Download PDF
ads:
HABITAÇÃO POPULAR EM GOIÂNIA: VILA MUTIRÃO
MIL CASAS EM UM DIA
Silvio Antônio de Freitas
2007
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO SUL
PROGRAMA DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUITETURA
(PROPAR)
HABITAÇÃO POPULAR EM GOIÂNIA: VILA MUTIRÃO
MIL CASAS EM UM DIA
Silvio Antônio de Freitas
Dissertação submetida ao PROPAR da Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
Faculdade de Arquitetura, como requisito para obtenção do título de Mestre em
Arquitetura.
ORIENTADOR:
Heitor da Costa Silva, Arq. Ph.D
2007
ads:
HABITAÇÃO POPULAR EM GOIÂNIA: VILA MUTIRÃO
MIL CASAS EM UM DIA
Silvio Antônio de Freitas
Dissertação apresentada e aprovada em ______ de _________________ de 2007,
pela Banca Examinadora constituída pelos professores.
__________________________________________________________________
Andréa Soler Machado, Arq. Dra. – PROPAR / UFRGS.
__________________________________________________________________
Elane Ribeiro Peixoto, Arq. Dra. – UCG.
__________________________________________________________________
Fernando Freitas Fuão, Arq. Dr. – PROPAR / UFGRS.
Aos meus pais, Jales e Gislaine, e irmãos;
à minha esposa Mariângela e às minhas filhas Tainá e Maíra.
Agradecimentos
À Universidade Católica de Goiás, pela oportunidade impar;
aos funcionários da UCG;
aos colegas de mestrado pelo companheirismo;
aos professores do mestrado e, em particular, ao orientador Prof. Dr.
Heitor da Costa Silva;
à professora e amiga Elane Ribeiro Peixoto, pelo apoio e incentivo
incansável e
a todos que colaboraram para efetivação deste documento.
RESUMO
O objetivo desta dissertação é o de analisar uma experiência de habitação
popular, o Programa Mutirão da Moradia, executado em Goiânia (GO), em 1983,
quando em um único dia – 16 de outubro – foram construídas mil casas com peças
pré-moldadas de concreto. Os dados utilizados para essa análise foram extraídos
de documentos oficiais, de arquivos particulares dos profissionais que trabalharam
no programa e das entrevistas por eles concedidas. O interesse pelo tema se
justifica pelo fato de tratar-se de um programa destinado a resolver o déficit
habitacional para a população de baixa renda e, acima de tudo, a provocar um
impacto capaz de promover politicamente o governador Íris Rezende, em âmbito
nacional. A dissertação está estruturada em cinco capítulos em que se enfocam o
projeto, a implementação, o mutirão, as controvérsias e os desafios da ocupação.
Na conclusão, fica claro que os objetivos políticos do então governador foram
alcançados, mas que a experiência construtiva em larga escala não foi aprimorada.
Vale ressaltar que, apesar das inúmeras falhas, o processo construtivo era
inovador.
ABSTRACT
The theme of this dissertation is to analyze the program “Mutirão da
Moradia”. This was a popular housing program carried out in Goiânia (GO) on
October 16
th
, 1983 when they built one thousand pre-molded concrete houses in
just one day. The data analysed were collected from official documents, private files
from professionals who worked on the project and from some interviews with them.
This theme was chosen because the project had the objective of solving a housing
deficit for low income people, and above all, the governor, on that occasion Iris
Rezende, also wanted to lever his political position in the national scenery.
The dissertation is divided into 5 chapters: the project, the implementation,
the “mutirão” (people’s volunteer work together in the day), the opposing views, and
occupation challenges. In the conclusion, it becomes evident that the governor
political objectives were achieved, but the building experience in big scale was not
improved. It’s important to point out it was an innovative building process, though.
LISTA DE FIGURAS
LEGENDA PÁGINA
Figura 1. Conjunto Realengo. Destaque do bloco de apartamentos na paisagem.
...15
Figura 2. Conjunto Realengo planta do bloco principal. Apartamento mínimo
racionalizado: quarto, sala, cozinha, banheiro e sacada. ...15
Figura 3. Maquete do Conjunto Residencial de Deodoro. Projeto para a Fundação
da Casa Popular, década de 1950, autoria do arquiteto Flávio Marinho Rego. ... 16
Figura 4. Volume do bloco sinuoso do Conjunto Deodoro, sobre pilotis e vazado ao
meio por uma rua interna abrigando serviços comunitários. ...16
Figura 5. Fac-símile da primeira das três páginas da carta de Sandra Cavalcanti
endereçada ao general Castelo Branco logo após o golpe de Estado (os grifos são
do próprio General). ...18
Figura 6. Projetos nos mesmos moldes: Conjunto do BNH e Vila Mutirão. Paisagem
monótona e impessoal. ...19
Figura 7. Localização da Vila Mutirão. ...27
Figura 8. As três etapas da Vila Mutirão. ...28
Figura 9. Vila Mutirão, traçado urbanístico da primeira etapa. ...29
Figura 10. Íris Rezende na invasão da Vila São José. ...30
Figura 11. Planta Geral da Vila Mutirão: as três etapas. Levantamento cadastral e
planialtimétrico, jan. 1987. ...32
Figura 12. Escola Transitória de Abadiânia, Goiás. Projeto de Lima (Lelé) para
escola rural em argamassa armada. ...36
Figura 13. Detalhes das placas duplas em argamassa armada. ...37
Figura 14. As quatro tipologias definidas a partir de um embrião. Desenho original
do primeiro projeto de junho de 1983. ...38
Figura 15. Embrião 1Q-S - quarto e sala, área de 21,26 m². Projeto de junho de
1983. ...38
Figura 16. 1Q-SC – quarto, sala e cozinha, área de 25,26 m². Opção definida para
a Vila Mutirão. Projeto de junho de 1983. ...39
Figura 17. 2Q-SC – dois quartos, sala, cozinha, área de 35,25 m². Uso de portas
internas. Projeto de junho de 1983. ...39
Figura 18. 2Q-SCB – dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço, área
de 35,25 m². Projeto de junho de 1983. ...40
Figura 19. Implantação da casa e banheiro no lote. ...41
Figura 20. Planta da casa-padrão da Vila Mutirão 1Q-SC – quarto, sala, cozinha,
área de 25,93. ...42
Figura 21. Detalhes da casa-padrão. Pilares e placas. ...42
Figura 22. Malha estrutural das placas. Três alternativas: 10x10,15x15 e 20x20cm.
...43
Figura 23. Pilares e placas de vedação das casas: 21 pilares de três tamanhos
diferentes e 108 placas de treze tamanhos diferentes. ...43
Figura 24. Fachadas: frontal e posterior. Desenho original com interferência do
autor. ...44
Figura 25. Janela e porta da casa. Janela metálica e sistema de dobradiça. Portal
de metal e porta de madeira. ...45
Figura 26. Estrutura metálica do telhado. Duas partes diferentes e independentes
fixadas na cabeça do pilar por meio de ganchos metálicos. Desenho original. ...46
Figura 27. Casa da Vila Mutirão montada. ...48
Figura 28. Vista da entrada principal da Vila Mutirão com a caixa d’água. ...49
Figura 29. Primeira etapa de montagem: colocar os pilares nos buracos, aprumar e
nivelar o pilar 1 e compactá-lo. ...54
Figura 30. Segunda etapa de montagem: montar cada vão, entre os pilares, com
três placas até 1,80 cm do nível, aprumar e compactar os pilares seguintes.
...54
Figura 31. Terceira etapa de montagem: repetir a operação até o fechamento de
cada cômodo isoladamente. ...55
Figura 32. Quarta etapa de montagem: instalar os andaimes com os cavaletes e
tábuas, para colocação das placas de respaldo. ...55
Figura 33. Quinta etapa de montagem: a cobertura é montada com duas partes
metálicas independentes amarradas na cabeça do pilar. ...56
Figura 34. Sexta etapa de montagem: colocar as telhas e cumeeiras de cimento-
amianto. ...56
Figura 35. Esquema geral de montagem em planta. ...58
Figura 36. O rígido esquema de preparação do canteiro. Lista e distribuição dos
materiais em cada lote. ...61
Figura 37. Operários distribuindo as peças nos canteiros antes do mutirão. ...62
Figura 38. Íris (no centro, de camisa branca e calça preta) supervisiona os
canteiros para o mutirão. ...63
Figura 39. Manchete de uma página de jornal divulgando o evento. ...63
Figura 40. Avenida do Povo no início do mutirão às 7 horas. ...69
Figura 41. Paisagem do local com o rígido esquema de distribuição dos materiais
em cada lote....70
Figura 42. Distribuição dos pilares nos buracos previamente abertos às 8 horas.
...71
Figura 43. A participação feminina. ..71
Figura 44. Pilar aprumado e compactado às 8:30 horas. ...72
Figura 45. Inicio da colocação das placas e janelas. ...72
Figura 46. Colocação das placas até altura de 1,80 m. Preocupação com o prumo
às 10 horas. ...73
Figura 47. Montagem da porta. ...73
Figura 48. Colocação da janela e verga, às 10:30 horas. ...73
Figura 49. Casa com as peças pré-moldadas montadas. Pilares, placas, portas e
janelas instaladas aguardando a cobertura, às 12 horas. ...74
Figura 50. Calafetação com argamassa. ...75
Figura 51. Fixação do suporte da cumeeira, às 12:30 horas. ...75
Figura 52. Fixação da estrutura metálica da cobertura, às 13 horas. ...75
Figura 53. Casa pronta vista da frente, montada pela equipe da prefeitura de São
Luiz de Montes Belos. Em primeiro plano, o prefeito do município, arquiteto
Waldemir Xerife. ...76
Figura 54. Casa pronta vista posterior. Já caiada e com a cobertura sendo
finalizada, às 15 horas. ...77
Figura 55. Construção das paredes de tijolo maciço da fossa negra, às 15:30
horas. ...77
Figura 56. Laje da fossa negra. ...78
Figura 57. Plantio de mudas na Avenida do Povo. ...78
Figura 58. Vista panorâmica do mutirão. Em primeiro plano, a Avenida do Povo, às
13 horas. ...79
Figura 59. Seqüência cronológica das fotos, mostrando as etapas de montagem
das casas da Vila Mutirão. ...79
Figura 60. Manchete de um jornal suíço: o mutirão das mil casas em destaque.
...82
Figura 61. Grupo de casas com moradores com energia elétrica individual
instalada. ...82
Figura 62. Planta do projeto modelo da Cohab-GO. Padrão para todos os
protótipos utilizando os cinco processos construtivos. Fonte: Cohab (1979). ...88
Figura 63. Fachada do projeto-modelo da Cohab-GO. Fonte: Cohab (1979). ...88
Figura 64. Gráfico de máxima e mínima para Posição 1. Medição com as
esquadrias fechadas. Eixo vertical de temperatura com variação de 28°C a 33°C.
...94
Figura 65. Gráfico de máxima e mínima para Posição 2. Medição com as
esquadrias abertas. Eixo vertical com variação de temperatura de 28°C a 33°C.
...94
Figura 66. Gráfico de máxima e mínima para Posição 3. Medição da parede interna
com as esquadrias fechadas. Eixo vertical com variação de temperatura de 28°C a
33°C. ...95
Figura 67. Gráfico das normais climatológicas de Goiânia. Desenho de Fernandes.
...96
Figura 68. Gráfico do comportamento dos dois protótipos: Protótipo A (telha
cimento-amianto) e Protótipo B (telha cerâmica). Desenho original com
interferência do autor. ...98
Figura 69. Gráfico síntese do comportamento térmico no interior dos dois
protótipos. ...99
Figura 70. Planta da casa apresentada no II Encontro de Conforto. ...100
Figura 71. Um conjunto utilizando o projeto estudado. ...100
Figura 72. Detalhe do corte da cobertura, agregando materiais como forro. À
direita, gráfico de associação de materiais e a melhoria sucessiva. Desenho do
arquiteto Fernandes. ...101
Figura 73. Melhorias percentuais sucessivas da cobertura. Desenho do autor.
...101
Figura 74. Detalhe da planta da parede agregando superfícies nos lados interno e
externo. Gráfico com a melhoria sucessiva. Desenho de Fernandes. ...102
Figura 75. Melhorias percentuais sucessivas da parede. Desenho de Fernandes.
...102
Figura 76. Mudança das invasões para a Vila Mutirão, em que os transferidos
levavam matérias dos antigos barracos. ...110
Figura 77. Modificação comum nas casas da Vila Mutirão: troca das placas pré-
moldadas pela alvenaria convencional. Muros de placas. Foto do autor em janeiro
de 2005. ...112
Figura 78. Manchete de O Popular destacando os atritos na Vila Mutirão. ...112
Figura 79. Presidente José Sarney e comitiva na 2ª etapa da Vila Mutirão. Do lado
esquerdo, o presidente da Codeg, Eurico Godoi, atrás, o ministro Flávio Peixoto e
atrás, à direita de Sarney, o governador Íris Rezende. ...118
Figura 80. Foto aérea da 2ª etapa da Vila Mutirão. Ao fundo, a primeira etapa. Foto
de Jadir Lima. ...119
Figura 81. Planta da casa da 2ª etapa da Vila Mutirão. ...120
Figura 82. Fachada principal da casa da 2ª etapa da Vila Mutirão. ...121
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO – 12
1 O PROJETO DA VILA MUTIRÃO – 22
1.1 Contexto histórico – 23
1.2 A proposta urbanística – 31
1.3 As unidades habitacionais – 34
2 A IMPLEMENTAÇÃO DO EMPREENDIMENTO – 51
2.1 O recrutamento e treinamento da mão-de-obra 52
2.2 A racionalização do canteiro – 60
3 A CONCRETIZAÇÃO DA PROPOSTA – 66
3.1 O dia do Mutirão da Moradia – 67
4 AS CONTROVÉRSIAS SOBRE O EMPREENDIMENTO – 84
4.1 As participações involuntárias – 85
4.2 O descaso com a experiência da Cohab – 86
4.3 A questão do conforto térmico – 96
5 OS DESAFIOS DA OCUPAÇÃO – 104
5.1 A segregação social e espacial – 106
5.2 A adulteração das casas – 110
CONSIDERAÇÕES FINAIS – 114
REFERÊNCIAS – 123
INTRODUÇÃO
Em todas as cidades brasileiras de médio e grande portes, a crise gerada
pela carência de habitação, para atender às classes menos favorecidas, tem sido
de difícil solução, em razão de envolver fatores de ordem social, política e
tecnológica.
O agravamento do problema da habitação popular teve início na década de
1950, quando, em decorrência do processo de urbanização e industrialização,
houve um aumento da oferta de emprego nas cidades, incentivando,
conseqüentemente, o êxodo rural (Tabela 1).
Tabela 1: Evolução da relação entre a população urbana e rural (1950-1980).
1950
1960
1970
1980
População números % números % números % números %
Urbana
Rural
18.782.891
33.161.506
36,2
63,8
31.303.034
38.767.423
44,7
55,3
52.084.984
41.054.053
56
44
80.436.409
38.566.297
67,7
32,3
Total 51.944.397 100 70.070.457 100 93.139.037 100 119.002.706 100
Fonte: Sachs (1999, p. 38).
Diante desse acelerado crescimento populacional, não restou à população de
baixo poder aquisitivo uma outra opção que não a construir moradias inadequadas,
assentando-se em terrenos baldios na periferia ou ocupando terrenos de forma
ilegal. Com isso, o acesso à moradia por essa população ficou dependente de
programas, instituídos, na maior parte das vezes, como estratégia de legitimação
política usada pelos governantes brasileiros. Exemplos são encontrados desde o
período de Getúlio Vargas (1930-1945), quando iniciaram os primeiros debates que
colocavam em evidência a industrialização, o operário e a habitação.
1
Passou a ser
opinião corrente que a iniciativa privada, com sua produção de moradia para
aluguel, não seria capaz de enfrentar o problema da habitação popular, papel que
1
Os principais eventos desse período foram o I Congresso de Habitação (1931), o Congresso Pan-americano
de Arquitetura (1940), as Jornadas da Habitação Econômica (1941), entre outros (BONDUKI, 1998, p. 74).
13
deveria ser assumido pelo Estado. Devido à alta do custo de vida e ao achatamento
dos salários dos trabalhadores, o governo decidiu liberar, em 1937, os vultosos
recursos das carteiras prediais dos Institutos de Aposentadoria e Pensões (IAPs),
para construir casas populares para locação, ou como propriedade privada, e de
congelar os aluguéis através da Lei do Inquilinato, de agosto de 1942.
Eurico Gaspar Dutra também utilizou a moradia como forma de obter
aprovação popular. Na sua campanha para as eleições de 1945, prometeu resolver
a questão da habitação social com a construção de 100 mil casas populares. Não
se pode negar que Dutra deu um passo importante rumo à institucionalização de
uma política nacional de habitação voltada para o segmento da população de baixa
renda, com a criação da Fundação da Casa Popular (SACHS, 1999, p. 112). A FCP
foi instituída em maio de 1946, com o objetivo de construir em larga escala
habitações populares, para locação ou propriedade privada, e, conseqüentemente,
de incrementar a indústria de materiais de construção, bem como de incentivar
novas soluções de saneamento e de pesquisa arquitetônica. Porém, a participação
da FCP na questão da habitação popular foi quase nula, por ter-se transformado em
um órgão secundário do governo, privado de recursos e de poder. Dutra enfrentou
a pressão dos movimentos populares e o crescimento do Partido Comunista
Brasileiro nas grandes cidades.
2
Para controlar esses movimentos, adotou um
regime de repressão às organizações populares e sindicais, determinou a
ilegalidade do PCB, e ainda procurou dar ênfase à habitação popular, como forma
de se contrapor a essas manifestações.
Apesar da pífia participação dos institutos e da Fundação, é importante
ressaltar que o período de 1946-1950 foi o de maior produção de unidades de
moradia em conjuntos habitacionais. Foi uma fase marcada por inovações
arquitetônicas na solução do problema da habitação, tais como: a utilização de
grandes blocos, formas serpenteantes, pilotis e adequação à topografia e à
paisagem. Dentre os vários projetos, destaca-se o Conjunto Realengo, no Rio de
Janeiro, com 2.344 unidades, quantidade incomum para a época. Esse conjunto foi
projetado para industriários pelo arquiteto Carlos Frederico Ferreira, em 1939, que
utilizou como tipologia casas isoladas, casas geminadas e um bloco de
apartamentos em forma de prisma de 120x8 metros (Figuras 1, e 2).
2
O Partido Comunista Brasileiro, na legalidade de 1945-1947, encontrou espaço propício e poder de
mobilização na periferia das cidades, na luta popular por melhorias urbanas (SACHS, 1999, p. 120).
14
Figura 1. Conjunto Realengo. Destaque do bloco de apartamentos na paisagem. Fonte: Bonduki
(1998, p. 180).
Figura 2. Conjunto Realengo – planta do bloco principal. Apartamento mínimo racionalizado: quarto,
sala, cozinha, banheiro e sacada. Fonte: Bonduki (1998, p. 181).
Outro projeto, que recebeu recursos da Fundação da Casa Popular, na
década de 1950, foi o Conjunto Residencial de Deodoro, no Rio de Janeiro,
composto por 1.341 unidades habitacionais. Idealizado por Flávio Marinho Rego, foi
inspirado nas barras sinuosas de Affonso Reidy, para Pedregulho e Gávea, e de Le
Corbusier, para o Rio de Janeiro e Argel. Foi implantado parceladamente, no início
com casas simples, depois com sobrados geminados e, por último, com blocos de
apartamentos (Figuras 3 e 4).
15
Figura 3. Maquete do Conjunto Residencial de Deodoro. Fonte: Bonduki (1998, p. 193).
Figura 4. Volume do bloco sinuoso do Conjunto Deodoro. Fonte: Bonduki (1998, p. 196).
Juscelino Kubitschek pouco fez para a habitação brasileira, com sua política
desenvolvimentista e de interiorização do país. Construiu Brasília, no centro do
Estado de Goiás, e essa construção foi acompanhada por um programa de abertura
de estradas para o interior do Brasil, ligando a nova capital federal ao resto da
Federação.
16
Com o golpe de Estado de 1964, o governo militar, também utilizou a
habitação social como maneira de afirmação popular. Na época, a economia
brasileira encontrava-se em crise e o País passava por um processo de explosão
demográfica urbana, ocorrendo uma inversão da predominância de sua população
rural para população urbana. Dessa maneira, eram inevitáveis as tensões sociais, a
disputa pela terra e os movimentos reivindicatórios pela melhoria urbana e aqueles
gerados pelo déficit habitacional.
Em vista disso, o governo autoritário procurou na política habitacional a
chave-mestra para a sua política social, a fim de amenizar a desigualdade
produzida pelo processo de acumulação (SACHS, 1999, p. 121). Essa atitude
evidenciou-se na carta (Figura 5) enviada ao primeiro presidente do regime
autoritário, general Castelo Branco, em 18 de abril de 1964, pela futura presidente
do Banco Nacional da Habitação, Sandra Martins Cavalcanti:
[...] nós achamos que a revolução vai necessitar agir vigorosamente junto
às massas. Elas estão órfãs e maguadas, de modo que vamos ter de nos
esforçar para devolver a elas uma certa alegria. Penso que a solução dos
problemas de moradia, pelo menos nos grandes centros, atuará de forma
amenizadora e balsâmica sobre as feridas cívicas. [...] acho que é
imprescindível que o Plano de Habitação repouse sobre um Sistema
Financeiro. [...] O Plano prevê a atuação do Banco até nas áreas de
saneamento básico e transporte de massa, quando fala genericamente em
“infra-estrutura urbana”. Nossas cidades são um caos em matéria de
serviços essenciais, Presidente. Não adianta fazer enormes conjunto onde
não houver água, luz, esgoto, polícia e transporte.[...]. (Grifos nossos)
Em função do momento crítico vivido pelo País, em menos de cinco meses
após o golpe militar, foi criado o Sistema Financeiro da Habitação (SFH), tendo
como órgão central e executor o Banco Nacional da Habitação (BNH) que adotou
uma administração centralizadora, tentada anteriormente por Vargas e Dutra.
17
Figura 5. Fac-símile da primeira das três páginas da carta de Sandra Cavalcanti endereçada ao
general Castelo Branco (os grifos são do próprio General). Fonte: Souza (1974).
Para atender à grande demanda de moradias voltadas para as classes de
baixa renda, o BNH optou por construções de grandes conjuntos habitacionais,
mais voltados para pequenas casas individuais, afastados de áreas urbanizadas. O
BNH acabou transformando-se em um banco de capacitação de recursos, deixando
18
a execução desses empreendimentos ao setor privado da construção civil, que tinha
interesse na exploração e no lucro.
