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ELIZABETH DOS REIS SANADA
A MULHER E O (NÃO) SABER: UM ESTUDO PSICANALÍTICO
SOBRE OS AVATARES DA SEXUALIDADE FEMININA
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos
para a obtenção do título de Doutora em Psicologia.
São Paulo
2006
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ELIZABETH DOS REIS SANADA
A MULHER E O (NÃO) SABER: UM ESTUDO PSICANALÍTICO
SOBRE OS AVATARES DA SEXUALIDADE FEMININA
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia da
Universidade de São Paulo, como parte dos requisitos
para a obtenção do título de Doutora em Psicologia.
Área de Concentração: Psicologia da Aprendizagem,
do Desenvolvimento e da Personalidade.
Orientador: Prof
a
. Dr
a
. Walkiria Helena Grant
São Paulo
2006
ii
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A MULHER E O (NÃO) SABER: UM ESTUDO PSICANALÍTICO
SOBRE OS AVATARES DA SEXUALIDADE FEMININA
ELIZABETH DOS REIS SANADA
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Walkiria Helena Grant
________________________________________
Prof. Dr. Alberto Villani
________________________________________
Prof
a
. Dr
a
. Ana Maria Loffredo
________________________________________
Prof. Dr. Christian Ingo Lenz Dunker
________________________________________
Prof. Dr. Rinaldo Voltolini
Tese defendida e aprovada em:
31/05/2006.
iii
Para meus pais e meu irmão,
que me ensinaram o caminho
das letras, do amor e da coragem.
E para meu marido, Edson,
e minhas filhas, Sayuri e Satie,
que re-significaram este caminho,
tornando-o ainda mais belo e feliz!
iv
AGRADECIMENTOS
“Os anos ensinam muitas coisas que os dias desconhecem” (Emerson).
Entre as coisas que aprendi nos últimos anos, talvez a principal diga respeito a
reconhecer na expressão dos sentimentos e dificuldades daqueles que me cercam um ato
de coragem e um sinal de sabedoria, uma vez que o verdadeiro sábio só se constitui a
partir da falta, sendo qualquer discurso desenvolvido no sentido de mostrar-se todo,
mero semblante!
Muitas das pessoas aqui mencionadas me auxiliaram neste processo e puderam
ter sua passagem em minha vida resignificada a partir desta aprendizagem, donde dedico
os meus agradecimentos:
Aos meus pais, por todo o amor, segurança e conhecimento que me transmitem
ao longo da minha vida, e ao meu irmão, Alexandre, que, a partir de sua perseverança e
ousadia em fazer valer seus ideais e suas escolhas, desperta cada vez mais meu respeito,
admiração e orgulho.
Ao meu amado, amante e companheiro Edson, por tudo que me tem feito crescer
nestes anos de convivência, e a minhas queridas filhas, Sayuri e Satie, que desde o
ventre já participavam deste projeto, suportando pacientemente os períodos de trabalho e
de ansiedade da mãe.
À Prof
a
. Dr
a
. Walkiria Helena Grant, diante de quem as palavras se tornam
insuficientes para descrever o afinco com que se dispõe a ensinar e orientar aqueles que
dela se aproximam, acolhendo suas dúvidas e mantendo-se sempre aberta à discussão,
revelando, além do comprometimento e da seriedade, uma paixão imensa que faz de seu
trabalho uma arte.
À Prof
a
. Dr
a
. Maria Cristina Machado Kupfer, por ter se constituído desde o
primeiro contato numa fonte de inspiração, ao conjugar competência e simplicidade,
v
qualidades que a traduzem como o mais fiel exemplo de mestre não-toda, e cujo
incentivo e confiança me encorajaram a prosseguir meus estudos em psicanálise.
Ao Prof. Dr. Rinaldo Voltolini, pela amizade e pelo exemplo e admiração que
desperta, a partir da integridade e rigor com que se posiciona em relação à teoria e à
clínica psicanalítica.
Ao Prof. Dr. Christian Ingo Lenz Dunker, pela postura ética com que se
apresenta diante da pesquisa, da produção e da transmissão de saber.
Ao Prof. Dr. Alberto Villani, pela doçura e respeito com que se dirige àqueles
que o cercam, revelando em sua humildade a sabedoria dos verdadeiros mestres.
À Prof
a
. Dr
a
. Ana Maria Loffredo, por participar e contribuir com seus
conhecimentos na análise de meu material de pesquisa.
A Maria do Carmo De Chiaro de Freitas que, para além da mestre e da
psicanalista, soube revelar-se uma amiga, participando, mesmo que algumas vezes à
distância, de todos os momentos importantes de minha jornada.
A todos os colegas e amigos que participaram, direta ou indiretamente, da
elaboração deste trabalho.
A Maria Cecília Gimenes Soares, por toda a confiança que me depositou desde
os primórdios de minha formação, e por compartilhar sua experiência, permitindo a
inclusão na pesquisa de parte do material clínico discutido em supervisão.
Às pacientes cuja escuta inspirou este projeto, possibilitando a ampliação do
conhecimento teórico-clínico acerca da feminilidade.
E, finalmente, ao CNPq que financiou esta pesquisa.
vi
“Repentinamente a maquiagem derrete, a roupa se rasga, a
postura se desfaz na agitação, é a tela da realidade cujo
elástico de repente arrebenta fazendo-a enrolar-se,
descobrindo um Real: um rosto sem máscara, corpo sem
forma, voz sem língua, a imposição do olhar do Outro de
repente parece removida, negada, ridicularizada, seu olho
vazado. Que quer este Real?
A questão é enigmática para aquela que parece atravessada
pela sua articulação como para aquele que tenta fazê-la
aceitar seu argumento mestre, sabendo todavia, que ele só
vale se ela consentir, ora justamente ela não consente mais.
Que a situação seja de tal forma louca, quer dizer, exponha
os parceiros a um mundo bruscamente desprovido de sentido
mas aberto ao enigma angustiante de uma significação a
encontrar, não nos permite de forma alguma concluir a
loucura da mulher: a não ser que qualifiquemos com este
termo a verdade de nossa relação original com o Outro,
revelada desta forma.”
Charles Melman
vii
SUMÁRIO
RESUMO ..........................................................................................................................x
ABSTRACT .....................................................................................................................xi
RÉSUMÉ .........................................................................................................................xii
1. Introdução ..............................................................................................................1
1.1. Implicações da figura materna sobre a constituição da
sexualidade feminina: uma visão freudiana........................................................ 4
1.2. Introdução a uma leitura lacaniana da feminilidade ..........................................18
1.3. Método, objetivos e limites de pesquisa ............................................................23
2. Saber inconsciente x saber constituído: momentos lógicos
no processo de constituição do sujeito ................................................................30
2.1. A concepção freudiana acerca da relação entre
constituição psíquica e cognitiva .......................................................................39
2.2. Do desejo de saber à construção de uma demanda de saber ..............................42
3. A histérica e o saber ............................................................................................50
3.1. A histeria como estrutura psíquica, ou da relação da histérica
com o saber ........................................................................................................56
3.2. A mulher e a histérica ........................................................................................61
3.3. Da histeria ao discurso da histérica ...................................................................67
3.4. A produção do discurso da histérica no processo analítico, ou da
constituição do sujeito suposto saber ................................................................70
3.5. O amor como efeito do estabelecimento do sujeito suposto saber ....................75
viii
4. Loucura x suplência: o que o estudo da psicose pode ensinar
sobre a sexualidade feminina ...............................................................................78
4.1. A questão da suplência, ou do sintoma ao sinthome .........................................84
4.2. O amor, a mulher e a escrita ..............................................................................98
5. Algumas considerações sobre Camille Claudel ................................................112
5.1. A artista e sua obra: do amor e da ascensão... ................................................115
5.2. ... Ao declínio ..................................................................................................117
5.3. A “loucura” na neurose obsessiva: uma leitura possível
a partir da clínica lacaniana .............................................................................124
6. Alice no País das Maravilhas ............................................................................140
6.1. Sobre a alíngua: um parêntese .........................................................................156
7. Apresentação e discussão dos casos clínicos .....................................................161
7.1. Doralice ............................................................................................................162
7.2. Madalena ..........................................................................................................174
7.3. Maria do Carmo ...............................................................................................183
7.4. Análise dos casos .............................................................................................189
8. O momento de concluir: do “não querer saber nada disso”
a uma escrita possível ........................................................................................198
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ..........................................................................205
ix
RESUMO
SANADA, Elizabeth dos Reis. A mulher e o (não) saber: um estudo psicanalítico sobre
os avatares da sexualidade feminina. São Paulo, 2005. 214p.Tese (Doutorado). Instituto
de Psicologia, Universidade de São Paulo.
O presente trabalho busca realizar um estudo psicanalítico sobre os avatares da
sexualidade feminina, tendo como ponto central de discussão averiguar os diferentes
posicionamentos assumidos pela mulher na tentativa de responder ao mal-estar estrutural
que norteia sua constituição, no que tange à falta de um significante capaz de nomeá-la.
Assim, em consonância com a estrutura lógica dos três tempos do complexo de Édipo
lacaniano, percorreremos o processo de constituição do sujeito feminino, situando-o
primeiramente diante da influência do Outro materno, a seguir, em relação ao saber
paterno, para finalmente considerá-lo em sua dimensão cultural, relacionado ao conceito
de suplência, abarcando, deste modo, o campo dos saberes constituídos, a partir da
escrita inominável que se faz apreender por meio da arte, da literatura e da análise. Além
disso, apresentaremos como material de pesquisa uma leitura psicanalítica pautada no
acompanhamento específico de três casos clínicos de mulheres, com idade entre 20 e 30
anos, cujo objetivo será verificar a existência de uma relação particular com o saber,
como uma tentativa de assegurar o lugar ocupado anteriormente junto ao desejo
materno. Entretanto, como veremos na conclusão do trabalho, os dados obtidos
confirmam apenas em parte esta hipótese, uma vez que, na seqüência da pesquisa, a
figura paterna se revelará como fundamental, não só no que se relaciona à questão
sexual, mas principalmente, no que diz respeito ao posicionamento do sujeito feminino
frente ao saber.
Descritores: Psicanálise, sexualidade, feminilidade.
Desejo, conhecimento, linguagem.
Teoria psicanalítica, escuta psicanalítica.
x
ABSTRACT
SANADA, Elizabeth dos Reis. Woman and (un) knowledge. Psychoanalytic study about
the avatars in female sexuality. São Paulo, 2005. 214 p. Thesis (PhD). Instituto de
Psicologia, Universidade de São Paulo (University of São Paulo, Psychology Institute).
The current paper proposes to carry out an analytical study of avatars in the
female sexuality, having for its core discussion point the checking of different positions
assumed by women in an attempt to explain the structural distress that guides their
constitution in respect to the lack of significance capable of being named by them.
Hence, in consonance with the logical structure of the three-staged Lacanian Oedipus
complex, we move through the process of the female subject’s constitution, placing it
firstly before the influence of the maternal Other, then next related to paternal
knowledge, to finally consider this process in his cultural dimension, bound by the
supplying concept, tin this manner, embracing the field of constituted knowledge, by
means of an unnamable script that provides apprehending through art, literature and
analysis. Further to that, we will present as research material, a psychoanalytic reading,
specifically propped on the assessment of three clinical cases with women aged from 20
to 30. The objective of this reading is to verify a specific relationship with knowledge,
as an attempt to ensure a place previously occupied by maternal desire. However, as we
shall see at the paper’s conclusion, the gleaned data only partially confirms this
hypothesis, since the research sequence plays itself out showing that the father figure
turns out to be fundamental, not only in that related to the sexual issue, but mainly in
that which refers to the female positioning before knowledge.
Descriptives: Psychoanalysis, sexuality, femininity.
Desire, knowledge, language.
Psychoanalytic theory, psychoanalitic listening.
xi
RÉSUMÉ
SANADA, Elizabeth dos Reis. La femme et le (non) savoir: une étude psychanalytique
sur les avatars de la sexualité féminine. São Paulo, 2005. 214 p. Tese (Doctorat). Institut
de Psychologie, Université de São Paulo.
Le présent travail cherche à réaliser une étude psychanalytique sur les avatars de
la sexualité féminine, ayant comme point central de discussion la vérification des
différents positionnements assumés par la femme pour essayer de répondre au malaise
structurel qui oriente sa constitution en ce qui concerne le manque d’un signifiant
capable de la nommer. De ce fait, en consonance avec la structure logique des trois
temps du complexe d’Oedipe lacanien, nous parcourons le processus de constitution du
sujet féminin, en le situant d’abord devant l’influence de l ‘Autre maternel, ensuite, par
rapport au savoir paternel, pour finalement le considérer dans sa dimension culturelle,
relié au concept de suppléance, en embrassant ainsi le champ des savoirs constitués, à
partir de l’écriture innommable qui se laisse capter à travers l’art, la littérature et
l’analyse. En plus, nous présenterons comme matériel de recherche une lecture
psychanalytique basée sur l’accompagnement spécifique de trois cas cliniques de
femmes, âgées entre 20 et 30 ans, dont l’objectif sera de vérifier l’existence d’un rapport
particulier avec le savoir, comme un essai d’assurer la place occupée antérieurement
auprès du désir maternel. Cependant, comme nous le verrons à la conclusion du travail,
les données obtenues confirment seulement en partie cette hypothèse, puisque, à la suite
de la recherche, l’image paternelle se montrera fondamentale, non seulement en ce qui
concerne la question sexuelle, mais principalement vis-à-vis du positionnement du sujet
féminin devant le savoir.
Descripteurs: Psychanalise, sexualité, fémininité.
Désir, conaissance, langage.
Clinique psychanalytique, écoute psychanalytique.
xii
1. INTRODUÇÃO
“O eu da criança é um objeto metonímico frente ao desejo da mãe.
Esta relação ao falo significa que ainda que o pai não tome parte, todavia,
do ‘mundo da criança’, há igualmente desde o princípio um terceiro termo
entre a criança e a mãe. Neste sentido, por sua condição de terceiro,
o que funciona no primeiro tempo do complexo de Édipo
como o que se chama o Nome-do-Pai, é o falo”
Jacques Lacan
Esta pesquisa terá como objetivo central realizar um estudo psicanalítico
sobre os avatares da sexualidade feminina.
Deste modo, destacamos primeiramente a importância e a especificidade que
o termo “avatar” agrega ao tema: significado, na língua portuguesa, ao mesmo
tempo como o nome dado às encarnações de um deus e também como
transformação, metamorfose, e no espanhol, como cada um dos estados ou fases em
que se manifesta uma coisa que está mudando ou se desenvolvendo; coloca-se em
consonância com os diferentes tempos em que se dá o processo de estruturação do
2
sujeito feminino, abarcando ainda aquilo que, em seu universo, expõe-se como
divino.
Neste sentido, pretendemos verificar de que maneira a mulher se posiciona
frente ao mal-estar estrutural que norteia sua constituição, sobretudo no que tange à
falta de um significante para nomeá-la, situando nossa investigação em relação ao
Édipo lacaniano e buscando apreender as especificidades que se estabelecem em seus
três tempos – respectivamente, no nível do desejo materno, da função paterna e da
cultura –, a fim de verificar ainda a forma como o saber, inconsciente e constituído, é
tomado pelo sujeito feminino nesse circuito.
A hipótese que levantamos se dirige no sentido de considerar que uma saída
possível para suportar a falta estrutural que constitui a mulher, viria pela via
intelectual, ou seja, ao revestir-se do caráter fálico atribuído ao conhecimento como
forma de circunscrever esse real, ou mesmo de negá-lo, apontando respectivamente
para uma inserção na ordem do sinthome e do sintoma.
Assim, ao longo do primeiro capítulo, empreenderemos um levantamento
teórico a partir dos textos freudianos e lacanianos acerca da sexualidade feminina,
visando demarcar posicionamento da menina frente ao Outro materno, considerando
principalmente as influências advindas da fase pré-edípica, para sua organização
psíquica e cognitiva.
Ao final deste capítulo, após abordarmos sucintamente os pontos teóricos que
delinearão nossa pesquisa, desenvolveremos algumas questões relativas ao método
utilizado para a coleta e discussão dos casos analisados, apresentando uma breve
distinção entre o processo de Entrevistas preliminares e a entrada em análise
propriamente dita, a fim de distinguir os diferentes momentos em que os sujeitos
acompanhados na pesquisa se encontravam em relação ao tratamento analítico.
3
No capítulo seguinte, adentraremos o campo paterno, estabelecendo os limites
e alcances no que se relaciona à possibilidade de interseção entre saber inconsciente
e saber constituído e verificando de que modo a mulher se coloca diante do saber do
pai, como no caso da histérica, e como esse posicionamento se reflete em outros
contextos, como na clínica, por meio da discussão acerca do discurso da histérica e
do que se coloca como sujeito suposto saber na análise.
Na seqüência, consideraremos o sujeito em referência ao terceiro tempo
edipiano, visando verificar de que maneira aquilo que conseguiu extrair das
experiências vividas com as figuras parentais, até então, pode se reverter numa
produção cultural, mesmo que sintomática. Em outras palavras, a questão que se
coloca é “se e como o saber pode produzir conhecimento?”.
É neste sentido que tomamos a arte – em suas mais variadas formas de
expressão – como cerne de nossa discussão, desenvolvendo, neste tocante, conceitos
como o de suplência, e apresentando algumas contribuições trazidas pela clínica da
psicose ao estudo da sexualidade feminina.
Desta maneira, tomamos esta produção como uma saída possível para a
relação da mulher com o inominável da feminilidade, na medida em que se constitua
como uma escritura possível para algo que “não cessa de não se inscrever”.
Além disso, inserimos neste contexto o amor como mais um modo de buscar
representar o irrepresentável da estruturação do sujeito, sendo por essa via que
propomos abarcar o tema, contemplando algumas especificidades contidas no
posicionamento de cada parceiro na relação amorosa.
Será ainda nesta interface entre escrita, arte, loucura e amor que analisaremos
o caso Camille Claudel, defendendo uma leitura de sua história a partir de uma
dinâmica referendada na neurose obsessiva; e que teceremos alguns comentários
4
acerca Alice no País das Maravilhas, cuja personagem principal não pára de dar
mostras do impossível inerente à linguagem.
Por fim, apresentaremos os casos clínicos acompanhados na pesquisa e
procederemos à análise dos dados obtidos para, enfim, concluirmos com a exposição
dos resultados a que chegamos após essas leituras, partindo de um “não querer saber
nada disso” à formulação de uma escrita possível, como paradigma da estrutura em
que se desenvolveu à própria tese, por referência ao posicionamento do sujeito frente
ao processo de constituição psíquica e de circunscrição do real que o atravessa.
Passemos, portanto, à leitura freudiana e lacaniana acerca da feminilidade e
sua relação com o desejo materno.
1.1. Implicações da figura materna sobre a constituição da sexualidade
feminina: uma visão freudiana
É partir do texto A organização genital infantil, ao reinterpretar as teses
formuladas em 1908 acerca das teorias sexuais infantis, que Freud (1923) começa a
se deter mais profundamente sobre o que seriam as especificidades da constituição da
sexualidade na menina.
Embora neste texto Freud destaque a primazia do falo em relação aos órgãos
sexuais para ambos os sexos, ele já admite posicionamentos distintos para o menino
e para a menina frente à diferenciação sexual anatômica e à constatação da falta de
pênis materna.
Trata-se de uma diferença que pode ser destacada, sobretudo pelo que se
coloca como primeiro objeto de amor para cada um e pelo conseqüente rumo dado à
conflitiva edípica, a partir dessa escolha.
5
Para o menino, esse primeiro objeto de amor seria a mãe, assim
permanecendo durante o complexo edípico. No caso da menina, a princípio, a
situação seria a mesma até sua entrada no Édipo, quando então haveria uma inversão,
na qual seus instintos amorosos seriam desviados da figura materna e dirigidos ao
pai, devendo a partir daí, tal como é esperado que aconteça com o menino, passar a
outra escolha objetal definitiva.
Em suma, vemos duas mudanças operando na constituição sexual da menina.
A primeira relativa à zona erógena – que passa do clitóris para a vagina – e a
segunda, como já pontuamos relativa ao objeto amoroso, que muda da mãe para o
pai. Já quanto ao menino, ambos se mantém.
Além disso, uma outra distinção se impõe, desta feita com relação ao tempo
de entrada e de saída de cada um na conflitiva edipiana, algo que Freud irá descrever,
em pormenores, em 1933, ao dizer que para o menino o complexo de Édipo surge
como uma evolução própria da fase fálica, sendo posteriormente dissolvido em
decorrência da ameaça de castração e, fazendo surgir como seu herdeiro um superego
severo.
No que tange à menina, a problemática é praticamente oposta. Nas palavras
do autor: “o complexo de castração prepara para o complexo de Édipo, em vez de
destruí-lo; a menina é forçada a abandonar a ligação com a mãe através de sua inveja
do pênis, e entra na situação edipiana como se esta fora um refúgio” (p. 129).
Deparamo-nos, portanto, com um dos elementos precursores do que
indicaremos, posteriormente, como concernente ao enigma do feminino, e que se
constitui na dissolução apenas parcial do complexo edípico na mulher e o
conseqüente prejuízo que daí advém para a formação do superego, algo que será
6
ainda explorado sob a pena de Serge André, a partir do trabalho de 1986, intitulado
“O que quer uma mulher?”.
Desta forma, começa a se desenhar o extenso caminho que aponta para as
especificidades da estruturação feminina e a importância que a primeira relação com
a figura materna representa para este processo.
No sentido de enveredarmos nos meandros desta relação, retomemos os
textos freudianos, nos quais o autor relaciona a importância da mãe a uma
problemática de ordem fálica, ou seja, dependente exclusivamente da concepção que
a criança tem acerca da distinção sexual anatômica, algo que pode ser exemplificado
pelo fato de ser a mãe uma das últimas mulheres a ser reconhecida como destituída
de um pênis.
E, veremos ainda que este termo: “destituída”, não é empregado aqui em vão,
já que na verdade, uma vez constatada a ausência do órgão sexual masculino, a
criança se mantém na ilusão de que ele esteve lá, num primeiro momento, sendo-lhe
arrebatado num tempo posterior, provavelmente devido a uma grande falta cometida.
Esta questão da dialética fálica, do ter ou não ter o falo, permanece mesmo
após a dissolução do complexo de Édipo como pivô de toda articulação da
sexualidade, deixando suas marcas principalmente sobre a menina, podendo
desembocar numa atitude reivindicatória desta em relação à mãe – dinâmica que
Freud discutirá melhor em “A Sexualidade feminina”, de 1931 e “A feminilidade”,
de 1933, mas cujo prenúncio já se encontra descrito em textos como “A dissolução
do complexo de Édipo”, de 1924.
Neste último, Freud (1924) afirma que, se por um lado, a ausência de um
pênis coloca a questão da castração para a menina como um fato consumado, ao
7
passo que para o menino se apresenta a constante ameaça frente à perda do órgão,
por outro, não é sem resistências que a menina se defronta com a falta de um pênis.
Nas palavras do autor:
A renúncia ao pênis não é tolerada pela menina sem alguma tentativa de
compensação. Ela desliza – ao longo da linha de uma equação simbólica, poder-se-
ia dizer – do pênis para um bebê. Seu complexo de Édipo culmina em um desejo,
mantido por muito tempo, de receber do pai um bebê como presente – de dar-lhe
um filho (p. 223).
Num trecho seguinte, Freud (1924) coloca que esses “dois desejos – possuir
um pênis e um filho – permanecem fortemente catexizados no inconsciente e ajudam
a preparar a criatura do sexo feminino para seu papel posterior” (p. 223-4).
Observamos, no entanto, que se o pai aparece como figura central no desejo
feminino neste momento de sua constituição, o mesmo não se deu por ocasião do
início deste processo, denominado por Freud de fase pré-edípica, o qual será
discutido em suas conferências de 1931 e 1933.
Em ambos os textos, a mãe é descrita como o primeiro objeto de amor da
menina, e esta primeira relação, como responsável por lançar seus reflexos sobre
toda a vida sexual da mulher, sendo que o endereçamento ao pai nada mais seria que
o primeiro deslocamento da figura materna, guardando, por isso mesmo, suas
características primordiais, o que poderá se estender inclusive para o relacionamento
com os parceiros amorosos escolhidos na vida adulta.
Freud complementa a questão dizendo que “durante essa fase, o pai da
menina é apenas um rival incômodo (...). Quase tudo o que posteriormente
8
encontramos em sua relação com o pai, já estava presente em sua vinculação inicial
e foi transferido, subseqüentemente para seu pai” (p. 148). E, conclui sua digressão
vinculando diretamente a possibilidade de compreensão das mulheres a uma
investigação de sua relação com a figura materna durante a fase pré-edípica.
É esta presença marcante da relação da filha com a mãe que faz com que
autores como Serge André (1986) questionem a existência de uma metáfora paterna
em funcionamento na estrutura feminina, levantando em seu lugar, a hipótese de
haver em jogo, na verdade, apenas um deslocamento metonímico associado à figura
materna, e não uma nova significação que substitua precisamente uma relação
anterior, justificando sua dúvida ao colocar que “tudo se passa na realidade como se,
para a menina, o pai nunca substituísse completamente a mãe, como se fosse sempre
esta última que continuasse a agir através da figura do primeiro” (p. 179).
Num trecho seguinte, André se preocupa em esclarecer que não se trata no
caso da menina de um não assujeitamento ao Nome-do-pai – o que equivaleria a
classificar todas as mulheres como psicóticas –, mas marca ao mesmo tempo a
impossibilidade da mulher em se inscrever totalmente na ordem fálica, fazendo
vislumbrar aquilo que, em termos freudianos, foi denominado como insuficiência do
superego feminino e que, futuramente, Lacan (1972-73) descrevera como sendo
característico da feminilidade, qual seja, o fato de a mulher ser não toda castrada.
Sendo assim, André complementa: “a filha é não toda assujeitada a essa
função de metáfora. Para ela, a instância paterna não faz desaparecer, não condena
ao esquecimento o primeiro Outro materno. Parece que é antes enquanto sempre
suscetível de se reduzir a uma metonímia da mãe que o pai encontra seu lugar no
Édipo feminino...” (p. 181).
9
Ao final do texto “Uma menina e sua mãe”, Serge André (1986) resume a
relação pré-edípica com a figura materna dizendo que “o destino da menina aparece,
assim, como o de uma metáfora impossível ou de uma luta permanente para se elevar
do registro metonímico para o da metáfora” (p. 186). Diferencia ainda esta relação
primária de uma fusão ou comunhão, ressaltando tratar-se antes “de uma luta
ferrenha cujo objetivo, em última instância, é o de determinar quem vai devorar o
outro” (p. 186-187).
Trata-se, desta forma, de uma relação marcada pela ambigüidade amor-ódio,
ambigüidade esta referida por Freud (1923) nos seguintes termos:
Uma poderosa tendência à agressividade está sempre presente ao lado de um amor
intenso, e quanto mais profundamente uma criança ama seu objeto, mais sensível se
torna aos desapontamentos e frustrações provenientes desse objeto; e, no final, o amor
deve sucumbir à hostilidade acumulada (p. 153).
Deparamo-nos, portanto, com mais uma dificuldade a ser enfrentada pela
menina: se, por um lado, para que ela possa se endereçar a um homem, faz-se
necessário esta ruptura analisada por Freud com relação à figura materna, por outro,
ela deverá identificar-se a esta figura “odiosa” a fim de construir sua feminilidade.
Constitui-se, assim, um processo identificatório em duas vertentes: uma
marcada pela fase pré-edípica, na qual a mãe é tomada como primeiro objeto de
amor e, outra advinda do complexo de Édipo, onde a mesma mãe será vista como
uma rival a ser eliminada para que a menina possa ocupar-lhe o lugar junto ao pai.
Freud descreve ainda que diante desta relação conflitiva e de acordo com o
modo pelo qual a menina significa sua castração, restam-lhe três saídas possíveis do
10
complexo de Édipo: a inibição sexual ou a neurose, o complexo de masculinidade e
a feminilidade normal, propriamente dita.
O primeiro caso é caracterizado pelo autor, sobretudo por uma atitude de
desvalorização da menina em relação à mãe, à medida que constata sua falta de
pênis, o que a leva ainda a relegar sua atividade masturbatória a um plano
secundário, já que seu clitóris também perde seu valor diante da impossibilidade de
ostentá-lo como objeto fálico na mesma proporção que o pênis ocupa para o menino.
Assim, como conseqüência última, ocorre a repressão por parte da menina de
grande parte de suas inclinações sexuais.
Já o complexo de masculinidade, será definido como um momento no qual a
menina se recusa a reconhecer a falta de pênis materna e conseqüentemente sua
própria falta, rebelando-se de modo a acentuar sua masculinidade prévia, apegando-
se a uma atividade clitoridiana e refugiando-se numa identificação com sua mãe
fálica ou com seu pai, permanecendo, desta maneira, vítima da esperança de um dia
ainda vir a ter um pênis.
Nas palavras de Serge André (1986):
O complexo de masculinidade da menina se apóia nessa olhadela inicial e se
desenvolve segundo duas vertentes, a da esperança e a da denegação: esperança de
obter um dia, como recompensa, esse pênis que a faria semelhante aos homens;
denegação pela qual se recusa a reconhecer sua falta e se obstina na convicção de que
o tem assim mesmo, obrigando-se a se comportar como se fosse um homem (p. 173).
O complexo de masculinidade conserva, deste modo, uma relação intrínseca
com a inveja do pênis – emergente do momento em que a menina vê o traço
identificatório do sexo do pai. Inveja esta que traz como conseqüências o sentimento
11
de inferioridade, o modo particular pelo qual se constitui o ciúme feminino, o
afrouxamento da ligação da mãe enquanto objeto, além da intensa reação contra a
masturbação clitoridiana.
Neste sentido, este complexo surge não só sob as influências e
particularidades das vivências pré-edípicas, como ainda se associa à imagem que a
menina guardará de seu próprio corpo a partir da relação primordial com a mãe.
Como conseqüência, o sujeito fixado neste ponto da constituição subjetiva cai
vítima de um abismo profundo entre o que se coloca como impotência e
impossibilidade. Não sabe, ou não pode saber, da não existência da relação sexual e,
como tal, acredita estar sempre em defasagem, semelhante à mulher descrita por
Freud (1923) em relação à inveja do pênis e ao complexo de inferioridade.
Por fim, somos colocados diante da terceira possibilidade levantada por
Freud – uma saída pela feminilidade – que pode ser explicada pela capacidade da
mulher em proceder a um deslizamento simbólico, abrindo mão do objeto materno e
se dirigindo ao pai, figura a qual endereçará seu desejo por um filho, como
representante do estabelecimento de um desejo feminino, por excelência.
Segundo Freud (1933), “sua felicidade é grande se, depois disso, esse desejo
de ter um bebê se concretiza na realidade; e muito especialmente assim se dá, se o
bebê é um menininho que traz consigo o pênis tão profundamente desejado” (p.
128).
Ora, são conhecidas as objeções à equivalência, traçada por Freud, entre ser
mulher e ser mãe: objeções que se sustentam principalmente se nos ativermos ao
trecho seguinte de suas observações, quando o autor nos diz ser muito freqüente, que
“em seu quadro combinado de ter ‘um bebê de seu pai’, a ênfase seja colocada no
bebê, ficando o pai em segundo plano” (p. 128).
12
Assim, ao contrário de significar um posicionamento feminino marcado pelo
amor por um homem, tratar-se-ia mais uma vez de uma busca pelo falo e, como tal,
podendo ser designada como uma tentativa de se colocar sob a inscrição masculina.
Além disso, uma vez que estamos discutindo as implicações do discurso
materno no processo de constituição da sexualidade feminina, há que se ressaltar os
efeitos que um posicionamento dessa ordem pode acarretar para a subjetividade da
filha, na medida em que lhe seja demandado responder como objeto fálico pronto a
atender ao desejo da mãe.
É sabido que tais efeitos nocivos não se refletem apenas na menina, mas
também sobre o infans do sexo oposto, algo que o próprio Freud (1910) descreveu
acerca de Leonardo da Vinci, ao dizer que a natureza amorosa da relação mãe-
criança é:
Plenamente satisfatória e que não somente gratifica todos os desejos mentais, mas
também todas as necessidades físicas; e se isto representa uma das formas possíveis
da felicidade humana, em parte será devido à possibilidade que oferece de satisfazer,
sem reprovação, desejos impulsivos há muito tempo reprimidos e que podem ser
considerados como perversos (p. 106).
Diante disto, só nos cabe acrescentar que ao usufruto desse amor
incondicional corresponde um preço – o de responder também incondicionalmente
ao desejo materno.
Se no caso de Leonardo da Vinci sua genialidade é concebida por Freud
(1910) como uma resposta voltada a sustentar este lugar privilegiado frente ao Outro
materno, isto significa que poderíamos dizer o mesmo no caso da relação da mulher
13
com o saber? Pensamos que sim, sobretudo se este saber/conhecimento se encontrar
valorizado falicamente pela figura materna em seu relacionamento com a filha.
Neste sentido, a hipótese de que o conhecimento pudesse desempenhar um
papel específico na relação entre mãe e filha, circulando como um objeto de troca e,
ao mesmo tempo, adquirindo um estatuto fálico, surgiu pela primeira vez por ocasião
dos estudos desenvolvidos durante a pesquisa de mestrado
1
, quando se constatou no
discurso das mães entrevistadas, primeiramente acerca da gravidez de seus filhos,
uma expectativa pela vinda de um menino, o que logo se transformou em frustração,
na medida em que descobriram que se tratava de meninas.
Anos mais tarde, aparentemente como uma forma de compensar aquela falta
anterior, eis que ocorreu um enaltecimento das qualidades cognitivas das filhas em
detrimento de seus atributos femininos, como se o conhecimento assumisse, neste
contexto, um caráter masculino que surgiria ainda como uma reivindicação
remanescente da conflitiva edípica materna, sendo posteriormente incorporado ao
próprio processo de constituição psíquica da filha.
No que se relaciona a esta herança edípica, Lacan a menciona em vários
momentos de seu ensino, podendo-se destacar como exemplo, a menção que faz aos
estudos de Dolto sobre fobia em 1956-57, associando-a a uma conflitiva da mãe com
o próprio pai, e introduzindo o falo como um terceiro elemento presente desde o
início na relação mãe-criança.
Deste modo, o estatuto conferido ao conhecimento se encontraria em estreita
relação com aquilo que resultaria da constituição do sujeito, e, desta forma, referido
ao desejo e à fantasmática parental, bem como ao que se constituiria como saber
inconsciente, podendo assumir o status de sintoma.
1
REIS, E. Superdotação e psicanálise: uma questão do desejo. São Paulo. Dissertação de Mestrado
– Universidade de São Paulo, 2001.
14
Assim, somos impelidos a nos deter sobre o que se desenvolve em termos de
demanda e desejo nessa época remota da estruturação psíquica, a fim de verificar
como o conhecimento pode ser tomado como “moeda de troca” e como o sujeito
pode aderir ao chamado materno.
Diante do que, o primeiro fator a ser considerado dirá respeito à posição
ocupada pela criança frente à potência adquirida pela mãe, a partir do momento em
que esta se constitui como grande Outro primordial, sendo-lhe atribuído o poder de
privar o pequeno infans do objeto de sua satisfação; e, conseqüentemente, o caráter
adquirido pelo objeto neste contexto.
Neste sentido, Lacan (1956-57) coloca que “desde a origem os objetos, como
são chamados, dos diferentes períodos, oral e anal, já são considerados como outra
coisa além do que são. São objetos que já estão trabalhados pelo significante...” (p.
53) e, desta forma, ele se propõe a discuti-los situando-os em relação à falta, descrita
em três níveis distintos: castração, frustração e privação, tal como observamos no
quadro a seguir:
AGENTE
FALTA DE OBJETO
OBJETO
Pai real
Castração
imaginário
Mãe simbólica
Frustração
real
Pai imaginário
Privação
simbólico
Deste modo, na proporção em que este objeto pode ser negado pelo Outro, ele
se transforma num objeto simbólico, o que Lacan nomeou de dom, transformando
15
então o que era mera necessidade em demanda, sendo especificamente neste sentido
que aprofundaremos nossa discussão.
O dom implica todo o ciclo, onde o sujeito se introduz tão primitivamente quanto
possam supor. Só existe dom porque existe uma imensa circulação de dons que
recobre todo o conjunto intersubjetivo. O dom surge de um mais-além da relação
objetal, já que ele supõe atrás de si toda a ordem da troca em que a criança
ingressou, e só pode surgir deste mais-além com o caráter que o constitui como
propriamente simbólico (p. 185).
Este objeto transformado em dom tem entrada quando a mãe, até então
inscrita na ordem simbólica, como objeto presente-ausente, deixa de responder ao
apelo da criança, quando, “de certa forma, só responde a seu critério e torna-se real,
isto é, torna-se uma potência” (p. 68-9), produzindo-se uma inversão na posição de
objeto.
Assim, se anteriormente se tratava de um objeto da necessidade, transformado
em simbólico, desta feita, uma vez que o objeto já se encontra transformado e
associado a uma demanda relativa à presença-ausência do outro real que é a mãe, eis
que a falta instaurada é de ordem imaginária, caracterizada, em termos lacanianos,
como frustração.
Desde então, segundo Lacan (1956-57) “os objetos que a criança quer reter
consigo não são mais tanto objetos de satisfação, e sim a marca do valor dessa
potência que pode não responder, e que é a potência da mãe” (p. 69).
É neste ponto que poderíamos pensar que o conhecimento possa assumir o
lugar de representante fálico, ou seja, que possa se constituir como um produto que,
ao ser ofertado à mãe, sirva de garantia para a obtenção do seu amor, do seu
16
reconhecimento, logicamente, à medida que mãe é capaz de significar à criança o
valor desse objeto para ela.
Essa dinâmica se mostra ainda mais evidente quando referida à leitura
lacaniana da conflitiva edípica, onde no primeiro tempo do Édipo, esse objeto não é
outra coisa que o desejo da mãe, cuja supremacia permitirá à criança colocar-se no
lugar correspondente ao falo.
Assim, o objeto do desejo da criança é o desejo da mãe e, na medida em que
o desejo da criança se conforma ao objeto, então também o desejo da criança é o
desejo da mãe, sendo neste sentido que o desejo está em posição de objeto.
Para Lacan (1956-57), o fato de a criança ser o falo para a mãe é o que
“constitui uma discordância imaginária” que produz como fruto da frustração o que
ele chamou de “dano imaginário” (p. 56), sendo que essa discordância é apreendida
pela constatação de que a criança nunca se reduz perfeitamente ao falo, existindo
“sempre para a mãe algo que permanece irredutível no que está em questão” (p. 71).
Em suma, não é a criança que é amada, mas uma certa imagem materna que a
reveste e à qual busca se conformar, consistindo nisto o que subsiste de narcísico na
relação.
A este respeito, podemos compreender o que se dá na relação de apego do
sujeito com seu sintoma, uma vez que ele é o representante deste primeiro lugar
ocupado na fantasia do Outro materno, no qual a criança, ao se identificar à imagem
de completude que a mãe lhe dirige ao colocá-la como seu falo imaginário,
identifica-se, em última instância, ao protótipo do eu-ideal.
Desta maneira, no decorrer do movimento circular de produção de demanda
que se dá nesse contexto, faz-se necessário que o discurso do Pai intervenha no
sentido de privar a mãe do objeto de satisfação em que se torna a criança.
17
Como decorrência desta intervenção vê-se operar uma dupla privação que
recairá não só sobre a mãe, mas que deixará seus efeitos também sobre a criança.
Este duplo “não” proferido pelo pai introduz a criança no segundo tempo do
Édipo e remete à proibição do incesto, no que diz respeito à criança, através da
mensagem que diz “não possuirás tua mãe” e, no que se refere à mãe, ao proibir que
reintegre seu produto.
Na seqüência do processo, o pai que antes interveio como proibidor, agora
intervirá como o portador do falo, ou seja, como o portador daquele objeto
imaginário que à criança falta a ser.
É esta falta a ser na criança que abre caminho para que ela tenha acesso ao
ter, por via da doação deste objeto imaginário que é o falo, agora referido à categoria
da falta que institui o discurso como castração, implicando ainda a noção de dívida
simbólica à medida que o sujeito é inserido na lei, sendo neste sentido que a função
do Nome-do-Pai intervém, estabelecendo uma relação entre demanda e desejo, e que
o falo pode ser nomeado como significante da falta.
Deste modo, o que no primeiro tempo, colocava-se como objeto metonímico
do desejo da mãe, imbricado no eixo do deslocamento, agora se põe como
substituição, sendo equivalente ao que nomeia a falta.
Além disso, Lacan (1956-57) ressalta que ao mesmo tempo em as
experiências pré-edípicas, vividas neste estágio, serviriam de preparação para a
conflitiva edipiana, elas só seriam significadas na conclusão do complexo de Édipo,
introduzindo desta maneira a noção de aprés-coup em seu ensino, o que
posteriormente permitirá discutir a questão feminina não só por referência à figura
materna, mas também por referência ao posicionamento paterno.
18
Por ora, destacaremos o que Lacan (1972-73) definiu como especificidade no
processo de estruturação feminina, quanto ao seu lugar no quadro da sexuação e
quanto à conseqüente falta de um significante capaz de nomear a mulher, a partir
deste posicionamento.
1.2. Introdução a uma leitura lacaniana da feminilidade
Lacan ao longo de seu estudo vai definir a sexualidade em termos de posições
– feminina e masculina –, para o que desenvolve as fórmulas da sexuação, as quais
dispomos abaixo, restando a todo ser falante ocupar uma dessas duas posições, as
quais não se encontram necessariamente vinculadas ao sexo biológico.
___
X
Φ
X
X
Φ
X
___ ___
X
Φ
X
___
X
Φ
X
S
Φ
S (A)
a La
19
Os componentes da fórmula são, nas palavras de Viviani
2
(1996), “o
quantificador existencial x (existe ao menos um), a predicação simbolizada na
função proposicional [x = indicador de lugar que substitui o símbolo do sujeito, Φ
simbolizando qualquer predicação, e o traço (
___
) simbolizando a negação]”. E
acrescenta, “para a experiência analítica, essa predicação corresponde à castração ou
ao que também vai se chamar função fálica, sendo esta a articulação da castração
com o corpo, e do desejo com o gozo” (p. 96).
Assim, do lado esquerdo, estrutura-se a posição masculina sendo segundo
Lacan (1972-73) pela “função fálica que o homem como todo toma inscrição” (p.
107). Já do lado direito, encontramos a posição feminina, posição que não permitirá
nenhuma universalidade, reservando a todo ser falante que nela venha a se inscrever
a condição de não-todo.
Vejamos resumidamente, portanto, a leitura dada por Lacan às fórmulas da
sexuação e qual sua implicação acerca da constituição do sujeito feminino:
- no quadro superior, à esquerda podemos ler a proposição x Φx colocando
que existe ao menos um que diz não à castração. Esta exceção nos remete ao
trabalho de Freud (1912-13) em “Totem e tabu”, ao fazer referência ao pai da
horda primitiva, àquele que desfrutava de todas as mulheres do clã, e que por
isso é assassinado por seus filhos. É em nome desse pai morto que se
transmite a lei, o que se representa pela proposição x Φx, podendo ser lido
como: todos se submetem à função fálica, à inscrição simbólica que marca o
ser que se inscreve no conjunto dos homens como todo-castrado.
