Download PDF
ads:
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULADADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE LETRAS CLÁSSICAS E VERNÁCULAS
A LÍRICA LAUDATÓRIA NO LIVRO QUARTO DAS
ODES DE HORÁCIO
DISSERTAÇÃO
apresentada ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas
da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
para obtenção do título de
M
ESTRE EM LETRAS CLÁSSICAS
Érico Nogueira
Orientador: Prof. Dr. João Angelo Oliva Neto
Dezembro de 2006
1
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
Agradecimentos
A João Angelo, pela orientação que se tornou amizade.
Ao CNPq, pela bolsa concedida entre julho de 2004 e junho de 2006.
A Eugênio, Lígia, Carlo Eugênio e Maíce, minha família, por tudo e sempre.
A Calu, sine qua non.
2
ads:
Índice
1. Introdução.....................................................................................................................4
2. Os testemunhos antigos................................................................................................5
3. Gêneros e espécies líricas: sobre o catálogo de Horácio..........................................10
4. A lírica laudatória no três primeiros livros das Odes..............................................18
4. 1. Ode 1, 2....................................................................................................................19
4. 2. Ode 2, 19..................................................................................................................26
4. 3. Ode 3, 25..................................................................................................................32
5. Elogio da lírica e lírica do elogio: as odes laudatórias do livro quarto das Odes de
Horácio ................................................................................................................................36
5. 1. Ode 4, 2....................................................................................................................38
5. 2. Ode 4, 3....................................................................................................................46
5. 3. Ode 4, 4....................................................................................................................50
5. 4. Ode 4, 5....................................................................................................................59
5. 5. Ode 4, 6....................................................................................................................67
5. 6. Ode 4, 8....................................................................................................................75
5. 7. Ode 4, 9....................................................................................................................82
5. 8. Ode 4, 14..................................................................................................................88
5. 9. Ode 4, 15..................................................................................................................96
6. Possíveis conclusões..................................................................................................105
7. Bibliografia................................................................................................................ 113
3
1. Introdução
O objetivo principal deste trabalho é estudar a lírica laudatória – isto é, no caso de
Horácio, hinos e encômios – no quarto e último livro das Odes. Para tanto, seguiremos um
trajeto predeterminado. Em primeiro lugar, estudaremos os testemunhos antigos sobre o
dito livro, o que nos permitirá verificar que a apreciação via de regra negativa que recebeu
na Antigüidade se devia à circunstância de ser considerado, erradamente, como se verá,
obra de encomenda, não à predominância quantitativa, nele, das espécies laudatórias sobre
as demais espécies líricas (com efeito, nove das quinze odes do livro são hinos ou
encômios). Em seguida, partindo de textos de Aristóteles, Platão, Fócio e Horácio,
estudaremos o material, a hierarquia e a natureza, em particular, do catálogo lírico deste
último, pelo que haveremos de concluir que se constitui de elementos alexandrinos,
organizados segundo um gradiente aristotélico e mantendo, entre si, relações de parentesco
e semelhança tal qual espécies no interior de um gênero. Ademais, é a partir dos conceitos
retórico-poéticos identificados nesta seção que tanto se poderá classificar a lírica laudatória
como a mais elevada do gênero, quanto se fará a análise de todos os poemas estudados
nesta dissertação. Antes, pois, de tratar propriamente do nosso objeto, consideraremos,
então, brevemente, três exemplos de odes laudatórias tirados da primeira coletânea lírica do
autor. Tal consideração, quando menos, nos permitirá aquilatar melhor a especificidade de
tais odes na derradeira coletânea, em que fusão entre metalinguagem e elogio de princeps,
como se verá, há de ser o traço principal.
4
2. Os testemunhos antigos
Dos testemunhos sobre quarto e último livro das Odes de Horácio que a Antigüidade
nos legou, o mais antigo é um trecho de uma biografia que, encontrada em muitos dos
manuscritos das obras do poeta, com toda a probabilidade é de autoria do historiador
romano Suetônio
1
. Segundo o historiador – e, no seu encalço, também os dois mais antigos
comentadores de Horácio que conhecemos, Porfirião (século III d.C.) e Pseudo-Acrão
(século V d.C) –, o poeta teria sido coagido a compor seu quarto e último livro de odes.
Como e quem o teria coagido nos dizem, respectivamente e em ordem cronológica, o
mesmo Suetônio:
scripta quidem eius usque adeo probauit mansuraque perpetua opinatus est, ut non modo
saeculare carmen componendum iniunxerit, sed et Vindelicam uictoriam Tiberii Drusique
priuignorum suorum, eumque coegerit propter hoc tribus carminum libris ex longo interuallo
quartum addere [...]
2
.
[Augusto] gostou tanto dos seus [i. e. de Horácio] escritos e a tal ponto se convenceu de
que permaneceriam imortais, que não apenas lhe ordenou que compusesse o Carmen saeculare,
mas também [que celebrasse] a vitória de Tibério e de Druso, seus enteados, contra os Vindélicos,
e o coagiu, por isso, a acrescentar, depois de um longo intervalo, um quarto livro de odes aos três
primeiros [...].
Porfirião:
Post consummatos editosque tres carminum libros maximo interuallo hunc quartum scribere
conpulsus esse dicitur ab Augusto, ut Neronis priuigni eius uictoriam de Retis Vindelicis quaesitam
inlustraret [...]
3
.
1
Cf., Q. Horati Flacci Opera, ed. F. Klingner, Leipzig, Teubner, 1959, pp. V-XXII, para a história da
tradição manuscrita, e p. 1*, para a atribuição da biografia a Suetônio. Todas as citações do texto latino de
Horácio referir-se-ão, aqui, a esta edição. Todas as traduções deste e de outros textos latinos, gregos e alemães
será de nossa inteira responsabilidade.
2
E. Suetoni Vita Horati, em: Horati Op. cit., p. 2*, 20-25.
3
Pomponi Porfyrionis Commentum in Horatium Flaccum, New York, Arno, 1979, p. 137; fac-símile da
edição de A. Holder, Innsbruck, Wagner, 1894.
5
Concluídos e publicados três livros de odes, diz-se que após um longuíssimo intervalo ele
[isto é Horácio] foi obrigado por Augusto a escrever um quarto livro, para que celebrasse a vitória
de [Druso] Nero, seu enteado, obtida contra os Vindélicos da Récia.
E enfim Pseudo-Acrão:
Statuerat Horatius usque ad tertium librum carminum conplere opus suum, quibus editis
maximo interuallo hunc quartum scribere est ab Augusto conpulsus in laudem priuigni sui Drusi
Neronis, qui uictor de Retis Vindelicis fuerat reuersus [...]
4
.
Horácio decidira que até o terceiro livro das odes completaria a sua obra, muitíssimo depois
de cuja publicação foi obrigado por Augusto a escrever um quarto livro em louvor do seu enteado
Druso Nero, que voltara vitorioso contra os Vindélicos da Récia [...].
Segundo vemos, conquanto Porfirião pareça simplificar o testemunho de Suetônio, e
Pseudo-Acrão, como evidencia o vocabulário, pareça, por sua vez, partir e desenvolver o
relato de Porfirião, os três são, porém, concordes na apreciação da causa por que Horácio
teria escrito o quarto livro: uma ordem de Augusto. No entanto, há que notar que o modus
operandi de tal causa é bem distinto no relato de Suetônio, de um lado, e no dos dois
comentadores, de outro. Segundo lemos no primeiro, Augusto, porque mandou que o poeta
compusesse o Carmen saeculare e as odes 4, 4 e 4, 14 que celebram respectivamente a
vitória de Druso sobre os Vindélicos e a de Tibério sobre os Retos , por isso mesmo
(propter hoc) o coagiu (coegerit) a acrescentar um novo livro de odes aos três primeiros.
Em outras palavras, entre a ordem de Augusto para que se compusessem três poemas (um
dos quais – o Carmen Saeculare – não pertence ao quarto livro), e a efetiva composição dos
quinze de que se constitui esta nova empresa, há evidente e flagrante lacuna. Para
completá-la, Horácio precisaria ainda de nada menos que treze poemas, – donde, em vez de
coerção, tratar-se-ia aqui antes de estímulo: o que nos possibilita dizer que da encomenda
ou ordem de Augusto, tal qual descrita por Suetônio, não se segue necessariamente um livro
inteiro. Por isso, a despeito da legítima mas apressada inferência do historiador, a relação
entre a encomenda e a efetiva execução do novo livro parece ser mediada pelo crivo do
próprio poeta, isto é, haveria, pois, a este respeito, uma tomada de decisão – o que nos
4
Pseudacronis Scholia in Horatio Vetustiora, ed. O. Keller, Stuttgart, Teubner, 1967, v. 1, p. 325.
6
permite admitir que a coerção, se é que existiu, foi no máximo indireta e, em última
instância, dependente tanto do coagido como do coator.
Quanto aos outros testemunhos, o de Porfirião e do Pseudo-Acrão, ambos seguem
padrão idêntico: não mencionam o Carmen Saeculare; afirmam que Horácio foi obrigado a
compor o quarto livro de odes “para celebrar” (ut illustraret, em Porfirião; in laudem, em
Pseudo-Acrão) a vitória de Druso contra os Vindélicos; e que esta coação, enfim, sofrida
nas mãos de Augusto, deu-se muito tempo depois da publicação de sua primeira coletânea
lírica. Que tal juízo simplifique o que se propõe a descrever e não corresponda ao que, em
toda a sua complexidade, seria o quarto livro das Odes mostram-no, em primeiro lugar, a
circunstância de os poemas em louvor de Druso e Tibério pela vitória contra os Vindélicos
serem apenas dois de um total de quinze; em seguida – se é que se pode afirmar que a
posição inicial, central ou final de um poema marca, para Horácio como para seus
contemporâneos, uma posição de destaque em relação aos outros de um mesmo livro
5
–, a
constatação de que tais odes não ocupam lugar proeminente na coletânea em questão; por
último, o que teremos ocasião de estudar mais em detalhe adiante, a hipótese de que elas se
inscrevem, na verdade, num plano superior, que é o elogio de Augusto por meio do elogio
de seus enteados.
