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O Apollinaire que este trabalho exibe é uma
figura fortemente emblemática da ebulição artís-
tica que marcou a primeira parte do século XX.
Seu senso de fragmentação, por exemplo, apa-
rece desde a profusão de nomes (pseudônimos)
e imagens simbólicas que o poeta se atribui até
sua incursão precursora por um terreno dramá-
tico que seria irremediavelmente gravado pelo
"estigma" da dissociação total, traço que acaba-
ria de caracterizar aquela modernidade já presen-
te no século XIX, principalmente nos seus ester-
tores. Sua peça afirma sua condição absurdista já
no titulo - Les mamelles de Tirésias -, mas espe-
cialmente em seu tom específico.
A fragmentação da modernidade é algo que
ressalta desta obra sobre Apollinaire, mas seu es-
copo confesso encaminha-se á questão mais es-
sencial, uma questão que nos remete aos funda-
mentos da teoria literária. Trata-se da relação
entre a "fábula" (no limite, a própria estrutura
narrativa) e a lírica.
No que se refere ã primeira, o texto parte de
conceitos que remontam a Aristóteles (atitude ex-
tremamente saudável da autora, no período de
modernosa ignorância que ainda vivemos nos es-
tudos literários) até as noções teóricas mais atuais,
passando, com sabedoria inegável, pelo brilhante
momento que foi o formalismo russo. Isso prepara
as várias possibilidades de "fábula" que ocorrem
ao longo da poesia de Apollinaire, desde a nar-
rativa moral com animais (Bestiaire), chegando às
formas posteriores, onde se trata, na verdade, de
segmentos narrativos variados, expressos em
modalidade lírica - "fabulírica".
Uma das maneiras de entendermos as mais
diversas manifestações literárias seria reduzi-las
a três "modos" essenciais: narrativa, drama e líri-
ca. Claro está que cada um dos termos precisa ser
entendido em relação aos outros dois, nunca se
deixando confundir, por exemplo, com "gêneros"
(embora estes, às vezes, sejam assim nomeados,
mas em circunstâncias específicas, queo as
deste em questão).
As obras literárias concretas participariam
decisivamente de um desses "modos" (um roman-
ce é, por certo, exemplar narrativo, só para citar-
mos um caso óbvio). Fundamental, entretanto, é
que nenhuma obra inclusa num dos "modos"
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GUILLAUME APOLLINAIRE:
FÁBULA E LÍRICA
FUNDAÇÃO EDITORA DA UNESP
Presidente do Conselho Curador
José Carlos Souza Trindade
Diretor-Presidente
José Castilho Marques Neto
Editor Executivo
Jézio Hernani Bomfim Gutierre
Conselho Editorial Acadêmico
Alberto Ikeda
Antonio Carlos Carrera de Souza
Antonio de Pádua Pithon Cyrino
Benedito Antunes
Isabel Maria F. R. Loureiro
Lígia M. Vettorato Trevisan
Lourdes A. M. dos Santos Pinto
Raul Borges Guimarães
Ruben Aldrovandi
Tania Regina de Luca
GUILLAUME APOLLINAIRE:
FÁBULA E LÍRICA
SILVANA VIEIRA DA SILVA AMORIM
Direitos de publicação reservados à:
Fundação Editora da UNESP (FEU)
Praça da, 1 OS
01001-900-São Paulo-SP
Tel.: (Oxxll) 3242-7171
Fax: (Oxxll) 3242-7172
Home page: www.editora.unesp.br
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Índice para catálogo sistemático:
1. Literatura francesa: História e crítica 840.9
Este livro é publicado pelo projeto Edições de Textos de Docentes e
Pós-Graduados da UNESP - Pró-Reitoria de Pós-Graduação e Pesquisa
da UNESP (PROPP) / Fundação Editora da UNESP (FEU)
Editora afiliada:
Amorim, Silvana Vieira da Silva
Guillaume Apollinaire: fábula e lírica / Silvana Vieira da Silva Amorim. -
o Paulo: Editora UNESP, 2003.
Bibliografia.
ISBN 85-7139-445-8
1. Apollinaire, Guillaume, 1880-1918 - Crítica e interpreta-
ção 2. Literatura francesa - História e crítica I. Título.
03-0055 CDD-840.9
A Orlando,
Si est de nus:
ne vus sanz mei, ne jeo sanz vus.
À minha mãe, fonte de incentivo.
A Nuno, esperança e luz infinitas.
A todos os três, partes da minha lírica,
dedico.
De tous les coups du sort, j'ai su faire une fable
Le moins devient plus: consolante inversion.
Raymond Queneau
Açougueiro sem cãibra
Pego a posta do vivido,
talho, retalho, esfolo o fato nu e cru,
pimento, condimento,
povôo de especiarias,
fervento, asso ou frito,
até que tudo figure fábula
Wally Salomão
SUMÁRIO
Prefácio I I
Apresentação 17
Introdução 19
1 Que fábula? 27
2 Incursões de Apollinaire no domínio da(s) fábula(s) 37
Bestiaire: sob o signo de Orfeu 37
As fábulas dos Poèmes à Lou 4 I
A trilogia neo-simbolista de Alcools 44
"Palais" - ponte e transição entre fábula e lírica 80
3 Rito de passagem e fusão: fabulírica 87
O ciclo das Rhénanes S8
Ode a fábula moderna: "Zone" I I 9
A lírica surpreende a fábula: "L'émigrant de Landor Road" I 24
4 Um poeta a serviço da lírica moderna 129
Perspectiva e retrospecto I 30
Apollinaire e as vanguardas I 4 I
L 'enchanteur mélancolique:
o lirismo como consciência do (seu) mundo I 45
Lirismo e guerra:
os poemas não-caligramáticos dos Calligrammes I 6 I
Conclusão 183
Referências bibliográficas 187
Apêndice 193
PREFÁCIO
O ESPRIT NOUVEAU E O CUBISMO:
ALCOOLS DE APOLLINAIRE
Em 1913, em um dos momentos de maior agitação e produti-
vidade dos movimentos de vanguarda, Apollinaire publica Médi-
tations esthétiques. Les peintres cubistes (1980), obra teórica rece-
bida na época como uma espécie de manifesto cubista (embora o
poeta afirmasse que se tratava apenas de "meditações estéticas"), c
que mostra que ele esteve ligado aos movimentos de vanguarda,
por ele denominados Esprit nouveau. Menos de ums depois,
aparece a sua primeira coletânea de poemas, Alcools. Desde o iní-
cio perceberam-se muitos pontos comuns entre elas, pois a com-
posição de Les peintres cubistes é a justaposição bem montada de
escritos que ele compôs em momentos diferentes - artigo sobre Pi-
casso (1905), o prefácio para a exposição fauve de 1908 ("Les trois
vertus plastiques"), ensaios publicados na revista Soirées de Paris,
que Apollinaire fundou em 1912. Por seu lado, Alcools contém
poemas escritos - e publicados, alguns - durante um período de
quinze anos, também utilizando a técnica da justaposição. Esses
pontos comuns entre as duas obras justificam uma leitura simultâ-
nea que busque aproximá-las para tentar compreender melhor sua
poética e o Esprit nouveau.
Les peintres cubistes tem hoje ainda algum valor pelo fato de
ser crítica poética - e profética -, tendo previsto as direções que
tomaria a pintura no século XX: de um lado, com Picasso e Bra-
que, a arte figurativa dos cubistas e, de outro, a pura abstração de
Delaunay e Kandinsky, que ele chama de orfismo. Na introdução
que escreveram para a edição Herman, Breunig & Chevaliero
as diretrizes gerais dessa obra. Encontram-se,, escritos que são,
efetivamente, meditações estéticas de caráter geral, e outros em
que Apollinaire discorre isoladamente sobre alguns pintores seus
contemporâneos. Observam os dois críticos queo há nada ne-
les de exclusivamente "cubista". Na verdade, essa escola pratica-
menteo teve o lado agitado das outras (futurismo, dadaísmo,
surrealismo). Nenhum manifesto anunciara seu aparecimento
em 1907, e a obra cubista de Braque e de Picasso era quase intei-
ramente desconhecida quando Apollinaire redigiu o livro. Na
verdade, dizem Breunig & Chevalier, em seus artigos sucessivos,
o poeta parece querer evitar qualquer etiqueta que possa sugerir
uma única doutrina, tendo em vista que a arte se renova constan-
temente e que o cubismo poderia ser uma etapa já ultrapassada.
O valor histórico do livro está no sentimento de um fronte co-
mum, que Apollinaire transmiteo bem porque parece tê-lo
pressentido melhor do que os pintores que faziam parte dele.
Logo que foi publicado, Maurice Raynal considerou Les pein-
tres cubistes "um poema sobre a pintura", eo somente pela "bela
prosa alada", pelos "vôos líricos" que aí se encontram, mas sobretu-
do pelo procedimento preferido por Apollinaire das justaposições
inesperadas, dos contrastes surpreendentes que caracterizam mui-
tos dos poemas de Alcools e de Calligrammes.
Alguns de seus trechos permitem que se rastreiem posições es-
téticas de Apollinaire, nas quais se inserem ou se deixam depreen-
der também as direções que toma sua obra poética e que já se en-
contram em Alcools:
Mas a realidade nunca será descoberta definitivamente. A ver-
dade será sempre nova.
Caso contrário, ela será apenas um sistema mais miserável que a
natureza. (I) (1980, p.57)
1
Esses [novos] pintores, se observam ainda a natureza,o a imi-
tam mais e evitam cuidadosamente a representação de cenas naturais
observadas e reconstituídas pelo estudo. (II) (p.58)
Os grandes poetas e os grandes artistasm por função social re-
novar incessantemente a aparência de que se reveste a natureza aos
olhos dos homens.
Sem os poetas, sem os artistas os homens se entediariam depres-
sa da monotonia natural. A idéia sublime que elesm do universo
sofreria nova queda com uma velocidade vertiginosa. A ordem que
aparece na natureza e que é somente efeito da arte logo desaparece-
ria. Tudo se decomporia no caos.o haveria mais estações, civiliza-
ção, pensamento, humanidade,o haveria mais vida, até, e a impo-
tente obscuridade reinaria para sempre. (V) (p.63)
O que diferencia o cubismo da antiga pintura é o fato de que ele
o é uma arte de imitação, mas sim uma arte de concepção que ten-
de a elevar-se até a criação. (VII) (p.67)
Nesses fragmentos podemos depreender aquela posição to-
mada pela modernidade, desde Baudelaire, de se afastar da repre-
sentação da realidade, da imitação da natureza, em busca agora do
novo, em todas as suas possibilidades, de uma "natureza superior",
de uma nova maneira de agradar.
Em "Sur la poétique de 1'esprit nouveau", Jean Burgos fala
justamente dessa desconfiança da realidade primeira dos seres e
das coisas, que se encontra no poeta desde os primeiros poemas e
os mais antigos textos de Les peintres cubistes até "La jolie rous-
se", queo lhe permite instalar-se em parte alguma e o leva, di-
ríamos, a sempre buscar o "novo". Dessa forma, para Apollinaire,
o estatuto do artista se define por um desentendimento, causado
por esse olhar fixado em uma verdade que se desfaz e se refaz suces-
sivamente, o que, lembraríamos, nos remete sem dúvida a Baudelai-
re e ao olhar que o poeta lança ao mundo. No entanto, como bem
1 A tradução das citações é de minha autoria.
observa Burgos, em Apollinaire existe sempre essa superioridade do
ato criador sobre o resultado da criação, a obra acabada, coisa que
interessará, aliás, os anos vindouros. O poder e a razão de ser da
criação derivam, justamente, dessa negação de um valor absoluto.
A outra categoria de escritos que se encontra em Les peintres
cubistes é consagrada a alguns pintores contemporâneos: Picasso,
Braque, Metzinger, Gleizes, Marie Laurencin, Juan Gris, Fernand
Léger, Picabia, Marcel Duchamp, Duchamp-Villon. É falando de
Picasso que encontramos ainda outros fragmentos queo com-
pondo suas reflexões sobre a estética e sua própria poesia. Neste
que segue, ele fala do poeta/artista inspirado e do artesão:
Há poetas aos quais uma musa dita as obras. Há artistas cuja
o é dirigida por um ser desconhecido que se serve deles como de
um instrumento. Para eles,o há cansaço, poiso trabalham e po-
dem produzir muito, a qualquer hora, todos os dias, em todos os paí-
ses e em todas as estações;oo homens e sim instrumentos poéti-
cos ou artísticos. Sua razãoo tem forças contra eles próprios, eles
o lutam e suas obrasom vestígios de luta.oo divinos e
podem dispensar-se a si mesmos.o o prolongamento da natureza e
suas obraso passam pela inteligência. Podem ser emocionantes
sem que as harmonias que suscitam sejam humanizadas. Outros poe-
tas, outros artistas, ao contrário, existem que se esforçam; eleso
em direção à natureza eom com ela nenhuma proximidade ime-
diata, devem tudo tirar de si próprios e nenhum demônio, musa algu-
ma os inspira. Moram na solidão e nada se exprime senão aquilo que
eles mesmos tenham balbuciado, e balbuciado com tanta freqüência
que chegam às vezes de esforços em esforços, de tentativas em tenta-
tivas a formular o que desejavam formular. Homens criados à ima-
gem de Deus, eles descansarão um dia para admirar sua obra...
Picasso era um artista como os primeiros. Nunca houve espetá-
culoo fantástico quanto essa metamorfose que ele sofreu tornan-
do-se um artista como os segundos, (p.77-8)
Podemos reconhecer aqui, novamente, além dos conceitos de
poeta-inspirado e de poeta-artesão, a teoria baudelairianao am-
plamente expressa em "O pintor da vida moderna", quando recusa
a idéia romântica do "gênio natural" e enfatiza o elemento conscien-
te e voluntário do processo de criação artística (um processo intelec-
tual), fazendo que a "inspiração" se converta em uma questão de
método e vontade: "Tudo o que é belo e nobre é resultado da ra-
o e do pensamento". E é novamente Baudelaire que transparece
nesse comentário sobre a arte de Picasso:
A grande revolução das artes, que ele levou a cabo praticamente
sozinho, é que o inundo é sua nova representação.
...
Novo homem, o mundo é sua nova representação. Ele enumera
seus elementos, os detalhes, com uma brutalidade que sabe também
ser graciosa. É um recém-nascido quee ordem no universo para
seu uso pessoal, e também a fim de facilitar suas relações com seus se-
melhantes. (p.79)
De fato, Breunig & Chevalier apontam a carta que Apollinaire
escreveu ao amigo André Billy, datada de 13 de setembro, onde
conta que experimenta
há algum tempo temas novos e muito diferentes daqueles sobre os
quais você me viu até agora entrelaçar rimas. Creio haver encontra-
do nos prospectos uma fonte de inspiração ... [e nos] catálogos, nos
cartazes, nos reclames de toda espécie. Acredite-me, a poesia de
nossa época está inserida neles. Eu a farei sair. (Les soirées de Paris,
out. 1912) (p.135)
Os textos de Les peintres cubistes que foram destacados contêm
comentários esclarecedores sobre a nova arte da época e, ao mesmo
tempo, nos fazem pensar na própria poesia que Apollinaire está es-
crevendo então. Ele sugere nesses escritos a renovação constante da
arte, procurando sem dúvida mostrar, lembram Breunig e Cheva-
lier, que pintores e poetas estavam intimamente unidos na revolu-
ção das artes, que passava "da divina facilidade inspirada pela musa
ou pelo demônio, ao laborioso tormento daqueles que, de esforço
em esforço,m formular 'um universo criado na sua totalidade"'.
Para Apollinaire, portanto, os caminhos seguidos por pintores e
poetas podem ser paralelos, derivar de uma estética comum.
Assim, há uma retomada de conceitos que remontam a Baude-
laire, numa tentativa de estabelecer uma poética do fazer criador,
e de liberar e organizar progressivamente forças eventuais capazes
de elaborar uma nova realidade. Ora, observa Jean Burgos, é evi-
dente que toda poética, "quaisquer que sejam seu objeto e a época
em que ela se situa, implica busca e descoberta de um espírito no-
vo". Para os movimentos de vanguarda do início do século, colo-
ca-se a necessidade de, utilizando as próprias forças do mundo,
romper com essa realidade já conhecida e, por isso mesmo, tran-
qüilizadora, para tentar reencontrar uma outra realidade mais no-
va, mais verdadeira, e plena, ainda, de todas suas virtualidades. E
esta será uma experiência de criação só realizada pela escritura e
na escritura, sobretudo em razão da experiência de uma nova rela-
ção que se estabelece no discurso poético entre espaço e tempo.
A observação de Raynal sobre os procedimentos empregados
por Apollinaire na sua prosa poética sobre a arte explica-se, sem
dúvida, pelo fato de se encontrar igualmente nos poemas desse poe-
ta o procedimento de justaposições inesperadas, de contrastes en-
tre blocos inteiros de parágrafos que foram escritos, além disso,
em épocas diferentes. Todos reconhecemos aí a técnica utilizada
em muitas composições de Alcools e de Calligrammes, com a fina-
lidade de construir uma nova poética na qual desloca elementos
para estabelecer outro equilíbrio, provoca quebras violentas para
inovar verdadeiramente. Lembrando o que ele disse sobre Picasso,
o artista observa maso imita mais a natureza; abandona o assun-
to; sacrifica o verossímil; faz a dissecação, a transformação, a re-
construção do real. Em 1906, retomando as idéias de Baudelaire,
ele dirá que é a favor de uma arte de fantasia, de sentimentos e de
pensamentos,o distante quanto possível da natureza com a qual
elao deve ter nada em comum. Essa proximidade da estética bau-
delairiana leva-o a liberar a imaginação, "fonte de inesgotáveis sur-
presas", recorrendo às aproximações mais imprevistas, o que
constituirá a mola da poesia nova. Empregando essas técnicas, ele
pretende fazer na obra e pela escritura, servindo-se de uma nova
percepção do tempo e do espaço, uma experiência de criação
completa.
Ler Apollinaire, crítico de arte ou poeta, obriga-nos, portan-
to, a atentar para o ponto essencial da poética do Esprit nouveau, a
o negligenciar a necessidade de destruição presa à criação, dan-
do-lhe relevo e distância.
Guacira Marcondes Machado
APRESENTAÇÃO
Este livro é uma versão revisada da tese de doutoramento de-
fendida na Faculdade de Ciências e Letras da UNESP, Campus de
Araraquara, em dezembro de 1999. Fruto de uma pesquisa inicial-
mente dedicada apenas a alguns poemas do poeta francês Guillau-
me Apollinaire, teve seu corpus ampliado à medida que a presença
da fábula se delineava e se expandia a cada nova leitura. Sua imbri-
cação na lírica do poeta - e vice-versa - foi se tornando cada vez
mais evidente. Assim, pôde-se observar que esse fenômeno atra-
vessa praticamente toda a obra poética do autor de Alcools.
Guillaume Apollinaire é um marco para a poesia do século
XX, eo só para a francesa. Na esteira de Charles Baudelaire,
exerceu a modernidade na literatura, foi mentor dos movimentos
de vanguarda e criador da palavra surréalisme. Atento às rápidas
mudanças que o novo ritmo de vida do início do século XX impin-
gia, soube captá-las e transpô-las para sua obra, sem deixar de lado
suas raízes simbolistas.
Leitura certa dos modernistas brasileiros, Apollinaire foi e é
igualmente importante para os poetas do Hemisfério Sul e, nos
meios acadêmicos, fundamental para a compreensão da literatura
dos séculos passado e atual.
Gostaria de expressar meus agradecimentos a Guacira Mar-
condes Machado, pela orientação segura e competente da primei-
ra versão deste trabalho, pelas sugestões feitas a esta versão e,
principalmente, por ter-me ensinado sempre, para além da matéria
acadêmica, que a melhor lição é a generosidade. E, em especial, meu
profundo reconhecimento a Orlando, presença constante, meu pri-
meiro e mais paciente leitor, por tudo, sempre.
INTRODUÇÃO
Ton père fut un sphinx et ta mère une nuit
Guglielmo Alberto Dulcigny, Guillaume Albert Vladimir Ale-
xandre Apollinaire de Kostrowitzky, Wilhelm, Guillaume Maca-
brc, Nyctor, Louise Lalanne, Pascal Hédégat, Merlim, o eremita, o
poeta assassinado, o ladrão, o encantador apodrecido, o espreita-
dor melancólico, o combatente de guerra, o romano, o francês, o
parisiense, o pintor, Orfeu, o rei Artur, o bancário, o preceptor, o
emigrante, o prisioneiro, o apaixonado, o viajante, o saltimbanco,
o polvo, o mal-amado, o poeta, Guillaume Apollinaire, Apolli-
naire... Vários em um, um em todos, congregando-se em um es-
paço Concomitantemente real e imaginário... O fato de renomear-
se, faceta marcante no poeta, indicaria o impulso permanente de
recriar-se, de recusar assim suas origens, misteriosas no que con-
cerne ao lado paterno. Sua própria vida e seu pseudônimo já seriam,
por assim dizer, uma ficção. Nessa flutuação de suas origens e de
seu nome oficial, Apollinaire entrega-se à saga de criar novos no-
mes e diversos personagens que refletem aspectos vários de sua per-
sonalidade e de acontecimentos marcantes de sua vida. Ao afrance-
sar seus nome e sobrenome, além de homenagear a pátria que
escolheu, aproxima-se da figura mitológica de Apoio, o deus-sol, o
deus da poesia. É sob as luzes desse deus que Apollinaire vai escrever
sua obra, incorporando o caráter imortal e profético de Apoio. É
desse modo que a fábula começa a entrar em sua vida e a estender-
se por sua obra.
Em 26 de agosto (mais tarde, registrado pelae como 25,
que pode ser a data mais exata) de 1880, Guillaume Apollinaire
nasce em Roma, onde vive até 1887, de pai desconhecido (prova-
velmente Francesco Flugi d'Aspermont) c dee polonesa, que só
o reconhece meses depois.
Em razão da vida desregrada da mãe, Apollinaire vive em vários
lugares diferentes, como Mônaco, Stavelot (na Bélgica), Lyon,
Aix-les-Bains, Paris, cidades que, mais tarde, lhe renderão muitos
versos. Em 1897, abandona seus estudos e, em Mônaco, freqüenta
bibliotecas, lê muito, sobretudo poesia contemporânea, e tenta
traduzir Boccaccio. Em Stavelot, onde passa os meses de julho a
outubro de 1900, conhece suas primeiras decepções amorosas por
causa de Marie Dubois, a Mareje de seus futuros poemas.
Nesse mesmo ano, volta a Paris com seu irmão e freqüenta a
Bibliothèque Mazarin, onde estuda a literatura medieval. Em
1901, publica alguns poemas e assume seu pseudônimo Guillaume
Apollinaire.
Parte para a Alemanha, onde dá aulas de francês para sobrevi-
ver a um período de miséria. É lá que conhece a outra preceptora
da casa onde trabalha, a jovem inglesa Annie Playden. Tanto a pai-
sagem e as sensações suscitadas durante o ano que passou na Renâ-
nia quanto sua desenfreada paixão por Annie serão motivos de poe-
mas que escreverá mais tarde, mas já então esboçados.
Em 1902, ainda, durante os meses de fevereiro a maio, faz
uma viagem pela Alemanha e pela Europa Central, cujas impres-
sões serão transportadas mais tarde para seus contos, crônicas e
poemas. Em 1903, segue para Londres em busca de Annie Playden
por quem se apaixonara. A jovem, que já o rejeitara, parte definiti-
vamente para os Estados Unidos.
Em 1904, publica alguns poemas que constarão de Alcools,
coletânea publicada dez anos mais tarde. É quando conhece Picas-
so, Max Jacob, Derain e Vlaminck, que o farão interessar-se pela
pintura moderna e, mais tarde, escrever textos críticos sobre o as-
sunto. As técnicas por eles utilizadas vão-lhe inspirar novos e revo-
lucionários procedimentos poéticos.
Em 1907, Apollinaire encontra, por meio de Picasso, a jovem
pintora Marie Laurencin, por quem se apaixona, iniciando um
conturbado relacionamento que durará alguns anos, até 1912.
Essa paixão irá inspirar-lhe muitos poemas líricos, como "Marie"
e "Le pont Mirabeau". O ano de 1907 é muito significativo para
Apollinaire, pois quando depara com o quadro de Picasso, Les de-
moiselles d'Avignon, a surpresa suscitada pela tela vai servir-lhe de
inspiração para inovar a lírica do início do século: o poema que
inaugura Alcools, "Zone", foi sugerido pelo quadro do pintor es-
panhol. Encantado com a nova tendência da pintura de Picasso,
escreve no seu diário: "Admirável linguagem que nenhuma litera-
tura pode indicar, pois nossas palavraso feitas antecipadamente.
Pobre de mim!" (apud Burgos et al., 1998, p.134).
Publica muitos poemas em diversos periódicos, ainda com
pontuação. Faz conferências, escreve sobre Matisse, sobre seus
amigos poetas e também para catálogos de exposições. O Douanier
Rousseau faz o quadro La muse inspirant le poète, que retrata Apol-
linaire e Marie Laurencin. Publica o conto L'enchanteur pourris-
sant, em edição de cem exemplares.
O próprio poeta diz que seu poema "Les fiançailles", publica-
do em 1908, tem "um lirismo novo e humanista ao mesmo tem-
po". Em 1908, Marinetti já chama a atenção de Apollinaire, que
faz conferências sobre a continuidade entre o simbolismo e a nova
poesia.
Em 1910, continua a publicar textos de autores de literatura
erótica, como Aretino, Baffo, Mirabeau etc, com introdução, no-
tas e ensaios bibliográficos de sua autoria. Essas obras serão publica-
das postumamente sob a designação genérica de Les diables amou-
reux. Começa a divulgar a palavra cubismo. Conhece Chagall.
O ano de 1911 também é marcante na vida de Apollinaire, pois
publica o Bestiaire e, injustamente, é acusado do roubo da Mona Li-
sa, desaparecida do Louvre, e fica preso por seis dias, de 7 a 13 de
setembro, fato que iria traumatizá-lo sobremaneira e ser o mote de
um conjunto de poemas, denominado A la Santé, nome da prisão
onde ficou. Após a manchete publicada nos principais jornais -
"O polonês Kostrowitzky encabeça uma grande quadrilha interna-
cional de ladrões de obras de arte" -, vê-se alvo de uma campanha
anti-semita e teme ser expulso da França, apesar dos protestos de
seus amigos.
Um pouco mais tarde, começa a publicar alguns poemas sem
pontuação na revista recém-fundada Les Soirées de Paris e prepara
Eau-de-vie, que receberá o nome definitivo e inovador de Alcools.
Em 1913, Apollinaire trabalha incansavelmente em diversas
frentes: publica seus célebres textos sobre a pintura cubista; é tam-
m o ano de publicação de Alcools, com 1.200 exemplares, bem
como do manifesto L'antitradition futuriste. Demonstrando vivo
interesse pela tecnologia do início do século, faz uma gravação da
sua própria voz lendo três dos poemas de Alcools: "Le pont Mira-
beau", "Le voyageur" e "Marie".
Em 1914, ano dos primeiros "ideogramas líricos", Apollinaire
pede para ser aceito no exército francês e é incorporado ao regi-
mento de artilharia de Nîmes. Em 1916, em pleno front, toma co-
nhecimento do decreto de sua naturalização francesa. Em 17 de
março, é ferido na cabeça por um obus, sendo por isso submetido
a uma trepanação.
No ano seguinte, Apollinaire continua a publicar seus poemas
em várias revistas. Por essa ocasião, emprega o termo surréalisme
pela primeira vez. Sua peça Les mamelles de Tirésias é encenada e,
em 26 de novembro, profere a conferência L'esprit nouveau et les
poètes, no Vieux Colombier.
Sofre uma congestão pulmonar no início de 1918. Em março,
publica os Calligrammes na revista Mercure de France. Trabalha
como jornalista em várias revistas e, em maio, casa-se com Jacque-
line Kolb. Com a saúde já combalida desde o acidente de guerra, é
atingido pela gripe espanhola, vindo a falecer em 9 de novembro
desse mesmo ano.
Longe do propósito de uma leitura impressionista, os aconte-
cimentos da vida de Guillaume Apollinaireo importantes para a
abordagem de sua obra: muitos dos episódios de sua vida deram
origem a poemas, contos e peças, sobretudo aqueles que dizem
respeito à conturbada vida amorosa do poeta. Portanto, procu-
rou-se pontuar os eventos mais significativos para que se possam
entender as ligações feitas aqui. Sua biografia poderia ter sido ini-
ciada pelo ano de 1907, ocasião em que Apollinaire viu, pela pri-
meira vez, o quadro de Picasso, que revolucionou a pintura. O
choque que o poeta sentiu ao deparar com a tela deu origem ao
poema que abre a coletânea Alcools, "Zone", no qual ele ensaia
também o que considerou alguns procedimentos cubistas. Apolli-
naire pôde provar o gosto da surpresa que prega em sua famosa
conferência L'esprit nouveau et les poètes, proferida anos depois.
O roubo da Mona Lisa desencadeia em Apollinaire sentimen-
tos contraditórios, ainda que metaforicamente, em relação à tradi-
ção e à vanguarda; porém, o poeta saberá trabalhar com as duas
Concomitantemente. Por um lado, Apollinaire, ainda preso ao
simbolismo, tem composições de caráter abertamente simbolista,
com versos metrificados e pontuação. Faz uso de mitos e lendas
antigas, cria novas, torna-se personagem múltiplo e constante de si
mesmo, herança romântica do poeta que tudo vê e que tudo pode,
que tem o dom da ubiqüidade e é um vidente.
O contato permanente com os pintores cubistas e com jovens
poetas que almejavam uma nova expressão poética dirige-o, entre-
tanto, para os movimentos de vanguarda, dos quais foi mentor,
como o futurismo e mesmo o cubismo. Ao criar a palavra surréalis-
me, estende sua faceta inovadora para além de sua morte. Além
disso, a paisagem vertiginosamente mutante do início do século, o
desenvolvimento da tecnologia e das ciências, a velocidade empre-
endida pelo trem, ditam o novo ritmo das cidades. Esse desenvol-
vimento "de objetos" marca presença constante na obra de Apolli-
naire e prova que ele é um autor voltado para sua época, sem se
desprender do passado. O verso que inicia "Zone" - "A la fin tu es
las de ce monde ancien" - é prova disso. Porém, o poetao tem
uma atitude radical em relação ao passado, nem quer queimar bi-
bliotecas e execrar autores de outros séculos, como prega Mari-
netti, o mentor do futurismo. Se há uma palavra para qualificar
sua obra, esta seria equilíbrio.
A abordagem do tema que aqui é proposta estende-se por qua-
tro capítulos. Em um primeiro momento, "Que fábula?" procura
esclarecer o que se entende por fábula, seu teor, e em que sentido
ela aparece na obra poética de Apollinaire. Em seguida, "Incursões
de Apollinaire no domínio da(s) fábula(s)" analisa poemas em que
essas manifestações fabulares aparecem, sobretudo no que tange
ao conjunto de poemas neo-simbolistas, em suas diversas facetas.
O terceiro capítulo, "Rito de passagem e fusão: fabulírica",
detém-se na passagem da fábula à lírica. O quarto e último capítu-
lo, "Um poeta a serviço da lírica moderna", faz inicialmente uma
retrospectiva da lírica moderna, para perceber de que maneira
Apollinaire foi influenciado por autores como Baudelaire e Rim-
baud, e chegou a inovar a lírica do século XX, tanto por meio das
vanguardas quanto de novos experimentos poéticos. Na seqüên-
cia, faz-se a leitura de alguns poemas que demonstram essa evolu-
ção e, acima de tudo, mostram que, apesar de serem diferentes dos
poemas essencialmente narrativos, isto é, dos poemas essencial-
mente fabulares abordados nos capítulos anteriores,m relações
intrínsecas com a fábula. Percebe-se, então, que a lírica apollinairia-
na está sempre impregnada de fábula, e que há nela uma imbrica-
ção constante desses dois aspectos.
Emborao se pretenda fazer exclusivamente um estudo de
Alcools, essa obra é aquela a que mais se recorrerá, pois ecoa c re-
sume todas as linhas poéticas que Apollinaire traçou e fielmente
seguiu. Trata-se também de sua obra mais significativa, mais re-
presentativa em relação ao conjunto de seus escritos. É com a pu-
blicação dessa coletânea que o poeta inova a lírica, abole a pontua-
ção, exercita o verso livre, chama a atenção para a modernidade
do início do século, que tem como personagem principal as cida-
des, espaço privilegiado das inovações do período. É nela que as
relações entre diferentes domínios artísticos, como a pintura e a li-
teratura, começam a germinar. Essas relaçõeso concretizadas
nos Calligrammes, em que Apollinaire exprime o desejo de unir a
forma pictórica à expressão verbal.
Lampejos de modernidade, tais como o jogo pronominal que
confunde e surpreende o leitor, e também a narração movida pelo
fluxo da consciência,o experimentados em Alcools. Os precei-
tos cantados pelas vanguardas e resumidos na conferência L'esprit
nouveau et les poètes já aparecem na coletânea. Diante disso, reco-
nhece-se a importância dos poemas que a compõem para a história
da lírica moderna e para a própria evolução do poeta.
Os Calligrammeso igualmente abordados, porém com me-
nor destaque, também para demonstrar a relação intrínseca que há
entre a fábula e a lírica na obra apollinairiana. Essa imbricação re-
sulta em um novo lirismo muito particular. Grosso modo, Alcools
e Calligrammes representam, respectivamente, a tradição e a in-
venção na obra de Apollinaire.
Nota-se que a repetição de temas, o compromisso estético,
cultural e ideológico mantêm-se voltados para a escritura de uma
poesia que Apollinaire tenciona ser eterna, e que, apesar de evi-
dências superficiais,o se ateve a contradições e a posições opor-
tunistas e momentâneas que resvalariam em ligações com esta ou
aquela tendência.
Sua figura e seu comportamento diante da literatura lembram
o deus Jano, de duas faces, uma voltada para o futuro, e a outra pa-
ra o passado. O poeta, sem perder contato com os antepassados,
vislumbra o futuro, a partir de seu presente. Soube, desse modo,
conduzir e enriquecer a lírica do início do século XX, apoiando-se
na literatura do século anterior.
I QUE FÁBULA?
J'ai eu le courage de regarder en arrière
Tomem-se algumas definições de fábula nos muitos textos
teóricos e afins que se apresentam ao estudioso da literatura: a de
Aristóteles, a dos formalistas russos e, mais recentemente, a de Ma-
deleine Boisson, teórica e estudiosa dos mitos de Apollinaire.
É bem verdade que o conceito de fábula, o de mito e até o de
poesia confundem-se em Aristóteles. Aqui, considera-se fábula no
sentido aristotélico partindo de duas vertentes: do mito e da fábu-
la propriamente dita, ou seja, da fábula tradicional, moralizante,
como as de Esopo, por exemplo. Diz Eudoro de Sousa, em sua in-
trodução à tradução que fez do livro de Aristóteles, que no texto
grego da Poética
figura um só vocábulo para designar a ação a imitar e a ação imitati-
va: é a palavra "mitos", que vamos agora traduzir, na primeira acep-
ção, por "mito", e na segunda, por "fábula". O mito (tradicional)
seria, portanto, a matéria-prima que o poeta transformará em fábu-
la (trágica), elaborando-a conformemente às leis de verossimilhança
e necessidade. Por conseqüência, o mito pertenceria à história, e a
fábula à poesia, que é "coisa mais filosófica do que a história" (c.
IX). (Aristóteles, 1994, p.87)
Além disso, em outro ponto do seu tratado, o próprio Aristó-
teles (1994, p.122) afirma que "os mitos tradicionaiso devem
ser alterados ... Contudo, o poeta deve achar e usar artisticamente
os dados da tradição". Na Retórica, Aristóteles considera a fábula
um expediente de persuasão: o orador introduziria em seu discur-
so uma fábula com animais servindo de personagens, para ilus-
trar e convencer seus ouvintes do que está dizendo (Cf. Dezotti,
1988, p.8-11).
Tome-se agora a definição de Caldas Aulete (1964, v.2,
p. 1694), no seu Dicionário contemporâneo da língua portuguesa:
Fábula, s. f. narração de sucessos fingidos, inventados para instruir
ou divertir; conto imaginário; ficção artificiosa ... Pequena compo-
sição de forma poética ou prosaica em que se narra um fato alegóri-
co, cuja verdade moral se esconde sob ou da ficção, e na qual se
fazem intervir as pessoas, os animais irracionais personificados e até
as coisas inanimadas; apólogo: as fábulas de Esopo, de La Fontaine
...// A história dos deuses e outras personagens do paganismo, a his-
tória do politeísmo ou a teologia dos pagãos, a mitologia: Os deuses
da fábula. // Qualquer conto ou narrativa com caráter mitológico.//
Alegoria. // O conjunto de ficções ou peripécias que entram no poe-
ma épico, no romance e mesmo no drama, com o fim de os ampliar
e ornar, de modo que a ação épica ou dramáticao se apresenta
como aconteceu realmente, mas como poderia ou deveria aconte-
cer. // Os fatos e sucessos verdadeiros ou fingidos que servem de
base à ação de um drama, romance ou epopéia ... // Mentira, sucesso
inventado, conto mentiroso...
O dicionário de língua francesa Le petit Robert traz também
várias acepções:
Récit à base d'imagination (populaire ou artistique) ... V. Conte, fic-
tion, légende ... La Fable: 1'ensemble des récits mythologiques ... Petit
récit en vers ou en prose, destiné à illustrer un precepte. ... "La Fable
est un genre naturel, une forme d'invention inhérente à 1'esprit de
1'homme, et elle se retrouve en tous lieux et en tous pays" (Ste-Beu-
ve). I ... Ce qui constitue l'élément narratif d'une ceuvre. (Robert,
1991,p.745)
Morten Nöjgaard, no primeiro tomo de seu livro La fable an-
tique (1964), traça um interessante histórico das várias aborda-
gens teóricas dedicadas à fábula (além de aproximá-la da alegoria,
da anedota, e até do conto maravilhoso). O que se pode perceber,
com base nas considerações do estudioso norueguês, é que cada
teórico por ele abordado valorizou um aspecto específico da fábu-
la, como a moral, a presença de animais humanizados, seu uso pa-
ra persuadir o leitor/ouvinte, seu aspecto narrativo, ou mesmo seu
caráter fictício. O autor passa por Aristóteles, Aphthonios, Les-
sing, Grimm, Wienert e Perry, entre outros.
A preocupação com a fábula aparece também na teoria dos
formalistas russos. Eikhembaum, Chklovski, Tynianov e sobretu-
do Tomachevski detiveram-se sobre a problemática da fábula, in-
crementando-a com a teoria dos motivos. Porém, a fábula sempre
aparece relacionada à prosa, e nunca à poesia. Chklovski, citado
por Eikhembaum, considera que existe uma confusão habitual da
noção de trama (sujet) com a descrição dos acontecimentos, o que
ele passa a chamar convencionalmente de fábula, que é apenas um
material que serve para a constituição da trama (Cf. Todorov,
1965, p.54). Já para Tynianov, a fábula pode ser tão-somente uma
motivação do estilo, ou um procedimento para expor um certo
material (ibidem, p. 126). Enfim, para Tomachevski, a fábula seria
o conjunto de acontecimentos ligados entre si queo comunica-
dos ao leitor por uma obra. A fábula poderia ser exposta de modo
pragmático, segundo a ordem natural, ou seja, a ordem cronológi-
ca e causai dos fatos, independentemente da maneira como foram
dispostos e introduzidos na obra. A fábula é o contrário da trama,
que, constituída também pelos mesmos acontecimentos, respeita a
ordem em que aparecem na obra e a seqüência de informações que
a designa (ibidem, p.268).
Em nota, Tomachevski acrescenta que a fábula é, em essência,
aquilo que efetivamente aconteceu; já a trama é o modo como o
leitor toma conhecimento da fábula. Edward Lopes, em seu livro
intitulado A identidade e a diferença, procura sintetizar as defini-
ções, traçando linhas de entendimento para a teoria dos formalis-
tas russos. Assim, para contornar um problema de tradução, diz ele:
Ainda que a tradução dos termos de que se serviam [os formalis-
tas], em russo, seja freqüentemente discordante e nas diversas línguas
em que suas obras se verteram, no Ocidente, optamos por reter, aqui,
as seguintes traduções:
a. Fábula ou história (fr. fable) é o que aconteceu, o que é narrado -
o conjunto de eventos supostamente acontecidos, narrados em sua
sucessão cronológica, sobre um eixo de causalidade, de tal modo
que cada evento de dado ponto vem a ser o efeito de um outro, ante-
cedente, e a causa de um terceiro, seu conseqüente, unificando-se
todos entre si com as etapas do princípio, meio e fim de uma mesma
história.
b. Trama (russo siujét, fr. sujet, ingl. p/or) é aquilo de que se fala ...
mas na acepção aqui, do modo pelo qual o leitor toma conhecimen-
to da história. Por trama concebemos, pois, os eventos tal qual sur-
gem para o leitor, tal como o leitor toma conhecimento deles, no
lugar da sua colocação no discurso, sem respeitar uma sucessão cro-
nológica estrita, mas incluindo, ao contrário, estratégias discursivas
de retrospecções e de prospecções; assim, alguma coisa que aconte-
ceu no passado pode ser narrada muito depois de outros aconteci-
mentos posteriores na história ...
Tanto a fábula quanto a trama se compõem dos mesmos ele-
mentos temáticos, como se. Sua única diferença consiste em que o
leitor entra em contato diretamente com a trama, mas da deve ir recons-
tituindo a ordem causai cronológica dos acontecimentos que inte-
gram a história. (Lopes, 1997, p.214-25)
Mais adiante, preocupado ainda com a distinção entre fábula
e trama, Lopes (1997, p.216) considera que o resumo que o leitor
faz da história, depois de ouvi-la ou lê-la, seguindo um eixo de cau-
salidade, é que constitui a fábula; glosando o pensamento formalis-
ta, conclui que "o leitor lê a trama - o como aconteceu - para com
ela reconstruir a fábula - do 'como' aconteceu extraindo 'o que'
aconteceu" (grifado no original).
Edward Lopes diz ainda que a fábula é a manifestação de um
tema geral, aquilo de que a obra fala na sua totalidade, e que lhe
confere uma unidade de sentido. Para a análise de uma narrativa,
os formalistas começavam por reduzir a trama (o que liam) à fábu-
la (o que entendiam) localizando,, o tema geral,
Feitas essas considerações, observa-se então que em todas as
definições de fábula aqui enumeradas ressalta-se seu aspecto nar-
rativo, ou seja, uma preocupação em contar uma história - o que,
por sua vez, é encontrado com freqüência na poesia lírica de Apol-
linaire. Nesse caso, as observações dos formalistas russos seriam
mais operacionalizáveis nesse momento porque, de uma certa for-
ma, resumem e ampliam as anteriores.
, efetivamente, uma estreita ligação entre a prosa e a poesia
de Apollinaire, o que pode inicialmente revelar certas relações en-
tre fábula e lírica. O poeta faz esse trânsito com muita desenvoltu-
ra, deixando transparecer uma naturalidade que passeia entre os
diversos gêneros cultivados por ele. Pode-se dizer que, para Apol-
linaire, o que interessa prioritariamente é a matéria que o mundo -
mítico, lírico, imaginário ou real - lhe oferece,o importando
em princípio a forma pela qual esse mundo será expresso no mo-
mento da criação, podendo ser prosa ou poesia, conto ou canção,
drama ou ensaio. Fatos de sua vida real, como sua injusta deten-
ção, seus amores infelizes, que lhe renderam ciclos poéticos, o ca-
samento de um amigo, um passeio pelas ruas de Paris, ou lendas e
mitos alemães, conhecimentos adquiridos por meio de uma vivên-
cia em terras germânicas, ou fruto de abundantes e ecléticas leitu-
ras e estudos - recebem todos a mesma atenção por parte de seu
talento criador. O que realmente é relevante para ele é o fato (e a
quase necessidade) de contar e recontar as impressões captadas do
mundo que ali está, ou ainda daquele que é criado por ele.
Existe aí um caminho que leva à compreensão da presença da
fábula na obra do poeta francês: em um primeiro momento, ele
re-conta as tramas que leu e que imaginou. Seria essa a revelação
de parte de suas fontes criativas. O autor de Alcools recria e apro-
veita suas próprias criações, seus próprios versos. Em certos mo-
mentos, transfere versos inteiros ou até mesmo estrofes completas
de um para outro poema, nem sempre da mesma coletânea. O
mesmo acontece com personagens míticos ou lendários queo
revisitados de maneira e em gêneros diferentes, como Merlim, que
aparece no poema de Alcools, "Merlin et la vieille femme", "resga-
tado" do seu conto "L'enchanteur pourrissant", obra que é ao
mesmo tempo poema em prosa, narração alegórica, diálogo de tea-
tro e colagem, fonte de tudo o que Apollinaire escreveu depois, e
cuja primeira versão data de 1899. Pouco tempo depois, em 1906,
ao responder a uma questão da Revue Littéraire de Paris et de
Champagne - "Qual é, na sua opinião, a expressão mais justa das
aspirações literárias contemporâneas, e sob qual forma deve mani-
festar-se: verso livre ou clássico, poesia ou prosa, teatro, poema ou
romance?" -, Apollinaire afirma: "Verso livre e clássico, poesia e
prosa, teatro, poema e romance parecem-me formas igualmente
excelentes. Eu não acho que nenhuma delas seja sacrificada em be-
nefício das outras" (apud Décaudin, 1996, p.230- grifos nossos).
Grosso modo, aquele recontar seria uma das vertentes de sua
fábula, além daquela que diz respeito à fabulação, isto é, a fábula
como sinônimo de mentira, de invenção. O caráter fabular da líri-
ca de Apollinaire dá-se de duas maneiras distintas. Uma, mais evi-
dente, reside na prática do autor de inventar histórias, de apoiar-
se nelas como em fatos realmente verdadeiros e dar-lhes uma
seqüência imaginada - essa prática destaca nos poemas elementos
da narrativa, como a presença de personagens, da ação, de marcas
temporais e espaciais: seria o que acontece, por exemplo, em al-
guns poemas do ciclo renano, como "La synagogue" ou ainda
"Rhénane d'automne".
A outra forma sob a qual a fabulação aparece nos poemas de
Apollinaire seria a inserção de frases soltas, ou até mesmo de diá-
logos em meio aos versos, como ocorre em "Lundi rue Christine",
poema de Calligrammes, e "Les femmes", de Alcools, entre outros.
Ao verificarem-se as raízes da palavra fábula no latim, é possível
constatar que ela também está ligada à fala. Ora, o recurso à intro-
dução de frases ouvidas na rua e à reprodução de diálogos que se
misturam aos versos dos poemaso técnicas muito freqüentes em
Apollinaire. Ainda muito superficialmente, pode-se afirmar que a
fábula diz respeito ao conteúdo, e a lírica, à criação de sua obra
(correspondente da trama em prosa). Como poeta, ele recria suas
"histórias", recheia-as de lendas e mitos, recriando-os mais uma
vez, já que estes tambémo passam de histórias recontadas, em-
bora, em seu ponto de vista, sejam histórias que contam verdades,
que se valem dos mitos para ilustrar comportamentos do homem.
Jean-Yves Tadié, em Le récit poétique, faz uma espécie de clas-
sificação dos principais elementos que compõem a narrativa, e há
vários pontos de contato entre suas definições e a presença desses
mesmos elementos na obra poética de Apollinaire. O herói da nar-
rativa poética teria como função, nas palavras do teórico, integrar
o infinito sob a aparência finita do universo (Tadié, 1978, p.26),
criando mitos. É exatamente o que ocorre com o protagonista de
"Le larron", por exemplo, ou ainda com Merlim. Quanto ao espaço,
Tadié lembra que a narrativa poética elege seus lugares respeitan-
do a tradição do maravilhoso e do fantástico. O castelo seria um
desses espaços privilegiados, e Apollinaire serve-se dele em "Palais";
outro desses espaços, as ruas, é onde se desenvolve "Zone".
O tempo reproduz a estrutura do espaço, diz Tadié. O passa-
do é o tempo por excelência na narrativa poética, o mesmo acon-
tecendo com as narrativas de Apollinaire, nas quais, igualmente,
com freqüência, o tempo cronológico, histórico, é abolido, dando
lugar ao tempo interior, da memória, fragmentado. Além disso,
por meio dessa prática de recontar histórias, Apollinaire cultiva
também a intertextualidade, apropria-se de poemas, lendas, ver-
sos, e refaz seu percurso original, modificando-o, ampliando-o,
recriando-o.
Em carta a André Breton, datada de 14 de fevereiro de 1916,
Apollinaire reconhece a variedade e o "ecletismo" de suas leituras:
Na verdade, li com cuidado apenas livros especiais sobre todos
os assuntos, catálogos, jornais de medicina, livros de lingüística, os
contos de Perrault, gramáticas, viagens e poetas por fragmentos, mui-
tos contistas antigos por fragmentos ou inteiros, Villon, Racine, La
Fontaine e muitos autores célebres por fragmentos, os Robinsons
também, romances populares, Paul Féval, as epopéias americanas
(Buffalo Bill, Nick Carter) ...o lhe dou detalhes de todas as mi-
nhas leituras. As antologias das aulas desempenham aí um grande pa-
pel, e, em 1901, li muitos romances de cavalaria; enfim, percorri mui-
tos livros sotádicos, etc. etc, poesia, prosa, etc. etc, mas a leiturao
ocupa um espaço muito grande em minha vida, embora eu tenha li-
vros, mas os leio pouco, sobretudo novos livros. (Bonnet, 1964, p.22-3)
Michel Décaudin, no capítulo "Poésie livresque?" de seu en-
saio sobre Alcools, conclui que aquilo que se convencionou cha-
mar de erudição tornou-se, na obra de Apollinaire, um elemento
da sua sensibilidade e imaginação, e também do seu modo de co-
municação. As lembranças das leiturasoo um "peso morto",
um entrave à expressão artística; ao contrário,m a mesma im-
portância, para o poeta, da experiência vivida - são, na verdade,
mais uma experiência que se soma às outras. Em essência, pode-se
dizer que o visto e o lido se identificam no horizonte imaginário de
Apollinaire (Décaudin, 1993, p.120).
Esse horizonte imaginário seria uma das fontes da intertextua-
lidade que pontua a obra de Apollinaire. Tanto a Renascença como
o período das vanguardas foram momentos-chave para a prática da
intertextualidade literária, e o autor de Alcools, imbuído desse es-
pírito, soube trabalhar bastante essa faceta em seus poemas.
Em Apollinaire et les mythologies antiques, Madeleine Bois-
son (1989, p.55) observa que "o mito reveste a verdade, ou me-
lhor, ele é a verdade". Para melhor compreender essa afirmação,
deve-se notar que Apollinaire emprega fábula referindo-se a mito,
sendo praticamente sinônimos em sua acepção. Desse modo, em
sua conferência L'esprit nouveau et les poètes, Apollinaire (1991,
p.950) reforça a idéia de fábula/mito e verdade, deixando clara
sua posição:
Pode-se igualmente exprimir uma suposta verdade que causa
surpresa, porque aindao se ousara apresentá-la. Mas uma supos-
ta verdadeo tem contra ela o bom senso, sem o qualo seria
mais a verdade, mesmo suposta. É assim que, se eu imaginasse que
as mulhereso fizessem filhos, os homens poderiam fazê-los e
mostro isso [aqui, Apollinaire refere-se à sua peça de teatro Les ma-
melles de Tirésias], exprimo uma verdade literária que só poderá ser
qualificada de fábula fora da literatura, e determino a surpresa. Mas
minha suposta verdadeo é mais extraordinária, nem mais inve-
rossímil que a dos gregos, que mostravam Minerva saindo armada
da cabeça de Júpiter.
Quando os aviões aindao povoavam o céu, a fábula de Ícaro
era apenas uma suposta verdade. Hoje,o é mais uma fábula. E nos-
sos inventores acostumaram-nos a prodígios maiores do que aquele
que consistiria em delegar aos homens a função de fazer filhos que as
mulheres têm. Eu diria mais, as fábulas, ao realizarem-se em sua maior
parte e até mais, obrigam o poeta a imaginá-las, novas, para que os in-
ventores possam, por sua vez, realizá-las.
Caberia retomar aqui a definição aristotélica de mito para no-
tar os pontos de contato entre ela e a posição de Apollinaire a esse
respeito. Diz Aristóteles que o mito é a matéria-prima do poeta e
deve ser usado artisticamente por ele, "elaborado conformementc
às leis da verossimilhança e necessidade"; ou seja, mito é fábula, e
deve ser transformado em trama pelo artista. Assim, para Aristóte-
les e para Apollinaire, os mitos nada maiso do que verdades que
ainda estão por acontecer. O próprio poeta cita o mito de Ícaro e
sua relação com a invenção do avião por mais de uma vez nessa
mesma conferência. Para ele, "poesia e criaçãoo apenas uma mes-
ma coisa; só se deve chamar poeta aquele que inventa, aquele que
cria, na medida em que o homem pode criar" (ibidem, p.950).
Também para Aristóteles (1994, p. 106-7), a origem da poesia é
fruto de criação natural, inerente ao homem artista:
O imitar é congênito no homem...
Sendo, pois, a imitação própria da nossa natureza (e a harmonia
e o ritmo, porque é evidente que os metroso parte do ritmo), os
que ao princípio foram mais naturalmente propensos para tais coi-
sas, pouco a pouco, deram origem à poesia, procedendo desde os
mais toscos improvisos.
Então, neste momento, cabe perguntar: como Apollinaire re-
conta suas fábulas recheando-as com mitos? E evidente que o faz
aproveitando-se da lírica como seu instrumento de expressão, na
forma de poesia, e assim cumpre seu papel de poète-inventeur, já
que para ele os poetas modernos (sobretudo os franceses, fato que
ele faz questão de frisar na mesma conferência sobre o Esprit nou-
veau) são, ao mesmo tempo, criadores, inventores e profetas. Curio-
samente, as palavras mythe, légende, fableo aparecem em Alcools,
havendo apenas uma ocorrência de mythologies. Entretanto, é real-
mente numerosa a presença de personagens e nomes pertencentes
aos três grandes domínios do mundo mítico e lendário: o da mito-
logia grega e oriental, na qual o poeta vai buscar, por exemplo,
Afrodite, Ícaro, a esfinge, o centauro, a Fênix, Hermes, Pan, entre
outros; o da tradição bíblica e talmúdica: Adão, Babel, Simão Ma-
go, Jordão, Zamir, Judéia, Cristo, querubim; e o do universo me-
dieval, germano-celta e nórdico, do qual ele resgata Bacará, os elfos,
Lorelei, o unicórnio, Ofélia e, como já foi dito, o próprio Merlim.