2
Alejandro Luis Viviani, psicanalista residente em São Paulo, que em seu texto Sobre a sexualidade
(masculina), faz uma leitura das fórmulas da sexuação segundo Lacan (1972-73) no Seminário XX.
20
- Do lado feminino, no entanto, ainda no quadro superior, deparamo-nos com
uma situação diferente caracterizada pela negação dos quantificadores. Em
decorrência desta negação, o que se lê a partir da proposição x Φx é: não
existe um que diga não à função fálica, indicando que não há existência fora
da lei.
Nas palavras de Viviani (1996) “como não há exceção que diga não à função
fálica, não há limite, conseqüentemente não poderá se constituir um conjunto
fechado” (p. 99), sendo esta negação do universal mulher o que permitiu a Lacan
(1972-73) dizer que A mulher não existe, e que só é possível escrevê-la como não-
toda, o que se representa a partir da proposição x Φx: não-todo diz sim à função
fálica.
Desta maneira, Lacan pensará a condição feminina em termos de gozo:
Quando digo que a mulher é não-toda e que é por isso que não posso dizer a mulher, é
precisamente porque ponho em questão um gozo que, em vista de tudo que serve na
função Φx, é da ordem do infinito (p. 140).
Lacan (1972-73) introduz do lado feminino a noção de um gozo suplementar
ao gozo fálico, relação esta que poderemos depreender da leitura dos quadros
inferiores das fórmulas da sexuação:
- do lado masculino encontramos o S que mantém relação apenas com o objeto
a inscrito do outro lado da barra, condição que fará com que o homem se
relacione com a mulher somente enquanto objeto causa do desejo, estando
21
impedido para sempre de gozar desse corpo como um todo. A relação de S
com a se representará, portanto, pela fórmula da fantasia (S a).
- a mulher por sua vez, poderá desfrutar de um duplo gozo, isto é o que indica
a flecha que sai de La (referência no texto francês à La femme) em direção ao
falo – no lado masculino – e aquela que se dirige a S (A), caracterizando um
gozo suplementar “além do falo”, um Outro gozo.
Neste sentido, Lacan (1972-73) escreve que “a mulher tem relação com S
(A), e já é nisso que ela se duplica, que ela é não toda, pois por outro lado, ela pode
ter relação com Φ” (p. 110).
Entretanto, é o próprio Lacan quem ressalta, no decorrer do texto, que o fato
do A encontrar-se barrado não significa que nada mais dele exista, o que nos remete
à discussão anteriormente desenvolvida a partir dos textos freudianos.
Assim, o que resta deste posicionamento seria algo da ordem de um não
recalcado, de um não inscrito na ordem fálica, implicando ainda na ausência de um
significante capaz de nomear a mulher, colocando-a vítima de um vazio profundo,
no lugar do qual se verá erigir objetos cuja função será de tentar escamotear esta
falta estrutural.
Nossa aposta inicial é que o conhecimento possa se constituir num desses
objetos, ao ser investido falicamente e demandado pelo desejo materno, como uma
forma da mãe se ver preenchida pelo êxito da filha.
Trata-se de um investimento cuja resposta poderá assumir uma conotação
nociva para o sujeito se representar um sofrimento – como no caso da histérica –,
uma tentativa fracassada de negar aquilo que o próprio real do corpo denuncia, a
22
saber, a falta. Ou, pode ser benéfico, se for uma forma de circunscrever esse buraco,
de fazer borda ao seu redor, uma forma de “escrever o que não cessa de não se
inscrever”, por meio de um engajamento no campo da arte ou da literatura, por
exemplo.
Através da leitura lacaniana da feminilidade, torna-se ainda possível
voltarmos ao texto de 1933, a fim de compreendermos melhor o que Freud tentou
significar ao dizer que: “o desejo que leva a menina a voltar-se para o seu pai é, sem
dúvida, originalmente o desejo de possuir o pênis que a mãe lhe recusou e que agora
espera obter do seu pai” (p. 124).
A partir do quadro da sexuação, vemos que a posição feminina se caracteriza
basicamente por sua capacidade de se dirigir a um Outro inominável, presentificado
pelo que há de divino ou de demoníaco no universo feminino, e que possibilita a
mulher se satisfazer com um gozo suplementar, ao voltar-se para si mesma ou para o
místico, ao mesmo tempo em que pode lançar seu olhar para o campo masculino, à
procura do falo.
Deste modo, não é o pai o objeto de amor em si, mas aquilo que ele possa
lhe dar. A procura feminina continua na direção de conquistar um objeto que lhe
sustente a idéia de possuir um pênis, o que, por extensão, permite que no encontro
enganoso com este objeto a relação com o pai possa ser colocada em segundo plano.
Além disso, por meio da disposição dos parceiros no quadro da sexuação,
vemos ainda não há encontro possível entre o que se colocaria como sendo o sujeito
mulher e o sujeito homem. Ambos se encontram separados por um demarcador
lógico representado na máxima lacaniana de que “não existe relação sexual”.
Neste sentido, ou o homem sofre um apagamento diante da busca feminina
pelo falo, ou, ao contrário, será a mulher quem se fará de objeto de amor, pronto a
23
responder ao sintoma masculino, anulando-se como sujeito – configuração que
merece ser melhor analisada, quando enveredarmos pelo campo das relações
amorosas propriamente ditas.
A este respeito, teríamos que considerar ainda o posicionamento específico
da histérica frente ao saber e a presença de um embate travado entre ela e a figura do
mestre, encarnada neste caso pelo pai, no sentido de expor a inconsistência de seu
saber, temática que também teremos oportunidade de acompanhar em detalhes na
seqüência do trabalho.
Por ora, descreveremos o que se coloca como metodologia de trabalho.
1.3. Método, objetivos e limites de pesquisa
Uma vez que discutimos o modo pelo qual se constitui o sujeito feminino,
segundo uma leitura freudiana e lacaniana, e apontamos para algumas das
implicações do posicionamento materno neste processo, podemos situar os pontos
que delinearão nossa tese.
Para isto, recolocamos como problema de pesquisa a necessidade de realizar
um estudo psicanalítico sobre os avatares da sexualidade feminina, propondo como
ponto central de discussão averiguar os diferentes posicionamentos assumidos pela
mulher na tentativa de responder ao mal-estar estrutural que norteia sua constituição,
no que tange à falta de um significante capaz de nomeá-la.
Neste sentido, adotaremos a estrutura dos três tempos do Édipo lacaniano
como modelo para abordar os diferentes momentos constitutivos do sujeito feminino,
referindo-o respectivamente frente ao desejo materno, ao saber do pai e à cultura.
Deste modo, destacamos como objetivos para o trabalho:
24
1) Relacionar o que se coloca como especificidade no processo de
estruturação do sujeito feminino, considerando-se que haveria uma articulação entre
o processo de constituição psíquica da mãe e da filha, tendo como pressuposto que a
vivência edípica da primeira, sobretudo, no que se refere ao modo com esta se
defrontou com a castração, pode trazer conseqüências ao desenvolvimento da
sexualidade da segunda, fazendo com que esta venha a se posicionar, por exemplo, a
partir de um lugar masculino no discurso.
2) Verificar de que forma o saber – inconsciente e constituído – é tomado
pela mulher nesse circuito, levantando-se como hipótese que uma saída possível para
o mal-estar estrutural advindo da falta de um significante para nomeá-la surgiria pela
via intelectual, quando se revestir do caráter fálico atribuído ao conhecimento
poderia ser considerado como sinônimo de uma tentativa de circunscrever o real
inerente à feminilidade, em consonância com a formulação de um “sinthome” ou, ao
contrário, como uma tentativa de escamoteá-la numa formação sintomática.
3) Analisar de que maneira a mulher se coloca no que se refere à relação
amorosa, observando ainda o modo pelo qual o amor pode ser descrito como um
elemento capaz de representar o irrepresentável da estrutura subjetiva, para além da
arte e da análise.
Para isto, partiremos de uma leitura teórico-clínica pautada num referencial
freudo-lacaniano, tendo como material para nossa análise o estudo específico de três
casos de mulheres, com idade entre 20 e trinta anos, nos quais se configura uma
25
relação particular com o saber, a fim de obtermos dados que possam lançar luz sobre
a questão da constituição da sexualidade do sujeito feminino.
Dos casos clínicos estudados, o primeiro a ser descrito se caracterizará por
constituir um processo de entrada em análise, o que, em termos psicanalíticos,
significa dizer que houve a transformação da queixa em enigma, passando de uma
transferência imaginária ao estabelecimento da transferência simbólica.
Ou seja, algo que pressupõe a tomada de um significante, pelo paciente, como
representante da figura do analista, favorecendo num segundo tempo a instalação de
uma suposição de saber que possibilitará a abertura inconsciente, a partir da
formulação de uma questão sobre o próprio sujeito e sua implicação na estruturação
de seu sintoma.
Nas palavras de Quinet (1993), trata-se de um processo em que “é preciso que
a queixa se transforme em demanda endereçada àquele analista e que o sintoma passe
do estatuto de resposta ao estatuto de questão para o sujeito, para que este seja
instigado a decifrá-lo” (p. 21).
Em contrapartida a este esquema, teríamos o que se denominou no ensino
lacaniano como Entrevistas preliminares – período referido anteriormente na clínica
freudiana como tratamento de ensaio –, cujo cenário se apresenta não só como o
momento no qual o paciente ainda não é capaz de se incluir em sua sintomatologia,
responsabilizando-se por seus atos e, sobretudo, por sua fala como sujeito, como
guarda ainda uma série de funções de crucial importância para o analista, seja por se
caracterizar como um espaço para a formulação da queixa, seja por sua qualidade
diagnóstica ou, ainda, por se tratar de um tempo onde se podem operar mudanças no
sentido de favorecer o endereçamento transferencial necessário à entrada em análise
26
e delimitar-se as bases para a direção da cura, à medida que se verifica a que gozo se
encontra circunscrito o sintoma.
Deste modo, veremos que, ao contrário do primeiro, o segundo caso por nós
analisado se encontrará inserido quase que exclusivamente neste período de
entrevistas preliminares, onde, embora a paciente tenha chegado a inscrever seu
sintoma na categoria de enigma – o que possibilitou entre outras coisas sua passagem
ao divã –, não lhe foi possível suportar se deparar com uma escuta que a impelia a
responder do lugar de sujeito, diante de sua demanda por alguém que reproduzisse a
fala materna, havendo a interrupção do tratamento, após um período de quatro meses,
o que, no entanto, não nos impossibilitou de levantar dados importantes acerca da
dinâmica psíquica da paciente.
O terceiro estudo a ser realizado, por sua vez, se pautará em material colhido
em supervisão, estando nossa leitura, portanto, baseada no relato da analista
responsável por seu acompanhamento.
Em detrimento às limitações que este fator possa acarretar, optamos por
reunir as impressões recolhidas e apresentá-las aqui, por se constituírem num
importante objeto para a pesquisa, dada a presença de uma dinâmica na qual nos
deparamos tanto com as implicações do discurso materno, envolvidas no processo de
constituição da sexualidade da filha, quanto com uma demanda claramente
formulada no sentido de que esta venha a responder de uma posição específica no
que concerne ao saber intelectual.
Já no que se refere especificamente às pacientes de nossa clínica, o método
utilizado para coleta e análise de dados estará fundamentado no relato e interpretação
de trechos do discurso dessas mulheres, cuja escuta será baseada nos preceitos
psicanalíticos, segundo os quais “todo fenômeno analítico, todo fenômeno que
27
participa do campo analítico, da descoberta analítica, daquilo com que lidamos no
sintoma e na neurose, é estruturado como linguagem, conservando sempre, segundo
Lacan (1955-56), “a duplicidade do significante e do significado” (p. 192).
Sendo assim, faz-se jus às palavras proferidas pelo autor em 1953, acerca do
método em psicanálise, ao dizer que “seus meios são os da fala, na medida em que
ela confere um sentido às funções do indivíduo; seu campo é o do discurso concreto,
como campo da realidade transindividual do sujeito; suas operações são as da
história, no que ela constitui a emergência da verdade no real” (p. 259).
Coloca-se em jogo, desta forma, algo que é próprio da estruturação do sujeito,
uma vez que se constitui como ser falante por meio da incidência do significante
sobre o real do corpo, e que diz respeito à propriedade do semi-dizer, revelando um
saber e uma verdade que só pode ser lida pela psicanálise como não-toda. E, neste
sentido, não importando se o paciente passou das entrevistas preliminares à entrada
em análise, propriamente dita, ou vice-versa, já que tanto um processo quanto o outro
se encontram sustentados sobre a associação livre, e, portanto guardando a mesma
estrutura discursiva, no que diz respeito à prevalência da palavra.
A isto se acrescenta a importância da função do analista que, nas palavras de
Lacan (1953), seria:
Ouvir a que ‘parte’ desse discurso é confiado o termo significativo, sendo assim que
ele opera, no melhor dos casos: tomando o relato de uma história cotidiana por um
apólogo que a bom entendedor dirige suas meias-palavras, uma longa prosopopéia
por uma interjeição direta, ou, ao contrário, um simples lapso por uma declaração
muito complexa, ou até o suspiro de um silêncio por todo o desenvolvimento lírico
que ele vem suprir (p. 253).
28
Insere-se, desta forma, neste paradigma, uma Outra realidade, uma Outra
cena, diferente daquela proferida pelas ciências naturais passível de observação
direta por parte do pesquisador, o que o leva na maioria das vezes a excluir a história
do sujeito e a tomá-lo como objeto.
Aqui, o sujeito assume um posicionamento específico. Ainda que o
psicanalista participe deste campo – seja com suas pontuações seja com seus
silêncios –, a verdade do sujeito antes excluída pela ciência, não só é priorizada na
escuta analítica como se constitui naquilo que lhe dá sustentação e sentido.
Dito nas palavras de Lacan (1953), “não se trata, na anamnese psicanalítica,
de realidade, mas de verdade, porque o efeito de uma fala plena é reordenar as
contingências passadas dando-lhes o sentido das necessidades por vir, tais como as
constitui a escassa liberdade pela qual o sujeito as faz presentes” (p. 253).
É assim que, antes de escutar o sujeito tentando extrair de sua fala
proposições universais, o analista estará interessado, sobremaneira, em verificar o
que de específico naquela dinâmica se apresenta e, desse material levantar
instrumentos que o auxiliem não só na escuta de outros casos, como, sobretudo, na
direção a ser dada no tratamento daquele paciente mesmo de onde se retiram tais
dados.
Neste sentido, podemos resumir a questão, citando Lacan (1953) ao dizer que:
“No discurso sustentado por um sujeito, há algo que ultrapassa seu querer. O
paradoxo, o imprevisto, o acidente produzem significantes que se engatam e geram
efeitos de sentido. É aí que fica em jogo uma verdade num nível diferente do eu do
sujeito. Há alguma coisa que funciona no inconsciente mais além do par formado
pelo eu e o outro, trata-se de uma entidade estrutural”.
29
Deste modo, passemos ao capítulo seguinte, aonde buscaremos apreender os
alcances dessa entidade por meio da análise e discussão dos diferentes momentos
lógicos constitutivos do processo de estruturação do sujeito.
30
2. SABER INCONSCIENTE X SABER CONSTITUÍDO: MOMENTOS
LÓGICOS NO PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DO SUJEITO
“O fundamental para Lacan é demonstrar os efeitos
que a incidência da linguagem produz, e que comporta
a impossibilidade do sexo como real, como condição lógica.
Há aí uma verdade, o saber deverá ter a função dessa verdade,
marcando, a correspondência entre o sujeito e o sexo
através de uma escrita”.
Mariscal
Antes que possamos adentrar as questões concernentes à função paterna na
estruturação do sujeito feminino, coloca-se a necessidade de procedermos à distinção
entre saber como lugar no processo discursivo e, portanto, relativo ao Nome-do-Pai –
e, como tal, definido como saber inconsciente –, e saber como objeto fálico,
supervalorizado pelo desejo materno como tamponador da falta, que se conforma aos
moldes do saber constituído, também designado como conhecimento, produzido e
absorvido pela cultura.
31
Portanto, com o propósito de construir o caminho que, ao mesmo tempo, une
e separa saber inconsciente de saber constituído, optamos por realizar uma breve
exposição do processo de constituição do sujeito, tentando associar cada um de seus
tempos lógicos ao esquema proposto por Dunker (2004)
3
, visando abordar o saber
em suas diferentes dimensões: como meio de gozo, alienação, separação e laço
social, compreendendo, respectivamente, a entrada do sujeito na linguagem, na fala,
na escrita do gozo e no discurso.
Deste modo, somos referidos a um tempo mítico, referente à fase pré-edípica
do processo de estruturação psíquica, a fim de verificarmos como se dá a entrada do
sujeito no campo da linguagem.
Calligaris (1986) aborda essa questão apontando para a existência, neste
momento, de uma heterogeneidade entre o que ele demarcou como sendo o campo
do Outro e o campo do sujeito, circunscrevendo uma problemática à qual o conceito
de estrutura vem a responder – por meio da construção do fantasma, no que
concerne ao seu eixo imaginário, e do sintoma, no que se refere à dimensão
simbólica.
No que tange ao Outro, estaríamos frente ao campo da linguagem, do qual se
pode dizer que “Isso fala”, condição que, por si só, traz como conseqüência a
suposição de um saber que se representa na hipótese de que “Isso deseja”, o que não
implica ainda na existência de um objeto como alvo desse desejo, já que para haver
objeto, faz-se necessário que antes o desejo se transforme em demanda.
Por ora, pode-se inserir neste contexto a noção de saber como meio de gozo,
à medida que ele se introduz como substrato da incidência do significante,
produzindo um ponto de perda, configuração que designará, em termos lacanianos, o
3
Dunker, C.I. L. Esquema apresentado na ocasião do Exame de Qualificação. Universidade de São
Paulo. São Paulo, Agosto/2004.
32
próprio aparelho da linguagem com o qual o ser humano deve se emparelhar, se
apalavrar.
A esse respeito, Lacan (1969-70) define bem o que é característico desse
esquema psíquico, anterior à entrada do sujeito na fala, segundo ele: “isto pouco tem
a ver com a fala do ser falante, com sua palavra. Isto tem a ver com a estrutura, que
se aparelha” (p. 48).
Portanto, o que se encontra colocado frente ao Outro é um sujeito ainda não
constituído, puro corpo, objeto a, podendo-se designá-lo como nada, sendo
necessário que formule uma questão sobre o desejo do Outro, a fim de que possa
aceder à ordem significante.
É neste momento lógico estrutural – situado por Lacan em diversos
momentos de sua obra –, que se pode dizer que há um significante (S
1
) que produz
sujeito (S) para outro significante (S
2
), o primeiro existindo somente por um efeito
retroativo deste último.
Neste sentido, pode-se falar desse primeiro significante, desse S
1
, como
aquele que se constituirá como traço unário, tendo seu significado pautado no desejo
materno, e encontrando-se metaforizado pelo Nome-do-Pai – S
1
em torno do qual o
sujeito articulará a cadeia significante –, sendo marcado por ele como sujeito
dividido.
Lacan circunscreve em torno dessa origem do traço unário tudo o que à
psicanálise interessa como saber, retomando esse momento para descrever o que se
estabelece na relação entre saber, repetição e gozo, dizendo que é a partir do
surgimento desse primeiro significante, capaz de representar o sujeito para outro
significante, que “partimos para dar sentido a essa repetição inaugural, na medida
em que ela é repetição que visa o gozo” (p. 45).
33
Lacan (1969-70) define esse gozo como proibido, remetendo-nos à dimensão
do Mehrlust, do mais-de-gozar, que se institui a partir de uma perda de gozo e de um
trabalho entrópico do saber a fim de compensar a perda, algo a que nos reportaremos
novamente ao falarmos de desejo de saber.
Por enquanto, voltemos ao texto de Calligaris (1986), no qual ele nos diz que
se há desejo, deve haver lugar de saber, um lugar onde estão depositados os
significantes, razão pela qual se diz que o saber é o Outro, um saber que não é
enunciável, mas que pelo simples fato de existir a linguagem, pode-se supor, sendo
este o saber que poderíamos situar como meio de gozo, à medida que se mantém em
relação com aquilo que Lacan designou, há pouco, como repetição.
Ademais, é preciso ainda que esse Outro se constitua no lugar da fala que, ao
ser enunciada pela primeira vez, venha a legiferar, conferindo ao outro real, segundo
Quinet (1998), sua obscura autoridade e provocando o fantasma (fantôme) da
onipotência do Outro em que se instala a demanda do sujeito.
Ou seja, forma-se uma estrutura mínima da linguagem que faz com que o
sujeito seja levado a conceber a existência de um saber sobre o desejo que surgiu no
campo do Outro, algo que se constitui numa primeira metáfora, a partir da qual
aquele a, que era puro corpo, que era nada, passa a ter uma significação mínima em
relação a esse saber, permitindo uma ligação entre o campo do Outro e o real do
corpo, capaz de introduzi-lo no campo da linguagem.
De qualquer forma, trata-se de um desejo que é indeterminado, sendo esta
propriedade o que irá definir a significação do sujeito também como indeterminada,
tal como podemos acompanhar, a seguir, no esquema descrito por Calligaris (1986,
p. 25).
34
Lado do Outro Lado do Sujeito
S a
S
2
S
2
(corpo real, nada)
S
2
S = S
2
1
S a s
(significação mínima indeterminada)
Esta passagem corresponde ao efeito afânise, descrito por Lacan em 1964, e
que se refere ao momento da alienação significante, momento da carência do sujeito,
no qual este aparece apagado sob o significante S
2
, circunscrevendo uma segunda
categoria de saber, agora como alienação.
Desta forma, o sujeito que resulta dessa primeira metáfora – produto desse
processo de recalcamento originário –, embora se encontre referido ao campo da
linguagem, ainda não se constitui como um sujeito desejante. Encontra-se enlaçado à
demanda absoluta e indeterminada do Outro materno.
Esta demanda imaginária surge a partir do próprio efeito advindo da
operação de recalcamento, e frente a qual o sujeito também se coloca como objeto
imaginário indeterminado, cuja significação é simbólica, instaurando-se novo efeito
de homogeneização.
Lado do Outro Lado do Sujeito
S
2
S = S
2
1
S a s (significação mínima)
Demanda a (algo de nada)
objeto imaginário
indeterminado
35
Segundo Calligaris (1986), a significação indeterminada no simbólico e a
posição objetal indeterminada no imaginário são posições complementares,
responsáveis, respectivamente pela origem do sintoma, no que concerne à
significação, e do fantasma, no que diz respeito ao objeto.
Ainda poderíamos situar este momento em relação ao primeiro tempo do
Édipo lacaniano, remetendo-nos à dialética do dom, por meio da qual a necessidade
é transformada em demanda, instaurando-se um primeiro campo discursivo e,
conseqüentemente, a primeira marca da falta sobre o sujeito.
Trata-se de um tempo em que a criança se configura como objeto
metonímico do desejo da mãe, numa relação de alienação, na qual, embora a figura
paterna ainda não intervenha ativamente, esse terceiro elemento representado na
figura do falo se encontra presente desde o princípio, funcionando como o Nome-do-
Pai, o que permite ao sujeito se reconhecer como não todo, como barrado e, assim,
expor sua carência o que, no entanto, não significa condição suficiente para que
ocorra a separação.
Para que se dê a transposição da alienação à separação, faz-se necessário que
se produza o recobrimento de duas carências – a do sujeito e a do Outro – sendo esta
a saída neurótica ideal.
Dito de outro modo, para que o sujeito venha a sair da posição objetal, é
preciso responder à questão: “O que isso quer de mim?”, sendo necessário
circunscrever a demanda do Outro.
Há que entrar em cena, portanto, uma segunda operação de recalque, uma
nova metáfora, por meio da qual um terceiro se interponha na relação dual mãe-
criança, sendo capaz de delimitar a demanda indeterminada do Outro – alguém
36
suposto saber sobre o desejo da mãe, permitindo ao sujeito se ver livre de sua
condição alienante e se constituir efetivamente como sujeito do desejo.
Lado do Outro Lado do Sujeito
D a
indeterminada objeto indeterminado
DEFESA
Saber S
2
D = S
2
1
determinado D a s (significação fálica)
suposto
ao Pai D a
determinada determinado
Deparamo-nos, assim, com o recalque secundário, no qual o pai surgirá como
interditor, veiculado pelo desejo materno, a fim de lhe instituir limites, que
permitirão ao sujeito reconhecer sua própria falta, a partir da constatação da
incompletude do Outro.
Seguindo a linha de raciocínio que acompanha a evolução do Édipo
lacaniano, poderíamos marcar este como um intermediário entre o seu segundo e
terceiro tempo.
Na passagem do primeiro ao segundo tempo edípico, constatamos que a
criança, até então colocada como objeto do desejo materno, via-se vítima da
intervenção do pai sobre sua relação com a mãe, o qual era incumbido de proceder a
uma dupla privação, proferindo um “não” que negasse ao mesmo tempo uma
satisfação da criança e uma satisfação da mãe.
37
Agora, à medida que a mãe passa a se mostrar desejante de outros objetos que
não o filho, revela-se faltante, expondo sua castração, o que leva a criança a perceber
que deixou de ser o falo, passando a atribuir essa condição ao pai, que é visto como
objeto do desejo materno e responsável pela proibição do incesto.
Como decorrência dessa operação, instaura-se a frustração: falta imaginária,
assim definida por Lacan (1956-57), uma vez que não se trata mais da privação de
um objeto da necessidade, como no primeiro tempo, mas de uma demanda relativa à
presença-ausência do outro real que a mãe encarna nesse momento.
É, portanto, por meio da intervenção da metáfora paterna que o sujeito poderá
apreender a falta do Outro e, assim, sua própria falta.
Segundo Lacan (1958), será ao introduzir sua questão – acerca da origem dos
bebês, por exemplo –, que o sujeito atacará a cadeia significante do Outro, no seu
ponto mais débil, o do intervalo entre os significantes de sua demanda, entre S
1
e S
2
,
ali onde se esconde sua falta, encontrando-se, deste modo, com o desejo do Outro.
Em suma, encontrar este desejo no Outro e se colocar nesse lugar, como falo
imaginário (- ϕ), é condição para que se produza a separação, sendo neste momento
que se passa do efeito afânise – efeito da alienação significante –, para a função
afânise, quando o sujeito se faz objeto da falta do Outro e se libera do peso afanísico
do S
2
, excluindo-se da cadeia significante e entrando como objeto a.
Trata-se de um momento que circunscreve o saber como separação e marca a
entrada do sujeito na escrita do gozo.
Como finalização deste processo, temos a conclusão do terceiro tempo
edípico, no qual o pai deixa de ser o falo, passando a figurar como o detentor do que
à criança falta a ser.
38
Segundo Lacan (1956-57), o que se instala neste nível em termos de
categoria da falta, em relação ao falo imaginário, é o discurso como castração, sendo
esta hiância que permite ao sujeito passar do ser ao ter, por via da doação deste
objeto imaginário que, a partir de então, encontra-se circulando na cultura,
possibilitando que se comece a falar de desejo.
Neste sentido, ao término dessa operação, defrontamo-nos com algo que
anuncia a passagem ao que poderíamos denominar de um quarto tempo na
estruturação psíquica do sujeito, ao instaurar o Outro como impessoal, inaugurando
a entrada do sujeito no discurso e circunscrevendo o saber como laço social.
Desta forma, por meio dessa breve descrição do processo de estruturação
psíquica, definimos os eixos delimitadores do desenvolvimento de nossa tese,
mantendo como vetor principal a estrutura lógica do complexo de Édipo lacaniano,
marcado no primeiro tempo por uma prevalência do desejo materno e de uma
posição objetal por parte do sujeito; no segundo tempo, pela entrada do pai como
figura fálica, agente da privação da mãe e da criança, sendo responsável pela
interdição do incesto e instauração da Lei da castração; e, no terceiro tempo, pela
consagração do falo como objeto simbólico, circulante na cultura.
Em consonância com esses três tempos, situamos o processo de estruturação
do sujeito feminino, primeiramente diante da influência do Outro materno, a partir
de então, prosseguindo no sentido de situá-lo em relação ao saber paterno, para
finalmente considerá-lo em sua dimensão cultural, relacionado ao conceito de
suplência, abarcando, deste modo, o campo dos saberes constituídos, sobretudo a
partir da escrita inominável que se faz apreender por meio da arte – em suas mais
variadas formas de expressão – e da análise.
39
Na seqüência, daremos continuidade à nossa exposição, seguindo a trajetória
construída na tentativa de estabelecer os limites entre saber e conhecimento, ao
longo da obra freudiana.
2.1. A concepção freudiana acerca da relação entre constituição psíquica e
cognitiva
Iniciemos, pois, retomando em nossa introdução o cerne da relação entre
saber e verdade descrito por Freud através de textos como “O esclarecimento sexual
da criança”, de 1907 e “As teorias sexuais infantis”, de 1908, nos quais destaca a
incidência significante, a primazia do falo e a impossibilidade de ascender ao gozo,
como elementos fundamentais não só para o processo de diferenciação sexual
anatômica como ainda para a entrada da criança no campo intelectual.
No que tange ao significante, Freud (1908) marca sua influência ao verificar
que a capacidade do sujeito de constatar a diferença sexual não estava associada à
observação direta da anatomia, mas que dependia de uma operação lógica, fator que
o leva a distinguir o que constitui o campo biológico e psíquico no que concerne à
sexualidade, desvinculando-a de uma categoria meramente desenvolvimentista, e
admitindo sua influência decisiva – sobretudo no que corresponde às teorias sexuais
infantis –, para a formação dos sintomas.
Conseqüentemente, vê-se instalar, neste contexto, a primazia do falo que vem
retirar o olhar das questões anatômicas e inserir uma outra dimensão na constituição
do sujeito, uma dimensão que leva em conta os desvios próprios da pulsão e a falta
como constitutiva do sujeito do inconsciente (S).
40
A partir dessa descoberta, Freud se debruçará sobre as investigações sexuais
infantis, descrevendo o caminho percorrido pela criança desde o momento em que se
depara com o enigma da origem dos bebês, até o momento em que se vê confrontada
como sujeito ao desejo do Outro parental.
Trata-se de um outro modo de circunscrever o processo de estruturação
psíquico, descrito anteriormente, no qual o sujeito passa de um estádio de puro
narcisismo dual, de completa alienação ao Outro materno, para outro caracterizado
pelo complexo de Édipo, o que institui uma relação triádica, introduzindo-se a
atuação de um terceiro elemento interditor da mônada mãe-criança, possibilitando,
assim, a instauração do desejo.
Neste contexto, o desinvestimento articulado pelo sujeito em relação à
investigação sexual, ao declínio da conflitiva edípica, por meio do efeito da
sublimação, e seu conseqüente investimento na pesquisa e produção de objetos
valorizados culturalmente, poderiam ser lidos como frutos de uma etapa equivalente
à entrada no discurso e ao estabelecimento do saber como laço social, ou seja, do
saber como conhecimento.
Desta forma, para Freud (1908), a base da formulação das teorias sexuais
infantis se fundamenta sobre a constatação da falta de pênis da mãe, cujo processo se
desdobra na articulação do desejo de saber, por parte da criança, acerca do que se
coloca como o gozo sexual do Outro, o que se representará por uma série de
perguntas endereçadas ao adulto, perguntas estas que refletem que o sujeito barrou,
de alguma forma, o lugar do Outro até então absoluto, marcando-se, assim, a origem
do inconsciente como um saber barrado.
Por conseguinte, esse endereçamento coloca o adulto frente a sua própria
falta a ser, diante de sua própria divisão em relação ao saber, motivo pelo qual as
41
respostas obtidas pelas crianças para as suas perguntas resultam falhas: ora evasivas,
ora repressivas, ou ainda mitológicas, gerando decepção e fazendo com que
prossigam cada vez mais em sua investigação, só que desta vez de modo velado.
Freud coloca que, a partir dessa “primeira decepção, as crianças começam a
desconfiar dos adultos e a suspeitar que estes lhe escondem algo proibido, passando
como resultado a manter em segredo suas investigações posteriores” (p. 217).
No entanto, quanto mais a criança persiste nesta busca, mais se defronta com
a impossibilidade de acesso ao saber e ao gozo sexuais, produzindo-se, a cada
tentativa de fechamento, um furo de saber.
Freud enfatiza ainda a importância que essa primeira decepção com os
adultos desempenha para o processo de constituição cognitiva do sujeito, destacando
que “essas hesitações e dúvidas – vivenciadas pelo sujeito em suas investigações –,
tornam-se o protótipo de todo trabalho intelectual posterior aplicado à solução de
problemas, tendo esse primeiro fracasso um efeito cerceante sobre todo o futuro da
criança” (p. 222).
Neste sentido, prosseguimos em nossa análise rumo ao estabelecimento do
elo que ligará desejo de saber à autonomia intelectual, remetendo-nos a um trabalho
anterior de Freud (1907), intitulado “O esclarecimento sexual da criança”, no qual
ele marca pela primeira vez uma relação intrínseca entre saber e conhecimento.
Neste texto, Freud mantém as discussões acerca dos efeitos que esse furo no
saber pode produzir sobre o sujeito, introduzindo a questão da verdade, que se
coloca como resultado da instauração de um saber não-todo.
Deste modo, a formulação das teorias sexuais infantis – constituídas
basicamente pela crença na indiferenciação sexual anatômica, que traz como
conseqüência a atribuição de pênis tanto para homens como para mulheres; pela
42
teoria cloacal, a partir da qual os bebês seriam expelidos como excremento numa
evacuação; e, ainda, pela crença da concepção sádica do coito –, consistiriam numa
primeira tentativa de autonomia intelectual.
Para Freud (1908), embora essas teorias sejam falsas, cada uma delas contém
um fragmento de verdade, donde se supõe que é dessa articulação entre um saber
não-todo com uma verdade – verdade da impossibilidade, do impossível do sexo e,
portanto, meia verdade –, que se faz possível que o sujeito prossiga em sua busca de
saber e que daí possa, inclusive, vir a produzir conhecimento.
Assim, ao se deparar com a impossibilidade de um saber que viria a conjugar
o sujeito com seu ser sexuado, a criança, mesmo se mantendo na expectativa de um
dia obtê-lo, sofre agora os efeitos da ação sublimatória, que substitui o objetivo
imediato da pulsão por outros desprovidos de caráter sexual, o que faz com que suas
investigações, a partir de então, estejam voltadas para objetos aceitos socialmente.
Como decorrência desse processo, a atividade intelectual da criança, segundo
Freud (1908), não se limitará somente a corresponder ao desejo do Outro, à imagem
esperada pelas figuras parentais, mas, sobretudo, encontrar-se-á a serviço daquilo
que denominou como “desejo de saber”.
2.2. Do desejo de saber à construção de uma demanda de saber
Faz-se importante, no entanto, que nos detenhamos um pouco mais neste
ponto demarcado acima, por Freud (1908), a fim de retomarmos a constatação deste
impossível do sexo, por parte da criança, para ressaltarmos o que a teoria lacaniana
especifica ao dizer que “não há desejo de saber”.
43
É já a partir do seminário O avesso da Psicanálise que Lacan (1969-70)
começa a distinguir o saber como aparato da estrutura da linguagem de saber no
sentido pedagógico, traçando as primeiras restrições em relação ao emprego do
termo desejo de saber.
É nas entrelinhas de seu ensino que podemos apreender essa diferença, uma
vez que Lacan aplica o termo saber, indistintamente, em vários momentos de sua
obra, dirigindo-se ora ao campo inconsciente, ou da linguagem, ora ao campo dos
saberes constituídos.
Na aula referente à “Produção dos quatro discursos”, Lacan (1969-70) nos
diz literalmente que “o desejo de saber não tem qualquer relação com o saber” (p.
21). E, acrescenta: “a menos, é claro que nos contentemos com a mera lúbrica da
transgressão” (p. 21) – sendo esta menção a um mecanismo transgressivo, o que nos
permite supor, neste caso, o saber em seu sentido estrutural.
Entretanto, nossa suposição logo se vê abalada por um trecho seguinte no
qual Lacan dá a entender que se refere também ao âmbito pedagógico, ao colocar
que os efeitos dessa “distinção radical, tem suas conseqüências últimas do ponto de
vista da pedagogia – o que conduz ao saber não é o desejo de saber. O que conduz
ao saber é o discurso da histérica” (p. 21).
No decorrer de sua fala, aos poucos, Lacan vai distinguindo essa linha tênue
que separa as duas dimensões de saber, de modo que se pode apreender, em alguns
momentos, que haveria uma espécie de extensão, de continuidade entre um termo e
outro, que permitiria entrever o conhecimento como um produto possível da
engrenagem inconsciente.
Embora, ele comece afirmando que “não há nada em comum entre o sujeito
do conhecimento e o sujeito do significante” (p. 45) – demarcando a relação entre
44
saber e gozo como concernente à estrutura da linguagem –, ao nos remeter à noção
de mais-de-gozar, concebida como produto de um trabalho entrópico do saber, na
tentativa de compensar uma perda de gozo, Lacan (1969-70) abre caminho para que
se possa tomar o conhecimento como um dos objetos produzidos por esse trabalho.
Neste sentido, ele descreve que é por meio do mais-de-gozar que podemos
distinguir o que se dá no nível “dos saberes harmonizantes que ligam o Umwelt ao
Innenvelt” (p. 48), ou seja, o mundo externo ao interno.
Na seqüência de seu pronunciamento, acentua-se ainda mais o caráter
tamponador que esse conhecimento viria a assumir, a partir do momento em que
Lacan circunscreve neste processo “o oco, a hiância, que de saída um certo número
de objetos vem certamente preencher, objetos que são, de algum modo, pré-
adaptados, feitos para servir de tampão” (p. 48).
Assim, se considerarmos o conhecimento em sua acepção mais moderna,
como mais um produto da ciência veiculado por todos os meios de acesso ao sujeito,
como uma das fórmulas para se obter sucesso e poder – cuja significação oculta
reside na promessa de reencontro com o objeto perdido – diríamos que esta
descrição bem se adequa à definição de objeto proposta por Lacan.
Se analisarmos a questão pela perspectiva discursiva, vemos que a ciência
vem pôr fim a qualquer ponto de consonância entre subjetividade e cognição,
tornando-se possível considerar a existência de tal interseção apenas por meio de
uma leitura psicanalítica, a partir da qual se pode resgatar um elo entre a ação do
sujeito e o objetivo último da mesma, permitindo apreender o retorno de um
mecanismo inconsciente inscrito na busca incessante, ainda que velada, do sujeito
em voltar a um momento mítico de sua constituição psíquica.
45
Na falta desse olhar mais apurado, o que se pode concluir é que a maneira
como as questões referentes à cognição têm sido abordadas na contemporaneidade,
realmente não deixa margem para que se possa apreender o que se passa sob o
império, sob a prevalência do Eu. Tomado em seu sentido estrito, tratar-se-ia mesmo
de um upokeimenon, muito diferente do sujeito dividido da psicanálise.
Desta forma, deixamos essa abordagem mais crítica e política, articulada no
seminário XVII, para nos voltarmos a uma leitura mais clínica, sobretudo acerca do
desejo de saber – tema central de nossa discussão –, o qual é novamente retomado
em 1972-73, no seminário “Mais, ainda”, quando Lacan é enfático ao dizer da
inexistência desse desejo, recorrendo, para isto, mais uma vez a uma oposição entre
o discurso científico e psicanalítico:
... O inconsciente, não é que o ser pense, como o implica, no entanto, o que dele se
diz na ciência tradicional – o inconsciente, é que o ser, falando, goze e, acrescento,
não queira saber de mais nada. Acrescento que isto quer dizer – não saber de coisa
alguma. (...) Não há desejo de saber, esse famoso Wissentrieb que Freud aponta em
algum lugar (p. 143).
Esta mesma afirmação lacaniana encontra suporte também no texto de
Masotta (1986)
4
que, no entanto, intervém no sentido de resguardar a construção
freudiana acerca das teorias sexuais infantis, dizendo que não haveria coincidência
entre o saber, em seu sentido estrito, relacionado, portanto, a questões como
castração, desejo inconsciente e/ou diferença dos sexos, e o que Freud (1908) propõe
4
Esse autor também é referido por Kupfer, M. C. M. em sua tese “Desejo de saber” op. cit., a fim de
discutir a mesma questão, donde retiramos a referência para basear nossa discussão.
46
a respeito da investigação sexual infantil, dirigida a perguntas objetivas sobre
procriação, anatomia, relação sexual, entre outras.
Essa distinção nos leva a supor que se as teorias sexuais infantis podem se
sustentar, nos termos propostos por Freud (1908), é por estarem em consonância
com algo que denominaríamos como um segundo tempo na estruturação do sujeito,
um tempo no qual ele já tivesse se deparado com sua carência de saber em relação
ao sexo, e, por isso mesmo, nada mais quisesse saber sobre este furo, sobre este
buraco impreenchível, sobre a labilidade e inacessibilidade próprias do objeto da
pulsão.
Nas palavras de Masotta (1986), “a criança que é um investigador incansável
de coisas sexuais, nada quer saber sobre aquilo mesmo que motiva sua investigação:
a diferença dos sexos” (p. 89), sob o risco de descobrir que esse objeto é
inalcançável.
Neste sentido, reportamo-nos à tese de Kupfer (1990) que se debruça sobre
os textos freudianos, apontando para a noção de objeto perdido, neles contida, e
marcando o que se coloca como sendo um furo do conhecimento em relação ao
saber, diante do que as investigações sexuais infantis se encontrariam fadadas ao
fracasso, uma vez que o objeto procurado jamais seria encontrado. E ainda que o
fosse, isto se daria, segundo Kupfer, “de modo insatisfatório, incompleto, uma vez
que algo sempre estaria sendo ocultado, mascarado, em benefício do próprio desejo
do sujeito de não saber” (p. 91).
Deste modo, o que se verifica nos textos freudianos, segundo a autora, é a
presença de um choque entre o desejo da criança e o desejo do Outro simbólico,
representado pelos pais reais.
47
Trata-se de um choque ao qual já fazíamos menção, de outra maneira, ao
descrevermos o fracasso sofrido pelo adulto ao responder às perguntas da criança,
mediante sua própria condição de inacessibilidade ao saber sobre o gozo, uma vez
que, por uma impossibilidade própria da estrutura, é vedado ao sujeito responder por
seu ser sexuado.
É por essa impossibilidade, por essa falta estruturante que marca o sujeito
como barrado, como alienado em relação ao seu saber, que a investigação sexual da
criança tenderá a se apagar sob o efeito do recalque, ainda que as questões sobre a
sexualidade permaneçam de forma velada.
Neste sentido, frente à insustentabilidade do desejo de saber, faz-se
necessário encontrar um outro operador que explique o empreendimento voraz do
sujeito nas questões relativas às origens e à lógica que engendra o mundo e se arvora
na religião, nas ciências, nas artes e na análise, um operador que surge através da
pena de Piera Aulagner (1967; 1980)
5
, para quem “todo desejo de saber é um desejo
de saber sobre o desejo”.
