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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Gilbert Isidore Lévy
A matriz do poder totalitário:
Reflexões sobre a Alemanha nacional-socialista
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
São Paulo
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
Gilbert Isidore Lévy
A matriz do poder totalitário:
Reflexões sobre a Alemanha nacional-socialista
DOUTORADO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
Tese apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para obtenção do
título de Doutor em Ciências Sociais, pela
Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, sob a orientação da Profª. Doutora
Caterina Koltai.
São Paulo
2008
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Banca Examinadora
_______________________________
_______________________________
_______________________________
_______________________________
_______________________________
A meu pai,
A Cecília, pelas inúmeras noites
roubadas,
Aos meus mestres, em particular a
Prof. Caterina Koltai.
“Das Recht hat kein Dasein für sich,
sein Wesen vielmehr ist das leben
der Menschen selbst, von einer
besonderen Seite angesehen”.
“O Direito não tem em si uma existência
própria; a sua essência é bem mais a vida
dos homens em si, considerada sob um
ângulo particular”.
Friedrich Carl von Savigny (1779-1861)
RESUMO
Esta pesquisa compreende duas partes: a matriz e as manifestações do
poder totalitário. A matriz é analisada no seu aspecto cultural, social e político,
focalizando a experiência totalitária da Alemanha nacional-socialista. A matriz
cultural evidencia a Revolução conservadora e a influência da cultura niilista, a partir
dos estudos de Louis Dupeux e de Léo Strauss. A matriz social tem como base o
trabalho de George Mosse sobre o impacto social da 1ª Guerra Mundial, que
denomina a brutalização da sociedade alemã. A matriz política procura desvelar a
essência do poder totalitário. Ela se baseia nas observações de três grandes
autores: Claude Lefort, que aponta que a raiz do totalitarismo está nas ambigüidades
e imperfeições da própria democracia, com o conceito de indeterminação
democrática. Aléxis de Tocqueville com a tirania da maioria, expressão que
caracteriza uma situação política na qual não existe contrapeso para limitar os
excessos do poder, nem proteção para garantir os direitos naturais da minoria; e,
finalmente, Giorgio Agamben, que a partir de um estudo da relação dialética entre o
poder soberano e a vida nua, aponta o perigo decorrente de uma concepção vitalista
da política, denominada por Foucault de biopolítica, quando a mesma almeja o
desenvolvimento do potencial vital de uma nação.
Dos três aspectos estudados, é na matriz política que se encontram as explicações
mais conclusivas para o surgimento do totalitarismo. A indeterminação democrática
e a politização da vida são dois temas que destacamos nesta matriz, devido à
relevância das explicações de Lefort e de Agamben, como fatores preponderantes
no desencadeamento da dinâmica totalitária. Na segunda parte, procura-se
demonstrar como essa dinâmica se expressou na Alemanha, durante o regime
nacional-socialista. Para tanto, foram pontuadas as seguintes manifestações do
poder totalitário: Identidade-völkische, Estado total, Mobilização total e Guerra total,
para finalizar com um retrato do mal totalitário.
Palavras-chave: Alemanha; Biopolítica; Imperfeições da democracia; Poder
totalitário; Nacional-socialismo; Revolução-conservadora; Tirania da maioria.
ABSTRACT
This research encompasses two parts: a matrix and the manifestations of the
totalitarian Power. The matrix is analyzed on its cultural, social and political aspects,
focusing on the National Socialist German totalitarian experience. The cultural matrix
puts into evidence a Conservative Revolucionary movement and the influence of the
nihilist culture on national Socialist speech, from the studies of Louis Dupeux and of
Léo Strauss. The social matrix is based on the work developed by George Mosse
regarding the social impact of the 1st World War on the civilian society, on which he
denominates the brutalization of the German society. The political matrix seeks to
unveil the essence of the totalitarian Power. It is based on the observations of three
important authors: Claude Lefort, who points out that the roots of the totalitarianism
are in the ambiguities and imperfections of the democracy itself, with the concept of
democratic indetermination. Aléxis de Tocqueville, with the tyranny of the majority,
an expression that configures a political situation in which there is no counterweight
to limit the excesses of power, nor protection to grant the natural rights of the
minority, and, finally, Giorgio Agamben, starting from a study of the dialectical relation
between the sovereign Power and the bare life, points to the danger coming from the
vitalist political conception, denominated biopolitics by Foucault, when the same
seeks the development of the vital potential of a nation. From the three aspects
studied, in the political matrix the more conclusive explanations for the emergence of
the totalitarianism is found. The democratic indetermination and the life´s politization
are two subjects that stand out in this matrix, due to the relevance of the explanations
from Lefort and Agamben, as the preponderant factors on the emergence of
totalitarian dynamics.
In the second part, the purpose is to demonstrate how this dynamic was expressed in
Germany, during the National Socialist regime. For that, the following manifestations
of the totalitarian power were outlined: völkische identity, Total State, Total
Mobilization and Total war, illuminated by the observations from Bernard Bruneteau,
to end with a picture of the totalitarian evil.
Key words: Germany, Biopolitics; Imperfections from the democracy; Totalitarian
Power, National-socialism; Conservative-revolution; Tyranny from the Majority.
SUMÁRIO
Introdução................................................................................................................
10
1. A matriz do totalitarismo
1.1. A matriz cultural.......................................................................................
19
1.1.1. A Revolução conservadora.....................................................................
19
1.1.2. Niilismo e Política....................................................................................
29
1.2. A matriz social.........................................................................................
32
1.2.1. Uma sociedade brutalizada.....................................................................
32
1.3. A matriz política.......................................................................................
37
1.3.1. A indeterminação democrática................................................................
37
1.3.2. A tirania da maioria.................................................................................
52
1.3.3. A igualdade bifronte................................................................................
56
1.3.4. A democracia totalitária...........................................................................
66
1.3.5. A politização da vida...............................................................................
71
2. As manifestações do totalitarismo
2.1 A identidade völkische.............................................................................
95
2.1.1 O anti-semitismo völkisch........................................................................
97
2.2. A Guerra total..........................................................................................
99
2.2.1 Uma sociedade mobilizada......................................................................
99
2.2.2 Guerra total e era tecnicista.....................................................................
107
2.2.3 Uma sociedade alinhada..........................................................................
110
2.2.4 O indivíduo performático em uma sociedade mecanizada.......................
111
2.2.5 Genealogia da Guerra total.......................................................................
114
2.3. O perigo totalitário.....................................................................................
117
2.3.1. Prelúdio de um genocídio: os massacres esquecidos da conquista
Colonial.....................................................................................................
123
2.3.2. O imaginário do darwinismo social...........................................................
126
2.4. A banalidade do mal.................................................................................
129
2.4.1. Eichmann ou a personalidade de um conformista...................................
129
2.4.2. A ética da obediência e o significado da responsabilidade......................
132
2.4.3. A banalização do mal...............................................................................
138
2.4.4. A produção social do mal ou a Tecnologia da destruição........................
140
2.4.5. A desumanidade como produto da distância social..................................
141
2.4.6. A conduta desumana como produto da ação seqüencial.........................
144
2.4.7. A desumanidade e a responsabilidade flutuante......................................
147
2.4.8. A despersonalização da vítima.................................................................
147
Conclusão..................................................................................................................
150
Bibliografia................................................................................................................
159
INTRODUÇÃO
Pode parecer algo pretensioso escrever sobre um assunto que foi objeto de
uma literatura tão extensa, tão prolixa e tão pesquisada. Este estudo tem como
principal aspiração contribuir para a compreensão do fenômeno totalitário ocorrido
na Alemanha nacional-socialista - buscando a essência da matriz totalitária - mas
não encerra o tema amplamente estudado por escritores renomados.
O que originou esta pesquisa - embora tal motivação esteja à margem deste
estudo - foi a tentativa de esclarecer uma página de uma história familiar, das muitas
que foram escritas neste contexto, e que permaneceu durante muito tempo obscura.
Resgatar a memória de um soldado francês, de origem judaica, capturado em
combate, durante a Batalha de França, em 1940, e levado para um campo de
prisioneiros destinado exclusivamente a soldados judeus e soviéticos, perto da então
cidade de Königsberg (ex-Prússia Oriental, hoje anexada à Rússia com o nome de
Kaliningrad), onde permaneceu preso até 1945. Esse soldado, pai do autor deste
trabalho, foi um dos poucos sobreviventes desse campo onde a maioria dos
detentos perecera de “morte natural assistida” pelo frio, fome e trabalho escravo.
Convém lembrar que no front leste cerca de 3,2 milhões de prisioneiros de guerra
soviéticos encontraram a morte nestas condições.
O tema do presente estudo consiste na reflexão sobre a matriz do
totalitarismo alemão nos seus aspectos cultural, social e político. O caminho
percorrido por esta pesquisa, essencialmente bibliográfica, começou com o estudo
da matriz totalitária, trilhou os meandros do labirinto totalitário para identificar os
fatores desencadeantes da dinâmica manifestada na Alemanha nacional-socialista.
O desafio maior desta investigação foi tentar compreender como um regime eleito
democraticamente, referendado em várias ocasiões, com ampla maioria, herdeiro de
uma das culturas mais desenvolvidas da Europa, pôde ter aderido a tal aventura. E,
sobretudo, procurar desvendar o que tornou o mal totalitário, um símbolo do mal da
modernidade.
Susam Neiman
1
propõe uma interessante análise comparativa do mal. Esse
problema pode ser explicado em termos teológicos ou seculares, mas ele é
fundamentalmente um problema sobre a inteligibilidade do mundo como um todo.
Segundo a autora, enquanto o século XVIII tem empregado a palavra Lisboa, hoje
se costuma usar a palavra Auschwitz. Não é preciso mais do que o nome de um
lugar para significar o colapso de confiança mais básica no mundo, dos fundamentos
que possibilitam a civilização. Enquanto Lisboa evocava desastres naturais fora do
alcance da ação humana, Auschwitz, por sua vez, representa o mal na sua versão
moderna, isto é, atos absolutamente daninhos que não deixam espaço para
justificativa nem para explicação.
Dois acontecimentos não poderiam parecer mais diferentes. Se existe um
problema do mal gerado por Lisboa, ele só pode interessar o homem da fé: como
pode Deus permitir uma ordem natural que causa sofrimento inocente? Do outro
lado, a questão do mal causada por Auschwitz parece inteiramente distinta: como
podem os seres humanos comportar-se de maneira que violam inteiramente tanto as
normas éticas quanto as da razão?
Assim, uma distinção nítida entre mal natural e mal moral permite dividir
claramente a responsabilidade: a de Deus e a dos homens. As concepções
modernas do mal foram desenvolvidas em uma tentativa de parar de culpar Deus
pelo estado do mundo e de assumirmos sozinhos a responsabilidade por ele.
Quanto mais a responsabilidade pelo mal era deixada para o ser humano, menos
digna a espécie humana parecia assumi-lo.
O problema do mal começou tentando entender as intenções de Deus. Agora
parece que não podemos dar sentido a nossas próprias intenções. Se Auschwitz nos
deixa mais impotentes do que Lisboa é porque nossos recursos conceituais parecem
esgotados. Depois de Lisboa, só restou recolher pedaços estilhaçados de uma visão
do mundo e decidir viver corajosamente, assumindo a responsabilidade por um
mundo desencantado.
1
O mal no pensamento moderno, 2003
Antes de Lisboa, os males dividiam-se em questões de natureza, metafísica
ou moralidade. Depois de Lisboa, a palavra mal ficou restrita àquilo que antes era
chamado de mal moral. Doravante o mal moderno se tornou um atributo da vontade
humana. O Iluminismo foi antes de tudo a marca de uma nova era, a coragem de
pensar o mudo por si mesmo; é também a coragem de assumir responsabilidade
pelo mundo no qual se é lançado. Separar radicalmente o que épocas anteriores
chamavam de males naturais dos males morais faz, portanto, parte do significado da
modernidade. Se podemos dizer que Auschwitz marcou seu fim é pela maneira
como ele imprimiu a sua marca de terror. Com ele, ficamos sem direção.
Ironicamente, parece que “Deus voltou à História pela porta do terror”.
Segundo Susan Neiman, duas perspectivas podem ser identificadas desde o
início do Iluminismo até os dias de hoje, independentemente do tipo do mal em
questão: uma delas, “a de Rousseau a Arendt, insiste em que a moralidade exige
que tornemos o mal inteligível. A outra, de Voltaire a Jean Améry, insiste em que a
moralidade exige que não o façamos (...). Comparar Lisboa a Auschwitz pode
parecer não equivocado, mas sim monstruoso, pois corre-se o risco quer de ver o
segundo como um desastre mais ou menos natural, desculpando assim os seus
arquitetos, quer de comparar o Criador a criminoso da pior espécie“ (2003, p.20).
Comparar as mudanças conceituais trazidas por Auschwitz com aquelas
criadas por Lisboa deveria ajudar-nos a responder a seguinte pergunta: será que
essas mudanças podem ser resumidas dizendo que a humanidade perdeu a fé no
mundo em Lisboa, e a fé em si mesma em Auschwitz? Auschwitz foi
conceitualmente devastador porque revelou uma possibilidade na natureza humana
que esperávamos não ver. Pois o desenvolvimento da cultura na Alemanha deveria
ter conduzido não a uma forma de barbárie altamente desenvolvida, mas a um
progresso de uma civilização genuína.
Convém ressaltar que essa observação não se restringe só a Alemanha. Para
David Rousset
2
, “a existência dos campos é um aviso (...) seria uma duplicidade, e
uma duplicidade criminosa, fingir que é impossível para outras nações tentar um
experimento semelhante porque isso seria contrário à sua natureza. A Alemanha
2
A World apart, 1951.
interpretou, com originalidade digna de sua história, a crise que levou à criação do
mundo do campo de concentração” (ROUSSET apud NEIMAN, 2003, p.280-281).
A afirmação de que Auschwitz representa uma forma de mal radicalmente
nova persiste, apesar de todas as dificuldades para dotá-la de razões. Sugere que a
fé acrítica na capacidade da humanidade de determinar o próprio destino foi
destroçada com a Guerra. O que pareceu ter sido destruído antes de tudo, foi a
possibilidade de reação intelectual em si. O pensamento parou, pois as ferramentas
da civilização pareciam tão impotentes para lidar com aquele acontecimento quanto
o foram para evitá-lo. “Se Lisboa marcou o instante de reconhecimento de que a
teodicéia tradicional era inútil, Auschwitz assinalou o reconhecimento de que
nenhum substituto era melhor do que ela” (NEIMAN, 2003, p.308).
É importante destacar, no entanto, que a questão religiosa não é interna, mas
externa ao humanismo. A questão da religião está fora do humanismo. Ela se
resume numa pergunta e não a uma resposta.
Esta pesquisa foi essencialmente baseada em análises de várias obras, de
diferentes épocas, descritas por pesquisadores das áreas de ciência social, história,
política e filosofia, porém, em nenhum momento, no estudo do obscuro caso do
soldado que originou este trabalho. Para tanto, foram utilizados recursos de
paráfrases e intertextualidade, com intuito de provocar um diálogo textual
esclarecedor entre os autores, incluindo o autor desta pesquisa, que ao longo do
texto procurou fazer as devidas análises e interpretações.
Uma primeira hipótese, com o conceito de igualdade extremada, foi levantada
na banca de qualificação, para explicar a matriz do poder totalitário. Com efeito, de
acordo com o cientista político Giovanni Sartori, uma das principais componentes da
democracia, a igualdade, tal como o mito do deus Janus tem um aspecto bifronte.
Ela pode significar um ideal de justiça – direitos iguais para todos, que foi o lema
principal da Revolução Francesa. E também pode se manifestar em termos mais
temíveis de identidade – identidade igual para poucos no sentido völkisch (racial) da
palavra. Tem-se assim uma deriva totalitária da democracia que foi analisa por
Jacob Talmon: uma deriva à esquerda, com o exemplo do terror jacobino; uma
deriva à direita, com o da Alemanha nacional-socialista.
Uma segunda hipótese é defendida nesse trabalho para oferecer uma
explicação mais abrangente para o surgimento do regime totalitário: a própria
democracia, com as suas imperfeições, pode se tornar uma terrível alavanca para o
totalitarismo Essa hipótese será baseada em três conceitos principais, na
indeterminação democrática, apontada por Claude Lefort; na tirania da maioria,
explicada por Aléxis de Tocqueville e na politização da vida, estudada por Giorgio
Agamben. A nosso ver, estes três autores talvez sejam os que melhor respondam às
exigências do problema formulado.
Plano do trabalho
Este presente estudo está dividido em duas partes. Na primeira, busca-se
descobrir a matriz do totalitarismo, a partir do estudo de seu aspecto cultural, social
e político. Na segunda, trata-se de compreender a face do totalitarismo alemão,
através das suas manifestações durante o regime nacional-socialista.
A matriz cultural, a partir dos trabalhos de Louis Dupeux sobre a Revolução
conservadora, focaliza duas principais correntes: a pessimista (kulturpessimismus) e
a racista (völkische). Com os estudos de Léo Strauss, será analisado o vínculo
estreito entre niilismo e política que marcou a intelectualidade alemã durante a
República de Weimar. A matriz social estuda o impacto social da 1ª Grande Guerra,
que George Mosse denomina brutalização da sociedade alemã. E, a matriz política,
que procura demonstrar que o totalitarismo pode surgir das ambigüidades, dos vícios
e das imperfeições da democracia.
Destacamos alguns grandes autores para esclarecer este aspecto da matriz
política. Em primeiro lugar, Claude Lefort que analisou a indeterminação
democrática; em segundo, Alexis de Tocqueville que prenunciou a tirania da maioria.
Depois, Giovanni Sartori que denunciou o perigo da igualdade quando ela se torna
extremada, em termos de identidade – identidade igual somente para poucos no
sentido racial (völkisch) da palavra.
Em seguida, Jacob Talmon, que analisou duas derivas totalitárias da
democracia: uma à esquerda, com a da Revolução Francesa, e outra à direita com a
Revolução Nacional-Socialista. E finalmente, Giorgio Agamben que focalizou na
deriva totalitária de direita, uma perspectiva vitalista da política, com o tema da “vida
nua”, encerrando assim o estudo da matriz política do poder totalitário.
Na segunda parte deste estudo salientam-se algumas manifestações do
totalitarismo alemão, com temas que abrangem a identidade racial (völkische), o
Estado total, a Mobilização Total e a Guerra total, finalizando com um retrato do mal
totalitário, à luz de uma nova leitura do tema da banalidade do mal.
“Existem dois tipos de labirintos, aquele onde
o homem se perde e aquele que tem um só
caminho...”.
(Frontal da Igreja de Sainte Foy, na França)
1. A MATRIZ DO TOTALITARISMO
Uma das raízes de labyrinthos deriva da raiz grega lábrys, machado de corte
duplo inventado por Dédalo. O machado que corta em dois lugares é associado aos
caminhos que se dividem no labirinto. O labirinto torna-se assim o símbolo da divisão
do bem com o mal, do espiritual com o temporal; ele é o ponto nodal que bloqueia
todas as saídas, aquele que separa as forças profanas das sagradas, as forças
terrestres das celestiais, o caminho da servidão do da liberdade. Existe outra
interpretação do termo labirinto, da raiz laborintrus, com labor significando trabalho,
no sentido de esforço.
O sufixo inthos, tem o sentido de jogos, designando os jogos da caverna. Um
elo distante poderia então existir com a legendária caverna de Platão, símbolo da
luta das sombras com a luz, do profano com o sagrado, das trevas com o divino.
O labirinto desenhado no chão de muitas igrejas antigas era uma metáfora da
vida humana, com todas as suas provações, dificuldades e descaminhos, sendo o
centro dele um símbolo de esperança de redenção, sob a forma da Jerusalém
sagrada. Atravessar este labirinto fazia parte dos ritos de iniciação. Simbolizava a
descoberta do centro espiritual oculto, o caminho da ascensão das trevas para a luz.
A exemplo do frontal da Igreja de Sainte Foy, na França, onde há a seguinte
inscrição: existem dois tipos de labirintos, aquele onde o homem se perde e aquele
que tem um só caminho...”.
No labirinto do primeiro tipo o caminhante deve traçar o seu itinerário e munir-
se do fio de Ariadne: ele não deve cortar as suas raízes, sob pena de morte. O
percurso é inelutavelmente repleto de obstáculos e a meta se define no transcorrer
do caminho. O transeunte é aquele que se torna, no sentido do dasein, do devir. Ao
ingressar nos becos sem saída, é importante que ele não esqueça que se trata
apenas de caminhos e, ao constatar o seu erro, é preciso voltar atrás e explorar
outros rumos. O labirinto onde o homem se perde é o nome que se dá à escola da
liberdade.
No decorrer do tempo, o dédalo intrincado foi se simplificando para dar lugar a
um labirinto com algumas saídas e finalmente chegar a um labirinto de um só
caminho. Neste, existe uma só saída na vida, a da salvação. O labirinto do mundo
totalitário é aquele que exorta o homem a se deixar conduzir, para um caminho onde
possivelmente não haverá outra saída a não ser a própria morte. Este labirinto
costuma ser perfeitamente balizado: existe um só caminho, sempre reto, o da pureza
que percorre todo o seu trajeto. O passageiro deve confiar no caminho traçado por
outro e, se desconfiar de alguém, será apenas dele mesmo.
A história da primeira metade do século XX assemelha-se aos preparativos de
um confronto direto entre dois tipos de caminho rumo à salvação, um modelo político
democrático e um modelo totalitário. O rumo adotado pela Alemanha nacional-
socialista foi o modelo totalitário, o qual será estudado em sua matriz cultural, social
e política.
19
1.1. A MATRIZ CULTURAL
Os trabalhos de Louis Dupeux
3
foram decisivos para a compreensão da
matriz cultural desse movimento qualificado de pré-fascismo alemão, que surgiu
após a 1ª Grande Guerra e que antecede a ideologia nacional-socialista.
1.1.1. A Revolução Conservadora
Segundo o autor, a “Revolução conservadora” alemã representou a base da
contra-ideologia dominante na época da República de Weimar, um excepcional
laboratório de idéias sobre a questão da modernidade e do “desencantamento do
mundo”, onde os nazistas encontraram uma importante fonte de inspiração.
Analisando essa revolução, também chamada por Dupeux de nebulosa de
extrema direita, o autor destaca duas grandes correntes de pensamento: a
“pessimista” (kulturpessimismus) e a “racista” (völkische), que compartilham o
mesmo ódio pela República de Weimar e pelos valores humanistas e liberais do
iluminismo. Entretanto, divergem quanto ao estilo e a tática a serem adotadas, e
sobre o “rosto” dessa Alemanha regenerada com a qual elas tanto sonhavam.
Contudo, embora a Revolução conservadora tenha preparado, em certa medida, o
nazismo, ela não pode ser assimilada a ele. Ela se distingue pela diversidade das
muitas correntes que se vinculam a ela.
Segundo Dupeux, os três grandes representantes dessa Revolução, Ernst
Yünger, Carl Schmit e Ernst Niekisch, não compartilham, em absoluto, da mesma
visão de mundo (weltanschauung). Assim, para o herói de guerra Jünger, o aspecto
mais importante era o de mobilização total de inspiração prussiana; já para o ex-líder
social-democrata Niekisch, o modelo era o de mobilização geral, porém de
inspiração comunista, à luz da experiência da Rússia stalinista; e para o jurista
Schmitt, o enfoque principal era o de amigo/inimigo e a rejeição do Estado liberal.
3
La Révolution conservatrice allemande sous la République de Weimar, 1992.
20
Dupeux sublinha, também, a considerável produção intelectual dos
neoconservadores: mais de 500 periódicos, cerca de 400 organizações, desde
formações paramilitares até ligas, sem considerar os inúmeros círculos que exerciam
grande influência sobre uma direita tradicionalista, como por exemplo, o Clube dos
Cavalheiros (Herrenklub).
Outro grande mestre a pensar na Revolução conservadora, segundo ele, foi
Oswald Spengler. Embora em primeira instância apresentado como o “profeta do
declínio”, Spengler defende uma concepção orgânica da história. Para ele, à
semelhança de Roma, que herdou a cultura grega, cabia à Alemanha a missão de
assegurar a sobrevivência do Ocidente. Para tanto, sonhava com um Imperium
germanicum, que somente poderia ser instaurado sob a condição de reconciliar
operários e nacionalistas conservadores.
Como a própria denominação indica, a Revolução conservadora constitui uma
síntese paradoxal. Ela é conservadora, uma vez que deplora e critica o declínio da
civilização ocidental e os efeitos perversos de uma modernidade cega. E, ao mesmo
tempo é revolucionária, uma vez que, longe de pregar um retorno às antigas
tradições, as suas críticas têm um aspecto radicalmente inovador: sua luta é
antiburguesa, antidemocrática e antiliberal.
Apesar da grande diversidade de pensamento dessa nebulosa, o historiador
Dupeux foca seus estudos nas duas grandes correntes que, como já foi dito,
possuem a mesma raiz ideológica, sentem o mesmo ódio pela democracia e pelos
valores liberais, mas divergem quanto ao estilo que a Alemanha deveria adotar.
Para o autor, a Revolução conservadora, como produto dessas duas correntes, é
fundamental para uma boa compreensão da matriz cultural do nacional-socialismo.
Sendo assim, de um lado está a corrente do “pessimismo cultural”, inspirada
pela sua crença no declínio irreversível da Alemanha. Essa corrente fazia uma
oposição aberta à Revolução Industrial, à técnica, ao crescimento da grande cidade,
à sociedade de massas e, por fim, à dissolução da ordem social e dos valores
tradicionais. De outro, a corrente “otimista” ou “voluntarista”, favorável à grande
21
indústria, à técnica, à razão instrumental, enfim a uma organização racional da
sociedade.
Na segunda corrente, a “Völkische Revolution”, embora de maneira diferente,
havia a mesma visão ideológica do mundo e a mesma rejeição do Iluminismo
(aufklarüng). Assim, para Ernst Yünger
4
, um representante da corrente nacionalista
völkisch o progresso do Iluminismo não significa progressão, mesmo quando este
reveste a máscara da Razão. Ele rejeita toda forma de abstração e de generalização
para focalizar o singular e o particular. O autor afirma que é preciso se libertar de
toda abstração ideológica para alcançar de maneira concreta a dimensão
existencial. À noção de progresso, ele contrapõe o conceito de mobilização total,
situação onde “todas as existências transformam-se em energia e todos os meios de
comunicações aceleram-se em benefício da mobilidade, do movimento” (op. cit. p.
106). A uma visão finalista do progresso comandada pela perspectiva de um mundo
melhor, ele opõe a fé, a potência e a audácia daqueles que se “abrem para o
infinito”.
O autor fez uma interessante distinção ente o nacionalista völkisch e o
conservador. Segundo ele, numa época onde tudo se tornou movimento o lugar do
conservador se tornou inseguro. É a razão pela qual ele ama a tradição e se apega
nela,. O conservador procura se apoiar num Estado instituído para deter o
movimento e cristalizar assim a organização social. Ele costuma acompanhar o seu
tempo a passo lento. Em contrapartida, o espírito revolucionário antecipa e apressa
os acontecimentos. O revolucionário inteligente reconhece no Estado um
instrumento de potência e triunfará inelutavelmente dos conservadores, uma vez que
ele representa a verdadeira convergência do organismo com a organização.
Nesse contexto, a mobilização não é progressão ou progresso, mas sim a involução
da viagem, o eterno retorno do mesmo.
Os völkisch se preocupavam menos com a Nação ou o Estado e mais com o
Povo (Volk), um povo que eles tentavam restaurar na sua pureza genuína, com
temas exaltando a nudez nórdica, o paganismo germânico e a terra. Sob a influência
4
L’État universel suivi de La mobilisation totale, 1990.
22
de Houston Chamberlain e das teorias neodarwinistas, eles se destacaram pela sua
obsessão racista e anti-semita que os conduziu aos mesmos intentos de sempre:
pureza racial, exclusão dos doentes mentais, proibição de casamentos mistos e,
finalmente, eliminação dos judeus da vida nacional.
1.1.1.1. A Revolução conservadora e as elites intelectuais
Representante da corrente pessimista, o escritor berlinense Arthur Moeller
Van den Bruck
5
foi outra figura de destaque dessa onda ideológica. Embora
classificado de “escritor decadente”, Bruck passa a simbolizar, após a 1ª Grande
Guerra, a contracultura de uma direita convencida da necessidade de “derrubar” as
construções intelectuais que destruíam a Alemanha, desde o Iluminismo. A sua
doutrina chamada de imperialismo social se apresenta confusa, reacionária,
conservadora e, ao mesmo tempo, revolucionária, socialista, proletária, com o
sentido de direito dos povos jovens. Nela, todo um jargão vitalista e voluntarista é
colocado a serviço de uma ideologia que prega a expansão, com o uso da dialética:
é preciso aprender a conviver com as próprias contradições.
Em 1916, Bruck publica um ensaio
6
no qual tece elogios às virtudes romanas
da Prússia, celebrando a essência desse país como Vontade de Estado. É nesta
época que ele começa a afirmar o seu nacionalismo, não no sentido de um
pangermanismo com o qual ele não tinha a menor afinidade, mas no sentido de
certa solidariedade com uma cultura com a qual ele se sentia herdeiro. Combateu a
corrente völkische com veemência. Ele censurava os teóricos que confundiam raça e
povo e acusava os defensores da raça ariana de diluir, num conceito impreciso, as
caracteristícas da nação alemã, estabelecendo uma nítida distinção, entre raças
biológicas e raças do espírito.
Aos olhos de Bruck, o exemplo prussiano era uma testemunha de que, nas
sociedades modernas, a história levava a melhor sobre a raça e a cultura, sobre o
5
Das dritte reich, 1922.
6
Der preussiche stil (O modelo prussiano), 1916.
23
estado natural. Para ele, toda a nação alemã, herdeira do país do meio (a mutterland
germânica), devia adotar o modelo prussiano, no seu aspecto cultural.
Após a Revolução de novembro de 1918, Bruck se torna o líder de um círculo
de escritores e jornalistas hostis ao comunismo e, ao mesmo tempo, ao liberalismo e
ao nacionalismo. Esse círculo denominado juni-klub (clube de junho) se torna o pólo
da corrente representativa dos jungkonservativen (jovens conservadores) da
Revolução conservadora.
O clube era freqüentado tanto pelos nacionalistas alemães quanto pelos
democratas católicos do centro (zentrum), pelos social-democratas e até pelos
comunistas. Os dirigentes do juni-klub não se colocavam na posição de adversários
do princípio da República de Weimar ou da democracia, procurando antes de tudo
descobrir o melhor caminho para a democracia alemã, isto é, uma democracia de
acordo com a tradição do País, com ênfase sobre os princípios e não sobre as
instituições. Bruck definia esse modelo de ‘democracia nacionalizada’, uma vez que
enfatizava a participação de um povo no seu destino.
Em 1919, Bruck publica sua grande obra
7
, iniciada durante a 1ª Grande
Guerra, na qual ele procura demonstrar que a guerra foi o produto do ressentimento
de povos velhos em relação aos povos jovens (Alemanha e Rússia), dos quais eles
invejavam a vitalidade. O autor acreditava que a salvação de uma Alemanha
proletarizada não podia advir de um compromisso com as potências ocidentais (tais
como a França), nem de uma imitação subserviente do modelo liberal inglês, mas de
uma aliança com as forças novas e puras do Leste europeu, cujos interesses
geopolíticos correspondiam aos da Alemanha. Aos seus olhos, a Rússia eterna
acabaria por derrotar uma teoria marxista importada. Influente entre os
junkonservativen, Bruck se opõe à corrente nacional-revolucionária, cuja ideologia
soldadesca era alimentada pela experiência do front.
Os nazistas se apropriaram muito das idéias de Bruck e utilizaram o título do
seu livro Das Dritte Reich (que significa o Terceiro Reich), publicado em 1923, como
7
Das recht der jungen völker, 1919.
24
slogan político. Pronunciando-se sobre uma terceira via entre capitalismo liberal e
marxismo, Bruck denomina essa ‘democracia nacionalizada’ de Terceiro Reich –
definindo-a como uma idéia de síntese, de resolução das contradições. Os novos
rumos, para ele, impeliam para o III Reich, uma vez que a Alemanha, país do meio,
tinha como vocação constituir uma terceira força no centro do continente, uma ponte
entre o Leste e o Oeste da Europa.
Embora para Dupeux, a base da militância völkische fosse mais popular, isso
não significava que eles aceitavam as regras do jogo democrático. Nesse movimento
prevalecia um oportunismo dos mais cínicos e mais brutais para a conquista do
poder, um poder que devia ser chefiado por um líder carismático, único capaz de
expressar a vontade profunda da comunidade do Povo (volksgemeinschaft). Graças
aos trabalhos pioneiros de Dupeux, os historiadores contemporâneos dão hoje um
maior destaque a esse fermento intelectual e a esse potencial de violência que
encobria uma república, cujas estruturas jurídicas ainda não estavam consolidadas,
como berço da matriz cultural do nacional-socialismo.
Para Stefan Breuer
8
, o sintagma Revolução conservadora apresentou cinco
grupos principais: os populistas (völkisch), os jovens conservadores
(jungkonservative), os coligados (bündische), os nacional-revolucionários e o
movimento camponês (landvolk bewegung).
O “núcleo duro” era constituído, por um lado, pelos jungkonservativen (Max
Boehme, Ernst Forsthoff, Arthur Moeller Van Den Bruck, Carl Schmitt, Oswald
Spengler) e, por outro lado, pelos nacional-revolucionários Helmut Franke, Ernst e
Friedrich Yünger, Ernst Niekisch. Para Breuer, todos eles se opõem às idéias do
iluminismo e do liberalismo e representavam antes de tudo um conjunto de tentativas
de redefinição da identidade alemã, um leque de movimentos de pesquisa numa
perspectiva ‘modernista’. Todos os seus representantes são compenetrados de
voluntarismo e de certo “estetismo”, atitudes típicas da modernidade no sentido
histórico do termo. Segundo Breuer, o que caracterizava a mentalidade da época
8
Anatomie der Konservativen Revolution, 1995.
25
era uma combinação de visão apocalíptica do mundo, de uso da violência e de
espírito comunitário masculino (männerbund).
Segundo Breuer, o novo clima intelectual do século XIX não conseguiu
produzir uma ideologia tão sistemática e abrangente quanto à do marxismo, mas
conseguiu esboçar uma literatura “oriunda de uma realidade transformada pelas
massas pós-liberais, legitimada por elas, cujo conteúdo é de uma força explosiva
que não se pode desprezar” (BREUER, apud WEISSMANN, 1993
9
).
Qualificado de “sintagma paradoxal” por Gilbert Merlio (2003, p.123-141)
10
, o
único ponto em comum entre essas correntes da direita alemã dos anos 1920 foi o
de ter criado um novo nacionalismo, uma espécie de fundamentalismo nacional, cujo
objetivo era menos o de preservar os valores colocados em perigo pelo declínio da
modernidade, do que resgatar, “reencontrar ou criar valores que mereciam ser
conservados”.
Diferentemente de Dupeux, que focaliza a divergência das correntes, Merlio
acredita que os autores dessa constelação revolucionário-conservadora,
compartilhavam o mesmo diagnóstico de um vazio intelectual da modernidade, que
tem acelerado o declínio do ocidente e da Alemanha em particular; e uma mesma
grande esperança: a da emergência de novas elites, que pudessem regenerar a
Alemanha e a Europa inteira.
Outra característica notável dessa Revolução conservadora, segundo Merlio,
foi a influência de Nietzsche que impregnou todas as idéias dos seus protagonistas e
contribuiu para a formação da base cultural, ou seja, para a busca do homem novo
capaz de superar o niilismo moderno e de regenerar a Alemanha. Como observou
Nikolaï Berdaїev
11
, existia uma aspiração comum a todos esses pensadores
dissidentes, “en rupture de ban com a direita tradicional: uma sede de um mundo
9
Y a-t-il eu une Révolution conservatrice, 1993.
10
Y a-t-il une Révolution conservatrice sous La République de Weimar? in: Revue Francaise
d'Histoire des Idées Politiques, 17. 2003.
11
L'idée russe: problèmes essentiels de la pensée russe au XIXème et au début du XXème siècle,
1970.
26
integral, onde poderia haver uma fusão total da teoria com a vida e com a
necessidade de crer”.
Para o historiador israelense, Zeev Sternhell
12
, surgem no final do século XIX,
em decorrência da crise da democracia liberal e do marxismo, movimentos
potencialmente revolucionários, que não eram “nem de direita, nem de esquerda” e
que devem ser considerados como “a manifestação de uma mudança radical, com
todas as características de uma crise de civilização”.
Segundo o autor, apesar de não ser tão coerente nem tão sistemática quanto
a sua rival marxista, um conjunto de idéias-chave caracteriza essa Revolução
conservadora: antimaterialismo, antiindividualismo e concepções voluntaristas de um
mundo que exige a regenerescência total da sociedade, ou seja, uma concepção
redentora, ‘agonal’, isto é antagônica da política que fez desse movimento uma
ideologia dominante na República de Weimar. Para Sternhell, a crise vigente na
época, bem como o curto tempo da sua vigência não permitiu uma homogeneização
do seu conteúdo doutrinal, mas o seu impacto intelectual, embora múltiplo,
diferenciado e heterogêneo, foi decisivo para o advento do regime nacional-
socialista.
1.1.1.2. Cultura niilista (kulturpessimismus) e Revolução conservadora
A Revolução conservadora perpetua e, ao mesmo tempo, rompe com o
pensamento tradicionalista alemão impregnado da idéia de decadência e de
declínio. Assim, para Theodor Fritsch
13
, outro representante da corrente nacional-
racista (völkische), não existe solução para os problemas relacionados com a
decadência dos povos: “A humanidade atual está em declínio manifesto. Enquanto o
desenvolvimento natural da vida imprime um impulso para o alto, infelizmente nada
12
Naissance de l’idéologie fasciste, Fayard, 1989.
13
Antisemiten-katechismus, 1887.
27
de tal podemos perceber na realidade do homem. Longe de nos elevarmos, nós
afundamos” (FRITSCH, apud LUCCHINI, 2008, p.2).
Diferentemente da cultura niilista, os revolucionários conservadores não se
sentem presos em um século odiado. Eles aceitam o desafio da sua época,
afirmando que são os únicos que podem encontrar uma solução para os problemas
do mundo moderno. É precisamente nessa vontade de estar presente no mundo e
nessa rejeição da idéia de decadência que a Revolução conservadora se distingue
da cultura niilista (kulturpessimismus). Os neoconservadores se identificam
expressivamente com a modernidade por meio de múltiplas denominações de
realismo, dinamismo, ativismo e, sobretudo, de afirmação, regeneração e
ressurreição, ostentando um otimismo diferente daquele do Iluminismo. A exemplo
de Nietzsche que havia profetizado uma era de “monstruosa reflexão sobre si”, a sua
reflexão se coloca antes de tudo sob o signo da afirmação (bejahung) e não da
negação.
