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SELMA DE FATIMA BONIFACIO
HISTÓRIA E(M) QUADRINHOS:
análises sobre a História ensinada na arte seqüencial
CURITIBA
2005
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SELMA DE FATIMA BONIFACIO
HISTÓRIA E(M) QUADRINHOS:
análises sobre a História ensinada na arte seqüencial
Dissertação apresentada como requisito
parcial para a obtenção do tulo de
Mestre em Educação, no Programa de
Pós-Graduação em Educação, Linha
Saberes, Culturas e Práticas Escolares
Universidade Federal do Paraná.
Orientador: Prof. Dr. Luis Fernando
Cerri
CURITIBA
2005
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ii
Dedico este trabalho a minha mãe, Therezinha,
e a meu pai, Mário (in memoriam) que, com
toda humildade, mostraram-me o inestimável
valor da educação.
iii
AGRADECIMENTOS
A todos aqueles que direta, ou indiretamente, estiveram comigo ao longo
desta jornada. Foram inúmeras as pessoas e o receio de não citar algumas delas é
uma preocupação constante. Assim, começo agradecendo a todos os colegas,
colaboradores e amigos.
Este trabalho o teria sequer tido início, não fosse pela presença de meu
orientador, o professor Luis Fernando Cerri, a quem agradeço de modo
particular, por seu apoio, paciência e compreensão – características nele tão
presentes e marcantes. Agradeço por todos os subsídios, pelo estímulo, pelas
informações e questionamentos que me propiciaram o crescimento no processo
de construção desta pesquisa. Minha eterna gratidão por ter acreditado, confiado
e investido em minha caminhada como pesquisadora e em meu compromisso
como professora.
Aos professores Marcos Napolitano, Rosa Maria Dalla Costa e Tânia
Braga, pessoas a quem muito admiro, por terem aceitado o convite para integrar a
banca de defesa, disponibilizado seu tempo na leitura criteriosa do texto e
valiosas contribuições para a construção da pesquisa.
A todos os professores do Programa, que me possibilitaram
questionamentos, reflexões, ampliando meus horizontes e minha visão de mundo.
Aos colegas do Mestrado e do Grupo de Estudos em Didática da História
GEDHI da Universidade Estadual de Ponta Grossa: Marcos, Carol, Jean,
Ângela, Maria Antonia e Bruna, pelos incentivos e contribuições.
Aos grandes amigos que fiz nesta jornada: Janete Neri, Janaina Espírito
Santo e Marcio Tomaz, que me ofereceram amizade, companheirismo, subsídios,
compartilhando preocupações e indescritíveis momentos de alegria. Às amigas
Valeska, Rebeca e Andréa, pela presença e incentivo e, em especial, à Lisandra,
pela leitura e contribuições valiosas na revisão deste texto.
Aos meus amigos todos, por terem me compreendido e estimulado nos
momentos mais difíceis. Ao Edilson, Lineti, Rosaldo, Romilda, Antonia, Elaine,
Terezinha, Maria, Rosa, Joana e Laurita, Teresa e Regina. À Eline, ao Jefferson e
iv
ao Claudinei, que em meio a tantos compromissos e atribuições muito me
auxiliaram, oferecendo-me mostras de grande amizade e doação.
Aos amigos e colegas de profissão, a quem ofereço o resultado deste
trabalho, por serem fonte de inspiração, através de seu testemunho de uma luta,
nem sempre reconhecida socialmente. A todo o pessoal do Albert Schweitzer,
Ivaiporã, Ivo Leão e Roberto Langer Júnior.
À minha mãe, querida amiga de toda uma vida, pela tolerância, apoio e
amor incondicional, e também ao Alexandre (Xandinho), por seu sorriso
cativante! E a Deus, meu sustentáculo!
Agradeço também à Maristela e à Nereide, da Gibiteca de Curitiba a
primeira do Brasil, por terem colaborado com esta pesquisa, oferecendo-me um
grande suporte em livros, gibis, artigos e com suas próprias sugestões.
Ao pessoal da Editora Globo, responsável pelas revistas de Maurício de
Sousa. À Luciane Ortiz de Castro e Cecília Bassarani, Lina Pompei e Sidney
Elias Costa. Obrigada a Maurício de Sousa por deixar a profissão de repórter
policial, tornando-se um dos principais quadrinistas de todos os tempos.
Por fim, agradeço aos meus sedutores heróis, vilões e tantos personagens
de papel, que construíram o imaginário de minha infância, dando-me a paixão
necessária para o desenvolvimento desta pesquisa. Não fosse por eles, meu
retorno à Academia não teria sido tão divertido. E obrigada Luis Fernando, por
levar a sério o universo do faz-de-conta!
v
Educar não é cortar as asas: é orientar para o vôo.
(Autor desconhecido)
vi
SUMÁRIO
LISTA DE ILUSTRAÇÕES.................................................................................................viii
RESUMO...................................................................................................................................x
ABSTRACT .............................................................................................................................xi
INTRODUÇÃO ........................................................................................................................1
1 EDUCAÇÃO, HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E ENSINO DE HISTÓRIA ............8
1.1 EDUCAÇÃO E QUADRINHOS NO CONTEXTO DOS ESTUDOS
SOBRE CULTURA ERUDITA E CULTURA POPULAR ...................................9
1.2 A ESCOLA COMO PRODUTORA DE CONHECIMENTO .............................16
1.3 OS QUADRINHOS NA REFLEXÃO PEDAGÓGICA – ONTEM E HOJE.....18
1.4 QUADRINHOS E ENSINO DE HISTÓRIA.........................................................25
2 CONHECIMENTO HISTÓRICO E HISTÓRIAS EM QUADRINHOS....................33
2.1 OS FOCOS DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA....................................................33
2.2 CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E VIDA COTIDIANA.........................................36
2.3 OS QUADRINHOS E A DISCUSSÃO SOBRE SUA UTILIZAÇÃO
POLÍTICO-IDEOLÓGICA....................................................................................44
2.3.1
O
S SUPER
-
HERÓIS COMO INSTRUMENTOS DE PROPAGANDA POLÍTICA
..................................45
2.3.2
W
ALT
D
ISNEY
:
INFÂNCIA
,
INDÚSTRIA CULTURAL E SEUS EFEITOS IDEOLÓGICOS
................50
2.3.3
O
S QUADRINHOS E O DISCURSO CONTRA
-
HEGEMÔNICO
:
POLÍTICA
,
EXISTENCIALISMO E UNDERGROUND
............................................................................................54
2.3.4
O
S QUADRINHOS BRASILEIROS E A LUTA PELO RECONHECIMENTO
........................................58
2.4 A LINGUAGEM DOS QUADRINHOS – TRANSPOSIÇÕES E
RECRIAÇÕES .........................................................................................................61
2.5 QUADRINHOS – A ORIGEM OU... COMO TUDO COMEÇOU.....................72
2.5.1
A
IDADE DOURADA DOS QUADRINHOS
..........................................................................................79
3 A HISTÓRIA DO BRASIL NA ÓTICA DOS QUADRINHOS....................................83
3.1 A INOVAÇÃO NOS LIVROS DIDÁTICOS DE JULIERME ............................91
3.2 HISTÓRIA E HUMOR CAI O IMPÉRIO: REPÚBLICA VOU VER............95
3.3 LAMPIÃO EM QUADRINHOS...........................................................................100
3.4 HISTÓRIA DE CURITIBA...................................................................................104
vii
3.5 HISTÓRIA DE CURITIBA EM QUADRINHOS...............................................108
3.6 SUBVERSIVOS: A LUTA CONTRA A DITADURA MILITAR NO
BRASIL...................................................................................................................111
4 UM CALENDÁRIO CÍVICO – HISTÓRICO NACIONAL NA COLEÇÃO
“VOCÊ SABIA?” ...........................................................................................................119
4.1 DE QUE QUADRINHOS ESTAMOS FALANDO E QUE PROBLEMAS
SÃO COLOCADOS POR ELES NO ENSINO DE HISTÓRIA .......................119
4.2 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS..........................................................124
4.3 ABORDAGEM DESCRITIVA DE ALGUNS EXEMPLARES DA
COLEÇÃO..............................................................................................................127
4.3.1
O
D
ESCOBRIMENTO DO
B
RASIL
..................................................................................................130
4.3.2
A
BOLIÇÃO DOS
E
SCRAVOS
...........................................................................................................136
4.3.3
A
I
NDEPENDÊNCIA DO
B
RASIL
.....................................................................................................146
4.3.4
P
ROCLAMAÇÃO DA
R
EPÚBLICA
..................................................................................................155
4.4 ABORDAGEM INTERPRETATIVA ..................................................................167
4.4.1
(R
E
)
C
ONSTRUÇÕES
I
CONOGRÁFICAS
:
A
P
INTURA
A
CADÊMICA E OUTRAS
REFERÊNCIAS VISUAIS
....................................................................................................................167
4.4.2
I
NTERTEXTUALIDADES
:
DOCUMENTOS HISTÓRICOS ESCRITOS COMO REFERÊNCIA
.........182
4.4.3
A
S SIMPLIFICAÇÕES EXPLICATIVAS NA DIDATIZAÇÃO E SEUS PROBLEMAS
.........................184
4.4.4
O
PARALELO COM AS NARRATIVAS ESCOLARES TRADICIONAIS SOBRE A
H
ISTÓRIA
N
ACIONAL E AS CONCEPÇÕES DE
H
ISTÓRIA SUBJACENTES
.....................................................187
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS..........................................................................................191
REFERÊNCIAS ...................................................................................................................199
viii
LISTA DE ILUSTRAÇÕES
FIGURA 1 – PERSPECTIVA NOS QUADRINHOS .............................................. 65
FIGURA 2 – BALÕES ................................................................................................. 69
FIGURA 3 – THE YELLOW KID (O GAROTO AMARELO) ................................ 75
FIGURA 4 – A BALAIADA (1)................................................................................... 88
FIGURA 5 – A BALAIADA (2)................................................................................... 89
FIGURA 6 – OS QUADRINHOS NOS LIVROS DE JULIERME ......................... 93
FIGURA 7 – O HUMOR NOS QUADRINHOS DE REPÚBLICA VOU VER (1) .... 98
FIGURA 8 – O HUMOR NOS QUADRINHOS DE REPÚBLICA VOU VER (2) .... 99
FIGURA 9 – LAMPIÃO ERA O CAVALO DO TEMPO...................................... 103
FIGURA 10 – HISTÓRIA DE CURITIBA.............................................................. 107
FIGURA 11 – HISTÓRIA DE CURITIBA EM QUADRINHOS (1) .................... 109
FIGURA 12 – HISTÓRIA DE CURITIBA EM QUADRINHOS (2) .................... 110
FIGURA 13 – A DITADURA MILITAR NA VIDA NACIONAL ........................ 112
FIGURA 14 – VIOLÊNCIA E TORTURA NO PERÍODO MILITAR................ 113
FIGURA 15 – TURMA DA MÔNICA NA GRANDE AVENTURA DO
DESCOBRIMENTO .......................................................................... 131
FIGURA 16 – O PRIMEIRO CONTATO ENTRE NATIVOS E EUROPEUS... 133
FIGURA 17 – A PRIMEIRA MISSA ....................................................................... 134
FIGURA 18 – AS MUDANÇAS OCORRIDAS NO BRASIL A PARTIR DO
DESCOBRIMENTO........................................................................... 135
FIGURA 19 – JOSÉ DO PATROCÍNIO, ENTRE CASTRO ALVES E RUI
BARBOSA........................................................................................... 136
FIGURA 20 – A REVOLTA PROVOCADA PELA ESCRAVIDÃO ................... 137
FIGURA 21 – O TRÁFICO NEGREIRO................................................................ 139
FIGURA 22 – AS CONDIÇÕES DOS NAVIOS NEGREIROS E A POESIA DE
CASTRO ALVES ............................................................................... 140
FIGURA 23 – PASSATEMPOS INFORMATIVOS............................................... 141
FIGURA 24 – OS QUILOMBOS.............................................................................. 143
FIGURA 25 – OS NEGROS E SUAS CONTRIBUIÇÕES CULTURAIS............ 144
FIGURA 26 – A EXTINÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL .......................... 145
FIGURA 27 – O BLOQUEIO CONTINENTAL..................................................... 147
FIGURA 28 FIGURAS EMBLEMÁTICAS DA NÃO PELOS OLHOS DE
MAURÍCIO DE SOUSA ..................................................................... 148
FIGURA 29 – A CHEGADA DA FAMÍLIA REAL AO BRASIL ........................ 149
ix
FIGURA 30 – RECOMENDAÇÕES DE DOM JOÃO VI A SEU FILHO PEDRO
ANTES DE REGRESSAR A PORTUGAL ..................................... 150
FIGURA 31 – O DIA DO FICO (1) .......................................................................... 152
FIGURA 32 – O DIA DO FICO (2) .......................................................................... 153
FIGURA 33 – ALUSÃO AO QUADRO DE PEDRO AMÉRICO......................... 154
FIGURA 34 – SELO EDUCATIVO RECOMENDADO PARA TRABALHOS
ESCOLARES...................................................................................... 155
FIGURA 35 – TENTATIVAS DE INSTAURAÇÃO DA REPÚBLICA NO
BRASIL ............................................................................................... 156
FIGURA 36 – A MONARQUIA E SUA BASE ALIADA....................................... 157
FIGURA 37 – OS FAZENDEIROS CONTRA O IMPÉRIO................................. 158
FIGURA 38 – A QUESTÃO RELIGIOSA NOS QUADRINHOS (1)................... 160
FIGURA 39 – A QUESTÃO RELIGIOSA NOS QUADRINHOS (2)................... 161
FIGURA 40 – A QUESTÃO MILITAR................................................................... 162
FIGURA 41 – INFORMAÇÕES E CURIOSIDADES............................................ 163
FIGURA 42 – MOVIMENTAÇÕES PRÓ-REPUBLICANAS.............................. 165
FIGURA 43 – A SUNTUOSA FESTA NA ILHA FISCAL .................................... 166
FIGURA 44 – PRIMEIRA MISSA NO BRASIL .................................................... 170
FIGURA 45 – A MOAGEM DE CANA NOS QUADRINHOS DA TURMA DA
MÔNICA............................................................................................. 172
FIGURA 46 – ENGENHO MANUAL QUE FAZ CALDO DE CANA................. 172
FIGURA 47 – ACLAMAÇÃO DE DOM PEDRO I NO CAMPO DE SANTANA
.............................................................................................................. 174
FIGURA 48 – “INDEPENDÊNCIA OU MORTE” – PEDRO AMÉRICO.......... 174
FIGURA 49 – “INDEPENDÊNCIA OU MORTE (1) TURMA DA NICA ... 175
FIGURA 50 – “INDEPENDÊNCIA OU MORTE (2) TURMA DA NICA ... 176
FIGURA 51 – VIVA A REPÚBLICA....................................................................... 180
FIGURA 52 – A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA, DE BERNARDELLI.... 180
FIGURA 53 – MARIANNE, SÍMBOLO DA LIBERDADE .................................. 181
x
RESUMO
A pesquisa identifica e problematiza a presença do conhecimento histórico nas
histórias em quadrinhos, concebendo que o mesmo constitui-se a partir de
diversos focos e circula socialmente. Essa concepção incorpora a idéia da
consciência histórica como atributo inerente a todo ser humano e, neste aspecto,
como um fator presente nos mais diversos meios de comunicação e formação
humana. A partir dessa identificação, objetivamos analisar as alterações ocorridas
com o conhecimento, ao passar da linguagem textual-acadêmica à linguagem
específica dos quadrinhos, o que constitui elementos para discutir suas
características e potencialidades na utilização em sala de aula. Tomados como
produtos característicos da comunicação de massa, os quadrinhos encontram-se
definitivamente incorporados à sociedade contemporânea, sendo objeto de
estudos e pesquisas em diferentes áreas do saber acadêmico. Por outro lado,
percebemos uma produção ainda restrita em relação à análise dos quadrinhos e o
ensino de História. Em um primeiro momento, fizemos um breve levantamento
de obras quadrinizadas com evidentes conteúdos acerca da História do Brasil. Em
seguida, selecionamos a coleção “Você sabia?”, de Maurício de Sousa. A escolha
da coleção como objeto de análise da pesquisa obedeceu a alguns critérios por
nós estabelecidos. Em primeiro lugar, em razão das revistas da Turma da
Mônica, inteiramente nacionais, dominarem o mercado de quadrinhos no Brasil,
estendendo-se, inclusive, para outros países e mobilizando uma dinâmica
mercadológica responsável por acordos comercias com centenas de empresas e
milhares de produtos. Os fascículos da coleção apresentam temáticas que seguem
conteúdos tradicionais do Calendário vico Nacional. Assim, temas como o
Descobrimento do Brasil, Abolição dos Escravos, Independência do Brasil e
Proclamação da República são abordados, articulando-se com referências visuais
e textuais responsáveis pela construção do conceito de nação. Os resultados
apontam processos de didatização próprios, que algumas vezes implicam
simplificações e re-significações, bem como um diálogo constante com
documentos e estudos históricos mediados por outras formas de comunicação
visual e textual, como pinturas e filmes. Percebe-se a força dos elementos
tradicionais da narrativa da História Nacional, sobretudo aqueles estruturados em
torno do calendário cívico escolar, evidenciando uma relação dinâmica entre o
saber histórico escolar e os diversos outros saberes históricos com os quais ele se
relaciona.
Palavras-chave: Conhecimento Histórico Quadrinhos Ensino de História
Meios de Comunicação de Massa – História do Brasil.
xi
ABSTRACT
This research identifies and discusses the presence of historical knowledge in
comics, conceiving that it is built from different perspectives and has a mass
circulation. This conception incorporates the idea of historical consciousness as a
quality inherit to every human being, and in this aspect, as a present factor in the
means of communication and human formation (education). From this
identification, our aim is to analyze the changes occurred with the knowledge,
from the transposition from textual language to the comics language, what gives
us elements for discussing its characteristics and potentialities of its use in the
classroom. Comics are products characteristically for mass communication, they
are definitely incorporated to the contemporary society, being object of research
in different areas of education. On the other hand, we still notice that there are
not many analyses of the use of comics and the teaching of history. First, we
collected comics that evidenced contents related to Brazilian History. Then, we
selected the collection “Você sabia?from Mauricio de Sousa. The choice of the
collection as an object of analyses in the research, obeyed some criteria
established by us. First, due to the fact that the totally national magazines “Turma
da Mônica” dominated the market of comics in Brazil, it even entered the
international market, which was responsible for commercial agreements
involving hundreds companies and thousands products. The magazines from this
collection have themes related to traditional civic dates. So, themes as Brazil
Discovery, Abolition of Slavery, Brazilian Independence from Portugal and
Proclamation/Declaration of Republic are approached and the use of visual
references and texts are responsible to build up the concept of nation. The results
show us people’s own way of using these comics in their classes, sometimes
these ways imply in simplifying and re-signifying, as well as a constant dialog
with documents and historical studies introduced by different ways of visual and
text communication, as paintings and films. Above all, it is possible to notice the
strengths of traditional elements in the narrative of National History, especially
those that are structured around the civic school calendars, showing as evidence a
dynamic relationship between what is taught at school and other historical
knowledge to which it is related to.
Key words: Historical Knowledge – Comics – History Teaching – Mass Media
History of Brazil.
INTRODUÇÃO
O universo das histórias em quadrinhos tem feito parte do cotidiano e da
memória de um grandemero de pessoas que adquiriram o hábito da leitura por
meio das páginas ilustradas dos gibis
1
de aventura, romance e diversão. E se
algum tempo atrás, eram percebidas como subprodutos culturais, hoje têm
recebido um pouco mais de atenção, sendo objetos de análise e estudo em
pesquisas acadêmicas e também no espaço escolar.
Assim, as HQs
2
tornam-se fontes de uma significativa e importante
contribuição acadêmica, sob inúmeras perspectivas de análise, como a Literatura,
a Psicologia, a Educação e a Comunicação. Por outro lado, percebemos uma
restrição ainda muito evidente no que se refere à pesquisas que busquem uma
articulação entre o ensino de história e a linguagem dos quadrinhos,
particularmente em relação ao conhecimento histórico, que é eventualmente
mobilizado na produção dos quadrinhos, às influências dos quadrinhos no
processo ensino-aprendizagem e à sua presença e aceitação no cotidiano escolar.
Assim, longe de estarmos esgotando ou explorando em demasia o assunto,
queremos destacar a importância de um tema bastante rico e ainda pouco
explorado em nossas pesquisas acadêmicas, sobretudo na área do ensino de
História.
Por muito tempo, os quadrinhos foram identificados como uma espécie de
subliteratura, inadequada à formação de cidadãos cultos e letrados. Sua origem
1 A revista Gibi foi lançada por Roberto Marinho, em 12 de abril de 1939, e sua imensa
popularidade nas décadas seguintes fez com que, no Brasil, o termo gibi passasse a ser utilizado,
até a atualidade, como sinônimo de qualquer revista em quadrinhos, nacional ou estrangeira
(SILVA, 1976, p. 51-52). Neste sentido, MOYA (2003) assinala: “No dicionário escolar do
MEC, de 1965, gibi é um negrinho, moleque. o Lello define gibi como um negro de traços
grosseiros e rudes. No Novo Dicionário Aurélio de 1986, contudo, gibi aparece, também, como
‘s.m. – revista em quadrinhos, infanto-juvenil’”.
2
A expressão HQs diz respeito às histórias em quadrinhos.
2
como produto da cultura de massas, em fins do século XIX nos Estados Unidos
3
,
aponta a distinção que se estabelecia entre a chamada “alta cultura” representada
pelos clássicos da literatura, e a subcultura, destinada aos imigrantes, aos pobres
e toda à população oriunda das camadas trabalhadoras, com pouco ou nenhum
acesso à educação formal.
Particularmente, do início até a primeira metade do século XX, inúmeras
campanhas empregadas por psicólogos, professores, pais e educadores, foram
responsáveis por atribuir um caráter negativo aos quadrinhos, considerados
inadequados, subversivos, causadores de preguiça mental e desvios
comportamentais, como homossexualismo referência a Batman e Robin e à
Mulher-Maravilha e atitudes violentas presentes nos super-heróis (FEIJÓ,
1997). Apesar disso, concretizaram-se algumas tentativas de sucesso que
objetivavam aliar quadrinhos e educação por se perceber a forte identificação
entre as HQs e o público jovem. Surgiram, então, versões quadrinizadas para
clássicos da literatura universal, como “O Morro dos Ventos Uivantes” e “O
Corcunda de Notre Dame”. No Brasil, foram produzidas versões, como
“Gabriela, cravo e canela” de Jorge Amado e “O Guarani”, de José de Alencar.
Tais experiências, entretanto, não chegaram até o universo escolar, que mantinha
a aura de desconfiança e o preconceito com relação aos quadrinhos.
Finalmente, sobretudo da década de 1960 em diante, parte da
intelectualidade européia afirma seu interesse pela linguagem dos quadrinhos.
Federico Fellini, Umberto Eco, Edgar Morin são apenas alguns intelectuais que
confessam a apreciação e o gosto pelas HQs. Nesse aspecto, Pablo Picasso teria
afirmado “... que uma de suas mágoas era jamais ter feito histórias em
3
Ainda que outras representações pictóricas - como as pinturas rupestres - possam ser
consideradas por alguns estudiosos e pesquisadores como antecessoras dos quadrinhos,
compreendemos que a publicação, em 1895, de The Yellow Kid (O Garoto Amarelo), de
Richard Outcault, denota um divisor de águas pela utilização e combinação pioneira de
desenhos e textos escritos em sua camisola ou em cartazes, mas, sobretudo, The Yellow Kid
indica um marco na produção dos quadrinhos em função da estratégia maciça de distribuição,
que elevou em grande quantidade as vendas de jornais nos Estados Unidos, “... cujos efeitos se
estenderam em seguida à produção e venda dos próprios comics”. (CAGNIN, 1991, p. 82-83).
3
quadrinhos...” (MOYA, 1986, p. 88). A partir daí, os quadrinhos passaram a
receber uma atenção diferenciada. Nesse sentido:
...os europeus descobriram os quadrinhos e eles invadiram as universidades, os livros
“sérios”, os museus e, em pouco tempo, estava na moda revelar-se um velho de
velhos personagens.
Os quadrinhos fantásticos, de ficção científica, de soap opera, passaram a resolver
problemas graves tidos como insolúveis pela Nasa, em Houston. A relação dos
quadrinhos com as crianças e os adultos foi amplamente estudada. E os primeiros
trabalhos sectários sobre o tema se tornaram estudos científicos, feitos para a Unesco,
tentando utilizar a linguagem dos comics para fins educacionais. Os cientistas chegaram
a medir a retina das crianças diante dos efeitos da onomatopéia para determinar quais
quadros provocavam maior reação e poderiam ser utilizados em livros didáticos (...)
Essas pesquisas provaram a utilidade da linguagem das historietas para fins de resposta
pronta do intelecto infanto-juvenil (MOYA, 1986, p.7).
Durante as décadas de 1960 e 1970, os quadrinhos passam, ainda que
timidamente, a receber inserções em livros didáticos (RAMA e VERGUEIRO,
2004), como os livros de História de autoria do Professor Julierme de Castro
Abreu. Mas, no Brasil, somente a partir de da década de 1980 a escola passou a
utilizar os quadrinhos com maior freqüência, no processo de alfabetização, em
aulas de leitura, e também como entretenimento. De lá para cá:
No Brasil, principalmente após a avaliação realizada pelo Ministério da Educação a
partir de meados dos anos 1990, muitos autores de livros didáticos passaram a
diversificar a linguagem no que diz respeito aos textos informativos e às atividades
apresentadas como complementares para os alunos, incorporando a linguagem dos
quadrinhos em suas produções (...) as últimas décadas do século passado presenciaram,
cada vez mais, a utilização de histórias em quadrinhos pelos professores das diversas
disciplinas, que nelas buscaram não apenas elementos para tornar suas aulas mais
agradáveis, mas, também, conteúdos que pudessem utilizar para transmissão e discussão
de temas específicos nas salas de aula. (RAMA e VERGUEIRO, 2004, p.20-21)
Com o advento da Lei 9394/96 de Diretrizes e Bases da Educação (LDB)
e os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), de 1997, houve a orientação no
sentido de uma prática pedagógica que utilizasse diferentes meios e linguagens.
Um pouco em função disso, mas também em face às discussões e reflexões
promovidas, professores de diferentes disciplinas passaram a inserir, ainda que
de forma pontual, elementos audiovisuais em suas aulas, como revistas, jornais,
4
vídeos, quadrinhos, entre outros, gerando novas formas de articulação entre o
conhecimento escolar propriamente dito e as linguagens não escolares.
No que se refere ao ensino de História, a realidade não é diferente. Muitos
pesquisadores e professores têm se dedicado a analisar a relação entre a História
propriamente dita, seu ensino e sua relação com elementos da sociedade
midiática. Pois:
Sejam em bases mais apocalípticas, sejam integradas de velho ou novo tipo, tornou-se
inequívoco no contexto das grandes transformações conceituais, políticas e dos
paradigmas que arcam o nosso tempo o reconhecimento da extensão e influências que
passaram a ser exercidas pelos sistemas e processos comunicacionais. (CITELLI, 2000,
p.14)
A inegável presença das inúmeras linguagens, dentro e fora do espaço
escolar, faz com que o professor busque a correlação entre os conteúdos
escolares e as múltiplas interpretações propiciadas pelos meios comunicacionais
que circulam socialmente. Ao nos referirmos ao professor de História, a busca
por essa articulação parece ainda mais urgente se pensarmos nas inúmeras
possibilidades de leitura oferecidas pelo cinema, pela Internet e, particularmente,
pelos quadrinhos, que se traduzem em nosso objeto de pesquisa.
As histórias em quadrinhos estão incorporadas à sociedade contemporânea
e por elas circulam saberes e concepções acerca do mundo, do homem, da
História. Mas de qual História estaríamos falando? De uma História rememorada,
contada, produzida socialmente e que possui diferentes versões a partir do
conhecimento histórico elaborado pelos grupos sociais.
Isso ocorre, pois o conhecimento histórico, a noção de tempo, o passado e
sua relação com o presente, não constitui uma propriedade exclusivamente
acadêmica. Essa atribuição, considerada como um conjunto de operações mentais
configura a chamada consciência histórica, sob a perspectiva do pesquisador
alemão Jörn RÜSEN (2001). Essa consciência faz parte da vida cotidiana de todo
ser humano, em sua inserção social, nas relações que estabelece com o outro,
com seu grupo e suas circunstâncias. A escola é, portanto, apenas uma das
muitas instâncias de aprendizagem histórica (GARCÍA, 1998, p. 280).
5
Em relação a isso, Marc FERRO (1989) destaca que a História constitui
um campo de conflito, cuja narrativa acaba por ser disputada em nome de uma
dominação e de um controle social, é a história sendo posta sob vigilância, nas
escolas e nas academias, mas também por meio de outras esferas, como o Estado,
a Igreja e a mídia.
As batalhas pela legitimação e pelo encontro de uma “verdadeira”
narrativa histórica, caracterizam o ambiente acadêmico concretizando-se pela
busca do rigor científico presente nas diferentes pesquisas, discussões e
publicações – mas também ultrapassam seus limites, estendendo-se para o espaço
escolar, para os livros didáticos da disciplina de História, filmes e histórias em
quadrinhos.
Assim, a indústria cultural
4
constitui uma das esferas que possibilitam a
formação de uma consciência, de uma aprendizagem e de uma cultura históricas
5
.
A questão que se apresenta diante dessa afirmativa, e que se traduz como objeto
da pesquisa é como a mídia, aqui representada pelos quadrinhos, participa desse
processo de elaboração e o que ocorre com o conhecimento histórico ao ser
quadrinizado. Nesse sentido, desejamos analisar o que ocorre quando um
conhecimento fundamentado sobre a memória, a narrativa textual e a
linguagem acadêmica – passa para uma outra construção.
Os quadrinhos apresentam uma estrutura distinta de outras produções,
diferenciando-se, por exemplo, da linguagem acadêmica. Sua especificidade
reside em representações feitas através de desenhos, diálogos e narrações
geralmente reduzidos, enquadramento seqüencial dos fatos e acontecimentos no
tempo, além da presença muito freqüente da ficção e do humor, particularmente
nas histórias destinadas ao público infanto-juvenil. Esses sujeitos em idade
escolar participam do processo de aprendizagem histórica a partir da dinâmica
4
Conceito elaborado em 1947, no livro “Dialética do Esclarecimento”, por Theodor W. Adorno
e Max Horkheimer, integrantes da Escola de Frankfurt.
5
Para GARCÍA (1998, p.289): A cultura histórica significa, neste aspecto, “... la articulación
práctica de la conciencia histórica en una sociedad determinada. La gama de esta articulación se
extiende desde la enseñanza de la historia a nível escolar hasta los rituales commemorativos
oficiales, de los manuales escolares hasta museos y monumentos y muchos otros lugares de
memoria’ coletiva”.
6
entre o saber elaborado na academia, o saber re-construído através dos manuais
didáticos, e o saber efetivamente ensinado pelo professor em sala de aula
6
,
condicionado ainda pelo saber histórico mobilizado nos mais variados processos
de comunicação de que participam.
Também constitui objetivo desta pesquisa compreender a possível relação
dos quadrinhos com outros dois focos do conhecimento histórico: a Academia e
o universo escolar enquanto instâncias produtoras de conteúdos.
O trabalho foi organizado em quatro capítulos. No primeiro, analisamos a
relação entre os quadrinhos e a educação, no contexto de discussão entre a
cultura erudita e cultura popular. Historicamente, pode-se perceber um
significativo preconceito por parte de instituições, professores, educadores e
intelectuais que observavam nas HQs apenas componentes depreciativos e
prejudiciais à boa formação do indivíduo e do cidadão. Esse preconceito
encontrava-se assentado sobre princípios que separavam e destacavam a chamada
“alta cultura” de uma outra cultura, menor e menos qualificada, presente em
elementos das culturas popular e massiva
7
. Analisamos, também, a função social
da instituição escolar, responsável pela reprodução e pela produção de
conhecimentos. Também de se discutir a presença dos quadrinhos no espaço
escolar e algumas experiências e pesquisas feitas relacionando histórias em
quadrinhos, História e ensino.
No segundo capítulo, procuramos compreender e articular alguns
conceitos centrais para a construção desta pesquisa, como as elaborações
relativas ao conhecimento histórico, consciência histórica, cultura histórica, focos
6
Em seu livro “La transposición didáctica”, Yves Chevallard elabora o conceito de
transposição didática, no qual se distinguem três patamares relativos ao saber, partindo do
conhecimento científico asua concretização no espaço escolar: destaca o saber acadêmico ou
de referência (o chamado saber sábio), o conteúdo de ensino presente nos planos, currículos e
manuais didáticos (saber a ensinar) e o saber ensinado, que se efetiva na sala de aula. Para
maior análise, ver: Alice LOPES, Conhecimento escolar: ciência e cotidiano, 1999; e Ana
Maria MONTEIRO, Ensino de História: entre saberes e práticas, 2002.
7
Martín-Barbero assinala o fato de que a cultura massiva (expressão relativa à cultura de massa)
não representa uma ruptura com relação à cultura popular, mas que “O massivo foi gerado
lentamente a partir do popular” (1997, p. 169). Neste aspecto, também Canclini salienta que
uma “... interação crescente entre o culto, o popular e o massivo abranda as fronteiras entre seus
praticantes e seus estilos” (1997, p.360).
7
de consciência histórica e ensino de História. Também abordamos algumas
discussões acerca do uso político-ideológico das HQs na sociedade, além de
resgatarmos um breve histórico dos quadrinhos, seu surgimento e condição atual
na sociedade contemporânea, fortemente condicionada pela indústria cultural e
pelos meios massivos.
O terceiro capítulo abordará a relação entre as histórias em quadrinhos e a
História do Brasil, por meio de obras selecionadas que objetivam tal articulação,
seja em livros didáticos, paradidáticos ou alternativos. A análise busca perceber,
nas diferentes obras, elementos que demonstram a presença ou não do êxito em
abordar aspectos da História do Brasil, utilizando para isso a arte seqüencial
8
.
Objetivamos entender quais seriam os limites e as possibilidades oferecidas por
diferentes modos de se contar a história por meio de recursos como o humor, a
imagem e a combinação texto-visual.
No quarto e último capítulo, procedemos a análise de conteúdo da coleção
“Você sabia?” de Maurício de Sousa
9
, uma obra de cunho comercial que,
entretanto, segue princípios estabelecidos no Calendário Cívico Nacional
construído pela historiografia. Desejamos que essa organização possibilite ao
leitor compreender as questões propostas para esta pesquisa.
8
Arte seqüencial entendida como história em quadrinhos.
9
As reproduções feitas estão de acordo com os princípios legais definidos pela Lei 9.610, de
19.02.1998, que dispões sobre os Direitos Autorais, em seu artigo 46, incisos III e VIII.
8
1 EDUCAÇÃO, HISTÓRIAS EM QUADRINHOS E ENSINO DE
HISTÓRIA
Se, algumas décadas, os quadrinhos eram encarados como meros
subprodutos da cultura de massas, hoje recebem um outro destaque junto à
cultura, à educação e também por parte da historiografia. No entanto, ainda
muito a ser analisado, discutido e aprofundado, para que se ampliem as
possibilidades de utilização e apreciação de diferentes meios de comunicação de
massa, particularmente das histórias em quadrinhos
10
.
Entendemos que a análise das linguagens e dos meios de comunicação de
massa é fundamental, especialmente em sua relação com o conhecimento escolar
e, em nosso caso, com o ensino de História. Pesquisas importantes têm sido
feitas, analisando programas televisivos, a música, a informática, o cinema, e
mesmo charges e cartuns, considerados antecessores dos quadrinhos. Esse
interesse acadêmico por diferentes linguagens deve-se, em parte, à compreensão
de que a escola não é mais a única instituição capaz de informar o indivíduo, mas
que interage com inúmeros outros meios informativos e comunicacionais
podendo, então, caracterizar-se como uma instância de singular valor político e
pedagógico, na medida em que possibilite uma ampliação e articulação com os
saberes disponíveis socialmente.
No presente capítulo, traçaremos um panorama histórico e educacional do
tema e das discussões a ele relacionadas, de modo a aprofundá-lo, bem como
qualificar a discussão que este trabalho desenvolve.
10
Compreendemos que, como o cinema, os quadrinhos nasceram sob a égide e as bênçãos do
sistema capitalista, sendo historicamente veiculados como meios de comunicação de massa,
com o objetivo de atingir a um grande número de pessoas.
9
1.1 EDUCAÇÃO E QUADRINHOS NO CONTEXTO DOS
ESTUDOS SOBRE CULTURA ERUDITA E CULTURA
POPULAR
Por que quereis levar-me a toda parte, ó iletrados?
Não escrevi para vós, mas para quem me pode compreender.
Um, para mim, vale cem mil, e a multidão nada...
Heráclito
As histórias em quadrinhos muito m despertado a atenção de
estudiosos, em função de largo alcance e interesse junto a distintos grupos
sociais. De acordo com COUPERIE et al. (1970), nas primeiras décadas do
século XX, entre 1923 e 1924, foram feitas as primeiras pesquisas para descobrir
qual seria o público leitor dos quadrinhos. Foram então entrevistadas 5.000
crianças dos estados do Missouri e do Kansas, das zonas rural e urbana. A partir
das respostas dos entrevistados (crianças entre 8 e 15 anos), acreditava-se,
naquele momento, que os leitores de quadrinhos viviam nas cidades não se
questionou se as crianças do campo tinham jornais em casa e que esse público
era formado por meninos e meninas, brancos e negros. Acreditava-se, assim, que
os quadrinhos eram uma leitura para crianças ou, ainda, para os menos
letrados”.
Nessa perspectiva, a tônica das pesquisas limitava-se a questões acerca de
etnias, sexo e condição sócio-econômica dos leitores. Foi então que, na década de
1930, em decorrência da crise mundial, editores dos grandes jornais refletiam
sobre a possibilidade de retirar os quadrinhos de suas páginas, em função dos
altos custos com a impressão em cores. Nesse momento, o Instituto Gallup
descobriu que os quadrinhos eram a principal fonte de interesse, não só de
crianças e “semi-analfabetos”, mas também do público considerado “sério” e
“responsável”.
Diante disso, COUPERIE (1970, p.151) aponta o que foi proclamado pelo
Instituto Gallup: “Os banqueiros, os reitores de universidade, os professores, os
doutores, lêem os comics’ tão avidamente quanto os motoristas e os operários.”
10
Evidenciava-se, então, o preconceito e a desinformação presentes nas pesquisas
que envolviam as histórias em quadrinhos. As pesquisas seguintes, feitas até a
década de 1960, passaram a salientar um permanente equívoco ao identificar a
leitura dos quadrinhos como uma prática exclusiva de crianças e pessoas de
“camadas populares”, ou seja, os quadrinhos seriam uma linguagem
“infantilizada”, um indicativo de ausência cultural. De acordo com COUPERIE
(1970, p.151) tais pesquisas:
Encontraram nas pessoas mais cultas um vivo interesse pelas histórias em quadrinhos,
uma alta estima como gênero, como meio de expressão, e uma firme oposição contra as
opiniões que as condenavam totalmente (...) os “comics” estão intimamente ligados às
lembranças da infância, porém mais de 50% dos entrevistados declararam que a leitura
das histórias não era um mero passatempo, mas um prazer positivo (...). Em relação à
atitude das pessoas cultas, os resultados da pesquisa anterior foram confirmados: elas
sentem que estão traindo a cultura, e temem parecer atrasadas [grifo nosso] porque
se julgam exceções em seu grupo.
Enfatiza-se, através dessas posições, um receio histórico por parte da
chamada “elite cultural” em assumir a leitura de um meio que se encontrava
socialmente identificado com uma população inculta e marginalizada. O
preconceito estava presente e manifestava-se de duas maneiras: a primeira, ao
identificar quadrinhos com a massa iletrada, e a segunda, por acreditar que o
gosto da massa não era considerado como uma representação cultural. Na
Europa, onde as pesquisas se tornaram mais avançadas, não se conseguiu fugir
completamente do estigma dos quadrinhos como foco de imaturidade. O
historiador VOVELLE (1997, p.372), refere-se aos quadrinhos para todas as
idades, considerando que vão desde os adolescentes até os adultos retardados”.
Nesse aspecto, os quadrinhos também assumem conotações distintas entre si e a
cultura parece surgir por detrás de um contrato tácito, capaz de definir e apontar
caminhos indicativos de validação do que seja ou não adequado.
Percebemos que, no que se refere aos quadrinhos, há constantes resquícios
de preconceito, mesmo entre os acadêmicos e pesquisadores mais esclarecidos.
Tais preconceitos não se constituem em algo novo, recente, e tampouco se
limitam ao universo das HQs. Ao contrário, estendem-se a outros meios
11
massivos
11
, como a música, desenhos animados e programas televisivos,
apontando um fenômeno histórico, cuja essência seria o estabelecimento de uma
linha demarcatória, dividindo as experiências culturais entre as representações da
elite, e as práticas advindas das camadas populares, que não seriam
consideradas como verdadeira cultura. FORQUIN (1993, p.11) destaca que aqui
a cultura teria uma conotação eminentemente elitista, tida como um
... conjunto de disposições e das qualidades características do espírito ‘cultivado’, isto é,
a posse de um amplo leque de conhecimentos e de competências cognitivas gerais, uma
capacidade de avaliação inteligente e de julgamento em matéria intelectual e artística,
um senso de ‘profundidade temporal’ das realizações humanas e do poder de escapar do
mero presente.
Essa concepção de cultura, como um patamar produzido por poucos e a
ser atingido por outros tantos, tem sustentado e legitimado, de certa forma, a
existência da instituição escolar. E, quanto a isso, a escola tem exercido a
histórica atribuição de pré-determinar os limites entre uma cultura considerada
adequada, verdadeira e universal, em relação àquela que seria concebida como
uma subcultura, inferior qualitativamente, sendo normalmente atribuída como
originária ou destinada às classes trabalhadoras. À escola caberia a função de
transmitir, a todo e qualquer indivíduo, essa cultura superior, ignorando as
vivências e percepções subjetivas, além das questões específicas da condição de
pertencimento a uma classe, a um gênero, e não a outro, a uma etnia, quer seja
dominada, ou dominante (APPLE, 1995). Isso não parece ser uma realidade
evidente. Ao cidadão menos atento, o cotidiano escolar apresenta até uma certa
rotina, um panorama neutro, quase sem surpresas. Essa rotina se manifesta nos
detalhes, na divisão do tempo escolar, nos intervalos e na sucessão das aulas, nas
seleções curriculares, nas escolhas e abordagens de cada disciplina. Sob essa
11
Utilizamo-nos da expressão meios massivos ao fazermos referência aos meios de
comunicação de massa, assim denominados por transmitirem mensagens a um grande público,
de forma indistinta. Para TEMER e NERY (2004, p.11): "... a comunicação de massa é uma
forma específica de comunicação que ocorre pela intermediação/mediação de um meio técnico
ou multiplicador, que permite a mensagem atingir um público anônimo, heterogêneo e
fisicamente disperso, que pode chegar simultaneamente até bilhões de pessoas nos mais
diferentes pontos da terra."