Esse período foi considerado decadente em termos de qualidade
arquitetônica e de paisagem urbana brasileira, em razão de as construções se
situarem longe dos centros urbanos consolidados, criando vazios entre os conjuntos
habitacionais e a cidade. A interferência na paisagem se deve ao fato de os
conjuntos serem caracterizados por um agrupamento de casas iguais, enfileiradas,
que produziam uma imagem com suas habitações de caráter monótona e impessoal
(Figura 6).
Figura 6. Projetos nos mesmos moldes: Conjunto do BNH e Vila Mutirão. Fontes: à esquerda –
Maricato (1997, p. 51); à direita, foto de Roberto Cintra Campos.
Depois de traçar o panorama nacional, no tocante às causas que levaram à
construção de habitações populares, torna-se necessário enfocar o tema na cidade
que é o objeto deste trabalho: Goiânia.
Goiânia, capital do Estado de Goiás, localizada na Região Centro-Oeste do
Brasil, também sofreu os reflexos da migração do meio rural e das regiões vizinhas,
a partir do momento em que se transformou em um pólo atrativo de
desenvolvimento devido a vários fatores, tais como: a construção da ferrovia
iniciada em 1951; a vizinha construção de Brasília (1954-1960) e a conseqüente
abertura de estradas; a pavimentação da BR-153, que liga a capital federal às
regiões Sudeste e Sul, os centros mais avançados do país, passando por Goiânia; a
abertura da rodovia Belém-Brasília; a inauguração da hidrelétrica de Cachoeira
Dourada, além de outros benefícios (MORAES, 1991).
19
Com isso, na década de 1960, Goiânia atraiu um grande contingente
migratório de todas as partes do país e apresentou um dos maiores crescimentos
demográficos brasileiros, gerando com isso diversos problemas que a cidade
planejada por Atílio Corrêa Lima não estava preparada para enfrentar. Com esse
crescimento desordenado, surgiram problemas urbanos, principalmente os
relacionados à habitação popular e às conseqüentes implicações sociais.
Com o objetivo de resolver as questões de habitação popular, de conter os
movimentos sociais que expandiam pela cidade e de dar mais visibilidade à sua
atuação política, o governador Íris Rezende Machado elaborou o programa Mutirão
da Moradia, para atender à população de baixa renda de Goiânia.
O primeiro projeto definido pelo governo foi o da Vila Mutirão, cuja finalidade
era construir mil casas em um dia, pelo regime de mutirão,
3
para atender à
população na faixa de zero a três salários mínimos, não contemplada pela política
habitacional brasileira. Essa experiência de construção em larga escala, realizada
em 1983, procurou solucionar o problema de construção de casas não só levando
em conta o baixo custo construtivo, a rapidez, a mão-de-obra gratuita, mas também
a participação da comunidade na construção das casas por meio do mutirão. Para
tal, adotou como tecnologia construtiva a pré-fabricação, visto que o processo
convencional não atendia a esses critérios.
O governo definiu como prioridade a Vila Mutirão, na capital do Estado de
Goiás, com a intenção de que essa experiência pudesse transformar-se numa
referência para a construção de habitações populares em grande escala para o
país, utilizando a tecnologia de elementos pré-moldados de concreto.
O objetivo desta dissertação é o de documentar, analisar e avaliar esse
processo construtivo, dando ênfase à primeira etapa da Vila Mutirão, por ter sido a
primeira experiência do programa, por ter sido cercada de grande divulgação
nacional e internacional e por ter inspirado diversos outros, tais como: o Mutirão das
Mil Salas de Aula, o Mutirão do Interior, conjuntos de casas populares em diversos
municípios do Estado de Goiás e até reverberações em outros estados do Nordeste
brasileiro.
3
Mutirão – prática comum no meio rural, onde se reúne um grupo de pessoas com o objetivo de executar
tarefas específicas para um determinado vizinho; “auxílio gratuito que prestam uns aos outros os lavradores,
reunindo-se todos os da redondeza e realizando o trabalho em proveito de um só, que é o beneficiado, mas que
nesse dia faz as despesas de uma festa ou função” (Dicionário Aurélio).
20
21
A recuperação dessa iniciativa inusitada em Goiás torna-se necessária, pois
está esquecida, e as documentações do empreendimento estão se perdendo com o
tempo, em vista de que os órgãos promotores do empreendimento foram extintos
ou, então, incorporados por outros.
Para melhor estruturação da pesquisa, este trabalho contém cinco capítulos.
O primeiro aborda o cenário político e social de Goiânia que motivou a construção
da Vila Mutirão. Depois discorre sobre o projeto urbanístico e as unidades
habitacionais, bem como a respeito do processo de definição da tecnologia
adotada.
O segundo capítulo trata do planejamento, da preparação e da organização
dos canteiros de obra nos mil lotes, bem como do recrutamento das pessoas para a
montagem das mil casas, no dia 16 de outubro de 1983, um domingo.
O terceiro capítulo focaliza a concretização da proposta urbanística da Vila
Mutirão, num clima de festa, em que se tornam evidentes os propósitos políticos do
então governador.
O quarto capítulo enumera e analisa as controvérsias geradas pelo
empreendimento. Comprova que, na ânsia de rapidez, muitos aspectos deixaram de
ser contemplados, tais como: a questão de conforto térmico das casas e o descaso
com as experiências acumuladas na área.
O quinto capítulo analisa os problemas ocorridos durante o processo de
ocupação das unidades habitacionais, em que a população se sentiu segregada
social e espacialmente, passando a Vila Mutirão ser considerada um gueto.
Por último, as considerações finais são reservadas para uma reflexão que
aborda a experiência da Vila Mutirão em seus aspectos sociais, políticos e
tecnológicos.
Capítulo 1
O PROJETO DA VILA MUTIRÃO
Este capítulo se propõe a abordar o contexto histórico e os aspectos sociais,
políticos e tecnológicos relativos à construção de mil casas pré-fabricadas, em um
só dia, utilizando, para tal, a prática do mutirão. Em virtude de ter sido um
empreendimento inusitado acabou sendo divulgado tanto no Brasil como no
exterior.
Nessa abordagem, pretende-se resgatar o processo e reunir a
documentação, que corre o risco de perder-se uma vez que os órgãos responsáveis
pelo empreendimento não mais existem.
Vale ressaltar que os dados aqui apresentados foram obtidos em arquivos
particulares de vários dos profissionais envolvidos no processo de viabilização da
Vila Mutirão. Esses profissionais, na época, eram funcionários da Companhia de
Desenvolvimento do Estado de Goiás (Codeg) ou de outros órgãos governamentais.
É o caso de Jadir Mendonça de Lima, arquiteto e coordenador de projetos da
Codeg; Aimiri Jardim Filho, arquiteto e diretor de planejamento da Codeg; Paulo
César Vaz de Melo, engenheiro civil, membro da equipe e coordenador da segunda
etapa da Vila Mutirão; Eduardo Muller, arquiteto e membro da equipe da Codeg;
Maria Aparecida Skorupski, assistente social, coordenadora e consultora da equipe
da Codeg; Ana Cristina Rodovalho Reis, engenheira civil, chefe de projetos e
orçamento da Cohab-GO.
1.1 O contexto histórico
O responsável pela construção da Vila Mutirão foi Íris Rezende Machado,
eleito governador do Estado de Goiás, em novembro em 1982, na primeira eleição
direta, no início do processo de abertura política do regime autoritário.
Em 1965, Íris tinha sido o último prefeito de Goiânia eleito antes da ditadura
militar. Sua administração, claramente populista, foi marcada por obras de impacto
e de cunho social. dentre elas, destaca-se o primeiro conjunto habitacional
direcionado à população de baixa renda em Goiânia, a Vila Redenção. Utilizou, para
tal, o programa da Companhia Habitacional (Cohab), com recursos do recém-criado
Banco Nacional da Habitação (BNH).
23
Na sua gestão à frente do município, realizou vários mutirões nos bairros
onde o mato e o lixo tomavam conta dos vazios urbanos formados no processo de
urbanização de Goiânia. De origem rural, Íris Rezende liderava as empreitadas de
roçagem dos lotes urbanos, sendo sua habilidade com a foice registrada pela
imprensa. Com isso, a prática do mutirão marcou sua vida política. Até mesmo na
construção de um grande parque infantil, a prática – e, conseqüentemente, a
palavra – não foi esquecida. Surgia daí o Mutirama.
Íris permaneceu na memória do povo como um administrador dinâmico e
sensível às causas populares, não só pela sua figura carismática e sua marca
populista, mas principalmente pela ânsia por mudança e liberdade demonstrada no
início da abertura política. Em razão de representar tudo isso no imaginário popular,
venceu a eleição para governador, como candidato de oposição ao governo
autoritário, com mais de um milhão de votos.
Quando assumiu o governo em substituição ao governador biônico Ari
Valadão, em março de 1983, o Estado de Goiás enfrentava problemas de ordem
política e socioeconômica. Na verdade, o caos era nacional, uma vez que o país
estava abalado pela grave crise mundial do petróleo de 1981-1983, por um elevado
processo inflacionário, pelo aumento do desemprego e pela austeridade monetária
exigida pelo Fundo Monetário Internacional (SACHS, 1999, p. 137). Somando-se a
essa crise, Goiânia também sofria um inchaço populacional sem precedentes e de
progressão geométrica, iniciada a partir da década de 1960, com a transformação
das características de sua população de predominância rural para urbana.
Enquanto a média de crescimento demográfico das cidades brasileiras era de 63%,
índice já bastante elevado, Goiânia chegava a 188% (SERRAN, 1976, p. 50).
Um dos fatores que mais contribuiu para essa elevada explosão demográfica
foi a construção de Brasília (1954-1960), a apenas 200 quilômetros de Goiânia. A
nova capital federal, instalada no Estado de Goiás, trouxe como desdobramento um
programa de abertura de estradas para o interior, com o objetivo de ligar Brasília ao
resto do país. Com isso, aumentou o potencial de acessos a Goiânia e incentivou a
migração de todas as regiões do país. A proximidade de Brasília também permitiu
que Goiânia acolhesse o excedente da mão-de-obra proveniente da construção da
capital do Brasil. Assim, de cidade planejada para 50 mil habitantes, em seu projeto
24
original, já no início da década de 1950, Goiânia, segundo Moraes (1991), tinha 53
mil moradores; em 1964, atingiu a marca de 260 mil habitantes.
A cidade, contudo, não estava preparada para receber um aumento
populacional tão expressivo. Além do mais, a falta de uma política econômica capaz
de gerar empregos fatalmente conduziu ao aparecimento de uma população de
baixo poder aquisitivo, que não tinha chance de ser aproveitada no mercado formal
e nos escassos empregos urbanos, por não dispor da necessária qualificação. Com
isso, as invasões de terra e a formação de favelas revelaram-se como a única
opção capaz de solucionar o problema de moradia dessa população. Esse processo
de ocupação irregular produziu grandes bolsões de pobreza, que passavam a
incomodar toda a população mais abastada e, principalmente, o forte capital
imobiliário especulativo, que fazia pressão para que fossem combatidas as
ocupações desordenadas de terras pelos migrantes pobres.
Muitas dessas invasões foram reprimidas com violência, apesar de que
algumas se consolidaram, mesmo com a péssima qualidade de seus barracos com
falta de higiene e salubridade. Segundo Maria Aparecida Skorupski,
1
essas
ocupações irregulares formavam inúmeras favelas às margens dos córregos e de
áreas de risco, em condições subumanas e insalubres. Na época, destacavam-se a
Vila Boa, localizada próxima à nascente do córrego Vila Boa, a Vila Roriz, a Vila
São José, a Vila Caixote e a invasão linear no corte do leito da estrada de ferro, não
concluída, que unia Goiânia a Campinas e à cidade de Trindade. Outra área de
invasão, considerada na época como violenta e de construções sem condições de
habitabilidade, era a Vila Papel,
2
localizada na periferia onde hoje é o Parque Oeste
Industrial, na saída para a cidade de Inhumas.
Íris Rezende mostrou-se preocupado com a eclosão desses movimentos
sociais e com a ascensão de grupos como a União dos Posseiros de Goiânia
(UPG), as Ligas de Bairro e a Assembléia do Povo. Apoiados pela Igreja Católica,
esses grupos começaram um processo de organização e fortalecimento.
Ao assumir o governo, Íris decidiu adotar uma estratégia para exercer o
controle dos movimentos sociais e conter as invasões. Era o momento oportuno
1
Entrevista concedida ao autor em 9 março de 2005.
2
Vila Papel – o nome foi originado pelo fato de seus barracos serem construídos de papelão, barracas de lona
ou folhas de zinco. Como destacou o arquiteto Aimiri Jardim, a invasão era “protegida” por gangues de bandidos
que amedrontavam a polícia.
25
para a sua política populista. Para tal, elegeu como uma das metas do seu plano de
governo a questão habitacional direcionada à população de baixa renda, que
representava um número elevado de pessoas que não tinham uma renda mínima
para se enquadrar dentro do processo de promoção pública dos programas do
Sistema Financeiro da Habitação do Banco Nacional da Habitação.
Com o compromisso de solucionar a questão da terra urbana, Íris queria dar
também uma identidade ao seu governo e impulsionar sua posição política no
cenário nacional. Com esse objetivo, seguindo sugestão do então secretário de
Planejamento, Flávio Peixoto, lançou um projeto de impacto: a construção em
massa de habitações populares.
O governador definiu como órgão responsável, para solucionar a questão
habitacional, a Companhia de Desenvolvimento do Estado de Goiás (Codeg), que
organizou a Diretoria de Planejamento e concentrou a equipe de técnicos para
implementar o Programa de Desenvolvimento Social Participativo (Prodespar), cujo
objetivo, entre outros, era o de “incorporar as potencialidades de cada família, numa
ação conjunta com o poder público”, para atuar no campo da habitação popular,
fomentando a realização de mutirões. Assim o programa desenvolveu o projeto
Mutirão da Moradia, utilizando uma forma econômica de construir por meio da
prática do mutirão, pois Íris queria a comunidade como co-participante do processo.
Goiânia teve prioridade na implantação do programa. Em razão do momento
político por que passava todo o país e alicerçado pela expressiva vitória nas urnas,
Íris considerava aquele momento propício para alavancar seu nome no cenário
político nacional e para galgar um degrau mais alto na cúpula de seu partido, o
PMDB, que na época era oposição ao governo autoritário.
Essa decisão de iniciar o programa em Goiânia provocou manifestações
contrárias dos técnicos e da comunidade em geral. Defendiam que essa opção se
transformaria em um incentivo ao já grande movimento de transferência da
população do interior, do meio rural e de outros estados para Goiânia.
O primeiro procedimento passou a ser a definição da área para a
implantação das 3.600 unidades habitacionais (casa/lote) da Vila Mutirão. Os
grandes conjuntos habitacionais requerem amplas áreas destinadas à grande
concentração de habitações individuais. Essas glebas até existiam nas
proximidades do núcleo urbano, mas, em razão de seu custo elevado e da pressão
26
dos especuladores imobiliários, com a conivência dos governantes, elas não se
viabilizavam para a população pobre.
Para a implantação do projeto da Vila Mutirão foi escolhida a Fazenda
Caveiras, com área de 32 alqueires goianos,
3
às margens da GO-070, que liga
Goiânia a Inhumas, em uma região à noroeste da cidade, posição contrária à
predominância do crescimento em direção à região sul. A rodovia era o único
acesso à cidade e tinha uma distância considerável ao centro de Goiânia,
aproximadamente 14 quilômetros. Além disso, o acesso principal ao conjunto era
pela rodovia, em frente a um posto da Polícia Rodoviária Estadual (Figura 7).
N
Figura 7. Localização da Vila Mutirão. Fonte: desenho original, com interferência do autor.
3
O alqueire goiano tem 48.400 metros quadrados, o dobro do alqueire paulista.
27
O local foi escolhido e negociado diretamente pelo governador. Apesar de a
aquisição ter sido realizada pelo Estado, Íris fez uso do seu prestígio, pois o
processo de desocupação e indenização era muito lento, o que contrariava os
objetivos emergenciais do programa.
A Vila Mutirão foi programada para ser implantada em três etapas (Figura 8).
N
Figura 8. As três etapas da Vila Mutirão, um total de 3.600 moradias em 32 alqueires. Fonte: arquivo
pessoal de Jadir Mendonça.
Para a primeira etapa foi destinada uma área de dez alqueires goianos
atendendo inicialmente a mil famílias, procedentes dos assentamentos irregulares
existentes na capital do Estado (Figura 9).
O programa previa posteriormente a construção das outras duas etapas da
Vila Mutirão, onde se pretendia edificar mais 2.600 moradias. Para a segunda etapa
seria utilizado o mesmo processo construtivo de pré-moldados e mutirão, enquanto
para a terceira etapa já não seria empregado o processo de mutirão, e o lote seria
cedido à população que definiria e construiria a sua própria casa, optando por
qualquer processo construtivo. Portanto, o programa inicialmente almejava atingir,
nas três etapas, a quantia de 3.600 moradias em uma área de 32 alqueires goianos.
28
N
Figura 9. Vila Mutirão, traçado urbanístico da primeira etapa. Fonte: arquivo pessoal de Jadir
Mendonça, com interferência do autor.
Segundo o jornal Diário da Manhã (14 out. 1984), Íris Rezende convocou os
técnicos e pediu um projeto que estivesse de acordo com a realidade de um Estado
pobre como Goiás e que resolvesse de forma prática e humana o problema da
moradia. Essa experiência-piloto seria voltada para o segmento da sociedade com
renda familiar na faixa de zero a três salários mínimos – portanto, uma população
desprovida de recursos para garantir a sua sobrevivência e sem expectativa de
moradia. Essa população havia sido sempre desprezada pela promoção pública em
toda a história da habitação popular brasileira. Nem mesmo o mais ambicioso
programa de construção em massa do país, o Sistema Financeiro da Habitação –
que tinha o BNH como órgão central e executor da política habitacional do país e
que havia financiado 4,4 milhões de moradias em seus 21 anos de existência –
havia conseguido atender satisfatoriamente à população com essa faixa de renda
com os programas da Cohab. Na realidade, esses programas só atenderam à
população cuja renda fosse superior a três salários mínimos (SACHS, 1999, p. 133).
29
Concomitante ao projeto Mutirão da Moradia, foi necessário cadastrar e
selecionar mil famílias carentes, ocupantes de áreas de risco ou invasões. Essa
tarefa foi realizada pelas assistentes sociais da Codeg e pela Fundação das
Legionárias do Bem-Estar Social, cuja presidente era a primeira-dama do Estado. A
seleção atingiu aproximadamente um quarto de toda a população da cidade que
ocupava ilegalmente a terra onde vivia.
Algumas dessas invasões foram visitadas pessoalmente pelo governador,
que simbolicamente cadastrava as famílias que ocupariam as casas da futura Vila
Mutirão, sempre acompanhado pela imprensa (Figura 10).
Figura 10. Na invasão da Vila São José, Íris Rezende cadastrou pessoalmente vinte famílias para a
Vila Mutirão. Fonte: Diário da Manhã, Goiânia, 12 out. 1983.
Uma das grandes preocupações de Íris Rezende era a de que o projeto
atendesse ao critério de baixo custo de construção e fosse compatível com a
situação socioeconômica de Goiás. Surgiu daí a idéia do mutirão, prática que já
havia sido utilizada com sucesso, quando prefeito de Goiânia. Devido à
envergadura do empreendimento, essa prática do auxílio gratuito, sem remunerar
as pessoas envolvidas na construção das mil casas, representaria uma redução
considerável no custo final do empreendimento.
30
1.2 A proposta urbanística
Todo o planejamento para a execução do conjunto habitacional da Vila
Mutirão foi desenvolvido pela Companhia de Desenvolvimento do Estado de Goiás
(Codeg), que tinha como presidente o engenheiro-arquiteto Eurico Calixto de Godói
e como diretor de planejamento o arquiteto Aimiri Jardim Filho.
Para desenvolver os projetos urbanístico e arquitetônico foi criada dentro da
Codeg uma equipe técnica, coordenada pelo arquiteto Jadir Mendonça de Lima,
desvinculada dos demais órgãos do Estado. Essa decisão gerou conflitos nos
órgãos cujos corpos técnicos já vinham desenvolvendo técnicas e estudos no
campo da habitação popular.
4
A equipe dispôs do tempo exíguo de quatro meses – entre junho a outubro –,
para organizar todas as atividades necessárias à efetivação do empreendimento,
tais como: (1) definição e aquisição de uma área que comportasse todo o
empreendimento; (2) cadastro e seleção da população efetivamente desassistida,
na grande maioria sem emprego fixo e vivendo de rendas ocasionais de até três
salários mínimos; (3) elaboração do projeto; (4) definição de um processo
construtivo para a construção em massa; (5) preparação mínima da infra-estrutura;
(6) abertura dos arruamentos; e (7) mobilização das pessoas para participar da
montagem das casas.
Definida a Fazenda Caveiras, de 32 alqueires, como local do primeiro
empreendimento do Mutirão da Moradia de Goiânia, passou-se à elaboração do
projeto urbanístico da primeira etapa, que utilizou um traçado dentro dos princípios
modernistas, ao hierarquizar as vias, ao setorizar as atividades e ao fazer uso da
habitação mínima. O desenho apresenta as vias em malhas paralelas ortogonais,
distribuídas por um eixo principal, a Avenida do Povo, única via de duas pistas que
corta todo o empreendimento e liga à rodovia GO-070, transformada no único
acesso à cidade (Figura 11).
A proposta urbana da primeira etapa contém um total de 32 quadras, das
quais 24 foram destinadas às unidades habitacionais, onde estão distribuídos os
1.009 lotes residenciais, sendo 885 lotes regulares. Cada lote regular possui a área
4
Esse tema será abordado posteriormente.
31
Obs.: Equivale p. 32
ESTA FOLHA CONTÉM A PLANTA DAS 3 ETAPAS, NO FINAL DO
TRABALHO, APÓS A BIBLIOGRAFIA, NO PAPEL TAMANHO A3.
32
de 250,00 metros quadrados, com 10,00 metros de largura e 25,00 metros de
profundidade; 96 são lotes de esquina e os 28 restantes são lotes irregulares.
A maioria dos lotes tem a frente ou o fundo voltado para leste ou oeste, com
as janelas dos dois ambientes de permanência prolongadas (sala e quarto) ou
voltados para leste ou para oeste, faces com maior incidência direta do sol,
deixando transparecer uma falta de entrosamento entre o projeto urbanístico e as
edificações.
Aproximadamente no meio da área da primeira etapa, as quadras 13, 14 e 15
e 16 foram destinadas ao comércio e a outros equipamentos urbanos: escola,
creche, abrigo para idosos, áreas públicas e reservas verdes. Manteve-se uma área
de preservação ambiental no fundo do vale do Córrego Fundo, afluente do Ribeirão
Caveirinha, que corta a área geral e serve de divisa entre a segunda e a terceira
etapas. Nessa área remanescente do fundo do vale estava situada a sede da
fazenda.