Para Apollinaire, a fábula ora identifica-se com mitos, ora com
lendas, e até com experiências pessoais.
2 INCURSÕES DE APOLLINAIRE
NO DOMÍNIO DA(S) FÁBULA(S)
Moi qui sais des lais pour les reines
Les complaintes de mes années
Des hymnes d'esclave aux murènes
La romance du mal-aimé
Et des chansons pour les sirenes
Na condição de poeta moderno, Apollinaire tem sua obra
marcada por uma dualidade permanente: de um lado, a mistura de
gêneros, a inclusão de elementos da prosa na poesia; de outro, a
identificação simultânea com a herança simbolista e com as inova-
ções das vanguardas. Isso explicaria o fato de nele serem encontra-
dos os mitos tradicionais ao lado dos mitos do mundo moderno
atrelados às idéias de progresso e de simultaneidade quem pre-
sença marcante em sua poesia.
BESTIAIRE: SOB O SIGNO DE ORFEU
Je médite divinement
Et je souris des êtres que je n'ai pas créés
Bestiaire ou Cortège d'Orphée, primeira obra poética impor-
tante de Apollinaire, teve seu projeto inicial esboçado em 1906,
no ateliê de Picasso, que, na ocasião, criava algumas gravuras de
animais em madeira. Em 15 de junho de 1908, alguns dos poemas
que comporiam a versão final do bestiário foram apresentados no
número 24 da revista La Phalange. Publicado integralmente pela
primeira vez em 1911, o livro foi ilustrado por Raoul Dufy, em um
esforço do poeta para conjugar imagem e texto, aspecto visual e
palavras, traço moderno que vem ao encontro de tantas edições
ilustradas de fábulas. Nas notas explicativas da obra, Adéma e-
caudin dizem que, nesse divertissement poético, realiza-se a união
da poesia, das artes plásticas e da música, união sempre muito pre-
conizada pelo poeta (apud Apollinaire, 1994a, p.1039).
Consta que os bestiários representam a tendência que a Idade
Média herdou das épocas anteriores para interpretar o mundo na-
tural como manifestação exterior de uma realidade superior e dis-
tinta, da qual a realidade real seria um simples epifenômeno (Lan-
ciani & Tavani, 1993, p.83). Assim, como na fábula, entendida na
sua acepção convencional, o conceito de moral ocupa também no
bestiário um espaço preponderante, já que a estrutura fundamen-
tal do bestiário medieval justapõe natureza, símbolo e alegoria:
começa com a descrição das características próprias dos diferentes
animais - sejam eles os mais cotidianamente "naturais" ou os mais
imaginosamente fantásticos, para depois passar à enumeração dos
valores morais que deles se possam deduzir, acabando por inscre-
ver a "moralidade" no seio de um discurso alegórico.
A estrutura do Bestiaire do autor de Alcools é composta de
trinta pequenos poemas, em que se observa o predomínio das qua-
dras (há apenas cinco poemas com mais do que quatro versos: três
o quintilhas e dois, sextilhas). Há quatro poemas dedicados a
Orfeu: o primeiro, o 13°, o 18° e o 24°. Entre eles, intercala-se
uma série de outros textos com títulos de nomes de animais, enci-
mados pelos desenhos de Dufy, remetendo o leitor visualmente a
uma das facetas do mito de Orfeu: o cantor, músico e poeta, que,
ao tocar a sua lira, era seguido pelas feras, que se inclinavam para
ouvir músicao suave.
Dos 26 poemas que compõem as seqüências referentes aos
animais, três incitam imediatamente o leitor a lê-los como peque-
nas fábulas. O oitavo, "Le lièvre", que vem entre "Le lion" e "Le
lapin", é assim apresentado:
Ne sois pas lascif et peureux
Comme le lièvre et 1'amoureux.
Mais que toujours ton cerveau soit
La hase pleine qui conçoit. (Apollinaire, 1994a, p.10)
Nesse caso, a moral vem em forma de conselho e concentra-se
nos primeiros versos, por meio de uma comparação. A rima peu-
reuxlamoureux é significativa, pois, na justaposição de um animal
- a lebre - e de um traço humano - a paixão -, é visível a intenção
do autor de mostrar que a lebre está "em vantagem" em relação ao
apaixonado: sua característica mais marcante é a lascívia, a sensua-
lidade, ligada certamente à facilidade de procriação dessa espécie
animal. Porém, o cérebro deve comportar-se como uma lebre que
concebe o tempo todo, que (pro)cria sem cessar. Contrapondo um
ne soit pas do primeiro verso a um soit do terceiro, Apollinaire fe-
cha questão em torno do ato criador, incentivando a ousadia em
lugar do medo.
A 14
a
quadra, "La chenille", constitui-se da seguinte forma:
Le travail mène à la richesse.
Pauvres poètes, travaillons!
La chenille en peinant sans cesse
Devient le riche papillon. (ibidem, p.16)
Aqui, a condição do criador, do poeta, é novamente referida.
O trabalho poético só se concretizaria depois que o poeta, como
"la chenille en peinant sans cesse", trabalhando e refletindo sobre
sua obra, chegasse à beleza e a um resultado satisfatório, ou seja,
"le riche papillon". No segundo verso, o próprio Apollinaire colo-
ca-se entre os "pobres poetas", ao usar a primeira pessoa do plural
para dirigir-se a eles. Mais uma vez, o animal serve de ponto de re-
ferência para uma atividade intelectual, isto é, humana. Novamen-
te, aparece o mesmo esquema: um "conselho", embutido nos dois
primeiros versos, e a referência explícita aos animais nos dois últi-
mos, funcionando como moral, mas fugindo da fórmula "a fábula
ensina" ou até mesmo da própria palavra moral, ou ainda do expe-
diente comum entre as fábulas tradicionais, a de destaque formal,
separando-a por um espaço em branco do resto do texto.
Pode-se considerar também o primeiro verso como um pro-
vérbio "burguês", que incita ao trabalho aqueles que querem al-
cançar a riqueza material e moral, já que "o trabalho enobrece o
homem". Porém, no segundo verso, revela-se a qual tipo de rique-
za o poeta se refere.o se trata de riqueza material, e sim do pro-
duto obtido pelo trato com as palavras. A beleza da descoberta des-
se resultado é então comparada ao surgimento da borboleta, que sai
de uma "casca" seca e aparentemente sem vida, durante a metamor-
fose, para finalmente mostrar sua beleza até desconcertante se com-
parada ao lugar de onde veio. Assim, o mesmo percurso se dá com
as palavras e com o poeta: o verdadeiro poema é oriundo de um
trabalho incessante; as palavras por si só seriam a lagarta, mas lapi-
dadas pela obra do poeta, tornam-se "palavras borboletas".
Em "Le paon", 27
a
quadra, Apollinaire trabalha com o animal
que, por excelência, representa um outro sentimento humano, a
vaidade:
En faisant la roue, cet oiseau,
Dont le pennage traîne à terre,
Apparaît encore plus beau,
Mais se découvre le derrière. (p.29)
Dessa forma, o poeta chama a atenção dos homens para o as-
pecto que a vaidade encobre, "le derrière". Por meio da figura do
pavão, lembra aos homens que tudo tem dois lados: ao levantar
sua rica plumagem, o pavão deixa descobertas outras partes de seu
corpooo belas assim. O mesmo ocorre com o homem vaido-
so, que alardeia aos quatro ventos suas qualidades, na tentativa de
encobrir presumíveis defeitos. A estrutura dessa quadra difere um
pouco das duas anteriores. Nela, Apollinaire limita-se a descrever
0 animal, certificando um fato concreto sem aparentemente com-
parar o animal ao homem ou mesmo dar-lhe um conselho ou ain-
da mostrar-lhe uma moral. Contudo, o último verso traz em si o
efeito surpresa do pequeno poema, fazendo que o leitor imediata-
mente remeta a situação ao contexto humanizado.
Ao lidar com sentimentos humanos nessas três quadras, ou se-
ja, o amor e o medo em "Le lièvre", a obstinação em "La chenille"
e a vaidade em "Le paon", Apollinaire apresenta-se em sintonia
inicialmente com o esquema fabular mais tradicional, preenchido
por animais, relações destes com os homens e uma moral implícita
ou explícita na pequena narrativa. Uma curiosidade do Bestiaire é
a manutenção da pontuação, abolida em toda a obra poética pos-
terior de Apollinaire: visava, talvez, com essa atitude, a uma apro-
ximação de suas quadras com a narrativa fabular.
AS FÁBULAS DOS POÈMES À LOU
Je pense à toi man Lou ton coeur est ma caserne
Três outros poemas incluídos em um conjunto denominado
Poèmes à Louo classificados pelo próprio autor como fábulas.
Dedicados a uma das paixões de Apollinaire, Louise de Co-
ligny-Châtillon,o poemas que refletem, para além de uma pai-
o fulminante, uma vivência militar, na caserna, e depois, no
front.
A primeira fábula, "Les fleurs rares", lembra a de La Fontaine,
"La laitière et le pot au lait". Em vez do pote de leite, Ptit Lou car-
rega flores; durante seu trajeto, deve levar uma flor rara às estufas
de Paris. Porém, no caminho para a estação de trem, vê uma outra
flor ainda mais bonita e deixa cair a primeira, "Et la forêt devient
sa tombe". De posse da segunda flor, senta-se no jardim do chefe
da estação e vê uma flor "encore plus rare". Assim,
... sans précaution
Ma bergère
Abandonna la timide fleur bocagère
Et cueillit la troisième fleur. (p.491-2)
No entanto, ao entrar no trem, a flor murcha. Mesmo assim,
Ptit Lou leva-a à florista. Evidentemente, esta a recusa, causando
pleurs e cris da parte de Lou. O que lhe resta é voltar e "entrepren-
dre à rebours 1'horticole voyage". Ao terminar, Apollinaire muda
de estrofe (ou seja, deixa um espaço em branco, como nas fábulas
tradicionais) para explicitar sua moral:
Je crois qu'il est sage
De nous arrêter
A la morale suivante sans insister
Des Lous et de leurs fleurs il ne faut discuter
Et je n'en dis pas davantage. (p.492)
Ao concluir com a nota moral, o poeta simplesmente evita dis-
cutir o assunto, recusando-se a falar mais sobre a história. E ao uti-
lizar a forma da fábula tradicional para escrever um poema, Apol-
linaire acaba por parodiar essa mesma fórmula, invertendo-lhe o
sentido e registrando uma moral sem função moralizante. De certa
forma, o poetao abandona sua intenção primeira de causar sur-
presa. O uso do plural de Lou - Des Lous - vem ao encontro do jo-
go sonoro que Apollinaire faz entre Lou e loup. Sua "mulher-lobo"
pluraliza-se, tornando-se onipresente.
O título da segunda fábula segue o esquema tradicional, em
geral, títulos que trazem dois elementos principais - neste caso,
"Le Toutou et le Gui". Poder-se-ia traduzir toutou por "au-au",
cachorro na linguagem infantil. O gui, uma espécie de cogumelo
parasita, traz em si uma simbologia interessante. Seu nome signifi-
caria, para os gauleses, aquele "qui guérit tout". Além disso, o visco
do carvalho é muito raro e era usado pelos druidas gauleses em
suas cerimônias: em razão de sua raridade, ao ser encontrado era
colhido, conforme o ritual, no sexto dia da lua, que era o astro que
regia os meses e anos dos gauleses; estes acreditavam que o visco,
transformado em bebida, dava a fecundidade aos animais estéreis
e constituía um remédio contra todos os venenos (Chevalier &
Gheerbrant, 1986, p.492).
Esses elementos mitológicos e simbólicos encontram-se no inte-
rior da fábula. Oo e o cogumelo mantêm um "diálogo", após oo
ter sido impedido pela dona de destruir o cogumelo. Este faz o
o perceber como é amado por sua dona, considerando-o l'idéal,
enquanto ele próprio seria "l'amour à grandes guides" (grifo do au-
tor), "le bonheur", o "porte-bonheur". Durante a conversa dos dois,
... leur
Maîtresse
Étendue avec paresse
Effeuillant indifférement de belles fleurs
Aux mille couleurs
Aux suaves odeurs
Feint de ne pas entendre
Le toutou jaser avec le gui Leurs
Propos la font sourire et nos rêveurs
Imaginent de comparer leurs deux bonheurs. (p.493-4)
A partir desse ponto, Apollinaire recorre à repetição da forma
endre, alternando os verbos s'étendre, prendre, entreprendre, pren-
dre, rendre, prétendre e, por fim, comprendre. Essa repetição que
se estende até a moral - "Il ne faut pas chercher à comprendre" -
intensifica seu valor, embora, como na fábula anterior, elao te-
nha um verdadeiro intuito moralizante: afinal,o é necessário
procurar entender, apenas divertir-se com a história contada. Am-
bos os personagenso felizes: o cão, que recebe beijos da dona, e
o cogumelo, que pousa entre seus seios, "'trône digne d'un roi". A
presença do gui na segunda fábula remete ao título da primeira,
"Les fleurs rares"; "la fleur rare" aparecerá também na "Troisième
fable", título da próxima e última fábula da trilogia.
Agora, sua Lou transforma-se novamente em Ptit Lou, que se
diverte em um canteiro de flores raras e outras colhidas por ela;
novamente o jogo sonoro inicial. Porém, ao colher as flores, Lou
semeava-as simultaneamente, e assim "perdait ce qu elle aime". A
moral, nesse caso, vem acompanhada de uma certa ironia: "On est
bête quand on sème" (p.495). Pode-se dizer que o comportamento
duplo de Lou, colher e semear ao mesmo tempo, significaria algo
de negativo para o poeta, nesse caso de amoro conturbado. Por
distração da amada, ela acaba fazendo um duplo percurso de des-
truição e construção, dentro e fora da fábula. Semear significaria
espalhar o amor que, provavelmente, Apollinaire queria só para si.
O aparente descaso de Ptit Lou nesse poema tem relação com a vo-
lubilidade do personagem na primeira fábula: aqui, ela desperdiça
o amor;,o se decide por nenhum...
Há de destacar também outro possível jogo sonoro: On est bête
quand on s'aime é também uma leitura possível da "moral", deco-
dificado por quem ouve como "Ficamos bobos quando amamos".
Ou seja,o é por critérios da razão, os mesmos da fábula tradicio-
nal, que seo entender coisas do amor. É interessante relembrar
que, afinal, semer e s'aimer significariam, no sentido primeiro dos
termos, de algum modo, a mesma coisa.
Naqueles poemas do Bestiaire e nestes dedicados a Lou, Apol-
linaire utilizou elementos da fábula tradicional, como animais-
personagens e moral. Por outro lado, sua moral está bem longe de
ter função moralizante, didática. Porém, acredita-se que Apollinai-
re continua a tecer o fio que une Esopo, Fedro e La Fontaine, entre
outros. Desse ponto de vista, o poeta conserva esse gêneroo an-
tigo e, no entanto,o presente em textos atuais, jornalísticos, hu-
morísticos etc. Essa prática seria a origem da presença da fábula,
da fabulação, da narratividade em sua obra, que, de certa forma,
encontra-se diluída nos outros poemas do autor. Embora a forma
tradicional da fábula tenha sofrido modificações no decorrer de
sua obra, o poeta conserva muitos dos traços pertencentes ao-
nero desenvolvido por Esopo e La Fontaine.
A TRILOGIA NEO-SIMBOLISTA DE ALCOOLS
" Merlin et la vieille femme", "Le larron" e "L'ermite", que
compõem a trilogia de Alcools na qual manifestações míticaso
recorrentes,o podem ser considerados poemas simbolistas por
excelência, pois na verdade Apollinaire parodia a escritura simbo-
lista ao recorrer a esse tipo de discurso, cheio de enigmas a serem
decifrados, para reforçar a estética da surpresa que lhe erao cara.
Esses poemaso os mais antigos e dos mais extensos da coletânea,
e sem estabelecer uma seqüência, ocupam uma posição central en-
tre os outros:o compostos de quartetos alexandrinos, e encai-
xam-se na série de artes poéticas do conjunto de Alcools; de manei-
ra alusiva ou explícita,m como tema dominante a condição do
poeta ou a natureza da poesia,m o mesmo estilo e semelhanças
na composição, e as figuras mitológicas de origens diversas, reuni-
das em um sincretismo legado pelos românticos e simbolistas que
nos conduz além da História,o manifestações dos conflitos pes-
soais relativos ao erotismo e ao sagrado.
Os heróis dessa trilogiao seres infelizes, que sofrem com o
isolamento a eles imposto, seres híbridos, nem homens, nem deu-
ses, situação limite que lhes causa desconforto. Essa posição, um
tanto quanto especial, aproxima essas personagens de seu próprio
autor, dono de uma personalidade múltipla, instável e por vezes
contraditória que, por meio de sua obra, buscava igualmente tor-
nar-se eterno. Philippe Renaud (1969, p.48) observa que o proble-
ma central comum a esses poemas é o da busca impossível da reali-
dade recorrendo à magia (Merlim), ao misticismo (o eremita), à
simples humanidade e ao outro (o ladrão).
"MERLIN ET LA VIEILLE FEMME"
Les diables dans les abîmes lèvent la tête pour le regarder
Dos três poemas citados, "Merlin et la vieille femme" é o me-
nor, composto de 60 versos, enquanto "Le larron" tem 124 e
"L'ermite", 79 versos. Os 60 versos do primeiroo distribuídos
igualmente entre quinze estrofes, o que dá unidade e uniformida-
de ao poema, e confirmam o gosto de Apollinaire pelas formas
clássicas, já que os três poemaso escritos em alexandrinos com
rimas cruzadas ou emparelhadas.
Em "Merlin et la vieille femme" há um elaborado trabalho
com as rimas, alternadamente femininas e masculinas, átonas e-
nicas. A preocupação com o aspecto fônico do poema é facilmente
compreendida quando se remonta à forma de composição confes-
sada pelo próprio poeta: "Geralmente, componho andando e can-
tando duas ou três árias que me vieram naturalmente e que um de
meus amigos anotou" (apud Lecherbonnier, 1983, p. 19), o que re-
vela uma harmonia e uma musicalidade internas naturais. O título
do poema já anuncia essa simetria e alternância, havendo um ele-
mento masculino (Merlin) e um feminino (la vieille femme). Essa
dualidade encontra-se no próprio título da coletânea: a palavra
Alcools, estando no plural, já contém elementos vários, e o álcool é
a síntese do fogo e da água, do masculino e do feminino, unidos
para transformar-se em um terceiro elemento com propriedades
advindas dessa união, e assim, mais poderoso. Os sons recorrentes
no poema são, sobretudo, [s], [1], uma grande variedade de nasais,
tais como e os compostos de
[ÍR] etc. Verifica-se que, à exceção do [s], a presença de alguns des-
ses sons serve de eco à palavra Merlin.
"Merlin et la vieille femme" apareceu pela primeira vez na re-
vista Les Rubriques Nouvelles, em junho de 1912, e seus esboços
datam do Cahier de Stavelot, isto é, de antes da partida do poeta
para a Alemanha e, portanto, antes de 1901, quando tinha apenas
21 anos. É um poema narrativo que conta uma parte da história do
lendário personagem celta Merlim, introduzido na literatura me-
dieval pela obra de Geoffrey de Monmouth, contudo de origens
ainda mais antigas. O mago era fruto da união do diabo com uma
moça virgem e, em algumas versões das lendas arturianas, apenas
para divertir-se com as paixões e fraquezas humanas, teria sido
responsável pelo nascimento do rei Artur, que, como eles (Apolli-
naire e Merlim), também era um filho sem pai conhecido. Merlim
também teria amado uma mulher de cem anos, feito numerosas via-
gens, sobretudo a Roma - a cidade natal de Apollinaire.
O autor se apropria dessas máscaras - Merlim, o ladrão exila-
do de "Le larron", o eremita, rival de Cristo e santo fracassado -,
todas elas personagens marginais, para evocar lembranças, segre-
dos, traumas, conflitos e sentimentos íntimos, em uma espécie de
catarse feita por meio de um universo fabuloso em que passeiam
figuras distantes no tempo e no espaço. Nesse mundo, Apollinaire
tenta enlaçar poeticamente o real e o irreal, o natural e o sobrena-
tural (Renaud, 1969, p.50). Merlim, desde os romances mais anti-
gos em que aparece, é o único personagem que escreve, ou me-
lhor, dita um livro graças ao qual, dizem os escritores, sabemos
ainda hoje o que ele realizou. Além disso, observa-se que o filho de
Merlim é o símbolo da obra poética, e Merlim, ao concebê-lo, torna-
-se imortal, como todos os poetas. Por fim, o mago é vítima dos en-
cantos de Viviane, a dama do lago, que também aparece no poema.
Artur, entretanto, segundo a lenda, deveria impor-se como
um eleito de Deus para reencontrar seu reino e, depois disso, obter
(ou quase) o domínio do mundo. Talvez fosse isso também que
Apollinaire quisesse transmitir ao leitor: cabe ao poeta o papel de
dominar o mundo por meio de sua arte. Essa postura romântica,
mantida pelo simbolismo, coloca Apollinaire na esteira de Victor
Hugo: o poeta está acima dos homens comuns e deve iluminar o
caminho da humanidade com sua poesia. Outra personagem len-
dária é Morgana, feiticeira que mora no Etna e que encarna no poe-
ma a própria memória de Merlim e também seu passado; porém,
ao mesmo tempo, representa a promessa do futuro.
O poema "Merlin et la vieille femme" inicia-se com uma com-
paração inusitada:
Le soleil ce jour-là s'étalait comme un ventre
Maternel qui saignait lentement sur le ciel
(Apollinaire, 1994a, p.88)
A presença da marca temporal ce jour-là já indica o aspecto
narrativo do poema; esses primeiros versos revelam, metaforica-
mente, o momento do nascimento de Merlim/poeta. Isso é confir-
mado nos versos subseqüentes, nos quais o eu poético (que pode
tanto ser Merlim, Artur ou o próprio poeta) afirma e exclama: "La
lumière est ma mère ô lumière sanglante", e a narrativa é retomada
no 4
o
verso, com outra comparação insólita: "Les nuages coulaient
comme un flux menstruel".
É importante assinalar que na obra apollinairiana o sangue ocu-
pa um espaço bastante significativo, embora também o tivesse na
Idade Média, época em que transcorre a fábula. Em Apollinaire, há
sobretudo uma recorrência do sangue menstrual, que sugeriria,
além de uma obsessão pessoal, o próprio signo da mortalidade uni-
versal. Em "Zone", há femmes ensanglantées que caminham pelas
ruas de Paris, e que, em uma primeira escritura, revelada mais tarde
pelos estudiosos da obra do poeta, eram negativamente referidas:
Les menstrues coulent dans les ruisseaux, 1'air est infecté
l'haleine des femmes est fétide et leur voix est menteuse
(apud Décaudin, 1996, p.83)
O sangue também encerra o momento de vida e de morte, te-
mas comuns na poesia apollinairiana, e sua cor se aproxima da
chama, do fogo contido no álcool. No poema que conclui Alcools,
"Vendémiaire", há
Toujours le même culte de sa mort renaissant
Divise ici les saints et fait pleuvoir le sang
Et ces grappes de morts dont les grains allongés
Ont la saveur du sang de la terre et du sel
La saveur du sang pur de celui qui connaît
Une autre liberté végétale dont tu
Ne sais pas que c'est elle la suprême vertu
Tu boiras à longs traits tout le sang de l'Europe
(Apollinaire, 1994a, p.149-52 - grifos nossos),
o que só vem mostrar a presença quase obsessiva do sangue nos
versos de Apollinaire.
Na segunda estrofe do poema, há referências geográficas (au
carrefour) e a presença de Merlim, que espia a questão fundamen-
tal da vida e da natureza do mundo, "... 1'éternelle causei Qui fait
mourir et puis renaître 1'univers", considerando assim a morte co-
mo uma passagem, imbuída do eterno retorno, eo como um
fim. Muitos críticos consideram esse poema um mito do nasci-
mento do seu autor. Assim, o eu poético, Merlim e Apollinaire
confundem-se, compondo um só e novo personagem mítico. É a
maneira de recontar uma história já conhecida, modificando-a e
até inserindo fatos de seu próprio mundo, real ou imaginário.
Na terceira estrofe, surge a velha do título, montada sobre
uma mula e de capa verde. Ela vem costeando a margem do rio e
Merlim, na planície deserta, bate no peito gritando "'Rival". Por
que ele gritaria rival? Talvez para criar um paralelo com berge,
margem em francês, pois rival tem a mesma raiz de rive, rio. "En
aval", segundo M.-J. Durry (1956, t.I, p.211), também seria uma
referência de Apollinaire a uma frase do Lancelot du Lac, "Et tant
chevalcha amont et aval qu'el trova Merlin".
A quarta estrofe traz novamente Merlim se dirigindo a seu "être
glacé dont le destin [lui] accable/ Dont ce soleil de chair grelotte",
opondo glacé à planície deserta da estrofe anterior. Neste ponto, o
leitor sabe que Merlim terá um filho da Memória, representada por
Morgana, um filho "malheureux et beau". Mais adiante, o verso 52
diz: "Le fils de la Mémoire égale de l`Amour", pois eles abolem o
tempo.
A narrativa continua na estrofe seguinte, na qual o gesto de
Merlim faz desabar o orgulho dos cataclismos. Em seguida, o sol
dança mexendo o umbigo, e aqui há um aspecto lendário ressalta-
do pelo poeta, a dança do sol no único dia do ano, o da Páscoa, se-
gundo leitura de Apollinaire do Dictionnaire infernal de Collin de
Plancy. É interessante notar que a presença do sol que dança ofe-
rece a possibilidade de datar a concepção do filho de Merlim. Sabe-
se que o dia da Páscoa é a versão litúrgica do equinócio da primave-
ra no Hemisfério Norte; a própria estação tem um significado de
renascimento em relação ao inverno que se despede, confirmando
dessa maneira os últimos versos da segunda estrofe:
Merliun guettait la fie et 1'éternelle cause
Qui fait mourir et puis renaîtreVunivers (Apollinaire, 1994a, p.88)
Uma descrição um tanto estranha vem a seguir, com monu-
mentos trêmulos perto de carniças verdes e ventos que trazem-
los e infelicidades. A amante chega na estrofe 7, e os amantes páli-
dos "... joignant leurs mains démentes/ L'entrelacs de leurs doigts
fut leur seul laps d'amour" (p.89). Morgana assiste a tudo do alto
do monte Gibel que, na Idade Média, era considerado o local on-
de se encontrava o castelo de Viviane,e do filho de Merlim. O
riso da lutte hilare aparece em contraponto ao soleil dansant, pro-
duzindo uma imagem insólita. A palavra hilare desapareceu da lín-
gua francesa no século XVI, ressurgindo nos dicionários apenas no
final do século XIX; porém, só foi admitida pela Académie em
1935. Isso mostra a preocupação de Apollinaire em pesquisar e so-
bretudo resgatar palavras antigas, causando estranheza ao leitor
menos erudito, e efeitos poéticos interessantes.
Na seqüência, Merlim retoma o fio da narrativa ao contar:
J'ai fait des gestes blancs parmi les solitudes
Des lémures couraient peupler les cauchemars
Mes tournoiements exprimaient les béatitudes
Qui toutes ne sont rien qu'un pur effet de 1'Art (p.89)
Há aqui mais uma referência mitológica, dessa vez romana,
pois os lêmures seriam espectros de mortos que voltavam para
atormentar os vivos. Na estrofe 11, Merlim continua a contar sua
história e a primavera marca presença novamente, dessa vez no
plural:
Je n'ai jamais cueilli que la fleur d'aubépine
Aux printemps finissants qui voulaient défleurir (p.89)
A presença da flor do espinheiro (l'aubépine) também é oriunda
do romance de Merlim e aparece pela primeira vez no conto
"L'enchanteur pourrissant". O espinheiro aparecerá também na
estrofe seguinte, ao lado dos de abril, momento em que este
"... aurait eu la pauvre confidencel D'un corps de vieille morte en
mimant la douleur". As mãos dos amantes erguem-se "comme un
vol de colombes", e depois Merlim parte em direção ao leste di-
zendo "... Qu'il monte/ Le fils de la Mémoire égale de l'Amour". A
cidade de Roma surge como a direção a ser seguida pelo filho de
Merlim. Este é esperado por Viviane, ele clama para que a prima-
vera reapareça, mesmo que com nouvelles douleurs, e deitado en-
tre plantas, eternizar-se-á sob o espinheiro em flor, consagrando
uma ligação estreita com a natureza.
O próprio Merlim, Morgana, Viviane, o monte Gibel, a sim-
bologia contida no sangue e no espinheiro, por exemplo, alargam
o campo mitológico com o qual Apollinaire trabalha exaustiva-
mente. Esse trabalho sério de pesquisa e leitura, como já se viu, irá
estender-se por quase toda a sua obra,o só poética. Essa atitude
do autor de Alcools vem reforçar a tese de que quase toda a sua
obra vem impregnada de fábula, pelo ato de re-contar e re-criar
mitos e lendas antigas. Ao aproveitar-se das histórias de domínio
público, por exemplo, o poeta, além de fazer a reescritura dessas
histórias e assim resgatá-las para a história da literatura, entra em
um outro "estágio" da presença da fábula em sua obra: o da inter-
textualidade, que salta aos olhos. Apollinaire faz como se tecesse
uma colcha de retalhos, selecionando trechos e personagens de
mitos e figuras lendárias e dando-lhes novo tempero, transfor-
mando-os em material poético, trazendo-os para seu mundo fictí-
cio. Ele interage com passado, presente e futuro, isto é, do passa-
do vem a matéria bruta de seu trabalho, desenvolvido no presente
e lido e apreciado no futuro pelo leitor. Assim, os mitoso reli-
dos, redescobertos já transformados e transcriados pelas mãos do
poeta.
O que ocorre ainda é que dessa recriação também fazem parte
as experiências pessoais, como o ciclo das Rhénanes, pois as lendas
germânicas só despertaram o interesse do poeta provavelmente
durante a sua estada na Alemanha, e mesmo depois, e os poemas
do referido ciclo trazem grande carga mitológica germânica, com
personagens tipicamente regionais e talvez só conhecidos pela
gente local. É possível ainda que muitas dessas histórias fabulosas
- e aqui o termo fabulosas refere-se às atividades de fabulação e
mitológicas - tenham sido contadas oralmente ao poeta; desse
modo, a influência desses oradores estaria expressa em seu ato cria-
dor e também no resultado final, ou seja, no poema em si.
A intertextualidade que se registra em "Merlin et la vieille
femme" vai mais além do que as referências advindas do conto que
lhe deu origem. Pierre Brunel (1997, p.47 ss.) aproxima expres-
sões e versos aí contidos, bem como no poema "Mai", e no "Der
winter ist zergangen", poema de Tannhäuser. O poema citado é
uma paródia de certas fórmulas dos trovadores e conta como, no
final de um périplo por algumas paisagens idílicas, o poeta encon-
tra uma criatura radiosa, de quem elogia o charme físico e que se
torna sua amante e sua soberana. A lenda de Tannhäuser diz ainda
mais: ele torna-se prisioneiro de outra amante que seria a própria
Vênus, divindade pagã transformada em demônio pelos cristãos.
As fontes de Apollinaire sobre esse personagem alemão passariam
igualmente pela ópera de Wagner - Tannhäuser und der Sängerkrieg
auf Wartburg - e pelo poema de Swinburne, publicado em 1866
sob o título de "Laus Veneris", concebido especialmente para Bau-
delaire.
Descobre-se então que mitos e lendaso onipresentes em sua
obra, marcada por essa herança cultural da qual Apollinaireo
consegue (eo quer) escapar. Paradoxo, caso ambíguo e extre-
mo, ponto de partida e de chegada, dualidade e duplicidade da
modernidade que explodia na obra do poeta.
"LE LARRON"
Le flâneur de deux rives
A questão principal que se coloca a respeito do larron é: quem
é ele? Seria o próprio poeta, ou uma mescla de várias figuras míti-
cas e místicas? Várias leituraso possíveis a respeito da identida-
de do herói do poema. Madeleine Boisson vislumbra Orfeu por
trás da figura do ladrão. Já Marie-Thérèse Goosse faz uma leitura
bastante intrigante e interessante do poema, datada de 1970, bem
antes do trabalho de Boisson. Para ela, o larron é o próprio Apolli-
naire, e o tema principal, profundo, do poema concerne a seu des-
tino, ao mesmo tempo estrangeiro, de filho natural, poeta e apai-
xonado (Goosse, 1970, p.4). Além disso, é a própria Marie-Thérèse
que elenca os estudos sobre "Le larron" anteriores ao seu: o de
Mme. Durry, datado de 1956, que fez uma leitura pioneira do
conjunto de poemas de Alcools; o de Scott Bates, de 1967; o de
Marc Poupon, também de 1967, para quem a identidade do la-
drão protagonista é ambígua; o de Claudine Gothot-Mersch, ain-
da nesse mesmo ano de 1967, além de vários outros.
Uma descoberta recente de Pierre Brunel (1996, p.19 ss.) deu
novo fôlego a essa questão. Ao ler os artigos de Marie-Christine
Bellosta, "La vie d'Esope le Phrygien de La Fontaine, ou les ruses
de la vérité", na Revue d'Histoire Littéraire de la France (LXXIV, 1,
1979), e de Stefan Schoettke, "De la source à l'envol - Esope et So-
crate dans le dispositif liminaire des Fables", na Revue de Littéra-
ture Comparée (numéro spécial, La Fontaine et la fable, 1996), ele
percebeu a proximidade que existe entre fatos da vida de Esopo e
aqueles encontrados no episódio do ladrão de "Le larron". Como
o herói do poema, Esopo teria sido acusado injustamente de rou-
bar alguns frutos, em especial figos, de seu patrão, para comer;
além disso, ele era gago, fato que o aproxima novamente do herói,
descrito pelo coro como "Un homme bègue ayant au front deux
jets de flammes", o que mescla a figura do ladrão à de Moisés, em
uma tentativa de amplificar a primeira e de reduzir a segunda. Para
Brunel (1996, p.20), as palavras desagradáveis dirigidas ao ladrão
no primeiro verso do poema e retomadas no décimo terceiro cor-
respondem exatamente ao caso de Esopo: ele foi maraudeur, la-
drão de frutas; étranger, já que aos olhos dos gregos um frígio era
um "bárbaro" vindo da Ásia Menor; malheureux, já que estava
"exilado", escravo; malhabile, já que tinha sido surpreendido em
flagrante delito de furto.
É igualmente interessante notar que Esopo aparece na primei-
ra versão do poema, "La plume", e é retirado da versão definitiva.
Ora, toda essa presença marcante de elementos tanto intertextuais
como intratextuais em um único poemao provas definitivas de
que as várias manifestações da fábula permeiam o texto e reme-
tem-se umas às outras em toda a obra de Apollinaire.
Ao deter-se no texto, o leitor percebe que "Le larron", o se-
gundo poema da trilogia, chama a atenção primeiramente pela
forma, que se aproxima de uma composição teatral. Toda a narra-
tiva é permeada de referências à Antigüidade, à cultura clássica, o
que demonstra grande erudição por parte de seu autor. Pode-se
entender esse poema como o da figuração da própria formação de
Apollinaire, baseada na herança cultural dos clássicos, raízes que
ele nunca negou. Há diferentes níveis temporais em seus versos, o
da memória, o do presente e o do futuro. Na sua primeira versão,
publicada em 1903,o havia indicações de personagens, apenas
aspas e travessões, o que contribuía ainda mais para a obscuridade
do poema. Em uma outra publicação posterior, até mesmo esses
sinais de pontuação foram retirados, aumentando o grau de difi-
culdade da leitura. Somente quando "Le larron" foi publicado em
Alcools é que toda a pontuação desapareceu, dando lugar aos no-
mes dos personagens, à forma dialogada entre eles e à parte narra-
tiva que cabe ao ator.
Além do ladrão do título, que se encaixaria perfeitamente na
definição de personagem proposta por Tadié (1978, p. 18) (um he-
i que, sob a forma de uma repetição pronominal obsessiva, tem
como característica essencial ser uma forma vazia, o suporte de
uma experiência,o mais agente mas paciente, há mais quatro
personagens que se alternam: o choeur, o vieillard, o acteur- que
faz o papel de um comentarista - e a femme. Seus 124 versoso
distribuídos em quartetos, com exceção da estrofe 21, que na ver-
o final tem seus versos divididos entre o coro (os três primeiros)
e a respectiva resposta do ator (o último), "Et le larron des fruits
cria Je suis chrétien", mas que na primeira versão do poema era
também uma quadra. O fato de esse verso ter sido destacado dos
demais é significativo, como se verá mais adiante.
O coro recebe o ladrão, que assume o roubo dos frutos. O ator
só aparece na oitava estrofe e sua fala engloba as sete estrofes se-
guintes, que descrevem uma cena de festa, ou ainda um banquete.
Mais sete estrofes configuram a terceira parte do poema, na qual o
coro retoma a fala para questionar o ladrão. A resposta vem do ator,
no verso anteriormente citado. Há uma divisão regular dos versos,
distribuídos em grupos de sete estrofes: o primeiro grupo apresenta
o herói, acolhido pelo coro, que reconhece o roubo dos frutos; fa-
lam nesta parte o coro, o ladrão e o velho. Em seguida, vem a fala
do ator, também composta de sete estrofes, que descreve uma cena
de banquete, de festa ou ainda de iniciação, durante a qual o ladrão
o se identifica com nenhuma entidade ou divindade. Suas origens
continuam a ser, até então, desconhecidas. O coro volta nas sete es-
trofes seguintes, que evocam simultaneamente passado, presente e
futuro, por meio de representantes de cultos e ritos. Essa seqüência
termina com a questão crucial dirigida ao ladrão: "Ceux de ta secte
adorent-ils un signe obscène". A resposta reveladora vem astuciosa-
mente do ator, eo do ladrão, pois sua palavrao é ouvida, é
preciso um intermediário que diga verdadeiramente quem é ele e
quaiso suas origens e crenças, a qual grupo religioso ele pertence.
O equilíbrio na distribuição das estrofes é quebrado na última
parte: várias exclamações desordenadas sucedem-se e é o coro
quem dá fim ao poema, nas oito estrofes derradeiras, lançando o
veredicto final ao herói -o lhe restará outra alternativa senão
partir, pois ele definitivamenteo faz parte daquele grupo, da-
quele lugar. É curioso que as aparições do ladrãoo constituem
maioria: ele surge na segunda estrofe e, após ser interrompido pe-
lo coro e pelo velho, volta a dizer três estrofes eo se manifesta
mais. Seu destino será decidido por outros, seu silêncio é a prova
disso, pois nesse momento ele é totalmente impotente no que diz
respeito à sua própria vida. O coro ocupa um lugar preponderante
no poema e está presente em 18 das 32 estrofes que o compõem,
seguido do ator, com oito estrofes e o verso único já referido.
O início do poema dá-se com a fala do coro, que acusa o la-
drão - na verdade um náufrago recebido por várias pessoas em
uma terra estranha e hostil - de ser gatuno, estrangeiro, infeliz e
inábil. O termo étranger, embora na primeira versão, pontuada,
apareça como substantivo, pode ser lido também como um xinga-
mento a mais, possível justamente pela ausência de pontuação. O
último verso dessa estrofe contraria o primeiro: aqui, o coro nota
que o ladrão chora, considera-o igualmente barbare et bon, e pede
que lhe perdoem. Na segunda estrofe, o ladrão confessa o roubo
dos frutos, todavia, como pretende devolvê-los, espera que sua pe-
na seja menor, que sejam apenas moyennes tortures, ainda que in-
justas. Na estrofe seguinte, o velho assinala a origem do ladrão,
"issu de l'écume des mers comme Aphrodite", marcando assim cla-
ramente a presença do mito do nascimento de Afrodite, a deusa do
amor, anadiômena, saída das águas. A ligação entre o ladrão e
Afrodite é uma referência, segundo Brunel (1996, p.26), ao Ban-
quete de Platão: "a comparação aparentemente incongruente en-
tre 'o homem gago' e Afrodite situa-se em um contexto erótico no
sentido platônico do termo". O velho chama o ladrão de naufragé
e pede-lhe que seja dócil. O coro vem na seqüência, chamando o
ladrão de "maraudeur étranger malhabile et malade", este último
termo substituindo o malheureux do verso inicial do poema.
As origens do ladrão continuam a ser descritas, dessa vez pelo
coro, dando seqüência àquilo que o velho havia iniciado:
Ton père fut un sphinx et ta mère une nuit
Qui charma de lueurs Zacinthe et les Cyclades (p.91)
Madeleine Boisson (1989, p.474) tece o seguinte comentário
a respeito dos termos Zacinthe e Cyclades, apontando duas ver-
sões para o emprego dessas palavras por parte do poeta:
por que "Zacinthe"? O Hino homérico a Apoio, que Apollinaire sem
dúvida conhecia, mostra Leto [ae de Apoio] a percorrer apenas
as ilhas do Egeu; Zákinthos, ilha do Mar Jônico, é nomeada, mas
em outro episódio, o de Apoio e os marinheiros cretenses. Duas hi-
póteses apresentam-se: ou "Zacynthe et les Cyclades" delimitam o
percurso da noite maternal que atravessa ou de oeste a leste para
que nasça a oriente o deus luminoso; ou, como propõe Fongaro,
"Zacynthe" esconderia uma referência ao Cinto, monte de Delos
que é, de fato, nomeado no Hino a Apolo imediatamente depois da
narrativa do nascimento do deus. (p.474)
O coro pergunta ao ladrão se ele fingiu ter fome para roubar
os frutos, ao que ele responde, na estrofe seguinte,
Possesseurs de fruits mûrs que dirai-je aux insultes
Ouïr ta voix ligure en nénie ô maman
Puisqu'ils n'eurent en fin la pubère et l`adulte
De prétexte sinon de s'aimer nuitamment (Apollinaire, 1994a,
p.91)
Sem dúvida, Apollinaire cria o adjetivo ligure, pois o correto
seria ligurien. O que o poeta faz é contaminar o substantivo ligu-
res, povo da costa mediterrânea de Marselha a La Spezia, com o
adjetivo grego que qualifica a voz melodiosa das sereias; assim, o
adjetivo por ele criado significaria "que tem bela voz". O ladrão
enumera os frutos que roubou, "tout ronds comme des âmes",
comparação que denota uma intratextualidade, já que em um poe-
ma da juventude, "Passion", inserido em Le guetteur mélancoli-
que, no conjunto das "Rhénanes", o poeta escreve
Au couchant où sanglant et rond comme mon âme
Le grand soleil païen fait mourir en mourant
Avec les bourgs lointains le Christ indifférent (ibidem, p.532)
Apollinaire provavelmente tinha conhecimento das idéias de
Orígenes sobre o formato redondo das almas. O ladrão enumera
os frutos que viu e roubou: "des amandes de pomme de pin", "les
citrons couleur d'huile"', "grenades" e "figues" compõem o quadro
de paisagem mediterrânea. Na oitava estrofe e nas seis seguintes, o
ator narra a entrada do ladrão "... dans la salle aux fresques qui fi-
gurentl l'inceste solaire et nocturne dans les nues", e convida-o a
sentar-se "... pour mieux ouïr les voix ligures/ Au son des cinyres
des Lydiennes nues", assinalando mais uma citação mítica. Ciniras
o harpas de dez cordas, e as lidianas, mulheres prostitutas que
habitavam uma região da Ásia Menor. O cenário descrito pelo ator
compõe-se de homens mascarados, mulheres com colares
... où pendais
La pierre prise au foie d'un vieux coq de Tanagre
Parlaient entre eux le langage de la Chaldée (p.92)
A cidade de Tanagra é célebre pelos seus gaios de briga, e a lín-
gua falada entre esses homens e mulheres refere-se àquela do im-
pério neobabilônico. Os ventos fingiam um outono, e os convidados
eram casais de amantes que perdoavam ao ladrão, oferecendo-lhe sal
eo de fermento. O caldo que lhe será servido será insípido, po-
m haverá vinho gelado, conservado em recipientes de pele de
bode. É perguntado ao ladrão - "por ironia" - se ele quer um prato
de favas ou se prefere massas fritas mergulhadas no mel dourado.
A presença das favas é bastante significativa: elas aparecem no
culto aos mortos, por conterem em seu interior suas almas.
1
Orfeu
e Pitágoras foram impedidos de comê-las, pois esse ato seria equi-
valente ao de comer a cabeça de seus pais, de partilhar o alimento
dos mortos, ou seja, uma das formas de manter-se no ciclo das re-
encarnações e de sujeitar-se aos poderes da matéria. As favas cons-
tituiriam, pelo contrário, fora das comunidades iniciáticas órficas
e pitagóricas, o elemento essencial da comunhão com o Invisível,
no limiar dos ritos da primavera (Chevalier & Gheerbrant, 1986,
p.438-9). Afinal, sabe-se que Orfeu é o homem que violou o proi-
bido e ousou enxergar o invisível. O filósofo e matemático grego
Pitágoras será mencionado mais adiante em "Le larron", pela pre-
sença do paon pythagorique e do triangle isocèle, este último sím-
bolo do fogo e do coração, ao lado do triângulo equilátero (terra),
do triângulo retângulo (água), e do escaleno, que, por sua vez,
simbolizaria o ar. Assim, nesse texto, percebe-se que Apollinaire
constrói uma complexa cadeia de significações e de símbolos, que
dialogam entre si constantemente.
Nos versos seguintes, uma mulher faz perguntas ao ladrão so-
bre o tempo e a ampulheta e oferece-lhe o talismã de seu colar.
Nozes também lheo oferecidas, outro fruto carregado de sim-
1 Nos Diálogos dos mortos, de Luciano de Samósata (século II d. C), os tremo-
çoso citados várias vezes como único alimento permitido aos mortos na des-
cida aos infernos, por serem baratos e de fácil acesso.
bologia: a nogueira, a sorveira e a aveleirao freqüentemente
usadas pelos druidas ou pelos poetas como "suportes de encanta-
mento"; além dessas características, esses frutos remetem ao exer-
cício da paciência e da constância, culminando no desenvolvimen-
to da experiência mística (ibidem, p.675). Dessa maneira, nota-se
que tudo o que é oferecido ao ladrão tem referência direta à sua
condição de poeta; esta, emborao seja explicitada no poema,
vem à tona por meio dessas oferendas.
Na seqüência, os olhos do ladrãoo considerados "líricos", e
ele, "... plus noble que le paon pythagorique/ Le dauphin la vipère
mâle ou le taureau"'. Nesse trecho do poema, Apollinaire enumera
uma série de animais e cada um deles traz em si uma considerável
carga simbólica. O pavão é sobretudo símbolo da imortalidade,
além de, sob uma forma de Bodhisattva, ensinar a renúncia às liga-
ções mundanas; faz parte, entretanto, do simbolismo funerário
(p.725-6). O delfim é símbolo da prudência e da sabedoria, além
de também fazer parte de ritos funerários; o Cristo Salvador foi re-
presentado, entre outras formas, como um delfim, o que significa,
de certo modo, a representação da imortalidade. Além disso, ele é
um símbolo de conversão por excelência, fato que vem ao encon-
tro da situação do ladrão no poema. A víbora tem características
semelhantes às dos outros animais referidos, pois faz parte da sim-
bologia da morte; no entanto, esse réptil simboliza igualmente o
duplo da vida dos deuses, adquirindo, assim, caráter de renasci-
mento, tornando-se agente das transformações físicas e espirituais
(p.1021). A figura do touro vem, muitas vezes, ligada à da lua,
conservando o aspecto lunar da morte. Essa aproximação dá-se
por causa do formato da lua crescente e dos chifres do touro, bas-
tante semelhantes; a aproximação da morte e da figura taurina
vem particularmente da Ásia. Porém, há um rito irlandês no qual o
touro e o poeta se encontram: sacrifica-se um animal, um poeta
come carne, bebe caldo à saciedade, adormece e, em seu sonho, vê
o candidato-rei que deve ser escolhido pela assembléia dos nobres
(p.932) - ao contrário do ladrão, o poeta irlandês pode comer e
beber à vontade, além de descansar... Na figura do touro, todas as
ambivalências, todas as ambigüidades se encontram, bem como no
ser humano.
Um outro ponto de ligação entre o touro e o autor de "Le lar-
ron" está relacionado ao complexo de Édipo: matar o touro é su-
primir o pai, o que faz lembrar imediatamente a célebre frase de
Apollinaire (1991, p.6), contida em Les peintres cubistes: "E se
nos tornamos pais,o se deve contar com que um de nossos fi-
lhos queira duplicar-se pela vida de nosso cadáver". É evidente
que se pode ler essa frase de uma maneira metafórica, porém a
imagem escolhida pelo poeta é bastante significativa. Aí está resu-
mida parte importante de seu pensamento em relação à tradição e
à modernidade: a herançao deve ser desprezada, mas somente a
partir do momento em que o poeta se desprende dela é que há ori-
ginalidade. Com essa posição moderada, Apollinaire contesta si-
multaneamente os neoclássicos, fechados no passado, e os movi-
mentos da vanguarda, que querem romper radicalmente com esse
mesmo passado.
A predileção de Apollinaire pelos animais evidencia-se ainda
mais no Bestiaire, já referido. O pavão, nesse caso, é apresentado de
forma bem-humorada; o delfim faria uma espécie de contraponto
ao exemplo anterior, há um pouco de amargura neste quarteto:
Dauphins, vous jouez dans la mer,
Mais le flot est toujours amer.
Parfois, ma joie éclate-t-elle?
La vie est encore cruelle. (p.21)
O quarteto dedicado à serpente, no Bestiaire, faz referências a
mitos femininos de domínio público, mulheres cujas históriaso
ligadas ao réptil: Eva, Eurídice e Cleópatra. O touroo aparece
nesse conjunto de poemas, mas há o boi, que o fecha.
Na seqüência de "Le larron", perguntam ao ladrão quem é
ele, trazido "grâce au vent scythe", que vem do Oriente (a Cítia
corresponde ao que é hoje o sul da Rússia). Na etimologia da pala-
vra, scythe seria sinônimo de bárbaro, durante o século XVI. Deve-
se notar que o ladrão será logo chamado de poète barbare.
Em seguida, da estrofe 15 à 21 (composta de apenas três ver-
sos), o coro retoma o fio da narrativa, descrevendo um homem ga-
go que conduz um povo ínfimo e que viu o mar abrir-se. A menção
aos jatos de fogo que saem de sua testa remete à imagem bíblica de
Moisés. Uma cena com homens que pegam água, barbudos, ne-
gros e brancos, voltando do Rio Eufrates, com olhos de coruja,
chamam a atenção de caçadores de tesouros. Insetos gemíparos,
que põem pedras preciosas e pérolas no lugar de ovos, fazem parte
de uma floresta précieuse eo aí incluídos, e há ainda nessa estro-
fe um vocativo dirigido ao poète barbare, que é, por sua vez, com-
parado a um insecte jaseur. Na América Central, os insetos voado-
reso considerados almas dos mortos visitando a Terra, isto é,
estranhos seres freqüentadores de um espaço queo lhes perten-
ce, como o larron. Já o adjetivo jaseur - tagarela - talvez pudesse
remeter às origens orais da poesia.
Mais animais marcam presença nos versos seguintes:o sa-
pos, gansos, pavoas, ovelhas. O sapo é dono de grande simbolo-
gia e há uma rica mitologia em torno desse anfíbio, quase em to-
das as partes do mundo. Como Apollinaire havia provavelmente
pesquisado a simbologia relativa ao inseto e escolheu uma inter-
pretação americana, com o sapo supostamente ocorreu o mes-
mo: em algumas tribos indígenas da América do Sul, toda a mito-
logia a respeito das origens do fogo está ligada a esse animal. O
sapo torna-se cúmplice do homem para furtar o fogo de seu pri-
meiro possuidor, o abutre.o seria esta uma outra versão do mi-
to de Prometeu?
Quanto à ovelha, seu par masculino está envolto em toda uma
simbologia cristã, ligada a Jesus: no Apocalipse, o emprego da pa-
lavra "carneiro" para designar o Cristo ocorre 28 vezes. Desde o
início do poema "Le larron", as semelhanças com a crucificação de
Cristo, bem como as menções a vários fatos bíblicos, surgem abun-
dantemente; assim, a presença da ovelha só vem corroborar essa
série de citações à mitologia cristã. Na tradição celta, o ganso era
considerado um "mensageiro do Outro Mundo", e para os faraós,
os gansos representavam as almas. Curiosamente, essa série de
animaiso consta do Bestiaire, como a seqüência anterior.
A estrofe seguinte do poema traz viúvas debulhando cachos
de uvas. A figura da viúva é ligada à maçonaria, cujos membroso
denominados "os filhos da viúva". O termo designa simbolica-
mente essa sociedade secreta; as origens desconhecidas do larron
sugerem a possibilidade desse símbolo no poema. Os cachos de
uva debulhados pelas viúvas contrastam com a fome do ladrão,
poiso símbolo de abundância, assim como os outros frutos.
Bispos negros
... révérant sans le savoir
Au triangle isocèle ouvert au mors des chapes
Pallas et chantaient 1'hymne à la belle mais noire (1994, p.93)
completam a estrofe. Aqui caberia abrir um espaço para a astuciosa
interpretação de Mme. Durry (1956, p.223-4):
O hino à bela, mas negra, é 0 Cântico dos Cânticos em que a
bem-amada diz:
"Eu sou negra, mas bela, - nigra sed formosa, - filhas de Je-
rusalém,
Como as tendas de Cedar, como os pavilhões de Salomão.
o me considerem por eu ser morena,
porque o sol lançou sobre mim seu olhar;
Os filhos de minha mãe, irritados comigo,
Puseram-me para guardar as vinhas
E a minha própria vinha euo pude guardar"
Se as viúvas cantam esse "hino", é, imagino eu, que, cobertas de
véus evidentemente negros, consideram-se ainda belas e próprias pa-
ra amar, para serem amadas, e as vinhas do cântico fazem-me pensar
que os "cachos" que elas "debulham"o uvas, ainda que a chegada
acidental, logo depois, dos bispos possa fazer pensar, ao mesmo tem-
po, em rosários.