12
atmosfera aparentemente harmoniosa e tranqüila em que aulas são dadas e notas
atribuídas, repousa na escola, todavia, um locus de conflito, de confronto, de
tomada de decisões.
A pretensa neutralidade presente na instituição escolar e no seu cotidiano,
manifesta uma clara posição que reproduz os valores postos e que busca a
manutenção do sistema social vigente, do status quo. Como nos diz APLLE
(1989, p. 29):
... de modo geral a na inerente neutralidade de nossas instituições, no conhecimento
ensinado e em nossos métodos e ações, servia de forma ideal para ajudar a legitimar as
bases estruturais da desigualdade.
A escola não é neutra. Nem são neutras suas opções e práticas
pedagógicas. Eximir-se dessa dimensão é, inegavelmente também, uma decisão
de cunho político. Pois: “... Selecionar é uma operação de poder. Privilegiar um
tipo de conhecimento é uma operação de poder. Destacar, entre as múltiplas
possibilidades, uma identidade ou subjetividade como sendo a ideal é uma
operação de poder” (SILVA, 1999, p.16).
A escola, nesse sentido, apresenta-se com uma singular importância, pois
acaba por apresentar um caráter opressor, funcionando em grande parte como um
aparelho ideológico do Estado”
12
. Assim, ela não é responsável pela criação
das desigualdades sociais, mas por sua manutenção, caracterizada através da
seleção, omissão e encaminhamentos de determinados conteúdos, crenças,
valores e costumes. Segundo LOPES (1997, p.96):
Em uma perspectiva tradicional de currículo que entende o processo educacional
apenas como transmissão de conhecimentos, previamente selecionados a partir de
critérios epistemologicamente neutros –, a cultura de uma sociedade é concebida como
unitária, homogênea e universal. Acredita-se existir uma cultura aceita e praticada,
indiscutivelmente valorizada, que deve ser transmitida na escola, em nome da
continuidade cultural da sociedade como um todo. Nesse caso, a seleção cultural não é
problematizada, mascarando-se seus aspectos conflituosos. Mesmo porque, a própria
sociedade é analisada sob uma ótica funcionalista, sem que sejam considerados os
embates de classe e o domínio dos meios de produção por uma classe, determinante da
divisão social do trabalho e do conhecimento.
12
Faz-se refrência à L. ALTHUSSER (1974).
13
Essas ações e opções, indicativas do caráter eminentemente reprodutivista
da educação, foram destacadas por pensadores como Pierre BOURDIEU e Jean-
Claude PASSERON (1982). Para eles, a instituição escolar se apresenta atrelada
a uma pedagogia elitista e antidemocrática, que valoriza e transmite uma cultura
da classe dominante em detrimento de outras possibilidades e vivências culturais.
É a cultura burguesa, imperialista, que se propõe universal e universalizante.
Sob a ótica da reprodução, a escola acaba por “legitimar” as desigualdades
sociais, reforçando as diferenças de classe. Isso ocorre a partir de uma seleção,
exercida direta ou indiretamente, mas que tem seu início na vida e nos valores
familiares, de acordo com os distintos níveis e classes sociais. Para BOURDIEU
(2001, p.41-42):
Na realidade, cada família transmite a seus filhos, mais por vias indiretas que diretas,
um certo capital cultural e um certo ethos, sistema de valores implícitos e
profundamente interiorizados, que contribui para definir, entre outras coisas, as atitudes
face ao capital cultural e à instituição escolar. A herança cultural, que difere, sob dois
aspectos, segundo as classes sociais, é a responsável pela diferença inicial das crianças
diante da experiência escolar e, conseqüentemente, pelas taxas de êxito.
Bourdieu destaca, nessa argumentação, a importância exercida pela
família e pelo grupo social ao qual se pertence, na transmissão de um “capital
cultural”, responsável pelas condições e oportunidades objetivas, que definem o
êxito ou o insucesso do indivíduo em relação aos estudos. Essas oportunidades e
vantagens seriam cumulativas e determinariam o destino do estudante, pois:
...para que sejam favorecidos os mais favorecidos e desfavorecidos os mais
desfavorecidos, é necessário e suficiente que a escola ignore, no âmbito dos conteúdos
que transmite, dos métodos e técnicas de transmissão e dos critérios de avaliação, as
desigualdades culturais entre as crianças das diferentes classes sociais. Em outras
palavras, tratando todos os educandos, por mais desiguais que sejam eles de fato, como
iguais em direitos e deveres, o sistema escolar é levado a dar sua sanção às
desigualdades iniciais diante da cultura. (BOURDIEU, 2001, p.53)
Sob esse aspecto, a função tradicionalmente conservadora da escola,
legitima e referenda “um” viés cultural, consagrado pelas classes mais
favorecidas, sob a forma de uma cultura denominada erudita, aristocrática e
seletiva. O autor salienta que:
14
A cultura da elite é tão próxima da cultura escolar que as crianças originárias de um
meio pequeno burguês (ou, a fortiori, camponês e operário) não podem adquirir, senão
penosamente, o que é herdado pelos filhos das classes cultivadas: o estilo, o bom-gosto,
o talento, em síntese, essas atitudes e aptidões que parecem naturais e naturalmente
exigíveis dos membros da classe cultivada, porque constituem a “cultura” (...) dessa
classe. (BOURDIEU, 2001, p.55)
Essa oposição, entre a cultura erudita e a cultura popular, e o papel da
escola diante dessa dualidade, é um elemento gerador de grande polêmica.
Segundo BANTOCK, citado por FORQUIN (1993), a existência de uma escola
democrática é um mito que acentua as diferenças sociais. Isso, porque alunos
que são, por natureza, “menos aptosque os demais. Em função disso, o autor
propõe a existência de um “currículo alternativo” para a grande massa de alunos
“médios e comuns”, e um outro currículo, de cunho “humanista”, para a minoria
de alunos talentosos. Essa proposta está alicerçada na tese de que as
desigualdades são “naturais” e não produzidas socialmente. Segundo
BANTOCK, a decadência sócio-cultural é uma triste realidade. E para ele, os
elementos complicadores e geradores dessa crise na sociedade contemporânea,
seriam o mito da escola para todos” e, principalmente, a forte presença dos
meios de comunicação de massa, por ele considerados como anti-educativos por
exercerem uma influência negativa sobre crianças e jovens, especialmente sobre
os alunos menos brilhantes”. BANTOCK considera que “... o racionalismo e o
ascetismo do espírito acadêmico são incompatíveis com as solicitações
demagógicas da cultura de massa” (apud FORQUIN, 1993, p.45).
Assim, o hiato se acentua e se expande, separando as instâncias culturais
entre a cultura erudita, a cultura popular e a cultura de massa, esta última
considerada prejudicial à formação pedagógica do indivíduo. Bantock utiliza-se
dos velhos pré-conceitos de naturalização da desigualdade social e contribui para
que se reforce a concepção depreciativa em relação ao mass media
13
, como uma
“cultura menor”, alienante e apreciada pelos “iletrados”. Esses princípios
salientam a velha função da escola como transmissora de uma cultura erudita e
de conhecimentos já cristalizados, legitimados como absolutos e, em
13
Expressão relativa a meios de comunicação de massa, os meios massivos.
15
contrapartida, toda e qualquer manifestação cultural que não se reflita a partir de
tais pressupostos é concebida como expressão de inferioridade, um ato na
contramão da verdadeira cultura.
Essa perspectiva tradicional, de escola como espaço de reprodução, e da
cultura de massa como instrumento de alienação cultural, não se encontra
plenamente superada. E nessa ótica, a contribuição de Bourdieu é fundamental
por renovar e atualizar as discussões sociológicas a partir dos campos
pedagógicos e culturais, identificando os obstáculos político-pedagógicos que
fazem frente ao processo de democratização e transformação sociais. A escola
tem vivido, ao longo de sua história, mantendo uma aparência de neutralidade,
centrada na ideologia de aptidões e dons naturais, como destaca Bantock. Assim,
legitimam-se desigualdades, seletividades e exclusões. E essa face reprodutivista,
opressora, ainda está muito presente nas práticas escolares.
Por outro lado, é preciso cautela para não nos aprisionar em um possível
determinismo, por concebermos a escola unicamente como um espaço de
reprodução, foco de silêncios e exclusão social. Diante dessa conotação, quais
seriam as perspectivas para os sujeitos que participam da vida escolar?
Acreditamos que as teorias que destacam os aspectos exclusivamente
reprodutivistas da educação, por vezes, acabam por ignorar as contradições, os
enfrentamentos e as resistências ocorridas no centro das práticas escolares. E é
nessa perspectiva que esta pesquisa deseja se focar, nas possíveis brechas
existentes na estrutura marcada pela reprodução, e na presença dos meios
massivos, representados pelas histórias em quadrinhos dentro do espaço escolar.
16
1.2 A ESCOLA COMO PRODUTORA DE CONHECIMENTO
Que a escola possua uma conotação reprodutivista bastante acentuada,
presente nas inúmeras manifestações da chamada “educação bancária”
14
, na
ausência do diálogo e na negação das experiências subjetivadas, é uma verdade
que não pode ser ignorada. Por outro lado, acreditamos que essa violência
simbólica, essa imposição de valores, culturas e ideologias dominantes, não é
aceita ou absorvida de forma passiva e absoluta. Como afirmam GIROUX e
SIMON (1995, p.95):
... a escola é um território de luta e (...) a pedagogia é uma forma de política cultural (...)
as escolas são formas sociais que ampliam as capacidades humanas, a fim de habilitar as
pessoas a intervir na formação de suas próprias subjetividades e a serem capazes de
exercer poder com vistas a transformar as condições ideológicas e materiais de
dominação em práticas que promovam o fortalecimento do poder social e demonstrem
as possibilidades da democracia (...). Trata-se de um apelo para que se reconheça que,
nas escolas, os significados são produzidos pela construção de formas de poder,
experiências e identidades que precisam ser analisadas em seu sentido político-cultural
mais amplo.
Assim, sem negar a existência de uma instância opressora na instituição
escolar, queremos destacar também seu papel como um locus de conflito e
resistência, que se concretiza através das múltiplas vozes de sujeitos que são mais
do que meros passivos receptores.
Lembremos o mito grego das Moiras
15
, as deusas que excluíam qualquer
possibilidade de opção e livre-arbítrio. As três irmãs filhas de Nix, a Deusa
Tríplice da Noite, situavam-se acima dos deuses do Olimpo: Clotho, a deusa
principal, tecia o fio de cada destino; Lachesis punha o fuso no fio, dirigindo,
mediando e avaliando a vida humana, e a inflexível Átropos, com sua tesoura
mágica, cortava impiedosamente o fio que ligava a vida ao seu destino. Suas
ações não podiam ser questionadas sequer pelos deuses. Esse mito oferece a idéia
de submissão a um destino inexorável, num espaço-tempo em que a liberdade
14
Expressão criada pelo educador Paulo Freire para indicar uma educação calcada em
perspectivas reprodutivistas e opressoras. Na educação bancária, enfatiza-se a memorização, a
transmissão acrítica de conhecimentos e o caráter objetificante da relação professor-aluno.
15
As Moiras, na Antiguidade Grega, personificam as deusas do destino.
17
não era, ou não é possível. Reduzir a escola à dinâmica da reprodução é aceitar a
presença virtual das moiras na vida humana.
O cotidiano do ambiente escolar, as discussões ocorridas dentro e fora de
sua esfera, as conversas informais, as reações ao formalismo, nas contravenções e
nas atitudes de alunos e professores, que se caracterizam como possibilidades de
resistência e emancipação, são indicativos da ação e das potencialidades
humanas. Assim, não se pode reduzir a ação dos personagens singulares à
questão da reprodução. A escola também é formada e enredada nas ações
concretas de seus sujeitos, em suas práticas cotidianas, em suas concepções e
mundivisões. Nesse aspecto, buscando um ir-além das determinações estruturais,
e levando-se em conta os conflitos e embates sociais e culturais, utilizamo-nos
dos conceitos de André PETITAT (1994).
A escola reproduz, mas também é produtora de sentido e transformação.
Ainda que haja uma imensa distância entre os valores reconhecidos pelo sistema
escolar e aqueles que são vivenciados por seus sujeitos, especialmente pelos
alunos das classes populares vocabulário, moda, música e literatura, por
exemplo ao observarmos a questão da cultura, podemos perceber que alunos,
professores e a comunidade escolar como um todo, articulam conversas
informais perpassadas pela forte presença dos meios de comunicação,
representados nas sicas populares, em notícias de jornais e revistas, em
programas televisivos, através das telenovelas, filmes e programas informativos e
de variedades. São conhecimentos populares, massivos e cotidianos que ainda
não m chegado de forma sistematizada à sala de aula, mas que se manifestam
no modo de pensar e de agir dos sujeitos pertencentes ao universo escolar, em
meio às brechas da informalidade. Como afirma PETITAT (1994, p.263-264):
Reprodutora em um certo vel, a escola contribui para a mudança social em outro
nível. Sua ação explícita no que se refere a certos valores ou normas culturais definidas
se fará implícita, para não dizer totalmente inconsciente, em outros níveis. Sempre
parecendo exclusivamente voltada para a veneração à ordem estabelecida, ela participa,
a despeito de si mesma e de maneira indireta, para ultrapassar esta ordem.
18
Nossa pesquisa se insere na relação existente entre a escola como (re)
produtora de conhecimento, a comunicação e a cultura de massa e, nesse quadro,
a presença das histórias em quadrinhos, portadoras de um conhecimento histórico
circulante e sua articulação com uma perspectiva pedagógica.
1.3 OS QUADRINHOS NA REFLEXÃO PEDAGÓGICA – ONTEM
E HOJE
Na concepção tradicional, que distinguia a “cultura de excelência” de uma
“cultura menor”, não havia espaço para as HQs, pois as visitas aos museus, os
clássicos da literatura e os concertos de música erudita, não podiam conviver
harmoniosamente com a cultura vulgarizada dos quadrinhos. A professora
Elisabeth PENNEL destacava, no texto “Our tragic comics”, na década de 1920:
O bom desenho, nas histórias em quadrinhos, é um acidente (...) Pergunta-se com pesar
para que servem as escolas de arte, as conferências, os clubes, os cursos nos museus, as
críticas na imprensa, os eternos discursos sobre a arte e a necessidade de levá-la ao
povo, se os olhos do povo são corrompidos e pervertidos todas as semanas, se não todos
os dias, por essas perversões grosseiras vulgares, contraditórias, de colorido barato
(apud FEIJÓ, 1997, p.20).
O primeiro grande ataque histórico destinado aos quadrinhos ocorreria,
todavia, nos anos 1950, através do psiquiatra alemão Frederic Wertham que, na
obra “A Sedução dos Inocentes”, alertava para o “perigo representado pelas
histórias em quadrinhos”. Em seu livro, Werthan destacava o suposto
homossexualismo de Batman e Robin, ou o fato de o Super-Homem incentivar
crianças a voarem de cima de prédios como elementos depreciativos presentes
nos quadrinhos. Esse livro, envolto em uma onda de moralismos, preconceitos e
conservadorismo, fomentou uma grande polêmica naquele período, o que acabou
por gerar um código de autocensura nos quadrinhos que passou a ser usado a
partir dos anos 50. No Brasil, o código de ética dos quadrinhos vigorou até 1965.
Depois de Werthan, inúmeras outras fontes passaram a salientar os aspectos
considerados negativos ou perniciosos presentes nas histórias em quadrinhos.
Para Zilda Augusta ANSELMO (1972, cap.3, p.13):
19
Na França, por exemplo, o PUF (Jornal para crianças) reuniu em publicação sob o título
“Veneno sem Palavras" sérias acusações às HQ, colocando-as como “elementos
anticulturais, incitadores da passividade intelectual e da preguiça mental, corruptoras de
nossa juventude, do ponto de vista moral e lingüístico, capazes de levar a criança a
desaprender a leitura e a linguagem inteligentes” (in Roux, 1970). Em Bruxelas, a
revista “Enfants” publicava: “As histórias em quadrinhos devoradas pelas crianças
enfraquecem seu gosto pela leitura séria. Literatura em comprimido, história e ciência
através de imagens, não formarão jamais cabeças cheias”.
Assim, o preconceito se acentuava. Em vários países, a revolta chegou a
um nível de perseguição que beirava ao absurdo: revistinhas foram queimadas,
numa espécie de inquisição nada sutil que condenava sua leitura. E as
manifestações preconceituosas não se limitaram à Europa ou aos Estados Unidos.
Também aqui no Brasil, os ecos da intolerância contra a leitura de quadrinhos se
fizeram presentes. E foi esse fato que levou o quadrinista Maurício de SOUSA
(2000) a descrever sua própria experiência enquanto menino-leitor de quadrinhos
frente ao patrulhamento e a perseguição que os gibis sofriam:
Eram os anos dourados de 50.
Mogi fervia com desfiles, passeatas, corridas de carros, festas de estudantes, bailes
concorridos... e eu junto, no viço da juventude.
E dentre todas essas atividades, um belo dia meu professor de matemática, com seu
sotaque carregado de alemão, sugeriu em classes que deveríamos lutar contra os gibis.
Que eram publicações que desviavam a atenção da garotada, que traziam costumes
estranhos, que faziam mal para o intelecto, aquelas coisas.
Fiquei meio desconfortável. Adorava gibis e não concordava com nenhuma das
afirmações do professor (...) Fiquei entre a cruz e a espada.
Meus preciosos gibis? Queimados? E minha coleção como ficaria? Argumentei que não
havia somente más publicações. Havia outras muito boas. Com boas histórias, boa arte.
E chegamos a um acordo.
As revistas a serem “oferecidas ao sacrifício” seriam aquelas que falavam de violência,
terror e similares.
Escolhi algumas revistas bem ruinzinhas de desenhos e textos e “colaborei” um
pouquinho (...) E chegou o dia da passeata, da coleta de gibis pelas ruas, dos discursos
ferozes contra os quadrinhos (...) e da pira de revistas sendo consumida pelo fogo no
Largo da Matriz (...) Afinal, como eu, acho que os demais proprietários de gibis não
quiseram se desfazer de suas preciosidades.
Mas ficou a lembrança do dia da queima e das minhas dúvidas quanto àquela ação.
Hoje, mais do que nunca, acho que não é na proibição nem no fogo que se indicam
caminhos para bons hábitos de leitura.
Boa leitura depende de orientação, educação e bons produtos à disposição.
Com isso mais a liberdade de opção, quadrinhos ou livros ruins estarão condenados
naturalmente à pira do esquecimento.
20
A crônica de Maurício de Sousa ilustra o vel de discriminação a que se
chegava a relação entre a escola e as histórias em quadrinhos. Felizmente, para os
dias de hoje, essa situação parece beirar às raias do absurdo. Ainda assim, apesar
das evidentes mudanças de concepção, permanece um certo “ranço” e uma
desconfiança para com os quadrinhos, que não foram totalmente superados.
Como assinala Waldomiro VERGUEIRO (2004, p.16):
Mesmo atualmente notícias de pais que proíbem seus filhos de lerem quadrinhos
sempre que as crianças não se saem bem nos estudos ou apresentam problemas de
comportamento, ligando o distúrbio comportamental à leitura de gibis.
Assim, ainda que se introduzam os quadrinhos nas práticas escolares,
pairam sobre eles, em determinadas ocasiões, os mesmos pré-conceitos que os
responsabilizam pela preguiça mental, alienação e estímulo à violência. E, a que
se deve esse preconceito?
Acreditamos que a origem da discriminação esteja na clássica oposição
entre diferentes tipos de cultura, clássica ou tradicional, de massa ou popular. A
própria origem dos quadrinhos destinados a serem um meio de comunicação
com a finalidade de atingir uma grande massa populacional – acabou gerando tais
distorções. As histórias eram consideradas pouco profundas e fantasiosas demais
(VERGUEIRO, 2004, p. 8), impedindo o desenvolvimento e ampliação de
culturas consideradas socialmente válidas.
A criação de Giff Wiff, primeira revista especializada em quadrinhos, no
início dos anos 60, assinala uma mudança inicial em relação às concepções sobre
HQs. A valorização dos quadrinhos contestatórios e “underground”, somada a
uma inundação de livros, artigos, congressos, conferências e adesões de
intelectuais, conferem aos quadrinhos o status e a respeitabilidade cultural até
então inexistente. Nomes importantes como Federico Fellini, Alain Resnais,
Umberto Eco, Edgar Morin e outros, passam a dedicar-se ao estudo das HQs e,
em 1965, foi realizado o Primeiro Congresso sobre Comics (MOYA, 1977, p.86-
87), organizado pela Universidade de Roma. Posteriormente, o Museu do Louvre
também realizou uma exposição sobre quadrinhos. Em 1967, Burne Hogarth,
21
célebre desenhista do Tarzan, e então Co-Diretor da School of Visual Arts de
Nova York aponta:
... deparamo-nos com uma penúria de avaliação histórica, estética ou filosófica sobre as
histórias em quadrinhos como arte como quanto ao seu lugar diante da evolução
cultural. Qual a razão desta pobreza?
Por algum motivo obscuro, há, entre os círculos bem informados, em particular aqueles
que determinam a apreciação das artes, antigas e aceitas ou novas e aceitáveis, uma
indiferença, e mesmo uma ignorância proposital para com as histórias em quadrinhos.
Para alguns mandarins, quando se discute arte e bom gosto, a simples menção das
palavras história em quadrinhos desencadeia uma reação de desdém, senão de desprezo.
Essas palavras parecem perniciosas em si mesmas, lembrando uma arte aviltada.
Em outro setor, alguns líderes da “Pop Art”, o grupo que adora utilizar imagens de
história em quadrinhos como arquétipos de cultura de massa, rejeitam toda relação séria
com a história em quadrinhos em seu estado original; eles não fazem quadrinhos, mas
Arte. (HOGART, 1970, p.8)
Assim sendo, muitos estudos principalmente nos países europeus
passam a contribuir decisivamente para novas e diferentes reflexões culturais
sobre a presença dos quadrinhos na sociedade. Podemos afirmar que, nesse
momento, as HQs começarão uma “lenta jornada rumo à aceitação social”,
deixando de ser vistas como mero subproduto da indústria cultural e passando a
ser encaradas como manifestações culturais e possibilidades artísticas
16
. Em
relação a esse momento tão particular, Moya comenta:
Os intelectuais, professores, pais e mestres, mães, críticos de arte, escritores e autores
infantis, editores, museólogos, pedagogos, pintores, artistas plásticos, todos agora com a
bênção da alta cultura, passam a dizer que nunca foram contra os quadrinhos, muito
pelo contrário... (MOYA, 1977, p.87).
Assim, as histórias em quadrinhos passam, gradativamente, a serem vistas
sob outra ótica, ainda que, até meados da década de 1970, não tenham
conseguido romper a barreira cultural para se inserir, de maneira significativa,
nas práticas escolares. Por outro lado, acreditamos que a presença de reflexões
acadêmicas e experiências pedagógicas – estas, muitas vezes, realizadas de forma
16
Por ser muito ampla, a produção de histórias em quadrinhos contempla inúmeras
possibilidades e manifestações. Nem todos os quadrinhos podem ser considerados como arte ou
uma produção de qualidade. Mas, o mesmo ocorre com outras linguagens e expressões culturais,
como a música, o cinema ou a literatura.
22
anônima – tenham, indubitavelmente, possibilitado a introdução das HQs no
espaço escolar.
Chaim Samuel Katz, em artigo publicado em 1973, comenta como se
estabelecia, naquele momento, a percepção pedagógica em relação às histórias
em quadrinhos. A análise dos professores partia, basicamente, de duas correntes:
... uma que acha que os conteúdos dos gibis não servem, pois lidam com a fantasia
desregrada, bem como afirma que sua forma acostuma à preguiça racional; outra diz que
a forma é boa, produtora de informações novas, mas que os conteúdos deveriam dizer
mais respeito aos problemas sociais e morais do homem... (KATZ, 1973, p.8).
E, ainda que os professores o reconhecessem nos quadrinhos um
potencial pedagógico, algumas experiências buscavam aliar o universo
quadrinhístico com a transmissão de conhecimentos. nos anos de 1940,
histórias em quadrinhos apresentando um cunho educativo eram publicadas nos
Estados Unidos, como True Comics, Real Life Comics e Real Fact Comics,
destacando personagens literários e eventos históricos (RAMA; VERGUEIRO,
2004) e Classic Comics, renomeada como Classic Illustrated, que trazia clássicos
da literatura mundial.
No Brasil, também na década de 1940, a Editora Brasil-América (EBAL)
comprou os direitos da publicação dos norte-americanos Classic Comics,
trazendo para o Brasil as versões quadrinizadas de clássicos da literatura
mundial, como Os Três Mosqueteiros”, O Morro dos Ventos Uivantes”, O
Corcunda de Notre Dame”, entre outras, em fascículos que constituíam a obra
Edição Maravilhosa. Finalmente, na década de 1950, passou-se a produzir
quadrinhos baseados na literatura brasileira como O Guarani” e Iracema”, de
José de Alencar,Gabriela Cravo e Canela”, de Jorge Amado eA Moreninha,
de Joaquim Manuel de Macedo. O próprio José Lins do Rego, autor da obra
Menino de Engenho”, citado por MOYA e D’ASSUNÇÃO (2002), prefaciou,
na Edição Maravilhosa de março de 1955:
23
Leio o meu próprio romance, Menino de engenho, com as figuras que Le Blanc
17
idealizou e chego a me emocionar como se estivesse num universo alheio à minha
criação. Sinto que a história pula das páginas com um vigor extraordinário. A
caracterização que o ilustrador impôs à narrativa tem mesmo coração e alma (...) E o
que mais me espantou na edição em quadrinhos do livro foi a escolha dos trechos
decisivos da narrativa. O técnico que elaborou a solução das palavras atingiu o âmago
da ficção e conseguiu uma redução de iluminura... Palavra e figura são a mesma coisa,
na correnteza dos fatos que nos absorvem o interesse.
O êxito editorial da literatura quadrinizada e o prefácio escrito por José
Lins do Rego demonstram que, além do público em geral, editores e uma parcela
da intelectualidade identificavam, ainda que de forma difusa, uma certa
potencialidade educativa nos quadrinhos. Essa percepção, entretanto, não era
reconhecida por pais, professores, pedagogos e outras personalidades cujas
funções estivessem diretamente ligadas à educação formal. Nesse sentido,
RAMA e VERGUEIRO (2004, p.18) comentam a utilização dos quadrinhos em
função de objetivos considerados educativos:
... a percepção dos benefícios pedagógicos dos quadrinhos não ficou restrita apenas a
autores e editores. Nos anos 50, na China comunista, o governo de Mao Tse-Tung
18
utilizou fartamente a linguagem das histórias em quadrinhos em campanhas
“educativas”, utilizando-se do mesmo modelo de retratar “vidas exemplares” explorado
pelas revistas religiosas, mas enfocando representantes da nova sociedade que se
pretendia estabelecer no país. As histórias podiam enfocar, por exemplo, a vida de um
soldado que, a caminho de seu quartel, ao encontrar uma pobre velhinha sem forças para
caminhar, desviava-se de seu caminho e a levava às costas até sua casa, passando a
imagem de “solidariedade” que o governo chinês pretendia vender à população.
Assim, percebendo a forte presença das histórias em quadrinhos junto ao
público infanto-juvenil, muitas editoras, governos e partidos políticos passaram a
fazer uso dessas histórias para difundir seus princípios e ideologias, com o
objetivo de formar (ou incutir) valores, transmitir conhecimentos, resgatar
17
Haitiano, educado nos Estados Unidos, onde foi assistente de Will Eisner, o criador de The
Spirit, e por fim, naturalizado brasileiro, André Le Blanc é responsável por alguns dos mais
elogiados desenhos da Edição Maravilhosa, além da ilustração da obra completa de Monteiro
Lobato, Sítio do Pica-pau-amarelo, publicada em 1947, pela Editora Brasiliense.
18
Os “Quadrinhos de Mao” constituíram, na década de 1960, uma estratégia de difusão do
pensamento e dos ideais revolucionários do líder Mao Tsé-Tung. Foi através do livro de
Umberto Eco, I fumetti di Mao(traduzido para o espanhol como Los comics de Mao), que
esse instrumento político tornou-se conhecido no Ocidente.
24
conceitos de cidadania e identidade nacional, através do destaque à construções
históricas e consideradas como relevantes à nação e ao sentimento nacional.
Abordaremos esta questão com mais profundidade, ao analisarmos algumas
relações entre quadrinhos e suas manifestações ideológicas.
A partir dos anos 1980, a escola passou, gradativamente, a utilizar os
quadrinhos nas classes de alfabetização e, com o advento dos Parâmetros
Curriculares Nacionais, houve a orientação no sentido de uma prática pedagógica
notadamente de a séries que estimulasse a leitura. As discussões sobre a
temática das histórias em quadrinhos se aprofundaram e sua inserção na escola
transcorreu de forma quase que silenciosa. BIBE-LUYTEN (1985, p.8) destaca
esta reflexão entre as histórias em quadrinhos e sua potencialidade educativa:
Ao contrário do que muitos pedagogos apregoam, os quadrinhos exercitam a
criatividade e a imaginação da criança quando bem utilizados. Podem servir de reforço à
leitura e constituem uma linguagem altamente dinâmica. É uma forma de arte adequada
à nossa era: fluida, embora intensa e transitória, a fim de dar espaço permanente às
formas de renovação.
Nos dias de hoje, podemos perceber sua presença durante os intervalos das
aulas, em tirinhas nos livros didáticos, em gibis especialmente produzidos, para
abordar conteúdos ou temas presentes nos Parâmetros Nacionais Curriculares,
como os relativos à ética, ao consumo e à cidadania.
Para CORDEIRO (2002, p.55), os quadrinhos:
... contribuem para que emirja o potencial humano, além de facilitar outras
aprendizagens (...) E como ocorre essa aprendizagem? Segundo os Parâmetros
Curriculares Nacionais do Ensino Fundamental (...) este texto constitui-se numa
linguagem dinâmica, simbólica, que estimula o desenvolvimento da leitura e da escrita,
suscitando na criança um grande prazer, já que se reveste de um acentuado caráter
lúdico, logo desafiador (...) Trazendo este argumento para o campo da educação (...) seu
papel se torna ainda mais preponderante, pois a construção do conhecimento se processa
essencialmente por meio da linguagem e da interação entre os agentes do processo da
aprendizagem, isto é, o professor e o aluno.
Dessa forma, qualquer iniciativa educacional coerente e que pretenda ser eficaz na
democratização do saber e da cultura deve considerar as formas diversas de linguagem e
comunicação.
25
Desse modo, as pesquisas com diferentes linguagens comunicacionais,
entre elas as histórias em quadrinhos, constituem reflexões fundamentais no
sentido de ampliar os limites, as discussões e as possibilidades de articulação do
conhecimento com a práxis educativa.
1.4 QUADRINHOS E ENSINO DE HISTÓRIA
Podemos presenciar, ao longo dos últimos anos, um crescente interesse
por parte de pesquisadores e professores de História em relação às diferentes
linguagens disponíveis socialmente, como o cinema, a informática, a televisão
19
e
os quadrinhos, instrumento selecionado para esta pesquisa. Esse movimento
participa de uma caminhada mais ampla de percepção sobre a insuficiência do
ensino tradicional nas sociedades midiáticas em que vivemos, em que várias
mensagens em diversos suportes tecnológicos competem com a escola pela
atenção e pela confiança do aluno (CITELLI, 2000). No caso, as experiências
pedagógicas que estabelecem relação entre as HQs e o ensino de História m
sido significativas, ainda que pontuais.
Por outro lado, falar sobre o potencial e os limites dos quadrinhos no
espaço escolar, especificamente em sua relação ao ensino de História, sem
incorrer na tentação de fornecer “receitas prontas”, o é das tarefas mais
simples. Adentrar na complexidade constituída pelo entrecruzamento dos campos
da Comunicação, da Educação, da História e seu ensino, é penetrar num terreno
arriscado, em função das inúmeras possibilidades e tessituras sígnicas e as
especificidades de cada ramo epistemológico. Longe de querer fornecer receitas
de uso e adequação dos quadrinhos, queremos propor uma reflexão sobre a
presença dos quadrinhos no ensino de História enquanto meio de comunicação de
massa e veículo portador de concepções de História, de sociedade e de mundo.
19
Nesse aspecto, uma boa indicação é o artigo de Carlos Alberto VECENTINI, História e
ensino: o tema do sistema de fábrica visto através de filmes, 1997, como também os livros
de Marcos NAPOLITANO, Como usar o cinema na sala de aula, 2003, e Como usar a
televisão na sala de aula, 2002, além dos inúmeros trabalhos publicados pela Associação
Nacional de História (ANPUH).
26
Os quadrinhos encontram-se, definitivamente incorporados à sociedade
contemporânea e o interesse por sua linguagem, por suas mensagens, por seus
conteúdos, tem aumentado de forma significativa, seja entre estudiosos do
assunto, leitores aficionados ou educadores (GUSMAN, 2005). Também
podemos encontrá-los, ainda que com certa timidez, em alguns livros didáticos
de História e na leitura-prazer dos alunos, que vez por outra os produzem e
desenham sob orientação de seus professores, ou distraidamente desenham traços
sem muita exigência, durante o transcorrer e os intervalos das aulas. Assim, a
linguagem dos quadrinhos teima em surgir, com mais ou menos freqüência, entre
os documentos escritos privilegiados pela historiografia tradicional.
Analisar a relação entre as histórias em quadrinhos e a História não se
constitui em algo inédito no meio acadêmico. Marc Ferro, ao longo das obras “A
manipulação da história no ensino e nos meios de comunicação”, de 1983, e “A
história vigiada”, de 1989, destaca a utilização dos quadrinhos como recurso
político-ideológico no estabelecimento e na manutenção de uma versão oficial do
fato histórico. Também o historiador Michel Vovelle, no livro “Imagens e
imaginário na História”, dedica parte de suas pesquisas à análise de valores
sociais, a partir da leitura quadrinhística.
Ainda na década de 1980, as análises relativas aos quadrinhos e o saber
histórico ganham terreno. Nesse período, lia Lopes da Silva apresenta um
artigo
20
na Revista Brasileira de História, em que relata sua experiência com os
quadrinhos “Asterix”, de Uderzo e Goscinny. A atividade, realizada com alunos
de 7ª e 8ª séries de uma escola pública do Estado de São Paulo:
... buscava responder a alguns desafios ‘pedagógicos’ no sentido de trabalhar as noções
de tempo e de ciência (da História) [grifos da autora], sempre difíceis de serem
entendidas pelos alunos. Além disso, tínhamos em mente trabalhar as relações de poder
entre dominador e dominado (SILVA, 1985, p.238).
Para a autora, a presença dos quadrinhos em sala de aula permitiu um
dinamismo, muitas vezes ausente nas narrativas históricas tradicionais, além de
20
Artigo “Asterix e a dominação romana”, publicado em 1985 pela Revista Brasileira de
História, da ANPUH.
27
possibilitar o trabalho com o cotidiano dos povos, suas diferenças culturais e as
relações de poder, além da questão de tempo e modos de vida, de “ontem” e de
“hoje”. Mas, sobretudo, era o contexto histórico vivido no momento,
caracterizado pelo início da abertura política do País, que apontava o grande
objetivo do trabalho: romper com o imobilismo, o silêncio e a “ausência” do
aluno no processo de aprendizagem. Tal propósito seria alcançado, nesse caso,
através do estímulo à leitura dos quadrinhos, à reflexão e à posterior produção
oral e escrita. A autora considerou algumas etapas em relação à atividade com os
gibis: num primeiro momento, antes do trabalho com quadrinhos propriamente
dito, fez-se a leitura de textos históricos do livro didático e de outros textos de
apoio. Em seguida, foi entregue uma revista Asterix para cada grupo de 5 ou 6
integrantes, dando-se 24 horas para que cada componente fizesse a leitura dos
quadrinhos. A culminância do trabalho se daria com a redação de um texto e
discussões concernentes ao tema.
Na avaliação da pesquisadora, alguns pontos positivos foram destacados,
como o interesse, a diversão e a participação dos alunos, bem como a “ousadia”
de se trabalhar com gibis diante da precariedade da situação do ensino. Esse é um
aspecto que indubitavelmente continua existindo, se observarmos a realidade de
um grande número de escolas públicas do País, que funcionam, muitas vezes,
com incontestável carência de recursos materiais. Esta, aliada a ações criativas
que possam, de alguma maneira, compensá-la.
Os alunos, de modo geral, não possuem condições de adquirir boas
revistas em quadrinhos e, como nesta experiência relatada por SILVA (1985,
p.241), o próprio professor tem que comprar e fornecer os gibis, se quiser realizar
um trabalho efetivo. Nesse sentido, é importante ressaltar que muitos quadrinhos
alternativos e de boa qualidade têm um custo relativamente elevado, sendo pouco
acessível para grande parte da população. Por outro lado, alguns dos quadrinhos
mais baratos possuem uma circulação maciça, mas exigem uma atenção especial
por parte do professor em relação ao trabalho pedagógico, em função do
conteúdo por ele abordado, de sua qualidade gráfica ou temática, além de uma
28
série de outros fatores que podem se centrar, exclusivamente, no atendimento da
demanda e das necessidades mercadológicas.
Um outro elemento fundamental para a nossa pesquisa e abordado na
experiência de Zélia Lopes da Silva, é o fato de que, para os alunos, os
quadrinhos podem ou não auxiliar na compreensão do conhecimento histórico
pois, para eles:
... duas leituras possíveis para o quadrinho. Aquela que o distingue de outros textos
históricos e uma outra que o identifica com a própria produção historiográfica. Alinha-
se na primeira posição aqueles que acham que “a estória em quadrinhos não relata
nitidamente o que aconteceu naquela época. Todas as brincadeiras atrapalham muito
o entendimento da estória.
E é muito difícil encontrar o fato real no meio de tantas brincadeiras.”[grifo nosso]
Para a segunda interpretação “a criação de personagens cômicos, deu interesse maior à
aprendizagem da História. Na opinião do grupo é uma história agradável e divertida e
um modo fácil de aprender”.
Seguindo essa mesma linha, outro grupo diz que “foi uma história muito interessante,
pois sendo em quadrinhos se tornou mais fácil o entendimento...” (SILVA, 1985,
p.243).
As duas vertentes são bastante interessantes, ainda que diametralmente
opostas. E é esta oposição que nos leva a refletir acerca do papel dos quadrinhos
como meio de comunicação seja válido para a formação da ou de uma
consciência histórica. Isso em função de que, os próprios alunos ou uma parte
deles – ressaltam o fato de que a presença do humor nos quadrinhos pode
comprometer ou relativizar a possibilidade de uma verdadeira aprendizagem que,
sabemos, tem sido historicamente relacionada à seriedade de informações, à
busca de fidelidade histórica e a uma postura tradicional.
Ainda em relação ao trabalho de Zélia SILVA (1985, p.245), a autora
destaca o fato de que, apesar de todas as considerações e do envolvimento com o
trabalho dos quadrinhos por parte de uma boa parcela dos alunos, a maioria deles
deixou em branco a questão da prova que se referia à atividade com Asterix e que
tinha um valor alto, de 3 pontos na avaliação. A pesquisadora surpreendeu-se
com esse procedimento, que não teve uma explicação palpável.
29
Por outro lado, leva-nos a considerar determinadas questões centrais nesta
pesquisa, como a relação entre o conhecimento histórico e os quadrinhos, o papel
do humor em relação à aprendizagem e a representação do que seja, de fato, para
alunos e professores, uma “boa aula”, com aprendizagem efetiva. Afinal, não
estariam os alunos deixando de participar do exercício por medo ou insegurança
de “ousar”, através de uma atividade pouco comum no cotidiano escolar?
Ainda na cada de 1980, outras análises forma feitas. Em 1985, Marco
Aurélio Pereira escreve “O gibi como recurso didático”, no qual analisa a
importância dos quadrinhos no ensino. Para ele:
No ensino de história, o gibi pode ser usado tanto como recurso pedagógico ou como
fonte histórica [grifos nossos]. Em ambos, o professor tem a função de levar o aluno a
problematizar a realidade histórica partindo de uma leitura crítica das relações
estabelecidas no universo da história em quadrinhos. (PEREIRA, 1985, p.83)
O autor salienta que, por ser um meio de comunicação acessível a todas as
crianças e jovens, o gibi torna-se um valioso recurso didático a ser utilizado no
estudo de valores aceitos socialmente, na análise de personagens e suas
características, ao se analisar a presença de estereótipos, nos modelos de
comportamento, no grau de desenvolvimento tecnológico atingido pelo
quadrinho. Em seguida, Marco Pereira estrutura o projeto de um trabalho –
dividido em 6 fases a ser desenvolvido com alunos no ensino de História, de
e graus o que corresponde ao ensinos fundamental e médio. O projeto segue
fases como a problematização, a partir das dificuldades e/ou interesses
apresentados pelos alunos, a escolha do gibi, interpretação dos quadrinhos, a
retomada do problema, a pesquisa bibliográfica e a conclusão do trabalho.
Também oferece algumas orientações para o trabalho dos quadrinhos como fonte
histórica e a pesquisa com referenciais bibliográficos convergentes.
