seus fantasmas.
A respeito do nome, Bordieu (1996) afirma: “Como instituição, o nome próprio é
arrancado ao tempo, ao espaço e às variações de lugar e de momento: assim, para além de
todas as mudanças e flutuações biológicas e sociais, ele assegura aos indivíduos designados a
constância nominal, a identidade com o sentido de identidade a si mesmo, de constantia sibi,
exigida pela ordem social” (BORDIEU, 1996, p. 78). Nesta perspectiva, verifica-se que
Miguel Sanches Neto, ao atribuir ao seu principal personagem o seu próprio nome, está
identificando de que a história narrada diz respeito, em partes, a sua própria história.
Conforme Santos, “o nome próprio é em essência uma marca identificatória. Um nome nada
tem de fortuito ou de natural. Assim, ser Sanches Neto explica o caráter briguento, teimoso,
irritadiço, orgulhoso; [...] ele se torna elemento provocador da criação de fantasias que in
absentia organiza a vida do sujeito” (BORDIEU, 2002, p. 16).
Em Chove sobre minha infância o retorno à infância esintimamente ligado à cidade
de Peabiru, ao encontro com seus habitantes, com a casa na qual Miguel e a família moraram,
à escola, aos amigos, ao professor, à máquina de escrever, aos livros e à cerealista, à qual,
muitas vezes fora motivo de discussões com o padrasto Sebastião. Esse retorno, ao mesmo
tempo em que resgata pessoas, locais e objetos, atualiza um passado de amargura, tristeza e
cólera. Esse passado sofredor resulta da ausência do pai, da pobreza, das contradições em
relação às aspirações do padrasto e às do menino Miguel e, principalmente, do sonho que
dificilmente seria atingido – o de ser escritor. De acordo com Rogério Pereira:
Miguel ama os livros; sua mãe ama o filho; o padrasto ama o trabalho
braçal, odeia os livros e nutre a raiva e o distanciamento como maneira de
impor suas vontades. É o impasse entre o braçal e o intelectual: de um lado,
Miguel tenta lutar com a caneta; de outro, o padrasto arma-se de enxadas,
facões e arados. E Peabiru torna-se muito pequena para os dois (PEREIRA,
2000, p. 17).
A infância de Miguel tornara-se triste e vazia, primeiramente devido à morte do pai:
“A morte de meu pai é o início da minha história” (CMI, p. 17). Na passagem do poema “País
Obscuro” o eu lírico afirma: “Venho de um país obscuro,/ de uma infância só muros./ Meu pai
foi leve lembrança/ que me marcou como ausência” (VPO, p. 14). O eu lírico presente em
“País Obscuro” remetea um universo carente, vago e de amarguras. A carência, no poema
assim como no romance, não diz respeito somente à carência financeira, mas, principalmente,
à afetiva. Mais adiante, percebe-se que este universo ao qual o eu lírico se refere é a infância,
expressa como uma época isolamento, sem contato com outras realidades. Esse isolamento
remete tanto ao mundo exterior, quanto ao universo próximo. Seria como se o eu lírico se
sentisse deslocado em relação ao “mundo” em que está inserido. Sua própria família, a casa
em que mora, as pessoas que o rodeiam, ninguém com exceção de Nelsa é dele: nem os
objetos, nem as pessoas, ou seja, nenhuma pessoa compartilha com ele as mesmas idéias e
nem dá crédito aos seus sonhos e objetivos, ao contrário, querem suprimi-los.
O segundo motivo que converte a infância do menino à infelicidade é a presença do
padrasto centralizador e autoritário:
Ele tinha tirado a minha avó de casa e estava querendo tirar o meu pai de
mim. E isso de uma hora pra outra. Nunca me senti tão órfão como na
presença deste homem que a mãe arranjou. Ele chegou proibindo que ela
costurasse pras mulheres pintadas, só pra que eu não visse os corpos delas.
Estava sem vó, sem pai, sem cheiro das mulheres. O que mais ele tiraria?
(CMI, p. 76).
As mudanças feitas por Sebastião ao ir morar na casa em que a família de Nelsa
residia, demonstram a divergência entre o mundo do padrasto e o do menino. Aos poucos,
segundo o narrador, Sebastião foi impondo seu modo de pensar a todos os moradores e, assim,
mudando os costumes de todos. As atitudes autoritárias de Sebastião, primeiramente, causam
pequenas discussões e desacordos entre ele e Miguel, contudo, com o passar do tempo, elas se
tornam, brigas ideológicas. Miguel queria mudar a trajetória de fracassos tão marcante na
história familiar e pretendia fazê-lo por meio dos estudos e da escrita; seu objetivo era, por
meio da literatura, traçar um outro rumo para aquilo que o pai e o avô representavam. Por
outro lado, o padrasto intencionava incorporá-lo ao mundo agrícola; para Sebastião o destino
do menino já estava traçado: tornar-se agricultor.
O passado disposto nas obras de Miguel Sanches Neto está sempre vinculado ao gosto
pela leitura e escrita. Tanto no romance quanto nos poemas, freqüentes, alusões a esse
tema, visto que o sonho do menino Miguel era se tornar escritor. Desde muito criança, o
menino expressava jeito para o ofício: “Não sei do que tratavam aquelas figurinhas (...) o que
marcou como minha primeira lembrança foi este ato primitivo de desenhar nas paredes da
caverna, de deixar uma mensagem. Meus três anos não permitiam mais do que o ato vazio de
tentar uma comunicação” (CMI, p. 9). Na décima quarta parte de “País Obscuro” o eu lírico
rememora o passado ao afirmar:
Este exemplo me conduziu
à pequena biblioteca da escola.
havia então um outro mundo atrás daquela estantes todas?
E, analfabeto que também era, fui decifrando aquelas letras,
estrangeiro na própria língua,
soletrando mal suas belezas.
E se de todas as lições da escola
não me sobrou absolutamente nada,
daquelas minhas sofridas horas ficou este fascínio pelas palavras (VPO,
p.28).
Aqui a negatividade dos primeiros versos é deixada de lado e substituída pela vocação
para com a escrita. A forma como Sanches Neto aborda a questão da intelectualidade e da
profissão ligada ao domínio da linguagem e trabalho com as palavras, remete, também, ao
mito do escritor, ou seja, à idéia do escritor que precisa lutar contra todas as adversidades para
vencer. E, segundo Polzonoff (2000), a vitória de Miguel de realizar um sonho pessoal
mesmo tendo o padrasto contra está relacionado ao mito de Isaac: “A vitória de Sanches,
personagem e autor do livro, contra a opressão mesquinha de seu padrasto remete ao mito
bíblico de Issac tentando se libertar do julgo da imagem de seu pai, Abraão” (POLZONOFF,
2000, p. 3). A trajetória de Miguel remonta ao escritor que precisa lutar contra tudo e contra
todos para realizar o seu objetivo, isto é, escrever.
À medida em que as memórias da infância vão sendo apresentadas em Chove sobre
minha infância há uma (re)construção da trajetória de vida individual da personagem.
Contudo, o percurso de um sujeito individual em uma obra de arte, torna a representação de
toda uma sociedade. Ou melhor, de todas as pessoas que participam da organização social
manifestada na obra literária. Nesse sentido, as reminiscências de Miguel Sanches Neto, além
de proporcionarem um regresso para o entendimento do passado individual, apresentam,
também, as características e contradições da sociedade da época, conforme Polzonoff:
“Miguel Sanches escreveu um livro sobre si mesmo, mas que foge ao egocentrismo
autobiográfico. Trata-se, sobretudo, de um livro sobre sua geração, simbolizada em um
menininho vítima da orfandade e da vocação literária” (POLZONOFF, 2000, p. 3). Assim, a
memória individual remete à memória coletiva e é o expediente que permite, além de um
reencontro com o passado, uma reflexão sobre este.
Bourdieu (1996) assinala “que a vida é uma história e que uma vida é
inseparavelmente o conjunto de acontecimentos de uma existência individual, concebida
como uma história e a narrativa dessa história” (BORDIEU, 1996, p. 74). Desta maneira,
representar história de vida é o mesmo que descrever a vida como um caminho ou um
percurso a ser seguido, tarefa que demandaria um início, algumas etapas lineares e, um fim.
Vislumbra-se, portanto, que a narrativa memorialística ajuda a resolver alguns problemas de
ordem afetiva, ou melhor, ao dispor a sua história de vida, seja de forma oral ou escrita, o
indivíduo busca um sentido para os fatos ocorridos; busca entender as razões pelas quais os
acontecimentos sucederam-se de certa maneira.
As reminiscências da infância, portanto, permitem ao Miguel adulto o entendimento de
um passado de incertezas, dúvidas e incompreensão. Por meio da palavra e do retorno à
Peabiru a cidade da memória Miguel Sanches Neto, embora não sem mágoas, parece
resolver seu passado doloroso.
2. O ESCRITOR E SEUS DUPLOS: VOZES INTERCALADAS
Não sei quem sou, que alma tenho. [...] Sinto-me múltiplo. Sou como um
quarto com inúmeros espelhos fantásticos que torcem para reflexões falsas
uma única anterior realidade que não está em nenhuma e está em todas.
(Fernando Pessoa)
2.1 - Autobiografia e ficcionalidade: os itinerários de um herói excêntrico.
Na medida em que se efetua a leitura de Chove sobre minha infância, uma das
questões que o leitor se depara, diz respeito, certamente, aos dados biográficos e
autobiográficos apresentados. A primeira informação que o leva a tal questionamento se refere
à analogia do nome, isto é, tanto o autor quanto o narrador-personagem se chamam Miguel
Sanches Neto; a segunda, indubitavelmente, é a proximidade entre a narrativa apresentada no
livro e os fatos ocorridos com Miguel Sanches Neto o autor; e, por fim, a presença de um
capítulo com fotos, as quais remetem à infância de Miguel e a momentos importantes da sua
família. No que concerne a este aspecto, Zanchet (2003) afirma:
Ao término da leitura da obra de Miguel Sanches Neto, o leitor, intrigado,
certamente se às voltas com as seguintes questões: este romance é
autobiográfico? É um diário ficcional? É um livro de memórias? O que
fazem as imagens e fotos da família, plantadas no meio da narrativa? Por
que as descrições de Peabiru, Cerne, Sertanópolis parecem tão reais? Autor
e narrador, identidade e máscara, pessoa e persona o que é real e o que é
imaginário? (ZANCHET, 2003, p. 22).
As narrativas biográficas e autobiográficas evidenciam um longo período no tempo,
ou seja, privilegiam a apresentação da vida da personagem desde o seu nascimento até a sua
morte, ou até determinado momento da sua vida. Ao narrar as fases determinantes da sua
formação, Miguel Sanches Neto, o narrador-personagem, retorna ao passado com o objetivo
de revelar acontecimentos importantes da sua vida. Esse resgate do passado, contudo, não é
elaborado de forma linear, o que se tem é uma seleção de alguns fatos relevantes vividos pela
personagem.
A voz presente em Chove sobre minha infância é a de um narrador adulto, o qual
retorna à infância, adolescência e juventude para explicar e compreender a forma e os motivos
pelos quais sua vida esteve entrelaçada por contradições, divergências familiares e uma
enorme carência afetiva. Os percalços vividos pelo menino Miguel, são inicialmente
evidenciados em “Chuva Oblíqua”, capítulo no qual o fato relatado diz respeito à descoberta
das habilidades para com a escrita. Essa revelação será responsável por todos os
acontecimentos da vida do menino, ou seja, o gosto e a facilidade para com a leitura e a escrita
serão os principais motivos tanto para as desavenças familiares, durante boa parte da sua vida,
quanto para a realização pessoal e profissional de Miguel na fase adulta:
Havia umas figurinhas de decalque na água, provavelmente presentes de
meu pai, e comecei a molhá-las no chão e transferi-las para a parede da
casa. A chuva continuava seu trabalho de limpeza lá fora, eu fazia pequenas
mágicas, deixando inscrita nas paredes uma mensagem qualquer [...] o que
marcou como minha primeira lembrança foi este ato primitivo de desenhar
nas paredes da caverna, de deixar uma mensagem. Meus três anos não me
permitiam mais do que o ato vazio de tentar uma comunicação (CMI, p. 9).
Em seguida, o menino explica essa ausência de comunicação que irá acompanhá-lo ao
longo de toda a infância e adolescência: “Sozinho da varanda, a chuva a me isolar dos amigos
e da família, a sensação de abandono me punha a escrever nas paredes, náufrago do tempo
lutando para estabelecer contato” (CMI, p. 9-10).
Para Mikhail Bakhtin (2003), dentre todos os valores artísticos, o biográfico é o que
menos infringi a autoconsciência, assim, para o teórico, neste gênero narrativo o autor está
mais próximo do herói, ou seja, para ele “os dois como que podem trocar de lugar, e por esta
razão é possível a coincidência pessoal entre personagem e autor além dos limites do todo
artístico” (BAKHTIN, 2003, p. 139). Com este olhar sobre os escritores autobiográficos, o
teórico russo atesta que os valores biográficos são comuns na vida e na arte, uma vez que eles
podem determinar os atos práticos análogos às duas. Quer dizer, os fatores biográficos
definem as formas e os valores da “estética da vida”. A esse respeito, Bakhtin afirma:
O autor de biografia é aquele outro possível, pelo qual somos mais
facilmente possuídos na vida, que está conosco quando nos olhamos no
espelho, quando sonhamos com a fama, fazemos planos externos para a
vida; é o outro possível, que se infiltrou na nossa consciência e
freqüentemente dirige os nossos atos, apreciações e visão de nós mesmos
ao lado do nosso eu-para-si. [...] em nossas lembranças habituais do nosso
passado, o freqüentemente ativo é esse outro, em cujos tons axiológicos
recordamos a nós mesmos (nas lembranças da infância é a mãe encarnada
em nós). A maneira de recordação tranqüila do nosso passado que ficou
distante é estetizada e formalmente próxima da narração (as lembranças à
luz do futuro do sentido são lembranças penitentes). Qualquer memória do
passado é um pouco estetizada, a memória do futuro é sempre moral
(BAKHTIN, 2003, p. 140).
Esse outro ao qual Bakhtin se refere não entra, de forma alguma, em conflito com o eu
individualizado, ao contrário, os sujeitos sempre têm como referente o mundo dos outros, isto
é, ele percebe que está inserido em uma coletividade da qual fazem parte, dentre outras
categorias, a família, a nação e a humanidade. Nesse sentido, o outro exerce autoridade sobre
o sujeito, uma vez que a vida se forma devido ao contato com a coletividade e,
conseqüentemente, devido ao contato com o outro. Sendo assim, uma reciprocidade em
relação à formação da voz explícita na narrativa biográfica, ou seja, há um intercâmbio, uma
troca entre a posição do narrador e a do autor. O autor, ao representar a sua vida por meio de
personagens, está explicitando quem são os outros para ele, “passo a passo eu me entrelaço
em sua estrutura formal de vida (não sou o herói da minha vida mas tomo parte nela), coloco-
me na condição de personagem, abranjo a mim mesmo com a minha narração (BAKHTIN,
2003, p. 141). Da mesma maneira, as formas de representação dos outros se transferem para o
personagem, pois, são as palavras alheias as grandes responsáveis pela formação de uma
biografia, quer dizer, a narrativa biográfica se constitui por ser apresentada pela voz de outros
personagens. A esse respeito, Bakhtin afirma:
Meu nascimento, minha origem, os acontecimentos da vida familiar e
nacional na minha tenra infância (tudo o que não podia ser compreendido
ou simplesmente percebido por uma criança). Todos esses acontecimentos
me são necessários para a reconstituição de um quadro minimamente
inteligível e coerente da minha vida e de seu mundo, e eu, narrador de
minha vida pela boca das suas outras personagens, tomo conhecimento de
todos aqueles momentos (BAKHTIN, 2003, p. 142).
Ou seja, não possibilidades de reconstituição de uma vida se não for pautada
naquilo que os outros contam a respeito dela; não biografia sem fazer um retorno aos
primeiros anos de vida de um sujeito. Porém, para conhecer os fatos que deram origem a sua
vida, as pessoas se baseiam naquilo que a elas é relatado, uma vez que, nos primeiros anos de
vida, a criança não tem capacidade para absorver tudo o que ocorre a sua volta. De acordo
com o teórico russo, “sem essas narrações dos outros, minha vida não seria desprovida de
plenitude de conteúdo e de clareza como ainda ficaria interiormente dispersa, sem unidade
biográfica axiológica” (BAKHTIN, 2003, p. 142).
Desta maneira, após clarificar os fatos em relação à aptidão e ao gosto pela leitura o
menino Miguel passa a falar sobre a sua pré-história, ou seja, conta a história do pai e de sua
morte, da relação da mãe Nelsa com a família, da trajetória difícil tanto da família paterna
como da materna para se estabelecer no Paraná, enfim, tudo o que acontecera com os seus,
antes do seu nascimento. Antes disso, porém, deixa claro que os acontecimentos que
antecederam ao seu nascimento, foram-lhe relatados. Miguel afirma: “Mas tudo isso o menino
viu pelos olhos dos outros, por que sua memória era frágil neste período” (CMI, p. 13). Após
essa informação, o narrador introduz ao enredo momentos importantes que, mesmo não
acontecendo diretamente com ele, foram determinantes na constituição da sua personalidade.
É de praxe nas produções biográficas e autobiográficas a focalização sobre uma ou
mais fases da vida da personagem, desde que elas contemplem momentos decisivos ou
transformadores da sua formação. Além da presença fundamental dessas fases distintas e
determinantes da vida das personagens, a biografia e a autobiografia contemplam uma
trajetória a do herói que é desencadeada pelo desejo e pela necessidade de busca. Nessa
perspectiva, na autobiografia a personagem parte à procura do seu verdadeiro eu e daquilo
que deu sustentáculo à formação da sua identidade. Na narrativa de Sanches Neto esse
aspecto não se de forma diferente, o retorno a acontecimentos como, a morte do pai, a
visita das prostitutas à mãe costureira, as atitudes mesquinhas de Zé-Zabé, a chegada de
Sebastião, a partida da avó Carmem, os primeiros contatos com a máquina de escrever, os
primeiros livros comprados, a escrita de poemas, o trabalho na lavoura e na cerealista, os
momentos vividos no colégio agrícola, as viagens, dentre outros, servem para reconstruir e
compreender toda uma trajetória de vida marcada, principalmente, por um sentimento de
vazio e solidão. Ou seja, o resgate do passado sempre é feito com o objetivo de revelar a vida
da personagem, assim, é com este propósito que Sanches Neto também o faz.