No que tange à modernidade, para eles, a sociedade tradicional estava
desmoronando com a “secularização”, a industrialização, o individualismo e o
surgimento de novas classes sócio-econômicas. Nos tempos do Kaiser, essa
evolução havia sido objeto de uma crítica feroz por parte da corrente pessimista
(kulturpessimisten) que apontava a noção de decadência, e da corrente racista, que
denunciava a degenerescência da Alemanha. Eugene Diesel se declarava defensor
da verdadeira cultura alemã frente aos progressos devastadores de uma pretensa
civilização acusada de ter esquecido o sentido trágico da vida: “que o futuro se
enquadre ou não ao padrão das culturas passadas, isso nos é indiferente. O nosso
orgulho, a nossa alegria é de poder viver uma era que faça explodir qualquer
comparação com as épocas anteriores”(DIESEL apud LUCCHINI, 2008, p.2).
1.1.1.3. Os fundamentos intelectuais da Revolução conservadora
Para Dupeux, a Revolução conservadora nega a existência a força
unificadora da razão e recusa a universalidade dos valores humanos. Ela contempla
apenas entidades históricas, raciais e orgânicas, conceitos totalmente alheios ao
individualismo e ao racionalismo. Segundo o autor, existe nela uma rejeição da
28
abstração e da generalização, para focalizar o singular e o particular. Para alcançar
de maneira concreta a dimensão existencial é preciso se libertar de toda abstração
ideológica. A ênfase é sobre a vida em oposição à concepção racionalista do
progresso. Essa concepção “vitalista” da realidade privilegia o desenvolvimento, o
movimento, que são, por sua vez, associados à noção-chave de revezamento
(ablösung), de despertar e de regeneração.
A visão de mundo (weltanschauung) não está baseada num passado
estacionário, cristalizado. Em diferença ao romantismo político, esse movimento não
se detém sobre o passado. Embora tenha um conhecimento intuitivo das suas raízes
profundas, ele procura conhecer o presente, buscando, segundo a expressão de
Yünger “uma fusão do passado e do futuro num presente ardente” (YÜNGER, apud
LUCCHINI, 2008, p.2).
Existe um anseio por compreender sua época e, sobretudo, por superá-la
(überwinden). A sua concepção da história não é racionalista; ela é contrária a uma
concepção progressista do mundo que apresenta um desenvolvimento linear
ascendente, para eles, a história, se desenrola num movimento cíclico ou pendular,
submetida às leis do destino, embora destacando o papel dos grandes homens. A
história é marcada pela permanência ou, ao menos, pelo eterno retorno dos valores
fundamentais. O neoconservadorismo não se limita em compreender a história,
deseja antes de tudo “fazer história”. O medo do desconhecido, inerente ao
Conservadorismo tradicional desaparece aqui para ceder lugar a um
Conservadorismo revolucionário.
Para o historiador alemão Ernst Nolte, houve convergências doutrinais entre
a Revolução conservadora e a Revolução nacional-socialista em dois pontos: com
relação à crítica da civilização e com relação à hostilidade ao marxismo e ao
liberalismo. A principal distinção entre elas é de intensidade: enquanto a primeira
representa uma “solução minimalista, a segunda seria uma “solução maximalista”.
No entanto, segundo o autor, enquanto o movimento de Hitler tem uma vontade de
29
lutar contra a Rússia bolchevista, a Revolução conservadora caracteriza-se por um
conflito de gerações (NOLTE, apud WEISSMANN, 1993,
14
p.4).
1.1.1.4. A concepção do Estado
Apesar de favorecer o surgimento de uma nova aristocracia social, a
Revolução conservadora deseja um Estado radicalmente novo que possa integrar
todas as classes sociais e estruturar as massas. A corrente neoconservadora é
moderna pelo seu desejo sincero de mobilidade social.
É preciso distinguir duas concepções neoconservadoras do Estado, ambas se
reclamando da modernidade, mas com perspectivas diferentes. A primeira focaliza
mais a vida, enquanto a outra enfatiza a técnica. Assim, a corrente dos jovens
conservadores é a de um Estado autoritário, que tem por objetivo a despolitização
das massas. Em contrapartida, para a corrente nacionalista que tem Yünger como
principal representante, o Estado totalitário, longe de despolitizar as massas, deve
procurar mobilizar todo o seu potencial vital.
1.1.2. Niilismo e política
O nacional-socialismo apoderou-se de certos conceitos da Revolução
conservadora, em especial as idéias de “terceira via” de Bruck. As idéias völkisch
marcam de certa forma a transformação da Revolução conservadora em neo-
nacionalismo ou, mais precisamente, em nacional-socialismo. Do mesmo modo,
esse regime procurou se apoderar de alguns conceitos da cultura niilista
(külturpessimismus), para idealizar um projeto totalitário moderno; seu ideário
caracteriza-se pela idéia de decadência no sentido de degenerescência, pela
vontade de restauração da raça, do povo, do germanismo e do “direito alemão em
dispor de seu próprio destino”. Nesse contexto, a sua ideologia encontra-se em
algum lugar entre a cultura niilista e a Revolução conservadora. No entanto, convém
14
Nolte, apud Karlheinz Weissmann in: “Y a-t-il eu une Révolution conservatrice?”, 1993.
30
observar que à diferença da Revolução conservadora, o conceito central da
ideologia nacional-socialista é a raça.
Em 1941, numa conferência sobre Niilismo e Política, na Universidade de
Nova Iorque, Léo Strauss fez as seguintes perguntas: o que é niilismo? E em qual
medida ele é um fenômeno tipicamente alemão? Para ele, é somente com o recurso
da fenomenologia que se pode compreender esse niilismo que se tornou a matriz
cultural do Nacional-socialismo. Para o autor, que foi aluno de Heidegger, o
Nacional-socialismo não foi a expressão mais proeminente, mais destacada do
niilismo alemão, mas a sua forma mais aviltada, tacanha, vulgar e vergonhosa. O
niilismo tem raízes mais profundas do que os discursos de propaganda de Hitler.
Desse modo, não foi a cultura alemã que era portadora de idéias nazistas. Ao
contrário, é o regime nacional-socialista que se apoderou da cultura alemã para
colocá-la a serviço de um ideal de expansão e de dominação. Strauss explica que o
niilismo não está motivado por uma vontade de autodestruição, nem também por um
desejo insano de destruição total. A destruição a qual pretende é a da civilização
moderna, percebida de maneira confusa como imoral, porque advoga pela felicidade
material e não pelo sacrifício. O que o niilismo alemão execra na civilização
moderna não é o progresso tecnológico, mas as grandes lutas de cunho universal
em prol do “progresso moral”, do alívio do sofrimento do homem, da proteção dos
direitos humanos, da felicidade para a maioria dos indivíduos. Segundo Strauss, o
niilismo tem neste sentido o caráter de um “protesto moral” contra uma sociedade
aberta a tudo e a qualquer coisa, e que acaba provocando, em decorrência dessa
abertura, a devassidão, a corrupção e a degenerescência. A representação da
sociedade aberta, para o niilismo, é de um lugar onde se encontra, de fato, todas as
irresponsabilidades, de um espaço de convergência em busca do prazer, do lucro, e
onde se exerce um poder irresponsável. Esse protesto parte da convicção profunda
de que o cosmopolitismo é inerente à civilização moderna ou, de forma mais precisa,
de que a constituição de uma sociedade aberta a todas as aspirações da civilização
moderna é inconciliável com as exigências de uma vida moral, feitas de dedicação,
de dever e de sacrifício em prol da comunidade. Esse protesto se desdobra de uma
celebração das vantagens da sociedade fechada, a única que possa garantir a
31
integridade, a retidão e a probidade sobre as quais repousa uma vida
autenticamente moral.
De acordo com Strauss
15
, é somente no quadro de uma sociedade fechada
que se pode preservar, em razão da sua própria clausura, o estado de tensão que
desperta a nobreza e os valores de uma vida autenticamente moral. Ciente de que a
sobrevivência depende de sua moralidade, diz ele, uma sociedade dessa natureza
tem o sentido do dever e do sacrifício. A respeitabilidade a qual pretende a
sociedade fechada é simétrica ao grau de clausura que ela consegue manter. Em
contraposição, virando as costas aos valores heróicos e incapazes de alcançar o
‘sublime’, a sociedade aberta somente pode levar à sua desagregação, ao seu
próprio declínio.
A intensidade do protesto niilista contra a civilização moderna, observa
Strauss, basicamente não tem nada a ver com o ardor belicista, com o amor à
guerra ou com o nacionalismo. Tem mais a ver com uma concepção do Estado
soberano, como sendo o melhor protetor de uma sociedade fechada no sentido
indicado. Tal convicção guiada pela paixão da ética é de natureza soberanista uma
vez que atribui ao Estado a função de guardião da clausura, no sentido de defensor
da moral ameaçada. De acordo com Strauss, essa convicção não está desprovida
de certa razão ou de certa nobreza, lembrando que ela já foi a de Glauco na
República de Platão, quando esse último estigmatizava a Cidade dos porcos.
Esse desejo de destruição, inerente ao niilismo alemão, pode parecer
incompreensível à primeira vista, uma vez que não é acompanhado de uma clara
visão do que pode vir a substituí-lo. De modo geral, Strauss incrimina as emoções
do pós-guerra, o clima deletério no qual a Alemanha se encontrava nos anos 1920.
Ninguém estava satisfeito com a situação do mundo pós-guerra. A democracia
liberal de Weimar parecia incapaz de enfrentar as dificuldades às quais a Alemanha
estava confrontada. Ao desespero do presente, se agregava uma falta de esperança
sobre futuro, de inspiração comunista, anarquista, pacifista, um futuro sem
alternativa, percebido como o fim da humanidade, como a era do último homem.
15
Nihilisme et politique, rivages, 2001; in: collection bibliothèques rivages.
32
O niilismo alemão rejeita a visão de um futuro que desemboca no
desaparecimento do Estado, numa sociedade sem classes, na abolição de toda
forma de exploração do homem pelo homem e de toda injustiça, no surgimento de
uma era de paz derradeira, na qual cada um encontraria seu pequeno prazer, um
mundo onde nenhum grande coração continuaria batendo e nenhuma grande alma
continuaria se manifestando. Ele rejeita a visão de um mundo sem sacrifício, que
desconhece ‘o suor, as lágrimas e o sangue’.
Segundo Strauss, tal representação do futuro impregnou a mente de
inúmeros alemães, muito inteligentes e muito honestos, embora muito jovens.
Carentes de transcendência, de esperança, uma grande parte da juventude dos
anos 1920 se vê incapaz de articular outra opção que um não categórico. Esse não
por sua vez, irá se tornar uma condição prévia a toda ação reivindicativa, até da
própria ação destruidora.
1.2. A MATRIZ SOCIAL
1.2.1. Uma sociedade brutalizada
A 1ª Guerra Mundial alcança um grau de violência sem precedentes e
apresenta um salto qualitativo rumo à Guerra total. Desde o seu início, a guerra
coloca o problema da destruição total do inimigo. O combate não é apenas levado
até a sua intensidade máxima, com o uso massivo da tecnologia (materialschlacht)
ou com a intensificação sem limite da violência direta, mas o alcance da luta é
igualmente estendido contra as populações civis com o intuito de aniquilar a sua
vontade de resistência.
Digno de destaque, o termo “matadouro” no vocabulário dos combatentes
designa uma nova forma de guerra na qual o potencial do fogo, a duração e o teatro
ilimitado das operações levam a uma desumanização total da guerra. Assiste-se a
uma banalização da guerra, marcada pela hecatombe e pelo horror indescritível,
33
pelo desaparecimento de milhões de homens nos campos de batalhas dos anos
1914–1918, com mais da metade dos soldados mortos sem ter recebido sequer uma
sepultura. A guerra provoca certa indiferença em relação à morte dos próximos,
mas, sobretudo, a dos outros.
A aceitação da idéia da morte em massa é indissociável da dessacralização súbita
da vida humana. Na Guerra total, escreve Sofsky
16
:
A morte não é apenas um meio para alcançar um objetivo político ou
econômico. Ela é per si o objetivo da guerra. Os desejos, as
representações mais intensas do imaginário, são dirigidos para o
aniquilamento do inimigo (...). Pensar a guerra, não significa nada
mais que pensar a sociedade a partir da sua destruição potencial, do
seu ponto zero, da morte do social (SOFSKY apud BRUNETEAU,
2004, p.39).
A partir da afirmação de que a responsabilidade pela deflagração da guerra e
do seu desenrolar bárbaro é um produto da cultura do inimigo, efetua-se uma
distinção maniqueísta entre aqueles que combatem do lado do bem, do humano, e
todos aqueles que se encontram do lado mal, do desumano, até do inumano,
personificado pelo inimigo, própria encarnação do mal que deve ser repelido. Nesse
sentido, observa Bruneteau
17
, a guerra pode ser lida em termos de luta racial, com
um único objetivo: a destruição da raça adversa.
Para Bruneteau, o período de des-civilização marcado pela guerra 1914-1918
anuncia as próximas des-civilizações totalitárias que viriam a seguir. A nova
dinâmica da violência terá um reinício em 1939, “com a destruição da fina camada
da civilização dos costumes e com a revelação, à luz do dia, do império do instinto”
(BRUNETEAU, 2004, p.42).
Segundo o historiador israelense Omer Bartov, o mesmo mecanismo
esquizofrênico que permitiu a sobrevivência de inúmeros soldados durante a 1ª
Guerra Mundial, criou uma predisposição mental que levou os seus filhos a
16
L’ère de l’épouvante, 2002.
17
Le siècle des génocides, 2004
34
participar, sem emoção, dos assassinatos em massa praticados durante a 2ª Guerra
Mundial. O ponto decisivo ocorreu quando “a oposição que existia - em tempo de
guerra - entre a morte do amigo e a do inimigo foi estendida - em tempo de paz - no
campo da batalha política”. Os comportamentos violentos e as manifestações de
ódio do tempo de guerra vão prosseguir, só que desta vez no âmbito da sociedade
civil, culminando com “a brutalização da vida política, e acentuando ainda mais o
menosprezo pelo caráter sagrado da vida” (MOSSE apud BRUNETEAU, 2004,
p.42).
Segundo Mosse, as sociedades européias, traumatizadas de maneira
duradoura pelo horror das trincheiras, tiveram dificuldades em esquecer-se da
guerra, mais particularmente na Alemanha, num fenômeno de “brutalização” das
sociedades européias. Após o regresso da paz, os antigos combatentes
conservaram a nostalgia dos tempos da solidariedade fraterna que prevalecia entre
os homens do front, matriz de socialização dos soldados. A “experiência interior da
guerra”, segundo a expressão de Mosse, é exaltada como pedra de toque da
virilidade e do espírito combativo. A retórica e a ética política serão impregnadas de
uma agressividade até então desconhecida. Ela irá imprimir a atividade política de
um caráter belicista, tanto pelo discurso inflamado, quanto pelas ações violentas
como os combates de rua entre comunistas e nazistas, a criação de tropas de
choque no seio dos partidos, os Stosstruppen (Tropas de assalto), as SA (Sturm
Abteilungen; Seções de Assalto), e finalmente a SS (Schutzstaffel; Esquadrão de
proteção).
A partir da 1ª Guerra Mundial, o combatente se tornou uma mera peça
mecânica. O advento da era tecnicista descrita por Yünger terá amplas repercussões
no período entre as duas Grandes Guerras. A própria guerra não vai apenas afetar
as relações humanas com a ‘mecanização’ dos indivíduos. Ela vai também afetar os
tempos de paz com as concepções e os ideais herdados do conflito. Após o término
dos combates, toda a cultura da guerra vai doravante influenciar a sociedade civil
alemã.
O “ideal militar” é em toda parte presente, como revelam a profusão de
insígnias, de estandarte e de uniformes, nas encenações grandiosas do
35
führerprinzip. Hitler, nostálgico e prisioneiro daquilo que Mosse denomina o “mito da
grande guerra” aspira a uma “sociedade de combatentes”. Mosse ainda observa que
todas as sociedades brutalizadas pela cultura da 1ª Guerra imprimiram um caráter
violento à atividade militante, o que vai representar uma das manifestações mais
características da Europa pós-1918. Esta nova realidade pode ser ilustrada pela
utilização de um vocabulário guerreiro, no qual se faz menção do aniquilamento total
do adversário, um adversário interior agora considerado inimigo.
A partir da distinção amigo/inimigo, como novo paradigma da atividade
política, Schmitt efetua uma inversão na fórmula de Clausevitz. Doravante, a política
penetra o campo de ação bélica, tornando-se de fato a continuação da lógica direta
inerente à guerra. Ora, assimilar a atividade política a uma guerra significa a termo,
recusar a parte da humanidade no adversário. Dentro do clima de traumatismo
coletivo provocado pela derrota, a idealização da vivência de um front purificado e
estetizado, se transforma em fermento ideológico. Esta situação transformaria o
soldado em arauto de uma nação a reconstituir, de um novo Reich a edificar, com
base no espírito da “comunidade das trincheiras”, o que representava uma visão
radicalmente oposta ao parlamentarismo e aos seus compromissos.
Em conseqüência de um amplo consenso, segundo o qual a Alemanha havia
sido derrotada, sem ter perdido uma só batalha decisiva contra os aliados, a
ideologia sublimada da vivência do front (fronterlebnis) se manifesta de modo
agressivo pela busca da figura do traidor encontrado numa retaguarda que havia
supostamente falido. Nos dias seguintes à derrota, encontra-se no Judeu a figura do
traidor, em decorrência da ação das organizações anti-semitas que proliferam na
Alemanha, sob o impulso da liga pangermanista. Segundo Mosse, esse anti-
semitismo é o sintoma do processo de brutalização provocado pela primeira grande
guerra.
Para muitos alemães - e para Hitler em primeiro lugar - embora as
hostilidades tivessem terminado em 1918, a guerra ainda não havia sido concluída.
O campo de batalha simplesmente havia sido transferido para o front interior. Pela
ação da mobilização total, tratava-se de travar uma revanche contra os traidores,
principalmente o “traidor” judeu-bolchevique, estigmatizado como o novo “inimigo
36
total” da Alemanha, ao lado do “burguês liberal” que o havia deixado se difundir no
seio da Nação. François Furet resumiu essa situação da seguinte maneira:
Filhos da guerra, bolchevismo e fascismo, receberam dela o que eles
têm de elementares; ambos aplicaram na política a experiência
adquirida nas trincheiras: o hábito da violência, a simplicidade das
paixões extremadas, a submissão do indivíduo ao grupo e, por fim, a
amargura dos sacrifícios inúteis ou traídos (FURET apud
BRUNETEAU, 2004, p. 44).
Segundo Bruneteau, os anos pós-guerra constituem um verdadeiro
“laboratório experimental” da violência. Com a militarização e a brutalização geral
dos comportamentos sociais e das práticas políticas, fora apagada a fronteira entre a
esfera civil e a esfera militar, entre a guerra e a política, entre o inimigo exterior e o
inimigo interior, entre as violências de guerra de um lado, as violências sociais e as
violências políticas, do outro. “Numa perspectiva evolucionista, uma sociedade
liberal em putrefação é condenada, de maneira impiedosa, a ceder o lugar à visão
idílica da pureza, representada por uma Comunidade völkische em ascensão”
(op.cit., p.45).
37
1.3. A MATRIZ POLÍTICA
A matriz política procura desvelar a essência do poder totalitário. Nela, Claude
Lefort revela que o totalitarismo nasce das ambigüidades, dos vícios e das
imperfeições da própria democracia.
1.3.1. A indeterminação democrática
Lefort procura compreender, à maneira de Tocqueville, o que faz da
democracia moderna uma forma de regime político e de sociedade que torna efetiva
a liberdade, ao mesmo tempo em que aponta os seus problemas. É por oposição ao
totalitarismo que o autor se propõe a compreender a essência da democracia. Falar
do poder totalitário, portanto, é falar sobre o papel da liberdade. Porém, para revelar
o pleno sentido da liberdade é preciso revelar a importância do seu papel na
experiência democrática. E para explicar o papel da liberdade no regime
democrático é necessário comparar a experiência deste regime com a de outras
formas de governo, em particular a monarquia absolutista e o regime totalitário.
Segundo Lefort, é somente à luz das proibições que imperavam nesses dois últimos
regimes que a importância da liberdade no regime democrático aparece com
clareza.
Para compreender essa diferença, explica Lefort, é preciso adotar uma
concepção política da sociedade. Isso significa compreender o vínculo estreito que
existe entre um determinado poder e uma determinada configuração de relações
sociais. O que pressupõe entender a maneira pela qual uma sociedade se diferencia
da outra, os elementos que constituem a sua ordem interna e finalmente a relação
da sociedade com o resto do mundo. Para isso, é preciso descobrir o que assegura
a coesão e a unidade social, a natureza do alicerce que sustenta o conjunto do
edifício social, isto é, descobrir a matriz da sociedade, o que permite fazer dela uma
sociedade de fato.
38
De acordo com Lefort, avaliar o sentido da liberdade é começar por relembrar,
antes de tudo, que todas as liberdades fundamentais – a livre movimentação, a
liberdade de opinião, de expressão, de associação, de reunião etc. – nem sempre
existiram no passado. A ausência de liberdade que imperava, pode ser ilustrada
pelos laços de dependência pessoal que ligava a vida do camponês ao seu amo, ou
pela condenação daqueles que se atreviam a disseminar idéias heréticas contra a
Igreja ou a questionar a autoridade absoluta do monarca. Na sociedade totalitária, a
ausência de liberdade se traduz pelo controle permanente exercido pelo poder sobre
os súditos, de tal modo a manter as suas ações em conformidade com o discurso
ideológico. Essa ausência de liberdade é revelada pela existência de campos onde
são encarcerados todos aqueles suspeitos de desvio ou passíveis de representar
uma ameaça para a comunidade.
Mas todas essa considerações não bastam para o autor. Para todos aqueles
que, como ele, prezam a democracia, o problema essencial é compreender a matriz
da liberdade. Perguntar por que a liberdade costuma reger as relações entre os
homens nas sociedades democráticas, enquanto, por outro lado, o poder de
dominação sempre reinou na sociedade medieval, e a opressão sempre imperou no
regime totalitário. A pergunta decisiva à qual todo o pensamento de Lefort procura
dar uma resposta é: de onde surge a liberdade política e qual a natureza da mutação
política que permitiu instaurar a liberdade do regime democrático?
A importância desse questionamento não é meramente acadêmica, para o
autor. Ela é eminentemente prática, uma vez que com a descoberta da matriz da
liberdade nas relações sociais, também poderão ser descobertas as condições de
sua conservação e, sobretudo, a natureza das ameaças que pairam sobre ela.
39
1.3.1.1. A sociedade como ordenamento (mise-en-forme) da coexistência
humana
Ao efetuar uma breve comparação da sociedade democrática com a rival
totalitária, Lefort descobre que elas não diferem apenas pela forma de seu governo
respectivo, mas, sobretudo, “pelo ordenamento (mise-en-forme) da coexistência
humana” (1986, p.256), do relacionamento social, e conclui que cada uma delas
apresenta um ordenamento específico. O que mais interessa ao autor é poder
descobrir a singularidade de cada uma dessas configurações sociais. Para ele, na
raiz de toda configuração social, não existe nada além da sociedade per si. É a
própria sociedade que se coloca em sentido e o importante é procurar descobrir o
conteúdo desse sentido. Uma sociedade, para Lefort, nada mais é que um
determinado ordenamento de significados ou, para emprestar a expressão do autor,
um “espaço de inteligibilidade” (op.cit., p.20). Desse modo, pertencer à mesma
sociedade significa compartilhar um conjunto de valores e de referências que
possam dar um sentido à sua própria vida, e onde é possível se orientar no mundo.
Toda análise social que permita descrever certo número de fatos, analisar as
relações que existem entre eles e até mesmo elaborar um modelo que reproduz o
conjunto dessas interações, parte da suposição de que os fatos que o analista tenta
identificar existem per si. Contudo, é essa hipótese que entra em conflito com o
espaço de inteligibilidade. O que faz a estranheza do estrangeiro, explica Lefort, é o
fato de ele ter um comportamento ininteligível para nós, uma vez que não podemos
entender as marcas de referência com as quais ele se orienta no mundo.
Para Lefort, uma sociedade nada tem de objetivo: “Os fatos falam para nós
em razão de uma elaboração, cujos princípios não são dados pela experiência
natural ou pela experiência científica” (op. cit., p.20). Em outros termos, não existem
fatos em si. Eles existem apenas para nós, uma vez que dependem de um sistema
de representação dentro do qual eles recebem um significado. Esse sistema de
representação que comanda o ordenamento (mise-en-forme) do espaço social, bem
como o acesso ao mundo de cada um dos seus elementos, é chamado pelo autor de
40
simbólico. À luz do que precede, o autor conclui que o espaço social surge somente
no processo de mise-en-forme do mundo pela sua matriz simbólica.
Compreender uma sociedade significa então perceber o seu dispositivo
simbólico, poder esclarecer o jogo de oposições “em virtude das quais as
representações sociais são identificadas e articuladas uma em relação às outras”
(1979, p.290). Significa compreender a matriz dos princípios que regem a
diferenciação e a articulação do espaço social em um grande número de estatutos,
papéis, lugares, e que comandam ao mesmo tempo “as marcas de referência em
virtude das quais a experiência da coexistência se ordena” (1986, p.257). A essência
do social resulta da experiência da sociedade. Compreender essa experiência nada
mais é do que descobrir o conjunto de valores e de significados que comanda a
relação da sociedade consigo própria e com o resto do mundo.
1.3.1.2. O lugar do poder como pólo simbólico
Contudo, a discussão sobre o sentido da sociedade deixou de lado a pergunta
de onde partiu a investigação sobre a origem da formação da sociedade? Qual a
natureza do vínculo que sustenta o edifício social na sua totalidade e que assegura a
coesão desse espaço de inteligibilidade?
Para Lefort, também o poder é, antes de tudo, um pólo simbólico, o lugar pelo
qual e dentro do qual a sociedade instaura a sua unidade e encontra os valores em
função dos quais ela se diferencia e se articula. Isso significa que o lugar do poder é,
por excelência, o lugar do simbólico e, como tal, ele é constitutivo da sociedade.
Sem ele, a sociedade permaneceria invisível a ela mesma, ela não poderia conhecer
a sua própria unidade nem as suas divisões internas. Sem ele, a sociedade não
poderia existir:
A presença desse lugar implica em uma determinação e uma
figuração singular do espaço social, de suas divisões internas e de
seus vínculos, principalmente das classes; e também das
dimensões simbólicas segundo as quais esse espaço se ordena;
41
quer dizer, se diferencia e se relaciona consigo mesmo – entendo
por isso dimensões políticas (na acepção particular do termo),
econômicas, jurídicas e culturais. Ora, eis o que deveria constituir o
objeto da análise (LEFORT, 1987, p.98).
1.3.1.3. Democracia, monarquia e totalitarismo
A questão da liberdade pública se resume, para Lefort, a um esforço para
decifrar as condições de um devir da liberdade. E como a experiência dos regimes
monárquicos, totalitários e democráticos tem demonstrado que apenas esse último
conhece a liberdade política, a questão principal é tentar descobrir qual a fonte da
liberdade e, sobretudo, como conseguir a sua conservação.
Em outras palavras, Lefort faz a seguinte reflexão: se é verdade que com o
advento da sociedade democrática tem-se a instauração da liberdade política e, se é
verdade que com o totalitarismo (que surge dos escombros de uma democracia em
crise), tem-se a ruína dos Direitos do Homem, então significa que o questionamento
sobre a origem e o potencial da liberdade se confunde com a busca das condições
favoráveis ao advento da democracia e da sua conservação. Nessa perspectiva,
pergunta ele, o que caracterizaria o lugar do poder democrático? E qual o sentido da
mutação em favor do qual ele aparece?
Ao comparar a democracia com os regimes monárquico e totalitário, a maior
originalidade desse regime democrático reside no seu caráter de inapropriação, que
Lefort chama de “poder vazio”, uma vez que o exercício do poder democrático, a
exemplo do jogo de baralho, é submetido a uma redistribuição permanente das
cartas do poder. Em contraste, o poder do líder totalitário e do monarca é
incontestável, ‘com cartas marcadas’. Desse modo, Lefort não hesita em afirmar que
a liberdade política só pode ser preservada enquanto existir a proibição de se
apropriar do poder no sentido de confisco pelos depositários da autoridade pública.
Apenas a autoridade do poder para um exercício limitado do poder pode ser
conquistada, e não o poder em si, a posse do poder, isto é, enquanto o lugar do
poder permanecer vazio, inocupável. Essa afirmação suscita duas indagações de
Lefort: em primeiro lugar, por que existe um vínculo tão estreito entre a liberdade
pública e a inapropriação do poder? Em segundo lugar, como explicar a transição do
poder incorporado na pessoa do Rei ao poder de ninguém?
42
No que diz respeito à primeira pergunta, a impossibilidade de se apossar do
poder é indissociável do reconhecimento da legitimidade da competição política.
Pois, se um grande número de candidatos não pudesse competir para conquistar o
poder, isso significaria que as eleições seriam falsas. Neste caso, as eleições seriam
apenas uma máscara, ou seja, os novos detentores do poder ganhariam somente
uma legitimidade aparente, um verniz democrático atribuído pelo veredicto popular.
Para ser efetiva, uma redistribuição periódica das cartas do poder pressupõe
uma abertura efetiva da competição política para todos aqueles que julguem ter o
direito ao seu exercício e que estejam dispostos a defender a sua respectiva causa
ante àqueles que foram convocados a escolhê-los. Por outro lado, a legitimidade de
uma competição política pressupõe também legitimar a existência do conflito, ou
pelo menos da sua expressão. Com efeito, se os postulantes ao poder não tivessem
a liberdade de defender as suas convicções, quaisquer que fossem, isso significaria
que existiria, em algum lugar, um outro poder guardião da ordem, “guardião da doxa”
segundo Lefort, ao qual todos devem obedecer.
Aos olhos do autor, a liberdade não é um simples atributo natural do homem
que as sociedades do passado procuraram abafar. A liberdade caracteriza, ao
contrário, o tipo de vínculo que une os indivíduos num espaço social determinado e
a partir do qual o poder deve ser regularmente redefinido. De maneira ainda mais
precisa, acrescenta o autor, a liberdade é inseparável do questionamento da ordem
estabelecida. A legitimidade do debate sobre uma determinada ordem estabelecida
é o que distingue uma sociedade democrática de todas as outras formas de
sociedade.
Na sociedade medieval a ordem monárquica era considerada intocável,
portanto era uma violação expressar publicamente quaisquer dúvidas sobre a
legitimidade do poder absoluto do rei. Uma comparação com a ordem totalitária não
é menos esclarecedora. Neste regime, a exemplo da ordem monárquica, o poder
não deve ser o objeto de uma competição política aberta. Nele, não pode haver um
espaço para um debate político que possa ser subtraído do seu controle. Desse
modo, o caráter irremovível do chefe carismático significa que, literalmente, o führer
43
é a sociedade, ou seja, a sociedade constitui um corpo orgânico no qual o rei
simboliza a cabeça. Essa representação significa que a sociedade não possui
nenhuma exterioridade em relação ao poder. A sociedade constitui de algum modo,
a extensão do poder.
No que tange à segunda pergunta, a transição do poder incorporado ao poder
de ninguém, o regime totalitário constitui uma exata inversão do modelo
democrático. Enquanto neste, a alternância regular do poder marca a separação do
poder com a sociedade, possibilitando assim a autonomia do espaço social em
relação aos depositários do poder, no primeiro, em contraste, a identificação total do
poder com a sociedade tem por efeito que, em direito, a sociedade não goza de
nenhuma autonomia, ela significa apenas um mero “espaço privado”. Juridicamente,
não existe nada que aconteça na sociedade que não diz respeito ao Poder. E para
caracterizar a situação da liberdade pública sob esse regime basta apenas dizer
que, por via-de-regra, nenhum tipo de comunicação, nenhuma forma de expressão
do pensamento e da opinião pode escapar ao controle do Poder.
O fato totalitário se define, segundo Lefort, pela “consubstancialidade do
Estado e da sociedade civil”. Interpretando Soljenitsyne e Orwell, Lefort observa que
o totalitarismo se constitui a partir da negação da divisão social, a qual se afirma no
fantasma de um Povo-Uno, de um Partido-Nós, de “um indivíduo em que se realiza
fantasticamente a unidade de uma sociedade puramente humana (...) como se não
houvesse nada em torno dele, como se ele tivesse absorvido a substância da
sociedade, como se, ego absoluto, pudesse se dilatar de maneira infinita sem
encontrar nenhuma resistência nas coisas”.
A ideologia totalitária, que nega toda singularidade, contém um apelo à
unidade que é preciso impor pelo terror. É nessa negação da diversidade - e,
portanto da singularidade - que entra em cena os falsos processos nos quais os
acusados servem “a forjar adversários imaginários, cujo aniquilamento demonstraria
que o Partido é todo poderoso, o Povo-Uno, a sociedade de direto indivisível”. O
partido único traduz essa redução da sociedade a uma única ideologia ou até a um
único homem. Hitler encarnou assim a utopia coletiva de uma Sociedade-Una se
44
realizando no Uno, concentrando em suas únicas mãos, toda a potência, a vontade
e o saber.
Em vez do fantasma totalitário, a sociedade democrática corresponderia a
uma vontade de unificar uma sociedade sem abolir as suas divisões, pois longe de
enfraquecê-la, os conflitos alimentam a vida comum. Tal é o paradoxo da
democracia: uma encenação política, dentro da qual se produz uma competição que
deixa transparecer a divisão, sendo essa mesma divisão constitutiva da própria
unidade social. Lefort condena a pretensão totalitária de estabelecer uma sociedade
sem classe, ou homogênea sob o aspecto racial, onde todos os indivíduos seriam
idênticos, e ainda sublinha assim a dimensão conflitante de toda democracia. O
regime democrático é marcado pelo selo da indeterminação, pela ausência de
certeza, e ele se situa, neste aspecto, numa perspectiva de história aberta: a
democracia caracteriza-se como a sociedade histórica por excelência, sociedade
que, em essência, acolhe e preserva a indeterminação, em contraste notável com o
totalitarismo que, se edificando sob o signo da criação de um homem novo, é
organizado, na realidade, precisamente em oposição a essa indeterminação.
Segundo Lefort, essa indeterminação democrática é caracterizada por um processo
de desincorporação dos indivíduos.
No regime monárquico, o poder estava concentrado na autoridade do Rei,
verdadeiro mediador entre os homens e o mundo divino. De acordo com Ernst
Kantorowicz
18
, o antigo regime era composto por um número limitado de pequenos
corpos que procuravam dar aos indivíduos as suas marcas de identificação. E esses
pequenos corpos eram organizados no seio de um grande corpo fictício no qual o
corpo do Rei fornecia a réplica, a substância e a garantia de sua integridade.
Ao contrário desse desejo do Uno, de totalidade, que se manifesta nos
regimes monárquico e totalitário, o lugar do poder no regime democrático é vazio,
desencarnado, uma vez que os governantes exercem o poder sem incorporá-lo e
18
Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval, 1998.
45
sem se apossar dele. O poder - e não a autoridade do poder, nem o seu exercício -
se torna assim um pólo simbólico que “manifesta uma exterioridade da sociedade
com ela mesma”. A razão pela qual o poder se torna um lugar vazio decorre dele
nascer das divisões internas da sociedade, do social enquanto dividido.
No entanto, existe um perigo que pesa sobre toda sociedade democrática,
decorrente dos seus conflitos internos: a tentação de superar as divergências que a
sociedade carrega em seu seio. O perigo de surgir um indivíduo que encarne a
totalidade e a unidade social, prometendo acabar definitivamente com as divisões e
os conflitos sociais. Nesse sentido, segundo Lefort, o totalitarismo pode nascer da
própria democracia e da vontade de superar os seus conflitos.
Segundo Lefort, existe um vínculo estreito entre dois aspectos: o poder vazio
(inapropriável) e o espaço público de comunicação, independente do poder. Esse
vínculo não significa que um dos elementos seja o fator causal do outro, mas indica
que ambos são interdependentes. Pois, para que o poder seja inapropriável é
preciso que haja um espaço público que escape a seu controle e, reciprocamente,
para que tal espaço possa ser constituído, é necessário que o lugar do poder esteja
vazio. Se a indeterminação do poder é indissociável da estrutura das relações
sociais, convém responder a duas perguntas, segundo o autor. De onde surgiu esse
modelo de sociedade caracterizado por esses dois aspectos? E sobre a questão do
surgimento do totalitarismo a partir da própria democracia, de que maneira se
instaura um espaço de inteligibilidade onde o poder se identifica com a sociedade,
negando-lhe assim qualquer autonomia?
1.3.1.4. A democracia como sociedade indeterminada
Segundo Lefort, descobrir o surgimento da democracia significa desvendar a
natureza da mutação que comandou a transição da monarquia absolutista para a
democracia. Explicar essa mutação pressupõe, por sua vez, esclarecer o
fundamento de ambas, isto é, examinar em primeiro lugar o que desapareceu com a
46
queda da ordem monárquica, e descobrir, em seguida, a base sobre a qual
repousava o poder incontestável do monarca, como representação de uma ordem
política e social, até então tida como imutável. Sendo assim, Lefort começa
esclarecendo que o principal fundamento da ordem monárquica é o de ser uma
sociedade comandada por um poder transcendental, ou pelo menos por uma
instância superior (justiça, razão) cujas imperfeições da sociedade humana não
podiam afetar. Sobre a ação de tal poder a ordem terrestre era considerada
imutável.
O monarca era o verdadeiro mediador entre a origem do social e os homens,
e gozava de um poder que ninguém ousava contestar. Com a queda do poder
monárquico, desmorona a crença em uma base transcendental do social. Esse
desaparecimento assinala que a sociedade não aceita mais que a ordem que a
regula seja previamente definida em algum lugar, no Ser: “a sociedade não se
concebe mais como sendo fundada pelo Ser”, explica o autor. Na sociedade que
passa a substituir a monarquia há, portanto, uma recusa de uma determinação
natural ou sobrenatural da ordem humana. “Prevalece a convicção de que não existe
nada no Ser que possa levar uma sociedade a tomar uma forma predeterminada”.
Em outras palavras, a sociedade democrática é indeterminada, na sua
essência. Tal indeterminação se traduz pela constituição de um espaço público no
qual cada um possa defender suas idéias sobre uma ordem social justa. Isso
implica no reconhecimento da legitimidade do debate e do conflito. Desse modo, a
unidade da democracia é inseparável do reconhecimento das suas divisões.