30
Uma sugestão apresentada pelo autor para o estudo de conteúdos
específicos de História é a da leitura e análise de Asterix, o Gaulês, quadrinhos
abordados também no artigo de Zélia Silva, e por outras experiências
disponibilizadas, inclusive em sites da Internet. Na página ACORDE
21
formação continuada de professores o artigo “Asterix e Obelix na escola”
oferece uma orientação metodológica de trabalho com os personagens de Uderzo
e Goscinny, nas disciplinas de História e Geografia. Mas qual seria a razão do
grande interesse dos quadrinhos de Asterix nos encaminhamentos do ensino de
História? O artigo busca responder a esta questão e propor possíveis abordagens
metodológicas, oferecendo sugestões de encaminhamento para cada um dos 30
fascículos produzidos:
O motivo, além das histórias divertidas e dos roteiros bem amarrados aos belos
desenhos, é a riqueza de detalhes históricos e geográficos que podem ser utilizados
dentro de sala de aula. Usar as HQs para despertar o interesse pela disciplina de História
e Geografia é uma arma eficaz e pode ser feita de maneira simples. Cabe ao professor
idealizar a melhor forma, mas entre outras, pode-se, por exemplo, fazer com que o aluno
compare as brincadeiras do livro aos fatos históricos reais; sugerir a pesquisa dos deuses
das mais diversas mitologias nos exemplares das aventuras de Asterix, o Gaulês, ou
simplesmente ler a história em conjunto com a sala para interessá-la nos fatos
retratados... (ASTERIX E OBELIX NA ESCOLA, 2004, p.1)
Marlus Rogério Santos também propõe a vinculação entre História e
quadrinhos. Em “Quadrinhos em História”, artigo publicado no XXII Simpósio
Nacional de História, realizado em João Pessoa, utiliza-se de revistas em
quadrinhos de várias nacionalidades como fontes documentais, relacionando
“acontecimentos históricos e as formas de expressão dos quadrinhos”. Para
SANTOS (2003):
Utilizada como veículo de aglutinação das massas, esta forma de expressão é uma fonte
de pesquisa da sociedade e ao mesmo tempo se utiliza da mesma para se completar,
que em muitas oportunidades, o que está ali retratado somos nós, como as pinturas nas
cavernas, na antiguidade; os quadros na renascença e as charges no período moderno de
nossa história, numa verdadeira via de mão dupla. E é essa via de mão dupla que nos
permitiu estudar a sociedade, que por sua vez, serve de base para a história. Porém,
antes de ser uma fonte de pesquisa e estudo, os quadrinhos são um veículo de
descontração, e sua proposta inicial (...) é de passar o tempo e se divertir.
21 Página disponível em: <http://hq.cosmo.com.br/textos/educacaoteses/ed_gibi_exp2.shtm>.
31
Tanto na experiência relatada por Zélia Silva, como no artigo de Marlus
Santos, fica-nos evidenciada a importância dos quadrinhos para a História, seja
como recurso ou fonte documental e, principalmente, registra-se a necessidade de
atenção e cuidado que o trabalho merece, em função da presença de objetivos
distintos entre o saber histórico escolar, que busca a formação e elaboração do
conhecimento histórico formal e a linguagem dos quadrinhos, cuja maior
finalidade é o entretenimento, ainda que também seja um meio de informação e
representação social.
O conhecimento histórico, ao ser quadrinizado, passa por determinadas
alterações, tanto na adaptação do conteúdo à forma quanto na criação de novas
relações entre o sujeito do conhecimento e o seu suporte. De um momento
trazido da memória ou descrito através de um texto narrativo, torna-se
cristalizado em quadros sucessivos que, isoladamente, não detêm um sentido
global. Transpõe-se, assim, a linearidade dos textos tradicionais, oferecendo ao
leitor a aproximação com uma outra perspectiva, obtida a partir da representação
visual, da expressão fisionômica dos personagens, suas ações, seus diálogos e
pensamentos. O leitor pode reconhecer-se nos personagens representados,
identificar-se com suas causas ou repudiar as atitudes expressas na trama.
Além dessa atenção despertada pelo aspecto visual predominante nos
quadrinhos, a combinação existente entre texto e imagem é outro elemento
facilitador na linguagem. SANTOS (2001, p.48) assinala que “... a linguagem
característica dos quadrinhos e os elementos de sua semântica, quando bem
utilizados, podem ser aliados do ensino.” É nesta concepção que ABRAHÃO
(1977, p.150-151) afirma que:
A seriação de quadrinhos, que se assemelha a uma lenta projeção cinematográfica (...)
assume o caráter de verdadeiro relato visual ou imagístico, que sugestivamente se
integra com as rápidas conotações do texto escrito, numa perfeita identificação das duas
formas de linguagem: a palavra e o desenho.
32
Por outro lado, Waldomiro VERGUEIRO (2003) destaca a necessidade de
determinados cuidados e critérios na utilização dos quadrinhos, em relação à
familiaridade e ao conhecimento desta linguagem, à disponibilidade dos produtos
e também no que se refere às características próprias da disciplina e do ensino da
História, visto que:
Nem todos os autores têm uma preocupação especial em retratar fielmente os ambientes
históricos específicos, caracterizando de forma apropriada costumes, hábitos,
vestimentas, locais ou regimes políticos dominantes. Além disso (...) a maioria dos
produtos em quadrinhos disponíveis no mercado (...) constitui-se em veículo de
entretenimento, buscando (...) a criação de um vínculo prazeroso com o leitor e
atendendo a suas necessidades lúdicas.
Todas as produções destacadas representam valiosas contribuições para o
campo das pesquisas e do ensino de História. Mas, há ainda outras e novas
possibilidades de estudos a serem desenvolvidas, pois pouco se tem feito em
relação à análise dos quadrinhos e sua articulação com o conhecimento histórico.
Não temos a pretensão de dar conta de todas essas questões relativas ao
trabalho pedagógico com quadrinhos no ensino de História, mas de problematizá-
las, analisá-las, buscando contribuir, na medida do possível, na ampliação das
discussões pedagógicas no campo do ensino da História.
33
2 CONHECIMENTO HISTÓRICO E HISTÓRIAS EM
QUADRINHOS
A história humana não se desenrola apenas nos campos de
batalha e nos gabinetes presidenciais. Ela se desenrola
também nos quintais, entre plantas e galinhas, nas ruas de
subúrbios, nas casas de jogos, nos prostíbulos, nos colégios,
nas usinas, nos namoros de esquinas. Disso quis eu fazer a
minha poesia, dessa matéria humilde e humilhada, dessa vida
obscura e injustiçada, porque o canto não pode ser uma
traição à vida, e só é justo cantar se o nosso canto arrasta
consigo as pessoas e as coisas que não têm voz.
Ferreira Gullar
Neste capítulo analisaremos construções teóricas relativas à consciência
histórica e à circulação social do conhecimento e da cultura histórica, sobretudo a
partir das representações presentes nas histórias em quadrinhos, que constituem
uma linguagem de significativa importância na sociedade contemporânea, ainda
que pouco explorada pelas pesquisas referentes à educação e ao ensino da
História.
2.1 OS FOCOS DA CONSCIÊNCIA HISTÓRICA
Como destacamos anteriormente, o ensino de História não está
assentado numa concepção harmônica ou linear. As múltiplas versões e
relativização dos fatos, os confrontos ideológicos, os subjetivismos e valores
sociais são elementos que caracterizam este caleidoscópio que vem a configurar a
narrativa e a disciplina de História. Nesta ótica, os diferentes conceitos e
mundivisões que a norteiam podem auxiliar o processo de consciência e
construção histórica individual e coletiva, bem como podem ser um excelente
instrumento de dominação e legitimação social.
Marc FERRO (1989) destaca que, mais do que nunca, a história tem se
configurado como um campo de enfrentamento ideológico, presente não apenas
34
na academia ou na escola, como também na mídia, em seus mais distintos
veículos: televisão, cinema, quadrinhos, literatura e outros meios. Por se tratar de
um campo de poder, a História é disputada e colocada sob vigilância pelas muitas
instituições que objetivam o controle social, seja o Estado, a Igreja ou a própria
sociedade.
Assim, impõem-se os critérios de censura e autocensura, em relação às
questões que possam ameaçar ou comprometer os referenciais e as imagens que a
sociedade possa ter de si mesma e engrandecer determinados feitos que a
legitimem. Para ilustrar essa afirmação, consideremos como exemplo o caso de
Joana d’Arc. No século XV, quase que uma total desconsideração pela
personagem. Afinal, para que o rei possa ser, efetivamente legitimado como
soberano, não pode ser ajudado por uma “feiticeira”, “santa” ou “donzela”. O que
ocorre, então, é a versão de que o rei havia “permitido” o auxílio de Joana.
Posteriormente, surge a versão religiosa, que resulta do fortalecimento de acordos
entre Igreja e Estado. Nesse caso, a personagem torna-se uma heroína cristã
vitimizada pelos ingleses. Então, eclode a Revolução Francesa e a história laica
se torna imprescindível, enquanto a religiosidade se torna menos presente.
Por fim, no início do século XX, em 1904, é feita ainda uma nova
leitura, que isenta os ingleses por qualquer responsabilidade no processo contra
Joana d’Arc. Esse é um exemplo dos usos e manipulação dos discursos, em
diferentes momentos históricos.
Na história tornada oficial, estabelece-se uma verdadeira hierarquia de
fontes e documentos considerados oficialmente válidos. Em primeiro lugar,
figuram “os textos sagrados, documentos únicos, expressão de seu poderio:
autógrafos e éditos reais, discursos políticos, referências bíblicas...” (FERRO,
1989, p.24). Em seguida, vêm os decretos, leis estatísticas oficiais e, finalmente,
“... as fontes públicas, a imprensa, os escritos de testemunhas anônimas e simples
cidadãos...” (FERRO, 1989, p.25). Nesse modelo, não há espaço ou consideração
por elementos como músicas, filmes, imagens ou outras formas de comunicação,
a menos que sejam utilizadas como meios de comunicação oficial.
35
Ao mesmo tempo em que se constrói uma gama de referenciais
institucionalizados, nascem as lacunas, os silêncios e lapsos, frutos de uma
história não ouvida, não creditada. Das contradições e dos choques entre as
instituições e a história, e das lutas que m por objetivo ouvir e conhecer as
vozes desta contra-história, podem ocorrer mudanças que vem a alterar a noção
de legitimidade histórica.
Assim a contra-história, de uma história negada, dos vencidos, constitui
também um foco histórico. Muitas vezes, em função das batalhas travadas pela
legitimidade do fato, a contra-história e os balbucios iniciais, passam a ser
incorporados, substituem ou alimentam as versões da história oficial. Trata-se do
que Walter BENJAMIN (1985, p.225) escreveu, a saber, que articular
“historicamente o passado não significa conhecê-lo como ‘ele de fato foi’”.
Assim, são inúmeros os focos da consciência histórica, no confronto entre as
narrativas, os silêncios, os ruídos e balbucios sociais.
É apenas através da narrativa acerca do passado que se constrói a(s)
consciência(s) histórica(s) de uma sociedade. Entretanto, tantos focos
emissores de narrativas acerca do passado e de importância tão grande, que as
instituições dominantes, sobretudo o Estado, esforçam-se por controlá-los. É o
caso de produções literárias, das festas comemorativas e das inúmeras mensagens
veiculadas pela mídia. Segundo FERRO (1989, p.60):
Ao mesmo tempo difusos e esparsos, outros focos produzem obras que contribuem para
a constituição da consciência histórica: as dos escritores, artistas, autores de óperas,
cineastas. Quanto mais antigas são as suas raízes, mais a sua obra marca a consciência
que as sociedades têm de sua identidade, de sua evolução, pois essa permanência
contrasta com a natureza e a opinião mutáveis das obras propriamente históricas cujo
julgamento varia de acordo com a própria realização da história
.
Assim, a consciência histórica possui inúmeros focos de constituição, que
não se restringem aos limites acadêmicos. É o caso de sua constituição nas obras
populares ou mesmo naquelas que apresentam conteúdo massivo e que, por
possuir um componente histórico explícito, por muitas vezes passam a substituir
as obras de eruditos e historiadores. Como exemplos, podem ser citadas as peças
36
de Shakespeare, ao retratar a Inglaterra do século XV, e que acabam servindo de
referência às pesquisas e consultas científicas, evidenciando-se por mais de
quatro séculos. Assim como Shakespeare representa a herança inglesa, Wagner o
faz com a Alemanha. E a França? Segundo FERRO, na ausência de um autor
shakespeareano, busca-se a versão de Alexandre Dumas ou Júlio Verne. Ou
ainda, as versões que ocorrem via quadrinhos:
Outro canal é a história em quadrinhos que, há muito tempo, toma a História mais como
um quadro do que como um tema. Do contemporâneo, passa sub-repticiamente a um
passado mais distante; da família Fenouillard a Tintin e, hoje, a Asterix, a maior tiragem
entre as publicações francesas, com mais de trinta milhões de exemplares vendidos.
Na verdade, embora faça algumas incursões a tempos pós-gauleses, Asterix permanece
o herói de uma época pouco disputada... O medo da História, na França, dessa forma
aparece de novo, seja qual for a forma de narrativa escolhida. (FERRO, 1983, p.132)
Observa-se que são inúmeros os meios que veiculam um forte apelo em
relação às representações de passado ou de tempo e que, de alguma forma,
podem contribuir para a formação de uma consciência histórica, que extrapola as
produções existentes nos manuais e livros didáticos ou o ensino ministrado em
escolas e academias.
2.2 CONSCIÊNCIA HISTÓRICA E VIDA COTIDIANA
Mas o que seria essa consciência histórica, propriamente dita? Para
obtermos maiores subsídios, buscamos referenciais na formulação teórica de Jörn
Rüsen, ao abordar a formação do pensamento histórico, na vida prática. Para
Rüsen, a consciência histórica não é um estado da consciência ou atributo mental
de especialistas ou dos indivíduos formados nas academias e cursos de História.
É, na verdade, algo inerente ao ser humano, em sua própria condição de
existência cotidiana. Assim, todos acabam desenvolvendo uma consciência
histórica, a partir de sua inserção no mundo. Essa consciência pode ser percebida
como um fenômeno prático e vital, que não se restringe a critérios seletivos como
classe social, relações de gênero ou espaços pré-determinados, tomando a escola
37
por exemplo. Mas qual seria a distinção entre o pensamento histórico cotidiano, e
o saber produzido academicamente? CERRI (2001, p.100) aponta:
... o pensamento histórico vinculado a uma prática disciplinar no âmbito do
conhecimento acadêmico não é uma forma qualitativamente [grifo nosso] diferente de
enfocar a humanidade no tempo, mas sim uma perspectiva mais complexa e
especializada de uma atitude que, na origem, é cotidiana e inseparavelmente ligada ao
fato de estar no mundo.
Essa perspectiva rompe com uma percepção elitista da História, na vida
humana. Afirma RÜSEN (2001, p.54 e 56): “São as situações genéricas e
elementares da vida prática dos homens (experiências e interpretações do tempo)
que constituem o que conhecemos como consciência histórica”. E mais: “A
consciência histórica é a realidade a partir da qual se pode entender o que a
história é, como ciência, e por que ela é necessária.”. Assim, de forma natural ou
científica, cotidiana ou sistematizada, todo e qualquer ser humano, em qualquer
contexto histórico ao longo de sua existência e vida práticas, concretiza em si a
consciência histórica, através de operações mentais, que acabam por gerar
resultados cognitivos.
A formulação de Rüsen busca desvelar a questão da ciência da história
através do cotidiano dos homens e constituir a história enquanto ciência a partir
dessa vivência. Pois: “... todo pensamento histórico, em quaisquer de suas
variantes (...) é uma articulação da consciência histórica.” (RÜSEN, 2001, p. 56).
A consciência histórica será analisada como fenômeno do mundo vital, ou
seja, como uma forma de consciência humana que está relacionada
imediatamente com a vida humana prática. É esse o caso quando se entende
consciência histórica como a síntese das operações mentais com as quais os
homens interpretam sua experiência da evolução temporal de seu mundo e de si
mesmos, de forma que possam orientar, intencionalmente, sua vida prática no
tempo. (RÜSEN, 2001, p.56-57)
O homem determina e é determinado por seu tempo. Influencia-o e é
influenciado por ele, e é nesse sentido que suas potencialidades e sua liberdade se
concretizam. É no processo de agir e sofrer que as mudanças temporais de si e
38
de seu mundo ocorrem. Ele não é um ser meramente passivo: o “superávit de
intencionalidade
22
caracteriza-se como um quadro temporal mais amplo, que
vai para além de sua própria experiência, pois projeta o mundo com base no que
não lhe está posto. É na dinâmica da intenção (o que é desejado), em
conformidade com a experiência (o que se tem como dado) que a consciência
histórica se articula efetivamente.
O indivíduo não age da maneira como deseja, mas de acordo com suas
possibilidades concretas. Ainda assim, é um ser transcendente à mera sucessão de
fatos e, estando esse sujeito inserido na vida cotidiana, o é possível tomar a si,
ao Outro e à Natureza como dados puros e prontos, mas sim através de
interpretações de suas ações e conseqüências no tempo e no mundo, de forma
dinâmica, em que se articulam as lembranças do passado, a interpretação e
vivência do presente e a intencionalidade projetada para o futuro. É assim que se
constitui a consciência histórica. A consciência humana migra ao passado, para
buscar respostas às necessidades presentes. então, o passado se torna história.
Como diz SEN (2001, p. 68): “... nem tudo o que tem a ver com o homem e
com seu mundo é história porque já aconteceu, mas exclusivamente quando se
torna presente, como passado, em um processo consciente de rememoração.”
A condição do homem no mundo é, desse modo, um processo de
constante exercício de interpretação e atribuição de sentido, em relação aos
acontecimentos passados. Essas rememorações são constantes, pois toda e
qualquer interpretação ocorre a partir de seus referenciais, suas vivências e
perspectivas. Esse dado configura-se como um elemento fundamental para o
ensino de História, ao analisar como pessoas “comuns”, o especialistas,
contam e pensam os conteúdos e conhecimentos que fazem parte da história
humana. E tais representações estão presentes, sob inúmeros focos, circulando
socialmente nas escolas e no meio acadêmico, em manuais escolares e também
22 Expressão utilizada por Rüsen (2001).
39
em narrativas ficcionais, nos romances, no cinema, nos quadrinhos e nas músicas
populares executadas nas estações de rádio.
As representações acerca da história e do passado, entretanto, apesar de
dinâmicas, mutáveis e de se inter-relacionarem, não indicam um convívio
harmônico. Trata-se de um campo de poder e de confronto, pela supremacia de
uma narrativa. Afinal:
Controlar o passado ajuda a dominar o presente, a legitimar tanto as dominações como
as rebeldias. Ora, são os poderosos dominantes Estados, Igrejas, partidos políticos ou
interesses privados que possuem e financiam veículos de comunicação e aparelhos de
reprodução, livros escolares e histórias em quadrinhos, filmes e programas televisivos.
Cada vez mais entregam a cada um e a todos um passado uniforme. (FERRO, 1989)
Ferro formula, ainda, a idéia de que a História aprendida na infância está
intimamente ligada à constituição da auto-imagem pessoal, coletiva e à imagem
de outros povos, ou seja, à construção da identidade e da alteridade; por mais que
adicionemos outras idéias e informações, essa “primeira impressão” permanece
em nós como marca indelével, influenciando as impressões futuras.
Assim, se por um lado, torna-se inegável a forte influência exercida pela
história oficial
23
, sobre todo indivíduo integrante de uma sociedade caracterizada
pela disputa e manutenção do poder, ao mesmo tempo essas versões oficiais não
são totalmente controladas. E, ainda que, nas escolas, estejam didatizadas por
certo rigor curricular, tais narrativas acabam por extrapolar – nas sociedades
marcadas pela forte presença midiática a unicidade em termos de concepção, o
que acaba por nos propiciar um mosaico perceptivo acerca das questões
históricas.
Como afirma CERRI (2001,
p. 107):
... é comum encontrar opiniões divergentes sobre a história entre o âmbito oficial,
incluindo aí a escola, e os alunos que se relacionam com essas esferas, o que nos conduz
para a conclusão de que a formação histórica dos alunos depende apenas em parte da
escola, e que precisamos considerar com interesse cada vez maior o papel dos meios de
23
Entendemos que a história oficial não se limita à questão do Estado Nacional, mas que se trata
de uma construção fundamentada a partir de versões referendadas por instituições ou grupos que
possuem certa parcela de poder (Estado, Igreja, mídia, partidos políticos...).
40
comunicação de massa, da família e do meio imediato em que o aluno vive se quisermos
alcançar a relação entre a história ensinada e a consciência histórica dos alunos.
Essa afirmação é corroborada por GARCÍA (1998, p.280), ao destacar a
importância de se perceber que a aprendizagem histórica não se limita aos
espaços escolares, ao argumentar que: Las consecuencias prácticas son
importantes, ya que se reconece que los estudiantes no llegan com la mente vacía
al aula y que la escuela no es la única instancia (y quizá ni siquiera la más
importante) del aprendizage histórico”. Assim, nem professores são “doadores do
conhecimento”, nem alunos o ... receptores passivos do discurso pedagógico
legitimado e legitimador de conhecimentos considerados como únicos e
inquestionáveis.” (CITELLI, 2002, p.22)
As determinações concebidas em uma perspectiva hegemônica de mera
transmissão de informações, seja pela imposição das experiências formadoras da
escola, seja pela atribuição excessiva de poder dos media, são relativizadas no
processo de aprendizagem. “... numa dupla operação de desconexão e
recomposição” (MARTÍN-BARBERO, 1997, p.262), em que os indivíduos
passam a atribuir diferentes significados a partir de suas subjetividades e
vivências, na família, na escola, na igreja, nos grupos e comunidades (CITELLI,
2000).
A informação e o conhecimento advindo dos meios em nossa sociedade
têm sido cada vez mais freqüentes na vida social contemporânea. Nesse aspecto,
não se trata de supervalorizar a presença dos meios, em bases apocalípticas ou de
endeusamento, e tampouco de subestimar a função social da escola, mas de
perceber que muito do que é vivenciado no cotidiano escolar, é visto e abordado
também pelos meios de comunicação, como a televisão, as revistas e os
quadrinhos e, desse modo, cabe também à escola dialogar com as diferentes
linguagens.
É a partir dessas pontuações que vamos relacionar o ensino de história, o
uso e a circulação social sob diferentes formas, e o fenômeno cultural das
histórias em quadrinhos, linguagem selecionada para a pesquisa.
41
Para o professor de história, toda essa gama de elementos, as mudanças na
narrativa histórica, a contra-história, o ritmo e a velocidade das informações,
constituem grandes desafios, em função de sua distinção com a dinâmica escolar.
A presença dos meios, enquanto veículos portadores de conhecimento e de
consciência histórica, trazem novos dados, necessidades e questões para o
exercício pedagógico.
Nesse aspecto, centramos nossa análise em um meio que tem, ainda, sido
pouco abordado em pesquisas relativas ao ensino de história, mas presente junto
a crianças e jovens em idade escolar, que são as histórias em quadrinhos. Através
da expressão desta linguagem, a história passa a ter outras possibilidades de
representação, e através do contato com sua leitura, o indivíduo imerge em
distintas percepções, que vão desde concepções tradicionais ou didaticamente
próximas àquelas presentes nos manuais escolares, até perspectivas mais
ousadas, com abordagens livres e bastante pessoais, indicativas de transgressão,
no que se refere à história oficial, e fomentadoras da construção de uma
consciência elaborada a partir da contra-história. Tudo isso, simultaneamente
permeado por uma linguagem que mescla texto com desenho, ritmo e dinâmicas
que, por si só, acabam por envolver o leitor, numa abordagem distinta de
documentos cuja representação seja exclusivamente escrita.
Parte da historiografia tem se debruçado sobre a linguagem dos
quadrinhos, por considerar sua importância em relação ao conhecimento histórico
que por eles circula. Exemplo disso é FERRO (1983), citado anteriormente,
que traz a questão da construção da identidade nacional e das representações
históricas, construídas através de meios como o cinema e as HQs. Outro
historiador que faz análise dos quadrinhos é Vovelle, em seu livro Imagens e
Imaginário na História (1997). Nele, através da personagem Mulher-Maravilha,
analisa a sociedade e os valores representados e defendidos pela cultura norte-
americana, como a democracia, sobretudo. As aventuras da heroína salvam o
mundo de uma barbárie iminente, ao mesmo tempo em que a mulher integra-se,
de modo inquestionável, a uma sociedade predominantemente masculina e
42
masculinizada. Vinda da Ilha Paraíso, no Triângulo das Bermudas, a princesa-
amazona é sempre feminina, mas capaz de “travar batalhas como um homem”.
Apresentando-se de forma casta e desnuda, a personagem não ameaça a
sociedade em que escolheu viver, ao contrário, para VOVELLE (1997, p.401)
representa uma “... homenagem ambígua à deusa-mãe-protetora dos valores
liberais...”. O autor chama a atenção para a análise das histórias em quadrinhos,
mesmo para aquelas que, aparentemente, não devam ser levadas em
consideração, por serem caracterizadas como superficiais ou pouco significativas
do ponto de vista acadêmico, como os quadrinhos de cunho comercial. Para ele:
... não existe discurso insignificante. As mais gratuitas criações com vistas ao
divertimento dos jovens ou de seus pais são portadoras de todo um feixe de signos,
desde o discurso oficial, expressão de boa consciência triunfante e franqueada (...) até as
revelações mais secretas e inconscientes. (1997, p. 401).
Além dessa questão, Vovelle destaca, em outro texto de seu livro, as
representações de 85 histórias em quadrinhos anglo-saxônicas, ítalo-francesas e
norte-americanas, para temas como a morte e o além-mundo, seus heróis e suas
criaturas. Aqui, o historiador justifica sua opção pelos quadrinhos como
elementos de análise, como resultado de um grande trabalho e pesquisa diante do
tema da morte. Argumenta o autor (1997, p.371): “Ao finalizar esse estudo, e
chegando ao exame de nossas próprias representações, a história em quadrinhos
(HQ) se impôs à minha atenção como uma fonte de cultura popular indispensável
ao historiador do século XX.”
24
Para construir sua pesquisa, Vovelle utiliza-se de quadrinhos como
Drácula, Vampirella e o Motoqueiro Fantasma, entre outros. Em sua análise, o
autor ressalta a pequena presença de Deus nos quadrinhos, citado apenas de
forma breve, como princípio da Criação, e do diabo, que se liga aos personagens
em função de suas culpas e suas transgressões. Já a presença da morte, que
adquire forma e personalidade, é bastante freqüente, assim como os fantasmas,
24
Lembremos que o livro de Vovelle foi escrito, originalmente, em 1987, sob o título Immagini
e immaginario nelle storia Fantasmi e certezze nelle mentalità dal medoevo al Novecento,
sendo portanto, uma análise acerca do imaginário coletivo até o século XX.
43
que ocupam um lugar de destaque, particularmente em países de tradição
protestante que, por rejeitar o purgatório, podem valorizar a presença dos mortos-
duplos
25
.
Além dessas questões, Vovelle propõe análises de vários elementos
comparativos entre HQs de diferentes países e culturas, em se tratando de temas
como a sexualidade, a culpa, a morte e seus ritos e tradições. Afinal, destaca o
historiador: “As HQ convidam-nos finalmente a uma leitura sem dúvida
deformada, mas significativa, do cotidiano da morte e, em certos aspectos, do
cotidiano da vida.” (1997, p. 381). E salienta ainda (1997, p.383): “Essa HQ (...)
reintroduz a angústia do cotidiano, que se expande até assumir as obsessões de
nosso tempo, sem fabulações nem travestimentos”.
Vovelle reflete sobre o significado dos quadrinhos na sociedade, ao
indagar se representam uma literatura de alienação, ou se são fruto do imaginário
coletivo. Para tanto, analisa e discorre acerca da literatura macabra nos
quadrinhos (p.386-387):
... literatura angustiada, reflexo de criações fantásticas da atualidade, que, em
contraposição, difundiria seus produtos? Ou literatura de alienação, relaxante pela
válvula de escape que representa para as pulsões elementares (a HQ ítalo-francesa), ou
geradora da boa consciência e de uma nova ordem extraterrestre a preço acessível (a HQ
americana)? As duas pistas não são contraditórias, porém nos obrigam a formular o
problema quanto à maneira como foram recebidas essas novas mitologias de
contrabando, esse novo panteão derrisório. Quem as lê? Que se percebe neles? As
histórias ilustradas que o empregado nova-iorquino e os desocupados franceses e
italianos compram para matar o dio, além de ser uma ocupação lúdica de quinze
minutos, não são também o reflexo de um modo de sentir coletivo? Detenhamo-nos aqui
para propor um programa de pesquisas (...) É preciso modular segundo o contexto
geográfico: por que o relativo silêncio germânico e escandinavo? Por que as diferenças
chocantes entre a HQ latina ítalo-francesa e a HQ anglo-saxônica? Isso seria um
caminho para resgatar a história (...) Isso imporia sem dúvida uma reflexão sobre a
noção de cultura popular em uso no século XX.
Ao compreendermos que os quadrinhos, além de entretenimento, são
portadores de conhecimento e representações históricas, podemos dar
continuidade a essa reflexão em duas direções: sobre o uso intencional, político e
25
Vovelle ressalta que, na tradição anterior à cristianização medieval, os mortos-duplos são os
mortos errantes, que passam por uma transição entre a morte física e a separação definitiva com
o mundo físico.
44
social dos quadrinhos na construção de representações sobre a vida social e a
história, por parte de grupos que detêm ou disputam o poder, e sobre as
peculiaridades dos quadrinhos no estabelecimento de processos de comunicação
de massa, sua arte, estrutura, dinâmicas, enfim, sua linguagem.
2.3 OS QUADRINHOS E A DISCUSSÃO SOBRE SUA
UTILIZAÇÃO POLÍTICO-IDEOLÓGICA
Por serem veículos portadores de mensagens, representações e concepções
de mundo, os quadrinhos possuem inúmeras possibilidades de articulação
política e ideológica. Ao abordarem temas como cidadania, política e outros
valores sociais, as histórias transmitem mensagens, que podem se aproximar do
público leitor, na medida em que seus personagens inseridos em determinados
contextos – assumem posturas, defendem princípios, criticam sistemas. Essas
histórias têm sido historicamente utilizadas por instituições, entidades e
diferentes grupos sociais, na difusão de suas idéias, seus princípios, suas
representações sociais.
Sejam desenvolvidas de maneira mais crítica (como as histórias da
garotinha Mafalda), alternativa (como os quadrinhos para adultos, publicados a
partir da década de 1960), ou com objetivo de reproduzir e manter a estrutura
social nos mesmos patamares (como os quadrinhos de Walt Disney), as HQs m
cumprido, com êxito, uma função política, estendendo-se para além do simples
entretenimento.
Embora não seja objetivo desta pesquisa, aprofundar-se nas representações
ideológicas das histórias em quadrinhos, acreditamos que sua abordagem, ainda
que de modo sucinto, demonstre sua importância ideológica, ao longo da
História.
45
2.3.1
O
S SUPER
-
HERÓIS COMO INSTRUMENTOS DE PROPAGANDA POLÍTICA
Em fins da década de 1930, a indústria dos quadrinhos no Hemisfério
Norte, particularmente nos Estados Unidos, encontrava-se a todo vapor,
cativando uma parcela significativa da população, particularmente os mais
jovens, que viam nas aventuras e nas ações heróicas das HQs uma possibilidade
de fugir da realidade. Afinal, o clima do pré-guerra começava a apresentar seus
contornos, trazendo uma sensação de medo e insegurança ao cidadão comum.
Finalmente, em 1939, Hitler invade a Polônia, dando início à Segunda
Guerra Mundial. Diante do poder do nazi-fascismo, os heróis até então
apresentados parecem frágeis e inocentes demais. O imaginário na época exigia a
construção de uma nova perspectiva, mais realista e catártica. É nesse contexto
que é criado pelos jovens Joe Schuster e Jerry Spiegel, aquele que seria o
primeiro e maior expoente de uma longa lista de super-heróis que surgiriam o
Superman (Super-Homem). Vestindo roupa colante, e usando superpoderes que
incluíam a grande força e a habilidade de voar, o Superman conquistou
rapidamente o público leitor, enquanto salvava a humanidade de terríveis vilões.
Assim, enquanto milhares de jovens se alistavam e lutavam no front de batalha,
os quadrinhos ofereciam certa sustentação ideológica, representada em
balõezinhos repletos de mensagens antinazistas. Nesse exato momento, os
quadrinhos perdiam a ingenuidade e o caráter fictício e despretensioso que
caracterizavam os anos anteriores, para se transformarem em veículos
assumidamente panfletários.
O fato de os quadrinhos serem utilizados na luta contra o nazismo não foi
gratuito, afinal, se a “democracia e a ordem americana” encontravam-se
ameaçadas, parecia natural que os heróis americanos estivessem em cena,
combatendo o mal personificado, agindo de acordo com a moral vigente naquele
momento e para aquela sociedade. O objetivo das histórias deixava de ser o
entretenimento descomprometido para se tornar um elemento na busca pela
manutenção da ordem estabelecida, ainda que o super-herói tivesse de fazer uso
46
de recursos um tanto ilícitos, como espionar ou mesmo matar o oponente. Para
Umberto ECO (2001, p.54), “Essas histórias detonam uma série de mecanismos
gratificantes, dos quais o mais consolador é o fato de que tudo sempre acaba em
ordem. A presença dos super-heróis é a garantia para o bom funcionamento dessa
engrenagem”.
Graças à entrada do Superman no cenário dos quadrinhos, outros tantos
heróis engrossaram as fileiras do combate aos “vilões da vida real”. É o caso de
Batman, Thor, Mulher Maravilha e Namor, o Príncipe Submarino. A aceitação
do público foi imediata e, em pouquíssimo tempo, os “comic-books”
multiplicaram sua circulação e vendagem. Estima-se que, entre os anos de 1940 e
1945, tenha surgido uma média de 400 super-heróis.
26
A propaganda antinazista foi tão acentuada que Joseph Goebbels, Ministro
da Cultura Popular e da Propaganda Nacional Socialista da Alemanha, acabou
por fazer um discurso inflamado no Parlamento Alemão, no ano de 1942 (FEIJÓ,
1997, p.39), no qual acusava Superman de ser uma arma usada pelos judeus para
subverter o conceito de “super-homem” de Nietzsche, amplamente utilizado pelo
esquema ideológico nazista, de forma a legitimar o uso da força através do
poderio militar. Segundo MOYA (1986, p.146): “Goebbels o super-homem de
Nietzsche, ariano, über alles, ameaçado pelo viajante precursor da bomba V-2 de
Von Braun. E não teve dúvidas denunciou que o ‘S’ do peito da fantasia era
uma cruz de Davi: ‘O Super-homem é um judeu! ’”.
De todos os super-heróis criados com objetivo de doutrinação patriótica,
nenhum conseguiu retratar o ideal norte-americano, “da América para os
26
Nem todos os quadrinistas se rendiam aos apelos ideológicos e editoriais, naquele momento
histórico. Nos anos 40, eram criados os quadrinhos daquele que seria considerado como a maior
autoridade mundial dos quadrinhos, e do qual falamos anteriormente: “O Espírito” (The
Spirit), de Will Eisner. Para FEI (1997, p.45): “A (...) série Spirit (...), aplaudida como a
melhor de todos os tempos, está para os quadrinhos da mesma maneira que o filme Cidadão
Kane, de Orson Welles, está para o cinema.” MOYA (1977, p.68) também registra essa
semelhança, ao afirmar: “... sua obra era, curiosamente, similar ao Citizen Kane, de Orson
Welles em técnica expressionista da luz, enquadrações e do som.” E, finalmente, para LOPES
(1998, p.100), a comparação não é exagerada: “Basta pensar na montagem das histórias,
repletas de inovações gráficas e com uma estrutura narrativa diferente de tudo o que se fazia até
então.”
47
americanos”, melhor que o Capitão América. Criado por Jack Kirby e Joe Simon,
em outubro de 1941, e vestindo um uniforme com as cores, listras e estrelas da
bandeira americana, o super-herói tinha Adolph Hitler como maior inimigo. Suas
histórias consistiam em lutar contra os inimigos da “democracia e do sonho
americano”, fosse na figura de Hitler, da espionagem industrial ou do crime
organizado. Curiosamente, o Capitão representa, também, o início da crise dos
quadrinhos como elementos de manipulação política, social ou cultural. Após o
encerramento do conflito mundial, foi o primeiro dos super-heróis a manifestar
crises de consciência despertando, nos anos 50, os problemas existenciais de
muitos personagens, que passaram a questionar sua função no mundo. Dizia o
próprio Capitão: “Talvez eu devesse lutar menos... e perguntar mais” (BYBE-
LUITEN, 1987, p.35). Outros representantes desta crise seriam o Homem-
Aranha, sempre às voltas com problemas financeiros, e o alienígena Surfista
Prateado, eterno contestador impedido de sair da Terra, chocado, insatisfeito e
denunciador das condições de vida e existência que encontrava em suas andanças
pelo planeta.
Ao entendermos os quadrinhos como expressão de diferentes focos da
consciência histórica no mundo, compreendemos o porquê de tanta mudança no
conteúdo das histórias. Era o pós-guerra, e o clima de desesperança, insatisfação
e desencanto se fazia presente no cotidiano da maioria dos cidadãos que viveram
de perto o drama da guerra e seus resultados. Novas percepções acerca do mundo
atingiam a toda a sociedade, inclusive o universo dos quadrinhos. Eram os
problemas comuns, do homem comum, que se faziam presentes. A era hippie
proclamava a paz, o amor livre e a tolerância, em lugar das apologias à guerra e à
violência. Chegavam ao fim, desta forma, o messianismo e a crença no poder dos
heróis que a tudo venciam com o uso da força e dos superpoderes.
27
27
Com o advento da Guerra Fria, houve uma significativa queda nas vendas de quadrinhos, no
mundo todo. O pós-guerra fez com que a Europa atravessasse uma grave crise em seu mercado
editorial, atingindo, inclusive, a produção e a venda de HQs. Naquele momento, apenas as
aventuras de Tintin continuaram sendo publicadas, e passou a haver uma reação contra a
presença dos quadrinhos norte-americanos no continente europeu.
48
É importante assinalar que, apesar da crise dos quadrinhos de propaganda
de guerra, governamental ou social, essa utilização política o foi encerrada
definitivamente. Super-heróis como Capitão América, Thor e o Homem de Ferro
voltariam a ser utilizados como instrumentos de propaganda ideológica, durante a
Guerra do Vietnã, combatendo os “temíveis e inescrupulosos vietkongs” ou ainda
recentemente, quando heróis como Capitão América e Hulk se uniriam na
proteção aos cidadãos norte-americanos, após o ataque de 11 de setembro de
2001, ao World Trade Center, em Nova York (RIBEIRO, 2001). Mas é inegável
que a crítica social e o questionamento político ganharam sucessivamente espaço
no mundo dos quadrinhos, sobretudo com o surgimento das “graphic novels”
28
e séries críticas como as criações do quadrinista e jornalista maltês Joe Sacco:
“Área de segurança Gorazde: a guerra na Bósnia oriental”, de 2001, ou ainda,
“Palestina, uma nação ocupada”, de 2000. Estas novas publicações buscam
novas formas de abordar as relações sociais, indo além de perspectivas
tradicionais ou mesmo reacionárias.
Assim, não tem sido por acaso que críticas à ideologia presente nos
quadrinhos de aventuras e de super-heróis. Ariel DORFMAN e Manuel JOFRÉ
(1978, p. 94-95) afirmaram que tais histórias são grandes representações da
ideologia burguesa e da estrutura social capitalista. Dizem os autores:
A ideologia burguesa tem como função objetiva inverter a realidade. Nega a existência
de classes sociais, definindo os homens como um todo coerente e unido, por exemplo.
Ou, em outro momento histórico, não se preocupa em negar as classes sociais, as quais
aceita, senão que nega a luta de classes e propõe, em troca, a possibilidade de ascensão
social para alguns (...) O papel da ideologia é eliminar as contradições que os homens e
o sistema capitalista possuem. Nega ou deforma o fato histórico de que existem países
desenvolvidos e subdesenvolvidos (fixando o espaço das histórias em quadrinhos numa
terra de ninguém, como, por exemplo, nos casos do Oeste, da selva ou da Cidade Gótica
de Batman), nega a existência da burguesia e do proletariado (...), nega a transformação
social (...) nega a propriedade privada dos meios de produção (mostrando nos
quadrinhos apenas economias artesanais e primitivas), nega o trabalho explorado (fala-
nos sempre de aventuras), nega o sistema capitalista (colocando-nos sempre diante do
triunfo do Bem), nega as contradições históricas e sociais (convertendo-as em
problemas psicológicos de um indivíduo) (...) nega a dinâmica da dialética (propondo
28
Graphic novel ou romance gráfico foi uma expressão, se não criada, popularizada por Will
Eisner, para definir os quadrinhos com temáticas dedicadas ao público adulto, com objetivo de
explorar as potencialidades artísticas e literárias das HQs.
49
simples conflitos), nega as contradições insuperáveis do capitalismo (com o super-herói
superando os problemas de justiça), nega a história (mostrando um simples jogo de
ações), nega o poder nefasto do capital (assinalando que o dinheiro é uma recompensa)
(...), nega o social (ao mostrar os bons sempre sozinhos), nega a humanidade (colocando
o super-herói como um Messias que impõe a justiça e a ordem, convertendo-o em um
ser supratemporal dotado de poderes eternos) (...), nega a igualdade entre os seres
humanos (construindo um mundo baseado em ralações verticais de domínio)...
Para os padrões atuais, a obra pode parecer muito simplista, panfletária, ou
mesmo radical, por atribuir à mensagem um caráter determinista e suficiente
diante da alienação e passividade do sujeito. Essa perspectiva comunicacional,
que reduz as relações aos papéis de emissor-dominante e receptor-dominado, tem
recebido inúmeras críticas por teóricos como MARTIN-BARBERO (1997), que
destaca a importância e a complexidade das mediações, das atribuições de
sentido e re-significações constituídas por sujeitos protagonistas, em vez de uma
recepção passiva. Afirma MARTÍN-BARBERO (1997, p.16):
...a comunicação se tornou para nós questão de mediações mais que de meios, questão
de cultura e, portanto, não de conhecimentos mas de reconhecimento. Um
reconhecimento que foi, de início, operação de deslocamento metodológico para rever o
processo inteiro da comunicação a partir de seu outro lado, o da recepção, o das
resistências que têm seu lugar, o da apropriação a partir de seus usos. (BARBERO,
1997, p.16).
Apesar das críticas pertinentes, o livro Super-Homem e seus amigos do
peito”, de Ariel Dorfman e Manuel Jofré, permanece como uma obra de
referência por ter colocado em questão mecanismos ideológicos utilizados
historicamente, ao longo do desenvolvimento da gramática normativa das
histórias em quadrinhos, particularmente em relação aos quadrinhos de
aventuras. Evidentemente trata-se de uma abordagem insuficiente, tanto do ponto
de vista de sua interpretação da totalidade social, quanto perante o mercado de
quadrinhos da atualidade, composto por expressivas fatias em que as
contradições das sociedades encontram expressão.