Nesse sentido, Chove sobre minha infância pertence ao estilo de expressão literária
surgido, principalmente, a partir da modernidade, cuja literatura pauta-se em um processo que
culmina na noção de indivíduo. Por mais que pareça, esse fenômeno não significa egoísmo ou
vaidade, mas sim, uma reação ao passado que tanto negou a individualidade. De acordo com
Moacyr Scliar (2006), “a ‘Me Decade’ e a literatura do eu representam uma forma de
afirmação pessoal que hoje faz parte do equipamento de sobrevivência dos seres humanos”
(SCLIAR, 2006, s/p). Conforme Scliar, a primeira pessoa é representada na literatura de
inúmeras formas: pode ser um personagem imaginário, um disfarce para o narrador, uma
autobiografia ou um depoimento pessoal.
Segundo Alberti (1991), a primeira vez em que o eu fala na intimidade e se põe à
disposição do julgamento dos leitores é no livro Confissões, de Jean-Jacques Rousseau. Esta
obra representa a sintonia estabelecida entre o sujeito moderno e a autobiografia. Conforme
Walter Benjamin (1980), ao mesmo tempo em que a autobiografia fala do sujeito em sua
dimensão íntima, também noticia, como no romance, “a profunda relação de quem vive”.
Desta forma, a autobiografia difunde e exemplifica a experiência do autor a partir do seu
ponto de vista, sendo assim, proporciona ao leitor informações e recomendações, ou seja, a
narrativa autobiográfica oferece ao leitor uma reflexão em relação a algum aspecto. Para
Alberti (1991), a autobiografia “parece ser a atualização do indivíduo moderno no espaço da
literatura. É como se, ao lado da poesia, do romance, da peça teatral, da crônica, enfim, se
reservasse àquele indivíduo a suas reflexões e experiências particulares, um gênero literário
específico, que permitisse a expressão de sua unidade e autonomia” (ALBERTI, 1991, p. 66).
Desta forma, a narrativa ficcional se distingue da autobiográfica por não se referenciar
a uma realidade anterior e exterior ao texto (vida do autor), e sim produzir um outro mundo,
isto é, o imaginário. Para Alberti “a criação da ficção se caracteriza por transformar, através
dos ‘atos de fingir’, esse mesmo imaginário, de inicialmente difuso na ‘imaginação’ do
escritor, em determinado (em algo que, pelo processo mesmo da criação, passa a ser tão real o
quanto o ‘real’, diríamos), ‘irrealizando-o’” (ALBERTI, 1991, p. 75). Porém, o imaginário
não deve ser entendido como fantasia, “ao contrário, supõe a irrealização do que toca; a
aniquilação das expectativas habituais e não corresponde a uma submissão aos parâmetros da
‘realidade’, mas, antes, à sua transgressão” (ALBERTI, 1991, p. 75). Ao mesmo tempo, a
fantasia funciona como atividade compensatória, se caracteriza por uma vontade de esquecer a
realidade. A esse respeito Alberti afirma:
O outro mundo produzido na ficção não se opõe à ‘realidade’; ‘ficção’, não
é como se costuma definir simplesmente o ‘avesso’ da realidade, não é
‘mentira’, ao contrário: o plano da realidade penetra no jogo ficcional [...],
portanto o que nele está se mescla com o que poderia ter havido; o que nele
há se combina com o desejo do que estivesse; e que por isso passa a haver e
estar (ALBERTI, 1991, p. 75).
Conforme Costa Lima (1984) esta tensão entre o real e o imaginário seria um
rebatimento para o plano do eu. Quer dizer, o imaginário tem relação direta com a
possibilidade de ampliar o “ângulo de refração” das experiências pessoais do escritor, esta
expressão “ângulo de refração” é usada para contestar o que se chama de reduplicação
especular, a qual se caracteriza por defender que as figuras compostas pelo escritor seriam
meros reflexos ou projeção do seu eu.
Deste modo, ao mesmo tempo em que o imaginário permite a “transformação” do
escritor em personagens que pouco ou nada tem a ver com ele, tal transformação é alimentada
pela refração de sua experiência pessoal – a qual fora vivida no plano da realidade. O “ângulo
de refração” é o espaço no interior do qual se estabelece a tensão entre o imaginário e o real.
A esse respeito, Costa Lima afirma:
O ficcional, portanto, implica uma dissipação tanto de uma legislação
generalizada, (ele não reflete uma verdade de ordem geral) quanto da
expressão do eu (não reflete tão pouco os valores do escritor). Nele, o eu se
torna móvel, ou seja, sem se fixar em um ponto, assume diversas
nucleações, sem dúvida, contudo, possibilitadas pelo ponto que o autor
empírico ocupa. É essa movência do ficcional que, simultaneamente,
implica a dissipação do eu e afirma os limites da refração de seus próprios
valores que temos chamado de ângulo de refração. Assim, tal dissipação
do eu não o torna inexistente, como se escrever ficção fosse anular seus
próprios valores, normas de conduta e sentimentos. A imaginação permite
ao eu irrealizar-se enquanto sujeito, para que se realize em uma proposta de
sentido [...] Pela ficção, o poeta se inventa possibilidades, sabendo-se não
confundido com nenhuma delas; possibilidades contudo que não
inventariam sem uma motivação biográfica (COSTA LIMA, 1984, p. 232).
Nesta perspectiva, o eu do escritor na narrativa ficcional desaparece no espaço aberto
pelo “ângulo de refração”, o que permite ao escritor a sua irrealização enquanto sujeito, ou
seja, ele pode inventar-se, multiplicar-se e imaginar-se, enfim, o que pode fazer é criar um
“outro de si mesmo”.
Em contrapartida, na criação autobiográfica, não cabe ao autor, na sua reconstituição
de experiência de vida, imaginar-se outro ou irrealizar-se. O que ocorre nas narrativas
autobiográficas é a (re)afirmação da unidade do escritor e não a sua constituição em múltiplos
outros. De acordo com Alberti (1991), “o que caracteriza a autobiografia é a identidade entre
narrador e autor, expressada através do pacto autobiográfico estabelecido com o leitor, espécie
de declaração do tipo ‘isto é biografia’” (ALBERTI, 1991, p. 76). Pautada no que afirma
Philip Lejeune (1975), Alberti diz que se a autobiografia for comparada a outras modalidades
de discurso, como o das memórias, das biografias, dos romances pessoais, dos poemas
autobiográficos e dos diários íntimos, perceber-se-á que nela uma narrativa com
perspectiva introspectiva na qual o assunto tratado é a vida individual, desde que seja
estabelecida uma relação identitária entre autor, narrador e personagem.
Esta relação entre autor, narrador e personagem não precisa necessariamente constar
em todas as páginas, no entanto, a identidade entre eles é consubstancial. Conforme assinala
Alberti, “a identidade entre o nome exposto na capa e na folha de rosto (um nome que
equivale a uma assinatura) e o nome que o narrador se como personagem principal,
acrescida na maioria das vezes da identificação, na capa, na folha de rosto, nas orelhas e na
contracapa, de que se trata de uma autobiografia” (ALBERTI, 1991, p. 76). Deste modo, o
pacto autobiográfico se dá, quando a identidade entre autor, narrador e personagem é
assumida e tornada explícita pelo autor. No pacto romanesco, ao contrário, há a negação dessa
relação identitária, o que atesta o caráter ficcional da obra.
Contudo, se no pacto autobiográfico há a presença da identidade entre autor, narrador e
personagem, isso não significa que eles sejam semelhantes em todos os níveis do discurso, ou
seja, que não haja diferença entre as três figuras, “dentro do texto, narrador e personagem
remetem, respectivamente, ao sujeito da enunciação e ao sujeito do enunciado: o narrador
narra a história e o personagem é o sujeito sobre o qual se fala. Ambos, porém, remetem ao
autor, que passa então a ser o referente, fora do texto” (ALBERTI, 1991, p. 76).
Assim, tem-se, por meio da enunciação, uma identidade clara: a do autor e narrador,
pois se sabe que quem escreveu o texto foi o autor, é ele que narra, no momento presente, a
história. Por outro lado, não constituição de identidade entre autor e personagem. O que se
tem é uma relação de semelhança entre eles. Apesar de serem inseparáveis o sujeito do
enunciado (personagem) e a pessoa que produz a narração (o autor-narrador está falando dele
mesmo) eles estão afastados, o que se percebe quando se verifica a distância temporal entre
o presente da enunciação e o relato dos acontecimentos passados. Em relação a este aspecto,
Alberti afirma:
O personagem com a idade de três anos assemelha-se ao autor com a idade
de três anos. É por isso que, do ponto de vista do enunciado, o pacto
autobiográfico prevê e admite falhas, erros, esquecimentos, omissões e
deformações da história do personagem; possibilidades, aliás, que muitas
vezes o autor mesmo num movimento de sinceridade próprio à
autobiografia levanta: escreverá sobre sua vida aquilo que lhe é
permitido, seja em função de sua memória, de sua posição social, ou
mesmo de sua possibilidade de conhecimento (ALBERTI, 1991, p. 76).
Deste modo, é possível afirmar que, se a autobiografia não concretiza um imaginário,
tampouco constitui um reflexo do real. Costa Lima observa que a autobiografia, mesmo sendo
influenciada pelo trabalho das imagens, “não pode se entregar em sua inteireza, à sua
proliferação” (COSTA LIMA, 1984, p. 306). Por sua vez, é apenas no espaço limitado da
semelhança entre aquilo que “é” e aquilo que cria, que o escritor de autobiografia pode
imaginar-se outro de si mesmo.
Assim, se alguém se põe a escrever uma autobiografia, é por que tem em
mente fixar sentido em sua vida e dela operar uma síntese. Síntese que
envolve omissões, seleção de acontecimentos a serem relatados e
desequilíbrio entre os relatos (uns adquirem maior peso, são narrados mais
longamente do que os outros), operações que o autor é capaz de fazer na
medida em que se orienta pela busca de uma significação: busca essa que
lhe dirá quais acontecimentos ou reflexões devem ser omitidos e quais (e
como) devem ser narrados. É essa busca também que prevalece na estrutura
do texto, os relatos ganhando sentido à medida que vão sendo narrados,
acumulando-se uns aos outros, de modo que a significação se constrói no
momento mesmo em que o autor escreve a autobiografia (ALBERTI, 1991,
p. 77).
Portanto, se na irrealização da ficção ocorre o “desaparecimento” do eu, na
autobiografia, ao contrário, ocorre a sua fixação. Nas obras autobiográficas o eu apresentado é
semelhante ao eu real ou àquele que de fato existe. Nesta perspectiva, o eu e a sua história são
narrados com o intuito de se fazer compreender os acontecimentos, ou melhor, ao elaborar
uma narrativa que parte da sua própria experiência de vida, o que se quer é dar um sentido a
essa trajetória.
Todavia, é importante salientar que nem tudo o que se deposita em uma autobiografia
é de fato o que aconteceu. No início da obra, o narrador de Chove sobre minha infância
salienta: “Mas vamos logo à pré-história, pelo menos a alguns trechos dela, porque esta não é
uma obra de memórias, apenas de retalhos, alguns falsificados pela recordação e pela fantasia”
(CMI, p. 17). Esta afirmativa de Miguel corrobora a idéia de que a história narrada pode não
ter acontecido exatamente como ele conta, deste modo, o próprio narrador-personagem
informa ao leitor que o que ele apresenta é apenas um dos pontos de vista existentes em
relação aos acontecimentos, ao mesmo tempo, ele elucida que Chove sobre minha infância é
um livro composto também pela ficção e pela imaginação.
A princípio, no livro a visão do narrador-personagem a respeito dos fatos. Somente
no final do romance, devido à presença de uma carta redigida por Carmen, é que o narrador
demonstra ter entendido os percalços pelos quais passou. Nesta carta, por sua vez, a irmã de
Miguel explicita outros pontos de vista sobre os episódios que o aborreciam. Carmem revela
ao irmão o verdadeiro comportamento do pai falecido, o qual, até então, era visto por Miguel
como um homem exemplar. Carmen afirma:
A verdade é que você não se lembra do pai, ele nos chegou apenas pela
única foto e por aquilo que a mãe contava. A mãe sempre foi uma
contadora de histórias e soube pôr a ficção na frente do real. Ela não queria
que você se revoltasse ao descobrir o lado feio do pai. Mas com isso te
jogava contra o padrasto, porque você queria que ele fosse perfeito como o
pai. E essa era uma perfeição criada. [...] o pai se envolveu com roubo de
café nas fazendas da região [...] ele também teve várias amantes durante o
casamento, chegava em casa com marcas de batom na roupa e a mãe
agüentava estas coisas em silêncio, não reclamava para a vó Carmen porque
não queria que ninguém mais sofresse, por isso nunca contou para você e
nem terá coragem de contar. Apenas nós duas sabíamos. (CMI, p. 249-49).
Do mesmo modo, Carmen deixa claro a Miguel que a forma como Sebastião o tratara
durante toda a vida, era a única maneira como o padrasto sabia demonstrar seu afeto. Para
Carmen: “Quando ele tentava te arrastar para o mundo dele, era uma forma de te amar, de te
ensinar o que ele sabia. É claro que ele não tinha jeito, tanto que conseguiu distanciar o Zé e o
Luís. que não para dizer que ele queria o teu mal, desejava apenas te chamar para a
realidade” (CMI, p. 247). A partir das palavras da irmã, o narrador-personagem parece
começar a entender os motivos pelos quais a vida se encaminhou daquela maneira, ou seja,
mesmo não podendo apagar as mágoas pelo padrasto e o vazio motivado pela ausência
paterna, o Miguel adulto parece entender o por que dos fatos. Essa compreensão por parte de
Miguel, demonstra o alcance do autoconhecimento e da evolução espiritual, aspectos
importantes para converter o modo de vida e a cosmovisão do herói.
A respeito da relação existente entre personagem e o autor de biografia, Bakhtin
defende que, ao criar a personagem e a sua trajetória de vida, o autor é orientado pelos
mesmos valores que a personagem, em essência, “ele não é mais rico que a personagem, não
possui para a criação elementos excedentes e transgredientes que a personagem não possua
para a vida; em sua criação, o autor apenas continuidade ao que está alicerçado na
própria vida das personagens” (BAKHTIN, 2003, p. 150). Deste modo, o autor não é ausente
de influências exercidas pelas personagens, do mesmo modo, estas também recebem
atribuições por parte do autor, assim, o que é uma fusão de valores e comportamentos, ou
melhor, há uma troca entre o que um e outro pensam e acreditam, “na biografia o autor não só
combina com a personagem na fé, nas convicções e no amor, mas também em sua criação
artística (sincrética), tomando como guia os mesmos valores que a personagem toma em sua
vida estética. A biografia é o produto orgânico de épocas orgânicas” (BAKHTIN, 2003, p.
150).
Neste propósito, as obras autobiográficas apresentam de forma mais evidente aos seus
personagens, valores e comportamentos que antes pertenciam somente ao autor. na
autobiografia um repasse de idéias e ações por parte do autor aos personagens criados. Chove
sobre minha infância, mesmo que não manifeste todas as características de uma produção
autobiográfica, pode ser considerado um livro deste cunho, uma vez que fora escrito a partir
das reminiscências do seu autor. Algumas das histórias que compõem o enredo são projetadas
ficcionalmente, contudo, apresentam um narrador-personagem que viveu em um tempo e
espaço nos quais o seu autor também viveu. Nesse sentido, além da personagem Miguel
passar por circunstâncias equivalentes às percorridas pelo autor, ela também é dotada de
características que são peculiares ao escritor Miguel Sanches Neto.
Na autobiografia literária não nitidez entre o que é o discurso verídico os fatos
acontecidos e o ficcional recursos estilísticos e estéticos. Ou seja, na medida em que o
eu ligado à identidade, fica difícil de traçar as diferenças entre verdade, realidade e ficção. De
acordo com Turchi, “o paradoxo da autobiografia literária, seu essencial jogo duplo, é o de
pretender ser, ao mesmo tempo, um discurso verídico e uma obra de arte, um sistema de
tensão entre a transparência referencial e a pesquisa estética” (TURCHI, 1997, p. 209). A
autobiografia literária não é a invenção de algo não vivido; ela consiste em apresentar fatos
revistos, ou seja, os fatos são apresentados à distância do acontecido, devido a isso é que a
fronteira entre o real e o ficcional não é nítida, porém, “se, por um lado, a autobiografia não
pode ser plenamente confiável qualquer leitor menos ingênuo não confundiria um texto
autobiográfico com a inequívoca declaração de verdade – por outro lado, não afeta a crença no
ocorrido, uma espécie de contrato entre autor e leitor, que é mantido” (TURCHI, 1997, p.
209).
A mescla entre o real e o ficcional elaborada por Sanches Neto em Chove sobre minha
infância, faz com que o livro ecoe nas palavras de Ernesto Sabato (2003), o qual, a respeito da
autobiografia, afirma: “Dada a natureza do homem, uma autobiografia é inevitavelmente
mentirosa. E somente com máscaras, no carnaval ou na literatura, os homens se atrevem a
dizer suas (tremendas) verdades últimas. ‘Persona’ significa máscara e, como tal, entrou na
linguagem do teatro e do romance” (SABATO, 2003, p. 60). Ou seja, ainda que um livro
pertença ao gênero autobiográfico, seu enredo é influenciado pela ficção, ademais, o real é
sempre modificado conforme o ponto de vista dos participantes que estão envolvidos nos
fatos. Essa característica se apresenta em Chove sobre minha infância quando Carmen
Sanches, por meio da carta redigida a Miguel, expõe a sua visão a respeito dos
acontecimentos.
Por privilegiar a alternância entre o real e imaginário, autobiografia e ficção, imagens e
relatos e, revelar mais de um ponto de vista a respeito dos acontecimentos é que Chove sobre
minha infância pode ser classificado como um romance pós-moderno. Pós-modernismo é o
nome atribuído ao movimento cultural surgido na arquitetura em meados do século XX. Nos
anos 60 cresceu com a arte pop e, nas décadas posteriores, promoveu mudanças significativas
nas artes plásticas, moda, cinema, teatro, música e literatura. Segundo Hutcheon (1991), ao
surgir como reação às características da literatura modernista, o pós-modernismo constitui um
paradoxo, uma vez que acaba por incorporar algumas tendências pertencentes ao movimento
anterior. A principal característica da literatura pós-modernista é a multiplicidade, a qual se
evidencia tanto no comportamento das personagens, quanto nas técnicas composicionais.
2.2 - A poética do duplo e a reflexão sobre a vida.
A presença do tema do duplo se faz presente nas mais diversas artes, como nas artes
plásticas e, mais recentemente, no cinema. Porém, se trata de um tema célebre quando aparece
associado à literatura. Conforme Mendonça (2001), “uma das mais fecundas manifestações
deste mito tem sido a literatura [...] Sua preferência é bastante evidente no drama com a
duplicação de personagens gêmeos, muitas vezes e mais subentendida, na poesia de
domínio subjetivo” (MENDONÇA, 2001, p. 144). Tanto na lírica quanto na prosa, “o tema do
eu e do outro é regido por uma lógica que lhe confere unidade: relacionado ao tema do duplo,
o desdobramento do eu reflete uma inquietude metafísica e, ao mesmo tempo, aponta para
uma profunda reflexão sobre a vida” (CRUZ, 2001, p. 117). A duplicação leva o homem ao
seu alter ego – segundo eu – demonstrando uma orientação subjetiva.