A nova configuração das relações sociais, que surge com o regime
democrático, parte da crença de que a ordem social não tem fundamento per si, que
ela é, portanto, indeterminada. Doravante desprovida de qualquer fundamento, a
constituição da ordem social resulta de um debate permanente. A democracia
permanente é indissociável de uma dinâmica da liberdade que marca esse regime
com uma indeterminação constitutiva. A democracia, afirma Lefort, é o regime pelo
qual a questão da sua ordem se torna objeto de discussões incessantes. O debate
tem como conseqüência a constituição de um espaço público de discussão, “sem
precondição, nem avalista”, acrescenta o autor, e como principal resultado, uma
47
redistribuição periódica das cartas do poder. Na ausência desses dois elementos, o
debate seria inevitavelmente viciado e um conflito não deixaria de surgir entre o
caráter indeterminado desse regime político e a pretensão do governo instituído de
se arrogar o poder em benefício próprio.
A impossibilidade de se apropriar do poder e o debate permanentemente
aberto, sem condição prévia, sugerem que o poder não tem uma identidade definida
e, desse modo, nenhuma representação pode lhe corresponder. É por causa da
ausência dessa identidade, afirma Lefort, que o poder se torna inapropriável. “A
negação da realidade substancial do poder corresponde à negação da realidade
substancial da sociedade” (LEFORT, 1981, p.156). Sociedade e poder são
doravante indeterminados.
Em síntese, a competição política implica numa redistribuição periódica das
cartas do poder, que por sua vez é inseparável da encenação (mise-en-scène) de
um conflito e do reconhecimento da sua legitimidade. Defender a idéia de um poder
vazio, inapropriável, tem como principal conseqüência a instauração de um espaço
público no qual as relações entre os homens são subtraídas à autoridade do poder.
Todavia, em período de crise, com a exacerbação dos conflitos que opõem os
homens entre si, alguns podem ser levados a conclusão de que o regime
democrático nada mais significa do que a destruição pura e simples da coesão social
e que é precisamente nele que se encontra a fonte de todos os problemas.
Incapazes de perceber a unidade da democracia, observa Lefort, os homens
passam a confundir “coesão social” com “união orgânica do corpo social” e a
acreditar que somente com a restauração dessa última haverá salvação.
Trata-se de situações-limite que podem conduzir a um investimento fantástico
nas representações que sinalizam uma identidade e uma unidade sociais
reencontradas. É precisamente a partir daí que começa a aventura totalitária,
observa o autor. Ou seja, quando predomina o sentimento de que a democracia não
representa nada mais do que a destruição do vínculo social, tornando-se assim a
fonte de todos os problemas sociais, os indivíduos estão maduros para abraçar um
projeto de restauração de uma Sociedade–Una, afinada consigo mesma e que
48
possa acabar com os conflitos decorrentes do “egoísmo exacerbado” da sociedade
democrática. A representação de uma Sociedade–Una marca uma ruptura radical
com o modelo democrático, uma vez que acaba com a divisão social, com o lugar
vazio do poder e finalmente, com a luta incessante pelo poder.
Em outros termos, a aventura totalitária é baseada sobre “um modelo de
sociedade livre de conflitos” e, deste modo, livre do problema da indeterminação. Ela
se baseia na recusa do reconhecimento de que a divisão social é o resultado
inelutável da sociedade como tal. Contudo, afirma Lefort, o sucesso de tal
empreitada somente pode desembocar no terror comprovados pelo imenso aparato
policial do regime totalitário, nas deportações em massa, nos campos e finalmente
na morte.
Para Lefort, as raízes do totalitarismo se encontram precisamente na própria
democracia, quando desaparece a base transcendental do social. Nessa situação,
prevalece a afirmação de uma ordem humana autônoma, pura criação do homem.
Muito mais do que isso, a democracia marca o advento de homens independentes e
iguais. Ninguém ocupa mais a posição de mediador. Doravante, todos são
habilitados a se pronunciar sobre a forma que deve revestir uma ordem social
legitima. A democracia inaugura assim uma dinâmica social na qual um maior
número de indivíduos se pronuncia sobre as questões de interesse geral. No
entanto, tal dinâmica se torna incompatível com a conservação de uma sociedade
unificada. Pois, deixado a ele mesmo, o debate que nasce de homens livres e iguais
em direito só pode provocar divergências e finalmente resultar em conflitos.
Como explicar, indaga o autor, o vínculo estreito entre esse projeto de união
orgânica do corpo social e esse terror generalizado? Por que razão essa união
orgânica que o regime totalitário pretende instaurar, implica invariavelmente num
regime policial infinitamente mais impiedoso do que o do regime monárquico? Todo
esforço para instaurar um corpo social coeso reside precisamente no desejo de
superar a divisão social, uma vez que as oposições que dela decorrem são
percebidas como a raiz da decomposição da sociedade democrática.
49
A principal conseqüência disso é que, para que a Sociedade–Una seja
conservada, a dinâmica interna do processo democrático deve ser quebrada com a
proibição do livre-debate. Mais precisamente, o regime totalitário interpreta toda
manifestação heterodoxa como uma agressão, até mesmo como uma conspiração
fomentada contra a unidade do povo. E, para que a proibição de toda dissidência
seja levada a sério ela persegue, de maneira implacável, todos aqueles de quem
suspeita representar uma ameaça à sua unidade. Para Lefort, a figura moderna do
Uno somente pode ser mantida pelo terror. Desse modo, o totalitarismo se torna um
regime de servidão, pois para perdurar, o Poder deve transformar a sociedade no
“seu espaço privado”. O Poder deve tomar posse da sociedade, fusionar com ela:
Poder e Sociedade devem se tornar Uno. Contudo, se é verdade que a Sociedade–
Una se conjuga inevitavelmente com o terror, convém descobrir o que leva os
homens a querer esse regime.
Para Lefort, a gênese do totalitarismo pode ser compreendida apenas a partir
das ambigüidades da própria democracia. Isso significa que na essência da
democracia, como já foi exposto, “existe uma indeterminação, isto é, uma
insuperável incerteza” (op.cit. p.29). Esta indeterminação expressa-se tanto no plano
coletivo, quanto no individual. O que caracteriza o regime democrático é a ausência
de uma identidade bem definida. A representação que o poder oferece hoje, para
toda a sociedade, pode muito bem desaparecer amanhã. Assim, o indivíduo da
sociedade democrática não tem um papel ou uma identidade social predeterminada.
De maneira incessante o indivíduo deve descobrir o que tem de fazer e o que tem de
ser, isto é, agir em defesa de sua própria legitimação, compreendendo o significado
de sua existência.
A experiência da autonomia democrática significa, ao mesmo tempo, uma
incerteza insuperável quanto à própria finalidade do indivíduo e quanto à da
sociedade. Para Lefort, “o indivíduo é condenado a ser trabalhado pela incerteza”
(LEFORT, 1986, p.214). Processo este que pode tornar-se angustiante e despertar
um medo da mudança ou uma aspiração para um retorno aos verdadeiros valores
ancestrais, valores esses sobre os quais foi edificada uma sociedade imutável, hoje
ameaçada pelo perigo.
50
Essa breve comparação entre a democracia, monarquia e totalitarismo, pode
levar a acreditar que não há nada de muito original nas idéias de Lefort. Afinal de
contas, pergunta Hugues Poltier
19
, toda a sua proposta se resume a dizer, em
termos complicados o que já se sabe, isto é, que a democracia é um regime de
liberdade, a monarquia é um regime absolutista e o totalitarismo é um regime de
servidão. John Stuart Mill
20
já defendia a idéia de uma ordem política que garantisse
as liberdades de consciência, de religião, de expressão e de acesso ao
conhecimento. Para este representante da escola utilitarista inglesa, a liberdade é
imprescindível para a felicidade e a busca da verdade.
A originalidade de sua obra está em ter identificado o conceito de
‘indeterminação democrática’ para elucidar o enigma do surgimento do totalitarismo.
Todavia as concepções de Lefort e de Mill estejam próximas no que tange à defesa
da liberdade, elas divergem quando se trata de explicar as raízes da liberdade e da
opressão. Enquanto que para o liberalismo, a liberdade tem a sua raiz na natureza
humana, a mesma nasce, para Lefort, a partir do desmoronamento de uma ordem
social fundada sobre uma base transcendental. Além do mais, na sua análise do
totalitarismo, o liberalismo revela-se limitado. Na melhor das hipóteses, as
explicações que ele oferece, se restringem a vontade despótica de um tirano ou a
necessidade de superar a desordem decorrente de reivindicações explosivas.
Embora o liberalismo perceba que o totalitarismo constitui uma tentativa de solução
para algo de negativo, nunca consegue discernir o que torna o totalitarismo atrativo.
Desse modo, segundo Poltier, a maior contribuição de Lefort em relação à tradição
liberal é a de ir além de uma mera denúncia da opressão totalitária e de procurar
revelar a sua matriz, o seu mecanismo, bem como a sua dinâmica de
funcionamento.
O sentido da mutação que provoca o desmoronamento da sociedade
democrática e o advento simultâneo do totalitarismo se encontra nesse labirinto
inextricável onde os indivíduos são impelidos por uma “sociedade inapreensível”,
segundo a expressão de Lefort (1981, p.180), uma sociedade sempre em busca de
uma saída, de uma definição. Em período de crise, esses mesmos indivíduos podem
19
La pensée du politique de Claude Lefort, une pensée de la liberté, 1993.
20
Da liberdade, 1859.
51
ser levados a acreditar que tudo à sua volta está desmoronando. Abalados pela
perda de sua identidade e pelas antigas certezas, sem poder orientar-se no mundo,
a tentação cresce para abraçar a utopia de uma Sociedade–Una, apresentada como
a solução dos problemas políticos e sociais de seu tempo. Para Lefort, essa
aspiração de restaurar a coesão de uma comunidade, de um corpo social orgânico
unido em torno do mesmo desígnio e senhor de seu próprio destino, só pode ser
compreendida à luz do desejo de superar esse “vazio” que a destruição do poder
“cavou na substância da comunidade” (LEFORT, 1986, p.39).
Homens que passaram pela experiência dupla de desintegração das antigas
certezas e da própria identidade se tornam vulneráveis “à tentação das certezas
reencontradas” (op.cit., p.275), da imagem sedutora de um mundo ordeiro onde cada
um ocuparia um lugar designado. O totalitarismo está arraigado na experiência de
desamparo ante o vazio que se encontra no âmago da democracia. Há nele a
presença do medo provocado pela dissolução das marcas da certeza, um medo da
indeterminação, do desconhecido. É com relação a esse medo que responde essa
necessidade premente de preencher esse vazio da substância comunitária,
procurando dar a ela uma identidade e uma representação bem definida.
Em suma, o totalitarismo é uma tentativa desesperada e contraditória de
eliminar a incerteza que se encontra no centro da experiência política moderna. É
desesperada porque nenhum decreto pode restabelecer as crenças que
fundamentavam o antigo regime. E é contraditória porque a autonomia do social é
indissociável da condição de indivíduos autônomos e iguais e o reconhecimento
dessa independência é, por sua vez, inseparável da aceitação da legitimidade do
conflito. Intrinsecamente contraditória, a tentativa moderna de restaurar o Uno pode
levar ao pesadelo totalitário.
Na visão de Lefort, não basta afirmar para explicar o destino da liberdade, que
a representação do Povo–Uno é inseparável do terror. É preciso ir além e desvelar
que precisamente no âmago da democracia - e em razão das suas próprias
contradições – é onde nasce a tentação do Uno totalitário. “De nada adianta ignorar
a atração do Uno, pois ele é constitutivo do nosso modo de existência política”
(LEFORT, 1983, p.84). Defender a liberdade é logo inseparável de uma crítica à
52
tentação do Uno. Eis aí a missão da filosofia política: desvendar o vínculo essencial
que une a liberdade à divisão social e à indeterminação política, e relembrar que a
defesa da liberdade exige que os homens estejam preparados para resistir ao
fantasma do Uno.
1.3.2. A tirania da maioria
O que significam minoria e maioria? Na prática da democracia, Aristóteles
(apud SARTORI, 1994, p.112) já observava que a justiça democrática havia se
tornado de fato, “a aplicação de uma igualdade numérica, não de uma igualdade
proporcional” (A definição de Aristóteles registra o fato de que, na pólis, o ideal de
igualdade havia se transformado rapidamente na tirania aritmética, analisada por
Tocqueville. Do seu lado, Tocqueville observou que há um gosto “degenerado” pela
igualdade “que leva o fraco a arrastar o forte para o seu nível”. Simmel (ibidem) faz a
observação complementar: para muitos, disse ele, igualdade significa pura e
simplesmente “igualdade com relação a seu superior”.
Seria esta questão somente numérica? A maioria pode ser constituída por
pessoas detentoras de certo poder, que o utilizam em benefício próprio. Ela é
também o conjunto de pessoas que decidem sobre os costumes e a concepção do
mundo a ser adotada. Em todo caso, a maioria é sempre ‘retriz’ dos costumes. Em
uma democracia ela pode ser igualmente legisladora e até executora das leis,
dispondo, assim, de um poder considerável que inexiste em outro regime político.
Será que a maioria não poderia ser tentada a abusar desse poder? Qual o
significado da maioria democrática? O que significa a tirania da maioria?
Dois grandes escritores, Alexis de Tocqueville
21
e Henri Bergson
22
,
analisaram os limites éticos do poder da maioria, sendo para esse último, no
contexto de dois tipos de sociedade, a sociedade aberta e a fechada. Para ele,
existe a moral fechada - que corresponde à sociedade fechada (constituída por toda
sociedade particular) e a moral aberta – da sociedade aberta (que se abre para toda
21
Da democracia na América, 1848.
22
Les deux sources de la morale et de la religion, 1932.
53
a humanidade). Ambos os autores estão de acordo sobre a distinção dos dois tipos
de moral: uma que se restringe aos limites de uma sociedade na qual se aplica e
outra que é de toda humanidade.
Se Tocqueville (1981, p.297-298) não fala explicitamente dos dois tipos de
moral, ele as menciona, porém, de forma indireta quando observa que se um dia a
moral estritamente social viesse a desaparecer, somente ficaria então a moral
humana, que contempla a humanidade na sua totalidade: “Mas a própria maioria não
é toda poderosa. Acima dela, no mundo moral, encontram-se a humanidade, a
justiça e a razão e no mudo político (encontram-se apenas) os direitos adquiridos”.
De acordo com as interpretações de Bergson, tal trecho pressupõe um eventual
conflito entre as duas morais e indica como pode ser solucionado: “pela vitória da
moral aberta voltada para a humanidade inteira”, o que traz um valor que a fechada
não possui. Assim, a moral fechada, também denominada por Bergson de moral
social tem como principal objetivo assegurar a conservação da ordem social. Ela
costuma reservar certos direitos apenas a uma classe particular da sociedade, e os
proibir a outras, permitindo a conservação de certos privilégios para a maioria e,
dessa maneira, mantém a perenidade da ordem social.
Tocqueville por seu lado, já perguntava: em que situação se exerce a tirania
da maioria? Será que se trata de um produto de uma sociedade fechada ou de uma
sociedade aberta? Será que a moral da maioria deve ter, por principal alicerce, uma
sociedade específica ou a humanidade inteira? De fato, Tocqueville não explica o
que seria uma moral humanista. Para isso, é preciso recorrer a Bergson que
desenvolve as mesmas idéias em As duas fontes da moral e da religião, onde o
filósofo francês nos apresenta os dois tipos de sociedade, a fechada e a aberta, as
quais estão vinculadas respectivamente à moral fechada e a moral aberta.
A respeito da sociedade fechada, Bergson (1932, p.25) observa que “a cada
momento ela tem, por essência, a inclusão de certos indivíduos e a exclusão de
outros”. A exclusão de certos indivíduos, isto é, a exclusão de certas minorias,
constitui, portanto, a base da sociedade fechada. Em uma democracia a maioria
costuma se congregar, o que pode vir a ameaçar as minorias de exclusão. E
54
Bergson precisa o significado da moral fechada, ou o que foi denominado
anteriormente de moral social: “Nossas obrigações sociais visam à coesão social:
quer queira, quer não, elas nos imprimem um comportamento semelhante ao da
disciplina ante o perigo do inimigo” (op.cit, p. 27).
Temos assim duas concepções do mundo: a que corresponde a um
nacionalismo fechado, própria da Europa central do século XIX, e a de um
nacionalismo liberal oriundo do Iluminismo, própria da Europa ocidental. De acordo
com Tocqueville, a moral social visa a manutenção da ordem social, com a
conservação das suas estruturas e hierarquia. Mas Bergson vai mais longe: ele fala
de guerra, e pode-se pensar tanto em guerra interior quanto exterior. Nessa
sociedade, a procura da paz só se faz entre semelhantes, entre aqueles que se
reconhecem como iguais a si. O autor destaca o papel central da violência na lógica
de funcionamento da sociedade fechada, quando ela se baseia na exclusão. Desse
modo, a sociedade fechada e a sua moral se constroem sobre a violência e a
exclusão. Mas a questão fundamental para o autor é: a tirania da maioria se
desenvolve numa sociedade fechada ou numa sociedade aberta?
Para responder a questão é preciso de uma definição prévia sobre a tirania da
maioria, que se encontra em Tocqueville (op.cit., p.31): “o que significa, portanto,
uma maioria tomada coletivamente senão um indivíduo que tem opiniões e
interesses contrários a outro indivíduo que se denomina minoria?”. E Bérgson de
acrescentar: não se trata de mero número, quer seja pequeno ou grande. A maioria
e a minoria não se distinguem pelo número, mas pela diferença de opiniões e
interesses. “Diferença”, eis a palavra-chave, segundo o autor. A minoria se
caracteriza pela sua diversidade. Em contrapartida, a maioria é inteiramente
atravessada pela noção de identidade. Encontra-se ali uma maioria de indivíduos
que pretendem ser semelhantes e que se apóiam nessa mesma maioria para fazer
prevalecer uma vontade, que pode ser a de exclusão. Contra a minoria, é sempre
possível exercer certa violência que pode tomar várias expressões. Ela pode se
manifestar quer pela recusa de conceder a certos indivíduos o conjunto de seus
direitos, quer pela situação de desigualdade, com a manifestação de certo
menosprezo a determinados indivíduos, por causa de sua diferença. Tal diferença
evidencia a identidade que une a maioria.
55
Nessa perspectiva, parece existir no texto de Tocqueville uma oposição entre
a identidade fundadora da maioria e a diferença que estigmatiza potencialmente ou
realmente as minorias. Segundo ele, a maioria dispõe do conjunto de poderes, como
retriz dos costumes e legisladora das leis que pode também executar. O autor insiste
neste aspecto:
Não existe monarca tão absoluto que pudesse reunir em sua mão
todas as forças da sociedade e vencer todas as resistências, como
poderia fazê-lo uma maioria revestida do direito de elaborar as leis e
executá-las. Aliás, um rei possui apenas um poder material que age
sobre as ações e não seria capaz de alcançar as vontades; mas a
maioria é dotada de uma força material e moral que age tanto sobre a
vontade, quanto sobre as ações, e que impede ao mesmo tempo o ato
e o desejo de praticá-lo
(TOCQUEVILLE, 1977, p.196).
Assim, é a própria tirania da maioria que é fundadora - no seio da democracia
chamada de sociedade aberta - de uma sociedade fechada onde reina o poder, sem
qualquer restrição, da maioria. Se a verdade encontra-se no maior número, isso
significa que a maioria tem sempre razão. Podemos ter ali a semente de toda
clausura, que toma apoio sobre uma ilusão: a crença de considerar malvado,
monstruoso ou perigoso aquele que é “diferente” da maioria a qual pertence. Neste
ponto, partindo do critério da igualdade, conclui-se a semelhança e afasta-se a
diferença, em um regime que se torna o “reino da simplificação”.
Nessa perspectiva, pode-se dizer que entre maioria e minoria na Alemanha
houve choques de cultura, visões de mundo antagônicas (weltanngschauung) e
confronto entre dois conceitos radicalmente diferentes de moral: uma moral social
fechada para uma maioria em ascensão, centrada numa genuína identidade
völkische, de um lado, e uma moral aberta para uma grande parte da
intelectualidade judaica do outro, de caráter universal, messiânico, inspirada pela
doutrina marxista. Tal a tentativa de Rosa Luxemburgo de tomar o poder, por meio
de uma rebelião em Berlim ou a experiência frustrada de instaurar uma República
dos Conselhos (ou República de Sovietes) em Munique na Bavária, por Gustav
Landauer, revolucionário alemão de origem judaica, que será fuzilado em 1919.
56
Esse choque de culturas culminará numa luta implacável entre duas ideologias no
front leste: o nacional-socialismo e o judeu-bolchevismo.
1.3.3. A igualdade bifronte
De acordo com Giovanni Sartori, a igualdade tem um duplo sentido, o de
identidade e de justiça. Essas duas concepções são difíceis de separar, assim como
dois lados opostos de um mesmo corpo. A igualdade pode ser associada,
simultaneamente, tanto à identidade, quanto à justiça. Ela pode significar um ideal
de justiça – direitos iguais para todos, que foi o lema principal da Revolução
Francesa. E também pode se manifestar em termos mais temíveis de identidade –
identidade igual para poucos no sentido völkisch (racial) da palavra. A melhor
maneira de confirmar que o conceito é constitutivamente bifronte, como no mito de
Janus, sugere o autor, “é examinar como a igualdade relaciona-se com a liberdade –
pois a igualdade pode ser o melhor complemento da liberdade, ou o seu pior
inimigo”.
Segundo o autor, a relação entre igualdade e liberdade é uma relação de
amor e ódio, dependendo se queremos uma igualdade que se harmonize com a
diversidade ou uma igualdade que veja desigualdade em qualquer diversidade. E,
certamente, quanto mais a igualdade equivale a ser idêntico, tanto mais uma
igualdade assim concebida alimenta a aversão pela diversidade, pela diferença, pela
auto-afirmação e pela primazia e, assim, em última análise, pela liberdade.
Afirma-se, muitas vezes, que enquanto a liberdade vigora em favor dos
poucos, da mesma forma a igualdade atua como uma força dos muitos (no sentido
de favorecer a força do número). Há, no entanto, uma diferença crucial entre os dois
casos: com os instrumentos da liberdade, nem os poucos nem os muitos têm pleno
êxito em oprimir uns aos outros, ao passo que, em nome da igualdade e com seus
instrumentos, tanto os muitos quanto os poucos podem acabar escravizados.
Para Sartori, a liberdade é o elemento constituinte indispensável da
democracia liberal, mas ela não é - de forma alguma - o elemento constituinte da
democracia em si. Tocqueville identificava intimamente a democracia com a
igualdade e foi levado a enfatizar as implicações não-liberais da democracia.
57
Comparecendo à Assembléia Constituinte, Tocqueville declarou: “a democracia e o
socialismo estão ligados por uma palavra apenas, igualdade, mas devemos mostrar
a diferença: a democracia deseja a igualdade na liberdade, ao passo que o
socialismo deseja a igualdade na pobreza e na escravidão”. Na sua visão, a
igualdade - inimiga da liberdade - devia ser procurada no socialismo, ao passo que a
igualdade - em harmonia com a liberdade - devia ser procurada na democracia anti-
socialista, na democracia que aceita o liberalismo. Convém lembrar que o socialismo
na época de Tocqueville tinha uma implicação mais política que econômica e
pretendia ser uma declaração de guerra contra o liberalismo, com a afirmação
drástica da prioridade do Estado sobre o indivíduo.
O aspecto essencial do liberalismo é o da liberdade externa. Trata da
liberdade política, da liberdade para o cidadão em relação à opressão do Estado.
Em verdade, o liberalismo foi aceito no continente e apresentou seus melhores
resultados depois de aprender a lição da democracia jacobina que o precedeu. É
com referência à tradição francesa que Talmon (1952, p.44) enfatiza que a
diversidade dos pontos de vista e interesses estava longe de ser considerada
essencial pelos criadores da democracia do século XVIII. “Seus postulados originais
eram unidade e unanimidade. A afirmação do princípio da diversidade veio depois,
quando as implicações totalitárias do princípio de homogeneidade foram
demonstradas pela ditadura jacobina”. A relação básica entre liberalismo e
democracia, em geral, é traduzida como uma relação entre liberdade e igualdade.
Assim, para separar o liberalismo da democracia, afirma Sartori, podemos dizer que
o liberalismo reivindica a liberdade, e a democracia, igualdade. Inversamente, para
uni-los, dizemos que é tarefa dos sistemas liberal-democráticos combinarem
liberdade e igualdade.
Croce (apud SARTORI, 1994, p.167) oferece uma definição concisa do
espírito liberal em sua forma mais pura ao observar que para “o liberalismo, que
nasceu e continua intrinsecamente antiigualitário, a liberdade (...) é a forma de
promover e produzir não a democracia, mas a aristocracia”. Segundo o autor, a
observação de Croce foi dirigida contra a democracia porque, entre outras coisas,
ele a identificava com a filosofia do Iluminismo. No entanto, em 1936, Croce efetuou
uma avaliação mais equilibrada:
58
O liberalismo é tanto amigo quanto inimigo da democracia. Um amigo
porque sua classe política é uma classe aberta (...) que se resolve
num governo que, por sua própria atividade, ensina aos governados
como governar. Mas é um inimigo da democracia quando os últimos
tendem a substituir a qualidade pelo número e pela quantidade
porque sabem que, ao fazer isso, a democracia prepara o caminho
para a demagogia e, sem o desejar, para as ditaduras e tiranias,
destruindo a si mesma (op.cit., p.183).
Em última análise, para Sartori, a igualdade tem uma tendência horizontal, ao
passo que a liberdade tem um impulso vertical. A igualdade deseja integrar e
sintonizar. A liberdade é auto-afirmativa e perturbadora. A democracia preocupa-se
com a coesão social e a uniformidade distributiva, o liberalismo valoriza a
proeminência e a espontaneidade. A democracia tem pouca afinidade com o
pluralismo, ao contrário do liberalismo.
Mas, talvez a diferença fundamental seja a de que o liberalismo gira em torno
do indivíduo, e a democracia em torno da sociedade. Segundo Sartori, Ruggiero
23
percebeu claramente a inversão que ocorre nas duas perspectivas ao observar que
a democracia acaba por colocar de ponta-cabeça “a relação original que a
mentalidade liberal estabeleceu entre o indivíduo e a sociedade: não é a cooperação
espontânea das energias individuais que cria o caráter e o valor do todo, mas é o
todo que determina e dá forma a seu elemento”, o que se tornou o principal lema da
Revolução Francesa. Walter Lippmann (apud SARTORI, p.168) esclarece esse
ponto de forma mais incisiva ainda: “na disciplina de uma sociedade livre é a
inviolabilidade de todos os indivíduos que determina as obrigações sociais (...), é
aqui, na natureza do homem, entre aqueles que o respeitariam como uma pessoa
autônoma e aqueles que o degradariam a um instrumento vivo, que a questão se
resolve”.
23
Ruggerio (apud SARTORI, 1994, p.167) escreve: “é fato que a aplicação rígida e pouco inteligente
do princípio da igualdade tende a mutilar os esforços e benefícios da liberdade, que necessariamente
tomam a direção da diferenciação e da desigualdade, e a disseminar, junto com outras qualidades
medíocres, também o amor pela mediocridade”.
59
1.3.3.1. Igualdades pré-democráticas e democráticas
Isonomia, isegoria e parresia (igualdades gregas de associação, voto e voz
equivalentes às liberdades de reunião e de expressão) são igualdades muito mais
intimamente relacionadas à liberdade liberal e à proteção constitucional do que às
antigas práticas democráticas. Igualdade perante a lei – isonomia – reside no
princípio de que todo homem é igual a qualquer outro em sua dignidade e valor
intrínseco. Assim como a liberdade deriva da luta para se alcançar determinadas
liberdades, a igualdade também se define, historicamente, como o repúdio a certas
diferenças. Igualdade e democracia coincidem apenas no sentido de que o ideal
igualitário pode ser elevado à posição de símbolo por excelência da idéia
democrática. Isso significa que a demanda por igualdade atinge sua maior força e
amplitude no interior de um sistema democrático, mas não significa que não existem
igualdades fora da democracia ou que todas as igualdades são conquistas
democráticas.
Por outro lado, liberdade quer dizer, quando existe de maneira significativa,
liberdade igual, a mesma liberdade para todos. Desta forma, as liberdades também
são manifestações de igualdade. Mas qual é então, a contribuição especificamente
democrática à noção de igualdade? Durante a Revolução Francesa, uma declaração
da Convenção de 29 de maio de 1793, Artigo 2, expressa de maneira muito concisa:
“Igualdade consiste em todos terem os mesmos direitos”. A preocupação suprema
dos revolucionários franceses era: direitos iguais e leis iguais.
1.3.3.2. Liberdade e igualdade
Para Sartori, a liberdade não equaliza em si as oportunidades, e essa ilusão
do liberalismo já foi abandonada. Assim como a liberdade política (liberdade “em
relação à”) é uma condição preliminar e permanente de todos os poderes da
liberdade (liberdades “para”), exatamente pelas mesmas razões, é também a
condição preliminar e permanente para todos os poderes da igualdade. Privar os
iguais da liberdade de “ter voz” significa torná-los iguais em sua falta de voz e nos
abusos que sofrem. (SARTORI, 1994, p. 134).
60
Quando a igualdade realiza a liberdade? E qual é o tipo de igualdade inimiga
da liberdade?, indaga o autor. Ao responder, acabamos voltando à natureza da
igualdade bifronte (como Janus), isto é, a igualdade concebida como uniformidade
(no sentido de identidade) ou como justiça. Quando “igual” significa “mesmo”, então
a liberdade constitui, no mínimo, uma perturbação. Se buscarmos gleichschaltung,
mesmice ou uniformidade, devemos ter aversão por diversidade: e, se temos
aversão pela diversidade, não podemos apreciar a liberdade – exceto sendo
flagrantemente incoerentes. Inversamente, acrescenta o autor, aquele que busca a
liberdade, perceberá a igualdade como expansão de seu princípio e, mais
exatamente, como a encarnação dos direitos da liberdade. Sua fórmula não é
“oportunidades desiguais para se tornar igual”, mas “oportunidades iguais para se
tornar desigual”. Para aquele que busca a liberdade, há tanta injustiça em impor
uniformidade àquilo que é diferente, quanto em aceitar desigualdades hereditárias.
Equalizar “todos em tudo” é criar uma situação tão perigosa quanto a que
aceita desigualdade em tudo. No plano dos princípios, a igualdade somente se
combina com a liberdade quando aquela perde seu vínculo com a uniformidade –
com ser o mesmo, ou com ser transformado no mesmo. Assim, o Gerechtestaat, o
Estado Justo que estabelece a justiça, destrói as leis iguais e a igualdade perante a
lei. Rousseau, sem dúvida, afirmaria que ao longo desse caminho o governo das leis
volta a ser um governo dos homens, arbitrário e instável. Quando um Estado se
torna o todo poderoso, não há qualquer garantia de que venha a ser um Estado
benevolente, um Estado que gera igualdade. Ao contrário, é extremamente provável
que não venha a sê-lo. Nesse caso, nossas igualdades desaparecerão com nossas
liberdades.
No que tange a primeira pergunta, a igualdade é uma forma de liberdade no
sentido de ser uma condição da liberdade. E dizer que uma coisa é condição de
outra não é dizer que são a mesma coisa. Partindo da premissa que a igualdade é
uma condição da liberdade, não se pode concluir que, por nos tornarmos iguais,
tornamo-nos, por isso mesmo, livres. Isso depende, sobretudo, do tipo de senhor
que nos tornou iguais.
61
Assim, uma sociedade política ditatorial pode impor a participação (todos são
obrigados a votar) e, simultaneamente, negar a liberdade de participação (ninguém
pode votar numa alternativa). É claro que a participação igual não significa
participação livre. A igualdade é de forma alguma, uma condição necessária da
liberdade. “Assim a tese de que a igualdade, e em particular a igualdade econômica,
é a verdadeira liberdade ou até a única liberdade verdadeira, só acrescenta o erro
de uma Igualdade total mítica ao erro de uma Liberdade total única. E a combinação
de dois erros de tal magnitude é sinistra”. Resta, então, a igualdade como uma
condição facilitadora da liberdade. No início da Revolução Francesa, Marat escreveu
a Desmoulins: “Para que serve a liberdade política para os que não têm pão? Ela só
tem valor para os teóricos e para os políticos ambiciosos”. Segunto Sartori, a
pergunta era sensata, mas o curso da revolução mostraria que a resposta foi
totalmente inadequada. Uma liberdade muito irreal é o resultado colhido por aqueles
que reivindicam igualdade, confundindo-a com liberdade. Uma pessoa com fome
pode muito bem chamar o pão de liberdade. No entanto, essa é apenas - e apenas
no curto prazo - uma forma de reivindicar comida. “No curto prazo porque nos
sistemas não-liberais o problema não é resolvido com mais pão, mas com a
eliminação de direito de exigi-lo. Reiteremos firmemente este ponto: ”quem
equalizará os equalizadores” não é uma questão de igualdade – é uma questão de
liberdade” (SARTORI, 1994, p.138-139).
1.3.3.3. Liberalismo e democracia
A relação entre o liberalismo e a democracia também deve ser considerada
em um aspecto mais objetivo: aqui a principal distinção é que o liberalismo é,
sobretudo, a técnica de limitar o poder do Estado, enquanto a democracia é a
inserção do poder popular. Enquanto o liberal se preocupa com a “forma” do Estado,
o democrata está basicamente interessado no “conteúdo das normas” que emanam
dele. O liberal tem uma compreensão melhor do método de criação da ordem social
e é um dos que cuidam da “democracia procedimental”. O democrata é um tanto
indiferente ao método, preocupa-se, principalmente, com os resultados e a
substância, e procura mais exercer o poder do que controlá-lo.
62
Em síntese, a interação entre o componente liberal e o componente
democrático em nossos sistemas pode ser descrita da seguinte forma: o primeiro
preocupa-se basicamente com a escravidão política, com a iniciativa individual e
com a forma do Estado. O segundo é particularmente sensível ao bem-estar, à
igualdade e à coesão social. Estamos assim diante de dois modelos de democracia:
uma democracia dentro do liberalismo e uma democracia sem liberalismo.
1.3.3.4. Democracia dentro do liberalismo
Tocqueville (apud SARTORI, p.170) resume o processo da seguinte forma:
“Nossos antepassados tendiam sempre a fazer um uso impróprio da noção de que
os direitos privados devem ser respeitados e nós, por outro lado, tendemos
naturalmente a exagerar a idéia de que o interesse de um indivíduo privado deve
sempre ceder ao interesse de muitos”. O primeiro ponto, segundo Sartori, é que o
crescimento do componente democrático da democracia liberal requer cada vez
mais que levemos em conta o perigo oposto. Uma segunda consideração é que se a
democracia moderna é um depois em relação ao liberalismo, isso não implica que
supere ou ultrapasse o liberalismo, ou que o liberalismo seja menos importante.
Para o autor, a democracia é a consumação, mas não o substituto do
liberalismo. Embora o liberalismo seja um instrumento da democracia, a democracia
em si não é um veículo do liberalismo. A fórmula da democracia liberal é igualdade
através da liberdade, por meio da liberdade, não liberdade por meio da igualdade.
Nessa perspectiva, como Dahl e Lindblom observam:
O Estado-nação só pode fornecer o quadro de referência dentro do
qual a boa vida é possível; não pode desempenhar as funções dos
pequenos grupos (...). Quanto tento fazê-lo, o Estado-nação só pode
fornecer, ou um substituto mais pobre das funções do pequeno grupo,
ou uma distorção grotesca delas (DAHL, LINDBLOM, apud, SARTORI,
1994, vol.2, p.172).
Partindo da liberdade estamos livres para chegar à igualdade, mas partindo
da igualdade, não estamos livres para reaver a liberdade. O itinerário não é
reversível. “Até hoje, ninguém mostrou de forma plausível como invertê-lo”, afirma
63
Sartori. “É uma previsão óbvia dizer que a democracia acabará por sucumbir outra
vez, caso nos voltemos para a finalidade de uma igualdade maior, em detrimento
dos meios que nos permitem reivindicá-la” (SARTORI, 1994, p.173).
1.3.3.5. Democracia sem liberalismo
Para Sartori, a tese dos oponentes da democracia liberal é, em essência,
simples: a democracia liberal não é a verdadeira democracia, é apenas um
simulacro burguês de uma democracia capitalista. Assim, a democracia autêntica
espera por nós, do outro lado do liberalismo e de suas liberdades enganosas e
repressivas. Não importa com que insistências usem a palavra liberdade para
significar igualdade, persiste o fato de estarmos confundindo coisas diferentes.
Quando temos em mente o problema da igualdade referimo-nos a uma “condição da
liberdade”, enquanto, noutro caso, quando pensamos em liberdade, não nos
referimos mais a uma condição, mas à “liberdade em si”.
Em primeiro lugar, a igualdade não pode ser identificada como liberdade, não
somente porque é apenas uma condição da liberdade, como também porque esse
vínculo entre as duas é apenas contingente. Em segundo lugar, quando
recomendamos a rejeição das liberdades e direitos político-jurídicos afirmando que
são insignificantes ou falsos, o que rejeitamos de fato é um exercício do poder
legalmente disciplinado e limitado. “E qual liberdade maior - vulgo liberdade real
pode derivar daí é um segredo realmente bem guardado”. Não há nenhuma
plausibilidade na tese de que a liberdade real se segue à conquista da igualdade
material, isto é, da equalização econômica. Como se pode afirmar que a igualdade
das posses ou da falta de posses significa liberdade real, indaga Sartori?
Aqueles que defendem esse ponto de vista se esquecem, evidentemente, de
que o poder do homem sobre o homem não é - ou não é apenas - um aspecto
corpóreo ligado à propriedade. O poder é mais fundamentalmente um fenômeno
relacional.
64
1.3.3.6. Democracia, poder e incompetência
Se existe problema fundamental que o liberalismo - e, em sua esteira, a
democracia liberal - realmente solucione, é o problema de domesticar o poder
político. Com a era tecnológica, a ameaça do poder sobre o conjunto da sociedade
aumenta de forma assustadora. Qual é a posição democrática em relação ao
problema do poder? Qual é a solução liberal-democrática ao problema do poder?
Duas visões opostas são defendidas: a primeira visão é que as democracias
continentais – em particular a da Alemanha - deram continuidade, do ponto de vista
histórico, à obra das monarquias absolutas, agindo como poderes equalizadores
supremos que destruíram todos os poderes intermediários. A democracia, segundo
esta visão, significou uma concentração assustadora de poder do Estado, pois os
centros de poder – outrora intermediados entre os cidadãos e o Estado, foram
desmantelados. “Tudo quanto restou é uma planície de súditos que podem ser
facilmente dominados pela única montanha existente” (SARTORI, 1994, p.223).