50
2.3.2
W
ALT
D
ISNEY
:
INFÂNCIA
,
INDÚSTRIA CULTURAL E SEUS EFEITOS
IDEOLÓGICOS
Ao mesmo tempo em que super-heróis lutavam na frente batalha, expondo
aos jovens leitores a importância de um maior envolvimento político, Walt
Disney atingia os lares americanos, através de uma poderosa indústria do
entretenimento, representada por desenhos animados e histórias em quadrinhos.
Além de levar para as telas a magia e o encantamento de histórias infantis
como Branca de Neve (1937), Fantasia (1940) ou Bela Adormecida (1950), o
criador de personagens como Mickey e Minnie, Pateta, Tio Patinhas, Pato
Donald e sobrinhos, transformou em mundiais, valores tipicamente americanos, o
“american way of life”.
Seu sucesso é decorrente de um talento inegável, mas também resultado
das ótimas relações com os órgãos oficiais americanos, como o FBI, como
ressalta FEIJÓ (1997, p. 54). De fato, juntamente com John Wayne e Ronald
Reagan, Disney foi acusado de delatar possíveis comunistas, ou “inimigos da
América”, durante o período conhecido como “macarthismo”, ou “caça às
bruxas” nos Estados Unidos, em que se evidenciava um patrulhamento
ideológico de extrema direita, além das grandes perseguições políticas,
combatendo o suposto “avanço do comunismo”. De acordo com MOYA (1996,
p. 61), Walt Disney:
Testemunhou no Comitê de Atividades AntiAmericanas, em 1947. Expressou a opinião
de que os comunistas na indústria cinematográfica “realmente deviam ser banidos e
desmascarados, de maneira que todas as boas causas, neste país – todo liberalismo que é
verdadeiramente americano, – possam prosseguir sem a ameaça do comunismo”
.
Apesar das críticas, é inegável o fato de que a popularidade de Walter
Elias Disney era muito expressiva, a ponto de “Mickey Mouse” ter sido a senha
utilizada pelos soldados norte-americanos, durante a invasão da Normandia
(FEIJÓ, 1997).
De qualquer forma, no universo de Walt Disney, evidenciam-se valores
próprios da sociedade capitalista, como a poupança, a busca pelo lucro e pela
51
riqueza, a esperteza, etc. Tais valores encontram-se fortemente representados em
personagens como o Tio Patinhas, velho pão-duro que coloca o lucro e a avareza
como a mais sublime das “virtudes”; o Pato Donald, personagem representante
da classe média, sempre buscando a aquisição de bens de consumo, como uma
casa, carro ou novo eletrodoméstico, e o Gastão, que representa a sorte e o
sucesso. No mundo de Patópolis, a riqueza é obtida através do trabalho e da
economia e os trabalhadores são, geralmente, seres incompetentes que devem se
submeter ao poder dos mais capazes e espertos. GALEANO afirma:
O Pato Donald e seus sobrinhos difundem as virtudes da civilização de consumo entre
os selvagens, em algum subdesenvolvido país com paisagens de cartão-postal. Os
sobrinhos de Donald oferecem bolhas de sabão aos estúpidos nativos, a troco de pedras
de ouro puro, enquanto o tio Donald combate contra os foragidos revolucionários que
alteram a Ordem. (...) O mundo de Disney é o simpático zoológico do capitalismo:
patos, camundongos, cachorros, lobos e porquinhos cuidam dos negócios, compram,
vendem, obedecem à publicidade, recebem créditos, pagam prestações, cobram
dividendos, sonham com heranças e competem entre si para ter mais e ganhar mais.
(apud FEIJÓ,
1997, p. 56)
Também os autores Ariel Dorfman (citado anteriormente) e Armand
Mattelart produzem “Para ler o Pato Donald”, publicado originalmente em
1971, um livro considerado como das críticas mais ácidas em relação à obra de
Disney. Para eles:
No universo de Walt Disney ninguém trabalha para produzir. Todos compram, todos
vendem, todos consomem, mas nenhum desses produtos parece ter custado qualquer
esforço. A grande força de trabalho é a natureza, que produz objetos humanos e sociais
como se fossem naturais. A origem humana do produto é sumariamente suprimida. O
processo de produção desapareceu. A simetria entre a falta de produção biológica direta
e a falta de produção econômica não pode ser casual e deve ser entendida como uma
estrutura paralela única que obedece à eliminação de um proletariado a verdadeira
origem dos objetos, ou, no dizer de Gramsci, o elemento viril da história –, da luta de
classes e do antagonismo de interesses. Walt Disney expele o elemento reprodutor
social (e biológico) e fica com seus produtos amorfos, sem origem, inofensivos, sem
sangue, sem esforço, sem a miséria que esses produtos criam na classe proletária.
Walt Disney e seus veículos massivos de comunicação vêm funcionando anos como
“lavagem cerebral” de populações infanto-juvenis no mundo inteiro. E isso é ou não
assustador?... (DORFMAN; MATTELART, 2002)
52
Posteriormente, Ariel Dorfman e Armand Mattelart: “... reconheceram que
haviam exagerado nas críticas de seu livro.” (MOYA, 1996. p.35). Ainda assim,
em que se destaque o peso das influências deterministas das mensagens sobre a
passividade do receptor – tese contrariada pelos estudos atuais da Comunicação e
Educação a obra “Para ler o Pato Donald” continua a ser uma referência
fundamental nas análises sobre as relações no universo de Patópolis.
Mas o mundo de Disney não se restringe, pura e simplesmente, a uma
família de patos ávidos por consumo e aventuras. Tal reducionismo não
explicaria a riqueza de seus personagens que possibilitaram o estreitamento das
relações políticas entre os Estados Unidos e países da América Latina, durante a
chamada “política da boa vizinhança”.
Delineava-se o panorama da Segunda Guerra Mundial (1939-1945) e o
governo brasileiro tornava-se um forte aliado em Washington. Getúlio Vargas
desejava ardentemente construir uma usina siderúrgica, em Volta Redonda. O
Presidente Roosevelt sonhava construir uma estratégica base naval nestas terras.
A parceria resultou em um acordo frutífero e ambos obtiveram seus propósitos. O
estreitamento político entre os Estados Unidos e a América Latina era um projeto
em gestação, desde o início da cada de 1930. Com o advento do segundo
conflito, esta possibilidade pôde ser concretizada.
Carmen Miranda foi nosso melhor produto a ser exportado. Assim, “era
necessário que a América sorrisse mais para os amigos latinos.” Nelson
Rockefeller, coordenador de Assuntos Interamericanos, ligado ao Departamento
de Estado do governo Roosevelt, teria sido um grande incentivador da presença
de Walt Disney na política da boa vizinhança. Segundo ele: “Ninguém melhor do
que Disney para vender a nossa idéia de americanismo”. Assim, o “pai” do
Mickey e do Tio Patinhas foi chamado para criar personagens que pudessem
representar, de forma leve e bem-humorada, a “vida latino-americana”. Surgiram,
então, o galinho mexicano Panchito e o papagaio Carioca, considerado por
muitos como um personagem tipicamente brasileiro.
53
No que se refere à criação do personagem, existem várias versões. A
primeira delas, fala da inspiração de Disney na figura de um músico integrante do
Bando da Lua, grupo que acompanhava Carmen Miranda; outra que afirma
que a fonte inspiradora teria sido um passista da Escola de Samba Portela, que se
apresentou durante a viagem de Disney ao Rio de Janeiro, mas a hipótese mais
provável é de que teria sido o ilustrador J. Carlos o responsável pelos primeiros
esboços do papagaio. E assim, Carioca foi apresentado ao mundo, nos filmes
“Alô, amigos” (Saludos, Amigos) de 1943 e “Você foi à Bahia?(The Three
Caballeros), de 1945, em que o Pato Donald visita o Brasil. A partir desse
episódio, o Brasil exótico representado por Disney passa a ser mais conhecido
pelo mundo todo. Nesse país, não existem contradições ou problemas sociais. A
atmosfera é sempre amigável e permeada por um otimismo natural e constante.
Graças a tais fatores, Disney recebe a Ordem do Cruzeiro do Sul das mãos do
Presidente Getúlio Vargas.
Mas foi apenas a partir de 1950 que Carioca foi lançado em
quadrinhos, no Brasil. Se, desde seu início, o personagem era bem-humorado e
brincalhão, aos poucos foi adquirindo outros elementos que viriam a constituí-lo,
como o fato de ser paquerador, “folgado” e caloteiro, fugindo dos cobradores da
ANACOZECA (Associação Nacional dos Cobradores do Carioca). E a partir
da década de 1970, em plena Ditadura Militar, o papagaio boa-praça não podia
morar em um barraco no morro. Sendo um “legítimo” representante do País, o
era interessante que vivesse na favela, em um país cujo governo prometia acabar
com a falta de moradia. Assim, nosso personagem deixou “a vida de excluído”,
para morar em uma casa financiada pelo Banco Nacional de Habitação, o BNH.
Mais uma vez, os quadrinhos eram encarados como algo mais que puro
entretenimento. Diversão, sem dúvida, mas um divertimento recheado de
concepções, percepções de mundo e conteúdos sociais, históricos e políticos, que
acabam moldando ou contribuindo para a formação de uma “consciência
histórica”, uma mundivisão acerca da realidade experienciada. CIRNE (1977, p.
72) afirmava:
54
Sabe-se que um certo quadrinho atende às necessidades ideológicas da política direitista
(e sua repressão social e cultura): Tio Patinhas, Mickey (...) Super-Homem (...) Isto não
significa, contudo, que o quadrinho seja uma linguagem a serviço do capitalismo,
mesmo que ele seja usado, nestes casos precisos (e em outros), como uma fonte
concreta de imperialismos culturais. E econômicos. O novo quadrinho americano (...), o
novo quadrinho europeu (...) e o quadrinho do Terceiro Mundo (América Latina, África
e Ásia) já começam a colocar como no cinema e na literatura as questões que nos
interessam: questões que remetem às problemáticas políticas, sociais, econômicas e
culturais do nosso momento histórico. Questões que, ao nível do discurso artístico,
discutem a própria eficácia de uma linguagem nascida e desenvolvida no interior da
cultura de massa.
Considerando que Disney, hoje, não é mais uma pessoa, mas uma empresa
capitalista, um sujeito coletivo dotado de interesses econômicos intrincadamente
ligados com interesses ideológicos, diversos teóricos contemporâneos vêm dando
atenção à produção cultural dessa empresa e seu significado sobre a formação do
público, como é o caso de Henry GIROUX (1995), que verifica tendências de
uma visão branca, masculina e cristã nos desenhos da Disney, inadequados à
sociedade multicultural dos Estados Unidos da América.
2.3.3
O
S QUADRINHOS E O DISCURSO CONTRA
-
HEGEMÔNICO
:
POLÍTICA
,
EXISTENCIALISMO E UNDERGROUND
O que eu penso da Mafalda não importa.
Importante mesmo é o que a Mafalda pensa de
mim.
Julio Cartázar, 1973.
A utilização político-ideológica das histórias em quadrinhos, veiculando
princípios que ajudaram a sustentar governos e regimes políticos em diferentes
partes do mundo desde os super-heróis americanos, quadrinhos de Disney,
personagens quadrinizados de Mao Tsé-Tung – foi responsável por inúmeras
críticas sociais, denunciando o caráter alienante e pernicioso das revistas. O frágil
embasamento que estruturava tais críticas reducionistas e generalizadoras foi
superado com a publicação dos chamados “quadrinhos pensantes”
29
, em
29 Ao nos referirmos a “quadrinhos pensantes”, destacamos que essa classificação advém de
sua própria construção histórica, assentada em formulações ou tendências políticas e filosóficas
55
destaque a partir da década de 1950, momento em que os super-heróis não
exerciam o mesmo fascínio, conforme pudemos destacar anteriormente.
Nesse cenário, o norte-americano Charles Schulz cria Peanuts (1950) que,
no Brasil, recebe o nome de Minduim, ou Charlie Brown. Tratam-se de crianças
aparentemente comuns, mas extremamente questionadoras da sociedade em que
vivem, analisando o mundo, freqüentemente, a partir de ótica pessimista e
mordaz. O cãozinho Snoopy reflete questões de seu tempo e Charlie Brown
estaria sempre às voltas com dramas existenciais, encarnando o “típico
perdedor”, motivo de chacotas e crueldades, por parte das outras crianças do
grupo, como Lucy, Linus e Patty Pimentinha. A temática, para Schulz, é bastante
simples. A competitividade que caracteriza a cultura norte-americana e
poderíamos afirmar sociedade capitalista – faz com que estejamos mais próximos
de perdedores do que de vencedores. Para ele: “Enquanto um alegre vencedor é
sem graça, existem centenas de perdedores, que usam historinhas alegres para se
consolarem” (apud MOYA, 1986, p.185). Nesse sentido BIBE-LUYTEN (1987,
p.40) afirma: “O momento era propício para que este tipo de estória tomasse
conta dos quadrinhos (...). A década de 50 ficou conhecida pela fase do
quadrinho pensante ou intelectual.”.
Ainda na década de 1950, temos Recruta Zero (Beetle Bailey), de Mort
Walker. Nas histórias, retratava-se o cotidiano de um grupo de soldados no
quartel. Os quadrinhos representavam críticas ao militarismo e às relações sociais
calcadas no abuso de poder.
Nos anos de 1960, os valores despertados pela contracultura e pelo
movimento hippie trazem outras situações para o universo quadrinhístico. Novos
personagens e valores passam a ser apresentados, nos Estados Unidos, Europa e
América Latina. Na Europa, temos Barbarella (1962), do francês Jean-Claude
distintas, que buscam a construção de um pensamento autônomo, suplantando discursos óbvios
ou ajustes ideológicos do leitor a uma concepção social dominante. Utilizamo-nos de tal
expressão, por ser uma classificação popularizada por teóricos dos quadrinhos, como Bibe-
Luyten, entre outros.
56
Forest, uma versão feminina de Flash Gordon (FEIJÓ, 1997, p.68), defendendo
princípios como a liberdade sexual e o feminismo.
Dos Estados Unidos, Robert Crumb, considerado o maior e mais
controvertido desenhista underground de todos os tempos, e seu personagem,
Fritz the Cat (1965), cujas histórias contestatórias ao modo de vida americano
(american way of life) estavam impregnadas de sexo, política e drogas. Tais
histórias representaram uma revolução no gênero dos quadrinhos por conquistar
um público diferenciado: a geração contrária à Guerra do Vietnã, aos valores
tradicionais e ao consumismo. Ainda hoje, os quadrinhos de Crumb são
referências para qualquer pesquisador da área.
Mas a América Latina também se tornou responsável por grandes
momentos dos quadrinhos. Da Argentina vinham as historietas da Mafalda
(1964), de Quino, “... um grito vindo da América Latina contra o mundo
bombardeado de tanta maldade.” (BIBE-LUYTEN, 1987, p.41). Como Schulz o
fazia, também Quino utilizava-se do universo infantil para produzir suas severas
críticas sociais, mas estas eram construídas sob a ótica das contradições vividas
pela Argentina, e pela América Latina, como um todo.
Questões econômicas, políticas, ecológicas, as relações familiares e outras
tantas, constituíam o universo dos personagens de Quino: Mafalda, a garotinha
tagarela, questionadora e politizada, capaz de deixar seus pais perplexos diante
de suas avaliações sociológicas; Manolito, um ambicioso garoto de classe média,
cujo maior sonho era se tornar um comerciante bem-sucedido; Susanita, a menina
alienada e obcecada por dinheiro que almejava casar e ter filhos; e Felipe, um
garotinho sonhador e idealista.
Waldomiro VERGUEIRO (2005) salienta o fato de que Mafalda parece
ser apenas uma criança que diz o que pensa, com uma sinceridade
constrangedora. “...Uma sonhadora. Uma contestadora. Uma cínica.” Mas, sua
essência é muito mais do que possa aparentar:
... Em termos gerais, é apenas uma menina que vive na Argentina dos anos 1960, com
pais normais de classe média, que vai à escola, possui alguns amigos com quem realiza
as brincadeiras normais de toda criança e viaja com a família para a praia no período de
57
férias. No entanto, ela é muito mais do que esta simples descrição pode passar. Acima
de tudo, representa uma das personagens mais fascinantes que já apareceram nas
histórias em quadrinhos latino-americanas, personificando a insatisfação frente a uma
realidade social e econômica que, mais do que respostas, apenas desperta perguntas e
inquietações... (VERGUEIRO, 2005)
As comparações entre Mafalda e Charlie Brown parecem inevitáveis:
ambas tratam do universo infantil, e seus personagens estabelecem duras críticas
sociais e ao mundo construído pelos adultos. Mas existem diferenças
significativas em relação a cada um dos personagens, o que foi analisado e
descrito por Umberto ECO (1993):
A Mafalda não é apenas um novo personagem das histórias em quadrinhos: é o
personagem dos anos sessenta. Se, ao defini-la usamos o adjetivo “contestadora” não foi
para seguirmos a qualquer preço a moda do anticonformismo: A Mafalda é realmente
uma heroína “enraivecida” que recusa o mundo tal como ele é. Para compreender
Mafalda convém traçar um paralelo com outro grande personagem a cuja influência ela
evidentemente não se esquiva: Charlie Brown. Charlie Brown é norte-americano,
Mafalda é sul-americana (...) Charlie Brown pertence a um país próspero, a uma
sociedade opulenta, à qual procura se integrar desesperadamente mendigando
solidariedade e felicidade; Mafalda pertence a um país repleto de contrastes sociais que,
no entanto, nada mais quer do que torná-la integrada e feliz, algo que Mafalda recusa,
resistindo a todas as tentativas (...) Charlie Brown com certeza leu os “revisionistas” de
Freud e procura uma harmonia perdida. Mafalda provavelmente leu Che (...) Mafalda,
em todas as situações, é um “herói de nosso tempo”, o que não parece uma qualificação
exagerada para o pequeno personagem de papel e tinta que Quino propõe. Ninguém
nega que as histórias em quadrinhos (quando atingem certo nível de qualidade)
assumam a função de questionadoras de costumes e Mafalda reflete as tendências de
uma juventude inquieta, que assumem aqui a forma paradoxal de dissidência infantil, de
esquema psicológico de reação aos veículos da comunicação de massa, de urticária
moral provocada pela lógica dos blocos (...) que nossos filhos vão se tornar por
escolha nossa – outras tantas Mafaldas, será prudente tratarmos Mafalda com o respeito
que merece um personagem real.
Podemos afirmar, desse modo, que as tiras da Mafalda representam a
angústia social da América latina. Os quadrinhos de Quino – que em 1975 deixou
de fazer a Mafalda continuam, nos dias de hoje, mantendo a mesma atualidade,
pois os temas abordados como ecologia, consumo, política e cotidiano
permanecem como questões desafiadoras para a sociedade contemporânea.
58
2.3.4
O
S QUADRINHOS BRASILEIROS E A LUTA PELO RECONHECIMENTO
No Brasil, destacamos a produção nacionalista, presente na década de
1960, como A Turma do Pererê (1960), de Ziraldo, considerada a mais nacional
de todas as experiências quadrinhísticas (FEIJÓ, 1995, p. 62). O ambiente
brasileiro era representado pela Mata do Fundão, e a temática nacional
encontrava-se abordada pelo cotidiano de personagens como o Saci Pererê, o
índio Tininim, a onça Pintada Galileu, o Compadre Tonico, personificando o
homem interiorano, e as garotas Boneca de Piche e Tuiuiu. Segundo FEIJÓ
(1995, p. 63), as revistas do Pererê:
... atendiam a uma estratégia de marketing baseada na provável nacionalização das
histórias em quadrinhos – idéia debatida durante os governos de Jânio Quadros (1960) e
João Goulart (1961) -, isto é, haveria uma reserva de mercado para os quadrinhos
brasileiros. Essa era uma antiga reivindicação dos nossos artistas e parecia estar sendo
favorecida pelo momento político. Se a lei de nacionalização dos quadrinhos fosse
aprovada, o perfil do mercado mudaria completamente: as editoras que detinham
personagens brasileiros é que ganhariam dinheiro; e, quanto menor a concorrência,
maior o lucro.
O panorama brasileiro no início dos anos de 1960 encontrava-se em um
processo que objetivava a nacionalização de nossos produtos inclusive de bens
culturais, protegendo o mercado nacional da concorrência estrangeira. Havia,
durante o mandato de Jânio Quadros, um projeto de lei de nacionalização dos
quadrinhos. O artigo “O quadrinho é nosso”, de 11 de junho de 1961, escrito pelo
jornalista Antônio Delia, do Correio Paulistano, ilustra a questão:
Abaixo os Marvels (ou Marveis, segundo a boa regra da pluralização dos nomes
terminados em “el”), os Flash Gordons, os Jims das Selvas, os Brucutus, os Pinducas! E
vivam os nossos Fernão Dias Pais, Bequimão (jamais Beckman), Antônio Raposo,
Pedro Malasartes, Saci, Pelé, Lampião heróis de ontem, de hoje, de sempre! E vivam
o burrinho pedrês do mestre Guimarães Rosa e Macunaíma, um a prudência
empacadora, outro o heroísmo sem caráter! (...) A questão da nacionalização é muito
mais intrincada do que parece. (...) É necessário formar uma tradição de valores
indígenas. E isso demanda tempo; e escolas. E nas escolas que se adotar um sistema
de ensino menos negligente. E dar escolas a todas as crianças e por mais largos
períodos. Desse modo, os Flash Gordons e os Marvels cairiam por si mesmos. Pra que
possamos senti-los estranhos à nossa mentalidade, é preciso que tenhamos, afinal de
contas, uma mentalidade nossa. Então, sem que isto nos seja imposto por decreto (ou
decreto-lei, do que Deus nos livre e guarde!), poderemos dizer: “O quadrinho é nosso!”.
(apud SILVA JUNIOR, 2004, p.333).
59
O projeto não obteve êxito. A renúncia de Jânio Quadros e o Golpe Militar
de 1964 puseram fim aos ideais de nacionalização. Em abril de 1964, a
publicação de Ziraldo foi cancelada, utilizando-se o argumento de que a revista
vendia pouco em relação às publicações estrangeiras. Para VERGUEIRO (2005):
Sua publicação deixou de acontecer exatamente quando o período que o personagem tão
esplendidamente representou foi abruptamente encerrado pelo golpe militar de 64.
Mesmo que, eventualmente, os motivos reais da interrupção da revista tenham sido
econômicos e não políticos, afinal, como as revistas são preparadas com meses de
antecedência, a decisão de interromper a publicação estava tomada bem antes da
movimentação militar –, fica evidente que, nos novos e sombrios tempos que o país
mergulhava, o haveria mais lugar para o nacionalismo ingênuo que ela gostava de
apregoar. Pelo contrário, ele até poderia ser visto como uma espécie de subversão. E,
considerando a visão de mundo e as forças predominantes na época, certamente o
seria...
Ziraldo, por uma questão talvez ideológica e de opção artística pessoal, sempre
procurou focalizar, em suas histórias, o mais amplo espectro possível de nossa
brasilidade. Nas páginas de Pererê, os aspectos muitas vezes esquecidos do modo de ser
do povo brasileiro e de sua problemática social desfilaram como nunca antes haviam
feito em outra publicação de quadrinhos (e como, provavelmente, jamais tornaram a
fazer depois dela). Pelos vários anos de publicação da revista desfilaram temáticas bem
peculiares à visão de mundo do brasileiro, como a politicagem dos homens públicos, o
carnaval, a religiosidade popular, o futebol, as caçadas de onça, os jogos infantis, a alta
burguesia carioca, etc.
Como destaca Vergueiro, as publicações nacionalistas como Pererê,
deixaram de ser interessantes, na medida em que a estrutura do regime militar se
fez mais presente. Ao mesmo tempo, o período é caracterizado pelo acentuado
investimento e consolidação do mercado de bens culturais, em função da
ideologia de “integração social”. Concretamente, o Estado devia ser “... repressor
e incentivador das atividades culturais...” (ORTIZ, 1988, p.116). Passa-se, então,
a selecionar o que deveria ser veiculado e divulgado, e o que seria reprimido e
cancelado. Assim, ao mesmo tempo em que se cancelam as revistas do Pererê,
publicações como Pato Donald, Luluzinha e Piu-Piu tornam-se algumas das
revistas mais vendidas, em relação ao público infantil.
Com o encerramento da Turma do Pererê, outras produções tiveram seu
fim. Por outro lado, surgiu um grande mero de revistas consideradas marginais
ou de vanguarda, que tinham o objetivo de retratar a cena política brasileira,
naquele momento. Muitos artistas deixaram de produzir histórias em quadrinhos,
60
passando a investir na criação de charges. Grandes nomes do desenho nacional
destacam-se nesse período, como Laerte, Luís e os irmãos Chico e Paulo
Caruso, dentre outros.
Nos anos de 1970, surgiu O Pasquim, veículo que congregou grande
número de artistas e que foi responsável por momentos singulares do humor
nacional. Passaram pelo Pasquim artistas consagrados como Jaguar, Henfil,
Fortuna e Ziraldo.
O mineiro Henrique Filho o Henfil dedicou-se a produzir personagens
nacionais, criticando a sociedade brasileira nos anos de chumbo (1964-1984), de
forma bem-humorada e mordaz. Entre outros, criou os Fradinhos, ou “Fradim”, a
Graúna e o cangaceiro Zeferino. Na década de 1980, aristas como Angeli, Glauco
e Laerte foram responsáveis pelo lançamento da revista Los Três Amigos,
complementada posteriormente com a entrada de Adão Iturrusgarai. Além deles,
temos: Nani, Chico e Paulo Caruso, Miguel Paiva, Fernando Gonsales e muitos
outros, que entraram de forma definitiva para o universo dos quadrinistas
brasileiros.
Salientamos, também, a presença de Maurício de Sousa e seus
personagens, Mônica, Magali, Cascão, Cebolinha, Bidu e muitos outros.
Estaremos abordando a produção de Maurício de Sousa no capítulo 4, ao
analisarmos sua coleção “Você sabia?”.
61
2.4 A LINGUAGEM DOS QUADRINHOS – TRANSPOSIÇÕES E
RECRIAÇÕES
Júlio Verne foi meu pai. H.G. Wells foi meu sábio tio. Edgar
Allan Poe foi o primo com asas de morcego que
guardávamos lá em cima, na sala do sótão. Flash Gordon e
Buck Rogers foram meus irmãos e amigos. Aí têm a minha
ascendência.
Ray Bradbury
Estivemos falando de vários elementos históricos que nos ajudam a
compreender um pouco acerca de como os quadrinhos foram se constituindo
enquanto linguagem que interage e expressa seu momento histórico, e o
imaginário da coletividade. Detemo-nos, agora, em elementos que nos ajudam a
compreender sua estrutura sígnica e morfológica.
Em muitos momentos, os quadrinhos costumam estar associados a
charges, cartuns e caricaturas. Embora todas estas formas de representação
gráfica possuam semelhanças, compreendemos os quadrinhos como uma
linguagem repleta de especificidades estruturais.
Para tanto, utilizamo-nos de conceitos elaborados por Will Eisner,
considerado o Orson Welles dos quadrinhos
30
. Em seu livro “Quadrinhos e Arte
Seqüencial”, EISNER (1995) nos fornece dados que possibilitam uma melhor
compreensão acerca da estética desse meio comunicacional ou artístico. Para ele,
o principal elemento que caracteriza a linguagem dos quadrinhos é a arte
seqüencial, ou seja, o fato de que os quadrinhos devem ser compreendidos na
continuidade das imagens
31
. Diz o artista:
30 Will Eisner é considerado por especialistas e aficionados, como uma grande, se não a maior
autoridade mundial em quadrinhos. Sua obra Spirit (O Espírito), de 1940, é referência no
universo das HQs.
31 Salientamos que, de acordo com ANDRAUS (2003, p.2): “A charge também pode se
configurar em HQs ou Histórias em Quadrinhos, constituídas de no mínimo dois desenhos,
sendo que o segundo é uma continuação do primeiro, como no caso dos trabalhos de um dos
irmãos Caruso, que publica sátiras quadrinizadas das cenas políticas brasileiras, semanalmente,
na revista Isto É.” Essa consideração é de grande importância, para que também a charge possa,
sob determinadas circunstâncias, ser percebida como uma arte seqüencial ou uma possível
modalidade de história em quadrinhos.
62
A função fundamental da arte dos quadrinhos (tira ou revista), que é comunicar idéias
e/ou histórias por meio de palavras e figuras, envolve o movimento de certas imagens
(tais como pessoas e coisas) no espaço. Para lidar com a captura ou encapsulamento
desses eventos no fluxo da narrativa, eles devem ser decompostos em segmentos
seqüenciados. Esses segmentos são chamados quadrinhos. Eles não correspondem
exatamente aos quadros cinematográficos. São parte do processo criativo, mais do que
um resultado da tecnologia. (EISNER, 1995, p.38)
Por outro lado, KLAWA e COHEN (1977, p.112-113) destacam que a
especificidade dos quadrinhos, em relação às outras representações gráficas, está
além da seqüenciação. Dizem os autores:
Não fica difícil (...) chegar à conclusão de que as histórias em quadrinhos são uma
forma de representação diversa da ilustração, da caricatura e do cartoon. A simples
constatação do seu caráter de série organizada através de um uso conceitual do tempo
não é suficiente, como também coloca-nos em presença de uma estrutura figurativa
original. Todavia, a complexidade da sua linguagem não reside unicamente nesse fator.
Quando examinamos a relação de texto e imagem na ilustração, caricatura, etc., já
constatamos a autonomia entre um e outro. No momento em que Richard Outcault, na
sua história The Yellow Kid, colocou textos dentro do quadrinho e encerrou-os dentro do
balão, estava fazendo mais do que mudar a localização das palavras em relação às
figuras. De fato, a inclusão de palavras no campo imagístico implicou numa
transformação do seu uso, acrescentando conotações e algumas vezes alterando o seu
significado. As palavras sofreram um tratamento plástico; passaram a ser desenhadas; o
tamanho, a cor, a forma, a espessura, etc., tornaram-se elementos importantes para o
texto. Quando um personagem diz: – Oba! E isto é escrito no balão com letras pequenas
e miúdas significa “falando baixo, com cuidado”. Ao contrário, desenhada com letras
grandes e espessas quer dizer “falando alto, exaltado”. Dois sentidos diversos são dados
pela mesma palavra através de tratamentos formais diferentes. É evidente que o desenho
da palavra existe também fora do campo das imagens. Mas nesse caso de existir uma
conexão e uma síntese que se estabelece entre (e ao mesmo tempo) a linguagem
analógica das imagens e a digital das palavras. É exatamente nessa concomitância que
está a importância dos mencionados transporte e tratamento do texto, nessa relação
organizada entre a informação analógica e a abstrata que criam um conjunto novo,
possibilitando um conhecimento rápido e preciso.
As histórias em quadrinhos caracterizam-se pela utilização de dois
elementos comunicacionais, a imagem e a palavra escrita nascendo, portanto, a
partir de duas artes distintas, que são a literatura e o desenho. É nisso que
consiste sua imensa potencialidade artística (BIBE-LUYTEN, 1987). A autora
destaca, ainda, que esta inter-relação é um “retrato fiel de nossa época, onde as
fronteiras entre os meios se interligam”. (BIBE-LUYTEN, 1987, p.11-12)
63
Ao limitar e congelar uma ação que, na realidade, é ininterrupta, o artista
exercita a habilidade de narrar uma história com vários segmentos que, somados,
fornecem uma estrutura narrativa completa. Will EISNER (1995, p.39) afirma
que uma “relação inquestionável” entre os quadros congelados e o fluxo de
eventos que transcorre a partir da percepção de quem lê, e de sua construção de
leitura. Desse modo, podemos inferir que os quadrinhos constituem uma
linguagem, sobretudo interativa, pois precisa capturar e conduzir a atenção do
leitor, fazendo com que o autor imprima e dite as regras da seqüência narrativa.
Se essa construção dialógica o se efetiva, não ocorre interação entre o objeto-
obra e sujeito-leitor. Nessa relação, um contrato tácito, que estabelece vínculo
e cumplicidade entre o indivíduo e o objeto. Assim, necessidade de perceber
como os quadrinhos se configuram, compreender que a leitura ocidental se no
sentido da esquerda para direita, de cima para baixo (EISNER, 1995, p.41). Estes
elementos (perspectiva, quadro, simetria...) tornam a linguagem dos quadrinhos
uma arte distinta, recheada de especificidades que, para serem analisadas,
precisam ser compreendidas em sua estrutura significante. Portanto, ler e apreciar
os quadrinhos é um ato que se encontra intimamente relacionado com a
compreensão e a familiarização de sua linguagem como um todo.
Em função de suas particularidades, existem alguns desafios enfrentados
pelo autor de quadrinhos em sua relação com o público leitor, dentre eles, a busca
constante de uma captura perceptiva, a fim de evitar saltos, com o objetivo de se
chegar rapidamente ao desfecho da trama. Esse desafio não se no teatro ou no
cinema, quando um controle total da obra exibida. Com o advento do
videocassete ou do DVD, o espectador passou a ter outras relações – mais
imediatas com essas linguagens, pois pode pular quadros, selecioná-los,
subvertendo a ordem e o ritmo impressos pelo autor. Nos quadrinhos, esta é uma
preocupação constante.
Segundo EISNER (1995, p.89): “A função primordial da perspectiva deve
ser a de manipular a orientação do leitor para um propósito que esteja de acordo
com o plano narrativo do autor.” Assim, o uso da perspectiva, como também
64
ocorre com a linguagem do cinema, acaba manipulando nossas sensações e
emoções. Pois:
Ao olhar uma cena de cima, o espectador tem uma sensação de pequenez, que estimula
uma sensação de medo. O formato do quadrinho em combinação com a perspectiva
provoca essas reações porque somos receptivos ao ambiente. Um quadrinho estreito
evoca uma sensação de encurralamento, de confinamento, ao passo que um quadrinho
largo sugere abundância de espaço para movimento ou fuga. Trata-se de sentimentos
primitivos profundamente arraigados e que entram em jogo quando acionados
adequadamente. (EISNER, 1995, p.89)
A perspectiva é apenas um dos recursos discursivos dos quadrinhos,
tomados nesse trabalho, a título de exemplo. O desenvolvimento contemporâneo
dessa linguagem tem criado uma infinidade de novos recursos, sempre dentro de
um diálogo constante com outras mídias seqüenciais, como a televisão (e dentro
dela o videoclipe, os anúncios comerciais) e o cinema, do que resulta uma
renovação constante.
65
FIGURA 1 – PERSPECTIVA NOS QUADRINHOS
FONTE: EISNER, W. Quadrinhos e arte seqüencial. p. 90.
66
Outro desafio presente durante a produção de uma HQ está na articulação
existente entre a qualidade técnica do desenho, em relação ao desenvolvimento
do roteiro. A utilização criteriosa de elementos como imagem deve ser uma
preocupação constante do desenhista, que pode, muitas vezes, ser levado a
priorizar a qualidade gráfica dos quadrinhos um veículo predominantemente
visual em detrimento de uma boa história a ser desenvolvida. que é o grande
público quem costuma determinar o reconhecimento do trabalho do quadrinista,
esse, por vezes, acaba se rendendo aos apelos dos leitores-consumidores dos
quadrinhos, que tendem a buscar a maestria técnica, em termos de desenho e
imagem, relegando a história a um segundo plano. Nesse aspecto, o desenhista
deve buscar, a todo custo, uma fidelidade com sua produção artística, mesmo
frente às exigências do público consumidor, pois, segundo EISNER (1995,
p.123):
A receptividade do leitor ao efeito sensorial e, muitas vezes, a valorização desse aspecto
reforçam essa preocupação e estimulam a proliferação de atletas artísticos que
produzem páginas de arte absolutamente deslumbrantes sustentadas por uma história
quase inexistente.
Assim, todo desenhista que objetiva o desenvolvimento de uma produção
completa, bem elaborada, deve buscar a coerência no desenvolvimento da
narrativa em relação à construção do desenho e às suas perspectivas. Para tanto,
torna-se necessária uma disciplina rigorosa, um “controle” sobre a autoria da
obra, mantendo o foco na narrativa e no roteiro, e o concomitante
desenvolvimento da estrutura técnica e do desenho. Nesse sentido, uma
especificidade característica nos quadrinhos por apresentarem um mesmo artista
desenvolvendo a autoria do roteiro e a produção do desenho. Então, narrativa,
qualidade técnica, percepção estética e gráfica, fazem parte de uma totalidade.
Explica EISNER (1995, p.122):
67
Escrever para quadrinhos pode ser definido como a concepção de uma idéia, a
disposição de elementos de imagem e a construção da seqüência da narração e da
composição do diálogo. É, ao mesmo tempo, uma parte e o todo do veículo. Trata-se de
uma habilidade especial, cujos requisitos nem sempre são comuns a outras formas de
criação “escrita”, pois lida com uma tecnologia singular. Quanto a seus requisitos, ela
está mais próxima da escrita teatral, que o escritor, no caso das histórias em
quadrinhos, geralmente também é o produtor de imagens (artista). Na arte seqüencial, as
duas funções estão irremediavelmente entrelaçadas. A arte seqüencial é o ato de urdir
um tecido.
Por outro lado, consideramos que as atuais relações mercantis do sistema
capitalista trazem exigências editoriais que acabam por alterar, também, a
construção de muitos quadrinhos modernos, ao objetivar uma lucratividade maior
e mais imediata. Assim, os quadrinhos deixam de ser a obra de um único artista,
passando a ter um roteirista, um desenhista, um arte-finalista e assim por diante.
A rapidez e a economia de tempo representadas pelo trabalho de equipe poderiam
ser consideradas como elementos positivos. Por outro lado, se pensarmos nesse
trabalho como uma produção em série, percebemos que se retira o aspecto
autoral da obra, fracionando, por muitas vezes, sua concepção e o resultado final.
A separação entre a criação escrita e o desenho está diretamente envolvida com a
estética do veículo, pois a segregação efetiva entre a criação escrita e a arte proliferou
na prática dos quadrinhos modernos (...) Quem é o criador de uma gina de histórias
em quadrinhos que foi escrita por uma pessoa, desenhada por outra, e que teve arte-
final, letreiramento (e talvez até colorido e fundo) feitos por outras pessoas ainda?
(EISNER, 1995, p.123)
Deparamo-nos, desta forma, com a Nona Arte, rendendo-se aos exigentes
padrões da economia de mercado. É o caso que podemos assistir, na atualidade,
com as HQs de super-heróis norte-americanos, como X-Men” e “Homem-
Aranha” , desenhados com traços dos quadrinhos japoneses, de grande êxito, os
mangá, perdendo suas próprias características e referenciais. Como destaca
Umberto ECO (1970, p.285):
68
A melhor prova de que a estória em quadrinho é produto industrial de puro consumo é
que, embora uma personagem seja inventada por um autor genial, dentro em pouco esse
autor é substituído por uma equipe, sua genialidade se torna fungível, e sua invenção,
produto de oficina.
Além desses aspectos, outros elementos referentes à linguagem dos
quadrinhos, como o uso de balões e onomatopéias.
Ao tomarmos a escrita como foco de análise, podemos afirmar que um
recurso fundamental e marca registrada dos quadrinhos é o uso dos balões, que
vêm a caracterizar a presença das emoções, pensamentos e diálogos nas histórias.
De acordo com CIRNE (1972, p.33), citando BENAYOUN, registros de 72
espécies de balões: “censurado, personalizado, mudo, atômico, sonolento, glacial,
agressivo, onomatopaico, pop, tradutor, interrogativo, infantil, exibicionista,
estéril etc.”.
O balão censurado apresenta, em seu interior, símbolos que demonstram
agressividade, como caveiras, cobras, bombas e outros. Normalmente, esses
símbolos indicam palavrões. o balão mudo é indicado pelo vazio. Através do
uso de balões, pode-se expressar raiva, tristeza, alegria, espanto e, a partir das
inúmeras possibilidades de criação, pode-se ocasionar diferentes efeitos visuais e
sonoros. Na caracterização do balão “... predomina a relação ideogramática entre
a imagem e o conteúdo expresso” (CIRNE, 1977, p.27).
69
FIGURA 2 – BALÕES
FONTE: BIBE-LUYTEN, S. M. Histórias em quadrinhos – leitura crítica. p. 14-15.
Além do uso de balões, outra marca registrada da arte seqüencial é a
utilização de palavras que procuram reproduzir sons, completando a estrutura dos
quadrinhos. São as chamadas “onomatopéias”, que podem ser observadas na
indicação de objetos se quebrando, no som de batidas, espirros, socos, etc.
A utilização das onomatopéias possibilita um dinamismo maior do ponto
de vista visual e plástico, em ruídos que não estão contidos em balões e falas dos
personagens. Mas as onomatopéias não surgiram com as histórias em quadrinhos,
ainda que, para os dias atuais, sua inter-relação seja inegável. LEIBNIZ, citado
por Naumin AIZEN (1977, p. 274 e seguintes), afirma que a onomatopéia é uma
forma primitiva de linguagem humana. Assim, pode-se encontrar a presença das
onomatopéias no tupi antigo, como no ato de estalar, bater (tak e tatak), quebrar
(tek) ou latejar (ning-ning). Também a linguagem infantil, com suas sucessivas
70
repetições, assinala a presença de sons que chamaríamos de onomatopéias, como
“mamá”, au-au” e outros. Mesmo na língua portuguesa, estabelecemos uso de
onomatopéias ao denominar uma ave de “cuco” em função do som por ela
emitido, por exemplo. Assim, ruídos representando e imitando sons e idéias
faziam parte da história da humanidade em diferentes culturas, mesmo antes das
histórias em quadrinhos.
Quando surgiram os primeiros quadrinhos, não havia neles a presença das
onomatopéias. Naquele momento, a legenda abaixo do desenho era o elemento
primordial da história, pois era o texto que “... tudo dizia, tudo explicava, tudo
descrevia, misturando descrições com diálogos, ao contrário da história em
quadrinhos moderna...” (AIZEN, 1977, p.289)
Na década de 1920, quando surgem os primeiros filmes sonoros em
Hollywood, os quadrinhos precisam encontrar os ruídos, os barulhos, os sons que
não se encontravam presentes nos balões, fossem o bater de uma porta, o som de
um objeto quebrando ou os tiros de uma arma. Surgem, assim, as primeiras
onomatopéias, conferindo aos quadrinhos o status de um importante veículo
audiovisual, pois estabelece uma comunicação mais direta e completa.
Salientamos, aqui, o quanto as histórias em quadrinhos m caminhado,
simultaneamente, com a linguagem cinematográfica, estimulando e sendo por ela
estimuladas.