Um problema enfrentado na legalização do projeto urbanístico foi quanto ao
índice destinado às áreas verdes livres exigidas pelo Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). O mesmo problema já
havia sido enfrentado pela Cohab-GO, em momentos anteriores. Ao adotar a prática
de sempre construir para depois legalizar, devido ao processo de desapropriação e
de averbação ser extremamente lento, a Cohab, quando iniciava a legalização dos
seus conjuntos habitacionais já construídos, defrontava com as exigências do
Ibama relativas ao percentual de áreas verdes.
Como o encaminhamento para a legalização dos conjuntos habitacionais da
Cohab só era feito tempos depois de construídos e ocupados, a única solução
emergencial encontrada pela Cohab e pelo Ibama, segundo a engenheira Ana
Cristina Rodovalho Reis,
5
da Cohab, era a de destinar o recuo frontal de cada lote
para esse fim. Portanto, a exigência do Ibama recaía na colocação de uma cláusula
contratual que requeria dos mutuários a obrigatoriedade de usar a área do recuo
frontal somente para o plantio e não para construções posteriores, em atendimento
à legislação para fazer a escrituração da propriedade.
5
Entrevista concedida ao autor em 15 de agosto de 2006.
33
Segundo o arquiteto Jadir Lima,
6
como as áreas verdes no projeto
urbanístico da Vila Mutirão também não eram suficientes para atender às
exigências do Ibama, o mesmo sistema de incorporar, na averbação, o uso do
recuo frontal, como área verde para complementar o índice, foi também adotado
pela Codeg na aprovação do projeto urbanístico do empreendimento.
1.3 As unidades habitacionais
Quase concomitante ao projeto urbanístico foi elaborado o projeto das
unidades habitacionais da Vila Mutirão, que deveria: (1) centrar-se na busca de
alternativas de construção rápida; (2) satisfizer o critério indispensável de baixo
custo, para atender à questão de moradia para os posseiros urbanos (cerca de 25%
da população); (3) envolver toda a comunidade para assumir a responsabilidade de
co-participante do processo de mutirão (CODEG, 1986, p. 3).
A primeira técnica construtiva aventada para a execução das casas foi a
convencional, em que se usaria alvenaria de tijolos furados. Inicialmente pensou-se
em fazer barracões de 6,0 por 3,0 metros, ou seja, de 18,0 metros quadrados, mas,
em razão de ser lento, esse processo tradicional não atenderia ao objetivo de uma
obra de impacto como o governo pretendia. Isso foi descartado porque exigiria mão-
de-obra especializada por um período razoavelmente longo e não poderia contar
com o envolvimento do povo no programa por um extenso período continuado.
Outro fator de que se lançou mão foi o aproveitamento da mão-de-obra das
empresas locais de construção civil, que, na época, passavam por uma retração de
suas atividades, devido à crise financeira mundial de 1983. Esse setor produtivo,
que era então o que mais absorvia a grande maioria da mão-de-obra, ressentiu-se
da crise, o que levou muitas firmas pequenas a fechar suas portas e a dispensar
seus operários.
Vale ressaltar que na busca de soluções construtivas novas, de baixo custo e
de viabilidade em espaço curto de tempo, alguns membros da equipe da Codeg
visitaram a Vila Serpro, em Rio Verde (a 227 quilômetros de Goiânia). Trata-se de
uma experiência desenvolvida por uma entidade espírita com fins filantrópicos,
6
Entrevista concedida ao autor em 20 de janeiro de 2005.
34
administrada na época pelo advogado Paulo Campos. Os ocupantes da Vila Serpro
não eram proprietários das casas: eles utilizavam as casas gratuitamente, até o
momento em que conseguissem emprego, passando a partir daí a contribuir com
pequenas parcelas para a construção de novas casas destinadas a atender outras
famílias carentes.
As casas eram construídas com todos os tipos de material, mas as que
utilizavam placas pré-moldadas e pilares de cimento eram as mais interessantes e
as menos onerosas. Esse sistema de placas e pilares de cimento vinha sendo
empregado pela população de renda mais baixa, para fechamento de muros, para
tapumes de obra, em razão de seu baixo custo. A resistência, porém, era pouca.
A partir dessa viagem, o governador passou a aceitar a idéia da pré-
fabricação como a técnica mais versátil, capaz de atingir a meta da construção
rápida, com possibilidades de montagem de um número maior de casas ao mesmo
tempo, para poder assim alcançar o seu intento: o de chamar a atenção de todo o
Brasil para a sua administração.
Segundo a assistente social Maria Aparecida Skorupski, vários outros
sistemas foram aventados nas reuniões realizadas, com o objetivo de buscar um
processo que atendesse ao desafio. Numa delas foi lembrado um sistema de
elementos pré-fabricados utilizado no governo de Mauro Borges, no início da
década de 1960, para atender à carência de salas de aula. Na época, optou-se pela
utilização de placas de cimento pré-fabricadas para construir galpões que
abrigassem salas de aula emergenciais, contíguas aos edifícios já existentes. Essa
escolha deveu-se ao fato de o processo ser mais barato e mais rápido, além de ser
muito utilizado pela população de baixa renda.
A empresa do diretor de planejamento da Codeg, arquiteto Aimiri Jardim
Filho, construiu vários desses anexos, que passaram a ser pejorativamente
apelidados de “forninhos”, em razão da elevada temperatura ambiente. Com base
na experiência desses anexos de sala de aulas, vislumbrou-se a possibilidade de
construir em grande escala. Surgia daí a semente para a definição do sistema de
pré-fabricação para o Mutirão da Moradia.
Uma outra experiência concomitante ao processo de decisão tecnológica
para a construção da Vila Mutirão foi o projeto das Escolas Transitórias, para o meio
rural, desenvolvidas pelo arquiteto João Filgueiras Lima (Lelé), para a prefeitura da
35
cidade de Abadiânia, localizada a 84 quilômetros de Goiânia, às margens da BR-
153, que liga a capital goiana a Brasília (Figura 12). O projeto utilizava uma
tecnologia de pré-fabricação da argamassa armada,
7
ou seja, peças leves de
espessura variável em torno de dois milímetros e no máximo cem quilos, para
facilitar o transporte e a montagem manual, o que dispensava mão-de-obra
especializada.
O sistema necessitava de uma usina para a fabricação dos elementos e de
fôrmas para a moldagem das peças, que passavam por uma mesa vibratória para
eliminar as partículas de ar e posteriormente por um processo mais aperfeiçoado de
“cura” das peças. O primeiro protótipo construído em Abadiânia mostrou rapidez na
execução – 45 dias entre a fabricação e a montagem.
Convém destacar que Lelé é um arquiteto que demonstra, nos seus projetos,
preocupação com a industrialização da construção, bem como com soluções
relativas ao conforto térmico. No projeto de Abadiânia, ele utilizou sheds voltados
para a fachada sul; as paredes externas são de placas duplas, com colchão de ar
ventilado por meio de aberturas nas partes inferior e superior da placa mais externa.
Na cobertura, as placas duplas são entremeadas por colchão de ar ventilado
8
(Figura 13).
Figura 12. Escola Transitória de Abadiânia, Goiás. Fonte: Lima (1984, p. 18).
7
Argamassa armada – material composto de cimento, areia e malha de ferro originado das pesquisas do
francês Jean-Louis Lambot e difundido por Pier Luiggi Nervi, na década de 1940, como ferro-cimento (LIMA,
1984, p. 23).
8
Infelizmente Lelé não desenvolveu nenhum projeto voltado para a habitação popular com essa tecnologia.
36
Figura 13. Detalhes das placas duplas em argamassa armada. Uso de colchão de ar ventilado como
isolante térmico tanto para paredes como para cobertura. Fonte: Lima (1984, p. 83).
Esse processo chegou a ser aventado para a construção da Vila Mutirão,
mas foi logo descartado pela equipe técnica e governo, por ter sido considerado
complexo e pela necessidade de construção de uma usina, mesmo que pequena.
Os espíritos conservadores e a força dos empreiteiros, no momento decisório,
terminaram impondo seus pontos de vista. Afinal, um dos objetivos era incrementar
o setor da construção.
A tecnologia de pré-fabricação passou a ser aceita como a única alternativa
viável para a construção em grande escala. O projeto das unidades habitacionais se
baseou essencialmente no baixo custo e na possibilidade de construção em grande
quantidade, utilizando técnicas simples com o emprego de modulação dos
elementos pré-moldados – placas e pilares. As janelas e estruturas da cobertura
seriam em metal, e as telhas em fibrocimento.
A quantidade das unidades a serem construídas foi decidida em uma reunião
dentro do gabinete do governador, segundo o arquiteto Aimiri Jardim. O número mil
foi resolvido quase que por acaso: ao ser indagado sobre quantas casas poderiam
ser construídas em um mesmo dia pelo processo de pré-fabricação, o arquiteto
respondeu num impulso: “até mil”. Essa resposta, pela força expressiva e
excepcionalidade do número “mil”, definiu a quantidade das moradias que seriam
construídas em um único dia. Um número, enfim, que causaria impacto.
37
O projeto inicial das casas com elementos pré-moldados foi desenvolvido em
junho de 1983, contando com quatro tipos de moradias originadas de um embrião:
dois cômodos (sala e quarto) e uma área de 21,26 metros quadrados (Figura 14).
As demais foram derivadas desse embrião com o acréscimo de mais cômodos, a
saber:
1Q-S (embrião)= quarto e sala: 21,26 m² (Figura 15).
1Q-SC =quarto, sala e cozinha: 25,26 m² (Figura 16).
2Q-SC = dois quartos, sala e cozinha: 35,25 m² (Figura 17).
2Q-SCB = dois quartos, sala, cozinha, banheiro e serviço: 40,19 m² (Figura 18).
Figura 14. As quatro tipologias definidas a partir de um embrião. Desenho original do primeiro projeto
de junho de 1983. Fonte: arquivo pessoal do arquiteto Aimiri Jardim Filho.
Figura 15. Embrião 1Q-S – quarto e sala, área de 21,26 m² – junho de 1983. Desenho do autor.
38
Figura 16. 1Q-SC – quarto, sala e cozinha, área de 25,26 m² – junho de 1983. Opção definida para a
Vila Mutirão. Desenho do autor.
Figura 17. 2Q-SC – dois quartos, sala e cozinha, área de 35,25 m² – junho de 1983. Uso de portas
internas. Desenho do autor.
39
Figura 18. 2Q-SCB – dois quartos, sala, cozinha, banheiro e área de serviço, área de 40,19 m² –
junho de 1983. Desenho do autor.
Partiu-se também do princípio de que a opção por peças pré-moldadas mais
leves e de tamanhos menores seriam mais práticas para serem manuseadas e
transportadas por duas pessoas no processo de mutirão, além de evitar despesas
com a onerosa mobilização mecânica.
Os estudos conduziram ao uso de fôrmas e equipamentos simples,
possibilitando às empresas de construção civil o seu redirecionamento para a
produção de pré-moldados sem grandes investimentos (CODEG, 1986, p. 4). No
início, as modulações de eixos eram de três tamanhos diferentes – 176, 141 e 88
centímetros –, e no projeto definitivo, para as mil casas da primeira etapa, o módulo
adotado foi racionalizado para duas dimensões: de 160 e 80 centímetros.
Apesar de o projeto apresentar quatro opções originadas de um embrião com
dois ambientes, utilizou-se um único modelo (1Q-SC – sala, quarto e cozinha) para
a construção de todas as mil unidades habitacionais. A equipe da Codeg previa
futuras ampliações de mais um quarto, banheiro e área de serviço, utilizando a
40
mesma tecnologia de pré-fabricados, conforme a necessidade, a capacidade
financeira e o desejo de cada família.
O projeto final da unidade habitacional escolhida, para as mil casas da
primeira etapa da Vila Mutirão, tinha três cômodos: sala, quarto e cozinha (1Q-SC),
uma área de construção de 25,93 metros quadrados e mais 2,66 metros quadrados
para sanitário e banheiro. A casa foi programada para ser edificada na frente do
lote, obedecendo ao recuo frontal de cinco metros. Esse espaço foi uma exigência
do Ibama como parte complementar da área verde que não atendia aos requisitos
de áreas livres do órgão (Figura 19).
Figura 19. Implantação da casa e banheiro no lote. Desenho do autor.
O local para o sanitário e banheiro foi definido no fundo do lote: uma
edificação em alvenaria, na parte externa da casa, dividida em dois boxes, sendo
um para sanitário, tipo fossa negra, e o outro para o banho. Segundo a Codeg,
esses teriam o caráter provisório até a implantação da rede de coleta de esgoto.
Cada unidade habitacional era estruturada em 21 pilares pré-moldados de
seção quadrada, de 12 centímetros de lado. Segundo o arquiteto Aimiri Jardim
Filho, inicialmente os pilares foram definidos com quatro fendas para o encaixe das
placas, mas a dificuldade encontrada na armação e no desenho dos detalhes de
fôrmas exigiu novos estudos. Chegou-se à conclusão de que três fendas no pilar
eram suficientes para atender às situações de encaixes e também para otimizar, ao
mesmo tempo, a armação das ferragens e o processo de desforma (Figuras 20 e
21).
41
Figura 20. Planta da casa-padrão para Vila Mutirão. 1Q-SC – quarto, sala, cozinha, área 25,93 m².
Figura 21. Detalhes da casa padrão. Pilares e placas. Desenho do autor.
42
O projeto definiu os pilares com três tamanhos diferentes: dez pilares
pequenos (PP), de 3,20 metros; cinco pilares médios (PM), de 3,55 metros; e seis
pilares grandes (PG), de 3,95 metros. Os mais altos corresponderiam ao
alinhamento da cumeeira, os médios estariam nos vãos intermediários, e os
menores se localizariam nas extremidades laterais da casa. Todos ficariam
enterrados e compactados a 80 centímetros abaixo do nível da terra.
Os elementos de vedação utilizados como paredes foram 108 placas pré-
moldadas de 13 tamanhos diferentes, com espessura de 25 milímetros, armadas,
horizontal e verticalmente, com ferragens, formando três alternativas de malhas de
10 por 10, 15 por 15 e 20 por 20 centímetros, definidas após experimentos
realizados com diferentes espaçamentos e bitolas de arame (Figuras 16 e 17).
Figura 22. Malha estrutural das placas. Três alternativas: 10x10, 15x15 e 20x20 cm. Desenho
original. Fonte: Codeg (1983, p. 12).
Figura 23. Pilares e placas de vedação das casas: 21 pilares de três tamanhos diferentes e 108
placas de 13 tamanhos diferentes. Fonte: Revista Projeto, n. 68, p. 75, out. 1984.
43
Testes de encaixe e resistência das placas de 25 milímetros foram realizados
para determinar a espessura e resistência, na maioria das vezes de maneira
empírica, por meio de testes práticos de resistência das placas, ora submetendo-as
ao peso de caminhões, ora aplicando-lhes chutes. Ou seja, por tentativa, usando
todo tipo de agressão para aferir sua resistência mecânica, em função do pequeno
espaço de tempo e da falta de equipamentos mais científicos de controle de
resistência a determinados esforços.
A equipe da Codeg desenvolveu um desmoldante mais barato, composto de
óleo de linhaça e água, para não deixar as placas escuras. O óleo e a água foram
misturados em um liquidificador industrial. Com os testes foram aprimorados os
encaixes das esquadrias metálicas, principalmente com os montantes metálicos das
portas de madeira, os quais eram embutidos nos pilares.
A fachada principal possuía duas janelas – uma do quarto, a outra da sala –
e a porta de entrada. Todos esses elementos foram posicionados para frente do
lote, e conforme a implantação, estavam voltados ou para leste ou para oeste
(Figura 24).
Figura 24. Fachadas: frontal e posterior. Desenho original com interferência do autor. Fonte: Codeg
(1983, p. 6).
44
Cada casa possuía três janelas de metal iguais e duas portas nas cores
verde, vermelho, azul e amarelo, para atender a uma característica comum dos
moradores de conjuntos habitacionais: a de procurar dar uma identidade à sua casa
tão logo a ocupem.
O vidro escolhido foi o fantasia translúcido, e as janelas tinham uma pequena
parte fixa de veneziana em ambos os lados. Foram projetadas para funcionar
abrindo para fora, por meio do sistema de dobradiças, com cortes e dobras no perfil
metálico inteiriço, diminuindo, assim, o uso de soldas. As janelas foram planejadas
para ser encaixadas entre as fendas dos pilares (Figura 25).
Nas portas procurou-se uma opção de baixo custo ao utilizar, para as folhas
das portas, tiras de madeira de lei, desprezadas pelas indústrias moveleiras,
montadas com o sistema de encaixe “macho e fêmea”, ou pedaços de faixas
coladas. Os montantes das portas eram metálicos e encaixados também nas
fissuras dos pilares.
Figura 25. Janela e porta da casa. Janela metálica e sistema de dobradiça. Portal de metal e porta
de madeira. Fonte: Codeg (1983, p. 13).
O projeto arquitetônico original, de junho de 1983, previa três portas para a
casa, mas, no final, definiu-se por duas portas de fechamento, uma para frente e a
outra para o fundo do lote. A porta interna do quarto, por sugestão da assistente
social Maria Aparecida Skorupski, no desenvolvimento do projeto, foi eliminada,
45
pois nas invasões dormiam todos sob a mesma lona. Só o fato de dispor de dois
ambientes, separando pais de filhos, já era um avanço, e ainda havia o receio, por
parte dos planejadores do empreendimento, de que ela fosse retirada e vendida.
No interior das casas não havia abastecimento de água e nem rede de
esgoto. A solução barata encontrada pela equipe foi o sanitário tipo fossa negra e
boxe para o banho, que, segundo Maria Aparecida Skorupski, também era outro
avanço, pois nas ocupações irregulares o córrego era tudo: abastecimento e
sanitário, ao mesmo tempo.
A torneira da cozinha também foi eliminada, pois, para os moradores das
invasões, esses objetos não tinham serventia e geralmente tanto a porta como a
torneira eram retiradas e vendidas. Esse fato foi constatado em experiências de
conjuntos habitacionais do BNH, como Vila Kennedy (RJ), em Campinas (SP), onde
os moradores, com a prioridade voltada para a alimentação, vendiam partes da
casa para conseguir algum dinheiro. O fator econômico também pesou na decisão,
pois no caso da Vila Mutirão tudo era multiplicado por mil.
Para a cobertura felizmente foi empregado o metal em substituição à
madeira, preservando as árvores e evitando o uso de pregos no canteiro da obra. A
estrutura do telhado foi de chapa dobrada e dividida em duas partes independentes,
formando duas águas. Eram fixadas por meio de uma peça metálica presa nas
cabeças dos pilares da cumeeira e nas extremidades por meio de dois pinos de
espera e amarradas com fios metálicos, para que depois as telhas fossem
assentadas com ganchos e porcas metálicas (Figura 26).
Figura 26. Estrutura metálica do telhado. Duas partes diferentes e independentes fixadas na cabeça
do pilar por meio de ganchos metálicos (detalhe à direita). Fonte: Codeg (1983, p. 7).
46
As telhas definidas foram de fibrocimento de seis milímetros de espessura e
tamanhos de 366 de comprimento e 110 centímetros de largura, e as peças de
cumeeira, de 30 centímetros, com inclinação de trinta graus.
Os testes foram importantes também na solução do transporte das peças, na
questão da resistência ao empilhamento e no manuseio e locomoção das peças,
para evitar a quebra de placas.
Para averiguar e avaliar as possibilidades de utilização do processo
construtivo de pré-moldados, a resistência dos materiais e as possibilidades de
esquema de montagem, foram construídos dois protótipos para testes. Estes foram
importantes na definição de uma dosagem que conferisse maior resistência ao
concreto das peças, no sistema de encaixes, na definição das fôrmas e pistas de
concretagem, bem como nos detalhes metálicos de fixação da cobertura, nas
esquadrias e em outros elementos componentes da unidade habitacional.
Com os protótipos, procurou-se também otimizar o tempo e o número de
pessoas necessárias para a montagem das habitações. Os testes de montagem
ajudaram na definição do número de pessoas para erguer uma casa. Concluiu-se
que, para a tarefa de montagem, seriam necessários dez indivíduos: um
encarregado que tivesse melhor qualificação, como um mestre-de-obras ou
pedreiro, e mais oito ajudantes voluntários. Ainda ficou estipulado que, para cada
grupo de quatro casas, haveria um técnico responsável: engenheiro, arquiteto ou
outro profissional da área de construção civil.
A equipe técnica da Codeg, responsável pelo projeto e pela execução do
Mutirão da Moradia, sabia de antemão que os materiais – ou seja, a delgada telha
de cimento amianto de seis milímetros e as paredes formadas por placas de 25
milímetros de espessura – não teriam qualidade térmica. Muito pelo contrário, os
protótipos já haviam revelado temperaturas internas elevadas, apesar de que nos
primeiros momentos não foi realizado nenhum tipo de avaliação técnica com
aparelho (Figura 27).
Com o objetivo de amenizar a temperatura, o projeto determinou um espaço
de 15 centímetros entre as telhas de cobertura e a última placa de vedação, de
modo que o ar quente pudesse circular.
47
Figura 27. Casa da Vila Mutirão montada. Foto: Vadir Lima.
Para Aimiri Jardim Filho,
9
muita coisa foi feita de improviso, sem tempo para
checar e avaliar todo o processo e até com muita possibilidade de riscos. A própria
legalização junto ao Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura (Crea) foi
inusitada, pois a Codeg não queria assumir o risco e a responsabilidade de uma
construção realizada por uma pessoa sem experiência. Houve dúvidas, na época,
sobre como registrar a construção pelo processo de mutirão, procedimento que
fugia a todas as regras de anotação de responsabilidade técnica.
A solução para o registro e legalização do processo junto ao Crea foi
encontrada pelo funcionário e arquiteto Roberto Benedetti. Ele definiu que cada
firma seria responsável pela qualidade das placas e pilares; pelas esquadrias
metálicas e portas, referentes a cada conjunto de casas licitadas, anotando sua
responsabilidade técnica. Os projetos urbanístico-arquitetônicos tiveram a autoria
anotada pelos técnicos da Codeg. Assim, não houve responsável técnico na
montagem das casas pelo processo de mutirão, mas os técnicos do Crea
acompanharam a construção, a revisão e a manutenção posterior das casas
construídas pelo Mutirão da Moradia de Goiânia.
9
Entrevista concedida ao autor em 2 de fevereiro de 2005.
48
Durante o desenvolvimento do projeto, outros problemas foram encontrados
pela equipe da Codeg: a instalação de energia elétrica – que, depois do dia do
mutirão, seria implantada nas unidades habitacionais – sofreu restrições da Centrais
Elétricas de Goiás (Celg), que não admitia o uso de outro tipo diferente do seu
padrão de energia, cujo custo era mais elevado. Segundo Aimiri Jardim Filho, a
intenção primeira era utilizar uma solução barata adotada em Belo Horizonte, onde
uma caixa com um disjuntor fixado no poste continha vários relógios de medição.