Enquanto alguns autores vêem com apreensão o desaparecimento de todos
os contra-poderes autônomos, outros denunciam as democracias atuais por tolerar
sob o disfarce da igualdade formal, o crescimento do poder do Estado, o qual pode
ser mais forte que a própria tirania. Por outro lado, o referente da palavra povo não é
o referente da palavra Estado. Podemos falar do Estado democrático como o
“Estado do povo” para indicar que agora existe uma ponte ligando as duas margens
– mas uma ponte não substitui as margens, ela as pressupõe: “Por mais que
brinquemos com a frase: o povo é o Estado, o Estado não é o povo, mas apenas
algumas pessoas em altos cargos e, na verdade, situadas acima do povo. O fato é
que o poder que pertence materialmente ao Estado não pertence ao povo e que
quanto mais esse poder passa para o Estado, tanto menos fica com o povo” (op.cit.,
p.225)
A questão que vem à tona é: o que os de fora (o povo) podem fazer com os
de dentro do Estado? Nem sempre podemos nos transformar todos em pessoas de
dentro. Portanto, o melhor que podemos fazer do lado de fora é reduzir o poder dos
de dentro, e a forma mais segura de fazer isso é difundir o poder. Se quisermos
democracia, teremos de nos contentar com o que ela nos dá. Se, ao contrário,
65
quisermos uma “sociedade racional”, preconcebida e bem planejada, teremos de
recorrer aos especialistas e confiar neles. E um mundo de especialistas é aceitável
em relação aos meios, mas não aos fins.
1.3.3.7. Democracia e demofilia
Citando Russell, segundo o qual enquanto a definição ocidental de
democracia é a que consiste na “regra da maioria”, a visão do regime totalitário é a
que consiste nos “interesses da maioria”. Com a democracia prevalece o poder do
povo, enquanto o outro proporciona benefícios ao povo. O que pensar dessa
alternativa, indaga Sartori? O tirano grego já governava (assim o dizia) no interesse
do populacho. O despotismo esclarecido - quando esclarecido - governou realmente
no interesse dos governados.
Desde Platão ouvimos falar incessantemente sobre governar para, em nome
e, em benefício dos governados, mas este é, invariavelmente, o argumento em favor
do autocrata. Não o governo do povo, uma vez que o povo não sabe o bastante para
reconhecer seu verdadeiro interesse, mas o governo sobre o povo, apesar do povo,
no interesse do povo. A objeção à fórmula de Russel está nessa regra invariável da
vida e da política: jamais interesse algum está protegido se a parte interessada não
pode decidir por si e defender seu interesse. As garantias baseadas na vontade
discricionária dos outros são enganosas e não há garantia enquanto a promessa de
fornecê-la estiver confiada à discrição de outros. Já Aristóteles dizia: “o interesse dos
pobres (ou da maioria) é afirmado quando os pobres (a maioria) mesmos os podem
afirmá-lo”.
Stuart Mill (op.cit, p.281-282) acrescentou a seguinte observação: “os direitos
e interesses de toda e qualquer pessoa só estão a salvo de serem desrespeitados
quando a própria pessoa interessada é capaz de defendê-los e está habitualmente
disposta a defendê-los (...). Os seres humanos só estão a salvo do infortúnio nas
mãos dos outros quando têm o poder de se protegerem a si mesmos, e se protegem
(de fato)”.
66
1.3.4. A democracia totalitária
1.3.4.1 A boa sociedade de Rousseau
De um modo geral, à primeira vista, a realização de uma determinada
igualdade é motivada apenas pela razão, e com a alegação de que os homens
nascem iguais. No momento em que separamos o sentido moral do sentido físico de
igualdade, percebemos que a verdade é exatamente o oposto: afirmamos que é
justo promover certas igualdades precisamente para compensar o fato de que os
homens nascem ou podem nascer diferentes. “É exatamente porque a força das
circunstâncias tende a destruir a igualdade que a força da legislação sempre deve
tender a mantê-la”, observou Rousseau (apud SARTORI, 1994, p.250).
Rousseau apresentou o problema de sua cidade ideal: “encontrar uma forma
de associação que defenda e proteja todos os seus membros, e onde o indivíduo,
embora em uníssono com todos os outros, obedeça somente a si mesmo e continue
livre como antes” (ibidem). Os conceitos de defesa, proteção, indivíduo, obediência
a si mesmo e liberdade – são os conceitos básicos da concepção liberal da vida. Os
dois objetivos principais, objeto de toda legislação são: liberdade e igualdade. E,
para Rousseau, o segundo objetivo era uma implicação do primeiro: devemos
buscar a igualdade, dizia ele, porque a liberdade não pode existir sem ela. “Não há
sombra de evidência que sustente a afirmação de que Rousseau, através de sua
noção de Vontade Geral, transformou em critério da democracia a realização dos
fins, estabelecendo assim uma alternativa, uma interpretação de democracia que
não é liberal-democrática” (ibidem).
Talmon
24
atribui a Rousseau a paternidade da democracia totalitária, mas
esta foi uma conseqüência involuntária e, na verdade, o resultado de um padrão
perfeccionista mais geral. Sempre que Rousseau é apresentado como um teórico da
democracia não-liberal, o que é apresentado de fato são as lacunas de sua teoria. E
24
Les origines de la démocratie totalitaire, 1966.
67
para fazer justiça a Rousseau, convém acrescentar que seus supostos erros são,
com freqüência, erros de seus intérpretes. A conclusão de Talmon é a seguinte:
A democracia totalitária logo evoluiu para uma forma de coerção e
centralização, não por rejeitar os valores do individualismo liberal do
século XVIII, mas por ter tido originalmente uma atitude
‘perfeccionista’ demais em relação a eles (...). O homem não devia
apenas ser liberado das restrições. Todas as tradições existentes, as
instituições estabelecidas e os arranjos sociais deviam ser derrubados
e refeitos, com o único propósito de assegurar ao homem a totalidade
de seus direitos e liberdades, e liberá-lo de toda dependência
(TALMON, 1966, p.291).
Uma sociedade sem classes implica que todos compartilhem as mesmas
opiniões (homogeneidade), portanto, é o unipartidarismo, isto é, o monopólio do
partido único que expressa a verdadeira democracia. O autor observa ainda que um
regime totalitário sempre reflete o ideal de um mundo monocromático, retornando
àquela antiga posição “de que a variedade é incompatível com a autoridade, que só
a unanimidade, e não discórdia, pode ser a base do Estado” (op.cit, p. 273).
Talmon procura demonstrar como a própria democracia pode alcançar um
resultado diametralmente oposto às suas premissas. Através do pensamento de
Rousseau, de Saint Just, do governo exaltado dos jacobinos, da conspiração de
inspiração comunista de Babeuf, o autor desvenda o conceito de democracia
totalitária. Segundo ele “existe uma oposição radical entre o pensamento
democrático e liberal, de estilo individualista e o pensamento democrático totalitário,
de inspiração coletivista”. Em contraste com o modelo parlamentar de estilo
britânico, Rousseau, Marx, Michelet e Rosa Luxemburgo buscaram uma redenção
universal para o homem, quer seja através de uma “República una e universal”, quer
seja através da “Nação da classe proletária”. Talmon observa que a principal
diferença apresentada pelas duas escolas de pensamento democrático (liberal e
totalitária), ao termo de sua evolução, não reside no valor atribuído ao papel da
liberdade, e sim na interpretação do papel da política.
68
1.3.4.2. Democracia liberal e democracia totalitária
Assim, para a escola liberal, a arte da política é apenas uma questão de
aproximações sucessivas, e considera os sistemas políticos como meros inventos
práticos, nascidos da engenhosidade e da espontaneidade humanas. Para ela, a
livre iniciativa individual deve ficar fora do alcance da ação do Estado. Em contraste,
a escola totalitária parte do postulado que existe uma verdade política única e
exclusiva. Ela pressupõe uma ordem natural predeterminada, harmoniosa e perfeita,
em direção à qual os homens aspiram, irresistivelmente, e desejam alcançar. Nesse
sentido, pode ser definido de messianismo político. Ela reconhece apenas um nível
único de existência social: o nível político, que busca expandir ao conjunto da vida
social.
As idéias políticas da democracia totalitária não constituem uma série de
preceitos pragmáticos, nem um conjunto de medidas aplicáveis a um aspecto
específico da vida do homem: elas fazem corpo com uma filosofia coerente e que
tudo abrange. A ação política visa uma organização total da sociedade. O objetivo
final é reinar de maneira integral e exclusiva sobre todos os campos da vida
humana. Ambas as escolas afirmam, porém, o valor supremo da liberdade. Mas
enquanto a escola liberal afirma que a essência da liberdade se encontra na livre
iniciativa e na ausência de opressão, a democracia totalitária só concebe a liberdade
através da realização de um ideal coletivo e absoluto.
Para os defensores da democracia liberal, o objetivo final não tem o mesmo
caráter absoluto. Ele é concebido antes em termos negativos de ausência de
coerção e considera nefasto o uso da força para a realização de uma sociedade
harmoniosa. Em contrapartida, a democracia totalitária tem um ideal messiânico e
um caráter de urgência, que só pode resultar da ação política direta.
O problema da democracia totalitária, segundo Talmon, reside na sua
concepção paradoxal da liberdade: ela defende que o ideal de liberdade pode ser
compartilhado com um modelo político exclusivo, aspirando a um nível elevado de
justiça e bem-estar social. A democracia totalitária acredita que está ao alcance da
razão e da vontade de realizar as aspirações do homem e conseguir a satisfação
69
completa das suas necessidades. Para isso, todas as forças da Nação devem ser
mobilizadas a serviço desse objetivo absoluto.
Para ela, as dificuldades encontradas para a realização desse objetivo só
poderão ser superadas quando se começar a pensar no homem, “não mais tal como
ele é, mas tal como ele deve se tornar, de acordo com os ideais que ele proclama”.
Caso os homens se afastem desse ideal absoluto, deve-se obrigá-los a se adequar
a ele, com o uso da intimidação, da força ou do terror, se forem necessários, o que
não significa para ele violar os princípios democráticos: quando as condições se
tornarem favoráveis, o conflito entre a livre iniciativa individual e o dever do cidadão
desaparecerá, e com a sua eliminação, a necessidade do uso da coerção.
A questão é naturalmente “saber se a coerção terá desaparecido após todos
os protagonistas terem aprendido a conviver em harmonia - ou após todos os
adversários deste regime terem sido eliminados”, ironiza o autor (TALMON, 1966.
p.13).
1.3.4.3 Democracia totalitária de esquerda e de direita
A democracia ‘totalitária’ de esquerda enfatiza o homem, afirma Talmon. O
seu objetivo final da democracia totalitária é a razão, o homem e a sua redenção. Em
contrapartida, as “escolas totalitárias de direita” focalizam uma entidade coletiva: o
povo, o estado, a nação ou a raça. A primeira corrente permanece essencialmente
individualista, atomística e racionalista, mesmo quando eleva a classe e os partidos
ao nível de princípios absolutos. É a razão pela qual as ideologias totalitárias de
esquerda revelam sempre um aspecto messiânico de alcance universal, aspecto que
não se encontra no totalitarismo de direita. Pois a razão tem uma força unificadora
com a pressuposição de que a humanidade é uma totalidade de indivíduos racionais.
Em contrapartida, a corrente de direita nega a existência de tal unidade e
recusa a universalidade dos valores humanos. Ela contempla apenas entidades
históricas, raciais e orgânicas, conceitos totalmente alheios ao individualismo e ao
racionalismo. Ela visa um modo de existência no qual as aspirações do homem,
70
podem ser despertadas num espaço geográfico bem delimitado, mobilizadas e
realizadas de maneira completa, a partir da emoção da massa e do culto aos heróis.
Essa corrente oferece o exemplo de uma sociedade mobilizada, cuja raiz encontra-
se na experiência da guerra moderna.
Outra diferença relevante apresentada pelos dois modelos de totalitarismo
encontra-se nas suas concepções diametralmente opostas em relação à natureza
humana. A democracia totalitária de esquerda afirma que a bondade e a perfeição
são inerentes à natureza humana. A de direita afirma que o homem é fraco e
corrompido. Ambas pregam a necessidade do uso da coerção e da violência. A
corrente de direita considera o uso permanente da força como meio de manter a
ordem nos homens indisciplinados. E para combater as inclinações naturais do
homem, procura ensiná-los a se comportar de maneira exemplar, com o culto do
sacrifício. . Em contraste, na democracia totalitária de esquerda o uso da força só se
justifica como um meio de acelerar a “marcha do homem em direção à perfeição e a
uma sociedade harmoniosa”.
Para Talmon, é legítimo falar de democracia somente no que diz respeito ao
totalitarismo de esquerda, termo que não pode ser aplicado ao totalitarismo de
direita, embora a distinção não faça diferença quanto aos resultados.
Independentemente das suas premissas iniciais, os partidos e os regimes totalitários
de esquerda e de direita tendem invariavelmente a se transformar em “máquinas a
governar que carecem de alma, e que só rendem aos princípios originais
homenagens falsas”, acrescenta o autor (TALMON, 1966, p.18).
71
1.3.5. A POLITIZACAO DA VIDA
1.3.5.1. Do direito de morte ao poder sobre a vida
Segundo Foucault, um dos principais atributos do poder de soberania na
época feudal era o direito de vida e de morte. Esse direito somente era exercido com
relação ao direito de morte, uma vez que o soberano podia matar os seus súditos,
ou fazê-los morrer em guerra. A natureza, a dinâmica intrínseca a esse tipo de poder
consistia em fazer morrer. O soberano só aplicava seu direito sobre a vida,
exercendo seu direito de matar ou deixando de exercê-lo. Ele marcava assim seu
poder sobre a vida pela morte que tinha condições de exigir. O direito formulado
como de vida e de morte era de fato, o direito de causar a morte ou de deixar viver.
A natureza desse direito era, antes de tudo, o de apreensão com base no direito ao
confisco: eram prerrogativas do soberano as apreensões de bens, corpos, tempo e
vida. Esse direito culminava com o privilégio de se apoderar da vida para suprimi-la.
Entretanto, nos interstícios desse ‘magno poder de morte’, o soberano simplesmente
deixava viver.
A partir da época clássica, surge um tipo completamente novo de direito: o de
fazer viver e de deixar morrer. Com ele, há uma transição do direito sobre a morte
para a regulamentação sobre a vida, abrindo o horizonte para as disciplinas e as
biopolíticas. Tal é a configuração que adquirem as redes de poder nas sociedades
industriais, numa dinâmica que Foucault consagrou com o nome de biopoder: um
tipo de poder cujo objetivo é produzir forças, fazê-las crescer, ordená-las e canalizá-
las, em vez de barrá-las ou destruí-las. De acordo com essa perspectiva, ele
comenta:
O confisco não é mais sua forma principal, mas somente uma
peça entre outras com funções de incentivo, de reforço, de controle,
de vigilância, de majoração das forças que lhe são submetidas (...).
Com isso, o direito de morte tenderá a se deslocar ou, pelo menos, a
se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e a se ordene
em função de seus reclamos (FOUCAULT, 1994, p.128)
25
.
25
A vontade de saber, 1994.
72
O velho direito de causar a morte ou de deixar viver vai ser substituído assim
por um poder de causar a vida ou devolver à morte. Agora, é sobre a vida e ao longo
de todo o seu desenrolar que o poder estabelece seus pontos de fixação, a morte
sendo o limiar, o momento mais secreto, mais privado da existência. Numa
perspectiva de genealogia do poder delineada por Foucault, a morte que se
fundamentava no direito, por parte do soberano de se defender ou de pedir que o
defendessem, vai aparecer daqui em diante como o simples reverso do direito do
povo soberano em garantir sua própria vida, mantê-la ou desenvolvê-la. Essa
reversão vai se efetuar em dois níveis:
No nível externo, as guerras não se travam mais em nome do soberano a ser
defendido, mas em nome da existência de todos. Populações inteiras são levadas à
destruição mútua em nome da necessidade de viver. Por outro lado, a guerra passa
a ter como objetivo tanto o fortalecimento da própria raça, com a eliminação da raça
adversa, como a regeneração da própria raça, uma vez que “quanto mais
numerosos forem os que morrem entre nós, mais pura será a raça a que
pertencemos”, escreve o autor. Nesse contexto, a guerra tradicional – com as suas
batalhas, invasões, pilhagens, vitórias e derrotas vão ser substituídas pela guerra
pela vida. Não haverá mais batalha no sentido bélico, mas luta no sentido ‘biológico’:
diferenciação das espécies, seleção natural do mais forte e manutenção das raças
mais adaptadas. Nesse contexto, a luta biológica vai se sobrepor à antiga luta bélica.
No nível interno, o direito de viver não é mais, para Foucault, esse
sustentáculo inacessível que só emerge de tempos em tempos, no acaso da morte e
da sua fatalidade: cai, em parte, no campo de controle do saber e da intervenção do
poder. Do outro lado, o velho direito de morte, símbolo do poder soberano é agora
recoberto pela administração dos corpos e pela gestão calculada da vida. Nesse
contexto, o Estado soberano passa a desempenhar o papel de protetor da
integridade da vida e da pureza da raça contra o perigo biológico que pode vir a
ameaçá-las. Convém examinar a natureza dessa nova função do poder, com base
na distinção entre pureza e impureza efetuada por Zygmunt Bauman
26
.
26
O mal-estar na pós-modernidade, 1998.
73
1.3.5.2. O sonho da pureza
Para Bauman, não há meio de se pensar sobre a pureza sem ter uma
imagem prévia da ordem, sem “atribuir às coisas seus lugares justos e
convenientes”. A pureza é um ideal, uma visão da ordem – isto é, de uma situação
em que cada coisa se acha em seu devido lugar e em nenhum outro. “O oposto da
pureza – o sujo, o imundo, os agentes poluidores – são coisas fora do lugar”. Não
são as características intrínsecas das coisas que as transformam em sujas, observa
ele, mas tão somente sua localização e, mais precisamente, sua localização na
ordem de coisas idealizadas pelos que procuram a pureza.
Segundo o autor (BAUMAN, 1998, p.14) as coisas que são sujas num
contexto podem tornar-se puras exatamente por serem colocadas num outro lugar, e
vice-versa. Ele cita dois exemplos simples, o do sapato e o da omelete. Sapatos
magnificamente lustrados e brilhantes, diz o autor, tornam-se sujos quando
colocados na mesa de refeições. Restituídos ao monte de sapatos, porém, eles
recuperam a prístina pureza. Uma omelete, uma obra de arte culinária que dá água
na boca quando no prato do jantar, torna-se uma mancha nojenta quando
derramada sobre o travesseiro.
Nesse quadro, relembrando as observações de Cynthia Ozick (op. cit., p.13),
a Solução final alemã era uma solução estética, “era uma tarefa de preparar um
texto, era o dedo do artista eliminando uma mancha, ela simplesmente aniquilava o
que era considerado não harmonioso”. Era uma simples questão de poluição
marcada pela presença de pessoas que não se ajustavam, que estavam fora do
lugar, que “estragavam o quadro, e quanto ao mais, ofendiam o senso esteticamente
agradável e moralmente tranqüilizador da harmonia”.
A sujeira é essencialmente desordem. Não há nenhuma sujeira que seja
absoluta. Ela existe apenas ao olhar do observador. A sujeira transgride a ordem.
Eliminá-la não é um movimento negativo, mas um esforço positivo para organizar o
ambiente. Assim, varrer o assoalho, estigmatizar os traidores ou expulsar os
estranhos parece provir do mesmo motivo de preservação da ordem. É por isso que
74
a chegada de um estranho tem um impacto de um terremoto: “o estranho despedaça
a rocha sobre a qual repousa a ‘segurança’ da vida ordinária”.
Se a sujeira é um elemento que desafia o propósito dos esforços de
organização, e a sujeira automática, autolocomotora e autocondutora
é um elemento que desafia a própria possibilidade de esforços
eficientes, então o estranho é a verdadeira síntese desta última. Não é
de surpreender que as pessoas do lugar, em todas as partes e em
todos os tempos, em seus frenéticos esforços de separar, confinar,
exilar ou destruir os estranhos, comparassem os objetos das suas
diligências aos animais nocivos e às bactérias. Não é de se
surpreender, tampouco, que comparassem o significado de sua ação a
rotinas higiênicas; combateram os estranhos, convencidos de que
protegiam a saúde contra os portadores de doença. É isso o que as
pessoas do lugar fizeram em toda parte e em todos os tempos
(BAUMAN, 1998, p.19).
O mundo retratado nas utopias acrescenta Bauman, idealiza um mundo
transparente – em que nada de obscuro ou impenetrável se coloca no caminho do
olhar – um mundo em que nada estrague a harmonia, nada “fora do lugar, um
mundo sem sujeira, um mundo sem estranhos”. Nesse quadro, “a sociedade alemã
tentava incorporar um idílio desprovido de toda fealdade, intocada pelo caos e pela
sujeira”, observa o cineasta Peter Cohen
27
.
O que era totalitário nas ideologias totalitárias era mais do que algo além da
abrangência da ordem que elas prometiam: a determinação de não deixar nada ao
acaso, a simplicidade das prescrições de limpeza e a meticulosidade com que elas
atacaram a tarefa de remover qualquer coisa que colidisse com o postulado de
pureza. “As ideologias totalitárias foram notáveis pela propensão a condensar o
difuso, localizar o indefinível, transformar o incontrolável em algo a seu alcance, e
por assim dizer, à distância de uma bala” (BAUMAN, 1998, p.22).
O nazismo e o comunismo primaram por impelir a tendência totalitária a seu
paroxismo – o primeiro, condensando a complexidade do problema da “pureza” em
sua forma “étnica” de pureza da raça, o segundo, em sua versão “evolucionista” de
pureza da classe. No contexto atual, talvez a forma de “impureza” mais execrável
27
A arquitetura da destruição, 1992.
75
não se encontre mais nos revolucionários do passado, mas nos “estranhos” de hoje
que desrespeitam a lei ou “a fazem com suas próprias mãos”, tais como os países
do “Eixo do mal” e os grupos de ação “terrorista”.
1.3.5.3. Os estranhos e a visão da ordem
De acordo com Levi-Strauss, todas as sociedades produzem estranhos e é à
sua visão da ordem que os estranhos não se ajustam. Construir a ordem torna-se,
neste caso, uma guerra de atrito empreendida contra os estranhos e o diferente.
Segundo o autor, nessa guerra, duas estratégias alternativas foram implementadas:
a) Uma estratégia antropofágica: aniquilar os estranhos devorando-os,
absorvendo-os dentro do ‘ban’ (âmbito do soberano) e depois, “metabolicamente,
transformando-os num tecido indistinguível do que já havia”. É a estratégia da
‘assimilação’: tornar a diferença semelhante; abafar as distinções culturais ou
lingüísticas; proibir todas as tradições e lealdades, exceto àquelas destinadas a
alimentar a conformidade com a ordem nova, que tudo abarca; promover e reforçar
uma medida, e só uma, para a conformidade.
b) Uma estratégia antropoêmica: vomitar os estranhos, expulsá-los fora dos
limites do ‘ban’, dos limites do mundo ordeiro e impedi-los de toda comunicação com
os do lado de dentro. É a estratégia do ‘banimento’, da exclusão ou da concentração
dos estranhos dentro das paredes visíveis dos guetos: purificar, expulsá-los, para
além das fronteiras do território administrado ou administrável, ou, quando nenhuma
das duas medidas for factível, destruir fisicamente os estranhos.
Na ideologia nacionalista e racista, os estranhos são apresentados como fora
do alcance do reparo. Não se pode livrá-los de seus defeitos, somente pode-se
deixá-los livre deles próprios, acabados, com suas inatas e eternas esquisitices e
seus males. No regime totalitário, sob a égide do estado moderno, a aniquilação
cultural e física dos estranhos costumava ser descrita como uma forma de
destruição criativa, “demolindo, mas construindo ao mesmo tempo, mutilando, mas
corrigindo”, escreve Bauman.
76
O que faz certas pessoas “estranhas” e, por isso, irritantes, enervantes,
desconcertantes e, sob outros aspectos “um problema”, é sua tendência a
obscurecer e “eclipsar” as linhas de fronteira que devem ser claramente vistas. Um
retrato psicológico interessante do “viscoso”, esboçado a seguir, por Sartre, nos
ajuda a compreender a repulsão natural provocada pela presença dos “estranhos”:
O viscoso é dócil ou assim parece. Só no próprio momento em que
acredito que o possuo, eis que, por uma inversão curiosa, ele me possui
(...). Se um objeto que seguro nas mãos é sólido, posso soltá-lo quando
quiser; sua inércia simboliza, para mim, o meu poder total (...). Mas aqui
está o viscoso invertendo os termos: meu ego é subitamente
comprometido, abro as mãos, quero desfazer-me do viscoso e ele se cola
em mim, me puxa, me chupa (...). Já não sou o senhor (...). O visgo é
como um líquido visto num pesadelo, em que todas as suas propriedades
são animadas por uma espécie de vida, e volta-se contra mim(...). Se
mergulhar na água, se afunda nela, se me deixo submerso nela, não
experimento nenhum mal estar, pois não tenho qualquer medo de seja lá
como eu possa nela dissolver-me; continuo um sólido em sua liquidez. Se
me deixo submergir no viscoso, sinto que vou perder-me nele (...). Tocar
o viscoso é arriscar-se a ser dissolvido na viscosidade (SARTRE
28
apud
BAUMAN, 1998, p. 39).
A estranheza, como a viscosidade, significa a perda de liberdade, ou o medo
de que a liberdade esteja ameaçada e possa perder-se. O estranho é odioso e
temido, como o é o viscoso, e pelos mesmos motivos. A acuidade da estranheza e a
intensidade de seu ressentimento crescem com a correspondente falta de poder e
diminuem com o correspondente aumento de liberdade. É de se esperar que quanto
menos as pessoas controlam e possam controlar as suas vidas, bem como suas
identidades, mais verão as outras como viscosas e mais freneticamente tentarão
desprender-se dos estranhos que elas experimentam como uma “envolvente,
sufocante, absorvente e informe substância”:
Os estranhos são pessoas que você paga pelos serviços que elas
prestam - e pelo direito de terminar com os serviços delas logo que já não
tragam prazer”. Em nenhum momento, realmente, diz ele, os estranhos
comprometem a liberdade do consumidor de seus serviços. O tumulto e o
clamor chegam, não haja nenhum engano, de outras áreas da cidade,
que os consumidores, em busca de prazer jamais visitam, deixam viver
em paz. Essas áreas são habitadas por pessoas incapazes de escolher
com quem elas se encontram e por quanto tempo, ou de pagar para ter
suas escolhas respeitadas. Pessoas sem poder, experimentando o
mundo como uma armadilha, não como um parque de diversões;
28
L’être et le néant, 1943.
77
encarceradas num território de que não há nenhuma saída para elas,
mas, em que outras podem entrar e sair a vontade (...).
E ainda segue o autor:
Se os primeiros se deleitam com uma porção de convivas e se orgulham
de suas mentes abertas e suas portas abertas, os últimos rangem os
dentes ao pensar na pureza perdida (...). Nem é necessária muita
habilidade na navegação para fazer as velas nacionalistas colherem o
vento que sopra do ódio racista; para alistar, com o mesmo sinal, os ‘sem
poder’ a serviço dos ávidos de poder. O que precisa é tão-somente
lembrar-lhes a viscosidade dos estranhos (BAUMAN, 1998, p.41-43).
Segundo Foucault, a principal função do racismo é de fragmentar, efetuar um
corte no seio do processo biológico a que se dirige o novo poder, um corte essencial
entre o que deve viver e o que deve morrer. O racismo tem um papel central no
poder sobre a vida. Com ele, o inimigo que se trata de eliminar não é mais o
adversário no sentido tradicional do termo, mas o inimigo interno, isto é, o perigo
interno em relação à população e para a população:
No contínuo biológico da espécie humana, o aparecimento das raças, a
distinção das raças, a hierarquia das raças, a qualificação de certas raças
como boas e de outras, ao contrário, como inferiores, tudo isso vai ser
uma maneira de fragmentar esse campo do biológico; uma maneira de
defasar, no interior da população, uns grupos em relação aos outros. Em
resumo, de estabelecer uma cesura que será do tipo biológico no interior
de um domínio considerado como sendo precisamente um domínio
biológico (FOUCAULT, 1999, p.304).
Outra função importante do racismo é a de permitir o fortalecimento da própria
espécie, com a eliminação do perigo biológico. Eliminar a vida, o imperativo da
morte, só se torna aceitável na medida em que possibilita não mais a tradicional
vitória sobre o adversário político, mas a eliminação do perigo biológico e, como
conseqüência desta, o fortalecimento da própria espécie ou raça. Como observa
Foucault (op. cit., p.306), “o racismo, é a condição de ‘aceitabilidade’ de tirar a vida
numa sociedade de normalização”.
78
De maneira semelhante “a necessidade de se preservar a diversidade das
culturas num mundo ameaçado pela monotonia e pela uniformidade”, apontada por
Claude Lévi-Strauss
29
, pode ser reformulada, à luz do racismo, como sendo a
necessidade de se preservar a uniformidade e a “pureza da cultura” num mundo
ameaçado pela diversidade (no sentido negativo de promiscuidade). Na
contraposição “carrasco-vítima”, “civilização-cultura”, talvez não seja por um mero
acaso que o genocídio tenha ocorrido justamente num dos países mais “civilizados”
da Europa e que tenha escolhido precisamente como principal vítima o povo que
talvez representasse um dos mais altos níveis de cultura dessa época!
Outro aspecto a ser observado com o poder totalitário, segundo Foucault, diz
respeito à própria transformação do racismo. Não é mais um racismo externo,
utilizado como instrumento de luta que um grupo exerce contra outro, mas sim um
racismo de Estado, um racismo interno que uma sociedade vai exercer sobre ela
mesma, sobre os seus próprios elementos. Nesse quadro, o Estado vai
desempenhar uma função de protetor da pureza da raça, contra os elementos
heterogêneos - tais como os estrangeiros que se infiltram ou os “transviados” como
subproduto dessa sociedade – que introduzem em seu corpo elementos nocivos que
é preciso expulsar por razões de ordem política e biológica, ao mesmo tempo.
Com o Estado, a idéia (interna) de “pureza da raça” vai se sobrepor à idéia
(externa) de “luta de raças”. O objetivo do Estado é a formação de um conjunto
integrado, “biologicamente monístico”, segundo a expressão de Foucault, no qual a
política e a biologia atuam de modo complementar: o “político” exerce o “poder de
vida e de morte” enquanto o “biológico” estabelece os “critérios” de vida e de morte.
Nesse sentido, não é papel da política dizer ao homem quais são os seus direitos ou
quais poderiam vir a ser, mas da biologia em fixar a norma que deve estabelecer "o
que pode viver" e “o que pode morrer”.
Talvez convenha aqui fazer uma distinção entre as concepções de norma e
de lei. A norma estabelece os critérios de “um sistema de valores”, dentro do qual
somente as categorias de “vida com valor” e de “vida sem valor” se tornam
29
Raça e história, 1973.
79
relevantes. Com relação à “vida sem valor”, a vida deixa de ser um “conceito ético”,
que orienta as expectativas e os legítimos desejos do indivíduo, para se tornar um
“conceito biopolítico”, no qual está em questão a “vida nua” da zoé sobre a qual se
baseia o poder soberano. A norma pressupõe que não haja nenhum sistema ético
que oriente o aparelho judiciário da sociedade: basta a própria existência daqueles
que não se enquadram nos padrões estabelecidos por ela, para definir a
culpabilidade. Ao contrário da lei, a norma não especifica “o que precisa fazer ou
não fazer, mas sim “o que precisa ser ou não ser”. A norma define os critérios de
culpabilidade em função de existir de tal ou tal maneira, “de ser isso antes que
aquilo”: o Judeu é culpado na qualidade de Judeu na Alemanha nacional-socialista,
o Kulak de Kulak na Rússia stalinista.
Em contrapartida, a lei sempre se refere ao gládio, acrescenta o autor. A lei
não pode deixar de ser armada e sua arma por excelência é a morte. Aos que a
transgridem, ela responde com esta ameaça absoluta. Em contraste, um poder que
tem a tarefa de se encarregar da vida terá necessidade de mecanismos contínuos,
reguladores e corretivos. Já não se trata de pôr a morte em ação no campo da
soberania, mas de distribuir os vivos em um domínio de valor e de utilidade.
Segundo Foucault, “um poder dessa natureza tem de qualificar, medir, avaliar,
hierarquizar mais do que se manifestar em seu fausto mortífero”. E continua:
Um poder dessa natureza não tem que traçar a linha que separa os
súditos obedientes dos inimigos do soberano; opera distribuições em
torno da norma. Não quero dizer que a lei se apague ou que as
instituições de justiça tendam a desaparecer, mas que a lei funciona
cada vez mais num conjunto de aparelhos (médicos, administrativos)
cujas funções são, sobretudo, reguladoras. Uma sociedade reguladora
é o efeito histórico de uma tecnologia de poder centrada na vida
(FOUCAULT, 2007, p.135).
De maneira semelhante, o direito do súdito não pode mais se enunciar como
“direito de terem direitos”, mas, “direito de se manter vivo”, em oposição a todos
aqueles pelos quais esse direito foi negado, quer sejam aqueles que “se fazem
morrer” (judeus e ciganos, sob o nazismo) ou aqueles que "se deixam morrer" (como
os danados da terra da modernidade, doentes da AIDS, povo Tibetano ou os povos
80
famintos da África, em cuja morte lenta, o mundo passivamente contempla). De
acordo com Foucault:
Não é de se estranhar que nas sociedades baseadas nas normas, o
poder teve tanta necessidade do auxílio das ciências biológicas e
sociais para regular o seu próprio poder e definir o que entra no âmbito
da norma e o que fica fora. Que essa ciência tem acompanhado e
apoiado o advento do racismo de Estado no século XIX somente pode
reforçar a hipótese da existência de um saber-poder biopolítico que se
constituiu quando os estados estabeleceram como objetivo principal a
gestão da vida dos homens e das populações, com os seus objetivos
temíveis observados durante o século XX (FOUCAULT, 1999, p.191).
Se o genocídio se torna hoje o sonho dos poderes modernos, não é em razão
de um eventual regresso ao velho direito de matar, mas precisamente porque o
poder se situa e se exerce doravante, no nível da vida, da espécie, da raça e dos
fenômenos maciços de população. Foucault (2007, p.125) denomina “biopolítica” o
crescente envolvimento da vida natural do homem nos mecanismos e nos cálculos
do poder. Ao final de seu livro “Vontade de Saber”, ele resume o processo através
do qual, a vida se torna a aposta em jogo na política, com uma fórmula exemplar. “O
homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um animal vivo e,
além disso, capaz de existência política; o homem moderno é um animal, em cuja
política, sua vida de ser vivo está em questão”. Já no século XIX, Friedrich von
Savigny notava: “o Direito não tem em si, uma existência própria; a sua essência é
bem a vida dos homens, considerada sob um ângulo particular”.
Desta forma, tal como uma espada de Damoclès, haverá sobre a vida nua
sempre o risco da fixação de um limiar, além do qual a vida cessa de ter valor
jurídico e pode ser eliminada por “redenção” ou “misericórdia” - sem que se cometa
homicídio (gnadentod). A exemplo da eutanásia, que o poder nacional-socialista
tentou legitimar, como sendo uma vida que não merecia ser vivida (ou viver) em
oposição com a vida digna de ser vivida (ou viver).
Após o término das hostilidades da 1ª Guerra Mundial, com os tratados de
paz e com as novas configurações territoriais e os abalos revolucionários que se
sucederam, surge na cena européia a presença maciça de refugiados e apátridas.
81
Inesperadamente eram revelados a todos os sofrimentos de um número crescente
de comunidades humanas, para as quais as regras do mundo haviam perdido, de
súbito, a validade. Arendt antecipou, no problema dos refugiados, o declínio do
Estado-Nação e o fim do homem. Sem governo para representá-los e protegê-los,
homens passavam a encarnar uma “vida nua”, segundo a expressão de Agamben
“uma vida desprovida de qualquer valor político, uma vida rejeitada às margens do
Estado”.
1.3.5.4. O Poder soberano e a Vida nua
De acordo com Agamben, uma das características principais do poder, na
forma totalitária, é a necessidade de redefinir continuamente, a vida natural, o limiar
que articula e separa o que está dentro e o que está fora da “Ordem natural”. Essa
vida natural (zoé), enquanto no antigo regime era politicamente indiferente e como
fruto da criação pertencia a Deus, no mundo clássico se torna claramente distinta da
vida política (bíos) e passa a ocupar o primeiro plano na estrutura do Estado,
constituindo, assim, o terreno fundamental de sua legitimidade e soberania.
O autor utiliza o termo ‘sacer’ para indicar uma vida absolutamente ‘matável,
objeto de uma violência que excede tanto a esfera do direito quanto à do sacrifício,
do profano e a do religioso. Segundo ele, ‘Sacer esto’ não é uma fórmula de
maldição religiosa que sanciona o caráter augusto e abjeto de algo, mas ao
contrário, a formulação política original da imposição do vínculo soberano.
Agamben esclarece ainda o seu conceito de Sacer através da observação de
um eminente jurista do regime nacional-socialista, Karl Binding (apud AGAMBEN,
2002, p.144), o qual escrevia em 1920, num panfleto a favor “da autorização do
aniquilamento da vida indigna de ser vivida” que não havia nenhuma razão, nem
jurídica, nem social, nem religiosa para não autorizar a morte “destes homens que
não são mais do que a espantosa imagem ao avesso da autêntica humanidade”. A
decisão sobre o valor, ou sobre a ausência de valor da vida como tal, encontrava a
82
sua primeira formulação jurídica. Se a eutanásia se presta a uma dura
“matabilidade”, explica Agamben:
É porque nela um homem encontra-se na situação de dever separar,
em um outro homem, a zoé da bíos e de isolar nele algo como uma
vida nua, uma vida ´matável´. Mas na perspectiva da biopolítica
moderna ela se coloca, sobretudo, na intersecção entre a decisão
soberana sobre a vida matável e a tarefa assumida de zelar pelo
corpo biológico da nação” (AGAMBEN, 2002, p.149).
Com a eutanásia, a vida nua, determinada em termos biológicos e de
eugenia, se torna o local de uma decisão incessante do poder soberano sobre o
valor, ou a ausência de valor da vida, e onde a biopolítica converte-se
continuamente em tanatopolítica.