O freio das capas (mors des chapes) joga com o duplo sentido da
palavra chapes, cujo segundo sentido é apenas conhecido pelos heral-
distas (o freio de cavalo figura, aliás, entre as "peças artificiais" do
brasão): a capa ... é o grande manto da igreja, que se abre na frente;
mas em termos de brasão "é uma peça heráldica constituída por dois
triângulos retângulos obtidos quandoo ligados o meio do chefe
(que ocupa o terço superior do escudo) e as duas pontas inferiores
(os dois cantões). Forma-se assim, entre os dois triângulos retângu-
los, um triângulo isóscele, que é realmente difícil de ser considerado
um elemento poético. O triângulo pode fazer pensar em Pitágoras e
na geometria grega, e, dessa forma, os bispos rendem uma homena-
gem involuntária a Pallas, à Grécia, à razão. E possível também que
esse triângulo tenha um significado erótico (Cf. Tendre comme le
Souvenir, p.194!). Quanto a essas viúvas e esses bispos,o sei quem
os conduz, mas arriscaria a hipótese de que eles possam ter surgido
na mente de Apollinaire a partir de uma lembrança da Tentação de
Santo Antônio [de Flaubert], em que os profetas e os heresiarcas, entre
os quais vários bispos, desfilam diante do santo, e em particular Mon-
tanus, o heresiarca negro, coberto por um manto negro, precedido de
suas sectárias Priscilla et Maximilla, que podem ser consideradas viú-
vas, já que abandonaram seus esposos para seguir "um eunuco".
Podem-se igualmente fazer aproximações entre a figura do
triângulo e o símbolo da maçonaria, composto de um compasso e
de um triângulo, instrumentos de trabalho do arquiteto e do pe-
dreiro. Figuras da Idade Média, como as alcancies, bolotas ocas de
terra preenchidas com pétalas de flores ou cinzas, povoam a pe-
núltima estrofe dessa série do coro, que culmina com
Mais au jardin ce soir tu viens sage et voleur
Ceux de ta secte adorent-ils un signe obscène
Belphégor le soleil le Silence ou le chien
Cette furtive ardeur de serpents qui s'entr'aiment (1994, p.93)
Nestes versos, a presença do deus moabita Belfegor - relativo
à antiga região de Moabe, na Palestina, povoada por árabes - foi
associada algumas vezes a Príapo - deus greco-romano da fecundi-
dade, da fertilidade e da virilidade física -, em razão do caráter li-
cencioso de seu culto e das festas que oferecia. O verso isolado do
ator, que reproduz a fala do ladrão, colocado na seqüência, apre-
senta uma sonoridade especial, plena dos sons [k] e [R]: "ET le lar-
ron des fruits cria je suis chrétien", e quebra uma rima interna pos-
sível e esperada, ao substituir Christ por chrétien, reforçando
assim uma das teses a respeito da identidade do ladrão, isto é, a de
que ele seria o próprio Cristo. O riso do coro que vem a seguir re-
montaria também ao deboche e à humilhação sofrida pelo Cristo
no momento da crucificação, já que a ambos - o ladrão do poema
e Cristo -o é dada credibilidade. O outro verso da fala do coro
reforçaria a idéia da superposição das duas identidades:
Ah! Ah! le larron de gauche dans la bourrasque
Rira de toi comme hennissent les chevaux (p.94)
cm uma clara alusão aos ladrões que ombreavam o Cristo quando
da crucificação. A comparação do riso do ladrão ao relinchar dos
cavalos torna ainda mais forte a cena e a situação em que se encon-
tra o protagonista do poema. A primeira e única entrada "nomi-
nal" da mulher ameniza a cena: ela nada faz além de repetir inte-
gralmente uma das estrofes já narradas pelo ator, que por sua vez
reproduz a fala da mulher (v.49-52, retomados nos v.89-92, exa-
tamente 40 versos adiante, assinalando assim o primeiro e o se-
gundo terços do poema):
Larron des fruits tourne vers moi tes yeux lyriques
Emplissez de noix la besace du héros
Il est plus noble que le paon pythagorique
Le dauphin la vipère mâle ou le taureau (p.94)
O contexto, no entanto, agora é outro, a ternura com a qual a
mulher convidou o ladrão é entrecortada pela rudeza das inter-
venções do coro. Este, por sua vez, volta a rir do ladrão, com ex-
clamações que tornam a atmosfera ainda mais difícil e violenta pa-
ra o último, tendo como eco das suas risadas o som dos sistres,
instrumentos de percussão nos quais baterão por toda a noite.
É bastante significativa a presença da mulher no poema, haja
vista toda a carga simbólica que ela carrega desde os tempos mais
remotos: feiticeira, queimada viva durante a Inquisição, ser cheio
de mistérios, simultaneamente santa e pecadora na Bíblia,e de
Jesus Cristo e prostituta; essas várias nuanças e sua constante dua-
lidade compactuam com sua fala no poema, como que seduzida
pela situação e por tudo o que o herói representa. Em seguida, o
ladrão é comparado a "une tache grise ou le pressentiment", com
valores negativos. A estrofe seguinte traz ainda a continuação da
fala do coro, com imagens também negativas, de queda, além da
menção à gravidez que emociona e que é a negação da aséité, ou
seja, a qualidade que só pertence a Deus de existir por si, sem a
necessidade de nenhum outro ser.
Salientando ainda mais a atmosfera mítica e simbólica que
permeia o poema, seres reais e fantásticos - um gnou e um unicor-
ne - aparecem no caminho, anunciado pelo coro, que o ladrão de-
ve seguir; ele deve partir dénudé, já que tudo pertence ao coro, ar-
mado apenas de um arco para matar o gnu e o unicórnio que,
ainda segundo o mesmo coro, cruzarão sua estrada. O unicórnio
carrega grande simbologia: é símbolo de potência, mas, em con-
traponto, de pureza e de magnificência. É considerado um animal
de bom augúrio, porém ataca os culpados, aqueles queo contra
a justiça, com seu corno. O interessante aqui é que o unicórnio
simboliza a revelação divina, a penetração do divino na criatura,
ou seja, sua presença no poema apontaria a dualidade presente no
ladrão. Na iconografia cristã, esse animal fabuloso representa
também a Virgem fecundada pelo Espírito Santo, o que demonstra
que Apollinaire soube introduzir essa simbologia relativa aos mi-
tos cristãos para bem ilustrar o percurso do herói do poema. Por
sua forte carga simbólica, o unicórnio reaparecerá em "L'ermite".
Seguido por uma "sombra equívoca", além da sombra do pró-
prio coro, o ladrão deve partir durante o crepúsculo de lueurs lé-
gères, já que nenhuma das pessoas do grupo acreditaria em suas
histórias. Menções a pedras magnéticas com poderes mágicos - a
pantaure-, figuras meio míticas, meio reais, como a do sábio Apo-
lônio de Tiana e a de Orfeu, aparecem nesse trecho do poema; o
ladrão é seguido de mulheres que fingem ser touros durante a noi-
te, e nesse mesmo momento a pedra retirada do fígado do galo de
Tanagre ressurge no texto. Antes disso, o coro diz que o ladrão
"était pâle il était beau comme un roi ladre". O emprego do adjeti-
vo ladre conduz a dois significados, "avaro" e "leproso", o que,
neste caso, proporciona leituras significativamente diferentes. Por
um lado, um rei avaro é aquele que nada quer dividir com seu rei-
no, é dono e senhor de tudo que o cerca; por outro, um rei leproso
seria aquele com quem as pessoas nada querem dividir, pois acre-
ditava-se que tudo o que cerca alguém afetado por essa doença es-
taria contaminado. Sendo assim, as posições se invertem: o que
poderia ser dividido no primeiro casoo o é por vontade do sujei-
to em questão; no segundo caso, o que poderia ser "dividido", di-
gamos assim,o o é por vontade daqueles que cercam esse mes-
mo sujeito. No caso do ladrão, ambas as posições lheo possíveis:
ele roubou, mas tinha fome, ninguém acredita em suas histórias,
porém ele tem os olhos líricos e, como assinala o verso final, ele
tem tão-somente le signe de la croix.
O rei leproso-avaroo foi convidado a ir viver na corte do
rei de Edessa, como, segundo a lenda, teria acontecido a Jesus.
Outro ponto de identificação do herói com o Cristo aparece na úl-
tima estrofe: "Va-t'en errer crédule et roux avec ton ombre", diz-
lhe o coro, aproximando a cor de seus cabelos à dos de Jesus. Nes-
sa parte do poema, a história do rei narrada por aquele também se
confunde com a própria história do ladrão. Nos versos finais, ele é
aconselhado pelo mesmo coro a errar com sua sombra, vierge - co-
mo pregava a Igreja e algumas seitas primitivas que proibiam o ca-
samento e, conseqüentemente, a união carnal - et froid. O concei-
to cristão da Santa Trindade aqui é igualmente aventado: "la
tríade est mâle", afirma o coro, considerando a figura de Deus o
ponto culminante da tríade sagrada.
Além das visíveis alusões e citações míticas de toda sorte, há
também no poema "Le larron" uma evidente conotação erótica,
sensual. A presença de Afrodite, a deusa do amor, na terceira es-
trofe do poema, abre caminho para outras marcas sensuais:
"l'inceste solaire et nocturne dans les nues" (v.30), as "Lydiennes
nues" (v.32), "Les convives c'étaient tant de couples d'amants"
(v.38), "des baisers florentins" (v.79), um "signe obscène" (v.81),
Belphégor, o deus moabita ligado a Príapo (v.82), "Cette furtive ar-
deur des serpents qui s'entr'aiment" (v.83), o fato de o ladrão ter
de partir dénudé (v. 102), e "Les femmes la nuit feignant d'être des
taures/ L`eussent aimé comme on l'aima" (v.l12)., na verdade,
uma atmosfera voluptuosa e de amor sensual, licencioso, da qual o
ladrãoo poderá fazer parte, pois seu único sinal é o da cruz, o
que caracteriza sua identidade e origem cristãs. Na leitura de Bois-
son (1989, p.478), o ladrão quis roubar os frutos sexuais e solares,
os frutos de fogo "ronds comme des âmes", para tornar-se criador.
Impotente (seria preciso preencher com noix sua besace e seu cou-
teau deixa tanto a desejar quanto a sua fé punique), privado do fo-
go gerador que eleo soube conquistar, vê-se expulso do lugar
onde é possível criar. Criação poética e potência sexualo (ao
menos na época em que escreve "Le larron") inseparáveis para
Apollinaire.
Paralelamente à imagem do poeta sensual, por assim dizer, o
larron é composto de traços de outras figuras míticas e lendárias,
tornando-se, dessa forma, uma grande "colcha de retalhos" mítica,
um monstro de raízes híbridas criado pelo doutor Frankenstein.
Podem-se citar ainda Prometeu, considerado o criador da raça hu-
mana, que roubou o fogo dos deuses para dá-lo aos homens, e de
certo modo, também crucificado e condenado ao martírio eterno
de ter seu fígado comido por uma águia durante o dia, e de vê-lo
renascer durante a noite para que a pena nunca findasse; Orfeu, o
pai de todos os poetas, que desceu aos infernos para ter sua amada
de volta, identificado no poema com o poète barbare, vindo "grâce
au vent scythe"; e, finalmente, Afrodite, a quem o ladrão é ligado
no sentido platônico, como já se registrou anteriormente. Vê-se
aqui a clara interferência de vários mitos e de seus protagonistas
em um mesmo poema, intensificando ainda mais a característica
da obra apollinairiana de recontar histórias míticas, que, já se sabe,
Apollinaire acredita serem verdades, ou mesmo premonições.
A "colcha de retalhos" costurada por Apollinaire pode ser ex-
plicada de duas formas. A primeira, que parte da mudança do con-
ceito de beleza apregoado pelo poeta, vai ao encontro de uma no-
va realidade, desconstruída e reestruturada pela imaginação, que
culminará na montagem de um mundo novo. Na verdade, aqui en-
traria um outro conceito, o da montagem, que - ao contrário da
colagem, relacionada com as artes visuais, com as relações espaciais
- diria respeito às relações temporais, às artes verbais e ressaltaria a
continuidade. Apollinaire, no caso, faz montagem de versos que se
repetem no interior de vários poemas, e toda essa matéria tor-
na-se, então, poesia nova.
A segunda forma estaria ligada à intertextualidade. Essa práti-
ca tem várias nuanças: a partir de que ponto se pode considerar in-
tertexto a inserção de um texto alheio ou até mesmo sua alusão
dentro de um poema, trabalho que Apollinaire faz com freqüên-
cia? Segundo Laurent Jenny (1976, p.277-8), a intertextualidade é
calcada em diferentes tipos de figuras, como a hipérbole, a elipse,
a amplificação, a intervenção etc. O que se pode depreender é que
Apollinaire trabalharia sobretudo com a intervenção, que, por sua
vez, possui várias modalidades: a intervenção da situação enuncia-
tiva, na qual o receptor muda em razão da instabilidade do conteúdo
do discurso; a intervenção da qualificação, na qual actantes ou cir-
cunstantes da narrativa de origemo retomados, mas qualifica-
dos antiteticamente. Há igualmente a intervenção da situação dra-
mática, que ocorre quando o esquema actancial da narrativa de
origem é modificado por transformação negativa ou passiva e, fi-
nalmente, a intervenção dos valores simbólicos, na qual os símbo-
los elaborados por um textoo retomados com significados opos-
tos no novo contexto. É esta última modalidade de intervenção que
parece ser o recurso mais freqüentemente empregado por Apolli-
naire, pois ele modifica sobretudo os valores dos símbolos, dos mi-
tos, das citações de outros autores e suas próprias, dando-lhes nova
roupagem.
Além dos mitos aqui já referidos, em "Le larron" há também
traços de Dioniso, deus dos órficos, por causa das festas povoadas
de animais e máscaras citadas no poema; de Terambo, cantador de
poemas e tocador de lira, que falava muito e que fora transforma-
do em inseto pelas ninfas, como l'insecte jaseur do poema, procu-
rando a morte na floresta; e, finalmente, do homem primordial,
Adão, que prova do fruto roubado, mudando assim toda a história
da Humanidade. Essa mistura de mitos e lendas recontados de
uma nova maneira faz do poema "Le larron" um exemplo típico e
vivo da presença da fábula em Apollinaire, queo se contenta
apenas em recontar essas lendas, retomando-lhes o esquema nar-
rativo, mas ainda o faz de maneira a valorizar e resgatar o simbo-
lismo do qual bebeu. É assim que aparece seu diálogo com o sim-
bolismo, cujos hermetismo, temática e forma podem ser identificados
em seus poemas.
Existem ainda no poema traços de intratextualidade: a leitura
de "Le larron" faz lembrar bastante um conto de Apollinaire cha-
mado "Le roi Lune", publicado em 1916. Nesse conto - no qual
abundam referências míticas, lendárias e até de seitas secretas, fa-
zendo crer a alguns que seu autor fosse um iniciado -, um cami-
nhante descobre, em uma caverna dos Alpes bávaros, o rei Luís II
da Baviera, nascido no mesmo dia em que Apollinaire e que havia
sido dado como morto. O caminhante participa de um festim com
tintas de orgia nesse reino labiríntico e subterrâneo, com músicas e
ares oníricos, vê-se transportado aos mais distantes e exóticos lu-
gares do planeta, incluindo o Brasil, representado pela cidade do
Rio de Janeiro no carnaval, e é ele próprio quem diz no final que,
por muito tempo,o ousou contar a ninguém sua aventura.
Assim como o ladrão, o narrador se encontra em um lugar para o
qualo foi convidado.
Outra presença da intratextualidade diz respeito ao poema
imediatamente anterior a "Le larron", "Saltimbanques". Figuras
errantes surgem em quantidade nesse poema, presenças constan-
tes nos versos de Apollinaire. O larron também é um ser errante,
que se encontra em lugar estranho à sua história, tornando-se as-
sim exótico, estranho, étranger malhabile, como o arlequim, o
charlatão, as feiticeiras, fadas e encantadores de "Saltimbanques".
Porém, a figura errante por excelência na obra de Apollinaire é
Croniamantal, protagonista do conto "Le poète assassiné", que,
como o ladrão de "Le larron", é convidado a participar de um ban-
quete e também declina do convite, interrompendo-o bruscamen-
te, desejoso de abandonar um mundo queo é o seu, ao qualo
pertence e no qualo se sente à vontade.
Desse modo, a sobreposição/congregação de diversas mani-
festações fabulares convergem em "Le larron". Alusões mais sutis
a outros mitos, eoo perceptíveis em uma primeira leitura,
marcam presença igualmente nesse poema. O fato de o ladrãoo
ter aceitado nenhum dos alimentos que lhe foram oferecidos, co-
mo em um ritual, permite uma nova leitura do poema. O espaço
em que o herói se encontra e no qual se sente deslocado poderia
ser o reino dos mortos, haja vista a presença das fèves no texto. O
jejum ao qual ele se submete poderia indicar o fato deo querer
partilhar desse mundo, a negativa total de integração, esta última
várias vezes a ele ofertada em forma de sal,o de fermento, cal-
do, vinho, favas e massa frita, nessa ordem. A maioria dessas ofe-
rendas traz em si uma característica comum, a deo serem vivas,
a deo terem nem o colorido, nem o frescor dos frutos roubados
pelo ladrão e queo fazem parte da seqüência das ofertas.
Há aí também um novo mito, o de Cora (ou Perséfone): ao co-
mer um grão de romã (símbolo de fertilidade, proibido aos inicia-
dos e que representa um dos mais altos mistérios de Deus, seus mais
profundos julgamentos e de suas mais sublimes grandezas), que-
brando assim o jejum rigoroso dos infernos onde passava apenas o
inverno, ela é condenada a viver aí para sempre, tornando-se sua
rainha e esposa de Hades, seu deus. Apenas por intervenção de
Zeus é que ela pôde continuar a transitar entre os dois mundos.
Além disso, outra simbologia ligada a Perséfone é que ela repre-
sentaria aquele que passa pela morte para renascer, e pelos infer-
nos para chegar aos céus. O mito de Perséfone está, do mesmo mo-
do, ligado ao de Orfeu: ela congrega os inumeráveis heróis
civilizadores que, no mundo todo, roubaram o fogo para assegurar
a perenidade deste mundo e da vida (Chevalier & Gheerbrant,
1986, p.485). Enfim, todos esses heróis míticos nada maiso do
que avatares de Apollinaire. É prova disso o próprio larron, seu
avatar por excelência, ligado diretamente ao poeta pelos "yeux
lyriques" (v.49).
Outra citação míticaoo evidente está presente no fato de
o ladrão querer comer frutos e também de lhe terem sido ofereci-
dos "beignets de fleurs" (v.44). Ulisses, ao chegar ao país dos Lotó-
fagos, isto é, comedores de loto, frutos queo flores com gosto de
mel, enviou seus marinheiros para lá antes de seu próprio desem-
barque. Ao comerem desses frutos, ofertados pelos habitantes do
país, os companheiros do marido de Penélope esqueceram-se de
tudo o que precisavam fazer, até mesmo de voltar a bordo. Ulisses
precisou desembarcar e ir chamá-los, recorrendo à ajuda dos deu-
ses para obter sucesso na empreitada. No longo poema "Le prin-
temps", publicado em Le guetteur mélancolique, Apollinaire tam-
m faz menção a esse mito, autenticando mais uma vez aqui a
intratextualidade presente em sua obra, uma das formas da mani-
festação de fábula em seus escritos:
Et l'on vogua jusqu'au pays de Lotophages
Cueillir des coeurs nouveaux et les fleurs du printemps (p.558)
Várias partes desse poema serviram a Apollinaire em outras
ocasiões, como as três primeiras estrofes em "Les fiançailles", bem
como os dois últimos versos da décima segunda; a décima quinta
em "L'émigrant de Landor Road"; a décima sétima, com algumas
variantes, em "Le brasier", reforçando uma vez mais a intratextua-
lidade e a capacidade do autor de Alcools de recontar até mesmo
suas próprias histórias...
"L`ERMITE"
Le mal-aimé
Após "Merlin et la vieille femme" e "Le larron", "L'ermite"
fecha a trilogia simbolista de Alcools. Mais curto que o anterior-
mente analisado, apresenta-se com 96 versos alexandrinos distri-
buídos em 24 estrofes e é contemporâneo dos outros dois. O título
do poema remete a um duplo sentido, pois ermite tanto pode sig-
nificar alguém solitário, afastado do convívio social, quanto per-
tencente a uma ordem religiosa. Dessa forma, pode-se dizer que
tanto o sagrado, o espiritual, quanto o profano, o simplesmente
humano, estão ligados no título do poema, fato que reflete seu he-
rói.o justamente esses pólos opostos que irão duelar o tempo
todo dentro do eremita, seu lado religioso e sua faceta sensual, de
homem fraco, tentado pelos prazeres carnais e terrenos, que ao
mesmo tempo dialoga com o Senhor, absolve os mais perdidos,
mas quer que esse mesmo Senhor faça que ele se apaixone... Cabe
ao poema decifrar (ou não) essa dualidade que aparece igualmente
nos provocativos encontros de palavras, aos quais se fará referên-
cia mais adiante.
O aspecto narrativo do poema apresenta-se logo nos versos
iniciais:
Un ermite déchaux près d'un crâne blanchi
Cria Je vous maudis martyres et détresses (p.100)
O personagem principal desse poema é também portador de
um desejo insatisfeito, desperta no bojo da "prosa sensual" reivin-
dicada por Aragon e Desnos no momento em que o canto formal
da narração se confunde com uma ficção que canta (Tadié, 1978,
p.46). Uma fina ironia concentra-se no "eremita descalço", pois há
uma ordem de Santo Agostinho denominada "eremitas calçados".
Outro fator que imediatamente chama a atenção do leitor dos três
poemas simbolistas é o fato de que todos os seus protagonistas gri-
tam: no primeiro, "...l'antique Merlin dans la plaine désertel Se
frappait la poitrine en s'écriant Rival"; o ladrão "...cria Je suis chré-
tien"; e por fim, o eremita.o personagens desatinados, desloca-
dos, alterados, protestando, em um misto de medo e de afronta em
relação a algo queo lhes agrada, a uma situação adversa. Enfim,
o personagens que buscam um lugar, que à primeira vista perde-
ram e pretendem retomar. No caso do eremita, mais do que gritar,
ele amaldiçoa os "martírios e aflições" que o angustiam. Alguns
versos adiante, seus gritos s'enrouent, aplacados com "un morceau
de gruyère" (v.8), e a marca do queijo talvez pudesse ser indicativo
da região na qual se passa o poema, a Suíça.
Na estrofe seguinte, iniciada pelo vocativo "Ô Seigneur",
Apollinaire causa uma aproximação no mínimo inusitada - "Ô Seig-
neur flagellez les nuées du coucher/ Qui vous tendent au ciel de si jolis
culs roses" (v.9 e 10), mudando bruscamente o tom solene que até
então permeava o poema. O emprego de termos vulgares, mais do
que o prazer da provocação, expressaria uma carga de emoção e
uma força de expressão irredutíveis e irrepreensíveis. Em seguida,
há uma indicação temporal, é mais uma vez a primavera que marca
presença, como em "Merlin et la vieille femme". Partes do corpo
humano ou fluidos a ele relacionados aparecem: crâne (v.l), nari-
nes (v.7), culs (v.10), nombrils (v.14), doigts (v.15, 17, 70), ongles
(v.18), mains (v.20, 48, 76), sexe (v.23), sang (v.30, 35, 38, 89),
genoux (na expressão à genoux, v.34), coeur (v.34, 87), artères
(v.34), aorte (v.36), sueur (v.37), nez (v.39), vulves (v.45), tétons
(v.46), peaux (v.48), yeux (v.54, 94), squelette(s) (v.57, 70), tétins
(v.64), e finalmente, poitrine (v.91).o há nenhuma outra ocor-
rência das três palavras que indicam apenas partes do corpo femi-
nino em toda a obra de Apollinaire - tétins, tétons e vulve -, o que
reforça ainda mais a sensualidade do poema. Faz-se importante
notar queo há nenhuma referência corporal masculina, do que
se pode deduzir que esse corpo, construído pouco a pouco, desor-
denada e fragmentariamente, à maneira cubista, é o de uma mu-
lher, o da mulher tentadora que povoa os pensamentos "impuros"
e "pecaminosos" do eremita pur e contrit que justamente as mu-
lheres pecadoras amam. A ocorrência maior é a de sang, seguido
de mains e doigts, palavras realmente freqüentes na poesia apolli-
nairiana, mas que em "L'ermite"m uma forte presença, bem mais
marcante do que em "Merlin et la vieille femme", por exemplo. Po-
de-se dizer que o caráter sensual que marca o poema deve muito a
essa abundância, e que o fato de o sangue estar em quatro versos
diferentes significaria ao mesmo tempo o sacrifício e o renasci-
mento, a morte e a vida. Desse modo, dualidade e simultaneidade,
marcas da modernidade, encontram-se conjugadas nos versos de
Apollinaire.
Na seqüência, o ermitão fala ao Senhor dos homens e de seus
costumes, como seo se colocasse entre eles, porém pede-lhe que
faça que "se enamore" e confessa:
J`attends celle qui me tendra ses doigts menus
Combien de signes blancs aux ongles les paresses
Les mensonges pourtant j'attends qu'elle les dresse
Ses mains énamourées devant moi l`lnconnue (p.100)
Em seguida, confessa-se unicórnio, também um símbolo dual,
pois, além de significar pureza e poder, há nele ainda a clara refe-
rência ao símbolo fálico explicitado pelo único chifre no meio da
testa, e, simultaneamente, seu mito é aquele da fascinação que a
pureza continua a exercer nos corações mais corrompidos (Cheva-
lier & Gheerbrant, 1986, p.569). Assim, toda a dualidade contida
no eremita é definida nessa figura mítica, já que, nos versos seguin-
tes, após dizer que é um unicórnio, ele acrescenta que "Comme un
poupou chéri mon sexe est innocent". A nudez do Cristo aqui tem
uma conotação diferente daquela pregada pelo cristianismo, pois
posicionada na seqüência dos versos anteriores, tem seu caráter
sensual ressaltado no apelo do eremita ao Senhor:
Seigneur le Christ est nu jetez jetez sur lui
La robe sans couture éteignez les ardeurs (p.101)
O eremita, ao pensar que poderia se igualar a Cristo e suar
sangue, após rir dos condenados, diz que se enganou, já que o san-
gue que dele vertia pingava de seu nariz, "A cause des parfums vio-
lents de mes fleurs". Seu desdém estende-se dos condenados ao
"velho anjo", reforçado pelo verbo rire, com três ocorrências qua-
se seguidas - "J'ai ri des damnés" (v.38), "J'ai ri du vieil ange"
(v.41), "J'ai ri de l'aile grise" (v.43) -, que mais adiante se transfor-
ma em "Vertuchou Riotant des vulves des papesses/ De saintes sans
tétons", de conotação mais amena. Aqui, embora o verbo seja me-
nos intenso, a seqüência poderia chocar, por criar aproximações
que misturam partes do corpo pertencentes apenas à mulher, com
papisas e santas, personagens que, aparentemente, e sobretudo pa-
ra o cristianismo,o (ou deveriam ser) assexuadas. Entretanto,
apesar dessas fortes imagens, o eremita afirma que talvez possa até
morrer pela sua virgindade "Parmi les mains les peaux les mots les
promesses", palavras que poderiam sugerir um idílio amoroso. No
verso 49, "Malgré les autans bleus je me dresse divin", Apollinaire
faz uma brincadeira com a palavra provençal autan, que, seguida
de blanc, significa vento violento, quente e seco, que sopra do su-
doeste em direção à região da cidade de Toulouse, no sul da Fran-
ça, e seguida de noir, denomina o vento chuvoso. Pois bem, para
Apollinaire les autanso azuis, causando estranheza ao leitor mais
familiarizado com expressões específicas da Provença.
O eremita continua a contar que suplicou emo aos santos
queo possuem um dia dedicado a eles no calendário - "les saints
aémères" - os "doux pains sans levain", ou seja, a hóstia, cuja fun-
ção é a de comunhão com Cristo. Como cabe a um ermitão, ele an-
da e foge; em suas noites aparece Lilith que, segundo a lenda de
tradição hebraica, assombra a noite dos mortais com seus uivos.
Lilith seria a mulher que precedeu Eva, independente da costela
de Adão, comparada à lua negra, à sombra do inconsciente, às obs-
curas pulsões. Ela devora os recém-nascidos, ela própria devorada
pelo ciúme. Na leitura de Madeleine Boisson (1989, p.167), Lilith
representaria, na obra de Apollinaire, ae ambivalente, desespe-
rada e assassina. A presença de seus uivos é marcada também em
"Le poète assassiné" e em L`enchanteur pourrissant, o que indica
mais uma vez a intratextualidade, um dos procedimentos utiliza-
dos por Apollinaire em suas criações fabulares.
O eremita continua sua fuga, que atravessa a noite e alcança
a alvorada. Seria interessante relembrar que a figura do errante
marca forte presença na obra de Apollinaire: saltimbancos, ciga-
nos e imigrantes perambulam solitários, muitas vezes sem chegar a
lugar nenhum. Uma outra referência mítica surge na estrofe se-
guinte. Emborao sejao clara ao leitor menos preparado, as in-
formações contidas no verso 57, "Un squelette de reine innocente
est pendu", remetem seguramente à figura de Erígone, "virgem er-
rante" como o eremita, que ao encontrar o cadáver insepulto de
Icário, seu pai, morto injustamente por pastores que acreditaram
que ele tivesse querido envenená-los, enforca-se em uma árvore.
Dioniso, inconformado, vinga-se, suscitando uma loucura generali-
zada nas mulheres da região que, por sua vez, se enforcam também.
Uma série de animais aparece nos versos que seguem:
Des hiboux et voici le regará des brebis
Et des truies aux tétins roses comme des lobes
Des corbeaux éployés comme des tildes font
D'avoir des hiboux morts cloués à leur plafond (p.102)
Corujas e corvoso animais carregados de simbologia, e a lo-
ba remete facilmente à lenda da criação de Roma, cidade natal de
Apollinaire. O eremita narra vários fatos passados até sua chegada
a uma cidade na qual benzeu as multidões quando de sua entrada e
riu novamente de seus "... palais tels que des truffes/ Blanches au
sol fouillé de clairières bleues". Munido de uma cucuphe, espécie
de boné da Idade Média em que se guardavams medicamento-
sos, recebe todas as mulheres quem até ele para confessar seus
pecados, e dirige-se ao Senhor dizendo:
Et Seigneur je suis saint par le voeu des amantes
Zélotide et Lorie Louise et Diamante (p.102)
O primeiro prenome foi encontrado por Apollinaire na nove-
la Fiametta, do escritor italiano Boccaccio, e aparece também co-
mo nome de uma das parteiras de "Le poète assassiné". A narrati-
va muda de foco, agorao as mulheres que se dirigem ao eremita,
dizendo:
Ermite absous nos fautes jamais vénielles
Ô toi le pur et le contrit que nous aimons
Sache nos coeurs sache les jeux que nous aimons
Et nos baisers quintessenciés comme du miel (p.103)
Na penúltima estrofe, o eremita retoma a narrativa, dando
continuidade à confissão das mulheres, absolvendo-as:
Et j'absous les aveux pourpres comme leur sang
Des poétesses nues des fées des fomarines
Aucun pauvre désir ne gonfle ma poitrine
Lorsque je vois le soir les couples s'enlaçant (ibidem)
Nesses versos, o eremita demonstra sua simpatia para com as
prostitutas, colocadas no mesmo patamar que as fadas e as poeti-
sas. Seu derradeiro pedido consiste em apenas deixar seus olhos se
fecharem,
... couple lassé au verger pantelant
Plein du râle pompeux des groseillers sanglants
Et de la sainte cruauté des passiflores (ibidem)
Quanto à questão fônica e formal, há algumas observações in-
teressantes a fazer, pois, mesmo tendo salientado o aspecto narra-
tivo do poema, Apollinaire evidentementeo descuidou eo se
esqueceu de que compunha em verso. Assim, o eco no final do ver-
so 13, "Les humains savent tant de jeux 1'amour la mourre" (grifos
nossos), estende-se aos versos seguintes, criando um curioso para-
lelismo:
L'amour jeu des nombrils ou jeu de la grande oie
La mourre jeu du nombre illusoire des doigts (v.l4-5 - grifos
nossos)
Há várias comparações que criam aproximações insólitas e
bem criativas: "Comme un poupon chéri mon sexe est innocent";
"Malgré les autans bleus je me dresse divin/ Comme un rayon de lu-
ne adoré par la mer"; "Des hiboux et voici le regard des brebisl Et
des truies aux tétins roses comme des lobes"; "Des corbeaux éplo-
yés comme des tildes font/ Une ombre vaine aux pauvres champs de
seigle mûr"; "Sache nos coeurs sache les jeux que nous aimons/ Et
nos baisers quintenssenciés comme du miel". É a presença do efei-
to-surpresa manifestado em forma de comparações. Na primeira,
o fato de o eremita comparar seu sexo a um bebêo deixa de ter
sua faceta cômica; igualmente risível é o procedimento de colocar
lado a lado corvos {corbeaux) e o acento gráfico til (tilde), inexis-
tente na língua francesa, e que causa espécie ao leitor. O eremita
torna-se uma figura meio ridicularizada, quando se sabe que sua
fome só poderá ser aplacada com um mísero e estranho pedaço de
gruyère já farejado pelos ratos no assoalho. Sua suposta hemati-
drose resume-se a um ínfimo sangramento no nariz; seu riso sofre
uma diminuição de intensidade demarcada pela mudança do ver-
bo rire para rioter, como já foi comentado, ou seja, há elementos
que contribuem para um certo esmagamento de sua risível figura,
elementos demasiado humanos; todavia, apesar de todas as maze-
las, o eremita abençoa as multidões com as duas mãos.
Suas súplicas, vãs, dirigem-se justamente aos santos menos fa-
vorecidos, isto é, àqueles queo possuem um dia comemorativo
no calendário cristão; ele ouve as confissões das enamoradas e as
absolve, esvaziado de desejo ("Aucun pauvre désir ne gonfle ma
poitrine"), murcho, e seus olhoso passam de um casal entediado
e cansado.
Muitos paradoxos surgem no poema, anunciando um léxico
o contraditório quanto seu herói. O primeiro verso - "Un ermite
déchaux près d'un crâne blanchi" -, inaugurado com um eremita
descalço, poderia ser considerado um oxímoro "torto", pelo fato
explicado anteriormente. As tentações "acariciam" o ermitão; suas
narinaso rongées - roídas, antecedendo a confissão, no mesmo
verso, da fome que o persegue; sua aorta é avara; os perfumes das
floreso violentos; seus sonhoso frescos, corados; sua dor de
cabeça é piedosa eo seu espírito, "Car toutes sont venues
m'avouer leurs péchés". Esses paradoxos refletem exatamente to-
da a dualidade interna do eremita, em quem o sagrado e o profano
travam constante e violentamente uma batalha que terminará tam-
m com um oxímoro, "la sainte cruauté des passiflores". A flor da
paixão, com filamentos que lembram a coroa de espinhos coloca-
da em Cristo no momento da crucificação, com o pistilo indican-
do os pregos da Paixão - daí seu nome - e suas folhas que lembram
as lanças, também tem conotação sexual em virtude de seu dese-
nho, que une formas femininas e masculinas. A "santa crueldade"
refere-se certamente à coroa de espinhos, enfatizando assim o sig-
nificado da flor no poema e a posição importante que ela ocupa.
Desse modo, percebe-se que há no símbolo que fecha o poema -
les passiflores - a confirmação da dualidade que o permeia e que
atormenta seu herói do início ao fim.
Finalmente, o eremita é movido pela paixão, palavra cuja raiz
latina indica sofrimento - de Cristo e do homem. Esmagado pela
sua inexorável condição humana, tenta alcançar o divino, sem
conseguir desprender-se do que é terreno. Sua figura remete a duas
obras do século XIX: La tentation de Saint Antoine (1864), de Flau-
bert, e Thais (1890), de Anatole France, esta última baseada na
composição anterior, obras com cenário alexandrino e traços reli-
giosos e filosóficos, demonstrando que, além da própria intratex-
tualidade, Apollinaire também bebia nas fontes de seus antecesso-
res. Ao lado dessas relações, há uma ainda mais longínqua no
tempo: é a figura de Santo Agostinho, que também tem pontos de
contato com o herói de "L'ermite". Em suas Confissões, o religio-
so, corroído pelas dúvidas ao relembrar sua juventude, em um da-
do momento faz ao Senhor um pedido de castidade, "Dai-me a
castidade e a continência; maso ma deis" (Santo Agostinho,
1996, p.214), justamente em um capítulo dedicado a comentários
sobre jovens que se haviam tornado eremitas. Ora, conhecendo-se
o grande pesquisador e leitor que era Apollinaire, torna-se claro
que o poeta também buscou características de Santo Agostinho pa-
ra dá-las ao seu eremita...
Até no trabalho com as rimas Apollinaire soube expressar aque-
la característica dual. Em todo o poema, ele associa rimas masculi-
nas e femininas, astúcia pouco utilizada na época, fato que chama
a atenção, ou seja, a desarmonia interna e externa refletida no poe-
ma tem como espelho sua própria forma rimática.
Embora tenha suprimido toda a pontuação de seus poemas,
em "L'ermite" ele conservou ou mesmo acrescentou algumas maiús-
culas no meio dos versos em relação ao original, para diminuir, de
certa forma, a polissemia que aquela ausência poderia suscitar. Para
Steinmetz (1996, p.89), Apollinaire sugere uma "de-leitura" com
esse poema, e o esgotamento blasé do eremita corresponderia tal-
vez ao do próprio poeta, finalmente cansado pela inflação hermé-
tico-lírica de seu canto. Assim, seria possível afirmar que a frag-
mentação demonstrada em seus poemas seria concretizada no
momento de sua leitura, relativizada por cada leitor, que, por sua
vez, iria criar, destruir, inverter, sobrepor sentidos até chegar a
uma decifração possível dos versos e do poema em si.
Todos os três poemas em questão - "Merlin et la vieille fem-
me", "Le larron" e "L'ermite" - trazem o tema da busca e da soli-
dão, como bem ressaltou Lecherbonnier (1983, p.16): Merlin, ou
a solidão do encantador, detentor de antigos segredos que atraves-
sam os séculos; Le larron, ou a solidão do portador da Revelação;
L'ermite, ou a solidão do possuidor possuído, fato que culminará
em "L'émigrant de Landor Road", ou a solidão do que busca o ab-
soluto. Como antes se aventou, esses poemasm forma dramáti-
ca, uma seqüência narrativa e por isso podem ser recontados e re-
sumidos sem detrimento do sentido. Tentam impor um certo
conceito de verdade, eo repletos de uma atmosfera legendária
ou medieval bastante forte, de uma sensualidade exasperada, de
um cenário cheio de lugares-comuns: a encruzilhada, a ilha miste-
riosa, o pomar, uma espécie de "complacência na obscuridade".
O recurso freqüente a mitos e símbolos, por sua vez, demons-
tra que o poeta jamais abandonou suas raízes simbolistas, as quais
se imprimem em seus poemas, mesmo aqueles em que predomi-
nam imagens do mundo moderno e tecnológico que se anunciava
no início do século XX. Os cartazes nas ruas, os carros, os aviões,
os catálogos, as sirenes, as ruas urbanas e industriais que recheiam
"Zone"o elencadas por Apollinaire com o objetivo de aprofun-
dar o sentido da modernidade anunciada e ilustrá-la com aquela
"beauté nouvelle'' que tanto o fascinava. Dessa viagem simultanea-
mente instintiva e racional nasce uma nova estética da descontinui-
dade que valorizará ambos os lados, passado e futuro, sem detri-
mento de nenhuma das vertentes, apoiando-se na fábula e nos
revolucionários caligramas, exemplo novo de retomada de um
"gênero" até então esquecido. Sua nova abordagem da poesia va-
lorizará a beleza bizarra, louvando a tecnologia e o mecânico, na
esteira de Baudelaire e de Rimbaud e ao lado de Blaise Cendrars,
exemplo maior de modernidade incomparável.
Apollinaire, entretanto,o se limita à inspiração simbolista
que lhe trouxe tantas lendas e fábulas e tantos heróis míticos e in-
quietantes. Pelo contrário, ele lhes dá uma nova roupagem, dife-
rente daquelas que empregaram seus antecessores, como uma es-
pécie de renovação e, ao mesmo tempo, de certa popularização
dos mitos, dialogando com aquela tradição e reformando-a, reati-
vando-a. Como se viu em "L'ermite", vários símboloso dessa-
cralizados, esvaziados de seu significado primeiro, transformados
ao sabor da imaginação criativa do poeta, que parece questionar
os símbolos para devolver o poeta e a poesia a sua situação terres-
tre e humana, e à prova da carne. A fábula pode ser transformada,
invertida, pois ela é tomada na dinâmica de um imaginário e de
um sentimento que a modificam. Assim, além de ganhar nova rou-
pagem, a fábula também é recriada em diferentes versões, novas e
inovadoras, surgindo dessa criação um elo entre fábula e lírica,
passado e futuro, tradição e modernidade, sagrado e profano, cul-
tura clássica e civilização moderna, condensação e oposição, con-
tinuidade e fragmentação. Observa Boisson (1989, p.730-1) que
quando a Fábula desce à realidade cotidiana, torna-se fábula: no
caso de Apollinaire, a Fable seria então aquela exemplar, morali-
zante, o próprio mito, e a fable, por sua vez, aquela aplicada ao co-
tidiano, repetitiva, já que é baseada na primeira, a que ilustra com-
portamentos do homem. Nos poemas interpretados, há uma
verdadeira mistura das duas, e eis aí um ponto inovador na obra de
Apollinaire. A figura do poeta manifesta-se, por excelência, em-
rios poemas e sob diversas formas, como o ladrão, o poeta assassi-
nado Croniamantal, o eremita, o Cristo, o emigrante, os diversos
heróis das Rhénanes, ilustrando a mescla de tipos de fábula e de
mitos diversos.
O passado e sua simbologia desempenham um grande papel
na obra de Apollinaire, pois é dele que tudo o que será novo advi-
, e o poeta tem plena consciência disso. Já se comentou que, para
o poeta, os mitoso eles próprios previsões, sinais de um futuro
próximo ou longínquo, haja vista a lenda de ícaro e a invenção do
avião, por exemplo; assim, o antigo contém em si o moderno, o ci-
vilizado, o urbano. A princípio, nada há de novo;, sim, uma re-
leitura daquilo que já houve, na qual o tempo é totalmente abolido
por meio da simultaneidade presente em sua obra, sendo "Zone" -
poema que abre - e "Vendémiaire" - que encerra Alcools - seus
maiores exemplos. Personagens da mitologia originariamente
masculinos transformam-se em femininos e vice-versa, ou até as-
sumem dupla posição sexual, visando, por meio do exercício ili-
mitado da fantasia e do gosto pelo insólito, pelo bizarro, pela "nova
beleza" contidos no esprit nouveau, entre outras coisas, valorizar o
efeito-surpresa que Apollinaire tanto prezava.
"PALAIS" - PONTE E TRANSIÇÃO
ENTRE FÁBULA E LÍRICA
Le solide espace entre les étoiles et les planètes
O palácio ao qual se refere o título desse poema de Apollinaire
é aquele que o rei da Inglaterra, Henrique II (1133-1189), man-
dou construir para sua amante Rosemonde, para deixá-la a salvo
das investidas vingativas de sua esposa legítima, Alienor, que cons-
pirou inúmeras vezes contra o marido. Esse palácio labiríntico, si-
tuado em Woodstock, e a história de seus protagonistas fascina-
ram o poeta, excitaram a sua imaginação e levaram-no a
aproveitá-los diversas vezes em vários poemas, em mais um exem-
plo de intratextualidade: No Bestiaire, um dos poemas dedicados
a Orfeu diz:
Regardez cette troupe infecte
Aux mille pattes, aux cent yeux:
Rotifères, cirons, insectes
Et microbes plus merveilleux
Que les sept merveilles du monde
Et le palais de Rosemonde! (p. 15)
Em um dos poemas de "Les dicts d'amour à Linda", incluídos
em Il y a, Apollinaire refere-se a duas mulheres míticas para falar
da amada, Linda, que era irmã de um amigo e uma das primeiras
paixões do poeta:
Ainsi bayèrent par le monde
Viviane auprès de l'immonde
Et dans son palais Rosemonde
Qui fut moins belle que Linda (p.327)
Em "Le dôme de Cologne", de Le guetteur mélancolique, o
palácio de Rosemonde aparece ao lado da Torre Eiffel, o que indi-
ca um traço moderno já nos primeiros escritos do autor, o proce-
dimento de colocar lado a lado o antigo e o novo:
Dôme merveille entre les merveilles du monde
La tour Eiffel et le Palais de Rosemonde (p.538)
O que salta aos olhos no primeiro verso de "Palais" é a maiús-
cula de Rêve, pois, a princípio,o há nada que justifique seu uso.
Esse destaque dado à palavra será uma pista que marcará o clima e
a paisagem do poema. Aliada à simbologia da casa, a simbologia
contida em palácio é muito forte: ele representa magnificência, te-
souro e segredos, além de poder, fortuna e ciência. Nele, há sem-
pre três níveis, subterrâneo, terrestre e celeste: as três classes da so-
ciedade, as três funções. Ele simbolizará igualmente, do ponto de
vista analítico, os três níveis da psiquê: o inconsciente (o secreto),
o consciente (o poder e a ciência), o subconsciente (o tesouro ou o
ideal) (Chevalier & Gheerbrant, 1986, p.723). É em direção a esse
espaço rico em símbolos que caminharão os pensamentos descal-
ços e sonhadores do eu poético:
Vers le palais de Rosemonde au fond du Rêve
Mes rêveuses pensées pieds nus vont en soirée (p.61)
A importância que o poeta dá ao palácio e ao sonho reforça-se
pela repetição dessas palavras na primeira estrofe, "Le palais don
du roi comme un roi nu s'élèvel Des chairs fouettées des roses de la
roseraie", efeito queo se repetirá mais na extensão do poema. A
menção ao rei nu também poderia ser considerada como intertex-
tualidade, embora sutil, com o conto infantil em que o rei engana-
do por espertalhões sai nu pelo reino, para espanto dos súditos,
até que uma criança, inocentemente, diz o que todos viam.
2
2 Outros textos com os quais "Palais" estabelece uma relação de intertextualida-
de: o poema de Poe intitulado "The haunted palace" (1990, p.746-7) e tam-
m o poema de Samuel Daniel "The complaint of Rosemonde".
O eco de "Palais" se formará a partir do nome da personagem
Rosemonde, e do som [R], recorrente em todo o poema, marcando
a presença da amante do rei na totalidade dos versos e na violência
onírica das imagens apresentadas, como carnes chicoteadas por
rosas, cicatrizes perenes de mãos feridas por vidros, cabeças pen-
duradas por ganchos, sonhos natimortos que sangram, ossos e
danças macabras. Observados, seus pensamentos encontram-se no
fundo de um jardim, "Qui sourient du concert joué par les grenoui-
lles". A imagem desse jardim de rosas é distorcida pelo sol-espelho
quebrado, recorrente em Apollinaire, como em "Mon verre s'est
brisé comme un éclat de rire", último verso de "Nuit rhénane", e
sugerido em "Palais" pela presença das mãos que sangram ao bate-
rem contra os vidros.
Nesse poema, a segunda estrofe é a única em que as rimas se-
guem o esquema ABBA; as outras seguem o esquema ABAB em todos
os quartetos alexandrinos. As rimas reforçam as idéias contidas no
poema, como, na terceira estrofe, adultère e mystère, reforçando o
caráter de segredo que geralmente existe em uma relação adúltera;
millénaires e ossuaires e, na última estrofe, entrecôtes e pentecôtes,
ressaltando o caráter de festa judaicocristã, na qual é servida comi-
da, que poderiam ser os próprios entrecostos, por exemplo.
Na terceira estrofe, aparecem referências ao monarque adultère
de genoux pointus, a Madame Rosemonde e também aos Huns, mis-
turando épocas distintas; os olhos da amanteo comparados aos
olhos do povo possivelmente mongol. Porém, há outras relações
que justificariam a comparação: Remy de Gourmont, ao traduzir
Sidônio Apolinário em Le latin mystique, escreve que os hunos
m olhos que parecem absents; além disso, nos Chants de Maldo-
ror, de Lautréamont, também há uma referência aos "petits yeux
de l'homme, pareils à ceux du sanglier pour la petitesse, et à ceux
des oiseaux de nuit pour la perfection circulaire du contour" (apud
Boisson, 1989, p.253-4). O poeta (ou seria o rei?) dirige-se, em se-
guida, à própria Rosemonde, por meio de um vocabulário mais
grosseiro, contrastando assim com o tom mais solene do poema:
Dame de mes pensées au cul de perle fine
Dont ni perle ni cul n'égale l'orient
Qui donc attendez-vous
De rêveuses pensées em marche à l'Orient
Mes plus belles voisines (p.61)
Imagens desconcertantes surgem na seqüência:
La veilleuse dans l'ombre est un bijou d' or cuit
Pendez vos têtes aux patères par les tresses
Le ciel presque nocturne a des lueurs d'aiguilles (p.62)
Repentinamente, um sujeito indeterminado - on - entra em
uma sala de jantar rescendendo a gordura e a alimentos velhos;
três dos vinte caldosm cor de urina, "Et le roi prit deux aeufs po-
cbés dans du bouillon". Para completar o quadro inesperado, aju-
dantes de cozinha trazem carnes e assados de pensamentos mor-
tos; os sonhos são, como já se disse, natimortos apresentados em
fatias sangrentas, e as lembranças "faisandés en godiveaux", crian-
do novas imagens inusitadas, que se multiplicam nas estrofes se-
guintes:
Or ces pensées mortes depuis des millénaires
Avaient le fade goût des grands mammouths gelés
Les os ou songe-creux venaient des ossuaires
En danse macabre aux plis de mon cervelet
Et tous ces mets criaient des choses nonpareilles
Mais nom de Dieu!
Ventre affamé n'a pas d'oreilles
Et les convives mastiquaient à qui mieux mieux (ibidem)
E interessante notar a presença do ponto de exclamação, re-
petido na estrofe seguinte, pois é o único sinal de pontuação con-
servado pelo poeta. Esses versos sugerem que tudo se passa na
imaginação do eu poético, e o palácio é, na verdade, um labirinto,
a imagem principal que retrata esse interior. Os alimentos conti-
nuam a gritar na estrofe final desse festim imaginado, durante o
qual o eu poético pergunta "Langues de feu où sont-elles mes pen-
tecôtes/ Pour mes pensées de tous pays de tous les temps". Aí apare-
ce novamente a intratextualidade, pois esse estranho banquete re-
mete imediatamente ao festim servido em "Le roi lune". Ora, é
dentro de sua imaginação-palácio, labiríntica, exercida ao máxi-
mo, partindo de uma história contada por um amigo e fortemente
modificada, que Apollinaire se despedirá do simbolismo, de certo
modo até satirizando-o por meio das imagens excessivas que com-
põem o poema. Assim, o exercício da fábula reaparece nele, em
uma história recontada e modificada pelo poeta.
O palácio é recheado de lembranças, de referências ao passa-
do, e sua rainhao é senão a memória. Porém, lampejos de um
lirismo futuro em Apollinaire aparecem nessas imagens, e por
esse motivo "Palais" é considerado um poema de transição entre
o simbolismo quase abandonado e o modernismo que aflorava
no poeta.
O encantamento que a figura de Rosemonde exercia sobre
Apollinaire talvez tenha raízes em sua vida pessoal, pois, segundo
alguns estudiosos de sua obra, a amante inglesa seria também um
avatar de Annie, a jovem inglesa que ele amou obsessivamente du-
rante sua permanência na Alemanha. Boisson faz aproximações
relevantes a esse respeito: Annie continua, na lembrança de Apol-
linaire,o loira eo redonda quanto a lua. Ora, a heroína de
"Palais", na qual os melhores críticos reconheceram um avatar da
imagem de Annie, e de uma Annie lunar, é duplamente circular:
Madame Rosemonde roule avec mystère
Ses petits yeux tout ronds pareils aux yeux des Huns
Dame de mes pensées au cul de perle fine
Dont ni perle ni cul n'égale l'orient (p.61)
Desse modo, Apollinaire transpõe sua própria história mítica
para o poema, em uma dupla intratextualidade, porque ela remete
seu texto à sua vida, que tem muitos pontos "fabulosos": ele pas-
sou sua vida aprofundando o sentido de certas fábulas, histórias
simbólicas de uma aventura ou de uma aspiração humana, a ponto
de fazer de alguns seres lendários, históricos, fabulosos, duplos de
si mesmo.
Tanto o romantismo final quanto o simbolismo criaram anti-
heróis. Apollinaire reflete um pouco de cada um deles, decalcan-
do-os em seus poemas simbolistas, em um primeiro momento, e
vanguardistas, em seguida. É prova disso a obsessão do poeta por
ter a própria vida citada e recitada inúmeras vezes em seus textos,
em fazer de seus personagens múltiplos avatares.
Baseados em alguns pontos da obra do filósofo sueco Emma-
nuel Swedenborg, que tratam das correspondências entre ou e a
Terra, os poetas românticos, seguidos pelos simbolistas, iriam va-
lorizar o sujeito, o espírito. Os companheiros de Baudelaire iriam
desenvolver ao máximo a teoria do escritor sueco, cujos estudos
seriam o núcleo do simbolismo; Apollinaire identificou-se com es-
sa linha e procurou segui-la. Além disso, o mistério, o desconheci-
do, o místico foram privilegiados, o que se pode notar sobretudo
nos três poemas anteriormente analisados. Edgar Allan Poe seria
um dos poetas que iriam influenciar os partidários do movimento
simbolista, ao eliminar o caráter moralizante da poesia e substi-
tuí-lo pela suprema beleza. Apollinaire era seu leitor e seguidor. A
pregação da beauté nouvelle seria igualmente calcada nessa primei-
ra influência.