Se, portanto, o relato de Suetônio nos permite tirar as conclusões aqui tiradas, ele
próprio, porém, de modo algum as tira – pelo menos não explicitamente. Já Porfirião e
Pseudo-Acrão, mais preocupados em comentar a obra do que em oferecer justa apreciação
biográfica da mesma, limitam-se a simplificar ainda mais as informações de Suetônio, – e a
circunstância de que tenham realmente ou não travado conhecimento direto com o texto do
historiador em nada muda a evidência de que, direta ou indiretamente, é das informações
contidas neste texto que ambos parecem derivar as suas. (Com efeito, a seqüência lógica é a
mesma nos três autores, a saber: um longo intervalo depois da publicação da sua primeira
5
Cf., em referência específica a Odes 1-3, mas igualmente aplicável a Odes 4, Porter, D. H., Horace’s poetic
journey: A reading of Odes 1-3, New Jersey, Princeton University Press, 1987, p. 3: “There are many internal
indications that Horace intended the collection to be seen as a single architectural entity, among them the
obvious balance of its outside poems, 1. 1 and 3. 30; the clear grouping of certain large sections by metrical
principles – 1, 1-12, 2.1-12, 3.1-6 –; the special attention paid to marking important beginnings, ends, and
middles; and the very way he speaks of his accomplishment in the last poem: exegi monumentum aere
perennius regalique situ pyramidum altius. Nor does our emphasis on ongoing linear and thematic
development need elaborate defense. Ancient books were intended above all for continuous reading or
recitation, and the very manner in which they were written, on a volumen that was progressively unrolled
from one hand, rolled up by the other, invited attention to linear development even in a non-narrative genre”.
7
coletânea, Augusto ordena a Horácio que componha um novo livro de odes; e todos, além
disso, a organizam ao redor do mesmo termo interuallo, sempre no ablativo.) Como quer
que seja, Suetônio nos menciona ainda, continuando o relato supracitado, um evento não
sem conseqüências para uma justa apreciação do nosso livro: a demanda de Augusto a
Horácio, exigindo-lhe determinado escrito, e que gênero de escrito seja este. Eis a
passagem:
... post sermones uero quosdam lectos nullam sui mentionem habitam ita sit questus: irasci
me tibi scito, quod non in plerisque eiusmodi scriptis mecum potissimum loquaris. an uereris ne
apud posteros infame tibi sit, quod uidearis familiaris nobis esse?expressitque eclogam ad se,
cuius initium est:
cum tot sustineas et tanta negotia solus,
res Italas armis tuteris, moribus ornes,
egibus emendes: in publica commoda peccem,
si longo sermone morer tua tempora, Caesar
6
.
... além disso, depois de ler alguns dos seus sermones e não encontrar nenhuma menção a
si próprio, assim queixou-se [Augusto] com ele: “saibas que estou irado contigo, porque na maioria
dos escritos deste gênero sobretudo comigo não conversas. Será que temes que entre os pósteros
te seja infame o fato de te mostrares meu amigo?” E arrancou-lhe um poema dedicado a si, cujo
início é:
“Pois que de tantos e tais negócios te encarregas só – o Estado Itálico com armas guardas,
de bons costumes ornas, por leis emendas –, atentaria eu contra o bem público se com uma longa,
ó César, conversa o teu tempo eu tomasse”.
Ora, o que vemos aqui? Desde logo que Augusto, depois de ler o que provavelmente seria o
primeiro livro das suas Epístolas, reclama a Horácio de que ele, o imperador, não se
encontre entre os seus destinatários. Portanto, o escrito que este último deseja não é,
segundo lemos, um novo livro de odes – mas uma epístola, um sermo, com todas as
prescrições retórico-poéticas que lhe são específicas
7
. Vemos também que esse escrito, a
que Suetônio designa ecloga e que não é senão a epístola 2, 1, foi efetivamente publicado
6
Op. cit., p. 2*, 25ss.
7
Cf., para um exame exaustivo da questão do gênero epistolar e suas espécies, Martinho dos Santos, Marcos,
As Epístolas de Horácio e a Confecção de uma Ars Dictaminis: o Opus; dissertação de mestrado apresentada
ao Departamento de Letras Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP, São Paulo, 1997, inédita.
8
como resposta à demanda imperial; por que razão, pois, a Vita Horati de Suetônio deveria
ser lida como uma espécie de impugnação do quarto livro das Odes como obra de
encomenda, sobretudo depois de considerarmos que, diz-nos a mesma Vita, são apenas dois
os poemas que se referem à demanda ou ordem de Augusto neste livro? Com efeito, em
nenhum dos documentos de que dispomos, quer se trate da obra mesma do poeta, quer dos
comentários que na Antigüidade suscitou, menciona-se ou mesmo sugere-se que a Horácio
seria indecoroso celebrar o imperador ou quem quer que fosse em chave lírica – fosse
assim, Píndaro, que para Quintiliano é o primeiro dentre os líricos gregos
8
, não poderia,
sendo o poeta por excelência do elogio na espécie lírica do epinício, ter sido apreciado
como tal. O que, pois, conforme lemos aqui, parece que lhe seja indecoroso é precisamente
um escrito por cujas leis de gênero o príncipe, para escândalo de nós pósteros, seria visto
quase como igual do poeta. Mas o que haveria de indecoroso num escrito que bem ou mal
iguala superior e subordinado, ao mesmo tempo em que torna público este nivelamento,
esta amicitia, esta philía entre ambos? Precisamente neste ponto, então, haveria que
considerar mais detalhadamente os sermones de Horácio e – segundo as prescrições que
regulam, pela parte do autor, sua composição, pela do público, sua apreciação – tentar
descobrir os motivos da asserção de Augusto e do suposto receio do poeta: tarefa
demasiado longa para os limitados objetivos desta dissertação. Sendo assim, e voltando-nos
particularmente a nosso problema – hinos e encômios no livro quarto das Odes –, que
conclusões poderíamos tirar da análise que fizemos?
Em primeiro lugar, que uma leitura atenta da Vita de Suetônio não nos permite
considerar o nosso livro como obra de encomenda. (E mesmo que o permitisse, isso não
seria suficiente para o condenar antes e independentemente de toda leitura.) Depois, que o
ter recebido ele uma apreciação ao que parece negativa dos escoliastas não parece derivar-
se do seu caráter principalmente laudatório, mas de uma leitura apressada da mesma Vita
pelos mesmos escoliastas. Em outras palavras, nossa hipótese é que a condenação do quarto
livro se deve antes à circunstância de ter sido considerado obra de encomenda e adulação
que propriamente à presença, dominante nele, de poemas laudatórios. Ora, como e por quê?
Segundo nos parece, porque as espécies laudatórias da lírica, como veremos na seção
8
Cf. M. Fabi Quintiliani Instituitiones Oratoriae, ed. L. Radermacher, 2 v., Leipzig, Teubner, 1965, X, 1, 61,
p. 245: Nouem uero lyricorum longe Pindarus princeps [...], “Dos nove líricos [gregos] Píndaro é de longe o
primeiro”.
9
seguinte, eram tidas como as poeticamente mais elevadas do gênero, para Horácio e não só
para ele: donde uma condenação dessas espécies precisamente por serem tipos líricos de
elogio não nos parecer razoável em autores como Suetônio, Porfirião e Pseudo-Acrão,
leitores, todos eles, da obra do poeta. Mas o que seriam, enfim, para Horácio, no interior do
gênero lírico, as espécies ditas laudatórias, isto é, no seu caso específico, hinos e encômios?
E qual seria a sua particularidade neste quarto livro, em comparação com os três primeiros?
O papel de Augusto, agora predominante nele? Ou a atitude do poeta – antes de uma sua
persona – diante das espécies que, pelo menos quantitativamente (nove das quinze odes do
livro são laudatórias), passa a colocar em destaque? Para responder a tais perguntas e
especulações, cabe averiguar, primeiro, o que sejam, e como, para o nosso autor, hinos e
encômios, e como aparecem numa e noutra coletânea sua. Feito isto, poderemos então
comparar os resultados obtidos e ensaiar certas conclusões.
3. Gêneros e espécies líricas: sobre o catálogo de Horácio
Sabemos, desde Aristóteles, que os diferentes gêneros de poesia, a despeito de serem
todos um certo tipo de imitação ou mímese, se distinguem um do outro pelo seguinte:
e)popoii/a dh\ kai\ h( th=j tragw?di/aj poi/hsij e)/ti de\ kwmw?di/a kai\ h( diqurambopoihtikh\
kai\ th=j au)lhtikh=j h( plei/sth kai\ kiqaristikh=j, pa=sai tugxa/nousin ou/=sai mimh/seij to\
su/nolon: diafe/rousi de\ a)llh/lwn trisi/n, h)\ ga\r tw=? e)n e(te/roij mimei=sqai h)\ tw=? e(/tera h)\ tw=?
e(te/rwj kai\ mh\ to\n au)to\n tro/pon
9
.
Com efeito, a epopéia e a poesia trágica, assim como a comédia e a poesia ditirâmbica, e
também a maior parte da aulética e da citarística, são todas em geral imitações. Diferem, porém,
entre si, por três coisas: ou por imitar com meios diversos, ou coisas diversas, ou por fazê-lo
diversamente e não da mesma maneira.
Ou seja: há diversos tipos ou gêneros de poesia, ou porque os meios, ou os objetos, ou o
modo da imitação são também diversos. Mas a que meios, objetos e modos de imitar
Aristóteles efetivamente se refere? Resumindo os três primeiros capítulos da Poética,
9
Aristóteles, Poética, ed. trilíngüe por V. G. Yebra, Madrid, Gredos, 1992, 1447a, 13-18.
10
digamos que os meios da imitação são o ritmo, a linguagem, e a harmonia; os objetos, as
ações de homens melhores, ou piores, ou iguais à média; os modos, a narração, a
representação, ou ambas. Se assim é, caberia indagar aqui da especificidade da poesia do
gênero lírico em relação aos demais – e a despeito da hipótese de que Aristóteles, como
promete no início, falasse deste e de outros gêneros mais adiante no seu tratado, o fato é
que, do texto que possuímos, nada podemos inferir de seguro acerca da lírica, nem mesmo
que fosse, como Aristóteles parece afirmar, um gênero efetivamente imitativo ou mimético
de poesia. Como quer que seja, cremos que é precisamente essa especificidade more
aristotelico dos diversos gêneros que Horácio tem em mente quando, na sua Arte poética,
nos diz (vv. 73-85):
res gestae regumque ducumque et tristia bella
quo scribi possent numero, monstrauit Homerus.
uersibus inpariter iunctis quermonia primum,
post etiam inclusa est uoti sententia compos;
quis tamen exiguos elegos emiserit auctor,
grammatici certant et adhuc sub iudice lis est.
Archilocum proprio rabies armauit iambo;
hunc socci cepere pedem grandesque coturni,
alternis aptum sermonibus et popularis
uincentem strepitus et natum rebus agendis.