A arte sempre possibilitou ao homem a revelação da condição humana, uma vez que é
por meio das expressões artísticas que a possibilidade de o homem se recriar. Conforme
Paz (1982): “A experiência poética é uma revelação da nossa condição original. E essa
revelação é sempre resolvida numa criação: a de nós mesmos. A revelação não descobre algo
exterior, que estava aí, alheio; o ato de descobrir entranha a criação do que vai ser descoberto:
nosso próprio ser” (PAZ, 1982, p. 187). No dizer de Paz, portanto, mais do que recriar as
circunstâncias em que o homem vive, o artista cria, por meio das imagens, a possibilidade do
homem poder ser.
As produções que contemplam uma visão existencialista ocupam um espaço
significativo na literatura. Essas produções que reservam um espaço especial ao eu,
demonstram o quanto o homem tem necessidade do encontro consigo mesmo. De acordo com
Souza, “a atitude do homem de registrar a sua presença irrepetível no mundo tornou-se, cada
vez mais, necessária na época contemporânea devido às várias transformações históricas e
sociais” (SOUZA, 1997, p. 124). Nesse sentido, a expressão do eu nas artes, além significar
uma espécie de salvação do homem nos dias atuais nos quais não se acredita numa
remição coletiva demonstra a procura pelo outro, pois o homem é um ser duplo que
necessita dialogar consigo mesmo e com o coletivo. Nesta perspectiva, as imagens do duplo
podem expressar-se de diferentes formas, conforme Cruz (2001), “O tema do duplo pode
expressar-se mediante recursos imagéticos: espelho, alteridade, retrato, sombra, reflexos, mito
de Narciso, personagem gêmeo, ou sósia, entre outros. A princípio, este tema se refere à
existência do outro, que duplica a existência do sujeito rico” (CRUZ, 2001, p. 117). Por
meio dessas imagens que representam a duplicação, o artista contempla o eu de forma
investigativa, a qual parte de um questionamento a respeito da relação entre o sujeito e o seu
próprio interior.
No Gênesis, quando a cisão do homem em dois homem e mulher a temática
do duplo é posta em evidência. Com a sucessão dos anos, tanto artistas quanto filósofos,
recorreram a esse tema. Conforme Bravo (1997), “sua eflorescência durante o romantismo não
nos deve fazer esquecer que o mito do duplo remonta a épocas bem mais recuadas no tempo:
antigas lendas nórdicas e germânicas contam o encontro com o duplo” (BRAVO, 1997, p.
262). Assim, a temática do duplo tem despertado interesse nas mais diversas áreas do
conhecimento, conforme Bargalló (2004), o tema do eu e do outro e da identidade e alteridade
tem despertado interesse em especialistas de todas as disciplinas das ciências humanas,
especialmente da literatura Ocidental, a qual sempre teve o desdobramento como parte da sua
estrutura. Para exemplificar a presença da temática do duplo na literatura de todos os tempos,
Bargalló refere obras de escritores como, Heráclito, Platão, Sófocles e Plauto. Deste último
destaca-se a comédia Anfitrião, a qual elucida a questão da duplicação por meio do sósia.
Atualmente, o mito do duplo, de acordo com Bravo (1997, p. 263), é estreitamente
ligado à idéia da subjetividade, a qual teve início no século XVII quando fora lançada a
relação binária sujeito-objeto. Até o final do século XVI, o mito do duplo simbolizava “o
homogêneo, o idêntico: a semelhança física entre duas criaturas é usada para efeitos de
substituição, de usurpação de identidade, o sósia, o gêmeo é confundido com o herói e vice-
versa, cada um com uma identidade própria” (BRAVO, 1997, p. 263-264). Porém, a partir do
século XVII o “duplo passa a representar o heterogêneo, com a divisão do eu chegando à
quebra da unidade (século XIX) permitindo até mesmo um fracionamento infinito (século
XX)” (BRAVO, 1997 p. 264). Por “heterogêneo” entende-se a forma de composição do
duplo, ou seja, marcada pela diversidade de realizações e representações. Dom Quixote de la
Mancha (1605-1615), de Miguel de Cervantes, foi um dos primeiros lançamentos desta fase.
De acordo com Mendonça (2001), “Quixote, ao procurar imitar os heróis dos romances de
cavalaria, revela uma inquietude busca de seu ‘outro’. Não o encontra, porém, na imitação de
heróis de literatura, mas em Sancho Pança, em cujo afeiçoamento faz unir razão e
sensibilidade” (MENDONÇA, 2001, p. 145).
Os estudos literários que contemplam a poética do duplo, efetuados no século XX,
quase sempre, privilegiaram o ângulo psicológico, o qual relaciona os aspectos do duplo com
os estudos da personalidade dos autores, devido a isso é que na maioria das vezes, o duplo
está ligado ao mito de Narciso e às tradições mitológicas. A respeito dos heróis duplicados,
Bravo (1997) afirma,
Os heróis que se desdobram apresentam uma disposição amorosa voltada
para o próprio Ego e sofrem de uma incapacidade de amar. Um conflito
psíquico cria o duplo, projeção da desordem íntima; o preço a pagar pela
libertação é o medo do encontro. Mas o duplo está ligado também (2ª tese)
ao problema da morte e ao desejo de sobreviver-lhe, sendo o amor por si
mesmo e a angústia da morte indissociáveis. Visto sob essa perspectiva, o
duplo é uma personificação da alma imortal que se torna a alma do morto,
idéia pela qual o eu se protege de destruição completa, o que não impede
que o duplo seja percebido como um “assustador mensageiro da morte”, do
que resulta a ambivalência de sentimentos a seu respeito (interesse
apaixonado/terror): ele é ao mesmo tempo o que protege e o que ameaça.
(BRAVO, 1997, p. 263).
Deste modo, essa duplicidade recorrente na literatura realiza-se devido aos artistas
encontrarem nesse expediente composicional o seu complemento, ou seja, por meio da
construção de um duplo – o outro – há a possibilidade de um reconhecimento profundo do ser,
ou seja, a recriação do eu, permite avaliar a própria condição existencial e entendê-la; o
aparecimento do outro auxilia o entendimento de uma condição humana. Para Bargalló,
O desdobramento quem sabe não supõe mais uma metáfora dessa antítese e
dessa oposição de contrários, cada um dos quais encontra no outro seu
próprio complemento; do que resultaria que o desdobramento (a aparição
do outro) não seria mais que o reconhecimento da própria indigência, do
vazio que habita o ser no fundo de si mesmo e da busca do Outro para
tentar entendê-lo (BARGALLÓ, 1994, p. 11).
No mesmo propósito, o desdobramento pode significar a angústia diante da morte,
ainda de acordo com Bargalló, “a aparição do Duplo seria, em último caso, a materialização
da ânsia de sobreviver frente à ameaça da morte. Não é em vão, segundo a influência de
Freud, que para a literatura moderna, a aparição do Duplo é o indício de que a morte está
próxima” (BARGALLÓ, 1994, p. 11). A respeito dessa relação existente entre morte e
duplicidade, Bravo defende, a partir da concepção junguiana, que ela existe justamente por
que a duplicidade representa uma nova condição de vida, ou seja, se é por meio do duplo que
o sujeito se reconhece de fato, então, a partir desse autoconhecimento ele está apto para,
depois de ter revelado as suas privações, uma nova etapa da vida. Segundo Bravo, “o
sentimento de culpabilidade do eu indo dar no desejo de morte, para renascer, de acordo com
a visão junguiana, num outro ser” (BRAVO, 1997, p. 263).
Contudo, a duplicidade não está necessariamente ligada à analogia; mesmo criando-se
um duplo que aparentemente seja semelhante ao seu original, ele não deve ser confundido,
pois, o duplo pode até mesmo ser o oposto de seu original. Bravo (1997), esclarece que a
figura do duplo é sempre fascinante para aquele que ele duplica, em virtude do paradoxo que
representa, uma vez que, ele é, ao mesmo tempo, “interior e exterior, está aqui e lá, é oposto e
complementar, e provoca no original reações emocionais extremas (atração/repulsa). De um e
outro lado do desdobramento a relação existente numa tensão dinâmica. O encontro ocorre
num momento de vulnerabilidade do eu original” (BRAVO, 1997, p. 263). O ser, então
dividido, é enfraquecido e predestinado a encontrar o seu outro com quem voltará a ser um.
Em Bravo, encontra-se uma série de escritores que se valeram das diversas maneiras
de expressão do duplo. Dentre os temas heterogêneos destacados pela teórica, estão: “o eu
estranho e a dispersão do eu”, “a união do vivente com o simulacro técnico”, “o símbolo da
busca da identidade”, “o emblema da supra-realidade”, “os mitos de dentro e o inferno
íntimo”. Entre os mestres do assunto na literatura, ela cita Dostoievski, Maupassant, Cortazar,
Goethe e Kafka. Vale a pena salientar, que na literatura em Língua Portuguesa, vários poetas e
romancistas desenvolveram em suas obras o tema do duplo, pode-se citar, dentre outros,
Fernando Pessoa, Machado de Assis, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Cecília Meireles,
Ferreira Gullar e Helena Kolody.
Em suas obras tanto em prosa quanto em poesia Miguel Sanches Neto também
contempla essa expressão existencialista, ou seja, se vale de imagens que revelam um eu
questionador em busca do verdadeiro sentido sobre a vida. Em Chove sobre minha infância,
por exemplo, há um personagem que recebe o nome do escritor, repete os seus
comportamentos e atitudes da infância e relaciona-se com as pessoas com as quais o escritor
se relacionou, nesse sentido, Sanches Neto criou um duplo que não é ele, mas um outro, isto é,
uma personagem criada a partir das suas experiências de vida e, sobretudo, por meio do
trabalho com a linguagem. A apresentação desse outro ajuda o eu a avaliar a vida de forma
diferente; no momento em que há a partilha das vivências, ocorre a compreensão dos fatos e a
revelação da sua condição original. Esta forma de elaboração literária, segundo Sabato (2003)
é própria da época atual, de acordo com o escritor e crítico literário:
O romance do século XX não somente conta de uma realidade mais
complexa e verdadeira do que a do século passado, como adquiriu uma
dimensão metafísica que não tinha. A solidão, o absurdo e a morte, a
esperança e o desespero são temas perenes de toda a grande literatura [...].
O romance de hoje, por ser o romance do homem em crise, é o romance
desses grandes temas pascalianos. E, em conseqüência, ele não somente se
lançou à exploração de territórios que aqueles romancistas nem
suspeitavam, como também adquiriu dignidade filosófica e cognitiva.
Como se pode supor em decadência um gênero com semelhantes
descobertas, com domínios tão vastos e misteriosos por percorrer, com o
conseguinte enriquecimento técnico, com suatranscendência filosófica e
com o que representa para o homem angustiado de hoje, que vê no romance
não apenas seu drama, como ainda busca sua orientação? Ao contrário,
penso que é a atividade mais complexa do espírito de hoje, a mais integral e
a mais promissora nessa tentativa de questionar e expressar o drama que
nos coube viver (SABATO, 2003, p. 92).
Assim, Chove sobre minha infância é um romance com características das produções
artísticas vigentes na atualidade. Tanto o seu tema, quanto a maneira como o autor o aborda é
próprio da literatura de meados do século XX e início do XXI. Essa busca pelo entendimento
dos fatos é a representação da angústia que impera sobre os espíritos humanos. O retorno ao
passado é a principal característica desse homem em crise que se sente solitário diante de um
mundo também em crise. Nessa perspectiva é que a literatura traz à tona essas personagens
que questionam o sentido da vida. O Miguel adulto e questionador de Chove sobre minha
infância é a representação desse homem que quer descobrir a sua verdadeira identidade, ou
seja, acima de entender os fatos aos quais esteve submetido, ele quer se entender e
compreender o que se passa no seu âmago.
Conforme Bravo, uma das formas de manifestação do duplo é a relação de diálogo que
o autor estabelece entre a sua vida e obra, ou seja, o artista projetar-se nela como se esta fosse
um auto-retrato. Desde criança, quando ainda praticava as lições básicas de escrita, o narrador
de Chove sobre minha infância, encontrava na literatura e no ato de escrever uma forma de
revelação e de espelhamento, a este respeito, ele afirma, “A minha mão está doendo, que
sinto prazer. Descubro como cansa escrever, é mais difícil que tirar água do poço, varrer a
casa ou limpar o quintal. E no entanto é gostoso, porque a gente fica vendo o papel com
aquelas letras como se estivesse olhando o próprio rosto no espelho”. (CMI, p. 41). Ao
comentar essa relação, Bravo (1997) afirma que, “pela poética do duplo, escritores
contemporâneos liberam seus heróis, que muitas vezes são duplos deles próprios aprisionados
num eu particular, fixado no molde da personalidade” (BRAVO, 1997, p. 282). Assim, um
dos vieses que Bravo se vale para observar o duplo é o estudo biográfico.
Por um longo período, os estudos das artes e da literatura foram motivados pela
suposta presença do criador em sua obra e esta como espelho daquele. Conforme Mendonça,
“Muitos destes estudos são impulsionados por mera especulação da personalidade e da vida
do artista/criador. Não devemos confundir neste momento a crítica literária com a pesquisa
biográfica legítima, cujo objetivo é apresentar ao público um apanhado de informações
factuais da vida e obras de um dado artista” (MENDONÇA, 2001, p. 147). Contudo, é
inegável que algumas obras artístico-literárias remetam a um determinado autor, isto é,
obras que são, involuntariamente, associadas ao seu criador, uma vez que, elas sugerem, tanto
pelo estilo quanto pelo enredo, a forte influência que a vida do artista exerce sobre a sua obra.
A esse respeito, Mendonça afirma:
Neste caso, é importante entender duas coisas: primeiramente, esses
elementos autobiográficos que porventura sejam reconhecidos numa dada
obra deverão ser abordados como elementos reelaborados; filtrados,
portanto, para o artístico e literário, destituindo-se, dessa forma, de fator
meramente pessoal. Em segundo lugar, o autor poderá valer-se de sua obra
como máscara ou disfarce sob a qual faz esconder toda uma circunstância
pessoal de onde, por exemplo, deseja fugir. (MENDONÇA, 2001, p. 147).
Conforme aponta o estudioso, a máscara elaborada pelo artista constitui o que
comumente nomeia-se por arte, ou seja, é esse disfarce que permite, nas expressões artísticas,
que a realidade do artista passe a ser ficção. Neste sentido, vai-se de encontro à idéia
apresentada em “Autopsicografia”, poema no qual Fernando Pessoa alude à arte de criar
versos: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega fingir que é dor / A
dor que deveras sente” (PESSOA, 2003, p. 98). É nessa simulação à qual Pessoa alude que se
revela a grandiosidade da criação artística e literária.
O conflito estabelecido pelo personagem central do livro, se por meio do retorno à
infância. Tal retorno, permite ao narrador a reelaboração dos acontecimentos, atitude que
permitiria entender alguns fatos que foram determinantes na formação da sua personalidade,
dentre eles, o gosto pelos estudos, especificamente, pelo ato de escrever, herdado da mãe. O
Miguel adulto, que faz o retorno à infância, no primeiro capítulo do livro, percebe que
desde os seus primeiros anos de vida sentia a necessidade de comunicar-se, o narrador diz:
Quem seria este interlocutor que o menino procurava? Um amigo? Alguém
da família? O pai sempre ausente, fazendo seus negócios no centro de Bela
Vista do Paraíso? As meninas que moravam na casa ao lado? Talvez todos,
mas principalmente o adulto que a criança se tornaria. Ela queria falar
comigo, por isso a imagem me ficou tão nítida na lembrança (CMI, 2000, p.
10).
Assim, há a demonstração de que a criança a quem o narrador remete é ele próprio nos
primeiros anos de vida; é o Miguel adulto retornando às primeiras lembranças da infância. E
essa primeira recordação traz à tona, as habilidades para a escrita, a qual é o fio condutor dos
principais acontecimentos em sua vida. Portanto, é por meio dessas imagens duplicadas que se
desenvolve toda a discussão em relação aos personagens da obra e, especificamente, no que
diz respeito à inquietação existencial do narrador e personagem principal.
A partir da sua duplicação, o narrador expõe tanto aspectos exteriores quanto interiores
da sua personalidade. É interessante observar que ele evidencia tanto suas virtudes quanto
suas fraquezas. É como se o Miguel adulto se colocasse diante de um espelho, o qual
possibilitaria o reconhecimento do seu outro, ou seja, do que ele é originalmente. Contudo,
esse ato de reconhecimento se aos poucos, conforme os acontecimentos vão sendo
narrados.
Segundo as abordagens teóricas estudadas a respeito do tema do duplo, uma
característica que é marcante nas obras que o contemplam: a oposição de contrários, a qual
também em Chove sobre minha infância persistirá até o fim da trama. nos primeiros
capítulos da obra é predominante o embate entre o narrador, Miguel, e seu padrasto,
Sebastião. Ocorre essa desarmonia, primeiramente pelo menino ter uma imagem idealizada
do pai falecido: “O pai é a grande figura até meus quatro anos” (CMI, 2000, p. 12). E,
segundo, por que Miguel e Sebastião não compartilhavam das mesmas opiniões e ideais. Este
conflito, que ganha ares de duelo ao longo da narrativa, é indispensável para o narrador, uma
vez que representam as forças opostas que desencadearão o desequilíbrio entre a vontade do
eu e a vontade do outro. Para Miguel, o pai e o padrasto formavam um contraste e este era
compreendido entre o bem (pai) e o mal (padrasto).
Deste modo, esses dois são a representação do inconsciente humano e, portanto, do
inconsciente de Miguel. É como se o narrador estivesse se perguntando: “Qual será o segredo
da minha alma?”. A resposta está no final do livro quando, ao contrário de outras obras que
tem como pano de fundo o mito do duplo, o narrador, com a ajuda da irmã, consegue
entender boa parte das suas angústias. Miguel compreende que sua personalidade/identidade é
formada tanto por aquilo que herdou do pai, quanto pelos exemplos do padrasto. Carmen
declara:
Veja só. Você detesta relógio de pulso da mesma forma que o pai. Tem
vergonha de sair de óculos escuros e de bermuda assim como o pai. Gosta
de levantar cedo, de trabalhar até ver o fim do serviço. Tal padrasto, tal
filho. Toda esta herança está na sua maneira de ver a literatura e de
escrever. Você é um camponês no meio de civilizados e isso é o reflexo da
educação que, mesmo contrariado, você herdou do lado mais rústico da
família (CMI, p. 248).