Embora o romantismo e o simbolismo tenham raízes pratica-
mente idênticas, este último soube dosar o desvario das emoções e
soube valorizar o símbolo, a capacidade de sugerir, ou seja, o em-
prego racional das metáforas, reinventando-as. Eis aí a revolução
poética que nascia com o fim do século XIX. O poeta seria consi-
derado um vidente, denominação que lhe deu Arthur Rimbaud,
tendo em vista que cabe a ele decifrar os enigmas trazidos pelas
correspondências por meio do desregramento de todos os sentidos.
Essa nova ótica em relação ao papel do poeta é uma das principais
diferenças entre o romantismo e o simbolismo.
Cada poeta soube, a seu modo, trabalhar com os enigmas e os
mistérios por eles cantados. Em Mallarmé, essa prática atingiu seu
auge; a busca do entendimento de seus poemas requer esforço e
concentração por parte do leitor; em um quase esvaziamento total
de sentido, por meio de uma atitude metafísica, o poeta faz um
trabalho complexo e que atinge um elevado grau de obscuridade.
Com Verlaine, é a propriedade musical e a sonoridade das pala-
vras que evocam o mistério. Porém, nenhum deles quer decifrá-lo
totalmente; o objetivo é evocar, sugerir, e nunca revelar, tentando
assim, recuperar a essência perdida da poesia, por meio do símbo-
lo. Apollinaire, por sua vez, carregará de símbolos herméticos sua
poesia neo-simbolista, quase rarefeita, buscando, como seus ante-
cessores, encontrar a poesia pura e preparar o caminho das van-
guardas. Herdeiro do romantismo, e mais ainda do simbolismo,
bebeu nas duas fontes para poder falar de si mesmo, de seu eu poé-
tico, traduzido em Merlins, ladrões, eremitas, mal-amados, saltim-
bancos...
3 RITO DE PASSAGEM E FUSÃO:
FABULÍRICA
A la fin tu es las de ce monde ancien
Uma das questões que se apresentam em relação à lírica e à
fábula na poesia de Apollinaire é se elas seriam manifestações
poéticas distintas. A medida que a leitura de seus poemas se torna
mais profunda, podem-se traçar linhas tênues de divisão, que, em
um determinado ponto, convergem. Sua lírica revela-se nas mais
diversas formas, queo desde o único monóstico de Alcools,
"Chantre" - "Et 1'uniqne cordeau des trompettes marines" - até
os revolucionários calligrammes, ou, nas próprias palavras do
poeta, "idéogrammes lyriques". A lírica de Apollinaire faz-se
também dos temas recorrentes e caros ao poeta: amores desen-
cantados e sofridos, a morte, a natureza e sobretudo o outono.
Além destes, no dizer de Décaudin & Leuwers (1996, p.320-1), o
poeta é obcecado pela ambigüidade do verdadeiro e do falso, pe-
la abolição do tempo em uma experiência do eterno. Porém, é a
própria figura do poeta que, por meio de sua criação, domina o
tempo e o amor.
O CICLO DAS RHÉNANES
Um ponto a ser ressaltado no que tange à organização da cole-
tânea Alcools refere-se à ordem dos poemas no livro. Se à primeira
vista ela parece arbitrária, percebe-se logo, após uma leitura mais
atenta, uma espécie de espelho simétrico que organiza a seqüência
dos poemas, ou de grupos de poemas, em torno de um eixo cen-
tral. Morhange-Bégué Sc Lartigue (1991, p.37) assim demonstram
essa organização:
Tome-se como exemplo, por sua vez, o ciclo das Rhénanes:
ele também possui sua própria organização interna, com estrutura
semelhante à anterior, demonstrando até mesmo uma visão circu-
lar do tempo, freqüente em Apollinaire:
"Nuit rhénane": a noite
"Mai": a natureza
"La synagogue": as particularidades de um culto
"Les cloches": cor local
"La Loreley": amor e morte, unidos no personagem da feiticeira,
mulher fatal
"Schinderhannes": cor local
"Rhénane d'automne": as particularidades de um culto
"Les sapins": a natureza
"Les femmes": a noite
Atentando para esse esquema acima, tem-se como poema axial
"La Loreley", que já difere em sua estrutura interna dos outros que
o rodeiam por ser composto de dísticos.
O ciclo das Rhénanes ocupa uma parte significativa deste estu-
do por apresentar características que se estendem por todo o resto
da obra apollinairiana e também por trazer em seus poemas tanto
manifestações líricas quanto de fábula, fazendo o papel de ponte e
conversão dos dois fenômenos. Por diversas vezes a fábula marca-
rá presença nesse ciclo, desdobrada tanto nos momentos em que
os personagens dos poemas tiverem voz própria e suas falas forem
reproduzidas quanto nas histórias fabulosas que forem narradas.
O ciclo renano tem uma origem marcadamente biográfica,
pois apresenta relação com um período muito especial da vida de
Apollinaire. Durante um ano, de agosto de 1901 a agosto de 1902,
o poeta viveu na Alemanha, trabalhando na casa de uma família
franco-alemã, os Milhau, como preceptor de francês de uma filha
do casal. Foi nessa época que Apollinaire se apaixonou pela gover-
nanta inglesa da casa, Annie Playden, para quem ele faria igual-
mente uma série de poemas, mais tarde conhecida como o ciclo de
Annie. Impressionado pela paisagem que rodeava o Rio Reno, e
também perturbado pela paixão, Apollinaire compõe o ciclo de
poemas Rhénanes, assim denominado pela presença marcante do
ambiente germânico que o rio impõe.
Esse conjunto de nove poemas já apresenta os procedimentos
que marcarão a obra inovadora do poeta, tais como jogos sonoros,
figuras e adjetivações inesperadas, simultaneidade, ausência de
pontuação, mistura da linguagem coloquial à linguagem poética e
até transformação da primeira na segunda; enfim, traz também mar-
cas de originalidade, traços da modernidade que aí brotavam e que
iriam perdurar e aperfeiçoar-se em toda sua produção posterior.
"NUIT RHÉNANE"
Como já assinalamos anteriormente, o poema que abre o ciclo
trata da noite já em seu título, "Nuit rhénane". Esse tema terá seu
eco na última composição do ciclo, "Les femmes". O poema "Nuit
rhénane" (Apollinaire, 1994a, p.lll) é composto de três quarte-
tos seguidos de um verso isolado, todos alexandrinos clássicos. Tal
procedimento lhe impõe um ritmo marcado desde o primeiro ver-
so: "Mon verre est plein d'un vin trembleur comme une flamme".
Esse verso retoma indiretamente o título da coletânea, a partir das
palavras verre e vin. Por si, elas contêm o traço da aliteração em
[v], entremeado das líquidas [1] e [R] e de sons nasalizados, alter-
nância que nos leva à palavra trembleur e à comparação de um-
quido e de um elemento em combustão, a chama; afinal, o álcool é
a água que queima.
A presença do copo vai alertar o leitor para o fato de que o
que ali está escrito pode ter surgido sob os efeitos do álcool. Há
uma contínua descrição nessa primeira estrofe, em que aparece a
figura de um barqueiro que canta e conta ter visto, durante uma
noite enluarada, "... sept femmes/ Tordre leurs cheveux verts et
longs jusqu'à leurs pieds". Essas figuras oníricas fazem parte de
uma lenda germânica sobre sete mulheres, filhas do próprio Reno,
feiticeiras perigosas que atraem os homens para o fundo do rio, tal
qual as sereias e as ondinas, que simbolizam, todas, os sortilégios
da água e do amor, ligados à morte - ou seja, representam os peri-
gos de uma sedução à qual o indivíduo se entrega sem controle.
Assim, percebe-se, embutida em um só mito, a presença da água,
da morte e do amor, temas importantes nesse conjunto de poemas.
Apollinaire usa o mito como mote para a presença da fábula em
seu poema e, por conseguinte, transforma esta última em lírica.
Há elementos opostos entre si que se alternam no interior des-
se poema: a água, na figura do álcool e do próprio rio, e o fogo,
encarnado na chama, no ouro: "Tout l'or des nuits tombe en trem-
blant s'y refléter". O mesmo ocorre, obviamente, no próprio álcool
presente no vinho, que traz em si uma dupla propriedade: serve de
elo entre os dois elementos e remete novamente ao que podería-
mos chamar de palavras-chave do poema, "vin trembleur comme
une flamme". Há uma rima muito significativa, flammelfemme
(v.l e 4), aliada a outra, mourir/rire (v.9 e 11). As mulheres do poe-
ma, de cabelos verdes mas de pele cor de ouro, blondes, por meio
de seu canto e alegria trazem a morte a barqueiros mais desavisa-
dos. Eis novamente a presença do amor e da morte, que são, como
se sabe, temas freqüentes em Apollinaire.
Na segunda estrofe, há o nítido cruzamento de sonho e reali-
dade, lenda e cotidiano. Aquele mesmo que pede para que se escute
a canção do barqueiro, no verso 2, agora pede para que se dance e
cante, e que se coloquem perto dele "... toutes les filies blondes/ au
regard immobile [como o de quem quer hipnotizar, encantar] aux
nattes repliées". Ao que parece, ou o eu poético desconhece a len-
da, ouo a teme, ou ainda quer deixar-se levar por essa sedução
mágica, efeito que o álcool também provoca em quem o consome.
Mais uma vez, há o resultado do álcool transposto para uma nova
figura e, assim, a mistura de algo concreto, real (o álcool) a uma
lenda e ao poder que suas figuras exercem.
A terceira estrofe traz a personificação do Reno, que, por sua
vez, também se encontra embriagado, e das vinhas, que fazem do
rio um espelho. A voz, da qual antes se ouvia o canto, "chante tou-
jours à en râle-mourir" (v.ll) enquanto o próprio verão é enfeiti-
çado pelas fadas (v.l2).
O último verso, separado das outras estrofes, tem novamente
o copo do primeiro, dessa vez quebrado por uma gargalhada. O
fato de ser uma estrofe de um único verso transpõe para a forma a
rapidez da atitude que acaba por quebrar o copo. Os sons recor-
rentes nesse verso jáoo os mesmos do primeiro: aqui, a repe-
tição do [R] remete aos estilhaços do vidro quebrado: veRRe, bRisé,
RiRe. No dizer de Guacira M. Machado, traços da modernidade
misturam-se em "Nuit rhénane": é um poema moderno pela utili-
zação sistemática da gama sonora e rítmica, como elementos poé-
ticos capazes de provocar efeitos nas invocações, os mitos ou a
simples realidade cotidiana, todo esse material que a poesia con-
m no século XX. Uma obra poética que sabe maravilhosamente
como sugerir, passar ao leitor todo o mistério do mundo e dessa lin-
guagem poética que pretende exprimi-la (Machado, 1984, p.75).
Há também nesse poema a presença do sobrenatural, manifes-
tado de várias maneiras: explicitamente, na canção do barqueiro;
sugerido, na "animação" da natureza e no último verso. Tais ele-
mentos reforçam a lírica em relação à fábula. O próprio emprego
do adjetivo trembleur no primeiro verso (de uso antigo, referin-
do-se apenas a seres animados, e que Apollinaire retoma) já justa-
e lírica e fábula, poesia e maravilhoso. Desse modo, a lírica mo-
difica a lenda, fazendo dela um poema lírico. Por meio do jogo de
palavras, da aproximação vin-flamme, água-álcool, surge um mo-
do diferente de ler-se a lenda. Aqui, a lírica age como um verdadei-
ro álcool, modificando e transformando a lenda, fazendo surgir
aquilo que aqui se denominaria "fabulírica".
"MAI"
O segundo poema do ciclo é "Mai" (Apollinaire, 1994a,
p.112). Maio, além de ser considerado os da Virgem Maria, é
ums que evoca a primavera européia, e Apollinaire abre esse
poema acentuadamente lírico ressaltando a estação do ano na re-
gião do Reno: "Le mai le joli mai en barque sur le Rhin". É um poe-
ma formado por quatro estrofes de, respectivamente, 4, 4, 5 e 4
versos cada. Da mesma forma que no poema anterior, é o alexan-
drino clássico que domina, provando a fidelidade do poeta às leis
da prosódia francesa, já que esse tipo de verso é o mais freqüente
em seus poemas.
Na primeira estrofe, logo no segundo verso, aparece o verbo
regarder no imperfeito, o que já dá uma idéia de passado, recorda-
ção e memória vivaz: "Des dames regardaient du haut de la mon-
tagne". A partir desse verso, vai-se compondo uma paisagem des-
critiva mas também narrativa, e o ponto de vista do eu poético é
revelado, visto que, no terceiro verso, há uma observação feita de
quem está no barco que se afasta e que vê as senhoras mais longe:
"Vous êtes si jolies mais la barque s'éloigne". Em seguida, há um jo-
go semântico com o nome das árvores que rodeiam o Reno. É co-
mo se ele se indagasse, em uma tradução grosseira: "Então quem
fez os chorões chorarem?" ("Qui a donc fait pleurer les saules rive-
rains"). Há aqui uma associação de idéias que trai o fluxo do pen-
samento: como eleo verá mais as mulheres, cita os chorões, per-
sonificando-os. Assim, de uma situação tranqüila e sem marcas
negativas, passa-se a uma situação na qual o verbo pleurer, além
de ocupar uma posição de destaque no verso - cesura e hemistí-
quio - muda simultaneamente o tom inicial.
Um outro jogo aparece, realçando a sonoridade e a semântica
nessa estrofe: no primeiro verso, há joli mai e, mais adiante, no
terceiro, jolies mais funcionando como eco, mas com significações
diferentes. Depreende-se então que, apesar de os de maio ser
um período alegre, de renovação, graças à primavera, haverá sem-
pre um senão, pois Ia barque s'éloigne e o belo quadro fica para trás,
como mais uma lembrança. Esse distanciamento é sugerido igual-
mente pela sonoridade das rimas nasais: riverain, s'éloigne, Rhin.
A segunda estrofe é iniciada por uma conjunção cuja finalida-
de é a de estabelecer uma oposição, que é uma nova marca do pon-
to de vista de quem narra e descreve a cena, empregando o verbo
se figer: "Or des vergers fleuris se figeaient en arrière". Dessa forma,
as árvores, que antes pareciam mover-se no momento em que o
barco passava por elas,o agora a impressão de estar em um qua-
dro. Esse verso traz uma sonoridade especial, ao alternar sons [í],
[v] e [R], ampliando assim a idéia de imobilidade já notada. Uma
imagem interessante se oferece nos três versos seguintes:
Les pétales tombes des cerisiers de mai
Sont les ongles de celle que j'ai tant aimée
Les pétales flétris sont comme ses paupières
Nesses versos, Apollinaire compara as unhas e as pálpebras da
mulher que amou às pétalas caídas da cerejeira que, com o passar
do tempo, estão murchas. No entanto, a fuga do tempo e a presen-
ça marcante da lembrançao constantes na obra de Apollinaire,
e, aqui, a própria barca que se afasta remete metaforicamente a es-
se tema. Assim, tal atitude vem sempre acompanhada por um quê
de melancolia, como o próprio poeta revelou em uma carta (de 4
de agosto de 1916, para Jeanne-Yves Blanc): "Nada determina
mais melancolia em mim do que essa fuga do tempo. Ela está em
desacordoo formal com meu sentimento, minha identidade,
que é a própria origem de minha poesia." (apud Décaudin, 1993,
p.81) Ou seja, a melancolia é fonte de lirismo. Imagens que repre-
sentam uma passagem, como o rio, as pétalas da cerejeira que caem
e murcham, e, por fim, os dois cortejos na terceira estrofe, além
das ruínas do último quarteto, sobre as quais se falará mais adiante,
seguem de perto a fórmula de Heráclito, filósofo grego que Apolli-
naire conhecia: panta rhei - tudo passa. O importante aqui tam-
m parece ser o jogo entre narração (com descrição) e fluxo da
consciência, o que é demonstrado pelos tempos verbais: o imper-
feito para a narração; o presente e o passé composé para o discurso
do eu poético, o fluxo de sua consciência, o desenrolar do pensa-
mento por associação de idéias. Há dois momentos em Apollinai-
re: o da elaboração do poema (presença do imperfeito) e o da ação
no passado daquilo que ela evocava (presente e passé composé).
Aliás, é evidente a importância que o poeta atribui ao jogo dos tem-
pos verbais, que reutilizará várias vezes no interior de sua obra.
No campo sonoro, temos um eco interessante que nasce no
verso 5 e morre no verso 7, indicando igualmente a passagem do
tempo: fleuris/flétris. Na terceira estrofe, aparecem animais, um
urso, um macaco e um cachorro, interrompendo o ritmo lento do
verso anterior:
Sur le chemin du bord du fleuve lentement
Un ours un singe un chien menés par des tziganes
Suivaient une roulotte traînée par un âne
Segundo Morhange-Bégué & Lartigue (1991, p.43), o valor
durativo dos imperfeitos, a repetição da idéia do afastamento visual
e sonoro,o a essa estrofe uma expressão exemplar do tema do
cortejo em marcha: os errantes parecem descer lentamente no
mundo dos mortos. Nota-se então que tais personagens errantes
estão em acordo com o resto da paisagem. Em seguida, o verbo
s'éloigner reaparece, retomando o fio condutor do poema, suspen-
so momentaneamente por aquela presença estranha:
Tandis que s'éloignait dans les vignes rhénanes
Sur un fifre lointain un air de régiment
o elementos-surpresa permeando o poema e que também
lheo um toque lírico, como havia feito Rimbaud (cf. 1993,
p.155), no poema "Parade".
Outra aproximação sonora interessante é o acúmulo de nasais
nos versos {tandis, s'éloignait, dans, vignes, rhénanes, un, lointain,
régiment), o que dá o tom vagaroso e melancólico da cena, acom-
panhando o que está contido no quinto verso da estrofe, isto é, um
som que, neste caso, seria outra marca de algo que ficou para trás e
que se esvanece como uma lembrança longínqua, como se fosse
mesmo um eco. É a impressão que, da barca, o eu poético tem das
margens do rio: "Sur un fifre lointain un air de régiment".
Na última estrofe do poema, a importância dada ao pictórico,
ao visual, é sensível e ressalta o caráter descritivo de sua poesia, já
que se sabe como Apollinaire se dedicou ao estudo da pintura e in-
centivou a relação entre ela e a literatura: em Les peintres cubistes,
ele faz um estudo desse estilo nas duas artes. A última estrofe de
"Mai" também retoma, inicialmente, as mesmas palavras do pri-
meiro verso, "Le mai le joli mai...", mas a leveza primaveril antes
cantada dá agora sinais de passagem do tempo: "... a paré les mi-
nes", imagem que, além de tudo, também é romântica. Há ainda,
como que para acentuar essa impressão, uma alternância dos sons
[s], [z] e [R], que parecem imitar o som do vento que sopra à beira
do Reno:
... paRé les Ruines
De lieRRe de vigne vieRge et de RoSiers
Le vent du Rhin Secoue Sur le boRd leS oSiers
Et les RoSeaux jaSeuRs et les fleuRs nues des vignes
Essa sonoridade atravessa todo o poema, funcionando como
uma tentativa de recuperação da memória: RhIN/ riverAlN/ mon-
taGNE/ s'éloiGNE; ou ainda Saules RiveRAINs (primeira estrofe),
Vent/ Secoue/ oSiers/ roSeaux/ jaSeurs/ Fleurs/ Vignes (última estro-
fe). A seqüência de epítetos - adjetivos participiais - sugere uma
sucessão de quadros, realçando mais uma vez o caráter pictórico
do poema. A lembrança da fragilidade e impotência do poeta dian-
te da passagem do tempo é concretizada pela figura dos osiers, o
vime, e dos roseaux, caniços, plantas frágeis sacudidas pelo vento.
As flores nuas das vinhas que fecham o poema demonstram igual-
mente a desproteção a que estamos submetidos: a nudez designa
também a pobreza e a fraqueza espiritual e moral, mas vê-se aí um
tom levemente erótico, revelando o outro lado da nudez. Há ain-
da o emprego inusitado do adjetivo jaseurs (tagarelas) aplicado aos
roseaux, o que personifica a natureza, mas também mostra sua rea-
ção à força do vento, ao prolongar a sonoridade do [z].
Em "Mai", a fábula evidencia-se no aspecto narrativo do poe-
ma, e, conseqüentemente, nas suas respectivas marcas, como per-
sonagens, ação, características temporais e espaciais. O mote do
poema surgiu, provavelmente, de uma cena presenciada pelo poe-
ta. Seu trabalho é o de imaginar-lhe uma seqüência, dar vida aos
personagens e inventar-lhes histórias, o que demonstra um dos as-
pectos da fabulação nesses versos. Outro aspecto fabular desse poe-
ma é a inserção de frases, como a que compõe o verso "Qui donc a
fait pleurer les saules riverains", e também no verso "Vous êtes si
jolies mais la barque s'éloigne", o qual permite uma dupla leitura:
pode-se considerá-lo uma observação do poeta, que faz parte da
descrição da cena, ou ainda um comentário precedido pelo verso
anterior, dando-lhe continuidade.
"LA SYNAGOGUE"
"La synagogue" (Apollinaire, 1994a, p.113) é o terceiro poema
do ciclo das Rbénanes. Formado por cinco quartetos de versos irre-
gulares, difere dos anteriores por essa particularidade. O primeiro
verso já traz uma novidade, pois é composto apenas de prenomes
judeus, anunciando os dois "protagonistas" do poema: "Ottomar
Scholem et Abraham Loeweren"; e o estranhamento causado por
essa sonoridade já é um elemento poético. O segundo verso des-
creve o modo pitoresco como estão penteados os dois judeus, em
uma especial manhã para eles, a do sabbat, o dia sagrado e de re-
pouso na religião judaica, e aqui importante marca temporal.
Assim, Ottomar e Abrahamo à sinagoga que dá título ao poema.
Há já no início traços de narratividade, ou seja, espaço, tempo e
personagens bem demarcados. No caminho, nota-se a presença do
Rio Reno, que, de certa forma, acompanha os homens. Além do
rio, outro aspecto da região é destacado, as colinas plenas de videi-
ras que, ao longe, parecem "coradas" de frutos:
Coiffés de feutres verts le matin du sabbat
Vont à la synagogue en longeant le Rhin
Et les coteaux où les vignes rougissent là-bas
O efeito rítmico produzido por esse enjambement reproduz
tanto o movimento do rio quanto o andar dos dois judeus, movi-
mento este brusco, irregular e contínuo ao mesmo tempo. Esse úl-
timo verso novamente aproxima Apollinaire das técnicas pictóri-
cas, e a mudança de tom é beneficiada pela mudança de estrofe. Os
dois judeus discutem pelo caminho, gritando coisas "qu'on n'ose à
peine traduire", queo ditas no verso seguinte: "Bâtard conçu
pendant les règles ou Que le diable entre dans ton père". Aqui, além
do aspecto divertido da cena, há também os insultos, que contêm
em si próprios uma espécie de ritmo interno dos versículos bíbli-
cos. Até o Reno, personificado, vira-se para sorrir dos dois passan-
tes: "Le vieux Rhin Soulève sa faCe ruiSSelante et Se détourne pour
Sourire". Como se, o epíteto ruisselante ecoa na profusão do
som [s] do verso.
Por meio de um outro enjambement entre os versos 8 e 9,
Apollinaire cria para o leitor uma forma de suspense maior, por-
que, além da mudança de verso, também o espaço em branco
separando as estrofes, ampliando assim o tempo de conclusão da
leitura. Este é um artifício poético que fala da modernidade que se
desenvolve no poeta.
A figura feminina aparece entre os judeus como ponto de dis-
córdia, e a descrição de seu físico é caracterizada apenas por dois
pontos principais: os olhos, comparados aos de uma ovelha, ou se-
ja, dóceis, e o ventre, um pouco acentuado. Estaria Lia grávida de
um dos dois amigos? Enfim, o cotidiano do povo judaico, poético,
juntamente com a personalidade dos judeus, que agem da forma
mais prosaica possível, é transformado assim que entram na sina-
goga. O espaço aberto, sugerido pelo caminho que percorrem os
dois judeus, pode ser símbolo de um itinerário, de uma viagem, e
representar, desse modo, uma das etapas da evolução e da trans-
formação - ainda que temporárias - que os dois protagonistas so-
frerão ao entrar no templo, sinalizando então a importância que o
espaço ocupa nesse poema, mais uma marca da fabulação que aí se
encontra.
Para acentuar a rotina previsível dos dois protagonistas, ao
descrever a seqüência dos rituais que eles irão seguir dentro do
templo, Apollinaire sutilmente opera uma modificação no que
tange aos tempos verbais até então empregados no poema, intro-
duzindo os verbos no futuro. Nessa estrofe, iniciada pelo advérbio
pourtant, há o anúncio dessa mudança, queo se dará, no entan-
to, no tempo da enunciação, como se mencionou, pois esta, bem
como a última estrofe, descrevem ações futuras:
Pourtant tout à 1'heure dans la synagogue Van après 1'autre
Ils baiseront la thora en soulevant leur beau chapeau
Parmi les feuillards de la fête des cabanes
Ottomar en chantant sourira à Abraham
O leitor entra, a partir de agora, em um universo desconheci-
do para ele, pleno de termos diferentes, pertencentes a uma mino-
ria: a thora, livro de leis de Moisés; a fête des cabanes, que come-
mora a travessia do deserto; e os loulabim, momento no qual
existe o costume de agitarem-se folhagens, no penúltimo verso.
Todo esse vocabulário específico requer do leitor comum um es-
forço maior, dificultando-lhe a compreensão à primeira leitura e
exigindo dele que aí se detenha mais longamente. O poema cria
mais uma vez um efeito de grande intensidade poética, um estra-
nhamento, o efeito surpresa que Apollinaire buscava. O tempo
verbal (futuro simples) empregado na seqüência dá aos aconteci-
mentos um cunho de coisas previsíveis, habituais, que devem se re-
petir e podem, por isso, ser antecipadas pela narração. Nesse espa-
ço fechado e místico da última estrofe, o leitor encontra a breve
descrição de alguns momentos do ritual judaico, no qual a voz
concreta e grave dos homens expandir-se-á até o universo mágico
e lendário da mitologia alemã e do mundo bíblico, levando seus
sons até as profundezas do Reno e fazendo gemer o monstro Levia-
, símbolo do mal, "comme une voix d'automne".
Nesse poema, Apollinaire mais uma vez retoma um de seus te-
mas preferidos, o outono, além de inserir em uma cena do cotidia-
no um mundo mítico e imaginário, lirismo e fábula convergindo e
acusando a presença da simultaneidade, a qual, aliás, também está
presente no último verso -Hanotem ne Kamoth bagoim tholahoth
baleoumim - que é a contaminação de duas fórmulas litúrgicas he-
braicas misturadas e adaptadas, significando, segundo Décaudin
(1993, p.200), aquele que exerce vinganças entre as nações, casti-
gos entre os povos. A sonoridade dessas palavras deve ser ressalta-
da, seqüência na qual as aliterações em [a], [ t] e em [im] abun-
dam. Em
Ils déchanteront sans mesure et les voix graves des hommes
Feront gémir un Léviathan au fond du Rhin comme une voix
d'automne
Et dans la synaguogue pleine des chapeaux on agitera les loulabim
Hanotem ne Kamoth bagoim tholahoth baleoumim
tem-se novamente a inserção de palavras estrangeiras para criar
efeito poético.
Quanto às rimas, faz-se interessante notar a dupla sab-
bat/là-bas, da qual se pode depreender que tal rito faz parte de um
passado, longínquo (versos 2 e 4), e, na última estrofe, hom-
mes/automne, com a qual talvez Apollinaire quisesse aproximar a
tristeza presente no outono e nos homens.
"LES CLOCHES"
Em "Les cloches" (Apollinaire, 1994a, p.l14), quarto poema
do ciclo, os alexandrinos clássicoso lugar aos octossílabos, em
quatro quartetos. Essa seqüência só é alterada pelo último verso,
um pentassílabo que encerra em si uma atmosfera grave.
"Les cloches" é um poema que trata da lembrança de um amor
proibido. Como acontece em "La synagogue",, da metade para
o fim, emprego de verbos no futuro simples, a partir do advérbio
demain, para referir-se a acontecimentos que podem ser previstos,
como ocorre no poema anterior. O eu poético manifesta-se logo
no primeiro verso: uma moça, que se dirige ao amante, um cigano,
porque os sinos anunciam a todos o amor que eles acreditavam es-
conder. Aquilo que dá uma cor especial ao poema é justamente a fi-
gura do amante, um nômade, personagem de origemo européia,
exótico, místico, que traz em si algo de maravilhoso (acentuando a
presença da fábula) e de misterioso. O errante, que sugere liberda-
de, poderia simultaneamente assinalar o passar do tempo, algo
queo se pode prender, além de remeter à figura dos nômades:
os dois elementoso recorrentes na poesia de Apollinaire, como
se observou no poema "Mai".
Segundo Morhange-Bégué & Lartigue (1991, p.23), a ima-
gem dos sinos, indiscretos e falantes, a rapidez do metro (octossí-
labos), a música dos nomes próprios (terceira estrofe),o ao poe-
ma um ar de leveza - até o último verso que rompe o metro e
introduz a gravidade: "J'en mourrai peut-être". Décaudin (1993,
p.51) informa que este último verso era antes um octossílabo, co-
mo os quinze outros versos do poema; a mudança acentuou a in-
tensidade patética do poema e rompeu sua ordenação prosódica.
Rimas importantes aparecem: cachés/clochers, que denotam a
contradição relativa à posição dos sinos; Henri/mari e Catheri-
ne/cousine, significados que também mudam o parentesco antes
anunciado desses personagens.
"LA LORELEY"
"La Loreley" (Apollinaire, 1994a, p. 115-6), eixo dos poemas
do ciclo renano, apresenta 38 versos agrupados em dísticos, nos
quais se misturam lendas e vários temas recorrentes na obra de
Apollinaire. A solidão e o abandono, retratados em "Les cloches",
encontram eco nesse poema. Aqui, o poeta reconta uma lenda re-
nana, já cantada no século XIX por outros dois escritores românti-
cos alemães, Clemens Brentano (1778-1842) e Heinrich Heine
(1797-1856); este último, segundo consta, foi um mediador entre
as culturas alemã e francesa, papel aqui desempenhado, também,
de certa forma, por Apollinaire. Sobre as origens desse poema, in-
forma Décaudin (1993, p.l18) que, nele, Apollinaire recria o poe-
ma de Brentano, que copiara em uma caderneta durante sua estada
de 1901-1902 na Alemanha. Mas, para o crítico, o poema é mais
do que simples reescritura: o poema de Apollinaireo trai a len-
da, nem o poema de Brentano, mas comoo ver nessa mulher loi-
ra com olhos de chama a imagem de Annie Playden, nesses temas da
beleza que enfeitiça e do amor maldito um eco de sua infeliz aven-
tura? O final violento do poema alemão é substituído por uma
queixa mais longa, mais tocante, e também mais lúcida da Loreley.
A moda de Viviane de L'Enchanteur pourrissant, ela encarna essa
impossibilidade do amor queo pára de atormentar o poeta.
O dístico inicial já anuncia a lenda e situa-a geograficamente:
A Bacharach il y avait une sorcière blonde
Qui laissait mourir d'amour tous les hommes à la ronde
O próprio bispo a absolve no dístico seguinte:
Devant son tribunal 1'évêque la fit citer
D'avance il Vabsolvit à cause de sa beauté
Nesse verso, há um passé simple - absolvit - fantasista e falsa-
mente arcaico, pois o verbo absoudreo é conjugado nesse tem-
po; a única forma regular seria absolut, maso há nenhum regis-
tro do seu emprego (Lefèvre in Apollinaire, 1971, p.77). O uso do
passé simple, ainda que em uma forma inexistente, pode indicar
uma intenção da parte do poeta em demonstrar fatos históricos,
comprovados, realmente acontecidos, ou então, ao contrário,
acentuar o caráter lendário, primitivo, da narrativa. A feiticeira re-
cebe vários adjetivos, sobretudo aqueles relativos aos olhos, fonte
também de auto-encantamento: ela é blonde (v.l); "belle ... aux
yeux pleins de pierreries" (v.5); é considerada pelo próprio bispo
uma "femme en démence" (v.22), "aux yeux tremblants" (v.23); e
ainda "ses yeux brillaient comme des astres" (v.26); "ses yeux cou-
leur du Rhin ses cheveux de soleil" (v.38), que fecha o poema e que
retoma o blonde do primeiro verso. O verso 26 carrega uma pre-
monição por meio da homofonia: os olhos que brilham como as-
tros serão fonte da própria infelicidade de Lorelei: des astres/-
sastre [dezastR]. Outro ponto a ressaltar quanto à sonoridade é o
or embutido no nome da feiticeira e que está presente na cor de seus
próprios cabelos. A presença do som líquido [1] até a última estrofe
contém em si o barulho e o movimento das águas, recurso bastan-
te empregado pelo poeta: "Pour avoir vu dans L'eau La beLLe
LoreLey".
Nos versos 7 e 9 é a própria Lorelei quem qualifica seus olhos:
"mes yeux sont maudits" (v.7); "mes yeux ce sont des flammes et
non des pierreries" (v.9), negando o que se havia dito sobre ela até
então. De acusada, ela passa a vítima de seu próprio poder. O
amor perdido faz que Loreleio queira mais usar seus poderes
contra os homens, mas contra si mesma, como vítima de um outro
homem, o que permite entremear dois temas, vizinhos, mas distin-
tos: o da insensibilidade da mulher - "Qui laissait mourir d'amour
tous les hommes à la ronde" (v.l, grifo nosso) - e o dos yeux mau-
dits, com poder destrutivo - "Ceux qui m'ont regardée évêque en
ont péri" (v.8). A intensidade desse sentimento que a levará à mor-
te é traduzida pela repetição de mon coeur (v.l7, 19, 20 e 35), em
detrimento de seu poder, retratado pela aparição de mes yeux ape-
nas duas vezes (v.7 e 9).
Várias imagens que remetem a outros mitos e lendas reve-
zam-se na figura encantatória de Lorelei: as ondinas, que atraíam
suas vítimas para as profundezas das águas e que já apareceram em
"Nuit rhénane" (é a recorrência da figura); as feiticeiras, como
Jeanne D'Arc, mulher poderosa e importante figura histórica
francesa que morreu queimada (Cf. "Jetez jetez aux flammes cette
sorcellerie", v.10); a prostituta Madalena, que pede igualmente
preces no caminho do calvário de Jesus {"Évêque vous riez Priez
plutôt pour moi la Vierge", v.13); e finalizando, a nova versão do
mito de Narciso:
Elle se penche alors et tombe dans le Rhin
Pour avoir vu dans l'eau la belle Loreley
Ses yeux couleur du Rhin ses cheveux de soleil
Lefèvre (in Apollinaire, 1971, p.78) aponta, em relação ao úl-
timo verso, que, em virtude das comparações, o personagem dis-
solve-se na paisagem, e a lenda, na realidade. Eis aí a presença da
fábula manifestando-se liricamente, a "fabulírica".
"SCHINDERHANNES"
De título exótico, sem dúvida buscando causar estranhamento
ao leitor, e fazendo que a poesia tenha mais elementos a serem de-
cifrados, "Schinderhannes" (Apollinaire, 1994a, p.117-8), o poe-
ma seguinte do ciclo, traz o nome de um célebre bandido renano,
preso e enforcado em 1803 pelas tropas francesas por fazer oposi-
ção ao grupo de Napoleão. Schinderhannes tornou-se uma espécie
de herói nacional e é homenageado em várias canções alemãs.
Como há toda uma história por trás da figura do bandido, até
mesmo sobre seu caráter de verdadeiro herói, revelam-se assim os
elementos narrativos, fabulares que se misturam ao lírico; além
disso, a fabulação aparece na modificação da lenda original. Pascal
Pia considera que, com cem anos no início do século XX, a história
de Schinderhannes ainda enternecia a gente simples, artesãos e
cultivadores de videiras, que Apollinaire tinha prazer em olhar nas
cidadezinhas renanas. A tradição oral fizera do cruel ladrão uma
espécie de cavaleiro andante cujas canção e imagem exaltavam seus
feitos (Pia, 1965, p.57).
Além da crueldade dos feitos do bandido alemão, que, de cer-
ta forma, Apollinaire tenta reproduzir no poema, há uma outra
questão na história de Schinderhannes que despertou o interesse
do poeta: a ligação entre o malfeitor e Juliette Blaesius, que en-
frenta a seu lado uma vida errante e perigosa. Desse modo, tanto a
lenda - fábula - ligada à crueldade quanto o seu aspecto oposto,
ou seja, o amor que unia os dois alemães, tocaram e inspiraram
Apollinaire na confecção do poema.
Nos oito quartetos formados de octossílabos, segunda forma
mais empregada pelo poeta (perdendo apenas para os alexandri-
nos clássicos, pois, em 1901 e 1902, Apollinaire, cioso das regras
de versificação tradicional, é ainda pouco arrojado nesse sentido),
ele oferece ao leitor, envoltas em cor local, cenas banais do cotidia-
no do grupo de bandidos, havendo, como em outros poemas do
ciclo, a presença de elementos prosaicos. Assim, Apollinaire des-
mistifica idéias preconcebidas a respeito da vida continuamente
agitada e perigosa dos que vivem à margem da lei. O primeiro
quarteto traz uma descrição de um momento na vida errante de
Schinderhannes; ele "Hennit d'amour au joli mai" (v.4). Pode-se
observar nessa estrofe o emprego do verbo se désarmer assumindo
um duplo significado: o bandido está sem armas concretas e tam-
m desarmado de qualquer sentimento hostil. Outro verbo rela-
cionado ao chefe do grupo é hennir, literalmente "relinchar", o que
contribui ainda mais para caracterizar suas atitudes embrutecidas;
no entanto, paradoxalmente, Schinderhannes "relincha de amor".
Há aqui também a associação sonora hannes/âne, o que relincha.
Analisou-se anteriormente a presença dos de maio no ciclo
renano, intrinsicamente ligado à primavera, e neste poema há no-
va ocorrência dessa estação do ano, ligada à alegria e às cores, carac-
terísticas que poderiam destoar na descrição de um grupo de ladrões;
porém, um clima leve como o sugerido pela própria primavera per-
meia todos os versos.
A segunda estrofe é dedicada a outro componente do grupo,
Benzei, que, ironicamente, lê a Bíblia, agachado e
Sans voir que son chapeau pointu
A plume d'aigle sert de cible
A Jacob Bom le mal foutu
No último verso, há a introdução de um novo personagem do
grupo de Schinderhannes, Jacob Born. O chapéu pontudo do
companheiro, com uma pena de águia servindo-lhe de alvo, é bas-
tante significativo. Simbolicamente, a pena de águia e o apito de
osso de águiao indispensáveis a quem deve afrontar a prova da
dança que olha o sol. Assim sendo, a coragem e a ousadia estão
embutidas nesse símbolo. Outro significado simbólico da águia, e
que remete a essa cena do poema, vem da Idade Média: os místi-
cos medievais voltam freqüentemente ao tema da águia para evo-
car a visão de Deus; eles comparam a prece às asas da águia que se
erguem em direção à luz (Chevalier & Gheerbrant, 1986, p.13).
No poema, o bandido está lendo a Bíblia, elucidando tal simbolo-
gia. Na tradição cristã, entretanto, a águia, símbolo de orgulho e
de opressão, foi sempre uma cruel ave de rapina, mostrando outra
faceta do bandido, esta mais tradicional. Então, por meio da pena
de águia em seu chapéu, percebe-se claramente o entrelaçamento
de significações referentes ao bandido. A rima pointu/foutu dá um
certo tom divertido à estrofe, auxiliado pela repetição encavalada
do som [b] em Jacob Bom. Outro tipo de estranhamento é causado
pelo sobrenome de Jacob: Born, em inglês, significa nascer, idéia
oposta à morte pela qual os assassinos serão responsáveis; e o som
aproximado em francês [b Rn] significaria limite, o queo carac-
teriza as atitudes do bando. Associações sonoras e semânticaso
recursos essencialmente poéticos que Apollinaire utiliza para con-
tar uma história, mesclando uma vez mais lírica e fábula.
A amante de Schinderhannes é apresentada na terceira estro-
fe, flagrada em atitudes grosseiras, em nada lembrando a Julia la
mam'zelle do verso 17: "Juliette Blaesius qui rotel Fait semblant
d'avoir le hoquet". Nos versos seguintes, Hannes, outro partici-
pante do grupo, também emite sons desajeitados, quem ao en-
contro dos soluços e arrotos de Juliette: "Hannes pousse une faus-
se note". A rima rote/note auxilia na "orquestração", como se, no
terceiro verso, houvesse uma ampliação do som produzido pela
mulher, além da imitação do soluço proporcionado por esse re-
curso. No último verso desse quarteto, um novo membro surge,
"Quand Schulz vient portant un baquet", e novos sons aparecem,
separados mais uma vez pelo enjambement que vai de uma estrofe
a outra: "Et s'écrie en versant des larmes", no primeiro verso do
quarteto seguinte. As lágrimas de Schulz provêm do conteúdo da
tina, "plein de vin parfumé", e ele grita: "Viennent aujourd'hui les
gendarmes/ Nous aurons bu le vin de mai". Aqui, ressoa o título da
coletânea e também os de maio. Transformando novamente a
linguagem falada, coloquial, em versos, marca da fabulação, Apol-
linaire abre a quinta estrofe:
Allons Julia la mam'zelle
Bois avec nous ce clair bouillon
D'herbes et de vin de Moselle
Prosit Bandit en cotillon
A cor local é novamente realçada pela palavra de origem lati-
na prosit (saúde, em alemão), e pelo vinho da região do Reno, nos
arredores de Moselle. O clair bouillon reflete a luz própria da esta-
ção, bem como o estado de espírito daqueles que o bebem: efer-
vescência e luz. Juliette é também chamada de "bandido de saias",
além de soûle, rimando com ma poule, modo como é tratada por
Hannes, queo a deseja, embora ela assim o queira. Ele entende
que ela deve apenas servir un bon petit repas ao bando. A penúlti-
ma estrofe traz novamente a linguagem falada:
Il faut ce soir que j'assassine
Ce riche juif au bord du Rhin
Au clair des torches de résine
La fleur de mai c'est le floriu
Há um jogo sonoro entre fleur e florin, palavras quem a
mesma raiz latina. O sussurrar produzido pela seqüência de sibi-
lantes, a fartura das vibrantes e fricativaso o tom de segredo ao
ato anunciado: Faut, Ce, SoiR, J'aSSaSSine, RiCHe, JuiF, boRd,
Rhin, claiR, toRCHes, RéSine, FleuR, C'est, FloRin.
Na conclusão do poema, os ladrões continuam a rir e a diver-
tir-se durante o jantar e Hannes
Pète et rit pendant le diner
Puis s'attendrit à 1'allemande
Avant d'aller assassiner
criando um paradoxo nos dois últimos versos por meio da rima
dîner/assassiner, uma outra maneira de causar surpresa. Ocorre as-
sim a banalização do ato de matar, mostrando a crueldade dos
bandidos camuflada até então por atos de seu cotidiano. Nova-
mente, há recorrência de alguns temas: a morte, a liberdade dos
nômades, a primavera, o jogo entre luz e sombra, a alternância do
riso causado por efeitos cômicos e lúdicos e das cenas mais dramá-
ticas, como a descrição de um ato que ainda está por vir e queo
acontece nem mesmo no último verso.
Além disso, de certa maneira, Apollinaire trata romantica-
mente as figuras dos ladrões, retratadas como irrequietas e fanfar-
ronas, aproveitando bem mais o caráter lendário do bando de
Schinderhannes, cantado pelos renanos, do que se apoiando na fa-
ceta verídica da história de alguns bandidos cruéis do passado ale-
mão. Essa atitude contribui para ampliar o traço onírico de algu-
mas composições do ciclo das Rhénanes, ligando-as ainda mais ao
aspecto maravilhoso contido na fábula, além de ressaltar a presen-
ça da fabulação, já que o poeta se apóia em fatos verdadeiros, mas
cujos finaiso imaginados.
"RHÉNANE D'AUTOMNE"
O título do sétimo poema do ciclo, "Rhénane d'automne"
(Apollinaire, 1994a, p. 119-20), reúne a própria referência ao con-
junto e um dos temas mais caros a Apollinaire, o outono. O acú-
mulo de sons nasais vai anunciar o clima que se apresenta do meio
para o fim do poema, solene, fúnebre, uma paisagem triste, con-
cretizada por um cemitério, onde a morte está presente todo o
tempo, acentuada pela data especial, o dia dos mortos: o poema,
que se inicia de modo engraçado (estrofes 1 a 4), tem na parte cen-
tral um clima mais sério (estrofes 5 a 8); quase no final, torna-se
triste (estrofes 9 a 12) e é concluído com dor e leveza, característi-
ca do modo de expressão de Apollinaire, como já se verificou em
"L'ermite", cujo herói, por vezes, condensa uma fina ironia e um
lirismo tocante.
"Rhénane d'automne" é o poema mais longo do ciclo, com 52
versos distribuídos em estrofes irregulares, queo desde um ver-
so até sete em sua formação.
A referência à morte, mesclada à leveza, aparece logo nos pri-
meiros versos: "Les enfants des morts vont jouer/ Dans le cimetiè-
re". Segue-se uma enumeração de prenomes franceses e alemães,
também observada em "Les cloches", mas aqui nomeando crian-
ças., nos dois últimos versos desse primeiro quinteto, uma re-
ferência ao galo: "Nul coq n'a chanté aujourd'huil Kikiriki". Sua
presençao é um acaso, visto que ele figura, ao lado do cachorro
e do cavalo, entre os animais psicopompos (condutores das almas
dos mortos), sacrificados e oferecidos aos mortos, nos ritos fune-
rários dos antigos alemães: provavelmente, Apollinaire conhecia a
simbologia local e soube utilizá-la ao descrever o cemitério. Algo
intrigante é o paradoxo existente entre esses dois versos. Se ne-
nhum galo cantou, por que a onomatopéia que forma o verso 5?
Alguém o imitou, ou trata-se apenas da lembrança, da memória do
poeta, já que o galo se liga igualmente à luz, ao nascer do dia, ao
despertar.
Se o primeiro quinteto inicia-se com crianças, no segundo, ao
contrário, "Les vieilles femmes/ Tout en pleurant cheminent". O
tom fúnebre é logo substituído por um efeito cômico e pelo uso de
uma imagem desconcertante:
Et les bons ânes
Braillent hi han et se mettent à brouter les fleurs
Des couronnes mortuaires
A liberdade da expressão poética é mais marcada nesse poema
do que nos anteriores. Observa-se essa mudança nas estrofes e ver-
sos irregulares, e na ausência de rimas constantes, o que demonstra
que Apollinaire pode ter escrito primeiramente em prosa e depois
cortado as frases, transformando-as em versos. Aqui, a versificação
nasce da prosa e o ritmo predominante é o da desigualdade métri-
ca: eis aí a técnica do verso livre.
Além disso, há um número maior de onomatopéias e de rimas
formadas de uma estrofe a outra, como nos versos "Et les bons
ânes" (v.8) e "C'est le jour des morts et de toutes leurs âmes" (v.ll,
estrofe seguinte). A aproximação de ânes/âmes também auxilia o
efeito cômico produzido na estrofe anterior. Nos versos 12 e se-
guintes, crianças e velhas caminham lado a lado, participando do
ritual católico do dia de Finados:
Les enfants et les vieilles femmes
Allument des bougies et des cierges
Sur chaque tombe catholique
A simbologia do galo é indiretamente retomada por meio da
luz das velas e dos círios acesos pelas passantes. O verso "Sur cha-
que tombe catholique" tem aqui dupla função. A ausência de pon-
tuação permite duas leituras possíveis, por meio de dois enjambe-
ments: "as crianças e as velhas acendem velas e círios sobre cada
túmulo católico" (enjambetnent com o verso anterior), ou "sobre
cada túmulo católico os véus das velhas [e] as nuvens douo
como barbas de cabras" (enjambement com o verso posterior). A
possibilidade da múltipla leitura, traço moderno em Apollinaire,
faz que a importância desse verso seja ampliada e sua posição nas
duas seqüências, alterada. Assim, é possível dizer que Apollinaire
quis ressaltar o aspecto católico do ritual de Finados, servindo co-
mo espelho ao poema "La synagogue", conforme esquema antes
mostrado.
A imagem e a sonoridade da última série de versos também é
notável: por meio da multiplicidade do [v] e do [1] em Les voiles
des vieilles, percebe-se o vento que provavelmente dá mobilidade
aos véus e a textura leve impressa neles pela presença da consoante
líquida. O movimento é também sugerido pela dança que o fogo
das velas produz ao sabor do vento, marcado na estrofe seguinte,
composta de um único verso: "L'aiR TRemBLe de FLaMMes et de
PRièRes". O vento só é concretamente nomeado no verso 32, após
ter sido freqüentemente sugerido nos anteriores. Contudo, há ain-
da a imagem inusitada das nuvens que "Sont Comme des BarBes de
BiQues", alterando um pouco o aspecto solene imposto nos versos
antecedentes. Esse efeito é reforçado pelos sons [b] e [k], que tradu-
zem, talvez, o constante e suave ruminar desses animais e igualmen-
te o dos asnos que mastigam as coroas de flores, nos versos 8 a 10.
O ardor do fogo das chamas, algo concreto, é estendido ao ar-
dor da fé impressa nas preces dos católicos. Ainda aqui, a sonori-
dade tem uma função importante: [tu], [p|, [b], [R], [1] e nasais al-
ternam-se, traduzindo o estalar das ceras que derretem e o crepitar
das chamas, como já foi assinalado anteriormente; a presença do
[1] mostra queo se trata de um fogo agressivo.
O clima triste do cemitério é amenizado desde o início pelas
atividades das crianças, que, afinal, brincam em un beau jardin.
Essa metáfora causa, sem dúvida, surpresa ao leitor, pois afasta a
lembrança dos túmulos e faz que se vejam somente as flores e a ve-
getação sobre eles, "plein de saulesgris et de romarins" (v.l9). O
epíteto beau aparece novamente qualificando cimetière, onde
Vous mendiants morts saouls de bière
Vous les aveugles comme le destin
Et vous petits enfants morts en prière
Ah! que vous êtes bien dans le beau cimetière
Observa-se a insistência do som [j R] no final dos versos 18,
21, 22, 23, 24 e 26, sendo substituído na seqüência posterior por
[je], mais suave (bateliers, papiers, pieds). Ainda na estrofe anterior,
a comparação "Vous les aveugles comme le destin" (v.24) denota a
preocupação de Apollinaire com o futuro incerto, com o tempo
que virá mergulhado na escuridão indecifrável ao homem. A mes-
ma técnica de sobreposição de um mesmo verso alterando (e alter-
nando) seu significado reaparece. Desta vez, é o verso 26, "Ah! que
vous êtes bien dans le beau cimetière", que serve tanto à seqüência
anterior, registrada acima, quanto ao conjunto que o sucede:
Vous bourgmestres vous bateliers
Et vous conseillers de régence
Vous aussi tziganes sans papiers
Nesses versos, a presença da região germânica é marcada pela
figura do burgomestre, e o Reno, pela figura dos barqueiros. A so-
briedade dos conseillers de régence (v.28) é contraposta aos tziganes
sans papiers (v.29). Aqui, novamente a liberdade é retratada nos-
mades. O aspecto escatológico da morte é lembrado nos dois versos
que seguem: "La vie vous pourrit dans la panse/ La croix vous pous-
se entre les pieds". O número elevado da consoante explosiva [p]
poderia bem refletir os corpos em decomposição sob a terra:
Vous aussi tziganes sans PaPiers
La vie vous Pourrit dans la Panse
La croix vous Pousse entre les Pieds
A sétima estrofe traz o Reno em plena comunhão com as coru-
jas, imitando-lhes o som e ampliando seu aspecto lúgubre: "Le
vent du Rhin ulule avec tous les hiboux", destruindo o trabalho, a
luz vinda das crianças, gesto repetido por elas: "Il éteint les cierges
que toujours les enfants rallument". Ainda o vento do Reno marca
presença em "Et les feuilles mortes/ Viennent couvrir les morts", am-
pliando a presença da morte, estendida agora também à natureza.
Na oitava estrofe, que na verdade é um dístico, mortos levan-
tam-se, algunso querem estar onde estão:
Des enfants morts parlent parfois avec leur mère
Et des mortes parfois voudraient bien revenir
Afinal, para Apollinaire, "nada está morto se aindao exis-
te" (apud Tournadre, 1971, p.50). Em seguida, o poeta dirige-se a
alguém já morto: "Oh! je ne veux pas que tu sortes", criando, na
seqüência, uma imagem interessante:
L'automne est plein de mains coupées
Non non ce sont des feuilles mortes
Ce sont les mains des chères mortes
Ce sont tes mains coupées
As mains coupées funcionam como eco de um de seus mais-
lebres versos, "soleil cou coupé", que encerra "Zone". Partes do
corpo cortadaso imagens muito presentes na obra apollinairiana.
O tom também muda na nona estrofe, que reproduz as pala-
vras dirigidas a uma chère morte: "Oh! je ne veux pas que tu sor-
tes". A imagem das feuilles mortes que "sont tes mains coupées"
faz lembrar a das "pétales tombés des cerisiers de mai", que "Sont
les ongles de celle que j'ai tant aimée" ("Mai"). É a presença de
Annie que povoa todo o ciclo, às vezes sutilmente transformada
em ângulos da natureza, em algo que jáo mais existe ou que ain-
da está por vir.
Na décima estrofe, as lágrimas finalmenteo vertidas.o
comuns no ambiente retratado, é quase no final do poema que sur-
gem, compartilhadas também pelo eu poético: "Nous avons tant
pleuré aujourd'hui/ Avec ces morts leurs enfants et les vieilles fem-
mes". Os dois extremos da vida então encontram-se novamente.
Em "Sous Le CieL Sans SoLeiL/Au Cimetière pLein de fLammes",
o calor do sol é substituído pelas chamas das velas, que abarcam a
luz ausente no céu. Note-se a recorrência dos sons [s] e [1], repetin-
do o efeito de versos anteriores, representando o vento que reapa-
rece em seguida: "Puis dans le vent nous nous en retournâmes". A
ocorrência do passé simple marca ainda mais a cena de um passado
realmente acontecido, quase histórico, na própria história de vida
do poeta, além de representar o fim definitivo de algo, ou seja, a
morte ora celebrada. O passé simple seria igualmente traço da nar-
ração presente no poema, isto é, marca da fabulação que aí salta
aos olhos.