1.3.5.5. A “exceptio” soberana
A morte da “vida nua” não era vista como transgressão. Agamben diz que a
eutanásia impune abre uma esfera do agir humano que não é do sacrum facere,
nem da ação profana, e que ele trata aqui de tentar compreender: “Nós já
encontramos uma esfera-limite do agir humano, que se mantém unicamente em uma
relação de exceção. Esta esfera é a da decisão soberana, que suspende a lei no
estado de exceção e assim aplica nele a vida nua (...). Segundo ele: “restituído ao
seu lugar próprio, além tanto do direito penal quanto do sacrifício, o “homo sacer”
representaria a figura originária da vida presa no “ban soberano” e conservaria a
memória da exclusão originária através da qual se constituiu a dimensão política”
(op. cit., p.90).
Convém abrir um parêntese sobre a noção de “ban soberano”. Esta palavra
encontra a sua origem, de acordo com Jean Luc Nancy, tanto no antigo termo
germânico “ban”, assim como na expressão francesa “mise au ban” que designa
tanto a exclusão da comunidade (“ban-lieue”), quanto o comando e a insígnia (“ban-
nière”) do soberano. O “ban” marca a linha divisória entre aquele que está sob a
83
proteção da ban-deira soberana - e, portanto assimilável, conforme a estratégia
antropofágica descrita por Durkheim, e aquele que deve ser excluído, ban-ido,
rejeitado, de acordo com a alternativa antropoêmica. O “ban” é propriamente “a
força” simultaneamente atrativa (ban-deira) e repulsiva (ban-imento) que vincula os
dois pólos da exceção soberana: a vida nua (homo sacer) e o poder; a zoé (vida
natural) e o soberano.
A relação de “ban” é, portanto, uma relação de exceção. Aquele que foi
banido não é simplesmente posto fora da lei e abandonado por ela, mas é também
aquele cuja vida é exposta e colocada em risco, no limiar em que vida e exceção se
confundem. Nos limites extremos desse novo ordenamento, “soberano” e “homo
sacer” apresentam duas figuras simétricas, que têm a mesma estrutura e são
correlacionadas. Soberano é aquele em relação ao qual todos os homens são
potencialmente homines sacri. Já, homo sacer é aquele em relação ao qual todos os
homens agem como soberanos. O objeto da soberania passa a ser a vida nua do
homo sacer, exposta, sem mediação, ao exercício biológico de uma força de
correção, de encarceramento (enfermement) e de morte.
Em síntese, a vida nua, (zoé) é originariamente a vida presa no ban soberano
e, de forma simétrica, a produção da vida nua é a principal atribuição do poder
soberano. Agamben escreve que Soberana é a esfera do poder na qual se pode
matar sem cometer homicídio e sem celebrar um sacrifício e sacra, isto é, “matável e
insacrificável” é a vida que foi capturada nessa esfera. O autor ressalta, por outro
lado, que o termo “sacer” não contém nem contradição (santo e maldito), nem
ambivalência de conteúdo (forças religiosas fastas e nefastas). O termo “sacer”
indica, antes de tudo, uma vida absolutamente “matável”, objeto de uma violência
que excede tanto a esfera do direito quanto a do sacrifício, do profano e a do
religioso. “Sacer esto” não é uma fórmula de maldição religiosa que sanciona o
caráter augusto e abjeto de algo, mas ao contrário, a formulação política original da
imposição do vínculo soberano.
Talvez convenha frisar que os termos “nefasto” e “vida matável” não são
desconexos, como parece indicar Agamben, mas bem correlacionados. A nosso ver
é precisamente porque o homo sacer é declarado nefasto e excluído da ‘sacratio’,
84
que se tornam possíveis a sua captura e sucessiva morte, na esfera do ban
soberano.
1.3.5.6. O campo como paradigma do Poder biopolítico
Nesse quadro, surge para Agamben, o campo como a outra face da relação
de exceção zoé-soberano, na qual se exerce o poder soberano. É o espaço que se
abre quando o estado de exceção se torna a regra, bem como o regulador oculto da
inscrição da vida no ordenamento político. O campo constitui o paradigma que
marca, de forma decisiva, a realidade biopolítica da modernidade.
“O campo é também o sinal da impossibilidade do sistema de funcionar sem
transformar-se em uma máquina letal (...)”, explica ele. “A um ordenamento sem
localização (o estado de exceção, no qual a lei é suspensa) corresponde agora uma
localização sem ordenamento (o campo como espaço permanente da exceção)” (op.
cit., p.182). Em outras palavras, o campo constitui um espaço de exceção onde a lei
é integralmente suspensa, onde fato e direito se confundem sem resíduos, e onde,
de acordo com a expressão de Arendt, “tudo é possível”:
Quem entrava no campo movia-se em uma zona de indistinção entre
externo e interno, exceção e regra, lícito e ilícito, na qual os próprios
conceitos de direito subjetivo e de proteção jurídica não faziam mais
sentido; além disso, se era um Hebreu, ele já tinha sido privado,
pelas leis de Nuremberg, dos seus direitos de cidadão e
posteriormente, no momento de ‘solução final’, completamente
desnacionalizado. Na medida em que os seus habitantes foram
despojados de todo estatuto político e reduzidos integralmente a vida
nua, o campo torna-se também o mais absoluto espaço biopolítico
que jamais tenha sido realizado, no qual o poder não tem diante de si
senão a pura vida sem qualquer mediação (AGAMBEN, 2002,
p.177-178).
85
O campo se configura no espaço “cinzento” onde o “homo sacer” torna-se
uma vida absolutamente matável, objeto de uma violência que excede tanto a esfera
do direito, quanto a do sacrifício, do profano e a do divino. O campo de extermínio
do regime totalitário funcionou como um autêntico laboratório onde a vida era
introduzida num “processo contínuo de morte”. É somente no campo que essa
experiência foi possível. Como afirma Rousset
30
, o campo não foi apenas “a
sociedade mais totalitária jamais realizada”, mas também o modelo social perfeito
para o domínio total do poder soberano. Um poder total conseguido sem exceção
sobre todos os homens, em todos os aspectos de suas vidas.
Os campos foram muito bem-sucedidos na tarefa à qual se destinavam: não
apenas à fabricação de cadáveres, mas à destruição prévia das almas. Muitos
descreveram os Musselmänner (prisioneiros cujas forças de vontade estavam tão
completamente destruídas que mesmo antes de morrerem, não estavam mais entre
os vivos) como o produto essencial de Auschwitz. Alguns sobreviventes concluíram
que qualquer resquício de humanidade que havia permanecido depois de Auschwitz
o foi não por meio do campo, mas apesar dele. Desde a longa viagem em condições
que mal se adequavam ao transporte de animais à substituição dos nomes dos
prisioneiros por números, até a eliminação dos corpos, sem vestígios de dignidade
que lhes é normalmente atribuída, tudo era direcionado para a erradicação da
humanidade.
Em certo sentido, o que o poder totalitário visava não era apenas a mudança
do mundo exterior, nem a revolução social, mas, antes de tudo, a transformação da
própria natureza humana. Não obstante, observa Arendt, a história prova que a
natureza humana não pode ser transformada, apenas destruída. Para Antelme
31
, no
fundo do ser humano haverá sempre a necessidade de ser reconhecido:
Os heróis que nós conhecemos da história ou da literatura que
tenham gritado o amor, a solidão, a angústia do ser ou do não-ser, a
vingança, que se tenham erguido contra a injustiça, a humilhação,
nós não acreditamos que jamais tenham sido levados a expressar
como única e ultima reivindicação, um sentimento último de pertença
à espécie humana (ANTELME, 1947, p.11)
30
Les jours de notre mort, 1947
31
L’espèce humaine, 1947
86
No campo experimentou-se a destruição absolutamente fria e sistemática de
homens, com o objetivo de eliminar qualquer vestígio de dignidade humana, bem
como de transformar o homem qualificado (bíos) em mera vida nua (zoé), reduzida
ao silêncio dos refugiados, dos deportados e dos banidos. Tal destruição se tornou
possível, segundo as observações de Arendt, porque os Direitos do Homem foram
apenas filosoficamente formulados, mas nunca estabelecidos; apenas proclamados,
mas nunca politicamente garantidos; perdendo, em sua forma tradicional, toda a
validade. A destituição dos direitos de um homem, a morte prévia da sua cidadania,
é a condição imprescindível para que ele seja inteiramente dominado.
Segundo Arendt (2000, p.167), “o deserdado, marcado da estrela amarela,
não pode mais ter acesso à vida humana, para isso precisa de uma âncora, uma
cidadania, um sentimento de pertencer a um mundo protetor que lhe sirva de pátria”.
Desse modo, o primeiro passo no caminho do domínio total foi o de cassar a pessoa
jurídica do homem (bíos). Isso foi conseguido quando certas categorias de pessoas
foram excluídas da proteção da lei e declaradas ”fora-da-lei”. Além do mais, uma das
poucas regras às quais os nazistas se ativeram constantemente no curso da
Solução final, era a de que somente depois de terem sido completamente
desnacionalizados (até da cidadania residual que lhes cabia após as leis de
Nuremberg), os Hebreus podiam ser enviados aos campos de extermínio.
Como observa Mommsen (MOMMSEN Apud BAUMAN, 1998, p.219),
“somente depois que um acúmulo de legislação discriminatória empurrou os judeus
da Alemanha a um papel de párias sociais, completamente privados de qualquer
comunicação social regular com a maioria da população, foi que a deportação e o
extermínio puderam ser levados a efeito sem abalar a estrutura social do regime”.
O segundo passo decisivo consistia em destruir o caráter moral do homem,
transformá-lo em “animal que não se queixa” e lhe negar até a condição de mártir.
“Quantos aqui ainda acreditam que um protesto tenha mesmo algum valor
87
histórico?, lançou certa vez um oficial nazista, observação esta que foi registrada
por David Rousset
32
.
“Os campos de concentração tornaram anônima a própria morte e, tornando
impossível saber se um prisioneiro estava vivo ou morto, roubaram até da morte o
desfecho de uma vida realizada”. Em certo sentido, roubaram a própria morte do
indivíduo, provando que, doravante, nada – nem a morte – lhe pertencia e que ele
não pertencia a ninguém. “A morte apenas selava o fato de que ele jamais havia
existido” (ARENDT, 2000, p.502).
A destruição da individualidade, com a tentativa, quase sempre bem
sucedida, de domar os homens e torná-los supérfluos, constituía o último passo.
Nesse mundo de seres agonizantes e de criminosos sem crime, os homens
descobrem que são supérfluos, através de um modo de vida no qual o castigo nada
tem a ver com o crime, em que a exploração é praticada sem lucro, em que o
trabalho é realizado sem proveito e em que a “insensatez é soberana”.
Embora os homens fossem “supérfluos”, a lógica da destruição era
implacável. Arendt (op. cit. p.508) observou: “Se os presos são insetos daninhos, é
lógico que sejam exterminados por meio de gás venenoso; se forem degenerados,
não se deve permitir que contaminem a população; se têm almas escravas, ninguém
deve perder tempo tentando reeducá-los”. Vistos através do prisma da ideologia, os
campos parecem até ser lógicos demais, conclui. Essa violência intrínseca ao
totalitarismo não advém apenas do desejo do poder, nem do amor à expansão,
prossegue a autora, mas apenas por motivos ideológicos, “para tornar o mundo
coerente, para provar que a ideologia estava certa”.
Com relação ao uso do termo holocausto para designar o genocídio do povo
Judeu é absolutamente necessário, observa Agamben, que se compreenda a
natureza verdadeira do crime totalitário. O crime não foi um sacrifício, não há nos
seus enunciados nenhuma invocação a um suposto sacrifício, mas apenas uma
referência às medidas de saneamento e de higiene racial.
32
Les jours de notre mort, 1947.
88
De acordo com o autor (2002, p.121), “o querer restituir ao extermínio dos
judeus uma aura sacrificial, através do termo holocausto, é uma irresponsável
cegueira historiográfica. O Hebreu sob o nazismo é o referente negativo privilegiado
da nova soberania biopolítica e, como tal, um caso flagrante de homo sacer, no
sentido de vida matável e insacrificável. O assassinato não constitui, portanto,
nenhuma execução capital, nenhum sacrifício, mas apenas a realização de uma
mera ‘matabilidade’ que seria inerente à condição de Hebreu como tal (...) A verdade
difícil de ser aceita, diz Agamben, é que os Hebreus não foram exterminados no
curso de um louco e gigantesco holocausto, mas, literalmente, como Hitler havia
anunciado, ‘como piolhos’, ou seja, como vida nua (...). A dimensão na qual o
extermínio teve lugar não é nem a da religião, nem a do direito, mas a da
biopolítica”.
É a razão pela qual alguns preferem utilizar a palavra Shoah para designar o
genocídio. Shoah tem sua origem no Livro dos Profetas, nas palavras hebraicas
Seouh Arim que significam: “e as cidades se tornaram vazias (dos seus habitantes)”,
com Seouh no sentido de vazio, de desolação, sentimento de solidão do homem que
o sistema totalitário fez questão de desenraizar, privando todo um povo de seu solo,
de sua terra, os transformando em párias. Arendt também utilizou a palavra
lonelineless” para descrever o que chama “a mais desesperadora experiência do
homem”.
Se o holocausto não foi um sacrifício, convém perguntar quem então foi digno
de sacrifício, da sacratio? Inúmeras vezes, o destino do povo alemão, tal o cavaleiro
de Dürer, tem mostrado o lado mais sublime ou mais sombrio do homem, um destino
“sem medo ou concessões, num curso reto entre a morte e o demônio” (WEBER
33
,
1982, p.41). A nosso ver, somente um povo que tinha o sentimento de estar
envolvido em algo histórico, único, numa visão gloriosa de ”‘Crepúsculo dos Deuses
podia se tornar digno do sacrifício aos deuses. Somente uma nova raça de senhores
cavalgando, ao som de Walkiria, numa cruzada pela purificação do mundo.
33
Ensaios de sociologia, 1982
89
Em contraste, o povo Judeu, só podia se assemelhar à figura do homo sacer,
descrita por Agamben. Inúmeras vezes, a história tem mostrado que a este povo foi
negado o direito de viver livremente, integrado no seio dos povos que o acolheu, de
acordo com a perspectiva antropofágica de Durkheim.
Ainda hoje é negado à parte remanescente desse povo que escolheu viver no
seu país ancestral o direito de viver uma existência livre num Estado soberano.
Nesse contexto, talvez convenha perguntar em que lugar encontrar ainda uma
esperança de viver? Será que talvez somente lhe restasse assumir a condição de
eterno “judeu errante”, de “perpétuo estranho” no seio do país que o adota, de pária
contumaz que lhe foi tradicionalmente atribuído? Aguardando talvez a próxima
sentença pronunciada por uma nova exceção soberana que o declare Sacer, fora do
alcance de qualquer reparo, à mercê de uma provável expulsão para fora dos limites
do ban de um “mundo ordeiro”?
1.3.5.7. Política, ou seja, “o dar forma” à vida de um Povo
Segundo Reiter
34
(apud Agamben, p.152), a principal novidade do nacional-
socialismo consistiu no fato do patrimônio vivente da nação passar ao primeiro plano
- nos interesses e nos cálculos do Reich - e tornar-se a base de uma nova política,
que começou, antes de tudo, estabelecendo “o balanço dos valores vivos de um
povo” e se propôs a assumir “os cuidados do corpo biológico da nação”.
“A revolução nacional-socialista, escreve o autor, deseja fazer apelo às forças
que tendem à exclusão dos fatores de degeneração biológica e à manutenção da
saúde hereditária do povo. Ela almeja fortificar a saúde do conjunto do povo e
eliminar as influências que prejudicam o desenvolvimento biológico da nação”
(AGAMBEN, 2002, p.154).
Esta nova política encontra legitimidade na assunção de uma suposta missão
biopolítica do Estado, de acordo com a concepção do “vir-a-ser” (dasein), na qual
34
Vershuer, O, État et santé, Cahiers de l’institut allemand, Paris, 1942.
90
vida e política se identificavam com a idéia de “dar forma à vida de um povo”. Para
Reiter, “a herança biológica é certamente um destino: mostremos então saber serem
os senhores deste destino, enquanto consideramos a herança biológica como a
missão que nos foi atribuída e que devemos cumprir”. (op. cit., p.155). Nesse
quadro, a assunção do biológico, da procriação, da hereditariedade e da doença nos
processos biológicos, bem como o controle dos seus “acasos” se torna um dos
objetivos mais imediatos do regime.
De acordo com a genealogia do poder analisada por Foucault, nas
sociedades de soberania, o sangue aflorava como o objetivo predileto dos
dispositivos de poder. Os duelos, a esgrima, as batalhas campais, a importância de
se ter certo sangue ou a de se derramar sangue: todos esses fatores revelavam a
potência vital do sangue naquele período. Atualmente, em contraposição à noção de
sangue, toda uma mística ligada aos genes está emergindo, e parece disposta a
converter esses componentes moleculares humanos nos novos protagonistas do
novo biopoder. Assim como o sangue nas sociedades feudais e o sexo no mundo
industrial, hoje são os genes que determinam a essência da vida, “o que você é”.
Nesse sentido, as instituições que comandam hoje a produção de corpos e
almas individuais e a intervenção no substrato biológico das populações se
apresentam como capazes não apenas de regularizar os processos, de polir e evitar
contingências, mas também de alterar as próprias essências orgânicas: mexer nos
códigos da vida, re-programar os destinos biológicos dos indivíduos e das espécies.
Convém agora examinar os novos rumos a serem tomados pela máxima de
face dupla do ‘biopoder’: “fazer morrer e deixar morrer”.
91
1.3.5.8. Rumos da Biopolítica do futuro
De acordo com Paula Sibilia
35
, em contraste com a antiga visão holística
própria das ciências humanas os saberes afinam seu foco no corpo humano:
Os saberes próprios à tecnociência mais recente afinam seu foco para
concentrá-lo no substrato micromolecular do corpo humano: toda a
causalidade é circunscrita à programação genética;
conseqüentemente, a terapêutica deve apontar para a correção dos
erros pontuais inscritos no código genético dos pacientes. Alterar a
programação para corrigir os erros, eis o novo procedimento de cura
das doenças (SIBILIA, 2002, p.186),
Assim no caso específico de crianças condenadas a viver em ambiente
“esterilizado” devido a um problema de déficit imunológico muito grave, a terapia
genética constitui uma imensa esperança uma vez que se trata de “fazer viver aquilo
que não devia viver”: temos aqui aparentemente, um exemplo de “biopolítica
positiva”.
É possível ir ainda mais longe: se a propensão para uma doença reside em
uma característica geneticamente hereditária, por que não realizar uma intervenção
embrionária, que permita eliminar essa propensão nas gerações presentes e futuras
que possam dela padecer? Tal é a proposta das terapias genéticas de linha
“germinal” que prometem diferir de todos os dispositivos médicos do passado,
graças a seu potencial para alterar a espécie humana, afetando não apenas o
indivíduo em tratamento, mas toda a sua descendência.
O exemplo das terapias genéticas, e mais geralmente a idéia das
manipulações genéticas ilustram a marcha de uma sociedade em direção a um
modelo do homem do futuro, “purificado” de toda forma de patologia, um modelo de
homem não mais previsível, mas “programado” desde a sua própria fecundação.
Nesse quadro, observa-se uma evolução em dois níveis: no tocante ao
“homem-corpo”, com o objetivo confessado da biopolítica do futuro de derrotar o
“acaso biológico” e, com ela a própria monstruosidade, convém perguntar se não
35
O homem pós-orgânico, 2002.
92
surge no horizonte político, uma nova forma de eugenia, consistindo menos em
deixar ou fazer morrer os indivíduos irredutíveis a uma norma, do que intervir no
processo natural para que o “vir-a-ser”, o dasein, seja conforme ao que a sociedade
define como normal. Os novos saberes privatizados e descentralizados oferecem no
mercado a promessa de dominar o imprevisível, exacerbando assim uma das
qualidades originais da produção biopolítica: controlar, eventualmente modificar a
probabilidade dos eventos biológicos, em todo caso, compensar seus efeitos.
Talvez estejamos em presença de uma nova versão da velha distinção entre
o que é “digno de viver” e o que não é, e cujo critério não seria mais o sangue (ius
sanguinis), nem o território (ius soli), nem mesmo o sexo, mas a “vida sã”, sadia.
Com a biopolítica moderna, podemos vislumbrar uma transformação gradativa das
antigas comunidades de sangue e de destino em comunidades de homens “vivendo”
(no gerúndio e não adjetivado), observa Philippe Hauser
36
.
Quanto ao “homem-espécie”, podemos afirmar que, com o progresso das
ciências biomédicas, o novo ideal de “otimização da vida sã” vem reformular o
ordenamento das fronteiras nacionais - que outrora opunha entre si comunidades de
sangue e de território - para doravante contemplar comunidades que o
desenvolvimento do capitalismo colocou na posição de povos sãos, saudáveis e
desse modo, “vencedores”.
Segundo Hauser, a intervenção que a OTAN fez no Kósovo talvez tenha tido
o seguinte significado:
Não de impor ao último baluarte comunista e nacionalista da Europa
as condições da lógica do liberalismo mundial, nem de mostrar quem
é o senhor da nova Ordem mundial – como se os nacionalistas pan-
eslavos podiam ainda ignorá-lo – mas de relembrar que o mito do
sangue e da raça pura não faz mais parte da ordem dos ‘possíveis’
políticos dos povos ricos, os quais definem doravante as fronteiras de
inclusão das áreas geográficas, em função de ‘critérios’ de
preservação da vida, que deve ser incluída, a todo custo e por todos
os meios, à comunidade dos povos ‘vivendo’ (2003, p.8).
36
Biopolitique du futur, 2003.
93
Surge, nesse contexto, uma nova divisão do mundo que não se ajusta mais à
tradicional classificação entre povos ricos e pobres, povos desenvolvidos e
subdesenvolvidos, “norte e sul”, mas que obedece à nova distinção entre “povo
vivendo” e “povo morrendo”. De um lado, os “povos vivendo” cada vez melhor, cada
vez mais intensamente, em comunidades que afastam cada vez mais longe o dia da
morte, fazendo dela um assunto cada vez mais privado, tornando, com o auxílio da
tecnologia cada vez mais aperfeiçoada, também mais rígidas as condições de
acesso à “normalidade”.
Por outro lado, os “povos morrendo”, para os quais a morte constitui ainda um
assunto de ordem pública, continuam sendo tratados com meios precários inclusive
em suas epidemias endêmicas e em doenças como a AIDS que os assolam,
enquanto no Ocidente, em contraste, cuida-se de pacientes terminais com terapia
intensiva sofisticada e cara. Nesse quadro, compreende-se o novo interesse das
nações ricas em erguer, entre os “povos vivos” e os “povos morrendo”, não mais a
“muralha de antigamente”, mas sim um “cordão de isolamento sanitário”, a fim de
proteger a vida daqueles que precisam “fazer viver”, longe de qualquer possível
‘contágio’.
De acordo com a visão de Nietzsche, é da natureza do poder proceder a uma
seleção rigorosa entre aquilo que é vigoroso e ascendente e aquilo que é fraco e
decadente. Se admitirmos que os ideais de vida e de saúde se constroem a partir do
contraste entre as imagens de vida e de morte, de saúde e de doença, então se
compreende porque é crucial, para os “povos vivendo”, delimitar e “cercar” o espaço
onde vive confinada a metade da humanidade e no interior do qual a morte ronda e
ameaça.
Por fim, convém mencionar os dispositivos de controle, descritos por
Foucault
37
, que são voltados para a direção da vigilância das populações e da sua
movimentação. Esses dispositivos, hoje constituídos pelo controle dos fluxos
migratórios nas fronteiras dos blocos geográficos ricos e pela expulsão, com os
charters da vergonha”, daqueles que não são “decifráveis” pela norma aceita,
37
Vigiar e punir, 2002.
94
delineiam doravante uma nova linha divisória do mundo, onde a presença daquele
que “não pode viver aqui”, daquele portanto que é “condenado” a viver lá onde
eventualmente “não se pode mais viver”, assinala a necessidade de ressurgimento
do antigo “campo” com uma nova configuração: excêntrico, invisível, composto pelo
resíduo daqueles que não podem ser incluídos no espaço das comunidades de
“homens vivendo”.
95
2. AS MANIFESTAÇÕES DO TOTALITARISMO
2.1. A IDENTIDADE VÖLKISCHE
Faye
38
(1972, p.156) efetuou um interessante estudo genealógico da palavra
völkische. Segundo o autor, Völkische corresponde à germanização do adjetivo
nacional. A justaposição dos dois epítetos heimatlich–völkisch “designa aquilo que é
ligado, em substância, ao país natal e ao seu povo”. Fichte foi um dos primeiros
autores a utilizar o termo em seus primeiros “Discursos à Nação Alemã”. Com ele,
alemão (deutsch), passará a ter o sentido de völkisch, como sendo algo de original,
genuíno, autônomo.
Entre deutsch e völkisch estabelece-se, para Faye, uma relação em dois
níveis: um estritamente horizontal, já que etimologicamente um dos termos
corresponde à tradução literal do outro; e um de natureza vertical, uma vez que as
duas palavras têm o mesmo denominador comum, o mesmo “gerador” comum: o
povo alemão. Citando o Grimms Deutsches Wörtekbuch, Faye escreve que no
decorrer das lutas partidárias, a palavra völkische se torna uma palavra de ordem,
uma palavra de luta e expressa “uma relação de antagonismo entre o mesmo e o
outro, entre o idêntico e o diferente”.
O homem völkisch é um alemão genuíno, absolutamente idêntico a si próprio,
e oposto a tudo que representa a sua negação, o não-völkisch, isto é, aquele que lhe
é intrinsecamente diferente, o forasteiro, o estrangeiro. Com Chamberlain, observa
Faye, o termo passa a ser utilizado em oposição a judeu e se torna a palavra de
ordem cultural e política dos anti-semitas. Associado ao ódio de raça, o termo
constitui a base da profissão de fé política do nacional-socialismo. No decorrer das
lutas políticas, acentua-se assim a oposição de caráter racial aos judeus. O protesto
do homem völkisch é o protesto de uma raça germânica ante a intrusão de uma tribo
estrangeira.
38
Les langages totalitaires, 1972.
96
Na Divina Comédia que chamamos História, o judaísmo significa o
princípio do mal, aquele que é contra, o oposto, o rival, o adversário
que deseja extirpar a alma do mundo (...). A liderança da Judentum
pertence ao organismo da humanidade, assim como certas bactérias
pertencem ao corpo humano. No entanto, a presença dessas
bactérias - que são um mal necessário -, quando excede a medida
tolerável, pode consumir espiritualmente o povo que as carrega’’
(LAMBERT; ECKART apud FAYE, 1972, p.169).
Faye cita Fritsch para quem no começo dos tempos veio o princípio do mal
sob a forma da degenerescência (entartung). A sua causa principal vem da
miscigenação das raças (rassenvermischung). Nas sociedades antigas, o Estado
tinha a tarefa de eliminar da sua órbita, os elementos nefastos. Todos os impérios da
antiguidade, o Egito, a Pérsia, a Índia, tiveram o seu regime de castas, mas o mérito
da Índia, segundo Fritsch, foi o de ter instaurado o regime de sem casta, dos párias,
dos maculados, o regime do tschandala, constituído pelos criminosos, leprosos,
pelos portadores de doença contagiosa.
As medidas de discriminação contra os forasteiros podem parecer duras,
observa Fritsch, mas era o preço a pagar para a expansão dos povos e a
preservação das raças. Desde então, para Fritsch (op.cit., p.176-177), a questão
judaica se confunde com a questão do tschandala. O povo Judeu, essa
“miscigenação vergonhosa”, se tornou uma raça nova, uma raça dos sem raça, uma
entartung, uma degenerescência da humanidade desumanizada. O pretenso
progresso da civilização constitui em realidade um verdadeiro declínio (verfall), uma
vez que “estimula a fraqueza e a miscigenação com aqueles que já foram de todos
os tempos, miscigenados” (FRISCH apud FAYE, 1972, p.176-177).
97
2.1.1. O anti-semitismo völkisch
Ao comparar o conteúdo do discurso dos partidos anti-semitas dos anos 1880
com o do Partido Nacional-Socialista, meio-século depois, Faye observa uma
transformação notável da linguagem, com a substituição da palavra negativa
antisemitich pela palavra völkische, termo positivo por excelência, no ideário do
nacionalismo alemão. “Não se trata mais de incriminar um Povo supostamente
amaldiçoado em sua dispersão. É preciso antes de tudo exaltar o Povo (ariano) para
o qual o ‘Eu’ de Fichte pretende se expandir em toda a sua dimensão biológica”.
(FAYE, 1972, p.194).
Enquanto o movimento anti-semita não passava de um simples movimento de
defesa, de um mero ressentimento, o movimento völkisch significa um despertar
(erwachen). Historicamente, acresenta o autor, o movimento de defesa cobriu o
período do II Reich de Bismarck e o outro, o do despertar, estendeu-se num período
posterior que vai até o III Reich. O völkisch torna-se assim a contrapartida positiva
do anti-semitismo que o antecede e que foi a sua primeira versão negativa.
Enquanto o movimento de defesa anti-semita apresenta um aspecto negativo,
o despertar völkisch corresponde a um movimento de afirmação positiva. Segundo o
autor, a afirmação de uma identidade völkische substituiu o discurso do
ressentimento. Com ela, há uma inversão total de papéis: não é mais o alemão que
é anti-semita, mas é a vez do judeu de ser antivölkisch. Judeu se torna sinônimo de
antivölkisch. De acordo com Faye, essa transformação ocorreu em 1918, ano que
marcou uma verdadeira transvaloração do negativo para o positivo, da reivindicação
para a afirmação, do ressentimento para o despertar.
Os conceitos de classe e de religião passam a assumir um aspecto retrógrado
e devem ser apagados de vez: doravante só é reconhecido como fonte única da
existência alemã, o conceito de etnia (völkstum), de raça (rasse) e de comunidade
de sangue. O ponto de referência da nova identidade völkisch passa a ser a
comunidade de sangue. Assim, nas palavras de Fritsch, as forças em conflito,
durante a Revolta de 1918 foram, de um lado, aquelas que constroem a ”unidade do
povo alemão” (volksgemeinschaft) e, do outro, a idéia doentia de luta de classes. O
98
judeu encarna o inimigo interior, o poder dissolvente que procura destruir
sistematicamente a unidade do povo no seu princípio völkisch.
A partir de Mein Kampf dá-se maior ênfase ao Povo (volk) – no sentido
völkisch-rassisch - de preferência ao Estado (staat). A principal missão do Estado
völkisch é a de preservar os elementos raciais originais em oposição ao tradicional
papel do Estado democrático, como representante do povo soberano. “No Estado, a
luta de classes é substituída pela luta de raças”, observou também Rauschning
(apud FAYE, 1972, p.344).
“O golpe mais forte que tem abalado a humanidade é o advento do
cristianismo”, declarou Hitler (apud FAYE, 1972, p.194), no seu terceiro dia de
campanha na Rússia. Na sua visão, “o bolchevismo é a criança ilegítima do
cristianismo, ambos são invenções do judeu”.
99
2.2. A GUERRA TOTAL
A idéia de Estado total de um tipo inédito surgiu na literatura do início do
século XX, com Wells
39
, London
40
e Belloc
41
. Logo depois, a partir da mobilização
para a Guerra 1914, nasce a idéia de Estado total. Durkheim
42
por seu lado, procura
explicar o adversário teutônico a partir do triunfo de uma concepção do Estado
caracterizado pela noção de potência. Em 1930, Schmitt expõe a sua concepção do
Estado total, a partir da experiência da 1ª Guerra Mundial: “Todo Estado é impelido a
se apossar dos meios de potência de que ele precisa para (exercer) sua soberania
política” (SCHMITT apud CHAPOUTOT, 2005).
Não obstante foi com Yünger, herói de guerra e um dos idealizadores da
Revolução conservadora na Alemanha, que novas perspectivas políticas foram
abertas com a união do velho espírito guerreiro e da modernidade tecnológica. Em
seu livro Der Arbeiter, em 1932, ele esboça uma futura “democracia do trabalhador a
partir de uma vontade de ditadura total (que) se materializa numa nova ordem, como
vontade de mobilização total”. Segundo Yünger, “a nova ‘comunidade de trabalho’
derivada da economia de guerra deve substituir a ‘totalidade humana’ nascida sob
as ‘tempestades de aço’ sofridas nas trincheiras”.
2.2.1. Uma sociedade mobilizada
Cinco séculos antes de Cristo, Sun Tsu já observava: “a prontidão é a
essência da guerra”. As noções de Mobilização total e de Estado total estão
vinculadas. Foram idealizadas pelos mentores da “Revolução conservadora” na
Alemanha, e serão implementadas durante a fase totalitária. Não é de se
surpreender, portanto, que muitos intelectuais tenham aderido a “Revolução”
nacional-socialista. Schmitt se torna jurista oficial do regime, Forsthoff aplaude a
vinda de um novo regime político, Jünger e Ludendorff saúdam o renascimento
39
O adormecido acordado, 1900.
40
O salto de ferro, 1909.
41
O Estado servil, 1911.
42
L’Allemagne au-dessus de tout
100
nacional alemão. O Estado totalitário deverá cumprir as esperanças dos
idealizadores do Estado total.
O regime nacional-socialista pretende organizar uma sociedade sem classes,
uma comunidade nacional orgânica, unida em volta da bandeira com a cruz gamada
do partido único, tornado partido-estado. O Estado nacional-socialista preenche os
critérios quantitativos e qualificativos definidos por Schmitt. Quantitativamente, a
esfera de competência do Estado se estende em toda parte, do berço ao túmulo.
Qualitativamente, o Estado é totalmente uno e forte, voltado para o objetivo último
da guerra.
O Estado em direção ao qual seus idealizadores aspiram é um Estado capaz
de conduzir com êxito o que Yünger chamava de Mobilização total, a totale
mobilmachung, isto é, “a exploração total de toda a energia potencial” de um povo,
empenhado na guerra como um só exército:
A potência é a força organizada, a união do órgão com a força. O
universo é repleto de forças que procuram um órgão para se tornar
potencia. Os ventos, as águas são forças: aplicados ao moinho ou a
bomba hidráulica que constituem os seus órgãos, eles se tornam
potências. Essa distinção entre a força e a potência assemelha-se à
solução do problema da soberania no corpo político. O povo é a força,
o governo, o seu órgão e a reunião dos dois formam a potência
política. Quando o órgão é destruído e que as forças permanecem
[vivas], não resta nada mais do que convulsão, delírio ou furor. E se é
o povo que se separou do seu órgão, isto é, de seu governo, começa
a revolução (YÜNGER, 1990, p.75).
Com a mobilização, é possível conectar toda a rede complexa da divisão do
trabalho da vida moderna “nessa linha de alta tensão” (op. cit. p.109) constituída
pela atividade militar. Ao lado dos exércitos que se enfrentam num campo de
batalha, surgem exércitos de um gênero novo: “o exército encarregado das
comunicações, o que tem a responsabilidade do abastecimento, o que se encarrega
da indústria do equipamento – o exército do trabalho em geral”. A Mobilização total
tem a forma de um dirigismo econômico, de um planejamento industrial centralizado,
à imagem dos planos qüinqüenais soviéticos. Os poderosos programas de
101
equipamentos industriais, a uso militar, dos últimos anos da guerra, transformaram
os países beligerantes “em gigantescas linhas de montagem, produzindo exércitos
que serão enviados, de maneira incessante para o front, onde um processo de
dispêndio sangrento desempenha o papel de mercado” (CHAPOUTOT, 2005).
Com a mobilização e a potência, o Estado não somente atinge a sua
maior extensão territorial, mas adquire uma nova função: dar a
primazia aos problemas de segurança. Não é apenas a extensão
territorial que se torna relevante (...). Com a grande importância
atribuída pelo Estado ao problema da Segurança, doravante é essa
última que delineia a sua forma e o seu destino (YÜNGER, 1990,
p.92).
A esse respeito, Virilio
43
observa que na sociedade antiga, em que
predominavam as estratégias econômicas e política, o exercito era uma defesa
nacional. Sua tarefa consistia em proteger fronteiras ou expandi-las combatendo o
inimigo. Em contrapartida, na sociedade moderna onde predominam os problemas
de segurança, as forças armadas voltam-se contra as suas próprias populações,
para exigir os recursos necessários para a guerra total e para controlar a sociedade.
Podemos distinguir dois sistemas: o sistema de defesa contra um
inimigo, e o sistema de segurança contra uma ameaça (...). A defesa e
o inimigo construíram territórios, temporalidades de todo tipo (...).
Inversamente, a segurança e as ameaças desmantelam territórios (...).
As cidades serão evacuadas, uma diáspora provocada, os territórios
desmantelados. É desregulagem (...) e não só de territórios. Em nome
da segurança, em nome da proteção, tudo é desfeito, desregulado:
relações econômicas, relações sociais, relações sexuais, relações de
dinheiro e poder (VIRILIO, 1984, p.100).
No entanto, a Mobilização total não se restringe apenas ao campo econômico;
investe igualmente na esfera do direito civil e do direito constitucional para criar um
novo tipo de contrato social no qual o cidadão é provido de direitos apenas
compatíveis com a defesa do país. Desta forma, o Estado militariza a vida civil,
submetendo-a a uma organização e a uma disciplina que anunciam a mobilização e
a Guerra total, que serão teorizadas por Schmitt e Forsthoff. Para Forsthoff, jurista e
professor de direito público, membro do Partido nacional-socialista, o Estado total é
a antítese diametral do Estado liberal, do Estado de Direito e do sistema partidário
encarnados pela República de Weimar, que o autor execra:
43
Guerra pura. A militarização do cotidiano, 1984.
102
O Estado total é o oposto do Estado liberal (...). O Estado liberal é
corroído pela luta entre os interesses particulares, pela luta dos
partidos: ele é vazio de conteúdo, minimalista e o seu poder é
anulado pela sua fragmentação em decorrências das garantias
jurídicas determinadas por leis que servem a interesses particulares.
Em oposição, o Estado total organiza e estrutura uma comunidade
total, unida, que supera as tensões antagônicas. A totalidade do
poder político deve cristalizar-se no Estado total (FORSTHOFF apud
CHAPOUTOT, 2005).
Para Forsthoff e Schmitt, o Estado total é o estado por excelência, “aquele
que reconcilia a Comunidade Nacional consigo mesma, promove o interesse geral e
dirige a Nação inteiramente voltada para um destino comum e contra um inimigo
comum”. Schmitt deplora a divisão estéril e feroz inerente aos partidos políticos, que
se enfrentam, bloco contra bloco, corroendo por dentro o Estado e o processo de
decisão política. Ele observa ainda que os partidos políticos têm uma vocação
totalitária pelo caráter radical, intolerante de suas ideologias, assim como pela sua
dimensão social.