Esse processo não foi aceito pela Celg, que o considerou perigoso. Para a Vila
Mutirão, foi adotado um padrão mais barato, que atendia a cada duas casas.
Os técnicos da Saneamento de Goiás (Saneago), órgão estatal responsável
pelo abastecimento de água e coleta de esgoto, não concordavam com o sistema
precário de captação de água do córrego, sem o devido tratamento. A água era
bombeada até a caixa d’água construída na entrada da Vila Mutirão, na parte mais
alta do empreendimento, para depois ser distribuída pelo chafariz (torneira)
instalado em cada quadra (Figura 28).
Figura 28. Vista da entrada principal da VM com a caixa d’água. Fonte: Gazeta Popular, 21-23 set.
1984, p. 5.
O arquiteto Eduardo Muller
10
contou que, durante a fabricação das placas e
do engradamento metálico do telhado, decidiu-se que as casas sofreriam, na sua
implantação, um espelhamento para que as casas frente a frente não ficassem
totalmente iguais. O que ocorreu foi que tal procedimento conseqüentemente
10
Entrevista concedida ao autor em 24 de agosto de 2005.
49
50
invertia a estrutura do telhado. Isto provocou um corre-corre nas empresas que
ganharam a licitação e estavam em processo de execução, para que realizassem a
alteração a tempo.
Apesar de todo o esforço, a equipe da Codeg estava apreensiva devido às
circunstâncias envolvidas no projeto, tais como o ineditismo da proposta, o
processo de participação de leigos na montagem das casas, a ocupação posterior,
a resistência das casas em caso de intempéries. Assim, todos se mostravam
ansiosos para o dia do mutirão, cuja data havia sido definida para o dia 16 de
outubro de 1983, um domingo.
Depois de definido o projeto, a etapa subseqüente passou a ser a
preparação para a execução das mil casas em um dia, pelo processo de mutirão. O
desafio constituía em organizar a construção do empreendimento.
Capítulo 2
A IMPLEMENTAÇÃO DO EMPREENDIMENTO
Este capítulo trata do processo de organização e preparação da construção
das mil moradias pré-fabricadas da Vila Mutirão, pelo processo de mutirão.
Depois da escolha da área, da definição do projeto urbanístico e do projeto
arquitetônico das unidades habitacionais, a próxima etapa passou a ser a
consumação da montagem ou construção das casas em um único dia.
A seqüência das estratégias adotadas para o desenvolvimento do mutirão foi:
(1) convocação e envolvimento das pessoas na participação do mutirão; (2) definição
e organização da seqüência construtiva das unidades habitacionais; (3) treinamento
dos grupos de pessoas para a montagem das casas, utilizando um processo não-
convencional de construção, a pré-fabricação; (4) construção dos elementos
componentes da casa; (5) organização da área e do canteiro de obra de cada casa;
(6) preparação para o dia do mutirão.
Os dados aqui apresentados foram obtidos nos arquivos de jornais do Cedoc,
da Organização Jaime Câmara, nas entrevistas mencionadas no capítulo anterior, na
revista Projeto, n. 68, de outubro de 1984, e na revista AU, n. 7, de agosto de 1986.
2.1 O recrutamento e treinamento da mão-de-obra
Segundo o ex-diretor de Planejamento da Codeg, arquiteto Aimiri Jardim Filho,
só depois de resolvido o projeto arquitetônico, de definida toda a parte técnica e o
processo de construção, enfrentou-se o desafio de arregimentar as pessoas para
montar as mil casas, em um dia, pelo processo de mutirão. Cabia então à Codeg
sensibilizar um grande número de pessoas para doar o seu dia de folga em prol de
um trabalho sem remuneração.
Depois dos estudos e dos testes realizados para a montagem de cada
moradia, a Codeg concluiu que para cada casa seria necessário um número de dez
pessoas. Portanto, para todo o conjunto, estimou que seria necessário um número
mínimo de dez mil pessoas, sem contar com as pessoas envolvidas na organização
do empreendimento, no transporte, no apoio, na segurança etc.
O governador, com sua capacidade de mobilização e liderança, assumiu a
tarefa de convocar o número necessário de pessoas para construir as mil casas pelo
processo de mutirão, considerado pelo engenheiro-arquiteto Eurico Calixto de Godoi,
52
presidente da Codeg e coordenador da obra, o “maior mutirão da história humana”.
1
A equipe sabia que, sem o número suficiente de pessoas para executar a tarefa, tudo
poderia perder-se e, com isso, a meta e o efeito almejado não seriam atingidos.
O grande contingente de mão-de-obra foi arregimentado entre os funcionários
públicos de todos os órgãos municipais e estaduais, bem como entre funcionários e
operários das prefeituras do interior. Naquela época, muitos prefeitos do interior
tinham sido eleitos em função da exigência do “voto vinculado” e, por isso, se
sentiam em débito com o governador. Assumir a construção de várias casas da Vila
Mutirão foi, de certo modo, uma maneira de expressar gratidão.
Muitas empresas da construção civil convocaram seus operários para
contribuir com o Mutirão da Moradia, pois sabiam que um dos objetivos do governo
era o de reativar a construção no Estado. Esse setor é um grande gerador de
empregos para pessoas de pouca qualificação.
Os elementos e peças componentes das casas seriam, por sua vez,
terceirizados por meio de licitação realizada pela Codeg, com o objetivo de
incrementar o setor e aproveitar a mão-de-obra ociosa existente. Para tal, várias
empresas de construção foram convidadas para participar da licitação das placas
pré-moldadas correspondentes a cada lote de casas, composto por cinqüenta
unidades habitacionais. Conforme Aimiri Jardim Filho, foram realizadas reuniões com
dez empresas de cada vez, com o preço de cada lote de casas previamente
estipulado e distribuído conforme o capital e a capacidade produtiva de cada
empresa. Os critérios eram definidos pela Codeg, de maneira a atender a todas as
firmas interessadas na época.
Segundo alguns proprietários das empreiteiras, naquela época houve uma
distribuição equilibrada, permitindo que as empresas participassem das construções,
sem privilégios para uma ou outra firma, tanto na primeira etapa como em outras do
programa Mutirão da Moradia e de salas de aula para o interior e para a capital.
Dessa maneira, todo o setor uniu-se ao governo para enfrentar o desafio do
empreendimento.
1
Eurico Godoi informou a um jornal, dois dias antes do mutirão, que havia consultado o Guiness Book para
certificar se já havia registro sobre a construção de mil casas em só dia. Fonte: “Os preparativos para a
construção de mil casas”. Diário da Manhã, Goiânia, 14 out. 1983, Local.
53
Proprietário de uma construtora, o arquiteto Aimiri Jardim Filho, valeu-se da
amizade e confiabilidade no meio empresarial, garantindo o pagamento dos serviços
executados. Com a crise financeira, estagnação e dificuldades enfrentadas pelo
Estado tornaram-se freqüentes os atrasos e calotes nos pagamentos de obras
públicas realizadas para os governos anteriores. Portanto, esse receio teve que ser
sanado pela credibilidade de Jardim e pela garantia do governo em assumir um
cronograma de pagamentos dos serviços aos empreiteiros.
A data inicial escolhida para o mutirão foi o mês de setembro. Apesar de o
local estar definido e o projeto urbanístico e arquitetônico das unidades estar em fase
de conclusão, a equipe da Codeg considerou essencial treinar as pessoas envolvidas
na construção, aprimorar o processo de montagem da casa e definir suas etapas.
Havia até a possibilidade de chuvas fortes para o período do mês de setembro,
previsão feita pelo serviço de metereologia.
Dessa maneira, a data foi prorrogada para o dia 16 de outubro de 1983,
próxima ao aniversário de Goiânia (24 de outubro). Esse adiamento aumentava o
tempo para o treinamento dos técnicos e encarregados das equipes e também para
a convocação da população.
Paralelamente ao recrutamento, foi considerada de fundamental importância a
etapa de treinamento do pessoal responsável pela montagem das casas. Foram
utilizados diversos recursos, tais como: cartilhas, manuais e audiovisual para auxiliar
na preparação das pessoas e, assim, evitar contratempos no dia do mutirão.
O Manual de Montagem descrevia e distribuía racionalmente as diversas
etapas a serem seguidas pelas turmas de montagem. A seqüência estabelecia como
primeira etapa a distribuição correta de todos os pilares existentes, com os pilares
pequenos, médios e grandes colocados dentro dos seus respectivos buracos,
abertos antecipadamente. Todo o processo de montagem deveria iniciar-se a partir
do pilar de número um, que, depois de aprumado e nivelado, recebia a compactação
manual. Para ganhar tempo, sugeria-se dividir a equipe em dois grupos: A e B, de
modo a abrir duas frentes de trabalho e agilizar o processo.
A segunda etapa correspondia à montagem de cada vão, onde seriam
colocadas as três primeiras placas pré-moldadas até a altura de 1,80 m de altura,
acima da linha de nível, para depois compactar cada pilar seqüencialmente (Figuras
29 e 30).
54
Figura 29. Primeira etapa de montagem: colocar os pilares nos buracos, aprumar e nivelar o pilar 1 e
compactá-lo. Fonte: Codeg (1983, p. 21).
Figura 30. Segunda etapa de montagem: montar cada vão, entre os pilares, com três placas até 1,80
cm do nível, aprumar e compactar os pilares seguintes. Fonte: Codeg (1983, p. 22).
A próxima etapa estabelecia a repetição da operação até o fechamento de
cada cômodo isoladamente utilizando as três placas pré-moldadas até a altura de
55
1,80 m, tendo o cuidado com o nivelamento e prumo das peças pré-moldadas.
Depois utilizar os cavaletes e tábuas, existentes no canteiro de cada lote, como
andaimes para colocar as placas de respaldo (Figuras 31 e 32).
Figura 31. Terceira etapa de montagem: repetir a operação até o fechamento de cada cômodo
isoladamente. Fonte: Codeg (1983, p. 23).
Figura 32. Quarta etapa de montagem: instalar os andaimes com os cavaletes e tábuas, para
colocação das placas de respaldo; para ganhar tempo, manter a divisão das turmas. Fonte: Codeg
(1983, p. 24).
56
As placas eram encaixadas entre as fendas de dois pilares, bem como as
portas e janelas, mantendo ainda a divisão do trabalho em duas equipes para agilizar
o processo.
Na seqüência, o manual de montagem sugeria fixar os ganchos metálicos na
cabeça dos pilares para receber as duas partes da estrutura metálica da cobertura.
Em seguida assentar e fixar as telhas e cumeeiras de cimento-amianto, conforme a
quinta e sexta etapas do manual de montagem (Figuras 33 e 34).
Figura 33. Quinta etapa de montagem: a cobertura é montada com as duas partes metálicas
independentes amarradas na cabeça do pilar. Na montagem, utilizar os andaimes, escada e todo o
pessoal disponível. Fonte: Codeg (1983, p. 25).
Figura 34. Sexta etapa de montagem: colocar as telhas e cumeeiras de cimento-amianto; para a
montagem furar com prego grande, fixar nos ganchos metálicos e apertar as porcas. Fonte: Codeg
(1983, p. 26).
57
O procedimento conclusivo era o de preparar a argamassa de cimento, areia e
água existentes no canteiro e, com a colher de pedreiro, calafetar as juntas entre as
placas
simplificadas
e cons
ade o
idealiz
maque
los grupos, o outro era montado e desmontado inúmeras vezes pelas
diversa
técnico (arquiteto, engenheiro ou outro especialista da construção), que ficaria
e as frestas, bem como entre os pilares e as placas. Por último, passar uma
demão de cal dissolvida com água nas paredes externas da casa.
O manual sugeria ainda a conferência geral de montagem, principalmente das
telhas, e a coleta das ferramentas para serem guardadas dentro da casa. Algumas
ferramentas, como colher de pedreiro, prumo, cavaletes e outras, foram
truídas especialmente para o evento, de modo a reduzir os custos. O piso
interno, a calçada e as instalações seriam executados posteriormente.
Segundo Aimiri Jardim Filho, em determinados momentos, as pessoas
compromissadas com o empreendimento se sentiam inseguras quanto ao êxito da
experiência inusitada. A equipe técnica sugeriu que se construíssem inicialmente
cinqüenta casas experimentais, mas essa hipótese foi descartada pelo secretário de
Planejamento do governo, Flávio Rios Peixoto da Silveira, que foi na realid
ador do projeto da Vila Mutirão, como o “projeto de impacto” solicitado pelo
governador. Para ele, a construção em etapas não surtiria o efeito pretendido.
Para auxiliar no treinamento, depois do manual de montagem, foi
confeccionada uma cartilha de treinamento em que se explicava como montar, passo
a passo, as casas pré-moldadas (Figura 35). Além desses artifícios, foram feitas
tes com peças destacáveis e montadas de maneira semelhante aos modelos
reais, tudo para que o mutirão acontecesse de maneira organizada e obtivesse êxito.
Dois protótipos foram construídos no Jardim Europa, com o propósito de
ajudar no treinamento prático de montagem da casa pelas equipes. Enquanto um
dos protótipos ficava desmontado no chão, para que as peças se tornassem
conhecidas pe
s equipes. Essas operações se tornaram fundamentais na etapa de
treinamento.
Foram realizados vários testes de montagem, com equipes diferentes e até
com grupos só de mulheres para as simulações de montagem, a fim de aferir o
tempo gasto, com tudo cronometrado. Dessa maneira, concluiu-se que o tempo
gasto, para uma equipe de dez pessoas finalizar a montagem completa de uma casa,
seria aproximadamente de seis a oito horas. Cada equipe era composta de um
58
responsável por um conjunto de quatro casas, auxiliado por um encarregado ou
chefe de equipe (mestre-de-obra ou pedreiro) e por mais sete ou oito “voluntários”,
ão treinados, para cada casa.
n
Figura 35. Esquema geral de montagem em planta. As turmas A e B partem do pilar de n. 1. O
onde à casa de dois quartos, mas a seqüência é a mesma para a definida para a Vila
Projeto, n. 68, p. 75, out. 1984.
tipuladas
pela C
esquema corresp
Mutirão. Fonte: Revista
Os fiscais da Codeg estavam sempre antenados para que não ocorresse
qualquer contratempo na confecção das peças pré-moldadas, das esquadrias ou dos
componentes da cobertura. Nada poderia refletir negativamente no objetivo final. Se
uma empresa não conseguia atender ao cronograma e às exigências es
odeg, a fabricação das placas de cimento era repassada para outra.
A terceirização fez com que muitas empresas desenvolvessem um processo
próprio de produção das peças pré-fabricadas e dos outros componentes da casa.
Muitas firmas estabeleceram um procedimento mais rápido de cura do concreto,
outras encomendavam dos fabricantes telas prontas, com as dimensões das malhas
59
já no t
processo convencional de alvenaria de tijolo
erâmico comum, sem reboco, e cobertos com uma telha de fibrocimento, depois de
ompletada a montagem da casa.
2.2 A r
cada quadra até que houvesse a implantação definitiva de
um sis
é se chegar à forma e à
ordem
ão das peças que
amanho das placas; outras criaram sistema de fôrmas metálicas dos pilares,
peças ou ganchos de fixação, e algumas terceirizavam toda a produção.
Os boxes do banheiro, destinados à fossa negra e ao banho, localizados no
fundo do lote – com certeza, de cuia ou bacia já que não possuía água encanada –
seriam construídos por meio do
c
c
acionalização do canteiro
O sucesso do mutirão dependia da execução de muitas tarefas
complementares, que necessitavam ser realizadas com antecedência. É o caso dos
serviços de terraplanagem e abertura das vias, que foram executados
antecipadamente pelo Consórcio Rodoviário Intermunicipal (Crisa), mas sem a
pavimentação. Os posteamentos e as fiações para a iluminação, somente das ruas,
foram executados pela Celg, e o grande reservatório de água e o sistema de
captação ficaram a cargo da Saneago. O sistema de coleta e de abastecimento de
água foi feito por meio da captação no Córrego Fundo, existente dentro da gleba. A
água era bombeada para a caixa d’água e depois distribuída pelos chafarizes
(torneiras) existentes em
tema de atendimento individual. A unidade habitacional não possuía instalação
hidráulica ou sanitária.
Os elementos componentes das casas, depois de fabricados,
obrigatoriamente tinham de ser transportados para o local e distribuídos de maneira
organizada nos canteiros dos lotes, pelas quais a empresa ganhadora da licitação
era responsável. Diversas distribuições foram testadas at
satisfatórias, as quais foram então definidas para todos os lotes, passando a
fazer parte do manual de distribuição definido pela Codeg.
O dia do grande Mutirão da Moradia exigiu uma preparação e racionalização
do canteiro de obras em cada lote, de forma criteriosa e rígida. Toda a organização,
no local do empreendimento, tinha como objetivo otimizar e agilizar as tarefas de
montagem para que no dia do mutirão houvesse uma distribuiç
60
atende
locar e distribuir as peças dentro dos lotes, conforme a exigência da
Codeg
de 366X110 cm; 2 telhas de 5 mm de cimento-amianto, de
153X1
ar as telhas, fio de prumo, duas colheres de pedreiro, enxadão,
enxada
foi colocado um tambor de cem litros com água para
preparar a argamassa de vedação das frestas entre as placas e diluir a cal para a
caiação externa das paredes.
ssem a uma ordem seqüencial dos elementos componentes de cada casa e,
conseqüentemente, facilitassem a construção rápida das casas.
Estabeleceu-se, entre os organizadores do mutirão e as empresas
fornecedoras dos materiais necessários para a construção das casas, que era
responsabilidade das empresas construtoras das peças a obrigatoriedade de
transportar, co
, até o período da manhã do dia 15 de outubro de 1983, véspera do mutirão
(Figura 36).
Segundo a revista AU (n. 7, ago.1986, p. 103 e 105) e o jornal O Popular (14
out. 1983), todos os canteiros continham as peças e os elementos componentes
necessários à construção da casa, distribuídos de maneira exatamente iguais dentro
dos lotes, a saber: 10 pilares de concreto de seção quadrada de 12x12 cm, de 3,20
m; 5 pilares de concreto de seção quadrada 12x12 cm, de 3,55 m; 5 pilares de
concreto de seção quadrada 12x12 cm, de 3,95 m; 108 placas de concreto de 2,5 cm
de espessura (tamanhos variados); 2 portas de madeira com portal metálico; 2
janelas de metal com veneziana e vidro; 1 armação metálica composta de duas
partes separadas; 2.500 tijolos cerâmicos maciços comuns; 3 sacos de cimento; 4
baldes de areia de saibro; 36 baldes de areia para cimento; 10 telhas de 6 mm de
cimento amianto,
10 cm; 6 cumeeiras de 30 cm de cimento-amianto; 2 placas de concreto para
piso do sanitário.
Completavam o canteiro diversas ferramentas e objetos que auxiliariam na
execução das montagens, tais como: quatro cavaletes e quatro tábuas para
andaime, dois caibros de madeira, oito pares de luvas, escada, martelo, chave de
boca para parafus
, pá, três baldes e um soquete de madeira (picolé), para compactação dos
pilares e do piso.
Por último, em cada lote
61
108 placas de concreto (esp=2,5 cm)
21 pilares de concreto (12x12 cm)
02 portas de madeira c/ portal metálico
03 Janelas de ferro e vidro
2.500 tijolos maciços comuns
03 sacos de cimento
04 baldes de areia saibro
38 baldes de areia de cimento
01 armação metálica do telhado
10 telhas (366x110 cm) cimento amianto
02 telhas de 5mm (153x110 cm)
02 placas de concreto de piso
Matriais compenentes:
Ferramentas e complementos:
04 cavaletes
04 tábuas para andaime
02 caibros
01 escada
01 martelo
01 chave de boca para parafusos
01 fio prumo
08 pares de luvas
02 colheres de pedreiro
01 enxadão
01 enxada
01 pá
03 baldes
soquete de madeira para piso
Figura 36. O rígido esquema de preparação do canteiro. Lista e distribuição dos materiais em cada
lote. O esquema acima corresponde à casa de dois quartos, que não foi a escolhida como padrão,
mas o critério de distribuição foi o mesmo. Fonte: Revista Projeto, n. 68, p. 75, out. 1984.
62
Portanto, as pessoas e equipes que chegavam ao local, no dia do mutirão,
encontravam os terrenos e as casas previamente demarcados, com as peças e os
componentes para a montagem das casas e as ferramentas a serem utilizadas na
construção, distribuídas metodicamente no lote (Figura 37).
Figura 37. Operários distribuindo as peças nos canteiros antes do mutirão. Fonte: Diário da Manhã, 12
out. 1983, p. 10.
Os furos para receber os 21 pilares estavam abertos, as estacas de marcação
de nível, para receber as placas de vedação, foram feitos com antecedência, bem
como o gabarito de locação da casa, a abertura das fossas negras e a colocação da
tampa de concreto – tudo pronto para o dia 16 de outubro.
Todos esses elementos e serviços foram contratados e executados
antecipadamente por outras empresas sob a coordenação da Codeg. Uma equipe,
antes do evento do mutirão, estava programada para uma vistoria final em cada lote,
pois a preparação do canteiro foi considerada fundamental para maior precisão e
rapidez na montagem das casas. O governador supervisionou pessoalmente a
preparação antecipada (Figura 38).
Emissoras de rádio, jornais e canais de televisão já vinham divulgando o
mutirão, por meio de matéria paga ou não. Foram, sem dúvida, os responsáveis pelo
63
grande número de pessoas que para ali se deslocaram, muitos até por curiosidade,
em função do desafio.
O Diário da Manhã, de 12 de outubro, estampou a seguinte manchete: “Uma
casa em cada 36 segundos”. Na reportagem, Íris afirmava: “Ao raiar do dia 16
próximo estarei como comandante e como operário. [...]. Todo serviço que um
operário fizer, eu o farei também”. Depois dessas declarações, convocou todos para
a grande arrancada solidária, quando “o povo mostrará sua força” (Figura 39).
Figura 38. Íris (no centro, de camisa branca e calça preta) supervisiona os canteiros para o mutirão.
Fonte: Diário da Manhã, 12 out. 1983, p. 10.
Figura 39. Manchete de uma página de jornal divulgando o evento. Fonte: Diário da Man, 12 out.
1983, p. 10.
64
65
Um esquema de administração dos trabalhos foi desenvolvido para o dia do
evento, quando se destinou um local central da área do empreendimento à
administração geral, para comandar equipes de fiscalização e acompanhamento da
Codeg. A administração tinha a tarefa de atender o mais rápido possível às
necessidades de mão-de-obra ou de material em qualquer lugar do mutirão.
Próximo a essa coordenação, planejou-se uma central de reposição de peças
e material, para que, se, no decorrer das atividades, ocorresse a quebra de alguma
peça ou qualquer outro imprevisto, não houvesse qualquer processo de interrupção.