Musa dedit fidibus diuos puerosque deorum
et pugilem uictorem et equum certamine primum
et iuuenum curas et libera uina referre.
As gestas de reis e generais e as tristes guerras Homero mostrou em que metro se podem
escrever. Unindo versos desiguais fez-se primeiro o lamento, depois foi incluída a máxima de um
voto satisfeito; que autor, porém, tenha criado as exíguas elegias, disputam os gramáticos e a
causa está sub judice. A raiva armou Arquíloco com o próprio iambo: o qual pé tomaram os socos
[da comédia] e os grandes coturnos [da tragédia], apto a discursos alternados e vencedor do
popular estrépito e nascido para a ação. A Musa deu à lira cantar deuses e filhos de deuses, e o
vitorioso pugilista e o primeiro cavalo na corrida, e as curas dos jovens e o vinho que lhas livra.
O contexto destes versos é inequívoco: partindo da epopéia, de cada gênero nomeiam-se a
matéria (materia, v. 38; materies, v. 131; res, v. 89, v. 148, v. 179), o metro (numero) e,
para épica e o iambo, também o inventor (que os gramáticos alexandrinos chamavam
eu(rhth/j); em termos aristotélicos, trata-se dos objetos (matéria) e meios (metro) da
imitação, o modo sendo demasiado evidente e estando, pois, implícito. Se assim é, qual a
11
especificidade do lírico em relação aos outros gêneros de poesia? Primeiro, pluralidade de
temas. Depois, porquanto a cada matéria, segundo a lógica desta passagem, convém dar
uma certa forma, pluralidade de metros. Por último, o fato de que não se lhe nomeia, como
às outras, um inventor: nasce da própria Musa. Notemos, pois, aqui, um claro e decrescente
nível de dignidade poética: em primeiro lugar, a Musa concedeu cantar os deuses (hinos);
depois os filhos dos deuses (encômios); então os vencedores do pugilato e da corrida de
cavalos (epinícios); o cuidado amoroso dos jovens (poemas eróticos); e enfim o vinho que
os livra de tais cuidados (scoliá e paróinia)
10
. De maneira bem aristotélica, tal dignidade
poética corresponde à dos próprios objetos imitados – decrescente, no caso, conforme se
vai passando dos deuses ao bebedor de vinho. Conseqüentemente, pois que os artifícios
empregues pelo poeta devem convir à matéria de que trata
11
, serão, no interior do gênero
lírico, poeticamente mais elevados os hinos, depois os encômios, e assim por diante –
conclusão que de resto nos interessa diretamente, haja vista o assunto da dissertação.
Além, portanto, da superior dignidade conferida por Horácio a hinos e encômios em
comparação com os congêneres, haveria também, verossimilmente, a superioridade da
própria persona
12
que os cultiva. Eis o que diz Aristóteles a este respeito (Poética, 4, 1448b
24-27):
10
Cf. ad hoc, precisamente em relação ao gênero lírico e suas espécies, o comentário de Rosado Fernandes
em Horácio, Arte Poética, Lisboa, Editorial Inquérito, 2001, p. 63.
11
Cf. Lausberg, H., Handbuch der Literarischen Rhetorik, Stuttgart, Franz Steiner, 1990, pp. 519-526
(Elocutionis genera).
12
Cf. Else, Gerald F., Aristotle’s Poetics: the Argument; published with the cooperation with The University
of Iowa, Leiden, E. J. Brill, 1957, pp 135-7: “The usual understanding of
kata\ ta\ o)ikei=a h)/qh is that it refers
the individual poets (“Poetry now diverged in two directions, according to the individual character of the
writters”, Butcher), who in turn are specified in the detail in the following lines (
oi( me\n ga\r semno/teroi
ktl.
) But the dichotomy spoudai=oi fau=loi is a primary, objective datum which attaches to poetry
inherently, as a representation of life. It inheres in it because poetry represents men in (and of) action and such
men are necessarily high or low types. Such a determination has no business being left to the individual
temperament. The usual interpretation has to be rejected, for four reasons:
1. Grammatical. It requires oi)kei=a to be defined from outside the clause, by
oi(... semno/teroi, and oi( ...
eu)tele/stroi
, whereas it can get its orientation more naturally from inside (h( poi/hsij).
2. Lexical. Elsewhere in Poetics
oi)kei=oj does not mean “individual”, “particular”, but “proper (to), inherent
(in), belonging to the nature of.
3. Psychological. If individual temperament were the decisive factor, Homer would be an insoluble paradox,
not to say a monster, since he wrote masterpieces in both genres. Was he both
semno/teroj and
eu)tele/usteroj?
4. Philosophical. Works of art are produced by artists, but qua artists, not qua individuals. “It is an accident to
the sculptor to be Polyclitus”. In this narrative the poets figure as carriers of the causes of poetry. A
permanent differentiation ought to have causes of the same order.
Hence I propose to take oikeia in its usual and natural sense: “Poetry split according to the characters that
inhere in it”, namely the
spoudaio=n and fau=lon”.
12
Diespa/sqe d/e/ kata/ ta/ oi\kei=a h/¨qh h\ poi/hsij: oi\ me/n ga/r semno/teroi ta¨j kala¨j
e/mimou=nto pra/ceij kai/ ta¨j tw=n toiou/twn, oi\ de/ eu/telesteroi ta¨j tw=n fau/lwn, prw=ton
yo/gouj poiou=ntej, w/¨sper e¨/teroi u¨/mnoi kai\ e/gkw/mia.
Mas a poesia dividiu-se segundo os caracteres particulares [dos poetas]: com efeito, os mais
graves imitavam as ações nobres e as como eles graves, os mais vulgares as vilanias, começando
por compor invectivas, assim como os outros [compunham] hinos e encômios
13
.
Há, portanto, aqui, juntando as passagens de Aristóteles com a de Horácio, um retrato
suficientemente claro da poesia do gênero lírico e suas espécies: um gênero que congrega
vários temas e vários metros, e supõe uma persona que, segundo as leis da fides
14
, se mostre
condigna, a cada vez, da matéria tratada. Haveria, então, algo mais, uma circunstância ou
vicissitude da própria tradição, que a Horácio lhe permitisse incluir num mesmo gênero
matérias e metros tão distintos entre si? Ora, a hipótese de, na sua origem grega, todas estas
espécies serem, se não cantadas, efetivamente executadas em tais e tais situações nos
permite, como a Platão nas Leis (700a ss), chamá-las todas de mousiké:
dih?rhme/nh ga\r dh\ to/te h)=n h(mi=n h( mousikh\ kata\ ei)/dh te [700b] e(auth=j a)/tta kai\
sxh/mata, kai/ ti h)=n ei)=doj w)?dh=j eu)xai\ pro\j qeou/j, o)/noma de\ u(/mnoi e)pekalou=nto: kai\ tou/tw?
dh\ to\ e)nanti/on h)=n w)?dh=j e(/teron ei)=doj qrh/nouj de/ tij a)\n au)tou\j ma/lista e)ka/lesen kai\
pai/wnej e(/teron, kai\ a)/llo, Dionu/sou ge/nesij oi)=mai, diqu/ramboj lego/menoj. no/mouj te au)to\
tou=to tou)/noma e)ka/loun, w)?dh\n w(/j tina e(te/ran: e)pe/legon de\ kiqarw?dikou/j
15
.
A música, entre nós, estava outrora dividida segundo algumas espécies e formas: uma
espécie de canção era a das preces aos deuses, chamadas de hinos; em oposição a essa havia
estoutra espécie, chamada quase sempre lamento; uma outra se compunha de peãs, e outra
ainda, por ter vindo, creio, de Dioniso, de ditirambos. Chamavam enfim uma outra espécie de
canção de nomos, cujo epíteto era citaródicos.
13
Cf. ad hoc García Yebra, em: Aristóteles, Op. cit., p. 255: “Para mí está claro que oi/kei=a h¨/qh son los
‘caracteres particulares (de los poetas)’, no de la poesía, como se ve por la explicación que sigue
inmediatamente [...]”.
14
Cf. Arte Poética, vv. 101-03: ut ridentibus adrident, ita flentibus adsunt/ humani uultus; si uis me flere,
dolendum est/ primum ipsi tibi [...], “assim como riem com os que riem, assim os rostos choram com os que
choram: se queres que eu chore, deves tu mesmo antes prantear [...]”.
15
Cf. Plato, Laws. Vol. I. Cambridge Massachusetts: Harvard University Press/ London: William Heinemann,
LTD, 1984, p. 218.
13
A passagem é notável. Primeiro, o que nos importa diretamente, porque já indica a
presença dos hinos; depois, porque a razão de, segundo Platão, poderem-se agrupar tantas e
tão diferentes espécies de “poesia” sob um único gênero é a circunstância de serem todas,
de um modo ou de outro, um tipo qualquer de canção, isto é, de ode (w)=de, que se prende
ao verbo #)/dw, “cantar”). Sendo assim, seria lícito dizer que Horácio chama líricos temas e
espécies aparentemente díspares de poesia justamente porque, em sua origem grega, tais
temas e espécies, pelo elemento musical comum a todos eles, eram agrupados sob uma
rubrica igualmente comum: mousiké, a arte da Musa, que em Platão a um só tempo dizia
respeito ao elemento musical e ao verbal. Em outras palavras, havia certa comunidade entre
as espécies do que Platão denominava mousiké, comunidade esta que posteriormente,
quando o elemento musical estiver deposto, permitirá aos gramáticos alexandrinos e por
meio deles também a Horácio que inclua no mesmo gênero espécies cujos temas e metros
não parecem guardar nenhuma correspondência entre si. Todavia, agrupar diversos
elementos num mesmo conjunto não implica, sem mais, conceder-lhes unidade genérica –
tanto mais quando precisamente o que unificava tais elementos, isto é, sua antiga forma
musical, já houvesse, como durante e após o período alexandrino, minguado e quase de
todo desaparecido
16
. Como, então, procederá Horácio a fim de conseguir tal unidade?
Segundo a hipótese de Guerrero:
[...] el agrupamiento propuesto por los filólogos bajo la forma de un modelo genérico ha de
transformarse en Roma en una matriz de escritura. Gracias a ello, la melikè poièsis y, en especial,
la noción de lurikòs poietès dejan de ser clases retrospectivas, constituidas simplemente según
una práctica caduca, y acceden a la condición de una clase genealógica, es decir, son objeto de
una relación hipertextual. En esta reactivación que engendra una tradición latina, el papel
protagónico corresponde sin lugar a duda a un poeta: Horacio
17
.