Por meio da carta da irmã, Miguel passa a compreender melhor os acontecimentos e
ver que a presença do padrasto não fora unicamente negativa. Por mais que a convivência com
ele tenha sido dolorosa, fora importante para a formação da sua personalidade. Morar com o
padrasto teve seu preço, mas ele também foi indispensável no processo de descoberta pessoal
e profissional. A esse respeito, Carmen afirma,
Nem o e nem o Luís se parecem tanto com o pai como você [...] E eu
acho isso bonito, lutando contra o padrasto você conseguiu ser o herdeiro
dele, enquanto os que apenas aceitavam as imposições se perderam pelo
caminho [...] Pude assim compreender melhor o padrasto. É um homem que
leva a rio a honestidade, tanto nos negócios como na família, e que nos
passou esta gana pelo trabalho.Veja como você tem sempre tantos projetos,
isso você deve a ele. Me conte, quando você o viu fazendo qualquer coisa
desonesta? Enganando alguém na cerealista? (CMI, p. 248-49).
Deste modo, a duplicidade não sesomente entre o narrador e Miguel, mas também,
pela presença do pai e do padrasto, ou seja, a personalidade de Miguel é produto tanto da
convivência com o pai quanto a com o padrasto.
Neste propósito, a criação artística é o ato de transcender, de ir além daquilo que faz
parte do cotidiano e da história. Por meio da literatura, por exemplo, o homem é conduzido a
outros lugares, a outras realidades, imaginações e sonhos. Conforme Almeida, “Embora atado
ao tempo e à morte, o homem traz dentro de si o outro tempo, a conciliação entre o fluir e o
não fluir, o tempo fixo, o presente eterno anterior à noção de tempo cronométrico. se
chega a ele pela imagem, que ele próprio é imagem: a apreensão imediata do transcorrer, o
acordo entre o homem e o fluir temporal” (ALMEIDA, 1997, p. 19). A imaginação literária
possibilita ao homem ir a lugares imemoriais, os quais não estão relacionados à noção de
tempo da atualidade, nesse sentido, elas se caracterizam por estabelecer um diálogo entre o
homem e o mundo; nesse diálogo consiste, sobretudo, a revelação desse homem. Portanto, em
Chove sobre minha infância, o mito do duplo não aponta para a revelação do real. Antes,
Sanches Neto faz uma descrição mímesis por meio da qual reflete em seus personagens,
de forma tênue, a sua expressiva personalidade.
2.3 - As vozes no romance e o conflito das ideologias.
Em Chove sobre minha infância o plurilingüismo defendido por Mikhail Bakhtin
manifesta-se de duas formas distintas: no discurso das personagens e na intercalação de
diferentes gêneros dentro do romance. A primeira forma se caracteriza em todos os romances,
isto é, o romancista, em meio a uma variedade de discursos, elege os mais apropriados para
manifestar através das suas personagens. Deste modo, são fundamentais as forças sociais que
determinam a cristalização da linguagem, como, o sexo da personagem, sua classe social,
profissão e as particularidades que determinam a sua personalidade. Todas essas
características são essenciais tanto para expressar a ideologia das personagens quanto a que
permeia a obra como um todo.
Conforme os pressupostos teóricos de Georg Lukács (1999), o romance só adquiriu os
caracteres típicos formato tradicional a partir da sociedade burguesa, ou seja, mesmo
havendo obras literárias no antigo Oriente, na Antigüidade e na Idade Média, elas não
possuíam as características do romance do início do século XVII. A partir do seu surgimento,
o romance foi o espaço no qual as contradições da sociedade e as características da arte
burguesa adquiriram expressão plena. Por apresentar características estéticas gerais da grande
poesia épica e por ter sofrido modificações provindas da sociedade burguesa, Hegel passa a
nomear essa nova forma de composição artística como “epopéia burguesa”, em outras
palavras, para o filósofo, o romance é para a época burguesa aquilo que a epopéia representou
para a época medieval. Conforme Lukács:
Devido a suas finalidades e propriedades, o romance apresenta todos os
elementos característicos da forma épica: a tendência para adequar a forma
da representação da vida ao seu conteúdo; a universalidade e a amplitude
do material envolvido; a presença de vários planos; a submissão do
princípio da reprodução dos fenômenos da vida mediante uma atitude
exclusivamente individual e subjetiva (como, por exemplo na lírica) ao
princípio da representação plástica, em que homens e acontecimentos
agem, na obra, quase por si mesmos, como figuras vivas da realidade
exterior (LUKÁCS, 1999, p. 93).
Percebe-se, portanto, que é devido à sua propriedade e finalidade que o romance se
aproxima tanto da forma épica. Ou seja, tanto na epopéia quanto no romance a principal
recorrência é em relação à vida dos homens em sociedade, ao contexto social e à época
histórica. Contudo, o estudo teórico sobre o romance não deveria pautar-se exclusivamente
nesses aspectos ideológicos. De acordo com Bakhtin (1988), por muito tempo o romance
recebeu atenção apenas em relação à análise “abstratamente ideológica”, no entanto, em fins
do século XIX, o romance passou a ser estudado também “pelas questões concretas da prosa
na arte literária e pelos problemas técnicos do romance e da novela” (BAKHTIN, 1988, p. 72).
Nesse sentido, a partir de 1920 houve uma mudança na forma de valorizar o romance,
isto é, o discurso romanesco passa a conquistar seu espaço também na estilística: “O romance,
tomado como um conjunto, caracteriza-se como um fenômeno pluriestilístico, plurilíngüe e
plurivocal. O pesquisador depara-se nele com certas unidades estilísticas heterogêneas que
repousam às vezes em planos lingüísticos diferentes e que estão submetidas a leis estilísticas
distintas”. (BAKHTIN, 1988, p. 73). Para Bakhtin, mais do que unir forma e conteúdo, o
romance se caracteriza pela diversidade social de linguagens artísticas, isto é, pela presença de
vozes individuais:
O romance é uma diversidade social de linguagens organizadas
artisticamente, às vezes de línguas e de vozes sociais. A estratificação
interna de uma língua nacional única em dialetos sociais, maneirismos de
grupos, jargões profissionais, linguagens de gêneros, fala de gerações, das
idades, das tendências, das autoridades, dos círculos e das modas
passageiras, das linguagens de certos dias e mesmo de certas horas (cada
dia tem sua palavra de ordem, seu vocabulário, seus acentos), enfim, toda
estratificação interna de cada língua em cada momento dado de sua
existência histórica constitui premissa indispensável do gênero romanesco
(BAKHTIN, 1988, p. 74).
Essas vozes presentes no romance são constituídas social e historicamente. Para ele, as
vozes presentes no romance fazem parte da relação dialógica das consciências. Isto é, o
repasse de experiências por meio da linguagem realizada entre os sujeitos sociais. A
respeito da concepção de Bakhtin sobre a voz do romance, Tezza (2001) afirma:
E são vozes necessariamente enraizadas na História. Aliás, podemos dizer
que são vozes conquistadas num longuíssimo processo histórico de
descentralização da linguagem, a lenta passagem de um mundo de valores
centralizados e acabados, cuja expressão máxima estaria na epopéia
clássica, para um mundo descentralizado de linguagens, o universo
perpetuamente inacabado, a urgência do aqui e do agora (TEZZA, 2001,
s/p).
Assim, as vozes presentes no romance são, sobretudo, marcadas pela relação dialógica,
por seres imediatos, do presente e que fazem parte de um mundo inacabado, que está em
processo, isto é, o ponto de partida para a composição romanesca “é a atualidade, as pessoas
da época e suas opiniões” (BAKHTIN, 1988, p. 414). Portanto, o romance é a representação
da fala do homem. Nesta perspectiva, o autor, as personagens e os narradores atuam como
portadores dessas vozes sociais.
Para Bakhtin, “a forma e o conteúdo estão unidos no discurso, entendido como
fenômeno social – social em todas as esferas da sua existência e em todos os seus momentos –
desde a imagem sonora até os estratos semânticos mais abstratos” (BAKHTIN, 1988, p. 71).
A questão fundamental levantada pelo teórico é em relação à distinção entre o autor-pessoa e
o autor-criador. O primeiro diz respeito ao papel do artista, ou seja, do escritor enquanto
criador da obra artística, por outro lado, o conceito de autor-criador está vinculado à função
estética que origem à obra. Conforme Faraco, para Bakhtin, o autor-criador é “um
constituinte do objeto estético (um elemento imanente ao todo artístico) mais precisamente,
aquele constituinte que forma ao objeto estético, o pivô que sustenta a unidade do todo
esteticamente consumado” (FARACO, 2005, p. 37). Nesta perspectiva, o autor, por ser aquele
que dá materialidade à obra, é relacionado ao herói e ao seu universo.
Contudo, é preciso compreender que o mundo do herói nunca é uniforme e
homogêneo, mas sim múltiplo, devido a isso, é que não deve ser associado exclusivamente ao
seu criador. Ao mesmo tempo, existe inúmeras maneiras de o criador dar voz a esse herói e
àquilo que o rodeia, “a simpatia pelo herói e seu mundo poderá, por exemplo, ser nuançada
por uma crítica melancólica; a reverência, por uma suave e sutil ironia, e assim por diante”
(FARACO, 2005, p. 38). Assim, o autor-criador não registra os conteúdos e os eventos da
vida, como também os organiza. Ou seja, sabe-se que na arte os aspectos do plano da vida são
destacados, porém, os artistas se valem de diferentes formas e maneiras para dar vazão a essas
eventualidades, então, o que eles fazem é transpor para a arte, alguns planos de valores, isto é,
aquilo que acreditam ser verdades. De acordo com Faraco (2005):
O ato criativo envolve, desse modo, um complexo processo de transposição
refratadas da vida para a arte: primeiro, por que é um autor-criador e não
um autor pessoa que compõe o objeto estético (há aqui, portanto, um
deslocamento refratado à medida que o autor-criador é uma posição
axiológica conforme recortada pelo autor pessoa); e, segundo, porque a
transposição de planos da vida para a arte senão por meio de uma isenta
estenografia (o que seria impossível na concepção bakhtiniana), mas a
partir de um certo viés valorativo (aquele consubstanciado no autor-
criador). O autor-criador é, assim, uma posição refratada e refratante.
Refratada porque se trata de uma posição axiológica conforme recortada
pelo viés valorativo do autor-pessoa; e refratante porque é a partir dela que
se recorta e se reordena esteticamente os eventos da vida (FARACO, 2005,
p. 39).
Desta maneira é que a criação do texto literário envolve uma séria de vozes sociais,
isto é, o escritor, por meio do seu trabalho de criação, direciona as palavras para vozes alheias
e entrega a construção do todo artístico a uma certa voz. Conforme Bakhtin (1988), essa é
uma segunda voz, uma vez que o discurso do autor-criador não é a voz direta do escritor, mas
uma apropriação de uma voz refratada, a qual é a responsável por toda a ordem relacionada à
questão estética. Na teoria bakhtiniana, o autor não é apenas um “portador das vivências
anímicas”, ao contrário, ele é um elemento constitutivo da obra. Com base nas concepções
teóricas de Bakhtin, Machado defende que “é impossível definir a figura do autor
independente da relação com seus personagens, visto que estamos diante de relações
dialógicas. Trata-se antes de mais nada, da manifestação de concepções de mundo
divergentes, de pontos de vistas diferenciados e nem sempre concluídos, por isso mesmo
capazes de gerar polifonia” (MACHADO, 1995, p. 92).
Para Bakhtin, a grandiosidade da obra de Dostoiévski se dava justamente, por ser ele
um “enunciador de concepções de mundo determinadas”. Ou seja, em suas obras, as
personagens não são meros objetos de discurso e sim, sujeitos dele. A constituição da
polifonia surge devido às vozes do romance estarem em confronto. Essas vozes se
caracterizam por apresentarem idéias divergentes e pontos de vista em constante interação.
Essa forma de composição romanesca criada por Dostoiévki “contribuiu com novas formas de
visão artística e por isto teve o dom de ver e descobrir novas facetas do homem e de sua vida.
[...] Permitiu ampliar os horizontes da visão artística e analisar o homem sob outro ângulo de
visão artística” (BAKHTIN, 1981, p. 237). Assim, pode-se dizer que, quando as idéias do
escritor entram na obra literária, elas mudam a sua forma de existência, ou seja, elas passam a
ser “imagens artísticas das idéias”, pois já não são mais idéias do escritor, mas sim a refração
delas. Assim, mesmo que o escritor queira repassar de forma original suas idéias ao herói,
elas não são mais consideradas idéias, uma vez que passaram a corresponder às idéias de
todos.
Nesse sentido, autor e personagem são duas consciências, as quais não exercem
simultaneidade. Na linguagem estética, ora uma aproximação entre essas consciências, ora
um afastamento, e é dessa instabilidade identitária entre autor-criador e seu herói que
resultam os tipos de personagens e os estilos de linguagem. A esse respeito, Tezza afirma:
Para Bakhtin, o autor-criador é a consciência de uma consciência, uma
consciência que engloba e acaba a consciência do herói e do seu mundo; o
autor-criador sabe mais do que o seu herói. Temos um excedente de
saber, e um primeiro pressuposto da visão de mundo bakhtiniana, um
princípio básico: a exotopia, que podemos simplificar definindo-a como o
fato de que um outro pode nos dar acabamento, assim como nós
podemos dar acabamento a um outro. Cada um de nós, daqui onde estamos,
temos sempre apenas um horizonte; estamos na fronteira do mundo que
vivemos - e o outro pode nos dar um ambiente, completar o que
desgraçadamente falta ao nosso próprio olhar (TEZZA, 2001, s/p).
Nesta perspectiva, Tezza aponta para aquilo que é a principal característica da teoria
bakhtiniana, isto é, o princípio dialógico. Em outras palavras, para o teórico russo, a limitação
entre as idéias do ser humano é preenchida “pelo olhar do outro” e é dessa troca de idéias
que emerge o universo das vozes romanescas, “vozes, aliás, do ponto de vista interno,
perpetuamente inacabadas, como inacabada é a vida nossa de todo dia, aqui e agora” (TEZZA,
2001, s/p). Devido a isso, Bakhtin afirma que, “a forma [estética] é fundamentada no interior
do outro - do autor, isto é, a partir de uma reação geradora de valores que são, por princípio,
transcendentes ao herói e à sua vida, mas todavia ligados a ele” (BAKHTIN, 2003, p. 83).
Conforme Bakhtin, a exotopia resulta do processo do “olhar do outro” sobre a “minha
perspectiva de mundo”. A esse respeito Tezza (2001) defende que, “pelo princípio da
exotopia, euposso me imaginar, por inteiro, sob o olhar do outro; pelo princípio dialógico,
que, em certo sentido, decorre da exotopia, a minha palavra está inexoravelmente
contaminada do olhar de fora, do outro que lhe dá sentido e acabamento” (TEZZA, 2001, s/p).
Enfim, para Bakhtin, nenhuma voz existe sozinha, todas são influenciadas. Isto é, a natureza
da linguagem comunicação é, de fato, uma troca, uma relação dupla de transferência de
idéias. Nesse sentido, a linguagem romanesca se caracteriza por relacionar linguagens e
pontos de vistas diversificados. Nas palavras de Tezza:
Talvez esteja a semente de uma ética possível, de uma ética romanesca
que resulte não da linguagem da ciência, em que o outro é um objeto, mas
da linguagem romanesca, em que o outro, da mesma forma que eu, é
também um sujeito, está vivo, e respira; falar do outro é, necessariamente,
dar a voz ao outro; e, mais que isso, a minha forma está inextricavelmente
ligada ao outro, e pode ser completamente definida por ele, num
caminho de mão dupla. (TEZZA, 2001, s/p).
Nessa perspectiva, o romance, assim como as vozes nele presentes, não está acabado.
O que ocorre na linguagem romanesca é a constante troca com a linguagem viva e inacabada
da vida cotidiana. Portanto, cabe ao romancista transparecer o discurso da personagem como
se não houvesse linguagem mais apropriada para ela. Assim, deve haver uma concordância
entre a personagem e o seu discurso, o qual deve ser um objeto moldável e manipulável nas
mãos do romancista. E assim, a junção das linguagens de cada personagem deve resultar na
valorização do aspecto social do romance.
Na obra de Sanches Neto, os discursos possuem autonomia, uma vez que, as
personagens também são constituídas por uma base ideológica. O personagem-narrador
Miguel Sanches Neto faz de seu discurso, um instrumento para expor o seu ponto de vista
sobre o mundo. Conseqüentemente, esse ponto de vista entra em atrito com o de outras
personagens. O maior exemplo apresentado no romance é a divergência de idéias existentes
entre Miguel e seu padrasto Sebastião. No conjunto da obra, portanto, os discursos e as
personagens atuam concomitantemente e fazem questão de expressar, cada qual, as suas
particularidades.
Se o discurso apresenta um peso ideológico, assim também são as ações dos
personagens, “a ação do herói no romance é sempre sublinhada por sua ideologia: ele vive e
age em seu próprio mundo ideológico (não apenas num mundo épico), ele tem sua própria
concepção de mundo, personificada em sua ação e em sua palavra” (BAKHTIN, 1988, p.
137). Ou seja, a ação e o discurso da personagem devem ser coerentes com as forças sociais
que a determinam.
Segundo Bakhtin, na épica, os heróis não possuíam uma ideologia sólida. Eles podiam
falar sobre os mais variados assuntos, contudo, suas idéias eram confundidas com as do autor,
o que proporcionava à epopéia uma perspectiva ideológica única e exclusiva, ao contrário, “o
romance contém muitas perspectivas, e o herói geralmente age em sua perspectiva particular.
Por isso, na narrativa épica, não homens que falam como representantes de linguagens
diferentes: o homem que fala, na realidade, é apenas o autor, e não existe senão um único e
exclusivo discurso, que é o do autor” (BAKHTIN, 1988, p. 136).
Essas “muitas perspectivas” a que se refere Bakhtin são as vozes que estão presentes
no romance, vozes discordantes que provocam um embate de pontos de vista. Desta maneira,
diante dessa desarmonia ideológica é que se instala a polifonia na obra. A personagem deixa
de ver o outro como objeto e passa a encará-lo como sujeito. Assim, acontece o conflito
ideológico. Em um jogo polifônico, devido às vozes assumirem posições sociais e ideológicas
distintas, elas criam polêmica e entram em choque.
Em Chove sobre minha infância essa multiplicidade de vozes é nítida. Primeiramente,
a luta ideológica entre Miguel e Sebastião é que cria o conflito de idéias e, conseqüentemente,
a polêmica que vai atuar em toda a trama. Ao mesmo tempo em que esse embate
ideológico – Miguel queria estudar e ser escritor e Sebastião queria que ele fosse agricultor
a representação de concepções de mundo diferentes, isto é, cada personagem difunde uma
maneira de agir e pensar. Nesse sentido, cabe ao leitor analisar o que se está sendo proferido
na obra.
Uma das maiores características de Chove sobre minha infância é a variedade de
personagens e de vozes que apresentam, cada qual, o seu ponto de vista diante da vida e dos
fatos. Com isso, Sanches Neto dispõe, através das personagens, uma série de vozes sociais.