Capítulo 3
A CONCRETIZAÇÃO DA PROPOSTA
Este capítulo, mesmo que breve no sentido temporal – um dia – apresenta
resultados nas mais diversas áreas: técnica, quando se afere a exeqüibilidade do
projeto arquitetônico; material, quando se avalia a viabilidade do processo de pré-
fabricação, numa experiência até então inédita; sociológico, quando se analisa o
comportamento da população diante de um trabalho, na maioria das vezes,
involuntário; e político, quando se constata o uso da obra no discurso das
autoridades.
3.1 O dia do Mutirão da Moradia de Goiânia
Segundo a edição do dia 12 de outubro de 1983 do jornal Diário da Manhã, o
governador, antes do evento, havia feito um apelo aos empresários do transporte
coletivo da capital para que não fossem cobradas as passagens nos horários da
cinco às oito horas da manhã, bem como das 16 às 20 horas, para poder, assim,
permitir a locomoção de todos aqueles que quisessem colaborar. Portanto, todo o
transporte da mão-de-obra foi arcado pelos empresários de ônibus, pela empresa
estadual de transporte urbano, pelas prefeituras do interior, que ficaram
encarregadas do transporte de seus funcionários, e pelas construtoras, que
utilizaram veículos próprios para levar seus operários.
No dia 16 de outubro de 1983, as pessoas passavam por uma triagem
definida por um esquema montado de portaria e recepção. Lá recebiam orientação
sobre a formação de equipes e eram direcionadas ao lote ou ao grupo de lotes onde
se responsabilizariam pela montagem das casas. A fim de evitar tumulto na
chegada das pessoas, todos os grupos eram acompanhados por seus respectivos
técnicos e chefes de equipe, que tinham recebido uma preparação prévia.
Equipes de apoio, com serviços médicos, foram instaladas em três trailers,
equipados com desfibriladores cardíacos e aparelhos para entubação. Para o
atendimento de casos emergenciais, dispunha-se de quatro ambulâncias e de doze
médicos. Um helicóptero da Polícia Militar estava encarregado de transportar casos
mais graves e de atender à imprensa.
Para alimentar os milhares de voluntários e funcionários do governo foram
programadas 21 mil refeições, que seriam preparadas no restaurante da
67
Companhia Municipal de Urbanização (Comurg) e depois transportadas para o local
do mutirão, em quinze caminhões.
De acordo com o jornal O Popular (18 out. 1983, Cidade/Estado, p. 8),
previa-se o consumo de 45 sacos de arroz, 15 sacos de feijão, 25 vacas, 10 sacos
de farinha, 60 caixas de mandioca, 600 litros de óleo e cinco caixas de cebolas. Os
alimentos seriam distribuídos de lote em lote, somente para o pessoal que estava
participando das obras. Haveria lanches oferecidos pelas Legionárias do Bem-Estar
Social às 9 e às 14 horas, em que se previa servir sanduíches feitos com 44 mil
pães franceses, 800 quilos de mortadela moída e 50 mil litros de molho de tomate.
A água para beber seria distribuída, nas obras, por três grupos de escoteiros, que
utilizariam os chafarizes da vila para completar os galões.
No dia 16 de outubro de 1986, às seis horas da manhã, o governador chegou
para dar início ao primeiro empreendimento do programa Mutirão da Moradia, a Vila
Mutirão. O evento foi acompanhado por assessores, autoridades e toda a classe
política: senadores, deputados estaduais e federais e vereadores. Naquele dia foi
comprovado todo o poder de arregimentação e mobilização por parte do governo. A
imprensa e a segurança do evento estimaram que cerca de vinte mil pessoas ali
compareceram, o que comprova que a população atendeu ao chamado do
governador. O momento, logo no início da abertura democrática, era bastante
propício para uma proposta habitacional de cunho político, voltada para o
atendimento às famílias sem teto, encontradas em barracos de latas, caixotes,
papelão e debaixo de pontes.
Os voluntários chegavam de todas as maneiras: de ônibus, de caminhão, de
bicicleta e a pé (Figura 40), em horários diversificados: os primeiros grupos
chegaram ao local às seis horas da manhã, enquanto outros vieram mais tarde.
Com isso, durante todo o dia viam-se casas nos mais diversos estágios de
construção.
As caravanas de trabalhadores provenientes das cidades do interior, num
raio de 150 quilômetros da capital, compareceram cedo ao local do evento, antes
das seis horas da manhã. Essas comitivas representavam oitenta municípios do
interior do Estado, com 3.261 voluntários, para auxiliar na construção das casas,
conforme uma estimativa do governo estadual.
68
Figura 40. Avenida do Povo no início do mutirão, às 7 horas. Foto do autor.
Os milhares de funcionários públicos municipais e estadual convocados para
participar do mutirão aos poucos iam chegando e assumindo as tarefas. A Polícia
Militar convocou seus soldados para participar como voluntários do processo de
montagem das casas, reduzindo assim o efetivo nas ruas de Goiânia.
Assim que chegavam, os voluntários eram recebidos pelas equipes da
Codeg, que organizavam os grupos. Para cada casa, juntavam-se oito voluntários e
o chefe de equipe (mestre-de-obras), que eram encaminhados ao técnico
(engenheiro ou arquiteto). Este, por sua vez, era responsável por um conjunto de
quatro casas.
Ao adentrarem o local, os voluntários visualizavam uma sucessão de lotes
com os materiais empilhados e dispostos igualmente nos canteiros, atendendo a
uma disposição que se propunha a otimizar a colocação seqüencial dos elementos
componentes, formando uma paisagem um tanto quanto inusitada (Figura 41).
Os lotes foram distribuídos e mapeados antecipadamente pela organização
do mutirão. Logo após serem agrupados, os membros da equipe eram
transportados em caminhões do Estado ou da prefeitura para o lote onde lhes
caberia a responsabilidade de executar a casa.
69
Figura 41. Paisagem do local com o rígido esquema de distribuição dos materiais em cada lote. Foto
do autor.
Cada órgão público do governo estadual e municipal ficou responsável por
um grupo de casas. As 24 quadras foram distribuídas entre o Departamento de
Estradas e Rodagem de Goiás (Dergo), a Celg, a Comurg, a Saneamento de Goiás
(Saneago), a Empresa de Transporte Urbano do Estado de Goiás S/A (Transurb) , o
Departamento de água e Esgoto (DAE), o Departamento de Trânsito de Goiás
(Detran-GO), a Cohab, o Superintendência de Planejamento de Goiás (Suplan), o
Consórcio Rodoviário Intermunicipal de S/A (Crisa), a Caixa Econômica do Estado
de Goiás (Caixego) e as prefeituras do interior mais próximas de Goiânia. Na
realidade, os grandes responsáveis pela execução das casas foram os funcionários
públicos, que tinham recebido a incumbência de construir seus grupos de casas
previamente determinados e mapeados pela coordenação do mutirão.
No início, os grupos mostraram-se inseguros na montagem das casas, mas,
aos poucos, sob a batuta do chefe de equipe e observando o processo de
montagem dos lotes vizinhos, deslanchavam na execução de suas casas. Até
mesmo as mulheres participaram dos procedimentos. Logo, todo o local foi
transformado num imenso canteiro de obras (Figuras 42 e 43).
As equipes, ao assumirem seus lotes, acompanhavam os passos definidos
pelo manual de montagem. O primeiro procedimento indicava a colocação de todos
70
os pilares, destacando onde colocar os pilares pequenos de 3,20 metros, os médios
de 3,55 metros e os grandes de 3,95 metros, nos buracos previamente abertos.
Todos ficariam enterrados 80 centímetros abaixo do nível demarcado no lote.
Figura 42. Distribuição dos pilares nos buracos previamente abertos, às 8 horas. Foto do autor.
Figura 43. A participação feminina. Foto do autor.
Depois, seguindo a orientação do manual, o pilar de número um, referência
de início da construção, era aprumado e socado na sua base. Após sua
71
compactação, as equipes eram divididas em duas turmas de quatro voluntários para
começar a colocação das três placas pré-moldadas de 60 centímetros cada, até a
altura de 180 centímetros. As placas eram encaixadas entre as fendas de dois
pilares (Figuras 44 e 45).
Figura 44. Pilar aprumado e compactado, às Figura 45. Inicio da colocação das placas e
8:30. Foto do autor. janelas. Foto do autor.
Esse procedimento já havia sido testado, mostrando sua eficiência nos
protótipos de treinamento criados pela Codeg, antes do mutirão. Na seqüência de
construção, o próximo pilar era aprumado e compactado com as três placas de
concreto e se encaixava a janela no local estabelecido (Figura 46). Essa operação
era repetida até o fechamento de cada cômodo. As portas e janelas também eram
encaixadas entre as fendas de dois pilares.
Posteriormente, a parede era complementada pelas peças de verga e
respaldo. Nesse momento utilizavam-se os andaimes montados com os cavaletes e
as tábuas existentes no canteiro (Figuras 47 e 48).
72
Figura 46. Colocação das placas até altura de 1,80 m. Preocupação com o prumo, às 10 horas. Foto
do autor.
Figura 47. Montagem da porta. Foto do autor. Figura 48. Colocação da janela e verga, às 10:30.
Foto do autor.
73
Depois de fechados todos os três cômodos, empregando os 21 pilares e as
108 placas pré-moldadas de concreto, com tudo aprumado e compactado, conforme
a orientação do manual de montagem (Figura 49), passava-se então à etapa
seguinte: a calafetação das frestas, muito comum nesse tipo de construção, com
elementos pré-fabricados.
Figura 49. Casa com as peças pré-moldadas montadas. Pilares, placas, portas e janelas instaladas
aguardando a cobertura, às 12 horas. Foto do autor.
Para encher as fissuras existentes entre as placas e entre as placas e os
pilares, utilizou-se uma argamassa preparada no local especialmente para esse fim.
Essa argamassa era aplicada na face externa das paredes. Para alcançar as peças
mais altas, usava-se o andaime montado com os cavaletes e as tábuas (Figura 50).
Concluída toda a montagem das peças pré-moldadas, as equipes partiam
para o processo de montagem da cobertura. Iniciava-se pela fixação do suporte
metálico da cumeeira, apoiado nos ferros de espera e amarrado com arames na
cabeça do pilar (Figura 51).
Entre a última placa de concreto e o início da telha de fibrocimento deixou-se
um espaço de 15 centímetros, para que, segundo os autores do projeto, o ar
pudesse circular.
74
Figura 50. Calafetação com argamassa. Figura 51. Fixação do suporte da cumeeira, às
Foto do autor. 12:30 horas. Foto do autor.
Na seqüência de montagem, a próxima etapa determinava a fixação das
duas peças de estrutura metálica onde as telhas eram fixadas (Figura 52). As
peças, independentes e de tamanhos diferentes, eram amarradas com arame nos
suportes da cumeeira e nos ferros de espera das cabeças dos pilares,
acompanhando a inclinação das paredes e dos pilares e formando as duas águas
de telhado.
Figura 52. Fixação da estrutura metálica da cobertura, às 13 horas. Foto do autor.
75
O procedimento seguinte era o de montar as telhas e as cumeeiras de
cimento-amianto, depois de furá-las com prego, parafusá-las no engradamento
metálico da cobertura. Enquanto uma equipe concluía a montagem da cobertura, a
outra equipe trabalhava, embaixo, passando uma demão da cal misturada na água
(caiação) nas paredes externas da casa.
A rapidez com que as primeiras casas foram sendo erguidas, muitas antes
do tempo previsto de seis horas, ou seja, próximo das 14 horas, surpreendeu até
mesmo os técnicos da Codeg encarregados de acompanhar e administrar o evento.
Às 9 horas da manhã, as primeiras casas ficaram prontas, a maioria foi concluída a
partir das 14 horas (Figuras 53 e 54).
Cada casa concluída era acompanhada pelo espocar de fogos de artifício, o
que dava ao local um clima de festa. Todos queriam mostrar competência ou
concluir logo sua tarefa para poder ir embora. Isso motivou uma concorrência
salutar, principalmente entre as comitivas de trabalhadores que chegaram cedo ao
empreendimento, vindas de oitenta cidades do interior, e ali representavam suas
prefeituras.
Figura 53. Casa pronta vista da frente, montada pela equipe da prefeitura de São Luís de Montes
Belos. Em primeiro plano, o prefeito do município, arquiteto Waldemir Xerife. Foto do autor.
76
Figura 54. Casa pronta – vista posterior. Já caiada e com a cobertura sendo finalizada, às 15 horas.
Foto do autor.
Concluída a montagem da casa, a última etapa correspondia à construção do
sanitário – boxe para o banho e um compartimento para a fossa negra – no fundo
do lote. Algumas equipes optaram por construir concomitante à casa. Foi utilizado o
sistema convencional de alvenaria de tijolo maciço de cerâmica e cobertura de telha
de fibrocimento (Figura 55). A casa não possuía água encanada nem esgoto – a
opção de abastecimento de água era o chafariz, e o esgoto era a fossa negra. As
equipes já encontravam o buraco escavado com a tampa da laje de concreto
assentada (Figura 56).
Figura 55. Construção das paredes de tijolo maciço da fossa negra, às 15:30. Fonte: O Popular, 18
out. 1983, p. 8.
77
Figura 56. Laje da fossa negra. Foto do autor. Figura 57. Plantio de mudas na Avenida do
Povo. Foto do autor.
Trezentas Legionárias, comandadas pela primeira-dama, também
colaboraram com o mutirão. Além do apoio médico e alimentar, distribuíram lanches
de manhã e à tarde, participaram da construção de três casas e contribuíram com o
plantio de cinqüenta mudas ao longo da ilha central da Avenida do Povo (Figura
57).
Segundo alguns observadores e técnicos críticos do empreendimento, a
paisagem se assemelhava à de um campo de refugiados (Figura 58).
A Companhia Municipal de Urbanização (Comurg), empresa de economia
mista com controle acionário da prefeitura, foi o órgão que teve maior participação
no Mutirão da Moradia: preparou 16 mil refeições, cedeu não só mais de dois mil
operários da companhia, mas também cerca de 120 veículos entre caminhões,
kombis, carros-pipa e outros de pequeno porte. A primeira casa construída na Vila
Mutirão foi concluída, às 7:30, pelos funcionários da Comurg, no prazo de uma hora
e trinta minutos (O Popular, 18 out. 1983).
78
Figura 58. Vista panorâmica do mutirão. Em primeiro plano, a Avenida do Povo, às 13 horas. Foto de
Roberto Cintra.
A seqüência de fotos publicadas na revista Projeto (n. 68, p. 72-73, out.
1984) comprovou que o sistema foi programado e racionalizado com eficiência, pois
os grupos de voluntários, sob a batuta dos técnicos e auxiliados pelos
encarregados, montavam as casas, muitas das vezes, em tempo menor que o
programado (Figura 59).
Figura 59. Seqüência cronológica das fotos, mostrando as etapas de montagem das casas da Vila
Mutirão. Fonte: Revista Projeto, n. 68, p. 72-73, out. 1984.
79
Apesar da heterogeneidade do tempo gasto pelas equipes no processo de
montagem das casas, às 18 horas do dia 16 de outubro, todas as mil casas
estavam concluídas.
Segundo o engenheiro Paulo César Vaz de Melo,
1
no dia do mutirão, o
governador subiu na carroceria de um caminhão com alto-falante para conclamar a
ajuda de todos que ali se encontravam – muitos por curiosidade – para que se
engajassem como voluntários. Esse mesmo caminhão circulava com várias equipes
da organização, que acompanhavam e controlavam o desenvolvimento da
execução das casas. Quando percebiam que um grupo demonstrava dificuldade ou
lentidão na montagem, outros trabalhadores para lá se deslocavam.
A Rádio Brasil Central, empresa do governo, instalou um sistema de som,
que começou a funcionar a partir das três horas da madrugada com duas caixas de
200 watts e quatro cornetas, para orientar a formação das equipes e, no decorrer do
evento, incentivar os trabalhos.
Tudo foi acompanhado e registrado pela mídia nacional: jornais, revistas,
emissoras de rádios e redes de televisão. Convidados pelo governo, os veículos de
comunicação receberam todo o apoio necessário. Contavam com uma barraca bem
equipada e ainda dispunham de um helicóptero da Polícia Militar para sobrevoar o
local e registrar todos os acontecimentos.
O governador não perdia a oportunidade de se autopromover ao afirmar, nas
inúmeras entrevistas concedidas no dia do mutirão, que faltava comando, liderança,
já que o espírito de solidariedade e de boa vontade era latente no brasileiro: “Vamos
mostrar ao país inteiro as possibilidades da criatura humana quando ela se decide a
unir esforços”. Destacou ainda que aquela participação dos mais diversos
segmentos sociais, envolvidos no mesmo objetivo, era uma demonstração de que o
povo estava realmente no poder. Não faltou réplica às críticas sofridas: “Demagogia
é para aqueles que não sabem madrugar, para os preguiçosos, para os parasitas,
os vermes da sociedade que só querem viver às custas dos outros e nada
oferecem” (O Popular, 18 out. 1983, p. 8).
No mesmo dia do mutirão, no final da tarde de domingo, cerca de quarenta
famílias previamente cadastradas mudaram-se para a Vila Mutirão, mesmo que as
1
Entrevista concedida ao autor em 31 de janeiro de 2005.
80
unidades ainda não tivessem energia elétrica. A benfeitoria veio logo depois com as
ligações da Celg.
Posteriormente ao dia da montagem das mil casas, os técnicos (engenheiros
e arquitetos) que participaram do mutirão, alguns representantes do Crea e
membros da equipe da Codeg fizeram vistorias em todas as casas. Essa checagem
tinha por objetivo revisar prioritariamente a fixação da cobertura, com reajustes de
parafusos, arremates de defeitos e substituição de telhas. Numa dessas vistorias, o
arquiteto Lima caiu de uma cobertura, onde uma telha não havia sido fixada
corretamente. Do episódio restou-lhe uma cicatriz.
Cinco dias após o mutirão, o jornal O Popular, com o título “Para a Codeg as
casas da Vila Mutirão foram testadas”, destaca que as casas pré-fabricadas tinham
resistido a uma forte tempestade acompanhada de ventos fortes na madrugada do
dia anterior. Para o engenheiro Paulo César Vaz de Mello, da equipe da Codeg, o
temporal, logo após a construção, foi o teste que tranqüilizou os responsáveis pelo
mutirão. A estrutura resistiu bem, apesar de algumas casas (aproximadamente vinte
unidades) terem sido destelhadas, exigindo que passassem por reparos posteriores.
O mesmo fato ocorreu no início do mês de novembro com o destelhamento parcial
de 32 casas por causa de um temporal (O Popular, 8 nov. 1983).
A Vila Mutirão, depois da montagem das mil casas, serviu como vitrine para a
divulgação e valorização da administração do governo de Goiás. Diversas
autoridades de outros Estados e até de outros países da América do Sul,
acompanhados de seus assessores, estiveram visitando a experiência que se
propunha resolver o problema da habitação da população baixa renda.
Muitos se entusiasmavam com o processo de montagem, com a
possibilidade de enfrentar a questão habitacional, envolvendo o sentimento de
solidariedade. A Vila Mutirão passou a ser divulgada e enaltecida em diversos locais
(Figura 60), como, por exemplo, na BBC, de Londres.
A ocupação das casas pelos moradores não foi tão rápida quanto a
construção do empreendimento. A remoção das famílias das áreas de invasões foi
feita pelos caminhões dos órgãos públicos. Tão logo chegavam às suas casas era
efetuada a ligação da energia pela Celg (Figura 61).
81
Figura 60. Manchete de um jornal suíço: o mutirão das mil casas em destaque. Fonte: arquivo do
arquiteto Aimiri Jardim Filho.
Figura 61. Grupo de casas com energia elétrica individual instalada. Foto de Roberto Cintra.
82
83
Nem todo o processo de construção da Vila Mutirão pode ser considerado
como positivo. Algumas críticas e polêmicas levantadas por arquitetos e
engenheiros devem ser levadas em consideração para que uma realização como
essa, de baixo custo, de construção rápida e em grande escala, possa ser
resgatada e aprimorada. É esta discussão que será feita no próximo capitulo.
Capítulo 4
CONTROVÉRSIAS SOBRE O EMPREENDIMENTO
Apesar de todo o processo do Mutirão da Moradia de Goiânia ter sido
alardeado pelos quatro cantos do País como um projeto ousado, por ser de
construção rápida, em larga escala, de baixo custo e por contar com a participação
popular, por meio do mutirão, faz-se necessário destacar alguns aspectos
controversos e as polêmicas surgidas sobre o empreendimento, seus reflexos e
reverberações. Esse balanço é oportuno para clarear os fatos ocorridos na
implantação da Vila Mutirão e que não foram divulgados.
Este capítulo se propõe a discutir: (1) a participação compulsória dos
funcionários públicos, especialmente dos arquitetos e engenheiros; (2) a não
utilização dos recursos do programa das Cohabs; e (3) o conforto térmico das casas
da Vila Mutirão.
Essa discussão se operou nos arquivos de jornais da época, na revista AU, n.
7, de agosto de 1986, e nas entrevistas com os profissionais mencionados nos
capítulos anteriores e complementadas por meio dos depoimentos de António
Manuel Pombo Corado Fernandes, arquiteto e professor de Conforto da
Universidade Católica de Goiás (UCG); de Maria Diva Araújo Coelho Vaz, arquiteta e
professora da UCG e servidora do Instituto de Desenvolvimento Urbano e Regional
(Indur) e Empresa Estadual de Ciência e Tecnologia e Desenvolvimento Econômico
e Social (Emcidec); de Sérgio Moraes, arquiteto, professor da UCG e funcionário do
Instituto de Planejamento Municipal (Iplan); de Pedro Wilson Guimarães, sociólogo,
professor da UCG e prefeito de Goiânia (2001-2004).
4.1 As participações involuntárias
Quando os funcionários foram convocados pelo governador para participar do
Mutirão da Moradia de Goiânia, houve resistência por parte dos técnicos
funcionários dos órgãos do governo e do município, principalmente aqueles ligados
às áreas de arquitetura e engenharia. Eles não concordavam com o projeto e nem
com o processo de construção imposto pelo governo. Muitos órgãos representantes
de classe, como o Instituto de Arquitetos do Brasil – seção de Goiás e o Sindicato
dos Engenheiros no Estado de Goiás, manifestaram-se desfavoráveis ao projeto e à
85
construção da Vila Mutirão, em razão do caráter populista e do objetivo político
pessoal do governo.
Um dos motivos da revolta dos funcionários ligados aos órgãos que
desenvolviam projetos e planejamentos no estado, como o Instituto de
Desenvolvimento Urbano e Regional (Indur) e o Instituto de Planejamento Municipal
(Iplan), a Cohab-GO e outros, foi a criação de uma equipe independente dentro da
Codeg, definida como o órgão responsável para executar o projeto habitacional do
governo. Com isso, desprezaram-se todas as experiências existentes acerca de
habitação popular e não se fez qualquer consulta aos especialistas no assunto.