Não temos hoje na Alemanha um Estado total, mas uma pluralidade
de partidos, onde cada um procura alcançar a totalidade. Estes
partidos que pretendem oferecer tudo ao mesmo tempo - ideologia,
sociabilidade e comunitarismo -, são partidos totais. Como eles são
numerosos e se opõem frontalmente, cada qual desqualificando a
proposta do outro, a coexistência de várias estruturas totais desses
gêneros, que dominam o Estado por meio do Parlamento, se torna a
causa da destruição do Estado e da Sociedade, em decorrência de
interesses partidários antagônicos (SCHMITT apud CHAPOUTOT,
2007).
De acordo com Schmitt, paradoxalmente - e de maneira perversa - o Estado
pluralista deixa manifestar os objetivos monopolistas de cada um desses partidos
totais, os quais ambicionam o monopólio político e acabam assim por enfraquecer a
ação do Estado. O advento do Estado total só pode ser desejável uma vez que ele é
a única forma de realizar plenamente o conceito de Estado soberano e poderoso. As
forças que o promovem são inelutáveis, em razão do progresso técnico que provê o
Estado de instrumentos de dominação inéditos.
103
A reviravolta para o Estado total é puramente quantitativa e não qualitativa.
Um Estado verdadeiramente total é um Estado forte, que “não deixa surgir dentro
dele nenhuma força que possa lhe ser hostil, que o entrave ou que o divida”. (op.
cit.). Os textos de Jünger, Schmitt e Forsthoff, sobre as noções de Mobilização total
e de Estado total, em sinergia com o pensamento fascista italiano, irão alimentar a
reflexão de Ludendorff sobre a noção de Guerra total.
Em 1916, Erich Ludendorff elabora o Plano Hinderburg para o Alto Comando
alemao, no qual todos os recursos, todas as forças vivas da Nação deveriam ser
orientadas para o esforço de guerra, organizado por um planejamento militar
coerente e centralizado. Após a derrota, Ludendorff expõe suas reflexões em um
livro publicado em 1936 e intitulado precisamente Der Totale Krieg. Segundo ele, a
1ª Guerra Mundial marcou a passagem de uma guerra tradicional, uma guerra de
gabinetes, limitada no seu alcance e nos seus objetivos, para uma Guerra total.
conceito de Guerra total, entretanto, foi associado ao nazismo bem antes da história
do III Reich.
Clausewitz
44
(apud CHAPOUTOT, 2007) operou uma distinção entre guerra
absoluta e guerra de gabinetes. A guerra absoluta era uma expressão para designar
o último estágio de um conflito no qual os beligerantes colocam todos os seus meios
em ação, não apenas para vencer, mas para aniquilar o inimigo. É essa noção de
guerra absoluta, de Guerra total que foi retomada pelo Alto Comando alemão
durante a 1ª Guerra Mundial. Em contrapartida, na guerra de gabinetes, o principal
objetivo era de exercer uma coerção sobre outro Estado, de tal modo a conduzi-lo a
rendição completa. De acordo com a fórmula consagrada de Clausewitz, a guerra de
gabinetes constitui “uma continuação da política por outros meios”; prolongamento
da ação política, a guerra conserva dela a frieza calculada e o alcance limitado. No
entanto, para Ludendorff, a definição de Clausewitz da guerra já é obsoleta, uma vez
44
Karl von Clausewitz, Vom Kriege, trad. fr. De la guerre, 1815.
104
que indica somente um envolvimento limitado, com um objetivo preciso e bem
definido, circunscrito à única esfera militar.
Na guerra de gabinetes, a guerra era, antes de tudo, assunto de ministros e
de soldados. Ela se desenrolava num espaço restrito, em acordo com os tradicionais
códigos da arte bélica e do direito consuetudinário da guerra, que regulavam os
conflitos entre fidalgos havia séculos. No entanto, Clausewitz, que foi
contemporâneo da Revolução Francesa, do alistamento em massa de voluntários,
do recrutamento e do serviço militar obrigatório, já havia percebido os sinais de
mutação na essência da guerra: uma “escalada para os extremos” que devia
conduzir a guerra até a sua “forma absoluta”. Uma forma absoluta que devia se
tornar uma enteléquia, uma força propulsora da própria guerra.
Mas, para Ludendorff (apud CHAPOUTOT, 2007), Clausewitz não foi muito
além. Ele não percebeu que a guerra é assunto de todo um povo. A guerra é a “luta
do povo pela sua vida”. Ela compromete o povo por inteiro e tem como aposta a
sobrevivência do povo inteiro. Doravante é o povo que é diretamente implicado, é
ele que é visado pelo inimigo: “embora a Revolução Francesa já houvesse envolvido
forças populares de outra natureza, a guerra ainda não tinha alcançado, para utilizar
a expressão de Clausewitz, “a sua forma abstrata absoluta”. Essa forma de guerra
absoluta, segundo Ludendorff, será realizada pela 1ª Guerra Mundial: “nessa guerra
era difícil distinguir onde começava a força armada no sentido literal e onde parava a
do povo; povo e exército formavam um só; pela primeira vez, o mundo estava
assistindo, a uma guerra dos povos, no pleno sentido da palavra” (op. cit.).
Neste contexto, desaparece a distinção entre civis e militares. A linha divisória
tradicional que os separava, emaranha-se, apaga-se. O civil se torna combatente
noutro front desta vez, o da retaguarda, graças a uma atividade produtiva e logística
que apóia e abastece a atividade da frente de batalha. Como observa Yünger: “No
decorrer da 1ª Guerra Mundial, não havia uma só atividade que não fosse uma
produção destinada, pelo menos indiretamente, à economia de guerra, quer seja a
de uma empregada doméstica trabalhando na sua máquina de costurar”. Como
combatente, o civil se torna, ao mesmo tempo, alvo e vítima do ataque do inimigo
que o alveja como poderia visar qualquer objetivo militar.
105
Para Ludendorff (apud CHAPOUTOT, 2007), a prática da Guerra total se
ampliou sob as ações do serviço militar obrigatório e do recrutamento, que
associaram grupos cada vez maiores ao feito guerreiro. Foi a Revolução Francesa
que promoveu a Nação em armas, um exército composto de cidadãos-soldados à
imagem das “hóplitas” atenienses. Em Valmy, o “Viva a Nação”, vitoriosamente
oposto ao exército profissional do Rei da Prússia, marca uma dupla revolução
política e militar que se desenvolve sob a ação do progresso técnico: a propaganda
e a aviação propiciaram um raio de ação balística e psicológica, que ampliou
consideravelmente o teatro de operações da guerra. Contrariamente aos conflitos
clássicos - a guerra política dos gabinetes -, a Guerra total não visa apenas o
exército, mas igualmente os povos. Ela os associa como alvos e como combatentes.
Esta constitui uma nova realidade à qual é preciso se conformar.
A “nova guerra” não é apenas total pelo tamanho das forças que ela mobiliza,
mas também pelo investimento material e psicológico que ela implica. Quando dois
povos entram em confronto, quando dois povos colocam em risco a sua própria
existência e lutam pela sua sobrevivência, o envolvimento de cada deles deve ser
total. Ludendorff havia observado a respeito da também chamada guerra perdida de
1914-1918: “Se quiséssemos vencê-los, cada um de nós devia ter dado até o seu
último sopro, no sentido literal da palavra, até a última gota de seu suor e de seu
sangue”. E profetiza: “A próxima guerra exigirá do povo, algo de totalmente diferente:
a disponibilidade absoluta, total de suas forças espirituais, físicas e materiais”. A
nova guerra acrescenta ele, irá exigir o que faltou à Alemanha em 1914: um Estado
e um governo capaz de mobilizar a totalidade das forças espirituais e materiais da
Nação, a fim de direcioná-las para o combate total. Nessa perspectiva, pode-se
observar com Virilio: “logística é o procedimento segundo o qual o potencial de uma
nação é transferido para as suas forças armadas, tanto em tempos de paz como de
guerra” (apud VIRILIO, 1984, p.25).
Aos olhos de Ludendorff, os preparativos para uma Guerra total somente
poderão ser bem sucedidos mediante uma Política total, o que requer um regime e
um governo político determinados a comandar e preparar o povo para tal combate. A
106
política total consagra assim a inclusão do campo militar no espaço e no tempo civil
da paz. O Estado deve estar voltado para a guerra e deve preparar o povo para ela:
“a política total deve se preparar, já em tempo de paz, para apoiar essa luta vital que
ocorrerá no tempo de guerra”, escreve o autor.
O advento moderno da Guerra total inverte, portanto, o vínculo tradicional
entre política e guerra. Enquanto a guerra de gabinete só deixava cicatrizes
superficiais no corpo do povo, a Guerra total coloca em risco nada menos que a sua
própria existência. Cai a perspectiva tradicional de Clausewitz, segundo a qual a
guerra é um prolongamento da ação política por outros meios e que o exército é
apenas uma ferramenta acionada pelo poder político. Em contrapartida, cresce a
perspectiva de Ludendorff que percebe que a nova guerra exige que “as togas
rendam-se às armas”, que o poder político se subordine à força militar e vê que a
eventualidade da deflagração de uma Guerra total pode se tornar uma ameaça à
própria sobrevivência do povo.
O caráter radical da luta - e do perigo - atribui uma prioridade à esfera militar,
a única capaz de adequar os corpos e os espíritos da nação ao combate total: “a
guerra e a política concorrem para a preservação dos povos, mas a guerra
permanece como a expressão suprema da vontade de vida da raça (...). É a razão
pela qual o político deve servir à guerra”, diz Ludendorff (op. cit.), invertendo, assim,
a célebre expressão de Clausewitz, de que não é mais a guerra que deve estar a
serviço do político: é o político que deverá estar a serviço da guerra. Convém
observar, a esse respeito, uma diferença de natureza essencial entre o imperialismo
britânico e o seu rival pangermanista: enquanto no primeiro as baionetas
costumavam ficar a serviço do império da lei, no segundo caso, são as leis foram
colocadas a serviço das baionetas.
107
2.2.2. Guerra total e Era tecnicista
A cena de como tudo isso começou é bem conhecida, no dia 18 de fevereiro
de 1943, no palácio de esportes de Berlim. Duas semanas antes, o Feld-Marchal von
Paulus havia capitulado em Stalingrado. Pela primeira vez, a Wehrmacht havia sido
derrotada numa batalha decisiva. Naquela noite, o reichskulturminister e gauleiter de
Berlim Joseph Goebbels, pronuncia o discurso para reanimar o ardor belicista do
povo alemão. O ambiente estava na máxima exaltação. E chegou ao êxtase no
momento em que Goebbels lançou ao auditório, a famosa pergunta: “Vocês querem
a Guerra total?” E o auditório respondeu um “sim” ardoroso, o que veio a ser um dos
mais furiosos momentos de transe organizado pelo regime! Esta cena ilustra um dos
momentos mais impressionantes da aventura nazista. O discurso de Goebbels
anuncia uma radicalização da violência nazista, sob a dupla forma de terror político
no interior da Alemanha e de enfurecimento da violência no exterior.
“O Reich nazista deve se tornar a última muralha da civilização européia
contra a onda asiática que ameaça arrastar tudo: a estepe arremessou-se sobre o
nosso nobre continente, com uma ferocidade que supera qualquer imaginação
humana ou lembrança histórica (...). Contra ela, o exército alemão deve constituir,
com a ajuda de seus aliados, a única muralha digna deste nome” (GOEBBELS apud
CHAPOUTOT, 2003). O discurso de Goebbels só faz reiterar uma das constantes da
retórica belicista nazista desde o início da guerra. O ataque ao Leste é preventivo,
profilático.
Do ponto de vista geopolítico e racial, os nazistas acreditam estar
ameaçados, cercados, entre um bolchevismo judaico ao Leste e um judaísmo
capitalista ao Oeste. Neste contexto, a guerra é apresentada como um meio de
quebrar o cerco. Para despertar no seu auditório o sentimento de estar sitiado e
desencadear uma reação fanática, Goebbels lança um violento ataque contra a
URSS, projetando nela uma imagem simétrica, mas invertida da do III Reich: “atrás
das divisões blindadas soviéticas que se lançaram sobre nós, já podemos vislumbrar
os comandos judaicos encarregados de nos eliminar. Atrás deles, o terror avança”
(op. cit.). Goebbels projeta na URSS uma imagem fiel das práticas nazistas: os
pretensos comandos judaicos, produto da imaginação delirante de um orador com
108
falta de argumentos, constituem a imagem invertida dos einsatzgruppen da SS, bem
reais e comprovados.
Segue uma curiosa metáfora, a de divisões de robôs motorizados que
arrasariam todo o continente europeu, não fosse a resistência alemã. A aterrorizante
caricatura que Goebbels oferece sobre a URSS tem “a máquina” como ponto central.
A comparação mecanicista utilizada constitui um argumento polêmico,
propagandístico, que será utilizado contra a União Soviética.
A URSS comunista é uma “máquina” que oprime e esmaga; uma “máquina”
cega que mata em benefício do inimigo judeu, uma máquina que fabrica robôs
lançados aos milhões contra a civilização européia. A imagem da “máquina” evoca
um artefato frio e coercitivo. Em contrapartida, ao regime nazista atribui-se outra
representação, a de um organismo harmonioso (volkskörper) que justifica a
presença do Estado total como imperativo natural. A luta contra os elementos
estrangeiros ao corpo da nação (volksfremde), ao corpo natural da raça, é baseada
numa retórica “biologista”, invocando as leis da natureza que desenvolve anticorpos
contra os micróbios e os parasitas.
Invariavelmente, os judeus são objetos de denúncia que partem de metáforas
profiláticas ou bacteriológicas: a peste judaica que representa uma ameaça contra a
integridade do corpo alemão. Não é de surpreender a preferência pela utilização de
símbolos organicistas, por parte de um regime que fundamentou toda sua ideologia
sobre um “biologismo bélico-racista”. Metáfora organicista contra metáfora
mecanicista: a segunda visa a desqualificar o inimigo, denunciando tudo que ele tem
de artificial e coercitivo, enquanto a primeira exalta o potencial vital do corpo natural
da nação, da raça e o imperativo natural da luta impiedosa pela vida.
No entanto, aos olhos de muitos analistas, foi com o regime nazista - e não
com o seu rival soviético - que pôde ser observado o triunfo da máquina e da política
mecanicista. Com efeito, do ponto de vista militar, os nazistas têm-se aproveitado
das vantagens do progresso técnico. Fiéis ao princípio napoleônico, segundo o qual
a força de um exército é o produto da sua massa pela sua velocidade, os
estrategistas nazistas idealizaram uma Wehrmacht com o peso do aço e a rapidez
109
do blindado motorizado. O esforço de rearmamento alemão caracterizou-se por
uma mecanização acentuada que se tornou a base estratégica da guerra-
relâmpago.
Como observa Virilio: “nós temos de politizar a velocidade, seja a velocidade
metabólica (do ser vivo), seja a velocidade tecnológica. Temos de politizar a ambas,
porque nós somos ambas: somos movidos e nós locomovemos (..). Velocidade é
violência. O exemplo mais óbvio é o meu punho (...). Posso transformar este punho
na carícia mais delicada. Mas, se arremessar em alta velocidade, posso fazer o nariz
sangrar. Você pode ver facilmente que o que faz toda a diferença é a distribuição da
massa no espaço” (VIRILIO, 1984, p. 37 e 39).
Na guerra antiga, a defesa não consistia em acelerar, mas em retardar o
avanço das tropas, continua o autor. A preparação para a guerra era a muralha, o
baluarte, a fortaleza. No oposto, a blitzkrieg visa penetrar a frente inimiga a partir de
um choque violento e decisivo, impossível de ser contido. A velocidade das forças
blindadas motorizadas, combinada com a força de ataque da Luftwaffe, possibilitava,
graças a um movimento rápido e brutal, a abertura de uma brecha por onde podia
precipitar-se o resto da tropa. Os nazistas zelaram pela motorização eficiente de
suas tropas e pela fluidez do espaço, desembaraçado de qualquer obstáculo, para
permitir os avanços rápidos. Tal como a construção de auto-estradas do Reich, que
teve como objetivo essencialmente estratégico e militar, o de “aproximar os
isócronos com a condensação dos espaços-tempo” (CHAPOUTOT, 2003).
Segundo Christian Dubois
45
, nessa comunidade holística, que é a
comunidade nacional (völksgemeinschaft), cada indivíduo é considerado como uma
mola, e deve obrar para o trabalho do grande todo. Num Estado total que se
assemelha a uma grande máquina, o indivíduo não é senhor do dispositivo. Ao
contrário, ele é apenas um elemento do dispositivo, uma simples peça do dispositivo
que ele acredita dominar. Assim, a dominação técnica é o sinal de uma impotência
fundamental, de uma impropriedade fundamental de toda dominação, na qual o
homem se embrenha numa figura de inversão do domínio em escravidão. O que é
45
Heidegger: Introdução a uma leitura.
110
perigoso na técnica é simplesmente que respondendo o seu apelo, sem dele ser
consciente, o homem é reduzido a um mero elemento disponível, uma peça como
qualquer uma dentre do maquinário geral.
Jünger, por sua vez, já notava que as restrições às liberdades individuais
visam “eliminar tudo o que não era essencial ao mecanismo de funcionamento do
Estado”. A máquina do Estado total “converte toda existência em energia” para
alimentar os sispositivos imprescindíveis ao seu próprio movimento: a concentração
dos poderes, a Mobilização total e, por fim, a própria guerra. A imagem do Estado,
identificada a uma máquina, tem impregnado todo o discurso nazista, retomando
assim o discurso político e jurídico prussiano que utilizava, desde o século XVIII, as
noções de staatsapparat, de staatsmaschinerie, para projetar a imagem de uma
máquina de Estado racional.
2.2.3. Uma Sociedade ‘alinhada’
O regime nacional-socialista, certa vez utilizou outras expressões que ilustram
uma visão mecanicista do Estado: assim, o conceito de Sociedade alinhada
(gleichschaltung), que significa literalmente “colocar na mesma velocidade”,
sincronizar, e que muitas vezes foi traduzido como endireitar, adestrar ou alinhar.
Gleichschaltung é um termo emprestado do vocabulário eletro-técnico: schalten
significa engatar uma marcha ou acionar um aparelho. Desse modo, gleichschlten
significa coordenar, harmonizar, regular na mesma cadência, no mesmo ritmo,
regular um mecanismo. Acionar em suma, uma máquina e, neste caso, a máquina
do Estado total, do Estado-partido, do Estado-sociedade. Na prática, a
gleichschaltung significou o endireitamento dos sindicatos, dos partidos, dos länder,
das Associações de Veteranos de Guerra, que deveriam atuar de maneira
cadenciada, num movimento harmônico, em boa ordem. O discurso de Goebbels dá
uma grande ênfase a essa noção:
111
O que entendemos pela gleichschaltung (...) não é nada mais que
uma transformação radical do Estado e de todos os partidos, de todas
as comunidades de interesses, de todas as associações, para
transformá-los num grande todo. É um passo decisivo em direção ao
Estado total que poderá existir no futuro, somente através da unidade
num só partido, de uma só convicção, de um só povo. Todas as
outras forças devem ser subordinadas a esse Estado ou, antes, ser
varridas sem piedade; pois esta Revolução desconhece os
compromissos; os compromissos são os assuntos do
parlamentarismo (GOEBBELS apud CHAPOUTOT, 2005).
Nesse Estado total, o indivíduo só tem lugar e existe apenas na condição de
mola propulsora. Só tem valor na medida em que contribua para o bom
funcionamento do conjunto, em que desempenhe o seu papel, a sua função.
2.2.4. O indivíduo performático em uma sociedade mecanizada
O valor que o indivíduo tem para uma sociedade ‘alinhada’ é estimado em
função da sua capacidade contributiva (leistungsfähigkeit), isto é, da sua aptidão em
cumprir com êxito um leistung, uma tarefa em prol da comunidade e do Estado. O
conceito de leistung é muito significativo na retórica nazista. Etwas leisten significa
efetuar, produzir, realizar algo: é um indicador normativo utilizado para avaliar a vida
do homem em prol da comunidade a qual pertence, uma vida submetida ao cálculo
custo/benefício. Um indivíduo só é aceito, incentivado, promovido e alimentado na
medida em que possa trabalhar para o seu Estado e para a sua raça, enquanto a
sua capacidade contributiva (leistung) exceder generosamente aquilo que a
comunidade vai lhe retribuir.
Desse modo, quando a vida de um indivíduo representa uma perda líquida
para a comunidade (leistungsunfähig), a pessoa é declarada “indigna de viver”
(lebensunwert). Uma vida indigna de ser vivida (lebensunwertes leben) será então
interrompida pela morte como a dos doentes mentais, submetidos a uma ação de
eutanásia no quadro da “operação T4”. Um indivíduo leistungsunfähig se torna um
ônus para a comunidade, um peso morto que atrasa a marcha da máquina, da raça
e do Estado. “Ele deve ser virado de bordo, como uma máquina defeituosa que tem
112
dificuldade para adquirir altitude ou ganhar velocidade”. (CHAPOUTOT, 2005, p.9-
10)
A situação de um indivíduo que representa uma “perda líquida”
(leistungsunfähigkeit) para a Comunidade determinará de maneira inelutável a sua
sentença de morte; em contrapartida, a capacidade contributiva dos indivíduos
saudáveis (leistungsfähigkeit) deve ser incentivada e promovida, notadamente pela
prática do esporte, de uma alimentação saudável, da higiene e, sobretudo, pela
preservação da pureza racial. A prática do esporte (köperliche ertüchtigung) deve
tornar o corpo harmonioso e forte, mas também duro e resistente, como o aço, “esse
aço da máquina e do homem transformado em máquina de aço, símbolo manifesto
de força e de obediência”. (CHAPOUTOT, 2005, p.9-10)
Essa máquina individual deve exercer uma atividade produtiva, produzir
leistung, o que significa também “produzir filhos”. A procriação se torna um
imperativo político que é incentivado pelo Estado e pela propaganda. É preciso
produzir braços para a indústria e para a guerra. Segundo Chapoutot, a expressão
utilizada pela propaganda nazista é: “produzir crianças” (kinder zeugen) do mesmo
modo que numa fábrica, uma máquina produz (erzeugt) mercadorias (erzeugnisse).
O indivíduo é considerado pelos nazistas como “um material humano”
(menschenmaterial), uma matéria-prima que deve ser aperfeiçoada, esculpida,
construída. O “material humano” nazista é, antes de tudo, um material racial que o
esporte e a higiene devem modelar. Esse material selecionado deve ser “colocado
em forma” e aperfeiçoado tanto pela eliminação dos fracos, dos débeis mentais e
dos alógenos, quanto pela absorção dos ‘iguais’, dos semelhantes mais vigorosos.
Como observou Yünger, o Estado total - que mobiliza toda a população, as
almas e as energias para a Guerra total - lembra o funcionamento preciso de uma
“turbina alimentada com o sangue humano”, imagem assustadora de uma Estado-
máquina que injeta sangue e corpos de homens numa máquina de guerra, num
contexto de “guerra mecanizada de uma era tecnicista”. O advento da era tecnicista
descrita por ele teve repercussões no período entre as duas Grandes Guerras.
Como foi citado no capítulo da matriz social (Cap. 1.2), foi a partir da 1ª Guerra
Mundial, que o combatente se tornou uma mera peça mecânica. A mecanização
113
desses indivíduos contagiou as relações humanas e abriu caminho para que a
cultura da guerra influenciasse a sociedade civil alemã. De acordo com Mosse, as
sociedades européias ficaram traumatizadas com o horror das trincheiras por um
longo período. Muitas tiveram dificuldades em esquecer-se da guerra, como foi o
caso da Alemanha, num fenômeno de “brutalização das sociedades européias”.
De acordo com Mosse, a retórica e a ética política foram impregnadas por
uma agressividade que imprimiu na atividade política civil um aspecto belicista, tanto
pelo discurso inflamado, quanto pelas ações violentas. Existe uma filiação direta
entre o ideal nazista do soldado político e uma tradição militar prussiana que tem
sido o modelo de todos os exércitos da Europa. A esse respeito, o autor lembra a
observação perspicaz de Mirabeau, durante o seu semi-exílio em Berlim, em 1788:
“A Prússia não é um Estado que possui um exército; é um exército que ocupa um
Estado” (CHAPOUTOT, 2003).
O Estado total que extingue a separação entre o Estado e a Sociedade -
talvez indique esse momento no qual a sociedade se militariza com muita
intensidade, onde o Estado, voltado para a Guerra total organiza resolutamente a
Mobilização total da sociedade. Nesse sentido, o totalitarismo nacional-socialista foi
a manifestação de uma vontade de “mecanizar o homem e a sociedade”, sob a ação
de um Estado total.
Em resumo, o III Reich ambicionou se tornar uma sociedade alinhada
(gleichgschaltet), regida pela capacidade contributiva (leistungsprinzip) e pelo
sacrifício do seu material humano (menschenmaterial), aspirando a se tornar uma
máquina total que regula toda a atividade mecânica e planejada de ‘cidadões-
autômatos’.
114
2.2.5. Genealogia da Guerra total
Um decreto do führer de 25 de julho de 1944 proclama a Guerra total:
O aparelho de Estado deve ser inspecionado e reavaliado no seu
conjunto, de tal modo a se obter uma liberação máxima de forças para
o exército e a produção, uma organização mais racional dos serviços
públicos, uma redução das tarefas não diretamente úteis à guerra
graças a simplificação e a melhoria dos processos (HITLER, 1944,
apud CHAPOUTOT, 2005).
Toda uma organização racional será mobilizada para melhorar o
desempenho da máquina estatal. Goebbels (apud CHAPOUTOT, 2005) anuncia
medidas de terror cada vez mais duras: “Tudo que serve ao povo, tudo que o
mantém, tudo que endurece e desenvolve a sua força de combate e de trabalho é
bom e indispensável para a guerra”, diz ele. “Tudo que se opõe a esse objetivo deve
ser erradicado (...). Hoje, o mais radical é apenas bastante radical, e o mais total é
apenas bastante total para nos levar à vitória, a uma vitória total”.
O conteúdo da propaganda nazista visa uma mobilização mecânica das
energias e da violência. O regime nacional-socialista deseja abertamente a guerra,
Hitler tem explicitamente afirmado tal intenção em Mein Kampf. Essa guerra será
primeiramente contra o Oeste, para saldar as contas com o inimigo hereditário, a
França. Contudo, a frente no Ocidente é secundária para ele, apesar da importância
e da popularidade que lhe traria. A verdadeira guerra é a racial e colonial ao Leste.
Ansioso de atribuir à raça nórdico-germânica, novas áreas de expansão, Hitler
ambiciona conquistar um espaço vital ao Leste, e andar assim nos rastros dos
cavaleiros teutônicos, que outrora, na época do “drang nach Osten” medieval, já
haviam iniciado a colonização da Polônia e da Rússia.
No entanto, tal luta não deverá se assemelhar a nenhuma outra. A raça
nórdica deverá ser libertada da ameaça judaica e da horda de “sub-homens” eslavos
que a mesma emprega: essa guerra será uma Guerra total, uma guerra de
extermínio, como ele mesmo expõe aos seus generais em 31 de março de 1941. No
115
dia 15 de junho do mesmo ano, Himmler, o reichsführer da SS apresenta a primeira
versão de Plano Leste (General Plan Ost), projeto de remodelagem do espaço
territorial europeu, sob o critério racial. Com esse Plano, ele prevê o
desaparecimento, no médio prazo, de cerca de 31 milhões de eslavos, para liberar
as terras assim ofertadas à colonização germânica: três milhões de alemães
reichsdeutch deverão ser implantados na frente pioneira do Leste. A deportação, a
esterilização dos eslavos e o extermínio dos seus mandantes judeus deveriam
possibilitar a expansão do espaço vital da raça alemã.
A guerra no front Leste vai se tornar um verdadeiro massacre, um combate
implacável e exterminador. A Wehrmacht não respeita nenhuma convenção de
guerra. Ela não prevê nem alojamento e nem abastecimento para os prisioneiros de
guerra soviéticos. Amontoados em recintos a céu aberto, os prisioneiros morrem de
inanição, de fome, de calor e de frio. Deportados, na Alemanha para fazer tornar a
máquina de guerra industrial, eles são mal alimentados e submetidos a um
tratamento desumano, sem comparação com o tratamento reservado aos
trabalhadores forçados ocidentais, franceses, belgas ou italianos. De cinco milhões
de prisioneiros de guerra soviéticos, 3,2 milhões morreram entre 1941 e 1945.
Por outro lado, divisões inteiras de Waffen-SS foram especialmente criadas
para desempenhar na arte da guerra o que o Estado de exceção representava para
o direito. Excuindo-se o juramento de fidelidade ao chefe supremo, os SS não
estavam vinculados a nenhuma norma, qualquer que fosse. As violações
deliberadas do direito de guerra e dos direitos humanos pelo regime nazista
provocaram um nível de violência de tal ordem, que qualquer retorno se tornou
impossível; a única saída possível para a guerra sendo doravante a derrota total e a
capitulação sem condição. Em quatro anos de guerra, o regime violou todas as
convenções e os acordos tácitos do direito de guerra, notadamente com a quebra do
tabu do massacre de populações civis.
A SS organiza meticulosamente o extermínio dos judeus soviéticos. Himmler
e Heydrich criam quatro unidades especiais, os grupos de intervenção
(einsatzgruppen), compostos por recrutas da polícia alemã e por soldados da
Waffen-SS comandados por generais da SS. Os quatro einsatzgruppen A, B, C e D
116
devem “varrer” o território soviético ocupado, seguindo os rastros da retaguarda da
Wehrmacht. Sua missão é de liquidar os altos funcionários comunistas de origem
judaica e em seguida, a partir do outono de 1941, do extermínio sistemático de
populações judaicas. Até 1944, os três mil homens das einsatzgruppen fizeram mais
de um milhão de vítimas. Esse extermínio itinerante é realizado de maneira
rudimentar, através de execução na margem de valas comuns, de maneira
selvagem, enquanto organiza-se o aniquilamento industrial em massa, em campos
de extermínio. Era necessário relembrar esses fatos para restituir o contexto da
proclamação da Guerra total em 1943.
O confronto com a URSS é apresentado pelos nazistas como o episódio final
de uma “gigantomaquia” racial na seqüência daquelas que têm percorrido a história
há séculos. Um combate de titãs que opõe a raça ariana a seu inimigo judeu com os
seus seguidores, recrutados numa “subumanidade asiática”. O bolchevismo torna-se
o inimigo total que procura a destruição do Reich, tal como outrora o cristianismo-
judaico com o desmoronamento do Império Romano do Norte. O anúncio da derrota
em Stalingrado constitui um choque de mau presságio. O Reich reage então pela
proclamação da Guerra total, nas palavras de seu ministro da propaganda,
Goebbels. No dia 25 de julho de 1944. Goebbels será então nomeado
Generalbevollmächtigter zum totalen kriegseinsatz, Comissário geral plenipotenciário
para o envolvimento na Guerra total.
Desde o início, o Estado nacional-socialista tem sido totalmente voltado para
o objetivo último de confronto racial e de expansão do espaço vital (liebensraum) no
Leste. O “alinhamento” (gleichschaltung) dos anos 1933-1934 parece ter sido o
prelúdio da Mobilização total, que teve início dez anos mais tarde, em fevereiro de
1943. O Estado-máquina vai apertar cada vez mais os parafusos. Todos os serviços
de polícia e de repressão (SS, SD, Gestapo) são doravante centralizados e
reunificados no Ofício Central pela Segurança do Reich (RSHA), cuja direção é
atribuída a Heinrich Himmler, chefe da SS. Seu braço direito, Reinhardt Heydrich
estabelece como consigna “reprimir sem piedade toda manifestação contra a
unidade e a vontade de combate do povo alemão”. A coesão do povo alemão, a
solidariedade das diferentes molas da máquina, não pode sofrer nenhum
abrandamento. A engrenagem da violência se radicaliza. A máquina do terror será
117
acionada contra a população alemã, no âmbito interno e contra os inimigos do
Reich, no exterior.
2.3. O PERIGO TOTALITÁRIO
Genocídio é um termo cunhado pelo professor norte-americano de direito
internacional, Raphael Lemkin
46
, a partir da palavra grega genos (raça, povo) e do
sufixo latim cídio (de caedere – matar). O que diferencia etnocídio de genocídio
pergunta o autor? Etnocídio significa todo projeto ou ação que conduz à destruição
da cultura de um grupo, à erradicação de sua etnicidade ou identidade étnica.
Genocídio é constituído de uma multiplicidade de ações, visando a destruição das
bases de sobrevivência de um grupo enquanto grupo.
Para Lemkin (apud BRUNETEAU, p.8), o etnocídio visa a aniquilação cultural
de um povo, sendo a morte a conseqüência e não o instrumento do objetivo
perseguido. Em contrapartida, o genocídio perpetrado pelo III Reich teve como
objetivo a destruição física completa de um povo, o que marca assim um regresso às
barbáries do passado, como àquelas ocorridas na Antiguidade e na Idade Média. Do
seu lado, Pieter Drost
47
, professor de direito holandês, estudou as noções de
humanicídio e de genocídio. O autor (apud BRUNETEAU, 2004, p.12) defende a
reintrodução de um critério político para o genocídio que ele define como a
“destruição física premeditada de seres humanos em razão de pertencer a uma
coletividade humana qualquer”. Temos assim uma definição ao mesmo tempo
restritiva (somente a aniquilação física é privilegiada) e aberta (com um grupo-alvo
não diferenciado).
Helen Fein
48
tem elaborado uma abordagem sociológica do tema fazendo
prevalecer uma tipologia do genocídio. Com efeito, a autora faz distinção entre
genocídio de desenvolvimento (destruir grupos que fazem obstáculo a um projeto
econômico), genocídio despótico (eliminação de uma oposição real ou potencial) e
genocídio ideológico (destruição de um grupo apresentado como inimigo absoluto).
Segundo ela, o genocídio é um ”assassinato calculado” perpetrado contra um grupo,
46
Genocide, American Scholar, 15, 1946.
47
O Crime de Estado, 1959.
48
Accounting for Genocide, 1992.
118
em parte ou na sua totalidade, por um governo, uma elite, uma equipe ou uma
multidão representativa.
Leo Kuper
49
apresenta a seguinte definição: “Os genocídios cometidos contra
os grupos raciais, étnicos ou religiosos ocorrem sempre em decorrência de conflitos,
a partir de considerações ideológicas e políticas” (apud BRUNETEAU, 2004, p.13).
Neste caso, é a motivação criminal daquele que perpetra o crime que deve ser
levada em conta, quer em se tratando de genocídios interiores (contra povos
autóctones ou grupos-reféns - o holocausto pertencendo a essa categoria), quer em
se tratando de genocídios cometidos durante um conflito internacional.
Yehudah Bauer (apud BRUNETEAU, 2004, p.14), fundador da revista
Holocaust and Genocide Studies, tem proposto outra definição do genocídio,
excluindo a destruição dos judeus da Europa dessa definição, pelas suas
características genuínas. Neste caso, o autor distingue um primeiro tipo de
criminalidade, o genocídio propriamente dito, que pretende realizar o massacre
seletivo das elites em geral – com objetivo de desnacionalização ou de escravização
- e um segundo tipo, o holocausto, que procura planejar “uma aniquilação física, por
motivos ideológicos ou pseudo-religiosos, de todos os membros de um grupo
nacional, étnico ou racial”
Para Bauer o holocausto seria uma forma extrema de genocídio, não tanto
pelo sofrimento suportado pelos judeus, mas pela combinação de três elementos,
nunca reunidos por completo, nos outros genocídios: a intencionalidade meramente
ideológica - e de forma alguma pragmática - dos nazistas; o alcance potencial de
caráter universal da Solução final, com a perseguição dos judeus em todos os
lugares; e, por fim, a procura de um extermínio total - a exceção sendo excluída para
os membros de um determinado grupo, em razão da sua essência biológica.
É esse extremismo, acrescenta o autor, que faz do holocausto um
acontecimento sem precedentes na história e, portanto, único, justificando assim
49
Genocide, 1981.
119
uma categoria analítica específica para ele. Nesse caso, é o quadro das diferenças
que leva vantagem.
Para Bruneteau, declarar que o genocídio judeu é único na sua dimensão de
catástrofe metafísica, desafiando, portanto, qualquer comparação, tem por único
resultado, obscurecer atos concebidos, perpetrados e aprovados por alguns países
europeus do século XX. O autor critica do mesmo modo o historiador americano
Norman Finkelstein (apud BRUNETEAU, 2004, p.20), que numa tese contestável
pelo seu aspecto sistemático, tem afirmado que o holocausto é único sob a
perspectiva de interesses políticos e materiais, por parte de organizações e
intelectuais pró-sionistas acusados de explorar o sofrimento de judeus, denunciando
assim uma espécie de shoah business.
Outros autores como Eric Markusen
50
(apud BRUNETEAU, 2004, p.16) têm
avançado o conceito de democídio, no qual a própria guerra é definida como um
crime de massa contra grupos opostos, ordenado pelos governos dos países
beligerantes. Neste contexto, considera os bombardeios estratégicos, durante a
Guerra total do século XX, como um massacre maciço de populações sem defesa,
provocado por uma mentalidade genocídica.
Coube aos pesquisadores Frank Chalk, Kurt Jonassohn
51
e Israel Charny
adotar uma posição intermediária, ao mesmo tempo restritiva e inclusiva: “o
genocídio é uma forma de massacre de massa unilateral pelo qual um Estado ou
outra autoridade planeja destruir um grupo, sendo esse grupo e os seus membros
previamente definidos por aquele que perpetra o crime” (op. cit.). Assim, temos uma
definição simples, precisa e flexível. A vantagem dessa definição é que ela elimina
as outras violências atípicas - do tempo de guerra ou de insurreição - e focaliza nos
Estados ordenadores (totalitários ou não), ou nas autoridades iniciadoras (centrais
ou locais), a intenção de destruir. Neste caso, uma análise comparativa poderá
então focalizar o ponto nodal em comum (a intenção de prejudicar a um grupo) e as
diferenças essenciais, quer sejam na motivação ideológica (eliminar toda oposição a
50
The holocaust and strategic bombing, Genocide and total warin the 20
th
century, 1995.
51
The history and sociology of genocide. Analyses and case studies, 1990.
120
um projeto considerado vital ou eliminar um inimigo percebido como mortal), quer
sejam na execução mortífera do crime (destruição total ou parcial).
Israel Charny
52
, do seu lado, propõe uma abordagem comparativa a partir dos
seguintes critérios: a definição do grupo-alvo, o grau de intencionalidade, o perfil dos
executores e as formas de realização.
Na definição do grupo-alvo focaliza-se a racionalidade intrínseca do aparelho
ideológico. É o poder político que vai definir as vítimas no contexto de um terror
unilateral. Esse poder de definição costuma ser quase absoluto. Todos os critérios
são válidos para caracterizar as vítimas: políticos, sociais, religiosos, ideológicos.