Conforme o próprio narrador, sua intenção ao se tornar romancista era justamente dar voz a
pessoas ainda não muito agraciadas pela Arte. Ele justifica o fato de ser escritor quando
afirma: “Daí essa minha vontade de habitar folhas em branco para gastar esse extenso estoque
de silêncio, para dissipar essa herança de desejos. Aprender a escrever foi a única saída para
dar condição letrada à extensa ignorância de meus antepassados” (CMI, p. 240). Deste modo,
Chove sobre minha infância é o meio pelo qual Sanches Neto expressa a ideologia e o modo
de organização social, especificamente do interior paranaense, em um determinado momento
histórico. Além disso, as letras o ajudaram a dar voz à história familiar.
Essa ânsia em dar vazão a essas pessoas inicia-se quando Carmen, a avó de Miguel,
dizia ao menino que ele era o responsável em saldar a dívida do seu pai Antonio, uma vez que
este havia morrido. Certa vez, a avó disse ao menino:
Fiquei todos estes anos na cidade, mas a cidade sem o Toninho não presta,
por ele eu tinha deixado a minha vida, a minha casa, e de repente estou aqui
sem ele, sem casa, sem rumo. Era um homem forte, honrado, mas deixou
tantas dívidas, o nome sujo em Bela Vista, no Cerne e em Sertanópolis.
Você sabe, olhe bem pra sua avó, você sabe que tem que pagar essas
dívidas. Quando você começar a trabalhar, pegue uma parte do dinheiro e
guarde até conseguir limpar o nome de seu pai. Ele o pagou porque
morreu cedo. E agora que resta apenas a memória dele, quero que seja uma
memória bonita, sem nada contra. Esta é a sua tarefa, não pode fugir dela
(CMI, p. 24).
Essa atitude da avó faz com que Miguel se sinta, desde criança, responsável em saldar
as dívidas do pai. Em outra passagem da obra, quando Carmen e Miguel encontram um dos
credores de Antonio, a avó diz:
Você não se lembra deste menino. Não, é o filho do Toninho. Sim, o
Miguelzinho. Ele me disse que vai pagar a dívida do pai, já está até
juntando dinheiro. É claro que precisa. Nem se tiver que esperar mais dez
anos. Este é um menino responsável, Orlando. Vai pagar a dívida do pai.
Vai, sim, ele me prometeu. Não é por causa de você, é pelo nome do pai.
(CMI, p. 25)
Contudo, a forma como Miguel pretendia saldar a dívida do pai não era por
intermédio dos bens materiais e sim, por meio da literatura. Sobre o pagamento das contas, o
narrador diz: “Não fui prefeito de Bela Vista do Paraíso, não aprendi a discursar, continuo
ruim na arte da diplomacia, mas tomei alguma intimidade com as palavras e acho que isso
paga a dívida que meu pai deixou, não a dívida em dinheiro, mas a moral” (CMI, p. 240).
Nesse sentido, o meio pelo qual Miguel liquida as dívidas é dando voz ao espaço e universo
ao qual o pai pertenceu, ou seja, é narrando, também, a história do pai.
Concomitante a sua história, Miguel abarca uma série de outras histórias e formas de
agir e pensar das personagens, com isso, há a presença de diversos jeitos, estilos, linguagens e
comportamentos. Ao falar da sua infância, o narrador conta a história do pai, da mãe, da avó
Carmen, do avô Zé-Zabé, do Sebastião, dos irmãos, dos amigos, do professor, enfim, de uma
série de personagens com suas características. Ao fazer isso e reproduzir algumas
características do interior paranaense, além de divulgar as ideologias diferentes existentes
neste espaço, o autor explica o motivo do seu ato, ou seja, escrever um livro contando a sua
história de vida o ajudou, também, a dar voz a essas pessoas caladas, ou melhor, a essas vozes
cristalizadas na sociedade, mas que, até então, haviam sido silenciadas. Nesse sentido, ele, de
fato, salda a dívida do pai.
Contudo, mesmo discordando das idéias do padrasto, Miguel também as coloca em
evidência. Na carta, Carmen diz:
No fundo, seu livro também valoriza o padrasto. Apesar do ódio aparente,
para enxergar na sua vitória a dele. Indiretamente, você também salda a
dívida de silêncio do padrasto. Ao descrevê-lo, ao relatar sua participação
nesta não família, você está, por meio da escrita, dando visibilidade a ela. E
isso todos devem ao rapazinho dado a leituras, que não conseguiu trabalhar
na lavoura, que gostava de ficar trancado em casa. Eles devem isso a você.
Da mesma forma que você deve muitas coisas a eles, principalmente, ao
pai. É que você se vale da caneta como uma enxada, numa literatura sem
enfeites (CMI, p. 248).
Assim, a multiplicidade de pontos de vista, ligada à alternância dos falantes e ao
suspense, é o elemento básico para o caráter polifônico do romance. Ao final da obra, é como
se o leitor se deparasse, na carta de Carmen, com a resposta a todas as perguntas elaboradas
pelo narrador ao longo da trama. Porém, por mais que o narrador demonstre estar ciente e ter
entendido os fatos, ele, aparentemente, não está isento de mágoas. É como se ao final da obra,
o vazio que impera durante toda a narrativa, ainda permanecesse, isto é, fica a idéia de que
alguma lacuna ainda precisa ser preenchida.
2.4 – A multiplicidade de gêneros: a voz e a cosmovisão das personagens.
Além de se manifestar por meio do discurso das personagens, o plurilingüismo se
apresenta em Chove sobre minha infância devido à presença de gêneros intercalados. A
intercalação de gêneros e os discursos destes, segundo Bakhtin, deixa de transparecer a
bivocalidade do discurso. Para o teórico, a intercalação de gêneros é “[..] uma das formas
mais importantes e substanciais de introdução e organização do plurilingüismo no romance
[...]” (BAKHTIN, 1988, p. 78).
A intercalação de gêneros na obra de Miguel Sanches Neto exerce inúmeras funções.
Contudo, a princípio, esses outros gêneros, como, músicas, cartas, poemas, editais,ofícios e
fotos são usados para reforçar a história narrada por Miguel. Nesse sentido, é como se a
presença dos gêneros, além de reforçar as idéias do narrador, servissem também para ampliar
o campo de vista do leitor, possibilitando a ele mais de uma versão dos fatos, ou melhor, da
história. Os gêneros intercalados colaboram tanto para que se apresente no romance uma série
de vozes e discursos quanto para explicar sobre as personagens e suas personalidades. É o
caso do capítulo intitulado “Retratos de minha mãe”, no qual depoimentos, de tios de D.
Nelsa, falando da história familiar, a infância, adolescência e as dificuldades pelas quais a mãe
de Miguel passou ao longo da vida.
Como o narrador não conta a sua história de forma linear, ficam na narrativa algumas
lacunas, as quais são preenchidas por esses gêneros que fazem parte do romance. Isso ocorre
com os depoimentos escritos sobre D. Nelsa. Os tios dela Lindolfo, Ortência e Lula
expressam os seus pontos de vista sobre a personagem, deste modo, o narrador também coloca
em evidência a história da mãe, ou seja, no momento em que faz a opção por destacar várias
opiniões sobre sua mãe, Miguel está dando destaque tanto à voz da mãe quanto a dessas
outras pessoas que estão expondo falando. Assim, o que ocorre é a valorização que tem o
outro para o sujeito. Isto é, o outro conhece detalhes que o sujeito desconhece, nesse sentido,
no momento em que se importância a este outro, o sujeito está se permitindo uma visão
total dos fatos. Portanto, os depoimentos escritos pelos tios de D. Nelsa, revelam ao leitor,
detalhes não mencionados por Miguel no momento em que este escreve sua própria história.
Ao falar sobre a multiplicidade do romance, Ítalo Calvino, em Seis propostas para o
próximo milênio (1990), cita Bakhtin. Essa associação se dá, justamente, devido ao fato de a
multiplicidade ser um sinal claro da libertação do discurso autoritário e, conseqüentemente,
fundamento do caráter polifônico do romance. Assim, quando se fala em Chove sobre minha
infância é impossível não se ater à multiplicidade, Sanches Neto trabalhou muito bem essa
questão no momento da criação do romance.
Essa inter-relação entre as personagens é necessária, visto que, ao evidenciar os seus
discursos diversificados e pontos de vista, o que está ocorrendo é a evidência da natureza
social do romance. A intercalação de gêneros também permite a presença da intertextualidade,
a qual se caracteriza por ser uma das formas de manifestação do plurilingüismo no romance.
A intertextualidade pode aparecer no texto de duas maneiras: por meio da citação direta ou da
alusão. De maneira simplificada, a intertextualidade pode ser entendida como a inclusão de
um texto dentro de outro. Em Chove sobre minha infância, esses textos podem ser separados
do texto base, o que permite ao leitor a visão exata da presença desses outros textos, por outro
lado, também podem ser confundidos com a voz do narrador ou das personagens e passarem
despercebidos. Os gêneros inseridos no romance podem ser literários ou extraliterários. No
romance em questão, geralmente, são inseridos os extraliterários. Contudo, os gêneros
literários, como poemas e músicas, embora em número menor, também aparecem. É o caso do
poema escrito por Miguel em homenagem à Conceição do Nascimento, prima de D. Nelsa:
Quando eu morrer afogada
ainda não terei conhecido o amor
nem usado um vestido com rendas
e mal saberei escrever meu nome
– Conceisão do Nacimento.
Agora tiro esta foto
com minha cara de espanto
minha feição roceira
e dedico à prima Nelsa
que também não pôde seguir estudando.
Este meu poema
só será mesmo escrito
por seu filho
que realizará nosso sonho
de meninas pobres.
Agora deixo esta história de lado
e retomo minha sina de moça magra.
Que bom não saber
que logo morrerei afogada.
(CMI, p. 236-37).
Devido aos romances permitirem a inserção de vários gêneros literários ou não é
que eles deixam transparecer a sua maleabilidade, isto é, os romances compreendem várias
vozes, que tem sua autonomia conservada. No caso do poema acima, percebe-se que, mais
uma vez, Sanches Neto se vale de um outro gênero literário para reforçar a idéia que estava
tratando no capítulo. É por meio desse poema que o narrador demonstra como a mãe era a
única pessoa da família que acredita que um dia ele se tornaria escritor. A esse respeito, o
narrador afirma:
Por causa deste e de outros poemas, quando alguém pergunta do filho mais
velho, a mãe diz é um menino bom, está estudando pra ser poeta. Não
adianta repreendê-la. Mãe, o seu filho vai ser um professorzinho de interior,
ganhando um salário curto e vivendo uma vidinha obscura, como tantos
outros, e não um poeta. Mas quem diz que ela abandona a idéia fixa? Se
continuar assim, é até capaz que me convença (CMI, p. 237).
Ao dar espaço a essas diferentes vozes, à mistura de tons e intenções a um único
falante, no caso o narrador, a narrativa acaba por criar armadilhas para o leitor, ou seja, torna o
discurso ambíguo, o que faz com que o leitor tenha dúvidas sobre o que está sendo dito na
obra. Ao mesmo tempo, Miguel, ao se valer de diferentes gêneros, inclusive os escritos por ele
mesmo um exemplo é o ofício que escreve ao diretor do colégio agrícola ele assume uma
linguagem diferente da sua dentro de um único enunciado. No Ofício, Miguel diz:
Prezado diretor,
Antes de mais nada, comunico que não pretendo responder ponto por
ponto suas questões, inclusive porque a maioria delas sequer merece
resposta. Mas como o senhor solicita um pronunciamento meu, redijo
esta carta que vai tratar de maneira genérica o Caso Jabuticaba.
A vida particular de uma pessoa não é algo totalmente isolado da vida
pública, principalmente quando estes dois espaços são confundidos.
O senhor recebe constantemente em sua casa uma família que tem um
filho estudando nesta escola. O aluno também freqüenta a casa do
senhor e isso dá a ele credenciais para ser um braço do diretor, usado
contra os demais alunos. Assim, este comportamento particular do
senhor diretor interfere, sim, na vida das demais pessoas e é de
interesse não só meu, mas de toda a escola. Ele cria privilégios e gera
injustiças. Está, portanto, ferindo o direito de outras pessoas. E, na
minha opinião, não pode e não deve continuar. Esse negócio de
discriminação dos negros é algo que realmente não entendo. Nasci e
cresci em um país em que todas as raças convivem misturadas. Não
há, para mim, diferença entre um negro, um japonês ou um alemão. O
que há é a diferença entre a pessoa que age corretamente e a que age
de forma errada. Logo, discriminação racial não é um assunto sobre o
qual eu possa falar, principalmente na frente do senhor, um português
que viveu anos da exploração dos negros de Angola, e que só deixou
a África quando Portugal perdeu o poder. Passemos por cima deste
item, portanto. Agora, se o senhor quer saber se tenho procuração
para falar em nome da minha turma, aviso que não, mas tenho um
abaixo-assinado que vale muito mais. E eu não precisaria nem deste
abaixo-assinado porque vivemos num país democrático, onde está
assegurado o direito de questionar qualquer abuso de poder. A
ditadura acabou há dois anos, senhor diretor. Sinto muito ter que ser o
anunciador desta triste novidade. Ah, mas existem ainda algumas
regiões dominadas por Portugal. Quem sabe o senhor não encontre
nelas o ambiente propício para exercer a opressão. Cordialmente,
Miguel Sanches Neto
(CMI, p. 194-95).
Tanto este ofício quanto o poema escrito para Conceição, aparecem no livro, em
itálico, isso acontece por que a intenção de que esses textos se apresentem como
verossímeis, assim, também um interesse em recuperar o estilo da linguagem de outrem.
Percebe-se como o narrador incorpora nestes textos uma linguagem que não é originalmente
sua. No caso do ofício, ele usa uma linguagem formal, própria desse estilo de documento,
no poema de Conseição, ele se vale de uma linguagem simples e característica de uma pessoa
que não teve contanto com as letras, justamente para expressar o universo ao qual a prima da
mãe pertencia. Nesse sentido, essa forma de composição aparecem no romance como objetos
de ironia e multiplicidade. São formas que, além de promoverem a relação entre realidade e
ficção, são instrumentos de manifestação plurilíngüe no romance. A mudança do tipo de letra
empregada, geralmente em itálico, funciona como demarcação de fronteiras entre os textos
bases e os gêneros que compõem o romance.
A intertextualidade é, também, conseqüência e princípio básico para a instauração do
plurilingüismo no romance. Ela é a apropriação do discurso do outro. Essa apropriação é o
resultado de um longo processo de desconstrução, de fragmentação de um enunciado
existente, seguindo da seleção de partes desse enunciado que são retirados de seu contexto
original para serem inseridos em um novo contexto. Deste modo, tanto o texto incorporado
quanto o que incorpora, mantém sua autonomia, o que ocorre é que um influencia o outro.
Conforme Bakhtin, “[...] por maior que seja a precisão com que é transmitido, o discurso de
outrem incluído no contexto sempre está submetido a notáveis transformações de
significado”. (BAKHTIN, 1988, p. 141). Em Chove sobre minha infância há uma delimitação
entre o texto base e o discurso incorporado. Na carta em que supostamente a irmã de Miguel
escreve para ele, a citação de uma composição musical. Segundo Carmen, a música
exemplifica o embate entre Miguel e Sebastião e seus mundos. Devido à música se chamar “A
enxada e a caneta” e abordar o tema trabalho braçal X trabalho intelectual, Carmen se vale
dela para complementar o que quer transmitir a Miguel. Carmen diz:
Sei também o que representou para você aprender a ler e a escrever e
depois ter conseguido viver apenas da literatura, não importa se
dando aula ou escrevendo para jornais, e sei a frustração do pai por
ver que os outros dois filhos não seguiram o caminho que ele
planejou. Se a gente olhar por este lado, você era o mais fraco e
venceu, e este livro, no fundo, seria mais para comemorar esta vitória
(CMI, p. 244).
Logo a seguir, a ir afirma: “Você se lembra da letra de “A enxada e a caneta”?
Acho que não, fui eu que herdei o dom musical da mãe. Guardei aquela letra na memória, ela
fala tanto de nossa vida...” (CMI, p. 244). A composição apresentada no livro é a seguinte:
Disse a caneta pra enxada
Não vem perto de mim, não
Você tá suja de terra
De terra suja do chão
Sabe com quem tá falando?
Veja a sua posição
E não esqueça a distância
Da nossa separação
Eu sou a caneta dourada
Que escreve nos tabelião
Eu escrevo pros governo
As leis da constituição
Escrevi em papel de linho
Pros ricaço e pros barão
Só ando na mão dos mestre
Dos home de posição.
A enxada respondeu
De fato eu vivo no chão
Pra poder dar o que comer
E vestir o seu patrão
Eu vim no mundo primeiro
Quase no tempo de Adão
Se não fosse o meu sustento
Ninguém tinha instrução.
Vai-te, caneta orgulhosa
Vergonha da geração
A tua arta nobreza
Não passa de pretensão
Você diz que escreve tudo
Tem uma coisa que não
É a palavra bonita
Que se chama educação
(CMI, p. 244-45).
A intertextualidade pode também, além de manter o sentido original do discurso,
tentar influenciar o discurso de outrem até a sua total subversão e, nesse caso, o discurso de
outrem é vítima de infiltrações, isto é, é utilizado para refratar a voz do autor ou das
personagens que podem perpassar o discurso com suas intenções. Quando isso ocorre, é
porque o contexto de transmissão ultrapassa as barreiras que o separa do discurso citado e
consegue, assim, penetrá-lo e absorvê-lo, de modo que as fronteiras entre eles se tornem
invisíveis.
É o caso da carta supostamente escrita por Carmen, apresentada no capítulo “Herdeiro
de Ruínas”. Na carta, a voz do narrador e da sua irmã se confundem.. Por meio do discurso de
Carmen, o narrador, mesmo apresentando mágoas, responde algumas questões formuladas
durante a narrativa, especificamente quando se refere ao padrasto e o seu comportamento
autoritário. Neste capítulo, o reconhecimento de que Sebastião, apesar das divergências,
também fora importante para que Miguel tenha se tornado escritor, ou seja, para que o adulto
realizasse seu desejo de infância. Deste modo, o discurso de Carmen é tão influenciado pelas
idéias do narrador que acaba por refratá-las. Quer dizer, o escritor se vale da voz da irmã para
expressar a sua e isso causa um certo tom mistério para o leitor, ou seja, ele fica intrigado e
não consegue discernir se quem está falando é Carmen ou Miguel. Ao mesmo tempo, a voz
da irmã serve para desvendar alguns pontos obscuros que continuavam persistindo para
Miguel.
