Quando louvou a justiça como primeira virtude da vida política, Aristóteles o fez
de maneira a sugerir que a comunidade que carece de acordo prático com relação
a um conceito de justiça também deve carecer da base necessária para a
comunidade política. Porém, a falta de tal base deve, portanto, ameaçar nossa
própria sociedade. Pois o resultado dessa história [...] não tem sido apenas a
incapacidade de concordar a respeito de um catálogo das virtudes, e a
incapacidade ainda mais fundamental de concordar acerca da importância
relativa dos conceitos de virtude dentro de um esquema moral no qual as noções
de direitos e de utilidade também têm um lugar essencial. Também tem sido a
incapacidade de concordar com relação ao teor e o caráter de determinadas
virtudes. Já que a virtude agora é compreendida em geral como uma disposição
ou sentimento que produz em nós obediência a certas normas, o acordo com
relação a quais serão tais normas é sempre pré-requisito para o acordo sobre a
natureza e o teor de determinada virtude. Mas esse acordo prévio quanto à
normas é [...] algo que nossa cultura individualista não pode oferecer”
(MACINTYRE apud BOTO, 2002).
A ética se definirá mediante relações de cuidado para com os outros, e os outros são
sempre outros, e nunca serão “ eu” mesmo. Por outro lado, somente a partir de seu
reconhecimento social é que se poderá, na coletividade, assegurar critérios para regular
intenções de “vida boa, com e para os outros, em instituiçõ es justas” (RICOEUR, 1995,
p.162). Nos termos desse autor:
Se implica o outro de si, a fim de que se possa dizer de alguém que ele se estima
a si mesmo como um outro. A dizer a verdade, é só por abstração que se pode
falar em estima de si sem pô-la em dupla com uma demanda de reciprocidade,
segundo um esquema de estima cruzado, que resume à exclamação tu também: tu
também és um ser de iniciativa e de escolha, capaz de agir segundo razões, de
hierarquizar teus fins; e, estimando bons os objetos da tua busca, és capaz de
estimar a ti mesmo. O outro é, assim, aquele que pode dizer eu como eu e, como
eu, ser considerado um agente, autor e responsável pelos seus atos. Do contrário,
nenhuma regra de reciprocidade seria possível. O milagre da reciprocidade é que
as pessoas são reconhecidas como insubstituíveis umas às outras na própria
troca. Essa reciprocidade dos insubstituíveis é o segredo da solicitude [...] Viver
bem, com e para o outro, em instituições justas. Que a intenção do bem viver
envolva de algum modo o sentido da justiça; isso é exigido pela própria noção do
outro. O outro é também o outro do tu. Correlativamente, a justiça estende-se
para além do face-a-face. Duas asserções estão aqui em jogo: de acordo com a
primeira, o viver bem não se limita às relações interpessoais, mas estende-se à
vida nas instituições; de acordo com a segunda, a justiça apresenta traços éticos
que não estão contidos na solicitude, a saber, essencialmente uma exigência de
igualdade de uma espécie diferente da daquela da amizade. [...] Pode-se, com
efeito, compreender uma instituição como um sistema de partilha, de repartição,
que se refere a direitos e deveres, rendimentos e patrimônios, responsabilidades e
poderes; vantagens e encargos. É esse caráter distributivo – no sentido amplo da
palavra – que põe um problema de justiça. Com efeito, uma instituição tem uma
amplidão mais vasta do que o face-a-face da amizade e do amor (RICOEUR,
1995, p.163-164).