Ou seja: entre a situação descrita por Platão e Aristóteles e aquela em que Horácio se
encontra há o trabalho daqueles que Guerrero denomina aqui de filólogos, isto é,
16
Cf. Havelock, E. A., The Muse Learns to Write, New Haven/ London, Yale University Press, 1986. Harvey,
A. E., “The classification of Greek lyric poetry”, em: Classical Quarterly, 5, Oxford, Clarendon Press, 1955,
pp. 137-175. Rossi, L. E., “I Generi Letterari e le Loro Leggi Scritte e non Scritte nelle Letterature Classiche”,
em: Bulletin of The Institute of Classical Studies, 18, 1971, pp. 69-94.
17
Guerrero, G., Teorías de la Lírica, México D. F., Fondo de Cultura Económica, 1998, p. 42.
14
precisamente os poetas e filólogos alexandrinos. É, pois, através deles que, mui
verossimilmente, o mundo romano teve acesso aos autores gregos mais antigos, e estaria na
diferença entre os seus catálogos (como os Pínakes de Calímaco) e, no que toca
especificamente à lírica, a prática de Horácio a chave para compreendermos como este
último entendia o gênero que celebrizou. Assim, convém dizer que, durante o período
alexandrino, a composição escrita da poesia dita lírica se assentava, paradoxalmente, sobre
uma matriz oral. Eis, a propósito, apud Fócio, o testemunho do gramático alexandrino
Proclo:
Peri\ de\ melikh=j poih/sew/j fhsin w¨j polumeresta/th te kai\ diafo/rouj e)/xei toma/j. ¨//A
me\n ga\p au)thj meme/ristai qeoi=j, a¨\ de\ [a)nqropoi=j, a¨\ de\ qeoi=j kai\] a)nqropoi=j, a¨\ de\ ei)j ta\j
propiptou/saj perista/seij. Kai\ ei)j qeou\j me\n a)nafe/restai u¨/mnon, proso/dion paia=na,
diqu/rambon, no/mon, a)doni/dia, i)o/baxon, u(porxh/mata.
Ei)j de\ a)nqrw/pouj e)gkw/mia, e)pi/nikon, sko/lia, e)rwtika/, e)piqala/mia, u(menai/ouj,
si/llouj, qrh/nouj, e)pikh/deia. Ei)j qeou\j de\ kai\ a)nqpw/pouj parq/e/nia, dafneforika/,
tripodhforika/, w)sxoforika/, eu)ktika/: tau=ta ga\r ei)j qeou\j grafo/mena
kai\ a)ntrw/pwn
periei/lhfen e)pai/nouj. Ta\ de\ ei)j ta\j prospiptou/saj pirista/seij ou)k e)/sti me\n ei)/de th=j
melikh=j, u¨p )au)tw=n de\ tw=n poihtw=n e)pikexei/rhtai: tou/twn de/ e)sti pragmatika/, e)mporika/,
a)postiloka/, gnwmologika/, gewrgika/, e)pistalika
18
.
A respeito da poesia lírica
19
, ele [isto é Proclo] diz que é a mais subdividida e que possui
diferentes espécies. Algumas delas se referem aos deuses, outras [aos homens, outras tanto a
18
Photius, Bibliothèque, t. V, Paris, Belles Lettres, 1967, 319b 31ss., pp. 158-159.
19
Proclo, tal como evidentemente Platão, usa o termo melikh=j. Sobre a passagem de meliko/j a luriko/j
Rudolf Pfeiffer esclarece: “La poesia che era cantata, accompagnata dalla musica e molto spesso anche dalla
danza ed era composta di elementi di ritmo e lunghezza differenti, era chiamata
melikh\ o lurikh\ poih/sij.
Puo sembrare sorprendente, se consideriamo 1'asserzione che i grammatici si concentrarono sul testo e
permisero che Ia musica perisse, che questa nella distinzione era basata sul rapporto fra testo e musica. La
forma metrica, pero, rimase e fu l' aspetto che distingueva principalmente il testo lirico da tuui gli altri testi.
Una poesia lirica era un
me/loj nella antica letteratura greca, il poeta era un melopoio/j, un ‘creatore di canti’
o
meliko/j (sc. poihth/j) e l'intero genere melikh/ poi/hsij; e questi rimasero i termini normali. nelle tarde
disquisizioni sulla teoria poetica e sulla classificazione della poesia. Ma nei riferimenti ad edizioni di testi e
nelle liste dei 'creatori' gli autori sono chiamati
lurikoi/; Peri\ lurikw=n poihtw=n era il titolo che Didimo
diede al libro che scrisse sotto Augusto, basato su tutta la ricerca dell'età ellenistica. Si parlo sempre dei poeti
principali come degli
e)nne/a lurikoi/, e daI I secolo a.C. in poi la loro opera incomincio ad essere chiamata
lurikh/ poih/sij, cioè ‘poesia cantata al suono della lira’ (giacché Ia lira era stata una volta il piú importante
degli strumenti di accompagnamento). Gli scrittori latini occasionalmente usarono melicus, come fa Cicerone
quando prende a prestito dalla letteratura teorica greca, ma lyricus divenne il termine usuale latino nell'età
augustea e dopo. Orazio spera di essere incluso fra i lyrici vates (non i melici); Ovidio dice sempre lyricus, e
cosi pure Quintiliano, Plinio e Seneca. Anche nei teorici latini melicus fu sostituito da lyricus, e le sue
derivazioni divennero sempre piú meri termini musicali. L'uso moderno del termine ‘lirico’, da cui
cominciammo in questo paragrafo, deriva dalla letteratura latina da quando Quintiliano, Ovidio e Orazio
15
deuses como a] homens, e outras enfim a circunstâncias eventuais. Dos deuses tratam o hino, o
prosódio, o peã, o ditirambo, o nomo, os adonídios, o ióbaco e os hiporquemas.
Aos homens se remetem os encômios, o epinício, os escólios, as canções de amor, os
epitalâmios, os himeneus, os silos, os trenos e os epicédios [grafamos em itálico as espécies que
aparecem no catálogo horaciano]. A deuses e homens os partênios, os dafnefóricos, os
tripodefóricos, os oscofóricos e os êucticos: pois tais composições, escritas [grifo nosso] para os
deuses, também compreendem elogios aos homens. As que se remetem a circunstâncias
eventuais não são espécies da lírica, mas foram mal inventadas pelos poetas: são as pragmáticas,
as empóricas, as apostólicas, as gnomológicas, as geórgicas e as epistálticas.
O que nos diz, afinal, esta passagem? Em primeiro lugar, que o gênero lírico e suas
muitas espécies eram, para os alexandrinos, formas escritas de poesia. Depois, que a
circunstância de Proclo, segundo Fócio, desautorizar a inclusão do que denomina de
“poemas que se remetem a circunstâncias eventuais” no gênero lírico nos mostra que,
escreve o mesmo Guerrero ao comentar esta passagem:
En el fondo, lo único que agrupa a las diferentes subcategorías bajo una sola rúbrica es su
naturaleza performativa y su vinculación original a las ceremonias y prácticas de la Grecia arcaica.
La exclusión del cuarto grupo no parece tener otro fundamento en la Chrestomatia que la ausencia
de esta dimensión tradicional
20
.
Portanto, segundo lemos aqui, a ausência de uma origem ligada à execução oral leva o
autor alexandrino, segundo o seu comentador bizantino, a não incluir o quarto grupo no rol
das espécies líricas. Em outros termos, a matriz oral, ligada às vicissitudes de sua execução,
dos três primeiros grupos nomeados por Fócio é exatamente o princípio que preside a esta
classificação. Numa palavra: formas escritas organizadas segundo uma matriz oral.
Qual seria, enfim, a diferença desta e da classificação horaciana? Segundo o trecho de
Fócio e os comentários de Guerrero, a diferença seria, ao que parece, uma mudança de
matriz: a origem comum das espécies líricas, ligada ao caráter oral de sua execução, cederia
lugar, como princípio de organização de tais espécies, a certa prática escrita. Vale dizer,
pouco mais ou menos, que a teorização e classificação de Horácio, levadas a efeito
divennero gli autori preferiti nel Rinascimento italiano”. Em: Storia della Filologia Classica: dalle Origini
alla Fine dell’ Età Ellenistica, Napoli, Macchiaroli, 1973, pp. 290-291.
20
Guerrero, G., Op. cit., p. 40.
16
especialmente, e de maneira privilegiada, por sua própria atividade poética, acabariam por
classificar e teorizar segundo os critérios desta mesma atividade. A prática da escrita
poética, portanto, seria, para Horácio, o expediente usado para conferir unidade genérica às
espécies que, no catálogo alexandrino, uma origem mais ou menos comum colocava sob o
mesmo gênero – no caso, o lírico. Mas o que, afinal, significa unidade genérica? A partir
das análises que fizemos, parece que significa pertencer, nas palavras de Guerrero, a uma
mesma “classe genealógica”, isto é, pouco mais ou menos, à mesma família. Que tipo de
família seja esta diz-nos, bem a propósito, Conte:
[...] genres are matrixes of works, to be conceived not as recipes but as strategies; they act in
texts not ante rem or post rem but in re
21
.
Estratégias afins produzindo textos afins a partir de um corpus afim: eis a unidade genérica,
“familial”, das espécies líricas horacianas.
No tocante, pois, ao gênero lírico, o que podemos concluir, enfim, do catálogo de
Horácio? Segundo nos parece, cremos poder classificá-lo, grosso modo, de materialmente
alexandrino, hierarquicamente aristotélico e genericamente platônico. Isto significa que
elementos alexandrinos, escolhidos e organizados segundo um gradiente aristotélico,
aparecem genericamente unificados, à semelhança do que se dá no catálogo platônico. Mas
como? Em primeiro lugar, notemos desde logo que no texto de Fócio comparecem
nominalmente todas as espécies que Horácio discrimina na sua Arte poética; depois, que
nesta, por sua vez, comparecem organizadas segundo a dignidade decrescente das
respectivas matérias, expediente que vimos ser o mesmo de Aristóteles na sua Poética;
enfim, que a antiga comunidade genérica entre as espécies líricas
(dih?rhme/nh ga\r h(
mousikh\ kata\ ei)/dh)
, isto é, o elemento musical e portanto oral que nos refere Platão ao
chamá-las todas de mousiké, aparece agora transformada em comunidade de estratégias
escritas, a saber, estratégias de composição, apreciação e classificação de tais espécies.