A disposição alternada dos gêneros textuais cria uma narrativa dupla, que funciona
como uma reação à limitação do ponto de vista e ao enunciado monológico e, faz com o
romance se torne mais dinâmico. Em Chove sobre minha infância, a alternância da história e
dos capítulos, garantem, assim como os gêneros intercalados, a multiplicidade do romance e
ajudam a ampliar o ângulo de visão do leitor. Todas as características do discurso de Sanches
Neto, apresentadas nesse capítulo, demonstram uma das principais tendências da literatura
contemporânea, além de demonstrar a maleabilidade ímpar do gênero romanesco. Miguel
Sanches Neto faz de uma muitas histórias e isso ocorre, justamente, quando torna possível a
convivência dos mais variados textos e de seus respectivos discursos com os diversos pontos
de vista, os quais possibilitam uma visão panorâmica do universo e das ações narradas.
3. TEMPO E ESPAÇO: MEMÓRIA SOCIAL
Toda arte é condicionada pelo seu tempo e representa a humanidade em
consonância com as idéias e aspirações, as necessidades e as esperanças de
uma situação histórica particular. Mas, ao mesmo tempo, a arte supera essa
limitação e, de dentro do momento histórico, cria também um momento de
humanidade que promete constância no desenvolvimento. Jamais devemos
subestimar o grau de continuidade que persiste em meio às lutas de classes,
apesar dos períodos de mudança violenta e de revolução social.
(Ernest Fischer)
3.1 - Tempo e espaço na literatura.
Em Literatura e sociedade (2000), Antonio Candido tece considerações a respeito do
espaço romanesco. Segundo o estudioso, em meados do século XIX, o cenário social no qual a
obra estava ambientada era considerado essencial para a sua compreensão. No entanto, anos
mais tarde, a análise a partir do “condicionamento social” foi considerada duvidosa, uma vez
que, para se compreender uma obra de arte, recorria-se, fundamentalmente, aos aspectos
estéticos e estruturais. Na atualidade, sabe-se que para entender uma obra de arte,
independente de seu gênero, precisa-se levar em consideração os aspectos estéticos, mas,
também, os aspectos sociais. A este respeito Candido afirma:
Hoje sabemos que a integridade da obra não permite adotar nenhuma
dessas visões dissociadas; e que a podemos entender fundindo texto e
contexto numa interpretação dialeticamente íntegra, em que tanto o velho
ponto de vista que explicava pelos fatores externos, quanto o outro,
norteado pela convicção de que a estrutura é virtualmente independente, se
combinam como momentos necessários do processo de interpretação
(CANDIDO, 2000, p. 3-4).
Candido também assinala que o fator social e/ou “externo” torna-se “interno”, pois ele
é fundamental para determinar os aspectos estruturais. Ao estudar o espaço romanesco Fortes
afirma: “É consensual que literatura o é mímese da realidade e que somente os fatos
históricos, econômicos e sociais não explicam uma obra literária. Entretanto, são indiscutíveis
as relações entre forma romanesca e a estrutura do meio social onde ela se desenvolveu”
(FORTES, 2003, p. 97). Além de serem fundamentais para a compreensão de uma obra, os
fatores sociais são determinantes no processo de construção desta. O que ocorre é que, na
maioria das vezes, o autor expressa, através da sua sensibilidade, as peculiaridades do
universo em que ele está inserido ou do qual tem conhecimento. Ainda segundo Fortes (2003,
p. 98), é de praxe na tradição literária brasileira, os escritores darem uma atenção especial à
organização social e espacial nas suas narrativas:
Nos romances inaugurais da Literatura Brasileira, o contexto social e a
configuração espacial são sempre elementos vitais. Memórias de um
sargento de milícias (ALMEIDA, 1975) tem na sátira aos meirinhos,
milicianos, etc. os burocratas incipientes –, e na sociedade ainda em
formação, durante a estada de D. João VI no Brasil, a pedra-de-toque da sua
composição. Os romances urbanos de José de Alencar perpassam muitos
dos valores da sociedade carioca do Segundo Império(FORTES, 2003, p.
98).
Na Literatura Brasileira atual, inúmeros romancistas, contistas e cronistas se valem dos
aspectos sociais para compor suas obras. Moacyr Scliar, um dos contistas mais representativos
da Literatura Brasileira Contemporânea, organiza suas obras a partir de narrativas que
abordam a realidade social da classe média urbana no Brasil e de narrativas que tematizam a
imigração judaica, provinda de sua herança étnica. Sua atividade profissional, de médico da
saúde pública, franqueia-lhe o passaporte para uma análise de situações e carências da
população brasileira. Assim, Scliar tece questionamentos em relação ao comportamento e o
modo como está organizada a sociedade atual.
Segundo Mikhail Bakhtin (2003), o ato de “ver o tempo” e de perceber o espaço como
algo móvel e que está sujeito às mais diversas transformações é ter a capacidade de “ler os
indícios do curso do tempo em tudo, começando pela natureza e terminando pelas regras e
idéias humanas (até conceitos abstratos)” (2003, p. 225). Conforme o teórico, a revelação do
tempo ocorre através dos movimentos resultantes da natureza:
O movimento do sol, das estrelas, o canto dos galos, os objetos sensoriais,
visíveis das estações do ano; tudo isso, em uma relação indissolúvel com os
respectivos momentos da vida humana, dos costumes, da atividade (do
trabalho) constitui o tempo cíclico em um grau variado de intensidade
(BAKHTIN, 2003, p. 225).
Por outro lado, as modificações no plano social-histórico são verificadas através da
criação humana, ou seja, por meio do trabalho e da inteligência do homem. Os grandes centros
urbanos, as ruas, as casas, as obras de arte e as organizações sociais são a prova material dessa
modificação temporal causada pelo homem: “Com base nesses elementos o artista interpreta
as intenções mais complexas dos homens, das gerações, das épocas, das nações, dos grupos e
classes sociais. O trabalho do olho que se combina aqui com os mais complexos processos
de pensamento” (BAKHTIN, 2003, p. 226).
Conforme Bakhtin, o tempo na literatura funciona como uma orientação formal e
histórica. A obra literária não é apenas formada por aspectos composicionais, mas sobretudo,
ela envolve dimensões históricas. Com base nesta mesma concepção, Machado afirma, “toda
referência espacial, onde se desenvolvem os episódios e por onde transitam as personagens,
são instâncias temporais” (1995, p. 246). Percebe-se que, para a teoria bakhtiniana, tempo e
espaço estão interligados e somente devido a essa articulação é que se configura o gênero e o
sincretismo do romance. Assim, o tempo é entendido como um conjunto de relações
vinculado às épocas históricas, contudo, não somente a uma época, ele está vinculado à vida,
“toda a vida está no tempo” (MACHADO, 1995, p. 247). Ou seja, o tempo significa uma
estrutura dentro da qual as formas de vida e de sua representação estejam inseridas e seguem o
curso da sua existência.
O romance, de acordo com Bakhtin, é um sistema de representação do homem, de seu
mundo, de sua linguagem, nesse sentido, o gênero romanesco se define como um sistema de
signos culturais desenvolvidos no espaço e no tempo das civilizações. A esse respeito
Machado afirma:
[...] No romance, o homem, seu mundo e sua linguagem, pela primeira vez,
tornaram-se históricos, exatamente por que foram representados no
contexto de uma vivência espaço-temporal bem determinada. O homem
adquire, no romance, uma iniciativa ideológica e lingüística que modifica
sua figura e o separa da imagem épica e trágica. A experiência pessoal e a
livre invenção criadora passam a ser o centro temático-composicional de
um gênero cuja história se confunde com a história do homem. Tanto a
experiência como a livre invenção são manifestações marcadas pela
temporalidade (MACHADO, 1995, p. 247).
Na literatura, o tempo é, quase sempre, histórico e o espaço, social. Dentro da
narrativa, o tempo é extremamente moldável, o que pode ter como resultado a subversão da
ordem cronológica. A uniformidade temporal, no romance, dá espaço à construção, à dilatação
e à simultaneidade. O tempo, na literatura, é também relativo, pois depende de recursos, como
a existência de outros planos temporais no romance e de flashbacks, que podem provocar a
alternância ou a inversão do seu curso normal.
O tempo está intimamente ligado à estrutura da narrativa e o primeiro passo a ser dado
para a realização de uma análise do aspecto temporal de um romance é perceber como os
acontecimentos estão dispostos ao longo da narrativa. Não importa que tais acontecimentos
estejam distribuídos em um ou mais planos temporais, rompendo, assim, com o conceito
tradicional de tempo, mas é imprescindível que o leitor desvende a estrutura temporal da obra
para que o enredo possa ser apreendido.
Conforme Kobs (2000) a maioria dos romances contemporâneos tende a abandonar o
conceito limitado de tempo, que tem como característica principal a sucessividade, e a fazer
com que o discurso seja articulado de tal forma que seja possível retardar ou acelerar o tempo
de uma ação, isto é, o romancista é capaz de, através do discurso, acelerar ou retardar a ação.
A predominância de ações rápidas ou lentas em um romance pode influenciar o tempo da
leitura. A rapidez tende a determinar um ritmo intenso de leitura, enquanto a lentidão pode
resultar na diminuição desse ritmo. Pode-se dizer ainda que a rapidez privilegia a ação,
enquanto a lentidão obriga a ação a ceder espaço à ação pormenorizada das personagens e do
ambiente. Em Chove sobre minha infância impera a rapidez. A ação é o principal elemento da
obra do autor, pois é através dela que o leitor toma conhecimento do caráter das personagens.
Na literatura, assim como nas artes verbais, Bakhtin considera que o tempo se
sobrepõe ao espaço e determina os tipos narrativos. A seqüência das ações no tempo e no
espaço determina a progressividade, aumenta a veracidade das imagens literárias e também
constitui o enredo. Ou seja, o fato de uma ação ser situada em um determinado tempo e em
um determinado espaço torna essa ação mais concreta. Não que tal procedimento seja
indispensável para que a ação seja verossímil, mas ajuda a aumentar o grau de
verossimilhança da ação. Deste modo, o fato de situar a ação romanesca em um lugar
delimitado no tempo e no espaço, isto é, que existe geográfica e historicamente, faz com que a
narrativa conte com um elemento a mais para se fazer crível.
A partir do enredo de Chove sobre minha infância, é salutar destacar como Sanches
Neto reproduz os costumes e o cotidiano do interior paranaense em um dado momento
histórico. na obra, um retorno a um modo de organização distinta de outras regiões e dos
grandes centros industriais do país. O autor aborda uma época em que a sociedade paranaense
está em transformação. Até a década de setenta, o Estado dependia única e exclusivamente da
agricultura, com a globalização, além do crescimento das cidades e o êxodo-rural, a
agricultura também se modificou: passou a ser mecanizada. Do mesmo modo, é interessante
observar como alguns personagens reproduzem o comportamento de pessoas que viveram
nesse universo.
A luta de Miguel para alcançar seus objetivos é a representação de muitas pessoas que
viveram no campo e que foram em busca de novas oportunidades e progresso. O menino lutou
contra os valores que estavam presentes no interior do Paraná, ou seja, marcado fortemente
pelos resquícios do patriarcalismo, este universo não oferecia muitas oportunidades a não ser
aquelas já demarcadas. Miguel, por desejar algo que estava além do que o seu mundo lhe
ofertava, era fortemente repreendido. Deste modo, o enredo propicia uma reflexão sobre as
formas de organização social, bem como a respeito das ideologias que determinam o tempo e
o meio social representado.
3.2 – Retalhos do Brasil: O contexto social paranaense.
Ao retornar à infância, o protagonista de Chove sobre minha infância reencontra o
universo ao qual esteve vinculada a sua formação. Embora a narrativa esteja na primeira
pessoa do singular, a rememoração não se fixa propriamente na trajetória de Miguel, o que
acontece é que, a partir dele, o autor representa um período. À medida em que apresenta um
personagem que se caracteriza por fazer uma viagem ao passado por meio da memória,
Sanches Neto tece considerações a respeito da identidade social interior paranaense da
época. Esse tipo de discurso atrai a atenção uma vez que, articula um modo de pensar a nação
como uma pluralidade, isto é, ao dar vazão ao contexto do interior paranaense, o autor cria a
possibilidade de mostrar o Brasil como um país de múltiplas facetas.
A partir das postulações teóricas de Bakhtin, apresentadas anteriormente a respeito do
tempo e espaço, verifica-se como estes aspectos estão diretamente ligados. O tempo é uma
representação coletiva e está associado à necessidade que as sociedades têm de mudança e/ou
de restauração. Desde os primórdios da civilização o homem e as sociedades sofrem
modificações nos mais diversos aspectos. Devido às necessidades, a sociedade, ou a forma de
organização social, de tempos em tempos, se transforma e evolui. Neste caso, cabe aos artistas
a interpretação de cada época. Assim, o cenário paranaense representado na obra de Miguel
Sanches Neto, demonstra como a criação humana modifica a forma de organização social
vigente e, ao mesmo tempo, causa uma mutação temporal, a qual, na obra em questão,
preconiza o caráter capitalista das relações humanas. Miguel Sanches Neto aponta para uma
modificação nas práticas sociais, uma vez que, o contexto paranaense está em fase de
transformação. Segundo Polzonoff:
O que importa é o recorte da história paranaense, [...]. Lê-lo é perceber
outro Brasil durante a ditadura, rural alheio às questões de restauração da
democracia que agitavam os grandes centros – cuja tortura se resumia à lida
diária no campo e à danação do nascer-crescer-e-morrer entre cafezais [...]
e campo de soja (POLZONOFF, 2000, p. 10).
Assim, Miguel Sanches Neto registra a história da sua geração. Isto é, uma geração
que, por viver no interior paranaense, fora vítima de uma sociedade decadente e analfabeta. A
luta do menino órfão, que tenta se sobressair por meio da sua vocação literária é a
representação de muitos paranaenses que lutaram pela realização de um sonho, ou que foram
em busca de uma vida melhor: “E ‘de repente’ é também a história de todos que saíram da
roça para o mundo cosmopolita” (PELLEGRINI, 2000, p. 2).
Do mesmo modo, Sanches Neto segue a tradição literária ao se valer do meio rural
para compor sua obra. Inúmeros escritores da Literatura Brasileira tiveram como motivo
composicional a rusticidade do campo. Esse aspecto concede à obra uma maior
universalidade, visto que o Brasil é um país em que o meio rural sempre se sobrepôs ao
urbano. Ou seja, a vasta área territorial e o clima favorável sempre foram aspectos que
propiciaram um destaque maior ao país em relação à produção agrícola, nesse sentido, desde a
sua colonização, a maioria das pessoas, sustenta-se por meio do trabalho rural. Mesmo quando
trabalham e vivem nos centros urbanos, quase sempre, elas tiveram alguma ligação com o
meio rural, quer dizer, a grande parte da população brasileira leva em seu imaginário um
resquício da vida no campo, como se esse universo fizesse parte do seu modo de viver. De
acordo com Buarque de Holanda:
Toda a estrutura da nossa sociedade colonial teve sua base fora dos meios
urbanos. É preciso considerar esse fato para se compreenderem exatamente
as condições que, por via direta ou indireta, nos governaram até muito
depois de proclamada nossa independência política e cujos reflexos não se
apagaram ainda hoje. Se, conforme opinião sustentada em capítulo anterior,
não foi a rigor uma civilização agrícola o que os portugueses instauraram
no Brasil, foi, sem dúvida, uma civilização de raízes rurais. É efetivamente
nas propriedades rústicas que toda a vida da colônia se concentra durante
os séculos iniciais da ocupação européia: as cidades são, virtualmente, se
não de fato, simples dependências delas (HOLANDA, 1995, p. 73).
Sendo o universo rural um dos principais componentes da cultura brasileira, o enfoque
elaborado por Sanches Neto é especificamente sobre o universo rural do Paraná. Estado este
que se difere dos outros estados brasileiros justamente por não possuir a mesma trajetória
histórica. Por exemplo, no Paraná, assim como nos demais estados da região Sul, a
escravidão, fator marcante na maior parte dos territórios brasileiros, aconteceu apenas de
forma tênue. A construção do estado fora elaborada pelos imigrantes europeus, que vieram
atrás de mais oportunidades e de novas terras para cultivar. Após o enfraquecimento da
imigração européia, povos de outros estados brasileiros também chegaram no Paraná
motivados pelo progresso. A respeito das características do estado, Martins (1989) aponta:
Assim é o Paraná. Território que, do ponto de vista sociológico,
acrescentou ao Brasil uma nova dimensão, a de uma civilização original
construída com pedaços de todas as outras. Sem escravidão, sem negro,
sem português e sem índio, dir-se-ia que a sua definição humana não é
brasileira. Inimigo dos gestos espetaculares e das expansões temperamental,
despojado de adornos, sua história é a de uma construção modesta e sólida
e tão profundamente brasileira que pôde, sem alardes, impor o predomínio
de uma idéia nacional a tantas culturas antagônicas. E que pôde, sobretudo,
numa experiência magnífica, harmonizá-las entre si, num exemplo de
fraternidade humana a que se ascendeu a própria Europa, de onde elas
provieram. Assim é o Paraná. Terra que substituiu o sempre estéril
heroísmo dos guerreiros pelo humilde e produtivo heroísmo do trabalho
quotidiano e que agora, entre perturbada e feliz se descobre a si mesma e
começa, enfim, a se compreender (MARTINS, 1989, p. 2).
Conforme as palavras de Martins, o Paraná tem uma origem que se difere dos demais
estados brasileiros, tanto em relação aos aspectos históricos quanto culturais. Contudo, não
fora diferente no que diz respeito ao aspecto rústico, mesmo porque, a chegada de povos
provindos de outras regiões brasileiras fez com que o estado adotasse alguns costumes,
culturas, jeitos e cultivos de estados como, São Paulo e Minas Gerais:
Após a aura romântica, o realismo. Os últimos anos do século XIX vêm
arrefecer o entusiasmo das elites pela imigração estrangeira européia. Por
várias razões, em termos exclusivamente econômicos, os investimentos não
se traduziram em suficiente rendimento. Foi, também, freqüente, uma
deterioração das técnicas agrícolas conhecidas pelos imigrantes, em função
não de problemas que traduziria como sendo de “contatos culturais” e
adaptação; as razões teriam sido, no principal, de ordem ecológica. Era,
portanto, tempo de diversificar a imigração, possibilitando e promovendo a
entrada de novos grupos. Ao mesmo tempo, prepara-se o caminho para o
investimento do país na colonização organizada em moldes mais racionais,
com o governo promovendo a vinda de imigrantes nacionais e estrangeiros
a diversas regiões não ocupadas. Mais uma vez, a imigração de homens é
acompanhada da imigração de capitais. Este cenário foi fundamental para
que se acompanhasse a ocupação do Paraná (NADALIN, 2001, p. 85).
A plantação de café no Norte paranaense é um claro exemplo dessa aquisição no
cultivo agrícola. Assim, é sobre o universo e espaço social rústico paranaense tão bem
construído em Chove sobre minha infância diferente do restante do Brasil, que o presente
capítulo tem como objeto principal de análise.
