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Importante para minha argumentação ao longo desta dissertação é estabelecer a
diferença entre minha proposição e a de Anselmo Pessoa. Acredito que o erro dele
(partindo, óbvio, do meu ponto de vista) está bem claro nesta argumentação que se segue:
São Bernardo, lido de forma despretensiosa, pode, acredito, acabar deixando uma imagem relativamente
positiva de Paulo Honório obstinado que matou e roubou mas que nos dois últimos capítulos, parece
arrependido e presa do remorso. (Pessoa. 1999: p. 39)
que enseja a seguinte nota de rodapé:
Poderia corroborar com essa tese alguma indicação, no texto, que pudesse comprovar que os dois primeiros
capítulos foram, de fato, escritos por último. Como, salvo engano, não existe essa marca, isto é, como não é
possível afirmar que os dois primeiros capítulos de São Bernardo foram escritos depois dos dois últimos, só
nos resta a hipótese, de resto bastante plausível (conhecendo-se o processo de composição de um texto), de
que de fato o foram. Caso essa suposição fosse confirmada, seria possível uma afirmação ainda mais
peremptória de que com o passar do tempo Paulo Honório recuperava a sua verve de capitalista
empreendedor. (Pessoa. 1999: p. 58)
A que “dois últimos capítulos” se refere Anselmo? Aos 35 e 36? Ou aos 19 e 36? O
que o capítulo 35 tem a ver com o capítulo 36?
Os dois últimos capítulos, o trigésimo quinto e o trigésimo sexto, nos trazem de volta ao presente da
enunciação, estamos, por assim dizer, de frente ao Paulo Honório que nos contou a história de São Bernardo.
Estamos a dois anos da morte de Madalena, o livro que estamos acabando de ler teria sido escrito em cerca de
quatro meses. (Pessoa. 1999: p. 39)
E conclui, esbarrando no meu trabalho:
A estas contas de Paulo Honório poderíamos acrescentar: São Bernardo é composto de 36 capítulos; dois
iniciais no tempo presente, isto é, nesses o tempo enunciado coincide com o tempo da enunciação; onze
capítulos em que é narrado o enriquecimento de Paulo Honório, e em que o tempo do enunciado não coincide
com o tempo da enunciação, isto é, o presente é somente do enunciado, pois o narrador já vivenciou os fatos
que está narrando (afora os dois últimos, os demais conservarão esse mesmo tempo); dez capítulos que
antecipam e dão as bases para o Paulo Honório ciumento; onze capítulos em que viceja o ciúme que causa a
morte de Madalena; e os dois últimos que se ligam aos dois primeiros em relação ao tempo e a temática. A
história central de São Bernardo se dá em cinco anos, por três anos Paulo Honório e Madalena ficam casados,
o terceiro ano é o do ciúme doentio, dois anos após a morte de Madalena Paulo Honório resolve escrever São
Bernardo. (Pessoa. 1999 : p. 59)
Esse mesmo esforço de cronologizar o romance empreendido por Anselmo — que
demonstro aqui tão longamente por ser fundamental para mim, já que
todo
o meu trabalho
se baseia numa cronologização da obra — também é empreendido por Ana Lucia Rabecchi:
Em São Bernardo, há um quadro temporal bem delimitado: a narrativa cobre cinqüenta anos da vida do
personagem, idade que tem no presente da escrita, mas o seu andamento no tempo sofre alterações. Há um
período, que vai até os dezoito anos, que vem resumido porque parece ser o menos importante para suas
memórias. Um segundo (se) estende até aos quarenta e cinco anos, e relata a aquisição de São Bernardo e os
acontecimentos que giram em volta disso. Finalmente um terceiro período, dos quarenta e cinco aos cinqüenta
anos, que se ocupa dos acontecimentos que levaram à escrita do romance.
Há uma dupla focalização por diferentes tempos. O fazendeiro encara os fatos na perspectiva do presente dos
acontecimentos. O escritor se encontra distanciado dois anos dos principais fatos dramáticos. (Rabecchi. 2002
: p. 101)
Em minha opinião ambas cronologias estão equivocadas: todas as cronologias
empreendidas pelos críticos partiram da conclusão para o texto e não do texto para a
cronologia.