Krystoffer NYROP (Apud AIZEN, 1977, p.270) afirma:
As onomatopéias são palavras imitativas, isto é, palavras que pretendem imitar, através
dos fonemas de que se compõem, certos ruídos como o grito ou o canto dos animais, o
som dos instrumentos musicais, o barulho das máquinas, o ruído que acompanha os
fenômenos da natureza etc. A onomatopéia é sempre uma aproximação e nunca uma
reprodução exata, como nem de outra forma poderia ser. Os fonemas da voz humana
diferem no seu timbre, e noutras qualidades dos ruídos da natureza que procuram imitar.
Nem todos os artistas faziam uso das onomatopéias. Autores como Harold
Foster e Burne Hogarth, de Tarzan, e Alex Raymond, de Flash Gordon, jamais
utilizaram tais recursos, considerados inadequados pra uma obra mais “séria” ou
convencional, tanto quanto em biografias e romances quadrinizados. Destacamos
71
que Foster, Hogarth e Raymond, tinham o objetivo de atribuir a seus trabalhos
uma seriedade e um desenvolvimento mais complexo, com diferenciais estéticos,
o que, de fato, pode ser conferido em suas obras.
Na década de 1940, mais especificamente em 1943, surge a televisão. Em
1946, ela atingiu um grande impulso no mercado, constituindo-se, assim, em uma
primeira ameaça ao universo dos quadrinhos.
A nova tecnologia audiovisual transformava profundamente a percepção
da vida e do mundo, da burguesia em suas diversas facetas. O universo da TV
oferecia, gratuitamente, a imagem, a ação, o som, dentro de cada lar, a cada
pessoa que ali vivesse. Os quadrinhos convencionais, com longos textos, não
atraíam os jovens da mesma maneira. Uma estratégia, então, foi “inflacionar”,
bombardear maciçamente as histórias em quadrinhos, com muitas ilustrações e
onomatopéias, reduzindo ao máximo a quantidade e extensão dos textos, o que
constitui a “obsessão da vida e da cultura atual” (GASCA
32
apud AIZEN, 1977,
p.294).
Nos anos 1950 e 1960, contexto caracterizado pela presença da Guerra
Fria e da ameaça nuclear, super-heróis como Capitão América, Superman,
Batman e outros, representam o clima de confronto e conflito presentes no
mundo e nos quadrinhos. Mais do que nunca, as onomatopéias passam a ser
exploradas, mostrando os sinais evidentes de agressividade e disputa ideológica,
expressa na velocidade e no ritmo das ações, da lutas, dos embates físicos. Nesse
momento, não se concebe os quadrinhos sem a forte presença da “trilha sonora”
garantida pela presença das onomatopéias.
Mais tarde (de 1966 a 1968), o sucesso dos quadrinhos é levado para as
telas da televisão, com o seriado Batman, entremeado com onomatopéias em
profusão, como ingredientes sonoros e visuais, com o objetivo de criar uma
atmosfera de quadrinhos propriamente ditos.
Na atualidade, os elementos onomatopaicos m sido bastante utilizados
nos mais diferentes países. Convém destacar que sua utilização está intimamente
32
GASCA, Luis. Tebeo y cultura de masas. Madrid, Editorial Prensa Española, 1966.
72
relacionada à língua inglesa, por sua especificidade sintética. Quando transpostas
para outros países de língua não-inglesa, são empregadas muito mais por
convenção social do que reprodução ou imitação de ruídos e sons naturais de
uma dada região.
2.5 QUADRINHOS – A ORIGEM OU... COMO TUDO COMEÇOU
Alguns estudiosos costumam dizer que os quadrinhos remontam ao
Paleolítico, quando o homem fazia os registros nas paredes das cavernas, e
mesmo com os antigos registros egípcios, que destacavam cenas religiosas e
cotidianas. Esses desenhos seriam os primeiros indícios que definiriam a
presença dos quadrinhos na sociedade. Porém, as histórias em quadrinhos, da
forma como as conhecemos, nascem, assim como o cinema, sob a égide da
sociedade capitalista, voltada à cultura de massas. A então, antes do século
XIX, a cultura era voltada, unicamente, para as elites. A arte era financiada pelos
mecenas e acessível apenas às classes privilegiadas, fossem estas representadas
pela aristocracia ou pela emergente classe burguesa. Com o advento do processo
industrial e a migração das populações do campo para as cidades, a sociedade
adquire novos e grandiosos contornos: os indivíduos passam a formar grandes
contingentes urbanos, trabalhadores anônimos formando uma massa social com
novas perspectivas de vida e consumo. A força do capital passa a ditar regras e
impor novos valores e necessidades.
Os meios de comunicação o rádio, o telégrafo, os jornais aceleram o
ritmo das informações, que passam a ser consumidas pelas pessoas numa
velocidade muito mais constante e frenética. É nessa sociedade que a própria
cultura passa a ser percebida como um valor de mercado, um produto a ser
comercializado industrialmente, como “cultura de massa”, fonte de lazer e
entretenimento para o grande público menos letrado. Nesta perspectiva, a cultura
não é percebida como um elemento fomentador do espírito e do desenvolvimento
estético ou intelectual, mas como um produto qualquer, destinado a ser
consumido e descartado, na chamada “indústria cultural”.
73
Assim, o cinema, os folhetins, as revistas ilustradas e os quadrinhos m
seu surgimento a partir de um contexto social específico, determinante de uma
nova ordem econômica e cultural. Era a cultura voltada para as grandes massas,
sendo consumida em grandes quantidades.
Com a consolidação da sociedade urbana e industrial, muitos
trabalhadores migraram para as cidades em busca de emprego. E editores dos
grandes jornais perceberam a possibilidade de lucro representada pelo consumo
dessa imensa camada de trabalhadores, o que de fato aconteceu se analisarmos o
aumento bastante expressivo na tiragem dos jornais, a partir da segunda metade
do século XIX:
Em 1850, a circulação total dos jornais diários nos Estados Unidos (excetuando-se os
domingos) atingia 750.000 exemplares; em 1860, 1.470.000; em 1870, 2.600.000; em
1880, 3.560.000; em 1890, 8.380.000; em 1900, 15.100.000. (CIRNE, 1972, p.18-19)
As estratégias de venda eram diversas. Em relação à literatura, teve início
a produção dos folhetins, precursores de nossas telenovelas, cujas histórias
repletas de romance ou aventura eram abertas e seguiam uma evolução a partir
das reações e necessidades do público leitor. Muitos jornais e revistas dependiam
do sucesso dos folhetins, que atingiam em cheio a uma classe média que ainda se
consolidava. Ao final da história, que se seguia por semanas, muitos folhetins
eram compilados em um livro. Foi o caso de muitas obras de Eça de Queirós,
como O Crime do Padre Amaro”, ou ainda Dickens, com As Grandes
Esperanças” e Alexandre Dumas, com “Os Três Mosqueteiros” e O Conde de
Monte Cristo”.
O sucesso junto ao público foi imediato, assim como as críticas ferozes de
intelectuais que rotulavam os folhetins como baixa cultura. Ainda assim, os
folhetins não atingiam a todos. Em países como os Estados Unidos, uma grande
camada da população era formada por trabalhadores não alfabetizados ou
imigrantes não familiarizados com a língua inglesa. A necessidade de atrair essa
gama de pessoas para a cultura maciçamente produzida naquele momento
constituiu-se em um forte apelo editorial. Com vistas a esse público, passaram a
74
ser produzidos os suplementos dominicais (os Sundays”) com textos bastante
curtos e ênfase nas imagens e ilustrações. Inúmeros foram os precursores, mas a
primeira história em quadrinhos surgiu em 5 de maio de 1895 ano que
coincidiu com o surgimento do cinema e chamava-se “O Garoto Amarelo”
(The Yellow Kid), personagem criado pelo norte-americano Richard Felton
Outcault (1863-1968). De acordo com FEIJÓ: Down Hogan’s Alley era o título
das lâminas semanais que Outcault publicava no jornal americano New York
World, em que satirizava a vida dos imigrantes nos cortiços de Nova York.
Detalhe: esse foi o primeiro grande jornal voltado para a massa urbana (fundado
em 1884), e também o primeiro a ser tachado de sensacionalista.” (FEIJÓ, 1997,
p.16). Esse jornal era propriedade de Joseph Pulitzer.
Nas lâminas dos jornais, Outcault retratava cenas cotidianas de um cortiço
nova-iorquino. Eram representadas crianças negras, brancas, imigrantes,
trabalhadores e uma série de elementos que, apesar de atuarem como críticas
sociais, eram retratadas, normalmente, de forma leve e divertida. Por esse
motivo, nos Estados Unidos, passaram a ser chamadas de comics cômico
termo que permanece até os dias atuais. Nessas histórias, Richard Outcault
iniciou usando cenas estáticas, com legendas escritas passando, posteriormente, a
produzir uma seqüência de imagens, intercalando-as com pequenos textos e falas
em balões. O autor, certamente, não imaginava que estava inaugurando um novo
gênero artístico! Naquele domingo, dia 5 de maio, era retratada uma cena com
várias crianças pobres e excluídas. Entre elas havia um garoto chinês, vestindo
um longo camisolão que, a princípio, era preto e branco, depois azul e,
finalmente, amarelo, o que teria sido uma solicitação do técnico de cores. Num
primeiro momento, o menino era apenas coadjuvante da cena, mas seu exotismo
e os textos engraçados escritos em sua camisola acabaram por despertar a
curiosidade dos leitores, tornando-se mais freqüente nas tiras e acabando por
transformar-se no personagem central das histórias. Estavam, oficialmente,
inaugurados os quadrinhos no mundo!
75
FIGURA 3 – THE YELLOW KID (O GAROTO AMARELO)
FONTE: OUTCAULT, R. F. The Yellow Kid, 1995.
NOTA: desenho do Garoto Amarelo, publicado originalmente em 07 jul. 1895 (New York
World).
O sucesso foi tão grande e o aumento na vendagem tão expressivo, que o
mercado editorial passou a disputar as histórias e seus autores. Foi assim que um
editor rival de Pulitzer, William Randolph Hearst, acabou levando Outcault para
seu jornal, o New York Journal, quando foi criado seu segundo personagem de
sucesso visando à classe média americana o garotinho Buster Brown (1902),
conhecido no Brasil como Chiquinho.
Mas nem tudo foi tranqüilo para o pai do Garoto Amarelo. Seu
personagem passou a sofrer zombarias por parte de uma camada conservadora da
população, que o considerava vulgar e inadequado. Em função da forte cor
amarela de seu camisolão, a crítica especializada passou a utilizar o termo
76
“imprensa amarela”, conotação depreciativa que servia para designar tudo o que
era sensacionalista, irresponsável ou de gosto duvidoso.
Mas, curiosamente, o desagrado não se estendeu a Chiquinho. A crítica
acolheu positivamente as histórias do garoto, ficando claro que a marginalização
dos quadrinhos não se dava em função da linguagem ou das atitudes, mas da
condição social do personagem.
Enquanto o Garoto Amarelo era um garotinho imigrante, órfão, garoto de
rua, travesso e morador de um beco o Hogan’s Alley Chiquinho, ainda que
demonstrasse um comportamento absolutamente reprovável, era filho de uma
família da alta burguesia americana. De acordo com Alan e Laurel CLARK
(1991, p.49), o garoto “Tinha a aparência de um anjo, a mente de um diabo e
ações a condizer, com o seu cão Tige, como parceiro de patifarias.” De qualquer
forma a aceitação de Buster Brown foi tão boa que se tornou uma fonte de renda
bastante interessante e de lucros que não se limitavam à venda de quadrinhos,
mas de roupas e brinquedos. Um verdadeiro e lucrativo fenômeno na cultura
de massas, influenciando a determinando novos produtos a serem vendidos e
consumidos. Cabe dizer que os quadrinhos iniciam uma verdadeira guerra entre
os grandes editores Joseph Pulitzer (cujo nome é mais conhecido em função do
célebre prêmio) e Hearst (que deu origem ao Cidadão Kane, de Orson Welles).
Dois anos depois da criação do Garoto Amarelo, o desenhista Rudolph
Dirks (1877-1968) cria Os Sobrinhos do Capitão” (The Katzenjammer Kids),
meninos terríveis e capazes de atos que seriam considerados verdadeiramente
cruéis para os padrões atuais. Nestas histórias, os dois garotinhos lutavam contra
certas formas de autoritarismo, atormentando a vida do pobre Capitão e
capturando cada vez mais a atenção do público leitor!
Gradativamente, ampliava-se o mercado dos quadrinhos. Das peraltices
infantis surgiam histórias de famílias comuns em situações cotidianas. Além de
Os Sobrinhos do Capitão”, surgiam os “Sonhos de um Comilão” e “O Pequeno
Nemo no País dos Sonhos” (Little Nemo in Slumberland) de Winsor McCay
(1867-1934). Esse último, publicado a partir de 15 de outubro de 1905, tornou-se
77
um verdadeiro clássico dos quadrinhos, por representar o melhor do estilo art-
nouveau
33
, a partir de desenhos verdadeiramente estilizados e surreais,
demonstrando uma inovação em termos de perspectiva e criatividade, sendo
considerados os primeiros quadrinhos a atingir o status de arte.
Até esse momento, os quadrinhos eram publicados semanalmente, em
suplementos dominicais, ocupando páginas inteiras. A partir de 1907, tornaram-
se tiras diárias (daily strip) e passaram a ser incorporadas ao corpo dos jornais,
arregimentando ainda mais leitores, ávidos por novas histórias. Esses fatores
caracterizam o processo de formação e construção de um novo meio
comunicacional, desde seu início até a aquisição de todos os contornos do
referencial que conhecemos como histórias em quadrinhos. Apesar de não ser
nosso objetivo enumerar a gigantesca lista de personagens criados nas primeiras
décadas do século XX, não podemos esquecer de algumas histórias que
marcaram época, como “Pafúncio e Marocas”, de George McManus (1884-
1954), o Gato Félix”, de Pat Sullivan, e o “Marinheiro Popeye”, de Elzie
Crisler Segar. E nenhuma relação seria digna se não fossem citadas as estranhas
histórias do gato Krazy Kat”, de George Herriman (1880-1944), cuja história
publicada a partir de 1913 girava em torno de um louco triângulo amoroso
entre um gato, um cão e um rato.
Tendo um início despretensioso, sob certo ponto de vista, os quadrinhos
passam a determinar a vendagem de muitos jornais. Os recursos e os estilos se
diversificam, os leitores tornam-se mais exigentes e cresce a indústria editorial
norte-americana. Com vistas a tornar os quadrinhos ainda mais rentáveis e
acessíveis à população, são criados os syndicates, agências reguladoras e
distribuidoras de HQs. O primeiro syndicate a ser criado foi o International News
Service (BIBE-LUYTEN, 1987, p. 22) que depois viria a ser chamado e
mundialmente conhecido – por King Features Syndicate.
33
Estilo ornamental que se caracteriza pelo uso de linhas longas, ondulantes e assimétricas.
Floresceu aprox. entre 1890 e 1910 e inspirou-se, em parte, na arte japonesa da gravura. Fonte:
Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa.
78
Criadas em 1912 por William R. Hearst, essas agências continuam
exercendo grande poder, distribuindo quadrinhos para o mundo todo. Assim, os
syndicates são encarados como elementos fundamentais da divulgação,
popularização e penetração dos quadrinhos, em culturas e realidades
absolutamente distintas, de forma barata e maciça. Ao estar vinculado a uma
dessas empresas, os personagens de determinados quadrinhos podem ser
transformados em bonecos, camisetas, filmes e um sem número de possibilidades
mercadológicas.
O sistema de controle assegura um determinado critério e padrão de
qualidade, garantindo que mesmo pequenos jornais e revistas obtenham
condições de sua difusão. Porém, além do aspecto formal, que visa a garantia da
qualidade das tiras e revistas, determinados mecanismos internos que
funcionam como uma certa censura, regulando uma padronização estética e,
principalmente ética das histórias, possibilitando a aceitação dos quadrinhos em
diferentes realidades, com diferentes padrões e valores sociais. Dessa forma,
personagens e histórias podem ser aceitos, remodelados ou censurados, e
desenhistas podem ser promovidos ou substituídos, e assim por diante. Um dos
casos mais interessantes envolvendo a influência e o poder dos syndicates está
ligado ao Brasil, na figura do brasileiro Henrique Filho, o Henfil, na década de
70. Depois de ter se ligado a uma dessas agências, seus personagens Fradinhos
(os Mad Monks, nos Estados Unidos) foram vetados por serem considerados
demasiadamente doentios, inadequados e invendáveis.
Na atualidade, várias empresas distribuidoras de quadrinhos m sido
fechadas em função da grande concorrência e da queda das vendas de HQs.
Ainda assim, é inegável a força que possuem frente às experiências de artistas
locais, não pertencentes a tais grupos.
79
2.5.1
A
IDADE DOURADA DOS QUADRINHOS
Durante “os loucos anos 20” e por toda a década de 1930, os quadrinhos
acabam por consolidar-se por um forte elemento da cultura de massa,
especialmente nos Estados Unidos e Europa, mas também com ressonância na
sociedade brasileira.
Até o final da década de 1920, predominam as histórias de animaizinhos,
crianças ou enredos familiares em cenas cômicas e cotidianas. Nesse aspecto, os
quadrinhos demonstram a leveza e a despreocupação reinantes na sociedade
norte-americana junto a um público burguês que convivia com um clima de festa
e consumo, que parecia durar para sempre. Mas os quadrinhos não estavam livres
da teia econômica mundial. Com o crack da Bolsa de Valores e a crise no sistema
a partir de 1929, o clima de otimismo cedeu lugar à insegurança individual e
coletiva, frente à opressão, ao desemprego e à marginalização social.
A crise que abalou o mundo a partir dos anos 20, manifestou-se de
diferentes maneiras, através das diferentes realidades sociais. Na Europa,
representou o avanço dos regimes totalitários e de extrema-direita, de cunho nazi-
fascista. Na América Latina, a crise era recebida em meio a um turbilhão de
manifestações, populismos, golpes, revoluções e ditaduras. E os Estados Unidos
mantinham-se perplexos, mortificados, diante da fragilidade institucional que por
eles se abateu. Nesse contexto, já não havia espaço para a ingenuidade das
histórias cômicas que passam, então, a ceder espaço ao gênero de aventura. De
acordo com BYBE-LUITEN (1987, p. 26): “A aventura indica um desejo de
evasão e a criação de mitos, de heróis positivos. Revela a necessidade de novos
modelos nos quais se inspirar para a conduta humana.”.
A necessidade de personagens fortes, individualistas, messiânicos, faz
crescer a publicação, a popularidade e a vendagem de quadrinhos de ação. É o
caso das obras de Harold Foster, como Príncipe Valente” e “Tarzan”, sendo
esse último baseado em Edgar Rice Burroughs que, por sua vez, buscou
inspiração no ideal do bom selvagem, de Jean-Jacques Rousseau (1718-1778).
80
Tarzan marca a ruptura com as piadas ligeiras e os traços caricatos, da passagem
a investimentos nas longas histórias, repletas de suspense e aventura.
Além disso, ocorre a valorização dos quadrinhos enquanto elemento
artístico. Era necessário
...
um artista capaz de desenhar de forma realista a anatomia humana,os animais e as
exuberantes selvas da África (...) era fundamental um artista com formação clássica.
Portanto, ninguém mais adequado, naquele momento, do que Hal Foster, que, além de
desenhista, era pintor. (FEIJÓ, 1997, p.27)
Apesar de todo sucesso, Foster não quis continuar a desenhar as histórias
do homem-macaco. Foi então que, em 1936, a “United Feature Syndicate”
chamou um principiante dos quadrinhos, mas com grandes recursos artísticos:
Burne Hogarth. Estudioso de Michelangelo, apreciador do estilo barroco e com
grandes afinidades com o expressionismo alemão, Hogarth passou a imprimir um
caráter trágico, expresso nos semblantes atormentados de seus personagens. O
virtuosismo atinge, nesse momento, seu ponto mais elevado.
Mas não era apenas o ambiente selvagem do continente africano que se
destacava naquele momento. O passado também era foco de atenção. E nesse
caso, a Idade Média era foi recriada com intensidade pelos quadrinhos de Foster
em O Príncipe Valente”, um guerreiro viking que vivia inúmeras aventuras
junto aos cavaleiros na Corte do Rei Arthur. O período medieval era aqui
representado sem problemas políticos, econômicos ou religiosos, ressaltando-se,
sobretudo, a nobreza e o heroísmo das cavalarias.
Ainda nos anos 1920 e início dos anos 1930, a ficção científica também
ganhava um grande espaço, com Buck Rogers”, de Phil Nowlan e Dick Calkins
e Flash Gordon”, de Alex Raymond. Nessas obras, podemos ver impressa a
exaltação ao domínio tecnológico, em cenários exuberantes, podemos observar o
arquétipo do homem vencendo a hostilidade de estranhos e de climas inóspitos.
Era o que vinha de encontro a uma sociedade empobrecida e fragilizada.
81
Na Europa, a aventura estava representada através de “Tintin” (1929),
criado pelo belga Hergé, considerado o maior desenhista europeu, iniciador da
“Escola de quadrinhos de Bruxelas”, que veio a influenciar grandemente os
franceses (MOYA, 1986, p.67). O jovem e corajoso jornalista Tintin vivia
grandes aventuras em cenários do mundo todo, como o Congo, Austrália, União
Soviética, Egito, “... e até a Lua, onde ele pousou 16 anos antes dos astronautas
americanos” (GUSMAN, 1997, p.47). Em suas peripécias, Tintin aparecia
sempre acompanhado do cachorrinho Milou e outros personagens marcantes,
como o Professor Girassol, os meos detetives Dupont e Dupond, além do
irascível e irritadiço Capitão Haddock. O sucesso de Tintin lhe rendeu 23 álbuns,
traduções em cerca de trinta idiomas e dois filmes de longa duração, além de
inúmeros desenhos animados de curta-metragem. Graças a Hergé, surgiram
outros quadrinhos considerados clássicos, como “Asterix” e “Lucky Luke”.
A linguagem dos quadrinhos tem como característica quase não precisar
de preparo educacional prévio, como outras linguagens dos meios de
comunicação dirigidos às massas. Mesmo estando em constante movimento e
transformação, respondendo às referências visuais, e a imaginários da época, a
linguagem dos quadrinhos é aprendida pelos leitores autonomamente, se
dominam um mínimo de leitura textual. A composição do sentido é dada por
vários elementos além (e muitas vezes apesar) do texto: desenhos, cores, tons,
expressões faciais, tamanho dos tipos, tamanho e disposição dos quadros,
enquadramentos, ritmo, etc., cujo significado é aprendido intuitiva e
paulatinamente.
Por trazerem essas características de ponte entre os textos e as imagens, os
quadrinhos o pensados como recurso didático importante e mesmo como
elemento que pode suavizar a passagem de um mundo oral e visual para o mundo
da escrita. Do mesmo modo que outras linguagens da indústria cultural, são
julgados como recurso que, na escola, pode aproximar o trabalho pedagógico do
lazer, facilitando e aprofundando o primeiro.
82
Para manter o potencial máximo de sua linguagem, aliando
indissociavelmente os elementos visuais e verbais, os quadrinhos devem primar
pela leveza e fluidez do texto, bem como pela sua distribuição ao longo das
páginas e dos quadros. Quando os quadrinhos mobilizam conhecimentos
históricos, seja com finalidade de vender lazer, seja com finalidade educativa, é
interessante considerar que estão recompondo um conhecimento cuja principal
referência é o texto escrito (a História ciência), mas trazendo também um
conjunto de outras referências vindas de várias fontes. Referimo-nos, por
exemplo, à identidade visual de um determinado grupo ou movimento, o
imaginário referente a diferentes temas que estruturam o social (como a nação e a
religião), as informações e narrativas que circulam no cotidiano, os boatos, as
histórias dos mais velhos, o conhecimento produzido e reproduzido para
necessidades imediatas (como a informação através da imprensa, que faz sínteses
próprias sobre o passado na perspectiva de explicar um determinado evento
imediato), etc. Dentro desse raciocínio, o conhecimento histórico nos quadrinhos,
por força de sua própria linguagem, pode ser tomado analogamente ao ensino
escolar de História, tomado como recomposição ou mediação didática do
conhecimento histórico para os fins educacionais.
No próximo capítulo, pretendemos demonstrar esses aspectos em
quadrinhos que versam sobre a História do Brasil, partindo do pressuposto de que
se estruturam em torno de pretensões didáticas, apesar de destinarem-se a abordar
o conhecimento através da arte seqüencial.
Por fim, é preciso considerar que, dada a peculiaridade da linguagem dos
quadrinhos, a sua análise didática, histórica e a sua utilização como recurso para
o ensino devem levar em conta o conjunto dos elementos que compõem o
produto cultural em foco, sendo impossível separar, por exemplo, a análise
textual da análise iconográfica e estas dos referenciais políticos e culturais do
contexto em que ele foi produzido.
83
3 A HISTÓRIA DO BRASIL NA ÓTICA DOS QUADRINHOS
No presente capítulo, o objetivo é aprofundar a relação estabelecida nesse
estudo, quadrinhos-História-Educação, dentro do recorte que nos interessa mais
de perto, ou seja, a História do Brasil. Para isso, pretendemos apresentar e
discutir algumas produções de diversos períodos, relacionando-as com seus
contextos de surgimento e com as escolhas da linguagem de quadrinhos de cada
uma. Obviamente, não é o escopo deste trabalho enfocar e abranger toda a
produção nesse campo, o que demandaria um trabalho à parte. Recortou-se um
período (dos anos 1960 à atualidade) e algumas produções que permitem
demonstrar perspectivas de análise possíveis no que se refere à relação entre a
linguagem dos quadrinhos e o conhecimento histórico, bem como as relações
entre os quadrinhos e seus contextos.
Como pudemos observar anteriormente, as histórias em quadrinhos foram
eficientemente utilizadas como instrumentos político-ideológicos. Com relação a
isto, CIRNE, citado por MENDES (2003, p.2), afirma que “não existem
quadrinhos inocentes.” Percebendo seu poder de penetração e, sobretudo, de
sedução junto às crianças, adolescentes e à juventude de modo geral, passou-se a
ter para com os quadrinhos também uma preocupação com a narrativa histórica.
Assim, professores, pesquisadores e governos, em vários momentos e contextos
sociais, passaram a estimular a ligação entre as histórias em quadrinhos e o
conhecimento histórico. Ao retomarmos a formulação de FERRO (1989) de que
a história apresenta-se como um campo conflituoso, evidente não apenas na sala
de aula, mas também nos veículos de comunicação de massa, podemos
compreender o porquê das inúmeras e diferentes análises e perspectivas do
conhecimento histórico presentes nas histórias em quadrinhos. EISNER, citado
por CARVALHO JÚNIOR (2000) afirmava, na década de 1950:
84
Sempre entendi que quadrinhos eram mais que diversão e na Segunda Guerra eu entendi
que eles poderiam ser uma arma para ensinar. Comecei a usar as HQs para divulgar
ensinamentos aos soldados e, quando deixei o Pentágono, continuei usando as histórias
no ensino por meio de minha empresa.
Como alguns exemplos da vinculação entre as HQs e uma
intencionalidade de domínio e controle da narrativa histórica, podemos citar os
quadrinhos de Mao Tsé-Tung e de Mahatma Ghandi, além dos exemplos já
citados. No Brasil, esta preocupação com a dimensão educativa relacionada com
a perspectiva histórica também tem se feito presente, seja em gibis ou em
manuais didáticos. BIBE-LUYTEN (1984, p.88) destaca algumas considerações
no sentido de que tal instrumento deva manter as características próprias da
linguagem, como proporcionalidade na relação texto-imagem e a utilização de
recursos, como onomatopéias, balões, uso da perspectiva, entre outros.
A autora salienta que a não observação a essas características geram
equívocos na utilização de quadrinhos em livros didáticos. Entendemos que tais
equívocos são extensivos também a muitas HQs ao proporem o desenvolvimento
de conteúdos históricos explicitamente didatizados. Seriam alguns dos erros mais
freqüentes: a presença de um texto excessivo nos quadrinhos, fazendo-os perder
o dinamismo que os caracteriza; a utilização de imagens excessivamente
chamativas, fazendo com que o leitor desprenda sua atenção do conteúdo
proposto; a produção de quadrinhos gerando estereótipos, deturpações e
incoerências. Além desses, BIBE-LUYTEN (1984, p.88) destaca a presença de:
Roupa nova para velhas imagens: livros que, apenas para vender mais, inserem
alguns elementos de quadrinhos (balões ou onomatopéias) em velhas imagens
conhecidas. A figura de uma estátua de D. Pedro I, por exemplo, apenas acrescida de
um balão contendo a frase ‘Independência ou morte!’, não quer dizer que seja HQ.
Partindo dessas considerações e tendo-as como critério de análise do meio,
buscamos a seleção de alguns quadrinhos que ofereçam uma abordagem
histórica, tendo ou não pretensão didática formal. Desta seleção, procuraremos
observar a adequação conteúdo-meio em relação às adequações ou equívocos
destacados por BIBE-LUYTEN.
85
Num primeiro momento, analisamos quadrinhos produzidos durante as
décadas de 1960 e 1970, período em que houve uma significativa produção de
HQs voltadas à didatização de conteúdos históricos, o que era considerado como
adequado à formação da juventude, intelectual e moralmente falando. Para
DUTRA (2003, p.12):
Os quadrinhos com temas históricos freqüentemente se tornam ufanistas nas mãos de
movimentos nacionalistas (...) No Brasil, o nacionalismo oficial pós-golpe de 64
também usou os quadrinhos como meio de cativar as crianças num esforço de
fabricação de um sentimento patriótico. Ainda são bastante conhecidas entre nós as
séries de biografias de grandes vultos históricos.
Nesse período, foram várias as produções, intituladas “Grandes Figuras
em quadrinhos”, tendo como temática a biografia romanceada de heróis
nacionais, como Duque de Caxias, Getúlio Vargas e Oswaldo Cruz. Tais obras,
publicadas pela Editora Brasil-América (EBAL), eram apresentadas em preto-e-
branco, sem o ritmo e a agilidade que caracterizariam os quadrinhos. Em relação
a tais produções quadrinizadas, CALAZANS (2004, p. 11) afirma:
... as HQs eram descritivas e monótonas, estáticas, sem ação nem envolvimento
emocional, sem nenhum suspense (...) abusando de enormes balões de texto e quadros
informativos em linguagem pomposa e difícil, um tom de Diário Oficial ou ofício-
memorando, documento burocrático...
Sem dúvida, a ausência de movimento, de ações e tramas mais elaboradas,
fazia das “Grandes Figuras em Quadrinhos” uma tentativa equivocada ao unir o
conhecimento histórico biográfico à linguagem dos quadrinhos. Afinal, as HQs,
por serem compostas de uma relação dinâmica e simbiótica entre texto e imagem,
apresentam-se como uma linguagem repleta de especificidades. O texto escrito
tem uma fundamental importância por encaminhar, juntamente com a imagem, o
leitor a um desfecho desejado.
86
No universo acadêmico, o texto reina soberano nas tessituras do
conhecimento histórico. E nessas biografias quadrinizadas manifesta-se,
portanto, uma preocupação constante em priorizar o texto, deixando o desenho
como elemento secundário, com função apenas de complementar e referendar as
informações textuais, sem que haja uma dialogização ou interação dinâmica entre
as linguagens.
Nesses casos, o texto e a busca pela fidelidade e autenticidade do fato
histórico são os focos que absorvem a atenção dos autores dos quadrinhos, que
demonstram uma pretensão de contar “o fato da forma como se acredita que
realmente aconteceu no passado”, de modo rígido e rigoroso, sem perder a
representação social de um texto escrito considerado sério”. Dessa forma,
acredita-se transmitir a seriedade do conhecimento histórico, que passa de um
texto narrativo para a quadrinização, mas cujo sentido pouco se altera, em função
do pouco investimento na passagem para os quadrinhos e em suas características
específicas, como a flexibilidade e a própria liberdade estética, por exemplo.
Os quadrinhos, articulados com o conhecimento histórico, podem ser
considerados como uma referência visual importante e eloqüente para um
passado que existe apenas na imaginação e em textos escritos. Esse é o caso da
representação gráfica dos bandeirantes, feita por Belmonte (pseudônimo de
Benedito Canero Bastos Barreto) em seu livro No Tempo dos Bandeirantes, de
1939. CERRI (1998) analisa a importância de Belmonte ao construir a clássica
referência no imaginário coletivo de nosso País, relativa à representação dos
bandeirantes, cujas imagens são as de homens que pertencem predominantemente
à etnia branca, e que apresentam uma postura épica e grandiosa, além de uma
indumentária característica, como chapéu, colete e botas de couro.
Evidentemente, nessas representações destacadas, os traços adquirem uma
atenção especial, pois passam a ser uma referência a uma veracidade
historiográfica que se almeja transmitir.
87
Como essa informação histórica está carregada de um sentido ufanista,
nacionalista e heróico, os desenhos devem estar rigorosamente impregnados por
tais significados. Por esse motivo, as onomatopéias inexistem, os traços devem
ser adultos e sérios, e as figuras humanas trazem expressões severas, estáticas ou
com pouco movimento. Os rostos dos personagens aparecem, com freqüência, de
forma sombreada e pouco expressiva. Essas condições, de certa forma, garantem
à obra uma possível seriedade, já que esta se propõe a quadrinizar o fato histórico
como “ele de fato ocorreu”, sem a interferência do humor, da crítica ou da ficção,
elementos que poderiam “comprometer” e relativizar a autenticidade e a
fidelidade histórica para com um passado heróico e absoluto, no qual os
personagens são portadores de ações tão generosas e valentes, que estão acima da
maioria da população “comum”, que não está presente na História. Esse é o caso,
por exemplo, da biografia romanceada de Caxias, o Pacificador, representada
como uma figura ilustre sempre pronta a combater o mal que se manifesta em
lutas e rebeliões como a Balaiada e a Revolução Farroupilha.
A quase que total ausência de dinâmica nas histórias em quadrinhos com
pretensão didática, como a Coleção “Grandes Figuras em Quadrinhos”, oferece-
nos um outro elemento a ser levado em consideração, e que se constitui em um
fator de extrema importância: a noção de tempo.
O tempo é uma questão central da História; é também, em um dos seus
aspectos, um problema a ser resolvido na construção de uma história em
quadrinhos, visto que esta linguagem pode ser descrita como arte seqüencial,
caracterizada por um certo ritmo e dinamismo. A questão do tempo, entretanto,
não é um problema de ordem tão urgente para a prosa, principal forma de
expressão da narrativa histórica.
Um aspecto que consideramos essencial nessa perspectiva é o fato de que
essa estrutura pode passar a ser utilizada fartamente por autores de quadrinhos
que se propõem a contar “toda a história”, em detalhes mínimos, buscando
mostrar, através dos quadrinhos, “a história como realmente aconteceu”.
88
E a “tranqüilidade” da prosa para com o tempo torna-se um elemento
conflitante e dificilmente compatível com a dinâmica dos quadrinhos, que
perdem sua energia e vitalidade frente a uma prosa excessivamente extensa e
arrastada. Para nós, essa parece ser uma problemática central a ser analisada, ao
se evidenciar o choque entre a narrativa histórica tradicional e a linguagem dos
quadrinhos, que exige agilidade e dinâmica espaço-temporal. Nesse caso, perde a
história, por ser encarada de forma monolítica e cristalizada, e perdem os
quadrinhos, que deixam de ser ágeis e interessantes, para se tornarem meros
coadjuvantes de uma história factual.
Na perspectiva da relação quadrinhos-tempo-texto, podemos considerar
que a presença obrigatória da imagem, quando se trata do conteúdo histórico,
introduz uma representação gráfica da informação histórica. Essa representação
pode tanto enriquecer o quadro de referências que o aluno-leitor tem do passado,
quanto conduzir a referências visuais anacrônicas. O dado central, todavia, é que
essa relação faz com que a experiência de leitura das HQs guarde expressivas
distinções com a leitura de um texto apenas escrito.
FIGURA 4 – A BALAIADA (1)
FONTE: MIRANDA, N. da R. Caxias: o pacificador. p.14.
89
FIGURA 5 – A BALAIADA (2)
FONTE: MIRANDA, N. da R. Caxias: o pacificador. p.15.
90
O exemplo anterior permite apontar alguns elementos significativos do
que viemos discutindo até aqui. A obra não consegue "soltar-se" do texto. Cada
quadrinho tem no topo uma caixa de texto que funciona como uma espécie de
"narrador". Sua função parece ser a de dar a visão de conjunto, enquanto os
desenhos servem de exemplo ou de cenas pontuais do que está sendo descrito.
Desse modo, os desenhos estão na dependência completa desse texto, sem o qual
o restante do material ficaria incompreensível, perdendo a unidade de sentido.
Essa relação frágil entre o texto das caixas e o restante fica mais clara quando
observamos o 3
o
quadrinho da figura 5, que é totalmente textual, independente de
balões, desenhos ou onomatopéias.
No que se refere ao ritmo, é possível notar a falta de seqüência entre os
quadros, desconectados entre si: personagens, cenários e atos não têm
continuidade entre um quadrinho e outro, já que, como se afirmou acima, a
função dos desenhos é seguir o texto, e esse não oferece uma narrativa articulada,
não conta uma história, mas enfileira um rosário de acontecimentos. A pretensão
de elencar os fatos para estabelecer uma visão panorâmica do evento afasta esse
tipo de narrativa historiográfica bem como, convenhamos, a maioria das
narrativas historiográficas do formato de uma história contada, que tem
elementos de permanência paisagens, personagens, e outros tecidos de modo
hábil para produzir um efeito estético, no qual são transportadas as intenções do
narrador.
O discurso historiográfico adotado é tradicional, tomando o partido
contrário à revolta e entendendo-a como desordem e crime, sobretudo. O traço
nesses desenhos transforma os revoltosos não apenas em vilões, mas
praticamente em seres subumanos, como se pode notar no último quadrinho, em
que os desenhos traduzem os termos "selvagem” e "brutal".
Cabe salientar que, por ter sido produzida em 1971, a obra quadrinizada é
um reflexo das contradições vividas durante aquele contexto sócio-político
representado pela Ditadura Militar e suas conseqüentes determinações históricas.
91
3.1 A INOVAÇÃO NOS LIVROS DIDÁTICOS DE JULIERME
Em meados da década de 1960, o professor Julierme de Abreu e Castro
34
lança algumas obras consideradas extremamente inovadoras para aquele período.
Ao contrário dos tradicionais livros cujo conteúdo reduzia-se a textos e
questionários com ênfase na memorização, enfatizando datas e nomes, os
manuais didáticos de Julierme eram bastante ilustrados, entremeados com
exercícios de cunho objetivo, como o preenchimento de lacunas, a resolução de
palavras cruzadas e o relacionamento de colunas. Se para os padrões atuais, tais
exercícios parecem igualmente tradicionais, o mesmo não ocorria em fins dos
anos de 1960 e meados dos anos 1970. Já no início de seu livro de “História
Geral: história para a escola moderna” (1971, p.4), o autor afirmava:
A História, como qualquer outra disciplina estudada nos cursos médios, não deve ter
caráter simplesmente informativo e sim, formativo. [grifo do autor] Ao lado da
Geografia, é responsável pelo ajustamento do jovem estudante em seu meio
35
, [sem
grifo no original] proporcionando-lhe elementos para sua perfeita endoculturação. É
mister, por isso, que seja ministrada de forma atraente e interessante.
Os livros de Julierme, além dos exercícios citados, possuíam textos
ilustrados por figuras coloridas. Os textos (roteiro e legendas) eram produzidos
pelo próprio Julierme, e os desenhos, pelos desenhistas argentinos Eugênio
Colonnese (italiano de nascimento) e Rodolfo Zalla
36
. No que se refere à inserção
de quadrinhos em livros didáticos, afirmava JULIERME (1971, p.8): “A
experiência demonstrou a validade do emprego da técnica do quadrinho no livro
34
O professor Julierme de Abreu e Castro, falecido em 1983, é considerado um pioneiro ao
inserir histórias em quadrinhos e exercícios diferenciados (como cruzadinhas) nos manuais
didáticos.
35
A consideração do autor, ao referir-se ao ajustamento do jovem ao meio, ilustra a concepção
tecnicista de educação, com objetivo claro de adequar, adaptar o indivíduo à sociedade onde se
inseria. Essa conotação o retira, entretanto, o caráter inovador da obra de Julierme, que se
tornou, de acordo com CALAZANS (2000, p.10), o livro didático mais adotado naquele
momento.
36
Colonnese criou em 1967, Mirza, a Mulher Vampira, um grande sucesso dos quadrinhos de
terror e que precedeu a americana Vampirella, de 1969. Zalla, que tem uma carreira como
editor de HQs, destaca-se, principalmente, como desenhista, tendo percorrido diferentes
gêneros, do terror aos quadrinhos de faroeste e guerra. Ambos o reconhecidos como
referência nacional e considerados dois dos maiores quadrinistas do Brasil.
92
didático a julgar pelas numerosas cartas de professores em nosso poder e pelo
aumento do interesse do estudante pela História, testemunhado por todas elas.” E
mais a seguir, ao descrever o encaminhamento pedagógico dado aos seus
manuais (1971, p.9):
A primeira parte (ilustrações) oferece, pela qualidade das imagens, excelente material
de motivação
37
. A par dos desenhos, o texto-legenda é o que normalmente está contido
nos livros comuns. O professor poderá aproveitar as imagens para discutir, com seus
alunos, questões relativas à cultura da época (trajes, mobiliário, arquitetura, armas,
tipos de fortificação, meios de transporte etc.). Poderá, também, distribuir trabalhos de
pesquisa de maior profundidade, tendo o livro como ponto de partida.
Como se vê, os livros didáticos de Julierme buscavam ir além dos modelos
propostos por manuais didáticos tradicionais. As características dos exercícios,
embora de formato inovador para a época, deixam entrever a visão de História à
qual os quadrinhos serviriam: o conhecimento e a retenção de informações
pontuais, vinculadas a uma narrativa genérica de um conteúdo que se oferecia
como "toda a História" ou "o essencial da História". O caráter objetivo dos
mesmos está ligado a uma compreensão da História como conhecimento também
objetivo.
Ao levarmos em consideração as proposições de BIBE-LUYTEN (1984,
p.88) buscamos analisar, na obra de Julierme, a relação com o conteúdo da
disciplina de História e sua articulação com a linguagem dos quadrinhos em sua
especificidade.