Ao representar a sociedade paranaense, Sanches Neto se vale do mecanismo da
memória, assim, o tempo é organizado por meio desse expediente. O espaço, por sua vez, diz
respeito a meados do século XX, mais ou menos entre as décadas de 1950 a 1980. O que o
autor faz é uma espécie de análise desse período e apresenta as características das
modificações econômicas e históricas. Como o narrador é adulto e faz um retorno à infância
por meio das lembranças, há um olhar que adquire amplitude, visto o distanciamento dos fatos
narrados, ou seja, esse ponto de vista distanciado do tempo e do espaço possibilita uma
análise mais profunda sobre a trajetória de Miguel. Do mesmo modo, o mecanismo da
memória permite que se faça, no romance, a passagem do menino sonhador para o adulto
realizado.
Por sua vez, o universo rústico narrado por Sanches Neto, apresenta resquícios de um
sistema aristocrático, em que as pessoas estavam submetidas às ordens e vontades do chefe
patriarcal. Esse comportamento familiar não se sustenta mais na época atual. Sebastião e Zé-
Zabé são representantes da imagem do chefe patriarcal
6
, ou seja, como muitos chefes de
famílias que viveram nesse espaço social, o padrasto e o avô de Miguel ansiavam por
enriquecer e exigiam poder absoluto sobre os bens, os filhos, a mulher, os animais, enfim,
sobre tudo o que os rodeava. Sobretudo, o trabalho, principalmente, para Sebastião, além de
ser a única maneira de garantir o futuro para a família, era visto como um fim redentor. Para o
padrasto de Miguel, o trabalho estava sempre em primeiro plano. De acordo com Fernandes:
“Para ajudar, Sanches vinha de uma família de agricultores, cuja cartilha de valores previa, no
lugar da leitura, o manuseio da enxada, o gosto pela terra e um orgulho pela pobreza escala
social entendida como desígnio quase divino” (FERNANDES, 2000, s/p).
O modelo patriarcal fora predominante por muito tempo na sociedade brasileira. De
acordo com Langaro, “esse modelo familiar – adotado desde o início da colonização brasileira
e vigente até os primeiros decênios do século passado foi implantado com base na
influência da européia medieval” (LANGARO, 2006, p. 135). A respeito do modo de
organização familiar presente no Brasil durante o regime patriarcal, Holanda afirma:
Nos domínios rurais é o tipo de família organizada segundo as normas
clássicas do velho direito romano-canônico, mantidas na península Ibérica
6 As relações vigentes durante o sistema patriarcal e semi-patriarcal fazem parte da tradição literária brasileira.
Carlos Drummond de Andrade, um dos maiores expoentes da poesia brasileira contemporânea, também deu
especial atenção às relações familiares hierarquizadas da época. Os poemas “Distinção”, “O Beijo”, “Raiz”,
“Infância” e “O excomungado”, são considerados os principais em relação ao sistema hierárquico brasileiro.
através de inúmeras gerações, que prevalece como base e centro de toda a
organização. Os escravos das plantações e não somente escravos, como os
agregados, dilatam o círculo familiar e, com ele, a autoridade imensa do
pater-famílias. Esse núcleo bem característico em tudo se comporta como
seu modelo da Antigüidade, em que a própria palavra “família”, derivada
de famulus, se acha estreitamente à idéia de escravidão, e em que mesmo
os filhos são apenas os membros livres do vasto corpo, inteiramente
subordinado ao patriarca, os liberi (HOLANDA, 1995, p. 81).
Por mais que a violência e a servidão imperassem, o modelo de pater-famílis fora
importante no desenvolvimento da sociedade brasileira:
O quadro familiar torna-se, assim, tão poderoso e exigente, que sua sombra
persegue os indivíduos mesmo fora do recinto doméstico. A entidade
privada precede sempre, neles, a entidade pública. A nostalgia dessa
organização compacta, única e intransferível, onde prevalecem
necessariamente as preferências fundadas em laços afetivos, não podia
deixar nossa sociedade, nossa vida pública, todas as atividades
(HOLANDA, 1995, p. 82).
A Literatura sempre expressou esse modelo de organização social, no qual o pater
famílis representado pelo gênero masculino – exercia o poder. O chefe se caracterizava pela
rudeza no desempenho da autoridade,
Nesse ambiente, o pátrio poder é virtualmente ilimitado e poucos
freios existem para sua tirania. Não são raros os casos como o de um
Bernardo Vieira de Melo, que suspeitando a nora de adultério,
condena-a à morte em conselho de família e manda executar a
sentença, sem que a Justiça dê um único passo no sentido de impedir
o homicídio ou de castigar o culpado, a despeito de toda a publicidade
que deu ao fato o próprio criminoso (HOLANDA, 1995, p. 82).
Apenas a partir do século XIX é que a estrutura familiar começou a mudar, este
período foi marcado pelo início da decadência do regime patriarcal. A urbanização é um fator
fundamental para as transformações nas relações familiares, “com o declínio da velha lavoura
e a quase concomitante ascensão dos centros urbanos, principiada grandemente pela vinda,
em 1808, da Corte portuguesa e depois pela Independência, os senhores rurais principiam
perder muito de sua posição privilegiada e singular” (HOLANDA, 1995, p. 82).
No século XX, portanto, a família e a sociedade brasileira passaram por mudanças
econômicas e sociais. A saída das pessoas do campo em direção aos centros urbanos foi o
fator principal para que essas transformações ocorressem. Mesmo com as mudanças, a forma
de organização deixa sinais e marcas, ou seja, apesar de haver mudanças nas relações
familiares, alguns resquícios do modelo patriarcal permaneceram.
Chove sobre minha infânciademonstra como, mesmo passados vários anos, alguns
sinais do comportamento familiar patriarcal perduraram, principalmente, no meio rural. Toda
a forma de organização familiar apresentada em torno da vida de Miguel, segue os resquícios
do sistema hierárquico: A posição do avô, a do padrasto, a submissão das crianças e da esposa
diante das ordens do pai e marido e a excessiva valorização dos bens materiais, todas essas
ações encontram respaldo na história da sociedade brasileira.
A época narrada por Sanches Neto, como citado anteriormente, diz respeito a um
momento de transição na sociedade paranaense. Por volta da década de sessenta, a produção
de café, nessa região, começou a decair, deste modo, as lavouras desse produto começaram a
ser substituídas pelas da soja. A incursão do cultivo da soja no cenário paranaense foi
determinante para a urbanização e industrialização do estado. As novas formas de cultivo e
mecanização acabaram deixando um grande número de trabalhadores rurais desempregados,
“mesmo aqueles que eram pequenos ou médios proprietários enfrentavam grandes
dificuldades para manter suas fazendas, se o conseguissem operar a transição das culturas
tradicionais para a nova vedete agrícola: o soja” (OLIVEIRA, 2001, p. 36). Diante das
dificuldades, as pessoas começaram a sair do campo em busca de novas e melhores condições
de vida. O resultado foi a expansão do número de desempregados na área rural. Estes se
dirigiram para as novas fronteiras agrícolas, ou se integraram ao contingente de despossuídos
que engrossavam as favelas e cortiços das cidades paranaenses ou de outros estados”
(OLIVEIRA, 2001, p. 37). Nesse período década de setenta a população urbana
ultrapassou a rural. A respeito da industrialização no Paraná, Oliveira afirma:
Um segundo conjunto de efeitos relacionados à cultura da soja diz respeito
à industrialização. Dispondo de tamanha produção de soja, o Estado reuniu
vantagens comparativas muito favoráveis à instalação de um parque
dedicado ao beneficiamento do produto, ao invés de se dedicar apenas à
exportação do produto in natura. Repete-se, aqui, a história conhecida
com o café. O resultado foi a explosão dos indicadores de produção de
derivados da soja, como o farelo e o óleo (OLIVEIRA, 2001, p. 37).
Conforme aponta o estudioso, ocorreram modificações econômicas no cenário
paranaense. Essas mudanças causaram, também, impacto no setor social, ou seja, a sociedade
paranaense vai se adaptando conforme a exigência dos meios de produção e, assim, o contexto
das organizações sociais também se transforma, pois na medida em que a população necessita
se adaptar às novidades econômicas, seus costumes e linguagens também devem se ajustar.
Chove sobre minha infância apresenta exatamente essa época de transição da história
paranaense, período em que se deu a expansão da mecanização agrícola e o êxodo rural.
Sanches Neto expõe as principais características do cenário rural paranaense e o narra de
forma que apresenta as dificuldades nele encontradas. Ou seja, o autor apresenta as
contradições e conflitos existentes, devido às transformações sociais e econômicas.
3.3 – Os resquícios do patriarcalismo e os conflitos familiares.
Ao ambientar Chove sobre minha infância no interior paranaense, Miguel Sanches
Neto universaliza a obra, isto é, à medida em que descreve esse cenário rural e alheio aos
costumes citadinos, o autor fala das angústias e mazelas humanas e isso suscita atenção tanto
dos leitores quanto da crítica. Marcadas pela marginalidade social, as trajetórias de vida
relatadas por Sanches Neto são, na maioria das vezes, vítimas de uma história familiar infeliz,
tumultuada e carente. De acordo com o exposto, Polzonoff afirma:
Mas eu dizia que Miguel Sanches tem esta obsessão pelas relações
familiares cheias de ressentimento [...]. O que mais se são homens e
mulheres buscando no passado uma explicação para a infelicidade presente.
É um exercício masoquista, simplesmente porque o passado é imutável,
enquanto o futuro é cheio de possibilidades. Ainda assim é um exercício
comum a todos (POLZONOFF, 2000, p. 4).
As palavras de Polzonoff exemplificam a abordagem da narrativa elaborada por
Sanches Neto.Em outras obras de poemas e contos, a principal recorrência, também, diz respeito às
relações afetivas. Em Chove sobre minha infância percebe-se que, praticamente todas as personagens
são vítimas de relações familiares mal resolvidas e conflituosas. A trajetória de Miguel ilustra bem
esta questão.
A raiz dos desacertos familiares na obra em questão, não se dava somente pelo fato de
o menino desejar ser escritor, mas devido a esse desejo ser considerado algo muito distante
daqueles que o universo rural oferecia, isto é, de forma geral, e não para o padrasto, uma
pessoa vencer de forma que não fosse pelo trabalho relacionado à terra, era algo que estava
muito além da compreensão de mundo. Na medida em que a vida de Miguel é contraditória,
seus conflitos se tornam próximos e universais ao leitor, uma vez que o mundo narrado se
aproxima muito à realidade do universo rústico brasileiro.
Neste cenário, a presença de proprietários de terras que reproduziam o comportamento dos
chefes patriarcais era marcante. As atitudes e o comportamento de Zé-Zabé e Sebastião evidenciam as
marcas do regime patriarcal. Provindos de regiões em que o patriarcalismo fora marcante, o avô e o
padrasto do menino exigem obediência absoluta. A respeito da chegada de Zé-Zabé no Paraná, Tio
Lindolfo afirma:
Ninguém gostava muito do Zé-Zabé, não, mas homem trabalhador ele era.
Chegou no Cerne com um casal de filhos, morenos como o pai. Não me
lembro quem levou ele lá no sítio. Eram da mesma região de Minas e ele
estava começando a vida no Paraná. Não queria mais ser boiadeiro, agora ia
tocar roça, já tinha até arrendado um pedaço de chão perto de nossas terras
(CMI, 49).
Por meio da história de Zé-Zabé, pode-se ter uma idéia sobre a chegada, ao Paraná,
de imigrantes provindos de outras regiões do país. Estas pessoas vieram para o estado com a
esperança de aqui encontrar novas terras e progresso. Nesse sentido, vindos de culturas
diferentes daquela que aqui imperava, trouxeram na bagagem uma enorme contribuição
econômica e social para o estado. Ou seja, essa mescla cultural que é nítida no atual panorama
do estado, é resultado das heranças trazidas desde meados do século XIX.
Nessa época, o modo de vida dos brasileiros estava pautado nos moldes do sistema
patriarcal. Esse regime autoritário perdurou por muito tempo na sociedade brasileira. O
sistema patriarcal estava intimamente ligado à terra, ao poder que ela representava, sua posse,
o domínio do clã familiar, político e social. Os senhores, donos das terras, exigiam respeito ao
seu poder absoluto, tanto na sociedade quanto dos familiares e subalternos. A respeito desses
senhores, Toller afirma:
O senhor de terras [...], tem uma vasta plantação, uma grande casa, família
nos moldes patriarcais e sobretudo escravos, para consolidar seu poder e
conservar sua hegemonia. Seu desejo de enriquecer é compatível com os
valores opostos aos que caracterizam um proprietário capitalista: o lucro
não é um fim em si mesmo, mas o meio de firmar e manter o seu poder
(TOLLER, 1981, p. 42).
Os resquícios desse comportamento patriarcal fora marcante durante muito tempo. Na
atualidade, em algumas regiões do país, muitas famílias ainda vivem sob domínio desses chefes que
“[...] Fundam famílias destinadas a perpetuar seu nome e sua tradição. A palavra destes, perante
esposa e filhos, é lei” (TOLLER, 1981, p. 44). No lapso de tempo apresentado por Sanches Neto em
Chove sobre minha infância a presença desses senhores era ainda marcante. Deste modo, por meio
das personagens do romance, o escritor tece uma crítica a esse sistema.
Sebastião e Zé-Zabé são personagens que representam a luta incansável pelos bens
materiais, a ordem e a disciplina para o trabalho e a visão de que a força braçal constitui a
única maneira de garantir o futuro para a família. A respeito de Zé-Zabé, Miguel afirma:
O quase nunca em casa, chega de tarde, quando senta na varanda
para olhar o gado. Carmen diz que ele é um miserável, que vai direto
para o inferno. Hoje, estava chupando um abacaxi sozinho na varanda e
quando me viu mandou a madrasta da mãe guardar a fruta na cozinha,
porque não havia abacaxi para todos [...] É a mulher dele, dona Gasparina,
que de vez em quando me faz um carinho, me algum trocado pra balas e
esconde na sacola da mãe um pedaço de carne de porco ou de toucinho,
pedindo pra não deixar o Zé ver (CMI, p. 43-44).
A forma como o avô do menino tratava a todos, representa o comportamento do chefe
patriarcal. Os exemplos mais evidentes na obra dizem respeito ao tratamento dado por parte
do chefe Zé-Zabé à família. O avô de Miguel demonstra, conforme o narrador,
mediocridade inclusive em relação à alimentação da família. Para Zé-Zabé, o favorecimento
pessoal estava em primeiro lugar, os demais familiares não tinham o mesmo direito. Essa
questão apresenta-se no livro, na seguinte passagem:
Sei que ela não vai comprar abacaxi pra gente, mas mesmo assim não
resisto e peço. Antes conto que o escondeu a fruta de mim. Teu
avô é assim mesmo. Ele vem almoçar depois que todo mundo
comeu. Daí traz um quilo de carne e manda fritar pra ele. Não é
nada contra você, não. Sei que o velho Zé-Za não gosta de mim.
Por isso não faço bagunça, fico apenas observando as coisas, não
subo nas árvores nem na cerca. Este é um lugar estranho, nada aqui é
meu e o não quer que me sinta em casa. Ele, quando está na
fazenda, fica sempre longe de mim e da mãe (CMI, p. 44).
Mesmo possuindo uma boa condição financeira, Zé-Zabé não ajudava nenhum dos
filhos. Os rapazes tinham que trabalhar na lavoura e na criação de gado apenas pelo sustento
pessoal e, Nelsa, mesmo com a família necessitada, não recebia nenhuma ajuda. Contudo, Zé-
Zabé não aceitava que a família recebesse favores. Para ele, o fato de saber que a família de
Nelsa ganhara um abacaxi era vergonhoso:
Quem chegou com o sol foi meu avô. Está bravo, vem em casa pra
reclamar de alguma coisa. Senta na mesa e toma café, comendo o meio pão
que a mãe guarda pro meu lanche da tarde. Depois que a vó Carmen vai pro
serviço, ele começa a brigar com a mãe, que se era pra fazer ele passar
vergonha melhor ter ficado em Bela Vista, onde já se viu a filha do Zé-Zabé
sair mendigando pela cidade. [...] Estou falando do abacaxi que aquela
espanhola ordinária foi pedir pro Anísio. O Lívio me contou tudo e eu
proibi o sorveteiro de dar esmola pra vocês. Nunca pedi as coisas, sempre
trabalhei pra ter o que queria. Vocês não têm dinheiro pra comprar um
abacaxi? (CMI, p. 47-48).
Nelsa justifica ao menino o motivo pelo qual Zé-Zabé adquiriu tal comportamento: “A
mãe ri e diz que o avô é ruim porque sofreu muito, foi peão, boiadeiro, enviuvou duas vezes e
enriqueceu vendendo a saúde e a juventude” (CMI, p. 44). Em relação às frutas que o avô
oferecia a Miguel, o menino afirma:
Logo saio correndo e vou pro pomar. sei que não posso tirar fruta
das árvores enxertadas, que são baixinhas e dão laranjas grandes.
Seria mais fácil, mas se o me pegar com uma fruta dessas é bem
capaz de me bater. Ele deixa apanhar laranjas de um todo cheio
de galho e de espinho, que umas frutinhas miúdas. São azedas
demais, mas muito azedas mesmo. Na hora de chupar não tem como
não fazer careta. que o não sabe que gosto de fruta azeda. O
que é chato nestas laranjinhas e nas mexericas pequenas que apanho é
a quantidade de semente que elas têm. É mais semente do que caldo.
Nas laranjas de enxerto quase não tem semente. É que elas sabem que
nunca desaparecerão. As pessoas vão guardar e plantar com cuidado.
Mas as laranjas azedas não podem contar com os plantadores, elas
têm que dar muita semente pra que uma ou outra, caindo no chão,
possa virar árvore. Chupo as laranjas azedas enchendo a boca de
semente, depois vou pro meio do pomar, onde estão as árvores
enxertadas, e cuspo no chão. Quando elas nascerem, o vô pensará que
é laranja da boa (CMI, p. 65-66).
A simbologia dessa relação difícil entre Zé-Zabé e Miguel é exposta no livro por meio
do que as frutas e os seus gostos representam, ou seja, muito mais do que expor que as frutas
ofertadas pelo a avô eram azedas e da pior qualidade, o sabor delas representa a relação difícil
entre o avô e o menino, ou melhor, o azedume das frutas é o sabor da relação desagradável
provocada pelas negações e mesquinharias de Zé-Zabé. É como se conviver com o avô fosse
ácido e dolorido: “Levo uma sacola de laranjas pra casa e, à noite, depois da janta, ao chupar
uma, a Carmen faz uma bruta careta. Estas laranjas do teu não prestam. Dele a gente
não pode esperar nada de bom mesmo” (CMI, p. 66).