Depois deste percurso, cabe-nos agora estudar, ainda que brevemente, a presença da
lírica laudatória nos três primeiros livros das Odes de Horácio, aplicando a tal estudo
21
Cf. Conte, G. B., Genres and Readers, Baltimore/ London, John Hopkins, s.d., p. 112.
17
precisamente os conceitos desenvolvidos nesta seção. Segundo nos parece, este, digamos,
preâmbulo nos há de ser particularmente útil, à medida que se constitua numa espécie de
teste ou prova da conveniência ou não dos conceitos retórico-poéticos recém-estudados
para a análise e compreensão da lírica laudatória de Horácio no quarto livro das Odes.
Além disso, se se puder, depois de tal preâmbulo, fazer uma idéia tanto quanto possível
clara daquilo que caracteriza esta lírica na primeira coletânea horaciana, poder-se-á apreciar
melhor, verossimilmente, qual seja sua singularidade na segunda. Senão vejamos.
4. A lírica laudatória no três primeiros livros das Odes
Antes, pois, de passarmos propriamente ao objeto desta dissertação – qual seja, a
lírica laudatória no quarto livro das Odes de Horácio –, cremos que cabe considerar,
brevemente embora, alguns exemplos desta mesma lírica na sua primeira coletânea. E aqui
se põe um primeiro problema: como e o que devemos selecionar dos inúmeros e variados
exemplos de lírica laudatória que compõem Odes 1-3? Ora, para que uma seleção de
poemas laudatórios nos possa ser profícua como termo de comparação entre esta e a
derradeira coletânea lírica de Horácio, seria conveniente escolher, da primeira, poemas que
sejam representativos da coletânea como um todo. Eis, a propósito, o que nos diz Porter a
respeito do arranjo de Odes 1-3:
If the pattern of each book consists of an initial decline and a concluding rise, that of the
collection as a whole contains a long initial decline that extends through much of Book 1, a gradual
rise that reaches an all-time peak at the end of Book 2 and the start of Book 3, a sharp fall following
the Roman Odes, and a gradual rise toward the more modest highs of 3. 25-30
22
. […] Most
important of all, the very shape of the collection, whether in terms of length of poems, of gravity of
theme, or of metrical consistency, reveals the same exploration of extremes, now too high, now too
low, and, at the end, the same striking of a proper balance. The search for aurea mediocritas thus
literally comes alive in that the collection, both in its thematic movement and in its shape and
structure, acts it out, turning logos into ergon, topos into poiema
23
.
22
Cf. Porter, D. H., Op. cit., p. 215.
23
Idem, pp. 250-251.
18
Se assim é, e se semelhanças de assunto e metro ajudam, por sua vez, a realçar semelhanças
de posição na organização ou desenvolvimento geral da coletânea, deveríamos escolher,
dentre os poemas laudatórios, aqueles que representassem cada etapa deste
desenvolvimento, ou seja, segundo o mesmo Porter: um poema inicial de “declínio”; um
poema central de “elevação”; e um poema final de “estabilização”. Bons exemplos disso
nos parecem ser, respectivamente, 1, 2, Iam satis terris, um encômio a Augusto; 2, 19,
Bacchum in romotis, um hino a Baco; e 3, 25, Quo me, Bacche, um hino a Baco que, bem a
propósito, trata de Augusto. Segundo vemos, a própria sucessão destes temas parece
confirmar a tese do estudioso norte-americano e desenvolver-se, grosso modo, segundo um
padrão de tese, antítese e síntese. Como teremos ocasião de observar, também o quarto
livro se desenvolve segundo o mesmo padrão: à recusa inicial de 4, 1 e 2 se sucedem a
ostentação de 4, 8 e 9 e o apaziguamento que é o epílogo 4, 15. Ora, a diferença entre uma e
outra coletânea estaria, então, em que, enquanto na primeira as odes aqui mencionadas não
ocupariam posição de destaque – vale dizer, enquanto a própria lírica laudatória não a
ocuparia –, na segunda, por sua vez, tais posições seriam habilmente preenchidas por odes
laudatórias, de modo a realçar, neste livro, precisamente este seu aspecto? Dificilmente.
Como sabemos, o exórdio (1, 1) é um encômio a Mecenas, o epílogo (3, 30) um hino a
Melpômene, estando o seu centro ocupado pouco mais ou menos pelas chamadas odes
romanas (3, 1-6), hinos de elevadíssima grauitas e dignidade poética. Portanto, a diferença,
se alguma há, entre a lírica laudatória na primeira e na segunda coletânea de Horácio,
estaria, não no lugar, de eminência e destaque, que ocupa em cada uma delas, senão nos
fins que se propõem e nos resultados que se alcançam. Numa palavra, segundo teremos
ocasião de observar, a principal diferença estaria no tratamento que o poeta, conforme
passa da primeira para a segunda empresa lírica, passa a conceder a Augusto e sua era.
Finalmente, uma nota sobre nossa tradução. Ela será em prosa, cada parágrafo
correspondendo a uma única estrofe. Estes parágrafos, por sua vez, estarão divididos em
blocos que representam, segundo nossa leitura, o desenvolvimento temático de cada ode.
4. 1. Ode 1, 2
19
Iam satis terris niuis atque dirae
grandinis misit pater et rubente
dextera sacras iaculatus arcis
terruit urbem,
terruit gentis, graue ne rediret 5
saeculum Pyrrhae noua monstra questae,
omne cum Proteus pecus egit altos
uisere montis,
piscium et summa genus haesit ulmo,
nota quae sedes fuerat columbis, 10
et superiecto pauidae natarunt
aequore dammae.
uidimus flauom Tiberim retortis
litore Etrusco uiolenter undis
ire deiectum monumenta regis 15
templaque Vestae,
Iliae dum se nimium querenti
iactat ultorem, uagus et sinistra
labitur ripa Ioue non probante u-
xorius amnis. 20
audiet ciuis acuisse ferrum,
quo graues Persae melius perirent,
audiet pugnas uitio parentum
rara iuuentus.
quem uocet diuum populus ruentis 25
imperi rebus? prece qua fatigent
uirgines sanctae minus audientem
carmina Vestam?
cui dabit partis scelus expiandi
Iuppiter? Tandem uenias precamur 30
nube candentis umeros amictus
augur Apollo;
siue tu mauis, Erycina ridens,
quam Iocus circumuolat et Cupido;
siue neglectum genus et nepotes 35
respicis auctor,
heu nimis longo satiate ludo,
quem iuuat clamor galeaeque leues,
20
acer et Marsi peditis cruentum
uoltus in hostem; 40
siue mutata iuuenem figura
ales in terris imitaris almae
filius Maiae patiens uocari
Caesaris ultor,
serus in caelum redeas diuque 45
laetus intersis populo Quirini,
neue te nostris nitiis iniquum
ocior aura
tollat; hic magnos potius triumphos,
hic ames dici pater atque princeps, 50
neu sinas Medos equitare inultos
te duce, Caesar.
Muita neve e funesto granizo o Pai mandou às terras e, dardejando os cumes sacros com a
destra coruscante, a Urbe e o povo
fez temer que voltasse o duro século de Pirra a lamentar prodígios inauditos, quando Proteu
levou todo o seu gado a visitar os altos montes,
a raça dos peixes se prendeu no alto do olmo, que fora conhecida habitação de pombas, e
no mar que transbordou nadaram gamos assustados.
Vimos o flavo Tibre, com ondas retorcidas violentamente pela margem etrusca deitar abaixo
os monumentos do Rei e de Vesta os templos,
quando, marital, o rio se lança vingador da mui queixosa Ília e, desenfreado, transborda a
margem esquerda sem que Jove o aprove.
Ouvirá ela que os cidadãos afiaram o ferro com que melhor morreriam duros Persas; ouvirá
sobre as guerras a juventude rara pelo vício dos pais.
Que deus chamará o povo em prol do império a ruir? Com que prece as puras virgens
importunarão Vesta, que não ouve mais os hinos?
A quem Júpiter dará a tarefa de expiar os crimes? Enfim rogamos: vem, áugure Apolo, tendo
de nuvem cobertos os candentes ombros;
ou, tu, se preferes, vem ridente Ericina, a quem Desejo e Brinquedo circunvoam. Ou tu que
nos fizeste, se vês tua raça abandonada e teus descendentes,
ó tu, saciado, ai!, de tão longa disputa, a quem agradam berros, leves elmos e o aspecto
terrível do infante Mauro ante o inimigo ensangüentado;
ou tu, ó alado filho da fértil Maia, se, mudada a tua figura, imitares na Terra um jovem,
consentindo que te chamem vingador de César:
21
que voltes tarde para o céu, e alegre estejas muito tempo entre o povo de Quirino e a ti,
iníquo aos nossos vícios, uma brisa mais rápida te não
leve; antes aqui ames grandes triunfos, aqui ames ser chamado de pai e príncipe, e aos
Medos não permitas cavalgar impunes, sendo tu o nosso guia, ó César.
A respeito desta ode, tanto Porfirião como Pseudo-Acrão são unânimes ao considerar
que o seu Leitmotiv seja o assassinato de Júlio César:
Post occisum Gaium Caesarem, quem Cassius et Brutus aliique coniurati interfecerunt, multa
portenta sunt uisa. Haec autem omnia uult uideri in ultionem occisi principis facta, et poenam
eorum, qui bella ciuilia agere non desinebant
24
.
Depois de morto Caio César, a quem Cássio e Bruto e outros conjurados assassinaram,
muitos portentos foram vistos. Ora, todos eles, parece, sucederam em vingança do príncipe
assassinado e para punição dos que insistiam nas guerras civis.
Gai Caesaris mortem significat, quo in senatu occiso plurimae tempestates niuis et grandinis
fuerunt, quo tempore et inundatione Tiberis dicitur Roma laborasse, quod propter Caesarem in
honorem Augusti Caesaris ultoris eius uult factum uideri
25
.
[A passagem] se refere à morte de Caio César, por cujo assassínio no senado houve muitas
tempestades de neve e de granizo; neste tempo diz-se que Roma também sofreu uma inundação
do Tibre, o que, parece, sucedeu por causa de César e em honra de César Augusto, seu vingador.
Não obstante, tal assunção, pela verificação propriamente histórica que suporia, não deixa
de cair no biografismo que, por razões de método e também de espaço, cremos dever evitar.
Se, contudo, o próprio texto nos puder oferecer indicações de que nele, e segundo as
convenções propriamente poéticas que bem ou mal o regulam, se lamenta a morte ou o
assassinato de alguém, a confirmação histórica de ser ou não este alguém Caio Júlio César
estaria subordinada ao estudo, bem mais conforme ao nosso propósito, da conveniência e
habilidade no uso das mesmas convenções. Em outras palavras, a elaboração poética de um
24
Op. cit., p. 5.