Finalizando, agora fora do cemitério:
A nos pieds roulaient des châtaignes
Dont les bogues étaient
Comme le coeur blessé de la madone
Dont on doute si elle eut la peau
Couleur des châtaignes d'automne
Pode-se novamente aqui recorrer à simbologia, pois, na China
antiga, o castanheiro correspondia ao Oeste e ao outono. Assim
sendo, o outono, título deste poema e nele presente, representado
pelos ventos característicos dessa estação, é evocado pelas casta-
nhas, até ser enfim nomeado, fechando a última estrofe. O outono
relacionado à dor e à morte é recorrente em Apollinaire: as mains
coupées remetem às folhas mortas, ou vice-versa, também em
"Marie", "L'émigrant de Landor Road", "Le brasier". Morhange-
Bégué & Lartigue (1991, p.66) observam ainda que a imagem de
mutilação suscitada pela morte do amor é encontrada em outros
elementos descritivos do outono, como a casca espinhenta da cas-
tanha, coeur blessé de la madone. É interessante notar a compara-
ção das cascas quebradas e espinhentas das castanhas com o coração
ferido da Madona, também simbolicamente envolto em espinhos,
ressaltando o caráter religioso do ritual realizado no cemitério. Tam-
m remetem à figura da Madona as crianças e as senhoras que
permearam o poema, pois, afinal, a Virgem é muitas vezes simboli-
zada com uma criança ao colo.
"LES SAPINS"
O penúltimo poema do ciclo das Rhénanes, "Les sapins"
(Apollinaire, 1994a, p.121-2), é, ao contrário do anterior, com-
posto de versos regulares, distribuídos ao longo de seis quintetos,
composição que impõe um ritmo marcado ao poema. Predomi-
nam os octossílabos, embora ocorra igualmente outro tipo de ver-
so, o hexassílabo. A estrutura da estrofe - dois versos de oito síla-
bas e um de seis, mais dois de oito - imitaria talvez a forma
triangular do pinheiro, e seria possível reconhecer, nesse tipo de
composição, uma tênue iniciação de Apollinaire naquilo que viriam
a ser os Calligrammes. O início do poema já traz a figura dos pi-
nheiros do título "revêtusl Comme des astrologues". Personifica-
dos, saúdam "leurs frères abattus/ Les bateaux qui sur le Rhin vo-
guent". Assim, tem-se novamente o tema da passagem do tempo,
por meio da transformação que os pinheiros, ainda plantados, irão
sofrer, bem como a presença do Reno prolongada pelo jogo sono-
ro abbatus/bateaux.
Apollinaire deixa um mistério no ar ao mencionar "les sept
arts endoctrinés". Quais seriam? Novamente cabe ao leitor o papel
de decifrador, criando mais uma vez a interatividade entre leitor-
poeta-texto. Pode-se supor que sejam as chamadas "artes liberais",
que integravam os estudos de qualquer humanista durante a Idade
Média, e mesmo depois: gramática, lógica, retórica, música, arit-
mética, geometria e astronomia. O poeta continua comparando os
pinheiros a vários elementos, consagrando aos mais velhos o papel de
... grands poètes
Ils se savent prédestinés
A briller plus que des planètes
Apollinaire, então, parece atribuir a essas árvores o seu pró-
prio poder de criação ao chamá-las, no poema, de "grands poètes",
"beaux musiciens" e de "graves magiciens". Nota-se aqui o signifi-
cado das palavras do poeta: "Sou a favor de uma arte de fantasia,
de sentimento e de pensamento,o afastada quanto possível da
natureza com a qual elao deve ter nada de comum. É, creio eu, a
arte de Racine, de Baudelaire, de Rimbaud" (apud Décaudin,
1993, p.163). O poeta continua a comparar seus pinheiros a mági-
cos, "cbangés/ En étoiles et enneigés" que "Incantent [neologismo
criado por Apollinaire por meio do italiano incantare e já notado
em outro poema desse mesmo ciclo] le ciel quand il tonne"; com-
para-os igualmente a "beaux musiciens"; "blancs chérubins" no in-
verno, transformando-se em "grands rabbins", mudança confir-
mada pela rima rabbins/ sapins; "Ou bien de vieilles demoiselles"
no verão. Sob a ótica de Apollinaire,o ainda "médecins diva-
gants", que, por meio do poder encantatório que lhes foi por ele
concedido, oferecem "leurs bons onguents", medicamentos que,
nas mãos dos poetas,o as palavras transmudadas em poemas,
adquirindo assim múltiplos significados, renascendo, como a Fênix,
a cada leitura.
Um dos temas mais recorrentes na obra poética de Apollinaire
e sobretudo no ciclo das Rhénaneso poderia deixar de aparecer.
No final do poema, até então permeado por um tom de certa ma-
neira divertido, há a imagem da morte, gerando mais um efeito
surpresa por meio do inesperado evocado pela cena: "De temps en
temps sous 1'ouraganl Un vieux sapin geint et se couche". A que es-
taria ele se referindo: aos momentos de falta de inspiração, ou an-
tes, à morte real e concreta do poeta? Mais um enigma deixado ao
leitor, sugerido anteriormente pelo próprio poema.
Ora, onde estaria seu traço narrativo considerado, muitas ve-
zes, enigmático? Ao fazer-se uma leitura mais atenta, descobre-se
que cada estrofe traz uma pequena história, com referências tem-
porais, espaciais e sempre tendo os pinheiros como personagens.
"Les sapins" seria uma espécie de seqüência de seis quadras inde-
pendentes, cada qual com seu próprio começo, meio e fim. A pri-
meira estrofe, por exemplo, apresenta pinheiros "en bonnets poin-
tus/ De longues robes revêtus", que saúdam seus irmãos abatidos,
tendo ao fundo o Reno cheio de embarcações. Há, então, uma
ação (saudar), os personagens (nove pinheiros), e um espaço (a pai-
sagem do rio) determinados.
A segunda estrofe, por sua vez, traz os pinheiros paramenta-
dos de "grands poètes", que brilham "plus que des planètes" e sa-
bem que estão predestinados a isso. A terceira tem como marcas
espácio-temporais o inverno, ou seja, mais especificamente, a épo-
ca do Natal, "fêtes des sapins ensongés/ Aux longues branches lan-
goureuses", com a personificação dos pinheiros.
Em seguida, a quarta estrofe apresenta os pinheiros como
"beaux musiciens" que cantam igualmente "natais antigos", po-
rém, "au vent des soirs d'automne", trazendo a presença do outono
mais uma vez na poesia de Apollinaire. Em outras estações do ano,
os pinheiroso substituídos por querubins (inverno), rabinos e
solteironas (verão):
Des rangées de blancs chérubins
Remplacent 1'hiver les sapins
Et balancent leurs ailes
L 'été ce sont de grands rabbins
Ou bien de vieilles demoiselles
Na última estrofe do poema, os pinheiros transformam-se em
"médecins divagants", oferecendo seus "bons ungüentos". O espa-
ço é marcado pela presença da montanha, personificada pelo fato
de dar à luz sob a tempestade, enquanto "un vieux sapin geint et se
couche". Todas essas marcas de narratividade presentes em "Les
sapins" - a ação, o tempo, o espaço bem demarcado e sobretudo
os personagens -o características da fabulação que domina as
Rhénanes.
"LES FEMMES"
Temas que permearam todo o ciclo renano permanecem vivos
no poema que fecha o conjunto: o amor, a morte, sobretudo anun-
ciada desde o início, e a noiteo temas românticos que marcam
presença em "Les femmes" (Apollinaire, 1994a, p. 123-4). Aqui,
Apollinaire introduz extratos de conversas, frases soltas, diálogos,
pensamentos misturados a versos que narram um acontecimento,
aplicando a técnica da montagem. A diferenciação se faz por meio
do emprego de dois caracteres tipográficos diversos. E tudo ser-
vindo para ilustrar a simultaneidade, característica apollinairiana
que desponta nas Rhénanes e é trabalhada mais tarde, em outras
composições. Esse poema marca também o esboço dos poe-
mas-conversação que aparecerão em Calligrammes. Desta vez o
poeta tece, em nove quartetos, vários níveis: a realidade cotidiana,
o mistério inquietante e a morte, sempre sem usar pontuação - a
o ser pelo travessão - e acentuando mais ainda o caráter moder-
no de sua poesia.
As mulheres que aparecem no poemam nomes alemães, o
que lhes, como se viu, cor local e causa estranhamento ao leitor
de língua francesa. Elas costuram e aliam-se ao trabalho do poeta,
que alterna com tiradas líricas os fatos banais da realidade simples
e pequena das personagens, traduzidos por frases nada complexas
de seu cotidiano. Apollinaire cria desse modo uma colcha de reta-
lhos plena de cenas totalmente fragmentadas, mas quem um
certo sentido para o leitor mais atento. O espaço dessas mulheres
sugere segurança, por ser um terreno que lhes é familiar, aqueci-
do, povoado de personagens nada perigosos.
Ao reproduzir somente os versos relativos à narrativa, excetuan-
do os diálogos,:
Dans la maison du vigneron les femmes cousent
Le rossignol aveugle essaya de chanter
Mais l'effraie ululant il trembla dans sa cage
...La forêt là-bas
Grâce au vent chantait à voix grave de grand orgue
Le songe Herr Traum survint avec sa soeur Frau Sorge
Le vent faisait danser en rond tous les sapins
La nuit tombait Les vignobles aux ceps tordus
Devenaient dans l'obscurité des ossuaires
En neige et repliés gisaient là des suaires
Et des chiens aboyaient aux passants morfondus
... La cloche de 1'église
Sonnait tout doucement la mort du sacristain
Les femmes se signaient dans la nuit indécise
A partir do primeiro verso dessa "seqüência narrativa", ou se-
ja, mistura de fábula e lírica,o mencionados: a figura do vigne-
ron; o hábito de cegar os rouxinóis para melhorar seu canto e ga-
nhar concursos; a floresta; o vento sempre presente; Herr Traum e
Frau Sorge, o primeiro significando Sr. Sonho e o segundo o título
de um poema de Heine, Sr
-
Preocupação. Em meio ao estranha-
mento e à personificação de abstrações, temos o quadro típico de
um vilarejo no inverno, com seus sons noturnos misturados ao
vento que "chantait à voix grave de grand orgue" (v.14). O verso
relativo ao vento encontra-se na parte "dialogada" do poema -
"- On dirait que le vent dit des phrases latines" (em itálico no ori-
ginal) -, o que deve significar, lembra Lefèvre (in Apollinaire,
1971, p.84), um canto salmodiado da Liturgia.
Em dois versos há a mistura da narração com a linguagem fa-
lada: "Pour la fête du curé La forêt là-bas/ Grâce au vent chantait à
voix grave de grand orgue" (v.13, grifos do autor) e "Il est mort
écoutez La cloche de 1'église/ Sonnait tout doucement la mort du
sacristain" (v.33, grifos do autor). Ao vê-los justapostos, verifica-
se que nos dois há indicações da paisagem local (parte narrativa) e
comentários sobre fatos que alteram o cotidiano dos personagens
e que, entre si,o também opostos: a festa do cura e a morte do
sacristão. Assim, fatos esporádicos, porém de grande significado,
misturam-se a uma paisagem fixa, perene - a floresta e o sino da
igreja, que lá estão acima de qualquer acontecimento. A primeira
seria uma espécie de observadora; o segundo serviria de mensagei-
ro, anunciando a morte do sacristão: "La cloche de l'église/ Sonnait
tout doucement la mort du sacristain". Imagens que anunciam a
morte vindoura fazem-se presentes, proporcionadas pela própria
natureza e acompanhadas pela noite:
La nuit tombait Les vignobles aux ceps tordus
Devenaient dans 1'obscurité des ossuaires
En neige et repliés gisaient là des suaires
o é só a seqüência narrativa, no entanto, que produz ima-
gens poéticas. Apollinaire preenche também a fala rotineira com
versos do tipo: "Ce cyprès là-bas a l'air du pape en Voyage" (v.7,
em itálico no original), ou "- On dirait que le vent dit des phrases
latines" (v.20, idem). Nos dois exemplos, há indícios da religiosi-
dade do povo local, como em outras passagens já assinaladas. A-
rica produz-se aqui por meio de fragmentos de prosa, de que
Apollinaire se serve apenas para dela retirar efeitos rítmicos. Com
experimentos formais, transformando a prosa em poesia, o poeta
alcança sua "fabulírica". Hugo Friedrich (1978, p.34), ao comen-
tar o caráter fragmentário da poesia desde Verlaine até os poetas
mais modernos, afirma que "tudo isto serve àquela finalidade obs-
cura de indicar uma transcendência em dissonâncias e em frag-
mentos, cuja harmonia e totalidade ninguém mais pode perceber".
Apollinaire faz da métrica uma ferramenta a mais para marcar
o ritmo da conversação no poema. Ao variar a posição das cesuras
e dos cortes secundários nos versos alexandrinos, e ao usar enjam-
bements significativos, o poeta acentua o caráter "recortado" da
fala, o que já foi marcado pela alternância com a seqüência narrati-
va. Em "Lenchen remplis le poêle et mets l'eau du café" (em itálico
no original), há dois hemistíquios: um até poêle e outro a partir
desta palavra. Mais adiante, as cesuraso outras: "Il est mort
écoutez La cloche de 1'église" (grifos do autor).
Quanto à exploração das rimas, Apollinaire mostra o destino
das mulheres do título ao aproximar sonoramente cousent/
s'épousent. Opostos se atraem em cage/ voyage, bon/ moribond. O
exterior e os detalhes interiores aproximam-se em école/ étole;
là-bas/ ces bas; tartines/ latines, bem como frases feitas repetidas
ao acaso: Leni je tousse/ Ilse la vie est douce. Por fim, a luz, quase
ausente porque "La nuit tombait", é também personificada no fi-
nal do poema, recebendo um epíteto inusitado: "Les femmes se
signaient dans la nuit indécise", indicando o lusco-fusco do cre-
púsculo. Nesse poema, Apollinaire utilizou ao máximo sua verve
lírica e transformou em poesia atos rotineiros, em personagens es-
peciais pessoas simples e humildes de um vilarejo longínquo.
Concluindo a leitura desses poemas, reconhece-se que ocorre
nas Rhénanes a presença de lembranças esmaecidas pela passagem
do tempo, fragmentadas e por esse motivo muitas vezes idealiza-
das, retorcidas e até mesmo recriadas pelo poeta, o que comprova
a importância que Apollinaire dá à própria memória e ao ato de
recriação que a tem como origem. Mesmo fascinado pela moder-
nidade de sua época, pelas descobertas no campo da ciência e pela
rapidez que isso tudo imprime à vida, o poeta de Alcools soube tra-
balhar com talento os vestígios do passado, privilegiando-o. Esse
tratamento dado pelo poeta é uma forma de evasão simbolista.
O espaço, privilegiado nos poemas em que ocorre a fabula-
ção, é fundamental em "La synagogue" e em "Les femmes", por
exemplo, porque ele intervém na narração, a cada vez que o herói
vive aí uma experiência essencial, e, mais substancialmente, em al-
gumas narrativas nas quais os próprios personagenso portado-
res do espaço. O tempo, bem demarcado em "Le larron", em
"Mai", ou ainda em "Schinderhannes", segue o esquema narrati-
vo, com abundância de tempos verbais no passado e sobretudo no
imperfeito, às vezes quase imóvel, outras vezes rápido em sua vol-
ta ao passado. A afirmação de Tadié (1978, p.96) sobre L'amour
fou, de André Breton, poderia ser estendida a Apollinaire: ele ser-
ve-se da cronologiao para marcar o desenvolvimento de uma
ordem, mas para fixar a lembrança de suas rupturas.
Os personagens, evidentemente, ganham maior destaque nes-
ses poemas narrativos. Em todos os que foram aqui assinalados,
elesm um papel ativo para o desenrolar da fabulação. Merlim, o
eremita, os bandidos alemães, as mulheres que costuram e sussur-
ram, o ladrão, os sinos, os pinheiros, enfim, toda a gama de heróis
apollinairianos remete a um único eu poético, reflexo de seu au-
tor. Esses personagens são, na maioria das vezes, um herói princi-
pal, fugidio, transmutado em olhar, linguagem, imagens, sonhos,
nas palavras de Tadié (ibidem, p.21).
ODE À FÁBULA MODERNA: "ZONE"
O longo poema inaugural de Alcools, "Zone" (156 versos), al-
vo de inúmeros estudos, é considerado, ao mesmo tempo, um co-
mentário do fazer poético e um poema lírico, que abre a coletânea
com uma proclamação: "A la fin tu es las de ce monde ancien".
Lembra Lecherbonnier (1983, p.ll) que para Apollinaire, defen-
sor de Marinetti e do futurismo, o esplendor do mundo enrique-
ceu-se com uma "beleza nova".
Paris é o cenário central do poema. A Torre Eiffel, naquele
momento símbolo de uma nova era, transforma-se em pastora das
pontes que balem na manhã. Os automóveis, hangares de porta-
aviões, datilógrafas, sirenes, ônibus, "Ia grâce de cette rue indus-
trielle", o gás, aeroplanos, máquinas em geral misturam-se freneti-
camente no delírio do poeta, que "viaja" em seus versos até Marse-
lha, Coblence, Praga, Roma e Amsterdã, entre outras cidades. Essa
pequena amostra de elementos citadinos em apenas um poema
anuncia a poesia da máquina e da cidade moderna, e eles servirão
também à formulação de L'esprit nouveau et les poètes, frutos da
surpresa do autor diante de toda essa evolução e da variedade
de novas "atrações" que tem o homem do início do século XX.
Neste poema, Apollinaire leva ao extremo a fragmentação e a si-
multaneidade:
J'aime la grâce de cette rue industrielle
Située à Paris entre la me Aumont-Thiéville et 1'avenue des Temes
D 'Afrique arrivent les ibis les flamants les marabouts
Et d'Amérique vient le petit colibri
De Chine sont venus les pihis longs et souples
...
Maintenant, tu marches dans Paris tout seul parmi la foule
Entourée des flammes ferventes Notre-Dame m'a regardé à
Chartres
Le sang de votre Sacré-Coeur m'a inondé à Montmartre
Maintenant tu es au bord de la Méditerranée
Tu es dans le jardin d'une auberge aux environs de Prague
Te voici à Marseille au milieu des pastèques
Te voici à Coblence à 1'hôtel du Géant
Te voici à Rome assis sous un néflier du Japon
Te voici à Amsterdam avec une jeune fille que tu trouves belle et
qui est laide
Tu es à Paris chez le juge d'instruction
...
Tu as fait de douloureux et de joyeux voyages (Apollinaire,
1994a, p.40-2)
Nessa seqüência fragmentada, observam-se ao mesmo tempo
a simultaneidade e a desconstrução, a decomposição do espaço-
cidade, uma visão cubista e futurista, uma das características da-
rica contemporânea. Na verdade, todos os espaços que aparecem
nomeados em "Zone" nada maiso do que a tradução de um "ce-
nário simultâneo de um único evento exterior e interior" (Frie-
drich, 1978, p.203). Mesmo se os momentos líricos ocupam um
espaço considerável no poema, ainda assim podem ser encontra-
das nele características fabulares, de narrativa, quando, por exem-
plo, o poeta compara a Torre Eiffel a uma pastora, ou quando vê
em Paris rodarem "Des troupeaux d'autobus mugissants près de
toi" (Apollinaire, 1994a, p.41).
O poema remete a fatos da vida do poeta, como o rompimen-
to com Marie Laurencin e a prisão equivocada à qual Apollinaire
foi submetido. Traços modernos compõem essa nova lírica, como
a ambigüidade, o jogo entre o je e o tu que designam alternada-
mente o poeta, épocas diferentes justapostas. Esses expedientes
o ao poema uma visão a distância do eu poético, que narra, do
presente, os fatos vividos no passado. A fabulação também surge
desse jogo: o poeta, em uma manhã, andando pela cidade de Paris,
apresenta o que vê e faz associações com o pensamento, com a me-
mória, que misturam ao presente fatos e momentos vividos em ou-
tros momentos e em outros locais. Desse modo, o que se tem é
uma narrativa interior, que contrasta com a exterior e com ela se
entrelaça. O que há de diferente nesse novo tipo de fabulação é o
forte traço de modernidade desse procedimento, isto é, a fábula é
reconstituída costurando-se os fragmentos, gerando então uma
espécie de narração interior,o entrecortada quanto a própria
memória.
Além disso, corroborando o primeiro verso de "Zone" - "A la
fin tu es las de ce monde ancien" -, Apollinaire dá nova roupagem
aos mitos antigos, mesclando-os a mitos modernos. É evidente que
os mitos modernosm sua origem na mitologia antiga, e sua ori-
gem é de extrema importância. Mircea Eliade (1978, p.228-9) as-
sinala que cartazes rasgados, telas em branco, vazias, queimadas,
objetos de arte insólitos possuem uma significação de origem míti-
ca, e Apollinaire soube ver essa relação e usá-la em seus poemas.
Esse procedimento resgata o passado e, ao mesmo tempo, reveste
o presente com novas características, como se registra nos seguin-
tes versos:
LM religion seule est restée toute neuve la religion
Est restée simple comme les hangars de Port-Aviation
Cest le Christ qui monte au ciel mieux que les aviateurs
Il detient le record du monde pour la hauteur
Icare Enoch Elie Apollonius de Thyane
Flottent autour du premier aéroplane
(Apollinaire, 1994a, p.39-40)
Essas insólitas aproximações culminam quase no final do poe-
ma, momento em que Apollinaire compara o Cristo aos fetiches
da Oceania e da Guiné, criando um sincretismo interessante:
Tu marches vers Auteuil tu veux aller chez toi à pied
Dormir parmi tes fétiches d'Océanie et de Guinée
Ils sont des Christ d'une forme et d'une autre croyance
Ce sont les Christ inférieurs des obscures espérances
(ibidem, p.44)
Assim, é relevante dizer que, em "Zone", considerado um poe-
ma-símbolo da modernidade - eo é sem razão que ele abre a co-
letânea mais importante de Apollinaire -, traços de narratividade,
de fabulação, aparecem igualmente.
"LA CHANSON DU MAL-AIMÉ"
"La chanson du mal-aimé" é o mais longo poema da coletânea
Alcools, com 295 versos distribuídos regularmente em quintetos;
a epígrafe informa que se trata de um romance, no sentido medie-
val e mais antigo da palavra: um poema em parte narrativo, em
parte lírico, de temática amorosa, composto em versos octossilábi-
cos. Está dividido em seções, e três delas apresentam subtítulos:
"Aubade chantée à Laetare un an passé", "Les sept épées" e "Ré-
ponse des Cosaques Zaporogues au Sultan de Constantinople".
Apesar da divisão, a unidade do poema é notável, seja pela forma,
seja pelo tema, seja pela inspiração.
A sua composição é, no entanto, exemplo marcante de um
processo de colagem,o ao gosto dos modernistas, pois o conjun-
to foi escrito "aos pedaços", em diferentes momentos: há manus-
critos independentes das estrofes 6 a 9 (que se referem a figuras
míticas, os "reis felizes" Ulisses e "l'époux royal de Sacontale"), da
parte intitulada "Réponse des Cosaques Zaporogues au Sultan de
Constantinople", da estrofe 13, repetida após "Les sept épées"
(n° 49), e por fim das estrofes 55 a 58, que falam de Paris em ju-
nho. Apollinaire elaborou uma primeira versão do poema em
1903, e depois retomou-o, em 1905, reunindo e fundindo esses
fragmentos com outros para dar-lhe a forma atual (foi publicado
pela primeira vez na Mercure de France, em maio de 1909).
Esse caráter de conjunto ao mesmo tempo uno e fragmentado
parece desconcertar o leitor, queo sabe se está diante de uma-
rie de poemas que apresentam relações temáticas, como acontece
com as Rhénanes, ou se deve lê-lo como um único poema narrati-
vo. Essa hesitação pode ter acometido Madeleine Pagès, o que terá
levado Apollinaire a escrever-lhe uma carta, em julho de 1915,
que é muito esclarecedora da inspiração do poema e do seu caráter
intrinsecamente lírico:
Aubadeo é um poema à parte, mas um intermédio intercalado
na Chanson du mal-aimé que, datada de 1903, comemora meu pri-
meiro amor, aos vinte anos, uma inglesa que encontrei na Alemanha,
isso durou um ano,s tivemos de voltar cada um para seu país, de-
poiso nos escrevemos mais. E expressões desse poemao severas
demais e injuriosas para uma moça queo me compreendia nem um
pouco e que me amou, mas ficou desconcertada em amar um poeta,
ser fantasioso; eu amei-a carnalmente, mas nossos espíritos estavam
longe um do outro. Entretanto, ela era fina e alegre. Tive muitos ciú-
mes dela sem razão e pela falta vivamente sentida, minha poesia que
pinta bem meu estado de alma de então, poeta desconhecido no meio
de outros poetas desconhecidos, ela distante eo podendo vir a Pa-
ris. Fui vê-la duas vezes em Londres, mas o casamento era impossível
e tudo se arranjou com sua partida para a América, mas sofri muito
com isso, testemunho é esse poema em que me acreditava mal-
amado enquanto era eu que amava mal, e também L'Émigrant de
Landor Road que comemora o mesmo amor... (Apollinaire, 1994a,
p.1046)
O amor de Apollinaire por Annie Playden e a relação que
mantiveram entre 1902 e 1904o a inspiração principal para o
poema: depois do convívio na Alemanha, o poeta reencontrou-a
em suas viagens a Londres (em novembro de 1903 e em maio do
ano seguinte), para dar-se conta de que a havia perdido definitiva-
mente em janeiro de 1905.
A epígrafe do poema traz já a marca mítica, ou seja, fabular,
que, misturada ao episódio pessoal da vida de Apollinaire, resul-
tou no codinome mais célebre do poeta, "le mal-aimé":
Et je chantais cette romance
En 1903 sans savoir
Que mon amour à la semblance
Du beau Phénix s'il meurt.un soir
Le matin voit sa renaissance. (Apollinaire, 1994a, p.46)
Evocações míticas misturam-se ao fluxo da consciência do poe-
ta, e lembranças de amores felizes e a dor deixada por eles entre-
meiam-se para formar uma história. Brevemente, o que se poderia
observar em relação ao aspecto que o diferencia dos outros poe-
mas simbolistas de Apollinaire é que, apesar de uma história estar
sendo contada e de referências míticas aparecerem, o poema traz
em si efeitos-surpresa e humorísticos dignos de uma composição
moderna, como na estrofe 40:
Et moi j'ai le coeur aussi gros
Qu'un cul de dame damascène (ibidem, p.55)
Além disso, o recurso à memória e o jogo entre passado e pre-
sente, bem como seu caráter explícito de montagem, colocam esse
poema entre os grandes exemplos da poesia moderna.
A LÍRICA SURPREENDE A FÁBULA:
"L'ÉMIGRANT DE LANDOR ROAD"
Outro poema de Alcools em que a fabulação também é consi-
derável é "L'émigrant de Landor Road" (Apollinaire, 1994a,
p. 105-6). Dedicado a um de seus amigos e futuro estudioso de sua
obra, André Billy, tem praticamente um terço do tamanho de "Zo-
ne" (é composto de 53 versos). Trata-se também de um poema líri-
co, com menções a fatos autobiográficos. É ainda a paixão pela jo-
vem inglesa que o recusa várias vezes que vem à tona no poema, a
mesma Annie Playden das Rhénanes e de "La chanson du mal-
aimé". Imagens de morte, um pouco de humor e ironia preenchem
os versos de "L'émigrant...", sombras e mãoso algumas das ima-
gens que se repetem em seu interior. O título refere-se tanto ao
próprio poeta, que viaja à Inglaterra em busca da amada, quanto a
ela própria, já que Landor Road era seu endereço até a chegada de
Apollinaire, quando ela parte para os Estados Unidos.
A primeira estrofe faz referência a uma 3
a
pessoa, il, O enjam-
bement dos dois últimos versos resulta em um duplo sentido: "Ce
commerçant venait de couper quelques têtes/ Des mannequins vê-
tus comme il faut qu'on se vête". A figura dos manequins vai se re-
petir mais duas vezes: eleso déshabillés (v.17) e victimes (v.23).
A essa imagem da imobilidade alternam-se as da foule, das ombres
e das mains:
La foule en tous les sens remuait en mêlant
Des ombres sans amour qui se traînaient par terre
Et des mains vers le ciel plein de lacs de lumière
Guider mon ombre aveugle en ces rues que j'aimais
Quand les mains de la foule y feuillolaient aussi
Des émigrants tendaient vers le port leurs mains lasses
Embora o que mova o poema sejam os sentimentos desespera-
dos do eu poético que culminam em um suicídio (ou seja, há a pre-
sença da morte e da desilusão amorosa, temas líricos por excelên-
cia), é palpável a presença da fábula nas estrofes narrativas de
"L'émigrant de Landor Road". Essas estrofes surgem em meio a
outras que interrompem o fio da narrativa: reunindo a primeira, a
quinta, a oitava, a nona, a décima, a décima primeira e a décima
segunda, é possível construir uma história que apresenta elemen-
tos de narração, como espaço, tempo, ação e personagem, reforça-
dos pelo emprego do passado simples já no primeiro verso: "Le
chapeau à la main il entra du pied droit/Chez un tailleur très chic et
fournisseur du roi".
O personagem experimenta um traje de um lorde morto que
o pagara pela roupa (quinta estrofe); em seguida, na oitava,
lê-se "Sur le pont du vaisseau il posa sa valise/ Et s'assit". O espaço
que o envolve é descrito na estrofe seguinte, em que emigrantes de
mãos cansadas as estendem em direção ao porto, enquanto outros
choram ajoelhados. O personagem do poema olhou os rios morre-
douros, ao mesmo tempo em que
... l'on tissait dans sa mémoire
Une tapisserie sans fin
Qui figurait son histoire
No desfecho do poema, a morte do protagonista é anunciada
sutilmente por meio de uma comparação a um mito: "Il se maria
comme un doge/ Aux cris d'une sirene moderne sans époux". Os
doges, como se sabe, eram chefes eleitos das antigas cidades de Ve-
neza e Gênova, e casavam-se, simbolicamente, com o mar. Desco-
bre-se então que Apollinaire mistura o passado e suas lendas ao
presente, para, neste caso, proclamar a morte de seu protagonista.
O uso do passé simple, de enjambements, rimas, inversões e
encontros de palavras provocando surpresa, como em "port
d'automne aux feuilles indécises", e o trabalho com a sonoridade e
a presença de metáforas encadeadas, como "Le vent de l'Océan en
soufflant leurs menaces/ Laissaient dans ses cheveux de longs bai-
sers mouillés", constroem a fábula do poema. A personificação dos
manequins transforma-os em um mito moderno, uma fábula mo-
derna: "Les mannequins pour lui s'étant déshabillés" - eis o sur-
preendente, o bizarre, como ocorre igualmente em "Zone". Perce-
be-se que os elementos líricos de "L'émigrant de Landor Road"
diferem dos de "Zone", masm também muitos pontos comuns,
em razão do emprego da fábula em ambos.
Outro elemento fabular aparece na ambigüidade e exploração
do mito das sereias, que atraíam pescadores para o fundo do mar:
"Il se maria comme un doge/ Aux cris d'une sirène moderne sans
époux". O duplo significado de sirène (sereia/sirene) cria essa am-
bigüidade, e a presença do doge reforça a presença do mito e, con-
seqüentemente, da fábula. O emprego do passé simple oito vezes
(il entra; [ils] battirent; [il] s'habilla; il posa; et s'assit; il regarda;
qui moururent; il se maria) também atesta o caráter narrativo do
poema, aproximando-o ainda mais da fábula. Observa-se nele, en-
tão, a persistência do mito tradicional; porém, acrescido de tintas
modernas, misturado a figuras da época do poeta.
Segundo Gilberte Jacaret (1984, p.36), ao criar novos mitos,
Apollinaire projeta-se neles, vive-os, transforma-os, reatualiza-os,
exprimindo assim novas crenças: o mito torna-se novamente vivo.
Sua força está intacta em um contexto diferente. Ao fazer de certos
seres lendários duplos de si mesmo, ele, por um lado, tece sua his-
tória mítica, e, por outro, identifica-se com uma imagem queo
o aliena, queo o transforma como o reflexo de um espelho.
Pode-se notar nesse procedimento a modernidade do poema:
justaposição de discursos e de pessoas gramaticais (il/je), do tom-
rico ao quase irônico e de versos (alexandrinos, octossílabos, de
seis e três sílabas). Há também uma ambigüidade: por um lado, o
texto evoca, pelo seu título e pela referência à América (terceira
estrofe), a partida insuportável da amante; por outro, ele dá ao
"emigrante" as reações do amante abandonado. Como em "La
chanson du mal-aimé", o abandono termina em morte; mas aqui a
morte é definitiva, a doro engendra uma obra, o tema da cria-
ção poéticao aparece.
Enfim, é possível perceber que, em todas as fases em que se in-
serem os poemas de Alcools, há uma presença constante dos ele-
mentos fabulares, da fabulação. Neles, no entanto, a fábula vem
em meio à lírica, enquanto esta nasce da fábula por meio das técni-
cas de fragmentação, elemento surpresa, prosa transformada em
verso etc. Da trilogia de poemas considerados simbolistas, de
"Nuit rhénane" a "Les femmes", em "Palais", em "Zone" e em
"L'émigrant de Landor Road", Apollinaire acrescenta esses ele-
mentos gradativamente. No ciclo das Rhénanes, por exemplo, o
primeiro dos nove poemas quaseo apresenta traços de prosa.
No último, a marca é até impressa, há diferentes tipos de letra, co-
mo se verificou. Dessa forma, além da evolução interna do ciclo,
tem-se igualmente uma evolução ainda maior, que ultrapassa os li-
mites de Alcools e transborda para os Calligrammes.
Desse modo, lenda e realidade em "Palais" e em "Schinder-
hannes", mito e memória em "La Loreley" e em "Zone", cotidiano
em "La synaguogue" e também em "Zone", apenas para exempli-
ficar alguns dos elementos presentes na poesia de Apollinaire,
mesclam-se e justapõem-se, fazendo nascer daí a lírica da fábula e
a fábula surgindo impregnada de lírica. Essas características esta-
o presentes praticamente em toda sua obra poética.
Marcas de oposição, tratamentos particulares que o poeta dá
ao tempo e ao espaço servem como reforço da lírica. Apollinaire
também os transforma, bem como os objetos, ampliando, dessa
forma, o caráter lírico de sua poesia. É importante lembrar que o
tema da morte é o que mais aparece nos poemas analisados, um te-
ma lírico por excelência. Utilizando efeitos rítmicos e sonoros, co-
mo repetições, exclamações ou invocações, o trabalho de Apolli-
naire transforma-se em uma espécie de canto, o que faz lembrar a
origem oral da poesia, outro elemento que pode estar ligado à-
bula e que foi revalorizado pelo romantismo. Como Apollinaire
tem consciência disso - aliada à sua preocupação filológica, que se
reflete na busca e no emprego de mitos mais arcaicos, mais antigos
- e é descendente direto dos românticos, fica explicado o motivo
pelo qual compôs vários poemas nomeados chant.
Por sua vez, a ausência total de pontuação sugere várias for-
mas de leitura, diversas entonações, características estas da fala,
do oral, da narrativa, ou seja, do mito e da própria fábula, de outro
aspecto da fabulação. Quase sempre há uma história a ser contada
e um narrador que, conseqüentemente, vai exercer esse papel. Re-
gistra-se, portanto, a inegável importância da presença da narrati-
va na lírica de Apollinaire, já esboçada nos poemas do Bestiaire e
nos Poèmes à Lou.
Dessa forma, com a sabedoria de quem conseguiu aliar passa-
do e presente, Apollinaire usufruiu ao máximo do espírito inova-
dor e libertário de sua época, que ele ajudou a criar, e que culmina-
rá nos poemas-pintura dos Calligrammes.
4 UM POETA A SERVIÇO DA LÍRICA MODERNA
Me voici devant tous un homme plein de sens
*
*
* * *
La Victoire avant tout sera
De bien voir au loin
De tout voir
De près
Et que tout ait un nom nouveau
(Guillaume Apollinaire)
E que tudo seja igual e que tudo seja outra coisa.
(Pablo Picasso)
No que diz respeito à lírica moderna da Europa, é consenso
entre os estudiosos da poesia do final do século XIX e os da poesia
do século XX considerar seus mestres maiores Arthur Rimbaud e
Stéphane Mallarmé. Seu precursor, é evidente, foi Charles Baude-
laire, que rompeu barreiras c criou teorias cm torno da poesia c
das artes em geral. Guillaume Apollinaire segue esse caminho qua-
se naturalmente, muito acrescentando, porém, ao fenômeno, im-
pulsionando-o com lampejos de uma modernidade ainda maior.
O que interessa aqui é esclarecer em que sentido Apollinaire foi
um inovador da lírica, bem como delimitar as manifestações dessa
lírica em sua obra, que ao mesmo tempo influi na fábula e é por ela
influenciada, como já se percebeu nos capítulos anteriores.
PERSPECTIVA E RETROSPECTO
Há várias características da lírica do final do século XIX e iní-
cio do XX que podem ser encontradas entre os principais nomes
da poesia desse período, sobretudo européia. A revolução poética,
já iniciada no romantismo e consolidada no simbolismo, surge em
meio à crise social, existencial e cultural dos meados do século
XIX. Há uma intensa euforia e até mesmo uma obsessão advindas
do progresso crescente da época, e uma ilusão de que o mundo se
tornara menor, graças à velocidade empreendida pelos meios de
transporte, fato que, de certa forma, muda a paisagem. Paradoxal-
mente, esse novo quadro leva também à crise, e é nesse momento
que Baudelaire chama a atenção para as correspondências do
mundo natural e do espiritual, baseando-se em alguns escritos de
Swedenborg, que nortearão o movimento simbolista.
Embora pertencendo ao século XIX, Baudelaire estava imbuí-
do de idéias e de teorias que iriam manter-se e fortalecer-se na líri-
ca do século XX. Além de ser o criador da palavra modernidade,
foi seu primeiro representante legítimo. Praticamente tudo o que a
poesia moderna trouxe de novo já estava anunciado na obra do
autor das Fleurs du mal. Sua capacidade de ver poesia mesmo no
frio das cidades, na civilização comercializada, dona de uma bele-
za misteriosa e desconhecida até então, agradável ou não, seria re-
forçada c trabalhada pelos poetas que viriam depois dele e, sobre-
tudo, por Apollinaire, haja vista a ode ao mundo moderno, às
cidades e à tecnologia nascente do início do século XX que é "Zo-
ne",o por acaso o poema que abre sua principal coletânea.
Em Baudelaire, a fantasia devia ser guiada pelo intelecto, isto
é, a idéia da pura inspiração, uma espécie de êxtase misturado a
um tipo de transe pelo qual os poetas deveriam passar, orientados
pelas musas, caía por terra. A poesia deve evocar, sugerir; o poeta
deve evitar o sentimentalismo, abandonando aquele lirismo lite-
ralmente "derramado" para dar espaço ao fruto do raciocínio e do
cálculo. Essas características da poesia de Baudelaire confun-
dem-se com as da poesia simbolista.
Verificam-se muitos pontos semelhantes entre Les Fleurs du
mal e os Alcools de Apollinaire, coletâneas nas quais a construção
formal tem grandes destaque e significado, onde "ressoa a simbóli-
ca da alta Idade Média que costumava refletir, nas formas da com-
posição, a ordem do cosmo criado" (Friedrich, 1978, p.40), e on-
de se vê o homem dividido entre a matéria e o espírito.o obras
que representam o sofrimento transformado em poesia; a dor, en-
tão, é poetizada. Todas as características dissonantes e negativas
do mundo transformam-se em algo fascinante, e é essa uma das fa-
cetas do conceito de modernidade elaborado por Baudelaire e de-
senvolvido mais tarde por Apollinaire. Até o lixo da metrópole, as
características negativas da urbanidade crescente do final do século
XIX transformam-se cm matéria poética, atitude que irá se confir-
mar em Apollinaire. Desse modo, essa nova maneira de encarar o
mundo e a conseqüente modificação da lírica produzem no leitor
o "assalto inesperado", a anormalidade e a "irritação contra o ba-
nal e o tradicional", c colocam o esprit nouveau de Apollinaire na
continuidade da lírica baudelairiana. Além disso, Baudelaire exal-
tava o sonho, era partidário da "lógica espantosa do absurdo",
cantada anos depois pelo criador da palavra surrealismo. Todas es-
sas idéias e tendências depreendem-se dos "Tableaux parisiens",
vertente que será seguida pelas vanguardas.
Desde o romantismo, movimento a partir do qual a sonorida-
de passou a ser valorizada, o lírico "converte-se em mágico do
som" (ibidem, p.50). Essa aproximação entre poesia e magia foi
retomada após os "anos de limbo", correspondentes ao humanis-
mo e ao classicismo. Apollinaire, herdeiro do simbolismo, pode
ser incluído também nesse grupo, haja vista seus estudos sobre a
Idade Média e, conseqüentemente, sobre a magia, corroborados
pelos estudos sobre o sonho e culminando no esboço do que seria
o movimento surrealista. Por meio de técnicas simbolistas, como a
valorização do verso livre, por exemplo, o poeta deu um toque
moderno à sua obra; além disso, em suas reflexões sobre a arte, fica
claro o papel que ele atribui ao artista em geral, um mágico que de-
ve sempre surpreender: "O verso livre deu livre curso ao lirismo;
mas era apenas uma etapa das explorações que se podiam fazer no
domínio da forma" (Apollinaire, 1991, p.944).
Baudelaire, antecipando a teoria simbolista, demonstrava até
mesmo seu desprezo pelo mundo real, incitando sua transforma-
ção por meio da "fantasia criativa"; a realidade devia ser transfor-
mada igualmente por meio do sonho e da imaginação, "capacida-
des criativas e produtivas superiores", como também se encontra
em Apollinaire. Para o autor das Fleurs du mal, a realidade devia
ser decomposta, deformada, desfeita, ou seja, fragmentada, no di-
zer de Apollinaire, embalada pela sensação de rapidez e do caráter
efêmero que o mundo lhe impunha. Tanto Baudelaire quanto
Apollinaire foram seguidos pelos surrealistas, inspirados da mes-
ma forma pelas teorias, pelos versos e frases desses dois poetas.
Dessa faceta do simbolismo, Apollinaire reterá sobretudo a li-
berdade advinda da imaginação e estendida à criação formal, ou
seja, ao abolir as regras de versificação, o poeta exercitará mais ex-
tensamente sua arte, que será ainda mais ampliada pela abolição
total da pontuação de seus poemas. O que parece no mínimo curio-
so é que as relações entre a escola simbolista e Apollinaire só foram
estudadas a partir da década de 1960, por S. I. Lockerbie (1963),
por ocasião do cinqüentenário da publicação de Alcools. Apesar
dos numerosos trabalhos referentes à obra do poeta, esse aspecto
aindao tinha sido suficientemente explorado, já que aqueles
apenas lembravam sua reveladora modernidade e suas ligações
com as vanguardas. Nada seria mais simbolista do que evocar "ro-
ses mourant d'espérance" em plena guerra, além daqueles longos
poemas já comentados aqui e que se aproximam muito da "pseu-
do-alegoria", no dizer de Lockerbie. Além disso, a Renânia foi
uma terra eleita pelos simbolistas franceses, fato que coloca Apol-
linaire, e suas Rhénanes, ainda mais próximo do simbolismo.
Hugo Friedrich considera a lírica do século XX de uma "pro-
dutividade surpreendente" e vê nela características sobretudo ne-
gativas, como a dissonância, a obscuridade, o sentido de mistério,
a tensão, a desorientação, a dissolução da ordem, a fragmentação,
o deslocamento, o estranhamento, a incoerência, o grotesco, a or-
dem sacrificada, a despersonalização, muitas certamente oriundas
do simbolismo. Nesta leitura, já foi possível encontrar, de maneira
recorrente, muitas dessas peculiaridades na obra de Apollinaire,
embora também se tenha constatado que o poeta de "Zone"o
renegou completamente a tradição, usando-a a serviço de uma líri-
ca que continha novidades, sem se desprender totalmente do pas-
sado. Eis aí uma atitude que difere da de muitos de seus contempo-
râneos, principalmente daqueles radicais seguidores das correntes
e dos movimentos de vanguarda, que negavam o antigo, o velho, o
passado e ultrapassado, enaltecendo a novidade e o momento pre-
sente como únicos a serem valorizados.
No caso de Apollinaire, as origens simbolistas e a descoberta
do esprit nouveau, cujo objetivo era também causar surpresa ao lei-
tor, seguindo assim na esteira das características líricas modernas,
vieram trazer o bom senso e o equilíbrio necessários a uma produ-
ção poética multifacetada e de qualidade invejável. Impelido pela
vibração que o início do novo século trazia, pleno de descobertas
tecnológicas e impulsionadas por uma velocidade jamais alcança-
da antes (do trem, por exemplo), e impressionado com a paisagem
em movimento por ela distorcida, Apollinaire vai traçar os rumos
de sua lírica, tentando reproduzir o fascinante mundo novo e rápi-
do que o período lhe oferecia. A nova realidade, regada de dina-
mismo, traz à tona conceitos como a fragmentação e a simultanei-
dade, com os quais Apollinaire vai trabalhar em seus poemas e,
também, desenvolver teorias que englobam outras artes, como a
pintura. Em Les peintres cubistes, o poeta discorre sobre essa nova
faceta da pintura e da qual Picasso foi o grande realizador, o cubis-
mo. Para Apollinaire (1991, p.16), "o que diferencia o cubismo da
pintura antiga é que eleo é uma arte de imitação, mas uma arte
de concepção que tende a elevar-se até a criação".
Em "Zone", todo esse deslumbramento pelo novo vem à tona.
Essa escolha vem sobretudo ao encontro do espírito novo procla-
mado pelo poeta que, sem perder o foco do passado, adota atitu-
des vanguardistas, pois, afinal, ele está "las de ce monde ancien".
Entretanto, é também por meio de mitos antigos que Apollinaire
tenta expressar as novidades do futurismo e da "beleza nova" que
proclamava... Ao leitor, resta a sensação de anormalidade, uma
impressão de estranheza, que só poderá decifrar em um segundo
momento. Contudo, ao poeta, é essa primeira sensação a mais im-
portante, isto é, o deslocamento primeiro sentido pelo leitor.
A explosão da nova vertente da lírica esboçada por Baudelaire
dar-se-ia com Arthur Rimbaud, com dinamismo e excitação, re-
cheada de "dissonâncias absolutas". A fragmentação dessa vez
atingia seu auge, por meio de uma "insólita técnica de expressão",
criando efeitos desconcertantes. A obscuridade e o lado enigmáti-
co da poesia eram valorizados. O objetivo de Rimbaud era "chegar
ao desconhecido", "escrutar o invisível e ouvir o inaudível",
1
de-
formando assim a realidade e abrindo maiores caminhos aos surrea-
listas, que consideram o poeta do "Bateau ivre" seu antecedente
maior. O poeta deve ser um vidente, ou um profeta, nas palavras
de Rimbaud. Em sua conferência L'esprit nouveau et les poètes,
Apollinaire (1991, p.950) também apresenta o poeta como um ser
criador, inventor e profeta:
O espírito novo exige que se entreguem a tarefas proféticas. Eis
por que encontrarão traço de profecia na maior parte das obras
concebidas conforme o espírito novo. Os jogos divinos da vida e da
imaginaçãoo ampla liberdade a uma atividade poética totalmen-
te nova.
Rimbaud, ao execrar os antepassados e declarar-lhes seu ódio,
concretiza a ruptura da tradição, tantas vezes antes ensaiada.
Apollinaire (1991, p.953), apesar do culto ao esprit nouveau e às
inovações, e de sua célebre frase - "Não se pode transportar por
toda a parte o cadáver de seu pai" -,o foio radical assim, sa-
bendo encontrar um equilíbrio entre a tradição e o novo, atitude
que o liga mais uma vez ao simbolismo:
O espírito novo é, antes de mais nada, inimigo do estetismo, das
fórmulas e de qualquer esnobismo. Eleo luta contra qualquer es-
cola que seja, poiso quer ser uma escola, mas uma das grandes cor-
rentes da literatura que engloba todas as escolas, desde o simbolismo
e o naturismo.
1 As expressões "arriver à /'inconnu", "inspecter l'invisible et entendre l'inoui"
são recorrentes nas famosas cartas de Rimbaud a G. Izambard e P. Demeny (Cf.
Rimbaud, 1993, p.189-96).
Em vez de cultivar os mitos, Rimbaud destruiu-os e degra-
dou-os, atitudes praticadas em vários poemas, dos quais o mais-
lebre é "Vênus anadyomène". Apollinaire, ao contrário, como já
ficou demonstrado, retoma os mitos com prazer e ainda os recria,
fazendo deles grande fonte de inspiração. Talvez em "Palais" ele se
afaste ligeiramente dessa prática, mas essa atitudeo chega a ser
uma regra, como acontece na obra de Rimbaud. Além disso, este
último demonstrava freqüentemente seu desprezo por temas e
motivos tradicionalmente líricos, como flores, natureza em geral e
sentimentos. Sua poesia tinha como objetivo maior ser "perceptí-
vel aos sentidos e indefinível à inteligência": propunha uma nova
forma de percepção para poder saboreá-la e entendê-la. Há mui-
tos pontos paradoxais em seus versos, como a aversão à moderni-
dade, no que diz respeito ao progresso material e ao racionalismo
científico, c, simultaneamente, um apego a ela, "enquanto conduz
a novas experiências, cuja dureza e obscuridade exigem uma poe-
sia dura e 'negra"' (Friedrich, 1978, p.66).
A aproximação de pólos distantes, do sensorial e do imaginá-
rio, criando imagens insólitas na poesia de Rimbaud, introduzia a
irrealidade, como a junção de Egito, Japão, Arábia, Cartago e do
Brooklin em uma mesma cena,
2
o que faz lembrar a estrutura de
"Zone" e de "Vendémiaire".
Dessa maneira, seriam estes alguns dos aspectos da obra de
Rimbaud que permaneceram na poesia: a destruição total da or-
dem estabelecida, a desrealização, a presença de um sentido
enigmático indissolúvel em seus versos, a liberdade da fantasia -
uma das características fundamentais da lírica moderna -, a téc-
nica da fusão, comum à poesia e à pintura, e explorada por
Apollinaire, e uma abstração que se situa "acima dos conteúdos
imaginativos".
Ao lado da liberdade e da conseqüente ruptura das regras con-
cernentes ao verso que se descobre em Rimbaud, da capacidade
sugestiva da poesia cantada pelos simbolistas, da decifração das
correspondências entre mundos diferentes e da recuperação da es-
sência do poético, também a presença do outono como tema re-
2 Cf. "Promontoire", poema das llluminations (Rimbaud, 1993, p.174-5).
corrente - uma estação do ano meio vaga, indefinida, ou seja, que
apenas sugere, sem revelar completamente - é marcante na poesia
simbolista, e também, cm Apollinaire.
Décaudin & Leuwers (1996, p.126) apontam Jean Moréas
como um dos grandes escritores simbolistas que influenciaram
Apollinaire, no que diz respeito ao culto da Idade Média e ao equi-
líbrio de uma poesia na qual o romantismo é dominado até atingir
a impessoalidade na plenitude de uma forma dominada. Sem dúvi-
da, esse equilíbrio entre tradição e inovação permeará toda a escri-
tura de Apollinaire.
Desse modo, com oss fincados no simbolismo que desapa-
recia, Apollinaire vai voltar os olhos para a renovação da lírica
moderna, passando pelas vanguardas, e unindo assim a dimensão
imaginativa de Baudelaire e as inovações cantadas por Rimbaud à
"metamorfose do mundo" por meio da linguagem, o que explica
seu desejo de inaugurar "um lirismo novo e humanista ao mesmo
tempo" (em carta de Apollinaire a Toussaint Luca, de 11 de maio
de 1908, citada em Chuisano Sc Giraudo, 1993, p.13).
A ruptura com a velha poesia e com o público, iniciada por
Baudelaire, atinge, entretanto, seu ápice com Rimbaud e Mallar-
. Rimbaud foi o grande divisor de águas: ignorava a tradição,
aprofundava as teorias de Baudelaire e valorizava a linguagem
poética, em detrimento da realidade exterior. Graças à imagina-
ção, novas realidades eram criadas, resultadoo só da inspiração,
mas principalmente do trabalho intelectual do poeta. Mais tarde,
cm Apollinaire, tudo isso seria traduzido pelo espírito da liberda-
de absoluta que rege a poesia e é ditado pelo esprit nouveau. Qual-
quer coisa pode ser objeto da lírica, sem limitação; o trivial é trans-
formado em surpresa, verdadeira diferença entre a poesia nova e a
antiga, os mitos modernoso mesclados livremente aos antigos,
novos mitoso inventados, sem nenhuma censura ou limitação
de qualquer espécie. Observa-se então que a evolução da lírica no
século XX se confunde com a própria obra de Apollinaire. Ao tra-
tarmos de uma, podemos muito bem estar falando de outra. Todas
essas tendências e características foram expressas pelo autor de
Alcools cm sua conferência L'esprit nouveau et les poètes, fazendo
uma ponte teórica entre Rimbaud e os líricos do século XX.
A lírica do século XX busca a originalidade de diversas for-
mas: exclui verbos, fragmenta ao máximo as idéias contidas nos
versos, dificultando assim a leitura e, conseqüentemente, a relação
com o leitor. Essa ruptura, que vinha sendo definida desde o ro-
mantismo, perdurou ainda no século passado. Muitas vezes Apolli-
naire cria seqüências sem sentido, retalhos de conversação, como
no célebre poema dos Calligrammes, "Lundi rue Christine":
Ècoute Jacques c 'est très sérieux ce que je vais te dire
Compagnie de navigation mixte
Il me dit monsieur voulez-vous voir ce que je peux faire d'eaux
fortes et de
[tableaux
Je n'ai qu'une petite bonne
Après déjeuner café du Luxembourg (1994b, p. 181)
O poeta reaproveita também restos de outros versos e de ou-
tros poemas, ou transpõe versos de um poema para outro, o que
revela, mais uma vez, a presença da intratextualidade em sua obra.