Nesse aspecto, podemos observar em seu livro uma preocupação com a
qualidade dos desenhos, bem construídos, e uma presença de cores bastante
definidas, que se apresentam em uma boa proporção, sem excessos. Esses
elementos caracterizam alguns dos aspectos positivos dos quadrinhos
apresentados.
37
Destaques em itálico – grifos do autor.
93
FIGURA 6 – OS QUADRINHOS NOS LIVROS DE JULIERME
Fonte: CASTRO, J.de. A. e. História do Brasil para Estudos Sociais. p. 333.
94
No que se refere aos quadrinhos como uma arte em seqüência,
acreditamos que esse constitua um aspecto mais fragilizado da obra de Julierme,
pois ainda que se busque um dinamismo e uma ação mais presentes, cada
enquadramento acaba parecendo um tanto fechado e isolado em relação aos
demais. Essa sensação se acentua pelo excesso de textos nas legendas, em torno
de dez a doze linhas, e chegando a ter mais de vinte linhas. Essa disposição dos
textos acaba por desprender a atenção do leitor, que a imobilidade da imagem
diante do excesso de informação se torna cansativa. A ausência de outros
recursos, como balões e onomatopéias, é outro elemento limitador à dinâmica da
história. O fato de utilizar fotografias como componente do conjunto didático é
um indicador de que a linguagem dos quadrinhos é apropriada e reconstruída
para a finalidade do livro, nesse caso, apresentar documentos históricos, além de
representar as narrativas através de desenhos.
Ao analisarmos seu livro de série do Grau, “História do Brasil para
Estudos Sociais”, percebemos a presença ainda que pequena de balões, o que
maior fluência à trama. De acordo com o Julierme, faz-se uma diferenciação
entre a produção para os alunos do 1º e do 2º Graus (ou curso médio):
Neste volume, destinado a alunos que concluem o 1º ciclo do curso médio, continuamos
a empregar a mesma técnica (quadrinhos como motivação ; texto adicional para
pesquisa em estudo dirigido). Como se trata, porém, de alunos mais maduros,
reservamos algumas lições, propositalmente, sem a parte inicial (quadrinhos) mas
fartamente ilustradas e com bastante ênfase no texto. Assim, sem sentir, o aluno vai se
acostumando à pesquisa de texto tradicional, ficando preparado para, no ciclo,
realizar trabalhos de maior profundidade, sem a necessidade da cnica empregada
nas séries iniciais do 1º ciclo (Castro, 1971, p.8)
38
.
Fica evidente, nessa argumentação, que o autor considera os quadrinhos
como uma técnica destinada a motivar os educandos, que já o se faz tão
necessária para os alunos do curso médio (ou Grau), na medida em que se
tornam capazes de compreender e produzir trabalhos com textos de forma
tradicional.
38
Destaques em itálico – grifo do autor; os negritos são grifos nossos.
95
Ao utilizar a palavra técnica, destaca-se o caráter pragmático e utilitarista
em relação à linguagem, tida apenas como um recurso inicial e não uma
linguagem integral, com suficiência própria. Nessa relação texto-ilustração, a
narração de histórias mais complexas acaba não sendo compatível com a
produção de quadrinhos por seu caráter dispendioso e pouco necessário. Deixa-
se, então, de investir na criação de quadrinhos à medida que o leitor pode
compreender e adaptar-se bem à linguagem textual. Essas considerações,
entretanto, não retiram da obra seu mérito, pois busca romper com a estrutura
tradicional dos livros didáticos vigente nas décadas de 1960 e 1970.
Alguns depoimentos, como o do professor Flávio Alcântara CALAZANS
(2004) destacam o fato de que passaram a gostar de História em função das
histórias em quadrinhos presentes nos livros de Julierme. Segundo o autor
(CALAZANS, 2004, p.10): “Eu mesmo tive minhas primeiras aulas de Geografia
e História nestes livros, no início da década de 70, o que contribuiu sobremaneira
para minha vocação de pesquisador, autor e professor envolvido com
quadrinhos”.
3.2 HISTÓRIA E HUMOR CAI O IMPÉRIO: REPÚBLICA VOU
VER
Além desses exemplos, gostaríamos de salientar uma produção igualmente
significativa, em relação aos quadrinhos e conhecimento sobre a História do
Brasil. Trata-se de “Cai o Império: República Vou Ver!” (1983), uma obra
paradidática realizada pela historiadora Lilia Moritz Schwarcz
39
, em parceria
39
Lilia Katri Moritz Schwarcz, historiadora, antropóloga e professora livre-docente no
Departamento de Antropologia da Universidade de São Paulo. É autora de inúmeras obras, entre
elas Da Colônia ao Império um Brasil para inglês ver e latifúndio nenhum botar defeito”,
com Miguel Paiva e “As Barbas do Imperador” (1998), além de ter coordenado o volume da
História da Vida Privada no Brasil: contrastes da intimidade contemporânea” (1998).
96
com o cartunista Angeli
40
, com referenciais historiográficos e estéticos
completamente distintos das obras analisadas acima.
O livro aborda a História do Brasil, com alguns focos como “O Golpe da
Maioridade de D. Pedro II”; “As Eleições do Cacete”; o poder das elites e
partidos políticos; o domínio britânico; o tráfico e o escravismo no Brasil; a
chegada dos imigrantes e a “Guerra do Paraguai”.
Para tanto, os autores fazem uso de recursos como cartum, fotografias e
informações históricas aspectos permeados com críticas sociais bastante
consistentes e uma boa dose de humor (alguns personagens são apresentados no
final, como o agitador profissional Teodoro da Mata, o conservador escriturário
Agenor de Deus e o militante negro Zulu Bulu Nugu) .
Além disso, a produção faz referências constantes a elementos da cultura
brasileira, como os movimentos sociais: negritude, ecologia, participação
política, dentre outros; a música, presente por meio das figuras de Gilberto Gil,
Caetano Veloso e Chico Buarque; programas televisivos como o Jornal
Nacional e figuras públicas como Paulo Maluf e Cid Moreira. No final, até
um “joguinho histórico”: “Com quantos pontos se faz uma República”.
Para que não paire dúvida sobre a preocupação pedagógica dos autores,
uma sugestão de bibliografia a ser consultada sobre a temática abordada
(Segundo Império; Escravidão; a mão-de-obra no Segundo Império e a Guerra do
Paraguai). Fica evidente, ao longo e no corpo de toda a obra, uma proposta de
diversão, interatividade e identificação com os aspectos culturais brasileiros,
integrando-se com informações e momentos significativos da história nacional.
A obra, de autoria da historiadora Lilia Schwarcz, garante um parâmetro e
uma sustentação em relação ao conhecimento histórico, que se mescla,
entretanto, a uma história que se apresenta relacionada e refletida em nossa vida
cotidiana, de modo leve, informal e divertido.
40
Arnaldo Angeli Filho é considerado um dos grandes desenhistas de quadrinhos, charges e
cartuns da atualidade, famoso por ter criado personagens como Bob Cuspe e a Rê Bordosa, além
da revista Chiclete com Banana, um marco da cultura pop na década de 1980. No currículo do
autor (que se autodefine como anarquista) também merecem destaque as charges, repletas de
ácidas críticas sociais e a sua participação no universo dos quadrinhos underground.
97
Nesse sentido, o leitor pode se identificar na história do País, com suas
incoerências, avanços e mazelas, a partir das informações, mas também a partir
de exercício da liberdade evidente no poder do escracho.
Todos esses fatores devem, entretanto, ser analisados a partir do contexto
que os propiciou: era o início da década de 1980, e o processo de abertura
política e redemocratização do Brasil era a âncora sustentadora de tais opções e
possibilidades políticas, estéticas e argumentativas.
O fato de Angeli ser o ilustrador, também é algo a ser destacado: sua
postura, naquele período, como desenhista alternativo”, é um indicativo do
percurso a ser adotado e presente no livro “Cai o Império: República Vou Ver!”.
Enquanto Lilia Schwarcz oferece o respaldo disciplinar para a história,
Angeli oferece um comprometimento com a realidade nacional, sem a rigidez do
status quo. Assim, sem ser uma obra de ficção, o livro torna possível abordar a
história passada através do entretenimento e do cotidiano.
98
FIGURA 7 – O HUMOR NOS QUADRINHOS DE REPÚBLICA VOU
VER (1)
FONTE: ANGELI; SCHWARCZ L. M. Cai o Império: República vou ver. p. 32
99
FIGURA 8 – O HUMOR NOS QUADRINHOS DE REPÚBLICA VOU
VER (2)
FONTE: ANGELI; SCHWARCZ L. M. Cai o Império: República vou ver. p. 42.
100
Também nesse exemplo, fica patente a articulação entre concepção de
História e estruturação da linguagem dos quadrinhos. Nesse caso, a idéia de
História como construção, como esforço analítico das narrativas, permite a
metalinguagem utilizada, com os personagens discutindo o enredo e mesmo
questionando os autores. Ao contrário das HQs anteriores, o traço do artista o
contempla a preocupação figurativa, valendo-se de caricaturas para representar os
personagens em vez de procurar representá-los realisticamente. Outros dados a
destacar: os personagens representam mais idéias que pessoas específicas, o que
reforça a perspectiva de História com sujeito coletivo, difuso, distinto dos
próceres tradicionais; além disso, não cenário nos quadrinhos das páginas
reproduzidas, apenas os personagens em seus diálogos. O bloco de texto ao final
da figura 8 aparece dentro de uma perspectiva muito mais integrada ao enredo
que nos exemplos anteriores, pois deriva do mesmo: trata-se da "explicação dos
autores" que é cobrada por um dos personagens, aquele que carrega o estereótipo
de esquerdista e contestador.
Nessa obra, os quadrinhos não ficam limitados em função da narrativa
textual. A dinâmica presente na história possibilita o contato com o
conhecimento histórico, de forma crítica, mas articulada com o humor.
3.3 LAMPIÃO EM QUADRINHOS
Em 1998, outra produção em quadrinhos acaba por destacar-se ao buscar
uma maior proximidade com o conhecimento histórico. Trata-se de “Lampião...
era o cavalo do tempo atrás da besta da vida”, de Klévisson Viana, vencedora
do Troféu HQ MIX
41
de melhor graphic novel de 1998.
41
O Troféu HQ MIX, considerado o Oscar dos Quadrinhos, foi criado em 1988 pelo cartunista
JAL (José Alberto Lovetro) e pelo editor GUAL (Gualberto Costa). O Prêmio é reconhecido
como o mais importante na América Latina, sendo cobiçado por cartunistas, desenhistas,
chargistas, ilustradores e editores, do Brasil e também do exterior.
101
A obra, cadastrada na Sociedade Brasileira de Estudos do Cangaço,
registra a biografia do cangaceiro Lampião e de seu bando, destacando as
tradições e culturas referentes àquele período, além de mostrar as condições e
características do sertão nordestino. A saga traz informações e fotos sobre os
principais grupos de cangaceiros e outros personagens, bem como expressões e
termos regionais didaticamente explicados. Também são destacados elementos
da cultura nordestina, como as vilas de taipa e tapera, a infância do menino-pé-
duro
42
, os contadores de causos, a caatinga, o povo retirante, as roupas típicas do
cangaceiro e do vaqueiro nordestino. O registro desses elementos é proposital e
justificado: ao longo da produção, o autor salienta a importância do
conhecimento da cultura popular como princípio fundamental para a construção e
fortalecimento da identidade nacional:
Sempre me irritou a falta de referências no tocante à cultura brasileira, de uma forma
mais segmentada. Há bem pouco tempo, quando precisávamos desenhar um índio,
intuitivamente recorríamos aos filmes de faroeste ou qualquer coisa do gênero,
simplesmente porque nossos nativos e suas culturas raramente têm na mídia o espaço
necessário à sua divulgação, graças ao estado de colonização e alienação que nos é
imposto pelos países ditos de primeiro mundo.
O Nordeste sofre o mesmo processo. Nos últimos anos, a teledramaturgia criou muitas
novelas buscando aproximar-se deste universo tão particular do nosso mais genuíno
caboclo, porém acredito que os diretores de arte, redatores, figurinistas e cenógrafos
sempre se depararam com esse mesmo problema: “falta de conhecimento de nossos
próprios valores culturais”. Infelizmente, muitas vezes nos são apresentados
estereótipos, e não a realidade.
Não raro, vemos “cangaceiros” que mais lembram vaqueiros americanos ou tupis
fazendo a dança da chuva e fumando cachimbos da paz (...) Um povo que desconhece
sua própria cultura é sobretudo um povo fraco, vulnerável. Primeiro vamos olhar um
pouco mais para o nosso próprio umbigo e então vamos desbravar o mundo, mas como
nossos próprios olhos.
Esta é minha sincera contribuição aos futuros quadrinistas, cineastas e teatrólogos que
vêem no universo regionalista um campo rico de símbolos, histórias e imagens.
(VIANNA, 2000)
42
Segundo KLÉVISSON, menino-pé-duro é: “Menino autêntico, criado na base da rapadura,
feijão, paçoca, cuscuz e muita traquinagem. Não contaminado pelo vírus da modernidade, tipo
computadores, vídeo-games e mega-drives. Guimarães Rosa o chamaria de Miguilin”.
102
A obra apresenta uma finalidade educativa trazendo, também, uma
orientação para o professor: o texto “Cavalgando do sertão para as salas de
aulas”, escrito pela Profª. Drª. Sonia M. Bibe-Luyten, destaca a importância das
histórias em quadrinhos como uma forma de comunicação e linguagem adequada
à nossa era, por ser dinâmica, fluida e intensa, servindo de reforço à leitura. A
pesquisadora assinala:
O desenhista Klévisson, depois de elaborar a magnífica versão quadrinizada do lendário
Lampião, preocupou-se em fazer um roteiro visual do homem nordestino e daquilo que
o rodeia. Incluindo a paisagem, moradia, utensílios e vestimentas.
Na primeira parte do álbum, a forma quadrinizada narrando um aspecto da vida de
Lampião, leva a uma condução de leitura, isto é, faz transpor o universo contido na
fantasia para a realidade brasileira. Sob este ponto de vista, reaviva a cultura popular e
os valores de nossa cultura. O desenho e o roteiro de Lampião poderá servir, também,
como prática pedagógica e promover discussões em salas de aulas sobre a realidade
brasileira em sua forma regional. A partir dos personagens, a paisagem e os objetos que
o circundam será também possível desenvolver atividades de análise não da forma
dinamismo da história, a representação do cenário, equilíbrio e dinamismo como de
seu conteúdo: análise dos personagens a partir dos heróis, vocabulário que empregam,
sentimentos que despertam no leitor, se a história margem a estereótipos e muitos
outros itens a critério de professores ou grupos de pesquisa.
Na segunda parte deste álbum há uma inclusão de terminologia e um acervo do universo
dos objetos específicos do sertão. é que entram desde os “caçuás” até as simples
panelas de barro, redes e alpercatas e chapéus de couro... (BIBE-LUYTEN, 2000)
Na produção quadrinizada de Lampião, Klévisson utiliza-se de muitos dos
recursos das HQs, aproximando-a da linguagem cinematográfica. Os
enquadramentos e focos de objetos e cenas, a perspectiva, a noção de
movimento, indicada pelos traços e pela postura dos personagens, atribui à obra
ritmo e dinamismo, conduzindo o olhar do leitor e mantendo a atenção no
desenrolar da história.
103
FIGURA 9 – LAMPIÃO ERA O CAVALO DO TEMPO...
Fonte: VIANNA, K. Lampião... era o cavalo do tempo atrás da besta da vida, 2000.
104
Ao final da obra, são registradas as fontes e referenciais de pesquisa, como
livros, fotos, cordéis, filmes, jornais, revistas e simpósios, que possam
complementar e enriquecer as informações acerca de Lampião, do cangaço, e da
cultura nordestina como um todo. A pesquisa e o aprofundamento da obra, e seu
caráter didático, fez com que o álbum fosse selecionado pelo PNLD Programa
Nacional do Livro Didático do Estado de o Paulo, sendo vendidos 3800
exemplares para bibliotecas de São Paulo, além do Ceará e Tocantins
(GUSMAN, 2005).
Um aspecto que consideramos como complicador na utilização do álbum
“Lampião... era o cavalo do tempo atrás da besta da vida” é o custo para o
leitor, em torno de R$ 15,00. Trata-se de um preço condizente com a
apresentação de uma graphic novel, em termos de qualidade gráfica e de
impressão, sendo comercializada em livrarias e comic shops, mas de valor
bastante elevado para uma grande parcela da população brasileira,
particularmente para aquela oriunda das escolas públicas. Tal fato, entretanto,
não tira seu mérito como importante instrumento de circulação do conhecimento
histórico.
3.4 HISTÓRIA DE CURITIBA
A busca de aliar histórias em quadrinhos com a cultura regional tem sido
uma preocupação recorrente na história do Brasil. Além do exemplo de
Klévisson, existem inúmeras experiências em diferentes espaços da realidade
nacional. Podemos citar dois exemplos da história da cidade de Curitiba, contada
através de quadrinhos.
A primeira experiência, Coleção História de Curitiba, ocorrida entre os
anos de 1985 e 1987, foi produzida pela Fundação Cultural de Curitiba, durante
duas Administrações Municipais do PMDB, tendo como Prefeitos Maurício
Fruet e, posteriormente, Roberto Requião.
105
A obra foi apresentada em forma de sete fascículos, com
aproximadamente 20 páginas em cada um deles, e diferentes temáticas sobre a
história curitibana.
O volume 1, “Nas trilhas de Coré Etuba”, registra a origem do nome
“Curitiba” e o início de sua história a partir do povoamento das tribos ameríndias
que ali viviam, seus costumes e tradições, e a chegada dos bandeirantes, no
século XVI. No volume 2, temos “As bandeiras do ouro”, em que se destaca a
presença dos bandeirantes em contato com os ameríndios.
Cronologicamente, tem-se: “Tropas, Senhores e Escravos” (vol. 3), com a
presença dos tropeiros e do trabalho escravo no Paraná, particularmente na vila
de Curitiba; “Erva-mate, sangue verde” (vol. 4) em que se explora a importância
histórica da erva-mate em terras curitibanas; “As novas bandeiras” (vol. 5) que
salienta a chegada dos imigrantes no Planalto; “A cidade sorriso” (vol. 6), em
que é destacada a questão cultural de Curitiba, e seu crescimento, na primeira
metade do século XX e, por fim, “Curitiba: presente! (vol. 7), em que o
registrados acontecimentos significativos da história brasileira em fins do
referido século, como o Milagre Econômico, o fim da Ditadura Militar, a posse
de José Sarney na Presidência da República, a criação de diferentes Partidos
Políticos e a Constituinte.
A Coleção História de Curitiba é produzida em preto-e-branco, com a
narrativa apresentada através de legendas sem diálogos e os desenhos
demonstram-se bem distribuídos e proporcionais em relação ao texto.
A coordenação do projeto é da Profª. Regina Wallbach, a pesquisa, do
Prof. Eduardo Spiller Pena, o texto, de Tabajara Ruas
43
e o desenho do
quadrinista Flávio Colin
44
. E, como se trata de uma obra de cunho didático,
43
Em pesquisa realizada pela Editora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o escritor,
roteirista e cineasta Tabajara Ruas foi considerado um dos dez maiores romancistas da literatura
sul-rio-grandense, roteirizando produções como “Anahy de Las Misiones” (1997) e “Netto
perde sua alma” (2001). Este último, produzido, dirigido e roteirizado por Ruas, a partir de seu
livro homônimo.
44
Flávio Colin é, juntamente com Colonnese e Rodolfo Zalla, considerado um dos maiores
quadrinistas brasileiros, responsável pela quadrinização de sucessos como O Anjo (1959) e O
Vigilante Rodoviário (início da década de 1960).
106
recebe a orientação de professores e pesquisadores de renome, como o Prof. Rui
C. Wachowicz
45
, dentre outros, que fornecem o apoio e a autenticidade
historiográfica às abordagens presentes na obra, além de uma farta bibliografia
sobre o tema. Apesar desses cuidados, a obra apresenta um caráter
acentuadamente descritivo. A ausência de recursos como o envolvimento de
personagens e de uma dinâmica mais intensa, são alguns dos elementos que
podem retirar a atenção do leitor sobre sua história.
45
Rui Wachowicz (1939-2000) Historiador brasileiro, estudioso da história e da cultura
paranaense. Autor de inúmeras obras, como o livro História do Paraná.
107
FIGURA 10 – HISTÓRIA DE CURITIBA
FONTE: História de Curitiba, v.7 (Curitiba: Presente!), p. 12.
108
3.5 HISTÓRIA DE CURITIBA EM QUADRINHOS
a outra proposta da história de Curitiba contada através de quadrinhos
ocorreu em 1993, durante gestão do Prefeito Rafael Greca de Macedo. A
“História de Curitiba em quadrinhos” retrata a História da Cidade, “das Origens
à Proclamação da República”, marcando a comemoração dos 300 anos da Capital
do Estado do Paraná. A produção é resultado da parceria entre o quadrinista
Cláudio Seto
46
e a Profª. Cassiana Lacerda Carollo, e é patrocinada pelo Banco
do Brasil. Em formato americano, suas 85 páginas trazem a História da cidade de
Curitiba contada por um nativo, desde sua origem, até as vésperas da sua entrada
no século XX, passando por questões como: expansão territorial, o escravismo, a
influência dos imigrantes na construção da cidade e suas manifestações culturais,
além das modificações políticas e o crescimento urbano.
A obra apresenta-se totalmente produzida em preto e branco. Os desenhos
são belamente destacados, com traços definidos e detalhados (Figuras 11 e 12).
No final da produção, um glossário, abordando locais, elementos e
personalidades emblemáticas da política e cultura paranaenses.
Como em outras produções já citadas, acreditamos que a ausência de
diálogos, bem como de personagens vivenciando e defendendo suas causas,
acaba por distanciar o leitor da obra, que se torna excessivamente descritiva.
Aliado a esses fatores, a grande quantidade de legendas (Figura 11) é outro
indicativo que compromete a dinâmica da história.
46
Cláudio Seto é reconhecido nacionalmente, particularmente por seu trabalho em relação ao
quadrinho adulto e erótico, misturando influência do mangá (o quadrinho japonês) e da arte
POP européia.
109
FIGURA 11 – HISTÓRIA DE CURITIBA EM QUADRINHOS (1)
FONTE: História de Curitiba em quadrinhos: das origens à Proclamão da República. p. 46.
110
FIGURA 12 – HISTÓRIA DE CURITIBA EM QUADRINHOS (2)
FONTE: História de Curitiba em quadrinhos: das origens à Proclamação da República. p. 56.
111
3.6 SUBVERSIVOS: A LUTA CONTRA A DITADURA MILITAR
NO BRASIL
A história mais recente do Brasil também tem sido contada através das
histórias em quadrinhos. É o exemplo de “Subversivos: a luta contra a ditadura
militar no Brasil” (2001), obra produzida pelos artistas André Diniz (roteiro e
editoração), Laudo e Marco (ilustração) e Omar Viñole
47
. A história é uma obra
de ficção, mas com base em elementos históricos que, mesclados, passam a girar
em torno da resistência e da luta armada contra a ditadura militar e o AI-5. Os
personagens são militantes e guerrilheiros urbanos, jovens e estudantes, cidadãos
de classe média, todos envolvidos com a resistência e o sonho da implantação do
comunismo no Brasil.
A primeira história, “Companheiro Germano”, trata dos pesadelos e
lembranças da jovem Helena, uma militante do MCR Movimento
Revolucionário Comunista, no início dos anos 1970, durante o governo Médici.
Suas recordações trazem à tona o sofrimento, as torturas e agressões sofridas por
todos aqueles que se opunham ao regime militar. Destaca as táticas das
guerrilhas, a reação conservadora de boa parte da sociedade e uma série de
informações de nossa história ainda recente, como o Ato Institucional nº 5.
A segunda parte do livro, “A farsa”, fala-nos da personagem Maria Luiza
Fonseca, a Malu, que testemunha a prisão e o desaparecimento de seu esposo,
Fausto, durante o regime militar. Aqui nos o apresentadas questões como a luta
armada, a clandestinidade, a ação dos militares, as torturas e ameaças, e os
misteriosos “desaparecimentos” dos presos políticos.
47
Arte-finalista na história “Companheiro Germano”.
112
FIGURA 13 – A DITADURA MILITAR NA VIDA NACIONAL
FONTE: DINIZ, A. et al. Subversivos: a luta contra a ditadura militar no Brasil. p.47
113
FIGURA 14 – VIOLÊNCIA E TORTURA NO PERÍODO MILITAR
FONTE: DINIZ, A. et al. Subversivos: a luta contra a ditadura militar no Brasil. p. 85.
114
Ao longo da história, podemos observar a violência, representada pelo
sangue e espancamento no quadrinho da figura 13 e, 2°, e quadros da
figura 14. Além disso, sentimentos como o medo e o sofrimento estampam-se no
semblante da personagem, no último quadro da figura 14, destacado em close-up.
Apesar de não ser uma produção voltada, explicitamente, para o ensino e a
educação escolar, também há, em “Subversivos”, uma grande preocupação
pedagógica no que se refere ao conhecimento histórico abordado: um glossário
explicando termos pertinentes à obra, como “revolucionário”, “Karl Marx” e
“AI-5”, são alguns dos exemplos. Também cabe o destaque de alguns artigos do
Ato Institucional nº. 5 que evidenciam seu caráter arbitrário e ditatorial. Dessa
maneira, apesar dos elementos imaginários, a obra busca, em documentos
históricos, a validação
48
educativa necessária à opção ficcional, sem que se perca
a liberdade estética e lingüística.
Outro aspecto bastante interessante é a proposição de questões específicas
sobre o período militar, sobre a obra e ação dos personagens envolvidos e o
estabelecimento de relações entre o passado e o presente, mudanças e
permanências. A partir daí, são sugeridas pesquisas e debates sobre ditadura,
comunismo, censura e outros temas correlatos. No final, uma indicação de
livros, revistas e documentários sobre o assunto abordado.
Que concepção de história e de educação coloca-se nesta obra? A
perspectiva é de trazer uma outra “verdade” além da versão oficial dos fatos. A
utilização de traço figurativo e não caricatural tem um significado, pois esse
mecanismo confere maior verossimilhança à história contada. Apesar dos
personagens serem fictícios, percebe-se a utilização de um recurso que
caracteriza um aspecto importante da linguagem dos quadrinhos, que é a
presença de narrativas integradoras, permitindo um ritmo entre os quadros.
48
Salientamos que a validação histórica não deve ser confundida com amarração ou
atrelamento, que impede o artista de desenvolver sua produção com liberdade, em termos
estéticos e de concepção.
115
Em relação à linguagem dos quadrinhos, os desenhistas e roteiristas de
“Subversivos” lançam mão de vários recursos das HQs, como a preocupação
com o enquadramento, noção de perspectiva, jogo de luz e sombras, planos
amplos e close-ups. Tais elementos são característicos dos quadrinhos e seu uso
dialoga de forma significativa com a linguagem do cinema, em termos de
estrutura e, sobretudo, de continuidade rítmica. Isso não ocorre nas histórias das
“Grandes Figuras em Quadrinhos”, nos livros de Julierme, ou nos textos sobre
Curitiba. Mas é uma utilização constante na obra de “Lampião... era o cavalo do
tempo atrás da besta da vida”. Em “Cai o Império: República vou ver”, o
destaque está no lado caricatural das situações e os traços representam esse
encaminhamento.
Enquanto elementos da cultura de massa, os quadrinhos devem ser
produzidos, apreciados e, sobretudo, comercializados. Não sentido em uma
sociedade cuja cultura é percebida como produto de uma indústria fortemente
alicerçada, investir-se em uma produção que não seja divulgada e não seja
vendável. Assim, as histórias em quadrinhos tornam-se instrumentos reveladores
da sociedade, pois assumem representações do que as pessoas gostam, e do que
pode ser vendido aos leitores mais ou menos exigentes. Este é um fator que não
pode ser desconsiderado: os quadrinhos são indicadores das percepções, dos
gostos e das representações de uma sociedade que consome. Por outro lado, esse
não é o único fator que impulsiona a produção de quadrinhos.
Podemos perceber, como elemento freqüente na produção HQs históricas,
além da preocupação comercial, uma forte tentativa de envolver e convencer o
leitor de uma idéia, de uma versão histórica. Isso ocorre no engrandecimento aos
heróis nacionais e nas críticas aos movimentos populares, como a Balaiada, como
visto nos quadrinhos sobre a vida do Duque de Caxias, ou em uma obra de cunho
assumidamente mais ficcional, como os quadrinhos sobre a Ditadura Militar. No
primeiro, produzido durante a década de 1960, os balaios e outros manifestantes
são identificados com atitude de crueldade, desordem e vilania. E nesse contexto
116
surge um herói, sempre disposto a libertar a Nação do jugo dos insurretos ou
oportunistas.
em “Subversivos”, entra em foco uma história contada de forma
combativa. Os personagens demonstram suas paixões, crenças e conflitos. Suas
expressões são reveladoras de tais sentimentos, de amor, de ira ou tristeza. Aqui
também os vilões, agentes da repressão e do sistema. Os textos e a
visualização das imagens, de forma combinada, conduzem o leitor a um
sentimento de receptividade e, portanto, a uma orientação desejada pelo plano
narrativo. Essa questão do efeito sensorial, já destacada por EISNER (1995), é
um elemento central nos quadrinhos e, no que se refere aos quadrinhos com uma
abordagem histórica, é ainda mais presente, pois são concepções, representações
e ideologias sobre momentos da história, sendo construídas e transmitidas para o
leitor. o os quadrinhos fazendo com que a História continue exercendo o que
FERRO (1983, p.12) chamaria de “uma dupla função, terapêutica e militante.”
Nessas funções encontramos uma postura missionária, que exalta a magnificência
de um passado glorioso e também a militância que denuncia e defende,
apaixonadamente, um ponto de vista. E em nome de suas verdades pessoais,
criam-se elementos que possam ser transmitidos e vendidos aos leitores dos
quadrinhos.
Gostaríamos de salientar, nesse panorama, que a percepção acerca dos
quadrinhos – inseridos na sociedade contemporânea – não pode reduzi-los a
frutos de uma “criação maquiavélica” de autores que, intencionalmente, passam a
manipular a percepção do leitor. Ocorre que, no campo de batalha da história, em
seus gritos e silêncios, na história oficial e na contra-história, espaço para uma
concretude ideológica, que se configura a partir de toda uma gama de paixões e
defesas, que objetiva transmitir ao leitor, de forma verossímil, a “verdade
histórica” proposta por cada um. Assim, também nas histórias em quadrinhos,
observa-se o confronto pelo domínio da história, pois segundo FERRO (1983,
p.13): “... em cada país permanece uma matriz da História, e essa matriz
dominante marca a consciência coletiva de cada sociedade.”
117
Os quadrinhos participam do mesmo problema metodológico que a
literatura no momento de sua consideração como fonte para a história. As
dúvidas pesavam quanto ao fato de que a literatura, sobretudo a ficcional, não
teria condições de expressar objetivamente a realidade de seu tempo. Essas
dúvidas só se dissipam no contexto das revoluções documentais promovidas
pelos historiadores da Escola dos Annales, entre outros, que aprofundam as
reflexões teóricas e refinam a abordagem técnica dos documentos. Sobre a
literatura, CHALHOUB (1998, p.7-8) afirma:
Definamos, de forma sucinta, o caráter histórico do testemunho literário. Qualquer obra
literária é evidência histórica objetivamente determinada isto é, situada no processo
histórico logo, apresenta propriedades específicas e precisa ser adequadamente
interrogada. Em outras palavras, embora qualquer teoria ou explicação do processo
histórico possa ser proposta, são comprovadamente falsas todas as teorias que não
estejam em conformidade com as determinações das fontes, literárias ou não.
Assim também com os quadrinhos! O que é produzido reflete seu
momento histórico e também interfere na mundivisão de quem e na própria
construção do contexto histórico.
Esse é, de fato, um elemento central a ser
considerado na análise dos quadrinhos enquanto elementos portadores de
conhecimento histórico, que participam do processo de produção e circulação
social das representações do passado.
O texto literário é fonte; a imagem é fonte. Como esses dois veículos se
integram? O que ocorre quando um conhecimento histórico passa a ser escrito, e
mais, quadrinizado, fazendo com que as imagens possibilitem uma força ainda
maior à mensagem escrita? Essas são algumas das dúvidas que nos levam a
pensar a relação entre as histórias em quadrinhos, em toda a sua especificidade, e
o conhecimento histórico a ser abordado em sala de aula.
118
Como afirmamos anteriormente, o objetivo desse capítulo não foi traçar
um panorama sobre os quadrinhos de ou na História Nacional, mas apontar
alguns exemplos e desenvolver análises que permitissem demonstrar a
articulação entre quadrinhos, conhecimento histórico e suas perspectivas
educativas.
No próximo capítulo, procuraremos desenvolver uma análise similar,
partindo de um conjunto de revistas em quadrinhos com preocupação histórica e
didática, com tema interno ao núcleo de conhecimento histórico da História
Nacional Brasileira, e formatado em relação ao saber escolar.
119
4 UM CALENDÁRIO CÍVICO – HISTÓRICO NACIONAL NA
COLEÇÃO “VOCÊ SABIA?”
Neste capítulo, apresenta-se a intenção de justificar e analisar os objetivos
apontados na introdução e discutidos no decorrer deste trabalho, sendo a questão
principal compreender como a mídia, aqui representada pelos quadrinhos,
participa do processo de elaboração do conhecimento histórico e o que ocorre
com este ao ser quadrinizado. Nosso propósito, nessa perspectiva, é fazer uma
análise de conteúdo dos quadrinhos de Maurício de Sousa, enquanto portadores
de um conhecimento histórico. Por esse motivo, reconhecemos que o capítulo se
apresenta extenso, se comparado aos demais. Por outro lado, compreendemos
que para uma análise mais aprofundada essa atitude é necessária.
4.1 DE QUE QUADRINHOS ESTAMOS FALANDO E QUE
PROBLEMAS SÃO COLOCADOS POR ELES NO ENSINO DE
HISTÓRIA
A proposta desta pesquisa deu-se a partir da percepção de que a escola é
uma instituição singular. Mesmo que não possa ser identificada como o único
ou principal caminho para se chegar ao conhecimento, a instituição escolar
representa, ainda, um universo de importância ímpar, podendo ser concebida
como um instrumento capaz de estimular a submissão, a exclusão ou a privação
cultural e social. Mas há, também, uma resistência por parte dos sujeitos
envolvidos no processo, resistência que busca superar o determinismo da
reprodução, e que se manifesta através de experiências, criações, possibilidades,
êxitos, fracassos. É a tentativa de conceber o espaço escolar como um terreno
onde se exercite e quem sabe, até promova o crescimento das
potencialidades, individuais e sociais, através da arte, da reflexão, do conflito.
120
A escola forma e informa, mas não o faz de modo solitário. Estamos
imersos em um mundo marcado pela presença dos meios massivos, que a todo
instante divertem, informam, formam opinião. E, nesse universo, cinema,
programas de televisão, os Role Playing Games, ou jogos de RPG
49
, a
publicidade, jogos eletrônicos e inúmeras outras mídias acabam por veicular
conhecimentos, versões, narrativas, próprias do domínio da História. Nossa
intenção de pesquisa é analisar a presença das histórias em quadrinhos, tomadas
como constituição de diferentes focos de consciência histórica, e sua relação com
o ensino de História. Os quadrinhos têm despertado os interesses de muitos
professores e, talvez por esse motivo, estejam se inserido gradativamente, nas
aulas de História. Mas permanece, nas pesquisas que analisam esta inserção, uma
certa lacuna.
Cabe salientar, nesse aspecto, que estamos nos referindo a quadrinhos
como elementos de um sistema de produção de bens culturais marcado por uma
perspectiva industrial e capitalista. Por conseguinte, entendemos o quadrinho
também como uma mercadoria, num universo próximo ao que produz os livros
didáticos e paradidáticos:
O livro didático é, antes de tudo, uma mercadoria, um produto do mundo da edição que
obedece à evolução das técnicas de fabricação e comercialização pertencentes à lógica
do mercado. Como mercadoria ele sofre interferências variadas em seu processo de
fabricação e comercialização. Em sua construção interferem vários personagens,
iniciando pela figura do editor, passando pelo autor e pelos técnicos especializados dos
processos gráficos, como programadores visuais, ilustradores. É importante destacar que
o livro didático como objeto da indústria cultural impõe uma forma de leitura
organizada por profissionais e não exatamente pelo autor... (BITTENCOURT, 1997,
p.71)
Desse ponto de vista, é possível caracterizar a empresa ou o sistema de
empresas que produzem os quadrinhos como portador de um dos focos da
consciência histórica, como assinalou FERRO, comentado anteriormente.
49
Os Role Playing Games são jogos interativos e interpretativos, em que os participantes
precisam tomar decisões importantes que definem o rumo da História.
121
Não são criadores completos do conteúdo histórico que manejam, mas o
posicionam, sublinham e formatam de acordo com suas concepções e de acordo
com as necessidades que atendem, desde o lucro até a participação em sistemas
de pensamento e identificação mais amplos, como o nacionalismo. Por isso,
segundo Ernesta ZAMBONI:
Os autores dos materiais de divulgação do conhecimento histórico, assim como as
editoras, exercem formas de poder seja na escolha dos temas, seja nas fontes
pesquisadas, como também nas imagens publicitárias criadas para divulgar o
conhecimento. (1992-93, p.176)
Conforme apontamos nos capítulos anteriores, é freqüente que as histórias
em quadrinhos sejam utilizadas como um pretexto, um elemento estimulador do
interesse dos educandos em relação ao ensino de História. Essa é uma concepção
que pode ser encontrada, por exemplo, nos argumentos de JULIERME (1971,
p.8) ao salientar que os quadrinhos podem ser um recurso importante ao
incentivar e despertar a atenção dos alunos mais jovens para a disciplina de
História, mas que esse instrumento ilustrativo se torna desnecessário à medida
que os educandos adquirem novas habilidades e atingem um nível maior de
profundidade em relação aos conhecimentos históricos. Nesse caso, o tradicional
texto escrito seria suficiente, tornando desnecessário ou superado o uso das HQs
como estratégia de ensino. Aliás, o argumento da utilização dos quadrinhos no
ensino, por força da sua capacidade de tornar o aprendizado mais agradável e
dinâmico, é uma constante nos textos que tematizam o ensino de História e a
utilização dos quadrinhos.
Diante de tal consideração, inegavelmente procedente, o posicionamento
desse trabalho – e que se traduz em nossa hipótese – é de analisar o fato de que as
histórias em quadrinhos podem se caracterizar não apenas como mero pretexto,
um estímulo que precede o verdadeiro ensino de História, mas sim de pressupô-
las como “um texto” portador de conhecimento, transmissor e catalisador de uma
perspectiva histórica.
122
Nesse aspecto, os quadrinhos seriam, por eles mesmos, um elemento
central de análise, pesquisa e estudo. E ao analisarmos as HQs como linguagem
que pode expressar focos da consciência histórica, deparamo-nos com algumas
questões relevantes, como sua especificidade enquanto veículo e documento,
fonte de um conhecimento histórico a ser abordado e mobilizado posteriormente.
Ou seja, em que medida os quadrinhos podem concretizar uma concepção e um
conhecimento histórico, como articulam noções essenciais à disciplina da
História, como a questão da memória, do tempo, os fatos e percepções acerca dos
acontecimentos.
Além dessas, outras questões se colocam de forma evidente, na trajetória
desta pesquisa. Uma delas é compreender ou buscar a compreensão das
mudanças que o conhecimento sofre ao ser quadrinizado, transformando-se numa
linguagem própria, com estrutura e dinâmicas específicas, que se aproximam
mas não se confundem – com outras mídias, como o cinema e os desenhos
animados, por exemplo. Assim, a pesquisa almeja pôr em questão as nuances de
um conhecimento histórico ao ser transposto para os quadrinhos. De que modo as
características dos quadrinhos podem interferir positiva ou negativamente na
aprendizagem e na compreensão do conhecimento da História?
Desmembramos, nesse entorno, alguns pressupostos relativos à estrutura
dos quadrinhos e sua presença na escola: um dos elementos a ser considerado é o
de que as HQs se caracterizam como um produto da indústria cultural e da
comunicação de massa. Observamos, assim, que os quadrinhos de maior apelo
junto ao público são aqueles que buscam atender às demandas comerciais e
mercadológicas da sociedade. É a cultura do livro, do texto, transformada em
mercadoria a ser consumida (APPLE, 1995). Nesse aspecto, tais produções
poderiam e podem ser utilizadas em sala de aula? De que forma e com quais
restrições?
Uma outra questão que se apresenta nesta pesquisa está diretamente
relacionada com duas passagens ocorridas durante o trabalho com quadrinhos na
escola. A experiência relatada por Zélia SILVA (1985, p.243) demonstra que
123
certa parcela dos alunos sente dificuldade em entender e aprender História, em
função das “brincadeiras” presentes nos quadrinhos. Uma situação parecida se
repete, através de uma pesquisa de cunho preliminar
50
, feita em uma escola
pública do Município de Curitiba, com 140 alunos de a séries do Ensino
Fundamental. Num breve levantamento, feito através de questionário,
verificamos que uma parte dos jovens ainda não percebeu, ou não destacou,
dimensões educativas nas histórias em quadrinhos, não obstante o fato de estas
serem utilizadas por professores de diferentes disciplinas, em suas práticas
escolares. Ao ser inquirida sobre a função dos quadrinhos, a maioria dos alunos
destacou que são importantes como um incentivo à leitura, e outros registraram
apenas que são importantes para “passar o tempo”, ou quando não se tem nada
para fazer”, como foi salientado por uma aluna.
A partir de situações como essas, observamos que as histórias em
quadrinhos, para uma parcela significativa dos alunos, possuem uma dimensão
lúdica e de entretenimento, que não se relaciona, efetivamente, com
aprendizagem. O que se destaca é a representação que muitos alunos ainda
trazem de aprendizagem e, por conseguinte, de escola. A aprendizagem, nesse
caso, parece ocorrer em um local específico dentro da sala de aula através de
uma rigidez curricular, sob a batuta e orientação metódica do professor. Neste
mundo, marcado pelos meios de comunicação de massa, tem ocorrido certo
diálogo entre os media e as atividades escolares (CITELLI, 2000, p. 18). Mas, de
certa forma, esse diálogo ainda apresenta hiatos, como as representações sociais
do papel da escola e da presença dos meios no espaço escolar.