25
Op. cit., p. 20.
22
suposto dado histórico segue os padrões do gênero de poesia em questão, dentro dos quais
nossa análise deliberadamente se coloca.
O poema parece dividir-se em duas partes: uma, incluindo as seis primeiras estrofes;
outra, que iria da sétima à décima terceira.
A primeira delas, ainda que de forma não convencional, aparece como comparação:
Júpiter tem castigado a terra e feito o povo temer que volte um longínquo tempo de
prodígios – bem parecidos àquele que, nos diz o poema, o poeta mesmo viu juntamente
com seus concidadãos: uidimus (v. 13). Deste modo, isto que o poeta viu se coloca no rol
dos castigos que Júpiter tem mandado à Terra por alguma impiedade ou crime dos romanos
Ora, assim como tais crimes se podem caracterizar pela transgressão, por parte dos homens,
da ordem estabelecida pelos deuses, como aliás nos diz o mesmo Horácio no poema
imediatamente posterior a este, isto é, 1, 3, vv. 24-25 –
audax omnia perpeti
gens humana ruit per uetitum nefas
Pronta a suportar todas as coisas, rui a raça humana por proibida transgressão –,
assim também o castigo dos deuses muita vez se caracteriza, pelo menos em Horácio, como
modificação, por parte dos mesmos deuses, da ordem natural das coisas
26
(o conhecido
tropo do adúnaton ou impossibile): segundo lemos neste poema em particular, enquanto
peixes e animais marinhos vão para o alto dos montes, os gamos nadam (3
a
estrofe). Tendo
em mente, digamos, essa espécie de paralelismo entre a transgressão humana e o castigo
divino – pois uma e outro são alterações de uma ordem dita “natural” –, como poderíamos
apreciar o que o poeta, neste poema, diz que viu? Seria isto castigo ou transgressão?
Descrevamos, pois, o que ele viu e tentemos interpretá-lo.
A quarta estrofe do poema, com efeito, descreve uma inundação do Tibre. Este
devasta monumentos régios e templos sagrados, arrastando consigo até as ondas do mar
onde deságua. O aspecto, pois, nefando (ire deiectum mumenta regis/ templaque Vestae)
desta inundação não deixa de saltar à vista. A chave, então, para classificá-la como uma
26
Cf. por exemplo as odes ditas romanas, 3, 1-6, em que amiúde se descrevem os castigos divinos como
prodígios ou catástrofes naturais.
23
descrição do crime, ou do castigo, está na quinta estrofe. Nela, o deus e epônimo do rio, que
segundo uma das versões da lenda desposara Ília, mãe de Rômulo e Remo, Iliae se nimium
querenti iactat ultorem, isto é, “corre, vingador da mui queixosa Ília”. Aqui, para
compreender de modo mais exato como e por que o Tibre corre, atentemos primeiramente
ao significado do qualificativo querens, particípio presente do verbo queror, “lamentar-se”,
comparando-o com o uso programático que dele faz Ovídio, bem a propósito, na décima
quinta das suas Heróides:
quin etiam rami positis lugere uidentur
frondibus et nullae dulce queruntur aues.
sola uirum non ulta pie maestissima mater
concinit Ismarium Daulias ales Ityn.
ales Ityn, Sappho desertos cantat amores [...]
27
.
E os ramos parecem chorar as folhas que caíram, e ave alguma docemente queixa: só, a
alada Dáulide, mui aflita esposa que impiamente do marido se vingou, lamenta o Trácio filho: Ítis. O
rouxinol a Ítis, Safo canta amores que se foram [...].
Como vemos, o verbo queror, neste trecho de Ovídio, é usado em conexão com o lamento
do rouxinol. Segundo a lenda, Procne, mulher de Tereu, tendo sabido que o marido
estuprara sua irmã Filomela, matou, destrinçou e deu-lhe de comer o próprio filho Ítis.
Depois, rogando aos deuses que as salvassem da ira de Tereu, foram ambas as irmãs
transformadas em aves. Deste modo, o verbo é usado por Ovídio como expressão do
lamento de uma morte monstruosa e ímpia – isto é, como querimonia, palavra que na
supramencionada passagem da Arte poética designava justamente uma das espécies do
gênero elegíaco, a saber, a lamentosa. Não obstante, esta morte, que no poema de Ovídio é
levada a cabo por vingança (mater ulta), no de Horácio, por sua vez, a desencadeia (Iliae
amnis iactat se ultorem). Se assim é, o que afinal nos parece dizer esta quinta estrofe? Em
primeiro lugar, conforme vimos pela comparação com o texto de Ovídio, que Ília, como
Procne, com toda a probabilidade lamenta, em tom elegíaco, a morte de alguém muito
próximo, ligado a ela provavelmente por laços de sangue (Ilia querens). Depois, que o
Tibre, à diferença de Procne, ela mesma autora do assassinato, quer se vingar impiamente
(Ioue non probante), neste caso como a mesma Procne, de tal morte. Ora, Caio Júlio César
27
Ovidio, Lettere de Eroine, Milano, BUR, 1989, vv. 151-155.
24
não poderia ser este alguém tão próximo que a mãe de Rômulo – e portanto de Roma –
lamenta como a um filho? E César Augusto não seria, na figura do Tibre, o pai e vingador
da mesma Roma, que teve o filho assassinado? Suposições verossímeis, certamente,
embora não demonstráveis. Como quer que seja, o que se descreve aqui é tanto o crime
como o castigo: há quem morra, quem lamente e quem vingue; isto é, o crime, a comoção
que provoca, e também a vingança. Ademais, se a consideração atenta do termo querens
nos descobre que Ília lamenta uma morte provavelmente ímpia, a vingança do Tibre, como
vimos, também não seria pia aos olhos de Jove. Iam satis seria, pois, uma advertência ao
Tibre. Mas advertência exatamente de quê? Segundo nos parece dizer a sexta estrofe, da
impiedade do que a imaginada juventude futura ouvirá, castigada por isso (rara uitio
parentum), a respeito dos crimes de seus antepassados: acuisse ferrum, pugnas.
Resumindo, haveria uma batalha que, como vingança do Tibre, seria ímpia e plena de
conseqüências futuras; se se trata exatamente da guerra civil, da vingança de Caio Otávio
pela morte de Júlio César e dos efeitos de tal vingança, não se pode dizê-lo com certeza –
mas que parece e que pode sê-lo, isto não se pode negar.
Passemos agora à segunda parte do poema. O tom de lamento pelo presente parece
então se converter numa prece pelo futuro: cui dabit partis expiandi scelus Iuppiter?
Pergunta feita, eis que o poeta enumera a que deuses Júpiter poderia conferir a tarefa de
expiar os crimes dos romanos. Nomeiam-se respectivamente Apolo, Vênus, Marte e
Mercúrio, sempre em tom de pedido (uenias precamur) ou possibilidade condicionada (siue
se repete três vezes). Então chegamos às três últimas estrofes. O deus é ainda Mercúrio. Eis
senão que se imagina o deus assumindo forma humana – e precisamente a de Caio Otávio
(siue imitaris iuuenem patiens uocari Caesaris ultor). Esta possibilidade, ressalte-se, de
que o deus se encarne no Otávio vingador de César é, pois, o que nos conduz à prece final
por sua longa permanência entre os romanos. Aqui Otávio, encarnação de Mercúrio, é
apostrofado de pater e princeps e descrito como infenso aos vícios dos concidadãos (nostris
uitiis iniquum). Note-se, porém, que a mesma vingança tida por ímpia na primeira metade
do poema volta na segunda de algum modo justificada (Caesaris ultor, ne sinas Medos
inultos). Como podemos entender esta modificação, esta mudança do estatuto, digamos,
legal-religioso da vingança? Em primeiro lugar, seria preciso verificar se há, realmente,
uma tal mudança – porquanto a encarnação de Mercúrio em Caio Otávio não passa, como
25
vimos, de um desejo do autor da prece e de uma possibilidade. Se o deus se encarnasse no
general, então sua vingança estaria justificada.
Com efeito, o mesmo argumento usado na sexta estrofe para inculpar os
contemporâneos diante da futura juventude – a guerra contra os persas – é agora desejado
explicitamente como uma das tarefas a serem cumpridas pelo deus-general (ne sinas Medos
inultos). Ora, evidentemente não seria razoável supor que a morte de inimigos, e de
inimigos, no caso dos romanos, como os persas, pudesse ser considerada como ímpia.
Como, então, compreender esta alusão aos persas? Diz-nos Pseudo-Acrão comentando esta
passagem:
Parthos, a quibus Crassus occisus est, quo pereunte ortum est bellum ciuile
28
.
[Medos são os] Persas, pelos quais Crasso foi morto, o qual, morrendo, deu origem à guerra
civil.
Como sabemos, um dos motivos da guerra civil entre César e Pompeu foi a morte de
Crasso e o conseqüente fim do primeiro triunvirato. Sendo assim, a alusão aos persas seria,
na sexta como na última estrofe, uma alusão à própria guerra civil que de César e Pompeu
chegou a Otávio e Marco Antônio – assunção mais uma vez verossímil porém difícil de
comprovar. Como quer que seja, baste a constatação de que a mesma guerra de ímpia
passaria a pia, se Mercúrio se encarnasse em Otávio. Fica também um basta (iam satis) à
vingança do Tibre (Otávio?), e enfim estoutra constatação: dada a posição que ocupa na
coletânea, – imediatamente depois da de Mecenas, 1, 1 – esta ode seria, a despeito das
ambigüidades que contém, o principal testemunho de Horácio ao príncipe e seu principado.
4. 2. Ode 2, 19
Bacchum in remotis carmina rupibus
uidi docentem, credite posteri,
Nymphasque discentis et auris
capripedum Satyrorum acutas.
euhoe, recenti mens trepidat metu 5
plenoque Bacchi pectore turbidum
28
Op. cit., v. 1, p. 27.
26
laetatur, euhoe, parce Liber,
parce, graui metuende thyrso.
fas peruicacis est mihi Thyiadas
uinique fontem lactis et uberes 10
cantare riuos atque truncis
lapsa cauis iterare mella,
fas et beatae coniugis additum
stellis honorem tectaque Penthei
disiecta non leni ruina 15
Thracis et exitium Lycurgi.
tu flectis amnis, tu mare barbarum,
tu separatis uuidus in iugis
nodo coerces uiperino
Bistonidum sine fraude crinis. 20
tu, cum parentis regna per arduum
cohors Gigantum scanderet inpia,
Rhoetum retorsisti leonis
unguibus horribilique mala;
quamquam, choreis aptior et iocis 25
ludoque dictus non sat idoneus
pugnae ferebaris; sed idem
pacis eras mediusque belli.
te uidit insons Cerberus aureo
cornu decorum leniter atterens 30
caudam et recedentis trilingui
ore pedes tetigitque crura.