Nessa definição, os conceitos de nação e de raça são os que mais exercem
um efeito de mobilização, pela sua força em destacar as diferenças. No cerne do
discurso genocídico, encontra-se uma ameaça representada pelo grupo-alvo. O
grupo é apontado como o inimigo absoluto e, para isso, deve ser previamente
naturalizado, retirando-lhe toda a sua humanidade, e desse modo animalizado.
Assim, o genocídio seria, para Eric Weitz (apud BRUNETEAU, 2004, p.21), uma
resposta última a um perigo supostamente mortal para o projeto daquele que o
perpetra, até para a sua própria existência.
Cabe aqui um parêntese. Segundo Alberte Le Doyen
53
, o discurso racista
deriva de uma perversão da representação de Si em função do outro. Existem duas
grandes tendências que se constituíram no imaginário social em relação à diferença
e cujas expressões, muito variadas, fundamentam a base ideológica do racismo das
identidades coletivas ou nacionais. Essas duas tendências são denominadas pela
autora de “diferencialismo” e de “universalismo”. De um lado, o imaginário social está
baseado na sobrevivência, na continuidade de si, sobre a idéia de uma linhagem
comum concebida como unidade orgânica. Considerada o Si como único, essa
tendência seria a base de uma visão do mundo “diferencialista”, que pode
desembocar sobre um retorno sobre si mesmo e sobre o medo do estrangeiro, uma
vez que este ameaça a identidade do grupo.
52
Le livre noir de l’humanité. Encyclopédie mondiale des génocides, 2001.
53
Le racisme. Des définitions aux solutions: um même paradoxe, 1998.
121
De acordo com Le Doyen, quando a tendência diferencialista deriva sobre
uma concepção de Si, como valor absoluto ou como referente supremo de um Nós,
passa a excluir todo contato que ameaçaria a pureza do Si. Desta forma, os
indivíduos que se reclamam dela, podem reivindicar uma necessidade de rejeitar o
Outro. O racismo völkisch constitui um sistema de representação veiculado por um
discurso que justifica desigualdades decorrentes de uma relação de dominação.
Para o dominante (nesse caso o racista fundamentalmente anti-igualitarista e anti-
universalista) trata-se de assegurar a não-transgressão da diferença real ou
imaginaria. É a razão pela qual o racista transforma o diferente em “raça”, de tal
modo a cristalizar as diferenças, a torná-las inassimiláveis, permanentes, com
discurso biológico ou genético. Tal definição anula o indivíduo como pessoa para
conservar apenas a essência da raça, da cultura com a qual ele se confunde.
Por fim, só lhe resta estabelecer uma escala hierárquica entre as diferentes
raças, declarando-se raça superior e qualificando de raça ‘inferior’ as outras. A
justificativa dessa forma de racismo ‘diferencialista’ é de que as raças sendo
inscritas na ordem natural do mundo concebido como absoluto, como entidades
permanentes e hierarquicamente desiguais, a sua miscigenação só pode levar à
decadência, perigo que pode ser evitado com a separação das raças. A guerra
racial foi um conceito acoplado a essa lógica do racismo que culminou no genocídio.
Historicamente, a teoria do complô assim que a definição de um bode-expiatório
racialmente distinto tem justificado muitas perseguições.
Para o racista ‘diferencialista’, a perda de identidade é inconcebível e
inaceitável. A sua lógica da rejeição do Outro se articula num pretenso perigo de
‘degenerescência de Si decorrente do contato com o Outro. É a preservação do Si, a
permanência do Si cujo valor supremo é a pureza ou a superioridade racial, que
justifica a exclusão do Outro. Na base do ‘Direito à diferença’, o discurso racista
pode ser formulado em discurso credível, em termos de preservação de Si, isto é de
obrigação de preservar a identidade. Basta afirmar que se trata do dever de ser Si,
de permanecer Si, na sua identidade völkisch, para justificar tal exclusão.
122
O segundo critério proposto por Charny - o grau de intencionalidade- constitui
uma variável também decisiva, na medida em que é a intenção que marca a
diferença entre o genocídio e o massacre em tempo de guerra ou de insurreição,
casos onde prevalecem uma violência pura, destruidora, cega, ainda que esta última
possa tomar de modo pontual as formas de genocídio. Planejado ou profetizado, o
genocídio deixa geralmente rastros documentados onde a decisão explícita
(codificada a maior parte das vezes) ou implícita pode ser encontrada, qualquer que
seja a vontade de apagá-lo no momento do crime.
Definição e intenção nos levam ao perfil dos executores. A elite do terror é
constituída de homens ordinários, com um perfil bem definido, o de ser
perfeitamente adequado ao universo social e cultural produtor de fantasmas
mortíferos. O estudo dos executores, não pode ser separado do estudo dos
testemunhos, dos vizinhos, tais como os países do Eixo, cuja implicação,
passividade e silêncio tornaram o genocídio tecnicamente possível., observa o autor.
Por fim, acrescenta Charny, apesar de seu caráter mórbido, uma análise
minuciosa das formas concretas da sua realização não pode ser desprezada. Tais
formas podem ser sistemática ou esporádica, total ou seletiva, moderna ou
rudimentar. Os métodos do genocídio são, com efeito, muito variados. Ao se
observar o genocídio mais estudado e o mais bem conhecido, o extermínio os
judeus da Europa, verifica-se que esse reúne todas as variantes possíveis do terror:
deportação, fome, frio, esgotamento pelo trabalho forçado, execução por bala,
marchas da morte e asfixia pelo uso do gás. As formas em que o genocídio é
organizado devem ser analisadas, ainda que as mesmas fossem brandas ou até
improvisadas acrescenta Charny. A deportação, a quarentena e a redução à fome
de toda uma área, as execuções em massa são impensáveis sem uma organização
prévia; nesse sentido, as formas de realização de um genocídio diferem das
violências espontâneas e menos assimétricas do estado de guerra.
As quatro variáveis propostas por Charny adquirem seu pleno sentido no
quadro de uma concepção abrangente do genocídio, visto como um processo de
123
aniquilamento progressivo de um grupo ou de um povo específico. Nessa
perspectiva, a análise dinâmica do genocídio, apresentada pela primeira vez por
Kuper e atualizada por Jacques Sémelin
54
(apud BRUNETEAU, 2004, p.22), tem a
vantagem de levar em conta uma primeira fase de incubação (genocidal priming), a
partir de vetores sociais, ideológicos e culturais, seguidos de uma fase de
aceleração (genocidal activation) na qual se destacam o papel central das iniciativas
do poder assim como a importância do contexto no qual ocorreu o genocídio.
2.3.1. Prelúdio de um genocídio: os massacres esquecidos da conquista
colonial
Como exemplo de protogenocídio, Alison Palmer
55
lembra o episódio da
quase aniquilação da tribo dos Hereros, na Namíbia, país do Sudoeste africano,
pelas tropas coloniais alemãs no período entre 1904-1906. Durante a operação
lançada pelo General von Trotha – o qual oito anos antes, já havia reprimido
brutalmente uma primeira insurreição, a dos Wahele, na África Oriental - a
população indígena dos Hereros passou de 80 mil para 16 mil pessoas, sendo os
sobreviventes reagrupados em campos, na maioria dos casos, mulheres, crianças e
idosos; estes últimos, doentes e muito enfraquecidos, morreram numa proporção de
45%. Palmer, que efetuou uma análise comparativa deste episódio dramático com
os genocídios contemporâneos, destacou três aspectos inquietantes:
Em primeiro lugar, uma política de exclusão jurídica e econômica do ‘grupo-
vítima’. Assim, desde o início da ocupação do Sudoeste africano, em 1884, foi
instaurada uma política de discriminação e de segregação racial, que culminou com
o confinamento dos Hereros em reservas tribais. Esses se vêem excluídos das
prerrogativas oferecidas pelo direito colonial alemão, doravante exclusivamente
reservado aos colonos, ao mesmo tempo eles não podem fazer prevalecer os seus
54
Du massacre au processus génocidaire, Revue internationale des sciences sociales, número 74,
Dez. 2002;
Éléments pour une grammaire du massacre, Le débat, mar. 2003.
55
Colonial and modern genocide: explanation and categories, 1998.
124
direitos consuetudinários, uma vez que são necessárias sete testemunhas africanas
para se igualar a de um branco, o que legaliza todos os abusos e atos criminais.
A proclamação oficial em dois de outubro de 1904 finalizava um processo, de
exclusão dos indígenas do amparo da lei, com o banimento do Herero do estatuto de
Sujeito do Império Alemão. Palmer verifica uma ação concomitante entre a privação
progressiva dos Hereros dos seus recursos naturais e a sua colocação no ban
jurídico. A partir desta data, não existe mais proteção jurídica para uma população
que passa a constituir doravante um obstáculo ao regime de exploração econômica
do território colonizado. A ocupação das terras indígenas para promover o
desenvolvimento de uma atividade pastoral extensiva levou à expulsão dos Hereros
das suas terras ancestrais, quando não conduziu pura e simplesmente ao confisco
do seu rebanho.
Tal situação provocou uma revolta, em 1904, que tomou por alvo algumas
centenas de fazendeiros alemães do território. Foi a última manifestação de
sobrevivência de um grupo ameaçado na sua própria existência. Segundo Palmer, a
guerra lançada pelo governo alemão contra os insurgentes deixa transparecer um
segundo aspecto inquietante: uma intenção manifesta de extermínio. Com efeito, a
expedição seguida de repressão visou, para além do seu caráter punitivo, impedir
qualquer reocupação das terras por parte dos indígenas. Após a derrota militar dos
Hereros, foram tomadas medidas de deportação dos indígenas, sendo os Hereros
abandonados em pleno deserto do Omeheke.
A busca de uma “solução definitiva para a questão dos Hereros” se torna
manifesta, como atesta a declaração do Chefe do Estado Maior em Berlim, Von
Schlieffen (apud BRUNETEAU, 2004, p.28), o qual anuncia sem rodeios: “o árido
deserto Omeheke finalizará o trabalho que o Exercício alemão iniciou: o extermínio
da nação Herero”. Muitos indígenas serão deportados, e a grande maioria deles
morrerá de sede. Como se não bastasse, um cordão de isolamento ‘sanitário’ foi
montado pelas tropas alemãs, com 250 km de extensão, e mantido durante mais de
um ano na fronteira do território com o deserto, com o objetivo de impedir todo
retorno dos Hereros no seu território ancestral. O aniquilamento foi levado ao termo,
prosseguindo até depois que a colonização não corresse perigo nenhum, e isso a
125
despeito dos protestos dos fazendeiros alemães, os quais embora favoráveis a um
castigo exemplar, não desejavam o desaparecimento de uma mão-de-obra útil e
barata para a construção do habitat e das infra-estruturas necessárias à colonização.
O terceiro aspecto destacado por Palmer é que, embora as considerações
práticas – a terra e o seu regime de exploração – na percepção dos Hereros como
ameaça fossem anteriores, um discurso de natureza ideológica na Alemanha deu
prosseguimento ao episódio. Naquele país, inúmeras vozes nacionalistas
declaravam os Hereros inimigos da Nação alemã e se aproveitaram da repressão
para desencadear uma cruzada germânica contra o que chamavam de barbárie.
Julgadas preguiçosas, e em todo caso inferiores do ponto de vista racial, as
populações indígenas do Sudoeste africano passaram simplesmente a constituir “um
obstáculo para o progresso”. (BRUNETEAU, 2004, p.28). Todos aqueles que se
recusavam a uma submissão incondicional ao poder branco “não mais deviam ter
direito à existência”. Um Decreto Imperial de 26 de dezembro de 1905 institui
legalmente o confisco de todas as terras indígenas sob a alegação cínica do fato de
que “sem rebanhos, os Hereros não tinham mais necessidade de terras”.
Para Palmer, o processo de aniquilamento progressivo dos Hereros obedeceu
à seguinte seqüência: dispositivos de exclusão, desumanização do grupo-vítima;
caráter premeditado do extermínio, planejamento e realização pelo Poder central da
Solução final que levará à destruição física quase total da nação Herero. Com estas
características, acrescenta o autor, a guerra dos Hereros tem algo de
protogenocídico e abre novas perspectivas para um futuro próximo.
Por outro lado, Michael Mann
56
observa que: “se a maioria dos massacres da
era colonial não se enquadra direta e estritamente na categoria do genocídio, a
indiferença com a qual eles ocorreram é inseparável de uma ideologia que tinha um
alcance universal”. Ele não hesita em afirmar que os genocídios coloniais constituem
a face oculta da modernidade liberal e democrática. Segundo o autor, foi a partir do
momento em que os estados ocidentais anunciam que toda autoridade legítima deve
ser fundamentada sobre o Povo Soberano, sob a reserva de limitar essa prerrogativa
aos únicos Europeus dos países de ultramar, que os partidários do sistema colonial
56
The dark side of democracy: the modern tradition of ethnic and political cleansing, New left Review,
maio de 1999.
126
têm inevitavelmente desenvolvido uma teoria do Povo com os atributos de raça
superior. Esse movimento foi possibilitado pela banalização das teorias social-
darwinistas vigentes na época.
2.3.2. O imaginário do darwinismo social
Para Pichot
57
, a expansão colonial oferece múltiplos exemplos de seleção
natural das civilizações mais fortes. Para ele, são os exemplos de declínio até de
desaparecimento de povos autóctones que têm servido de modelo para uma teoria
da luta pela vida: a partir de 1850, a extinção, isto é, o extermínio de povos julgados
inaptos passa a ser considerado como fruto do progresso, citando o fundador da
influente Anthropolical Society, o médico Robert Knox que confessa ter descoberto a
“verdade da raça” e fala abertamente de “guerra de extermínio” em vez de “seleção
natural”. Segundo Pichot, é sem nenhuma emoção que os adeptos da eugenia
assistem ao desaparecimento dos povos que “caíram em desgraça”, sendo estes
numerosos nos países abertos à colonização intensiva.
Considerado um dos fundadores da sociologia moderna, o professor austríaco
Ludwig Gumplowicz
58
, contrariamente aos discípulos de Darwin, diz que o que está
em jogo na história humana não é apenas a mera sobrevivência do mais apto, mas a
dominação e a exploração da raça mais fraca pela mais forte, processo que está na
base de toda civilização. Segundo ele, “todas as guerras tiveram a mesma meta, não
importa qual o objetivo visado e alcançado: utilizar-se do inimigo como de um meio
para satisfazer as suas próprias necessidades”. (apud BRUNETAU, 2004, p.33). As
suas idéias se tornaram uma verdadeira vulgata científica onde aparece todo um
conjunto de teorias que explicam as leis naturais que têm regulado o mundo:
Seleção natural, de Darwin; Eugenia, de Galton; Distribuição hierárquica das raças,
de Haeckel; e, finalmente, a sua própria contribuição com a Luta das raças. Para
Gumplowicz, as raças são o fundamento de todos os processos sociais, sendo a luta
que as opõem considerada o motor da história. O seu social-darwinismo se conjuga,
aliás, com a luta de classes de inspiração marxista: “A história é uma sucessão de
lutas sombrias, nas quais o ódio racial, o massacre em massa e as tentativas de
dominação pela violência asseguram certa coerência” (op. cit.).
57
La société pure. De Darwin à Hitler, 2000.
58
La lutte des races, 1883.
127
Não é de se surpreender que trechos inteiros de seu livro se encontrem em
Mein Kampf, cujo autor, convém lembrar, era cidadão austríaco, observador
rancoroso do cosmopolitismo vienense do final do século XIX, admirador do sistema
colonial inglês e, por fim, grande leitor de Karl May, escritor alemão que exaltava a
conquista sangrenta do Far West americano.
No quadro de uma luta desigual pela vida, os autóctones são declarados
fósseis vivos, com um nível de evolução inferior dentro da classificação zoológica
das espécies e, portanto, condenados a ceder o lugar às formas superiores
representadas pelos colonos, considerados a ponta avançada da civilização. Não é
necessário destacar uma literatura como a de Gobineau
59
para encontrar a origem
de certas derivas abomináveis do racismo. Melhor insistir sobre uma ”banalização
científica” do racismo pelos representantes mais ilustres da biologia e da sociologia,
que reivindicam uma “naturalização da sociedade e da história”, isto é, a sua
submissão às supostas “leis imperiosas da natureza”.
Em 1868, o alemão Haeckel efetuou uma classificação das raças humanas
estabelecendo uma hierarquia entre elas numa perspectiva evolucionista,
começando pelas raças negras embaixo da escala, para alcançar a raça Indo-
germânica, no topo. A sua doutrina foi um verdadeiro laboratório para o
desenvolvimento de uma biopolítica moderna, vulgata social-darwinista no seio do
pensamento nacionalista alemão, e cuja influência foi devida a dois autores
importantes na ideologia imperialista britânica: Alexandre Tille e Houston
Chamberlain. O primeiro tem associado o darwinismo, a uma deformação da moral
de Nietzsche do “além do homem”; enquanto o segundo, inglês convertido ao
pangermanismo e genro do próprio Wagner, tem atribuído aos únicos germanos a
missão de conduzir a obra civilizadora do mundo.
Para Bruneteau, não se pode perder de vista que um dos fundadores da
geopolítica moderna, Friedrich Ratzel, tem feito da luta pela vida uma luta pelo
próprio espaço. Após ter viajado pela América do Norte ele havia testemunhado a
59
Ensaio sobre a desigualdade da raça humana, 1853.
128
luta sangrenta dos índios e dos brancos pela posse das terras, um acontecimento ao
qual ele costuma se referir para tornar legítima a conquista do espaço vital pelos
povos mais fortes. Neste contexto, um novo direito internacional passa a consagrar o
direito da raça mais forte de aniquilar a raça mais fraca. Formulado de maneira
abrangente, esse direito podia ser aplicado, tanto aos povos indígenas de Países
ultramarinos, quanto as populações da Europa, consideradas pouco evoluídas. Essa
concepção passou a integrar sem dificuldade, a ideologia pangermanista, que
considerava os povos eslavos ”inferiores” e “inúteis” no quadro de um grande projeto
de remodelagem do “espaço europeu ”.
Por isso, não é de se estranhar que o darwinismo-völkisch impregnasse cada
vez mais a sociedade alemã, a ponto de mudar a percepção do papel da guerra,
doravante exaltada como um mero meio de eliminar as nações imperfeitas e fracas.
Thomas Lindemann
60
(apud BRUNETEAU, 2004, p.35-36) acredita que essa visão
do mundo (weltanschauung) que apresenta a guerra como “o único tribunal
eqüitativo da história” na grande missão de seleção dos povos, tem contribuído por
tornar os dirigentes alemães da 1ª Guerra mundial, receptivos ao mito do
“determinismo guerreiro”.
Com as contribuições de Woltmann e de seu contemporâneo Ploetz, a
antropologia política aplicada, se orienta na busca dos instrumentos para que a
sociedade possa produzir uma raça germano-nórdica sempre mais ‘nobre’
eliminando por via de conseqüência as raças ordinárias. O leque de instrumentos
sugeridos para alcançar essa meta era do mais variado: emigração, expulsão,
proibição de casamento misto e de procriação e, por fim, extermínio ‘direto’.
Esse ideário inspirou o modelo de solução adotado por Hitler durante a sua
guerra no front Leste, a partir do verão de 1941, quando retomou todos os aspectos
das guerras de extermínios coloniais e imperialistas do século anterior. Políticas de
conquista do espaço vital, medidas deliberadas de redução à fome de populações
inteiras e eliminação das “raças inferiores” foram executadas em nome do caráter
implacável e imprescindível das leis naturais. “O que as Índias foram para a
60
Les doctrines darwiniennes et la guerre de 1914, 2001.
129
Inglaterra, o espaço (vital) no Leste (europeu) o será para nós”, declara Hitler (apud
BRUNETAU, 2004, p.36), em 10 de agosto de 1941. No entanto, uma diferença
notável impede de assimilar diretamente a conquista colonial britânica ao
imperialismo nazista. Enzo Traverso
61
que analisou a genealogia européia da
violência nazista sublinha, a esse respeito, que enquanto a “naturalização” da
história efetuada pelos discípulos de Darwin obedecia exclusivamente a fatores
geopolíticos e econômicos, no caso de Hitler, ao contrário, a ideologia racial é o
motor exclusivo da guerra.
2.4. A BANALIDADE DO MAL
2.4.1. Eichmann ou a personalidade de um conformista
Para tentar descobrir o que tornou o genocídio possível, é preciso
compreender também a personalidade de pelo menos um dos seus principais
protagonistas. Confrontado com a pessoa do réu, a autora rende-se às evidências.
Apesar dos esforços da acusação para torná-lo diabólico, ele aparece com um ser
profundamente medíocre, ordinário, comum. No homem que o procurador Gideon
Hausner denunciava como uma fera, ela descobre um funcionário ordinário, mais
próximo dos personagens de Courteline do que de Shakespeare. Para a autora, não
se trata de um herói, nem de um fanático, nem de um doente, nem tampouco de um
paranóico. O problema, contudo não é que o criminal nazista fosse particularmente
brutal ou desprovido de coração – mas justamente que, de modo geral, não o fosse.
Eichmann não dá margem a nenhum comentário particular, não desperta
curiosidade, nem o desejo de compreendê-lo; não é enigmático, não é atraente, nem
repulsivo. É fundamentalmente insignificante, banal, pois no regime totalitário, o
conformismo, a normalidade constitui a principal qualidade da identificação
völkische. Como observa Primo Levi: “os monstros existem, mas são muito pouco
61
La violence nazie. Une généalogie européenne, 2002.
130
numerosos para serem perigosos, os que são mais perigosos são os homens
comuns” (LEVI apud TODOROV, 1995, p.139).
Durante o julgamento de Eichmann em Jerusalém, Hannah Arendt acusou
tanto a defesa quanto a acusação de ceder ao hegelianismo, já que ambas estavam
inclinadas a colocar a história, mais do que Eichmann, em julgamento. O réu
aparece para Arendt, como um típico representante da banalidade do mal, a serviço
de uma atividade exercida de maneira aplicada e eficiente, com uma ausência
notável de capacidade de pensar e de questionar o sentido das suas próprias ações.
Os seus atos são os de um cidadão respeitador da lei, que cumpre fielmente o seu
dever. Ele não só obedece à ordens, ele também obedece à Lei. O mundo do
personagem encontra na obediência a sua idéia de dever e de virtude; na lealdade e
na submissão ao chefe os seus principais valores éticos.
A característica mais notável dos seus crimes é que eles ocorreram dentro de
uma ordem legal. Como observou Arendt (2000, p.299): “Esse era um tipo novo de
criminoso, efetivamente hostis generis humani, que comete seus crimes em
circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir que está
agindo de modo errado”. Durante o julgamento de Eichmann, suas expressões e sua
linguagem, são o espelho de uma burocracia alemã, “camuflando a realidade para
permitir a todos de se abstrair dela”, comenta a autora. Ela relata ainda que outra
característica marcante do réu é a sua recusa em confrontar “os atos com o seu
sentido”.
Para nos ajudar a compreender o personagem, Dejours (1999, p.114) nos
oferece uma explicação psicológica interessante da conduta de Eichmann, que o
autor qualifica de “retraimento da consciência intersubjetiva”. Esta expressão
designa a barreira intransponível que o réu estabeleceu entre as duas partes do seu
mundo psíquico: “numa das partes, existe um mundo intersubjetivo, imediatamente
adjacente, próximo e concêntrico; na outra parte, um mundo dos outros seres
humanos, ao qual ele não está instrumentalmente ligado por nenhuma relação
concreta referente ou identificável”.
131
No primeiro mundo psíquico, que Dejours (1999, p.115) define “mundo
proximal”, Eichmann apresenta-se sensível ao outro. Já no “mundo distal”, tudo lhe é
indiferenciado, somente prevalece nele a racionalidade instrumental. Neste mundo,
não existe sensibilidade, nem empatia, nem capacidade de identificação para com
outrem. No “mundo distal”, Eichmannn não tem nenhum compromisso, nenhuma
responsabilidade. “Desse cesura estabelecida entre os dois mundos, pode-se inferir
que, fundamentalmente, Eichmann não tem consciência moral stricto sensu, ou seja,
nenhuma capacidade de julgamento.” Falta a este homem a própria noção de
‘consciência moral universal’. Para Dejours, essa carência de consciência moral
costuma se encontrar na personalidade do “normopata”, do indivíduo conformista,
‘totalmente’ integrado à sua realidade social. Em resumo, segundo o autor,
Eichmann é um normopata, e é essa normopatia que Arendt designou pela
expressão de “banalidade do mal”.
A “faculdade de pensar”, no caso de Eichmann, é suspensa apenas no setor
psíquico diretamente relacionado com a adversidade alheia, que Dejours designa de
“ausência de pensar setorial”. Em compensação, essa “faculdade de pensar”
continua sendo exercida normalmente em todos os outros aspectos da sua vida
privada, no qual Eichmann revelou ser “um pai exemplar”.
Dejours conclui com a seguinte definição da normopatia:
São personalidades que se caracterizam por sua extrema
normalidade no sentido de conformismo com as normas do
comportamento social. Pouco imaginativos e pouco criativos, eles
costumam ser perfeitamente adaptados a uma sociedade na qual se
movimentam com desembaraço, sem serem perturbados pela culpa,
a que são imunes, nem pela compaixão, que não lhes concerne
(DEJOURS, 1999, p.115).
132
2.4.2. A ética da obediência e o significado da responsabilidade
A principal das grandes questões em jogo no julgamento de
Eichmann era o pressuposto, corrente em todos os sistemas legais
modernos, de que a intenção de fazer algo errado é necessária para
se cometer um crime. Nada, talvez, foi motivo de maior orgulho para
a jurisprudência civilizada do que o fato de levar o fator subjetivo. Se
essa intenção está ausente, se, por quaisquer razões, mesmo as de
insanidade moral, a capacidade de distinguir entre certo e errado
está prejudicada, sentimos que nenhum crime foi cometido (ARENDT
apud NEIMAN, 2003, p.299).
No mal contemporâneo, as intenções dos indivíduos raramente
correspondem à magnitude do mal que os indivíduos são capazes de causar. “O
que conta não é o que pavimenta o caminho, mas sim a questão de saber se ele
conduz ao inferno” (NEIMAN, 2003, p.302). Foi justamente a crença de que ações
más requerem intenções más que permitiu aos regimes totalitários convencer as
pessoas a passar por cima de objeções morais que, de outro modo, poderiam ter
funcionado.
Esforços maciços de propaganda destinavam-se a convencer as pessoas
de que as ações criminosas das quais elas participavam eram guiadas por
motivos aceitáveis, nobres até. A exortação de Himmler às tropas SS em Posen é
apenas o mais famoso exemplo de propaganda que funcionou, invertendo,
pervertendo valores morais. Ele proclamou que era a própria dificuldade de
superar sua relutância normal em atirar em mulheres e crianças que revelava a
natureza sublime e significativa da empreitada histórica na qual as tropas estavam
envolvidas. Ao se acreditar que o crime é requerido pela lealdade a valores mais
altos, é muito mais fácil viver com ele.
O uso Mais claro da racionalidade instrumental foi equivalente ao mais
claro desafio ao raciocínio moral. A natureza ignora distinções entre medo de
culpa e todo tipo de inocência; os criminosos desprezam-nas de forma ativa. Os
seus objetivos eram produzir o que a moralidade tenta evitar: medo e morte.
133
Como a maioria dos oficiais nazistas, Eichmann sentia pouca culpa. Esse
sentimento (ou sua ausência) era subjetivo. Inspecionando sua consciência, ele
não descobriu nada pior do que o desejo normal de progredir e mesmo o
admirável desejo de cumprir obrigações que algumas vezes iam contra seus
próprios sentimentos pessoais. “A culpa e a inocência, acrescenta a autora
(NEIMAN, 2003, p.303), dependem dessas verdades muito simples. Quando a
noção de intenção está atrelada a uma noção de potencial, a distinção entre mal
real e mal potencial torna-se ainda mais obscura”. Assim, argumentou Arendt, o
tribunal deveria ter dito a Eichmann: “Estamos preocupados apenas com o que o
senhor fez e não com a possível natureza não criminosa de sua vida interior e de
seus motivos nem com as potencialidades criminosas das pessoas a sua volta”
(op. cit.).
Os argumentos avançados por Adolf Eichmann, relatados por Arendt
62
para
livrá-lo de qualquer sentimento de culpa, são justamente aqueles mesmos que
apontam o peso da sua responsabilidade no genocídio, como a sua obediência
cadavérica à lei, como ele mesmo a chamou, e a substituição do imperativo de
Kant pelo imperativo categórico do III Reich: “age de tal forma que o führer, se
soubesse da sua atitude, a aprove”. Entre as justificativas às suas ações, está a
desculpa de que “nunca se encontrou ninguém, ninguém sequer que fosse contra
a Solução final”. A terminologia utilizada para designar os poucos judeus
húngaros, poupados do extermínio foi: “o melhor material biológico”. A sua defesa
antes do veredicto final, quando se declara vítima das circunstâncias foi: “minha
culpa reside na minha obediência, no meu respeito à disciplina e nas minhas
obrigações militares, em tempo de guerra, no meu juramento de fidelidade”
(Todorov, 1995, p.212). Como justificar a obediência cega, a conduta implacável
frente ao mal, o pensamento instrumental que não deixa mais nenhum espaço
para os seres humanos?
Será que Eichmann foi somente um simples burocrata, um banal
funcionário, uma mera engrenagem da máquina administrativa de destruição, um
62
Eichmann em Jerusalém, 2000.
134
homem que cumpre de maneira obediente às ordens que lhe foram atribuídas,
como ele tentou fazer acreditar durante o seu julgamento? Ou ao contrário, um
fanático convicto, um idealista implacável a serviço de um grande projeto de
extermínio?
Alguns autores como Yehuda Bauer, acreditam mais na segunda hipótese.
Embora Eichmann perceba que ele se afastou um pouco da norma, interpretou
sua obediência de maneira positiva: “Eu era idealista”, afirma ele. Aos seus olhos,
o idealista “não era simplesmente um homem que acreditava numa ‘idéia’ ou
alguém que não roubava nem aceitava subornos (..). Um ‘idealista” era um
homem que vivia para a sua idéia (...) e que, por essa idéia, estaria disposto a
sacrificar tudo e, principalmente, todos (...). O idealista perfeito, como todo
mundo, tinha evidentemente seus sentimentos e emoções pessoais, mas jamais
permitiria que interferissem em suas ações se entrassem em conflito com sua
‘idéia’” (ARENDT, 2000, p.54).
Em suma, Eichmann era um homem que preferia as idéias aos seres
humano, e o que afetava a cabeça deste homem - que havia se transformado em
assassino - era provavelmente a idéia de estar envolvido em algo histórico, único,
numa visão gloriosa do Crepúsculo dos Deuses.
Há um dilema, no caso de Eichmann, observa H.Arendt, o dilema do
idealismo e da obediência combinados com o crime. No entanto, ao aceitar de
julgar e condenar a morte um homem pela simples razão que ele obedeceu a
ordens legais, então temos que concordar com as suas implicações: existem
situações nas quais se podem cometer crimes obedecendo à lei. Afirmar que a
raiz dos crimes totalitários não está no indivíduo, mas no regime político que ele
serviu com lealdade, não significa que o indivíduo esteja isento de toda ou
qualquer forma de responsabilidade. É preciso restabelecer o vínculo rompido
pelo regime totalitário, acrescenta Arendt, entre o indivíduo e o Estado, entre o
homem e seu crime e, ao tratar das implicações das ações de um homem com a
máquina de destruição, sublinhar que o serviço prestado ao Estado não exonera
um funcionário do Estado de sua responsabilidade de homem.
135
A autora pondera que temos a responsabilidade moral de resistir ao crime
de Estado, isto é, à “socialização do mal”. O mal não é todo poderoso, podemos
resistir a ele e o testemunho dos poucos que resistiram revela que a questão do
mal se resume, afinal de contas, a uma simples questão de escolha. Talvez
convenha notar as dificuldades de mobilização dessa capacidade de resistência,
ao observar que, contrariamente aos resistentes franceses que lutavam contra os
inimigos de seu país, os da Alemanha deviam trair o seu próprio país para
obedecer à sua própria consciência.
No entanto, no entender da escritora (ARENDT, 2000, p.318), o que se
deve exigir nesses julgamentos, em que os réus cometeram crimes considerados
legais, é que “os seres humanos sejam capazes de diferenciar o certo do errado,
mesmo quando tudo o que têm para guiá-los seja apenas seu próprio juízo que,
além do mais, pode estar inteiramente em conflito com o que eles devem
considerar como opinião unânime de todos à sua volta”. Se existem situações
onde crimes podem ser cometidos obedecendo à lei, para a autora, é preciso ir
além da “culpabilidade legal” e avaliar a responsabilidade moral do homem. O
indivíduo é responsável moralmente pelos seus atos, quaisquer que sejam as
pressões que sofra, caso contrário, renunciam a sua filiação à espécie humana. E
citando Dostoievski: “Somos todos responsáveis por todos, por todos os homens
perante todos, e eu mais que os outros”.
Assim, a responsabilidade moral significa a capacidade de resistir e de se
opor ao crime de Estado, ao processo de “socialização do mal”, tendo em vista
que a autoridade e a responsabilidade pelas ações dos indivíduos devem ser
exclusivamente guiadas pelo próprio juízo da pessoa humana. A lição dos crimes
de Eichmann está em afirmar que os que aplicam as leis são em certas
circunstâncias, mais perigosos do que os que as infringem.
Camus usou a peste para representar o mal em geral. Em uma carta a
Gershom Scholem, Arendt escreveu que o mal podia ser comparado a um fungo:
como ele, “o mal não possui nem profundidade, nem nenhuma dimensão
demoníaca. Pode crescer demais e destruir o mundo inteiro justamente por se
espalhar com um fungo por sua superfície” (ARENDT apud NEIMAN, 2003,
136
p.329). A metáfora é uma tentativa de desarmar o elemento conceitualmente
ameaçador do mal contemporâneo. Embora a guerra bacteriológica possa destruir
a humanidade, não são as bactérias que podem questionar o valor da vida.
Assim, a metáfora do fungo assinala que o mal pode ser compreendido; ela
indicando também que o mal é um objeto desprovido de qualquer intenção.
Se existe uma chave para compreender a ética de Camus, ela se encontra
na idéia de que o ódio ao Criador não deve se atrever a se transformar em ódio
pela Criação. Para Arendt, nem os crimes de guerra alemães por si só, nem a
possível cumplicidade judaica neles estavam em jogo. O que estava sendo
acusada era a própria Criação. Em um mundo que havia produzido os campos da
morte, o impossível tornava-se realidade. Isso não era uma metáfora. O próprio
mundo, portanto, não podia mais ser aceito como o fora no passado. Para
Neiman, Eichmann em Jerusalém é uma defesa não de Adolf Eichmann, mas sim
de um mundo que o continha. Ao longo de toda a sua obra, Arendt buscou uma
fórmula capaz de substituir a teodicéia. Como pode a própria vida ser justificada
sem justificar os males que a questionam?
Arendt está convencida de que o mal só poderia ser superado caso
reconhecêssemos que ele nos ultrapassa de maneiras diminutas.
Grandes tentações são mais fáceis de reconhecer, portanto mais
fáceis de resistir, pois a resistência vem em termos heróicos. Os
perigos contemporâneos começam com passos insidiosos. Uma vez
dados, esses passos conduzem a conseqüências tão vastas, que
seria difícil tê-los previsto. A afirmação do que o mal é banal não diz
respeito à magnitude, mas sim à proporção: se crimes tão grandes
podem resultar de causas tão pequenas, pode haver esperança de
superá-las (NEIMAN, 2003, p.330).
Chamar o mal de banal é fazer retórica moral, é uma maneira de desarmar
o poder que torna o fruto proibido. Relembrando a historia de Anton Schmidt,
soldado alemão que sacrificou a vida para ajudar partidários judeus, a autora
acrescenta:
[A] lição de tais histórias é simples e pode ser compreendida por
todos. Politicamente falando, consiste no fato de que, sob condições
de terror, a maioria das pessoas vai obedecer, mas algumas pessoas
não vão, assim como a lição dos países em que a Solução Final foi
137
proposta é que isso poderia ter acontecido na maioria dos lugares,
mas não aconteceu em todos os lugares. Humanamente falando,
nada mais é exigido e nada mais pode ser razoavelmente pedido
para que este planeta continue a ser um lugar propício para a
habitação humana (ARENDT apud NEIMAN, 2003, p.331).
Chamar o mal de banal é oferecer não uma definição dele, mas sim uma
teodicéia. As origens do mal não são misteriosas nem profundas, mas estão
inteiramente a nosso alcance. Sendo assim, elas não infectam o mundo com uma
profundidade capaz de nos fazer perder as esperanças no mundo em si. Como
um fungo, podem devastar a realidade destruindo sua superfície. Suas raízes,
entretanto, são rasas o bastante para poder serem arrancadas. Nisso o projeto de
Arendt é herdeiro daquele de Rousseau. Ao fornecer uma estrutura que mostra
como os maiores crimes podem ser perpetrados por homens ordinários, a autora
argumentou que o mal não é uma ameaça à razão em si. Crimes como os de
Eichmann dependem, isso sim, do descaso, da recusa de usar apropriadamente a
razão.
138
2.4.3. A banalização do mal
A responsabilidade do genocídio não se encontra somente na personalidade
perversa de Eichmann, mas, sobretudo no sistema totalitário que a tornou perversa.
“Os russos, os alemães e todos aqueles que realizam crimes inauditos não são
seres humanos diferentes dos outros; é o regime político no qual vivem que o é”,
observa Todorov (1995, p.142).
“Em certas situações, um inimigo não é só aquele que mata, mas também
aquele que permanece indiferente. Não ajudar e matar são a mesma coisa”,
comenta Todorov (1995, p.271). Para Dejours, Eichmann pode ser um homem
banal, mas nem por isso pode-se compreender a participação maciça de todo um
povo ao nazismo, com um percentual de cerca de 80% de adesão da população
alemã daquela época. Para ele, a personalidade individual tem pouca relevância
diante da conduta da ação coletiva. Para que o mal se realize, não basta a ação de
alguns, é preciso também que a grande maioria fique de lado, indiferente. É somente
na banalidade da conduta ordinária de massa que transcende as singularidades, que
podemos encontrar um sentido ao genocídio.