Diante disso, muitos técnicos dos diversos órgãos públicos não queriam
participar do mutirão. Ciente da importância dos técnicos para o êxito do
empreendimento – não só para o dia 16 de outubro, como também para todo o
período anterior de preparação e treinamento dos grupos de montagem – e receoso
de que todo o programa ficasse comprometido, o governador convocou todo o
primeiro escalão dos órgãos estaduais e municipais e exigiu a participação de todos
os funcionários, sob a ameaça de demissão, de corte de ponto e de outras sanções.
Assim, os funcionários públicos efetivamente responsáveis pela construção das
casas não deram todo o dia de trabalho, no domingo, dia de descanso semanal, de
maneira voluntária, como é caracterizado o processo de mutirão – mobilização
coletiva de maneira gratuita e voluntária para execução de uma tarefa –, mas sim
sob forte pressão e ameaça de punição por parte do governo. Isso sem contar que
ainda foram obrigados a participar da fase anterior de preparação e treinamento.
4.2 O descaso com a experiência da Cohab
Alguns fatores explicam a atitude de Íris Rezende em não construir pelo
programa da Cohab. Primeiro, a intenção de atender à população ocupante das
favelas e invasões, sem renda mínima comprovada, o que era exigido pelos
programas da Cohab/BNH. Devido às constantes alterações no seu campo de
atuação, no sentido de buscar o equilíbrio financeiro do sistema, a Cohab indeferiu o
financiamento à grande parte da população que não dispunha de renda mínima.
86
Formalmente o programa das Cohabs atendia às populações que dispunham de
mais de três salários mínimos.
Segundo a engenheira Ana Cristina Rodovalho Reis, na época chefe de
projetos e orçamento da Cohab, devido à crise financeira e ao fato de os mutuários
não pagarem as prestações, a Cohab-GO passou a não repassar as cotas ao Banco
Nacional da Habitação. Com isso, entrou num processo de inadimplência com o
BNH, que, em contrapartida, iniciou um processo de retenção de verbas para novos
empreendimentos no Estado.
O segundo fator, talvez o mais preponderante: a Cohab-GO, por ser uma
empresa de economia mista, com recursos oriundos do BNH, não podia ser
controlada pelo governador, que não teria autonomia para realizar um programa
como o mutirão de mil casas pré-fabricadas, num prazo tão curto e sem interferência
externa. Em outras palavras, um projeto dessa magnitude tinha de passar pelo crivo
e orientação do órgão superior, cujos critérios rígidos e ranço administrativo
adquiridos durante a sua história poderiam retardar o empreendimento e, com isso, o
objetivo do impacto estaria comprometido. Temendo que isso acontecesse, foi criada
dentro da Codeg uma equipe independente de arquitetos, engenheiros e assistentes
sociais para a realização do Mutirão da Moradia.
Os funcionários da Cohab se mostravam indignados por não terem sido
lembrados para compor a equipe e participar da elaboração do projeto, uma vez que
desenvolviam pesquisas e laboratórios experimentais, em busca do barateamento
da construção, utilizando processos alternativos para a habitação popular.
A revolta deveu-se ao fato de que desde junho de 1979 tinha sido criado o
Projeto Laboratório – Processos Construtivos Não-Convencionais, coordenado pela
Divisão de Pesquisa e Testes de Materiais da Cohab-GO, com o objetivo de testar e
avaliar cinco tipos de tecnologias construtivas não-convencionais da indústria da
construção. Cinco modelos experimentais, desenvolvidos em convênio com
empresas e representantes de cada um desses processos construtivos, foram
construídos numa área cedida pela Cohab, junto ao Conjunto Riviera, em Goiânia.
O projeto arquitetônico da unidade habitacional foi desenvolvido pela Cohab,
com um programa de dois quartos, sala, cozinha, banheiro e hall, com área de 49,09
metros quadrados (Figura 62 e 63).
87
Figura 62. Planta do projeto modelo da Cohab-GO. Padrão para todos os protótipos utilizando os
cinco processos construtivos. Fonte: Cohab (1979).
Figura 63. Fachada do projeto-modelo da Cohab-GO. Fonte: Cohab (1979).
Para unificar os objetivos, a coordenação definiu como ponto de partida uma
tipologia única para todos os processos, com o objetivo de otimizar a avaliação
comparativa dentro dos propósitos da Cohab – qualidade, baixo custo e rapidez na
execução.
88
4.2.1 O Projeto Laboratório da Cohab
Devido ao pioneirismo dessa experiência no Estado de Goiás na busca de
alternativas e de novas tecnologias com vistas à habitação popular, é oportuno fazer
um relato desse ensaio de industrialização da construção, apesar de a Cohab não
ter tido o propósito de uma análise técnica mais aprofundada, conforme esclarece o
texto introdutório do Projeto Laboratório. Para uma primeira análise foram
considerados os seguintes fatores: estética, praticidade, conforto térmico,
funcionalidade, alternativas técnicas, viabilidade de ampliações, rigidez e
durabilidade. As cinco técnicas construtivas utilizadas na experiência foram: o
sistema tubular Brascon, a pré-moldada de concreto, a Verobloco, o solo-cimento e
o Q-LAP.
4.2.1.1 O Sistema Tubular Brascon
Trata-se de um processo de painéis, com vazios tubulares, pré-fabricados de
concreto armado, com 8 centímetros de espessura e peso de 120 quilos por metro
quadrado de painel. Pelo peso, o processo de montagem é feito com a utilização de
um guindaste “Munck”, que transporta e posiciona o painel sobre a fundação e,
depois, este é ancorado por cantoneiras até o chumbamento das amarrações de
canto. O painel de parede pré-fabricado, com 2,5 metros de altura, traz incorporadas
as esquadrias; as demais instalações são introduzidas nos vazios tubulares, o que
possibilita uma maior rapidez na execução. A estrutura do telhado é de madeira para
receber as telhas de cimento-amianto de 6 milímetros. O tempo de execução foi de
16 dias úteis, e a média de operários por dia foi de oito.
Pôde-se observar que a indústria responsável pela fabricação dos painéis
mostrou-se bastante despreparada para desenvolver esse processo construtivo e
para solucionar e racionalizar os problemas decorrentes da montagem. Constatou-se
uma quebra excessiva dos painéis durante a montagem, devido à falta de mão-de-
obra especializada, e o aparecimento de trincas nas junções dos painéis e nos
cantos das esquadrias.
89
4.2.1.2 Pré-moldada de concreto
Essa técnica, desenvolvida pela Encol S.A., utiliza painéis de concreto pré-
moldado em fôrmas de alumínio fundido. As paredes são de 2,5 metros de altura e
10 centímetros de espessura. O sistema é composto por um conjunto de painéis
moldantes que são, em si, as fôrmas das paredes. Depois de montados, os painéis
são concretados às paredes, utilizando bombas e vibradores de imersão. Após dez
dias da concretagem, são retiradas as fôrmas. Na observação do fiscal que
acompanhou a execução, embora tenha sido apresentado como pré-moldado, na
verdade o processo é moldado no local.
As fôrmas metálicas das paredes são montadas manualmente e recebem
uma camada desmoldante de óleo diesel. Quando houver necessidade, as
tubulações elétricas, hidráulicas e as esquadrias são montadas dentro das fôrmas,
para depois ser iniciado o processo de concretagem. Apesar da dificuldade de
quantificar a mão-de-obra, por ter sido esta aproveitada de um outro
empreendimento da empresa, próximo ao local, pode-se considerar oito operários e
24 dias úteis o tempo gasto para a execução.
Na estrutura da cobertura foi utilizado o metal para receber as telhas de
cimento-amianto de 6 milímetros.
4.2.1.3 Verobloco
Trata-se de um sistema de blocos de areia grossa lavada e cimento bem
prensados em máquinas hidropneumáticas, marca Vero, da Veralinda S.A., e
curado, à sombra, durante dez dias com irrigação. As paredes são de blocos de
concreto, assentados em fiadas, com cola, e rejuntados com argamassa. Se o
projeto usar módulos de 15 centímetros, não haverá necessidade de cortes na obra
e, conseqüentemente, não haverá desperdício.
Os blocos eram vazados com furos especiais para a passagem do
encanamento do sistema hidro-sanitário e elétrico, não sendo necessários cortes na
parede. As esquadrias ou outros elementos foram fixados com parafuso e bucha de
expansão. A estrutura da cobertura era de madeira e a telha de fibrocimento de 6
milímetros. Foram necessários 26 dias úteis para a construção do protótipo,
utilizando uma média de cinco operários por dia.
90
4.2.1.4 Solo-cimento
É a única técnica não-industrial; apóia-se na idéia de autoconstrução e ajuda
mútua, desenvolvida no Centro de Pesquisas e Desenvolvimento de Camaçari,
Bahia.
O sistema construtivo das fundações e das paredes é uma mistura de terra e
cimento, como o próprio nome define. Para as paredes maciças de solo-cimento,
com 10 centímetros de espessura, utilizou-se um traço composto por oito partes de
terra cascalhada, duas partes de terra argilosa e uma parte de cimento, misturados
com uma quantidade de água conveniente para a compactação. As paredes são
erguidas utilizando, como guias, estacas niveladas e aprumadas de concreto pré-
moldadas, que orientam o deslocamento vertical das fôrmas de madeira preenchidas
com a mistura e depois compactadas à mão, ou seja, apiloadas com um “picolé”.
Repete-se o processo a cada 20 centímetros até atingir a altura desejada da parede.
A cura é feita molhando-se levemente ambos os lados da parede, por dez dias
consecutivos. Os marcos das esquadrias, bem como as demais instalações, são
montados dentro das fôrmas, antes do preenchimento, com a mistura solo-cimento.
Para a cobertura foi utilizada uma telha, de 25 x 40 centímetros, de
argamassa de cimento e areia (7:1), desenvolvida pela população do município de
Araguaína, Tocantins. Com facilidade, pode ser construída manualmente com o uso
de fôrma, no próprio canteiro de obra. A telha apresentou um resultado térmico
melhor do que as de fibrocimento, pois o nível de absorção do calor mostrou-se bem
menor.
Nesse protótipo foi proposto um sistema de ventilação por meio de uma
abertura, em que se utilizava elemento vazado e tela, abaixo das esquadrias a 10
centímetros do piso, para entrada de ar frio. Deixou-se também uma fresta entre a
parede e o teto, para saída do ar quente, fazendo o efeito chaminé. Esse foi o
protótipo que apresentou a melhor qualidade térmica.
O tempo de execução foi de 40 dias úteis, e a média de operários por dia foi
de quatro pessoas.
91
4.2.1.5 Sistema Q-LAP
Patente licenciada da K-LATH Corporation dos EUA, constitui-se de parede
armada com painéis de telas Q-LAP, formada por uma malha de arame galvanizado
entremeada com papel resistente de alta absorção, para proporcionar uma
ancoragem extra de argamassa na tela. Os painéis são estruturados para formar
quadros de perfis metálicos, onde são soldadas as telas, e fixados na fundação,
para depois iniciar o revestimento. Utiliza-se a projetora de massa – bomba de ar
comprimido – para aplicar a argamassa tradicional em ambos os lados, com
espessura final de 60 milímetros.
As esquadrias e as tubulações hidráulica e elétrica são fixadas diretamente
nos painéis durante sua fabricação. A estrutura da cobertura foi proposta em metal
com telhas de cimento-amianto. O tempo de execução da obra foi de 32 dias úteis,
com o número médio de quatro operários por dia.
A Cohab, segundo a engenheira Ana Cristina Rodovalho Reis, em outra
oportunidade, chegou a utilizar esse processo construtivo, como experiência, em
algumas casas de um conjunto habitacional, mas o resultado só pode ser avaliado
depois de um longo período, quando a argamassa de revestimento não resistiu ao
tempo e apresentou fissuras, acelerando o processo de deterioração. Uma
preocupação para construções financiadas a longo prazo pelo Sistema Financeiro
da Habitação é a resistência ao tempo, pois, se a casa apresenta problemas inicia-
se o processo de inadimplência por parte dos mutuários.
4.2.1.6 Experiências advindas do Projeto Laboratório
Durante toda a fase de execução dos protótipos propostos pelo Projeto
Laboratório, houve fiscalização diária no canteiro, registrando todo o
desenvolvimento, o material e o método utilizados, os equipamentos, a montagem, a
quantidade de operários e o tempo de execução. Apesar dessa fiscalização diária,
houve um desvio dos objetivos propostos, o que impediu que a experiência
obtivesse resultados precisos, pois, segundo análise da Cohab, os conveniados
encararam a experiência de maneira equivocada, “como um concurso”.
Algumas empresas, na tentativa de mostrar boa qualidade e apresentação,
elevaram o padrão de acabamento dos modelos, mas não forneceram com precisão
92
as informações de quantidade, custo da unidade, distorcendo, assim, os resultados
no processo de busca de viabilidade econômica. Ressalta-se ainda que pairam
dúvidas sobre os dados de cada realização, considerando que estes ficaram restritos
aos laudos técnicos fornecidos pelos próprios conveniados.
A avaliação do tempo de execução também ficou comprometida pela falta de
energia elétrica, pelo abastecimento de água no canteiro e, principalmente, pela
coincidência da greve dos operários da construção civil no período da construção
dos protótipos.
Com exceção da tecnologia de solo-cimento, uma alternativa de
autoconstrução, todos os outros foram considerados como processos industriais, e a
viabilidade de custo só se justificava para construção em larga escala.
Conforme a Cohab, nem todos apresentaram uma infra-estrutura de
produção, nem mesmo maturidade técnica satisfatória. Não se observou também,
por parte dos representantes das tecnologias, incentivo à pesquisa para que se
pudesse avançar na busca de soluções para o problema da moradia por meio de
uma visão industrial. Esse fato deveu-se ao mercado preconceituoso, à falta tanto de
cultura dos usuários, no tocante à construção industrializada, quanto de uma política
sem incentivos, o que desestimula o desenvolvimento do processo.
4.2.2 O Projeto Laboratório e o ensaio de qualidade térmica
Na seqüência do Projeto Laboratório, depois de concluídas as construções
dos modelos experimentais, realizou-se um ensaio para medir a temperatura
ambiente de todos os protótipos, bem com a de uma casa construída, com o mesmo
projeto, pelo processo convencional de alvenaria de tijolo furado. Para a medição foi
utilizado a mesma posição para os seis processos construtivos e um termômetro de
máxima e mínima para fazer a medição:
Posição 1: com o termômetro situado no centro do ambiente a uma altura de
1,50 metros do piso, com as esquadrias da casa fechadas. Data: 25 e 26 de
setembro de 1979, horário das 14 às 15 horas (Figura 64).
Posição 2: com o aparelho situado no centro do ambiente a uma altura de
1,50 metros do piso, com as esquadrias do protótipo abertas. Data: 27 e 28 de
setembro, horário das 13:30 às 14:30 (Figura 65).
93
Figura 64. Gráfico de máxima e mínima para Posição 1. Medição com as esquadrias fechadas. Eixo
vertical de temperatura com variação de 28°C a 33°C. Fonte: Cohab (1979).
Figura 65. Gráfico de máxima e mínima para Posição 2. Medição com as esquadrias abertas. Eixo
vertical com variação de temperatura de 28°C a 33°C. Fonte: Cohab (1979).
94
Posição 3: com o termômetro colocado rente à face interna da parede que
recebia o sol, com a esquadrias das casas fechadas. Data: 27 e 28 de setembro,
horário das 14:40 às 15:40 (Figura 66).
Figura 66. Gráfico de máxima e mínima para Posição 3. Medição da parede interna com as
esquadrias fechadas. Eixo vertical com variação de temperatura de 28°C a 33°C. Fonte: Cohab
(1979).
Apesar de o ensaio não ter sido considerado preciso pela própria Cohab-GO,
devido à precariedade do processo adotado, o que se pode concluir das medições
realizadas nos protótipos experimentais é que, para o clima de Goiânia, as casas
construídas pelos processos Verobloco e Solo-cimento apresentaram melhor
qualidade térmica, ou seja, temperatura interna mais baixa no horário crítico.
Diante do exposto, fica claro que é perfeitamente compreensível a revolta dos
funcionários da Cohab ao ver que o governo ignorou todos esses estudos sobre a
questão da habitação popular realizados por aquele órgão.
95
4.3 A questão do conforto térmico
Convém destacar inicialmente que o conjunto habitacional da Vila Muitrão
revelou uma falta de entrosamento entre o projeto urbanístico e o projeto das
unidades habitacionais. Em função do traçado urbano adotado e da orientação solar,
quase todos os lotes têm a frente ou o fundo voltados para a direção leste ou para
oeste. Com isso, as janelas dos dois ambientes de permanência prolongada (sala e
quarto) são voltadas para as fachadas com maior incidência direta do sol.
Um dos fatores que gerou maior número de críticas às casas da Vila Mutirão,
por parte de arquitetos urbanistas e moradores, foi quanto ao conforto térmico. Os
materiais utilizados na construção das unidades habitacionais – placas pré-
fabricadas de concreto, de 2,5 centímetros de espessura para as paredes, e a
cobertura de telhas de cimento-amianto, de 6 milímetros de espessura – foram
reprovados pela comunidade técnica contrária ao empreendimento.
Segundo Gouvêa (2002, p. 14), o clima da Região Centro-Oeste normalmente
apresenta uma queda de temperatura entre 15 e 18 graus, o que provoca uma
friagem da madrugada, que causa grande desconforto térmico. O clima da região de
Goiânia é caracterizado por um verão chuvoso, quente e úmido, com amplitude
térmica de 10 a 12
o
C, e por um inverno seco, semidesértico, de baixas temperaturas
noturnas, com amplitude térmica de 16 a 19
o
C (Figura 67).
Figura 67. Gráfico das normais climatológicas de Goiânia. Fonte: Instituto Nacional de Meteorologia.
Desenho de Fernandes.
96
Em vista disso, o conjunto dos materiais das casas da Vila Mutirão mostrou-
se inadequado às características climáticas da Região Centro-Oeste, ao não
apresentar soluções para as variações térmicas consideráveis entre os períodos
diurno e noturno. Ou seja, de dia, a casa, nos horários de temperatura elevada,
mostrava-se quente, e, à noite, a temperatura baixava consideravelmente.
Segundo Maricato e Moraes (1986, p. 105), a temperatura, na parte interna da
telha de fibrocimento das casas da Vila Mutirão, chegava a atingir aproximadamente
50
o
C, de acordo com Luiz Carlos Chichierchio, especialista da Universidade de
Brasília.
O espaço de 15 centímetros deixado entre a última placa de parede e a
cobertura para a saída do ar quente, com o propósito de suavizar a temperatura
ambiente, não foi suficiente, devido à situação crítica do conjunto dos materiais. A
maioria dos moradores vedou essa fresta em razão de dois fatores: primeiro, pela
baixa temperatura e da brisa fria da madrugada; segundo, pela poeira vermelha que
penetrava dentro das casas, em conseqüência da falta de pavimentação
1
das ruas,
o que acumulava pó sobre o mobiliário nos dias ventosos.
Imediatamente após a experiência da primeira etapa da Vila Mutirão, o
governador quis estender o processo de mutirão para o interior do Estado. O
problema de conforto ambiental comprovado na experiência anterior fez com que a
Codeg contratasse o arquiteto e professor especialista em conforto térmico António
Manuel Corado Pombo Fernandes para um estudo minucioso das qualidades de
conforto térmico das unidades habitacionais da primeira etapa do Mutirão da
Moradia, para que soluções baratas e viáveis pudessem ser aplicadas nos outros
empreendimentos. O estudo deveria dar ênfase à avaliação comparativa entre a
cobertura atual de cimento-amianto com a cobertura de telha cerâmica.
Para os estudos de Fernandes foram montados dois protótipos no canteiro de
obras com a mesma orientação solar: um exatamente igual ao das mil casas, e o
segundo com alterações nos materiais, para que pudessem ser realizadas análises
comparativas da performance de cada alteração.
A primeira alternativa de comparação foi a mudança da cobertura do segundo
protótipo por telhas cerâmicas, com leituras subseqüentes de três termômetros por
um período de nove dias consecutivos. Outra tentativa foi a de pintar a parte superior
1
A primeira pavimentação foi a da Avenida do Povo, principal via do conjunto, inaugurada somente um ano após
o mutirão, sempre com muito alarde publicitário (O Popular, 16/10/1984).
97
da telha de cimento-amianto na cor branca, para refletir a incidência solar.
Posteriormente, cumpriu-se o mesmo processo de medição de temperatura. Depois
foram pintadas de branco as paredes externas das fachadas leste e oeste para
novas medições e, por último, com o mesmo processo de avaliação, as paredes
leste e oeste foram substituídas por Duraplas nas fachadas. Depois de concluídas
todas as medições, elaboram-se gráficos comparativos para a conclusão da
pesquisa.
Conforme o gráfico, o Protótipo A (cimento-amianto) apresentou a
temperatura do ar interior mais elevada que a temperatura do Protótipo B (cerâmica),
durante cerca de três horas; no início da manhã ocorria o contrário, a temperatura do
protótipo de cimento-amianto ficava abaixo da temperatura interior do protótipo de
cerâmica, por cerca de uma hora (Figuras 68 e 69).
Figura 68. Gráfico do comportamento dos dois protótipos: Protótipo A (telha cimento-amianto) e
Protótipo B (telha cerâmica). Desenho original com interferência do autor. Fonte: Codeg (1986, p. 17).
98
Figura 69. Gráfico-síntese do comportamento térmico no interior dos dois protótipos. Fonte: Codeg
(1986, p. 16).
Segundo a dedução de Fernandes, todas as opções estudadas não
apresentaram diferenças significativas, com exceção para o telhado de cerâmica em
relação ao de fibrocimento. Porém, a colocação da cobertura de cerâmica, material
de custo mais elevado, exigiria o reforço da estrutura do telhado, o que oneraria
mais o orçamento.
Portanto, a situação termicamente precária era do conjunto edificado e não só
da cobertura de cimento-amianto de 6 milímetros de espessura, mas também das
paredes de placas de cimento, de 2,5 centímetros de espessura, que possuíam
baixa massa térmica.
2
O fato de as placas e telhas serem bastante delgadas permite
uma troca de calor mais rápida entre o ambiente interno e o exterior.
Dez anos após o Mutirão da Moradia, em março de 1993, o arquiteto António
Manuel Fernandes e o engenheiro civil Marcelo Godinho de Azevedo, da
Universidade Federal de Goiás, apresentaram um estudo no II Encontro de Conforto
em Florianópolis, cujo tema era “Casa-embrião, resgate da habitabilidade térmica”.