O caso mais evidente é o de "L'émigrant de Landor Road", poema
composto em 1905: a estrofe 7 (versos 25 a 29),
Intercalées dans Van c'étaient les journées veuves
Les vendredis sanglants et lents d'enterrements
Des blancs et de tout noirs vaincus des cieux qui pleuvent
Quand la femme du diable a battu son amant (ibidem, p. 106)
é copiada do poema "Adieux", provavelmente de 1901, incluído
na coletânea póstuma Il y a:
Intercalées dans Van viendront les journées veuves,
Les vendredis sanglants et lents d'enterrements,
Des blancs et de tout noirs vaincus des cieux qui pleuvent
Quand la femme du diable a battu son amant. (p.333)
Outra estrofe do poema de 1905, a última,
Gonfle-toi vers la nuit O Mer Les yeux des squales
Jusqu'à l'aube ont guetté de loin avidement
Des cadavres de jour rongés par les étoiles
Parmi le bruit des flots et les derniers sennents (p.106)
também é empréstimo de outro poema, "Le printemps", de 1902,
incluído na coletânea Le guetteur mélancolique:
Gonfle-toi vers la nuit ô mer Les yeux des squales
Jusqu'à Vaube ont guetté de loin avidement
Des cadavres de jour rongés par les étoiles
Parmi le bruit des flots et les derniers serments (p.558)
3
Em "Adieux", Apollinaire ainda conservava a pontuação, que
jáo aparece em "Le printemps" e "L'émigrant de Landor Road".
O fato de o poeta optar pela total ausência de pontuação pluraliza
as possibilidades de leitura e expande a carga significativa dos ver-
sos. Ele acentua a ambigüidade ainda por meio da alteração nas
funções das categorias gramaticais das palavras, produzindo con-
textos poéticos próprios, com um estilo peculiar que marca essa
poética e a difere da antiga (Cf., por exemplo, o que é dito aqui so-
bre o primeiro verso de "Le larron"). Naquele momento, as dis-
cussões sobre a forma poética escasseavam; o convívio do sonho,
da lembrança e da vida cotidiana tornava-se natural.
Muda, então, a função da poesia: seu objetivoo é mais o de
agradar, de divertir o leitor, de encantá-lo c emocioná-lo; o primei-
ro sentimento que ela deve despertar é uma fina angústia poro
ser compreendida, e, ao mesmo tempo, a curiosidade gerada pelo
efeito surpresa e a vontade de outras leituras sucessivas para alcan-
çar um nível mínimo de compreensão. Tudo isso é realmente fruto
de um trabalho poético bastante intelectualizado, polemizando o
caráter inspirador c a presença das "musas" durante a composição
de um poema. Por vezes, todas essas tentativas de inovação bus-
cam uma evasão do real, usando o hermetismo da linguagem,
uma fuga do exterior que é modificado muito rapidamente pelas
tecnologias fartas e em ascensão, fato que ao mesmo tempo cau-
saria encantamento e angústia diante do quase desconhecido. O
escapismo e a fantasia seriam soluções oferecidas pela poesia,
mesclada a temas comuns e ao ritmo vertiginoso imposto pelas
grandes cidades.
3 Deste poema, Apollinaire também aproveitou as três primeiras estrofes em
"Les fiançailles" e uma outra em "Le brasier", poemas incluídos cm Alcools.
A poesia serve-se, entretanto, do folclore, de lendas, de mitos,
de símbolos antigos, de todo um passado cultural e popular para
tentar explicar (e adaptar-se a) o novo, muitas vezes assustador.
Os heróis do mundo modernoo outros,o há mais grandes
vastidões a serem conquistadas, resta agora a esse homem do iní-
cio do século XX recolher seus fragmentos c fazer uma espécie de
colagem de seu passado, uma nova montagem que propiciará um
novo olhar ao futuro. A coletividade, dessa vez, está acima do sujei-
to poético único, criando uma forma positiva de desumanização;
o há mais territórios demarcados, tudo pode acontecer ao mes-
mo tempo, no mesmo lugar. É o império da simultaneidade, bem
explorada por Apollinaire e por seu contemporâneo suíço Blaise
Cendrars, autor do famoso poema La prose du Transsibérien. To-
dos esses artifícios colaboram para aumentar a ambigüidade do
poema, criando efeitos novos e enfraquecendo a coerênciao
proclamada pelos clássicos. Além disso, o ato de tornar estranho
o que a princípio soa familiar também é um recurso bastante re-
corrente.
Por meio de artigos definidos que depois desaparecem, da al-
teração de contextos "normais" em "anormais" (se é que os concei-
tos de normal c anormal podem ser aplicados à poesia do século
XX), da junção de contextos díspares, como Apollinaire gosta de
fazer, ao sobrepor máquinas e tecnologia a imagens oníricas, com
grandes exemplos cm "Zone" - composição na qual aviões e igre-
jaso colocados em um mesmo plano -, há o culto ao enigmático
e à desorientação, colaborando assim com a surpresa c o espírito
novo. Toda essa nova maneira de sentir e de criar aparecerá a Va-
léry como "a festa do espírito".
Verifica-se então que a forma é uma vertente que merece aten-
ção especial na lírica moderna. Os poetas servem-se da maior li-
berdade formal para uma "bem refletida pluralidade de sentidos",
alternando versos livres e metrificados, rimas de vários tipos, mu-
danças no tamanho dos versos dentro de um mesmo poema rima-
do, ou não, poemas extremamente longos ou muito curtos dentro
de uma mesma coletânea, o que faz que esses efeitos se espalhem
por todos os poemas, eo só dentro de cada um, e se estendam a
toda a obra.
Como assinala Antoine Compagnon (1990, p.9), em Les cinq
paradoxes de la modernité, o novo transforma-se em um valor, e
assim nasce a tradição moderna. A palavra de ordem da moderni-
dade iniciada por Baudelaire é "faire du nouveau" - marcada pelo
fim dos tempos -, ou ainda "être absolument moderne", segundo
Rimbaud - que anuncia o começo de uma nova era -, seguido de
perto por Apollinaire, com seu esprit nouveau. Embora houvesse
um pouco de melancolia em Baudelaire, o entusiasmo das van-
guardas, ampliado e cantado também por Apollinaire, será a mola
propulsora da modernidade. Essa modernidade pode ser revelada
sob diversos aspectos na obra apollinairiana: o privilégio de valo-
res como o choque, a surpresa, a intensidade de emoção. Essas ca-
racterísticas manifestam-se por meio da revalorização do ritmo, já
iniciada no simbolismo, da montagem, da redução, da justaposi-
ção, das comparações inusitadas, da falta de pontuação, da multi-
plicidade de diferentes tipos de versos, da fragmentação e da si-
multaneidade, ou seja, de vários experimentos com a linguagem
poética que, mais adiante, culminarão nos caligramas. A introdu-
ção da oralidade e a importância que o poeta dá ao cantoo
igualmente marcas da modernidade cm sua obra. Além disso, toda
c qualquer palavra pode ser tratada poeticamente; dessa maneira,
Apollinaire revaloriza palavras em desuso, antigas, ou ainda pala-
vras raras, pondo em prática um dos hábitos simbolistas que con-
tribuem para a obscuridade; introduz palavras técnicas e estrangei-
ras, inventa neologismos, criando justamente a sensação maior que
almeja para o leitor: o efeito surpresa.
Todos esses procedimentosm como pano de fundo a metró-
pole, a cidade moderna que lhe serve de modelo poético, atrelada
ao progresso galopante da época: a esse progresso estão ligadas as
vanguardas. Segundo Compagnon (1990, p.48), as vanguardas
oo apenas uma modernidade mais radical e dogmática: elas
possuem uma consciência histórica do futuro e uma vontade de es-
tar adiante do seu tempo. O objetivo principal das vanguardas c
fazer uma revolução estética, modificando as artes e fazendo que o
mundo as siga. Mais uma vez o papel do poeta é fundamental, pois,
apesar de assumir uma tradição, uma herança estética, ele deve
prever o futuro - manipulando passado, presente e futuro - nesse
momento de grandes metamorfoses. Apollinaire, como se obser-
va, desempenha esse papel e toma como bandeira poética a desco-
berta de novas realidades por meio da expressão literária e das ar-
tes em geral.
APOLLINAIRE E AS VANGUARDAS
As vanguardas, esses movimentos radicais que surgiram nas
primeiras décadas do século XX, alteraram os rumos das artes,
principalmente os da pintura e da literatura. Com o futurismo de
Marinetti em 1909, o expressionismo alemão no ano seguinte, o
cubismo, em 1913, o dadaísmo, em 1916 e, oito anos mais tarde, o
surrealismo, o mundo conheceu novas atitudes artísticas que ti-
nham como objetivo um maior questionamento dos valores da
época e uma revolução em relação à herança cultural recebida até
então. Esses movimentos já estavam germinando no romantismo e
no simbolismo do século anterior.
Em 1909, Filippo Tomaso Marinetti, com seu manifesto futu-
rista, divulgado pelo jornal francês Le Figaro, vem preconizar uma
total ruptura com a tradição e pregar uma nova estética, movida
pela "beleza da velocidade" e por muita energia, à imagem e seme-
lhança da máquina. A violência, retratada pela enaltecida guerra -
guerra sola igiene del mondo -, é a pedra de toque de seu manifes-
to. Assim, minimiza ainda mais o valor do ser humano para a épo-
ca: para Marinetti, o sofrimento de um homem pode ser compara-
do ao de uma lâmpada atingida pelo curto-circuito, fazendo que
homens e objetos se localizem em um mesmo plano. Para Apolli-
naire, simpatizante do futurismo (maso de Marinetti), essa afir-
maçãoo foi levada muito em conta; reconhece-se que em seus
poemas o homem e seus sentimentoso levados cm consideração,
ainda que sejam os próprios sentimentos do poeta que importem.
O que Apollinaire conservou do futurismo foi o fascínio pela-
quina, pela velocidade e pela tecnologia da época, então em plena
efervescência. O fascínio pela guerra une-o também ao movimen-
to de Marinetti, e ambos foram execrados por causa disso. No
campo da literatura, mais especificamente, Apollinaire apegou-se
ao culto do verso livre, princípio defendido na primeira fase do
futurismo (1905-1909), e às "palavras em liberdade", objetivo da
segunda fase (1909-1914).
Em 1913, mais como divertimento do que como verdadeira
adesão às idéias de Marinetti, Apollinaire publica L'antitradition
futuriste, um "manifesto-síntese", partidário do movimento futu-
rista. Conforme assinalam Caizergues & Décaudin (in Apollinaire,
1991, p.1672-3), o texto do poeta suscitou apenas algumas reações
irônicas ou irritadas por parte da imprensa, e, para infelicidade de
Marinetti,o provocou nenhuma grande polêmica. O mentor do
movimento futurista queria aproximar a vanguarda italiana da
francesa por meio desse texto, maso teve sucesso...
Utilizando diferentes tipos gráficos, com palavras em maiús-
culas, negrito, destacadas, Apollinaire faz um tipo de composição
caligramática, por assim dizer, sintetizando algumas das idéias
centrais do futurismo, como:
DYNAMISME PLASTIQUE MOTS EN LIBERTÉ INVENTION DES
MOTS
ou ainda "Imagination sans fils". Além disso, o poeta elenca vários
nomes de escritores em listas distintas, iniciadas pelas palavras
"MER DE aux" e "ROSE aux", incluindo-se nesta últi-
ma lista, ao lado de Picasso, Marinetti, Stravinsky e Mareei Du-
champ, entre outros. Na lista menos aquinhoada pelo poeta, en-
contram-se Goethe, Shakespeare, Poe, Baudelaire, entre nomes de
profissões, cidades, alguns neologismos e adjetivos (Apollinaire,
1991, p.937-9).
Um grande impulso recebido pelas vanguardas vem da aproxi-
mação entre pintores e poetas, criando pontos comuns entre as
duas artes. Blaise Cendrars escreve La prose du Tratissibérien, poe-
ma ilustrado pela pintora francesa Sonia Delaunay, que funde as
duas artes e batiza esse encontro de forma definitiva. A pintura,
que tanto pode reproduzir o real quanto o decompor, imita-o ou
distorce-o, em uma tentativa de traduzir as realidades do mundo
moderno, do mundo movido a velocidade. Nasce assim o cubis-
mo, celebrado entusiasticamente por Apollinaire, figura decisiva
DESTRUCTION
CONSTRUCTION
para a consolidação do movimento, c que, nesse momento, publica
uma espécie de manifesto no qual o esforço de conjugar destruição
e construção é latente, contrariando, de certa forma, o movimento
futurista. Poetas e pintores unem-se em prol de uma renovação ar-
tística, trocam informações e sensações, apropriam-se e assimilam
técnicas uns dos outros; dessa maneira, a pintura e a poesia ligadas
a esse movimento teriam a mesma particularidade: uma realidade
simultaneamente apresentada de forma fragmentada e sobreposta.
Apollinaire tece teorias em torno do movimento; para ele, "jamais
se descobrirá a realidade de uma vez por todas. A verdade será
sempre nova" (ibidem, p.8). Além disso, insiste na ligação entre
poetas e pintores: "Os grandes poetas e os grandes artistasm co-
mo função social renovar incessantemente a aparência que reveste
a natureza aos olhos dos homens" (p.12).
Há especulações sobre as relações entre a composição de "Zo-
ne" e o primeiro contato do poeta com o quadro de Picasso, Les
demoiselles d'Avignon, em 1907, o qual o teria surpreendido e de-
sencadeado uma mudança radical em seus versos a partir de então.
Assim, "Zone" seria o correspondente lingüístico da tela, inaugu-
rando uma nova tendência vanguardista.
Na mesma ocasião, Apollinaire inventa os "poemas-conversa-
ção", os "poemas simultâneos" - conceito calcado justamente no
cubismo - e, finalmente, os "idéogrammes lyriques", isto é, os Cal-
ligrammes. A fragmentação, a colagem "e seus cognatos - monta-
gem, construção, assemblage - estavam exercendo um papel cen-
tral tanto nas artes verbais quanto nas visuais", afirma Marjorie
Perloff (1993, p.99). Além destas, os cortes, as superposições e a
simultaneidade, que criam novas perspectivas da realidade,o
práticas extraídas dos conceitos cubistas, com os quais Apollinaire
soube trabalhar principalmente cm sua obra poética.
Em um segundo momento, após o espanto trazido pela guer-
ra, os ânimos novamente exaltam-se, e as idéias contidas no esprit
nouveauo reforçadas e postas em prática, arrebatando jovens
poetas como Philippe Soupault, André Breton e Louis Aragon. Um
pouco depois, Tristan Tzara entra em cena com seu dadaísmo.
Max Jacob considera o período "le siècle Apollinaire", o século
"éclaté" (in Décaudin & Leuwers, 1996, p.146).
Os "detritos das grandes cidades", que Apollinaireo bem
soube condensar em "Zone", os fragmentos do mundo real,o
reelaborados, formando figuras queo se ajustam mais, com fen-
das profundas que a poesiao quer calcificar, mas sim aprofun-
dar. A questão da fragmentação é aqui retomada várias vezes por-
que envolve outras tensões da lírica moderna, estendida a outras
expressões artísticas, bem entendido, como o fato de a fantasia de-
compor c recompor o real, a seu gosto; isso cria um novo mundo
muito particular, com espaço e tempo abolidos, tendo também co-
mo ponte o simultaneísmo, invertendo a ordem de todas as coisas.
Metáforas cada vez mais ousadas, que criam ligações antes im-
pensáveis e que tentam transformar esse mundo especial,o cria-
das, combinações desconcertantes chegam ao ponto de o comple-
tamente distinto tornar-se idêntico. A concisão máxima torna-se
qualidade de bons versos, causando estranhamento; o "soleil cou
coupé" que fecha "Zone" é prova desse efeito. Dessa forma,
a realidade desmembrada ou dilacerada pela violência da fantasia
jaz na poesia como campo de ruínas. Acima deste encontram-se irrea-
lidades forçadas, mas ruínas e irrealidades encerram o mistério e, por
este, os poetas líricos compõem versos ... Os poetas estãos com a
linguagem. Mas também só a linguagem pode salvá-los. (Friedrich,
1978, p.211)
Apollinaire, homem à frente do seu tempo e poeta de sentidos
aguçados, soube captar todos esses fenômenos e trabalhá-los a ser-
viço da lírica moderna.
L'ENCHANTEUR MÉLANCOLIQUE:
0 LIRISMO COMO CONSCIÊNCIA DO (SEU) MUNDO
"ZONE"
O caso de "Zone" merece destaque. Poema que abre a coletâ-
nea Alcools, serve de vitrine para os conceitos e inovações que, a
partir de então, serão desenvolvidos na obra de Apollinaire. O que
mais chamou a atenção do leitor do início do século XX foi prova-
velmcnte a inserção de novos temas, ligados à tecnologia c à paisa-
gem nova das cidades que se descortinava na época, ao lado da
evocação de mitos e lendas, revelando também um aspecto da-
bula ligado à lírica, a "fabulírica".
O poeta vê poesia nos cartazes afixados nos muros de Paris,
nos prospectos e catálogos, fazendo contraste aos jornais e aos li-
vros policiais, que representariam a prosa:
Tu lis les prospectus les catalogues les affiches qui chantent tout
haut
Voilà la poésie ce matin et pour la prose il y a les journaux
Il y a les livraisons à 25 centimes pleines d'aventures policières
(Apollinaire, 1994a, p.39)
Os automóveis, os hangares e os aviadores, as estenodatilógra-
fas, a sirene das fábricas e seus operários, os ônibus, as placas de in-
formação, as estações de trem, os restaurantes, as lojas, o balcão de
um bar, ou seja, fragmentos de uma cidade que tanto poderia ser Pa-
ris como qualquer outra das várias citadas nesses versos, dominam o
poema. Esses procedimentos poéticos ressaltam a técnica cubista, o
que faz de "Zone" um poema essencialmente cubista, com cenas
fragmentadas, justapostas, associação de idéias e fluxo da consciên-
cia, que modificam e alteram sua realidade primeira.
Todo esse cenário moderno, citadino, serve, no entanto, de
pano de fundo para cantar o final de um amor, confessado pelo
próprio Apollinaire em uma carta a Madeleine Pagès, por quem
estava apaixonado naquele momento: "Eu lhe explicarei a gênese
desse poema de fim de amor..." (apud Décaudin, 1993, p.153). O
poema refere-se ao conturbado relacionamento com a pintora
Marie Laurencin, que muito o aproximou dos pintores e, de certa
forma, influenciou sua obra, cheia de referências à pintura. Para
Morhange-Bégué & Lartigue (1991, p.35), "Zone" começa por
apresentar uma estética nova, sem dizê-lo explicitamente, mas
acaba com imagens de solidão, de desencanto, de morte: a ambi-
güidade é,, maior, a modernidade poética também, porque o
poeta espera do leitor um maior esforço de imaginação. Assim,
temas românticoso tratados de forma moderna pelo poeta, ao
mesmo tempo em que a integração autor-poema-leitor é requisi-
tada pelo primeiro.
O título do poema, que a princípio se chamaria "Cri", foi mu-
dado, segundo Michel Décaudin (1996, p.85), cm razão de uma
estada de Apollinaire e do pintor francês Francis Picabia na zona
franca próxima a Etival, na região do Jura. Porém, Pascal Pia
(1963, p.153-4) contesta essa afirmação. Para ele, a outra possibi-
lidade trabalhada pelo poeta e levantada pelo mesmo Décaudin se-
ria a mais aceitável: Apollinaire teria se sentido atraído pela aura
da palavra zone, "indeterminação, evocação de miséria, e até ima-
gem da argola fechada, do retorno ao ponto de partida" (Décau-
din, 1996, p.85). A palavra zone era empregada pelos parisienses
da época da pré-guerra para designar terrenos vazios nos quais se
acomodavam pessoas marginalizadas pela sociedade da época, es-
trangeiros e ciganos, em sua maioria. Pia considera que a própria
situação de "estrangeiro" de Apollinaire, na França, tenha sensibi-
lizado o poeta e, assim, feito que prestasse atenção nos marginali-
zados do início do século, que viviam em condições lamentáveis.
Esses miseráveiso foram o tema principal do poema, mas foram
lembrados nos versos
Tu regardes les yeux pleins de larmes ces pauvres émigrants
Ils croient en Dieu ils prient les femmes allaitent des enfants
Ils emplissent de leur odeur le hall de la gare Saint-Lazare
Ils ont foi dans leur étoile comme les rois-mages
Ils espèrent gagner de l'argent dans l`Argentine
Et revenir dans leur pays après avoir fait fortune (p.43)
É a realidade justapondo-se às lembranças da infância do poe-
ta, impregnadas de lirismo,
Une famille transporte un édredon rouge comme vous transpor-
tez votre caeur
Cet édredon et nos rêves sont aussi irréels (p.43)
enfatizando o aspecto fragmentário do poema e aproximando-o
das técnicas cantadas pelas vanguardas e pelos defensores da nova
lírica que surgia. Porém,o há nele apenas justaposição de cenas
e lembranças; elas são, na verdade, embaladas pelo vaivém cons-
tante da associação de idéias feita pelo poeta. Essa técnica lírica,
por assim dizer, assemelha-se ao fluxo da consciência de uma nar-
rativa poética, e desnorteia o leitor. Esses procedimentos sugerem,
ao mesmo tempo, que o poeta está andando pela cidade, e a seu
deslocamento físico corresponderia o deslocamento de suas lem-
branças e de suas observações. Todo esse trabalho poético produz
a obscuridade, o estranhamento, a incoerência desconcertantes
que o simbolismo exaltava, que a lírica do início do século XX
conservou e que Apollinaire valorizou e ampliou.
No tocante à obscuridade, cabe aqui abrir alguns parênteses
que lembrariam certos pontos bastante polêmicos da leitura de
"Zone". Inicialmente, deve-se ressaltar seu final, cujo último verso
seria seu exemplo maior: "Soleil cou coupé". Ele já suscitou muitas
interrogações entre os estudiosos de Apollinaire, com várias hipó-
teses de elucidação, queo desde a imagem mais evidente, ou se-
ja, a do pôr-do-sol, que lembraria um pescoço cortado, até a alu-
o a um pássaro do Senegal, que teria esse nome por causa da cor
de seu pescoço que difere do resto do corpo, o que daria um efeito
de pescoço cortado. Porém, Décaudin (1993, p.67-8) remete essa
elaborada criação a outros poemas de Apollinaire. Como já se de-
monstrou neste estudo, o poeta tinha o hábito de reaproveitar ver-
sos em seu trabalho - e é o que faz neste caso. O poema "Les
Doukhobors", recolhido nos Poèmes rétrouvés, esclarece o verso,
pois percebe-se aí seu desenvolvimento primeiro, que culminou,
após longo trabalho poético, no verso enigmático do fim de "Zone":
Les Doukhobors; le soleil qui radiait
Dut paraître à leurs yeux extasiés
Espérant des remous
Océaniques
Des nations, là-bas, du côté d'Occident ou d'Amérique
Le cou tranché d'une tête immense, intelligente
Dont le bourreau n'osait montrer
La face et les yeux larges pétrifiés
A la foule ivre
Et quel sang, et quel sang t'éclabousse, ô monde
Sous ce cou tranché! (p.716)
Além desse poema, os próprios rascunhos de "Zone" ainda
conservam resquícios dessa imagem aindaoo truncada:
Le soleil est là c'est un cou tranche
Comme l'auront peut-être un jour quelques-uns des pauvres que
j'ai rencontrés
Le soleil me fait peur, il répand son sang sur Paris (p.716)
O "encurtamento" da imagem/mensagem, que a transforma
em "imagem pura", é apenas um reforço das idéias de Marinetti
contidas no Manifeste technique de la littérature futuriste; porém,
Apollinaire já exercitava essas técnicas antes da publicação daque-
le documento.
Apollinaireo se limitou apenas àqueles aspectos aqui já
mencionados da palavra zone; como bom poeta e grande observa-
dor,o deixou de lado sua etimologia, fazendo convergir no poe-
ma diversos sentidos, queo desde aqueles que surgiram em sua
infância até suas peregrinações amorosas, apreensões da vida adul-
ta, sentimentos relativos ao futuro, fechando assim um círculo,
uma zona de sua vida.
A questão dos títulos sempre foi trabalhada por Apollinaire, e
mesmo Alcools teria sido, originariamente, Eau de vie, abandona-
do porque este lhe pareceu um tanto quanto próximo do movi-
mento simbolista, e menos provocante do que o definitivo. Con-
clui-se que, com a escolha final, ele quis manter um equilíbrio
entre a modernidade de sua obra e seus laços com o simbolismo.
Outra inovação que se pode encontrar no interior de "Zone"
refere-se ao jogo dos pronomes je/tu, como aqui já foi aventado.
Esse recurso faz que passado e presente, mitos e fatos corriqueiros
de seu presente sejam colocados em um mesmo plano pelo poeta,
gerando assim intemporalidade. Uma nova visão surge desse artifí-
cio: o próprio eu poético olha o mundo e olha-se por meio de pro-
jeções diferentes, internas e externas:
Tu en as assez de vivre dans Vantiquité grecque et romaine
J'aime la grace de cette rue industrielle
Ta mère ne t 'habille que de bleu et de blanc
Je suis malade d'ouir les paroles bienheureuses (p.39-41)
O pronome vous aparece nesse jogo, evocando cenas do pas-
sado do poeta, criando uma distância maior do que tu em relação
ao eu poético je:
Vous n'aimez rien tant que les pompes de l'Eglise
Il est neuf heures le gaz est baissé tout bleu vous sortez du dortoir
en cachette
Vous priez toute la nuit dans la chapelle du collège
Vous avez honte quand vous vous surprenez à dire une prière
Une famille transporte un édredon rouge comme vous transpor-
tez votre coeur (ibidem)
Esse truque poético revelaria um deslocamento e um distancia-
mento ainda mais amplos e enriquecedores: talvez, ao referir-se a
si criança, Apollinaire use tu porque vê as coisas do ponto de vista
de então; e vous, quando narra do ponto de vista do je adulto.
Essa ligação com o passado coloca "Zone" ao lado de outros
três poemas da mesma coletânea, "Cortège", "Le voyageur" e
"Vendémiaire", que mais demonstram ser uma continuidade do
passado do que apresentam verdadeiras mudanças. Nesses quatro
poemas, "1'image agrandie du moi" dá o tom. O lirismo do poeta é
totalmente voltado para os vários desmembramentos de seu pró-
prio eu, seja ele o mundo real, suas viagens reais ou imaginárias,
suas lembranças do passado ou suas projeções de um futuro. Cabe
relembrar aqui os vários avatares do poeta levantados anterior-
mente, como Merlim, o rei Artur, o ladrão, o eremita, o Cristo, o
poeta mal-amado, o herói de guerra, o viajante, o caminhante ob-
servador das ruas, o emigrante, o cigano, o músico, Ícaro - e tan-
tos outros, que nada maiso do que seu desdobramento: afinal, o
tema central da obra de Apollinaire é seu próprio eu. Sua obra re-
trata várias facetas de uma mesma figura egocêntrica que se reco-
nhece em determinadas fábulas; retrata também uma poesia que
afirma a posição de seu eu no mundo, seu passado, presente e futuro.
Assim, Apollinaire exercita seu lado romântico e simbolista, que,
afinal, nunca foi abandonado...
Enfim, seu testemunho literário busca a unidade desse eu por
meio de personagens míticos, inventados, errantes, déracinés,
imortais, verdadeiros, cada um deles dono de uma característica
do poeta, pertencentes a seu mundo real ou mental, fabuloso ou
vivenciado. Essa busca e esse desdobramento, como já foi assinala-
do aqui, ocorrem igualmente por meio de abundantes jogos pro-
nominais com os je/tu/vous.
"CORTÈGE"
Um toque simbolista dá início a "Cortège":
Oiseau tranquille au vol inverse oiseau
Qui nidifie en l'air
A la limite où notre sol brille déjà
Baisse ta deuxième paupière la terre t'éblouie
Quand tu lèves la tête (p.74)
Aqui, Apollinaire faz menção à lenda do pássaro que nunca
pousa: a fêmeae seus ovos em pleno vôo, e os filhotes já nascem
voando. O bater das asas tem a função do coração: se parar, o pás-
saro morre. A inclusão de uma lenda desconhecida colabora para a
obscuridade do poema, e sua presença dá destaque à fábula em
uma composição essencialmente lírica. Com tais descobertas e
suas respectivas inclusões nos poemas, Apollinaire constrói uma
mitologia pessoal, plena de mistérios e que o torna imortal, forma-
da pelo uso das mais diferentes fontes que sua erudição lhe permi-
tia exercitar.
A alusão ao título de "Cortège" faz-se por meio de sua forma:
o 73 versos, cujo eixo forma um grande bloco de 47 versos, fi-
cando os restantes espalhados em estrofes menores no início e no
final do poema. Essa preocupação com o aspecto do poema no pa-
pel, num texto de 1912, demonstra já as origens dos caligramas.
O pássaro fabuloso reaparece na terceira estrofe, porém, em
vez de voar "A la limite où notre sol brille déjà" (v.3), ele voa "A la
limite où brille déjà ma mémoire" (v.14). Imagens singulares atra-
vessam o poema, como
Et je m'éloignerai m'illuminant au milieu d'ombres
Et d'alignements d'yeux des astres bien-aimés
...
Mais pour ce feu oblong dont l'intensité ira s'augmentant
Au point qu'il deviendra un jour 1'unique lumière (p.74)
que comprovam o alto grau de lirismo que o permeia.
Em "Cortège", Apollinaire vai além do jogo com os pronomes
pessoais que multiplicam seu eu poético e mantém um diálogo
consigo mesmo, identificando-se, para queo restem dúvidas em
relação a quem o poeta se dirige:
Un jour
Un jour je m'attendais moi-même
Je me disais Guillaume il est temps que tu viennes
Pour que je sache enfin celui-là que je suis
Moi qui connais les autres
Je les connais par les cinq sens et quelques autres
Il me suffit de voir leurs pieds pour pouvoir refaire ces gens à mil-
liers (p.74-5)
Nessa seqüência, descobre-se que o poeta se vê como um ser
que tudo sabe, que tem mais do que os cinco sentidos humanos,
mas a quem falta o autoconhecimento: é preciso que, por meio de
seus personagens-nesse poema representados pelo pássaro lendá-
rio -, o poeta se encontre c se conheça a si mesmo. Seu tema recor-
rente, a multiplicação do eu, toma novos rostos: ele é o médico, o
profeta, a pena de seus confrades, a moeda dos cegos e as mãos dos
mudos, ele tudo pode, tudo sente, tudo prova, pois
Il me suffit de tous ceux-là pour me croire le droit
De ressusciter les autres (p.75)
O papel de vidente reivindicado por Rimbaud é retomado, ele
conhece a todos, menos a si mesmo...
Em seguida, o autodiálogo é reiniciado, anunciando o cortejo:
Un jour je m'attendais moi-même
Je me disais Guillaume il est temps que tu viennes
Et d'un lyrique pas s'avançaient ceux que j'aime
Parmi lesquels je n'étais pas (ibidem)
Trata-se de um cortejo mítico, marítimo, com gigantes cober-
tos de algas, que desfilam entre cidades submarinas, em um mar de
sangue, que jorra das próprias veias do poeta e faz bater seu cora-
ção. Peuplades blanches, com homens que trazem rosas nas mãos,
inventam uma linguagem durante a caminhada, que ele aprendeu
e ainda fala, ou melhor, escreve; essa língua é seu instrumento de
trabalho. O mais intrigante é que o poeta procura seu corpo entre
aqueles homens, e o que encontrao seus pedaços carregados por
eles, que o constroem "peu à peu comme on élève une tour". Mais
adiante, ficamos sabendo que esses homenso deuses que forma-
ram "tous les corps et les choses humaines". Por causa desse estra-
nho cortejo, o protagonista do poema desvia os olhos de um futu-
ro vazio, e em si próprio vê "tout le passé grandir".
A exaltação ao passado fecha o poema, criando um contrapon-
to com a imagem do poeta que será construída, eo demolida:
Rien n 'est mort que ce qui n 'existe pas encore
Près du passé luisant demain est incolore
Il est informe aussi près de ce qui est parfait
Présente tout ensemble et 1'effort et l'effet (p.76)
O que se pode depreender desse poema com tintas surrealistas
avant la lettre é o exato equilíbrio entre simbolismo, representado
por algumas figuras e pela presença do pássaro fabuloso, e as ima-
gens líricas que permeiam seu texto, que conduzem o leitor a um
mundo de fábula. Ora, por meio de expedientes que representam
uma lírica vanguardista, Apollinaire volta ao passado simbolista e
até mesmo o vangloria no gran finale de seu texto poético. Eis aí a
presença da fábula e da lírica, entremeadas de toques simbolistas e
vanguardistas em mais um poema de Apollinaire. Mais uma vez,
fica evidente que sua modernidade reside na inclusão de elemen-
tos históricos e míticos na realidade presente c viva do poeta, esse
poeta representado pelo/e e que se nomeia Guillaume, que ora é
apenas o eu poético do poema, ora é mais uma extensão dos-
rios avatares de Guillaume Apollinaire. Afinal, o Guillaume poeta
assimila o Guillaume personagem, em um intrincado jogo poético.
"VENDÉMIAIRE"
O mesmo tom simbolista de "Cortège" ocorre em "Vendé-
miaire":
Hommes de l'avenir souvenez-vous de moi
Je vivais à l'époque où finissaient les rois (p.149)
O título do poema remete, ao mesmo tempo, às vindimas e ao
calendário revolucionário: vendémiaire era o nome do primeiro
s do outono e do ano, no calendário instituído pela Revolução
Francesa. Pode-se vislumbrar aí um certo caráter panfletário; além
disso, "Vendémiaire" é o primeiro poema de Apollinaire publica-
do sem pontuação, causando espécie no meio literário e das artes
em geral.
Nesse longo poema (174 versos, alexandrinos em sua maior
parte), tudo converge para a sedenta figura do poeta, novamente
aquele que domina a cena:
Actions belles journées sommeils terribles
Végétation Accouplements musiques éternelles
Mouvements Adorations douleur divine
Mondes qui vous ressemblez et qui nous ressemblez
Je vous ai bus et ne fus pas désaltéré
Mais je connuss lors quelle saveur a l'univers (p. 153)
O emprego das maiúsculas remete também ao simbolismo
presente na obra apollinairiana. Esses versos refletem a intenção
contida em Alcools. Neles, o ritmo frenético rege a justaposição de
domínios diferentes cuja direção será a do poeta insaciável e se-
dento. A menção ao vinho, inserida no título, é simultaneamente
fonte e símbolo da imaginação poética.
Em "Cortège", o tempo histórico é ressaltado; em "Vendé-
miaire", é o espaço geográfico, que atinge uma dimensão mítica
nova e, ao mesmo tempo, integra o mundo moderno ao domínio
lírico. É também por essa via que se verifica o modernismo na obra
de Apollinaire.
"Vendémiaire" funciona como uma espécie de eco e espelho
de "Zone", salientando o caráter circular do conjunto, e há muitas
semelhanças entre os dois poemas que, respectivamente, fecham e
abrem a coletânea Alcools. Os alcoóis do título reverberam em
ambos os poemas: em "Zone", há
Et tu bois cet alcool brûlant comme ta vie
Ta vie que tu bois comme une eau-de-vie (p.44)
Em "Vendémiaire", como vimos, a menção ao álcool já estaria
embutida no título, e é retomada várias vezes no interior do poe-
ma:
Je vis alors que déjà ivre dans la vigne Paris
Vendangeait le raisin le plus doux de la terre
Ces grains miraculeux qui aux treilles chantèrent
Ces grappes de nos sens qu 'enfanta le soleil
Se sacrifient pour te désalterer trop avide merveille
Ô Paris nous voici boissons vivantes
Un enfant regarde les fenêtres s'ouvrir
Et des grappes de têtes à d'ivres oiseaux s'offrir
Ces très hautes amours et leur danse orpheline
Deviendront ô Paris le vin pur que tu aimes
Les raisins de nos vignes on les a vendangés
Et ces grappes de morts dont les grains allongés
Ont la saveur du sang de la terre et du sel
Ô raisins Et ces yeux ternes et en famille
L'avenir et la vie dans ces treilles s'ennuyent
Et même la fleur de lys qui meurt au Vatican
Macèrent dans le vin que je t'offre et qui a
La saveur du sang pur de celui qui connaît
Une autre liberté végétale dont tu
Ne sais pas que c 'est elle la suprême vertu
Une foule de rois ennemis et cruels
Ayant soif comme toi dans la vigne éternelle
Sortiront de la terre et viendront dans les airs
Pour boire de mon vin par deux fois millénaire
La Moselle et le Rhin se joignent en Silence
Cest l'Europe qui prie nuit et jour à Coblence
Et moi qui m'attardais sur le quai à Auteuil
Quand les heures tombaient parfois comme les feuilles
Du cep lorsqu'il est temps j'entendis la prière
Qui joignait la limpidité de ces rivières
O Paris le vin de ton pays est meilleur que celui
Qui pousse sur nos bords mais aus pampres du nord
Tous les grains ont mûri pour cette soif terrible
Mes grappes d'hommes forts saignent dans le pressoir
Et tous mes vignerons dans ces belles maisons
L 'univers tout entier concentre dans ce vin
Qui contenait les mers les animaux les plantes
Tout ce que je ne connaîtrai jamais
Tout cela tout cela changé en ce vin pur
Dont Paris avait soif
Me fut alors présenté (p. 149-53)
Observa-se então que grande parte do poema retoma o tema
do vinho, das vinhas, e, evidentemente, do álcool. Além disso, o
fato de Apollinaire ter escolhido esse poema para fechar a coletâ-
nea reforça a idéia de que seu título tem uma importância funda-
mental em relação às propostas do poeta, isto é, todo aquele traba-
lho de composição para nomear seu livro tem um sentido maior, aí
estão condensadas suas idéias vanguardistas e modernistas.
Paris, a cidade eleita pelo poeta, aparece doze vezes em "Ven-
démiaire", concentrando todas as outras cidades aí citadas, como
Lyon, Rennes, Quimper, Vannes, e até Roma- cidade natal do poe-
ta -, entre outras. Para Apollinaire, Paris é o centro de tudo, de to-
dos os movimentos artísticos, palco das vanguardas, centro das
novas expressões artísticas que despontavam naquele momento.
Pode-se acreditar que a capital francesa é quase um alter ego do
poeta. É nela que ele compõe sua obra, é de suas ruas c de sua gen-
te que lhem a inspiração e os temas poéticos. O criador sente-se
no centro do mundo, seja ele presente, passado, ou ainda, futuro.
É em direção a Paris que convergem todas as épocas, c Apollinaire
revela: "Je suis le gosier de Paris" (v.l69), indicando uma perfeita
sintonia entre o poeta e a cidade.
Também em "Vendémiaire" o antigo está posicionado ao lado
do novo, tecnologia e mitos misturam-se, revelando aquela sinto-
nia entre fábula e lírica na obra apollinairiana:
Les métalliques saints de nos saintes usines
Nos cheminées à ciei ouvert engrossent les nuées
Comme fit autrefois l'Ixion mécanique
Et nos mains innombrables
Les voici pour ta soif ô Paris sous le ciel
Obscurci de nuées faméliques
Que caresse Ixion le créateur oblique (p. 150-1)
Ixion é um rei lendário da Grécia, que após matar sua esposa
Dia, foi perdoado por Zeus. Porém, sua ingratidão para com o pai
dos deuses foi imensa, e ele tentou violentar Hera, a esposa de Zeus.
Foi enganado, pois apenas abraçava uma nuvem em forma de deu-
sa, e foi castigado, condenado a ficar atado a uma roda de fogo, pa-
ra sempre. É a esse episódio que Apollinaire se refere nesses versos.
Outras figuras mitológicas aparecem em "Vendémiaire":
Mais où est le regard lumineux des sirènes
Il trompa les marins qu'aimaient ces oiseaux-là
Il ne tournera plus sur 1'écueil de Scylla
Où chantaient les trois voix suaves et sereines (p.151)
O fato de as sereias encantarem os marinheiros com seu canto
e, assim, levarem-nos ao fundo do mar, já faz parte do imaginário
popular; contudo, Apollinaire acrescenta a essa lenda um outro
mito, menos conhecido. Cila também pertence aos mitos mari-
nhos: Glauco, apaixonado por Cila, pediu à feiticeira Circe um fil-
tro de amor, poiso era correspondido em seus sentimentos. Cir-
ce, para se vingar da rival - ela amava o feio deus marinho -,
transformou Cila em um monstro de seis cabeças, cujos uivos as-
sustavam os viajantes. Outras versões do mito dizem que Cila foi
transformada em um perigoso banco de areia, e também em um
pássaro semelhante à cotovia. Como se nota, Apollinaire mistura
as várias versões da mesma lenda, enriquecendo-a e recriando-a, e
fazendo que se perceba a presença constante da fábula por toda
sua obra.
"LE VOYAGEUR"
Ao lado de "Vendémiaire", "Le voyageur" (provavelmente
composto em 1909, ao lado do amigo a quem o poema é dedica-
do, Fernand Fleuret) é a composição preferida de Apollinaire, que
trata de uma viagem iniciada por navio e que, no decorrer dos ver-
sos, passa por estradas, cidades e estações ferroviárias, ou seja, di-
ferentes paisagens que se mesclam na viagem interior do poeta. É
o espaço geográfico externo que conduz sua viagem interior, ten-
do a memória como seu fio condutor:
Ouvrez-moi cette porte où je frappe en pleurant
La vie est variable aussi bien que l'Euripe (p.78)
Euripe, que em grego quer dizer variável, inconstante, é um
estreito que separa a Ilha Eubéia da Grécia continental. É possível
supor que Apollinaire faz a comparação da vida com o estreito
porque ali a corrente muda de sentido quatro vezes por dia, acom-
panhando o movimento das marés, meio ao acaso, como ocorre
com os acontecimentos da vida. A inclusão desse estreito no poe-
ma colabora para sua obscuridade, já queo se trata de um local
muito conhecido, e salienta uma vez mais a presença da fábula na
obra do poeta.
Em "Le voyageur", Apollinaire utiliza novamente a técnica da
montagem, empregando aí versos de poemas inacabados, como
"Un oiseau langoureux et toujours irrité", retirado de outra coletâ-
nea, Le guetteur mélancolique. Outro recurso moderno emprega-
do no poema é o de resumir os versos anteriormente escritos, limi-
tando-os apenas às palavras principais, como em "Vagues poissons
arqués fleurs surmarines", antecipando um dos preceitos contidos
no referido Manifeste technique de la littérature futuriste. Esses
procedimentoso a "Le voyageur" um caráter fragmentário; a
viagem do herói pode ser desmontada em várias partes indepen-
dentes, o que revela Concomitantemente o modernismo do poe-
ma, a influência do "impressionismo cosmopolita" dos futuristas e
até de Blaise Cendrars e sua Prose du Transsibérien.
Ao introduzir essas inovações, Apollinaire, além de antecipar
conceitos futuristas, faz o mesmo em relação às teorias de Delau-
nay sobre o simultaneísmo, as duas fontes a que se alegou com fre-
qüência para o modernismo de Apollinaire (Lockerbie, 1963,
p.31). Esse mesmo simultaneísmo, cultuado pelos pintores cubis-
tas, encontrará grande campo de atuação nos caligramas apollinai-
rianos. Eles devem ser lidos de várias maneiras diferentes e simul-
tâneas pelo leitor, pedindo-lhe assim uma nova postura, na qual
vários sentidoso utilizados ao mesmo tempo, materializando a
linguagem.
O fato de o poeta utilizar técnicas que só seriam teorizadas
anos depois relativiza a importância dessas mesmas influências so-
bre sua obra; elas vieram apenas reforçar as idéias de Apollinaire
concernentes ao novo lirismo que surgia. Marcel Raymond (1966,
p.234) chama-o de poeta profético, cujo modernismo orientou a
poesia pós-Alcools. O que se verifica é que "Le voyageur" demons-
tra que o espírito vanguardista e moderno, isto é, o espírito novo,
já estava implícito na obra de Apollinaire bem antes de ser teoriza-
do por ele e, mais tarde, por Marinetti e seus partidários.
Lockerbie aproxima estruturalmente "Le voyageur" de "Le
brasier" e "Les fiançailles". Nesses poemas, Apollinaire transfor-
ma seqüências que a princípio eram longas em curtas, emborao
se possa dizer que se trate de seqüências narrativas, como aquelas
dos poemas totalmente simbolistas abordados anteriormente aqui.
Nesses casos,o seqüências condensadas, quase cinematográfi-
cas, que apenas evocam, sem se revelar completamente. Em "Le
brasier",:
Dans la plante ont poussé des flammes
Nos coeurs pendent aux citronniers
Les têtes coupées qui m'acclament
Et les astres qui ont saigné
Ne sont que des têtes de femmes (p.108)
Em "Les fiançailles", os versos
De faux centurions emportaient le vinaigre
Et les gueux mal blessés par 1'épurge dansaient
Étoiles de l'éveil je n' connais aucune
Les becs de gaz pissaient leur flamme au clair de lune
Des croque-morts avec des bocks tintaient des glas (p. 129)
mostram a diferença entre essas seqüências condensadas e a narra-
tividade explícita dos poemas simbolistas.
Em "Le voyageur", a dor do herói éo intensa que eleo
tem nenhuma dificuldade em relacionar os fragmentos justapostos
presentes no poema: para ele,o há descontinuidade. As mudan-
ças bruscas de tempo, de paisagem, a presença do herói obcecado
por suas lembranças contribuem para dar um tom diferente ao poe-
ma, aproximando-o assim ainda mais de "Zone", e este último, as-
sim iluminado por "Le voyageur", deixa de ser uma simples expe-
riência cubista sem coesão interna, podendo ser visto, por exemplo,
como uma versão modernista de "La chanson du mal-aimé".
A exemplo de muitos outros poemas de Apollinaire, o fio con-
dutor do texto é a memória, que forma uma cadeia de associações
bem particular. Apesar das marcas espaciais que correspondem
aos universos marítimo, terrestre, e, por conseguinte, citadino,
que permeiam "Le voyageur", a viagem mais importante é a interior,
a memória é chamada a todo momento para servir-lhe de guia:
Te souviens-tu
Je m'en souviens je m'en souviens encore
Te souviens-tu du long orphelinat des gares
Souvenez-vous-en
Te souviens-tu des banlieues et du troupeau plaintif des paysages
Te souviens-tu du jour oú une abeille tomba dans le feu
Cétait tu t' en souviens à la fin de 1'été (p.78-9)
Encontra-se aqui novamente o monólogo interior do poeta,
em que o jogo de pronomes je/tu/vous também aparece, (desnor-
teando o poeta/viajante, e o leitor. As lembranças justapostas
anunciam tanto a passagem central de "Zone" quanto a insistência
do autor em inovar sua lírica por meio de técnicas modernas.
"Le voyageur" termina com a mesma súplica dos versos iniciais,
mantendo seu tom melancólico até o fim:
Ouvrez-moi cette porte oú je frappe en pleurant
La vie est variable aussi bien que 1'Euripe (p.80)
Assim, vê-se que Apollinaire mantém o equilíbrio entre certos
conceitos simbolistas e acrescenta-lhes traços de modernidade.
LIRISMO E GUERRA: OS POEMAS
NÃO-CALIGRAMÁTICOS DOS CALLIGRAMMES
O movimento de Apollinaire entre a tradição e o espírito no-
vo, entre o clássico e a invenção, reflete-se bastante bem em "La
jolie Rousse", poema de Calligrammes. Antes de abordá-lo, po-
rém, seria interessante apresentar brevemente essa coletânea. Ao
fazê-lo, poder-se-ão ver quais os caminhos que a lírica de Apolli-
naire tomou, na parte final de sua produção poética, sem necessa-
riamente considerar os poemas caligramáticos por excelência, que
serão apenas ocasionalmente citados ou comentados de maneira
breve.
Calligrammes contém poemas compostos de fins de 1912 até
1917, divididos em seis partes, em uma ordem quase cronológica.
O subtítulo, "Poèmes de la paix et de la guerre (1913-1916)", rela-
ciona-se diretamente com os nomes das partes do livro: "Ondes",
"Étendards", "Case d' Armons" (esta com primeira tiragem em
pleno front), "Lueurs des tirs", "Obus couleur de lune" e, por fim,
"La tête étoilée"; percebe-se nesses nomes a predominância de ter-
mos bélicos. Até mesmo a dedicatória do livro
A la mémoire
du plus ancien de mes camarades
RENE DALIZE
mort au Champ d' Honneur
le 7 mai 1917 (p.164)
antecipa a presença marcante da guerra e igualmente anuncia a
nova disposição dos versos nos poemas que a seguem.
Todas as partes, exceto a quarta, "Lueurs des Tirs", exibem
poemas e caligramas, alternadamente. Existe na obra uma estreita
relação entre a pintura e a poesia, o que levou o poeta a declarar:
"Et moi, je suis peintre!" ("E eu, sou pintor!"). Essa afirmação se-
ria o primeiro título pensado por Apollinaire para os futuros Calli-
grammes, sugerindo uma nova postura do leitor, uma nova leitu-
ra, queo se limitasse aos caracteres impressos na página, já que,
no caso dos caligramas, sua visibilidade vem antes de qualquer ou-
tro tipo de percepção.
Em carta a seu amigo André Billy, Apollinaire (1994a, p.1078)
explica:
Quanto aos Calligrammes, eleso uma idealização da poesia
versilibrista e uma precisão tipográfica no momento em que a tipo-
grafia encerra brilhantemente sua carreira, na aurora dos novos meios
de reprodução queo o cinema e o fonógrafo ... Mas Deus é testemu-
nha de que eu só quis acrescentar novos domínios às artes e às letras
em geral, sem deixar de reconhecer, de modo algum, os méritos das
verdadeiras obras de arte do passado ou do presente.
Michel Butor, no prefácio à edição de 1966, confessa-se toca-
do pela divisão dos poemas dessa coletânea: para ele,o as seis fa-
ces de um cubo, a primeira voltada para o pré-guerra; a última, pa-
ra a vitória (ibidem, p.10).
Na primeira parte, "Ondes", estão os poemas mais inovadores
de Apollinaire, escritos antes da guerra, por isso o subtítulo -
"Poèmes de la paix"; é nessa parte que se encontram "Lundi rue
Christine" e "Les fenêtres", um dos preferidos do poeta e no qual
há citações diretas aos pintores cubistas:
La fenêtre s'ouvre comme une orange
Le beau fruit de la lumière (p.169)
Sabe-se que Robert Delaunay pintou uma série de quadros in-
titulada "Les fenêtres" e que esse poema estava incluído no ál-
bum-catálogo da exposição do pintor realizada em 1913, na Ale-
manha. Este poema traz a justaposição de diferentes lugares, o que
faz lembrar a estrutura de "Zone", acentuando seu aspecto mo-
derno e futurista:
Vancouver
Oú le train blanc de neige et de feux nocturnes fuit 1'hiver
O Paris
Du rouge au vert tout le jaune se meurt
Paris Vancouver Hyères Maintenon New-York et les Antilles
(p-169)
Uma questão recorrente na crítica da obra de Apollinaire em
relação aos Calligrammes é a qualidade dos versos escritos durante
o período em que o poeta esteve no front e a daquele após o aci-
dente no qual foi atingido por um obus. Para Philippe Renaud, por
exemplo, somente os poemas que correspondem à parte denomi-
nada "Ondes" teriam algum valor literário comparável aos versos
de Alcools, justamente por pertencerem ao período pré-guerra.
Segundo ele, houve uma transformação que Apollinaire operou
em si mesmo após ter terminado os poemas de Alcools.o basta
ver que ele quis, ao fixar sua atenção no presente e na percepção,
minimizar a parte da memória, da música, da cultura, da vida inte-
rior. É preciso igualmente compreender que ele "mudou de Pa-
trão" (Renaud, 1969, p.307). Apesar dessas opiniões polêmicas,
deve-se a Renaud o fato de os estudos sobre os Calligrammes te-
rem saído da escuridão em que se encontravam até a publicação de
seu estudo Lecture d'Apollinaire, em 1969.
Claude Debon, em seu estudo de fôlego sobre os Calligram-
mes, discorda de Renaud. Para ele, a aventura pessoal e poética de
Apollinaire durante a guerrao pode nem deve ser tomada isola-
damente: basta ter percorrido sua obra durante esse período para
que se imponha uma evidência, a de sua originalidade. No conjun-
to, a escrita de Apollinaireo é nem enfática, nem pura, nem de-
gradada. Seus poemaso privilegiam o aspecto fantástico do
campo de batalha. Nele, tudo se torna elemento da música interior
- mas o instrumento desafina. "Humanista" em nome de sua épo-
ca e da geração à qual pertence,o poderia escapar à violência
dos fatos,o mais do que à de seu passado. "Homem do futuro",
ele tenta romper todos os laços, criar o futuro. Sua obra, durante a
guerra, vai situar-se nessa tensão dramática entre o passado e o fu-
turo. Nesse sentido, ela só revelará mais nitidamente ainda seu
drama íntimo que jamais teve outra forma. Tensão exemplar, na
encruzilhada de um mundo que morre e de um mundo que nasce
(Debon, 1981, p.28).
Essas opiniões paradoxais de críticos de valor como Renaud e
Debon sóm corroborar o conceito de poeta inovador e polêmi-
co que sempre se aplicou a Apollinaire.
"LA JOLIE ROUSSE"
"La jolie rousse" (Apollinaire, 1994a, p.313-4) é o poema que
fecha os Calligrammes, pertencendo assim à parte denominada "La
tête étoilée". Publicado primeiramente na revista suíça L'Éventail, &
um poema que se dirige às futuras gerações, oferecendo-lhes a "me-
lhor parte" da guerra:
Nous voulons vous donner de vastes et d'étranges domaines
le mystère en fleurs s'offre à qui veut le cueillir
Il y a là des feux nouveaux des couleurs jamais vues
A jolie rousse do título é Jacqueline Kolb, que se tornaria es-
posa do poeta alguns meses mais tarde. Apollinaire escreveu esse
poema após ter sido atingido durante a guerra, e comenta-se que
sua personalidade havia mudado sensivelmente após o acidente,
levando a crer que "o velho Apollinaire" estava morto. Assim, fica
claro que as palavras do poeta se referem a um novo futuro, é um
novo eu poético que se expressa, um novo Apollinaire: "Et ma jeu-
nesse est morte ainsi que le printemps" (v.32), confessa.