A perspectiva do avô de Miguel em relação aos acontecimentos – ser autoritário – está
presente ainda hoje em algumas localidades do interior paranaense, sobretudo em locais em
que muitos chefes de família, como ele e Sebastião, chegaram e se estabeleceram: Derrubaram
matos, enfrentaram animais, plantaram e colheram, compraram terras, gado, casas, carros,
tudo graças à disciplina e da força para o trabalho.
Essa ideologia em relação ao trabalho que vem da terra, da força do homem e que
sustento à família, faz parte dos primórdios da civilização, quando o homem usava sua
força física para extrair da natureza os alimentos que necessitava. Segundo Gonçalves (2002),
na origem da evolução humana o trabalho era visto como interação do homem com a
natureza. Esta harmonia era estabelecida pela extração de produtos, atividade que também
servia para que os indivíduos fossem se libertando da proteção de seus progenitores e
integrando-se à comunidade dos seres livres para retirar da natureza com sua própria força, os
produtos que lhe fossem mais agradáveis: “Esta atividade chamamos de trabalho por que,
requer esforço físico, pois ao mesmo tempo em que o sujeito está gastando suas energias com
o trabalho para retirar os alimentos da natureza, ele está também recompondo suas energias
quando está se alimentando.” (GONÇALVES, 2002, p. 59).
No entanto, a concepção de trabalho tem se modificado ao longo dos anos. Segundo
Geram: “Na Grécia, o trabalho era uma atividade privada, sendo o trabalho manual função dos
escravos e a atividade intelectual, de acordo com Platão, cabia aos melhores homens”. Na
Idade Média, a Igreja também deu seu parecer: “O trabalho é, segundo Santo Tomás de
Aquino, o meio de salvação, uma oportunidade, oferecida pela (graça) divina, de redenção
pela penitência” (GERAM, 2001, p. 328).
Alguns séculos mais tarde, a visão em relação ao trabalho recebe nova significação.
No contexto das industrializações, o trabalho passa a ser comercializado e reconhecido como
o meio pelo qual o homem garantiria a sua permanência e durabilidade. Nos séculos XVIII e
XIX, é que surge a sociedade capitalista moderna, a qual se caracteriza pela organização do
mercado; tudo o que é produzido está em função do mercado, nesta perspectiva, o trabalho
também se transformou em mercadoria, isto é, quanto mais trabalho, mais lucro e,
conseqüentemente, uma maior aquisição de bens.
Para Sebastião, o trabalho deveria ser incessante, os filhos, mesmo na primeira
infância, eram levados para o trabalho na lavoura: “Nas férias, o pai exige que a gente vá com
ele ajudar no serviço do sítio. Durante a manhã ele ainda vende frutas na frente do Bar Vera,
nós vamos junto aprender a trabalhar” (CMI, p. 87). Em outra passagem da obra, Sebastião
critica Miguel por ele estar indo trabalhar na cerealista com a roupa limpa: “O pai se irrita
com esta mania de limpeza. E mostra os agricultores que freqüentam a cerealista. Está vendo?
Todos vêm sujos. E é o dia de fazer compras na cidade. A sujeira é vergonhosa pra quem
não trabalha. Você deveria ter orgulho de andar sujo, isso mostra que você não é vagabundo”
(CMI, p. 164). Esta concepção de trabalho, isto é, do trabalho braçal, que exige força física,
suor, sujeira, e que é uma das características da personalidade de Sebastião, encontra guarida
nas máximas populares como: “Quem o pão, o ensino” e “Todo o vadio está fadado a
ser pobre”.
Como dito anteriormente, foi a partir do século das industrializações, da produção dos
bens de consumo e da busca incessante pelo lucro, que o trabalho começou a mudar. De
acordo com Beiguelman (1977), no Brasil, isso não foi diferente. No início do século XIX,
com a agricultura voltada para a exportação, a força do trabalho foi muito explorada, tanto no
que se refere aos escravos quanto, mais tarde, com os imigrantes estrangeiros. A escravidão
significava para os senhores a garantia de estabilidade, a regularidade e a disciplina para com
o trabalho.
Dos imigrantes também fora exigida disciplina para o trabalho, uma vez que estes
vieram para o Brasil, justamente para substituir a mão de obra escrava. Nesse sentido, eram
mandados para as plantações de café no interior paulista e mineiro e deles eram exigidos o
máximo de disciplina e força de trabalho, ninguém tinha chance de levar outra vida senão a do
trabalho na lavoura. Desta forma é que se perpetuou a ideologia da força do trabalho, uma vez
que a segurança financeira das famílias era garantida através da plantação, da colheita e,
conseqüentemente, dos lucros que da lavoura resultavam. Sebastião fora educado nesta
concepção, ou seja, de desbravar terras e de lutar pela sobrevivência de forma incansável:
O pai sai de uma família de vários filhos, não recebe nenhum apoio, muito
pelo contrário, ajuda na criação dos irmãos. A vida inteira trabalhando, se
jogando de corpo inteiro no serviço, até hoje, quando não precisa,
acreditando sempre que com o esforço não dificuldades que não se
vença. O padrasto que tanto trabalhou, mas não sabe falar, que não sabe se
expressar, que nunca escreveu uma carta, jamais se intimidou diante de
qualquer situação difícil (CMI, p. 247).
Esses foram os fatos que despertaram em Sebastião a ideologia que coloca o trabalho,
sempre, como algo primordial e o único meio de se ter dignidade e bem estar. O fato de ver os
filhos se dedicando aos estudos estava além da sua concepção de mundo. Para Sebastião, a
maior herança que poderia deixar aos seus descendentes era o orgulho pelo trabalho e a lida na
lavoura. Para ele, tudo o que provinha da terra e do esforço do homem era válido e, o
contrário, era repelido. Essas atitudes autoritárias expostas em Chove sobre minha infância é
que permitem relacionar o comportamento de Sebastião ao dos chefes do período
patriarcalista.
Em Casa grande & Senzala (2004), Freyre assinala que, durante o sistema patriarcal
brasileiro século XV ao XIX –, as ações que estruturavam a vida das pessoas estavam
sujeitas, obrigatoriamente, às determinações do Senhor, o dono das terras, dos escravos, dos
animais, da casa grande e do engenho. Centralizador e autoritário, o chefe patriarcal
determinava a vida de todos os moradores das suas terras – o engenho – inclusive, a da mulher
e dos filhos. Em Sobrados & Mucambos (1998), Freyre discute no terceiro capítulo
intitulado “O pai e o filho” – a relação estabelecida pelo modelo da época entre o pai – o chefe
patriarcal – e o filho.
Durante o sistema patriarcal a visão que se tinha em relação à infância e à criança era
muito distinta do conceito atual, ou seja, as crianças além serem obrigadas a se comportarem
como os mais velhos, o que era detectável, principalmente, por meio das vestes, ainda eram
consideradas inferiores aos adultos. A este respeito Freyre afirma:
Towner lembra que nas sociedades primitivas o menino e o homem são
quase iguais. Dentro do sistema patriarcal, não: uma distância social
imensa entre os dois. Entre “párvulos” e “adultos”, para usar as velhas
expressões portuguesas. Tão grande como a que separa os sexos: o “forte”,
do “fraco”, o “nobre”, do “belo”. Tão grande como a que separa as classes:
dominadora, da servil às vezes sob dissimulação de raça ou casta
“superior” e “inferior” (FREYRE, , p. 67).
Nesta época, muitas crianças foram humilhadas e submetidas a torturas: “Homens que
na meninice sofreram horrores dos pais, dos tios-padres, do padrasto e da madrasta [...]
Homens que, como os escravos, desde pequenos oprimidos por senhores mais autoritários,
ficaram gagos [...]” (FREYRE, 1998, p. 71). De acordo com Silva: “No final do século XIX e
início do século XX, as famílias brasileiras vivam, ainda, de acordo com os moldes impostos
pelo regime patriarcal, tanto no meio urbano como no meio rural, mas se percebia que o
patriarcalismo predominava com mais rigor no meio rural” (SILVA, 2001, p. 282). É
evidente, a partir do enredo de Chove sobre minha infância, que Miguel e seus irmãos não
eram tratados exatamente como no sistema patriarcal brasileiro até meados do século XIX. No
entanto, no que se refere à autoridade de Sebastião, percebe-se como o seu comportamento
está baseado no modelo hierárquico.
À medida em que Sebastião obriga os filhos a fazerem somente o que é de seu
interesse, ele está agindo como um chefe ao qual todas as pessoas devem obediência, afinal é
ele quem detém o poder. O narrador de Chove sobre minha infância afirma: “O pai só valoriza
quem é igual a ele, quem faz as coisas do jeito dele, quem se veste como ele, quem trabalha
como ele. E eu sou diferente. Não quero seguir o mesmo destino” (CMI, p. 124). Deste modo,
em não havendo o comportamento esperado pelo chefe, o desregrado é punido severamente. A
passagem de uma das brigas de Miguel e Sebastião exemplifica: “Bem na hora o pai entra,
perguntando se eu provo que a mãe dele é puta. Mas não me deixa responder, sinto o peso de
uma mão imensa no meu rosto e caio. Levanto com raiva e digo que é pra ele bater mais,
aproveitar e bater bastante, porque é a última vez que me bate na vida” (CMI, p. 125).
No que se relaciona à educação formal e aos estudos, a visão de Sebastião estava, de
certa forma, pautada em histórias que sempre foram populares na sociedade brasileira, ou seja,
histórias que narram a traição de filhos estudados; que foram sustentados pelos pais,
estudaram, tornaram-se bacharéis e que, tomaram por meio da sua inteligência e
conhecimento, todos os bens pertencentes à família. Esse receio de Sebastião está presente na
seguinte passagem de Chove sobre minha infância:
(...) O padrasto não quer ver o filho estudando, e muito menos formado em
leis. (...) Você tem sonhos, você se imagina numa sala, usando uma
máquina de escrever elétrica, a camisa branca, com colarinho duro, a
gravata. Mas o padrasto não autoriza a tua saída de casa, alegando que
chegou o momento de trabalhar. Não sustento mais vagabundo. Você diz
que pretende cursar agronomia, que assim poderia cuidar das terras ou
trabalhar com os agricultores da região. Novas discussões, até que o
padrasto permite. (CMI, p.209-210).
Em relação a estas histórias, Freyre (1998, p.19) afirma: “mas não ninguém
abandonar-se à idéia de que os grandes proprietários de terra, tão poderosos a princípio,
acabaram todos uns reis Lear, sempre traídos por filhos doutores e por filhas casadas com
bacharéis”. Ao término de Chove sobre minha infância, Carmem, a irmã de Miguel, explica
ao narrador o porquê do comportamento do padrasto, quando o menino expressava o seu gosto
pelos estudos:
[...] Ele não lutava contra você, mas contra aquilo que você simbolizava.
Você era o perigo, o assaltante inteligente que lhe tiraria tudo, que o
deixaria na rua. A lógica das coisas queria que esta fosse sua função dentro
da vida dele. Então o pai fez de tudo para te derrubar ele te deu a chance de
fugir, de procurar outro caminho, onde você conseguiu, no mínimo, provar
que podia ficar de pé (CMI, p. 246).
A respeito do comportamento de Sebastião e do sistema vigente no interior paranaense
de meados do século XX, Zanchet afirma:
Sebastião metaforiza a alma do patriarca, ferido pela modernidade,
incansável em seus valores de enfrentamento, num mundo baseado na
concorrência feroz. A forma de organização de vida nas pequenas
comunidades agrícolas, no interior do Paraná, a partir da década de
sessenta, confere o substrato social sobre o qual o romance toma acento.
Usos, costumes, comportamentos, linguagens, dores e prazeres de um
tempo que se está perdendo ficam plasmados na forma como o autor amarra
situações e personagens (ZANCHET, 003, p.28).
O comportamento e as atitudes de Sebastião são entendidas no final da obra,
quando o leitor se depara com a carta de Carmem, a irmã de Miguel: “Portanto, ao se valer do
expediente retórico da carta da irmã, Carmem Sanches, no capítulo “Herdeiro de Ruínas”, o
narrador consegue resolver, de forma singular e convincente [...] o drama fragmentado do
relacionamento familiar” (ZANCHET, 2003, p. 29). Na carta, a irmã do narrador expõe uma
terceira visão sobre os conflitos entre Miguel e Sebastião: “Agora compreendo melhor o que
se passava em sua cabeça, suas angústias e mesmo este profundo sentimento de orfandade” (p.
243).
Carmem explica ao narrador as causas que levavam Sebastião a agir de forma rígida:
“Quando ele te arrastava para o mundo dele, era uma forma de te amar, de te ensinar o que ele
sabia. È claro que ele não tinha jeito, tanto que conseguiu distanciar o Zé e o Luís. Só que não
para dizer que ele queria o teu mal, desejava apenas te chamar para a realidade” (CMI, p.
247).
Quando o narrador retorna a Peabiru, cidade onde passou a infância, não se lamenta e
nem demonstra saudades, não há rancor nem benevolência:
Percorro de volta as ruas de Peabiru, depois de uma ausência de 15
anos. Não vou direto para a casa do pai, saio pelas ruas desviando de
meus itinerários antigos. Quem passou a infância aqui só pode ter esta
alma encardida. A poeira vermelha a tudo um véu de velhice.
Percorro a cidade vazia desviando de meu destino (CMI, p. 252).
A partir desses sentimentos, Miguel demonstra ter resolvido os problemas da infância,
afinal, ele venceu as adversidades, tornou-se escritor e conquistou o seu espaço. Além disso,
realizou o seu maior objetivo em relação ao ato de escrever:
Vindo de um povo praticamente iletrado, recebi a tarefa de ser um porta-
voz. Escrevo por isso, para fazer com que falem estes entes sem discurso.
Pode ser até uma justificativa tola, mas como ela pesa para mim. Se você
não a compreende, é porque sua história é outra, você não sente o travo
amargo de um silêncio centenário. (...) Não pude ser mais útil à sociedade,
não salvo vidas como os médicos, não luto pelos miseráveis, não minimizo
a solidão dos homens como as prostitutas, mas pronuncio palavras que
viviam apenas virtualmente na cabeça de meus antepassados, eu toco estas
palavras em estado imaterial com meu sopro, com meu corpo, com estes
lábios rotos. Por favor, não me peçam mais, isto é o bastante para um ser
tão ínfimo (CMI p.240-241).
A respeito dessa rememoração dramática da infância, Zanchet, afirma: “Tempo e
memória se entrelaçam e, como o fluir das águas sempre renovadas, a história vem à tona
purificando o passado sofredor” (ZANCHET, 2003, p. 23). Em suma, além de realizar o
sonho de seu autor narrar a trajetória de pessoas que estão à margem do sistema a obra
literária é o meio pelo qual Miguel Sanches Neto parece resolver, de forma primordial, as
angústias, as carências e o dramático relacionamento familiar.
CONCLUSÃO
A realização deste estudo possibilitou a identificação das principais características que
passaram a nortear a produção literária de Miguel Sanches Neto, sobretudo, no que diz
respeito ao romance Chove sobre minha infância. O eixo temático do trabalho contemplou
todas as ações que estruturaram a narrativa, ou seja, as discussões acerca da “Identidade e
Memória” serviram de base teórica para as análises elaboradas ao longo do estudo.
No primeiro capítulo, pôde-se perceber como identidade e memória estão interligadas.
Ou melhor, como a memória –individual e coletiva é importante para a formação de uma
personalidade identidade. Esse aspecto pode ser exemplificado por meio da formação de
Miguel, o protagonista do romance. O ser humano é formado por suas memórias. Todas as
suas ações são originárias de um antecessor, seja ele um indivíduo, uma sociedade ou uma
época, além disso, faz parte da natureza humana esse retorno às memórias ancestrais de forma
coletiva ou individual, pois ele é também formado pelo repasse de conhecimento que por
meio da convivência social, uma vez que é por meio da socialização que o homem, vai, aos
poucos, adquirindo as idéias e consciência. Conforme a teoria estudada, a subjetividade
sempre se constitui em relação a um outro, por isso está em constante construção. Assim, há a
revelação de que o sujeito é heterogêneo, isto é, não possui forma fixa e definida, sua
identidade é cindida, dispersa e sempre reconhecida pela diferença, uma vez que essa
diferença revela o eterno adiamento de preencher a falta que nos constitui. Como esta falta
nunca é completamente preenchida, não um ajuste completo. A memória, por sua vez,
possibilita uma reflexão sobre essa formação, ou melhor, na medida em que torna possível o
retorno ao passado, a memória leva Miguel a um “país obscuro” de ausências, angústias e
vazios – o qual foi marcante na sua infância, e lhe proporciona o entendimento do presente.
No segundo capítulo, a discussão é embasada teoricamente nos pressupostos de
Bakhtin, para quem o romance é sempre visto como uma esfera social, que não possui forma
fixa. Para o teórico russo, por mais que a autobiografia seja a forma narrativa mais próxima
daquela vivida por seu autor, ainda assim, ela é composta por motivos ficcionais. Por outro
lado, o mito do duplo explica a questão da revelação da condição humana. A arte revela a
necessidade de o homem realizar um encontro consigo mesmo, isso demonstra o encontro
indispensável entre o eu e o outro, isto é, o homem precisa dialogar consigo mesmo e com o
coletivo.
Pôde-se verificar que, na obra analisada, o plurilingüismo defendido por Bakhtin,
manifesta-se de duas formas distintas. A primeira se por meio das vozes dispostas no
romance; a segunda, por sua vez, se manifesta através dos gêneros intercalados. Essas vozes
são constituídas historicamente por meio da troca de experiências, ou seja, por meio da
relação dialógica. Assim, no conjunto da obra, os discursos e as personagens atuam
concomitantemente e fazem questão de expressar, cada qual, as suas particularidades. Essas
vozes apresentam pontos de vistas divergentes e isso faz com que a obra seja representante
dos mais diversos “tipos” humanos.
No terceiro e último capítulo, as discussões acerca da relação tempo e espaço,
proporcionaram o olhar a um universo rústico e peculiar da formação histórica e econômica: o
interior paranaense. Além disso, os comportamentos expostos no livro, representa o
comportamento das pessoas da época, esta que está subentendida entre as décadas de 1950 a
1980. Sanches Neto aborda uma época de transformação na sociedade paranaense: é a
chegada da mecanização agrícola, a qual vai causar mudanças em todos âmbitos sociais do
Estado.
A trajetória de Miguel, o menino carente financeira e afetivamente, representa a
história de muitas pessoas que viviam no campo, mas que esperavam algo além daquele
universo. Universo este que apresentava resquícios do sistema patriarcal, o que o tornava, de
certa forma, violento e conflitante. No final do livro Chove sobre minha infância, o Miguel
adulto, depois de voltar ao passado, inclusive à sua cidade natal, por meio do mecanismo da
memória e descoberta da verdadeira identidade, demonstra, não sem mágoas, ter entendido os
percalços pelos quais esteve submetido durante sua vida.
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