Desta maneira, poderíamos dizer que se, num primeiro momento, a criança se
descobre objeto do desejo da mãe, num segundo tempo, constatada a castração, o
sujeito se depara com o fato de haver um desejo que pré-existia ao seu nascimento e,
que, ao mesmo tempo, o transcende na atualidade. Ou seja, ele não é o único objeto
capaz de responder à falta do Outro, e, pior, não há objeto passível de tal façanha,
sendo esta descoberta o que despertará seu desejo de saber sobre o desejo do Outro e
sobre o que fundamenta o seu próprio desejo.
E, neste contexto, vemos que o sujeito não faz outra coisa que confirmar o
destino da pulsão, ou seja, o de retorno ao próprio eu, algo que Kupfer (1990)
5
Idem.
48
enfatiza ao dizer que “se alguém deseja saber sobre o desejo do Outro, é porque
pensa, de modo imaginário, lá encontrar a chave que abre as portas do desejo e do
saber inconscientes do próprio sujeito em questão” (p. 112).
No entanto, como visto anteriormente, este desejo se encontra referido ao
próprio amor primordial vivenciado pela criança em relação às figuras parentais e,
uma vez instituída a intervenção do Nome-do-Pai, por meio da interdição do incesto,
encontrar-se-á ainda remetido à ameaça instaurada a partir da castração, sendo por
isso que o sujeito nada quer saber sobre ele.
Em outras palavras, é esta falta a ser (- ϕ) cravada na criança, por meio desta
intervenção paterna, que lhe garantirá a passagem do ser ao ter, permitindo a
substituição da mãe por outros objetos, dentre eles, o conhecimento.
Deste modo, procede-se à transposição entre desejo e demanda de saber,
sendo esta última a que se configurará como nosso novo operador.
Segundo Kupfer, “é justamente porque não pode haver desejo de saber sobre
o inconsciente que pode surgir, em seu lugar, uma demanda de saberes constituídos.
O desejo não é enunciável, mas uma demanda o é, e o faz veiculando esse desejo”
(p. 112).
Em suma, o que a demanda de saber visa é a dominação sobre o que se
apresenta como desconhecido para o sujeito, sobre o que lhe escapa, sendo
concernente a um real, que nenhum conhecimento é capaz de abarcar, mas ao qual se
oferecem objetos ilusórios que, ao menos momentaneamente, parecem responder ao
vazio, mas que logo se revelam insatisfatórios, levando o sujeito a demandar mais e
mais saber, constituindo esse encontro sempre fortuito e faltoso.
Assim, destacamos uma das características assumidas pelo conhecimento na
relação do sujeito com a falta estrutural, ou seja, seu caráter mascarador, ou seja, sua
49
função de simulacro do falo, sobretudo para mulher, sendo considerado, portanto, na
via sintomática.
No entanto, resta ainda uma segunda articulação com o real que viria por
meio da construção de um sinthome, no qual se conjugaria mais explicitamente algo
concernente à imbricação entre saber inconsciente e saber constituído.
Neste sentido, a função de um dado conhecimento – artístico, literário – não
seria mais de tentar negar, encobrir algo desse real, mas antes apontar para este
impossível, por meio de uma escrita particular sobre a qual nos deteremos melhor
nos capítulos seguintes.
Por ora, faz-se necessário retomarmos a fala de Lacan (1969-70) acerca do
fato de ser o discurso da histérica o responsável por conduzir ao saber, a fim de
procedermos a uma nova distinção, desta vez, em relação ao que se refere à histeria
como estrutura clínica – o que nos auxiliará na articulação da sexualidade feminina
com o saber paterno –, e o que se estabelece propriamente como discurso da
histérica, permitindo vislumbrar o que se institui no âmbito da análise.
50
3. A HISTÉRICA E O SABER
“O sujeito histérico é aquele que oferece seu corpo como palco
de gozo, para que o olho do mestre produza um saber,
situando-se ele próprio do lado do olhar”.
Charles Melman
No último capítulo acompanhamos, de maneira sucinta, as diretrizes básicas
do processo de constituição do sujeito, voltadas para uma estrutura que Calligaris
(1986) atribuiu ao que denominou de neurose de base, isto é, algo concernente a um
momento que antecede a escolha do sujeito entre histeria e neurose obsessiva.
Neste contexto, o importante a se destacar, a partir de então, diz respeito ao
que resulta como decalagem entre o que se constitui como saber do pai e aquilo que
da demanda indeterminada do Outro esse saber pode circunscrever.
Ou seja, trata-se de um saber sempre restrito o que também lhe confere um
poder restrito junto a uma demanda que era total, restando para o sujeito a ameaça
eminente de um dia se ver confrontado a sua posição objetal primeira, ameaça que se
coloca como o cerne da angústia vivenciada pelo neurótico.
51
Para Calligaris, o que se dá em relação à neurose de base está em consonância
com o que ocorre com a fobia, isto porque “o fóbico é justamente o sujeito que ‘sabe’
que a metáfora paterna é sempre insuficiente, enquanto operação de defesa” (p. 30),
assim, ele segue oscilando entre as chamadas fobias tradicionais e as fobias de
espaço.
No primeiro tipo, destacamos as fobias de animais que representam o medo
que se tem que a insuficiência do pai venha à tona, que ele caia, desta forma, ao
deslocar esse medo para outras figuras, como animais, palhaços, etc., o sujeito
acredita de algum modo resguardar e valorizar a metáfora paterna.
Já no caso das fobias de espaço, que incluem, entre outras, as fobias de janela
e de vento, o que é temido é que diante da falta de defesa paterna, o sujeito se veja
novamente reduzido à condição de objeto e, portanto, podendo ser levado, carregado
pela demanda indeterminada do Outro.
Neste sentido, a própria escolha entre um ou outro tipo de neurose –
obsessiva ou histérica – realizada posteriormente, já se apresenta como uma questão
secundária na constituição da estrutura, como uma tentativa de resolver essa
defasagem, por meio do fortalecimento da posição paterna.
No que tange à neurose obsessiva, teremos a oportunidade de observar
melhor sua dinâmica quando analisarmos o caso Camille Claudel.
Neste momento, nossa atenção se voltará sobre a histeria, perpassando de
maneira sucinta alguns aspectos históricos que cercaram sua conceitualização desde
os primeiros registros documentados, que datam de 1900 a.C., quando foram
encontrados papiros descrevendo diversos sintomas físicos em mulheres, cuja causa
já era constituída como relativa a doenças do útero.
52
Desta forma, o primeiro aspecto a se destacar, neste percurso histórico, diz
respeito à instabilidade com a qual o tema se apresenta ao longo dos séculos,
sobretudo no que concerne às teorias médicas sobre o assunto.
De acordo com os estudos realizados por Vera Pollo (2003), após ter sido
considerada como uma disfunção cerebral causada por distúrbios uterinos, sucedeu-
se uma série de oscilações acerca da causalidade, e mesmo dos sintomas,
característicos da histeria.
Conseqüentemente, o que se viu ao longo dos anos foi uma constante
variação acerca dos pontos enfatizados como critérios de diagnóstico da histeria, que
era considerada, em alguns momentos, apenas quando o quadro se desenvolvia sob a
forma de grandes crises; em outros, ao contrário, eram valorizados somente os
pequenos sintomas; havendo ainda um terceiro tempo onde era necessário que as
duas condições anteriores coincidissem para que, enfim, fosse levada em conta a
possibilidade de histeria.
Ademais, deparava-se com a mesma oscilação quando se tratava de atribuí-la
ao sexo feminino ou masculino, sendo no princípio circunscrita estritamente à figura
da mulher, depois passando a ser aceita como possível de ocorrer em ambos –
homens e mulheres – e, finalmente, sendo tomada como afecção preponderantemente
feminina.
Assim, à medida que uma nova forma de pensar o tema surgia, novas
denominações também o acompanhavam, dentre as quais podemos citar, apenas a
título de demonstração, a histeroepilepsia, a histeria traumática, a psicose histérica, o
delírio histérico psicastênico, entre outros.
Outro autor a se debruçar sobre a questão foi Charles Melman, sendo um de
seus principais trabalhos desenvolvido em 1985 sob o título “Novos estudos sobre a
53
histeria”, no qual ele nos apresenta um modo distinto de conceber a dinâmica
histérica, ao longo de sua história, podendo ser compreendida de modo diverso, na
proporção em que era atribuída ao corpo biológico; à luta entre instinto e razão,
denotando ainda uma questão moral; a um mal da alma, também confundido como
possessão diabólica; ou ao corpo erógeno.
No primeiro caso, temos como referência os estudos que consideravam,
sobretudo, a histeria como doença ligada ao útero, que se disseminava para outras
partes do corpo, entre elas o cérebro, levando a paciente a apresentar, entre outros,
distúrbios mentais.
Essa “doença uterina” se devia a um período de inanição, que levava o
referido órgão a se deslocar pelo corpo, comprometendo o funcionamento dos
demais, assim, era concebida como própria de uma natureza animalesca que cercava
o útero, quando decorrido um longo período sem gerar frutos.
Interessante notar que a partir de Hipócrates
6
(400 a.C.) esse quadro
nosológico passa a ser nomeado por ele como “histérico”, concebendo-se como
tratamentos mais adequados o casamento e a gravidez, sem que, no entanto, fosse
dispensada maior atenção a qualquer fundo de caráter psíquico relacionado ao
processo.
Anos mais tarde, deparamo-nos ainda com relatos de homens portadores da
doença, aos sermos apresentados por Melman (1985) aos estudos desenvolvidos por
Galeno, que relacionava a doença a uma retenção seminal causada mais pela
abstinência que por seus deslocamentos.
Como sabemos, este modo de conceber a histeria como debilidade física, não
se restringiu à era Antiga, nem tampouco se extinguiu com a chegada de novas
6
In Melman, C. (1985). Novos estudos sobre a histeria. Op. cit.
54
formas de conceber o assunto, permanecendo viva na prática de muitos psiquiatras
até os dias de hoje, sofrendo, logicamente, alterações no que diz respeito apenas ao
órgão localizado como responsável pelas formações dos sintomas.
Hoje, procuram-se genes, neurotransmissores, hormônios e substâncias que
seriam responsáveis, segundo determinadas facções científicas, por distúrbios como
depressões, síndromes do pânico, entre outras versões modernas da histeria.
Na seqüência, vemo-nos novamente às voltas com as questões naturais ou,
mais propriamente, animalescas ao redor do tema, tomado desta feita para ressaltar o
conflito entre instinto e razão, enaltecendo, segundo Melman (1985), o caráter
“dessas mulheres cheias de compostura, as quais reviram pudicamente, sem que nada
lhes tivesse sido possível censurar, e que tiveram a virtude de submeter esse
desenfreado animal à obediência da razão” (p. 43), atitude que nos revela um certo
valor moral da época.
É partir da Idade Média que nos defrontamos com o terceiro vértice adotado
para caracterizar o fenômeno histérico, quando Santo Agostinho
7
retoma o conceito
de animalidade que circundava o tema anteriormente, outorgando-lhe o caráter de
rebelião feminina e pretensão diabólica, voltados a perturbar a ordem e a
subserviência que eram devidas à autoridade divina, questão que se desdobrará no
século da razão, quando a histeria será mantida como doença do espírito.
Por volta de 1966, sob a pena de Falret
8
, vemos se desenvolver o conceito de
“loucura moral”, que confere às histéricas a categoria de farsantes, exageradas e
submersas numa mentira perpétua, diante do que “tomam ares de piedade e devoção,
e chegam a se fazer de santas, enquanto por outro lado, abandonam-se, em segredo,
às ações mais vergonhosas...” (p. 44).
7
Idem.
8
Falret, J. P. (1966). Folie raisonnable ou folie morale. In Melman, C., op. cit.
55
Por fim, eis que chegamos ao século XIX e aos estudos, primeiramente
desenvolvidos por Charcot, a partir de 1982, e, posteriormente por Freud, a partir de
1885, quando a histeria ganha, a princípio, o estatuto de doença neurológica, para
finalmente ser pensada como uma questão psíquica, guardando como tal as
vicissitudes inerentes à pulsão, ou seja, admitindo a ação de um elemento psíquico
que se faz representar no corpo que, por sua vez, passa a ser valorizado em seu
aspecto libidinal, sendo considerado como corpo erógeno.
Neste sentido, Melman (1985) não deixa de ressaltar uma outra contribuição
freudiana definitiva para mudar o curso da história acerca do assunto, ou seja, o fato
de considerar “que o sintoma histérico requer um deciframento, porque é constituído
como que por uma linguagem” (p. 46). Assim, segundo o autor, “é deixando de vê-
lo, para começar a escutá-lo, que Freud põe um termo a um voyeurismo de quatro
mil anos e inaugura uma abordagem rigorosa da constituição do falasser” (p. 46).
Diante dessa ciranda que se enunciou acerca da histeria, no decorrer de
séculos, cabe-nos ainda destacar o caráter de resistência assumido pela histérica
frente a um saber que, por diversas vezes, embora de maneiras distintas – ora
representado pela filosofia, ora pela igreja, ora pela medicina –, propunha-se
absoluto.
Referidos agora a uma leitura discursiva, podemos constatar que, desde os
primórdios, já se encontrava em cena, algo pertinente à relação da histérica com o
mestre, podendo-se apreender deste discurso um questionamento que lhe é dirigido
no sentido de marcar a finitude de seu saber, o que se institui, segundo Melman, mais
por um sofrimento que por uma condição inerente à pulsão epistemofílica.
56
Por fim, com o advento do ensino lacaniano, vem a se estabelecer uma
disjunção entre saber e certeza e, sobretudo, um intervalo entre o sujeito real e o
Outro da linguagem, possibilitando que tomemos a questão pela via da estrutura.
3.1. A histeria como estrutura psíquica, ou da relação da histérica com o saber
Ao considerar a histeria pela via de uma estruturação psíquica, gostaríamos
de situar basicamente algumas particularidades no que tange à posição do sujeito
histérico frente ao desejo e ao fantasma para, a seguir, contemplar sua relação com o
saber paterno.
Assim, recorremos primeiramente à “Subversão do sujeito e dialética do
desejo no inconsciente freudiano”, texto no qual Lacan (1960) distingue a histeria da
neurose obsessiva, tanto no que se relaciona ao desejo quanto ao fantasma, dizendo
que no primeiro caso, lá onde o obsessivo nega o desejo do Outro – numa formação
fantasmática que marca o impossível do esvaecimento do sujeito –, a histérica
sustentará seu desejo como desejo do Outro, mantido como insatisfeito.
Ainda sob a égide do desejo, diferentemente do obsessivo para quem a
questão se centra acerca de sua existência, ou seja, de quem ele é, para a histérica a
pergunta gira em torno do sexo que se resume, em outras palavras, ao “O que é ser
uma mulher?”, questão que será sempre formulada a partir de outra figura feminina.
No que se refere ao fantasma, encontramos a formalização dessa diferença no
seminário “A transferência”, quando Lacan (1960-61) designa o objeto a na histeria
como substituto da castração imaginária, logo, um objeto metafórico, o que ele
representa pelo algoritmo (
a
/ - φ A) , ao passo que, na neurose obsessiva, tratar-se-
57
ia do objeto a como deslocamento do falo imaginário e, portanto, como objeto
metonímico, representado por A ϕ (a, a’, a’’, a’’’, ...).
Já no que concerne ao saber, principal questão de nossa tese, a estratégia
histérica se diferenciaria da adotada pelo obsessivo, pelo fato de encontrar-se
sexuada do lado mulher, o que a colocaria desde o início como aquela que sabe não
haver ninguém a quem se possa supor o saber do pai.
Segundo Calligaris (1986), o que se formula pela histérica, a partir da
constatação dessa inexistência, é uma tentativa de responder do lado masculino, o
que se revela pela seguinte articulação: “se eu sei que não há um só que possa ser o
pai, já que eu sei, eu sou aquela que pode se colocar neste lugar. Eu (ao título da
mulher) posso ser aquela que sabe” (p. 32), sendo em decorrência desse
posicionamento específico da histérica, que Lacan num determinado momento de sua
obra conceberá a mulher como um nome do pai.
Ademais, sustentar esse saber é supor e reivindicar o usufruto de um gozo
outro que não o fálico, um gozo que comprova que ao pai escapa algo, algo que ele
não é capaz de dominar.
Entretanto, trata-se de um saber incerto, uma vez que à histérica também se
encontra vetada a possibilidade de responder sobre aquilo que escapa à figura
paterna, sobretudo no que diz respeito à pergunta “o que é uma mulher?”.
Deste modo, ainda que perante o homem ela se constitua como detentora do
saber, a histérica não pode dar consistência a esse lugar a não ser por meio da
máscara, ao se colocar como o falo que falta ao pai.
Além dessa relação particular da histérica com o saber, interessa-nos retomar
a leitura de Calligaris, acerca da associação entre o que se constituiria como uma
demanda primordial do Outro e uma conseqüente formulação defensiva por parte do
58
neurótico, sustentada a partir de sua relação com o Pai, considerada essencial para
nossa análise, principalmente por estabelecer um laço com a figura materna, quase
indissolúvel no que tange à estruturação do sujeito feminino, mesmo após a entrada
da figura paterna.
Assim, embora estejamos às voltas com o papel fundamental ocupado pelo
pai no processo de constituição do sujeito, sobretudo o histérico, que o toma como
objeto de identificação, sempre nos defrontamos com um retorno da figura materna,
reforçando a tese de alguns autores como André (1986) e o próprio Calligaris (1986),
de que o pai participaria da trama psíquica feminina apenas como um desdobramento
dessa primeira relação com a mãe, sendo sua principal função fazer frente a esta
demanda, a fim de resguardar a integridade do sujeito como ser desejante,
protegendo-o, ainda que precariamente, do ressurgimento desse fantasma
avassalador.
Esta também parece ser a leitura de Pollo (2003) acerca do que as histéricas
ensinaram a Freud, ou seja, que “o pai é antes de tudo fantasia ou idéia de pai,
enquanto a mãe é da ordem de um capricho ou gozo sem amarras simbólicas” (p. 44).
Os textos de Pommier (1992) acerca do trauma sexual e da especificidade do
desejo feminino, sobre os quais nos debruçaremos agora, também permitem destacar
a mesma impressão.
Tanto no artigo “O ‘pai incestuoso’ na histeria: notas sobre o trauma
‘sexual’”, quanto no capítulo de seu livro
9
: “Especificidade do desejo sexual
feminino”, Pommier ressalta que é sob a égide da demanda avassaladora do Outro
que tem entrada para a histérica a figura do pai como sedutor.
9
Pommier, G. A ordem sexual – perversão, desejo e gozo. Rio de Janeiro. Jorge Zahar Editor. 1992.
59
Neste sentido, o autor retoma as teorias freudianas relativas ao trauma sexual
e às fantasias de sedução, vivenciadas pela menina, para apontar em que ponto elas
deixam de responder simplesmente a um abandono, mediante um assédio que não
ocorreu por parte do pai, para se revelar numa forma de dar conta de uma ameaça
maior, advinda do campo materno.
De acordo com a leitura de Pommier (1992), há uma relação intrínseca entre
o “trauma sexual” e a “mentira primeva da histérica”, segundo a qual, com a recusa
do desejo paterno, a menina se vê novamente confrontada com a dívida materna, e
com a possibilidade de recair no nada, o que lhe é devastador, restando-lhe como
alternativa inventar não só a violação paterna, como a própria figura de um pai –
sexualmente potente e sedutor da filha –, tal como o prega o proton pseudos.
Assim, é primeiramente por meio da falsa promessa de salvar a filha da
onipotência da mãe que o pai seduz.
Para Pommier:
O “proton pseudos” põe em cena a questão paterna: o verdadeiro trauma é o da
distância irredutível instaurada entre um pai e sua filha, no instante em que o amor é
mais intenso. A sedução originária, “proton”, é a inversão dessa violência muda num
engano, “pseudos” (p. 135).
Na seqüência, Pommier complementa a questão ao dizer que:
A sedução do pai vira o engano da filha. O pai desejado permanece na lembrança
como autor de uma violação, visto que esse amor que não levou a nada, e que deixou
sem resposta um desejo sexual, é de fato uma sevícia. O pai é o primeiríssimo
60
enganador, já que promete algo que não pode cumprir, e passa a aparecer na tela da
lembrança apenas como esse sedutor ilusório (p. 135).
Seguindo essa linha de raciocínio, também sob a pena de Lacan (1957-58)
seria possível conceber uma relação entre a especificidade do desejo na histeria e um
mecanismo defensivo dirigido ao Outro materno.
No seminário “As formações do inconsciente”, Lacan (1957-58) coloca que a
histérica é alguém para quem se torna difícil se posicionar diante do Outro como
sujeito, por conseguinte, deparamo-nos com um desejo insatisfeito, quase
integralmente constituído como desejo do Outro, que carrega consigo a função de
construir um Outro real, no sentido de proteger o sujeito de se ver inteiramente
capturado pela fala do Outro, sendo este o motivo que leva a histérica a se identificar
com um outro semelhante, um outro no qual considere encontrar a mesma questão
que rodeie seu desejo.
Entretanto, para Lacan esse outro não se constituiria num eu ou Ideal de eu,
mas num outro eu da histérica, ou seja, ela tomaria o que é do outro como lhe sendo
próprio, resultando num processo identificatório característico de toda a
sintomatologia desenvolvida por ela.
Na seqüência, Lacan resume a questão ao concluir que: “o desejo da histérica
não é o desejo de um objeto, mas o desejo de um desejo, um esforço de se manter
frente ao ponto no qual ela convoca seu desejo, o ponto onde está o desejo do Outro”
(p. 419).
Esta dinâmica revela seus efeitos também na relação da histérica com o outro
sexo, onde faz questão de lembrar a todos os homens que estes são castrados. Deste
modo, ao apontar a falta do Outro, ela mesma pode se colocar como objeto possível
para sustentar o desejo do Outro, nunca o seu próprio.
61
Ainda no que concerne à relação mãe-pai-filha na histeria, podemos
mencionar os estudos realizados por Morrettin (2004), para quem existiria um duplo
movimento articulado pela histérica acerca do pai, marcando sua dialética por um
paradoxo, à medida que, se por um lado a função paterna se encontraria operante, por
outro estaria também marcada a sua impotência, fator este responsável por um
retorno da filha à mãe, a partir de um ato reivindicatório que visa manter a falicidade
materna e, por conseguinte, a dela própria.
Assim, tendo em vista tanto a tentativa de se colocar do lado masculino como
detentora do saber que escapa ao pai, como esse auto-investimento fálico,
empreendido pela histérica, a pergunta que se formula, a seguir, é se seria realmente
possível equipará-la à mulher?
3.2. A mulher e a histérica
Com o objetivo de responder à questão da eqüidade ou não entre a posição
feminina e a posição da histérica, a maioria dos autores toma como premissa a
prevalência da histeria nas mulheres, afirmando, no entanto, que embora sua
estruturação se dê do lado feminino, diante de sua tentativa de suplantar o saber
paterno naquilo que este falha, a histérica buscaria se posicionar do lado masculino
no quadro da sexuação, à medida que se identifica ao falo.
O próprio Lacan (1969-70) ao descrever as particularidades do discurso da
histérica em relação ao discurso do mestre, num dado momento, retira-lhe do nível
discursivo, materializando-a na figura da mulher, ao dizer que “seguindo o efeito do
significante-mestre, a histérica não é escrava” (p. 88). A seguir, ele complementa:
62
“demos-lhe agora o gênero sexual sob o qual esse sujeito se encarna mais
freqüentemente” (p. 88).
Entretanto, consideramos importante nos deter mais um pouco sobre essa
questão, a fim de circunscrevermos algumas especificidades inerentes a ambas
posições – tanto a feminina, quanto a histérica – o que faremos acompanhando, de
modo sucinto, algumas discussões levantadas por Prates (2001) acerca do assunto.
Neste sentido, a autora percorre um caminho cuja trajetória se destina
primeiramente a delimitar a posição da mulher em relação à castração e ao homem,
bem como o momento em que se reserva um lugar de destaque à questão feminina na
teoria lacaniana.
Desta maneira, somos remetidos ao início dos anos 50, quando Lacan começa
a abordar o tema, destacando a dessimetria entre homens e mulheres sobre a
castração, numa época bem anterior à formulação d’A mulher não-toda, articulada na
década de setenta.
É, portanto, em 1955-56, no seminário “As psicoses”, que Lacan se referirá
pela primeira vez à mulher como constituída a partir da identificação com o objeto
paterno, seguindo o modelo freudiano, segundo o qual, na elaboração do complexo
de Édipo, a menina deveria obrigatoriamente passar pelo pai a fim de alcançar a
identidade feminina.
Já no seminário seguinte, “A relação de objeto”, Lacan (1956-57)
circunscreve a discussão à concepção dos registros da falta, chegando à formulação,
descrita por Prates (2001), de que “o furo, a ausência que constitui o sexo feminino, é
da ordem da privação, ou seja, uma falta no real” (p. 86), o que significa dizer que
constituir o falo como objeto imaginário se faz condição obrigatória para a passagem
da mulher pela castração, uma vez que ela deve construir simbolicamente aquilo que
63
lhe falta no real, sendo sob esta condição que se sustenta, por exemplo, o desejo da
mulher de ter um filho.
Neste circuito, admitimos ainda que outros objetos contem como
representações possíveis desse movimento na mulher, ou seja, como tentativa de
circunscrever esse real, podendo-se mencionar o anseio por um diploma ou pela
construção de uma obra de exceção, por exemplo, configurando uma fixação e/ou
saída sintomática pela via intelectual, como constataremos em Camille Claudel e em
um caso analisado no decorrer de nosso trabalho.
No momento, ao retomarmos o percurso lacaniano, desta vez pela entrada em
sua teoria do falo como significante, vemos se desenhar um cenário onde cabe a cada
um, homem ou mulher, colocar-se de modo específico frente à possibilidade de ter
ou não o falo, já que não se pode sê-lo, inscrevendo-se, por meio desta descoberta,
segundo Lacan (1958), “a Spaltung derradeira pela qual o sujeito se articula ao
Logos...” (p. 649).
Conseqüentemente, o que se desenvolve em seus textos seguintes é uma
tentativa de verificar como a mulher irá se posicionar na dialética fálica.
Ao final do texto “Observações sobre o relatório de Daniel Lagache”, por
exemplo, Lacan (1958-60) descreverá o desejo da mulher a partir da fórmula A (ϕ),
definida por Prates (2001) como uma versão lacaniana da inveja do pênis, a partir do
momento em que representa “uma falta radical produzindo o desejo pelo falo” (p.
86).
Já em “A significação do falo”, Lacan (1958) descreve uma relação
especialmente difícil da mulher com o falo, destacando como causa dessa
dificuldade, primeiramente, o fato de a menina se reconhecer como castrada o que
significa considerar-se como sujeito privado do falo, e mais ainda, atribuir essa
64
castração a um outro que, a princípio é localizado na figura materna e,
posteriormente, por meio da operação transferencial, na figura do pai.
Na seqüência, Lacan aponta para a atribuição fálica destinada à mãe por
ambos os sexos, o que culmina ainda num terceiro ponto levantado por ele, que
corresponde ao fato de a significação da castração só se consolidar – sobretudo no
que permite captar o processo analítico, acerca dos efeitos de tal operação sobre a
formação dos sintomas –, a partir do momento em que é constatada a castração da
mãe.
Por fim, Lacan (1958) traz à tona novamente a discussão acerca do que se
institui na fase fálica, considerada nos termos freudianos como a primeira maturação
genital e caracterizada pela dominância imaginária do atributo fálico e pelo gozo
masturbatório.
Esse gozo, como sabemos, é atribuído na mulher ao clitóris, que desde então
é elevado ao estatuto de falo, confluindo para a constatação de um aparente
desconhecimento, por parte de ambos os sexos, da vagina como lugar de penetração
genital.
Ao longo de sua incursão, Lacan conclui que o que concerne ao falo deve ser
apreendido de sua função, demarcando que, na doutrina freudiana, não se trata de
considerá-lo nem como fantasia, nem como objeto e muito menos como órgão: “o
falo é um significante...” (p. 697).
A seguir, desenvolve a relação entre demanda e desejo, da qual destacamos
apenas um breve trecho referente à posição dos parceiros amorosos frente à hiância
que se funda, a partir do momento em que o sujeito se vê às voltas com a relação
sexual, ponto que aprofundaremos posteriormente.
65
Por ora, interessa-nos dizer, parafraseando Lacan, que “tanto para o sujeito
quanto para o Outro, no que tange a cada um dos parceiros da relação, não basta
serem sujeitos da necessidade ou objetos do amor, mas têm que ocupar o lugar de
causa do desejo” (p. 698).
Lacan acrescenta ainda que “essas relações girarão em torno de um ser e de
um ter que, por se reportarem a um significante, têm o efeito contrário de, por um
lado, dar realidade ao sujeito nesse significante e, por outro, irrealizar as relações a
serem significadas” (p. 701).
Por fim, deparamo-nos com uma referência específica à posição da mulher,
neste sentido, à medida que ela sacrifica parte de sua feminilidade na figura da
mascarada, para tornar-se o falo.
Assim, segundo Lacan (1958), “é pelo que ela não é que ela pretende ser
desejada, ao mesmo tempo em que amada” (p. 701). Além disso, “ela encontra o
significante de seu próprio desejo no corpo daquele a quem sua demanda de amor é
endereçada” (p. 701), conseqüentemente, “o resultado é que convergem no mesmo
objeto uma experiência de amor que, como tal, priva-a idealmente daquilo que ele
dá, e um desejo que ali encontra seu significante” (p. 701-2).
Ao final do texto, Lacan destaca também a semelhança existente entre a
feminilidade, tomada aqui sob a égide da mascarada, e o que é próprio da ostentação
viril humana, tema que ele retomaria em 1960, em “Diretrizes para um Congresso
sobre a sexualidade feminina”, desta feita, para questionar se o apego sexual
feminino ao pênis do parceiro destinaria a mulher a uma relação sem duplicidade.
Neste sentido, Lacan coloca que tal duplicidade encontrar-se-ia apenas
encoberta, salientando que “se não há virilidade que a castração não consagre, é um
66
amante castrado ou um homem morto (ou os dois em um) que, para a mulher, oculta-
se por trás do véu para ali invocar sua adoração...” (p. 742).
Ademais, revela que o homem pode assumir para a mulher a função de torná-
la Outra para si mesma, sem o que não haveria como o sujeito formular uma questão
acerca da própria feminilidade, motivo pelo qual é possível tomar emprestado de
Freud (1910) o termo utilizado por ele para designar Leonardo da Vinci, para dizer
que se trata, no caso da histérica, não mais de uma pseudo-homossexualidade, mas
de uma “homossexualidade ideal”.
Ainda no que se refere a uma identificação viril na histeria, Ribeiro (2001),
outra autora a discutir o texto lacaniano, esclarece mais a questão ao afirmar que para
ser amado e desejado pela mulher, inclusive no que se refere ao órgão sexual, o
homem deve estar marcado pela falta, o que significa dizer que, “para além da
satisfação genital que pode encontrar em um homem, a mulher goza da falta, do mais
além do véu que ele pode tornar presente” (p. 73).
Deste modo, encontramos nesta trajetória, o princípio que nos permitirá
considerar a histeria como equivalente da feminilidade, à medida que condensa em
sua estrutura tanto a identificação fálica quanto a marca de um desejo sempre
insatisfeito.
Assim, percorremos um caminho que se inicia com um direcionamento da
mulher ao pai como portador do atributo fálico, desejado por ela, o que a levará a
identificar-se com a figura paterna, na tentativa de obter o falo – a exemplo do que é
descrito na terceira saída do complexo de Édipo proposta por Freud (1910) – para, a
seguir, articularmos uma leitura que nos leva à posição da histérica, naquilo que essa
identificação ao pai a designa como aquela que castra o Outro.
67
Para explicar essa transposição, Prates (2001) recorre ao texto freudiano de
1914, “Introdução ao narcisismo”, dizendo que “a mulher, na tentativa de
compensar a falta de pênis, investe seu próprio corpo falicamente. O corpo é, assim,
tomado como objeto simbólico pela libido, objeto este que se supõe ser aquilo que
falta ao outro, e, portanto, objeto de seu desejo” (p. 88).
Desta maneira, podemos concluir com Prates, que “a histeria, como estrutura,
só pode ser entendida a partir dos impasses provocados pela posição feminina” (p.
89), esta não sendo mais restrita a algo próprio da mulher, entendida aqui em seu
aspecto biológico, mas antes como relativa a uma posição frente à falta e à castração,
condição esta que nos introduz na dimensão discursiva associada ao tema.
3.3. Da histeria ao discurso da histérica
Ao ser nomeada como estrutura psíquica, a histeria adquire um outro lugar e
um novo caráter na teoria, os quais vêm se colocar de modo ainda mais específico, à
medida que Lacan (1969-70) lhes confere o estatuto de discurso, deslocando cada
vez mais a ênfase de uma questão natural, para circunscrevê-la no campo da
linguagem.
Assim, é no seminário “O avesso da psicanálise” que Lacan se deterá de
modo mais apurado sobre o assunto, caracterizando o discurso da histérica a partir de
um giro no discurso do mestre que, possibilitará entre outras coisas, a existência de
um homem motivado pelo desejo de saber.
Além disso, Lacan ressalta que:
O que a histérica quer que se saiba é que a linguagem derrapa na amplidão daquilo
que ela, como mulher, pode abrir para o gozo (...). O que lhe importa é que o outro
68
chamado homem saiba que objeto precioso ela se torna nesse contexto de discurso
(p. 32).
Lacan (1969-70) dedica ainda uma posição de destaque para o discurso da
histérica, ao introduzi-lo como importante dispositivo no processo analítico, à
medida que é responsável por histericizá-lo, solicitando a produção de significantes
de modo a conceber à associação livre seu pleno exercício.
Trata-se de um discurso cuja dominante se situa em torno do sujeito do
sintoma, ou seja, o S se encontra posto no lugar reservado anteriormente à lei no
discurso do mestre o que, em resumo, significa dizer que, por meio do discurso da
histérica, deparamo-nos com um questionamento da lei que se faz através do
sintoma.
Desta forma, o discurso da histérica é o que abre as portas para que possa
atuar o discurso do analista e fazer-se efetivamente a produção analítica.
Podemos ainda concluir, a partir de Lacan (1970) que “o discurso da histérica
revela a relação do discurso do mestre com o gozo, dado que o saber vem ali no lugar
do gozo” (p. 88).
Neste sentido, a histérica “não entrega seu saber. No entanto, desmascara a
função do mestre com quem permanece solidária, valorizando o que há de mestre no
que é o Um, do qual se esquiva na qualidade de objeto de seu desejo” (p. 88) – Um
este que Lacan designa como o pai idealizado.
Para Quinet (1993), “a histérica confere ao Outro o lugar dominante: na cena
de sedução de sua fantasia, em que figura o encontro com o sexo, ela não está
presente como sujeito, mas como objeto” (p. 29).
É esta desimplicação que se manifesta como um “não fui eu, foi o Outro”,
com o que nos depararemos em nossa pesquisa, e que aparece também na clínica,
69
segundo Quinet, “como uma reivindicação ao Outro, a quem, diferentemente do
obsessivo, ela não deve nada: é o Outro que lhe deve” (p. 29).
Deste modo, de acordo com Quinet (1993), “se o obsessivo escamoteia a
inconsistência do Outro, supondo-lhe o gozo, para a histérica o Outro não tem o falo.
Se tampouco ela o possui, deve assumir, no entanto, a função de faz-de-conta de ser
o falo” (p. 29).
Marca-se, desta maneira, uma articulação específica entre saber e verdade no
discurso da histérica, na medida em que, nesta posição, o sujeito ao impelir o Outro –
ao qual se encontra alienado – a produzir saber, tomará parte deste produto não como
fruto do inconsciente, como não-todo, mas antes como um saber absoluto que ignora
a impossibilidade do real, constituindo-se, portanto na via da impotência.
Nas palavras de Vidal (1996), esta relação comporta um paradoxo já que ao
mesmo tempo em que o sujeito “está na posição de dependência imaginária ao saber
do Outro, castra-o enquanto esse saber se demonstra impotente para agir sobre seu
desejo” (p. 89). Assim, “a verdade, nesse discurso, não está no saber inconsciente,
senão no gozo que sustenta sua divisão, seu sintoma, seu sofrimento” (p. 89).
Neste sentido, embora a histericização do discurso se constitua condição
imprescindível para que o sujeito entre em análise, torna-se necessário que se
promova mais um quarto de giro em seu posicionamento, permitindo-lhe passar da
impotência ao confronto com a impossibilidade, mudança que se fará, parafraseando
Vidal (1996), “desde o campo do Outro onde o sujeito encontra o – 1 que não
responde ao lugar de mestria” (p. 90).
Desta forma, ainda que o analista seja tomado pelo analisando como sujeito
suposto saber, sendo colocado num primeiro momento como Outro absoluto, será sua
70
função não responder deste lugar, mas antes por meio de um outro saber, articulado
ao conceito de douta ignorância, temática sobre a qual nos deteremos a seguir.
3.4. A produção do discurso da histérica no processo analítico, ou da
constituição do sujeito suposto saber
Para definir o que seria o sujeito suposto saber na teoria lacaniana, Quinet
(1993) recorre a um dos primeiros textos
10
de Lacan sobre o assunto, no qual ele
define este saber como aquele que se constitui pelo analisante na figura de seu
analista, mais tarde, fazendo-o equivaler a Deus Pai.
Diante desta primeira afirmação, abre-se uma série de considerações a serem
ressaltadas, tanto no que diz respeito ao processo de instauração dessa suposição de
saber, quanto no que diz respeito às advertências feitas por Lacan, ao longo de seu
ensino, acerca dos riscos a que o analista estaria exposto ao se identificar à figura de
mestre, assumindo uma posição que exclui a falta.
Desta forma, partindo do ponto em que essa suposição de saber se funda,
cabe-nos atribuir esta façanha, sobretudo aos efeitos do processo de histericização do
discurso.
Articula-se dois momentos distintos no que se refere à entrada em análise, um
anterior, caracterizado pela prevalência do que se intitula de sintoma como queixa –
no qual o sujeito ainda não se encontra implicado em sua sintomatologia –, e o
sintoma propriamente analítico, que representa o instante em que se institui por parte
do analisante esta suposição de saber, onde o sintoma – aquele que se desenhava
primeiramente na forma de uma queixa – é transformado em enigma.
10
Lacan, J., “La méprise du sujet supposé savoir”, Scilicet no. 1, Seuil, 1968, p. 39.
71
Em outras palavras, trata-se do momento em que o sintoma é endereçado ao
analista na forma do “Que voi?”, marcando o instante lógico em que o sujeito se
torna dividido, depara-se com sua divisão.
Uma outra forma ainda de designar esse dois tempos, tomando como base o
referencial freudiano, é considerar esse período que antecede a entrada propriamente
em análise como entrevistas preliminares.
Neste primeiro tempo, temos o sintoma ainda como sinal ou signo, aos
moldes do que Lacan (1960-61) coloca no seminário “A transferência” como aquilo
que representa alguma coisa para alguém, já no segundo tempo temos a expressão da
divisão do sujeito, possibilitando o acesso do analista aos conteúdos inconscientes,
favorecendo que ocorra o deslocamento da cadeia significante.
Assim, ao encontrar eco na figura do analista, o sujeito pode lhe endereçar
sua pergunta, o que por si revela um saber, uma suposição de que esse Outro saiba
algo sobre seu sintoma, a verdade de seu sintoma.
Deparamo-nos, assim, com aquilo que Lacan (1953) denominou em “Função
e campo da fala e da linguagem” como transferência de saber, ou seja, uma ilusão de
que a verdade de seu sintoma esteja dada de antemão na figura do analista. Ou dito
de outro modo, uma crença de que ele possa produzir saber sobre o gozo, suposição
esta, que embora seja impossível concretizar, é o que possibilita sua entrada em
análise.
No entanto, como bem enfatiza Lacan (1960-61), o importante não é o
analista assumir a posição de sujeito suposto saber, mas antes se colocar como objeto
causa do desejo: “o que se espera de um psicanalista é que faça funcionar seu saber
em termos de verdade. É por isto mesmo que ele se confina em um semi-dizer” (p.
50).
72
Deste modo, uma forma encontrada por Lacan (1967) para descolar a função
do sujeito suposto saber da figura do analista se deu por meio da formalização do
processo de entrada em análise, através do algoritmo da transferência, cuja base se
pauta sobre os moldes do algoritmo saussuriano, com a diferença que, no primeiro, a
significação do saber inconsciente, apesar de se manter como referencial, encontra-se
circunscrita de modo latente.
S Sq
s (S1, S2 ...Sn)
Neste sentido, designa-se S como o significante da transferência e Sq como o
significante qualquer que vem representar a figura do analista e ao qual se dirige um
significante do analisante.
Este significante qualquer pode se traduzir por um nome ou qualquer outro
traço particular que se tornará decisivo na escolha do sujeito por aquele analista,
culminando, portanto, na articulação de dois significantes, o que corresponderá, em
termos lacanianos, ao estabelecimento da transferência significante.
Conseqüentemente, o efeito dessa operação será o surgimento de um sujeito
dividido o que se representa no algoritmo pelo s (significado) que, nas palavras de
Quinet (1993), “está correlacionado aos significantes do saber inconsciente” (p. 32).
O sujeito, assim resultante, não é real, posto que é fruto da representação de
um significante para outro significante, ou dito de outro modo, produzido como
significado (s) articulado através de uma suposição de saber inconsciente.
Para Quinet (1991) se trata propriamente da “instituição do sujeito da
associação livre inaugurada pela articulação significante (S Sq) que é o
73
próprio sujeito do inconsciente representado na fórmula da fantasia (S a)” (p. 32),
sendo esse mesmo sujeito que será destituído ao término da análise, sendo neste
sentido que Lacan (1969) afirma que a destituição subjetiva já se encontra inscrita no
ticket de entrada.
Ainda no que diz respeito à posição do analista, frente ao lugar de saber que
lhe é outorgado, não podemos nos esquecer do que Lacan destaca como referente ao
conceito de douta ignorância, posição que ele descreve como o ideal a ser alcançado
pelo analista em seu ofício.
Trata-se de um termo que data do século XV, sendo atribuído a Nicolau de
Cusa
11
, matemático considerado por muitos como uma espécie de precursor do
pensamento lacaniano, sobretudo se considerarmos sua concepção de saber e o valor
que reserva a função de resto, muito semelhante ao que Lacan define como objeto a,
denominando-o como aquilo que o caçador de saber persegue sem, no entanto,
jamais alcançar.
Ademais, de acordo com Rabinovich (2000), de Cusa legitimado o termo
“desejo de saber”, o qual empregava em latim, formulando ainda o princípio de douta
ignorância cujo significado pode ser definido sucintamente por um saber mais
elevado, que consiste, sobretudo, em conhecer os próprios limites, protegendo-se
assim de imputar-se um saber absoluto.
Tema amplamente trabalhado por Rabinovich (2000), o conceito de douta
ignorância, aplicado ao âmbito analítico, articula-se numa dupla vertente, ora
relacionado ao desejo, ora ao saber do psicanalista.