Vi Baco – crede-me, ó pósteros – ensinando canções em remotas penhas, e as Ninfas
aprendendo e as orelhas agudas dos Sátiros caprípedes.
Evoé! Treme-me a mente de pavor recente e, estando o peito cheio de Baco, ela goza
alvorotadamente. Evoé!, poupa-me Líber, poupa-me, ó tu temível por causa do grave tirso.
Não é sacrilégio que eu cante as pertinazes Tíades e a fonte de vinho e os rios prenhes de
leite e evoque o mel que escorre de cavos troncos.
Não é sacrilégio que eu cante da cônjuge feliz a honra alçada até às estrelas, a casa de
Penteu desmoronada por não leve ruína e a morte do trácio Licurgo.
Tu submetes os rios, tu o mar dos bárbaros, tu bêbedo em apartados cumes amarras sem
dano os cabelos das Bistônides com viperino nó.
Tu, quando a ímpia coorte dos gigantes escalava pela montanha o reino de teu pai, impeliste
Reto para trás, com tuas garras de leão e hórrida mandíbula:
conquanto, mais inclinado aos coros, ao jogo e às brincadeiras, não fosses considerado
suficientemente apto à batalha, eras, porém, o mesmo na paz e no meio da guerra.
27
Viu-te ornado de áureo corno o inofensivo Cérbero abanando suavemente a cauda, e a ti
que retornavas lambeu com a trilíngüe boca os pés e as pernas.
Logo a primeira palavra do poema, que parece estar divido em duas partes iguais, de
quatro estrofes cada uma, nos dá o seu assunto: Bacchum. Ora, se nos fosse lícito recordar
aqui a famosa querela entre engenho e arte, isto é, inspiração e técnica, – querela que versa
sobre qual dos dois termos seria o responsável, ou o maior responsável, pelo êxito poético
de um poeta – diríamos então que um hino a Baco, fizesse jus à natureza deste deus, se
colocaria presumivelmente do lado do engenho, da inspiração. Tal como Platão nos
descreve no Íon, o poeta não seria poeta por possuir certa techné, por dominar certa técnica,
senão por manía, por ser inspirado pelas Musas. Tal inspiração, ainda segundo o mesmo
filósofo, seria, pois, precisamente a causa por que um engenho débil lograria tratar de
matéria elevada – pois somente ela, a inspiração, poderia explicar o caso-limite em que o
pior dos poetas cantasse a melhor das canções:
me/giston de\ tekmh/rion t%= lo/g% Tu/nnixoj o¨ Xalkideu/j, o¨/j a/¨llo me\n ou\de\n pw/pote
e\poi/hse poi/hma o¨\tou tij a\¨n a\xiw/seien mnhsqh=nai, to\n de\ paiw/na o¨\n pa/ntej #¨/dousi,
sxedo/n ti pa/ntwn me/lwn kalliston, a\texnw=j, o¨/per au\toj le/gei, eu¨/rhma/ Moisa=n
29
.
A maior prova desta afirmação [de que o poeta o é por inspiração, não por técnica] é Tínico
de Cálcide, que jamais compôs outro poema que se estimasse digno de lembrança senão aquele
peã que todos cantam, quase que a mais bela de todas as canções, realmente, como ele próprio
diz, “uma invenção das Musas”.
O próprio Horácio, de resto, em famosa passagem da Arte poética, formula e propõe uma
solução a tal querela (vv. 408-411):
natura fieret laudabile carmen an arte,
quaesitum est; ego nec studium sine diuite uena,
nec rude quid prosit uideo ingenium; alterius sic
altera poscit opem res et coniurat amice.
29
Cf. Platon, Ion, Stuttgart, Reclam jun., 1997,534d 5-9, p. 18.
28
Tem-se perguntado se um poema seria digno de louvor por natureza ou por arte: eu nem
dedicação sem rico talento, nem um engenho inculto penso que ajudem: tanto um como outra
exigem meios e colaboram amigavelmente na questão.
Tendo em vista, pois, a asserção programática de Horácio a respeito da colaboração
de engenho e arte na consecução de um poema bem sucedido, como deveríamos entender a
suposta opção, nesta ode, pela inspiração, em detrimento da técnica? Desde logo, é preciso
que verifiquemos se e como, aqui, realmente se faz esta opção por um dos pólos da,
digamos, dicotomia. Feito isso, só então poderemos apreciar melhor como este poema se
relaciona, e que significado ganha, com a poética do autor, e interpretá-lo segundo a
hipótese de Porter, apresentada acima.
Nas duas primeiras estrofes do poema lemos que o poeta viu Baco ensinando canções
(Bacchum uidi), e de que modo foi afetado por tal visão (recenti mens trepidat metu, pleno
Bacchi pectore laetatur). E aqui poderíamos dizer que o caráter aparentemente
contraditório das paixões que o poeta nos descreve, isto é, medo e gozo, se deve
provavelmente ao caráter mesmo da inspiração, da influência que o toca. Eis, a propósito,
como Porfirião explicita esta passagem:
Metu trepidat sacris agitatum et perturbatum significat; et mira energia totus hic locus
explicatur.
Pleno Bacchi pectore turbidum laetatur, euheu. Bonus sensus; uiso enim deo quis non
perturbetur, licet gaudeat? Et bene repetitum euheu, quasi incitamento mentis ad hanc
exclamationem instigante
30
.
“Treme de medo” quer dizer agitado e perturbado pelas coisas sagradas [que viu]. E toda
esta passagem se explica por uma ação incrível [do deus sobre o poeta].
O peito cheio de Baco goza do alvoroço, evoé. Um sentimento bom. Pois quem, tendo visto
o deus, não será perturbado, ainda que se alegre? E bem se repetiu “evoé”, como por um
incitamento da mente instigando a esta exclamação.
Esta “ação incrível”, pois, do deus sobre o poeta, haja vista a natureza do primeiro –
divindade do vinho, da loucura e embriaguez –, faz com que paixões via de regra
30
Op. cit., p. 82.
29
contraditórias entre si se conjuguem na mesma estrofe e se mostrem aptas a tratar do
mesmo deus e seus atributos – algo como o tropo do doce-amargo, próprio da lírica
amorosa, transposto para um hino a Baco. Em outras palavras, a inspiração dionisíaca seria,
aqui, precisamente a responsável pelo bom êxito do poema – o que nos coloca a nós, pelo
menos à primeira vista, abertamente do lado desta mesma inspiração na querela apenas
mencionada.
Tendo, pois, sido admitido a ver Baco e seu séqüito, e condizentemente afetado por
esta visão, eis que o poeta agora inspirado nomeia os efeitos do que viu e sofreu: em suas
novas condições, isto é, com seu novo estro poético, é-lhe divinamente permitido (fas est
mihi) cantar as coisas que dizem respeito ao deus, seus feitos e virtudes. Interessante é notar
então que a 3
a
e 4
a
estrofes, que dão início à longa enumeração – que se estende até ao fim
do poema – destes feitos e virtudes divinas, se colocam, à diferença da segunda parte da
ode, sob os cuidados precisamente desta capacidade recém-adquirida, enquanto nas quatro
estrofes seguintes a persona e sua nova habilidade desaparecem completamente para dar
lugar exclusivo ao deus. Qual seria o significado disso? Por que, afinal, a capacidade, a
permissão de cunho religioso mesmo que a expressão fas est mihi designa sumiria no
decorrer desta enumeração? De que modo esta diferença entre suas metades modula o
significado do poema?
Para responder a essas questões, lembremos primeiramente uma passagem da Arte
poética de Horácio, já aludida em nota
31
. Nela, diz-se que a dignidade do poeta (ou de uma
sua persona que seja) deve a cada vez ser apropriada à do poema. Em outras palavras,
segundo as leis da fides, o caráter da persona deve convir ao que ela diz. Ora, que toda esta
preceptiva esteja do lado da arte, não do engenho, sua mesma circunstância de estar
formulada numa obra, como a Arte poética, tão marcadamente preceptiva, o deixa patente.
Portanto, a presença, em duas estrofes das seis em que se enumeram os feitos e virtudes de
Baco, de uma persona do autor, nos soa como uma espécie de lembrete ou “prestação de
contas” ou ainda, no que tange à discussão em pauta, como cumprimento de uma das regras
essenciais do discurso retórico-poético greco-romano: a adequação entre quem diz e o que
se diz. Ou seja: a um discurso tão elevado como o elogio de um deus, deve corresponder
uma voz à altura.
31
Vide acima nota 14.
30
Continuando a análise, notemos que, pelo menos no que diz respeito a nossos
propósitos, o que se diz de Baco é menos importante do que o modo e a circunstância em
que é dito. E estes modo e circunstância, como vimos, colocam a arte, voltando mais uma
vez à nossa querela, se não em pé de igualdade, pelo menos não tão abaixo do engenho.
Pois se de um lado a inspiração dionisíaca aparece como a última responsável, ao fim e ao
cabo, pela ocasião e motivo do poema, ela por sua vez responde a uma necessidade retórica,
isto é técnica, de conveniência entre a dignidade de quem diz e a do que se diz. De resto,
isto absolutamente não significa afirmar que, em última instância, a inspirada influência de
Baco sobre poeta seja apenas e tão-somente um artifício retórico exigido pelo gênero e
assunto do poema em questão – pois tal assunção equivaleria, mui presumivelmente, a
anular qualquer eficácia e relevância da querela entre engenho e arte, isto é, a ver a poesia
apenas como execução exemplarmente técnica de regras preestabelecidas. Não obstante,
cremos poder afirmar que o efeito do talento natural, isto é do engenho, neste caso concreto
de 2, 19 efeito de origem divina, se evidencia e se mede de modo igualmente exemplar no
modo como tais regras são cumpridas. Em outras palavras, conquanto não seja uma
realidade apenas retórica, isto é, conquanto o engenho do poeta, como sugere a própria
existência de uma querela, não se possa totalmente reduzir ao termo que se lhe opõe – à arte
–, é pelo modo de executar as regras desta mesma arte que se pode apreender e apreciar o
que o natural do poeta tem que o possa elevar acima dos rivais.