Neste contexto, Dejours complementa o retrato da banalidade do mal relatado
por Arendt. Ele identifica, na maioria da população da Alemanha daquela época, as
três características da normopatia de Eichmann: indiferença para com o mundo
distal e colaboração com o mal tanto por omissão quanto por ação; suspensão da
faculdade de pensar que é substituída pelos estereótipos dominantes (clichês,
lugares-comuns, códigos de expressão padronizadas e convencionais) e ausência
de faculdade de julgar e de vontade de agir coletivamente contra a injustiça. Essa
“esquizofrenia social” é interpretada pelo autor como um meio de defesa:
Em um regime totalitário, a esquizofrenia social, a separação da vida
em seções impermeáveis, é um meio de defesa para quem ainda
guarda alguns princípios morais: só me comporto de forma submissa
e indigna em tal fração de minha existência; em outras que considero
essenciais mantenho-me como pessoa respeitável. Sem essa
separação, não poderia funcionar normalmente; é graças a essa
139
defesa, que o mal se torna possível, até mesmo fácil e, nesse sentido,
ela é de fato um vício quotidiano (Dejours, 1999, p.193).
Essa configuração psicológica bastante peculiar - porção do mundo que é
negada pelo sujeito e na qual está suspensa a faculdade de pensar – é, por sua vez,
ocupada pelos estereótipos. Quando há suspensão da capacidade de pensar e de
julgar, o sujeito substitui o pensamento pessoal por um conjunto de estereótipos,
fórmulas feitas, de lugares-comuns que propiciam um estado de tolerância ao mal.
Segundo a observação perspicaz de H. Arendt (2000, p.167), com a banalização, o
mal perde, “a qualidade pela qual a maior parte das pessoas o reconhece – a
qualidade de tentação”..
Para Dejours, é a banalização - e não a banalidade do mal – que é
responsável pelo processo capaz de criar um estado de tolerância ao mal e de
atenuar os problemas de consciência moral, ante o sofrimento infligido a outrem.
Dejours (1999, p.110) apresenta uma definição do conceito de banalização do mal,
como sendo “o processo graças ao qual um comportamento excepcional,
habitualmente reprimido pela ação e o comportamento da maioria pode erigir-se em
norma de conduta ou mesmo em valor”. E ressalta ainda que a banalização
pressuponha a criação de condições favoráveis, como o terror, a ameaça de
exclusão social, para poder obter o consentimento e a cooperação de todas as
condutas. A esse respeito, Primo Levi (Apud Dejours, 1999, p.125) já escrevia: “a
pressão que um Estado totalitário moderno pode exercer sobre o indivíduo é
espantosa. Suas três principais armas são: a propaganda direta ou camuflada pela
educação, a barreira imposta ao pluralismo das informações e o terror”.
140
2.4.4. A produção social do mal ou a Tecnologia da destruição
Na opinião de Herbert Kelman
63
·, inibições morais contra atrocidades
violentas tendem a ser corroídas, se satisfeitas três condições: “a violência é
autorizada por práticas governadas por normas e especificação precisa de papéis;
as vítimas da violência são desumanizadas por definições e doutrinações
ideológicas; o caráter moral da ação é invisível ou propositadamente coberto”.
“A descoberta mais assustadora trazida pelo holocausto e acerca dos seus
executores não foi a probabilidade de que isso pudesse acontecer a nós, mas a
idéia de que nós poderíamos perpetrá-lo”, afirma Bauman (1998, p.179). A maioria
das conclusões decorrentes das experiências de Milgram pode ser vista como
variações de um tema central: a crueldade não costuma ser cometida por indivíduos
cruéis, mas por homens e mulheres comuns tentando desempenhar bem suas
tarefas ordinárias. Para ele, a crueldade se relaciona apenas secundariamente às
características individuais dos que a cometem, mas de maneira muito forte à relação
de autoridade e subordinação, de poder e obediência.
Em outras palavras, a crueldade é de origem social e não fruto do caráter do
indivíduo. O indivíduo tende a ser cruel se colocado num contexto que enfraquece
as pressões morais e justifica a desumanidade, dando-lhe um caráter legítimo. John
Steiner cunhou a esse respeito o conceito de “efeito adormecido” para designar a
capacidade normalmente apagada, mas por vezes despertada, de ser cruel. Embora
Dejours tenha introduzido o conceito de banalização do mal, ele não revelou os seus
mecanismos. Isso caberá a Stanley Milgram, a partir de experiências clínicas, a
demonstração do processo de “produção social do mal”. Para ajudar a compreender
os mecanismos desencadeadores de atos desumanos, Bauman relata as principais
conclusões dos trabalhos de Milgram, que serão apresentadas a seguir:
63
Violence without Moral Restraint: Reflections on the dehumanization of Victims and Victimizers,
Journal of Social issues, vol.29, no.4, p.29-61, 1973.
141
2.4.5. A desumanidade como produto da distância social
Para Milgram, recursos a processos estruturais que conduzem ao mal
lembram-nos de nossos papéis como partes de sistemas em que a divisão do
trabalho e a simples distância ocultem a responsabilidade individual. A
responsabilidade moral é silenciada quando se oculta a proximidade da vítima.
Segundo o autor, existe uma razão inversa entre a disposição para a crueldade e a
proximidade da vítima:
Dentre elas [as ‘pílulas de entorpecimento moral’ que a burocracia e a
tecnologia modernas colocavam a disposição] destacavam-se a
natural invisibilidade das relações causais num sistema complexo de
interação e o ‘distanciamento’ dos resultados repugnantes ou
moralmente repulsivos da ação a ponto de torná-los invisíveis ao ator
(BAUMAN, 1998, p.46).
O silenciamento do apelo moral e a suspensão das inibições morais são
alcançados precisamente quando se tornam “remotas e mal visíveis” os alvos
autênticos da ação. “Inextricavelmente atada à proximidade humana, a moralidade
parece conformar-se à lei da perspectiva ótica. Parece grande e espessa quando
perto do olho. Com o aumento da distância, a responsabilidade pelo outro encolhe e
as dimensões morais do objeto se embaçam, até que ambas atingem o ponto de
desaparecimento e somem da vista”, explica Milgram (op. cit., p.222-223).
Em outros termos, “longe dos olhos, longe do coração”, tal o ditado popular
francês. Psicologicamente, a razão pela qual a separação da vítima torna a
crueldade mais fácil é simples: o executor é poupado do sofrimento de testemunhar
o resultado de seus atos. Aqueles que realizavam o trabalho cotidiano nos campos
da morte criavam um abismo entre si mesmos e o resto da humanidade. Algumas
das descrições deles feitas sugerem uma ausência de alma que aqueles que matam
a distâncias maiores de suas vítimas não precisam compartilhar. Assim, tomando
como exemplo os einsatzgruppen, Bauman comenta:
As vítimas recolhidas eram colocadas diante de metralhadoras e
fuziladas sem rodeios. Apesar dos esforços para manter as armas o
mais longe possível dos fossos nos quais os mortos deviam cair, era
142
difícil demais para os atiradores passar por alto a relação entre atirar
e matar. Foi por isso que os administradores do genocídio acharam o
método primitivo e ineficiente, além de perigoso para a moral dos
executores. Foram então procuradas outras técnicas de assassinato
de forma a separar visualmente assassinos e vítimas (BAUMAN,
1998, p.46).
As câmaras de gás foram inventadas para poupar as vítimas formas de morte
agonizantes – e, aos assassinos, visões que pudessem atormentar suas
consciências. Para muitos, é uma mistura perversa de industrialização fortalecida
por uma alegação de humanidade – dar uma morte misericordiosa – que tornava o
campo da morte aterrorizante. A busca por técnicas de assassinato que separassem
visualmente assassinos e vítimas teve êxito e levou a invenção das primeiras
câmaras de gás itinerantes e depois as fixas. Estas - as mais perfeitas que os
nazistas tiveram tempo de inventar - reduziram o papel do matador, segundo
Bauman, ao de “funcionário sanitário que devia esvaziar um saco de desinfetantes
químicos, por uma abertura no teto de um prédio cujo interior não o estimulavam a
visitar” (ibidem.).
O procedimento de destruição que levou ao gradual silenciamento das
inibições morais e ao desencadeamento do processo de destruição em massa
obedeceu à seguinte seqüência: definição, expropriação, deportação e
concentração, exploração pelo trabalho e extermínio. Se tentarmos agora descobrir
o fio condutor dessa seqüência para a Solução final, verificamos que os sucessivos
estágios obedecem à lógica da “expulsão do reino do dever moral” ou “do universo
das obrigações morais”, de acordo com a definição de Helen Fein (apud BAUMAN,
p.221).
Para tornar invisível a humanidade das vítimas, era preciso apenas retirá-las
do universo das obrigações morais. Assim, a Solução final não poderia ser levada a
termo enquanto os judeus não fossem removidos do horizonte da vida cotidiana dos
alemães; cortados da rede de relacionamentos pessoais, transformados, na prática,
em exemplares de uma categoria, de um estereótipo, ou seja, enquanto não
deixassem de ser aqueles “outros” aos quais se estende normalmente a
responsabilidade moral.
143
Cada um dos passos tornava racional a escolha do estágio seguinte na rota
da destruição. “Quanto mais a seqüência se afastava do ponto original do ato da
definição, mais se guiava por considerações técnico-racionais, e tanto menos tinha
que levar em conta inibições morais. (...). As passagens entre os estágios tinham um
extraordinário aspecto em comum. Todas aumentavam a distância física e mental
entre as vítimas-alvo e o restante da população (...). Ficava mais fácil cometer atos
imorais com cada centímetro a mais de distância social”.
Paul Virilio (1984, p.86-87), apresenta uma interessante análise comparativa
sobre a função tradicional do Estado, como poder que se exibe e como poder que se
esconde na sua versão moderna. No primeiro caso, “é a gravitas, a pompa e
circunstância, a solenidade do poder em representação. Agora, ao contrário, o
Estado moderno absorve técnicas da máquina de guerra nômade, o segredo do
guerreiro que tira vantagem do efeito-surpresa, (...) que usa a dissimulação, a
camuflagem para vencer”.
Enquanto as sociedades antigas eram sociedades de encarceramento, de
aprisionamento no sentido de Foucault, acrescenta o autor, as sociedades modernas
promovem outro tipo de repressão, o desaparecimento. Os corpos precisam
desaparecer do olhar da imprensa e da opinião publica. O campo se torna assim o
lugar constituído para manter as pessoas fora de suas relações tradicionais, ou fazê-
las desaparecer, em caso de extermínio.
144
2.4.6. A conduta desumana como produto da ação seqüencial
Para Milgram (apud BAUMAN, p.186), pode suceder uma conduta desumana
quando, no decorrer de uma ação seqüencial, o ator se torna preso de suas próprias
ações passadas. “Suaves e imperceptíveis passagens entre os estágios atraem o
ator para uma armadilha. O ator entra num círculo vicioso, uma vez que se torna
para ele impossível abandonar a sua conduta, sem rever, avaliar e eventualmente
reprovar os seus atos anteriores”. Milgram chama essa armadilha de “paradoxo da
ação seqüencial”.
Por outro lado, o uso da violência é mais eficiente e menos dispendioso
quando os meios são submetidos a critérios instrumentais e racionais que permitem
dissociá-los da avaliação moral dos fins. Como observa Bauman (1998, p.48) , “o
processo civilizador é, entre outras coisas, um processo de despojar a avaliação
moral do uso e exibição da violência e emancipar os anseios de racionalidade da
interferência de normas éticas e inibições morais”. Essa dissociação resulta, de
modo geral, de dois processos paralelos, ambos intrínsecos ao modelo burocrático
de ação: o primeiro consiste na minuciosa divisão funcional do trabalho e o segundo
na substituição da responsabilidade moral pela responsabilidade técnica.
A minuciosa divisão do trabalho consiste na mera extensão da cadeia de atos
que intermediam a iniciativa e seus efeitos palpáveis. Com ela, a maioria dos
envolvidos é liberada de significado e de exames morais. Os indivíduos são ainda
sujeitos a avaliação, mas por critérios técnicos e não morais. Assim, os problemas
morais passam a ser problemas técnicos que pedem melhor e mais racional
planejamento, e não exame de consciência. Como explica Todorov:
Essa compartimentação da própria ação e a especialização
burocrática decorrente funda a ausência de sentimento de
responsabilidade, que caracteriza os executantes da Solução final,
assim como todos os outros agentes do Estado totalitário. Em uma
das extremidades da cadeia há, digamos Heydrich: seu sono não é
perturbado pelos milhões de judeus que morrem; ele nunca vê rosto
sofredor, ele manipula cifras inodoras. Em seguida, vem, por
exemplo, o policial francês; sua tarefa é muito limitada: recebe as
crianças judias e dirige-as em seguida por um campo de
reagrupamento, onde os alemães passam a ocupar-se delas; quanto
145
a ele, não mata ninguém, não vai além da execução de uma rotina:
receber, expedir.
Segue o autor:
A partir daí, Eichmann entra em cena: seu trabalho, puramente
técnico, consiste em assegurar que um trem parte de Drancy, no dia
15, e chegue a Auschwitz no dia 22. Onde está o crime? Em seguida,
Hoess (o comandante de Auschwitz) intervém: dá ordens para que
se esvaziem os trens e para que se encaminhem as crianças para as
câmaras de gás. Por fim, o derradeiro elo: um grupo de prisioneiros,
o comando especial empurra as vítimas para as câmaras de gás e
aciona o mecanismo de injeção letal; esse grupo é o único a matar
com suas próprias mãos; mas, nesse caso, com toda evidencia,
trata-se de vítimas e não de carrascos.
De acordo com o pensamento do autor:
Nenhum dos elementos da cadeia tem sentimento de
responsabilidade pelo que faz: a compartimentação do trabalho
suspendeu a consciência moral. A situação só é ligeiramente
diferente nas duas extremidades da cadeia: alguém deve tomar a
decisão – para tanto, basta uma única pessoa: um Hitler e o destino
de milhões de seres humanos é selado; tal pessoa, nunca entra em
contato com os cadáveres. E alguém deve desferir o golpe de
misericórdia – até o fim de seus dias (que, aliás, pode estar muito
próximo), tal pessoa (a vítima) perderá a paz interior, mas nem por
isso poderá ser considerada verdadeiramente culpada
(
TODOROV,1995, p.191).
Talvez convenha observar que o mal não é apenas o contrário do bem, mas
também o seu inimigo. O verdadeiro mal tem por objetivo destruir as próprias
distinções morais. Uma maneira de fazer isso é transformar as vítimas em
cúmplices. Os dilemas decorrentes da cooperação dos Conselhos judaicos o
comprovam. Embora seus objetivos fossem salvar vidas e reduzir o sofrimento,
graças aos meios muito limitados de que dispunham, suas ações bem-intencionadas
ajudaram os nazistas a assassinar judeus com uma eficiência e uma perfeição que,
de outro modo, a Solução Final não teria tido. A capacidade nazista de implicar as
vítimas ou aqueles que de outro modo permaneceriam observadores inocentes foi o
aspecto mais maléfico do regime nacional-socialista. Os nazistas forçaram todos, de
observadores passivos a vítimas, a participar na vasta rede de destruição. A
capacidade de implicar as vítimas ou aqueles que de outro modo permaneceriam
observadores inocentes é o aspecto mais aterrador do regime nacional-socialista.
146
Condenar a vítima a participar da mecânica do assassinato era uma maneira de
destruir a própria moralidade.
No que tange a responsabilidade moral, acrescenta Bauman, o sistema
burocrático não advoga contra as normas morais, mas “as utiliza, ou melhor, as
reutiliza”, com um duplo efeito: a “moralização da tecnologia e a recusa do
significado moral de todas as questões não técnicas”. Nesse processo, a
responsabilidade pessoal se dissolve na autoridade fria e impessoal do
conhecimento técnico. Bauman analisa essa sutil passagem da responsabilidade
ética para a responsabilidade técnica, nesses termos:
É a tecnologia da ação e não da sua substância que é submetida à
avaliação como boa ou má, própria ou imprópria, certa ou errada (...).
A responsabilidade técnica difere da responsabilidade moral pelo fato
de esquecer que a ação é um meio para alcançar, algo para além
dela mesma. Como as conexões exteriores da ação são efetivamente
removidas do campo visual, o próprio ato burocrático se torna um fim
em si mesmo, desembaraçado de preocupações morais. Quando
desembaraçado de tais preocupações, o ato pode ser julgado em
termos racionais, inequívocos (BAUMAN, 1998, p.125 e 188).
A desumanização começa no ponto em que os objetos visados pela operação
burocrática são reduzidos a um conjunto de medidas técnicas. É o que podemos
definir de racionalidade do mal. Assim, para os administradores de ferrovias, a única
formulação significativa do seu objeto se reduz em termos de toneladas por
quilômetro. Mandam os soldados atirarem em alvos, que caem quando são
atingidos. Eichmann não tinha contato com seres humanos ou arame farpado, só
lidava com carga.
147
2.4.7. A desumanidade e a responsabilidade flutuante
A responsabilidade flutuante é a situação na qual cada um e todos os
membros da organização estão convencidos de que estão sob as ordens de outra
pessoa, mas as pessoas apontadas pelas outras como responsáveis já passaram o
bastão para um terceiro. A organização como um todo passa a funcionar como uma
corrente, para eliminar toda a responsabilidade.
A perpetração coletiva de atos cruéis fica bem mais fácil, escreve Bauman
(1998, p.191): quando “a responsabilidade é essencialmente inatribuível, enquanto
cada participante desses atos está convencido de que ela compete a alguma
autoridade específica. A responsabilidade flutuante, móvel, é a própria condição dos
atos imorais ou ilegítimos”. Desse modo, Eichmann levou à morte milhões de
pessoas, ocupando-se do pequeno elo de uma longa cadeia, e encarando sua tarefa
como um problema puramente técnico, um mero problema de logística de
transportes.
2.4.8. A despersonalização da vítima
“A coisa mais cruel da crueldade, escreve Janine Bauman (apud
BAUMAN, 1998, p.237), é que ela desumaniza suas vítimas antes de destruí-las. E
o mais duro das lutas é continuar humano em condições inumanas”. Para Todorov
64
,
a despersonalização é um meio de transformar os indivíduos em componentes de
um projeto que os transcende. É o processo que conduz à submissão dócil das
vítimas reduzindo-as à mera peça de uma imensa máquina que as leva a abdicar do
exercício do julgamento e da própria vontade. A transformação das “pessoas em
não-pessoas, em seres animados, mas não humanos”, requer uma série de técnicas
de despersonalização destinadas a esquecer a humanidade do outro.
64
Em face do extremo, 1995.
148
Na sua grande maioria, os funcionários que administravam os campos eram
burocratas, funcionários zelosos e disciplinados, encarnação da simples “banalidade
do mal”. Tanto Eichmann, quanto Hoess ou Speer eram verdadeiros tecnocratas que
tinham em comum o triunfo do pensamento instrumental. Como observa Hilberg
(2003, p.1024): “deve-se ter em mente que a maioria dos participantes do genocídio
não atirou em crianças, nem despejou gás em câmara de gás (...). A maioria dos
burocratas compôs memorandos, redigiu planos, falou ao telefone e participou de
conferências. Podiam destruir todo um povo sentado em suas escrivaninhas”.
Assim, para Hoess, comandante de Auschwitz, só interessava o desempenho
da sua ‘fábrica’, ele não questionava o produto final. Quanto à Speer, o seu principal
problema consistia em produzir o máximo de armas e da melhor qualidade. A
preocupação era somente com a sua “produção”, e não com a sua utilização, nem
com a mão-de-obra escrava. Toda consideração humanitária era eliminada, com a
tradicional distinção entre consciência privada e dever público. “Dou-me conta de
que a visão do sofrimento dos homens teve uma influência sobre os meus
sentimentos, mas não sobre minha conduta. No plano afetivo, não tive senão
reações marcadas de sentimentalismo; no nível das decisões, ao contrário, os
princípios de finalidade racional continuavam a me dominar”, escreveu Speer (apud
TODOROV, 1995, p.217).
Esse quadro frio de morte instrumentalizada precisa de uma linguagem
apropriada, cuidadosamente codificada, técnica e impessoal, à altura de um crime
perpetrado, sine ira et studio, metodicamente, com a satisfação do trabalho bem
cumprido. O objeto das operações burocráticas passa a ser expresso em termos
puramente técnicos, eticamente neutros. Assim, segundo as “regras de linguagem
politicamente corretas”, o genocídio se torna o endlössung ou Solução final; as
operações de matança por gás de “tratamentos especiais”; as câmaras de gás de
“instalações especiais”; os detentos encarregados da matança de
sonderkommandos ou comandos especiais; e o assassinato, pela expressão
“cumprimento de uma morte misericordiosa”. Para os SS encarregados da liquidação
em massa:
149
O judeu se tornou apenas uma figura de museu, um figuren algo
para olhar com curiosidade, um fantástico animal fóssil com uma
estrela amarela no peito, uma testemunha de tempos idos, mas não
pertencentes ao [tempo] presente. Algo que deveríamos viajar para
bem longe, se quiséssemos ver
(KERSHAW apud BAUMAN,
1998, p.219).
Por outro lado, a linguagem da moralidade adquire um novo vocabulário,
repleto de conceitos como dever, lealdade - como a divisa dos SS: “A minha honra é
a minha lealdade” -, disciplina, todos apontando para os superiores como supremo
objeto de preocupação moral. Bauman observa que essa linguagem codificada, ao
mesmo tempo em que disfarçava o crime, revela um dos seus aspectos mais
notáveis: a sua dimensão burocrática, elo indispensável entre a violência rotinizada
e a morte instrumentalizada”.
Por fim, Milgram revelou que a disposição de agir contra a própria consciência
é função da exposição a uma fonte clara, inequívoca e monolítica de autoridade.
Segundo ele, só quando se tem uma autoridade que opera num campo livre, sem
nenhuma pressão contrária, além dos protestos da vítima, é que se consegue a
resposta mais pura à autoridade”. No contexto do genocídio, essa fonte clara de
autoridade era o regime totalitário nacional-socialista, personificado pelo führer, o
qual teve o cuidado de destruir desde o início, todo vestígio de pluralismo político
para deslanchar o seu funesto projeto.
Hannah Arendt (apud BAUMAN, 1998, p.194) observa que a recíproca
também é verdadeira: o pluralismo político constitui o melhor antídoto contra
pessoas moralmente anormais e a voz da consciência individual é mais bem ouvida
no tumulto da discórdia política e social.”
150
CONCLUSÃO
A experiência democrática da República de Weimar foi uma das matrizes do
totalitarismo na Alemanha nacional-socialista. Se muitos fatores contribuíram para a
manifestação do surto totalitária na Alemanha nacional-socialista, a sua origem tem
se sua base principal nas ambigüidades e nas imperfeições da democracia, como
tentou demonstrar neste trabalho.
A pesquisa começou com o estudo da matriz totalitária e trilhou os meandros
do labirinto totalitário para identificar os fatores desencadeantes da dinâmica
totalitária tal como se manifestou na Alemanha. O desafio maior da pesquisa foi
tentar compreender como um regime eleito democraticamente, referendado em
várias ocasiões, com ampla maioria, herdeiro de uma das culturas mais
desenvolvidas da Europa, pôde ter aderido a tal projeto.
O estudo da matriz totalitária abordou três grandes aspectos: cultural, social e
político. Dos três aspectos estudados foi justamente na matriz política que
encontramos as explicações mais convincentes para o surgimento do totalitarismo.
Todavia, vale salientar que a indeterminação democrática e a politização da vida são
dois temas reveladores e interessantes, devido ao alcance das explicações de Lefort
e Agamben.
No que tange a matriz cultural, a “Revolução conservadora” representou um
excepcional laboratório de idéias sobre a temática da modernidade e do
“desencantamento do mundo”, na qual o regime nacional-socialista encontrou uma
importante fonte de inspiração. Graças aos trabalhos pioneiros de Louis Dupeux, os
historiadores contemporâneos dão um maior destaque a esse fermento intelectual e
a esse potencial de violência que encobria uma sociedade cujas estruturas jurídicas
ainda não estavam consolidadas e que formou o discurso ideológico do nacional-
socialismo.
Já na matriz social destaca-se a brutalização da sociedade. Para G. Mosse, o
período de descivilização marcado pela guerra 1914-1918 anunciou as brutalizações
151
totalitárias dos períodos subseqüentes. Após o término dos combates, toda a cultura
da guerra influenciaria a sociedade civil alemã. O “ideal militar” era presente em toda
parte. Hitler, nostálgico e prisioneiro daquilo que Mosse denominou o “mito da
grande guerra” aspirou a uma “sociedade de combatentes”. Após 1918, o campo de
batalha havia se transferido para o front interior, no seio da sociedade civil.
O advento da era tecnicista, anunciada por Yünger, teve amplas repercussões
no período entre as duas Grandes Guerras, tornando o combatente uma mera peça
mecânica. A mecanização dos indivíduos e das relações humanas não se limitou à
própria guerra, mas afetou os tempos de paz com as concepções e os ideais
herdados do conflito.
No que tange a essência da matriz política do poder totalitário, alguns
autores foram destacados. Em primeiro lugar, Claude Lefort, para quem o
totalitarismo é uma tentativa desesperada e contraditória de anular a incerteza
indissociável da experiência democrática moderna, e de procurar no quadro protetor
uma sociedade fechada, a defesa dos valores e das antigas certezas que sempre
tem regulado a vida comunitária.
A maior contribuição de Lefort foi a de ter ido além de uma mera denúncia da
opressão totalitária, e ter procurado revelar a sua matriz, bem como o seu
mecanismo. A originalidade da sua obra está em ter contribuído para elucidar o
enigma do surgimento do totalitarismo. Para Lefort, a gênese do totalitarismo pode
ser compreendida somente a partir das ambigüidades da própria democracia. Isso
significa que na essência da democracia, como já foi exposto, existe uma
indeterminação, isto é, uma insuperável incerteza.
A indeterminação democrática é apontada pelo autor como sendo a principal
ambigüidade da democracia que tem servido de alavanca para a aventura totalitária.
Lefort não hesita em afirmar que a liberdade política só pode ser preservada
enquanto existir a proibição de se apropriar do poder (no sentido de posse ou de
confisco) pelos depositários da autoridade pública, enquanto permanecer vazio,
inocupável o lugar do poder.
152
Apenas a autoridade do poder para um exercício limitado do poder pode ser
conquistada, e não o poder em si, a posse do poder. A impossibilidade de se
apossar do poder é indissociável do reconhecimento da legitimidade da competição
política. Para ser efetiva, uma redistribuição periódica das cartas do poder
pressupõe uma abertura efetiva da competição política para todos aqueles que
julguem ter o direito ao seu exercício.
Por outro lado, a legitimidade de uma competição política pressupõe também
legitimar a existência do conflito, ou pelo menos da sua expressão. Com efeito, se os
postulantes ao poder não tivessem a liberdade de defender as suas convicções,
quaisquer que fossem, isso significaria que existiria, em algum lugar, um outro
poder, um verdadeiro poder, guardião da doxa, a qual todos devem subscrever.
Defender a idéia de um poder vazio, inapropriável tem como principal conseqüência
a instauração de um espaço público num âmbito onde as relações entre os homens
são subtraídas à autoridade do poder.
Para Lefort, as raízes do totalitarismo se encontram precisamente na própria
democracia, quando desaparece a base transcendental do social. O regime
totalitário constitui uma exata inversão do modelo democrático. Enquanto neste, a
alternância regular do poder marca a separação do poder com a sociedade,
possibilitando assim a autonomia do espaço social em relação aos depositários do
poder, naquele, em contraste, a identificação total do poder com a sociedade tem
por efeito que em direito, a sociedade não goza de nenhuma autonomia, que ela
representa para ele apenas um mero espaço privado. Juridicamente, não existe
nada que aconteça na sociedade que não diz respeito ao Poder. E para caracterizö-
de-regra, nenhum tipo de comunicação, nenhuma forma de expressão do
pensamento e da opinião, pode fugir ao controle do poder.
Em vez do fantasma totalitário, a sociedade democrática corresponderia a
uma vontade de unificar uma sociedade sem abolir as suas divisões, pois longe de
enfraquecê-la, os conflitos alimentam a vida comum. Tal é o paradoxo da
democracia: uma encenação política, dentro da qual se produz uma competição que
deixa transparecer a divisão, sendo essa mesma divisão constitutiva da própria
unidade social. Lefort condena a pretensão totalitária de estabelecer uma sociedade
153
sem classe, ou homogênea sob o aspecto racial (völkisch), a qual todos os
indivíduos seriam idênticos, sublinhando assim a natureza conflitante de toda
democracia.
O regime democrático é marcado pelo selo da indeterminação, pela ausência
de certeza, e ele se situa nesse aspecto numa perspectiva de história aberta: a
democracia caracteriza-se assim como ‘a’ sociedade histórica por excelência,
sociedade que, na sua forma acolhe e preserva a indeterminação, em contraste
notável com o totalitarismo que, se revelando sob o signo da criação de um homem
novo, se edifica na realidade contra essa indeterminação.
A democracia implica numa redistribuição periódica das “cartas do poder” e a
constituição de um espaço público de discussão, “sem precondição, nem avalista”,
acrescenta o autor. Na ausência desses dois elementos, o debate seria
inevitavelmente viciado e um conflito não deixaria de surgir entre o caráter
indeterminado desse regime político e a pretensão do poder instituído de arrogar-se
o poder em benefício próprio.
A sociedade democrática é indeterminada, na sua essência. Essa
indeterminação se traduz por sua vez, pela constituição de um espaço público onde
todos podem defender suas idéias sobre uma ordem social justa. Isso implica o
reconhecimento da legitimidade do debate e do conflito. Desse modo, a unidade da
democracia é inseparável do reconhecimento das suas divisões.
Quando predomina o sentimento de que a democracia não representa nada
mais do que a destruição da coesão social e, a exemplo da República de Weimar,
ela se torna não a solução, mas a principal causa da desordem social, os indivíduos
podem ser levados a abraçar um projeto de restauração de uma Sociedade–Una,
afinada consigo mesma e que possa acabar com todos os conflitos decorrentes da
divisão social. A representação de uma Sociedade–Una marca uma ruptura radical
com o modelo democrático, uma vez que almeja acabar, com o lugar vazio do poder,
com a luta incessante pelo poder e finalmente com os conflitos sociais.
154
O sentido da mutação que provoca o desmoronamento da sociedade
democrática e o advento simultâneo do totalitarismo se encontra nesse labirinto
inextricável onde os indivíduos são impelidos por uma sociedade inapreensível
segundo a expressão de Lefort, uma sociedade sempre em busca de uma saída, de
uma definição às suas contradições e às suas divisões. Em outros termos, a
aventura totalitária é baseada sobre um modelo de sociedade livre de conflitos e,
desse modo, livre do problema da indeterminação. Ela se fundamenta na recusa do
reconhecimento de que a divisão social é o resultado inelutável da sociedade como
tal.
Para Lefort, essa aspiração totalitária de restaurar a coesão social, num corpo
social orgânico unido em torno do mesmo desígnio e senhor de seu próprio destino,
só pode ser compreendido à luz do desejo de superar esse vazio que a destruição
do poder tradicional cavou na substância da própria comunidade. O totalitarismo é
uma tentativa desesperada e contraditória de anular a incerteza indissociável da
experiência democrática moderna, e de procurar, no quadro protetor uma sociedade
fechada, preservar os valores e as antigas certezas que sempre regularam a vida
comunitária.
Na visão de Lefort, para explicar o destino da liberdade, não basta afirmar que
a representação do Povo – Uno é inseparável do terror. É preciso ir além e desvelar
que é precisamente no âmago da democracia e em razão das suas próprias
contradições, que nasce a tentação do Uno totalitário. Defender a liberdade é
inseparável de uma crítica à tentação do Uno. Tal seria a missão da filosofia política:
relembrar que a defesa da democracia e das liberdades exige que os homens
estejam preparados a resistir ao fantasma do Uno.
Com as ambigüidades decorrentes da indeterminação democrática, devemos
a Tocqueville o grande mérito de ter apontado um outro perigo para o regime
democrático: a tirania da maioria que decorre do exercício do poder. Para
Tocqueville, o risco existe quando uma maioria de indivíduos que pretendem ser
iguais se apóia nessa mesma maioria para fazer prevalecer uma vontade, que pode
ser a de exclusão de todos aqueles que ela julga diferentes.
155
A tirania da maioria pode ser exercida contra a minoria. No exemplo do
regime nacional-socialista, ela pode declarar a vida de certos grupos minoritários
como indigna de ser vivida e desse modo rejeitá-la da comunidade, a mercê de uma
decisão arbitrária do Poder soberano. Contra as minorias, é sempre possível exercer
uma certa violência, que pode tomar várias expressões: ela pode se manifestar quer
pela recusa de conceder a certos indivíduos o conjunto de seus direitos, quer pela
desigualdade, quer pela manifestação de certo menosprezo a determinados
indivíduos, por causa de sua diferença. A maioria pode também adotar uma
dimensão agonal do exercício do poder, onde passa a existir uma oposição
fundamental entre o idêntico fundador da maioria e o diferente característico das
minorias. A tirania da maioria é uma situação onde a maioria possui todos os direitos
e todos os instrumentos do poder, e onde as minorias, que se opõe a ela, correm o
risco de se encontrar na incapacidade de fazer prevalecer os seus direitos, inclusive
os direitos à vida. Desse modo, a democracia, quando existe o exercício da tirania
da maioria, pode revelar outra de suas imperfeições: um regime em que reina o
poder, sem qualquer restrição, e que pode vir a se tornar uma ameaça à vida das
minorias.
Existe um terceiro perigo no exercício do poder democrático, quando este
focaliza a vida dos indivíduos, ou mais precisamente o potencial vital de uma
comunidade, que Foucault denominou de “biopolítica”. Perigo que aparece com o
crescente envolvimento da vida natural do homem nos mecanismos e nos cálculos
do poder. Nesse contexto, o poder nacional-socialista tentou legitimar a eutanásia
com a justificativa que havia vidas sem valor “que não mereciam ser vividas”
(lebensunwert) em oposição à “vida digna de ser vivida”.
O objeto do Estado soberano, segundo um dos maiores estudioso do biopoder
da atualidade, Giorgio Agamben, passa a ser a vida nua do homo sacer, exposta,
sem mediação, ao exercício biológico de uma força de correção, de encarceramento
e de morte. O campo surge como a outra face da relação de exceção: Vida nua
versus Poder Soberano, onde se exerce esse poder. É o espaço que se abre
quando o estado de exceção se torna tanto a regra quanto “o regulador oculto da
inscrição da vida no ordenamento político”. Para Agamben, o campo constitui o
paradigma que marca de forma decisiva, a realidade biopolítica moderna. O campo
156
constitui então um espaço de exceção onde a lei é integralmente suspensa, onde
realidade e direito se confundem sem resíduos, e onde “tudo é possível”. O
campo não foi apenas “a sociedade a mais totalitária jamais realizada”, como
apontou Rousset, mas também o modelo social perfeito para o domínio total do
poder soberano. Um poder total, conseguido sem exceção, sobre todos os homens,
em todos os aspectos das suas vidas.
Para o biopoder, existe sempre a tentação de transformar não apenas o
mundo exterior, mas a própria natureza humana. Uma figura representa essa vida
nua, a figura do homo sacer descrita por Agamben, uma vida a mercê de uma
provável expulsão para fora dos limites do ban de um mundo ordeiro.
A revolução nacional-socialista desejou fazer apelo às forças que tendem a
exclusão dos fatores de degeneração biológica e à manutenção da saúde hereditária
do povo. Ela almejou fortalecer a saúde do conjunto da nacao e eliminar as
influências que prejudicam o seu desenvolvimento biológico. Esta nova política
encontra sua legitimidade na assunção de uma suposta missão biopolítica do
Estado, de acordo com a concepção do “vir-a-ser” (dasein), na qual vida e política se
identificavam com a idéia de “dar forma à vida de um povo”. O indivíduo só tem lugar
e valor na medida em que contribui para o bom funcionamento da Comunidade
orgânica, em que desempenha de maneira satisfatória o seu papel, a sua função.
Para o regime nacional-socialista, o valor do indivíduo é estimado em função
da sua capacidade contributiva (leistungsfähigkeit), isto é, da sua aptidão em cumprir
com êxito um leistung, uma tarefa em prol da comunidade e do Estado. Um indivíduo
só aceito, incentivado, promovido, alimentado na medida em que possa trabalhar
para o seu Estado e para a sua raça, quando a sua capacidade contributiva
(leistung) e o seu ‘sacrifício’ excedem generosamente aquilo que a comunidade vai
lhe retribuir. Do contrário, quando a vida de um indivíduo representa uma perda
líquida para a comunidade (leistungsunfähig), a pessoa é declarada indigna de viver
(lebensunwert). Uma vida indigna de ser vivida (lebensunwertes leben) será então
interrompida pela morte como a dos doentes mentais, submetidos a uma ação de
eutanásia no quadro da Operação T4 ou de judeus. Um indivíduo leistungsunfähig
157
se torna um ônus para a comunidade, um peso morto que atrasa a marcha da raça e
do Estado.
Essa máquina individual deve produzir, exercendo uma atividade produtiva
(produzir leistung), o que significa também produzir filhos. A procriação se torna um
imperativo político que é incentivado pelo Estado e pela propaganda. É imperativo
produzir braços para a indústria e para a guerra. A expressão utilizada pela
propaganda nazista é: produzir crianças (kinder zeugen) do mesmo modo que numa
fábrica, uma máquina produz (erzeugt) mercadorias (erzeugnisse).
No regime nacional-socialista, o indivíduo era considerado como um material
humano (menschenmaterial), uma matéria-prima a trabalhar, a aperfeiçoar, a
esculpir, a construir. Seguindo o modelo tradicional prussiano, o III Reich ambicionou
se tornar uma sociedade alinhada (gleichgschaltet), regida pela capacidade
contributiva (leistungsprinzip) do seu material humano (menschenmaterial)”;
aspirando a se “tornar uma máquina regulando toda a atividade mecânica e
planejada de cidadões-autômatos”.
158
Ao se abordar esta etapa do trabalho, foi possível resgatar a memória
daquele obscuro soldado cuja vida motivou a realização deste trabalho. Levado para
um campo de prisioneiros, destinado exclusivamente a soldados judeus e soviéticos,
permaneceu preso até 1945. Após a sua liberação, quase não falou sobre o tema,
mas deixou registrado em cartas póstumas que “havia decidido viver” e que a “sua
maior façanha foi de ter voltado vivo de lá”, de um mundo ‘alinhado’ (gleischaltung)
que havia decretado a sua vida indigna de ser vivida (lebensunwert). Condenado ao
trabalho forçado, este homem trabalhou além de suas forças para ‘ser útil’ segundo
os conceitos de leistung e, com isso, receber a recompensa da alimentação que lhe
dera forças para sobreviver.
Apesar deste relato não ter sido o foco do trabalho, vale lembrar que a sua
experiência de guerra sempre esteve presente durante toda esta pesquisa. Assim
como seu ensinamento de que se deve odiar e rechaçar apenas o ódio e não as
pessoas, sejam elas pertencentes à maioria ou às minorias.
159
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