11
Autor do fim da Idade Média e principalmente da Idade Moderna, Nicolau de Cusa viveu entre
1410 e 1464, influenciou fundadores da revolução científica da modernidade como Giordano Bruno,
Kepler e Copérnico, tendo ainda suscitado interesse em historiadores como Koyré (1979), Gandillac
(1942) e Blumenberg (1985).
74
Institui-se não como uma ausência de saber, mas como uma paixão do ser que
carrega em sua estruturação dois elementos distintos: o primeiro vinculado ao
conceito de desconhecimento eóico – o que concerne à ignorância a propriedade de
ser uma paixão do eu – e, a segunda dada pela própria condição semântica imputada
pela palavra paixão, que destina ao sujeito uma posição de passividade, de
objetalidade diante do outro. Algo que Rabinovich resume ao dizer que “o ser, na
verdade, ainda é dependente da teoria do reconhecimento do desejo ou do desejo de
reconhecimento” (p. 36).
No entanto, Rabinovich ressalta que essa maneira de passar pelas paixões –
restritas neste momento ao amor, ódio e ignorância –, como um padecer ou como
próprio da submissão objetal a algo, será abandonada por Lacan (1958) a partir do
texto “A significação do falo”, quando o autor passará, então, a empregar o termo
“no sentido da paixão de Cristo, no sentido do padecer, da tortura, do tormento que o
significante impõe ao ser, para sempre perdido, do sujeito falante” (p. 36).
Essa virada conceitual na teoria lacaniana, representada pela tomada de Deus
como significante e modelo para pensar o grande Outro, é precursora de uma outra
mudança introduzida a partir do seminário “A lógica do fantasma”, caracterizada por
um questionamento de Lacan (1966-67) acerca da possibilidade de se crer no Outro
sexo.
Essas mudanças permitirão, entre outras coisas, uma associação à
problemática d’A mulher e à discussão acerca da inexistência da relação sexual,
antecipando uma identificação que se fará somente no seminário “Mais, ainda”,
quando Lacan (1972-73) situará Deus do lado das mulheres.
Por ora, retomemos nossa discussão anterior, para concluirmos com Lacan
(1955) que “o fruto positivo da revelação da ignorância é o não-saber, que não é uma
75
negação do saber e sim sua forma mais elaborada” (p. 360), para a seguir
enveredarmos pela relação do amor com a instauração do sujeito suposto saber.
3.5. O amor como efeito do estabelecimento do sujeito suposto saber
Embora, posteriormente, reservemos um lugar específico à temática do amor
em nossa tese, tomado como uma das formas de suplência, de sinthome do sujeito, é
já a partir da suposição de saber estabelecida no processo de análise que se pode
empreender uma discussão acerca do assunto.
Neste contexto, o amor entra em cena como efeito próprio da suposição de
saber e desencadeia a transformação de uma demanda que antes era circunscrita
apenas a um objeto qualquer e, portanto, constituída como demanda transitiva, em
uma demanda intransitiva, ou seja, uma demanda de amor.
À medida que se revela a dimensão do desejo, que se consegue abrir espaço
para que o inconsciente possa falar em análise, eis que surge por parte do analisante
uma resposta que se dirige ao analista na forma de amor, cabendo a este último a
função de inserir neste campo a dimensão do desejo como desejo do Outro,
permitindo que o sintoma se eleve à categoria de enigma.
Neste sentido, Lacan (1960-61) descreve a transferência como o amor que se
dirige ao saber, sendo que este é apenas um primeiro substrato envolvido na relação
transferencial, que oculta o que realmente é almejado pelo sujeito, isto é, o objeto
causa de desejo, ou para usar o termo lacaniano, o agalma, o verdadeiro objeto que se
quer receber sob a forma de saber.
Nesta relação, Quinet (1993) associa a suposição de saber à crença de que o
Outro da transferência seja o sujeito suposto deter esse objeto precioso que causa o
76
desejo, o que resume ao dizer que “o estabelecimento da transferência no registro do
saber através de sua suposição é correlato à delegação àquele que é seu alvo de um
bem precioso que causa o desejo, causando, portanto, a própria transferência” (p. 35).
Assim, no lugar daquela transferência marcada como repetição, na qual os
significantes eram primordialmente endereçados ao Outro do amor, em que o analista
era posto, eis que surge agora a transferência como um encontro da ordem do real do
sexo.
É ao encarnar o semblante da posse do agalma, fazendo-se de objeto causa do
desejo que o analista permite operar um giro no discurso da histérica rumo ao
discurso do analista, concretizando enfim a entrada em análise.
Assim, ao contrário do discurso da histérica, marcado pela impotência, o
discurso do analista aponta para a impossibilidade, para o furo que inviabiliza o
acesso a um saber absoluto.
Neste sentido, confronta o sujeito com a inexistência da relação sexual,
recolocando especificamente no caso da histérica a questão acerca do que quer uma
mulher e, com isso, possibilitando seu reposicionamento frente ao sexo e ao
significante fálico.
Toda essa operação se dá por meio do ato do analista que se institui pela
interpretação, sendo formulado na via oposta ao conhecimento e seguindo na direção
da certeza, o que traz como efeito, segundo Vidal (1996), a produção de um outro
saber na análise, que se apreende na “passagem de um desejo de saber a uma
interrogação sobre seu desejo” (p. 90).
Desta forma, ocorre um deslizamento no que se refere ao sujeito que muda de
uma posição de agente do discurso para, posteriormente, encontrar-se afetado pela
77
causa que ex-siste a ele, isto é, por um objeto que transcende o significante e a
imagem, denunciando o irrefutável da falta.
Deparamo-nos, deste modo, com uma nova relação entre o sujeito e o saber a
partir da análise, marcada por uma torção que se estabelece aos moldes da banda de
Moebius.
Trata-se, nas palavras de Vidal (1996), de “uma linha de duas voltas
provocada pela torção irredutível do objeto. É uma margem, um litoral entre o saber
e o gozo” (p. 91), que vem conferir à análise sua função de escrita, sobretudo quando
se refere ao sujeito feminino.
Ademais, para além do espaço específico da análise, vem se desenhar uma
outra possibilidade de inscrição, por meio da arte e do amor, como teremos
oportunidade de acompanhar quando enveredarmos pelo campo da psicose, cujo
estudo nos colocará defronte a uma outra constituição do saber, distinta daquela
admitida até então com base nos estudos freudianos e na primeira clínica lacaniana.
78
4. LOUCURA x SUPLÊNCIA: O QUE O ESTUDO DA PSICOSE PODE
ENSINAR SOBRE A SEXUALIDADE FEMININA
“Se me virem falando sozinho dirão que estou louco.
E dirão bem. Pois quem vive pelo poder do que não existe
deve ser louco. Quem sabe, poeta...”
Rubem Alves
Ao adentrarmos o campo da psicose, não pretendemos enumerar, nem
tampouco discutir de modo exaustivo os diversos desenvolvimentos tecidos ao longo
das teorias freudianas e lacanianas sobre o assunto, mas antes nos deter basicamente
sobre a especificidade da relação do psicótico com o saber, demarcando ainda o
momento em que Lacan
12
privilegia, em sua clínica, os efeitos do real e a relação
entre escrita e sinthome.
Assim, partimos de uma definição geral da psicose, sustentada por Lacan
(1955-56) sobre o conceito de Verwerfung do Nome-do-pai – termo posteriormente
12
Referimo-nos aos últimos seminários e escritos de Lacan, entre os quais podemos destacar o R.S.I.,
de 1974-75, e Le Sinthome, de 1975-76.
79
traduzido como forclusão, cuja significação original deriva do campo jurídico,
referindo-se a algo que passou do prazo e que, portanto, não admite mais recursos.
Além disso, sob a pena de Lacan, este conceito se revestiria ainda de um
outro significado, passando a representar uma interrupção abrupta de “toda
manifestação da ordem simbólica, quer dizer, a BEJAHUNG, que Freud concebe
como o processo primário em que se baseia o juízo atributivo, e que não é outra coisa
senão a condição primordial para que, desde o real, algo venha a oferecer-se à
revelação do ser” (p. 387-88).
Em outras palavras, poderíamos dizer que o psicótico ao se deparar com uma
injunção, ao ser chamado a responder a partir de uma referência paterna, depara-se
com um buraco, com a ausência de simbolização dessa função, havendo o retorno de
um pai, porém não no simbólico como ocorre na neurose, mas no real.
Miller (1988) esclarece melhor esta questão ao trabalhar a posição do
psicótico frente à cadeia significante e à atribuição subjetiva, dizendo tratar-se, neste
caso, de uma outra relação:
isto é, quando, na cadeia significante, aparece o significante daquilo que não pode
ser dito, ela se interrompe com uma réplica, e o psicótico pensa escutá-la como dita
por um Outro real. Com relação à distribuição da enunciação, para nós, há uma
continuidade, em que pensamos que somos os mesmos quando falamos, mas para o
psicótico, a mesma estrutura distributiva da enunciação passa para o Real, como se o
dito viesse de fora (p. 148-49).
Prosseguindo com Lacan, somos remetidos ainda a uma questão concernente
aos primórdios da constituição do sujeito caracterizada, entre outras coisas, pela
impossibilidade do apagamento do signo, advinda da ausência do recalque.
80
Bernardino (2000) aborda o tema dizendo tratar-se da ocorrência de uma
holófrase, ou seja, da não separação entre S
1
e S
2
que, como conseqüência, leva
alguns significantes a permanecer no registro do real, consistindo nisto a
impossibilidade de simbolização dos mesmos, surgindo em seu lugar um buraco, que
será o responsável pelo desencadeamento da psicose.
No texto De uma questão preliminar a todo tratamento possível da psicose,
Lacan (1957-58) acrescenta que na impossibilidade de aceder ao Nome-do-Pai, o que
se presentifica para o psicótico é a falta do próprio significante, deste modo, ao
contrário da neurose, onde:
A presença do significante no Outro é (...) velada ao sujeito, (...) persiste em estado
de recalcado (...) e dali insiste em se representar ao significado através de seu
automatismo de repetição, na psicose a resposta provoca um simples furo, o qual,
pela carência do efeito metafórico, provocará um furo correspondente no lugar da
significação fálica (p. 564).
Vejamos, portanto, de que maneira o psicótico se estrutura o redor deste furo
no simbólico, sobretudo, naqueles casos em que é sabido não haver o
desencadeamento da crise propriamente dita, abrindo espaço para questionarmos a
existência, de uma relação específica com um saber de outra ordem que não o
paterno, permitindo ao sujeito uma amarração possível.
Neste sentido, mais uma vez nos remeteremos aos estudos realizados por
Calligaris (1986), por considerarmos ser aquele que melhor situa a estrutura psicótica
em relação ao saber.
No que tange ao posicionamento ocupado pelo sujeito frente à demanda
indeterminada do Outro, Calligaris considera a psicose como equivalente à neurose,
81
no sentido de também se constituir numa defesa contra uma ameaça comum a ambas
estruturas, desencadeando um processo metafórico remetido a um saber que buscará
circunscrever essa demanda.
Trata-se para Calligaris (1989) de uma defesa no sentido freudiano do termo,
isto é, como psiconeurose de defesa, na medida “em que se subjetivar, existir como
sujeito, obter algum estatuto simbólico, alguma significação é necessário para que o
sujeito seja algo distinto do Real do seu corpo, algo Outro e mais do que alguns
quilos de carne” (p. 13).
Assim, tanto quanto na neurose, torna-se necessário a instauração de um
processo de metáfora que garanta ao sujeito uma significação mínima, retirando-lhe
de uma condição de puro objeto da demanda do Outro e colocando-o em referência a
um saber que lhe confira uma subjetivação.
No entanto, ao contrário do que ocorre com o neurótico, na psicose não se
trata de um saber referido ao pai, a um sujeito suposto, mas antes à própria demanda,
ou seja, se na neurose o sujeito se encontra sempre inserido numa filiação, se a
linguagem lhe permite estabelecer um ponto em torno do qual tudo adquire
significação, sobretudo, fálica, no caso do psicótico esta inserção não acontece.
É isto o que se inscreve sob a égide da forclusão do Nome-do-pai, isto é, não
apenas a forclusão de um significante, mas, como conseqüência desta operação, a
própria impossibilidade de o sujeito se inserir numa filiação, instaurada a partir da
falta de simbolização da metáfora paterna.
O que advém, portanto, no lugar desse saber paterno, como dizíamos, é um
saber de outra ordem, que mesmo ligando significante e significação num tipo
específico de “capitonage”, não fixa a amarração, embora seja capaz de assegurar ao
82
sujeito algumas significações viáveis, ainda que não fálicas, um saber que, antes de
tudo, garante o domínio da demanda do Outro.
Trata-se, nas palavras de Calligaris (1989), de um saber de defesa que, por ser
sem sujeito, não pode ser parcial – como o saber sexual na neurose –, “pois ele não
vale pelo domínio que um sujeito suposto exerceria sobre a Demanda do Outro, mas
deve – por si mesmo – tecer uma rede total e idealmente completa que proteja da
Demanda o sujeito” (p. 18).
Além disso, Calligaris acrescenta que, ao passo que não há sujeito suposto
saber sobre essa demanda na psicose, “a tarefa de sustentar, ou mesmo de produzir a
rede, o tecido deste saber cabe ao sujeito mesmo” (p. 18), ponto este que será
retomado futuramente, quando discutirmos o conceito de “sinthome” trabalhado por
Lacan nos últimos anos de sua teoria, que trata, entre outras questões, de um termo
cunhado pelo autor como “saber-fazer com o sintoma”, podendo ser lido como um
dos efeitos de uma construção de suplência, desenvolvida pelo sujeito no sentido de
suprir, no caso da psicose, a forclusão do Nome-do-Pai, oferecendo um caminho
viável para que um outro saber possa se constituir.
Por ora, fixemo-nos um pouco mais sobre a concepção desse saber total,
sobre o qual Calligaris (1989) acrescenta, que pelo fato de não poder ser transmitido,
só pode encontrar-se circunscrito à coisa mesma que tenta simbolizar, como se dela
emanasse.
Neste sentido, o autor nos apresenta, como exemplo, o caso de Rousseau,
sobretudo no que se relaciona ao personagem Émile, por representar um ideal
pedagógico constituído pela a ausência de mestre, sustentado sobre os preceitos da
natureza, excluindo o processo de transmissão e defendendo a idéia de auto-
engendramento da autoridade.
83
Faz menção ainda à “poética de uma auto-revelação da natureza” em
Hölderlin, e à idéia de uma coincidência entre o mundo e a rede do discurso, presente
no primeiro Wittgenstein.
Em ambos os casos, destaca-se o fato de não haver registros de que crises
psicóticas tenham sido desencadeadas, o que leva a crer que esses sujeitos de algum
modo encontravam-se sustentados sobre um saber que lhes servia de amarração.
É interessante observar, neste contexto, a relação específica que o psicótico
mantém com o saber, marcada por um deslizamento infinito, de modo metonímico,
no qual o sujeito se ancora numa certeza egóica – conseqüência da ausência de
metáfora paterna – onde se torna praticamente impossível estabelecer a diferença
entre o “eu” e o próprio sujeito, como ocorre na neurose.
Ainda como resposta a esta relação “privilegiada” do psicótico com o saber,
capaz de protegê-lo de uma crise sui generis, podemos mencionar os estudos de
Anne Lysi-Stevens
13
(1996), autora que faz um levantamento dos estudos lacanianos
desde “As psicoses paranóicas” até o seminário “As psicoses”, período em que
Lacan se pergunta acerca do que se constituiria o estado anterior à eclosão da crise
psicótica, denominando este tempo, primeiramente, de pré-psicose – termo que ele
abandonará futuramente por considerá-lo demasiado vago –, substituindo-o anos
depois por uma outra versão mais elaborada que será construída a partir dos
seminários “R.S.I.” (1974-75) e, sobretudo, em “Le Sinthome” (1975-76), quando
ele explicará este período de “não deflagração” ao trabalhar a noção de suplência,
tomando como parâmetro o que acontece com Joyce, ponto sobre o qual nos
deteremos a seguir.
13
Autora trabalhada com destaque por Bernardino (op. cit.), ao considerar o tema das psicoses não
deflagradas.
84
4.1. A questão da suplência, ou do sintoma ao sinthome
Nos últimos anos de seu ensino, Lacan introduz uma virada na forma de
conceber a estrutura psíquica do sujeito, colocando em primeiro plano o registro do
real e apontando para a necessidade de um outro olhar na direção do tratamento, o
que modificará, principalmente, a noção de sintoma e de cura na clínica psicanalítica.
Sabemos que mesmo no interior da obra freudiana, o percurso que leva à
construção do sintoma é marcado por momentos distintos, implicando em variações
que transformam seu conceito ao longo dos anos, sendo tomado primeiramente como
mecanismo psíquico, a partir dos estudos sobre a histeria; passando pela concepção
de formação de compromisso; pela noção de defesa e alcançando em “A
interpretação dos sonhos” sua condição de formação do inconsciente, abarcando
ainda para o caráter de satisfação substitutiva que a ele se associa.
Mais tarde, a partir das formulações freudianas acerca da pulsão de morte, a
questão do ganho secundário envolvida na manutenção do sintoma seria melhor
definida, abrindo espaço para a articulação, no futuro, do conceito lacaniano de gozo,
associado entre outros fatores à repetição.
Anuncia-se, desta forma, o desenvolvimento da “neurose de transferência”,
algo que Freud trabalhará no decorrer de diversos textos, mas principalmente nas
últimas conferências de Introdução à psicanálise, sempre ressaltando a presença da
formação inconsciente, da satisfação substitutiva e do ganho secundário, como
delimitadores da relação transferencial que se atualiza no tratamento.
No entanto, a questão relacionada ao sintoma não se encerra aí, uma vez que
associada à dimensão da transferência encontra-se ainda a noção de resistência, que
85
em consonância com a atribuição de um ganho secundário podem nos pôr diante de
uma outra construção, talvez de um ponto de insolubilidade no que tange ao sintoma.
O próprio Freud (1937) já apontava para este limite em “Análise terminável e
interminável”, momento no qual sua ênfase recairia sobre os obstáculos impeditivos
da cura do paciente, acreditando talvez que eles pudessem ser removidos, mas que
hoje, analisados sob a perspectiva da segunda clínica lacaniana, poderiam significar
um prenúncio da existência de um ponto irredutível do sintoma, algo que não se
esgota pelo deciframento implícito nos últimos escritos freudianos.
Assim, ao adentrarmos os escritos lacanianos é possível perceber no início de
seu percurso uma concepção de sintoma que se vale, quase sem restrições, dos
conceitos deixados por Freud ao longo de sua trajetória, retomando em seu discurso
algumas das antigas formulações freudianas, como pode ser visto, por exemplo, no
“Discurso de Roma” (1953a), ao resgatar a função da escuta do paciente, e
considerar seu relato mais como uma mensagem dirigida ao Outro, no sentido de ver-
se decifrada, que como significante de uma causa de sofrimento.
No decorrer do texto “Função e campo da fala e da linguagem”, Lacan
(1953b) acrescenta que é “justamente essa assunção de sua história pelo sujeito, no
que ela é constituída pela fala endereçada ao outro, que serve ao novo método a que
Freud deu o nome de psicanálise em 1895” (p. 258).
Neste sentido, o sintoma aparece reduzido à função simbólica e estruturado
como linguagem e, portanto, devendo se resolver pelos mesmos meios.
Dito de outro modo trata-se de uma concepção que preconiza a função de
verdade atribuída ao sintoma e sustenta a possibilidade de cura no deciframento
dessa verdade.
86
Ainda em 1958, Lacan se mantém fiel ao caminho trilhado por Freud,
trazendo mais uma vez à tona a discussão acerca do trauma histérico, concluindo que
embora o sintoma comporte algo do recalcado ele se desenvolve no sentido de
reconhecer o desejo, mesmo que de modo cifrado.
Durante os anos sessenta, tem continuidade a prevalência do simbólico sobre
os demais registros, com a diferença que Lacan começa a se deter mais
profundamente sobre temas que serão de fundamental importância para as suas
formulações finais, como em 1962-61, ao discutir no seminário “A identificação” o
conceito de letra, termo que surge associado à relação do significante com o nome
próprio.
Assim, Lacan afirma que “só pode haver definição de nome próprio, na
medida em que percebemos relação da emissão nomeante com algo que, em sua
natureza radical, é da ordem da letra” (p. 81), destacando, neste sentido, a relevância
não só do som, mas, sobretudo da escrita, no processo de distinção do nome próprio,
ressaltando ainda sua afinidade com aquilo que do significante faz marca, ou seja,
com “a designação direta do significante como objeto” (p. 85).
È somente a partir dos anos 70 que Lacan se enveredará definitivamente pelo
campo do real, dedicando-se à construção da teoria do nó borromeo – embora ele já
tivesse mencionado o nó em 1952.
Mesmo assim, esta passagem do simbólico ao real não se faz de modo
imediato, como podemos notar ainda em 1974, quando Lacan ao se questionar acerca
do lugar ocupado pelo sintoma na estrutura borromeana, recoloca mais uma vez a
primazia do simbólico, fiando-se no campo do sentido.
No entanto, neste mesmo ano, ao dar início ao seminário “R.S.I.”, Lacan
(1974-75) introduz uma nuance que anuncia uma progressiva mudança em sua
87
concepção – que culminará com os escritos do seminário XXIII, em 1975-76 –, este
prenúncio se coloca pelo estabelecimento da relação do sintoma com o real, que
passa a ser designado como seu verdadeiro sentido.
Ademais, começa a se perfilar o caminho que levaria Lacan a deixar a mão de
Freud para adentrar as vicissitudes da psicose com Joyce, algo que se pode notar
ainda em “R.S.I.”, quando o autor se põe a tecer críticas acerca da ênfase freudiana
sobre o conceito de Realität, ou seja, de realidade psíquica, propondo em seu lugar o
conceito, também freudiano, de Wirkilichkeit, que poderia ser traduzido como
realidade operatória”, “realidade efetiva” ou “realidade eficaz”, atendendo melhor
às expectativas lacanianas para a nova formulação de sintoma que se produzirá, no
seminário seguinte, sobretudo no que se relaciona à capacidade de “saber-fazer”,
ligada ao uso lógico do sintoma.
Por ora, resta-nos a tarefa de compreender um pouco como se edifica a
estrutura do nó borromeu, trabalhada por Lacan em “R.S.I.” e constituída
basicamente a partir de um enodamento entre real, simbólico e imaginário, de
maneira tal que, diante da queda, da separação de um desses elementos, ocorre a
liberação dos demais e, conseqüentemente, a dissolução do nó.
Alguns princípios básicos envolvem essa estruturação, uma delas consistiria
no fato de o nó não se constituir nem como uma metalinguagem, ligada
exclusivamente ao campo do simbólico, nem como uma representação associada
somente ao imaginário, mas antes como uma escritura que suporta um real, sendo a
partir do traço dessa mesma escritura que se pode conceber a existência dos
conceitos de idéia e representação.
O que se insere, portanto, nesta sustentação sobre o enodamento borromeano
é a possibilidade de defrontamento com o real da estrutura, à medida que se introduz
88
o buraco do Urverdrängt, ou seja, a marca do significante sobre o real, engendrando
o recalque originário, cabendo ao sujeito haver-se com um impossível acerca do qual
pode apenas traçar contornos.
Encontram-se atreladas ainda à estrutura borromeana, segundo Lacan (1974-
75), as noções de consistência, ex-sistência e buraco.
Por consistência compreendemos a qualidade atribuída ao imaginário que
consiste em manter juntos R.S.I., num enlace que preconiza a ausência de corte, de
separação, sem o que fatalmente seríamos levados à dissolução do nó.
Assim, a consistência é o que confere a cada um dos registros a mesma
importância, o que, no entanto, não significa que isoladamente não comportem
sentidos diferentes, mas antes que nenhum dos campos – real, simbólico ou
imaginário – é capaz por si só de responder pela verdade do sujeito, nenhum dos
registros se sobrepõe aos demais, podendo ser tomado como todo, como Um.
Deste modo, não só a inexistência de uma hierarquia, como ainda o fato de se
constituírem em tão somente três categorias a se entrelaçarem, vem demarcar a
impossibilidade de, por um lado, estabelecer uma relação de complementaridade o
que, em outras palavras, significaria admitir a existência da relação sexual e, por
outro, evitar que várias instâncias ou outras consistências viessem a responder do
lugar desse buraco advindo do enodamento entre real, simbólico e imaginário, bem
como do furo que por sua vez é instaurado, de maneira particular, em cada um desses
registros à medida que são tomados aos pares, desencadeando um desdobramento
infinito.
Neste sentido, ao se estruturar em três, o nó borromeu se coloca como um
ponto de basta para um número infinito de possibilidades que se abriria.
89
Associado à noção de consistência eis que surge o conceito de ex-sistência,
cuja importância reside em apontar para aquilo que, embora esteja do lado de fora,
gira ao redor do que faz consistência, marcando ali um intervalo.
Deste modo, cada registro se apresenta de maneira diferente no que concerne
a sua ex-sistência e ao que resulta do buraco que dela advém, podendo-se situar no
intervalo entre real e imaginário o surgimento do gozo do Outro (JA), que remete ao
impossível; entre simbólico e real, o gozo fálico (Jϕ), do qual resulta a ordem
sintomática e, entre simbólico e imaginário, o sentido; estruturando-se assim os três
intervalos resultantes das interseções entre cada par de registros.
Embora não venhamos a nos deter mais profundamente sobre esta questão,
cabe dizer ainda que cada um dos planos oriundos desse entrelaçamento comporta a
tríade freudiana representada por inibição (S-I), sintoma (S-R) e angústia (R-I).
Há ainda que se destacar a interseção resultante do próprio enodamento, e que
confere ao nó borromeu a qualidade de suportar o real da estrutura, isto é, o intervalo
central, no qual se localiza o objeto a, suplementar aos gozos.
Nas palavras de Frignet (1997) “é nisso que a ex-sistência se suporta do Real,
quer dizer do objeto, do lugar para o objeto que a operação do significante faz no
Real” (p. 173).
Na seqüência, adentraremos a discussão acerca da noção de buraco,
responsável entre outras coisas por possibilitar o enodamento entre os aros, uma vez
que se faz necessário que um aro passe pelo outro a fim de instituir o entrelaçamento.
Desta forma, ao seguirmos os passos de Frignet em sua pesquisa etimológica
do termo, deparamos com a palavra “troglodita”, que em grego se origina de
τρωγλη, designando o buraco, o oco que, por aproximação, remete ainda a τροχοξ,
que significaria o círculo, a rodela, o anel, o disco.
90
Neste sentido, o autor prossegue sua pesquisa até chegar ao significado de
ferida (τρανμα), embutido numa antiga escritura que conserva a raiz τρο e τρω,
originada da palavra τρωνμα que, num primeiro momento, teria aproximado a noção
de buraco à idéia de trauma (trou).
Ao destacar essas semelhanças, pretende demonstrar também como o
trabalho da língua comporta e, ao mesmo tempo, é sustentado pelo que há de
ausência e de substância, pelo que se constitui como buraco e por aquilo que está ao
redor.
Portanto, para Frignet, torna-se importante ressaltar que no enodamento dos
aros não se pode prescindir do buraco, o que, no entanto, não quer dizer que haja
uma reciprocidade entre o buraco e a substância, ou seja, “um vindo ao inverso do
outro como no enodamento a dois, dos toros do desejo e da demanda. No nó
borromeu, um não faz cadeia pelo buraco do outro, mas é pela ex-sistência de um
terceiro que esses dois se enodam” (p. 174).
Esta triplicidade, suportada pela topologia do nó borromeu, cuja planificação
reúne ao mesmo tempo a dimensão de tempo e espaço, remete mais uma vez à
questão do impossível, podendo ainda ser representada, segundo Frignet (1997),
pelos três verbos principais presentes na máxima lacaniana: Eu te peço que recuses
o que te ofereço porque isso não é isso”
14
, sendo por meio desse ternário que “pode
aparecer o efeito de sentido, neste caso, o impossível da apreensão deste ‘isso’, o
objeto a” (p. 175).
Por fim, esperamos que as formulações construídas acerca desse buraco além
de marcar o vazio existencial do sujeito possam servir ainda como base para que
possamos analisar e discutir posteriormente a condição feminina frente à falta de um
14
Lacan, J. (1971-72). ...Ou pior – seminário XIX 1971-1972. Inédito. Publicação interna da
Associação Freudiana Internacional, Salvador, BA, 2003. Aula de 9 de fevereiro de 1972, p. 69.
91
significante capaz de nomeá-la e, por conseguinte, o estabelecimento de uma maior
proximidade com isso que do real se coloca.
Por ora, retomemos nossa trajetória anterior a fim de verificar como se deu a
formulação do conceito de sinthome, termo escrito por Lacan (1975-76) de modo
diferente da grafia utilizada para definir o sintoma clínico (symptôme), e cuja
significação veremos se desenvolver também num outro sentido.
Deste modo, podemos constatar já em “R.S.I.” (1974-75) um questionamento
de Lacan acerca da necessidade de um quarto elo a ser agregado à estrutura ternária
do nó borromeu.
Como sabemos, esta era uma proposição presente já na leitura freudiana que
considerava a necessidade desse quarto elemento, designado pelo sintoma, com o
objetivo de dar consistência aos demais registros.
No entanto, na época, Lacan (1974-75) parece oscilar acerca dessa
necessidade, chegando a admiti-la em alguns momentos, quando designa para tal
função o Nome-do-Pai – levantando mais uma vez seu caráter de suplência –, para
refutá-la a seguir, defendendo a idéia de que esse quarto nó estaria incutido no
próprio enodamento borromeano.
Assim, de um modo ou de outro, vê-se anunciar novamente em “Le
sinthome” a função de suplência, já referida anteriormente por Lacan (1973-74) em
“Les non dupes errent” e no próprio “R.S.I.”.
Neste sentido, ao associar a idéia de suplência aos Nomes-do-Pai, escrito no
plural, Lacan (1973-74) pretende apontar para a existência de sintomas que não só
denunciariam a insuficiência do Outro como, ao mesmo tempo, serviriam de borda e
sustentação para o nó.
92
Deste modo, seria o próprio buraco central resultante do enodamento entre
real, simbólico e imaginário, no qual se localiza o objeto a, o responsável por apontar
para a inconsistência, reclamando um artifício que sirva de suplência à função do pai,
numa tentativa de compensar esta falha estrutural.
Em outras palavras, responderia à impossibilidade de relação entre S e I.R., o
que, em última instância, significaria dizer que o nó vem dar suporte na linguagem
ao real do sexo, à medida que ao se constituir como três e encontrar-se sustentado
pela consistência advinda do imaginário, apresenta-se como uma solução para a
inexistência da relação a dois.
Ao avançar em suas formulações, Lacan (1974-75) insinua ainda que esta
função suplementar não seria privilégio exclusivo da psicose, ao dizer que, “é porque
esta suplência é indispensável que ela tem vez: nosso Imaginário, nosso Simbólico e
nosso Real estão talvez para cada um de nós em um estado de suficiente dissociação
que só o Nome do Pai faça nó borromeano e mantenha tudo isso junto” (p. 32).
A este respeito, poderíamos dizer com Harari (2002) que o sinthome se
originou de “uma necessidade lógica seguida na passagem da estrutura do nó
borromeano de três dimansões
15
(...) para o nó borromeano de quatro” (p. 10),
quando lhe é atribuída por Lacan, a partir de 1975, a função de responder como
quarto aro a dar consistência ao nó.
Com a inserção deste conceito, eis que nos deparamos com uma nova forma
de pensar não só a psicose, mas toda a psicanálise depois de Freud, sobretudo,
quando Lacan (1975-76) propõe que no lugar de tomarmos o sintoma como verdade
a ser decifrada, por meio da interpretação significante, façamos dele um uso lógico,
que consistirá, a princípio, em abandonar qualquer referência às noções de recalque e
15
Escrita sugerida pelo autor para transliterar, no plural, o neologismo lacaniano – “dit-mention”.
93
repetição, tal como articulado na teoria freudiana, introduzindo uma disjunção entre
estes dois termos a fim de privilegiar a dimensão do real, abrindo espaço para o gozo.
É desta forma que emerge como foco principal a questão da língua no lugar
da linguagem, como algo que a antecede e que não se estabelece com a função de
comunicar, mas ao contrário, como um indicador de que o significante serve ao gozo,
configurando uma dinâmica que Miller (2004) vem complementar ao dizer que
aquilo que Joyce revela, por meio de sua obra, é a inexistência da linguagem como
estrutura, apontando ainda de que maneira ela pode ser desfeita pelo impulso da
língua.
Neste sentido, Lacan (1975-76) deixará a mão de Freud para se enveredar
com Joyce pela trilha da psicose, inaugurando uma nova escrita do sintoma, balizada
pela questão dos nós e, principalmente, por uma inversão na ordem dos registros
imaginário, real e simbólico.
Assim, se num primeiro tempo tínhamos inscrito o sintoma como metáfora,
responsável por permitir a emersão da verdade, a partir da incidência sobre a linha
metonímica e, por conseguinte, da produção do corte na cadeia significante do
sujeito, agora deparamo-nos com algo que se sustenta na letra e na escrita do nó
borromeano, ultrapassando como tal os limites do significante e enunciando a ex-
sistência, o real da estrutura.
Se, em períodos anteriores da abordagem lacaniana, pudemos ver sua ênfase
posta no imaginário ou no simbólico, agora quem figura em primeiro plano é o real,
fazendo jus à inscrição RSI.
Como conseqüência desta mudança, o próprio conceito de causalidade
psíquica se altera, passando também a ser determinado pela dimensão do real, o que
94
faz com que sua conexão com a racionalidade e linearidade seja rompida,
possibilitando a emergência de novos paradigmas.
Trata-se, nas palavras de Harari (2002), de uma: “orientação que se
fundamenta nessa passagem que vai da ficção da palavra à importância da voz. Da
polissemia do significante à polifonia das palavras. Ou ainda, como um deslizamento
que vai da topologia do significante à topologia do nó borromeano” (p. 11).
Há, portanto, neste momento, uma separação radical entre o que consiste o
sintoma em Freud e o sinthome em Lacan. No primeiro caso, estaríamos diante da
dimensão do automaton, retorno repetitivo do recalcado ligado ao simbólico,
admitindo como tal uma significação fálica e servindo à função de cura, já no
segundo, o que entraria em jogo seria algo da ordem da tiché, recalque primário
ligado ao real, cuja finalidade seria reparar a cadeia borromeana, respondendo como
suplência.
Deste modo, segundo Vieira (1996) o sinthome se constituiria como “uma
escrita particular ligada àquilo que no real não acende ao significante e funda o
desejo” (p. 56), marcando um gozo não assimilável que se coloca, a partir de então,
como o principal substrato a ser trabalhado.
Neste sentido, tomemos mais uma vez a questão da psicose para pensarmos a
relação entre suplência e escrita, tal como proposta pela articulação dos nós e
discutida por Paiva, Lopes e Peres (1996) em “A solução joyceana”, texto no qual as
autoras colocam que embora sendo de “estrutura que um significante seja forcluído
do campo do Outro” (p. 112), fazendo surgir em seu lugar o Nome-do-Pai, ocorre na
psicose um erro específico, que se vê articular em Joyce, e que consiste no fato de
real e simbólico se cruzarem de forma olímpica.
95
Somos remetidos, desta forma, a algo que Lacan (1971-72) circunscreveu no
seminário “... ou pire”, mais precisamente na aula do dia 9 de fevereiro de 1972,
quando expõe pela primeira vez o nó borromeu, mencionando o nó olímpico como
aquilo que resulta como mera aparência quando ocorre o desprendimento de um dos
demais aros, aparência que se justifica justamente pelo fato de não haver amarração
possível suportada apenas sobre dois anéis.
Dito de outro modo, quando por um erro na estrutura do nó, os elos não se
enodam, provocando a queda do imaginário, o que se dá é a formulação desse nó
olímpico, representado apenas pelo enlace entre real e simbólico, havendo nesses
casos a necessidade de buscar um outro elemento, que não a imagem do corpo, capaz
de dar consistência ao ego a fim de constituí-lo como quarto aro, responsável por
restituir o nó borromeano – em Joyce, esse outro elemento é a escrita.
Desta maneira, vemos emergir novamente a necessidade de recorrer a uma
outra articulação que não se restrinja exclusivamente ao deciframento do sintoma,
mas que possa abarcar aquilo que se instaura para além dele, permitindo apreender
algo do impossível do real que se inscreve por meio dessa nova amarração.
É neste sentido que Lacan (1975-76) propõe que no lugar de decifrar o
sintoma, a partir da interpretação, promova-se o uso lógico do mesmo, ou seja, que
se proceda à redução do sintoma – redução a um furo, ao anel de barbante, o qual
vem substituir o significante.
Em outras palavras, isto significa que teríamos que intervir sobre a letra, ou
seja, sobre o que Bernardino (2000) destaca do texto lacaniano
16
como sendo aquilo
que, “ao fazer borda, funciona como contorno entre heterogeneidades, instituindo
não uma fronteira, mas dois campos totalmente distintos: o saber e o gozo” (p. 70).
16
Menção a Lituraterra, aula de 12 de maio de 1971 do seminário inédito de Jacques Lacan,
intitulado “De um discurso que não seria do semblante”.
96
Neste sentido, apreende-se ainda a importância do destaque reservado pela
abordagem lacaniana ao conceito de letra, designado como o que fundamenta, ou
mesmo determina, a possibilidade de construir um nome próprio.
Trata-se de algo que já enunciávamos quando da exposição dos momentos
lógicos da constituição do sujeito, e que se inaugura mais precisamente na obra
lacaniana quando, no seminário “A identificação”, Lacan (1961-62) situa a letra
como um suporte necessário para o significante, remetendo-nos à relação do infans
com Das Ding, a Coisa.
Para Lacan, neste momento, “os significantes não manifestam primeiramente
senão a presença da diferença enquanto tal e nada mais. A primeira coisa que ele
implica é que a relação do signo à coisa seja apagada” (p. 58).
Bernardino explica essa passagem nos remetendo mais uma vez à
“Lituraterra”, aula na qual Lacan (1971) descreve, segundo a autora, “a trajetória de
uma ‘escrição’ diante do real – a partir de um gesto que se impõe como traços do
Outro –, para uma ‘inscrição’ – então significante, simbólica –, do que resultaria uma
‘escrita’” (p. 70).
Neste percurso, trata-se de caracterizar a letra como efeito de discurso,
situada na borda do simbólico, marcando um primeiro tempo, ainda real, na
constituição do sujeito, no qual por meio de uma antecipação imaginária ele será
levado ao simbólico, adentrando, desta maneira, o segundo tempo lógico, no qual a
letra emergiria como suporte material para o significante na medida em que a ele se
liga.
Nas palavras de Bernardino (2000), “é neste momento que o significante se
dobra às leis da linguagem” (p. 70), operando-se a castração propriamente dita.
97
Haveria, portanto, segundo a autora “uma escrita lógica, impossível de ser
traduzida, porque primeira”, sendo que “a inscrição do sujeito na linguagem dar-se-ia
neste trajeto do impossível do gozo implicado nesta ‘escrição’, sofrendo a operação
da castração, para chegar a uma significação possível” (p. 70-71), destacando-se
mais uma vez a função de fazer litoral entre o gozo e o saber, atribuída por Lacan
(1971) à letra.
Assim, tomaremos parte desta subversão teórico-clínica, produzida por Lacan
nos últimos anos de seu ensino, para a seguir pensar a sexualidade feminina e as
vicissitudes que acompanham a mulher em suas relações agora sob uma nova
perspectiva, questionando, entre outras coisas, se a ausência de um significante capaz
de nomeá-la, poderia ser também denominada de forclusão?
Neste sentido, Miller (1988) responde afirmativamente, ressaltando que, para
além do Nome-do-pai, a teoria lacaniana admite a forclusão de outros significantes,
desta maneira, “quando Lacan distingue o Outro gozo, aquele que não tem
significante, dizendo que ‘a mulher não existe’, pode-se traduzir como: existe uma
forclusão do significante da mulher” (p. 148).
Desta forma, Miller introduz uma questão sobre a qual não nos deteremos,
mas que merece ser mencionada, e que diz respeito ao conceito de “forclusão
generalizada”, cuja formulação se sustentaria no fato de toda a espécie humana
encontrar-se envolta por um ponto de loucura, na medida em que não há fórmula
significante da relação sexual.
No caso específico do sujeito feminino a falta desse significante seria
responsável por aquilo que escapa à ordem fálica em sua estruturação, podendo-se
tomar o amor e a arte como suplências, servindo como um suporte, como uma
amarração possível ali onde esse significante se encontra forcluído.
98
4.2. O amor, a mulher e a escrita
Ao lançarmos nosso olhar sobre o amor, logo somos confrontados com uma
contradição intrínseca ao tema, evidenciada pelo fato de, por um lado, encontrar-se
sustentado sobre uma dissimetria estrutural, que denuncia a não complementaridade
entre os sexos, e, por outro, instituir-se como aquilo que tenta fazer suplência à
relação sexual, ligado, portanto, à noção de escrita.
Neste sentido, numa tentativa de contemplar a dimensão imaginária,
simbólica e real, relacionada ao tema, re-introduziremos em nossa discussão questões
inerentes à ligação do sujeito com as figuras parentais, com a linguagem e com
aquilo que da estruturação psíquica resulta como resto, como objeto a.
Para isto, partimos da máxima “amar é dar o que não se tem, para ressaltar
a importância da entrada do Outro neste circuito, legitimada a partir da falta, sobre a
qual se fundará o mal-entendido inerente ao amor.
Desta forma, constatamos a presença de uma divisão entre objeto de amor e
objeto de desejo – que se representa pela não coincidência entre o objeto que se doa,
o objeto que se recebe e aquilo que se deseja; ou ainda, pela existência de alguém a
quem se ama e alguém de quem se goza –, fazendo desse desencontro não o fracasso
do amor, mas aquilo mesmo que o fundamenta.
Trata-se de uma discussão que Pommier (1992) desenvolve no texto “A
equivocação do amor”, no qual o autor situa a busca por esse objeto em relação à
primeira perda instaurada pelo sujeito a partir de sua entrada na linguagem, algo que
uma vez recalcado ele passa a procurar, mesmo sem sabê-lo naqueles a quem dirige
seu olhar e seu amor.
99
Neste processo residiria, portanto, o caráter narcísico envolvido na relação
amorosa, que faria com que cada sujeito ao se deparar com o outro o fizesse
revestido de traços daquilo que se constituiu sua vivência com o Outro, buscando
muitas vezes recobrir um vazio e investindo o parceiro de uma imagem que nada
mais é que o reflexo de suas projeções e anseios, e procurando no outro a imagem de
si, ou mesmo, daqueles que se constituíram como seus primeiros objetos de amor.
Entretanto, segundo Pommier (1992), este não seria o único fator responsável
pelo mal-entendido e pelas dificuldades no campo afetivo, mas antes o fato de tanto o
desejo feminino quanto o masculino se empenharem de maneiras opostas na tentativa
de obter do falo.