Sob essas perspectivas, objetivamos com esta pesquisa, analisar como se
a relação entre o leitor suposto/imaginado no processo da produção do
material, a linguagem das HQs e o ensino de História, buscando entender como
50
Parte de pesquisa coletiva intitulada “Cultura de massa e escola: análise da influência da
mídia no cotidiano das práticas escolares”, coordenada pela Profª Drª. Rosa Maria Cardoso
Dalla Costa, e apresentada no V ANPEd Sul, realizada na PUC, entre os dias 27 e 30 de abril de
2004, em Curitiba, Paraná.
124
se articula o conhecimento histórico, decorrente da feitura e da leitura dos
quadrinhos.
4.2 CONSIDERAÇÕES METODOLÓGICAS
Para esta pesquisa, selecionamos a série “Você sabia?”, da Turma da
Mônica, elaborada pela Maurício de Sousa Produções. Os critérios de seleção
desse material são apresentados a seguir.
Em primeiro lugar, a Turma da Mônica constitui o maior êxito editorial
em histórias em quadrinhos no Brasil, atingindo, aproximadamente, uma faixa
mensal de 3,5 milhões de exemplares
51
, tendo vendido algo em torno de 800
milhões de revistas só no Brasil. As publicações da Turma da Mônica estendem-
se para o mercado externo, sendo veiculadas em nove idiomas, como italiano,
japonês, sueco, alemão, javanês e outros.
O sucesso comercial
52
, editorial e o reconhecimento alcançado fazem com
que Maurício de Sousa seja, freqüentemente, comparado a outro mago dos
desenhos: Walt Disney. Diante da comparação, o quadrinista brasileiro diz sentir-
se honrado e afirma: “São caminhos um pouco diferentes, mas o esquema é o
mesmo. O desenho puxando o merchandising, que puxa a revista, os parques, o
lazer, e assim por diante...”. (2003, p. 45).
Em relação aos personagens da Turma da Mônica, pode-se afirmar que as
crianças não são apenas seus leitores, mas consumidores
53
de suas centenas ou
51
O MUNDO DE MÔNICA. (Entrevista de Maurício de Sousa). Família Cristã. São Paulo,
n.778, p.9-11, out.2000.
52
Além das revistas e desenhos (para cinema e televisão), a Maurício de Sousa Produções
possui um quadro com, aproximadamente, 300 funcionários sendo a metade deles artistas. A
organização possui acordos comerciais com 160 empresas, envolvendo cerca de 3000 produtos,
como fraldas, brinquedos, roupas e alimentos para cães. Fonte: O PAI DA MÔNICA (Entrevista
de Maurício de Sousa a Lucia Rito). Seleções. n. 02, p.38-46, 2003.
53
Ao analisar a presença consumidora da criança, frente à questão dos bens culturais, um artigo
da Revista Veja (22/11/1995) destacava: “... as crianças de 2 a 14 anos (...) comem de 60 a 80%
dos iogurtes, 40% dos refrigerantes, 30%dos sorvetes (...) de 25% a 30% da produção de roupas
(CBBA/Propeg 1989. p.8). Representam um alvo exclusivo do mercado de brinquedos, com
faturamento anual de 650 milhões de dólares (Abrinq/CBBA/Propeg) (...) 63% das crianças
paulistas de classe média têm TV no quarto, 91% dos meninos desse segmento de mercado
125
milhares de produtos. A empresa Maurício de Sousa funciona, a exemplo das
demais empresas de entretenimento da contemporaneidade, como a Disney ou a
Lucas Film, articulando a produção de conteúdo com o licenciamento e o
merchandising de produtos e serviços. Segundo Henry Giroux, esse sistema que
articula a produção de conteúdos midiáticos e todo tipo de produtos comerciais
promove uma espécie de “colonização” do universo infantil, preenchendo os
elementos da cultura própria das crianças (brinquedos, brincadeiras, narrativas,
códigos próprios e incompreensíveis para os adultos, ambientes, etc.) com
elementos industrializados surgidos fora de seu controle ou iniciativa (GIROUX,
2004), ainda que possam ser re-significados por ela. Em relação ao valor
comercial e mercadológico de seus quadrinhos, Maurício de SOUSA destaca:
Entretenimento, inclusive história em quadrinhos, é um negócio. É um serviço prestado
por dezenas, às vezes centenas de pessoas, que devem e precisam ser bem remuneradas.
O ideal é encontrarmos um trabalho como no nosso caso específico com
representatividade artística e cultural, para nos permitir gerar empregos e disseminar
mensagens e valores positivos. (2000, p.11)
Além de sua potencialidade comercial, as revistas da Maurício de Sousa
Produções o fortemente apreciadas por crianças em idade escolar e professores
que trabalham com essa faixa etária. Na pesquisa "Cultura de massa e escola"
citada anteriormente, a grande parte das crianças, adolescentes e educadores
entrevistados, destacou a Turma da Mônica como uma de suas revistas
preferidas, ou seja, podemos considerar que se trata de um material de fácil
acesso e uso freqüente, constituindo um duto eficaz para o alcance dos conteúdos
que carrega. A coleção “Você sabia?”
54
de Maurício de Sousa é produzida em
usam xampu; 55%, perfume de colônia; e 65% decidem qual a marca de tênis que irão usar”
(apud CAPPARELLI, p.154-155).
54
Compõem a Coleção os títulos a seguir: ed. 01 - O Descobrimento do Brasil (22/04); ed. 02 -
A Abolição dos escravos (13/05); ed. 03 - Folclore (22/08); ed. 04 - Independência (07/09); ed.
05 - Santos Dumont (23/10); ed. 06 - Proclamação da República (15/11); ed. 07 - Festas – Natal
(25/12) e Ano Novo (31/12); ed. 08 - Histórias em Quadrinhos no Brasil (30/01); ed. 09 - Dia
Mundial da Água (22/03); ed. 10 - Meio Ambiente (05/06); ed. 11 - Olimpíadas 13/08 a
29/08/2004 (essa edição era especificamente desse ano); ed. 12 - Carnaval; ed. 13- Nascimento
de Villa Lobos (05/03); ed. 14 - Dia do Índio (19/04); ed. 15 - Dia do Trabalho (01/05); ed. 16 -
Festa Junina (Santo Antônio 13/06, São João,24/06,São Pedro 29/06);ed.17 Trânsito, em
função do Dia do Motorista (25/07); ed. 18 - Oswaldo Cruz.
126
formato americano, com qualidade de impressão superior às revistinhas
tradicionais e aborda, entre outros, temas da História do Brasil
55
, como Abolição
dos Escravos, a Independência, a Proclamação da República e o Descobrimento
do Brasil, além da biografia de Santos Dumont. Tais obras circulam por todo o
território nacional e seu lançamento nas bancas precede ao Calendário Cívico
Nacional. As publicações da Coleção são distribuídas em todo o Brasil, mas com
uma abrangência não tão expressiva
56
.
Optamos, para a pesquisa, pela seleção dos seguintes temas: O
Descobrimento do Brasil (fascículo publicado originalmente em abril de 2003),
Abolição dos Escravos (de abril de 2004), A Independência do Brasil (agosto de
2003) e a Proclamação da República (outubro de 2004). Assim, buscamos
analisar, a partir da forma e do conteúdo apresentado nessas obras, as concepções
de História nelas presentes, através de elementos como a presença do povo, a
questão do fato histórico, a definição de personagens considerados como ilustres
e assim por diante.
A abordagem partirá do referencial da análise de conteúdo, entendida
como “um conjunto de técnicas de análise das comunicações, que utiliza
procedimentos sistemáticos e objectivos de descrição do conteúdo das
mensagens...” (BARDIN, 2002, p. 38). A perspectiva, portanto, é enfocar a
mensagem em sua especificidade. No nosso caso, a “arte seqüencial”, estruturada
a partir de uma linguagem constituída através de uma articulação de diferentes
linguagens, códigos e referenciais culturais. De acordo com Maria Laura P.
Barbosa FRANCO (2003), no contexto da análise de conteúdo, o autor-produtor
é um selecionador, interpretando as unidades de sentido de acordo com suas
percepções e visão de mundo.
55
De acordo com Cecília Bassarani, Editora-assistente da Ed. Globo, uma assessoria
pedagógica que faz a pesquisa histórica sobre o conteúdo, antes de repassá-lo aos roteiristas
(informação verbal).
56
Abrangência: termo usado para definir o limite atingido por uma publicação dentro do estado.
Por exemplo, uma publicação tradicional da Revista Mônica pode ter uma abrangência de 80%
no Estado de Minas Gerais. Ou seja, ela atinge 80% das bancas desse estado. No caso de “Você
Sabia?”, a abrangência fica entre 40 e 50%. (Entrevista fornecida por Sidney Elias Costa,
Departamento de Vendas da Editora Globo, através de mensagem eletrônica).
127
O presente trabalho, nessa linha, procederá a análise dos objetos de
pesquisa dentro do enfoque que o compreende como mensagem. O tratamento
separará a visão geral dos enunciados, a descrição de como os elementos se
articulam na(s) mensagem(s), procurando, por fim, estabelecer um processo de
interpretação através do confronto com suas fontes, referências e destinações, de
modo a expor uma análise do conhecimento histórico que oferece ao leitor, suas
características, limitações e implicações para pensar esse material como um
componente do processo educativo.
Para isso, a proposta é manter a atenção sobre os significados
explicitamente oferecidos, mas principalmente os significados segundos, das
“entrelinhas”, nem sempre assumidos ou reconhecidos pelo autor, mas que estão
presentes nas fontes e referências que utiliza, de modo a destacar as concepções
que estruturam a mensagem.
A partir de uma abordagem interpretativa, optamos pela descrição e busca
de significados e referências que estruturam as mensagens. Estas, geraram 4
categorias, definidas a posteriori, a saber: a (re) construção iconográfica, que
inclui referências da pintura histórica acadêmica, a construção textual, referente
a documentos textuais consagrados, a busca da construção de uma mensagem
didática que inclui uma expectativa de um determinado perfil de leitor e a
simplificação das narrativas e das interpretações – e, por fim, a construção de um
paralelismo com o tempo e os temas das festas cívicas, que obedecem a uma
relação muito próxima com a cultura escolar.
A partir dessas categorias, procuramos desenvolver a interpretação das
concepções de História e de ensino de História que informam as mensagens.
4.3 ABORDAGEM DESCRITIVA DE ALGUNS EXEMPLARES DA
COLEÇÃO
As publicações em tela, por seguirem o Calendário Cívico, são relançadas
e disponibilizadas periodicamente nas bancas. Sua periodicidade é mensal, a
128
tiragem é de 40 mil exemplares e a venda, encontra-se em torno de 16 mil
exemplares (como foi a edição sobre as Olimpíadas)
57
.
Nas historinhas, são abordados fatos e acontecimentos da História do
Brasil, entremeados com jogos, passatempos e informações históricas, de forma
leve e divertida, indo ao encontro, principalmente, do leitor blico infanto-
juvenil em idade escolar. Os personagens da Turma da Mônica são participantes
e agentes dos acontecimentos e usam o bom humor para responder às
necessidades que surgem; assim, além da referência aos personagens
consolidados no imaginário brasileiro, Mônica, Cebolinha, Cascão, Magali e
outros membros do elenco da Maurício de Souza Produções, esses personagens
assumem também o papel de personagens históricos, numa relação que traz para
o leitor uma percepção do caráter lúdico da obra, concomitante com a sua
preocupação histórica e pedagógica.
Os acontecimentos cívicos são vistos de modo positivo e naturalizado, e
cada personagem ocupa uma função de destaque na trama, conferindo
proximidade do leitor com a história e com as causas por eles defendidas ou
vivenciadas.
Maurício de Sousa, em entrevista concedida à Revista Vozes, em 1969,
destaca o caráter social de seus personagens e histórias:
Para uma população semi-alfabetizada, o quadrinho é importante. A estória em
quadrinho pode perfeitamente ser de uma valia sem tamanho para a divulgação da
cultura e de uma filosofia de vida bem brasileiras, adequadas às nossas condições sócio-
econômicas. O quadrinho pode ser uma arma fabulosa em favor do espírito brasileiro,
da nacionalidade e da cultura. (apud CIRNE, 1975, p. 63)
A argumentação de Maurício de Sousa torna evidente o fato de que, apesar
de ser uma publicação comercial e, portanto, com vistas à lucratividade que
caracteriza tal produto, há uma constante preocupação em abordar conhecimentos
e elementos da História Nacional, a partir de uma certa perspectiva escolar
tradicional, representada por personagens conhecidos, desenhos com traços
infantis e com grandes doses de humor.
57
Sidney E. COSTA, entrevista citada.
129
Todos os fascículos da coleção encontram-se divididos em duas partes. Na
primeira a contextualização da história, a apresentação dos personagens e a
problemática envolvida na situação. A segunda parte traz as soluções encontradas
e o desfecho dos acontecimentos. As duas partes separadas parecem formar uma
minissérie, deixando o leitor em uma condição de expectativa e curiosidade e,
entre elas, são inseridos passatempos e jogos, envolvendo os conteúdos
específicos abordados na obra, como jogos dos sete erros, cruzadinhas, ligue os
pontos e outros. Freqüentemente, também é apresentada uma galeria dos
personagens históricos, como Pedro Álvares Cabral, Nicolau Coelho,
Bartolomeu Dias e outros personagens da Marinha Portuguesa (no fascículo
sobre o Descobrimento do Brasil); a Princesa Isabel, Castro Alves, Rui Barbosa e
José do Patrocínio (no fascículo sobre a Abolição); Dom João, Princesa
Leopoldina, Dom Pedro, José Bonifácio e Carlota Joaquina (Independência do
Brasil); Marechal Deodoro da Fonseca, Quintino Bocaiúva, Benjamin Constant,
Silva Jardim, Floriano Peixoto, Deodoro da Fonseca e Dom Pedro II
(Proclamação da República).
A preocupação em salientar referências visuais com o passado é um dado
que se pode considerar presente ao longo de todos os fascículos, tanto no
desenho dos cenários, no traçado das cortinas, poltronas, cadeiras, candelabros e
outros. Os personagens históricos também apresentam a busca por uma certa
fidelidade com o passado ou com as representações construídas ao longo do
tempo – nos penteados, bigodes, roupas e adereços.
Assim, o coque representa o penteado de Dona Leopoldina (personagem
da Mônica), cuja vestimenta inclui luvas e ias; Dom Pedro é apresentado com
seu indefectível bigode e José Bonifácio surge com o corte de cabelo presente
nas pinturas destacadas pelos livros didáticos. Essas são apenas algumas das
considerações que mostram o cunho educativo da coleção no que se refere à
relação com o tempo e à construção de um imaginário sobre os eventos passados
na História do Brasil.
130
Além das histórias e dos passatempos apresentados nos fascículos, alguns
deles trazem a seção “Você sabia?” com informações e curiosidades sobre fatos
e personalidades históricas destacados na obra.
Em seguida, analisaremos conteúdos e características presentes em cada
um dos fascículos pesquisados.
4.3.1
O
D
ESCOBRIMENTO DO
B
RASIL
O primeiro fascículo da Coleção, “O Descobrimento do Brasil”, encontra-
se dividido em duas partes formadas por, respectivamente, 9 e 6 páginas. A
primeira destaca a importância de se aventurar pelos mares desconhecidos,
durante o século XVI, em busca de novas terras e riquezas, até a chegada dos
portugueses no continente. Nesse primeiro momento da história, são abordadas
questões presentes em grades curriculares e livros didáticos, como as Grandes
Navegações, as rotas comerciais e a importância das especiarias.
A segunda parte, separada da primeira por 17 páginas de jogos e
passatempos, conta como foi o encontro dos navegadores com os nativos das
terras encontradas.
131
FIGURA 15 – TURMA DA MÔNICA NA GRANDE AVENTURA DO
DESCOBRIMENTO
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? O Descobrimento do Brasil. p. 03.
132
A segunda parte ressalta a aparência amigável dos europeus, com Nicolau
Coelho (na figura do personagem Xaveco) acenando e deixando ofertas na praia
para os ameríndios que, após terem fugido assustados, aceitam os presentes e
passam a ter um bom convívio com os europeus. O brilho do sol, o vôo dos
pássaros no horizonte, o verde das árvores e o azul do mar salientam a beleza do
“encontro das duas culturas”.
Em seguida, observa-se a Missa rezada por Frei Henrique de Coimbra,
destacando-se outras figuras representativas da Igreja Católica, as personalidades
reverentes de Pedro Álvares Cabral (Cebolinha) e Pero Vaz “Franjinha”, de
joelhos, além da presença dos ameríndios, em segundo plano. E, em seguida,
uma grande festa que, novamente, salienta o ótimo relacionamento entre nativos
e europeus. Nesse contexto, tem-se Cebolinha, Cascão e Franjinha, além de
outros personagens, como os integrantes da frota portuguesa, e o indiozinho
Papa-Capim e outros personagens da sua aldeia representando os nativos do
Descobrimento.
O encerramento da história aponta para as mudanças que ocorreram no
Brasil a partir desse primeiro contato: o desbravamento das terras, o surgimento
das vilas e cidades, a economia açucareira, a Independência, a Proclamação da
República e a integração entre os povos de diferentes nações e etnias. A presença
dos personagens de mãos dadas sobre o mapa do Brasil denota uma evidente
ausência de conflito social, um clima de harmonia, comemoração e
confraternização entre os povos.
133
FIGURA 16 – O PRIMEIRO CONTATO ENTRE NATIVOS E
EUROPEUS
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? O Descobrimento do Brasil. p. 27.
134
FIGURA 17 – A PRIMEIRA MISSA
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? O Descobrimento do Brasil. p. 29.
135
FIGURA 18 – AS MUDANÇAS OCORRIDAS NO BRASIL A PARTIR DO
DESCOBRIMENTO
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? O Descobrimento do Brasil. p. 31.
136
4.3.2
A
BOLIÇÃO DOS
E
SCRAVOS
No fascículo “Abolição dos Escravos”, Mônica, Cebolinha, Cascão e
Magali convivem com Castro Alves, Rui Barbosa e a presença da delicada
Princesa Isabel, além do “Tio José”, figura de José do Patrocínio, que lhes conta
a história da escravidão, desde o Brasil Colonial e o aprisionamento indígena. Ao
contrário do que ocorreu com a revista sobre “O Descobrimento do Brasil”, na
qual as figuras ilustres da História eram representadas por personagens da Turma,
nesse fascículo os próceres ganham representações próprias que procuram
sintetizar traços e personalidades de sua época. O “Tio José” é caracterizado
como mulato através da cor da pele, mas com certa posição social, apresentada
por meio das roupas distintas (paletó, colete, gravata, em estilos que se
presumem como correspondentes à época).
Logo no início da história, passada em 13 de maio de 1888, José do
Patrocínio mantém um diálogo com a Mônica e demonstra revolta e desespero
diante da escravidão.
FIGURA 19 – JOSÉ DO PATROCÍNIO, ENTRE CASTRO ALVES E RUI
BARBOSA
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Abolição dos Escravos. p. 30.
137
FIGURA 20 – A REVOLTA PROVOCADA PELA ESCRAVIDÃO
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Abolição dos Escravos. p. 03.
138
O personagem de Patrocínio (Tio José) coloca a menininha em seu colo e
passa a relatar a origem da escravidão no Brasil, revelando informações que lhe
causam horror, como o fato de que eram vendidos e tratados como animais, e
afirmando: “Pior ainda é o fato de que negros vendem negros!”.
Em sua narração, Jo do Patrocínio descreve a situação em que os
escravos eram trazidos para o Brasil, nos navios negreiros. Para isso, cita um
trecho do poema “O Navio Negreiro”, de Castro Alves, o poeta dos escravos.
Em seguida, a história aborda questões como o leilão de escravos, a
dramática separação dos membros das famílias e o trabalho escravo na sociedade
açucareira e no cotidiano doméstico da casa grande. A primeira parte do
fascículo termina com passatempos e informações, entremeadas com destaques a
valores éticos como a liberdade e igualdade.
139
FIGURA 21 – O TRÁFICO NEGREIRO
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Abolição dos Escravos. p. 04.
140
FIGURA 22 – AS CONDIÇÕES DOS NAVIOS NEGREIROS E A POESIA
DE CASTRO ALVES
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Abolição dos Escravos. p. 05.
141
FIGURA 23 – PASSATEMPOS INFORMATIVOS
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Abolição dos Escravos. p. 20.
142
Na segunda parte da história, o personagem Rui Barbosa ressalta as ações
de resistência negra, a determinação e as fugas em busca da liberdade, e a criação
dos quilombos, com destaque para Palmares. Na figura a seguir, pode-se
observar um coelho, sorrisos e uma noite enluarada, reforçando a afirmação de
quilombos retratados como espaços harmoniosos, onde viviam os indivíduos que
haviam logrado escapar do papel a eles destinado numa sociedade escravista e
patriarcal.
A história apresenta, também, as contribuições e a importância dos
elementos da cultura negra para a sociedade brasileira, as leis que antecederam a
libertação
58
, até a assinatura da Lei Áurea, pelas mãos da Princesa Isabel,
influenciada pelas idéias da pequena Mônica.
Observa-se, na figura 26, a Princesa representada fisicamente com formas
fartas e arredondadas, e seus olhos grandes e boca pequena expressam
feminilidade e doçura. O espaço onde foi assinada a Lei que decretaria o fim da
escravidão no Brasil é apresentado com um cenário de tonalidades claras e piso
brilhante e, ao assinar a Lei Áurea, apresentando-a na sacada do Palácio, o Sol
brilha radiante acima da população exultante. Já a palavra “fim” encontra-se
junto de algemas partidas, aliando a conclusão da história propriamente dita com
o encerramento das práticas de escravidão no País.
58
A Lei do Ventre Livre (ou Lei Rio Branco), de 28 de setembro de 1871, e a Lei dos
Sexagenários (Lei Saraiva - Cotegipe), de 28 de setembro de 1885.
143
FIGURA 24 – OS QUILOMBOS
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Abolição dos Escravos. p. 29.
144
FIGURA 25 – OS NEGROS E SUAS CONTRIBUIÇÕES CULTURAIS
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Abolição dos Escravos. p. 31.
145
FIGURA 26 – A EXTINÇÃO DA ESCRAVIDÃO NO BRASIL
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Abolição dos Escravos. p. 33.
146
4.3.3
A
I
NDEPENDÊNCIA DO
B
RASIL
Em agosto de 2003, foi publicada a obra Independência do Brasil, em que
a Turma da Mônica se vê às voltas com a Família Imperial no Brasil, fato
ocorrido a partir do Bloqueio Continental na Europa, imposto por Napoleão
Bonaparte. A primeira página da revista contém uma releitura de outra obra dos
quadrinhos, Asterix, o gaulês, de Goscinny e Uderzo, cujas aberturas eram
marcadas por um mapa estilizado e um comentário escrito sobre a dominação
romana e a existência de uma aldeia gaulesa a ela resistente. É interessante notar
que essa referência mostra, por um lado, que o processo de construção da
mensagem no conjunto da revista guarda um diálogo com vários outros “textos”
quadrinhísticos; por outro, o leitor imaginado, caso não seja um aficionado em
quadrinhos, não reconhecerá essa referência.
Como ocorre com as demais obras da Coleção, os personagens
conhecidos da Turma da Mônica tornam-se personalidades marcantes da História
do Brasil. Ao representarem tais papéis, sempre de forma cativante e bem-
humorada, aparecem vestidos em trajes de gala, representando toda a pompa e
tradição da Família Imperial. Mesmo o Cascão, que não representa nenhuma
pessoa “da família”, surge como um oficial do governo imperial, um Dragão da
Independência”
59
, como se pode observar na figura 28.
59
A Guarda Palaciana foi criada em 1808, por Dom João VI. A Unidade Militar recebeu a atual
denominação em 1846, e representa o Batalhão da Guarda Presidencial, tendo-se mudado do
Rio de Janeiro para Brasília em 1968. Extraído de: <http://www.presidencia.gov.br/gsi/
subchefia/dragoes. htm>.
147
FIGURA 27 – O BLOQUEIO CONTINENTAL
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Independência do Brasil. p. 03.
148
FIGURA 28 FIGURAS EMBLEMÁTICAS DA NAÇÃO PELOS OLHOS DE
MAURÍCIO DE SOUSA
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Independência do Brasil. p. 09.
149
Nos quadrinhos sobre a Independência, são ressaltados e contados
momentos clássicos da narrativa histórica tradicional, como a chegada da Corte
ao Rio de Janeiro (Figura 29), o regresso de Dom João VI a Portugal, em
1821(Figura 30), o Dia do Fico, em 9 de janeiro de 1822 (Figuras 31 e 32) e,
finalmente, a Proclamação da Independência, em 7 de setembro do mesmo ano
(Figuras 49 e 50).
Na figura 30, Dom João profere a célebre recomendação de deixar seu
filho Pedro como Príncipe Regente do Brasil, prevendo a possível independência
da Colônia, em relação a Portugal.
FIGURA 29 – A CHEGADA DA FAMÍLIA REAL AO BRASIL
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Independência do Brasil. p. 04.
150
FIGURA 30 – RECOMENDAÇÕES DE DOM JOÃO VI A SEU FILHO
PEDRO ANTES DE REGRESSAR A PORTUGAL
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Independência do Brasil. p. 23.
151
As figuras 31 e 32 destacam o Dia do Fico. Pode-se observar, nessas
figuras, a representação de Dona Leopoldina, através do personagem da Mônica,
orientando e aconselhando o marido (Dom Pedro, representado por Cebolinha)
com inteligência e sabedoria. Por outro lado, o humor está presente na postura da
Mônica, briguenta e desafiante. Ao lermos tais quadrinhos, pode-se indagar se
seria essa a impressão a respeito dos personagens históricos, particularmente no
que se refere à Leopoldina, que aparece nos quadrinhos como companheira, sábia
conselheira e ao mesmo tempo impaciente e irritadiça, traços esses da própria
Mônica e que parecem fundir-se à personalidade da Princesa.
Aparecem na sacada os personagens considerados protagonistas do fato:
Dom Pedro apresenta-se com extrema alegria e Dona Leopoldina satisfação,
enquanto José Bonifácio demonstra um semblante sereno e tranqüilo, ao
contrário da ira estampada no rosto de Dom João. E, novamente, como
ocorrido com o exemplar da Abolição, o povo aparece como espectador do fato,
muito celebrado.
152
FIGURA 31 – O DIA DO FICO (1)
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Independência do Brasil. p. 26.
153
FIGURA 32 – O DIA DO FICO (2)
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Independência do Brasil. p. 27.
154
Maurício de Sousa em suas histórias, com freqüência, utiliza-se de
elementos como o absurdo e as referências a outros meios de comunicação, como
o cinema e programas de televisão. Utiliza-se, também, de recursos como a
metalinguagem, a sátira e o humor. Em um desses momentos, observamos Dom
Pedro reclamando a presença de um pintor que registrasse o instante da
Independência, numa alusão que se explicita na cena seguinte ao quadro de
Pedro Américo de Figueiredo e Mello (1843-1905), responsável pela obra
“Independência ou Morte” (1886-1888), conhecida popularmente como O Grito
do Ipiranga”
60
. Aqui, torna-se evidente a ligação entre o quadrinho produzido e a
referência acadêmica. Além disso, introduz para o leitor um componente de
estranhamento que pode tanto desnaturalizar a pintura quanto contribuir para o
engano comum nas crianças de que o quadro, em vez da construção bem
posterior baseada em alguns elementos documentais, fosse uma produção
contemporânea do 7 de Setembro de 1822.
FIGURA 33 – ALUSÃO AO QUADRO DE PEDRO AMÉRICO
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Independência do Brasil. p. 31.
60
MELLO, P. A. de F. e. “Independência ou Morte”, quadro em óleo sobre tela (7,60 m x 4,15
m). Pintado para o Salão de Honra do Museu do Ipiranga, atualmente acervo do Museu Paulista
da Universidade de São Paulo - MP/USP.
155
4.3.4
P
ROCLAMAÇÃO DA
R
EPÚBLICA
O fascículo sobre a “Proclamação da República”, publicado em outubro
de 2004, tem início com o personagem de Tiradentes explicando o conceito de
República a um companheiro de Vila Rica, antes de sua prisão pelo Império
Português. São citadas as tentativas históricas de estabelecimento da República
no Brasil, como a “Confederação do Equador” (1824), a Revolução Farroupilha
com a “República do Piratini” (1836) e a “República Juliana”, em 1839.
Apresenta-se o conceito e as características de um governo monárquico e sua
presença em outros momentos da história Universal, como o Império Romano e
Napoleônico.
Um elemento novo agregado à coleção, que passa mais e mais a adquirir
um contorno com objetivos educativos, é a presença de um selo na capa,
atribuindo à revista uma recomendação para trabalhos escolares.
FIGURA 34 – SELO EDUCATIVO RECOMENDADO PARA
TRABALHOS ESCOLARES
FONTE: SOUSA, M. de. Você
sabia? Proclamação da República.
156
FIGURA 35 – TENTATIVAS DE INSTAURAÇÃO DA REPÚBLICA NO
BRASIL
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Proclamação da República. p. 04.
157
A história sobre a Proclamação da República traz uma argumentação que
consideramos fundamental na análise histórica contemporânea, particularmente
para a questão da aprendizagem histórica: é a História vista como processo, e não
como um amontoado de fatos e atos estanques. Essa é uma concepção que surge
pela primeira vez, de forma evidente, desde o primeiro fascículo da coleção. A
legenda destaca: “As mudanças na história de um país não acontecem de uma
hora pra outra! É um processo que vai acontecendo lentamente...”. Esse é o
momento utilizado para explicar o porquê das mudanças na base de apoio do
monarca, representado pelo elefante Jotalhão mais conhecido pelos comercias
de extrato de tomate de uma famosa marca no mercado destacando a presença
do Exército, da Igreja e dos fazendeiros, junto ao governo (Figura 36). Em
seguida, são apresentados alguns acontecimentos que levaram tais segmentos a
ficarem descontentes com a Monarquia, que passa, lentamente, a perder seus
aliados.
Em um primeiro momento, são apresentados motivos que levaram os
fazendeiros a abandonarem a Monarquia, como o fim da escravidão, decretado
pelo Império, e a postura progressista dos fazendeiros do oeste paulista (Figura
37).
FIGURA 36 – A MONARQUIA E SUA BASE ALIADA
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Proclamação da República. p. 05.
158
FIGURA 37 – OS FAZENDEIROS CONTRA O IMPÉRIO
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Proclamação da República. p. 06 e 07.
159
Lentamente, o governo começa a perder seus aliados. Depois dos
fazendeiros, é a vez da Igreja manifestar-se contra a Monarquia. É a famosa
“Questão Religiosa”, abordada pelos quadrinhos (Figuras 38 e 39). Nesse
momento, são ressaltados os conflitos entre duas instituições bastante poderosas
a Igreja e o governo a presença da maçonaria e a fragilidade crescente do
Império, cada vez mais isolado politicamente.
Em seguida, apresenta-se “A Questão Militar”, com o descontentamento
dos militares com o Império, em função da tradicional defesa de ideais
progressistas, o enfraquecimento nas relações com o governo, a partir do conflito
com o Paraguai – apenas citado na história – a desvalorização do Exército e o seu
contato com os princípios republicanos, nascido das relações com países vizinhos
(Figura 40). A cena mostra o completo isolamento político a que foi submetido o
Império Brasileiro, deixando as portas abertas para o processo de construção da
república.
Após o fim da primeira parte, segue-se a conhecida galeria dos
personagens ilustres, jogos e passatempo relativos ao conteúdo desenvolvido e a
seção “Você sabia?”, trazendo elementos informativos e curiosos sobre o
processo da República no Brasil (Figura 41).
160
FIGURA 38 – A QUESTÃO RELIGIOSA NOS QUADRINHOS (1)
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Proclamação da República. p. 07.
161
FIGURA 39 – A QUESTÃO RELIGIOSA NOS QUADRINHOS (2)
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Proclamação da República. p. 08.
162
FIGURA 40 – A QUESTÃO MILITAR
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Proclamação da República. p. 09.
163
FIGURA 41 – INFORMAÇÕES E CURIOSIDADES
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Proclamação da República. p. 26.
164
A segunda parte da história traz a articulação política para a concretização
da República. Participam do movimento militares, políticos, jornalistas,
professores e outros representantes da sociedade brasileira (Figura 42).
Alguns dos mais influentes republicanos são representados por
personagens da turma, como Titi (Silva Jardim), Franjinha (o jornalista Quintino
Bocaiúva), Cebolinha (o professor Benjamin Constant), e Cascão (o Marechal
Deodoro). A Mônica figura como a representação da República (ver figura 41), e
a Magali faz uma pequena participação no episódio do Baile da Ilha Fiscal
(Figura 43). Em relação a esse episódio, destaca-se a alienação vivida pela elite
monárquica, nas vésperas da Proclamação da República.
165
FIGURA 42 – MOVIMENTAÇÕES PRÓ-REPUBLICANAS
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Proclamação da República. p. 28.
166
FIGURA 43 – A SUNTUOSA FESTA NA ILHA FISCAL
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Proclamação da República. p. 26.
167
4.4 ABORDAGEM INTERPRETATIVA
Neste tópico discutiremos os referencias iconográficos e textuais presentes
nos diferentes fascículos da coleção.
4.4.1
(R
E
)
C
ONSTRUÇÕES
I
CONOGRÁFICAS
:
A
P
INTURA
A
CADÊMICA E
OUTRAS REFERÊNCIAS VISUAIS
A representação da Primeira Missa, no fascículo sobre o Descobrimento,
usa como referência visual a pintura de Victor Meirelles de Lima, A Primeira
Missa no Brasil” (Figura 44), uma obra produzida no período de construção da
própria história nacional (séculos XIX e início do século XX)
61
, com a difusão da
escolaridade para setores mais amplos da população. A tela foi inspirada na Carta
que o escrivão Pero Vaz de Caminha enviou ao rei de Portugal, registrando a
chegada dos portugueses em terras brasileiras. Esse momento primordial, somado
ao talento literário e descritivo de Caminha, possibilitou que seu relato fosse
tomado pela historiografia do século XIX como o documento-primeiro da
História brasileira, pela crença romântica na fusão das raças e a visão do paraíso
nele descrita. E, de um certo modo, a missa consegue integrar os elementos
representados ao longo da carta. Nas palavras de COLI (1998, p. 380):
O cerne do texto concentra-se na cerimônia mais significante: a missa, que congregou
navegadores e índios. Caminha detalha os preparativos, assinalando as diferenças de
cultura: a grande cruz, feita por carpinteiros, o espanto dos índios diante da “ferramenta
de ferro”, eles que possuíam apenas “pedras feitas como cunhas, metidas em um pau
entre duas talas, mui bem atadas”; a cruz, que repousava contra uma árvore, à espera de
sua ereção, devotamente beijada pelos portugueses, imitados em seguida por dez ou
doze nativos; a escolha de um lugar de destaque para a instalação do altar (...) Assim,
sob a égide católica, associam-se numa cena de elevação espiritual, as duas culturas.
61
De acordo com LIMA e FONSECA (2001, p. 93): “Nas primeiras décadas da república a
produção historiográfica manteve-se estreitamente vinculada ao Instituto Histórico e Geográfico
Brasileiro (IHGB) onde, desde a segunda metade do século XIX, desenvolvia-se o projeto de
elaboração de uma história nacional. A princípio, os estudos produzidos (...) eram marcados
pela exaltação da monarquia e da colonização portuguesa no Brasil, vista como a responsável
pela construção dos alicerces da nação. Com o advento da República, as preocupações
voltaram-se para a valorização do novo regime (...) Continuou-se a produzir uma história
centrada nos fatos políticos, nos episódios grandiosos da expansão da colonização e da
ocupação do território brasileiro e, sobretudo, na valorização da idéia de unidade nacional”.
168
Criava-se ali o ato de batismo da nação brasileira. Momento prenhe de significados, que
o projeto de construção de um passado histórico para o Brasil, ocorrido no século XIX,
saberia explorar.
Será a pintura a encarregada de fixar e imprimir nas mentes esse instante inaugural...
Ao interpretar a Carta de Pero Vaz de Caminha, conferindo-lhe
materialidade e consistência imagética, Victor Meirelles representa um marco
iconográfico da formação de uma identidade nacional. Além de Meirelles,
pintores como Pedro Américo, Debret, Rugendas, entre outros, passam a ser
vistos como testemunhas oculares do passado (LIMA e FONSECA, 2001, 94),
atribuindo aos textos um tom de veracidade e fidelidade histórica.
De certa forma, pode-se traçar um paralelo entre essa didatização visual
com base na pintura acadêmica com a didatização verbal, com base na escrita
acadêmica: simplificam-se os traços e elementos e reúnem-se novos fatores
(nesse caso, os personagens da turma da Mônica e o traço padrão das histórias de
Maurício de Sousa) que permitem uma maior proximidade com o universo dos
alunos-leitores, produzindo uma relação de familiaridade com o conteúdo e suas
formas.
A (re)construção quadrinizada do quadro de Victor Meirelles aproxima o
conteúdo didático da pintura presente em muitos manuais didáticos ao
universo infantil, que caracteriza majoritariamente o leitor dos quadrinhos de
Maurício de Sousa. BITTENCOURT (1997, p.77) destaca o fato de que os
quadros mais divulgados e reproduzidos na da História Nacional são:
“Independência ou Morte”, de Pedro Américo, e “A Primeira Missa no Brasil”,
de Victor Meirelles de Lima. Para ela, “tais pinturas têm se prestado à
constituição de uma memória histórica várias gerações”. Nessa perspectiva, a
premissa apresentada por Circe Bittencourt vem corroborar a argumentação de
LIMA e FONSECA (2001, p. 115), ao salientar que:
169
A eficácia das imagens, no entanto, não se restringe à sua competente utilização
didática. As seleções feitas desde a segunda metade do século XIX para ilustrar os
livros didáticos recaíram, predominantemente, sobre imagens que, além de serem
narrativas visuais dos fatos, harmonizavam-se às concepções de história e aos objetivos
gerais do ensino de História em cada época. Impregnadas de valores culturais, essas
imagens, mais do que conformar a memória visual da nação, ajudaram a consolidar
identidades, principalmente em torno das idéias da coesão e da harmonia nacionais.
Algumas obras da arte brasileira, sobretudo da pintura, expressaram essas idéias talvez
melhor que muitos textos escritos e, carregadas de elementos conotativos, são
representações da História do Brasil constantemente lembradas e reinterpretadas. Elas
têm sido responsáveis pelo processo de monumentalização de eventos e de personagens,
mantendo-os sempre presentes na memória e no imaginário coletivos.
Na apresentação das histórias, representa-se a cultura material como
elemento de construção da historicidade (representação de roupas, móveis, cortes
de barba e cabelo, trajes oficiais, jóias...). Utilizam-se, então, elementos do
imaginário corrente sobre o que pode ser considerado “antigo” (elemento de
época), sem necessariamente utilizar, como ocorre com a pintura acadêmica, uma
rigorosa pesquisa documental para levantar informações exatas sobre esses
componentes. Nesse caso, a diminuição da complexidade corresponde à
necessidade de expressar, na representação da cultura material, o passado”, o
“antigo” não correspondendo, fundamentalmente, a uma busca por exatidão na
autenticidade, na representação desses elementos. Por outro lado, em
determinados momentos, obtém-se um maior grau de fidelidade, como a
caracterização do corte de cabelo de José Bonifácio, o traje dos dragões da
independência ou do próprio D. Pedro. Ou seja, a construção material apresenta-
se mais fortemente quando se trata de elementos cuja representação é mais
presente no cotidiano, nas produções com objetivos escolares (como manuais
didáticos, por exemplo), ou até no imaginário coletivo.
170
FIGURA 44 – PRIMEIRA MISSA NO BRASIL
Primeira Missa no Brasil, 1860 Óleo sobre tela, (268
x 356 cm). Museu Nacional de Belas Artes, Rio de
Janeiro.
No fascículo sobre a Abolição, as representações e os traços demonstram
negros com semblante bravo e audaz, enquanto os bandeirantes apresentam
fisionomia rude ou indiferente diante da destruição do quilombo de Palmares.
Nessa perspectiva, as representações presentes nos quadrinhos com abordagem
histórica possibilitam que se conheça e se aproveite tais elementos, utilizando as
histórias na compreensão e no resgate do passado, da cultura e da sociedade em
outros tempos, pois muitas dessas representações estão assentadas em pesquisas
acadêmicas, pinturas e registros.
De outra forma, cabe também destacar as limitações impostas por criações
estereotipadas. É o caso dos bandeirantes representados, que seguem a clássica
construção de Benedito Calixto e de Belmonte, citados anteriormente. Mas
como essa imaginação (colete de couro, chapéu de abas largas, botas de cano
alto, barba e bigode bem aparados em plena selva...) se cristalizou?
171
Com base em certo aspecto da realidade e, fundamentalmente, a partir dos
documentos compilados por historiadores e pesquisadores. Belmonte, em sua
obra “No tempo dos bandeirantes” utiliza-se das pesquisas históricas “... nos
inventários das famílias vicentinas do século XIV e várias obras de Taunay,
Alcântara Machado e outros ‘bandeirologistas’...” (CERRI, 1998, p. 41). Desse
modo, rememora-se uma perspectiva historiográfica construída ao longo dos
anos, no processo de formação de uma identidade nacional, ou regional, como no
caso do bandeirantismo. Por outro lado, se visualmente a representação é
tradicional, no que se refere ao papel atribuído aos bandeirantes, encontra-se o
reflexo de uma historiografia mais recente, portadora de uma leitura crítica e
desmistificadora do papel dos bandeirantes
62
, anteriormente estabelecido como
heróico, dentro do épico do alargamento das fronteiras do Brasil.
A revista apresenta-se impregnada de elementos responsáveis pela
caracterização de um imaginário coletivo sobre a História do Brasil. Nas figuras
a seguir, pode-se verificar a clara influência da pintura de Debret para a descrição
sobre o trabalho dos escravos nas moendas.
62
Por exemplo, DAVIDOFF, Carlos. Bandeirantismo, Verso e Reverso. São Paulo,
Brasiliense, 1986.
172
FIGURA 45 – A MOAGEM DE CANA NOS QUADRINHOS DA TURMA
DA MÔNICA
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Abolição dos Escravos. p. 08.
FIGURA 46 – ENGENHO MANUAL QUE FAZ CALDO DE CANA
Jean Baptiste Debret. Machine à Exprimer Jus de la Canne à
Succre. (1822) Aquarela sobre papel (17,9 x 24,9). Museu Castro
Maya, Rio de Janeiro
FONTE: BELLUZZO, A. M. de M. O Brasil dos viajantes.