Tratava-se de um trabalho sobre uma casa semelhante ao modelo da primeira etapa
da Vila Mutirão, utilizando o mesmo processo de mutirão e empregando elementos
pré-fabricados. O projeto elaborado pela Emcidec-GO, órgão que substituiu a
Codeg, apresenta a diferença de possuir um banheiro no seu interior, apesar de a
área ser a mesma: 25,00 metros quadrados. Houve também a modificação dos
materiais da cobertura: a telha de fibrocimento foi substituída pela telha cerâmica,
2
A massa térmica, grosso modo, tem a ver com a espessura dos fechamentos, que, ao absorver o calor do ar de
maior temperatura, retém uma parte no seu interior (LAMBERT, 2004, p. 63).
99
tipo plan, com tesouras metálicas em chapa dobrada, com caibros de madeira e com
os oitões em chapa metálica corrugada (Figuras 70 e 71).
Figura 70. Planta da casa apresentada no II Encontro de Conforto. Fonte: arquivo do arquiteto
Fernandes.
Figura 71. Um conjunto utilizando o projeto estudado. Foto de Jadir Lima.
100
Nesse estudo foram aplicadas novas superfícies de materiais de baixo custo,
às vezes reciclados, criando, nas paredes e forros, câmaras de ar, com o objetivo de
obter melhor performance térmica. Para as averiguações, segundo Fernandes,
3
foi
utilizado um programa de computador Arquitrop, desenvolvido pelos pesquisadores
Maurício Roriz e Edmar Basso, com base nas recomendações de Mahoney para
Goiânia.
Nas simulações foram utilizados os seguintes materiais: placas de concreto,
placas de gesso, papelão, alumínio polido, vermiculita e tijolo maciço. A conclusão
foi de que para a cobertura, em ordem crescente de melhoria, houve um acréscimo
significativo de qualidade, atingindo padrões aceitáveis de habitabilidade térmica. As
simulações constataram comparativamente que, da cobertura original (1) para o
forro de papelão (2), ocorreu uma melhoria percentual de 56,7%; para a situação (7),
de dupla superfície refletora com vermiculita e forro de gesso, houve uma vantagem
significativa de 94,2% (Figuras 72 e 73).
Figura 72. Detalhe do corte da cobertura, agregando materiais como forro. À direita, gráfico de
associação de materiais e a melhoria sucessiva. Desenho do arquiteto Fernandes.
Figura 73. Melhorias percentuais sucessivas da cobertura. Fonte: arquivo do arquiteto Fernandes.
3
Entrevista concedida ao autor em 20 de agosto de 2006.
101
O mesmo critério de melhorias sucessivas foi também utilizado para as
paredes. As simulações trabalharam com a situação (2), de tijolo maciço em pé
(espelho) pelo lado interno, e registraram uma melhoria percentual de 39,1% em
relação à parede original (1). Além disso, as paredes internas foram transformadas
em superfícies lisas, o que satisfez a maioria dos moradores da Vila Mutirão.
A situação (3), parede dupla com as mesmas placas pré-fabricadas de
concreto fixadas externamente por meio de ganchos, atingiu uma melhoria de
66,7%. A mesma situação anterior, com acréscimo de planos de papelões dentro do
colchão de ar criado entre as placas, provocou uma melhora significativa de 103,8%,
explicitada na situação (4). Por fim, na última situação (5), em que se empregou
parede dupla de placas de concreto, papelão e em que se adicionaram duas
superfícies refletoras de alumínio polido nas duas faces do papelão, obteve-se
119,5% de melhoria, em relação à situação original (Figuras 74 e 75).
Figura 74. Detalhe da planta da parede agregando superfícies nos lados interno e externo. Gráfico
com a melhoria sucessiva. Desenho de Fernandes.
Figura 75. Melhorias percentuais sucessivas da parede. Desenho de Fernandes.
Esses estudos demonstraram que materiais de menor custo ou até reciclados,
como pratos de marmitex, que podem ser utilizados como superfície refletora,
papelão de sobras de embalagens ou outros materiais, podem aumentar o
isolamento térmico para diminuir a troca de calor entre o exterior e interior e vice-
102
103
versa, visto que os materiais empregados nas casas da Vila Mutirão, da primeira
etapa, como a telha de fibrocimento de 6 milímetros de espessura e a placa de
concreto de 2,5 centímetros, tinham baixa inércia térmica, sendo, portanto,
inadequados para o clima de Goiânia. Faltou, portanto, participação dos
planejadores no momento posterior à construção da Vila Mutirão. Uma avaliação
pós-ocupação deveria ser acompanhada de uma parte educativa, na busca de uma
melhoria do conforto térmico, com a utilização de materiais baratos, e também de
assessoria nas ampliações.
Capítulo 5
OS DESAFIOS DA OCUPAÇÃO
Ainda com o propósito de discutir a Vila Mutirão, não se pode ignorar que um
conjunto habitacional deve abarcar não só sua população mas também seus
problemas. É o que se expõe a seguir.
Depois da pressa e do estardalhaço para construir as mil casas em um só dia,
a distribuição dos usuários não foi feita com a mesma competência. Resultado: a
ocupação deu-se de forma lenta. Conforme o jornal O Popular (19 out. 1983), só 43
casas tinham sido ocupadas até aquela data. Com isso, a preocupação maior
passou a ser a de evitar eventuais invasões nas 957 casas que não estavam
habitadas.
Apesar da procura e pressão intensas, por parte de políticos que queriam
casas para distribuir para seus eleitores e apaniguados, o governador, segundo
Aimiri Jardim Filho, mostrava-se firme e declarava que seu propósito era resolver os
problemas das favelas e invasões da cidade.
A construção da Vila Mutirão acabou também se transformando em um
incentivo à transferência – que já era expressiva – de pessoas do meio rural, de
outros municípios e de outros estados para Goiânia. Com isso aumentou ainda mais
o contingente da população carente, sem teto e desempregada, que se deslocava
para a capital atrás do sonho da casa própria.
A partir de então, as invasões passaram a ser uma constante na vida da
cidade. A divulgação do empreendimento pelo Brasil afora gerou notícias enganosas
de que casas estavam sendo doadas. Foi preciso esclarecer nos mais variados
veículos de comunicação que as casas se destinavam exclusivamente aos favelados
cadastrados da capital.
Para evitar as ameaças de invasão às novas casas, foi preciso cercar toda a
Vila Mutirão e criar um esquema permanente de policiamento com oito duplas de
cavalarianos do Esquadrão da Polícia Montada da PM e mais quatro viaturas
policiais com serviço de rádio para monitorar toda a área (O Popular, 19 out. 1983).
Outra medida necessária foi a de criar uma administração, denominada Prefeitura da
Vila Mutirão, coordenada pela Codeg, para receber os transferidos e evitar invasões.
Durante o processo de remanejamento das pessoas, foi constatado um outro
problema: a reinvasão. Tão logo uma família era retirada de um barraco, outra
imediatamente ocupava o seu lugar. Para evitar esse procedimento, foram montadas
duas equipes: uma encarregava-se da mudança, enquanto a outra executava a
105
demolição do antigo barraco. As equipes eram acompanhadas pela polícia e por
tratores, segundo Aimiri Jardim Filho. Para evitar a nova ocupação irregular, era
necessário também demolir não só os barracos, mas também tampar as cisternas e
as fossas. Isso resultou no baixo nível de salubridade, pois, em muitos casos,
enquanto as fossas eram entupidas, as cisternas transbordavam.
Segundo Maria Aparecida Skorupski, apesar de ter havido a preocupação em
colocar próximas as famílias vizinhas ou pessoas de uma mesma invasão, tal fato
não ocorreu de maneira satisfatória. Um grande complicador foi a mudança para o
local de grandes grupos heterogêneos de pessoas, que eram colocadas num
mesmo local, juntamente com todo tipo de moradores: desempregados, marginais,
criminosos. Enfim, gente de bem era misturada com pessoas de mau caráter.
Essa convivência trouxe sérios problemas sociais para a Vila Mutirão:
conflitos violentos entre gangues rivais das diversas invasões que passaram a
conviver na mesma área, assaltos e outros acontecimentos geraram no local um
clima de insegurança. Em função desses conflitos, progressivamente o local foi
considerado como uma espécie de gueto. Seus moradores passaram a ser
estigmatizados como marginais ou ladrões, o que dificultou suas contratações em
empregos em outros setores da cidade.
A complexa e criteriosa tarefa de mudança dos ocupantes das favelas,
invasões e áreas de risco para a Vila Mutirão limitou a ação da equipe dos
assistentes sociais, cuja participação foi importante tanto no cadastramento quanto
no aspecto de convencimento da mudança.
5.1 A segregação social e espacial
A Vila Mutirão foi construída para atender a uma população de renda familiar
de zero a três salários mínimos, que vivia em condição crítica em áreas de risco ou
invadidas, beirando à situação de miséria. A renda familiar dos moradores, segundo
a revista AU (ago. 1986, p. 104), era assim composta: 46% recebiam de menos de
um salário mínimo; 48%, de um a três salários mínimos; 8% mais de três salários
mínimos.
106
O maior problema enfrentado pela população pobre que mudou para a Vila
Mutirão foi quanto à localização: cerca de 14 quilômetros do centro de Goiânia. Isto
acompanhava a tendência de segregação espacial e social da população carente
em conjuntos habitacionais do BNH, localizados freqüentemente longe das áreas
urbanizadas e distantes do centro ou de qualquer outro serviço urbano, o que criava
obstáculos para a fixação de seus moradores.
Esse isolamento provocou a diminuição das chances de os moradores
conseguirem trabalho. Não tinham como arcar com o alto custo diário do transporte
para o centro da cidade, em busca dos serviços esporádicos e subempregos, tais
como: catador de papel, vigia ou lavador de carros, empregada doméstica,
passadeira, jardineiro, servente de construção etc. Além disso, as famílias tinham de
assumir, a partir da transferência, uma dívida com as prestações da casa adquirida.
Apesar de pequena – 10% a 15% do salário mínimo –, não fazia parte do orçamento
já bastante apertado.
Com isso, os moradores da Vila Mutirão passaram a enfrentar vários
problemas, pois o assentamento foi pontuado inicialmente apenas pela moradia,
como se habitar significasse somente moradia, principalmente para uma população
pobre, localizada distante da cidade e sem nenhum outro equipamento urbano. As
construções complementares foram programadas para momentos posteriores, o que
desguarnecia as outras atividades vitais, como o trabalho, que gera renda e
possibilita a alimentação.
Em função disso, autoridades e os políticos que sempre utilizaram a Vila
Mutirão como cenário para suas investidas políticas receberam inúmeras críticas e
solicitações. Muitas delas se referiam à falta de equipamentos urbanos,
principalmente de estabelecimento de ensino, pois muitos dos filhos dos transferidos
tiveram de interromper os estudos. Para se abastecer, o morador tinha de se
deslocar por cerca de 12 quilômetros até uma região urbanizada ou sair
peregrinando pelos raros botequins do entorno (Diário da Manhã, 6 maio 1984).
O apelo maior recaía na total falta de emprego no local. “Quem mora na Vila
Mutirão enfrenta o maior problema que é a falta do que fazer” era o título de uma
reportagem do jornal O Popular (28 maio 1984). O aposentado João Justino da
Silva, pai de dez filhos, declarava: “O governo pelo menos deveria deixar a gente
107
vender o direito da casa e ir embora [...], pois falta emprego para meus filhos que
estão virando marginais” (O Popular, 8 jun. 1984).
Conforme Maria Aparecida Skorupski, o planejamento para a Vila Mutirão,
elaborado pela equipe da Codeg, previa, além das moradias, outros programas que
vislumbravam a geração de empregos e renda, saúde, educação e lazer para as
crianças e adolescentes, como forma de garantir a permanência das pessoas no
local.
No planejamento inicial, a estrutura dos currais da antiga sede da fazenda
deveria ser transformada em criação de cabras, para fabricação de queijo, que tinha
mercado certo e valorizado. Durante o processo de transferência, constatou-se a
existência de um número significativo de carroceiros – a maioria proveniente do meio
rural – que dependiam de seus animais e carroças, para a subsistência. Por não
terem onde colocar seus animais na nova moradia, criou-se uma certa resistência
em abandonar as invasões, sendo então necessário reservar uma determinada área,
próxima à sede, com tal finalidade. Isso impediu a idéia original.
No programa havia intenção de atender às pessoas que tinham atividades de
produção de bens informais relacionadas ao meio rural, tais como: pamonha,
farinha, quitandas, venda de peixes, carne etc. Esse comércio seria formalizado por
meio de um centro comercial. O centro foi construído pela Codeg cinco meses após
o mutirão, mas mesmo dois meses depois da sua construção não estava
funcionando. Ele seria administrado pelas Legionárias do Bem-Estar Social, mas foi
“licitado” e sua administração foi conduzida por pessoas totalmente alheias à vila.
Desse modo, o controle fugiu das mãos dos moradores, e o centro passou a vender
essencialmente produtos industrializados por preços elevados (O Popular, 6 maio
1984).
A Vila Mutirão demorou a consolidar-se em função do atraso na construção
de equipamentos comunitários essenciais para a sua sobrevivência. O primeiro
serviço urbano implantado foi a Casa dos Idosos, que foi inaugurada em dezembro
de 1983, para abrigar as pessoas mais velhas que moravam sozinhas nas invasões
e dependiam da ajuda dos vizinhos para as tarefas essenciais. A escola estadual de
1º grau também só foi inaugurada em abril de 1984, na quadra central da Vila
Mutirão (Gazeta Popular, 21 set. 1984), com 1.300 alunos matriculados no período
diurno e 206 no período noturno. Mas das 28 turmas previstas, só nove tiveram
108
funcionamento regular, devido à carência de professores. Os candidatos ao cargo
alegavam que a distância tornava o deslocamento dispendioso, que não havia
segurança no local. Isso resultou em evasão escolar e na não-oferta da merenda
escolar.
O Centro de Apoio e Assistência Social (Cais), responsável pela assistência
médica e odontológica, a creche para 160 crianças e o berçário para doze bebês
foram os serviços oferecidos um ano depois do mutirão.
No primeiro aniversário da Vila Mutirão foram inaugurados, com festa e desfile
escolar, o asfalto da via mais importante, a Avenida do Povo; uma praça; uma horta
comunitária e a Praça de Esportes “16 de Outubro”. A concentração comemorativa
contou com a presença do governador, do prefeito e de muitos outros políticos e de
centenas de moradores. Naquele dia, o governador apresentou à comunidade o
administrador que a partir de então gerenciaria a Vila.
O administrador nomeado por Íris Rezende passou a ter uma relação
conflituosa com os moradores cujas prestações estavam atrasadas; impôs uma
fiscalização rigorosa no controle de quem entrava e quem saía, para evitar o
abandono das casas por parte dos moradores; alterou programas por conta própria;
a sede da fazenda foi ocupada com outras atividades; desvirtuou programas e
iniciou uma relação de enfrentamento com a equipe social. A Vila Mutirão começou a
se descaracterizar, segundo Maria Aparecida SKorupski. Essa administração foi
acusada de diversas irregularidades, como a venda ilegal de casas, a cobrança de
ágio e o estímulo a invasões das casas.
Em função desses acontecimentos, muitos moradores sentiram-se
desconfortáveis e retornaram às antigas invasões. Houve uma denúncia de que 40%
das unidades habitacionais construídas pelo programa Mutirão da Moradia tinham
sido abandonadas, “uma vez que não apresentam condições mínimas de habitação”,
segundo o líder de oposição ao governo na Assembléia Estadual. Apesar do
exagero, devido à incompatibilidade política, houve realmente o abandono de
algumas casas, conforme a assistente social Maria Aparecida Skorupski.
109
5.2 A adulteração das casas
Uma manifestação merecedora de estudos mais aprofundados ocorreu logo
que os moradores foram transferidos de suas invasões para a Vila Mutirão.
Carregavam consigo restos de construção, provenientes da demolição de seus
barracos, tijolos, telhas e outros materiais, que passaram, sem qualquer critério, a
ser aproveitados nas ampliações ou nos puxados (Figura 76). “A nossa vila que
nasceu tão bonita já está, em muitas quadras, parecendo com as invasões que
deixamos. Acho que os companheiros não deviam fazer isso” – neste depoimento
um morador critica o mau aspecto dessas alterações ao jornal O Popular (8 nov.
1983).
Figura 76. Mudança das invasões para a Vila Mutirão, em que os transferidos levavam materiais dos
antigos barracos. Fonte: O Popular, 18 out. 1983. p. 8.
Um outro momento em que ocorreu alteração nas casas foi quando, um ano
depois do mutirão, construiu-se a Fábrica de Pré-Moldados, com o objetivo de gerar
emprego, atender às futuras ampliações das casas e suprir de materiais as futuras
edificações das etapas posteriores à Vila Mutirão e aos futuros programas estaduais
de habitação e, ainda, a construção das mil salas de aula por todo o Estado. O fato
curioso é que, apesar de ter sido divulgada a existência de projetos contemplando
acréscimos, não houve ampliação, em nenhuma das casas, que utilizasse o sistema
de placas pré-moldadas, conforme os projetos das unidades. Segundo Ana Cristina
Rodovalho Reis, da Cohab-GO, é próprio do comportamento dos mutuários dos
110
conjuntos habitacionais sentir a necessidade de conferir alguma identidade à sua
moradia para diferenciá-la da grande quantidade de casas iguais.
A explicação para esse fato pode ser atribuída à falta de cultura da população
de baixa renda em relação à produção industrializada para a moradia. Isso pôde ser
percebido nas críticas dos moradores da Vila Mutirão às placas pré-moldadas como
vedações, por estas não permitirem a fixação de qualquer objeto nas paredes
(fotografias, flâmulas, quadros etc.), e ao aspecto visual dos relevos dos pilares
dentro dos ambientes. Para eles, uma parede deveria ser uma superfície lisa, livre
de qualquer proeminência.
Outros não utilizaram o processo na ampliação de suas casas, ou pelo custo
mais elevado, ou pela dificuldade em dominar a tecnologia que julgavam de difícil
entendimento ou até pela impossibilidade de ampliação. Houve também falta de uma
proposta educativa por parte dos planejadores e administradores do
empreendimento, no sentido de divulgar e orientar essas expansões. Os moradores
preferiram adaptar os espaços às suas necessidades pessoais, modificando ou
ampliando suas casas, valendo-se do processo construtivo convencional de
alvenaria de tijolo.
Dessa maneira, os produtos da Fábrica de Pré-Moldados foram somente
utilizados na construção dos muros divisórios de sua propriedade. Essa prática,
generalizada na Vila Mutirão, foi motivada por dois fatores: primeiro, para evitar
desentendimentos entre vizinhos, em função da demarcação dos terrenos, pois os
lotes haviam sido delineados precariamente, sem piqueteamento; segundo, em
razão da falta de segurança no local (O Popular, 8 nov. 1983).
Enfim, a fábrica de elementos pré-moldados não atendeu seus objetivos em
decorrência do uso indevido de sua produção e da má administração, tornando
penosa a sua viabilidade e manutenção.
Segundo Sérgio Moraes,
1
uma pesquisa, iniciada em 1993 e ainda
inconclusa, por ocasião dos dez anos da Vila Mutirão, revelou que quase 80% dos
moradores preferiram retirar as placas das paredes de suas casas para construir
seus muros e substituí-las pelo sistema convencional de tijolo cerâmico. Isso pode
ser justificado pelo aspecto cultural de que as placas desvalorizavam a casa ou pelo
calor nos ambientes, ou, o mais provável, pelos dois aspectos (Figura 77).
1
Entrevista concedida ao autor em 15 de agosto de 2006.
111
Figura 77. Modificação comum nas casas da Vila Mutirão: troca das placas pré-moldadas pela
alvenaria convencional. Muros de placas. Foto do autor em janeiro de 2005.
Apesar de a telha de fibrocimento de 6 milímetros ser a maior causadora do
desconforto térmico, muitas casas modificaram as paredes, mas mantiveram
inalteradas a estrutura metálica e as telhas da cobertura.
Constatou-se também que a falta de água e de esgoto motivou muitos atritos
entre vizinhos, pois a água servida era jogada na rua pela maioria dos moradores.
As fossas negras, instaladas no fundo do lote, próximas umas das outras, depois de
algum tempo, não suportavam a quantidade de dejetos e transbordavam. Muitas
casas já estavam na perfuração da sua terceira fossa (Figura 78).
Figura 78. Manchete de O Popular destacando os atritos na Vila Mutirão. Fonte: O Popular, 9 out.
1994, p. 78.
112
113
Uma atitude muito comum adotada pelos moradores foi a de abrir poços para
facilitar o acesso à água. Essas cisternas eram furadas na parte posterior da casa,
nas proximidades da cozinha. Nesse espaço era instalada uma pia de granitina,
transformando-se em uma cozinha externa. Construía-se também um fogão à lenha
rústico, com tijolos empilhados e uma trempe, com o propósito de reduzir os gastos
com o gás de cozinha.
O que se pode concluir é que a qualidade da água desses poços estava
comprometida, em função da proximidade de fossas negras abertas no local – mais
de mil. Esse tipo de fossa é altamente prejudicial ao lençol freático pela facilidade de
contaminação.
Portanto, no caso da Vila Mutirão, a falta de apoio ou empenho para
consolidação por parte do governo, a demora na implantação de equipamentos
comunitários urbanos e a ausência de ofertas de emprego no local não incentivaram
a permanência de seus moradores no local. Muitos abandonaram ou venderam o
direito de sua casa. Segundo a assistente social Maria Aparecida Skorupski, que fez
parte também da equipe do governo Henrique Santillo em 1989, foi só nesse período
que ocorreu a legalização de propriedade por meio da doação definitiva dos imóveis,
inclusive com a entrega das escrituras aos moradores. O processo foi complexo,
pois exigiu um novo cadastramento, uma vez que 95% das famílias originárias não
estavam mais na Vila Mutirão e havia unidades habitacionais que estavam sendo
ocupadas pelo vigésimo quinto dono.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Considerações finais
Ao concluir este trabalho, alguns aspectos merecem ser aqui retomados. O
primeiro deles é o inchaço populacional de Goiânia e a escassa oferta de emprego
existente no final da década de 1970 e início da de 1980.
Com isso, a massa migratória procurava no setor da construção civil, o mais
vigoroso de Goiânia, a chance de ser aproveitada, uma vez que não se exigia
comprovação de nível de escolaridade. Mas, de 1981 a 1983, esse setor
apresentava um momento de estagnação devido à forte crise econômica reinante
nos âmbitos nacional e mundial. Com pouca ou nenhuma qualificação, essa mão-
de-obra mutante não tinha chance de ser aproveitada no mercado formal ou
concorrer com os escassos empregos urbanos existentes. Dessa maneira,
fatalmente a única opção de sobrevivência e de moradia passou a ser a ocupação
irregular da terra.