Acentuando o caráter duplo do poema, podem-se vislumbrar
nele dois momentos distintos: um, em que Apollinaire fala da guer-
ra, é o trecho que descortina a dualidade entre a tradição e o novo:
Je sais d'ancien et de nouveau autant qu'un homme seul pourrait
des deux savoir
Et sans m'inquiéter aujourd'hui de cette guerre
Entre nous et pour nous mes amis
Je juge cette longue querelle de la tradition et de 1'invention
De I' Ordre et de l'Aventure
A ordem (palavra repetida outras duas vezes) e a aventura pre-
sentes nesses versos demonstram uma das vertentes da nova estéti-
ca apollinairiana. Seu testemunho poético mistura-se a opiniões
pessoais sobre a guerra, e, somente nos versos finais, surge a mu-
lher do título:
Elle vient et m'attire ainsi qu'un fer 1'aimant
Elle a 1'aspect charmant
D'une adorable rousse
Ses cheveux sont d'or on dirait
Un bel éclair qui durerait
ces flammes qui se pavanent
Dans les roses-thé qui se fanent
Michel Décaudin observa que o final do poema é também o
testamento poético de Apollinaire - o eu poético parece encontrar
no amor uma tranqüilidade queo havia sentido antes, e essa se-
renidade torna-se o símbolo de uma confiança segura no futuro:
Mais riez riez de moi
Hommes de partout surtout gens d'ici
Car il y a tant de choses que je n'ose pas vous dire
Tant de choses que vous ne me laisseriez pas dire
Ayez pitié de moi
Observa-se que os versos finais do poema acentuam a figura
do poeta que sabe mais do que diz, que, ao mesmo tempo que pede
risos, clama por piedade, mais uma vez alternando sensações e
sentimentos. Como sempre é possível fazer ligações entre os poe-
mas de Apollinaire, mesmo queo sejam de uma mesma coletâ-
nea, pode-se aproximar o primeiro verso de "Zone" - "A la fin tu
es las de ce monde ancien" - do último verso de "La jolie rousse" -
"Ayez pitié de moi" -, como se o último fosse uma continuação do
primeiro.
"ARBRE"
O poema "Arbre", de Calligrammes (Apollinaire, 1994a,
p.178), dedicado a Frédéric Boutet, tem 44 versos que variam
quanto ao número de sílabas poéticas. Marcas da época das gran-
des invenções do início do século XX aparecem, como os phono-
graphes, o transsibérien, - alusão ao poema La prose du Transsibé-
rien, de Blaise Cendrars -, um tramway, intercaladas de nomes de
várias referências geográficas, tais como Ispahan, Lyon, Europe,
Amérique, Leipzig, Rouen, Finlande, La Corogne. Essa abundância
de localidades demonstra mais uma vez o fenômeno da simultanei-
dadeo bem explorado por Apollinaire; o poeta tem o dom da
ubiqüidade, está por toda parte, sente todas as sensações.
Em "Arbre", Apollinaire retoma técnicas e recursos já empre-
gados em "Zone", por exemplo, a alternância do je/tu/vous, como
se a segunda pessoa fosse um desdobramento da primeira:
Tu chantes avec les autres tandis que les phonographes galopent
Et je remonte avec vous une route aux environs de Lyon
A figura da mulher aparece duas vezes, de forma negativa:
"Ne m'abandonnez pas parmi cette foule de femmes au marché
(v.4) e "Tu t'es promené à Leipzig avec une femme mince déguisée
en homme/ /lntelligence car voilà ce que c'est qu'une femme intelli-
gente" (v.24 e 25). O tom melancólico do poema estende-se a ou-
tras imagens: "les aveugles", "un veau dépouillé pendu à 1'étal",
"une pauvre ville au fond de l'est", "un misérable paradis", "Et ce
voyageur épileptique écumait dans la salle d'attente des premières",
e nos últimos versos, "Tout est plus triste qu'autrefois/ Tous les dieux
terrestres vieillissent". Todo o poema é entremeado por esse tipo de
imagens, como se o seu eu poético estivesse assistindo a todas as
cenas através de uma janela do transsibérien, causando uma im-
pressão de movimento - característica futurista -, de um ritmo en-
trecortado, sacolejante. A própria alternância dos tipos de versos
leva a essa sensação. A seqüência de imagens inusitadas também dá
um ar surrealista avant la lettre ao poema: será um delírio, uma via-
gem ou um sonho? O terceiro verso talvez ofereça uma chave ao
leitor: "La seule feuille que j'ai cueillie s'est changée en plusieurs
mirages", bem como "Tous les dieux terrestres vieillissent/ Et des
êtres nouveaux surgissent". Lembrançaso misturadas a fatos fu-
turos, e esse jogo que, por pertencer a todos os tempos, torna o
poema atemporal, cria mais ambigüidade e impressão de fragmen-
tação, dando continuidade a uma série de flashes:
Je n' ai pas oublié le son de la clochette d'un marchand de coco
d'autrefois
J'entends déjà le son aigre de cette voix à venir (grifos nossos)
Há uma profusão sonora de [v] e de [f], aliteração que sugere
assim o barulho do vento (ou dos trilhos) durante o percurso do eu
poético: aVec, PHonograPHe, aVeugles, Feuille, Foule, Femmes,
Vous, enVirons, Voix, Venir, Veau, enFant, pauVre Ville, Fond,
Voyageur, engouleVent, Veillait, Vêtements, Vitrine, Vaisseaux nor-
Végiens, Vent, Vieillissent, nouVeaux. Ainda no campo sonoro, é
interessante notar a rima vieillissentl surgissent (v.41/43), com pala-
vras próximas no som e com sentidos opostos.
"À NÍMES"
"Étendards" é o menor bloco de poemas de Calligrammes,o
apenas nove. Em "A Nîmes" (Apollinaire, 1994a, p.211-2), for-
mado de 14 dísticos, o je domina aparecendo dez vezes, salvo no
verso 20, em que aparece uma única vez o pronome tu - "Un
grand air d'ópéra toi 1'écoutant tu pleuras". Dessa vez, a marca do
eu poético está explícita,o dando margens à ambigüidade e ao
jogo freqüente de superposição de pessoas gramaticais em um
mesmo poema. À primeira leitura, algo que surpreende é a presença
de números,o muito comum em poesia.o "900 conducteurs
anonymes", "3 servants assis", "4 pointeurs", "9 heures", "Je me
promène seul le soir de 5 à 9". A simultaneidade espacial aqui tam-
m é marcada, surgindo desde o título. Aparecem Nice, Nimes no-
vamente e Paris.
Apesar da guerra onipresente, remetendo novamente ao futu-
rismo, imagens líricaso criadas: "... les obus/ Épousent ardem-
ment et sans cesse les buts", "Des obus dans la nuit la splendeurar-
gentine", além de comparações e aproximações inusitadas: "4
pointeurs fixaient les bulles des niveaux/ Qui remuaient ainsi que
les yeux des chevaux"; "Je flatte de la main le petit canon gris/ Gris
comme Veau de Seine et je songe à Paris".
O recurso a várias cenas vistas por um observador - no caso, o
je é um carroceiro - é novamente empregado. É a partir de seus co-
mentários que as cenaso descritas, o seu ponto de referência é
seu próprio universo, atestado em
Les 3 servants assis dodelinent leurs fronts
Oú brillent leurs yeux clairs comme mes éperons (grifos nossos)
Ao cotidiano do front opõem-se lembranças, ou seja, frag-
mentos de uma vida normal, agora longínqua: "Le territorial se
mange une salade/ A 1'anchois en parlant de sa femme malade".
No final do poema, há dúvida sobre se o que ali foi narrado é
realidade ou delírio: "Je selle mon cbeval nous battons la cam-
pagne/ Je te salue au loin belle rose ô tour Magne". A expressão
battre la campagne tem duplo sentido: significa divagar, perder a
razão, extravasar o pensamento e, mais concretamente, explorar,
procurar, percorrer caminhos. Desse modo, por meio de uma ex-
pressão da língua francesa, o poeta revela suas viagens exterior e
interior queo também as do animal, pois há aí a presença do
nous. Enfim, a belle rose, a evocada tour Magne seriam miragens
ou figuras oníricas.
"GUERRE"
O poema "Guerre" (Apollinaire, 1994a, p.228), que pertence
à parte "Case d' Armons", como o próprio título anuncia, traz-
rias referências à guerra e também tem pontos de contato com o
futurismo, como "A Nímes". Nele, o jogo de je/tu é substituído pe-
lo de on/nous, indicando antes continuidade do que oposição:
On tire dans la direction "des bruits entendus"
... Ne pleurez donc pas sur les horreurs de la guerre
Avant elle nous n'avions que la surface
De la terre et des mers
Après elle nous aurons les abîmes
Entre cenas de combate e reflexões sobre a guerra, Apollinaire
reproduz falas dos soldados nos três primeiros versos e localiza
"Les jeunes de la classe 19I5", ressaltando dessa forma a prática
dos poemas-conversação, uma técnica moderna:
Rameau central de combat
Contact pour 1'écoute
On tire dans la direction "des bruits entendus"
Ao sobrepor o verso que identifica seu batalhão - "Les jeunes
de la classe 2915" - aos "Et ces fils de fer électrisés/ Ne pleurez
donc pas sur les horreurs de la guerre", o poeta menciona de forma
sutil uma das monstruosidades da guerra, a morte de jovens solda-
dos. Soa estranho uma observação desse teor, já que Apollinaire
era um grande defensor da guerra e, nela, via uma inusitada beleza
iluminada pelas bombas e tiros. Porém, ironicamente, afirma em
seguida:
Nous prendrons toutes les joies
Des vainqueurs qui se délassent
Femmes Jeux Usines Commerce
Industrie Agriculture Métal
Feu Cristal Vitesse
Voix Regard Tact à part
justapondo prazeres durante a guerra (jogos e mulheres), negócios,
elementos da natureza e três dos cinco sentidos, todos em maiúscu-
las, destacando-os no poema. Essa seqüência de versos demonstra
a mesma técnica moderna já empregada com freqüência, ou seja, a
simultaneidade e a junção de universos diferentes, por livre associa-
ção de idéias, o que confere Concomitantemente um ritmo frenéti-
co ao poema, semelhante aos tiros de uma metralhadora, e o pró-
prio ritmo de seus pensamentos, misturados às cenas do front. É o
fluxo da consciência que rege a viagem interior do poeta, contra-
pondo-se à realidade exterior.
O final do poema apresenta um An-delà até entãoo mencio-
nado, lugar de onde viria o tato:
Et ensemble dans le tact venu de loin
De plus loin encore
De 1'Au-delà de cette terre
Esse "tact venu de loin", quase no final do poema, faz eco ao
"contact par l'écoute" do segundo verso, salientando, mais uma
vez em Apollinaire, a estrutura circular do poema.
Um lirismo, desta vez meio irônico, aparece em
Avant elle [la guerre] nous n'avions que la surface
De la terre et des mers
Après elle nous avions les abîmes
Le sous-sol et 1'espace aviatique
A referência às bombas e aos ataques aéreos, provavelmente dos
alemães, vem acentuada pelo neologismo aviatique, originário evi-
dentemente do alemão, Aviatik, e obscuro ao leitor menos avisado.
"OCÉAN DE TERRE"
Em "Océan de terre" (Apollinaire, 1994a, p.268), último poe-
ma da parte "Lueurs des tirs", dedicado a G. de Chirico, pintor ita-
liano que tanto marcou o surrealismo, há oposição já nas palavras
que compõem o título.
O je aqui reaparece logo no primeiro verso, acompanhado de
uma imagem onírica: "J'ai bâti une maison au milieu de 1'Océan".
Para Chuisano & Giraudo (1993, p.64), é também na revelação
das profundezas da terra que a guerra opera, e assim o poema re-
vela uma visão subterrânea do homem:
Et puis nous sommes tant et tant à être nos propres fossoyeurs
pâles poulpes des vagues crayeuses ô poulpes aux becs pâles
Percebe-se aqui a mesma menção aos abismos do poema "Guerre".
Como em uma tentativa de caligrama, os versos
Maison humide
Maison ardente
Saison rapide
Saison qui chante
estão dispostos no centro do poema, como se formassem uma pa-
rede, ou a própria casa referida no primeiro verso: "J'ai bâti une
maison au milieu de l'Océan", oceano este constituído pelos de-
mais versos. Imagens surrealistas e cenas de guerra surgem:
Les avions pondent des oeufs
Attention on va jeter l'ancre
Attention à l'encre que Von jette
No jogo sonoro entre ancre/encre, pode-se ver o poeta lançar
tinta (encre) na folha de papel, e fundar seu trabalho de escritor: é
preciso dar-lhe atenção, estar atento aos jogos lingüísticos que
cria... Seu jogo estende-se ao cotidiano da guerra; o lançar âncora
cria uma certa estabilidade, cria raízes, as mesmas que o poeta bus-
cou durante toda a sua vida. E a tinta também pode ser aquela que
o polvo lança, já que esse animal aparece quatro vezes no poema:
Des poulpes grouillent partout où se tiennent les murailles
Les poulpes terrestres palpitent
Pâles poulpes des vagues crayeuses ô poulpes aux becs pâles
É possível considerá-lo como mais um avatar do poeta: com
seus múltiplos tentáculos, ele pode abarcar seu mundo, pode es-
crever muitas coisas ao mesmo tempo, muitos versos simultâneos...
A figura do poeta como um ser poderoso, com o dom da ubiqüida-
de, é recorrente na obra de Apollinaire. No Bestiaire, a quadra de-
dicada ao polvo já antecipava essa associação do animal com o
poeta:
Jetant son encre vers les cieux,
Suçant le sang de ce qu'il aime
Et le trouvant délicieux,
Ce monstre inhumain, c'est moi-même.
(Apollinaire, 1994a, p.22)
A simbologia implícita na figura do polvo também se faz no-
tar: o dicionário de símbolos indica que o molusco representa os
monstros infernais, e o próprio inferno (Chevalier & Gheerbrant,
1986, p.758). O que é a guerra, além de um inferno terrestre, mes-
mo para um seu contumaz admirador? Ao deter-se na simbologia
do animal, o poeta continua a manter seus laços com a fábula e
com a tradição.
"EXERCICE"
Em "Exercice" (Apollinaire, 1994a, p.273), segundo poema
de "Obus couleur de lune", há um narrador que também conta
uma história de guerra. O título já é alvo de várias interpretações:
"Exercice" já é, por si, uma litotes. Poder-se-ia pensar nas ma-
nobras militares ou no treinamento cotidiano. Na verdade, o títu-
lo passa, em silêncio, sua verdadeira significação: é o exercício pa-
ra a morte explicitado no último verso. A litotes é assim um dos
meios de expressão do absurdo, é a nota de ironia que ameniza o
lirismo e qualquer plenitude emocional (Jacaret, 1984, p.50).
As vítimaso apenas quatre bombardiers, "Tous quatre de Ia
classe seize" (v.9). A sucessão numérica indica a falta de identidade
dos combatentes, classificados apenas por códigos e números do
batalhão ou tropa aos quais pertencem. Sendo um poema curto
(12 versos), tem sua intensidade lírica justamente marcada pela
brevidade com que os fatos acontecem: de uma conversa entre os
soldados durante o combate até o ataque por eles sofrido, poucos
versos existem.
Como para lembrar a ausência do futuro que os soldados teriam,
eles "parlaient d'antan non d'avenir". Mesmo antes da morte, como
que anunciando-a, "ils étaient couverts de poussière/ Depuis la tête
jusqu' aux pieds". Esse recurso poético faz lembrar "Le dormeur
du val", em que Rimbaud salpicou referências implícitas à morte,
para somente no final revelar ao leitor que se trata de um soldado
morto.
O final de "Exercice" traz em si uma observação de Apollinaire
sobre a guerra: "Ainsi se prolongeait 1'ascèse/ Qui les exerçait à mou-
rir", retomando o título do poema e, por conseguinte, criando
aquele efeito de circularidade freqüente em sua obra. Embora Apol-
linaireo se declarasse abertamente na esteira de Marinetti, perce-
be-se de forma clara em seus poemas que tinha fé na guerra como
uma revolução que traria o novo, oo proclamado novo, assim co-
mo acreditavam Cendrars e os artistas russos do período pré-guerra.
A que se refere o exercício do título do poema? Em princípio,
pode-se pensar em um exercício de manobra militar, já que o con-
texto é bélico. Porém, seus versos finais apontam para uma eluci-
dação queo deixa de chocar e surpreender o leitor: os quatro
soldados exercitam-se para a morte. Por meio desses procedimen-
tos poéticos, Apollinaire consegue demonstrar uma certa beleza
poética na guerra,o aquela defendida por Marinetti, mas a que
proclama em seu L'esprit nouveau et les poètes, e que, para ele, es-
tá abaixo da verdade:
E quem ousaria dizer que, para aqueles queo dignos da ale-
gria, o que é novoo é belo?
... os poetas modernos são, antes de mais nada, os poetas da verdade
sempre nova. E a tarefa deles é infinita; eles vos surpreenderam e
vos surpreenderão ainda mais. (Apollinaire, 1991, p.951)
OS CARTÕES-POSTAIS
Seis versos compõem "Carte postale" (Apollinaire, 1994a,
p.297), incluído na última seqüência da coletânea, "La tête étoi-
lée", como se fossem realmente os escritos de um cartão-postal,
quase sempre rápidos e concisos. Apollinaire (1994a, p.226) vai
usar essa mesma idéia em um outro poema de mesmo título, de
"Case d'Armons". Neste último, há a reprodução de vários tipos
de letras manuscritas, além do próprio carimbo do correio, o que
sugere que o poema foi escrito em um cartão-postal verdadeiro,
ressaltando seu aspecto de colagem. A aproximação autor-eu poé-
tico, segundo Jean Gérard Lapacherie (1982, p.195), dá-se porque
a escrita autográfica de "Carte postale" revela, primeiramente, a
gestualidade de um ductus, isto é, o modo específico com o qual
Apollinaire traça suas cartas e dispõe as linhas na página. Ela mos-
tra traços, resultados de milhares de gestos cotidianos, controla-
dos, familiares: ela mostra o trabalho de um corpo.
Embora tenha como destinatário o poeta Jean Royère, o fato
de ter sido publicado distorce, ou antes amplia, o destino do poe-
ma-postal, ou seja, a comunicação, além de pessoal, torna-se poé-
tica e universal. Parte do texto principal faria menção a um episó-
dio da vida de soldado do poeta - "L'auto-bazar ne vient pas ici".
O sentido do poema nasce então de sua fragmentação, isto é, da
mescla de várias letras manuscritas, de caracteres impressos (ca-
rimbo e letras impressas no próprio cartão), como também do fato
de algumas letras estarem apagadas na parte que corresponde ao
carimbo do correio; porém, issoo interrompe a compreensão
do todo.
Esse poema, que então já poderia ser considerado um caligra-
ma, tem como figura central a palavra LUL em letras maiúsculas,
como se fosse uma assinatura, maso posicionada no final. Ela
chama a atenção por dois motivos:o se trata de um vocábulo de
domínio público, significa "falo" (do latim phallus) em argot fla-
mand, e também já deu um título a um poema de Alcools - "Lul de
Faltenin". A insistência de Apollinaire em usar essa palavra é curio-
sa, e poderia ser encarada como mais um dos artifícios do poeta pa-
ra causar surpresa e obscuridade à leitura, como acontece em
"Lul de Faltenin".
Com todos esses artifícios, descobre-se que há em "Carte posta-
le" um texto "legível" e um texto "visível", que ampliam dessa forma
o feixe de sensações que ele pode produzir no leitor-visualizador.
A "Carte postale" de "La tête étoilée" é escrita em primeira
pessoa, o que lhe dá uma marca lírica bastante significativa, em
uma atmosfera bélica:
Je t' ecris de dessous la tente
Tandis que meurt ce jour d'eté
floraison éblouissante
Dans le del à peine bleuté
Une canonnade éclatante
Se fane avant d'avoir été (Apollinaire, 1994a, p.297)
A presença da morte é apenas insinuada, sugerida: o eu poéti-
co está sob a tenda, o dia de verão morre, o florescer cega (ausência
de visão pelo excesso de luz, antes mesmo de ser verão); há uma
seqüência de tiros de canhão que esmaece. O próprio jogo de sig-
nificados de été (o verão e o particípio passado do verbo être) car-
rega a conotação de algo que jáo existe mais. Observa-se a dife-
rença de tom em relação ao outro poema homônimo, cujos versos
o trazem a mesma carga melancólica e negativa. Aquele poema,
permeado de recursos tipográficos que lhe impunham um ritmo
mais veloz e irregular, contrapõe-se aos seis únicos versos desse
outro poema que, por sua forma tímida e pequena, já mostra uma
certa redução em seu impacto visual, o que lhe dá um ar mais con-
ciso, mais contrito. O trabalho com as rimas nas palavras tentei
éblouissante/ éclatante acentua seu ar melancólico, pois trata-se da
repetição de um som nasalisado que, nesse caso, sugere a lentidão
com que o tempo passa para o combatente, dentro da tenda, em
um dia de verão.
"LES FÊNETRES"
"Les fenêtres" (Apollinaire, 1994a, p. 168-9), já citado neste
estudo, é um dos poemas que, ao lado de "Lettre-Océan", pode ser
considerado um exemplo de poética futurista, segundo Marjorie
Perloff (1993, p.180). Como os demais poemas de "Ondes", fo-
ramcompostos antes da guerra.
A primeira imagem que impressiona no início de "Les fenê-
tres" é a presença do pihi, o pássaro da lenda chinesa, de apenas
uma asa:
Quand chantent les aras dans les forêts natales
Abatis de pihis
A referência "amorosa" a essa lenda - o pihi precisa voar junto
com outro, formando assim um casal inseparável - talvez fosse
desconhecida de Apollinaire, segundo Michelle Loi (1966,
p.286). Para ela, o poeta pensava que o pássaro seria originaria-
mente apenas mutilado, esquecendo que é também o símbolo do
amor constante, cotidiano e terno, de bons esposos e de perfeitos
amantes.
Outra lenda chinesa diz respeito aos pi-mus, peixes que pos-
suíam só um olho, e que deviam nadar dois a dois, para poder en-
xergar de ambos os lados. Pode-se considerar que, mesmo sem
aproveitar no poema o significado completo da lenda, issoo
prejudicou os versos em que os pihis foram citados; pelo contrá-
rio, a múltipla interpretação de sua presença em diferentes mo-
mentos só demonstra a boa qualidade da poesia de Apollinaire,
que pode dar origem a variadas e ricas interpretações. A "fragmen-
tação" da lenda só veio acrescentar novas surpresas ao poema,
atingindo justamente o objetivo do poeta. Sua presença em "Les
fenêtres" significa, ainda uma vez, a fábula na obra de Apollinaire,
conjugada aqui com a lírica moderna.
Apollinaire também utiliza a figura lendária do pássaro e ex-
plica suas origens em versos de "Zone":
De Chine sont venus les pihis longs et souples
Qui n'ont qu'une seule aile et qui volent par couples (1994a,
P-41)
bem como nos Poèmes épistolaires dedicados a André Billy:
Si j'étais un pi-hi
J'aurais du moins une aile
Pour t'aller voir Billy
Mais la vie est cruelle (p.775)
o que demonstra tanto seu interesse pelo imaginário chinês quan-
to a prática recorrente de retomar temas e versos em diferentes
momentos de sua obra.
Vê-se claramente que "Les fenêtres" é um "poema-conversa-
ção", no qual fragmentos de frases ouvidas nas ruas, durante os
passeios e encontros do poeta com seus amigos, frases soltas ima-
ginadas, aliadas a seu monólogo interior, distribuem-se no poema
em uma aparente desordem.
Há controvérsias quanto à composição desse poema, já que
André Billy afirma que Apollinaire compôs boa parte dele em um
café chamado Crucifix, entre amigos; Sonia e Robert Delaunay
confirmam que o poema teria sido composto em seu ateliê. Prova-
velmente, Apollinaire esboçou-o no café, vindo a terminá-lo no
ateliê dos amigos pintores, segundo nota de Décaudin (in Apolli-
naire, 1994, p.1079). Verifica-se então o trabalho do poeta em suas
composições, também fragmentado.
As cores suscitadas no primeiro verso - "Du rouge au vert tout le
jaune se meurt" -m seu prolongamento no seguinte, no qual arás
(papagaios da América) cantam em suas florestas natais, destacando
outra sensação, o som. Aliados a essa gama de sensações logo no iní-
cio do poema estão o exotismo e a estranheza que a palavra aras cau-
sa, efeito surpresa de que fala em L'esprit nouveau et les poètes.
Na seqüência, em meio a essa "paisagem natural", aparece um
elemento pertencente ao Sublime moderne, título de uma confe-
rência de Apollinaire: "Il y a un poème à faire sur l'oiseau qui na
qu'une aile/ Nous 1'enverrons en message téléphonique". Para Noé-
mie Blumenkranz-Onimus (1966, p.189), o sublime moderno ao
qual Apollinaire quer chegar é constituído ao mesmo tempo por
um conteúdo - aquele que integra as grandes realizações científi-
cas e técnicas, que reproduz o "movimento" da vida moderna - e
por uma forma - a do espírito que imprime a esse conteúdo mo-
vente, fugidio, em perpétuo devir, uma visão "sintética". Parece
que, em "Les fenêtres", Apollinaire alcança esse objetivo.
Em seguida, um súbito e inexplicável traumatisme géant "fait
couler les yeux", e eis que surge "une jolie jeune fille parmi les jeu-
nes Turinaises", acentuando o exotismo e a inclusão de referências
geográficas diversas que se ampliarão nos versos finais do poema.
Uma outra cena, a princípio sem ligação alguma com a anterior,
compõe o verso seguinte: "Le pauvre jeune homme se mouchait
dans sa cravate blanche". Ora, se o homem assoa o nariz, talvez o
traumatismo e as lágrimas anteriores digam respeito a ele mesmo,
maso há nada de concreto que comprove essa ligação. Assim, o
aspecto fragmentário do poema, com cenas aparentemente des-
concatenadas, se mantém, aproximando-o do cubismo, poiso
se pode esquecer que o início do poema faz referência à pintura, e
mais especificamente, a uma pintura cubista.
No verso 10, há a introdução de um tu e uma das janelas do
título aparece: "Tu soulèveras le rideau/ Et maintenant voilà
que s'ouvre la fenêtre". A luz vem tecida por mãos anônimas:
"Araignées quand les mains tissaient la lumière/ Beauté pâleur in-
sondables violets", juntando cores à luz que surge das mãos que
mais parecem aranhas. Poder-se-ia entender essa justaposição de
cenas díspares imaginando-se que o poeta fosse um observador ex-
terno, diante de um prédio, por exemplo, e, colocado em sua posi-
ção privilegiada, pudesse ver várias janelas e, ao mesmo tempo, o
que elas escondem ou revelam. A essas cenas simultâneas, mistu-
rar-se-iam seus pensamentos, como também frases de passantes na
rua... Assim, a posição privilegiada do poeta, dominador de sons,
cores e gestos, faz dele um observador simultâneo, que pode ver,
ouvir e refletir sob diferentes óticas. Acrescentem-se a toda essa
fragmentação e simultaneidade a velocidade do pensamento e as
diversas interferências por ele sofridas, sejam elas externas ou in-
ternas. Eis aí uma verdadeira obra futurista e cubista, com todas as
características modernas oferecidas por esses movimentos van-
guardistas, emolduradas pela rapidez que a época impunha.
"LETTRE-OCÉAN"
"Lettre-Océan" (Apollinaire, 1994a, p. 183-5) difere na for-
ma em relação a "Les fenêtres" por ser já uma mescla de poema
narrativo e caligrama. Publicado primeiramente na revista Les
Soirées de Paris, em 1914, teve quase um valor de manifesto. Para
Philippe Renaud, "Lettre-Océan" é o único poema verdadeira-
mente "simultâneo" e "sintético", o único moderno por causa de
seu assunto e de seus motivos.o é por acaso que também seja o
que mais deve às pesquisas dos futuristas (Renaud, 1969, p.371).
Referências multigeográficas aparecem desde os primeiros ver-
sos, e o velho Rio Reno tem seu espaço garantido no primeiro verso:
J'étais au bord du Rhin quand tu partis pour le Mexique
Ta voix me parvient maigré 1'énorme distance
Gens de mauvaise mine sur le quai à la Véra Cruz
Pode-se depreender que o tu do poema é o irmão de Apolli-
naire, Albert, que morou no México de 1913 a 1919, e lá faleceu,
meses depois da morte de Guillaume. Albert vem citado mais adian-
te em letras diferentes e maiúsculas, destacadas:
BONJOUR MON FRÈRE ALBERT à Mexico
Sabe-se que, a princípio, os Calligrammes, ainda com o título
provisório de Et moi aussi je suis peintre!, seriam dedicados ao ir-
o do poeta.
A parte narrativa do poema pode ser destacada dos caligramas
que a rodeiam:
J'étais au bord du Rhin quand tu partis pour le Mexique
Ta voix me parvient maigré l'énorme distance
Gens de mauvaise mine sur le quai à la Véra Cruz
Les voyageurs de 1'Espagne devant faire le Voyage de Coatzacoal-
cos pour s'embarquer je t'envoie cette carte aujourd'hui au lieu de
profiter du courrier de Vera Cruz qui n'est pas sûr
Tout est calme ici et nous sommes dans l'attente des événements.
Te souviens-tu du tremblement de terre entre 1885 et 1890 on
concha plus d'un mois sous Ia tente
O eco causado por "dans l'attente" e "sous la tente" revela
que tanto o passado quanto o presente fazem o poeta esperar, con-
trariando o ritmo veloz que os caligramas sugerem.
A exemplo de "Carte postale", "Lettre-Océan" também traz
em sua composição marcas dos correios, com palavras em espa-
nhol e inglês, o que lhe dá um caráter realista, aufere-lhe uma
apresentação do verdadeiro, tendendo assim mais para uma "cola-
gem cubista" do que para um "caligrama".
LETTRE-OCÉAN
J'ètais au bord du Rhin quand tu partis pour le Mexique
Ta voix me parvient malgré 1'énorme distance
Gens de mauvaise mine sur le quai à la Vera Cruz
Mayas
Te souviens-tu du tremblement de terre entre 1885 et 1890
on coucha plus d'un mois sous la tente
Bonjour MON FRÉRE ALBERT à mexico
Pode-se concluir que, em sua obra poética, Apollinaire soube
congregar os grãos de modernidade que seus antecessores, Baude-
laire e Rimbaud, lançaram na literatura. A eles, acrescentou os
lampejos da modernidade das vanguardas que ajudou a construir,
aliando-os à velocidade e à tecnologia que sua época e a paisagem
do momento lhe ofereciam. Todo esse contexto foi captado pelo
poeta e transportado para sua poesia, devidamente regado por um
lirismo bem particular, salpicado de fábula. O tema principal que
desenvolveu em sua obra foi o eu, sua herança romântica.
Dos simbolistas, cultivou a obscuridade, o fascínio pela mito-
logia e pelo antigo, apesar de proclamar seu cansaço em relação ao
mundo antigo... Paralela e paradoxalmente a essa proclamação,
dizia viver na época em que findavam os reis. Seu olhar "corajo-
so", para usar aqui as próprias palavras do poeta, esteve, ao mes-
mo tempo, voltado para o passado, focado no presente, sem per-
der de vista o futuro.
As imagens fragmentadas, simultâneas e/ou coladas retrata-
vam o passado, a memória, suas lembranças entrecortadas e guia-
das - ou desviadas - pelo fluxo da consciência. Assim, abarca a
união do antigo e do novo sem detrimento de nenhum desses uni-
versos.
Ao conseguir criaro frágil equilíbrio, por meio da imagina-
ção sem freios, das palavras em liberdade, da junção de artes diver-
sas, em uma simbiose inusitada, Apollinaire cria uma nova forma
de expressão que guiará toda a lírica que virá depois dele: torna-se
tarefa difícil, parao dizer impossível, falar de modernidade e de
lírica do século XX sem citar o nome de Guillaume Apollinaire.
CONCLUSÃO
Como se afirmou no início desta leitura, desde Aristóteles, o
gênero denominado "fábula" sempre foi alvo de estudos. Suas va-
riações podem ser percebidas nos poemas de Apollinaire: traduzi-
da em sua forma mais convencional nos poemas a Lou; com algu-
mas modificações, no caso dos poemetos do Bestiaire; sob nova
ótica nos poemas neo-simbolistas, e mesmo sugerida nos poemas
eminentemente modernos. O elo entre essas variações evidenciou-
se em seu caráter narrativo, mantido em todas as modalidades de-
senvolvidas por Apollinaire. A presença de uma história é constan-
te em sua obra poética, na qual se percebe uma necessidade de
contar e de recontar as impressões captadas do mundo exterior e
interior, ou ainda daquele criado pelo próprio poeta. Sobretudo
em seus poemas neo-simbolistas, puderam-se detectar claramente
elementos da narrativa, como o tempo - sobretudo o passado -, o
espaço, bem delimitados, e a existência de personagens. Além dis-
so, observou-se que a narrativa pode surgir da repetição de versos
em poemas diferentes, do reaproveitamento de personagens e de
trechos que circulam pelos vários gêneros nos quais se expressou,
das diferentes versões de um mesmo mito, da inserção de frases
soltas ouvidas na rua, por exemplo. Por meio desses procedimen-
tos, Apollinaire cultiva a inter e a intratextualidade, o que confere
um aspecto moderno e uma significativa unidade à sua obra.
Ao falar-se em mito na obra apollinariana, devem-se conside-
raro só os mitos tradicionais, mas também os mitos do mundo
moderno. Há características modernas em Merlim e no eremita;
há algo de "antigo" em "Zone", com seus "automobiles [qui] ont
l'air d'être anciens".
A consciência de Apollinaire em relação à presença da fábula
em sua obra reflete-se, por exemplo, no subtítulo que deu à se-
qüência de poemas endereçados a Lou, analisados no segundo ca-
pítulo deste estudo, e chamados por ele de première, deuxième e
troisième fable. Embora nesses e naqueles do Bestiaire os elemen-
tos da fábula tradicional, como a presença de animais e da moral,
sejam evidentes, estao assume uma função moralizante, mas,
sim, um toque de humor aos poemas. O equilíbrio entre a tradição
e o moderno transparece na trilogia que, por assim dizer, parodia
um pouco a escritura simbolista. O poema "Palais" serve de ponte
entre esses dois mundos; "L'émigrant de Landor Road" vem coroar
essa passagem. "Zone", citado sempre como exemplo de composi-
ção que reúne diversas características da modernidade, tais como a
fragmentação, a simultaneidade, e considerado uma ode ao mun-
do moderno, também contém alguns elementos da fábula.
Guillaume Apollinaire partiu de seu próprio mundo imaginá-
rio para compor seus versos. Mesclou fatos de seu dia-a-dia a mi-
tos antigos e lendas. Suas leituras deram-lhe estofo para fazer sub-
sistir um simbolismo agonizante.
Ao tratar os mitos e lendas antigos, dando-lhes nova roupa-
gem, salpicou-lhes pitadas de modernidade, de vanguarda. Sem
renegar as raízes simbolistas e até anteriores, foi mentor das van-
guardas, incentivou novos e polêmicos movimentos artísticos;
cantou seus versos alexandrinos, aboliu a pontuação; criou a pala-
vra surréalisme, valorizou o símbolo e exercitou a fábula, sempre
com muito lirismo. Essa atitude denota um equilíbrio difícil de ser
encontrado em autores do século XX, especialmente em um van-
guardista.
Apollinaire evita sempre os exageros e aplica em seus escritos
somente o que dá uma nova luz à sua lírica, como a criação de neo-
logismos, a busca da obscuridade, que, conseqüentemente, cau-
sam surpresa ao leitor; há ainda a ausência da pontuação, o uso do
verso livre, a invenção do poema-conversação e dos "poemas si-
multâneos", a colagem e a montagem, a escritura fragmentada, o
emprego de palavras advindas do mundo tecnológico de então, a
invenção dos caligramas, o registro de seu tempo presente. Desse
modo, quer abarcar várias tendências e várias épocas. Como se
viu, passado, presente e futuro caminham lado a lado em sua obra,
em uma justaposição que, por sua vez, também advém das técnicas
vanguardistas. Em "Les collines", um verso resume esse conceito:
"Passe et dure sans t'arrêter".
Ao congregar fábula, mito, histórias inventadas ou (re)cria-
das, ao lado de uma lírica muitas vezes revolucionária, o poeta de
Alcools e Calligrammes cria uma nova poesia, um novo fazer poéti-
co, baseado em seus mestres e em suas descobertas vanguardistas.
As duas linhas da obra de Apollinaire a que se deu destaque
aqui - fábula e lírica - caminham juntas, às vezes se superpondo,
outras se completando. Percebeu-se nessa obra um caminho que
ele traçou no início, em seus primeiros escritos, e do qualo se
desviou.o se furtou às mudanças, ao novo; antes, pelo contrá-
rio, exaltou-os.o ignorou o passado, o estabelecido; aprovei-
tou-o para dar-lhe nova roupagem.
É o próprio Apollinaire, o poeta mal-amado, quem expressa
seu desejo de transformar tudo em matéria poética, ao dizer em
seu diário que "tudo se tornará Poesia, a história torna-se fábula,
os próprios objetos, ao tornarem-se antigos, enfeitam-se de poe-
sia. O respeito aos velhos, o culto dos mortos, tudo isso é a prova
dessa transformação de tudo em poesia" (apud Burgos et al., 1998,
p.270).
Assim, ruptura e tradição, lírica e fábula, circularidade e si-
multaneidade, ambigüidade e fragmentação, passado e futuro,
amor e desencanto, morte e vida entrelaçam-se na obra apollinai-
riana, demonstrando toda a verve criativa do poeta-polvo, que
usou a expressão de seus sentimentos também a serviço da história
da lírica moderna. Afinal, Guglielmo Alberto Dulcigny, Guillaume
Albert Vladimir Alexandre Apollinaire de Kostrowitzky, Wilhelm,
Guillaume Macabre, Nyctor, Louise Lalanne, Pascal Hédégat,
Merlim, o eremita, o poeta assassinado, o ladrão, o encantador
apodrecido, o espreitador melancólico, o combatente de guerra, o
romano, o francês, o parisiense, o pintor, Orfeu, o rei Artur, o
bancário, o preceptor, o emigrante, o prisioneiro, o apaixonado, o
viajante, o saltimbanco, o polvo, o mal-amado, o poeta, Guillaume
Apollinaire, Apollinaire convergem para pontuar um marco na his-
tória da poesia moderna.
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APÊNDICE
Reproduzem-se aqui integralmente os principais poemas de
Guillaume Apollinaire analisados mais longamente neste livro, na
ordem em que figuram no texto. Alguns, mais breves, foram inse-
ridos no corpo do trabalho.
LES FLEURS RARES
Fable.
Entreprenant un long voyage
Ptit Lou hanté par l'histoire de Jussieu
Au lieu d'un petit cèdre prit Quoi donc ]e gage
Qu'on ne devinera pas ce que Dieu
Fit prendre à mon ptit Lou une fleur rare
Dont elle ferait don aux serres de Paris
La fleur était sans prix
Et Dante Lou voyant qu' elle en valait la peine
Froissa pour la cueillir sa jupe de futaine
Mais en passant dans la forêt
Allant prendre son train à la ville prochaine
Ptit Lou vit sous un chêne
Une autre fleur Plus belle encore elle paraît
La première fleur tombe
Et la forêt devient sa tombe
Tandis que mon ptit Lou d'un air rêveur
A cueilli la Seconde fleur
Et 1'entoure de sa sollicitude
Arrivant à la station
Après une montée un peu rude
Pour s'y reposer de sa lassitude
Avec satisfaction
Ptit Lou s'assied dans le jardin du chef de gare
Tiens dit-elle une fleur Elle est encor plus rare
Et sans précaution
Ma bergère
Abandonna la timide fleur bocagère
Et cueillit la troisième fleur
Cheu Cheu Pheu Pheu Cheu Cheu Pheu Pheu
Le train arrive
Et puis repart pour regagner l'Intérieur
Mais dans le train la fleur se fane et Lou pensive
S'en va chez la fleuriste en arrivant
Ces rares fleurs j'en vais rêvant
Elles sont si rares Madame
Que je n'en tiens plus sur mon âme
La fleuriste s'exprime ainsi
Et Lou dut se contenter d'un souci
Que lui refuse
Sans lui donner d'excuse
Le directeur (un personnage réussi)
Des serres de la ville
De Paris
Maigré tous les pleurs et les cris
De Lou qui dut jeter cette fleur inutile
Et Lou du
Vilain personnage
Quittant le bureau dut
Entreprendre à rebours 1'borticole voyage
Je crois qu'il est sage
De nous arrêter
A la morale suivante sans insister
Des Lous et de leurs fleurs il ne faut discuter
Et je n'en dis pas davantage
{Poèmes à Lou)
LE TOUTOU ET LE GUI
Seconde fable.
Un gentil toutou vit un jour un brin de gui
Tombé d'un chêne
Il allait lever la patte dessus sans gêne
Quand sa maîtresse qui
L'observe l'en empêche et d'un air alangui
Ramasse le gui
Gui jappe le toutou pour toi c'est une veine
Qu'est-ce qui donc te la valut
Vous êtes cher toutou fidèle et résolu
Et c'est pourquoi votre maîtresse
Vous aime avec tendresse
Lui répond
La plante des Druides
Pour la tendresse à vous le pompon
Mais moi je suis 1'amour à grandes guides
Je suis le bonheur
La plus rare des fleurs ô toutou mon meilleur
Compagnon puisque plante je n'ai pas de fleur
Vous êtes l'ideal et je porte bonheur
Et leur
Maîtresse
Étendue avec paresse
Effeuillant indifféremment de belles fleurs
Aux mille couleurs
Aux suaves odeurs
Feint de ne pas entendre
Le toutou jaser avec le gui Leurs
Propos la font sourire et nos rêveurs
Imaginent de comparer leurs deux bonheurs
Cependant qu'Elle les regarde d'un air tendre
Puis se levant soudain auprès d'eux vient s'étendre
Le toutou pour sa part eut bien plus (à tout prendre)
De baisers que le gui
Qui tout alangui
Entre deux jolis seins ne peut rien entreprendre
Mais se contente bien ma foi
De son trône digne d'un roi
Il jouit des baisers les voyant prendre
Et les voyant rendre
Sans rien prétendre
Morale.
Il ne faut pas chercher à comprendre
(Poèmes à Lou)
TROISIÈME FABLE
Le ptit Lou s'ébattait dans un joli parterre
poussait la fleur rare et d'autres fleurs itou
Et Lou cueillait les fleurs qui se laissaient bien faire
Mais distraite pourtant elle en semait partout
Et perdait ce qu'elle aime
Morale.
On est bête quand on sème
(Poèmes à Lou)
MERLIN ET LA VIEILLE FEMME
Le soleil ce jour-là s'étalait comme un ventre
Maternel qui saignait lentement sur le ciel
La lumière est ma mère ô lumière sanglante
Les nuages coulaient comme un flux menstruel
Au carrefour où nulle fleur sinon la rose
Des vents mais sans épine na fleuri l'hiver
Merlin guettait la vie et 1'éternelle cause
Qui fait mourir et puis renaître 1'univers
Une vieille sur une mule à chape verte
S'en vint suivant la berge du fleuve en aval
Et 1'antique Merlin dans la plaine déserte
Se frappait la poitrine en s'écriant Rival
O mon être glacé dont le destin m'accable
Dont ce soleil de chair grelotte veux-tu voir
Ma Mémoire venir et m'aimer ma semblable
Et quel fils malheureux et beau je veux avoir
Son geste fit crouler Vorgueil des cataclysmes
Le soleil en dansant remuait son nombril
Et soudain le printemps d'amour et d'héroïsme
Amena par la main un jeune jour d'avril
Les voies qui viennent de 1'ouest étaient convertes
D'ossements d'herbes drues de destins et de fleurs
Des monuments tremblants près des charognes vertes
Quand les vents apportaient des poils et des malheurs
Laissant sa mule à petits pas s'en vint l'amante
A petits coups le vent défripait ses atours
Puis les pâles amants joignant leurs mains dementes
L"entrelacs de leurs doigts fut leur seul laps d'amour
Elle balla mimant un rythme d'existence
Criant Depuis cent ans j'espérais ton appel
Les astres de ta vie influaient sur ma danse
Morgane regardait du haut du mont Gibel
Ah! qu'il fait doux danser quand pour vous se déclare
Un mirage oú tout chante et que les vents d'horreur
Feignent d'être le rire de la lune hilare
Et d'effrayer les fantômes avants-coureurs
]'ai fait des gestes blancs parmi les solitudes
Des lémures couraient peupler les cauchemars
Mes tournoiements exprimaient les béatitudes
Qui toutes ne sont rien qu'un pur effet de 1'Art
Je n'ai jamais cueilli que la fleur d'aubépine
Aux printemps finissants qui voulaient défleurir
Quand les oiseaux de proie proclamaient leurs rapines
D'agneaux mort-nés et d'enfants-dieux qui vont mourir
Et j'ai vieilli vois-tu pendant ta vie je danse
Mais j'eusse été tôt lasse et 1'aubépine en fleurs
Cet avril aurait eu la pauvre confidence
D'un corps de vieille morte en mimant la douleur
Et leurs mains s'élevaient comme un vol de colombes
Clarté sur qui la nuit fondit comme un vautour
Puis Merlin s'en alla vers l'est disant Qu'il monte
Le fils de la Mémoire égale de 1'Amour
Qu'il monte de la fange ou soit une ombre d'homme
Il sera bien mon fils mon ouvrage immortel
Le front nimbé de feu sur le chemin de Rome
Il marchera tout seul en regardant le ciel
La dame qui m'attend se nomme Viviane
Et vienne le printemps des nouvelles douleurs
Couché parmi la marjolaine et les pas-d'âne
Je m'éterniserai sous l'aubépine en fleurs
(Alcools)
LE LARRON
CHOEUR
Maraudeur étranger malheureux malhabile
Voleur voleur que ne demandais-tu ces fruits
Mais puisque tu as faim que tu es en exil
Il pleure il est barbare et bon pardonnez-lui
LARRON
Je confesse le vol des fruits doux des fruits mûrs
Mais ce n'est pas l'exil que je viens simuler
Et sachez que j'attends de moyennes tortures
Injustes si je rends tout ce que j'ai volé
VIEILLARD
Issu de 1'écume des mers comme Aphrodite
Sois docile puisque tu es beau Naufragé
Vois les sages te font des gestes socratiques
Vous parlerez d'amour quand il aura mangé
CHOEUR
Maraudeur étranger malhabile et malade
Ton père fut un sphinx et ta mère une nuit
Qui charma de lueurs Zacinthe et les Cyclades
As-tu feint d'avoir faim quand tu volas les fruits
LARRON
Possesseurs de fruits mûrs que dirai-je aux insultes
Ouïr ta voix ligure en nénie ô maman
Puisqu'ils n'eurent enfin la pubère et 1'adulte
De prétexte sinon de s'aimer nuitamment
Il y avait des fruits tout ronds comme des âmes
Et des amandes de pomme de pin jonchaient
Votre jardin marin où j'ai laissé mes rames
Et mon couteau punique au pied de ce pêcher
Les citrons couleur d'huile et à saveur d'eau froide
Pendaient parmi les fleurs des citronniers tordus
Les oiseaux de leur bec ont blessé vos grenades
Et presque toutes les figues étaient fendues
L'ACTEUR
Il entra dans la salle aux fresques qui figurent
L'inceste solaire et nocturne dans les nues
Assieds-toi là pour mieux ouïr les voix ligures
Au son des cinyres des Lydiennes nues
Or les hommes ayant des masques de théâtre
Et les femmes ayant des colliers où pendait
La pierre prise au foie d'un vieux coq de Tanagre
Parlaient entre eux le langage de la Chaldée
Les autans langoureux dehors feignaient l'automne
Les convives c'étaient tant de couples d'amants
Qui dirent tour à tour Voleur je te pardonne
Reçois d'abord le sel puis le pain de froment
Le brouet qui froidit sera fade à tes lèvres
Mais l'outre en peau de bouc maintient frais le vin blanc
Par ironie veux-tu qu'on serve un plat de fèves
Ou des beignets de fleurs trempés dans du miei blond
Une femme lui dit Tu n'invoques personne
Crois-tu donc au hasard qui coule au sablier
Voleur connais-tu mieux les lois maigré les bommes
Veux-tu le talisman heureux de mon collier
Larron des fruits tourne vers moi tes yeux lyriques
Emplissez de noix la besace du héros
Il est plus noble que le paon pythagorique
Le dauphin la vipère mâle ou le taureau
Qui donc es-tu toi qui nous vins grâce au vent scythe
Il en est tant venu par la route ou la mer
Conquérants égarés qui s'éloignaient trop vite
Colonnes de clins d'yeux qui fuyaient aux éclairs
CHOEUR
Un homme bègue ayant au front deux jets de flammes
Passa menant un peuple infime pour 1'orgueil
De manger chaque jour les cailles et la manne
Et d'avoir vu la mer ouverte comme un oeil
Les puiseurs d'eau barbus coiffés de bandelettes
Noires et blanches contre les maux et les sorts
Revenaient de 1'Euphrate et les yeux des chouettes
Attiraient quelquefois les chercheurs de trésors
Cet insecte jaseur ô poète barbare
Regagnait chastement à 1'heure d'y mourir
La forêt précieuse aux oiseaux gemmipares
Aux crapauds que l'azur et les Sources mûrirent
Un triomphe passait gémir sous l'arc-en-ciel
Avec de blêmes laurés debout dans les chars
Les statues suant les scurriles les agnelles
Et l'angoisse rauque des paonnes et des jars
Les veuves précédaient en égrenant des grappes
Les évèques noirs révérant sans le savoir
Au triangle isocèle ouvert au mors des chapes
Pallas et chantaient 1'hymne à la belle mais noire
Les chevaucheurs nous jetèrent dans 1'avenir
Les alcancies pleines de cendre ou bien de fleurs
Nous aurons des baisers florentins sans le dire
Mais au jardin ce soir tu vins sage et voleur
Ceux de ta secte adorent-ils un signe obscène
Belphégor le soleil le Silence ou le chien
Cette furtive ardeur des serpents qui s'entr'aiment
L'ACTEUR
Et le larron des fruits cria ]e suis chrétien
CHOEUR
Ah! Ah! les colliers tinteront cherront les masques
Va-t'en va-t'en contre le feu 1'ombre prévaut
Ah! Ah! le larron de gauche dans la bourrasque
Rira de toi comme hennissent les chevaux
FEMME
Larron des fruits tourne vers moi tes yeux lyriques
Emplissez de noix la besace du héros
Il est plus noble que le paon pythagorique
Le dauphin la vipère mâle ou le taureau
CHOEUR
Ah! Ah! nous secouerons toute la nuit les sistres
La voix ligure était-ce donc un talisman
Et si tu n'es pas de droite tu es sinistre
Comme une tache grise ou le pressentiment
Puisque l'absolu choit la chute est une preuve
Qui double devient triple avant d'avoir été
Nous avouons que les grossesses nous émeuvent
Les ventres pourront seuls nier l'aséité
Vois les vases sont pleins d'humides fleurs morales
Va-t'en mais dénudé puisque tout est à nous
Quïs du choeur des vents les cadences plagales
Et prends l'arc pour tuer l'unicorne ou le gnou
L'ombre équivoque et tendre est le deuil de ta chair
Et sombre elle est humaine et puis la nôtre aussi
Va-t'en le crépuscule a des lueurs légères
Et puis aucun de nous ne croirait tes récits
Il brillait et attirait comme la pantaure
Que n'avait-il la voix et les jupes d'Orphée
Et les femmes la nuit feignant d'être des taures
l'eussent aimé comme on 1'aima puisqu'en effet
Il était pâle il était beau comme un roi ladre
Que n'avait-il la voix et les jupes d'Orphée
La pierre prise au foie d'un vieux coq de Tanagre
Au lieu du roseau triste et du funèbre faix
Que n'alla-t-il vivre à la cour du roi d'Edesse
Maigre et magique il eût scruté le firmament
Pâle et magique il et aimé des poétesses
Juste et magique il eût épargné les démons
Va-t'en errer crédule et roux avec ton ombre
Soit! la tríade est mâle et tu es vierge et froid
Le tact est relatif mais la vue est oblongue
Tu n'as de signe que le signe de la croix
(Alcools)
L'ERMITE
A Félix Fénéon.
Un ermite déchaux près d'un crâne blanchi
Cria Je vous maudis martyres et détresses
Trop de tentations malgré moi me caressent
Tentations de lune et de logomachies
Trop d'étoiles s'enfuient quand je dis mes prières
O chef de morte O vieil ivoire Orbites Trous
Des narines rongées J'ai faim Mes cris s'enrouent
Voici donc pour mon jeûne un morceau de gruyère
O Seigneur flagellez les nuées du coucher
Qui vous tendent au ciel de si jolis culs roses
Et c'est le soir les fleurs de jour déjà se closent
Et les souris dans 1'ombre incantent le plancher
Les humains savent tant de jeux 1'amour la mourre
l'amour jeu des nombrils ou jeu de la grande oie
La mourre jeu du nombre illusoire des doigts
Saigneur faites Seigneur qu'un jour je m'énamoure
J'attends celle qui me tendra ses doigts menus
Combien de signes blancs aux ongles les paresses
Les mensonges pourtant j'attends qu'elle les dresse
Ses mains énamourées devant moi 1'Inconnue
Seigneur que t'ai-je fait Vois je suis unicorne
Pourtant maigré son bel effroi concupiscent
Comme un poupou chéri mon sexe est innocent
D'être anxieux seul et debout comme une borne
Seigneur le Christ est nu jetez jetez sur lui
ha robe sans couture éteignez les ardeurs
Au puits vont se noyer tant de tintements d'beures
Quand isochrones choient des gouttes d'eau de pluie
]'ai veillé trente nuits sous les lauriers-roses
As-tu sué du sang Christ dans Getbsémani
Crucifié réponds Dis non Moi je le nie
Car j'ai trop espéré en vain 1'hématidrose
]'écoutais à genoux toquer les battements
Du coeur le sang roulait toujours en ses artères
Qui sont de vieux coraux ou qui sont des clavaires
Et mon aorte était avare éperdument
Une goutte tomba Sueur Et sa couleur
Lueur Le sang si rouge et j'ai ri des damnés
Puis enfin j'ai compris que je saignais du nez
A cause des parfums violents de mes fleurs
Et j'ai ri du vieil ange qui n' est point venu
De vol très indolent me tendre un beau calice
]'ai ri de 1'aile grise et j'ôte mon cilice
Tissé de crins soyeux par de cruels canuts
Vertuchou Riotant des vulves des papesses
De saintes sans tétons j'irai vers les cités
Et peut-être y mourir pour ma virginité
Parmi les mains les peaux les mots et les promesses
Maigré les autans bleus je me dresse divin
Comme un rayon de lune adoré par la mer
En vain j'ai supplié tous les saints aémères
Aucun n'a consacré mes doux pains sans levain
Et je marche Je fuis ô nuit Lilith ulule
Et clame vainement et je vois de grands yeux
S'ouvrir tragiquement O nuit je vois tes cieux
S'étoiler calmement de splendides pilules
Un squelette de reine innocente est pendu
A un long fil d'étoile en désespoir sévère
La nuit les bois sont noirs et se meurt 1'espoir vert
Quand meurt le jour avec un râle inattendu
Et je marche je fuis ô jour l'émoi de Vaube
Ferma le regard fixe et doux de vieux rubis
Des hiboux et voici le regard des brebis
Et des truies aux tétins roses comme des lobes
Des corbeaux éployés comme des tildes font
Une ombre vaine aux pauvres champs de seigle mûr
Non loin des bourgs oú des chaumières sont impures
D'avoir des hiboux morts cloués à leur plafond
Mes kilomètres longs Mes tristesses plénières
Les squelettes de doigts terminant les sapins
Ont égaré ma route et mes rêves poupins
Souvent et j'ai dormi au sol des sapinières
Enfin O soir pâmé Au bout de mes chemins
La ville m'apparut très grave au son des cloches
Et ma luxure meurt à présent que j'approche
En entrant j'ai béni les foules des deux mains
Cité j'ai ri de tes palais tels que des truffes
Blanches au sol fouillé de clairières bleues
Or mes désirs s'en vont tous à la queue leu leu
Ma migraine pieuse a coiffé sa cucuphe
Car toutes sont venues m 'avouer leurs péchés
Et Seigneur je suis saint par le voeu des amantes
Zélotide et Lorie Louise et Diamante
Ont dit Tu peux savoir ô toi 1'effarouché
Ermite absous nos fautes jamais vénielles
O toi le pur et le contrit que nous aimons
Sache nos coeurs sache les jeux que nous aimons
Et nos baisers quintessencias comme du miel
Et j'absous les aveux pourpres comme leur sang
Des poétesses nues des fées des fornarines
Aucun pauvre désir ne gonfle ma poitrine
Lorsque je vois le soir les couples s'enlaçant
Car je ne veux plus rien sinon laisser se clore
Mes yeux couple lassé au verger pantelant
Plein du râle pompeux des groseilliers sanglants
Et de la sainte cruauté des passiflores
(Alcools)
PALAIS
A Max Jacob.
Vers le palais de Rosemonde au fond du Rêve
Mes rêveuses pensées pieds nus vont en soirée
Le palais don du roi comme un roi nu s'élève
Des chairs fouettées des roses de la roseraie
On voit venir au fond du jardin mes pensées
Qui sourient du concert joué par les grenouilles
Elles ont envie des cyprès grandes quenouilles
Et le soleil miroir des roses s'est brisé
Le stigmate sanglant des mains contre les vitres
Quel archer mal blessé du couchant le troua
La résine qui rend amer le vin de Chypre
Ma bouche aux agapes d'agneau blanc l'éprouva
Sur les genoux pointus du monarque adultère
Sur le mai de son âge et sur son trente et un
Madame Rosemonde roule avec mystère
Ses petits yeux tout ronds pareils aux yeux des Huns
Dame de mes pensées au cul de perle fine
Dont ni perle ni cul n'égale Vorient
Qui donc attendez-vous
De rêveuses pensées en marche à 1'Orient
Mes plus belles voisines
Toc toc Entrez dans l'antichambre le jour baisse
La veilleuse dans 1'ombre est un bijou d'or cuit
Pendez vos têtes aux patères par les tresses
Le ciel presque nocturne a des lueurs d'aiguilles
On entra dans la salle à manger les narines
Reniflaient une odeur de graisse et de graillon
On eut vingt potages dont trois couleurs d'urine
Et le roi prit deux oeufs pochés dans du bouillon
Puis les mannitons apportèrent les viandes
Des rôtis de pensées mortes dans mon cerveau
Mes beaux rêves mort-nés en tranches bien saignantes
Et mes souvenirs faisandés en godiveaux
Or ces pensées mortes depuis des millénaires
Avaient le fade goût des grands mammouths gelés
Les os ou songe-creux venaient des ossuaires
En danse macabre aux plis de mon cervelet
Et tous ces mets criaient des choses nonpareilles
Mais nom de Dieu!
Ventre affamé n'a pas d'oreilles
Et les convives mastiquaient à qui mieux mieux
Ah! nom de Dieu! qu'ont donc crié ces entrecôtes
Ces grands pâtés ces os à moelle et mirotons
Langues de feu oú sont-elles mes pentecôtes
Pour mes pensées de tous pays de tous les temps
(Alcools)
RHÉNANES
NUIT RHÉNANE
Mon verre est plein d'un vin trembleur comme une flamme
Écoutez la chanson lente d'un batelier
Qui raconte avoir vu sous la lune sept femmes
Tordre leurs cheveux verts et longs jusqu'à leurs pieds
Debout chantez plus haut en dansant une ronde
Que je n 'entende plus le chant du batelier
Et mettez près de moi toutes les filies blondes
Au regará immobile aux nattes repliées
Le Rhin le Rhin est ivre où les vignes se mirent
Tout l'or des nuits tombe en tremblant s'y refléter
La voix chante toujours à en râle-mourir
Ces fées aux cheveux verts qui incantent 1'été
Mon verre s'est brisé comme un éclat de rire
MAI
Le mai le joli mai en barque sur le Rhin
Des dames regardaient du haut de la montagne
Vous êtes si jolies mais la barque s'éloigne
Qui donc a fait pleurer les saules riverains
Or des vergers fleuris se figeaient en arrière
Les pétales tombés des cerisiers de mai
Sont les ongles de celle que j'ai tant aimée
Les pétales flétris sont comme ses paupières
Sur le chemin du bord du fleuve lentement
Un ours un singe un chien menés par des tziganes
Suivaient une roulotte traînée par un âne
Tandis que s'éloignait dans les vignes rhénanes
Sur un fifre lointain un air de régiment
Le mai le joli mai a paré les ruines
De lierre de vigne vierge et de rosiers
Le vent du Rhin secoue sur le bord les osiers
Et les roseaux jaseurs et les fleurs nues des vignes
LA SYNAGOGUE
Ottomar Scholem et Abraham Loeweren
Coiffés de feutres verts le matin du sabbat
Vont à la synagogue en longeant le Rhin
Et les coteaux où les vignes rougissent là-bas
Ils se disputent et crient des choses qu'on ose à peine traduire
Bâtard conçu pendant les règles ou Que le diable entre dans ton
père
Le vieux Rhin soulève sa face ruisselante et se détourne pour sourire
Ottomar Scholem et Abraham Loeweren sont en colère
Parce que pendant le sabbat on ne doit pas fumer
Landis que les chrétiens passent avec des cigares allumés
Et parce qu' Ottomar et Abraham aitnent tous deux
Lia aux yeux de brebis et dont le ventre avance un peu
Pourtant tout à 1'heure dans la synagogue l'un après 1'autre
Ils baiseront la thora en soulevant leur beau chapeau
Parmi les feuillards de la fête des cabanes
Ottomar en chantant sourira à Abraham
Ils déchanteront sans mesure et les voix graves des hommes
Feront gémir un Léviathan au fond du Rh in comme une voix
d'automne
Et dans la synagogue pleine de chapeaux on agitera les loulabim
Hanoten ne Kamoth bagoim tholahoth baleoumim
LES CLOCHES
Mon beau tzigane mon amant
Écoute les cloches qui sonnent
Nous nous aimions éperdument
Croyant n'être vus de personne
Mais nous étions bien mal cachés
Toutes les cloches à la ronde
Nous ont vus du haut des clochers
Et le disent à tout le monde
Demain Cyprien et Henri
Marie Ursule et Catherine
La boulangère et son mari
Et puis Gertrude ma cousine
Souriront quand je passerai
Je ne saurai plus où me mettre
Tu seras loin Je pleurerai
J'en mourrai peut-être
LA LORELEY
A Jean Sève.
A Bacharach il y avait une sorcière blonde
Qui laissait mourir d'amour tous les hommes à la ronde
Devant son tribunal 1'évêque la fit citer
D'avance il l'absolvit à cause de sa beauté
O belle Loreley aux yeux pleins de pierreries
De quel magicien tiens-tu ta sorcellerie
Je suis lasse de vivre et mes yeux sont maudits
Ceux qui m'ont regardée évêque en ont péri
Mes yeux ce sont des flammes et non des pierreries
Jetez jetez aux flammes cette sorcellerie
Je flambe dans ces flammes ô belle Loreley
Qu'un autre te condamne tu m'as ensorcelé
Evêque vous riez Priez plutôt pour moi la Vierge
Faites-moi donc mourir et que Dieu vous protège
Mon amant est parti pour un pays lointain
Faites-moi donc mourir puisque je naime rien
Mon coeur me fait si mal il faut bien que je meure
Si je me regardais il faudrait que j'en meure
Mon coeur me fait si mal depuis qu'il n'est plus
Mon coeur me fit si mal du jour où il s'en alla
L 'évêque fit venir trois chevaliers avec leurs lances
Menez jusqu'au couvent cette femme en démence
Va t'en Lore en folie va Lore aux yeux tremblants
Tu seras une nonne vêtue de noir et blanc
Puis ils s'en allèrent sur la route tous les quatre
La Loreley les implorait et ses yeux brillaient comme des astres
Chevaliers laissez-moi monter sur ce rocher si haut
Pour voir une fois encore mon beau château
Pour me mirer une fois encore dans le fleuve
Puis j'irai au couvent des vierges et des veuves
Là-baut le vent tordait ses cheveux déroulés
Les chevaliers criaient Loreley Loreley
Tout là-bas sur le Rhin s'en vient une nacelle
Et mon amant s'y tient il m'a vue il m'appelle
Mon coeur devient si doux c'est mon amant qui vient
Elle se penche alors et tombe dans le Rhin
Pour avoir vu dans Veau la belle Loreley
Ses yeux couleur du Rhin ses cheveux de soleil
SCHINDERHANNES
A Maritts-Ary Leblond.
Dans la forêt avec sa bande
Schinderhannes s'est desarmé
Le brigand près de sa brigande
Hennit d'amour au joli mai
Benzei accroupi lit la Bible
Sans voir que son chapeau pointu
A plume d'aigle sert de cible
A Jacob Born le mal foutu
Juliette Blaesius qui rote
Fait semblant d'avoir le hoquet
Hannes pousse une fausse note
Quand Schulz vient portant un baquet
Et s'écrie en versant des larmes
Baquet plein de vin parfumé
Viennent aujourd' hui les gendarmes
Nous aurons bu le vin de mai
Allons Julia la mam'zelle
Bois avec nous ce clair bouillon
D'herbes et de vin de Moselle
Prosit Bandit en cotillon
Cette brigande est bientôt soûle
Et veut Hannes qui n'en veut pas
Pas d'amour maintenant ma poule
Sers-nous un bon petit repas
Il faut ce soir que j' assassine
Ce riche juif au bord du Rhin
Au clair des torches de résine
La fleur de mai c'est le florin
On mange alors toute la bande
Pète et rit pendant le diner
Puis s'attendrit à 1'allemande
Avant d'aller assassinar
RHÉNANE D'AUTOMNE
A Toussaint-Luca.
Les enfants des morts vont jouer
Dans le cimetière
Martin Gertrude Hans et Henri
Nul coq na chanté aujourd'hui
Kikiriki
Les vieilles femmes
Tout en pleurant cheminent
Et les bons ânes
Braillent hi han et se mettent à brouter les fleurs
Des couronnes mortuaires
C'est le jour des morts et de toutes leurs âmes
Les enfants et les vieilles femmes
Allument des bougies et des cierges
Sur chaque tombe catholique
Les voiles des vieilles
Les nuages du ciel
Sont comme des barbes de biques
L'air tremble de flammes et de prières
Le cimetière est un beau jardin
Plein de saules gris et de romarins
Il vous vient souvent des amis qu'on enterre
Ah ! que vous êtes bien dans le beau cimetière
Vous mendiants morts saouls de bière
Vous les aveugles comme le destin
Et vous petits enfants morts en prière
Ah ! que vous êtes bien dans le beau cimetière
Vous bourgmestres vous bateliers
Et vous conseillers de régence
Vous aussi tziganes sans papiers
La vie vous pourrit dans la panse
La croix vous pousse entre les pieds
Le vent du Rhin ulule avec tous les hiboux
Il éteint les cierges que toujours les enfants rallument
Et les feuilles mortes
Viennent couvrir les morts
Des enfants morts parlent parfois avec leur mère
Et des mortes parfois voudraient bien revenir
Oh ! je ne veux pas que tu sortes
L'automne est plein de mains coupées
Non non ce sont des feuilles mortes
Ce sont les mains des chères mortes
Ce sont tes mains coupées
Nous avons tant pleuré aujourd'hui
Avec ces morts leurs enfants et les vieilles femmes
Sous le ciel sans soleil
Au cimetière plein de flammes
Puis dans le vent nous nous en retournâmes
A nos pieds roulaient des châtaignes
Dont les bogues étaient
Comme le coeur blessé de la madone
Dont on doute si elle eut la peau
Couleur des châtaignes d'automne
LES SAPINS
Les sapins en bonnets pointus
De longues robes revêtus
Comme des astrologues
Saluent leurs frères abattus
Les bateaux qui sur le Rhin voguent
Dans les sept arts endoctrinés
Par les vieux sapins leurs aînés
Qui sont de grands poètes
Ils se savent prédestinés
A briller plus que des planètes
A briller doucement changés
En étoiles et enneigés
Aux Noëls bienheureuses
Fêtes des sapins ensongés
Aux longues branches langoureuses
Les sapins beaux musiciens
Chantent des noêls anciens
Au vent des soirs d'automne
Ou bien graves magiciens
Incantent le ciel quand il tonne
Des rangées de blancs chérubins
Remplacent 1'hiver les sapins
Et balancent leurs ailes
L'été ce sont de grands rabbins
Ou bien de vieilles demoiselles
Sapins médecins divagants
Ils vont offrant leurs bons onguents
Quand la montagne accouche
De temps en temps sous l'ouragan
Un vieux sapin geint et se couche
LES FEMMES
Dans la maison du vigneron les femmes cousent
Lenchen remplis le poêle et mets l'eau du café
Dessus - Le chat s'étire après s'être chauffé
- Gertrude et son voisin Martin enfin s'épousent
Le rossignol aveugle essaya de chanter
Mais 1'effraie ululant il trembla dans sa cage
Ce cyprès là-bas a 1'air du pape en Voyage
Sous la neige - Le facteur vient de s'arrêter
Pour causer avec le nouveau maítre d'école
- Cet hiver est très froid le vin sera très bon
- Le sacristain sourd et boiteux est moribond
- La fille du vieux bourgmestre brode une étole
Pour la fête du curé La forêt là-bas
Grâce au vent chantait à voix grave de grand orgue
Le songe Herr Traum survint avec sa soeur Frau Sorge
Kaethi tu n'as bien raccommodé ces bas
- Apporte le café le beurre et les tartines
La marmelade le saindoux un pot de lait
- Encore un peu de café Lenchen s'il te plaît
- On dirait que le vent dit des phrases latines
- Encore un peu de café Lenchen s'il te plaît
- Lotte es-tu triste O petit coeur - Je crois qu'elle aime
- Dieu garde - Pour ma part je n'aime que moi-même
- Chut A présent grand-mère dit son chapelet
- Il me faut du sucre candi Leni je tousse
- Pierre mène son furet chasser les lapins
Le vent faisait danser en rond tous les sapins
Lotte 1'amour rend triste - Ilse la vie est douce
La nuit tombait Les vignobles aux ceps tordus
Devenaient dans 1'obscurité des ossuaires
En neige et repliés gisaient là des suaires
Et des chiens aboyaient aux passants morfondus
Il est mort écoutez La cloche de l'église
Sonnait tout doucement la mort du sacristain
Lise il faut attiser le poêle qui s'éteint
Les femmes se signaient dans la nuit indécise
Septembre 1901-mai 1902.
(Alcools)
ZONE
À la fin tu es las de ce monde ancien
Bergère ô tour Eiffel le troupeau des ponts bêle ce matin
Tu en as assez de vivre dans 1'antiquité grecque et romaine
Ici même les automobiles ont 1'air d'être anciennes
La religion seule est restée toute neuve la religion
Est restée simple comme les hangars de Port-Aviation
Seul en Europe tu n'es pas antique ô Christianisme
L'Européen le plus moderne c'est vous Pape Pie X
Et toi que les fenêtres observent la honte te retient
D'entrer dans une église et de t'y confesser ce matin
Tu lis les prospectus les catalogues les affiches qui chantent tout haut
Voilà la poésie ce matin et pour la prose il y a les journaux
Il y a les livraisons à 25 centimes pleines d'aventures policières
Portraits des grands hommes et mille titres divers
J'ai vu ce matin une jolie rue dont j'ai oublié le nom
Neuve et propre du soleil elle était le clairon
Les directeurs les ouvriers et les belles sténo-dactylographes
Du lundi matin au samedi soir quatre fois par jour y passent
Le matin par trois fois la sirène y gémit
Une cloche rageuse y aboie vers midi
Les inscriptions des enseignes et des murailles
Les plaques les avis à la façon des perroquets criaillent
J'aime la grâce de cette rue industrielle
Située à Paris entre la rue Aumont-Thiéville et 1'avenue des Ternes
Voilà Ia jeune rue et tu n'es encore qu'un petit enfant
Ta mère ne t'habille que de bleu et de blanc
Tu es très pieux et avec le plus ancien de tes camarades René Dalize
Vous n'aimez rien tant que les pompes de 1'Èglise
Il est neuf heures le gaz est baissé tout bleu vous sortez du dortoir
en cachette
Vous priez toute Ia nuit dans la chapelle du collège
Tandis qu'éternelle et adorable profondeur améthyste
Tourne à jamais la flamboyante gloire du Christ
Cest le beau lys que tous nous cultivons
Cest la torche aux cheveux roux que n'éteint pas le vent
Cest le fils pâle et vermeil de la douloureuse mère
Cest l'arbre toujours touffu de toutes les prières
Cest la double potence de 1'honneur et de 1'éternité
Cest 1'étoile à six branches
Cest Dieu qui meurt le vendredi et ressuscite le dimanche
Cest le Christ qui monte au ciel mieux que les aviateurs
Il détient le record du monde pour la hauteur
Pupille Christ de 1'oeil
Vingtième pupille des siècles il sait y faire
Et changé en oiseau ce siècle comme Jésus monte dans l'air
Les diables dans les abîmes lèvent la tête pour le regarder
Ils disent qu'il imite Simon Mage en Judée
Ils crient s'il sait voler qu'on l'appelle voleur
Les anges voltigent autour du joli voltigeur
Icare Enoch Elie Apollonius de Thyane
Flottent autour du premier aéroplane
Ils s'écartent parfois pour laisser passer ceux que transporte la Sain-
te-Eucharistie
Ces prêtres qui montent éternellement élevant 1'hostie
L'avion se pose en fin sans refermer les ailes
Le ciel s'emplit alors de millions d'hirondelles
A tire-d'aile viennent les corbeaux les faucons les hiboux
D'Afrique arrivent les ibis les flamants les marabouts
L 'oiseau Roc célébré par les conteurs et les poètes
Plane tenant dans les serres le crâne d'Adam la première tête
L'aigle fond de L'horizon en poussant un grand cri
Et d'Amérique vient le petit colibri
De Chine sont venus les pihis longs et souples
Qui n'ont qu'une seule aile et qui volent par couples
Puis voici La colombe esprit immaculé
Qu'escortent l'oiseau-lyre et le paon ocellé
Le phénix ce bûcher qui soi-même s'engendre
Un instant voile tout de son ardente cendre
Les sirènes laissant les périlleux détroits
Arrivent en chantant bellement toutes trois
Et tous aigle phénix et pihis de la Chine
Fraternisent avec la volante machine
Maintenant tu marches dans Paris tout seul parmi la foule
Des troupeaux d'autobus mugissants près de toi roulent
L'angoisse de 1'amour te serre le gosier
Comme si tu ne devais jamais plus être aimé
Si tu vivais dans l'ancien temps tu entrerais dans un monastère
Vous avez honte quand vous vous surprenez à dire une prière
Tu te moques de toi et comme le feu de l'Enfer ton rire pétille
Les étincelles de ton rire dorent le fond de ta vie
Cest un tableau pendu dans un sombre musée
Et quelquefois tu vas le regarder de près
Aujourd'hui tu marches dans Paris les femmes sont ensanglantées
Cétait et je voudrais ne pas m'en souvenir c'était au déclin de la
beauté
Entourée de flammes ferventes Notre-Dame m'a regardé à Chartres
Le sang de votre Sacré-Coeur m'a inondé à Montmartre
Je suis malade d'ouï'r les paroles bienheureuses
L'amour dont je souffre est une maladie honteuse
Et l'image qui te possède te fait survivre dans l'insomnie et dans
l'angoisse
Cest toujours près de toi cette image qui passe
Maintenant tu es au bord de la Méditerranée
Sous les citronniers qui sont en fleur toute 1'année
Avec tes amis tu te promènes en barque
L'un est Nissard il y a un Mentonasque et deux Turbiasques
Nous regardons avec effroi les poulpes des profondeurs
Et parmi les algues nagent les poissons Images du Sauveur
Tu es dans le jardin d'une auberge aux environs de Prague
Tu te sens tout heureux une rose est sur la table
Et tu observes au lieu d'écrire ton conte en prose
La cétoine qui dort dans le coeur de la rose
Épouvanté tu te vois dessiné dans les agates de Saint-Vit
Tu étais triste à mourir le jour où tu t'y vis
Tu ressembles au Lazare affolé par le jour
Les aiguilles de 1'borloge du quartier juif vont à rebours
Et tu recules aussi dans ta vie lentement
En montant au Hradchin et le soir en écoutant
Dans les tavernes chanter des chansons tchèques
Te voici à Marseille au milieu des pastèques
Te voici à Coblence à l'hôtel du Géant
Te voici à Rome assis sous un néflier du Japon
Te voici à Amsterdam avec une jeune fille que tu trouves belle et
qui est laide
Elle doit se marier avec un étudiant de Leyde
On y loue des chambres en latin Cubicula locanda
]e m'en souviens j'y ai passé trois jours et autant à Gouda
Tu es à Paris chez le juge d'instruction
Comme un criminei on te met en état d'arrestation
Tu as fait de douloureux et de joyeux voyages
Avant de fapercevoir du mensonge et de 1'âge
Tu as souffert de 1'amour à vingt et à trente ans
J'ai vécu comme un fou et j'ai perdu mon temps
Tu n'oses plus regarder tes mains et à tous moments je voudrais
sangloter
Sur toi sur celle que j'aime sur tout ce qui t'a épouvanté
Tu regardes les yeux pleins de larmes ces pauvres émigrants
Ils croient en Dieu ils prient les femmes allaitent des enfants
Ils emplissent de leur odeur le hall de la gare Saint-Lazare
Ils ont foi dans leur étoile comme les rois-mages
Ils espèrent gagner de 1'argent dans 1'Argentine
Et revenir dans leur pays après avoir fait fortune
Une famille transporte un édredon rouge comme vous transportez
votre coeur
Cet édredon et nos rêves sont aussi irréels
Quelques-uns de ces émigrants restent ici et se logent
Rue des Rosiers ou me des Ècouffes dans des bouges
Je les ai vus souvent le soir ils prennent 1'air dans la rue
Et se déplacent rarement comme les pièces aux échecs
Il y a surtout des Juifs leurs femmes portent perruque
Elles restent assises exsangues au fond des boutiques
Tu es debout devant le zinc d'un bar crapuleux
Tu prends un café à deux sous parmi les malheureux
Tu es la nuit dans un grand restaurant
Ces femmes ne sont pas méchantes elles ont des soucis cependant
Toutes même la plus laide a fait souffrir son amant
Elle est la fille d'un sergent de ville de Jersey
Ses mains que je n'avais pas vues sont dures et gercées
]'ai une pitié immense pour les coutures de son ventre
J'humilie maintenant à une pauvre fille au rire horrible ma bouche
Tu es seul le matin va venir
Les laitiers font tinter leurs bidons dans les rues
La nuit s'éloigne ainsi quune belle Métive
Cest Ferdine la fausse ou Léa l'attentive
Et tu bois cet alcool brûlant comme ta vie
Ta vie que tu bois comme une eau-de-vie
Tu marches vers Auteuil tu veux aller chez toi à pied
Dormir parmi tes fetiches d'Océanie et de Guinée
Ils sont des Christ d'une autre forme et d'une autre croyance
Ce sont les Christ inférieurs des obscures espérances
Adieu Adieu
Soleil cou coupé
(Alcools)
L'ÉMIGRANT DE LANDOR ROAD
A André Billy.
Le chapeau à la main il entra du pied droit
Chez un tailleur très chic et fournisseur du roi
Ce commerçant venait de couper quelques têtes
De mannequins vêtus comme il faut qu'on se vête
La foule en tous sens remuait en mêlant
Des ombres sans amour qui se traînaient par terre
Et des mains vers le ciel pleins de lacs de lumière
S'envolaient quelquefois comme des oiseaux blancs
Mon bateau partira demain pour l'Amérique
Et je ne reviendrai jamais
Avec 1'argent gagné dans les prairies lyriques
Guider mon ombre aveugle en ces rues que j'aimais
Car revenir c'est bon pour un soldat des Indes
Les boursiers ont vendu tous mes crachats d'or fin
Mais habillé de neuf je veux dormir enfin
Sous des arbres pleins d'oiseaux muets et de singes
Les mannequins pour lui s'étant déshabillés
Battirent leurs habits puis les essayèreut
Le vêtement d'un lord mort sans avoir payé
Au rabais 1'habilla comme un milliormaire
Au-dehors les années
Regardaient la vitrine
Les mannequins victimes
Et passaient enchainées
Intercalées dans Van c'étaient les journées veuves
Les vendredis sanglants et lents d'enterrements
De blancs et de tout noirs vaincus des cieux qui pleuvent
Quand la femme du diable a battu son amant
Puis dans un port d'automne aux feuilles indécises
Quand les mains de la foule y feuillolaient aussi
Sur le pont du vaisseau il posa sa valise
Et s'assit
Les vents de 1'Océan en soufflant leurs menaces
Laissaient dans ses cheveux de longs baisers mouillés
Des émigrants tendaient vers le port leurs mains lasses
Et d'autres en pleurant s'étaient agenouillés
Il regarda longtemps les rives qui moururent
Seuls des bateaux d'enfant tremblaient à l'horizon
Un tout petit bouquet flottant à l'aventure
Couvrit l'Océan d'une immense floraison
Il aurait voulu ce bouquet comme la gloire
Jouer dans d'autres mers parmi tous les dauphins
Et l'on tissait dans sa mémoire
Une tapisserie sans fin
Qui figurait son histoire
Mais pour noyer changées en poux
Ces tisseuses têtues qui sans cesse interrogent
Il se maria comme un doge
Aux cris d'une sirène moderne sans époux
Gonfle-toi vers la nuit O Mer Les yeux des squales
jusqu'à l'aube ont guetté de loin avidement
Des cadavres de jours rongés par les étoiles
Parmi le bruit des flots et des derniers serments
(Alcools)
CORTÈGE
A M. Léon Bailby.
Oiseau tranquille au vol inverse oiseau
Qui nidifie en 1'air
A la limite où notre sol brille déjà
Baisse ta deuxième paupière la terre t'éblouit
Quand tu léves la tête
Et moi aussi de près je suis sombre et terne
Une brume qui vient d'obscurcir les lanternes
Une main qui tout à coup se pose devant les yeux
Une voûte entre vous et toutes les lumières
Et je m'éloignerai m'illuminant au milieu d'ombres
Et d'alignements d'yeux des astres bien-aimés
Oiseau tranquille au vol inverse oiseau
Qui nidifie en 1'air
A la limite où brille déjà ma mémoire
Baisse ta deuxième paupière
Ni à cause du soleil ni à cause de la terre
Mais pour ce feu oblong dont 1'intensité ira s'augmentant
Au point qu'il deviendra un jour 1'unique lumière
Un jour
Un jour je m'attendais moi-même
Je me disais Guillaume il est temps que tu viennes
Pour que je sache enfin celui-là que je suis
Moi qui connais les autres
Je les confiais par les cinq sens et quelques autres
Il me suffit de voir leurs pieds pour pouvoir refaire ces gens à
milliers
De voir leurs pieds paniques un seul de leurs cheveux
Ou voir leur langue quand il me plaît de faire le médecin
Ou leurs enfants quand il me plait de faire le prophète
Les vaisseaux des armateurs la plume de mes confrères
La monnaie des aveugles les mains des muets
Ou bien encore à cause du vocabulaire et non de 1'écriture
Une lettre écrite par ceux qui ont plus de vingt ans
Il me suffit de sentir 1'odeur de leurs églises
l'odeur des fleuves dans leurs villes
Le parfum des fleurs dans les jardins publics
O Corneille Agrippa l'odeur d'un petit chien m'eût suffi
Pour décrire exactement tes concitoyens de Cologne
Leurs rois-mages et la ribambelle ursuline
Qui t'inspirait 1'erreur touchant toutes les femmes
Il me suffit de goûter la saveur de laurier qu'on cultive pour que
j'aime ou que je bafoue
Et de toucher les vêtements
Pour ne pas douter si Von est frileux ou non
O gens que je connais
Il me suffit d'entendre le bruit de leurs pas
Pour pouvoir indiquer à jamais la direction qu'ils ont prise
Il me suffit de tous ceux-là pour me croire le droit
De ressusciter les autres
Un jour je m'attendais moi-même
Je me disais Guillaume il est temps que tu viennes
Et d'un lyrique pas s'avançaient ceux que j'aime
Parmi lesquels je n'étais pas
Les géants couverts d'algues passaient dans leurs villes
Sous-marines où les tours seules étaient des îles
Et cette mer avec les clartés de ses profondeurs
Coulait sang de mes veines et fait battre mon coeur
Puis sur terre il venait mille peuplades blanches
Dont chague homme tenait une rose à la main
Et le langage qu'ils inventaient en chemin
Je l'appris de leur bouche et je le parle encore
Le cortège passait et j'y cherchais mon corps
Tous ceux qui survenaient et n'étaient pas moi-même
Amenaient un à un les morceaux de moi-même
On me bâtit peu à peu comme on élève une tour
Les peuples s'entassaient et je parus moi-même
Qu'ont formé tous les corps et les choses humaines
Temps passés Trépassés Les dieux qui me formâtes
Je ne vis que passant ainsi que vous passâtes
Et détournant mes yeux de ce vide avenir
En moi-même je vois tout le passé grandir
Rien n´est mort que ce qui n'existe pas encore
Près du passé luisant demain est incolore
Il est informe aussi près de ce qui parfait
Présente tout ensemble et 1'effort et l'effet
(Alcools)
VENDÉMIAIRE
Hommes de 1'avenir souvenez-vous de moi
Je vivais à l'époque où finissaient les rois
Tour à tour ils mouraient silencieux et tristes
Et trois fois courageux devenaient trismégistes
Que Paris était beau à la fin de septembre
Chaque nuit devenait une vigne où les pampres
Répandaient leur clarté sur la ville et là-haut
Astres mûrs becquetés par les ivres oiseaux
De ma gloire attendaient la vendange de Vaube
Un soir passant le long des quais déserts et sombres
En rentrant à Auteuil j'entendis une voix
Qui chantait gravement se taisant quelquefois
Pour que parvînt aussi sur les bords de la Seine
La plainte d'autres voix limpides et lointaines
Et j'écoutai longtemps tous ces chants et ces cris
Qu'éveillait dans la nuit la chanson de Paris
J'ai soif villes de France et d'Europe et du monde
Venez toutes couler dans ma gorge profonde
Je vis alors que déjà ivre dans la vigne Paris
Vendangeait le raisin le plus doux de la terre
Ces grains miraculeux aui aux treilles chantèrent
Et Rennes répondit avec Quimper et Vannes
Nous voici ô Paris Nos maisons nos habitants
Ces grappes de nos sens qu'enfanta le soleil
Se sacrifient pour te désaltérer trop avide merveille
Nous t 'apportons tous les cerveaux les cimetières les murai
Ces berceaux pleins de cris que tu n'entendras pas
Et d'amont en aval nos pensées ô rivières
Les oreilles des écoles et nos mains rapprochées
Aux doigts allongés nos mains les clochers
Et nous t'apportons aussi cette souple raison
Que le mystère clôt comme une porte la maison
Ce mystère courtois de la galanterie
Ce mystère fatal fatal d'une autre vie
Double raison qui est au-delà de la beauté
Et que la Grèce n'a pas connue ni l'Orient
Double raison de la Bretagne où lame à lame
L'océan châtre peu à peu l'ancien continent
Et les villes du Nord répondirent gaiement
O Paris nous voici boissons vivantes
Les viriles cités où dégoisent et chantent
Les métalliques saints de nos saintes usines
Nos cheminées à ciel ouvert engrossent les nuées
Comme fit autrefois 1'Ixion mécanique
Et nos mains innombrables
Usines manufactures fabriques mains
les ouvriers nus semblables à nos doigts
Fabriquent du réel à tant par heure
Nous te donnons tout cela
Et Lyon répondit tandis que les anges de Fourvières
Tissaient un ciel nouveau avec la soie des prières
Désaltère-toi Paris avec les divines paroles
Que mes lèvres le Rhône et la Saône murmurent
Toujours le même culte de sa mort renaissant
Divise ici les saints et fait pleuvoir le sang
Heureuse pluie ô gouttes tièdes ô douleur
Un enfant regarde les fenêtres s'ouvrir
Et des grappes de têtes à d'ivres oiseaux s'offrir
Les villes du Midi répondirent alors
Noble Paris seule raison qui vis encore
Qui fixes notre humeur selon ta destinée
Et toi qui te retires Méditerranée
Partagez-vous nos corps comme on rompt des hosties
Ces très hautes amours et leur danse orpheline
Deviendront ô Paris le vin pur que tu aimes
Et un râle infini qui venait de Sicile
Signifiait en battement d'ailes ces paroles
Les raisins de nos vignes on les a vendangés
Et ces grappes de morts dont les grains allongés
Ont la saveur du sang de la terre et du sel
Les voici pour ta soif ô Paris sous le del
Obscurci de nuées faméliques
Que caresse Ixion le créateur oblique
Et où naissent sur la mer tous les corbeaux d'Afrique
O raisins Et ces yeux temes et en famille
l'avenir et la vie dans ces treilles s'ennuyent
Mais où est le regard lumineux des sirènes
Il trompa les marins qu'aimaient ces oiseaux-là
Il ne tournera plus sur l'écueil de Scylla
chantaient les trois voix suaves et sereines
Le détroit tout à coup avait changé de face
Visages de la chair de 1'onde de tout
Ce que Von peut imaginer
Vous n'êtes que des masques sur des faces masquées
Il souriait jeune nageur entre les rives
Et les noyés flottant sur son onde nouvelle
Fuyaient en le suivant les chanteuses plaintives
Elles dirent adieu au gouffre et à l'écueil
A leurs pâles époux couchés sur les terrasses
Puis ayant pris leur vol vers le brûlant soleil
Les suivirent dans l'onde où s'enfoncent les astres
Lorsque la nuit revint couverte d'yeux ouverts
Errer au site où l'hydre a sifflé cet hiver
Et j'entendis soudain ta voix impérieuse
O Rome
Maudire d'un seul coup mes anciennes pensées
Et le ciel où L'AMOUR guide les destinées
Les feuillards repoussés sur l'arbre de la croix
Et même la fleur de lys qui meurt au Vatican
Macèrent dans le vin que je t'offre et qui a
La saveur du sang pur de celui qui connaît
Une autre liberté végétale dont tu
Ne sais pas que c'est elle la suprême vertu
Une couronne du trirègne est tombée sur les dalles
Les hiérarques la foulent sous leurs sandales
O splendeur démocratique qui pâlit
Vienne la nuit royale où l'on tuera les bêtes
La louve avec 1'agneau l'aigle avec la colombe
Une foule de rois ennemis et cruels
Ayant soif comme toi dans la vigne éternelle
Sortiront de la terre et viendront dans les airs
Pour boire de mon vin par deux fois millénaire
La Moselle et le Rhin se joignent en Silence
Cest l'Europe qui prie nuit et jour à Coblence
Et moi qui m'attardais sur le quai à Auteuil
Quand les heures tombaient parfois comme les feuilles
Du cep lorsqu'il est temps j'entendis la prière
Qui joignait la limpidité de ces rivières
O Paris le vin de ton pays est meilleur que celui
Qui pousse sur nos bords mais aux pampres du nord
Tous les grains ont mûri pour cette soif terrible
Mes grappes d'hommes forts saignent dans le pressoir
Tu boiras à longs traits tout le sang de l'Europe
Parce que tu es beau et que seul tu es noble
Parce que c'est dans toi que Dieu peut devenir
Et tous mes vignerons dans ces belles maisons
Qui reflètent le soir leurs feux dans nos deux eaux
Dans ces belles maisons nettement Manches et noires
Sans savoir que tu es la réalité chantent ta gloire
Mais nous liquides mains jointes pour la prière
Nous menons vers le sel les eaux aventurières
Et la ville entre nous comme entre des ciseaux
Ne reflète en dormant nul feu dans ses deux eaux
Dont quelque sifflement lointain parfois s'élance
Troublant dans leur sommeil les filies de Coblence
Les villes répondaient maintenant par centaines
Je ne distinguais plus leurs paroles lointaines
Et Trèves la ville ancienne
A leur voix mêlait la sienne
L'univers tout entier concentré dans ce vin
Qui contenait les mers les animaux les plantes
Les cités les destins et les astres qui chantent
Les hommes à genoux sur la rive du ciel
Et le docile fer notre bon compagnon
Le feu qu'il faut aimer comme on s'aime soi-même
Tous les fiers trépassés qui sont un sous mon front
L'éclair qui luit ainsi qu'une pensée naissante
Tous les noms six par six les nombres un à un
Des kilos de papier tordus comme des flammes
Et ceux-là qui sauront blanchir nos ossements
Les bons vers immortels qui s'ennuient patiemment
Des années rangées en bataille
Des forêts de crucifix et mes demeures lacustres
Au bord des yeux de celle que j'aime tant
Les fleurs qui s'écrient hors de bouches
Et tout ce que je ne sais pas dire
Tout ce que je ne connaîtrai jamais
Tout cela tout cela changé en ce vin pur
Dont Paris avait soif
Me fut alors présenté
Actions belles journées sommeils terribles
Végétation Accouplements musiques éternelles
Mouvements Adorations douleur divine
Mondes qui vous ressemblez et qui nous ressemblez
Je vous ai bus et ne fus pas désaltéré
Mais je connus dès lors quelle saveur a l'univers
Je suis ivre d'avoir bu tout l'univers
Sur le quai d'où je voyais 1'onde couler et dormir les bélandres
Écoutez-moi je suis le gosier de Paris
Et je boirai encore s'il me plaît 1'univers
Écoutez mes chants d'universelle ivrognerie
Et la nuit de septembre s'achevait lentement
Les feux rouges des ponts s'éteignaient dans la Seine
Les étoiles mouraient le jour naissait à peine
(Alcools)
LE VOYAGEUR
A Fernand Fleuret.
Ouvrez-moi cette porte où je frappe en pleurant
La vie est variable aussi bien que 1'Euripe
Tu regardais un banc de nuages descendre
Avec le paquebot orphelin vers les fièvres futures
Et de tous ces regreis de tous ces repentirs
Te souviens-tu
Vagues poissons arqués fleurs submarines
Une nuit c'était la mer
Et les fleuves s'y répandaient
Je m'en souviens je m'en souviens encore
Un soir je descendis dans une auberge triste
Auprès de Luxembourg
Dans le fond de la salle il s'envolait un Christ
Quelqu'un avait un furet
Un autre un hérisson
Von jouait aux cartes
Et toi tu m'avais oublié
Te souviens-tu du long orphelinat des gares
Nous traversâmes des villes qui tout le jour tournaient
Et vomissaient la nuit le soleil des journées
O matelots ô femmes sombres et vous mes compagnons
Souvenez-vous-en
Deux matelots qui ne s'étaient jamais quittés
Deux matelots qui ne s'étaient jamais parlé
Le plus jeune en mourant tomba sur le côté
O vous chers compagnons
Sonneries électriques des gares chant des moissonneuses
Traîneau d'un boucher régiment des rues sans nombre
Cavalerie des ponts nuits livides de l'alcool
Les villes que j'ai vues vivaient comme des folies
Te souviens-tu des banlieues et du troupeau plaintif des paysages
Les cyprès projetaient sous la lutte leurs ombres
]'écoutais cette nuit au déclin de l'été
Un oiseau langoureux et toujours irrité
Et le bruit éternel d'un fleuve large et sombre
Mais tandis que mourants roulaient vers 1'estuaire
Tous les regards tous les regards de tous les yeux
Les bords étaient déserts herbus silencieux
Et la montagne à 1'autre rive était très claire
Alors sans bruit sans qu'on pût voir rien de vivant
Contre le mont passèrent des ombres vivaces
De profil ou soudain tournant leurs vagues faces
Et tenant 1'ombre de leurs lances en avant
Les ombres contre le mont perpendiculaire
Grandissaient ou parfois s'abaissaient brusquement
Et ces ombres barbues pleuraient humainement
En glissant pas à pas sur la montagne claire
Qui dono reconnais-tu sur ces vieilles photographies
Te souviens-tu du jour où une abeille tomba dans le feu
Cétait tu t'en souviens à la fin de 1'été
Deux matelots qui ne s'étaient jamais quittés
L'aîné portait au cou une chaîne de fer
Le plus jeune mettait ses cheveux blonds en tresse
Ouvrez-moi cette porte où je frappe en pleurant
La vie est variable aussi bien que 1'Euripe
(Alcools)
LA JOLIE ROUSSE
Me voici devant tous un homme plein de sens
Connaissant la vie et de la mort ce qu'un vivant peut connaître
Ayant éprouvé les douleurs et les joies de 1'amour
Ayant su quelquefois imposer ses idées
Connaissant plusieurs langages
Ayant pas mal voyagé
Ayant vu la guerre dans 1'Artillerie et 1'Infanterie
Blessé à la tête trépané sous le chloroforme
Ayant perdu ses meilleurs amis dans l'effroyable lutte
Je sais d'ancien et de nouveau autant qu'un homme seul pourrait
des deux savoir
Et sans m'inquiéter aujourd'hui de cette guerre
Entre nous et pour nous mes amis
Je juge cette longue querelle de la tradition et de 1'invention
De l'Ordre de l'Aventure
Vous dont la bouche est faite à 1'image de celle de Dieu
Bouche qui est 1'ordre même
Soyez indulgents quand vous nous comparez
A ceux qui furent la perfection de 1'ordre
Nous qui quêtons partout ['aventure
Nous ne sommes pas vos ennemis
Nous voulons vous donner de vastes et d'étranges domaines
Ou le mystère en fleurs s'offre à qui veut le cueillir
Il y a des feux nouveaux des couleurs jamais vues
Mille phantasmes impondérables
Auxquels il faut donner de la réalité
Nous voulons explorer la bonté contrée énorme où tout se tait
Il y a aussi le temps qu'on peut chasser ou faire revenir
Pitié pour nous qui combattons toujours aux frontières
De l'illimité et de 1'avenir
Pitié pour nos erreurs pitié pour nos péchés
Voici que vient l'été la saison violente
Et ma jeunesse est morte ainsi que le printemps
O Soleil c'est le temps de la Raison ardente
Et j'attends
Pour la suivre toujours la forme noble et douce
Qu'elle prend afin que je 1'aime seulement
Elle vient et m'attire ainsi qu'un fer l'aimant
Elle a 1'aspect charmant
D'une adorable rousse
Ses cheveux sont d'or on dirait
Un bel éclair qui durerait
Ou ces flammes qui se pavanent
Dans les roses-thé qui se fanent
Mais riez riez de moi
Hommes de partout surtout gens d'ici
Car il y a tant de choses que je n'ose vous dire
Tant de choses que vous ne me laisseriez pas dire
Ayez pitié de moi
(Calligrammes)
ARBRE
A Frédéric Boutet.
Tu chantes avec les autres tandis que les phonographes galopent
sont les aveugles où s'en sont-ils allés
La seule feuille que j'aie cueillie s'est changée en plusieurs mirages
Ne m'abandonnez pas parmi cette foule de femmes au marché
Ispahan s'est fait un ciel de carreaux émaillés de bleu
Et je remonte avec vous une route aux environs de Lyon
Je n'ai pas oublié le son de la clochette d'un marchand de coco
d'autrefois
J'entends déjà le son aigre de cette voix à venir
Du camarade qui se promènera avec toi en Europe
Tout en restant en Amérique
Un enfant
Un veau dépouillé pendu à l'étal
Un enfant
Et cette banlieue de sable autour d'une pauvre ville au fond de l'est
Un douanier se tenait là comme un ange
A la porte d'un misérable paradis
Et ce voyageur épileptique écumait dans la salle d'attente des
premières
Engoulevent Blaireau
Et la Taupe-Ariane
Nous avions loué deux coupés dans le transsibérien
Tour à tour nous dormions le voyageur en bijouterie et moi
Mais celui qui veillait ne cachait point un revolver armé
Tu t'es promené à Leipzig avec une femme mince déguisée en homme
lntelligence car voilà ce que c'est qu'une femme inteligente
Et il ne faudrait pas oublier les légendes
Dame-Abonde dans un tramway la nuit au fond d'un quartier
désert
Je voyais une chasse tandis que je montais
Et 1'ascenseur s'arrêtait à chaque étage
Entre les pierres
Entre les vêtements multicolores de la vitrine
Entre les charbons ardents du marchand de marrons
Entre deux vaisseaux norvégiens amarrés à Rouen
Il y a ton image
Elle pousse entre les bouleaux de la Finlande
Ce beau nègre en acier
La plus grande tristesse
Cest quand tu reçus une carte postale de La Corogne
Le vent vient du couchant
Le métal des caroubiers
Tout est plus triste autrefois
Tous les dieux terrestres vieillissent
L'univers se plaint par ta voix
Et des êtres nouveaux surgissent
Trois par trois
(Calligrammes)
A NÎMES
A Émile Léonard.
Je me suis engagé sous le plus beau des cieux
Dans Nice la Marine au nom victorieux
Perdu parmi 900 conducteurs anonymes
Je suis un charretier du neuf charroi de Nîmes
L'Amour dit Reste ici Mais là-bas les obus
Épousent ardemment et sans cesse les buts
J'attends que le printemps commande que s'en aille
Vers le nord glorieux l'intrépide bleusaille
Les 3 servants assis dodelinent leurs fronts
brillent leurs yeux clairs comme mes éperons
Un bel après-midi de garde à 1'écurie
j'entends sonner les trompettes d'artillerie
j'admire la gaieté de ce détachement
Qui va rejoindre au front notre beau régiment
Le territorial se mange une salade
A 1'anchois en parlant de sa femme malade
4 pointeurs fixaient les bulles des niveaux
Qui remuaient ainsi que les yeux des chevaux
Le bon chanteur Girault nous chante après 9 heures
Un grand ah d'opéra toi Écoutant tu pleures
Je flatte de la main le petit canon gris
Gris comme l'eau de Seine et je songe à Paris
Mais ce pâle blessé m'a dit à la cantine
Des obus dans la nuit la splendeur argentine
Je mâche lentement ma portion de boeuf
Je me promène seul le soir de 5 à 9
Je selle mon cbeval nous battons la campagne
Je te salue au loin belle rose ô tour Magne
{Calligrammes)
GUERRE
Rameau central de combat
Contact par l'écoute
On tire dans la direction "des bruits entendas"
Les jeunes de Ia classe 1915
Et ces fils de fer électrisés
Ne pleurez donc pas sur les horreurs de la guerre
Avant elle nous n'avions que la surface
De la terre et des mers
Après elle nous aurons les abîmes
Le sous-sol et 1'espace aviatique
Maîtres du timon
Après après
Nous prendrons toutes les joies
Des vainqueurs qui se délassent
Femmes Jeux Usines Commerce
Industrie Agriculture Métal
Feu Cristal Vitesse
Voix Regard Tact à part
Et ensemble dans le tact venu de loin
De plus loin encore
De l'Au-delà de cette terre
(Calligrammes)
OCÉAN DE TERRE
A G. de Chirico
j'ai bâti une maison au milieu de 1'Océan
Ses fenêtres sont les fleuves qui s'écoulent de mes yeux
Des poulpes grouillent partout où se tiennent les murailles
Entendez battre leur triple coeur et leur bec cogner aux vitres
Maison humide
Maison ardente
Saison rapide
Saison qui chante
Les avions pondent des oeufs
Attention on va jeter 1'ancre
Attention à l'encre que l'on jette
Il serait bon que vous vinssiez du ciel
Le chèvrefeuille du ciel grimpe
Les poulpes terrestres palpitent
Et puis nous sommes tant et tant à être nos propres fossoyeurs
Pâles poulpes des vagues crayeuses ô poulpes aux becs pâles
Autour de la maison il y a cet océan que tu connais
Et qui ne se repose jamais
{Calligrammes)
EXERCICE
Vers un village de l'arrière
S'en allaient quatre bombardiers
Ils étaient couverts de poussière
Depuis la tête jusqu'aux pieds
Ils regardaient la vaste plaine
En parlant entre eux du passé
Et ne se retournaient qu'à peine
Quand un obus avait toussé
Tous quatre de la classe seize
Parlaient d'antan non d'avenir
Ainsi se prolongeait l'ascèse
Qui les exerçait à mourir
(Calligrammes)
LES FENÊTRES
Du rouge au vert tout le jaune se meurt
Quand chantent les aras dans les forêts natales
Abatis de pihis
Il y a un poème à faire sur Oiseau qui n'a qu'une aile
Nous l'enverrons en message téléphonique
Traumatisme géant
Il fait couler les yeux
Voilà une jolie jeune fille parmi les jeunes Turinaises
Le pauvre jeune homme se mouchait dans sa cravate blanche
Tu soulèveras le rideau
Et maintenant voilà que s'ouvre la fenêtre
Araignées quand les mains tissaient la lumière
Beauté pâleur insondables violets
Nous tenterons en vain de prendre du repos
On commencera à minuit
Quand on a le temps on a la liberté
Bigorneaux Lotte multiples Soleils et 1'Oursin du couchant
Une vieille paire de chaussures jaunes devant la fenêtre
Tours
Les Tours ce sont les rues
Puits
Puits ce sont les places
Puits
Arbres creux qui abritent les Câpresses vagabondes
Les Chabins chantent des airs à mourir
Aux Bobines marronnes
Et l'oie oua-oua trompette au nord
les chasseurs de ratons
Raclent les pelleteries
Ètincelant diamant
Vancouver
le train blanc de neige et de feux nocturnes fuit 1'hiver
O Paris
Du rouge au vert tout le jaune se meurt
Paris Vancouver Hyères Maintenon New-York et les Antilles
La fenêtre s'ouvre comme une orange
Le beau fruit de la lumière
(Calligrammes)
SOBRE O LIVRO
Formato: 14x21 cm
Mancha: 23 x 43 paicas
Tipologia: Classical Garamond 10/13
Papel: Offset 75 g/m
2
(miolo)
Cartão Supremo 250 g/m
2
(capa)
1
a
edição: 2003
EQUIPE DE REALIZAÇÃO
Coordenação Geral
Sidnei Simonelli
Produção Gráfica
Anderson Nobara
Edição de Texto
Nelson Luís Barbosa (Assistente Editorial)
Armando Olivetti (Preparação de Original)
Carlos Villarruel e
Fábio Gonçalves (Revisão)
Editoração Eletrônica
Lourdes Guacira da Silva Simonelli (Supervisão)
Luís Carlos Gomes (Diagramação)
deixa de exprimir também os outros dois. Assim,
o tom lírico perpassa algumas das importantes
passagens do grande romance. Este, por outro
lado, apropria-se de elementos dramáticos na
composição das cenas, a começar pelo uso das
falas diretamente apresentadas (eo só "narra-
das"). O drama recorre, desde a erupção grega,
à narrativa dos fatoso visualmente mostrados
no palco, além de depender, em geral, de efei-
tos queo estritamente líricos.
Poderia parecer mais estranho que a narra-
tiva se entranhe na poesia lírica, mas este é um
fato inescapável. Toda expressão lírica tem,
subjacente, uma "situação", isto é, algo que su-
bentende um fato, um evento mais ou menos cla-
ramente "narrado".
O trabalho de Silvana Vieira da Silva Amorim
é primoroso, por ter a coragem de lidar exata-
mente com essa existência do narrativo (o fabular,
o legendário, o mítico, o autobiográfico) na lírica
de Apollinaire. E, o que é mais importante ainda,
o texto da autora consegue trabalhar com essa
essencial narratividade sem deixar desnaturado
o essencial lirismo dos poemas. Pois, afinal, a
narratividade marca toda linguagem, toda ativi-
dade (de certa forma), toda postura humana, in-
clusive a expressão estritamente lírica.
Magaly Trindade Gonçalves
Silvana Vieira da Silva Amorim é professora de lín-
gua e literatura francesa na UNESP de Araraqua-
ra (SP). Suas pesquisas centram-se em poesia
francesa do século XX, literatura comparada e
tradução. Tem vários artigos publicados em revis-
tas especializadas.
"Em uma época na qual a poesia é freqüentemen-
te prisioneira dos sistemas e das teorias, Apollinaire
soube simplesmente ser poeta. Simplesmente, mas
totalmente: sem recusar nada do que o mundo lhe
oferece, unindo em um mesmo abraço o espetáculo
da vida, a experiência pessoal e a cultura, acolhen-
do todas as formas da expressão poética, sensível a
todos os apelos estéticos de seu tempo, salvaguar-
dando, com um sotaque inimitável, a pureza de sua
inspiração no âmago das múltiplas solicitações."
Michel Décaudin
Livros Grátis
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