Outras referências históricas da coleção encontram-se no fascículo sobre a
Independência do Brasil. A proclamação de Dom Pedro, no “Dia do Fico”
(Figura 32), representa uma cena semelhante ao quadro de Debret, em que Dom
Pedro é aclamado Imperador, no Paço Imperial (Figura 47). Além desta, outra
173
cena nos desperta a atenção: a da Proclamação da Independência do Brasil, a
partir de uma releitura do quadro “Independência ou Morte”, de Pedro Américo.
Este representa, indubitavelmente, um marco na representação e na memória
histórica brasileira no que se refere às lutas contra o domínio português. Em
relação a essa obra, LIMA e FONSECA (2001, p.101) assinalam que: “... abre o
capítulo sobre a proclamação da independência, referendando a proeminência
dada pelo autor à atuação do príncipe D. Pedro no episódio.” Além de ser um dos
quadros mais reproduzidos na História do Brasil, obra geradora de inúmeras
(re)construções e (re)significações servindo de inspiração, inclusive, para o
cinema, como veremos no item relativo às intertextualidades.
174
FIGURA 47 – ACLAMAÇÃO DE DOM PEDRO I NO CAMPO DE
SANTANA
Aclamado imperador, no Paço Imperial, em 12 de outubro. Tela de
Jean-Baptiste Debret. Biblioteca Nacional/Rio. Litografia Aquarelada,
(25,5 x 18,7).
FIGURA 48 – “INDEPENDÊNCIA OU MORTE” – PEDRO AMÉRICO
“Independência ou Morte”, quadro em óleo sobre tela (7,60 m x 4,15 m), de Pedro Américo
de Figueiredo e Mello. Atualmente acervo do Museu Paulista da Universidade de São Paulo –
MP/USP.
175
FIGURA 49 – “INDEPENDÊNCIA OU MORTE” (1) – TURMA DA
MÔNICA
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Independência do Brasil. p. 31.
176
FIGURA 50 – “INDEPENDÊNCIA OU MORTE” (2) – TURMA DA
MÔNICA
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Independência do Brasil. p. 32.
177
Nos quadrinhos dedicados à Proclamação da República, as
(re)construções tomam por base aspectos bastante significativos do período
dedicado à formação do estado nacional já que, somente no fim do Império
passaram a ser discutidas questões como a redefinição de cidadania e formação
da nação. (CARVALHO, 1990). A República seria o período destinado à
construção de mbolos e projetos da História Nacional. Para José Murilo de
CARVALHO (1990, p. 32): “A busca de uma identidade coletiva para o país, de
uma base para a construção da nação, seria tarefa que iria perseguir a geração
intelectual da Primeira república (1889-1930)”.
E em que base seria erigida tal identidade? A resposta estaria na
construção dos símbolos, dos mitos, dos heróis e das verdades a serem
formuladas, repetidas e assimiladas, penetrando as almas do indivíduo e da
nação. Para CARVALHO (1990, p.10):
O extravasamento das visões de república para o mundo extra-elite, ou as tentativas de
operar tal extravasamento (...) não poderia ser feito por meio do discurso, inacessível a
um público com baixo nível de educação formal. Ele teria de ser feito mediante sinais
mais universais, de leitura mais fácil, como as imagens, as alegorias, os símbolos, os
mitos (...) A elaboração de um imaginário é parte integrante da legitimação de qualquer
regime político. É por meio do imaginário que se podem atingir não só a cabeça mas, de
modo especial, o coração, isto é, as aspirações, os medos e as esperanças de um povo.
A produção dos quadrinhos da coleção “Você sabia?” destaca a presença
de personagens, símbolos, fatos e ações construídas historicamente. Elementos
como a representação feminina da República, a imagem do velho Dom Pedro II e
a proclamação vigorosa de Deodoro que se tornaria a imagem oficial do fato
são alguns dos aspectos abordados pela obra.
A imagem criada de Dom Pedro II é aquela construída pela historiografia
tradicional. velho e cansado (representado por um elefante), Dom Pedro foi
considerado ultrapassado por muitos liberais, que o abandonavam, à medida que
seus interesses não eram assegurados pela monarquia. A longa barba, o jeito
bonachão, são alguns dos detalhes que indicam a tranqüilidade do velho
monarca.
178
Ao aluno-leitor, destaca-se o fato de o imperador ter sido abandonado e
menosprezado por aqueles que o acompanharam a vida toda. Ao lado do cansaço
do imperador, ressalta-se o triunfo de Deodoro, nos quadrinhos finais da revista,
uma referência ao quadro de Henrique Bernardelli. Em relação à pintura,
retratando um Deodoro grandioso, sobre o cavalo, José Murilo de CARVALHO
(1990, p.40) assinala:
O quadro é totalmente dominado pela imagem eqüestre do marechal, que ocupa todo o
primeiro plano. As outras figuras aparecem ao fundo e em postura secundária. estão
Benjamin, em de igualdade com Quintino Bocaiúva, ambos a cavalo, e, a pé,
Aristides Lobo. O estilo do quadro é o da clássica exaltação do herói militar, elevado
sobre os comuns mortais, montando fogoso animal. É a exaltação do grande homem
vitorioso, fazedor da história. A ênfase personalista é ainda maior do que a do quadro de
Pedro Américo sobre a proclamação da Independência. a figura de Pedro I aparece
interagindo com várias outras. ação coletiva no quadro de Pedro Américo, ação que
está ausente no de Bernardelli, talvez mesmo porque houvesse menor necessidade de
afirmar o papel do primeiro imperador nos acontecimentos. Só falta ao quadro de
Bernardelli a espada, o símbolo da ação militar. Mas a falta se deve certamente ao fato
de ter Deodoro posado para o quadro. A 15 de novembro, ele não levava espada, apesar
de depoimentos em contrário. Representá-lo erguendo a espada coruscante, como queria
o major Jacques Ourique, seria violar por demais a verdade dos fatos. bastava a
dúvida sobre o sentido do gesto de erguer o boné.
A Proclamação da República, nos quadrinhos de Maurício de Sousa, é
registrada em um quadro maior, seguindo o modelo de Bernardelli. A figura
apresenta Deodoro em destaque, seguido dos liberais republicanos e dos
militares. Os personagens apresentam-se festivos e sorridentes, salientando o
caráter comemorativo do evento.
Outro elemento ressaltado é a presença da Mônica representando a
República, na figura da francesa Marianne
63
. A personalidade feminina encarna,
no ideário da Revolução Francesa – e também no da Roma Antiga – os princípios
da liberdade e humanidade. Esse modelo, de orientação francesa, passa a ser
importado, e amplamente difundido para a construção dos ideais da República do
Brasil, seja através das artes plásticas, da escultura, ou mesmo por meio da
caricatura.
63
Marianne, nome comum de mulher, conforme destaca José Murilo de Carvalho.
179
A mulher descalça ou com sandálias, vestida com túnica e manto, a cabeça
coberta por um barrete frígio de cor vermelha que denota o radicalismo do
movimento as palmas e os louros, deve assegurar o ideal de altruísmo e força,
que caracterizaria o movimento republicano. Ao utilizar esse referencial,
Maurício de Sousa põe sua principal personagem a Mônica em destaque, ao
inseri-la em um movimento predominantemente masculino (ver a figura 41).
180
FIGURA 51 – VIVA A REPÚBLICA
FONTE: SOUSA, M. de. Você sabia? Proclamação da República. p. 32.
FIGURA 52 – A PROCLAMAÇÃO DA REPÚBLICA, DE BERNARDELLI
FONTE: CARVALHO, J. M. de. A formação das
almas: o imaginário da república no Brasil, p. 97.
181
FIGURA 53 – MARIANNE, SÍMBOLO DA LIBERDADE
Marianne, símbolo francês, com sua
túnica e o barrete frígio.
Foto: Michel Castillo (Dexia
Imprensa Nacional).
Nos elementos que destacamos e em outros apresentados nos quadrinhos
analisados, invoca-se, rememora-se e reinterpreta-se a memória histórica
coletiva, ou memória enquadrada”, na concepção de Henry Rousso (1985),
destacada por Pollak. Para POLLAK (1989, p.9), a memória enquadrada
alimenta-se dos materiais que são fornecidos pela história, suas referências,
reinterpretações e perspectivas. Ainda para o autor:
Estudar as memórias coletivas fortemente constituídas, como a memória nacional,
implica preliminarmente a análise de sua função. A memória, essa operação coletiva dos
acontecimentos e das interpretações do passado que se quer salvaguardar, se integra,
como vimos, em tentativas mais ou menos conscientes de definir e de reforçar
sentimentos de pertencimento e fronteiras sociais entre coletividades de tamanho
diferentes: partidos, sindicatos, igrejas, aldeias, regiões, clãs, famílias, nações, etc. A
referência ao passado serve para manter a coesão dos grupos e das instituições que
compõem uma sociedade, para definir seu lugar respectivo, sua complementaridade,
mas também as oposições irredutíveis.
Manter a coesão interna e defender as fronteiras daquilo que um grupo tem em comum,
em que se inclui o território (no caso de Estados), eis as duas funções essenciais da
memória comum. Isso significa fornecer um quadro de referências e de pontos de
referência. (POLLAK, 1989, p.8-9)
182
Dessa forma, parece-nos evidente a preocupação de que também os
quadrinhos, com vistas ao entretenimento e à diversão, acabem por destacar
aspectos da memória coletiva nacional ao abordar personalidades e eventos
construídos pela historiografia, notadamente aquela produzida no processo de
legitimação de um projeto nacional específico, que pode ser lida como a História
dos vencedores, que se consolida como tradição.
Além das referências às pinturas acadêmicas, a coleção também faz uso da
metalinguagem
64
, ao trazer para uma releitura os quadrinhos de Asterix. Tais
artifícios podem criar um efeito de familiaridade, por aproximar-se de referências
da comunicação de massa partilhadas pelo leitor. E essa proximidade ou
familiaridade está presente em diferentes instâncias e meios, sejam referências
iconográficas, comunicacionais, ou intertextuais, como veremos a seguir.
4.4.2
I
NTERTEXTUALIDADES
:
DOCUMENTOS HISTÓRICOS ESCRITOS COMO
REFERÊNCIA
Outro fator a ser destacado é o fato de a sucessão dos eventos descritos ao
longo da história – narrada no presente pela Mônica utilizar como fonte a Carta
de Pero Vaz de Caminha. Dessa forma, temos um processo de didatização da
mesma através da seleção das informações centrais de sua narrativa, a atualização
dos termos e da linguagem para uma linguagem corrente e a utilização dos
elementos familiares aos alunos (estilo de desenho, de quadrinho, de humor do
Maurício, bem como seus personagens).
64
CIRNE (1977, p. 63) salienta que: “Metalinguagem é a crítica exercida sobre o produto
artístico ou científico (linguagem-objeto), mas pode também ter outros níveis semióticos”. Para
BARTHES: “... a linguagem-objeto é a própria matéria submetida à investigação lógica” e mais
“... é um sistema onde o plano do conteúdo, ele próprio, é constituído por um sistema de
significação; ou ainda, uma semiótica que trata de uma semiótica...”(apud CIRNE, 1977, p.63-
64).
183
Assim, ao lerem a obra quadrinizada de “O Descobrimento do Brasil”
crianças e adolescente passam a tomar contato com fontes escritas (como a Carta
de Caminha) e iconográficas (quadro de Victor Meirelles), didatizadas e
transformadas para a linguagem dos quadrinhos, dentro da perspectiva e do estilo
consagrado do quadrinista.
A pintura acadêmica, cujo foco é o tema histórico, apresenta-se,
freqüentemente, pautada em documentos históricos, como os casos das obras de
Victor Meirelles e Pedro Américo (que produziu, concomitantemente, o texto O
brado do Ipiranga). Por parte de tais artistas havia um esforço, uma tentativa
constante de didatização, que pudesse fazer chegar ao público comum sua
concepção acerca dos eventos ocorridos. Estabelece-se, assim, a circulação do
conhecimento através de distintas linguagens: texto-pintura-quadrinho. Ou texto-
quadrinho, como no caso do poema Navio Negreiro (1868), de Castro Alves, que
também serve de base para a narração da história, na medida em que denuncia as
terríveis condições a que eram submetidos os escravos, na travessia do Atlântico.
Aliás, a presença de Castro Alves como personagem da história e narrador dos
fatos confere maior profundidade ao texto escrito.
E a linguagem cinematográfica não é referência ausente nos quadrinhos da
Turma da Mônica. Ao proclamar a Independência, a história ressalta a ação
personalista de Dom Pedro, disposto a pôr fim nas relações com a Metrópole. O
brado que ecoa retumbante pelo país, acima da presença do povo representado
por pessoas de diversas classes sociais demonstra o poder e a grandiosidade do
Imperador, sobre os olhares surpresos da população brasileira. O vigor e a ira
estampada no semblante de Dom Pedro fazem lembrar, em muito, o filme
Independência ou Morte, de 1972. A obra, protagonizada por Tarcísio Meira
(Dom Pedro) e Glória Menezes (Marquesa de Santos), acabou por se tornar um
dos filmes mais reprisados da década de 1980, apesar das inúmeras e sucessivas
críticas recebidas, dado seu caráter fragmentado e ufanista. Dom Pedro, o herói
responsável pela independência da nação, é caracterizado como um cidadão
184
cordial, amigável, mas responsável e corajoso, um personagem-símbolo do
temperamento brasileiro (CERRI, 1999).
Os quadrinhos, nesse momento, atribuem um significado ao conhecimento
histórico a partir da leitura de múltiplas linguagens, inter-relacionadas:
documentos-pintura-cinema-HQs. Todas essas possibilidades comunicacionais
propiciam a visualização e a percepção a respeito das construções
historiográficas.
4.4.3
A
S SIMPLIFICAÇÕES EXPLICATIVAS NA DIDATIZÃO E SEUS
PROBLEMAS
Neste tópico, buscamos refletir sobre a didatização que se efetiva com o
conhecimento histórico até ser transformado em quadrinhos. Por didatizar,
compreendemos ser um ato de simplificar, mas não apenas isso. Refere-se,
também, a uma transposição didática, no sentido de tornar o conhecimento e a
narrativa mais palatáveis, ao utilizar uma linguagem assumidamente acessível ao
aluno-leitor.
a simplificação explicativa, quando ocorre, impossibilita a
compreensão, ou a distorce de modo a gerar um entendimento contrário ao
sentido original do conteúdo – ou seja, é uma simplificação que falsifica, fazendo
incorrer, por exemplo, em pré-conceitos através de generalizações não
apropriadas. No episódio sobre a Abolição dos escravos, afirma-se: “Pior ainda
é o fato de que negros vendem negros!”. Nesse caso, não se explicitam as
questões étnicas e sócio-culturais que estão na base dos conflitos entre as
comunidades políticas africanas daquele período, o que pode gerar um equívoco
na compreensão de como se estabelecia o tráfico negreiro, por acreditar ser
“culpa”, também, dos próprios negros. Assim, conflitos étnicos e sócio-culturais
parecem exclusividades dos exóticos” povos africanos, colocando, em segundo
plano, conflitos de natureza similar ocorridos na Europa, como perseguições aos
judeus e confrontos sangrentos entre católicos e protestantes.
185
A necessidade de simplificar e passar várias informações com poucos
textos e páginas, pode ser um dos fatores responsáveis pela produção de
deformações significativas de interpretação. De qualquer forma, seja em função
de um problema comunicativo gerado pela escolha de determinadas palavras,
como “negros vendem negros”, seja como resultado de uma simplificação, ou
mesmo uma visão prévia sobre os eventos, acaba-se por oferecer ao leitor uma
determinada concepção histórica (ou um pré-conceito) sobre as relações entre os
negros e o escravismo que se estabelecia naquele contexto. O leitor desavisado
pode concluir, apressadamente, que os negros também seriam responsáveis pela
escravidão, o que é uma visão simplista. Primeiro, porque o sistema escravista
não dependia dos conflitos militares e culturais internos à África, mas era dotado
de uma lógica econômica própria
65
e, em segundo lugar, a escravidão entre povos
africanos tinha um significado e uma conseqüência distinta das que assumia
diante da entrada daquelas pessoas no sistema mercantilista, na condição de
mercadoria. Ou seja, a conclusão do leitor, embora correta em linhas gerais
diante dos detalhes e da complexidade da matéria, acaba reforçando o
preconceito contemporâneo, muitas vezes expresso a partir da idéia de que os
negros hoje são co-responsáveis pelo racismo.
Ainda no fascículo sobre a Abolição, o fim da escravidão efetiva-se com a
assinatura da Lei pelas mãos da princesa Isabel. Essa simplificação, todavia, não
é típica dos quadrinhos, mas copiada de um modelo de ensino de História
episódico, estanque, organizado a partir de datas cívicas e personagens ilustres
como agentes privilegiados ou únicos da História. Esse modelo, notadamente, é
anterior às reflexões e às mudanças curriculares contemporâneas, ainda que não
se encontre totalmente excluído das atuais práticas escolares.
65
Essa tese e não a de que os africanos foram escravizados porque a mão-de-obra indígena
não se adaptava ao tipo de trabalho das fazendas coloniais é predominante nos estudos atuais
sobre escravidão, tendo em Novais um dos seus mais importantes formuladores, por exemplo,
na obra Portugal e Brasil na crise do antigo sistema colonial ou Estrutura e dinâmica do
antigo sistema colonial.
186
No fascículo que trata da Proclamação da República, o mapa do Brasil é
personificado com as mãos na cintura e um sorriso tranqüilo, enquanto uma faixa
com a palavra “República” cruza seu peito. Como a obra não apresenta uma
intenção “intelectual ou “rigorosamente didática”, o mapa apresenta os
contornos atuais, com a inserção do estado do Acre, o que viria a acontecer a
partir da assinatura do Tratado de Petrópolis em 1903. A efetiva incorporação do
Acre ao território brasileiro, entretanto, ocorreria no ano seguinte. A falta de
exatidão dos contornos e limites do Brasil acaba por ser justificável, em nosso
ponto de vista: a intenção da obra não deixa de ser afetiva e, por isso, faz
referência a um mapa que o aluno conhece, não a um outro que possa lhe causar
estranhamento e falta de empatia. O que parece destacar-se aqui é a questão da
subjetividade e identificação com o conjunto da obra produzida. É o que garante
a atenção do leitor, com um conhecimento que, em termos temporais, soa muito
distante de sua realidade. Nessa perspectiva, afirma Maurício de SOUSA:
A intenção não é ser professoral ou didático (em relação a temas como meio ambiente,
por exemplo); é esbarrar no assunto. A história deve ser antes de tudo leve, gostosa,
divertida. Mas a turma não está alienada, pois vive num mundo repleto de ação
66
.
Com essa argumentação, evidencia-se o fato de que a preocupação central
das histórias é a de divertir, não a de transmitir um conteúdo exato do
conhecimento. Dessa forma, não cabe a crítica de ausência de exatidão histórica
da obra de arte, quando seu objetivo primeiro não é pedagógico, mas de
proporcionar a fruição estética ou a diversão pura e simples. Cabe, sim, na
análise pedagógica desses objetos, dialogar com o professor sobre as
possibilidades, limitações e cuidados que deve ter na utilização didática desses
materiais. Todavia, aquela ressalva não se aplica totalmente à coleção em foco,
pois a despeito da declaração de Maurício de Souza, o interesse mercadológico
coloca na capa das revistas mais recentes um selo que sugere que a intenção é,
sim, didática.
66
O PAI DA MÔNICA. Entrevista citada.
187
A imaginação, a ficção, o humor, convivem lado a lado com o resgate da
nacionalidade. Essa conotação encontra-se presente, também, em outros meios e
veículos. Como destaca GARCÍA (1998, p.285):
Cualquier presentación en el cine, la televisión, el teatro, la literatura y también en la
historiografía de todos los niveles, por más autenticidad histórica que se pretenda,
contiene ficciones. Pero la pregunta por el grado de ficción que pueda asimilar la
conciencia histórica sin perder su relación con la realidad no está bien hecha. Al
parecer, la conciencia histórica puede aguantar bastante ficción. Lo importante es
reconocer esta ficción como algo construido y por ende deconstruible...
A autora destaca a importância de elementos como a imaginação, a
criatividade, a ficção e a subjetividade no trato com a História. Esses recursos,
longe de afastar ou perturbar a exatidão histórica, são potenciais motivadores de
curiosidade e aprendizagem histórica.
4.4.4
O
PARALELO COM AS NARRATIVAS ESCOLARES TRADICIONAIS SOBRE A
H
ISTÓRIA
N
ACIONAL E AS CONCEPÇÕES DE
H
ISTÓRIA SUBJACENTES
Ainda que haja temáticas coincidentes entre este tópico e o anterior,
ressaltamos que aqui o enfoque não é o dos problemas e questionamentos
surgidos no esforço de adaptar o conhecimento histórico à linguagem dos
quadrinhos. não se abordam aqui as simplificações, mas os problemas
conceituais presentes antes daquele processo de didatização. Ou seja, reunimos o
que identificamos como problemas presentes na concepção histórica e
educacional que sustentam a mensagem das histórias em quadrinhos analisadas.
Todo o processo da Abolição acaba por ser representado – e coroado – por
meio de um único ato: a assinatura da Lei, pelas mãos da Princesa. A concepção
de História que subjaz, está estruturada na noção do fato, ou data histórica,
tomada de modo estanque e isolada: a ação se concentra no dia 13 de Maio (ver a
legenda no primeiro quadrinho – Figura 20).
188
Não se trata apenas do reforço à data construída pela historiografia
tradicional, questionada por retirar a ação dos negros escravos do centro do
conjunto de causas da libertação. Mais que isso, trata-se de entender a História
como algo que se modifica em momentos decisivos, e nesse caso, sob a ação de
uma personagem ilustre. Essa perspectiva, todavia, não se apresenta
exclusivamente nesses quadrinhos: eles apenas reproduzem uma lógica
fragmentária que está presente em materiais didáticos mais tradicionais, bem
como na idéia de calendário cívico, em que eventos soltos são comemorados de
modo descontextualizado.
Também o fascículo sobre a Independência apresenta,
predominantemente, uma idéia corrente na história oficial, laudatória e
comemorativa, com fatos e atos limitados, sem contar com a participação de
sujeitos não vinculados às elites, o que não corresponde à riqueza de personagens
anônimos e propostas distintas de independência, que foram encobertas pela
versão oficial.
Nessa perspectiva, cabe salientar a dificuldade surgida em abordar
determinados assuntos. Mesmo ao se ressaltar a questão do negro e suas
contribuições culturais, o que se evidencia é um modelo tradicional, muito
utilizado na antiga disciplina de Estudos Sociais, que acaba por reduzir a
participação do negro (e do índio) a aspectos culturais secundários. Apesar da
intencionalidade em propor uma abordagem positiva, com as contribuições de
cada etnia, essa explicação deriva do mito das três raças. Esse enfoque determina
a simplificação das complexas relações existentes entre os diferentes povos,
conferindo-lhes uma concepção de cordialidade e democracia racial, ignorando
as condições críticas e violentas de seu estabelecimento.
Essa é uma dificuldade que se apresenta na produção de quadrinhos,
quando se utiliza da complexidade do conhecimento histórico, que precisa ser
didatizado em função do público-alvo a que se destina, e simplificado em razão
de sua estrutura quadrinhística.
189
Apesar disso, é inegável a importância que tais produções representam
para o aluno-leitor em idade escolar que, ao tomar contato com a obra, passa a
tomar contato com o conhecimento histórico do País.
Também que se salientar, em relação à Independência, à Abolição e à
Proclamação da República, a presença de um elemento importante no processo
da aprendizagem histórica: a questão do conflito. Ao contrário do Descobrimento
que ressalta o clima harmonioso entre europeus e nativos na Abolição dos
Escravos temos a expressão do choque e do confronto social. E por que isso
ocorre? Segundo Mona OZOUF (1976), em comemorações e festividades, não se
pode comemorar o “incomemorável” (as situações traumáticas, o conflito, a
divisão, a violência entre os antepassados, entre outros momentos). No fascículo
sobre “O Descobrimento do Brasil”, o conflito não ocorre e o tom de
comemoração é maior. Desse modo, selecionam-se os momentos da História que
se deseja rememorar. Charles MAURRAS assinala esse processo ao afirmar: “A
tradição não significa a transmissão de tudo, mas daquilo que é bom e
verdadeiro.” (apud OLIVEIRA, 1989, p.174). Ainda destaca OLIVEIRA (1989,
p. 174):
Cada momento presente e cada crise ou mudança na sociedade permitem que se
construa uma nova tradição, definindo que eventos e pessoas devem ser lembrados e
quais devem passar ao esquecimento.
O processo de seleção, da escolha de uma dada perspectiva, é um fato para
o qual se deve estar atento. Nenhum material obtém a neutralidade e a totalidade
como resultados. Como pontua CERRI (1999, p.96):
Ora, é preciso reconhecer que mesmo a escrita da história é superficial, fragmentada,
selecionadora, e nesse sentido não é uma reprodução fiel da “verdade”, que seria melhor
nomeada como o aspecto “empírico” da realidade, uma representação sintética dela,
uma representação que faz uma determinada síntese de um dado tempo, como o mapa é
a síntese de um determinado espaço...
190
Os quadrinhos são, nessa perspectiva, uma possibilidade de se contar a
história, resgatando uma memória, por vezes distante ou esquecida. E os mesmos
personagens que, décadas, m encantando crianças e jovens de todo o País,
passam a representar figuras e momentos da História Nacional, com os quais nem
sempre se identificava ou se reconhecia. Como afirma PURIFICAÇÃO (2002,
p.33) ao referir-se às percepções dos alunos sobre a importância e o sentido dos
livros (e em nosso caso, das revistas em quadrinhos): ... ‘os livros são lugares’
que contam histórias, ‘fatos’, acontecimentos e rememoram um passado que nem
todos presenciaram. Mas o livro, assim como os outros recursos, pode
presentificar o passado”. Tais histórias acabam por recuperar um passado estático
para o estudante, um passado sem significado aparente e que passa a adquirir
sentido, à medida que é vivenciado por personagens bastante conhecidos e
apreciados pelo público infanto-juvenil.
191
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
E no momento em que tomamos como objeto de pesquisa as
histórias em quadrinhos, realizamos um daqueles saborosos
reencontros com a infância, quando nos deliciávamos com
os ritmos das palavras e das imagens, vivenciando as
estripulias e surpresas dos nossos heróis de papel.
Márcia Cordeiro, 2002
Para tecermos nossas considerações finais a respeito da História que é
ensinada nas páginas dos quadrinhos, cabe destacar alguns elementos já
abordados e que constituem aspectos fundamentais de nossas reflexões.
Ao iniciarmos esta pesquisa, falávamos da forte presença da linguagem
dos quadrinhos no cotidiano de um público jovem e de como essa presença foi,
historicamente, menosprezada pela escola, por considerá-la algo inferior e
indigno de crédito. Felizmente, o campo das pesquisas educacionais propiciou
importantes alterações na concepção de ensino, como um todo, e de ensino de
História, em particular.
Como ressaltado por Verena GARCÍA (1998), a aprendizagem histórica
torna-se muito mais significativa se nela estiver envolvida certa dose de
afetividade, envolvimento emocional e identificação. Podemos afirmar que
qualquer aprendizagem adquire novas possibilidades e horizontes se aliada à
curiosidade, paixão e imaginação. Linguagens distintas como o cinema, a música
e os quadrinhos, nosso foco de análise, certamente m algo a dizer ao processo
de ensino e aprendizagem que, se meramente racional, o cumpre todas as
funções que o envolvem, por exemplo, a formação de uma identidade nacional.
Essa noção de identidade a ser resgatada e construída inclusive para suprir o
que nela não está presente, de forma crítica pode ser elaborada a partir da
mobilização das vontades e da identificação do sujeito com causas e vivências,
em um projeto de desenvolvimento e conhecimento profundo, não objetificante,
ao contrário, visceral e consciente. Como afirma GARCÍA (1998, p.287):
192
...los esfuerzos por ubicar el aprendizaje histórico sobre bases meramente cognitivas y
supuestamente “neutrales” han llevado a que se negara la presencia (y la influencia) de
las emociones en el aprendizaje histórico. Lo que se pretende ahora es la aceptación de
esta presencia como condición previa para la reflexión.
Nessa perspectiva, as histórias em quadrinhos o capazes e prestam-se a
contar e a ensinar a História, ou as histórias, construídas, resgatadas,
memorizadas pela cultura, seja ela popular ou acadêmica. Todavia, uma história
em quadrinhos que se proponha a contar toda a história, ignorando a presença de
elementos como a ficção, a criatividade e os aspectos subjetivos e emocionais em
sua construção, acaba por subestimar sua própria essência estrutural, cujo
objetivo é capturar a atenção do leitor para que possa atribuir um sentido à
produção da linguagem.
A consciência e o conhecimento histórico, reafirmamos, possuem
inúmeros focos de circulação que extrapolam tanto o espaço acadêmico quanto o
espaço escolar. Nisso reside a importância da utilização didática dos quadrinhos
como forma de apropriação de elementos da indústria cultural que não têm a
intenção explícita de “ensinar”, no sentido mais restrito do termo, mas que,
apesar disso, abordam conhecimentos e diferentes percepções acerca da
realidade. A educação para os meios revela-se, portanto, como uma necessidade
que certamente tem se apresentado à dinâmica escolar. Como destaca CITELLI
(2002, p.17):
A força dos meios de comunicação junto às sociedades modernas tem provocado uma
série de alterações nos modos de os grupos humanos se relacionarem com o
conhecimento e mesmo com a informação. Em maior ou menor grau nossas formas de
ver e de sentir sofrem as influências das seqüências fragmentadas, da rapidez, da
linearidade, da presença marcante da imagem. Tais procedimentos, para nos
restringirmos aos mais evidentes, têm alcançado o universo da escola e das
conseqüentes ações desenvolvidas pela educação formal.
A educação para os meios possibilita uma relação dialógica entre a esfera
da comunicação e o universo escolar. Dialogar com as diferentes esferas não
significa adotar uma postura acrítica, mas reconhecer que existem especificidades
em cada uma das instâncias e cada uma das linguagens.
193
As histórias em quadrinhos, por exemplo, possuem elementos como o
humor, a ironia e, o raro, uma marcante presença de elementos ficcionais.
Nesse sentido, cabe ressaltar que os quadrinhos não substituem o conhecimento
ou o texto acadêmico, que também possui suas especificidades. Por outro lado,
nem sempre é o conhecimento acadêmico que se traduz como objetivo de
aprendizagem. Por vezes, o que se almeja é o lazer, o entretenimento e o prazer
proporcionado por diferentes leituras de mundo. Entendemos que uma das
funções da arte mesmo daquela que possa ser produzida pela indústria cultural
– é sensibilizar e mobilizar sentimentos e reflexões em diferentes níveis.
A compreensão da linguagem e da estrutura dos quadrinhos, bem como
sua seleção, constituem aspectos fundamentais no trabalho em sala de aula para
que sua utilização possa ser efetivada de forma criteriosa, como afirma o
professor Waldomiro Vergueiro no artigo Os quadrinhos nas aulas de história:
uma empreitada que exige cuidados”
67
. Um dos cuidados diz respeito a possíveis
anacronismos históricos, como a verossimilhança nas indumentárias, objetos e
costumes de época, além de equívocos na relação entre o tempo e a sucessão dos
acontecimentos, como o mapa do Brasil apresentando o território do Acre em
1889, no fascículo já citado sobre a República de Maurício de Sousa, ou o fato de
as tribos gaulesas de Asterix derrotarem o Império Romano. Afinal, a busca da
fidelidade histórica nem sempre se constitui a preocupação do quadrinista, que
busca atingir metas como a estética do desenho e a produção de uma obra criativa
e envolvente, por exemplo.
Talvez, para os dias atuais, os quadrinhos não exerçam o mesmo
fascínio que exerciam há tempos.
67
Disponível em: <http://www.omelete.com.br/quadrinhos/artigos/base_para_artigos.asp?
Artigo+ 1560&Tabela=artigos.> Acesso em 06 out. 2003.
194
Inúmeros artigos e matérias m sido escritos falando sobre a crise vivida
pelas revistas em quadrinhos
68
que, para muitos pesquisadores, o estão
formando novos leitores
69
. Os fatores são diversos, como os avanços de
tecnologias como a Internet, os RPGs, os videogames e o próprio cinema
(GONÇALO JUNIOR, 2005), cujos filmes baseados nas HQs m despertado
propagandas maciças, muita expectativa por parte do público e, acima de tudo,
um grande lucro não por conta de sua arrecadação milionária, mas com os
produtos lançados no mercado mundial. Para GUSMAN (2005), um dos grandes
estudiosos de quadrinhos no Brasil:
O público leitor destas publicações envelheceu e os novos leitores não estão sendo
seduzidos. A razão para isso é que, por mais que o público goste do filme, ache muito
bom, quando sai do cinema e vai comprar a revista do herói, ele não a mesma
história que está na tela...
Sidney Gusman aponta, ainda, que a crise não se limita ao universo dos
quadrinhos, mas ao mercado editorial como um todo. O custo elevado do papel e
das gráficas faz com que, cada vez mais, tenha-se menos acesso à leitura de
modo geral. Para ele, a imensa quantidade de revistas disponibilizadas nas
bancas é reflexo da própria crise:
...parece um tremendo paradoxo que hoje haja tantos títulos nas bancas. Mas a razão
disso é que as editoras estão optando por trabalhar com tiragens pequenas, para públicos
específicos e fiéis, ou seja, margens pequenas, porém, garantidas de lucro. Isso é
MUITO preocupante, porque, no primeiro momento, isso é viável financeiramente, mas,
por outro, abandona-se de vez a formação de novos leitores, que é o que garantirá a
continuação de nosso mercado no futuro. E, se isso acontecer, quadrinhos se tornarão
cada vez mais pequenos nichos... (GUSMAN, 2005).
68
em 1997, Will Eisner apontava um queda brusca na leitura de HQs. Segundo ele, as lojas
especializadas em quadrinhos, apenas nos Estados Unidos, caíram de 4500 para 3000 em 7
anos. E a queda nas vendas chegava a 40% entre 1995 e 1997. Fonte: O SPIRIT QUE ANDA.
Isto É. Disponível em: <http://www.terra.com.br/istoe/cultura/146527.htm> Acesso em 30
jul.2005. (Entrevista concedida a Sidney Garambone).
69
Uma exceção à crise é o êxito editorial dos mangá, quadrinhos japoneses que têm conquistado
um público crescente em todo o mundo. As razões da preferência dos mangá com relação aos
quadrinhos convencionais são várias. Entre elas, o fato de tais revistas serem como uma novela,
encerrando-se depois de algum tempo, e o trabalho com muitos aspectos emocionais dos
personagens. (GUSMAN, 2005). Acreditamos, entretanto, que os alunos das camadas populares
(que constituem maioria nas escolas públicas do país) não tenham o mesmo acesso aos
quadrinhos japoneses em função de seu custo elevado. É o que demonstra a pesquisa citada
anteriormente e apresentada na ANPED Sul, em 2004.
195
Outra questão que se apresenta é o fato de o Brasil ser um país marcado
pela forte presença da televisão. Para ORTIZ (1988), a expansão televisiva no
Brasil deu-se, sobretudo, a partir da década de 1960, com a intenção de interligar
o público de diferentes regiões especialmente a Rede Globo de Televisão. Em
relação à hegemonia da televisão sobre outros meios comunicacionais, Renato
ORTIZ (1988, p. 130) afirma que 56% da população era atingida pelo veículo;
em 1982, esse percentual passa para “...73% do total de domicílios existentes.
Por outro lado, como mostram alguns estudos de mercado, o hábito de assistir
televisão se consolida definitivamente e se dissemina por todas as classes
sociais.”
Essa situação parece ser ainda mais complicada se analisarmos a relação
entre quadrinhos e alunos das escolas públicas. Na pesquisa citada
anteriormente
70
, quando buscávamos analisar a presença das HQs na sala de aula,
a maioria dos alunos apontou que a escola é um dos locais privilegiados para
leitura dos quadrinhos. Acreditamos que isso se deve, parcialmente, em função
da queda no interesse na leitura dos quadrinhos por parte dos alunos mais velhos,
conforme indica uma pesquisa feita por HIGUCHI (2002, p.144), em escolas da
região metropolitana de São Paulo. Os resultados do trabalho demonstram que
cerca de 90% das crianças da 3ª sériem o hábito de ler gibis – o que se mantém
nas ries seguintes ocorrendo, entretanto, uma queda acentuada na leitura de
quadrinhos entre a 5ª e a 8ª série. Para o autor da pesquisa:
O aspecto lúdico do gibi (cor, diagramação, figura, argumento, jogos verbais etc.)
parece ser de maior interesse dos alunos das séries iniciais. À medida que o aluno cresce
em idade, ocorre uma redefinição quanto aos próprios textos a serem lidos,
incorporando outros tipos de leitura...
Ao nos focarmos em algumas das obras por nós analisadas, podemos
verificar que o alto custo de tais quadrinhos dificulta seu acesso junto aos leitores
oriundos das camadas populares.
70
Rosa M. DALLA COSTA. Pesquisa citada.
196
As revistas do gaulês Asterix, bem como o álbum “Lampião... era o
cavalo do tempo atrás da besta da vida” situam-se numa faixa de preços em
torno de 15 reais. O livro Cai o Império: República vou ver” custa,
aproximadamente, 28 reais, enquanto os fascículos da Coleção “Você sabia?”, de
Maurício de Sousa, saem por aproximadamente 5 reais.
Apesar desse panorama, um tanto crítico para o universo dos quadrinhos, e
talvez em função dele, destaca-se a importância de a escola propiciar o contato
com sua estrutura e linguagem. CANCLINI (1997, p. 336) considera os
quadrinhos como um elemento central da cultura contemporânea, um nero
impuro como os grafites caracterizado como lugar de intersecção entre a
imagem e a palavra; o culto e o popular; o artesanal e a produção industrial da
circulação massiva. E a articulação de conhecimentos, referências, memórias
textuais e imagéticas concebidas pelas histórias em quadrinhos podem se
constituir em ótimos elementos de pesquisa, análise e discussão, em sala de aula.
As diferentes concepções de mundo, a presença de personalidades ilustres,
heróis ou sujeitos comuns, nos eventos históricos, os objetivos comunicacionais,
informativos e mesmo comerciais, são importantes focos a serem analisados e
discutidos com os alunos. Nesse aspecto, quadrinhos considerados como
paradidáticos ou alternativos, na linha de “Subversivos”, República: Vou Ver”,
e “Lampião... era o cavalo do tempo...” e mesmo outros materiais como as
charges e tiras publicadas em jornais, podem abordar momentos históricos, de
forma crítica e didatizada, propiciando determinados enfoques sobre a construção
da História Nacional, como a participação popular, a questão política, além de
outros olhares referentes a uma história negada e nem sempre veiculada por meio
das práticas escolares.
os quadrinhos da Turma da Mônica, de Maurício de Sousa, encarados a
partir de uma esfera comercial mas com finalidade educativa trazem fatos
elencados pela historiografia tradicional, de forma leve e divertida,
familiarizando o aluno-leitor dos quadrinhos com universo da História do Brasil,
a partir de determinadas perspectivas.
197
A (re)construção ou recomposição didática oferece bons elementos para
uma análise de diferentes linguagens, como a iconografia acadêmica, a narrativa
textual, além de outras representações presentes em distintos meios de
comunicação. Acreditamos que tais elementos podem ser de grande valor para o
processo de formação da consciência e de uma aprendizagem histórica. Tudo
isso, sem esquecer que tal aprendizagem pode ser prazerosa e, por vezes,
extremamente bem-humorada, como é o caso dos quadrinhos da coleção “Você
sabia?” ou da obra República vou ver”. Como afirma escritor e quadrinista
Ziraldo Alves PINTO (1970, p.31):
O Humor é uma forma criativa de analisar criticamente, descobrir e revelar o homem e a
vida. É uma forma de desmontar [grifo do autor], através da imaginação, um falso
equilíbrio anteriormente criado pela própria imaginação. Seu compromisso com o riso
está na alegria que ele provoca pela descoberta inesperada da verdade. Não é a verdade
que é engraçada. Engraçada é a maneira com que o humor nos faz chegar a ela. O
Humor é um caminho!
Entendemos que reconhecer que o humor, a diversão e o conhecimento
não são fatores contraditórios, ainda se traduz como um desafio para todos os
envolvidos no processo formal de escolarização, muitas vezes impregnado por
um habitus
71
, que a todos pode cercear, de forma indistinta, seja pelas possíveis
inflexibilidades curriculares, pela necessidade de vencer o conteúdo
programático”, ou trabalhar “toda a história” Antiga, Medieval, Moderna e
Contemporânea, segundo o tradicional esquema quadripartite. Cabe salientar,
neste momento, a indispensável prudência metodológica no trato com o humor,
pois do contrário, o trabalho com tal elemento pode gerar uma confusão entre o
uso da blague e do aspecto cômico em relação a críticas históricas. Nesse
sentido, justifica-se tal cautela para que não se incorra em eventuais equívocos de
abordagens que possam descaracterizar fatos e vivências históricas.
71
Para Pierre BOURDIEU (2001, p.191) o habitus pode ser conceituado “... como sistema de
disposições socialmente constituídas que, enquanto estruturas estruturadas e estruturantes,
constituem o princípio gerador e unificador do conjunto das práticas e das ideologias
características de um grupo de agentes”. Podemos, então, afirmar que o habitus é uma gramática
geradora de práticas, nesse caso, as práticas docentes.
198
Outro fator a ser foco de análise e observação, sob o ponto de vista
metodológico, diz respeito ao caráter maniqueísta e bipolar, presente em muitas
histórias e folhetins, na literatura, nos filmes e também nos quadrinhos. A
vilanização, os atos heróicos, o bem e o mal são elementos constantes em tramas,
cujo objetivo é envolver emocionalmente o leitor-espectador, fazendo com que se
posicione, ame ou odeie, agindo de modo plenamente passional. O professor de
História pode relativizar tais elementos propiciando análises, observações e
questionamentos sobre as relações presentes ao longo da história.
Analisar os quadrinhos, compará-los com outras linguagens, lê-los
também de forma prazerosa, produzi-los em sala de aula, individual ou
coletivamente, são apenas algumas das inúmeras possibilidades a serem
exploradas por meio de sua presença em sala de aula. Tais experiências podem
conferir novos contornos e potenciais criativos, atribuindo novos significados às
aulas de História.
Ampliar os limites do conhecimento, propiciar a formação de uma
consciência histórica capaz de levar o indivíduo a sentir-se protagonista de seu
tempo e parte de uma sociedade em transformação, constituem tarefas e desafios
para a escola de maneira geral e para o professor de História, de modo particular.
199
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