Esse processo de invasões, desde 1960, incomodava a população
regularmente assentada e, principalmente, o forte capital imobiliário especulativo,
que fazia pressão para combater as ocupações desordenadas do solo pelos
migrantes pobres. Mas um movimento de ocupação irregular ganhou corpo, e as
invasões foram organizadas, deixando de ter um caráter isolado e passando a ser
uma luta coletiva pelo direito à moradia. No meio desses movimentos sociais
surgiram lideranças que passaram a incomodar o regime autoritário.
Quando era divulgado pelos movimentos que uma grande área ia ser
invadida, famílias e grupos de pessoas dos mais diversos pontos da cidade, que
sobreviviam nas áreas de risco, nas margens dos diversos córregos que cortam a
cidade, ou embaixo de pontes, em condições subumanas, deslocavam-se para o
local e apossavam-se do seu quinhão de terra.
O Estado reprimia violentamente as tentativas de invasões nos espaços
vazios da cidade para evitar que elas se consolidassem. Segundo Moysés (2001, p.
2), “o Estado passou a agir como guardião da propriedade privada e defensor da
ordem burguesa e dos interesses do capitalismo fundiário”. A polícia agia de
maneira violenta contra a luta coletiva pela posse da terra ociosa, causando até
uma morte em 1982.
115
Portanto, o cenário encontrado por Íris Rezende, o primeiro governador eleito
pelo voto popular, em novembro de 1982, foi o de grandes áreas de invasões de
terra, formando bolsões de pobreza, com barracos construídos com todo tipo de
material: lonas de plástico, papelões, folhas de metal, restos de construção etc.
O segundo aspecto merecedor de análise é a posição paternalista e
assistencialista adotada por Íris Rezende após ser eleito. Respaldado por um
milhão de votos, constrói a Vila Mutirão para tentar resolver a questão da habitação
popular em Goiânia. Como político hábil, Íris Rezende, procurou não contrariar os
interesses da classe mais abonada e dominante da sociedade goianiense e nem os
interesses dos proprietários e especuladores de terra. Para tal, viabilizou e localizou
a Vila Mutirão a aproximadamente 14 quilômetros do centro, à margem da rodovia
GO-070, longe de qualquer lugar com melhoria ou serviço urbano, numa área
pertencente à zona rural do município, à revelia da legislação em vigor, que definia
que o parcelamento de natureza urbana não pode ocorrer em zona rural, que é de
competência do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Dessa maneira, o governo optou pela estratégia do programa de habitação
de interesse social adotado pelo BNH, durante o regime autoritário: a de segregar
espacial e socialmente a população pobre e miserável, que sempre incomodou toda
a sociedade. Com isso, apartou-a e isolou-a em conjuntos habitacionais fora da
cidade.
O terceiro aspecto é o fato de essa localização ter-se transformado no maior
problema na consolidação da Vila Mutirão. Sua população não tinha condições de
arcar com os custos de transporte em busca de serviços básicos urbanos, como
educação, saúde, alimentação e lazer. Ainda, pelo afastamento do centro, onde se
concentrava o maior potencial de serviços esporádicos e subempregos, os
moradores da Vila perderam as oportunidades de emprego informal, como os
serviços domésticos e outros “bicos” oferecidos pelo núcleo urbano.
Segundo Maria Aparecida Skorupski, muitos moradores ficaram
inadimplentes por não terem condições de arcar com o deslocamento em busca dos
serviços básicos e, assim, ficavam impossibilitados de pagar as prestações da casa,
que, apesar de pequenas, variavam de 10% a 15% do salário mínimo. Esses novos
gastos pesavam no orçamento de quem não tinha uma renda mínima fixa, o que
levou muitos moradores a voltar para as invasões.
116
A carência de trabalho e a falta de ter o que fazer geraram grupos de
desocupados e marginais, que, em pouco tempo, transformaram o local em uma
área estigmatizada pela insegurança e violência. Fica claro, assim, que, faltou um
programa ou estratégia para fixar os moradores na Vila Mutirão. Em 1989, quando o
novo governo procurou legalizar as casas, a grande maioria das famílias originárias
já não estava mais lá, o que demonstra a falta de qualidade mínima habitacional. A
falta de emprego, de equipamentos comunitários e a dependência do centro da
cidade foram responsáveis pela procura de novos locais que atendessem a esses
itens.
O quarto aspecto é que, mesmo diante desses problemas, projetos como a
Vila Mutirão, primeira e segunda etapas – e outros posteriores, como o Mutirão do
Interior, o Mutirão das Mil Salas de Aula, a Casa do Idoso –, colocaram em
evidência a administração de Íris Rezende.
Com isso, ele obteve como dividendos o privilégio de sediar em Goiânia o
lançamento oficial de uma das mais importantes manifestações populares no país: a
campanha do seu partido, o PMDB, pelas “Diretas Já”, em abril de 1983, com a
presença das principais lideranças dos diversos partidos de oposição. Além de
Rezende, participaram Franco Montoro, Tancredo Neves, Ulisses Guimarães, Luis
Inácio Lula da Silva, entre outros. Esse movimento, que exigia eleições diretas para
presidente, tornou a democratização um processo irreversível.
Em 12 de abril de 1984, houve um segundo comício, também na Praça
Cívica, de proporções bem maiores, com a presença mais significativa ainda de
representantes e líderes políticos oposicionistas e dissidentes e com a participação
de 300 mil pessoas, a segunda maior do país, atrás apenas da manifestação do
Vale do Anhangabaú, em São Paulo, acontecida no dia 16 de abril de 1984.
Outra conquista do governador foi o atendimento à sua solicitação de um
ministério para o Estado de Goiás. Seu ex-secretário de Planejamento e
Coordenação no Governo de Goiás, Flávio Rios Peixoto da Silveira, um dos
idealizadores da Vila Mutirão, foi indicado para assumir, em março de 1985, o
Ministério de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, que, desmembrado do
Ministério do Interior, teve sob sua responsabilidade a coordenação da política de
desenvolvimento urbano, meio ambiente, saneamento e habitação.
No seu discurso de posse o ministro assim se manifestou:
117
Trago, para o Ministério recém-instituído, a mais gratificante experiência
de governo, nascido no seio do povo e fortalecido por um processo de
participação popular que, a par de não conhecer similar, se solidifica, se
intensifica e se valoriza a cada etapa percorrida. [...]
Tão grave quanto a questão da habitação, o saneamento básico de
nossas cidades precisa sair urgentemente das pranchetas e chegar às
casas de todos os bairros de todas as aglomerações urbanas. (Revista
Brasileira de Habitação Popular, v. ½, abr./jun. 1985, p. 58)
Já como ministro, Flávio Peixoto, participou da segunda etapa da Vila Mutirão
(Figura 79), que teve o comando do governador Íris Rezende, na construção das
561 casas em que se utilizaram o mesmo processo de mutirão, os mesmos
elementos pré-fabricados empregados na primeira etapa, mas as casas eram
maiores: 33,46 m
2
de área. O evento teve mais publicidade e divulgação, contou
com a presença do presidente José Sarney, de outros dois ministros, senadores e
políticos federais (Figura 80). Foram enviados representantes de quatro países,
Chile, Colômbia, Peru e El Salvador, e de outros governos estaduais, São Paulo,
Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Alagoas e Paraíba (O Popular, 16 out. 1985, p.
10).
Figura 79. Foto aérea da 2ª etapa da Vila Mutirão. Ao fundo, a primeira etapa. Foto de Jadir Lima.
Dessa maneira, o projeto de impacto iniciado com a Vila Mutirão e seus
derivados conseguiu o objetivo pretendido de plataforma política. Logo depois, mais
118
um outro ministério foi conquistado por Íris ainda no governo Sarney (1985-1990): o
próprio governador assumiu o Ministério da Agricultura em fevereiro de 1986.
Figura 80. Presidente José Sarney e comitiva na 2ª etapa da Vila Mutirão. Do lado esquerdo, o
presidente da Codeg, Eurico Godoi, atrás, o ministro Flávio Peixoto e atrás, à direita de Sarney, o
governador Íris Rezende.
O quinto aspecto a ser analisado nestas considerações finais diz respeito ao
uso da tecnologia na Vila Mutirão, cujo projeto seguiu a opção de construção de
casas em lotes individuais. Tendo como base um processo de racionalização
construtiva de pré-fabricação e utilizando peças pré-moldadas foi possível atender
às exigências de construção de unidades habitacionais em grandes quantidades e
em curto espaço de tempo, conforme solicitado nos programas do Mutirão da
Moradia implantado pelo governo estadual. O programa e o processo tecnológico
adotados também vislumbraram o baixo custo para abrigar a população pobre, que
morava em condições precárias e de maneira irregular em Goiânia e em outras
cidades do interior.
O sistema de construção utilizado na Vila Mutirão, com peças leves, capazes
de serem transportadas e manipuladas por duas pessoas, e a conseqüente redução
e simplificação dos elementos componentes traduziram-se em alta produtividade no
canteiro de obras no dia do mutirão, fato que definitivamente não ocorreria pelo
processo de construção convencional.
119
Cabe ressaltar que a rapidez do processo construtivo utilizado na primeira
etapa da Vila Mutirão expandiu o programa Mutirão da Moradia para as cidades do
interior, a fim de fixar o habitante do interior do Estado no seu município, evitando,
sua mudança para Goiânia. O Mutirão do Interior foi vistoriado por técnicos da
Codeg, e o projeto da casa sofreu algumas alterações em relação ao da Vila
Mutirão. Em 6 de outubro de 1985, 561 casas foram construídas usando a mesma
tecnologia de pré-moldados e sendo executadas pelo mesmo processo de
montagem por meio de mutirão. Surgia a segunda etapa da Vila Mutirão (Figura 81).
Figura 81. Planta da casa da 2ª etapa da Vila Mutirão. Fonte: Codeg (1986, p. 11).
120
A casa foi acrescida de mais um quarto, resultando em uma área de 33,46
metros quadrados, trazendo como novidade, o banheiro e a pia de cozinha
colocados no interior da unidade. A modulação foi modificada de 160 centímetros
para 167 centímetros. Houve uma melhoria na qualidade da casa, alterando a
modulação e introduzindo no interior da moradia os elementos hidráulicos. Um
tanque externo foi assentado próximo às tubulações do banheiro.
Ainda, para simplificar o processo, todos os pilares tiveram tamanhos iguais,
sendo que, para solucionar a empena da casa, foi colocado um oitão de chapa de
metal corrugada. As placas, também, foram simplificadas, reduzindo seu número de
cinco para quatro tipos e otimizando o processo de montagem. Para essa etapa,
eliminou-se o espaçamento de 15 centímetros entre o oitão e a telha de
fibrocimento da cobertura, que era utilizado para a ventilçação (Figura 82).
Figura 82. Fachada principal da casa da 2ª etapa da Vila Mutirão. Fonte: Codeg (1986, p. 11).
Para finalizar, uma informação deve ser acrescida: as construções dos
mutirões, em todo o Estado de Goiás, contaram com a presença de técnicos do
BNH, que se mostraram entusiasmados com a rapidez, a economia e a
possibilidade de grandes quantidades construídas que o processo adotado
apresentava. Esse entusiasmo transformou-se em interesse, pois, nesse período, o
Banco enfrentava o pior momento de credibilidade de sua história, em função do
desvio de seu objetivo primordial que era o de estimular a construção da habitação
popular. Segundo Aimiri Jardim, na época houve um acerto entre o Estado e o BNH
no sentido de que fosse quitada toda a dívida de Goiás com o órgão para que o
Banco encampasse o sistema tecnológico desenvolvido pela Codeg.
121
O que se tem a lamentar é que as mudanças na administração política fazem com
que os programas sejam esquecidos ou até desprezados, principalmente quando
assume o governo um partido político de oposição. Este foi o caso do programa
Mutirão da Moradia, que, apesar de muitos equívocos, obteve um resultado positivo.
Nem mesmo esse resultado foi capaz de impedir que esse programa caísse no
esquecimento. Os que participaram do processo lembram-se dele como resultado
do trabalho, de suor e de muita experimentação na procura de respostas de baixo
custo, de execução rápida e eficaz para atender à demanda por habitações
populares.
122
REFERÊNCIAS
BANCO NACIONAL DA HABITAÇÃO. BNH: projetos sociais. Rio de Janeiro, 1979.
BENEVOLO, Leonardo. História da arquitetura moderna. São Paulo: Perspectiva,
1976.
BOESIGER W.; GIRSBERGER H. Le Corbusier 1910-1965. Barcelona: Editoral
Gustavo Gili, 1971.
BONDUKI, Nabil Georges. Origens da habitação social no Brasil: arquitetura
moderna, Lei do inquilinato e difusão da casa própria. São Paulo: Estação
Liberdade: Fapesp, 1998.
BRUAND, Yves. Arquitetura contemporânea no Brasil. São Paulo: Perspectiva,
1981.
CARRION, Otília Beatriz Kroeff. Custo de consumo final da habitação:
o
o
c
c
a
a
s
s
o
o
d
d
a
a
r
r
e
e
g
g
i
i
ã
ã
o
o
m
m
e
e
t
t
r
r
o
o
p
p
o
o
l
l
i
i
t
t
a
a
n
n
a
a
d
d
e
e
P
P
o
o
r
r
t
t
o
o
A
A
l
l
e
e
g
g
r
r
e
e
.
.
1
1
9
9
8
8
7
7
.
.
Dissertação (Mestrado em Economia) –
Universidade de São Paulo, São Paulo, 1987.
CIRIBINI, Giuseppe. A industrialização da construção nos países desenvolvidos.
Seminário Arquitetura e Industrialização, Universidade de São Paulo, Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo, 1978.
CODEG. Mutirão, um processo construtivo, Goiânia, maio 1986.
CODEG, Prodespar. Projeto de desenvolvimento social, Vila Mutirão, Goiânia, ago.
1983.
COHAB. Projeto Laboratório: processos construtivos não-convencionais,
Companhia de Habitação de Goiás. Goiânia, 1979.
DEGANI, José Lourenço. Tradição e modernidade no ciclo dos IAPs
.
.
2
2
0
0
0
0
3
3
.
.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre,
2003.
DAHER, Tânia. Goiânia, uma utopia européia no Brasil. Goiânia: Instituto Centro
Brasileiro de Cultura,
2
2003.
FRAMPTON, Kenneth. História crítica da arquitetura moderna. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
GOIÂNIA art déco: acervo arquitetônico e urbanístico – dossiê de tombamento.
Organização de Celina F. A. Manso. Goiânia: Seplan, 2004, v. 1, 2 e 3.
GOUVÊA, Luiz Alberto. Biocidade: conceitos e critérios para um desenho ambiental
urbano, em localidades de clima tropical de planalto. São Paulo: Nobel, 2002.
GRAEFF, Edgar Albuquerque. Goiânia: 50 anos. Brasília: MEC-SESU, 1985.
123
HABITAÇÃO: mutirão: boa solução para habitação de interesse social. Revista
Projeto, São Paulo: Projeto Editores Associados. n. 68, p. 72-75, out. 1984.
IPLAN – Goiânia: urbanização, problemas e programa sociais urbanos. Goiânia:
Iplan, 1982.
JACOB, Jane. Muerte y vida de las grandes ciudades. Madrid: Ediciones Península,
1973.
KOWARICK, Lucio, A espoliação urbana. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979.
LAMAS, José Manuel Ressano Garcia. Morfologia urbana e desenho da cidade.
Lisboa: Fundação Calouse GulbenKian/Junta Nacional de Investigação Científica e
Tecnológica. 1983.
LAMBERT, Roberto. Eficiência energética na arquitetura. 2. ed. São Paulo:
ProLivros, 2004.
LIMA, João Filgueiras. Escola transitória. Brasília: MEC/Cedate, 1984.
MARICATO, Ermínia. Habitação e cidade. Coordenação de Wanderley Loconte,
São Paulo: Atual, 1997. (Espaço & Debate).
_____. Brasil, cidades: alternativas para a crise urbana. Petrópolis: Vozes, 2001.
MARICATO, Ermíria; MORAES, Lucia. Mutirão, longe das câmeras de TV (o
mutirão de Goiás). Revista AU, Espaço Aberto, São Paulo: Pini, ano 2, n. 7, p. 102-
106, ago. 1986.
MARICATO, Ermínia et al. A produção capitalista da casa (e a cidade) no Brasil
industrial. São Paulo: Alfa-Omega, 1982.
MELLO, Márcia Metran de. Goiânia: cidade de pedras e palavras. 2004. Tese
(Doutorado) – Universidade de Brasília, Brasília, 2004.
_____. Moderno e modernismo: a arquitetura dos dois primeiros fluxos
desenvolvimentista de Goiânia. 1996. Dissertação (Mestrado) – Universidade de
São Paulo, São Paulo, 1996.
MONTANER, José Maria. Depois do movimento moderno: Arquitetura da segunda
metade do século XX. Barcelona: Gustavo Gili, 2001.
MORAES, Sérgio de. O empreendedor imobiliário e o Estado: o processo de
expansão de Goiânia em direção sul (1975-1985). 1991. Dissertação (Mestrado) –
Universidade de Brasília, Brasília, 1991.
MORAES, Lúcia Maria, A institucionalização da segregação urbana na cidade de
Goiânia: 1933 a 2000. 2003. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2003.
124
O COMPLEXO industrial da construção e habitação econômica moderna (1930-
1964). Organizado por Maria Lúcia Caira Githay e Paulo Cesar Xavier Pereira. São
Carlos: RiMa, 2002.
PAWLEY, Matin. Arquitectura versus vivienda de masas. Barcelona: Editoral Blume,
1977.
PELLI, Victor Saúl. Sistema de viviendas UNNE-UNO hormigon in situ en moldes.
Seminário Arquitetura e Industrialização, Universidade de São Paulo, 1978a.
_____. La industrialización em los paises em vias de desarollo: caso nordeste
argentino. Seminário Arquitetura e Industrialização. Universidade de São Paulo,
1978b.
_____. Dos sistemas de prefabricatión. Seminário Arquitetura e Industrialização.
Universidade de São Paulo, 1978c.
RIBEIRO, Maria Eliana Jubé. Goiânia: os planos, a cidade e o sistema de áreas
verdes. Goiânia, 2004.
SACHS, Céline. São Paulo: políticas públicas e habitação popular. Tradução de
Cristina Murachoco. São Paulo: Edusp, 1999.
SANTOS, Milton. A urbanização desigual: a especificidade do fenômeno urbano em
países subdesenvolvidos. Tradução de Antonia Dea Erdens e Maria Auxiliadora da
Silva. Petrópolis: Vozes, 1980.
SEGAWA, Hugo. Arquiteturas no Brasil (1900-1990). São Paulo: Edusp, 2002.
SERRAN, João Ricardo. O IAB e a política habitacional brasileira (1954-1975). São
Paulo: Schema, 1976.
SILVA, Iranise Alves da. A crise da moradia: a política habitacional para as classes
de baixa renda de Campina Grande-PB. Rio de Janeiro: Agir; João Pessoa: Editora
da Universidade Federal da Paraíba, 1987.
_____. Brasil: de Getúlio Vargas a Castelo Branco. Tradução de Mário Salviano
Silva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.
SKIDMORE, Thomas E. Brasil: de Castelo a Tancredo. Tradução de Mário Salviano
Silva. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988.
SOUZA, Berenice Guimarães Vasconcelos. O BNH e a política do governo
.
.
1
1
9
9
7
7
4
4
.
.
Dissertação (Mestrado) – Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte,
1974.
VALLADARES, Licia do Prado et al. Habitação em questão. Rio de Janeiro: Zahar,
1979.
125
Publicações periódicas:
REVISTA BRASILEIRA DE HABITAÇÃO POPULAR. Rio de Janeiro: Associação
Brasileira de COHABs, órgão oficial da ABC, v. I, n. 1. jan./mar. 1983.
REVISTA BRASILEIRA DE HABITAÇÃO POPULAR. Rio de Janeiro: Associação
Brasileira de COHABs, órgão oficial da ABC, v. I, n. 2, abr./jun. 1985.
REVISTA BRASILEIRA DE HABITAÇÃO POPULAR. Rio de Janeiro: Associação
Brasileira de COHABs, órgão oficial da ABC, v. I, n. 3, jul./set. 1985.
REVISTA BRASILEIRA DE HABITAÇÃO POPULAR. Rio de Janeiro: Associação
Brasileira de COHABs, órgão oficial da ABC, v. 2, n. 3, jan./maio 1986.
Artigos em sites:
CONDURU, Roberto. Razão em forma: Affonso Eduardo Reidy e o espaço
arquitetônico moderno. Disponível em: <http://www. eesc. usp.br/sap/revista-
risco/Risco2-pdf/art2-risco2.pdf>. Acesso em: 2 fev. 2006.
DIRETAS JÁ. Disponível em: <http://pt. wikipedia. org/wiki/Diretas-J%C3% A1>.
Acesso em: 8 nov. 2006
LISTA DE governadores de Goiás. Disponível em: <http://pt. wikipedia. org/wiki/Lista
de governadores de Goi%C3A1S. Acesso em: 10 nov. 2006
MOYSÉS, Aristides. A produção de territórios segregados na Região Noroeste de
Goiânia: uma leitura sócio-política. Disponível em: <http://pt
. observatório das
metrópoles. ufrj.br/download/arimoyses-ter segreg. pdf>. Acesso em: 8 out. 2006.
Entrevistas:
Aimiri Jardim Filho, arquiteto e diretor de planejamento da Codeg (2 fev. 2005).
Jadir Mendonça de Lima, arquiteto e coordenador de projetos da Codeg (20 jan.
2005).
Paulo César Vaz de Melo, engenheiro civil, membro da equipe e coordenador da
segunda etapa da Vila Mutirão (31 jan. 2005).
Eduardo Muller, arquiteto e membro da equipe da Codeg (22 fev. 2005).
Maria Aparecida Skorupski, assistente social, coordenadora e consultora da equipe
da Codeg (9 mar. 2005).
Ana Cristina Rodovalho Reis, engenheira civil, chefe do Departamento de Projetos e
Orçamento da Cohab-GO (15 ago. 2006).
126
127
Antônio Manuel Pombo Corado Fernandes, arquiteto e professor de Conforto do
Departamento de Arquitetura da UCG (24 ago. 2006).
Sergio de Moraes, arquiteto e professor do Departamento de Arquitetura da UCG
(15 ago. 2006).
Maria Diva Araújo Coelho Vaz, arquiteta e professora do Departamento de
Arquitetura da UCG, servidora do Indur e Emcidec (24 ago. 2006).
Pedro Wilson Guimarães, sociólogo, professor da UCG e prefeito de Goiânia no
período de 2001-2004 (25 ago. 2006).
N
Figura 11. Planta das três etapas da Vila Mutirão: levantamento planialtimétrico e cadastral. Codeg, janeiro de 1987. Fonte: arquivo pessoal do arquiteto Jadir Mendonça.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo