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O que faz certas pessoas “estranhas” e, por isso, irritantes, enervantes,
desconcertantes e, sob outros aspectos “um problema”, é sua tendência a
obscurecer e “eclipsar” as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas. Um
retrato psicológico interessante do “viscoso”, esboçado a seguir, por Sartre, nos
ajuda a compreender a repulsão natural provocada pela presença dos “estranhos”:
O viscoso é dócil ou assim parece. Só no próprio momento em que
acredito que o possuo, eis que, por uma inversão curiosa, ele me possui
(...). Se um objeto que seguro nas mãos é sólido, posso soltá-lo quando
quiser; sua inércia simboliza, para mim, o meu poder total (...). Mas aqui
está o viscoso invertendo os termos: meu ego é subitamente
comprometido, abro as mãos, quero desfazer-me do viscoso e ele se cola
em mim, me puxa, me chupa (...). Já não sou o senhor (...). O visgo é
como um líquido visto num pesadelo, em que todas as suas propriedades
são animadas por uma espécie de vida, e volta-se contra mim(...). Se
mergulhar na água, se afunda nela, se me deixo submerso nela, não
experimento nenhum mal estar, pois não tenho qualquer medo de seja lá
como eu possa nela dissolver-me; continuo um sólido em sua liquidez. Se
me deixo submergir no viscoso, sinto que vou perder-me nele (...). Tocar
o viscoso é arriscar-se a ser dissolvido na viscosidade (SARTRE
28
apud
BAUMAN, 1998, p. 39).
A estranheza, como a viscosidade, significa a perda de liberdade, ou o medo
de que a liberdade esteja ameaçada e possa perder-se. O estranho é odioso e
temido, como o é o viscoso, e pelos mesmos motivos. A acuidade da estranheza e a
intensidade de seu ressentimento crescem com a correspondente falta de poder e
diminuem com o correspondente aumento de liberdade. É de se esperar que quanto
menos as pessoas controlam e possam controlar as suas vidas, bem como suas
identidades, mais verão as outras como viscosas e mais freneticamente tentarão
desprender-se dos estranhos que elas experimentam como uma “envolvente,
sufocante, absorvente e informe substância”:
Os estranhos são pessoas que você paga pelos serviços que elas
prestam - e pelo direito de terminar com os serviços delas logo que já não
tragam prazer”. Em nenhum momento, realmente, diz ele, os estranhos
comprometem a liberdade do consumidor de seus serviços. O tumulto e o
clamor chegam, não haja nenhum engano, de outras áreas da cidade,
que os consumidores, em busca de prazer jamais visitam, deixam viver
em paz. Essas áreas são habitadas por pessoas incapazes de escolher
com quem elas se encontram e por quanto tempo, ou de pagar para ter
suas escolhas respeitadas. Pessoas sem poder, experimentando o
mundo como uma armadilha, não como um parque de diversões;
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L’être et le néant, 1943.