Conseqüentemente, somos remetidos à afirmação lacaniana de que a mulher
se constituiria num sintoma para o homem, enquanto que este seria para ela uma
devastação, relação que decorre do fato de o desejo feminino se colocar como
enigma para o parceiro, ao mesmo tempo em que a própria mulher se inscreve como
aquilo que a ele falta, sendo tomada, portanto, como seu falo.
Um dos elementos que Pommier (1992) trabalha, a partir do posicionamento
específico adotado por cada um dos parceiros em relação ao objeto, diz respeito ao
gozo, ao qual ele se refere começando por mencionar a angústia que o gozo feminino
viria a suscitar no homem, ao trazer à tona a temática da morte e pôr “à prova o
nome, o mais-além da vida em que se apóia a existência” (p. 53), ao demandar de seu
parceiro algo que se encontra para além de sua aparência ou beleza física.
Ademais, esse gozo é responsável ainda por confrontar o homem à castração,
na medida em que ocorre um relançamento do desejo fazendo com que a mulher
possa desempenhar para ele a função de Nome-do-Pai.
100
Esta função, por sua vez, advém de uma condição imposta pelo impasse
travado entre o que se constitui como indecifrável na relação entre o falo e o nome,
sendo seu enigma recolocado para o homem na medida em que se depara com a
mulher amada, conferindo ao amor, desde então, a qualidade de representante da Lei,
e, possibilitando, por meio desse relançamento do desejo, que o homem possa voltar-
se para a mulher de modo a localizar algo diferente da face cruel da morte.
Entretanto, conforme veremos a seguir, no esquema proposto por Pommier, o
Nome-do-Pai não figura apenas do lado feminino do quadro (p. 57), mas comparece
em ambas as posições, desempenhando para a mulher a função de regular o desejo e
para o homem de assegurar a existência.
Ocorre assim uma espécie de troca de nomes o que, em si, representa o que se
pode chamar de equivocação do amor.
Mulher
Homem
Ndp
Amor louco
sublimação ϕ
φ
“d”
Ndp
Neste circuito, para que a mulher possa constar como Nome-do-Pai para um
homem, deve se deixar desejar por ele, o qual, por sua vez, só terá seu desejo
regulado à medida que receber da amada um outro nome capaz de se unir ao símbolo
fálico.
101
Porém, nem sempre as coisas se dão de maneira tão harmoniosa, podendo
haver casos aonde o Nome-do-Pai venha a faltar de um dos lados do quadro, fazendo
com que o parceiro correspondente deixe de cumprir seu papel de reconhecer e,
conseqüentemente, de nomear o outro na relação, o que introduz não mais algo da
ordem da equivocação, mas da dissimetria entre os nomes, tal como poderemos
acompanhar no caso Camille Claudel.
É este ponto de “forclusão”, decorrente da falta de um amor capaz de
outorgar ao outro seu reconhecimento, por meio de um ordenamento das funções
paternas, que pode se tornar responsável pelo desencadeamento de um tipo de
loucura, que embora guarde semelhanças no que tange à fenomenologia da crise
psicótica, ao mesmo tempo, dela se distingue no que diz respeito à questão estrutural.
Mais uma vez o pai vem assumir na constituição do sujeito feminino um
papel fundamental investindo-se primeira e inevitavelmente do poder fálico, que o
designa como articulador do trauma sexual, para posteriormente figurar como pai do
nome, capaz de simbolizar o trauma sofrido anteriormente, ainda que para a mulher
não seja possível recorrer ao nome sem que se incorra num questionamento de sua
feminilidade.
Além disso, percebemos no quadro de Pommier (1992) a menção a um outro
tema associado ao amor, mas ainda não discutido por nós: a sublimação, diante do
que é importante abrir um parêntese a fim de verificar de que maneira o tema é
abordado na teoria freudiana para, na seqüência, relacioná-lo à escrita e ao modo
como a mulher é tomada pelo parceiro na relação amorosa.
Como sabemos, um dos primeiros textos onde Freud (1910) trabalharia a
questão seria em “Leonardo da Vinci, uma lembrança de infância”, remetendo-nos a
uma etapa remota da constituição do sujeito, na qual se localizaria uma relação
102
privilegiada da criança com a figura materna, além de uma atenção maior voltada às
investigações sexuais infantis, como principais fatores envolvidos no
desenvolvimento artístico e cognitivo futuro.
Contudo, o fato de essas primeiras experiências se constituírem no substrato
de todo desenvolvimento intelectual articulado nos anos seguintes à conflitiva
edipiana, estendendo seus efeitos por toda a vida do sujeito, não significaria que se
obtivesse acesso direto a seus conteúdos, sendo este caráter específico que Freud
designou como sublimação, ou seja: “a substituição do objetivo imediato da pulsão
por outros desprovidos de caráter sexual que pudessem ser mais altamente
valorizados” (p. 72).
Assim, uma vez que o conteúdo sexual recalcado remetesse o sujeito a um
período no qual ainda não lhe era vedado o acesso ao primeiro objeto de amor, far-
se-ia necessário que, por meio da lei de castração, o pai interviesse nessa relação a
fim de interditá-la, o que, por sua vez, agregaria à busca por esse saber proibido um
caráter de horror e de conotação incestuosa, levando o sujeito a produzir um desejo
de nada saber e a voltar-se para objetos que se encontrassem desvinculados deste
teor, sendo este processo o que lhe possibilitaria ingressar pelos caminhos do
conhecimento através de investigações socialmente aceitas.
Entretanto, se por um lado podemos localizar um componente interditor
inerente à sublimação, capaz de barrar o acesso ao gozo do Outro, por outro há
também um movimento transgressivo estrutural a ela relacionado, que se desenvolve
no sentido de subverter parte da interdição paterna, a fim de garantir a entrada do
sujeito no campo dos saberes, resultando numa disjunção entre o que é da ordem do
gozo e o que diz respeito ao saber, como característica própria ao ato de sublimar.
103
Trouchet (1983) aborda essa questão pela via de forças contrárias em
constante tensão, considerando a sublimação como o resultado de um bem sucedido
entrelaçamento entre pulsão de vida e pulsão de morte.
Neste sentido, Trouchet descreve o caminho percorrido pelo sujeito no
processo criativo como uma travessia perigosa, na qual se faz necessário superar-se a
cada momento, assim “o sujeito não somente se apercebe de que não pode dizer tudo
e se choca então com seus próprios limites, mas também é levado a ultrapassar em
palavras o que não pode ser dito alhures e o que ele não pode jamais formular, nem
mesmo a si próprio” (p. 110).
Conjuga-se, desta maneira, aquilo que se conforma aos limites impostos pela
lei e, ao mesmo tempo, aquilo que necessariamente lhe escapa como forma de
“escrever o que não cessa de não se inscrever”, seja por meio do saber artístico,
científico ou religioso.
A importância da rede discursiva que marca o sujeito como ser de linguagem,
e, mais especificamente, a questão da escrita, é assim mais uma vez evocada por
Trouchet (1983) ao dizer que, nesse processo de articulação/mediação entre castração
e transgressão, o sujeito:
É obrigado a se retirar de uma linguagem cultural, racional e confortável para
desvelar sua linguagem singular, desarrazoada e inquietante que lhe permite
inventar-se, ou seja, criar seu próprio saber sobre si mesmo, cada limite sendo
ultrapassado e fazendo surgir um outro que será necessário novamente transpor para
tentar aproximar-se da verdade (p. 112).
Mas, se o que vimos, a partir dessa breve exposição, foi uma articulação
direta entre sublimação e o desenvolvimento cognitivo do sujeito – no qual se inclui
104
o direcionamento artístico de um modo geral –, como podemos pensar a inserção do
amor e, mais especificamente, da mulher, neste processo?
É simples, basta recorrermos aos estudos desenvolvidos por Kupfer (1990)
que circunscreve como resultante do processo sublimatório o que, em termos
freudianos, denominou-se desejo de saber, cuja origem estaria na relação primordial
com o Outro, ao qual o sujeito se dirigiria supondo nele “encontrar a chave que abre
as portas do desejo e do saber inconscientes do próprio sujeito” (p. 112) e, desta
forma, constituindo-se naquilo que norteia não só a busca de conhecimento, como
também de um analista, professor ou mesmo de um amante.
Neste sentido, o amor sofreria os mesmos efeitos das leis que regem a
sublimação, fato que ficará ainda mais claro quando estudarmos sua relação com a
escrita.
Além disso, no que se refere à mulher, Pommier (1992) afirma que a partir do
momento em que ela é colocada no lugar da falta, encarnando o símbolo fálico para o
parceiro, ela passaria a assumir o mesmo estatuto do objeto da sublimação,
encontrando-se envolta ainda numa espécie de grandeza que a equipararia a uma
obra de arte, ou mesmo a Deus, sendo desta forma capaz de representar o
irrepresentável para o homem.
Deste modo, a mulher seria criada por esse homem na relação amorosa, como
uma abstração artística, o que mais uma vez concerniria ao amor uma característica
sublimatória, a qual, mesmo circunscrita a um outro campo que não o do
conhecimento, manteria ainda seu aspecto transgressivo, desta vez, no sentido mais
específico da relação do sujeito com o nome.
Assim, seja do lado masculino, pela adoção de um pseudômino por parte do
artista que assina a obra, seja do lado feminino ao receber um nome do marido, o que
105
se dá é o abandono de um nome de filiação, que é definido por Pommier como um
ato de traição, na medida em que o artista, ao criar, inventa para si um nome que
suplanta o nome do pai.
É neste sentido que Pommier afirma que “o amor conhece um destino que, tal
como a pulsão na sublimação, pode se assinar” (p. 51), revelando-se numa forma de
responder ao vazio estrutural que funda o sujeito, na medida em que localiza no amor
do outro um olhar que seja capaz de fazer contorno a esta falta estrutural, guardando,
desta maneira, estreita relação com a obra, uma vez que tanto um quanto o outro
comportará a função de representar o irrepresentável, ao mesmo tempo em que
poderá marcar com um nome próprio aquele que venha a experimentá-los, processo
este que o autor resume no quadro seguinte.
Mulher
Homem
Identidade com o símbolo
ϕ
φ
obra criadora
Esteamento do Nome
“d”
– Nome do Pai
– Pseudômino
– Nome traído
Criador criado
106
O esquema ilustra as coordenadas envolvidas no encontro amoroso, a partir
do qual podemos localizar em “d”, no lado masculino, a simbolização do desejo de
um homem por uma mulher, que por sua vez, no lado feminino, encontra-se
identificada ao falo imaginário (ϕ), mantendo relação ainda com o falo simbólico
como representante da castração.
No sentido inverso, o homem surge como aquele que pode assinar aquilo que
o desejo criou, isto é, a mulher elevada agora à categoria de obra criadora, na medida
em que ao ser nomeada também permite ao parceiro ter seu próprio nome firmado.
A partir desta assinatura somos remetidos à questão do nome, duplamente
articulada ao amor: primeiro, por essa via apresentada por Pommier (1992), ao
considerá-lo como aquilo que se recebe no processo de identificação, na ocasião das
relações edípicas primordiais, que se refletirá posteriormente no posicionamento e
nas escolhas amorosas do sujeito; e, segundo, por meio dos estudos lacanianos –
sobretudo no que tange aos seus últimos escritos e seminários –, ao trazer à tona as
formulações acerca do nome-próprio, designando um tipo de escrita instaurada a
partir do uso lógico do sintoma que conferirá ao amor um caráter de suplência, uma
vez que se coloque como instrumento para que o sujeito possa escrever o impossível
do sexo.
Deste modo, ao adotarmos a primeira vertente, veremos que o nome –
principalmente no que diz respeito ao estatuto adquirido ao servir como objeto de
troca entre os parceiros – estará associado a duas dívidas anteriores, herdadas no
processo de constituição do sujeito: uma advinda da relação com o Outro materno, e
outra decorrente do assassinato do pai.
Trata-se no primeiro caso de uma dívida pela existência, impagável à medida
que requer o falo como tributo para a quitá-la, e, no segundo caso, pela simbolização
107
do falo, cujo pagamento se faria pela fundação de uma obra ou de uma ação, que
reassegurasse o nome do pai, conferindo ao sujeito o direito de usufruto do mesmo.
O nome se coloca, então, no sentido de tentar resgatar de algum modo essas
dívidas, sendo capaz, no que diz respeito ao homem, de apaziguar sua angústia por
meio da obra ou ação, mencionadas anteriormente.
Já no que se relaciona à mulher, o mesmo instrumento desperta um efeito
contrário, na medida em que, ao se revestir de uma característica masculina, a
possibilidade de vir a assinar suas realizações aumentaria ainda mais a angústia
feminina.
Neste sentido, segundo Pommier (1992), “de um lado, o amor ao pai gera a
feminilização e a inveja do pênis [o que gera a angústia], e de outro, a erotização do
pênis deixa de ser um fenômeno externo e angustiante, a partir do momento em que é
ligada ao ato e a sua assinatura” [o que a apazigua] (p. 82).
Além disso, o acirramento da angústia feminina poderia se dar ainda devido
ao fato de ver emergir uma sensação de plenitude a partir do momento em que, no
relacionamento com o parceiro, a mulher é posta no lugar daquilo que lhe falta,
sendo remetida a uma vivência pré-edípica com o Outro materno que lhe despertaria
fantasias incestuosas.
Para Pommier é pautado nesses dois fatores – tentativa de resolver a relação
com a mãe e ao mesmo tempo de suprir a falta no Outro – que se dá o
empreendimento de muitas mulheres no processo de sedução de um homem e cujo
objetivo, quando alcançado incorre no abandono imediato do objeto conquistado, isto
porque, “o desejo dos homens é tão necessário quanto insuportável: é necessário do
ponto de vista do gozo devido à mãe, e é insuportável porque encarnar a falta é uma
identificação intolerável” (p. 49).
108
Em suma, embora neste processo a “assinatura” não desempenhe o mesmo
papel para cada um dos parceiros e a dívida com a mãe não possa ser paga, pode-se
entrever, no caso da mulher, uma outra saída para o impasse, através da adoção do
nome de um homem, em substituição ao patronímico.
Deste modo, o nome passará a ter para a mulher um valor de troca, enquanto
para o homem seu valor será de uso.
A partir da prevalência dessa relação do amor com algo que se destacaria
como uma espécie de escrita, somos levados a discutir a segunda vertente levantada
anteriormente, relacionando o tema ao conceito de sinthome, abarcando questões
relativas à função da letra e do nome próprio, naquilo que este se destina a preencher
a falta do um para designar o sujeito.
Por esta via, o que se coloca em primeiro plano é a dimensão real da qual se
revestirá o amor, a partir da reformulação da temática do Nome-do-Pai na teoria
lacaniana.
Assim, ao tomarmos parte desta relação com a escrita, somos remetidos por
Bernardino (2000) ao texto “Lituraterre”, no qual Lacan (1970) discute a função da
letra concernida a possibilidade de fazer “litoral” entre o gozo e o saber,
“implicando ao mesmo tempo o apagamento e a entrada no real da linguagem e o que
fica como resto, testemunha de um gozo incomunicável” (p. 71), característica esta
que o leva a circunscrevê-la como objeto a.
Neste sentido, a letra estaria referida ao real, sendo, portanto, distinta do traço
unário que, por sua vez, encontrar-se-ia em consonância com o simbólico.
Nas palavras de Lacan (1970), “é a letra e não o signo que aqui dá apoio ao
significante (...). Em outros termos, o sujeito é dividido pela linguagem, mas um de
109
seus registros pode se satisfazer pela referência à escrita e o outro pelo exercício da
palavra” (p. 24).
Alguns anos mais tarde, no seminário Le Sinthome, Lacan (1975-76) retorna
ao assunto, destacando uma relação particular entre o que seria constitutivo do
campo dos saberes e o que seria proveniente desse real representado pela letra, algo
que ele descreve dizendo que “uma escritura é um fazer que dá suporte ao
pensamento” (p. 162), sendo ao mesmo tempo responsável por aquilo que no
simbólico faz furo, e que desempenha o papel de suplência.
É a questão específica da suplência que nos interessa extrair do texto
lacaniano a fim de atribuir ao amor o caráter de sinthome, uma vez que, de acordo
com Miller (2004), poderíamos demarcá-lo como responsável por dar suporte àquilo
que se colocaria como “uma insuficiência do corpo próprio”, atuando de modo a dar
sentido ao que o autor nomeou de um “gozo parasitário” (p. 7).
Trata-se de um gozo que viria suprir a insuficiência do gozo do corpo do
Outro em sustentar o nó, e não se localizaria nem no imaginário – no que concerne
ao corpo enquanto forma, consistência –, nem no simbólico – no que este comporta
de furo –, mas antes, num além, como algo que ex-sistiria a eles, enlaçando-os, e
emprestando ao amor o estatuto de real.
Ademais, este gozo estaria envolvido na construção de um nome próprio.
Na construção desse nome próprio, principal elemento constitutivo do uso
lógico do sintoma, mais uma vez nos deparamos com algo da ordem da superação do
pai, superação esta que é descrita por Miller (2004) como “demissão do pai” e
demarcada como o veículo que permite ao significante se colocar como causa de
gozo.
110
A partir da prevalência do real sobre o simbólico, que se instaura neste
momento da obra lacaniana, somos levados a considerar em primeiro plano a
dimensão do signo que virá se sobrepor ao significante, outorgando ao sentido um
lugar secundário, sobretudo no amor.
Assim, a referência ao corpo do Outro se torna central neste momento, sendo
introduzida por Lacan (1972-73) no seminário “Mais, ainda”, no qual a partir da
idéia de amuro e de carta de almor, buscaria resgatar a dimensão do nada, envolvida
na relação com o Outro, que se faria por meio de um endereçamento no qual o sujeito
se colocaria de corpo e alma nesta entrega.
Neste sentido, a noção de mulher como sintoma é retomada por Soller (2005)
a fim de redefinir sua relação com o objeto a – com o qual é tomada como
equivalente em RSI – e, conseqüentemente, com o gozo do corpo-a-corpo, que nos
remete ao relacionamento com o parceiro.
Desta articulação, Soller (2005) conclui que:
Quando se trata de uma mulher, segue-se que ela empresta seu corpo para que,
gozando com ela, o homem de fato goze com seu próprio inconsciente, e que,
inversamente, é por esse gozar com o inconsciente que ele tem acesso ao gozo do
corpo, que não é o gozo do Outro, mas gozo fálico (p. 182).
Poderíamos concluir a discussão dizendo que é este mesmo papel
desempenhado pela mulher que lhe confere no quadro da sexuação o papel de objeto
a, considerada pelo homem, como uma forma de preencher o que lhe falta, ao mesmo
tempo em que, para além do falo, pode ser tomada como causa do desejo, algo que
Lacan (1972-73) resume ao afirmar que “não há relação sexual porque o gozo do
111
Outro, tomado como corpo, é sempre inadequado – perverso de um lado, no que o
Outro se reduz ao objeto a – e de outro, eu direi louco, enigmático”.
Lacan (1965) faz menção ainda ao um como aquilo que falta ao sujeito para
designá-lo, colocando que em substituição a esse um, de um lado, coloca-se o objeto
a, e de outro o nome próprio, dos quais podemos destacar a função do amor e da arte
como agentes auxiliadores no processo de escrita do real que cerca a feminilidade,
articulando algo que se insere como não saber, do lado inconsciente, e que, por sua
vez, põe a andar um saber constituído que opera a partir da sublimação.
A seguir dedicaremos uma atenção especial à análise do caso Camille Claudel
e à leitura de Alice no País das Maravilhas, visando penetrar, respectivamente, no
universo feminino da artista – musa de Rodin –, e da protagonista do conto –
inspiração de Lewis Carroll –, a fim de demarcar os alcances e limites da arte e da
literatura, neste contexto.
112
5. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE CAMILLE CLAUDEL
“Trabalhamos no escuro, fazemos
o que podemos, damos o que não possuímos.
Nossa paixão é nossa dívida. Nossa paixão é nossa tarefa.
O resto é a loucura da arte!”.
P. Roth
A trajetória de Camille Claudel foi marcada por paixões e conflitos os quais
ela buscou representar em suas obras, sobretudo depois de seu envolvimento com
Auguste Rodin.
Desta forma, a fim de compreendermos o que se coloca em sua vida quase
como uma sina, ao retratar uma história que já contém seu fim trágico anunciado
desde o princípio, eis que se faz necessário enveredarmos por aquilo que se
constituiu seu núcleo familiar, seus anseios artísticos, percorrendo o caminho de sua
ascensão ao sucesso, sua obsessão por Rodin, sua separação, até o ápice de sua
derradeira loucura.
Para isto, recorreremos de modo genérico ao levantamento biográfico feito
por autoras como Paris (1988), Leonard (1993), Wahba (1997) e Guatimosim (1998),
113
que apesar de nem sempre coincidirem entre si, principalmente no que diz respeito a
datas, serão úteis para conhecermos melhor a vida de Camille.
Além desse material, recorreremos à análise realizada por Jerusalinsky
(1993), a trechos do filme de Bruno Nuytten acerca da artista e sua obra e a algumas
leituras psicanalíticas que nos darão suporte para considerarmos o caso dentro dos
parâmetros da neurose obsessiva, bem como para compreender o que se poderia
denominar como “loucura”, neste contexto.
Comecemos, então, situando algo que pode ter figurado como fator decisivo
para o desenlace dramático da existência da artista, a saber, a incumbência de ocupar
o lugar de um morto: o irmão falecido ainda criança.
Neste sentido, futuramente, ao analisarmos os últimos relatos da vida de
Camille, teremos a oportunidade de verificar o quanto sua obra portava uma
conflitiva psíquica, ora marcada como uma tentativa de se fazer reconhecer como
sujeito, ora como testemunho de seu fracasso nesta tarefa, já que embora esculpisse o
sofrimento mais humano, sua arte a distanciava cada vez mais dessa condição,
aproximando-a das personagens retratadas e aprisionando-a petrificada ao bronze e
ao mármore no qual trabalhava, o que viria a denunciar, para além da relação
amorosa com Rodin, esse aspecto mórbido de sua existência.
No momento, voltemos nosso olhar para o início de uma história que começa
em 8 de dezembro de 1864, quando nasce Camille, numa pequena cidade do distrito
francês de Champagne.
A menina será a mais velha dos três filhos da família e viverá uma infância e
adolescência conturbadas ao lado dos pais e dos irmãos, Paul e Louise.
A presença de um ambiente familiar conflituoso, regado a constantes brigas e
desentendimentos, devia-se principalmente à disparidade de opiniões entre seus pais,
114
sobretudo no que dizia respeito ao desenvolvimento de seu talento artístico o que, no
entanto, não a impedia de prosseguir em sua ânsia de reconhecimento.
Neste aspecto, o pai de Camille é descrito como aquele que mais a
incentivava em sua carreira, sendo também o que mais lhe cobrava resultados,
incumbindo-lhe de fazer de “Claudel” um nome de exceção, como acompanharemos
em detalhes ao proceder a análise psicanalítica.
Pai totalmente dedicado à formação dos filhos, não media esforços para
proporcionar-lhes uma educação de primeira classe em Paris, ainda que isto lhe
custasse trabalho árduo ou mesmo a separação provisória de parte da família.
Todavia, tamanho engajamento não lhe privou de ser considerado pelas
diversas biografias da artista como um pai distante, autoritário e de temperamento
difícil.
A mãe de Camille, por sua vez, é caracterizada da mesma forma: uma mulher
fria e muito rígida – uma “burguesa”, no sentido pejorativo da palavra –, presa a
convenções do dever e a aparências.
Entretanto, ao contrário do pai, mostrava-se completamente avessa à
criatividade da filha, manifestando-se sempre no sentido de repudiar sua arte, o que
na verdade representava o próprio ódio que nutria em relação a Camille.
Entre os Claudel, fora o apoio incondicional que recebia da figura paterna –
pelo menos no que se relacionava ao seu talento –, Camille só podia contar com a
amizade de Paul, seu irmão mais novo que, no futuro, viria a se tornar um grande
escritor francês, e com o qual vivia um relacionamento privilegiado.
Nos relatos acerca da convivência entre os dois, existe sempre uma aura de
mistério e transgressão no ar, podendo-se citar como exemplo registros de passeios
por caminhos exóticos; menção a trocas de confidências calorosas entre ambos; além
115
de boatos de que eles mantivessem relações incestuosas, embora nada de concreto se
possa afirmar.
Camille tinha ainda uma irmã – herdeira do mesmo nome materno e a única a
fracassar em suas habilidades voltadas para a música –, mantinha uma relação
complicada com a artista, principalmente em decorrência da aliança que estabelecera
com a mãe, o que futuramente, culminaria na condensação de mãe e irmã,
representadas num único significante – Louise – como principal fantasma
persecutório incluído nos delírios de Camille, além de Rodin.
Enfim, após uma breve introdução em sua história familiar, enveredemos pelo
caminho que contempla o início de sua obra até alcançarmos o auge de sua
destruição.
5.1. A artista e sua obra: do amor e da ascensão...
De acordo com a história representada no filme que versa sobre a trajetória
artística de Camille, sua obra teria se iniciado a partir do trabalho com barro que, no
princípio, era retirado do próprio quintal de sua casa e cujos modelos ela tomava em
seu próprio lar, exigindo que seus parentes pousassem para que ela os esculpisse.
Foi aos quinze anos, depois de ter criado três peças de destaque, que seu
talento criativo foi reconhecido por Alfred Boucher – seu preceptor na arte florentina
–, o qual acabou por influenciá-la posteriormente em sua carreira, sendo quem no
futuro levaria Camille a trabalhar com Rodin.
Na época, embora já contasse com 40 anos de idade, Rodin ainda não era
famoso. Tomou Camille, primeiramente, na qualidade de aluna, considerada por
muitos como a melhor, o que logo a fez passar à categoria de colaboradora, tendo-o
116
ajudado a esculpir, entre outros, um de seus maiores trabalhos, intitulado “Porta do
Inferno”.
Tempos depois, Camille figuraria como musa inspiradora de muitos dos
trabalhos que seguiram a este, podendo-se destacar principalmente aqueles que
guardavam um traço lírico.
Assim, à medida que Camille ia contribuindo com a obra de seu mentor,
também ia aperfeiçoando seu talento nato, até que por volta do ano de 1883, tem
início o romance ardente, entre mestre e aprendiz, uma relação que duraria cerca de
15 anos, sendo considerada talvez erroneamente, por muitos, como a única
responsável pelo desencadeamento da “loucura” da artista.
Ao se tornarem amantes, Rodin instala Camille num estúdio situado num
antigo edifício clássico quase em ruínas, no meio de um jardim selvagem, criando
um espaço romântico para seus encontros amorosos, que revelaria um
relacionamento aparentemente estável, apesar de Rodin permanecer fiel à antiga
companheira, Rouse Bauret, mostrando-se incapaz de deixá-la para assumir Camille
mesmo após o aborto sofrido no decorrer do romance entre os dois.
Diante dessa vida ilícita, condenada para os padrões da época, Camille se via
constantemente criticada, tanto pela mãe como pela irmã, que a tratavam como uma
prostituta, situação que se agravava ainda mais devido ao fato de Camille depender
financeiramente da família, reservando a esta o direito de intervir mais fortemente
em sua vida particular.
No que tange à produção artística, veremos que grande parte de seu trabalho
se encontra em consonância com os conflitos vividos em sua vida pessoal, podendo
ser destacada entre os ícones de seu acervo, “Sakountalla”, obra de 1988 que dará
117
origem a outras versões
17
, que recebem nomes diferentes, dentre as quais situa-se “O
Abandono”.
Trata-se de um momento no qual embora a artista se encontre no auge de seu
romance com Rodin, já é possível constatar os primórdios do que se tornaria uma
constante em sua arte, ou seja, a oscilação entre movimentos de ascensão e, ao
mesmo tempo, o prenúncio do factível momento da queda, trabalhando sempre no
limite entre o que seria da ordem do desejo e do gozo trágico.
Por volta de 1892/1893, um fato novo se dá: Camille decide abandonar o
estúdio alugado por Rodin, passando a viver e a trabalhar sozinha no Bulevar
d’Italie, dando início a uma separação que ainda não significava um rompimento
com o amante – com o qual mantinha aceso os encontros e a troca de
correspondências –, mas antes com o mestre, numa tentativa de se fazer reconhecer
por seu nome próprio, por sua própria arte.
O verdadeiro fim começaria a se anunciar somente a partir de 1894, ano em
que se registra a última das cartas endereçada ao amado, parabenizando-o pelo
sucesso com “Balzac”, ocasião em que correm as notícias de que algo não vai bem,
na relação entre os dois, marcando a entrada no caminho que levaria à decadência da
mulher e da artista.
5.2. ... Ao declínio!
O reflexo de um possível abalo na convivência com Rodin se faz perceber
mais uma vez na produção de Camille, agora através de “O Deus que voou”
18
,
escultura que data de 1894, abrindo a série das suplicantes.
17
“Vertumno e Pomona” é uma dessas versões.
18
Também conhecida como “Hamadriade” e “Jovem com Nenúfares”.
118
Nesta versão, que seria exposta posteriormente com o nome de “Ofélia”,
encontramos Psiquê de joelhos ante o abandono do homem amado, segurando entre
as mãos apenas o vazio, o que inaugura um ciclo onde a ausência se torna tema
marcante na obra da artista.
Cerca de um ano depois, eis que é criada “A Valsa”: considerada por muitos
como sua obra mais primorosa, retrata a figura de uma mulher totalmente entregue à
condução de seu parceiro, num passo de dança que lhe permite sustentar-se apenas
sobre seus braços, induzindo um movimento onde ambos se misturariam num
rodopio que os uniria em um só corpo.
Já em 1898, quando a relação com Rodin já se encontra estremecida,
deparamo-nos com “A Idade Madura”
19
, descrita por autores como Julien (2002)
como o marco de uma tentativa desesperada de Camille em expor publicamente sua
relação com Rodin – até então escondida por ele a sete chaves – e, assim, ver-se
assumida como mulher.
No entanto, Camille não encontra êxito em seus propósitos, uma vez que
Rodin intervem junto ao diretor da Escola de Belas Artes, solicitando o cancelamento
da encomenda da obra que seria levada a público e cuja temática era a mais perfeita
réplica da relação claudicante entre os dois.
Como resultado dessa intervenção, eis que ocorre a separação definitiva entre
Camille e Rodin e o desencadeamento da crise persecutória da artista.
Deste modo, “A Idade Madura” é talvez aquela que, dentre todas as suas
obras, represente melhor essa trajetória de sofrimento, vazio e renúncia que se marca
frente à impossibilidade de viver um verdadeiro amor que a reconhecesse e a tomasse
como mulher, antes de tudo, oferecendo-se como alternativa, quem sabe, para um
19
Também conhecida como “Os caminhos da vida”, intitulava-se originalmente como “A Falta”.
119
outro impossível que se inscrevera anteriormente por meio da dívida assumida com o
pai, de constitui-lo num nome de exceção – discussão que aprofundaremos a seguir
em nossa análise do caso.
Por ora, resta-nos apenas acompanhar os três tempos nos quais se divide esta
obra, na qual a própria inclinação com que os corpos se apresentam, denotando uma
queda iminente, já anuncia o fim trágico.
Deste modo, o que se vê representar numa primeira versão é a figura de uma
jovem ainda ligada pelas mãos ao amante, a qual, num momento seguinte, isto é,
numa segunda variação, surgirá de joelhos, caída, implorando por amor, diante do
homem que lhe é arrebatado por uma mulher mais velha, numa nítida menção à
figura da Outra que se interpõe à plena realização do seu desejo, seja representando a
mãe castradora que lhe dificulta a relação com o pai, seja representando a própria
Rouse Bauret que faz obstáculo ao seu romance com Rodin.
O último trabalho que compõe a tríade, concluída em 1899, retrata o
momento em que a jovem suplicante – termo que viria a dar nome a obra final –
encontra-se excluída, sozinha, entregue ao abandono e ao triste desfecho longe
daquele que ama.
Em 1900, comparecendo como uma espécie de versão atualizada de “A
Valsa”, eis que nos defrontamos ainda com “A Fortuna”, na qual a moça que
outrora dançava lépida nos braços do companheiro, agora aparece vagando, cega pela
venda que tapa os olhos, lançando-a numa dança solitária e deixando-lhe no lugar
das mãos esvaziadas pelo abandono do amado, apenas um saco de moedas – irônica
simbologia do retorno financeiro que Camille se recusaria a obter com a
comercialização de suas obras, após o rompimento com Rodin.
120
No mesmo ano, numa representação ainda mais drástica e reveladora da
fragilidade com que se depara a dançarina da obra original, Camille produz “A
Verdade”, obra na qual, não só a personagem, mas principalmente a artista nela
retratada, parece não dispor mais de recursos para manter-se psiquicamente frente ao
fracasso e ao vazio em que se transformara sua existência, o que se observa na figura
da dançarina cuja cabeça se sustenta apenas sobre o toco de um ombro, único suporte
que lhe restou depois de ter os braços decepados.
Neste momento, é possível apreender a dimensão do que significou para
Camille o não reconhecimento de Rodin, fosse em relação ao seu papel como artista,
fosse como mulher, deixando-lhe entregue a uma vivência de despedaçamento e a
uma sensação de lhe terem sido roubados todos os instrumentos capazes de lhe
restituir o potencial criativo, tal como aparece em seus delírios, como se
verdadeiramente seus braços tivessem sido cortados.
Como sabemos, depois dessa obra Camille teria caminhado cada vez mais
rápido rumo ao isolamento, período que se inicia a partir de 1906, quando ano a ano
destruiria praticamente todo seu acervo, até 1913 ao ser internada.
Nesse intervalo, temos o registro de uma de suas últimas obras: datada de
1906, “Níobe Ferida”, revela a figura de uma jovem, mortalmente atingida, que
surge apoiada apenas sobre um tronco de videira, cuja haste se bifurca, constituindo-
se para ela numa espécie de muleta – o que poderia ser lido como a expressão do
sofrimento e do desamparado sentido por Camille.
Porém, antes mesmo de se ver entregue ao desespero e admitir o fracasso na
relação com o homem que amava e no compromisso assumido com o pai, Camille já
vinha abandonando gradativamente o tema das suplicantes, contemplando obras mais
decorativas – mas não menos significativas –, como “Pensamento Profundo”,
121
“Intimidade e Sonho ao canto da lareira” e “Mulher sentada diante da lareira”
20
,
estas últimas pautadas sobre o mesmo assunto, nas quais o espectador se encontra
excluído frente à figura da mulher voltada para si diante do fogo, como um sinal do
que se constituiria em seu isolamento futuro.
Com o término do romance com Rodin, apesar de Camille ter apenas cerca de
trinta anos de idade, eis que sua vida amorosa é dada por encerrada, numa época em
que ela se nega inclusive a responder à paixão fomentada pelo famoso compositor
Claude Debussy.
Camille passa a descrever os anos passados de sua juventude como analogias
dos épicos de Ilíada e Odisséia, chegando a explicitar numa carta endereçada ao
negociante de arte Eugene Blot, o desamparo e a estranheza por ela vivenciados nos
últimos tempos, ao dizer que, diante de sua história:
Seria necessário um Homero para contá-la. Eu não vou tentar fazê-lo hoje e não
quero entristecer você. Eu caí num vazio. Eu vivo num mundo que é tão curioso e
estranho. Este é o pesadelo dentro do sonho que era a minha vida (p. 174)
21
.
Neste momento, Camille já estava vivendo quase na pobreza, envolta em
dívidas com os credores, recebendo dinheiro do pai e do irmão sem que a mãe e a
irmã soubessem, única forma que encontrava para sobreviver já que se recusava a
comercializar sua arte, tal como considerava que o Rodin o fazia.
Com as dificuldades financeiras cada vez maiores, Camille se muda para
aquele que seria seu refúgio até 1913, um apartamento pequeno e sombrio na Ilha de
São Luiz.
20
Obras que datariam de 1898.
21
In. Leonard, L. S. E a louca tinha razão. Op. cit.
122
Nesta época começa a destilar cada vez mais o ódio por Rodin, considerando-
o, além de arrogante diante da fama e do sucesso, como o principal articulador
daquilo que considerava como uma conspiração contra ela.
Neste sentido, acreditava que Rodin roubava suas idéias, contratava pessoas
para estragar sua arte, e influenciava negativamente aqueles que trabalhavam com
ela, além de instigar sua família a persegui-la e a cortar o envio de dinheiro para suas
despesas, através de um complô articulado pelo que denominava de “banda Rodin”.
A fenomenologia de seus delírios pioraria, segundo Paris (1988), por volta de
1905, logo depois de Camille acusar Rodin de enviar pessoas para que a sedassem ou
tentassem matá-la a fim de roubar suas obras, o que justificaria sua recusa futura em
comer determinados alimentos com medo de ser envenenada.
Por fim, em 1913, a morte do pai de Camille vem selar definitivamente seu
destino, já que alguns dias depois do funeral – do qual sequer fora avisada – Camille
é internada à força num hospício, por decisão conjunta entre o irmão e sua mãe, o
que, no entanto, não a impediu de continuar a se sentir perseguida por Rodin,
acreditando ser ele o principal responsável por seu confinamento que perdurou pelos
trinta anos de vida que lhe restaram antes de morrer, e nos quais jamais voltou a
esculpir.
Na verdade, é como se Camille esperasse por seu fim, como alguém que se dá
em vida à morte, apenas enquanto aguarda o desfecho inevitável.
Talvez parte de seu desgosto e revolta se devesse ao fato de ser considerada
pela grande massa dos críticos de arte da época apenas como mais uma aluna de
Rodin, sendo desta forma desconsiderado seu talento e prestígio o que, em última
instância, significava também ter fracassado perante o pai.
123
Além disso, há que se levar em conta ainda o fato de Camille não ter
conseguido se fazer ver de outro modo que não aquele idealizado, fosse no sonho do
Sr. Claudel de ter o nome reconhecido a partir do triunfo da filha, fosse na frieza do
mármore e do bronze, nos quais Rodin a esculpia, fosse como uma personagem das
tragédias literárias do irmão ou na ênfase que seus amigos e admiradores conferiam a
sua produção artística, em detrimento de sua própria subjetividade.
Deste modo, tal como descreve Guatimosim (1998), em todos os casos
citados, vemo-nos diante de um amor estético, incapaz de conduzir a falta em outra
direção, “onde a separação pudesse ter o seu luto e que pudesse fazer a falta desejar,
na transferência da falta de amor para um amor em falta” (p. 40).
Ou seja, que diante da perda, do vazio constituído a partir não só da
problemática psico-familiar na qual Camille se estruturara, mas também inerente à
própria condição de sujeito feminino – para quem o real se apresenta de modo
particular –, pudesse se instaurar algo capaz de fazer contorno junto ao inominável
da ex-sistência e da feminilidade, favorecendo que no lugar do gozo mortífero que
conduz à morte e ao confinamento, emergisse o desejo, possibilitando usufruir a arte
como meio de escrita, de amarração, fazendo valer a expressão “savoir y faire”,
utilizada por Lacan
22
como uma forma de “saber se virar” com o sintoma, algo que
infelizmente não operou no caso de Camille.
Assim, passemos a discutir algumas questões específicas do que poderíamos
situar como parte da dinâmica psíquica desenvolvida pela artista.
22
Expressão que surge primeiramente em 1975, no seminário “Le Sinthome” e é retomada em 1976-
77 no seminário “L’insu que sait de L’une bévue S’aile à mourre”.
124
5.3. A “loucura” na neurose obsessiva: uma leitura possível a partir da clínica
lacaniana
A vantagem de nos encontrarmos referidos a uma prática que preconiza as
relações existentes entre a constituição do sintoma clínico e a linguagem, ressaltando,
portanto, os aspectos estruturais subjacentes à própria constituição do sujeito, é que
isto nos permite ver mais além da mera fenomenologia, desenvolvida em momentos
de crise, e apreender o que realmente interessa, a saber, como se dá a relação do
sujeito com o Outro e com a falta, trazendo à tona ainda questões relativas a seu
posicionamento frente ao desejo, ao gozo e ao saber, entre outros aspectos de suma
importância para o estabelecimento de um diagnóstico diferencial.
É neste sentido que nos permitimos tecer algumas considerações
psicanalíticas acerca de Camille Claudel, seguindo o sentido contrário aquele
adotado pela maioria dos que se propõem a discutir sua história, descrevendo-a quase
sem exceções, como psicótica.
Desta forma, ancorados na discussão especifica articulada por Jerusalinsky
(1993) sobre o caso Claudel, nos estudos desenvolvidos por Lacan (1957-58) em “As
formações do inconsciente” e nos textos de autores como Ribeiro (2001) e Pommier
(1992), entre outros, sustentaremos uma leitura pela via da neurose obsessiva.
Assim, nosso foco se voltará primeiramente para a vertente debatida por
Jerusalinsky, a partir da qual retomamos a questão relativa à necessidade sintomática
de reconhecimento vivida por Camille e o mandato claramente proferido pela figura
paterna, e acolhido pela filha, de fazer de “Claudel” um nome de exceção, como os
principais fatores envolvidos na problemática psíquica da artista, podendo-se ainda
atribuir a crise que contribui para sua internação à própria impossibilidade intrínseca
125
ao cumprimento desse mandato o que, antecipadamente, condena Camille ao
fracasso.
Deste modo, a busca pelo reconhecimento se coloca como um traço
característico da estrutura obsessiva que, no caso da mulher, revela-se de forma
devastadora na medida em que impõe que ela própria se transforme numa exceção, a
fim de que possa reconstituir sua condição fálica perante o Outro e atender ao ideal
parental.
Neste sentido, Jerusalinsky (1993) relaciona a questão do reconhecimento à
instauração do traço unário, o qual entraria a princípio como significante filiatório,
que ao ser doado ao sujeito, inscrevendo-o numa filiação, ao mesmo tempo lhe
imputaria uma dívida a ser paga.
Posteriormente, esse mesmo traço se tornaria, um significante de
reconhecimento que, agora sob nova roupagem, seria procurado pelo sujeito de
diversas maneiras ao longo de sua vida, como uma forma de saldar a dívida contraída
anteriormente.
Deste modo, seria a repetição deste traço unário o que, segundo Jerusalinsky,
viria a se constituir como fundamental na subjetivação de Camille, trazendo à tona a
posição do Nome-do-Pai, algo que o autor explica ao dizer que “se ela não obtiver o
reconhecimento posterior, o que é fundante da sua subjetividade – o reconhecimento
anterior, primordial – ficará em questão. Isto é o que define uma neurose obsessiva, e
introduz um ponto de forclusão – a posteriori – na série de representações do
sujeito” (p. 31).
Assim, na tentativa de compensar a degradação do pai, o sujeito entra na
trama como seu avalista assumindo, a partir de então, sua dívida.
126
Além disso, essa peculiaridade da relação com a figura paterna na estrutura
obsessiva traz à tona uma especificidade no processo de identificação do sujeito, cuja
dinâmica se desenvolverá no sentido de tentar igualar o pai simbólico, ou seja, o pai
morto, ao pai imaginário, fazendo com que neste processo o sujeito se identifique a
um morto.
Esse posicionamento do obsessivo encontra ainda um outro desdobramento
que diz respeito a sua relação com o saber e, conseqüentemente, com o gozo,
descrevendo um cenário no qual, semelhante à posição do escravo na dialética
hegeliana, o sujeito se estabelece como alguém que se encontra despossuído de seu
objeto de gozo, cujo usufruto fica confiscado pelo pai, deixando-lhe como alternativa
compensar essa falta por meio de um saber que não seja de senhor, mas antes de
escravo.
Desta maneira, um caminho viável para o objeto se encontraria em algo que
poderíamos denominar de uma formação de compromisso com o Outro, através do
pagamento de uma dívida que permitisse ao sujeito o acesso a um gozo.
É neste sentido que podemos nos remeter ao esquema da fantasia proposto
por Lacan (1960-61) no seminário “A Transferência” e retomado por Ribeiro (2001)
a fim de explicar a relação do neurótico com o indecifrável do desejo do Outro, onde
especificamente no caso do obsessivo a estratégia adotada é uma estratégia
masculina, cuja função fálica, ao contrário do que ocorre na histeria, não se encontra
sob a barra, mas em relação direta com o Outro, na forma de objetos que são
oferecidos com o objetivo de lhe escamotear a falta: A φ (a, a’, a’’...).
Desta forma, o Outro se revela faltante, estando toda a sorte de deslocamentos
empreendidos pelo obsessivo voltados a preencher este vazio, o que faz com que
esses objetos [φ (a, a’,a’’...)] se igualem entre si, no que tange ao investimento
127
libidinal do sujeito, adquirindo, muitas vezes, o caráter de moeda de troca na relação
com o Outro, sendo neste ponto que se pode entrever uma posição específica do
saber, que entra em jogo para tentar responder a essa demanda obsessiva, à medida
que, resultando de uma operação sublimatória sobre o sadismo, pode prestar-se ao
controle do Outro, agora de modo velado e deslocado, por meio do desenvolvimento
de uma obra de exceção.
No caso de Camille, esta obra ou produto – se quisermos utilizar o termo
mais adequado a esta oferta de “excremento”, característica do que ocorre na fase
anal – foi dada pela via da arte, mas poderia ter sido qualquer outro investimento,
sobretudo relacionado a algo que destaque um atributo intelectual, ressaltando a
falicização dos pensamentos, aspecto comum descrito nos textos freudianos e
retomado por Lacan (1974) ao dizer que “o obsessivo é muito essencialmente alguém
que é penso. Ele é penso avaramente. Ele é penso em circuito fechado. Ele é penso
para si mesmo” (p. 140).
Trata-se de um saber inconsciente, que entra pela via do redimensionamento
do reconhecimento primordial, articulado no processo de instauração de S
1
e se
transforma num saber constituído, revestindo-se do brilho desse primeiro objeto ou
posicionamento perdido, e por meio do qual se visará suprir a falta no Outro, e
responder a uma dívida, que se reatualizará a cada instante para o obsessivo,
deixando registrada também a marca do seu gozo.
Neste sentido, vemos que não só o reconhecimento, mas principalmente a
questão do pai como estrutura, é fundamental para Camille. É em torno desse pai que
se desenvolve toda a conflitiva, ainda que sejamos tentados a atribuir seu infortúnio à
mãe, ou mesmo a Rodin.
128
O pai de Camille, ao contrário do que ocorre nos casos clínicos
acompanhados por nós, não se encontra submetido ao mandato materno, ele não
sofre de queda fálica, e, disso deriva o reconhecimento que recebe da filha e todo o
empenho por ela articulado em pagar a dívida contraída em seu nome a fim de
encontrar o traço que o sustente como exceção à castração, revelando-se mais uma
vez uma característica própria da neurose obsessiva feminina.
Nas palavras de Ribeiro (2001) diferente da histérica que “denuncia os
semblantes, denuncia que o pai é impotente em dar à mulher um significante que
responda por seu gozo suplementar, a obsessiva é uma crente: aposta no pai, crê no
pai e espera do homem sua salvação” (p. 91), salvação que para Camille viria pela
via desse reconhecimento, demandado primeiro do Sr. Claudel e posteriormente de
Rodin.
Outra questão que merece destaque na dinâmica psíquica da mulher obsessiva
e que também se refletirá na vida de Camille, principalmente nas circunstâncias que
envolvem o aborto sofrido, diz respeito a sua posição frente à maternidade, onde
veremos que não só não é raro haver um desinvestimento na figura do filho, como
ainda é freqüente a existência de aspectos infanticidas ou, mais propriamente
falando, filicidas, subjacentes à relação, e cujos relatos se registram desde a mais
longínqua época, reportando-nos ao mito grego de Medéia que, ao ver-se traída pelo
marido Jasão, leva esse desejo a cabo, matando os próprios filhos como vingança.
Em termos científicos, somos remetidos, entre outros, aos textos freudianos
como “Obsessões e fobias” e “As neuropsicoses de defesa”, ambos de 1894, e,
posteriormente, nos anos cinqüenta, aos relatos clínicos de Bouvet.
Esse desejo homicida vivenciado pela obsessiva e dirigido a sua prole, além
de encontrar seu fundamento na tentativa de atingir o outro em seu ponto mais
129
íntimo, mais débil – como retaliação por não lhe ter sido outorgado o lugar de objeto
sexual capaz de satisfazê-lo –, revela ainda uma outra verdade que consiste no fato
de o filho não se constituir num falo para a mãe obsessiva.
Ademais, segundo Jerusalinsky (1993), o que importa para a neurótica
obsessiva não é o valor fálico que o filho comporta, mas sim o quanto ela mesma
possa se ver investida falicamente a partir dele.
Neste sentido, não é uma surpresa a maneira como Camille reage à morte do
filho: para ela parece não ter havido nada parecido com uma grande perda, ou algo
da ordem de uma tragédia, já que o mais importante parecia residir no fato de que
Rodin pudesse reconhecê-la, reservando-lhe o brilho fálico, fosse como sua esposa
ou como a mãe de seu filho, o qual, neste caso, figuraria apenas como um meio de
obter esse reconhecimento.
Somos confrontados, mais uma vez, com uma peculiaridade básica na
estruturação dos diferentes tipos de neurose: diversamente da histérica, para quem a
prole significaria a encarnação do objeto fálico, para a obsessiva o que conta é o
lugar que ela própria ocupa para o parceiro, um lugar que como dito anteriormente
ela visa preencher com objetos da pulsão anal, a fim de tamponar a falta do Outro.
Trata-se, em termos freudianos, da anulação da prescrição fálica à qual só é
permitido retornar de uma forma derrisória, onde o objeto fálico tende a se confundir
com o objeto anal.
Seguindo o esquema lacaniano, retomado por Ribeiro (2001) para
matematizar a dinâmica em jogo na neurose obsessiva: A ϕ (a’, a’’, a’’’...),
poderíamos designar A como o pai castrado com o qual Camille se identifica, ϕ
como a identificação fálica com o ideal paterno de construir um nome de exceção,
fazendo ressoar seus efeitos sobre os objetos falicizados (filho, esculturas...) e sobre
130
seus pequenos outros (mãe, Rodin...) nos quais investe amor e ódio, na busca de
reconhecimento e suplantação de seus mestres.
Assim, a partir da equivalência estabelecida por Camille entre seus objetos
fálicos e o grande Outro – rebaixado a pequeno outro pelo mecanismo obsessivo –,
podemos explicar a destruição de suas obras, seu isolamento e, conseqüente
aniquilamento que se produz antes mesmo de ser concretizada a sua internação,
equivalência esta que surge como resultado do mecanismo obsessivo utilizado para
anular o desejo do Outro.
Neste processo, o obsessivo transforma o próprio desejo em insatisfeito, mais
precisamente pela via de sua proibição, que é atribuída ao Outro.
Assim, o Outro é sustentado de maneira ambígua pelo sujeito, bem como o
desejo, que se mantém de maneira camuflada, ocultando o objetivo de destruição
subjacente à agressividade obsessiva.
Tal como descreve Ribeiro (2001), no caso da mulher obsessiva, em
decorrência da falta de um significante capaz de inscrevê-la totalmente na ordem
fálica e, portanto, na presença de uma maior proximidade com o real, eis que nos
deparamos não só o acirramento dessa agressividade, mas ainda com apagamentos
momentâneos do sujeito, levando-o a atos de loucura como os cometidos por
Camille, mesmo não se tratando de uma psicose.
Em Camille, esse vazio estrutural se mostra mais exacerbado na medida em
que a artista vê Rodin ser arrebatado de seus braços por outra mulher, encontrando-se
desprovida da possibilidade de ocupar o lugar de objeto do desejo sexual para este
homem, vivência que será reatualizada mais tarde em seus delírios persecutórios em
relação à Louise – mãe e irmã –, figura que ameaça sua estabilidade junto ao pai e,
ao mesmo tempo, a possibilidade de cumprir sua missão e resgatar sua dívida.
131
Além disso, ao analisarmos mais profundamente a relação do sujeito
obsessivo com seu desejo, sobretudo no que se refere a seu mascaramento,
defrontamo-nos com o medo de uma retaliação efetiva por parte do Outro como
reposta para uma demonstração de agressividade, ou dito nas palavras de Lacan
(1957-58), “um medo de sofrer por parte deste uma destruição equivalente à do
desejo que ele manifesta” (p. 428) – o que justificaria, ao menos em parte, os delírios
persecutórios de Camille: uma vez que desejou destruir seus inimigos, usurpar-lhes o
lugar de destaque, nada mais justo que esperar deles um roubo, um contra ataque.
No entanto, Lacan nos diz que, para compreender o que se dá nessa dialética,
não basta nos fiarmos apenas no manejo sobre o medo de retaliação, torna-se
necessário recorrermos à relação efetiva do obsessivo com o pequeno outro, o que o
autor faz trazendo à tona a questão das proezas impingidas pelo sujeito, mais
precisamente na forma de “um exercício, uma façanha, um passe de mágica
destinado a dar prazer ao Outro” (p. 433).
Para que se realize a proeza, Lacan (1957-58) estabelece como requisito
mínimo a presença de três personagens, dois entre os quais se empenhe o desafio e
um terceiro que se configure como testemunha da façanha.
S outro (adversário ao qual se dirige o desafio).
Outro (constitui-se na testemunha invisível.
O que atesta a consistência da proeza e do qual
se espera a permissão de acesso ao desejo).
132
O objetivo último incutido na empreitada será obter a permissão ou
apaziguamento do Outro, mediante o mérito conquistado a partir da realização da
proeza.
Neste ponto, vemos emergir novamente o que se articula como manobra de
deslocamento na neurose obsessiva, uma vez que a satisfação procurada pelo sujeito
nunca se dará no mesmo patamar de sua conquista, e mais uma vez se perpetua o
impasse quanto ao desejo: o sujeito visa ao Outro, mas dirige-se ao outro, que por
sua vez não lhe realiza o desejo, mantendo-o, desta forma, proibido para o obsessivo.
Mais que para o domínio de uma angústia fundamental do sujeito, Lacan
(1957-58) chama a atenção para outra especificidade obsessiva revelada pela proeza,
que consiste numa espécie de ficção com a qual o obsessivo se apresenta, fazendo
com que os riscos aos quais se expõe, sejam sempre corridos dentro de limites
precisos, de modo que se sustente a fantasia de nada perder.
Para Lacan:
Há na proeza do obsessivo algo que sempre permanece irremediavelmente fictício,
em razão de que a morte, ou seja, o lugar onde fica o verdadeiro perigo, não reside
no adversário que ele dá a impressão de desafiar, mas num lugar completamente
diferente. Está, justamente, do lado da testemunha invisível, do Outro que está ali
como espectador, daquele que contabiliza os golpes... (p. 431).
No caso de Camille, trata-se de dizer que o pai é quem vem encarnar esse
Outro, sendo Rodin apenas um “outrinho” especular com o qual se defrontará,
visando realizar a incumbência imposta pelo imperativo paterno, diante do que se
denuncia o equívoco de atribuir a “loucura” da artista exclusivamente a sua relação
com Rodin. Existe um antes, que mesmo se re-significando num aprés coup, não
133
pode ser negligenciado, sob o risco de levar a uma análise errônea, pautada
meramente em questões interativas que desconsiderem fatores estruturais.
Na seqüência, Lacan (1957-58) dirá ainda que esse outro – em cujo lugar o
sujeito pode se colocar, diminuindo por isso mesmo os riscos corridos –, não é
“senão um outro que é ele mesmo...” (p. 431), residindo no grande Outro o
verdadeiro risco de morte.
Nessa articulação, Lacan nos diz que há um ponto no processo de
identificação do obsessivo, “em que o sujeito tem que estabelecer uma certa relação
imaginária com o outro, não em si, por assim dizer, mas na medida em que essa
relação lhe traz uma satisfação” (p. 448), enfatizando ainda a função que essa pessoa
ocupa para o sujeito, a saber, de mero suporte para a fantasia, alguém que Freud
define ao longo de sua obra como não tendo nenhuma relação com qualquer
Sexualtrieb.
Segundo Lacan (1957-58) “o outro, aqui, serve apenas para isto, que não é
pouco: para permitir ao sujeito manter uma certa posição que evite o colapso do
desejo, isto é, que evite o problema do neurótico” (p. 448) – problema que para
Camille não se resolve, já que Rodin não se deixa apreender neste lugar.
Como sabemos, no caso do obsessivo, todo o impasse do desejo se encontra
referido a uma demanda de morte, que como tal, só se articula no lugar do Outro –
tema que mais uma vez se apresenta de modo particular na dinâmica psíquica de
Camille, principalmente se considerarmos que sua história pregressa lhe reserva o
lugar de morto no desejo materno.
Assim, essa demanda de morte, segundo Lacan, não pode se sustentar no
obsessivo sem acarretar, por si só, o tipo de destruição a que se chama morte da
134
demanda, já que, por sua condição de ser falante, não é permitido ao sujeito atingir o
Outro sem atingir a si mesmo.
Neste sentido, é possível vislumbrar o que alicerça os desvarios cometidos
por Camille, sobretudo no que tange à destruição de sua obra: ao se voltar contra
Rodin na tentativa de atacá-lo, o que denunciava era a impossibilidade de atender à
demanda paterna e seu desespero frente à constatação de sua própria impotência, e,
ao destruir aquilo que outorgaria a esse Outro um nome de exceção é a si mesma que
Camille faz sucumbir.
Ademais, deparamo-nos aqui com um aspecto que Lacan (1957-58)
descreveu como elementar no desenvolvimento da crise obsessiva: o acting out,
designado por ele como “um tipo de ato que sobrevém ao longo de uma tentativa de
solução do problema da demanda e do desejo” (p. 433).
Neste contexto, Lacan destaca ainda, a presença de um objeto material, o qual
se mantém em consonância com um caráter de encenação contido no ato, ao mesmo
tempo em que denota uma “quase equivalência entre fantasia e acting out” (p. 433).
Trata-se de um objeto que, no caso Claudel, poderia ser designado como o
que comporta a produção de sua obra, aquilo que já discutimos anteriormente em
relação à equivalência entre os objetos anais e a própria posição do sujeito no
estratagema da fantasia, uma posição que para o obsessivo o leva a responder, muitas
vezes, na condição de pequeno a, equiparado aos objetos por ele produzidos, ou para
utilizar o termo da pulsão, aos objetos por ele retidos ou expelidos, como
equivalentes aos seus excrementos.
Em suma, o ponto que distingue o acting out da proeza e da fantasia é o fato
de ser sempre uma mensagem, constituída de uma verdade oculta para o sujeito e
dirigida ao Outro, numa tentativa de deciframento, consistindo neste endereçamento
135
a principal diferença entre o ato no obsessivo e a passagem ao ato na psicose, na qual
o Outro se encontra abolido.
Já no que se refere à relação amorosa – ponto de destaque na vida e na obra
de Camille – se retomarmos a lógica da demanda e do desejo, vista desta vez sob a
égide do significante fálico, veremos que este será tomado na relação do obsessivo
com o outro não em seu sentido simbólico, mas antes imaginário.
Neste sentido, o sujeito buscará se identificar com um outro mais viril e mais
potente que ele, a fim de completar-se com sua imagem de potência.
Segundo Lacan (1957-58), é essa ênfase na imagem fálica do outro que
confere “valor e função não mais de simbolização do desejo do Outro, mas de
formação imaginária de prestígio, de imponência, de precedência” (p. 500).
Nisto reside o fascínio e a aproximação de Camille junto a Rodin: nesta busca
em gozar dos louros de seu sucesso, encontra-se o substrato de sua tentativa, em
alguns momentos, de brilhar com Rodin, para, num tempo seguinte, requerer o
afastamento e a exaltação de seu próprio nome, já imantado pelo brilho do outro.
Como característica da neurose obsessiva, mais uma vez vemos encenar-se o
jogo do senhor e do escravo, assim como descrito na dialética de Hegel, uma
dialética na qual, enquanto escravo, o sujeito espera pela morte do senhor do qual
almeja ocupar o lugar.
Deste modo, torna-se possível compreender o afastamento articulado por
Camille em relação a Rodin, antes mesmo do romance se findar.
Nas palavras de Jerusalinsky (1993), o que se revela não é nada além de algo
inerente à questão da neurose obsessiva feminina, que interfere no modo como a
mulher virá a perceber a figura masculina, sobretudo quando este homem sintetiza
aquilo que seria o ideal almejado para ela própria, levantando, por um lado, a
136
possibilidade de produzir com ele a obra que seja de exceção e, por outro, gerando
disputa e rivalidade.
Neste jogo de forças, Ribeiro (2001) acrescenta que o sujeito “enquanto
aguarda [pela derrota do ‘adversário’], faz-se de morto, apagando seu desejo para
não despertar a cólera de seu senhor” (p. 42), porém, é nisto que ele se aniquila, ao
renunciar à própria vida – como acompanhamos em Claudel –, na tentativa de
cumprir uma tarefa que, embora atribuída ao Outro, é imputada e assumida por ele
mesmo, e cuja realização é da ordem do impossível, residindo nisto seu próprio
fracasso.
Trata-se de uma característica que Ribeiro atribui à insuflação egóica da qual
padece o obsessivo, levando-o a oscilar “entre se fazer de morto (insensível) e ser
tomado da mais viva cólera diante da ameaça que vê em toda parte” (p. 42), ameaça
esta que advém do caráter paranóico do eu idealizado.
Além disso, outro aspecto que deve ser considerado no fracasso da estratégia
obsessiva de Camille como responsável, entre outras coisas, pela deflagração de seu
delírio, diz respeito ao insucesso na procura por um parceiro que, para além de
qualquer satisfação genital, pudesse expor sua falta, reconhecendo e reservando à
amada o lugar daquela que pode completá-lo, posição esta que Rodin não foi capaz
de sustentar frente a Camille.
Segundo Ribeiro (2001), “por trás da virilidade explícita do parceiro, a
mulher adora o homem morto ou o amante castrado cuja falta ela completa, ou seja
‘o incubo ideal’ que, por trás do véu do parceiro sexual, a faz gozar” (p. 73).
A temática da virilidade aparece também discutida por Pommier (1992), em
seu livro “A ordem sexual”, neste contexto, associada ao dilema vivenciado pela
mulher no que se refere ao abandono do nome patronímico e à capacidade que o
137
parceiro dispõe de suportar, em sua relação com a parceira, a ambivalência entre se
constituir como o Nome-do-Pai ou como o homem do sexo – posição esta que não
pôde ser sustentada por Rodin, deixando Camille entregue à loucura, talvez como
última escapatória frente ao mandato mortificante do pai.
Na tensão gerada por essa ambivalência também se sustenta a possibilidade
de haver uma relação entre o que o autor denominou de “loucura” e o amor, sem que
isto signifique necessariamente o desencadeamento de uma crise psicótica genuína.
Nas palavras de Pommier (1992), essa loucura surge como resultado de um
impasse, “uma confusão que se impõe entre o amante e o pai (que tematizam a
disjunção entre o sexo e o nome)” (p. 62), o que mais uma vez nos coloca diante de
uma problemática que aponta a questão dos nomes-do-pai como o cerne da
fragilidade do sujeito na neurose e que, no caso de Camille, tenta-se sanar por meio
da obtenção de reconhecimento – reconhecimento este que, segundo Pommier, só
seria capaz de suprir essa precariedade se fosse proveniente do amor de um homem –
justamente o que falta a Camille e cujo tema nos dedicaremos a discutir no capítulo
seguinte.
Por ora, resta-nos finalizar nossa incursão, destacando no caso Camille aquilo
que de mais importante se articula ao tema da tese e que justificou sua inclusão em
nossa pesquisa, ou seja, a presença de um enlace específico do sujeito feminino com
a figura paterna no que concerne ao saber, possibilitando que apreendêssemos seus
efeitos sobre a produção futura da artista, marcada por uma relação particular com
sua obra, perpassada pelas peripécias de seu sintoma, demonstrando de modo mais
veemente o entrecruzamento entre saber inconsciente e saber constituído.
138
Entretanto, nesta articulação de saberes, vemos que Camille não consegue
fazer de sua arte uma escrita, no sentido próprio atribuído por Lacan (1975-76) ao
discutir o conceito de sinthome.
Embora, por um lado, faça uso da produção artística para falar de sua dor, de
um vazio, por outro, permanece cativa do mandato paterno, perseverante na busca de
algo que confira ao pai completude e que, ao resgatar sua dívida com ele, também a
preencha, revelando um saber que se desenvolve no sentido da obtenção de
reconhecimento, e, portanto como atributo fálico.
Desta forma, somos levados a concluir que só é possível passar de um
sintoma clínico ao sinthome à medida que o sujeito seja capaz de romper com algo
desse saber paterno, que o marca desde o início de sua estruturação e o enlaça nas
malhas do simbólico, e proceder a uma espécie de transgressão que o possibilite
entrar em contato com o que possui de mais real e, então, ao invés de escamoteá-lo,
permita-lhe escrever o impossível de sua inscrição.
É apenas por meio desta operação que a arte, a literatura, e qualquer outra
forma de saber constituído, pode se desenvolver como uma forma de escrita, ou seja,
na proporção em que promova a abertura do discurso, ao expor um real que a ciência
visa negar.
Além disso, mais importante que o instrumento em si, é o posicionamento do
sujeito frente a este veículo de saber: os grilhões que Camille não pôde romper a
partir de sua arte, foram quebrados por Joyce em sua obra, o que denuncia mais uma
vez a importância de tomarmos a questão pela via do lugar que o sujeito, homem ou
mulher, assume no quadro da sexuação, em detrimento de sua condição biológica.
Em suma, embora possamos apreender na constituição feminina – no ponto
em que ela não se inscreve totalmente na ordem fálica –, uma maior disposição a
139
proceder a essa travessia, dada sua relação com um real que seu próprio corpo a
impediria de negar, isto não é suficiente para que ela obtenha êxito na articulação de
um sinthome.
Desta maneira, no capítulo seguinte, lançaremos nosso olhar sobre uma das
preciosidades de Lewis Carroll – Alice no país das maravilhas – autor cuja produção
fora homenageada por Lacan
23
ao destacá-la como “lugar eleito para demonstrar a
verdadeira natureza da sublimação na obra de arte” (p. 10).
23
Lacan, Jacques. Homenagem a Lewis Carroll. In Miller, Jacques-Alain (2003) org.. Ornicar? De
Jacques Lacan a Lewis Carrol. Rio de janeiro. Jorge Zahar Ed., 2004.
Importante observar que o texto fora pronunciado em 31 de dezembro na France Culture, sob o título
“Comentário de um psicanalista”, transcrito por Marlène Belilos, a partir de fita sonora, e estabelecido
por Jacques Alain-Miller. No entanto, não se faz menção ao ano em tal pronunciamento teria se
realizado.
140
6. ALICE NO PAÍS DAS MARAVILHAS
Alice traz à tona, de um lado a ausência de identidade consigo
mesma (pelo fato de um significante não poder se significar
a si próprio...), de outro, que o significante que designa
o sujeito é uma marca vazia de sentido.
Sophie Marret
Nossa pesquisa, pelos caminhos enigmáticos da sexualidade feminina,
destaca agora o conto Alice no País das Maravilhas, a partir do qual pretendemos
fazer alguns recortes da história vivida por sua personagem central, a fim de
tecermos alguns comentários acerca da relação estabelecida com o Outro e com o
saber, no sentido de responder suas questões sobre quem é e sobre qual o seu lugar
neste mundo desconhecido para o qual desperta.
Antes, porém, voltaremos nosso olhar para algumas vicissitudes inerentes à
criação deste conto, que data de 1865, e cujo conteúdo reflete em grande parte os
avanços histórico-científicos da época, além de nos remeter a um estilo literário que
revela as nuances e enigmas próprios da linguagem e dos jogos lógico-matemáticos,
demandando, portanto, para além de uma leitura superficial, o deciframento de uma
141
mensagem e de um sentido, algo que nos auxiliará não só a compreender o conto em
si, como principalmente a levantar os pontos de consonância entre sua estrutura
narrativa e a dinâmica psíquica com a qual queremos confrontá-la.
Ademais, no que tange à sexualidade feminina, vemos que muito antes de ser
formalizada no texto freudiano, a antiga pergunta acerca do que é e do que quer uma
mulher já se encontrava posta por Carroll, o que se representa não só pelo conflito
vivido por Alice, mas também, através dos relatos biográficos, como uma questão
particular do autor, o qual nutria um desejo especial por meninas recém entradas na
puberdade, em geral, com idade entre oito e doze anos, das quais colecionava cartas e
fotos de caráter erótico.
Além deste, são muitos os pontos que se tenta traçar entre a personalidade de
Carroll – suas pretensões intelectuais e pessoais – e aquilo que retrata em seus
contos.
Alguns historiadores destacam a relação entre o teor lúdico-lógico presente na
obra de Carroll e o seu engajamento pessoal na área científica e, mais
especificamente, no campo das indagações lógicas. Outros tomam o caráter
obsessivo característico do jogo de palavras ou de sentidos colocado em seu texto,
como algo inerente a sua estrutura psíquica, havendo autores que vão além da
neurose, considerando-o psicótico ou perverso.
No primeiro caso, Sebastião Uchoa Leite (1980), um dos autores que se
propôs a compilar algumas das análises feitas sobre a obra carrolliniana, cita Géza
Róheim (1974), o qual marca a semelhança entre a “destrutividade oral” e as
“fantasias canibalísticas”, próprias do “trauma oral”, com a fantasia literária
carrolliniana, classificando-a como concernente a uma linguagem esquizofrênica.
142
Já no segundo caso, o autor não se detém muito. Embora a evidente
identificação de Carroll com Alice, bem como seu especial interesse por meninas,
possa ser pensado como sugestivo de mecanismos perversos, Leite (1980) cita
apenas um comentário superficial de Antonin Artaud a esse respeito, o qual toma
emprestado das observações de Deleuze sobre Carroll, não acrescentando muito à
discussão.
No que se relaciona ao estilo literário da obra, Leite faz menção ainda aos
estudos de Michael Holquist (1969), autor que melhor situa o estilo nonsense que
envolve a escrita de Carrol, constituindo-se de valores puramente lógicos e
ordenados de modo a buscar um fim em si mesmo, e por isso, sendo considerado
como uma violência contra a semântica, fato que, no entanto, não impede que seu
sentido seja apreendido, dada a sistematicidade com a qual se apresenta.
Para Leite é esta característica que confere à obra carrolliana seu maior valor,
ao colocar a linguagem como algo vivo, em processo, característica que Lacan
também aborda de outro modo, ao dizer que na escrita carrolliana as relações entre
simbólico, imaginário e real operam em estado puro.
Temos ainda o comentário de Gilles Deleuze (apud Leite, 1980), cuja ênfase
se volta para a importância que o paradoxo adquire no texto de Carroll, comparando-
o aos Estóicos que também se dedicaram a uma escrita de superfície, por meio da
filosofia dos paradoxos.
O autor retoma a questão do nonsense para dizer que no caso de Carroll o
não-sentido não só se opõe à ausência de sentido, como produz em seu lugar um
excesso.
Neste sentido, Leite afirma que é esta característica de produzir dois sentidos
ao mesmo tempo, que se reflete nas inversões/reversões – de tamanho, na ordem do
143
tempo, de proposições, causa e efeito, entre tantas outras, presentes no conto –,
surgindo como um paradoxo de identidade infinita e conduzindo à contestação da
identidade pessoal de Alice, tema que atravessa suas aventuras.
Além disso, o texto de Alice, de um modo geral se acha estruturado sobre o
duplo sentido, o que se traduz na prevalência de jogos significantes, que se compõem
pela presença de neologismos, palavras que são condensadas, formando significados
distintos do original ou agregando-lhes, ainda, um caráter cômico, humorístico,
característica que levou alguns autores a compará-lo ao witz.
Em termos de conteúdo, há que se sublinhar ainda, segundo Gardner (1975,
apud Leite, 1980), uma hipotética menção de Carroll ao contexto histórico-científico
da época, por meio de trechos como: “a descida no poço em Wonderland referida às
especulações sobre a travessia até o centro da terra e à teoria de Galileu sobre a
relação entre velocidade/aceleração” (p. 14).
Gardner (op cit.) aponta ainda os crescimentos e diminuições de Alice como
estando associados às teorias cosmológicas sobre o universo em expansão e à
hipótese, articulada pelo matemático Edmundo Whittaker, de um universo em
diminuição constante, que desapareceria no nada.
Trata-se de um contexto que adquire um caráter especial para nossa análise,
ao se constituir num rol de saber tomado por Alice como suporte para a sua angústia
diante das dificuldades enfrentadas na busca por um sentido e por uma direção,
destacando-se a função de suplência que o conhecimento pode adquirir, como algo
que vem “costurar” o real que insiste em se apresentar, expondo seus rasgos.
A este respeito, ao se referir não só às aventuras no “País das Maravilhas”,
mas também “Através do Espelho”, Marret (2004) ressalta que “as Alice são produto
da era científica. Celebram-na sob forma de ficção ao mesmo tempo em que a
144
interrogam” (p. 11), condição que lhes confere o caráter de reunir simultaneamente o
impossível lógico e o real que o discurso científico visa excluir, havendo, portanto,
um saber inconsciente presente na obra carrolliana que incide sobre este real.
Trata-se de um saber velado referente à função do equívoco, que ao ser
evitado pelo nonsense acaba por sofrer efeito oposto, levando o sujeito a questionar-
se acerca daquilo mesmo que o determina.
Como exemplo deste efeito em Alice, Marret (2004) destaca o trecho onde se
dá a conversa entre a Lagarta e a menina, que ao ser indagada sobre quem é, no
sentido de simplesmente revelar seu nome, é remetida a uma interrogação
existencial, caracterizando-se ainda nesta passagem o caráter de mal-entendido
concernente à linguagem.
Neste sentido, Marret ressalta a capacidade que os enunciados mais
corriqueiros apresentam de despertar as mais diversas interpretações, propriedade
esta que não se funda na competência cognitiva do locutor, mas antes na carga
subjetiva de que se reveste esse enunciado para o sujeito.
Desta maneira, a pergunta proferida pela Lagarta se produz como uma
metáfora congelada que, será tomada no decorrer da conversa no sentido de um
desafio verbal “no qual se opõem o desejo da Lagarta que luta para permanecer no
registro do senso comum (...) e o de Alice, que quer encontrar uma resposta para sua
pergunta sobre o ser” (p. 28).
E, Marret conclui:
De certo modo, Alice faz disso a experiência da divisão subjetiva: não é mais
senhora dos enunciados que produz. Palavras que não tinha intenção de dizer
surgiram. Sua experiência evoca a que presidiu para Lewis Carroll a escrita dos
contos. O nonsense abre para a intuição do sujeito do inconsciente (p. 28).
145
São estas, entre tantas outras características, que fazem com que Alice no País
das Maravilhas não seja visto pelos críticos como um conto infantil, embora tenham
sido feitas adaptações com objetivo de torná-lo acessível para as crianças. Nem
mesmo sua estrutura é considerada como sendo de um conto de fadas, já que, ao
contrário desses, sua narrativa não se encontra sustentada sobre produtos míticos,
mas referidos a uma realidade histórica. Deste modo, decorrido mais de um século de
sua publicação, Alice é cada vez mais leitura para adulto.
A este respeito, Leite (1980) acrescenta que as cenas descritas em seu texto
“não são apenas caprichosas fantasias, pois não há nada por trás dos enredos e
personagens (...) que não esteja rigorosamente referenciado, seja através de dados da
própria existência de Carroll, seja através de inúmeras alusões literárias, científicas,
lógico-matemáticas, etc.” (p. 7).
Vemos ainda que, em muitos momentos de sua análise, Leite parece se
colocar como um fervoroso defensor de Carroll, desferindo uma série de críticas
aqueles que se propuseram a estudar seus textos, particularmente aos que teceram
interpretações psicanalíticas e alegóricas, aos quais ele se dirige dizendo que: “as
leituras alegórica e psicanalítica são opostas e complementares por inversão: uma
reduz tudo à total intencionalidade objetiva, e outra à total inconsciência das
representações poéticas” (p. 9).
A única ressalva que faz se dá ao admitir a leitura – de aparente caráter
sociológico – defendida por Laporte (1973) por ter demarcado no conto a
sobreposição do princípio de realidade ao princípio do prazer, destacando que “a
solução final da volta à realidade não é uma solução liberatória, a não ser para os que
tomam a norma como sinônimo de felicidade (que seria, então, identificada à
repressão)” (p. 25).
146
Assim, uma vez que contextualizamos algumas das especificidades relativas à
origem do texto, pretendemos tomar Alice como um personagem à parte, na tentativa
de traçar um paralelo entre seu discurso e a conflitiva feminina propriamente dita.
Neste sentido, começaremos destacando como momentos lógicos no texto,
primeiramente, a entrada de Alice na toca do Coelho Branco, que para além da
leitura dada por Leite (1980), caracterizando-a como um rito de passagem entre dois
universos – o real e o não real –, interessa-nos por sua semelhança com o processo de
entrada em análise.
Trata-se de algo que se marca pela curiosidade despertada em Alice pelo
Coelho e pela busca de um outro saber, que a faz enveredar-se por um mundo
desconhecido, numa aventura similar à investigação do inconsciente, trazendo à tona
o valor do tempo e da precipitação – implícitos no ato de seguir o Coelho cegamente,
dada a suposição de saber que se instaura o que, conseqüentemente, leva a menina a
cair no poço como a significar a saída do discurso formal para o discurso latente.
De um certo modo, Alice está à procura de um conhecimento outro, que
abarca situações relativas ao mundo em que vive e a si mesma, principalmente no
que diz respeito a sua subjetividade e identidade, um saber que a auxilie a
circunscrever o real que se coloca para ela.
Como decorrência desta busca, Alice vê nos outros personagens com os quais
se relaciona – real ou imaginariamente – uma forma de ter respondidas suas
questões. Para isto, outorga-lhes um lugar de saber e demanda que lhe ajudem a
decifrar suas queixas – rapidamente, transformadas em enigmas.
Desta forma, vemos que a primeira cena do conto, onde Alice pergunta “se o
prazer de tecer uma grinalda de margaridas valeria o esforço de levantar-se e colher
as flores” (p. 41), é re-significada, à medida que seu lançamento numa aventura
147
desconhecida parece responder que vale o trabalho de construção de um outro
caminho a percorrer, de uma outra história a escrever, retirando-a daquela vida
alienante e inserindo-a numa outra dimensão que, apesar de trazer-lhe perigos e
responsabilidades, pondo em xeque sua astúcia e conhecimento, por outro lado,
confere autonomia e liberdade de escolha, colocando seu desejo de modo mais
viável.
Além disso, seguindo essa analogia com o processo de análise, é notável
como o Outro é tomado por Alice em seu discurso como parte de seu sintoma, o que
se percebe claramente quando a personagem, diante da queda, racionaliza seu pavor,
esperando que seu “infortúnio” seja reconhecido como um ato de bravura.
Neste sentido, vemos se desenvolver a relação entre o que Alice imagina ser a
demanda do Outro e o estatuto que o conhecimento assume em sua história, ficando
nítida sua crença em que, para ser aceita e reconhecida, precisa saber.
Esse saber, cuja referência se faz em diversos trechos do conto, acha-se como
um pilar de sustentação, em torno do qual a personagem tenta se estruturar.
Desta maneira, revela-se o caráter fálico do conhecimento que atesta a quem
o possui um lugar de representatividade na fantasia de Alice, embora se marque, a
todo instante, o quanto esta suposta solidez advinda do conhecimento é da ordem do
equívoco, do semblante, resultando em pura aparência e inconsistência.
Essa característica pode ser apreendida, por exemplo, quando Alice diz não
ter “a menor idéia do que fosse Latitude ou Longitude”, mas por achar as palavras
“imponentes” resolve usá-las – mesmo se tratando de um contexto impróprio de
quem, na verdade, deveria estar preocupada em como sair daquele precipício sem
fim em que se tornara a toca onde caíra –, revelando-se o caráter mascarador desse
saber, cujo objetivo último é desviar o olhar do Outro daquilo que o sujeito sente
148
como lhe sendo faltante, atitude que aponta para a própria dificuldade de Alice em se
ver confrontada a sua incompletude e ignorância.
Como conseqüência desta dificuldade, Alice se posiciona no mundo sempre
referida imaginariamente a um “Livro das Normas” (p. 44), o qual acredita conter
tudo o que é necessário para viver bem, bastando somente que este seja lido e
compreendido em toda sua extensão, algo que Alice supõe ser perfeitamente
possível, trazendo à tona os resquícios de uma época remota da infância e da
estruturação psíquica da menina, remetendo-nos aos textos freudianos acerca da
sexualidade infantil, onde frente à impossibilidade de ascender ao gozo sexual,
supostamente pertencente aos pais, o sujeito se mantém preso à crença de que algum
dia terá as fichas necessárias para adquiri-lo.
Trata-se de algo ilusório, já que não há como obter esse gozo, motivo pelo
qual os adultos também não o possuem, constituindo-se, portanto num saber da
ordem do impossível que é significado como impotência, uma vez que o sujeito
desconhece esta verdade da estrutura enquanto impossibilidade.
Ou seja, tal como a criança que se descobre sem o pênis, o sujeito não
percebe que esse atributo falta a todos, mantendo-se numa busca, muitas vezes
mortal, por algo do qual acredita ter sido destituído, seja por um erro cometido ou
por um capricho do destino – como é comum se ouvir nas lamentações melancólicas
– ou, ao contrário, embrenhando-se num mecanismo misto de mania e
obssessividade, como se, para reaver esse objeto perdido, só bastasse trabalhar o
bastante, estudar o bastante, acumular o bastante, e assim sucessivamente, a fim de
conseguir dar conta desse saber, apropriadamente contabilizar esse saber, preencher
essa falta.
149
Assim, Alice parece se encaixar neste último modelo, referindo-se ao livro,
em vários momentos de seu discurso, como a uma espécie de entidade portadora
desse saber absoluto e como compêndio das regras que devem ser seguidas,
acumuladas e contabilizadas como parte de um tesouro que a menina faz questão de
mencionar a todo o momento, como uma maneira de se afirmar diante dos demais,
como se fosse esse conhecimento que a constituísse como sujeito.
Para demonstrarmos apenas algumas, entre tantas outras situações do tipo,
podemos citar a conversa de Alice com o Rato, quando ela faz menção à gramática
do irmão, no capítulo dois; ou no capítulo oito, quando ao enfrentar o Rei, diz ter lido
em algum lugar que um gato pode olhá-lo de frente. Ou ainda, no capítulo onze, ao
se gabar de tudo o que aprendeu nos livros sobre uma corte de justiça.
Deste modo, as relações mantidas entre Alice e seus personagens se dão
sempre sustentadas sobre a vertente não só do saber como também do poder
intrínseco à disputa que se trava em sua busca.
Em termos psicanalíticos, poderíamos dizer que o que decorre desse processo
para o sujeito é que ele se vê protagonista de um abismo profundo que lhe escava
ainda mais a falta, na medida em que quanto mais acumula, mais se depara com sua
própria insuficiência, velando o saber do Outro como absoluto.
Na verdade, encontra-se desprovido da possibilidade de escolher, já que todo
seu esforço está a serviço de responder ao que supõe ser esperado pelo Outro – que
nesta etapa, sobretudo pelo que se vê no caso de Alice, não se encontra mais
personificado na figura materna, mas internalizado pelo sujeito, sendo sua imagem
projetada repetidas vezes a cada novo relacionamento.
Neste sentido, podemos retomar as palavras de Mannoni (1988) ao discutir a
função que a criança ocupa para a mãe, quando no princípio de sua constituição ela
150
“não sabe que é chamada a desempenhar um papel para satisfazer o voto
inconsciente da mãe (papel do superdotado, do débil, do doente), sendo de certo
modo, raptada no desejo da mãe” (p. 43). Posição esta que, num segundo tempo, uma
vez fixada, torna-se de responsabilidade do sujeito, cabendo a ele responder pela cota
de gozo que lhe concede seu sintoma e escolher se abre mão ou não deste lugar,
partindo em busca de outros objetos, impasse que Alice parece encenar em sua
aventura, sem conseguir resolvê-lo a contento.
Constitui-se numa escolha difícil porque, apesar de oferecer ao sujeito uma
série de outras possibilidades, por outra via, implica em perda, algo do que o sujeito
tenta arduamente fugir, sendo, paradoxalmente, esta tentativa de se esquivar o que dá
origem a uma perda muito maior, qual seja, a possibilidade de desejar, tenha visto
que o sujeito se mantém atrelado a um único objeto que, de acordo com o grau de
dependência que com ele se estabeleça, pode ser considerado como o portador de um
gozo mortífero.
Assim, à medida que vamos discutindo estas nuances do psiquismo humano,
vemos que não é sem um sentido que Alice se encanta pelo Coelho Branco, cuja
máxima na qual se apóia é “não ter tempo a perder” (p. 43), sendo ao mover-se por
este lema que ele se perde – e, literalmente, perde seu tempo –, estando vetada
qualquer relação mais profunda que pudesse se estabelecer.
Desta forma, sua presença é fortuita e superficial, fazendo-nos lembrar dos
belos versos de Drummond ao dizer que :
O importante não é estar aqui ou ali, mas ser. E ser é uma ciência delicada, feita de
pequenas-grandes observações do cotidiano, dentro e fora da gente. Se não
executamos estas observações não chegamos a ser: apenas estamos e
desaparecemos...
151
Neste sentido, Alice também não é, apenas está e desaparece, como num
sonho, tal como o autor, sabiamente, transforma sua aventura ao final do conto. Ao
usar o saber como filtro em suas relações, Alice se distancia das pessoas e segue na
contramão do que supostamente seria o seu objetivo, isto é, conhecer, mostrando-se
fechada a novas significações que possam ser dadas a ela.
Deste modo, representa-se um embate com a figura do Outro que repete não
só o questionamento infantil, direcionado ao adulto barrado, como remete ainda ao
momento de sua reedição na adolescência, quando o sujeito tenta, inutilmente,
apontar o saber do Outro como furado.
Desta operação resulta ainda um outro desdobramento, relativo ao mandato
superegóico herdado pelo sujeito, que no caso de Alice se apresenta por um superego
por vezes severo, reproduzindo a voz de um Outro autoritário e incomplacente que a
impele, entre outras coisas, a trabalhar e a sustentar-se sobre o saber.
No capítulo dois, vemos uma variante deste imperativo representado pela
máxima “ter que ser boa”, sob o risco de ser castigada, o que pode ser lido na
elucubração de Alice ao falar de seus pés: “... é melhor eu ser boa com eles, senão é
capaz de não me levarem aonde eu quiser!” (p. 47). Outro exemplo é quando Alice se
vê desesperada, começando a chorar e diz: “Mas que vergonha, uma meninona tão
grande chorando desse jeito!” (p. 48).
Na seqüência do texto, a questão do castigo se coloca de maneira mais
esclarecedora através da seguinte fala de Alice: “ – Seria melhor que eu não tivesse
chorado tanto! (...). Serei castigada agora por isso, parece, afogando-me nas minhas
próprias lágrimas” (p. 50).
Neste sentido, é interessante notar ainda que em muitos momentos do conto a
função de castigo, assim como a demanda de saber, aparece associada à figura
152
feminina, sendo já a partir do primeiro capítulo que nos deparamos com esta
especificidade, quando Alice se mostra coibida de perguntar, a uma suposta senhora
imaginada em sua descida pela toca, sobre aquilo que não sabe, sob o risco de ser
considerada como ignorante o que assume um caráter de inferioridade, apontando
mais uma vez para o estatuto fálico que o conhecimento adquire para ela. Como
solução, Alice prefere agir sozinha e descobrir por si mesma aquilo que desconhece.
A prevalência da figura feminina como representante de poder se faz notar
também em outros momentos do conto, seja pela personagem da Duquesa, que
amedronta o Coelho, seja pela Rainha tirana que submete o Rei e todos os que a
cercam aos seus desmandos.
Nestes exemplos, a questão da castração se encontra desvendada pelos
castigos a serem impingidos ao Coelho pela Duquesa, e pelo esbravejar
constantemente proferido pela Rainha em relação aos que a contrariam no sentido de
que “Cortem-lhes a cabeça!”.
Associada a esta imagem de poder absoluto que a mulher adquire para Alice,
podemos pensar seu posicionamento frente ao saber como um sintoma que, aos
moldes do que Calligaris (1986) descreve como sendo os efeitos da constituição
psíquica do sujeito, serve-lhe de defesa diante da demanda avassaladora do Outro
materno, ou dito de outro modo, como defesa diante da possibilidade de ver-se
confrontada com um real que a ponha diante de seu posicionamento objetal
primordial.
Neste sentido, há que se destacar como característica marcante no conto a
presença da temática oral, referida não só às cenas em que Alice toma elixires
mágicos ou come cogumelos que a fazem crescer ou diminuir, quanto à voracidade
153
com que se volta para as questões relativas ao saber e à decifração do mundo que a
cerca.
Além disso, pode-se atribuir ainda ao tipo de relações que a personagem
mantém com as figuras femininas ao longo do texto – ora sendo valorizadas como
oráculos prontos a dar aquilo que reivindica, ora sendo consideradas como
verdadeiras rivais –, a representação da ambigüidade amor-ódio contida nas trocas
entre mãe e filha.
Sobretudo no segundo caso, a mulher é vista como portadora de um saber e
poder absolutos, ficando a figura masculina apagada por esse poder, algo que pode
ser visto, por exemplo, na relação da Rainha de Copas com o Rei, que ao tentar
sorrateiramente burlar as ordens da esposa, sem se impor, acaba por reafirmar ainda
mais seu poder, assumindo uma atitude de incapacidade e de impotência que o iguala
aos súditos do reino.
No entanto, se por um lado a imago paterna se encontra abalada nesses
exemplos, por outro, sua função está mais do que preservada, o que se representa no
próprio acirramento da busca e do valor que o conhecimento implica na seqüência do
texto e, principalmente, pelo estabelecimento de jogos significantes articulados sobre
o simbólico.
Já no que concerne à feminilidade de Alice, vemos que ela surge atrelada às
dúvidas de identidade da personagem o que, por sua vez, associa-se a questões
relativas ao saber.
Neste sentido, diante da dificuldade em compreender as mudanças sofridas,
Alice começa a se indagar acerca de quem é, comparando-se a outras figuras
femininas, ao mesmo tempo em que expressa sua preocupação em abrir mão do lugar
154
que supostamente ocupa no desejo do Outro, buscando assim checar até que ponto
mantém o mesmo conhecimento do qual dispunha antes.
No primeiro caso, esta dinâmica pode ser apreendida no seguinte
questionamento:
Como está tudo esquisito hoje! (...) Eu era a mesma quando me levantei hoje de
manhã? Mas, se não sou a mesma, então quem é que eu sou? Ah, aí é que está o
problema! – E começou a pensar em todas as meninas que conhecia e eram mais ou
menos de sua idade, para ver se tinha se transformado em alguma delas (p. 48).
É na seqüência do texto, que surge a preocupação com o saber, marcada,
sobretudo pelo fato de Alice aventar como hipótese a possibilidade de ter se
transformado numa amiga considerada como “burrinha”, o que para ela é
inadmissível. Diante desta suposição, Alice prefere manter-se reclusa em seu novo
mundo a ter de subir e colocar-se como alguém que não sabe, algo que ela expressa
com a seguinte fala:
Já resolvi: se eu sou Mabel, então vou ficar aqui mesmo! Não adianta botarem a
cabeça e pedirem: ‘Suba outra vez, querida!’ Só vou levantar a cabeça e dizer:
‘Quem é que eu sou? Digam primeiro, e se eu gostar de ser a tal pessoa, então eu
subo. Se não, fico aqui embaixo mesmo até que eu seja outra pessoa... (p. 49).
No capítulo cinco, eis que se desenvolve de maneira veemente a relação de
dependência que, por vezes, a personagem estabelece com a figura feminina no
sentido de ver respondidos seus enigmas e a dificuldade de nomeação por ela
vivenciada.
155
Trata-se de uma dinâmica que se repete tanto na conversa com a Lagarta – já
mencionado anteriormente – como com a Pomba. No primeiro caso, quando a
Lagarta pergunta quem é Alice; e, a seguir, com a Pomba, quando a dificuldade se dá
em nomear-se como uma menina, depois de levantada a hipótese de que fosse uma
serpente.
Vemos que, desta forma, o que se encena novamente é a reedição de um
posicionamento primordial da personagem em relação ao Outro, o que se constitui
num complicador para suas crises de identidade.
Ao se voltar para essas figuras, preponderantemente femininas, outorgando-
lhes um lugar de saber, Alice por vezes abre mão do que já sabe, desautorizando-se e
esperando haver um saber capaz de responder definitivamente sua questão sobre
quem é e sobre o que deve fazer para ser aceita.
Desta maneira, ela se deixa envolver pelos diversos enigmas que lhe são
lançados ao longo de sua trajetória, o que ao invés de auxiliá-la acaba por confundi-
la ainda mais, fazendo com que, em muitos casos, aquilo que pareceria astúcia se
transforme em mera ignorância.
Para finalizar, após discutirmos os pontos que consideramos mais relevantes
para pensar a dinâmica da personagem, poderíamos inferir que se Alice não abre mão
de seu sintoma isto se deve ao fato de não suportar abrir mão do lugar da mãe como
representante fálico o que, em última instância, significaria ter de admitir a própria
falta.
Entretanto, ao retomar nossa primeira leitura do conto, quando associamos a
aventura de Alice ao processo de entrada em análise, podemos admitir ainda que a
personagem bascula entre um posicionamento que a fixa em seu sintoma e uma
tentativa de solucioná-lo, abrindo espaço para que um outro saber entre em jogo.
156
Neste sentido, no último capítulo, a aventura de Alice permite entrever uma
possibilidade de elaboração ao assumir a dimensão de sonho, que ao ser contado para
a irmã, ou seja, explicado pela realidade, possibilita que ocorra um balizamento do
desejo de Alice, resgatando-se a função da metáfora paterna que em alguns
momentos parecia enfraquecida.
A fim de concluir nossa leitura do texto de Carroll, poderíamos extrair ainda
de sua obra a correlação entre o conceito de suplência e de escrita, marcada
principalmente pela impossibilidade de se obter um sentido fechado em si mesmo,
qualidade que ao mesmo tempo nos reporta à discussão acerca do conceito de
alíngua, na medida em que toma a homofonia como motor de seu funcionamento,
admitindo significações diversas.
Neste sentido, empreenderemos uma breve discussão acerca do assunto.
6.1. Sobre a alíngua: um parêntese
Antes de darmos início à discussão sobre o termo, gostaríamos de sublinhar a
escassez de produções a respeito, talvez pela complexidade ou mesmo pela
ambigüidade com que se aborda o tema, ora tomado como alíngua propriamente, ora
como língua, embora guardando o mesmo significado – sendo que o próprio Lacan
parece fazer esse uso indiscriminado em momentos distintos de seu ensino. Deste
modo, em nossa exposição, conservaremos a escrita original adotada por cada autor
citado.
Ao discorrer sobre o que denominou de “teoria d’alíngua”, Miller (1974)
introduz o tema levantando, entre outras questões, o fato de não haver no discurso
uma forma, uma marca instituída que pontue o acento da verdade, sendo que seu
157
sentido, como bem lembrou Lacan (1972-73), só pode ser apreendido nas
entrelinhas, donde se destaca o caráter de semblante que o discurso comporta.
Nas palavras de Lacan (1972-73), “ a alíngua se refere à particularidade de
cada um, ao recalcado inconsciente, que se expressa pela via do equívoco ou do
engano, introduzindo outra dimensão da verdade a do meio dizer, não toda” (p. 219).
Miller parte dessa noção de equívoco para opor o que é da ordem da ciência e
o que se coloca pela via da língua, o que ele faz por referência a Zenão
24
, para
ressaltar o que a língua comporta de desruptivo, o que mais tarde veremos estar em
consonância com aquilo que do real a estrutura comporta:
Não conheço emblema mais belo da ciência do que esse punho fechado. O conceito
é a apreensão do real – é assim que o discurso do mestre formula o sentido do
conhecimento. Agora, o que é que desfaz essa captura, essa captura do conceito a
não ser a própria língua? – a rebelde, a inamestrável (p. 61).
Ainda que não se refira especificamente ao termo cunhado por Lacan, o
sentido é o mesmo: extrair da língua aquilo que ela conserva de falhas e imperfeições
– aquilo que lógicos como Frege e Leibniz sonhavam ver eliminado por meio da
criação das línguas formais –, como constituinte da matéria prima da psicanálise.
Nas palavras de Miller (1974):
24
Menção ao texto “Primeiros analíticos” de Cícero, no qual o autor escreve que: “Salvo o sábio,
ninguém sabe o que quer que seja, e isso ele mostrava com um gesto. Ele mostrava sua mão, os dedos
estendidos. Eis a representação, visum, dizia. Depois, dobrava um pouco os dedos. Eis o assentimento,
assensus. Em seguida, quando fechava completamente a mão e mostrava o punho, declarava que ali
estava a compreensão, comprehensio. Daí ter dado o nome de catalepse, que não era utilizado antes
dele. Em seguida, ele aproximava a mão esquerda da mão direita e, com força, fechava
completamente seu punho; dizia: eis a ciência, scientia que ninguém possui, salvo o sábio” (Cícero,
apud Miller, 1974, p. 61).
158
Dizer mais do que se sabe, não saber o que se diz, dizer outra coisa do que o que se
diz, falar para nada dizer, não são mais, no campo freudiano, as falhas da língua que
justificam a criação das línguas formais. São propriedades inelimináveis e positivas
do ato de falar. Psicanálise e lógica – uma se funda sobre o que a outra elimina. A
análise encontra seu bem nas lixeiras da lógica. Ou, ainda, a análise desencadeia o
que a lógica domestica (p. 62).
Duas décadas depois, ao trabalhar o seminário Le sinthome, Miller (2004) vai
mais além em suas discussões, descrevendo com Lacan o caminho que leva do
simbólico ao real, da linguagem à língua, da estrutura sistema à estrutura divisão.
Dentre suas afirmações está o fato de que “o que se diz não é um dado
elementar, não é um dado primeiro. O que se diz já é o que se lê. O que se diz não é o
que se quer dizer. A distância entre o que diz e o que se quer dizer é o que permite a
interpretação. Ela repousa nesta defasagem” (p. 1-2).
Além disso, coloca que “a estrutura está sempre referida a um
despedaçamento inicial, a um montante de peças soltas
25
. (...) a estrutura antes de ser
sistema é divisão” (p. 9).
A seguir, remete ao conceito inconsciente articulado por Lévi-Strauss e,
posteriormente, adotado por Lacan: “um inconsciente como tal sempre vazio e que,
como operador, impõe leis estruturais a elementos inarticulados, a um vocabulário de
imagens, de tal forma que faz dele um discurso” (p. 9-10), a esses elementos
inarticulados poder-se-ia dar o nome de grande Outro na abordagem lacaniana.
A pergunta que será colocada por Lacan (1972-73), sobretudo no final do
seminário “Mais, ainda”, é como se passa dessa estrutura divisão, da divisão
25
Nas palavras de Miller (2004), “a peça solta é um objeto que Lévi-Strauss chama de concreto, ou
seja, que sempre comporta, quando dele queremos novamente nos servir, alguma coisa
predeterminada, devido ao uso original para o qual foi concebido” (p. 7).
159
significante dos elementos, à estrutura sistema, ao que Miller (2004) responderá
dizendo que o elemento sempre conserva alguma coisa da peça solta, fazendo
menção ainda ao que Lacan (1972-73) descreve acerca da diferença entre a
linguagem e a língua.
Lacan diz que “a partir do momento em que o inconsciente é decifrado, ele só
pode se estruturar como uma linguagem, mas essa linguagem é sempre hipotética”,
daí extraindo a diferença com a língua, na medida em que esta se coloca como
anterior àquela.
Neste sentido, a linguagem se coloca como elucubração de saber sobre a
alíngua, como uma construção ou mesmo uma ficção, sendo este o ponto que Miller
(2004) descreve como o responsável pela subversão introduzida por Lacan acerca do
conceito de sintoma a partir da formulação dos nós.
Desde então, o importante é “reconhecer na natureza do sinthome que ele não
é uma formação do inconsciente, e usá-lo logicamente até atingir seu real, supondo
que, no fundo ele não tem mais sede” (p. 12). E, Miller adverte, como já marcamos
em capítulo anterior, que o uso lógico do sinthome se opõe ao deciframento: o
primeiro remete à verdade do sintoma e o segundo, ao real do sinthome.
É ligado a essa dimensão de real que se introduz a alíngua: na medida em que
esta nova formulação permite falar de sintoma como gozo e uma vez que sintoma se
define por nó de significantes, logo, há gozo do significante, ao qual se articula
alíngua.
A isto, Miller (1974) acrescenta: “a alíngua sem dúvida não se aloja no lugar
do Outro da linguagem. O outro da linguagem, ele também, cavalga atrás d’alíngua,
perde o fôlego para alcançá-la e o chiste lhe ‘pega em primeira mão’” (p. 70).
160
Essa diferença, inerente ao termo se marca no ensino lacaniano pela própria
construção auferida ao conceito de significante: ao se designar que um significante é
o que representa um sujeito para outro significante, trata-se de expor a
impossibilidade de defini-lo a não ser por referência a um outro – o que Miller
(1974) colocou como concernente a um círculo vicioso, que não admite uma
definição a não ser pela posta em jogo de no mínimo dois significantes S
1
e S
2
,
conferindo-lhe o caráter aconceitual.
A este respeito há que se destacar ainda o que Lacan extraiu da tese
saussuriana a partir da escrita de S (A), que é traduzida por Miller como: “nada é
tudo”, o que, em outros termos representa a instituição do corte, da falta. “Se há
apenas diferenças, se um elemento se coloca apenas ao se diferenciar de um outro,
então, em não importa qual todo, um será a menos. Todo manuseio do significante,
toda compreensão do significante, S, em um conjunto A, cria uma perda, notada
S(A)” (p. 65).
Desta forma, poderíamos concluir esta breve abordagem do tema,
parafraseando Miller ao dizer que: “sem essa alíngua não haveria verdade, mas que a
verdade nessa alíngua não pode ser definida – ela encontra-se aí em ato, livre,
desencadeada. Não há mestre do significante, a não ser derrisório, o clown, o bufão
do carnaval, ou ainda ‘o Homem mascarado’, mascarado talvez com o rosto da
mulher” (p. 67).
Deste modo passamos á apresentação dos casos trabalhados, a fim de
apreender para qual parcela de real o discurso das pacientes aponta e de que maneira
elas se posicionam frente a este furo.
161
7. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS CASOS CLÍNICOS
“O sujeito é levado a se comportar de
uma maneira essencialmente significante,
repetindo indefinidamente algo que lhe é,
propriamente falando, mortal”.
Jacques Lacan
Passemos à apresentação e discussão dos casos acompanhados nesta pesquisa,
a partir dos quais pretendemos primeiramente demonstrar de que maneira a
constituição psíquica da mulher, sobretudo no que tange ao aspecto sexual, encontra-
se diretamente relacionada ao modo como a figura materna é capaz de lhe significar
a castração.
Neste contexto, a relação amorosa se coloca numa posição de destaque no
discurso dessas mulheres, sobretudo em Doralice e Maria Madalena, quando suas
escolhas refletem um posicionamento anteriormente adotado em relação à mãe.
Já questão do conhecimento é evocada como um modo preencher uma falta,
da mãe ou das próprias pacientes, e de tentar assim restaurar uma imagem de
perfeição.
162
7.1. Doralice
Doralice busca atendimento, alegando dificuldades no relacionamento com o
namorado, de quem já se separara uma vez e por quem nutre “um amor desmedido e
um medo muito grande de ser deixada novamente”.
Nesta sessão, relata estar no último ano de graduação de uma conceituada
universidade, marcando sua angústia frente à conclusão do curso e à injunção que se
coloca a partir daí, uma vez que “sua vida mudaria e ela não se via preparada para
isto”.
Começa a se perfilar o modo como a paciente se relaciona com a mãe e o
namorado, oferecendo-se, muitas vezes, como objeto de gozo de ambos.
A mãe, de quem Doralice é totalmente dependente, tanto emocional como
financeiramente, é referida como não castrada, como alguém pouco interessada no
desejo do outro, extremamente controladora e sempre preocupada em apontar para
algo que não está bem na filha, para algo em que ela não corresponde ao desejo
materno. O namorado, por sua vez, numa variação da mãe, é visto como “o detentor
da verdade absoluta”.
No decorrer das sessões, nota-se que Doralice se encontra atrelada a um
mesmo padrão: o saber se encontra colocado do lado das mulheres, que não ela
obviamente. Os homens nada sabem, questão que se colocará em seu discurso
primeiramente em relação ao namorado, estendendo-se para a figura do pai, do irmão
e, assim, sucessivamente, com as demais figuras masculinas com quem convive.
Outro ponto levantado concerne à dificuldade de organização relatada por
Doralice, seja em relação aos seus pertences pessoais, seja em relação ao próprio
163
tempo “sempre insuficiente para realizar o que tem que fazer”, e como não
consegue se organizar, não consegue fazer nada.
Atrelada a esta questão, surge a referência à demanda materna por um corpo
perfeito, que se traduz nos diversos regimes realizados pela mãe, durante a infância
de Doralice, na plástica abdominal feita recentemente e, sobretudo, na “implicância”
com a alimentação e a necessidade de ginástica da filha, o que em última instância
representa o deseja da mãe por uma filha perfeita, construída a sua imagem e
semelhança.
Como conseqüência desse imperativo, o corpo se mantém praticamente
eclipsado no discurso de Doralice, principalmente no que se refere à sexualidade,
aparecendo em sua fala apenas quando esta se nomeia como “a gorda”, “a feia”, “a
indesejável”, como “essa coisinha”, marcando bem sua insignificância frente ao
Outro, sobretudo por não conseguir corresponder ao ideal de beleza materno.
Além disso, vê-se articular alguns sintomas conversivos como infecções
vaginais, que despertam pavor no namorado “hipocondríaco”; enxaquecas, que
médico algum consegue descobrir a causa e dores de estômago, ponto de
identificação com o sintoma do pai, e para as quais também parece não haver muita
solução.
É justamente neste ponto que o pai é introduzido no discurso, representado
por um sintoma, que aos olhos da paciente denota fraqueza e insegurança emocional
e mostrando-se, basicamente, apagado pela figura materna, para a qual delega até
mesmo a responsabilidade de gerenciar o patrimônio e o capital da família.
De certo modo, esta subserviência o fará reproduzir, em muitos momentos, a
mesma postura de cobrança da mãe em relação à filha, podendo ser visto, por
exemplo, nas constantes defesas que empreende em favor da esposa, ou quando
164
demanda que Doralice fale e escreva tão bem quanto ele, o que, neste caso, é
revertido em seu oposto, ou seja, no verdadeiro fracasso que se instaura tanto nas
entrevistas, quanto nos textos produzidos por Doralice, bem como nos concursos
realizados por ela.
Cria-se, desta maneira, uma verdadeira fobia por qualquer teste que se
imponha, seja no âmbito profissional ou escolar, estendendo-se para momentos em
que seja necessário que Doralice trave uma conversa telefônica com alguém que fuja
de suas relações familiares ou de amizade. Segundo a paciente, ela “tem a impressão
de que vão faltar as palavras em sua cabeça, e que ela vai ficar muda, sem saber o
que falar”.
Trata-se de uma questão que se associa à dificuldade anteriormente relatada
por Doralice de se organizar, fundindo-se num “fazer nada” que se repete
constantemente em seu discurso, como se suas queixas se encontrassem a serviço da
produção de um nada, representado pela constante anorexia mental com que se
apresentava, no sentido de nada poder ou nada saber.
No que se refere ao namorado, o eixo central no relacionamento de Doralice
se desenvolve sempre no sentido de verificar o que ela significa para ele, o que
resulta em fracasso, já que se vê constantemente posta “em segundo plano”.
É como se todas as discussões empreendidas por Doralice tivessem por
objetivo checar até que ponto seu desejo conta para o namorado, alguém descrito
como assentado num saber absoluto, que ela tenta, sem sucesso, mostrar que não se
sustenta, chegando, para isto, a se envolver em diversas situações nas quais segue à
risca as “orientações” dadas pelo namorado, mesmo que perceba, de antemão, que
não darão o resultado esperado, “só para mostrar que ele não sabe de tudo”.
165
Interroga-se sobre o que faria seu namorado gostar dela, e se este gostar é
realmente verdadeiro, uma vez que se vê como alguém “indesejável”. Coloca, desta
forma, uma questão acerca do que seria o desejo desse homem, do que seria o desejo
do Outro, mais diretamente relacionado, neste caso, à figura feminina, e, neste
sentido, Doralice se pergunta sobre “o que é ser uma mulher”.
Na elaboração dessa resposta, Doralice se envereda por uma série de
situações onde tenta pôr à prova o que seja esse desejo e verificar se realmente pode
despertar algum tipo de interesse no sexo oposto. Para isto, passa a investir em outros
homens, na forma de insinuações dirigidas aos colegas da universidade, o que
acontece paralelamente ao seu relacionamento com o namorado.
Entretanto, quando vê suas investidas são respondidas, mesmo “sem fazer
muito esforço”, recua assustada com a abordagem desses homens que anseiam por
um contato mais íntimo, e, desimplicada, diz não saber por que tantos homens a
procuram.
Como desdobramento dessa questão histérica sobre o desejo, eis que Doralice
introduz em seu discurso a figura da Outra, desta vez não mais encarnada na
personagem materna, mas relacionada a outras mulheres às quais Doralice se liga
numa espécie de colagem e atribuição de saber que a remetem à mesma posição de
ignorância e insignificância assumida perante a mãe.
São mulheres falicizadas a quem nossa paciente acredita ser endereçado o
olhar e o desejo dos homens e a partir das quais espera, entre outras coisas, responder
sua questão sobre o enigma da feminilidade. Diante do que percebemos o quanto
Doralice se encontra sustentada sobre um equivoco, a saber: a crença na equivalência
entre “ser mulher” e “ter poder”, entre “ter poder” e “ter amor”. O que, de certa
166
forma, esclarece a frase tantas vezes repetida, por ela: “nada sei, nada tenho, nada
sou!”.
Conhecimento e poder aparecem atrelados por várias vezes no discurso de
Doralice que, por acreditar ser desprovida de tal atributo, considera-se também
incapaz de despertar interesse no outro, sendo que o saber, neste sentido, tem a
conotação de moeda de troca, algo valorizado pelo pai e, sobretudo pela mãe, que a
todo o momento lhe marca a deficiência.
Assim, dando seguimento a sua busca por mulheres que representem esse
saber que ela tanto almeja, eis que introduz em seu discurso a figura de uma amiga
da universidade que passa a ser idolatrada e imitada em todos os sentidos, mas,
sobretudo no que diz respeito aos relacionamentos amorosos, sendo com uma grande
parcela de gozo que Doralice afirma que seus “namorados ou foram anteriormente
namorados de X., ou virão a ser”.
Neste momento, Doralice só consegue sentir-se desejada ou engendrar-se na
relação com um homem quando revestida da imagem da amiga, a qual considera
como o protótipo do que é ser feminina.
Numa de suas sessões, Doralice descreve uma cena vivida entre ela, essa
amiga e um colega, na qual trocavam jogos de sedução, o que, num dado momento,
despertou em Doralice uma dúvida acerca de sua sexualidade. Dúvida que ela
enuncia com a seguinte colocação: “Mais do que estar com o menino, o que mais me
chamava à atenção era minha amiga. Eu ficava olhando para ela e quase chegava a
beijá-la! Sei lá, eu fiquei pensando: será que eu sou homossexual?”.
Paralela à dúvida real que se instaura, vemos surgir a função do “dar a ver”,
ou seja, Doralice começa a buscar ser percebida pelo Outro só que, mais uma vez, de
modo a colocar-se como um objeto de gozo, convidando o outro a gozar com ela,
167
querendo causar espanto e horror, algo que começa a ser trazido, entre outras coisas,
por seu discurso dramático durante as sessões e pela exacerbação das cenas de choro
que descreve com os familiares, amigos e professores, o que nomeia como
“loucura”.
Desta forma, Doralice reforça perante o olhar do Outro sua imagem de
incapacidade e de inimputabilidade, encarnando, através de seus choros e birras, uma
postura infantil diante dos homens, como um modo de não se confrontar com sua
sexualidade.
Na seqüência dos atendimentos, uma vez trabalhada a necessidade de “dar a
ver”, eis que a dúvida inicial sobre a homossexualidade se desfaz, embora o
deslizamento para outras figuras femininas se mantenha, porém de modo distinto,
adentrando o campo profissional, no qual Doralice passa a eleger agora,
principalmente pela via intelectual, uma de suas colegas de hospital como a sabedora
de todas as respostas acerca de suas dificuldades, tanto amorosas como no trato com
seus pacientes, tornando-se tão acirrada sua dependência e anulação a ponto de
Doralice não saber responder por seus atos sem antes perguntar para a nova amiga
sua opinião sobre o que disse ou fez em seu trabalho, afirmando “não ser capaz de
discernir sozinha entre o que é certo ou errado”.
Marca-se, assim, um posicionamento que se, por um lado, protege Doralice
de correr riscos, eximindo-a de toda a responsabilidade por seus atos, por outro,
priva-lhe de colher os frutos de seu trabalho.
Essa desimplicação se verá representar também pelo surgimento dos
significantes brincar/brincadeira, que permearão não só suas relações amorosas,
como familiares e profissionais.
168
No primeiro caso, o tema se introduz como uma forma de Doralice não
responder pelo investimento sexual dirigido aos homens que a cercam. No segundo,
como um modo de se desculpar pelas ofensas direcionadas à mãe.
No meio profissional, no qual começa a dar mostras de suas dificuldades já
nos estágios da faculdade, esse mesmo significante sofre uma pequena variação,
revelando um posicionamento identificatório de Doralice com a figura infantil, onde,
nos relatos que faz de seu trabalho com crianças, a paciente se coloca no lugar de
quem vai “brincar” com elas, quando sua função, na verdade, seria clinicar.
Seu posicionamento encontra como ponto de ancoragem a dependência
emocional e financeira, nutrida em relação à mãe, e que será intensificada, neste
momento, pela dificuldade de Doralice em estabelecer relações funcionais que não
sejam encadeadas pela equação “amor = moeda de troca”, dificuldade que se
verificará na necessidade de ter todas as suas vontades respondidas pelo Outro, sem
que se esforce, ou que produza algo para merecê-lo, sendo que seu valor também
será medido por meio do que venha a receber e não por sua capacidade.
Assim, o amor entra na equação como substituto do saber, o que mais uma
vez reforça suas expectativas em relação ao Outro, eximindo-a novamente de sua
responsabilidade.
Desta forma, “receber” ou “não receber” assume o significado de ser amada
ou rejeitada pelo Outro, e este equívoco trará conseqüências importantes para suas
relações profissionais, que se estruturarão basicamente sobre a premissa do “dão ou
não me dão dinheiro/atenção/escuta/amor”, postergando ainda mais sua assunção ao
status de profissional, adulta e mulher, na medida em que, mais uma vez, a falta é
posta do lado do Outro.
169
Neste sentido, Doralice espera sempre que façam por ela, o que é
exemplificado na situação em que tem a oportunidade de ser promovida em sua
função, mas não reivindica algo para o que teria competência, esperando que uma
amiga – ou seja, uma mulher assentada no saber –, faça isso. Desta forma, ela não se
expõe ao risco de fracassar e, se algo der errado, pode responsabilizar a amiga, assim
como sempre faz com a mãe.
Nesta sessão, Doralice fala ainda do quanto se “sente a pior pessoa do
mundo”, “a pior profissional do mundo”, levantando apenas uma exceção: “existe
alguém pior que eu”, referindo-se a uma colega cuja figura é totalmente depreciada
pelos demais.
Trata-se de um trecho de grande importância para nossa análise, por permitir
que marquemos, em sua formulação, a função da estrutura lingüística e sua relação
com o sintoma, o que se apreende pelo emprego do termo “pior”, empregado por
Doralice, e pela posição do sujeito da frase – oculta por trás deste “eu” que aparece
em último lugar na cadeia associativa. Assim, dizer: “existe alguém pior que eu” é
bem diferente de dizer: “eu sou melhor que alguém”.
Sob este prisma, a posição de Doralice seria equivalente a de Dora, ao situar-
se neste ponto de anulação primordial, reconhecendo-se como um sujeito
prontamente colocado a responder ao desejo do Outro, cujo poder, por vacilar a
potência paterna capaz de barrá-lo, é visto como absoluto.
Encontramos, nesta conflitiva, os pontos de ancoramento das “crises
existenciais” de Doralice, reforçadas por frases como: “eu não vejo mais sentido em
nada na minha vida”, “eu não tenho perspectiva profissional, eu não tenho
perspectiva com meu namorado, eu não tenho perspectiva em lugar nenhum, eu
170
estou perdida...”, ou pela correlação traçada entre a história de um parente próximo
que tenta suicídio e a sua própria história, ressaltando a vontade que sente de morrer.
“Morrer”, nesta fala, diz respeito menos à morte real que à busca por um
apagamento que protegeria Doralice de entrar em contato com sua falta e a retiraria
dessa posição de gozo e de vítima, na qual insiste em se manter.
Desta maneira, a paciente permanece atrelada a uma posição de carente, de
coitada, o que a impossibilita, por exemplo, de contar aos amigos e familiares mais
pobres de suas viagens para o exterior e dos luxos que sua condição financeira
oferece, já que fazê-lo significaria se pôr no lugar de quem tem, de quem não é
totalmente desprovida de recursos, de quem tem algo a perder.
Como conseqüência deste posicionamento, Doralice se apega a uma suposta
completude que se sustenta pelo excesso de depreciação, podridão e migalhas pelos
quais se representa.
Desse primeiro momento, de queixas e lamentações, até a concretização de
um trabalho de implicação e elaboração transcorrem-se aproximadamente dois anos.
No início deste período, Doralice se inscreve em diversos concursos, nos
quais se classifica num nível muito abaixo da média, diante do que, se por um lado se
sente deprimida pelo fracasso, por outro revela um certo alívio diante do horror que
seria ter que enfrentar uma entrevista. De certo modo, ela se boicota para não ter que
se defrontar com essa situação e com o desconhecido – boicote que ela chega a
cogitar literalmente em seu discurso.
No entanto, o êxito de outras colegas “menos capacitadas” que ela, faz com
que tenha dificuldades em manter sua postura de total desimplicação e aparente
completude.
171
Assim, mesmo de maneira desorganizada e ainda um tanto masoquista –
como a pedir que lhe seja lançado o chicote –, Doralice busca freneticamente
entender o que faz com que fracasse em suas tentativas.
Neste percurso associativo, retoma a referência ao saber intelectual do pai,
colocando-o numa posição quase inatingível, por causa de seu conhecimento em
escrita e comunicação, assumindo mais uma vez o pólo oposto deste par, ou seja, o
de quem nada possui, nada sabe.
Mas, eis que surge neste período uma nova oportunidade de trabalho, perante
a qual os questionamentos de Doralice permitiram uma intervenção no sentido de
uma retomada dos conteúdos absorvidos em sua formação acadêmica e pessoal.
Desta forma, quebra-se aquela seqüência “nada tenho”, “nada sou”,
favorecendo que algum material pudesse ser aproveitado, construindo-se um corpo
que vem dar forma à fala de Doralice em sua entrevista, possibilitando a aprovação
no concurso e a entrada no campo profissional.
O corpo teórico que Doralice pôde resgatar em análise e que se constituiu na
possibilidade de construção de um Outro saber, que viria a se conjugar no lugar onde
antes só se encontrava o nada, adquiriu um outro estatuto, retirando nossa paciente de
uma posição de paralisia mental e permitindo que pudesse lançar um outro olhar
também para seu corpo físico, marcando sua entrada numa nova modalidade
discursiva.
Mesmo que no início este processo tenha se dado pela via do semblante, eis
que Doralice começa a relatar preocupações que antes não faziam parte de seu
registro, tais como: o trato com o cabelo, com as unhas e a pele, indicando que já era
possível olhar para seu corpo sem a necessidade de revesti-lo de um caráter
masculinizado.
172
Além disso, verificamos mudanças também no âmbito dos relacionamentos
com o sexo oposto, frente aos quais Doralice começa a apresentar uma leitura mais
conciliadora, o que é simbolizado em seu discurso pela frase: “existe coisas de
mulher e coisas de homem”, como a significar a inoperância, neste momento, de seus
antigos questionamentos e reivindicações por uma posição igualitária entre os sexos.
De certa forma, abrir mão dessa identificação com a figura masculina e dessa
busca por uma equivalência entre homens e mulheres pôde ser entendido como uma
maneira de admitir a diferença, a falta, a castração e, como tal, constituiu-se num
importante progresso dentro do tratamento.
No que diz respeito ao campo de trabalho, surge em seu relato a frase “ir
vestida de”, como uma formulação inicial para o que, num futuro próximo, tornar-se-
ia uma possibilidade concreta de entrada, não só imaginária, mas sobretudo
simbólica, nos meandros do que significava sua escolha, postura e papel profissional.
Neste sentido, Doralice começa a atentar para a importância de sua fala e de
sua intervenção junto aos grupos, aos pacientes e aos profissionais da equipe com os
quais atua, e, como não poderia deixar de ser num caso de histeria, essa percepção se
reflete também no corpo, pela modificação dos trajes utilizados por ela.
À medida que o tratamento vai transcorrendo, Doralice começa a associar
ainda as dificuldades encontradas no trabalho com aquelas dúvidas descritas acerca
de seus relacionamentos amorosos, ao relatar o interesse afetivo de alguns de seus
pacientes que tentam extrapolar os limites de uma relação clínica, assistencial ou
terapêutica, diante do que, pela primeira vez, Doralice parece efetuar um giro de
discurso, passando de um momento de desimplicação a um questionamento sobre “o
que de sua postura estaria influenciando as pessoas com quem convivia, de modo a
173
despertar nelas um interesse dessa ordem?”. E, conclui: “há algo meu provocando
isto!”.
Deste modo, Doralice não só consegue formular uma questão na qual se conta
como parte integrante e desencadeadora deste processo, como traça ainda uma cadeia
na qual pode se lembrar que esses jogos de sedução não começam a se desenvolver
somente na universidade, como achava até então, mas que ocorriam já no início de
sua adolescência.
A partir deste giro, é contada sua entrada em análise e efetuada a passagem ao
divã, após a qual se verá operar outras mudanças.
Dentre elas, tomamos a dificuldade de organização que, se num primeiro
momento podia ser lida como uma forma de sustentar o discurso materno, validando
a incapacidade e irresponsabilidade da paciente, num segundo tempo designa o
momento em que Doralice começa a mudar as coisas que fazia só para atender à
expectativa do Outro, passando a dar mostras de seu próprio desejo.
Esta mudança pode ser vista, por exemplo, quando a paciente declara que não
gostava de ir à academia – o que só fazia para não ficar gorda e, assim, responder à
demanda materna por um corpo perfeito –, ou ainda, quando assume que não gosta
de fazer aula de inglês e vai parar o curso para se dedicar a algo de que realmente
goste.
Na relação com o namorado tambémé possível ouvir a questão de que o
desejo não está somente do lado do Outro. Ao descrever uma discussão entre eles
consegue lhe dizer que “a decisão de ficarem juntos não é só dele”, e perguntar se
ele “já pensou que, de repente, ela pode não querê-lo mais”.
Além disso, Doralice indaga: “como eu posso ficar com um homem que diz
que, para gostar de mim, eu preciso ser outra pessoa? E, o que fazer se só imaginar
174
viver sem ele já é insuportável?”. Ao que ela mesma responde, ao concluir: “eu não
posso ficar com um homem para quem eu estou sempre em segundo plano. Eu não
posso querer ficar só com as migalhas”.
Vemos ainda a passagem da “loucura”, do “não consigo”, do “é maior que
eu” à possibilidade de construir saídas que lhe permitissem dialogar e se posicionar
de maneira mais congruente com seus amigos, havendo a quase total exclusão de
cenas de crises nervosas e de desespero, fato que favoreceu que a paciente pudesse
enveredar por outras questões importantes de sua dinâmica psíquica, passando a
traçar metas para o futuro, a planejar investimentos para a sua vida profissional e a
pautar suas relações menos na fantasia que na realidade.
Desta forma, vimos encerrar este recorte clínico, que teve as sessões
finalizadas em meados do quarto ano de atendimento, por necessidades pessoais de
afastamento da analista, sendo que a paciente prosseguiu análise com outro
profissional.
A seguir, passamos à apresentação do segundo caso trabalhado na pesquisa.
7.2. Madalena
O primeiro encontro com Madalena, tal como em Doralice, revela uma
dinâmica conflituosa em relação à mãe e uma certa dificuldade de se posicionar
como sujeito frente à sua onipotência.
Já no primeiro contato, a paciente revela uma necessidade de se submeter ao
olhar materno, bem como uma impossibilidade de estabelecer limites que
preservassem sua vida pessoal.
175
A princípio, esta dinâmica se revela no duplo pedido proferido por Madalena,
que chega à entrevista acompanhada de seu cunhado, para o qual também reivindica
tratamento.
Ao investigarmos seu pedido, o quadro que se desenha aponta por um lado
para a identificação da paciente com o posicionamento do cunhado, figura fragilizada
e impotente diante da ex-esposa, com a qual convivia sob o mesmo teto, mesmo esta
já se relacionando com outros homens, e, ao mesmo tempo, frente ao comando da
sogra – senhora absoluta em seu próprio lar.
Por outro, representava um modo de apaziguar o Outro materno, à medida
que via no atendimento concomitante com o cunhado uma forma de ver seu
tratamento aceito pela mãe, já que alguém de sua confiança acompanharia a filha.
Uma vez esclarecida a impossibilidade de atender a seu pedido e definida a
continuidade do processo com Madalena, eis que pudemos nos aprofundar mais no
que seria sua conflitiva familiar, constituída por uma aliança entre mãe e irmã com
intuito de controlar da paciente e pela presença de um pai descrito como “um zero à
esquerda”, plenamente assujeitado ao comando materno.
Embora no início de seu tratamento, Madalena estivesse com cerca de vinte e
quatro anos, concluindo o segundo curso universitário e trabalhando em duas
instituições de ensino, isto não impedia que se sentisse totalmente dependente da
mãe.
Todo salário recebido era entregue integralmente a ela; mesmo a paciente
dispondo de carro próprio era a mãe quem autorizava seus passeios, apoderando-se
das chaves do veículo e liberando-as apenas quando considerava o programa da filha
apropriado.
176
Nessas ocasiões, geralmente incumbia um amigo de sua confiança de
acompanhá-la, sendo que em seu regresso exigia satisfações de todos os passos
seguidos por Madalena.
Ainda que se queixasse desse controle acerca de seus atos e escolhas,
sentindo-se invadida em sua privacidade, Madalena se oferecia como objeto de gozo
materno, criando situações que lhe permitiam se colocar como alvo das críticas,
opressões e controle da mãe, não conseguindo se dar conta de sua parcela de
responsabilidade neste processo e considerando-se impossibilitada de separar-se dela.
Exemplo dessa dinâmica pôde ser visto já a partir de seu primeiro encontro,
quando ao mesmo tempo em que manifestava seu desejo de preservar um espaço de
escuta, onde pudesse se colocar livremente longe da influência da mãe deixa escapar
que esquecera o endereço do consultório em casa, vendo-se “obrigada a recorrer à
mãe”, fato que lhe abre o acesso para qualquer intervenção futura.
Configura-se um panorama no qual a paciente, mesmo a custo de muito
sofrimento e indignação diante da tirania materna, obtém um ganho secundário de
seu sintoma, no sentido de ver-se ilusoriamente protegida dos perigos decorrentes da
possibilidade de assumir suas responsabilidades e de responder como uma mulher.
Em suas palavras, “passara tanto tempo vivendo como uma criança,
considerada incapaz de responder por si, que sentia que não havia se tornado uma
adulta, e que precisava aprender a crescer”. Entretanto, Madalena oferecia grande
resistência em adentrar esse caminho que certamente a levaria a separar-se da mãe.
Embora se tratasse de um processo lógico, Madalena se mantinha atada à
vertente concreta da questão, ou seja, para ela a única saída possível residia numa
separação de corpos, de casas, ou até de países.
177
Por mais paradoxal que pareça, esta visão contribuía em muito para a
manutenção do quadro de assujeitamento de Madalena, já que como “ela não
possuía meios financeiros para tamanha empreitada”, excluía qualquer alternativa,
mantendo-se atrelada à mãe.
Além disso, por meio de seus relatos, ficava cada vez mais evidente que o
corte deveria se dar no nível psíquico, já que a mãe também não considerava
nenhuma possibilidade de viver independente da filha, exemplo que pode ser visto
quando a paciente encontra emprego num outro estado, depositando nisso sua
esperança de morar sozinha, ao que a mãe responde: “será ótimo vivermos fora de
São Paulo”, já se incluindo no pacote, como se mãe e filha se constituíssem numa só
pessoa.
Madalena sempre fora considerada pela mãe como “a parte podre da
família”, “como aquela que é sempre do contra”, “como a errada”, “a perdida”,
sendo preterida em relação à irmã que vive em plena cumplicidade com a figura
materna.
Tal predileção e cumplicidade lançam um enigma para Madalena, que
pergunta constantemente “como a irmã pode ser tão querida se sua postura,
sobretudo como mulher e como esposa que mantém casos extraconjugais, a igualam
a uma prostituta?”.
Associada a este fator, outra questão que se coloca para a paciente diz
respeito à passividade dos homens de sua família: tanto o cunhado como o pai se
calam completamente diante das atitudes de suas respectivas esposas, submetendo-se
a sua autoridade e aceitando comportamentos levianos.
178
No que se refere à figura paterna, mais especificamente, Madalena afirma
“não ser possível recorrer ao pai, já que ele é visto como um fantasma na família.
Praticamente não existe, nem tem voz frente à mãe”.
Como desdobramento da relação com a figura materna, Madalena relata ainda
dificuldades na vida afetiva.
Refere-se primeiramente a uma união de três anos, algo que se deu após três
meses de namoro, e que implicou no rompimento momentâneo com a mãe, dada a
rapidez da união e a imposição do rapaz de que a sogra não interferisse na vida do
casal.
Madalena admite em sessão posterior que “a pressa em se casar foi uma
tentativa de se ver livre da mãe”, o que logo resultou em fracasso já que esta não se
conformou em ser excluída do controle da vida da filha, “passando a disputar a
posse dela com o genro”.
Este, por sua vez, consistia numa espécie de negativo da figura materna:
homem mais velho, estabilizado financeiramente, profissional da área militar, desde
o início revela-se uma figura extremamente controladora e possessiva, que logo
proíbe Madalena de trabalhar, colocando-a sob sua completa dependência.
Além disso, segundo a paciente, “com o casamento, parece ter se formado
uma guerra entre sua mãe e o marido, onde para estar com um fazia-se necessário
abrir mão do outro”.
Madalena não suporta a tensão que se estabelece e, dividida entre seguir a
vida de mulher casada e a vida de filha submissa, eis que começa a beber e a
importunar o marido com suas críticas e sentimento de culpa pelo abandono da mãe,
momento em que ele começa a bater na esposa, formando-se o cenário ideal para que
“a mãe invada a casa da filha e a resgate novamente para seus cuidados”.
179
A partir de então, Madalena é confinada em “prisão domiciliar”. A mãe lhe
toma novamente as chaves do carro, passa a manter a casa trancada e a filha sob
permanente vigília, impedida de ver ou falar com/e sobre o ex-marido, o qual
também não se manifesta no sentido de reatar o casamento.
É neste momento, que a paciente é dada pela mãe como mentalmente incapaz
de responder por seus atos, sendo levada por ela para atendimento psiquiátrico.
Constituía-se a partir de então um paradoxo, onde, na tentativa de fugir à
arbitrariedade materna, Madalena acabava por reforçar seu imperativo de gozo,
tomando atitudes que mais pareciam endereçadas à mãe, no sentido de reforçar a
idéia de que era realmente um fracasso.
Numa dessas tentativas, Madalena pula a janela do quarto, bebe muito e bate
o carro, o que é lido pela família como um ato suicida, exacerbando ainda mais sua
contenção.
É somente depois de conformar-se aos limites e condições impostos pela
família – comandada pela mãe – que Madalena conquista o direito a uma “liberdade
vigiada”: o controle de seus horários e saídas torna-se ainda mais acirrado, sendo
submetida ao acompanhamento de um amigo ou da irmã.
Ao voltar para a casa ocorria sempre uma revista de seus pertences, e a mãe
cheirava-lhe o hálito para verificar se fizera uso de álcool.
Não tinha privacidade em seu próprio quarto, que era constantemente
invadido pela mãe e pela irmã. Suas conversas telefônicas eram escutadas e sua
agenda conferida diariamente.
Numa das noites, quando Madalena chegou pouco depois do horário
combinado, ao inspecionar sua roupa, a mãe nota que seu cachecol estava
180
desalinhado, dando início a uma série de insinuações que denigrem a integridade
moral da filha, equiparando-a a uma prostituta.
Na seqüência, pede à filha que ligue, por volta das duas horas da madrugada,
para o rapaz com quem saiu para que ela possa checar com quem mais a filha se
envolveu naquela noite, ao que ela prontamente atende, deixando-se devastar, mas
também reproduzindo a postura da mãe ao deixar invadir a vida de um amigo, algo
que se repetirá em outros momentos de seu discurso.
Atendendo à imposição materna de distanciar-se do ex-marido, eis que
Madalena parte em busca de outros homens, conhecidos em encontros fortuitos, no
trânsito, em estacionamentos de shoppings ou bares. Pessoas de quem Madalena
pouco sabe e para quem logo abre sua privacidade, a começar por seu endereço, logo
se estendendo para sua intimidade, o que mais uma vez reforça a imagem de
promiscuidade outorgada pela mãe.
Uma vez estabelecido o primeiro contato com esses homens, Madalena os
levava para a casa, reproduzindo a falta de limites vivenciada no âmbito familiar,
expondo-se em demasia para parceiros desconhecidos, ao mesmo tempo em que
abria caminho para os questionamentos e críticas da mãe e da irmã acerca de seus
envolvimentos.
Alguns desses relacionamentos se desenvolviam concomitantemente e
traziam como principal característica o fato de Madalena se entregar facilmente a
seus pretendentes e, a seguir, recuar, dizendo ter sido invadida em sua privacidade,
sem se dar conta de que sua atitude, tal como ocorria com a mãe, era o que permitia
tamanha invasão.
Paralelamente, tempos depois, Madalena volta a se encontrar às escondidas
com seu ex-marido, momento em que equipara a relação mantida com ele à mesma
181
travada com a mãe, descrevendo-as como “semelhantes ao uso de uma droga, da
qual não se consegue abster-se ainda que faça mal”.
Decorridos alguns meses de tratamento, Madalena parece aos poucos assumir
parte de sua vida, ainda que seus atos se apresentem com um duplo sentido, como
nos encontros com o ex-marido, que por um lado representam uma forma de romper
com a imposição da mãe, e por outro um modo de assumir a postura da prostituta, à
medida que Madalena se torna amante do ex-companheiro que havia se casado
novamente, encarnando assim um dos papéis que lhe fora outorgado no discurso
materno.
O mesmo ocorre com a retomada da bebida alcoólica que ora serve para que
Madalena se afirme como independente da mãe e como capaz de se controlar
sozinha, ora como uma forma de dar mostras de seu fracasso, à medida que volta
bêbada para a casa, quase sempre carregada por estranhos.
Embora, entre altos e baixos, aos poucos, Madalena consegue retornar à vida
profissional, sendo capaz de traçar pequenos contornos, a fim de construir um
mínimo de privacidade que a permita se reconhecer como separada da figura materna
e, ao mesmo tempo, ver-se implicada em seu sintoma.
A partir de então, eis que a paciente começa a se questionar acerca de suas
escolhas amorosas, marcadas em alguns momentos por um posicionamento
masoquista, em outros por uma atitude leviana, o que ela percebia como formas de
não levar os relacionamentos adiante, assumindo os riscos e a responsabilidade que
os mesmos requeriam e como um modo de não crescer, de não se tornar adulta e tão
pouco mulher.
182
Como decorrência de seus questionamentos, Madalena rompe com os
relacionamentos fortuitos vividos anteriormente e passa a se dedicar a um único
parceiro com quem parece manter uma relação mais sólida.
Nesta etapa do tratamento, Madalena associa seus medos à condição que se
formou em relação ao lugar que lhe fora dado pela mãe, e conclui que para resolver
seus problemas amorosos e aceitar-se como mulher deveria primeiramente resolver
sua questão com a figura materna.
Consolidou-se, assim, uma descoberta importante na vida e no tratamento de
Madalena. Uma descoberta que poderia levá-la a trabalhar esta relação ou a recuar e
fixar-se ainda mais nela. Infelizmente, Madalena escolhe o segundo caminho.
Assustada com a possibilidade de se confrontar com a mãe, Madalena começa
a destruir uma a uma as conquista efetuadas até então. O vício da bebida, até o
momento controlado, vem à tona novamente. Embriagada, num bar, eis que
Madalena recorre ao seu outro vício, o ex-marido, ao qual solicita que venha buscá-
la, fazendo do mesmo, tão como ocorria com sua mãe, uma testemunha de seu
fracasso.
Ao mesmo, tempo põe a perder o relacionamento estável que mantinha com o
coordenador da escola em que lecionava, mais uma vez por revelar sua intimidade
para desconhecidos, desta vez ao falar de seu envolvimento para uma faxineira do
próprio estabelecimento em que trabalhava, além de levar ao conhecimento de seu
atual parceiro, seu retorno à bebida e seu pedido de socorro ao ex-companheiro,
numa sucessão de acting out infinita, que culminou no passo seguinte: as faltas no
trabalho e a conseqüente demissão.
Madalena estava novamente diante do que dizia tanto temer, mas que também
lhe conferia sua parcela de gozo: a dependência psíquica e financeira da mãe.
183
Diante dessa situação, suas saídas com amigos se tornam cada vez mais
escassas, sendo seu isolamento inevitável.
Dada a falta de dinheiro e a dificuldade em arrumar um novo emprego,
Madalena começa a levantar a hipótese de trancar a matrícula na faculdade, o que
não só a prejudicaria profissionalmente como ainda aumentaria o tempo de
convivência com a mãe.
Estrutura-se, assim, um momento crítico no quadro da paciente que, numa
atitude maníaca, começa a questionar todos os âmbitos de sua vida, buscando
incessantemente um responsável por sua desgraça.
Nesta ciranda, traz à tona suas consultas psiquiátricas, que considera serem
prejudiciais à sua saúde, deixando entrever seu desejo de romper os atendimentos – o
que, por associação, logo remeteria a sua concepção do próprio tratamento analítico,
que ela viria a abandonar duas sessões seguintes, entregando-se mortalmente ao gozo
materno.
Meses depois, ela volta a buscar ajuda, mas com um outro profissional
indicado por nós – já que não podíamos atendê-la –, sendo levada pelas mãos da mãe
e da irmã, transtornada como uma louca que não pode responder por si.
Concluímos, assim, mais um recorte clínico e damos seqüência à exposição
do último caso de nossa tese.
7.3. Maria do Carmo
Maria do Carmo procura atendimento “por não estar conseguindo levar a
cabo os diversos compromissos assumidos ao longo de sua vida”.
184
Entre esses compromissos, destacava-se como ideal materno, posteriormente
acatado pela filha, a incumbência de que fosse perfeita, motivo pelo qual a paciente
fracassava em suas atividades acadêmicas e profissionais, já que diante de qualquer
possibilidade de imperfeição abandonava a tarefa pela metade, passando a outra e,
assim, sucessivamente, acumulando cada vez mais funções.
Atrelado a este ideal, coloca-se ainda como imperativo materno que a filha se
forme em uma universidade pública, realizando assim o sonho que a mãe não pôde
concretizar em sua juventude.
Embora Maria do Carmo responda intelectualmente, sendo capaz de ingressar
no curso de biblioteconomia de uma universidade altamente conceituada, ela mais
uma vez não consegue terminar o que lhe é incumbido, postergando como pode a
conclusão de seus estudos, o que perpetua sua dívida com a mãe, mantendo-a presa
de suas cobranças.
O peso advindo dessa busca constante por um estado de perfeição absoluta
lança seus efeitos principalmente na universidade, onde considerava que para ser
uma boa aluna deveria ler absolutamente todos os livros que eram indicados na
íntegra, assim como teria que realizar todos os estágios e trabalhos acadêmicos com
tal precisão quanto um profissional veterano.
Frente à impossibilidade de cumprir esse mandato, Maria havia desistido de
estágios e deixado de realizar trabalhos e provas, o que lhe rendeu a reprovação em
alguns semestres do curso, aumentando ainda mais sua angústia uma vez que não
terminaria a graduação no prazo esperado, e tão veemente cobrado pela mãe.
Como extensão e acirramento de seu sintoma, eis que a paciente se embrenha
em atividades extra-curriculares, como academia de ginástica, curso de línguas, entre
outras, o que diminui ainda mais o tempo que teria para se dedicar aos antigos
185
compromissos, fazendo com que mais coisas fiquem por terminar e aumentando sua
sensação de fracasso.
Na verdade, por almejar tanto a perfeição, a questão do fracasso se mantinha
constantemente presente em sua dinâmica – e, se voltarmos a sua história familiar,
veremos o quanto, desde a mais tenra idade, Maria é responsabilizada pelos fracassos
da mãe.
Após a gravidez e o nascimento de Maria, sua mãe vê diminuir ainda mais
seu desejo sexual pelo marido.
Alguns anos mais tarde, após ter sido abandonada por ele, a mãe atribui sua
separação ao nascimento da filha, que a partir de então recebe a missão de se tornar
um exemplo perfeição, como uma compensação para o fato de ter maculado a
imagem da família.
Ao relatar este fato, a paciente se lembra de uma cena de sua infância que
retrata a angústia que se instaura por meio dessa culpa que lhe é atribuída e que
primeiramente deixará seus efeitos sobre a vida escolar da menina, assim, o aspecto
intelectual, passa a ser considerado como uma forma de encobrir uma perda
insuportável aos olhos da mãe.
Maria conta que um dia, ainda no jardim da infância, estava pintando um
desenho, quando sua canetinha vermelha acabou antes que terminasse. Começou a
chorar muito, sentindo uma tristeza profunda que nunca mais esqueceu. Na ocasião, a
professora a consolou, dizendo que poderia continuar a pintura com lápis de cor.
Após muito relutar, ela aceitou a proposta, embora soubesse que nada seria como
antes, que já não seria um desenho perfeito.
Anos mais tarde, essa demanda de perfeição se estende não só para vida
acadêmica e profissional da paciente – como pudemos apreender de sua queixa
186
inicial –, como se vê atualizar na cobrança materna de que a filha se torne um
exemplo também na vida sexual, o que significava seguir o modelo de “recato” da
mãe, “ser direita” e “não ficar falada”.
Desta forma, o incentivo exclusivamente voltado ao campo intelectual
representava também uma tentativa de abafar a sexualidade da filha e resguardar o
ideal de completude da família.
Neste sentido, pode-se dizer que o conceito de sexo encontrava-se permeado
por uma áurea de imperfeição e de fracasso, tendo sido difícil a princípio, para
Maria, assumir a escolha de morar com seus namorados.
No decorrer de seu tratamento, veremos que sua decisão de sair de casa tinha
ainda como objetivo central afastar-se do lugar onde nascera – um bairro de periferia,
“muito pobre, sujo e violento” –, do qual Maria se envergonhava por representar “a
soma de tudo o que considerava como imperfeito no mundo”.
No início da análise, além dos conflitos na relação com a mãe, Maria trazia
ainda dificuldades no relacionamento amoroso, onde geralmente se submetia
completamente ao desejo de seus namorados, fazendo-lhes concessões no sentido de
responder a outro ideal materno: “ser boazinha”.
Assim, era raro vê-la comunicar suas insatisfações aos parceiros e expressar
suas opiniões de modo a reivindicar seus direitos e fazer valer seus desejos. Ao
contrário, geralmente assumia uma postura de ignorância, que favorecia sua
desvalorização por parte dos namorados e retirava-lhe a validade de qualquer
argumento.
Neste contexto, os choros e lamentações eram constantes, representando uma
atitude infantil que a distanciava cada vez mais de seus propósitos.
187
Numa de suas sessões, Maria relata que o novo namorado com o qual fora
viver, “dividia o apartamento com uma outra mulher”, uma colega de faculdade,
que tinha um cachorro que Maria odiava.
Grande parte das sessões que seguiram traziam como pauta a dificuldade em
expor ao namorado seu desafeto pelo cachorro e pela colega do companheiro – a qual
ignorava a presença de Maria na casa, deixando inclusive que seu cão estragasse seus
pertences.
Maria sentia medo de desagradar, embora dividir o apartamento com outra
mulher trouxesse a idéia de dividir o próprio namorado, algo de que só seu deu conta
após várias sessões.
Foi somente ao começar a ser capaz de estabelecer certos limites em sua
relação com a própria mãe que Maria pôde assumir uma postura mais adulta diante
do namorado, demonstrar seus verdadeiros sentimentos e exigir dele uma definição
quanto à relação do casal.
No entanto, o impasse quanto à escolha da profissão e a conclusão do curso
universitário prosseguiam. Maria questionava se o curso escolhido lhe permitiria
fazer o que gostava.
Dado seu apego a verdades absolutas, que se encaixassem unilateralmente
entre si, Maria não conseguia perceber que seu emprego atual ia de encontro a suas
expectativas anteriores e que o curso de biblioteconomia era o que lhe propiciava
esta colocação.
Deste modo, continuava inutilmente buscando alternativas que se colocavam
como obstáculo à realização de seus desejos, constituindo-se num gozo que a
paralisava, mantendo-a, de certa forma, atrelada por um lado à busca da perfeição e,
188
por outro, à crença de que era a responsável pela incompletude, infelicidade e
fracasso da família.
No que dizia respeito ao pai, pouco era trazido pela paciente, salvo quando
passava alguns finais de semana com ele e com a madrasta, ocasião em que
geralmente relatava alguma discussão, deixando entrever que mantinha a fantasia de
que pudesse vir a estragar o relacionamento do pai com a esposa.
Além disso, Maria se queixava de pouca atenção paterna até o momento em
que ela ingressara na universidade, quando este passou então a falar com orgulho da
filha para os colegas e a cobrar dela, tal como a mãe o fazia, que concluísse logo o
curso –, atitude que deixava Maria indignada, uma vez que sentia que o valor dado
pelos pais estava posto no conhecimento que pudesse adquirir e não propriamente
nela.
Ao final de quase três anos de tratamento, alguns progressos foram
alcançados, sobretudo, no que se relacionava à impossibilidade de completude:
Maria parecia perceber que para ser capaz de concluir algo em sua vida teria que
abrir mão de alguma coisa, que não seria possível fazer tudo ao mesmo tempo.
Assim, já aceitava a idéia de não terminar o curso no prazo esperado pelos
pais e já se mostrava menos exigente consigo mesma, aceitando melhor suas
limitações, embora ainda aguardasse por um tempo futuro no qual pudesse realizar
seu sonho de perfeição.
Em termos transferenciais, o que se percebeu foi uma tentativa constante de
tomar as intervenções da analista como verdade absoluta, aos moldes da relação
estabelecida com a mãe e, como resistência a esta suposta verdade, o que se via era a
insistência em neutralizar suas intervenções, fosse para afirmar a possibilidade de
189
perfeição e completude, fosse para apontar para a própria incompetência e fracasso
da paciente.
Além disso, dada a quantidade de afazeres que acumulava, era comum faltar
às sessões, ou porque havia marcado algo para o mesmo horário ou porque estava tão
cansada que não conseguia acordar a tempo.
Em meados do quarto ano de atendimento, Maria abandona as sessões
deixando pendente o pagamento do mês anterior, recusando-se a responder aos
telefonemas da analista.
Meses depois, deixa-lhe um recado dizendo estar envergonhada por não ter
dinheiro para pagá-la e não ter coragem de retomar o tratamento, ou seja, mais uma
vez faz de seu ideal de perfeição um impedimento para levar adiante suas escolhas,
trazendo como marca de sua culpa um débito que, na verdade, reflete uma dívida
anterior com a mãe.
Assim, uma vez que concluímos a apresentação dos casos clínicos, passamos
à análise dos dados obtidos.
7.4. Análise dos casos
Um dos fatores que coincidiram na análise dos três casos estudados foi a
presença maciça de um imperativo de gozo materno, influenciando o processo de
constituição dessas mulheres, gerando efeitos que se refletiram e se transpuseram
para suas escolhas amorosas e para seus posicionamentos intelectual e profissional.
Tratava-se de mães que suplantavam o lugar paterno, colocando-se como a lei
absoluta no lar e assumindo uma postura fálica, que lhes custava muitas vezes um
190
encobrimento de sua sexualidade, o que se refletia negativamente sobre a
feminilidade das filhas.
No âmbito intelectual, também de maneira unânime, foi possível notar um
descompasso entre o que se apresentava como capacidade real de produção de
conhecimento por parte das pacientes e o que era percebido por elas como fracasso.
No caso de Doralice, essa questão se fazia presente, sobretudo por uma
espécie de anorexia mental com que se apresentava, afirmando-se a todo o momento
como desprovida de saber – o que se mostra, entre outras situações, pelo emprego do
termo “não sei” com o qual dá início à maioria de seus relatos em sessão –, fazendo
surgir em seu lugar uma profunda ignorância, que retrata sua fixação numa
fantasmática que a leva a demandar que apontemos para seu fracasso e para sua
incapacidade, assim como sua mãe o fazia.
Com Madalena, este “apego” a uma postura de ignorância também se repete e
repercute na impossibilidade de encontrar meios de se proteger diante da tirania da
mãe, ao mesmo tempo em que não reconhece seu potencial profissional e os meios
para viver sozinha.
Já para Maria do Carmo, este não saber surge à medida que se considera
incapaz de concluir os compromissos que assume e na ênfase que atribui a suas
dificuldades, traçando uma linha cada vez mais distante entre o que concebe como
ideal e o fracasso que encarna.
Como decorrência desse descompasso, as pacientes se colocavam como
defasadas intelectualmente em relação aos demais ou frente a uma meta estabelecida
imaginariamente, o que surgia em seus discursos em falas como: “eu queria tanto
ser como aquelas pessoas que conseguem estudar...”, “eu queria saber escrever
191
como o meu pai...”, “eu tinha que ler mais, mas eu não consigo...”, ou “a X. é tão
inteligente, mas eu sou burra, eu não entendo!”.
Desta forma, apresentava-se uma dinâmica intimamente marcada pela figura
materna, considerada primeiro modelo de perfeição a ser tomado como ideal de
comparação, sobretudo pela imagem de completude e onipotência sobre a qual se
sustentavam.
Como desdobramento dessa relação, o lugar outorgado à mãe e,
posteriormente, repetido nas escolhas objetais das pacientes, refletiu-se também no
endereçamento à analista de que viesse a ocupar o mesmo lugar de onipotência
materna, ressaltando suas falhas em detrimento de sua capacidade.
Em relação a Doralice, especificamente, vemos que num primeiro momento a
busca de que assumíssemos uma função de saber desencadeia um ponto de
resistência no andamento do caso, uma vez que a paciente insiste em se colocar como
alguém que nada sabe sobre si, reivindicando esse saber da analista, para refutá-lo a
seguir.
Enuncia-se aqui uma questão histérica que se manifesta no sentido de apontar
para um furo no saber do Outro, algo que veremos se repetir também com relação à
Maria do Carmo, que contesta a intervenção da analista, sobretudo quando se trata de
apontar para uma incompletude estrutural.
Trata-se de uma atitude cuja significação se dirige não só no sentido de
reforçar um gozo advindo da posição objetal assumida pelas pacientes em relação ao
Outro materno, como principalmente se configura por sua impossibilidade de romper
com essa demanda, colocando-se como sujeito de seu próprio desejo e assumindo os
riscos e conseqüências dessa assunção.
192
Como Doralice permanece por mais tempo em tratamento, entrando
efetivamente em análise, podemos ver essa questão trabalhada, ao menos em parte,
até o final de nossos encontros, de modo que ela passa a se implicar em seu sintoma,
sendo capaz de se deslocar de uma posição passiva e masoquista em relação ao Outro
e de se apropriar de sua história.
O mesmo não se dá no caso de Maria do Carmo, que outorga ao tratamento o
lugar reservado anteriormente a outros segmentos de sua vida, cuja tarefa não
consegue concluir, abandonando as sessões e perpetuando, assim, uma dívida
impagável com a figura materna, na tentativa de corrigir uma falta que não é sua,
mas cuja responsabilidade recai sobre si, justamente no momento em que aceita a
incumbência de responder por ela.
Já para Madalena, o imperativo materno por vezes encarnava o estatuto de lei,
diante da qual as queixas proferidas pela paciente assumiam mais um caráter de
indignação, de deslumbramento e de alienação frente ao Outro, que um
questionamento que indicasse a existência de um furo no saber ou um balizamento
no poder avassalador da demanda materna.
Embora, à semelhança da relação com a mãe, demandasse a todo instante que
a analista lhe dissesse o que fazer, que decisões tomar e assegurasse que suas atitudes
fossem ou não corretas, Madalena se viu frustrada em suas tentativas.
Como alternativa, para minimizar os efeitos negativos da insistência nesse
endereçamento constante, optamos por fazer a passagem da paciente ao divã no
momento em que esta começa a se incluir como responsável pelos fracassos em suas
relações amorosas e reconhecendo a necessidade de trabalhar a relação com a mãe.
193
No entanto, Madalena não suportou confrontar-se com seu desejo e romper
com a dependência materna, assumindo em seu lugar uma atitude que põe a perder os
avanços obtidos até então, culminando no abandono do tratamento.
Assim, em ambos os casos foi possível perceber, em algum momento do
percurso, uma fuga das pacientes no sentido de eximir-se da implicação de seu
discurso e ações, sendo que se por um lado isto significava que, para elas, o saber se
encontrava firmado no pólo oposto ao delas, por outro lado também indicava que o
fracasso ficava com o outro, revelando uma dinâmica que expunha a parcela de
ganho secundário extraída do sintoma.
Ainda associado à dificuldade de reconhecer um saber que oferecesse
sustentação frente ao que sentiam como uma demanda avassaladora do Outro,
deparamo-nos com os efeitos do discurso materno sobre o que diz respeito à
estruturação da sexualidade dessas mulheres, seja em sua concepção de corpo, seja
na escolha do parceiro e do tipo de relacionamento mantido com ele.
Neste sentido, percebemos tanto em Doralice como em Madalena uma
dificuldade em se reconhecer como mulher, resultando por vezes numa tentativa de
apagamento do corpo como sexuado.
Em Maria do Carmo, embora houvesse uma demanda claramente formulada
no sentido de que mantivesse o recato, preservando o nome da família, seus efeitos
se mostraram mais amenos, caracterizados principalmente por uma postura
infantilizada com que se colocava em suas relações amorosas, no início do
tratamento.
Com Doralice a questão se revelava mais complexa, principalmente pelo fato
de a paciente não se considerar desejável ao olhar masculino, nomeando-se como
194
“moleque” e enumerando uma série de características – nenhuma correspondendo à
realidade observada –, para justificar sua suposta masculinidade.
No caso de Madalena a mesma dialética se refletia no questionamento acerca
do que levaria os homens a se interessarem por ela, ao passo que ela própria não se
reconhecia como adulta, tampouco como mulher.
No que concerne à relação amorosa, propriamente dita, veremos que os
relacionamentos vividos por essas mulheres, em sua maioria, remontavam o impasse
articulado com as figuras parentais, constituindo-se uma escolha objetal do tipo
anaclítica, onde antes de buscar no parceiro amoroso um reflexo de seu próprio eu,
era o discurso e a imagem dos pais e, sobretudo da figura materna, o que buscavam
reencontrar, numa tentativa sintomática de resolver o enigma de sua existência, a
saber: “quem deveriam ser para atender o desejo do Outro?”, e “como fazê-lo sem
que isto significasse seu total desaparecimento como sujeito?”.
Assim, a princípio, poderíamos levantar como hipótese a existência de uma
identificação dessas mulheres com um modelo de pai fragilizado, considerado nulo e
eclipsado sob o desejo materno. O que se confirmaria pelo destaque auferido à figura
materna, falicamente colocada como quem sabe e detém o poder, destinando às filhas
um de lugar de submissão e uma posição supostamente homossexual – menos no
sentido de uma escolha objetal propriamente dita, e mais na prevalência de uma
admiração e ódio exacerbados em relação à mãe, cujo semblante será buscado em
seus demais relacionamentos, perpetuando-se o padrão de uma relação pré-edípica.
Nesta seqüência, que se desenha claramente no sentido de uma estruturação
histérica, vemos surgir em certo momento do tratamento de Doralice, Madalena e
Maria um redirecionamento de olhar e questionamentos voltados para figuras
femininas, como uma forma de buscar respostas para o que seja o desejo de um
195
homem, remontando a conflitiva psíquica de identificação com a figura masculina,
sobretudo no que esta se faz representar por um pai enfraquecido diante do poder da
mãe.
Assim, no caso de Doralice, surge a dúvida acerca da homossexualidade a
partir de sua fixação na figura da amiga de faculdade, dúvida que ganha ênfase na
cena de sedução vivida por Doralice em relação à amiga, o que mais uma vez se
desdobra num endereçamento à figura da analista, como a convidá-la para que
também goze naquela situação.
Como manejo, fez-se necessária a adoção de uma atitude de abstinência, ora
representada por momentos maiores de silêncio, ora pelo corte antecipado da sessão.
Intervenções que viriam no sentido de promover um esvaziamento dessa relação
imaginária que tentava se formar, e possibilitar que a paciente pudesse entrever sua
parcela de responsabilidade na constituição de seu sofrimento.
Além disso, em termos estruturais, o endereçamento de Doralice pôde ser lido
ainda como parte de sua dinâmica histérica na qual a paciente tenta, através de uma
encenação visual e discursiva, reter o olhar do mestre sobre si, outorgando à analista,
mais uma vez, a função de responder como Outro absoluto, não castrado,
introduzindo-a, desta forma, no rol das mulheres eleitas para subjugá-la.
Já no caso de Madalena, vemos que essa questão se colocava pela via de sua
relação com a irmã sobre a qual vemos se fixar o olhar da paciente, podendo-se
mesmo aventar a hipótese de que o comportamento, por vezes leviano, com o qual
estruturava seus relacionamentos amorosos fossem, na verdade, uma tentativa de
experimentar o que considerava como sendo o posicionamento promíscuo da irmã,
sem contar que o significante da prostituição e todos os termos a ele associados,
196
encontravam-se fortemente investidos pela mãe de Madalena, que atribuía várias
vezes este lugar à filha.
No que diz respeito à Maria do Carmo, vimos que a culpa que lhe fora
impingida pela separação dos pais torna-se um fardo, a ponto de supor, mesmo anos
depois, a possibilidade de ver a história se repetir por meio de sua “intromissão” na
vida do pai e da madrasta.
Além disso, o único momento em que se referiu à outra mulher, que não à
mãe, como uma questão, foi por ocasião do conflito com a colega que dividia
apartamento com o namorado, algo que permitiu à paciente confrontar duas situações
opostas e que envolviam comportamentos distintos do namorado, causando-lhe
perplexidade.
A este respeito, poderíamos nos remeter primeiramente a uma atitude omissa
diante dos desvarios cometidos pela amiga, ao mesmo tempo em que Madalena era
criticada por coisas menores, mesmo se esquivando de expor seus verdadeiros
sentimentos por medo de desagradar o namorado.
Configurou-se assim um cenário que possibilitou à paciente deparar-se com
um furo em sua antiga teoria de que “ser boazinha bastava para ter as pessoas a
quem amava ao seu lado”, facilitando que se posicionasse mais firmemente,
inclusive como mulher, pronta a defender seu território e a lutar pelo homem que
desejava.
Desta forma, pudemos ver respondidas algumas das questões levantadas no
início deste trabalho, sobretudo no que diz respeito à influência materna na
constituição da sexualidade feminina, que diante do posicionamento fálico das mães,
parece desenvolver-se envolta em conflitos e questionamentos, relacionados a uma
197
auto-imagem quase sempre depreciada, a uma tendência à masculinização,
infantilização ou repressão da vida sexual.
A questão colocada acerca do estatuto do conhecimento na vida dessas
mulheres parece ter se revelado pelo avesso do que alimentávamos como
expectativas.
Embora estivesse presente nos três casos, o aspecto intelectual não ocupava a
posição central no discurso das pacientes, mas sim o seu contrário, ou seja, a
sensação unânime de fracasso e incapacidade com a qual conviviam.
Apenas em alguns momentos no discurso de Doralice, poderíamos dizer o
conhecimento tenha ocupado um estatuto fálico em sua história, bem como no caso
de Maria, quando o aspecto intelectual é posto pela mãe como uma forma de
remendo para uma perda ou falta na família.
Nos demais seguimentos, o que se fez notar foi a existência de um processo
onde as dificuldades psíquicas suplantam o saber intelectual, a ponto de o sujeito
considerar-se desprovido de tal habilidade.
198
8. O MOMENTO DE CONCLUIR:
DO “NÃO QUERER SABER NADA DISSO” A UMA ESCRITA POSSÍVEL
“Eu me identifico na linguagem, mas somente ao me perder
nela como objeto. O que se realiza em minha história não é o passado
simples daquilo que foi, uma vez que ele já não é, nem tampouco
o perfeito composto do que tem sido naquilo que sou, mas o futuro
anterior do que terei sido para aquilo em que estou me transformando”.
Jacques Lacan
No momento em que nos propomos a concluir este trabalho não poderíamos
deixar de retomar os pontos colocados como delimitadores de nossa pesquisa a fim
de enumerar, posteriormente, os resultados a que chegamos.
Desta maneira, levantamos como problema de pesquisa a necessidade de
realizar um estudo psicanalítico sobre os avatares da sexualidade feminina, tendo
como ponto central de discussão averiguar os diferentes posicionamentos assumidos
pela mulher na tentativa de responder ao mal-estar estrutural que norteia sua
constituição.
199
Neste sentido levantávamos como hipótese a possibilidade de uma saída para
suportar a falta de um significante de nomeação para a mulher pela via intelectual, na
medida em que se revestir do caráter fálico atribuído ao conhecimento se tornaria
uma forma de tentar circunscrever este real.
Para isto, adotamos o dispositivo dos três tempos do Édipo lacaniano como
protótipo para acompanhar a evolução do desenvolvimento da tese, usufruindo os
efeitos inerentes a uma reviravolta descrita anteriormente no interior da própria teoria
psicanalítica e que consiste ao estabelecimento da primazia fálica na leitura dos
processos psíquicos.
Ancorados neste modelo, pudemos acompanhar as especificidades
concernentes ao posicionamento da mulher frente ao desejo materno, sobretudo no
que obtivemos através dos casos clínicos; frente à função paterna, bastante discutida
ao abordarmos a relação de Camille Claudel com o pai; e, por fim, em relação à
cultura, quando nos referimos de modo genérico ao conceito de suplência e sinthome,
inserindo a arte – em todas as suas formas de expressão – como uma possibilidade de
escrita de um real que não se pode circunscrever de outro modo.
Assim, no que diz respeito ao primeiro tempo, partíamos da premissa
freudiana de que só seria possível compreender as mulheres a partir de uma
investigação de sua relação com a figura materna durante a fase pré-edípica,
aventando-se ainda a hipótese de que o desenvolvimento da sexualidade feminina
poderia encontrar destinos diversos, de acordo com o modo como lhe fosse
significada a castração pela mãe, que constaria como figura de destaque no processo
de estruturação do sujeito feminino.
Entre as saídas possíveis, destacávamos a opção por um posicionamento
masculino caracterizado, sobretudo por uma reivindicação fálica junto à mãe e por
200
uma tentativa de negação ou de escamoteamento da castração – situação na qual o
conhecimento figuraria como um instrumento capaz de manter essa ilusão de
completude, tanto do lado materno quanto do sujeito.
Com base nos dados levantados nesta primeira fase, sobretudo por meio da
análise dos casos clínicos, o que se obteve foram relatos que descreviam a figura
materna como provida de um caráter fálico acentuado, outorgando a essas mulheres o
comando do lar e das finanças dos maridos, que por sua vez eram considerados como
fracos, de pouca expressividade ou mesmo como impotentes, imagem esta que era
transmitida para as filhas, sendo significada, em termos psíquicos, como uma
incapacidade do pai de circunscrever adequadamente a demanda materna, deixando-
as entregues aos desmandos desse Outro devastador.
Deste modo, ao introduzirmos a questão do saber, pela via do conhecimento
e, portanto, como representante fálico, fomos levados, por um efeito retroativo, a
considerá-lo, por um lado, como resultado de uma resposta do sujeito – no caso as
pacientes analisadas – ao desejo materno.
Embora caiba ressaltar que tal resposta nem sempre se deu no sentido de se
considerarem dotadas de um conhecimento excepcional, mas antes de valorizarem a
busca por esse atributo como aquilo que poderia resgatar novamente um lugar
privilegiado junto à mãe, recobrindo-lhe uma falta narcísica que se reverteria,
conseqüentemente, na restauração de uma falta no próprio sujeito.
Por outro lado, a mesma questão poderia ser considerada ainda como defesa
contra esta demanda materna terrificante – o que se verificaria por meio da tentativa
da histérica em preencher a falha advinda do enfraquecimento paterno ao se colocar
como detentora do saber que falta ao Pai.
201
Deste modo, estaríamos diante dos dois posicionamentos básicos da neurose,
o primeiro referido a um posicionamento mais próximo ao obsessivo, sustentado a
partir da nostalgia do ser, no qual o sujeito busca se identificar ao objeto do desejo do
Outro, e o segundo, como descrito anteriormente, voltado a atender à dialética do ter,
circunscrevendo um funcionamento característico da histeria.
Portanto, a dimensão sintomática residiria justamente nesse movimento de
constante reivindicação de um objeto que há muito está perdido e que jamais poderá
ser reencontrado, fundando uma hiância, responsável pelo descompasso percebido
pelo sujeito entre o que seria seu estatuto pulsional e aquilo que pode ser alcançado
por ele.
No caso da mulher, se não é efetuada uma renúncia a esta posição
reivindicatória, eis que ela se manterá presa ao lugar de identificação fálica que lhe
foi outorgado pelo Outro, vivenciando suas faltas no nível da impotência e não da
impossibilidade e, portanto, conservando-se sustentada tanto sobre a predominância
do sentimento de inferioridade quanto de inveja, oriundos da ausência do pênis,
partindo em busca de outros objetos substitutos capazes de lhe conferir a tão
almejada imagem de completude, dentre eles, o conhecimento.
Em Camille, vimos que esta busca se desenvolvia sob os efeitos de uma
dinâmica obsessiva, onde era a figura paterna o elemento central na busca por
reconhecimento.
Já nos casos estudados, é interessante notar que, ao contrário de nossa
hipótese anterior, nenhuma das pacientes parecia responder de um lugar masculino,
ao menos no que se refere à capacidade de reconhecer-se como detentora deste
objeto fálico, mas ainda assim almejavam o conhecimento como algo que faltava,
mesmo que em termos efetivos ele operasse a contento.
202
Todas se colocam pela via do não saber e, ao empreenderem a procura por
esse falo, também pela via do não ter, indicando que uma outra força se encontra
atuante no sentido de barrar o desejo materno, ou seja, o pai faz função, ao
desempenhar um papel fundamental no processo de constituição psíquica, no que se
refere à interdição da relação do sujeito com o desejo do Outro primordial, e na
circunscrição cognitiva, no que diz respeito à escolha do objeto compartilhado nesta
relação, a partir do que se dá a instituição de ideais egóicos que vêm em substituição
ao que anteriormente se colocava como eu ideal, à medida que a intervenção paterna
permite resgatar o sujeito do lugar de objeto do desejo do Outro e instaurar a falta
estrutural.
Eis que entra em cena um segundo tempo na pesquisa, voltado a abarcar o
aspecto simbólico envolvido no sintoma do sujeito, sobretudo quando se trata de
considerar os fatores concernentes à disposição cognitiva.
Desta forma, sobretudo ao adentrarmos o campo da histérica, configura-se
uma possibilidade de abordar mais veemente a questão do pai, inclusive ao tomarmos
como princípio o processo de identificação da menina, voltado num segundo tempo
para a figura paterna.
Neste contexto, nossa leitura acerca do conhecimento permitiu inseri-lo como
um substituto na equação de deslocamento simbólico: pênis = filho, assim teríamos a
possibilidade de escrever pênis = conhecimento.
No entanto, esta equação formulada anteriormente na abordagem freudiana,
ganha mais sentido sob a pena de Lacan, quando se substitui o pênis pelo falo,
trazendo à tona a questão do Nome-do-Pai e, deste modo, favorecendo esse
deslizamento para outros objetos capazes de assumir o mesmo papel diante da falta.
203
Além disso, esta mudança de paradigma permite estabelecer uma nova
concepção acerca do que se dá no âmbito amoroso, uma vez que o falo ao se
constituir como o significante da falta, representa também a marca do equívoco que
resulta como efeito da linguagem e, conseqüentemente, da ação da metáfora paterna
no discurso, deslocando a discussão sobre a escolha objetal de um circuito
meramente imaginário, pautado nas diferenças entre amor anaclítico ou narcísico, e
trazendo à tona uma questão de escrita, sustentada sobre a noção dos nomes do pai,
ou do sinthome, agregada ao tema por Lacan nos últimos anos de seu ensino.
Com essa mudança de foco eis que também a mulher passa a contar com um
dos nomes do pai, o que pudemos acompanhar ao tomarmos a dimensão do amor em
sua associação ao processo de sublimação, onde o corpo da mulher assume para o
parceiro o estatuto de uma obra de arte que pode ser assinada à medida que ele a
nomeia.
Ademais, ao considerarmos a arte em referência ao conceito de suplência,
pensamos conciliar as duas formas de saber, primeiramente no que se refere à
dimensão inconsciente, ao se instituir como aquilo que vem dar suporte onde falha a
metáfora paterna e, posteriormente, com relação ao conhecimento, a partir do
produto do sinthome, capaz de promover o enodamento necessário para que não
ocorra, por exemplo, a deflagração de uma crise psicótica, ou uma saída que traga
menos sofrimento, como no caso da mulher diante de sua falta, assumindo, portanto
a função de escrita.
Entretanto, acreditamos que esta operação na neurose só se torna possível por
menção aos aspectos transgressivos concernentes à sublimação, de modo a
possibilitar que o sujeito transforme um sintoma clínico em sinthome, ou seja, é
204
preciso que suporte uma parcela de real, o que colocaria a mulher numa posição
privilegiada em relação ao saber.
Talvez a especificidade da relação da mulher com o saber e com o
conhecimento resida mesmo nessa interface entre um real irrepresentável de sua
estrutura – e que também se empreende nesse processo transgressivo – e um
simbólico que tenta escrever o que não pára de não se inscrever.
Há que se abdicar de uma marca significante para se deixar tomar como
objeto, deixando se guiar por um outro saber, ainda que os instrumentos para
descrever esse caminho Outro sejam oriundos do simbólico.
Neste contexto, constitui-se um saber que se coloca pela via do não saber e
que opera no sentido de denunciar sempre algo do real que, mesmo revestido por
uma mascara, é impossível de negar, um real que a mulher encontra como dizia
Freud, na própria carne e que Lacan depois referendou à falta de um significante.
É este vazio que se apreende na fala das pacientes; na tentativa desesperada
de preenchimento impetrada por Alice, na obra de Camille – que longe de
representar apenas sua desventura no amor, falava de algo concernente ao universo
feminino; e nos versos e textos de diversas escritoras como Cecília Meireles, Clarice
Lispector, entre outras; e que nem todas as mulheres são capazes de pôr em jogo.
Diante do que se pode concluir que é o não saber o responsável pela
produção do conhecimento que vem tentar preencher este buraco, motivo pelo qual a
relação entre saber inconsciente e saber constituído se mostra indissociável.
Assim, a mulher empresta sua voz à arte para dar testemunho daquilo que se
coloca como impossível.
205
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