Assim, conquanto cumpra um dos mandamentos da ars – a saber: o da fides –, a
inspiração dionisíaca, neste hino a Baco, deve ser por fim compreendida como parte da
natura – e esta, por sua vez, haja vista o assunto e destinatário do poema, dever-se-ia
compreender como o pólo dominante, se nos fosse necessário escolher aqui entre um dos
dois. Por quê? Ora, simplesmente porque, ao nomear e logo em seguida abandonar sua
recém-adquirida capacidade de cantar o deus, o poeta parece abandonar suas limitações e
determinações (inclusive as que a ars lhe impõe) para ficar, enfim, inteiramente com o
divino, com o outro. Donde a elevada dignidade poética desta ode, cuja segunda metade
toda, sem qualquer referência que a avilte ou rebaixe o elevado grau de sua elocução, trata
só de Baco, seus feitos e virtudes.
31
4. 3. Ode 3, 25
Quo me, Bacche, rapis tui
plenum? quae nemora aut quos agor in specus
uelox mente noua? quibus
antris egregii Caesaris audiar
aeternum meditans decus 5
stellis inserere et consilio Iouis?
dicam insigne, recens, adhuc
indictum ore alio. Non secus in iugis
exsomnis stupet Euhias,
Hebrum prospiciens et niue candidam 10
Thracen ac pede barbaro
lustratam Rhodopen, ut mihi deuio
ripas et uacuum nemus
mirari libet. O Naiadum potens
Baccharumque ualentium 15
proceras manibus uertere fraxinos,
nil paruum aut humili modo,
nil mortale loquar. dulce periculum est,
o Lenaee, sequi deum
cingentem uiridi tempora pampino. 20
Para onde, ó Baco, me arrastas, que de ti transbordo? A que bosques ou a que cavernas
sou, veloz, levado com a mente renovada? Em que grutas, meditando, ouvir-me-ão
pôr nas estrelas, pôr no conselho de Jove a eterna glória do egrégio César? Direi o que é
insigne, novo, e até agora boca alguma disse.
Assim como nos píncaros a Bacante insone se estupefaz, olhando o Hebro e a Trácia
branca pela neve e o Ródope, que o pé bárbaro pisou, assim também a mim, dévio,
me apraz admirar as margens e o bosque solitário: ó senhor das Náiades, das Bacantes de
mãos fortes para dobrar os elevados freixos:
nada pequeno ou em tom humilde, nada mortal eu cantarei! É um doce perigo, ó Leneu,
seguir a um deus que as têmporas coroa com o verde pâmpano.
Este poema, conforme se vê pelo uso reiterado do futuro do indicativo, (audiar, v. 4;
dicam, v. 7; loquar, v. 18) é, ao contrário do anterior, em que dominam verbos no pretérito
perfeito, uma promessa e um programa a cumprir. Tomado de entusiasmo báquico, o poeta
em transe vislumbra o seu futuro. Mas de que futuro se trata aqui? O futuro, descrito nesta
canção, é, para surpresa do leitor, igualmente uma canção. Assim, é precisamente numa
32
relação entre o atual e o potencial que se encontra a novidade do poema: com efeito, num
hino a Baco descreve-se e promete-se um elogio a Augusto, deorum puerum referre. O que,
porém, significa, no interior do gênero lírico, este, digamos, cruzamento de espécies?
Respondem-nos os nossos comentadores:
Hac w/idhi inuocat Liberum patrem petens ab eo, ut se in secreta aliqua nemorum suorum
ducat, ubi numine eius mentem instinctus Caesaris Augusti laudes canat; per quae uidetur
allegoricos significare non sufficere spiritum suum laudibus Augusti, nisi Liberi numine (nam et ipse
musicus deus est) adiuuetur
32
.
Nesta ode [o poeta] invoca a Líber pai pedindo-lhe que o leve a algum recinto dos seus
bosques, onde, tendo a alma inspirada pelo nume do deus, cante os louvores de César Augusto;
pelo que parece significar alegoricamente que o seu espírito não basta para louvar Augusto, a não
ser que seja amparado pelo nume de Líber, pois que ele próprio é um deus músico.
Hac ode Liberum patrem inuocat, eo quod et ipse misicus deus sit, petens ab eo, ut se in
secreta nemorum suorum ducat, ubi numine eius repletus Caesaris Augusti laudes canat,
allegoricos significans non sufficere spiritum suum laudibus Augusti, nisi numinis eius iuuetur
instinctu
33
Nesta ode, [o poeta] invoca a Líber pai, pois que ele próprio é um deus músico, pedindo-lhe
que o leve aos recintos dos seus bosques, onde, possuído pelo seu nume, cante os louvores de
César Augusto, significando alegoricamente que o seu espírito não basta para louvar Augusto, a
não ser que seja ajudado pela inspiração do nume divino.
Porfirião e Pseudo-Acrão são unânimes: porque a empresa a que se quer lançar é
demasiado grande para suas capacidades, o poeta roga por auxílio divino. Em outras
palavras, a elevação da matéria a ser tratada, sua dignidade religiosa, diríamos, pedem, para
que o canto não incorra em sacrilégio, um poeta à altura. Mas por que, afinal, se roga
especialmente a Baco? Segundo os mesmos comentadores, porque ele próprio é um deus
músico, isto é, um deus cujo ofício é exatamente o mesmo do poeta – cantar. Sendo assim,
Horácio estabelece, nesta ode, uma estreita semelhança entre o deus e seus atributos, de um
32
Op. cit., pp. 127-28.
33
Op. cit., pp. 303-04.
33
lado, o poeta e os seus, de outro. Ademais, ao inverter os graus tradicionais da dignidade
dos objetos de canto, dignidade esta que, como vimos na seção anterior, passa de modo
decrescente do deus ao herói e assim por diante, Horácio, nesta ode, se por um lado não tem
pejo algum de se dirigir ao deus, se se imagina mesmo arrebatado pelo seu nume, por outro
coloca o tema de sua futura canção além de suas capacidades naturais, isto é, além, no caso,
da sua língua ou eloqüência, e condiciona a esta mesma inspiração divina o ser esta língua
ou eloqüência suficiente para cantar os louvores de Augusto. Esta inversão sutil, mas nem
por isso menos eloqüente, dos graus tradicionais de dignidade entre deus e herói parece
soar, nesta ode, como uma espécie de antecipação do imaginado e por ora futuro elogio do
imperador. Como teremos ocasião de observar no estudo das odes laudatórias do quarto
livro, e de que já se pode ter aqui o antegozo, o status de Augusto, como objeto de
celebração lírica, é pouco mais ou menos que o de um deus. Que maior elogio o princeps
esperaria?
Esta ode, pois, parece dividir-se em duas partes: uma, do primeiro à metade do oitavo
verso; outra, desta metade até ao vigésimo e último verso do poema. Notemos então desde
logo que é em termos espaciais que o poeta se exprime: quo me rapis, quibus antris audiar,
stellis inserere. Qual o sentido disto? Segundo nos parece, o de que, com auxílio divino, o
poeta pode ir além dos limites conhecidos (no caso, os poéticos) e chegar a fazer jus à
matéria que escolheu: dicam insigne, indictum. Como se o elogio lírico de Augusto, à
maneira como Horácio o concebe, não houvesse ainda sido feito – ou bem feito – por
ninguém.
Mas o que, afinal, se lê na primeira parte do poema? Com efeito, há, do primeiro ao
sexto verso, três perguntas, a que se segue no sétimo e oitavo uma espécie de provisória e
resumida resposta: o poeta, primeiramente, pergunta a que lugar (quo) será levado; depois
ajunta a circunstância de que tal lugar, ou lugares (nemora, specus), é ermo, e a de que
seguirá para lá mente noua, isto é, com novo espírito; em seguida, continua com mais um
lugar (antris) e nomeia o seu elogio de Augusto (decus Caesaris) a ser aprovado por Jove
(consilio Iouis); enfim sentencia: dicam insigne, recens, indictum ore alio. Ou seja:
somando-se o caráter longínquo dos lugares aonde será levado pelo deus, mais o novo estro
poético supostamente apto, agora, a fazer um elogio de Augusto aprovado pelo pai dos
34
deuses, tem-se que o poeta dirá o que é insigne, recente, não dito por boca alguma. Eis o
que será, com poucas modificações, precisamente o programa do quarto livro de odes.
Quanto à segunda parte do poema, ela se inicia com um longo símile que se estende
do oitavo ao décimo quarto verso: non secus stupet Euhias, ut mihi deuio libet mirari.
Assim como a bacante estupefaz-se em rincões longínquos, assim também ao poeta agrada
admirar paisagens ermas. Horácio, pois, continua, no poema, – que neste trecho trata
justamente da especificidade da inspiração que o toca – a desenvolver o seu assunto em
termos espaciais: donde poderíamos supor, com alguma verossimilhança, que o caráter
ermo dos recintos de algum modo prefigura, nesta ode, o inaudito da que está por vir.
Do décimo quarto, porém, ao décimo oitavo verso, faz-se, não uma comparação
propriamente dita, mas uma justaposição do comportamento das bacantes e do canto do
poeta, e isto exatamente numa invocação a Baco – que por sua vez se prolonga até ao
vigésimo e último verso do poema: enquanto as bacantes possuídas entortam árvores com
as próprias mãos, isto é, vão além dos limites habituais da sua condição, no caso, feminina,
o poeta diz que não cantará nada pequeno, ou humildemente, ou mortal. Quer dizer, se é
que podemos mencionar mais uma vez a querela entre natureza e arte, seria precisamente a
inspiração dionisíaca do engenho a possibilitar ao poeta que cante, segundo as regras
específicas do canto que é o seu, grandiloqüentemente o que é grande e imortal. Mas
porque tal empresa é desejável porém perigosa (dulce periculum est), podendo arruinar
quem nela não suceda bem, o poema termina com magistral ambigüidade: com efeito, não
se pode claramente discernir se Baco, cingentem uiridi tempora pampino, cinge a própria
fronte ou fronte alheia. Terá a de Horácio sido cingida? Vejamo-lo na seção seguinte,
depois de apreciar brevemente os resultados obtidos nesta.
Como pudemos observar, as três odes analisadas aqui equivalem pouco mais ou
menos ao estabelecimento de um programa. Com efeito, do ambíguo porém inequívoco
elogio do imperador como possível encarnação de Mercúrio em 1, 2, passamos à celebração
da inspiração divina, báquica, no caso, como meio de habilitar o engenho a tratar de matéria
elevada em 2, 19 e, por fim, em 3, 25, ao estabelecimento propriamente dito das balizas que
hão de regular o futuro elogio do imperador, em que adesão da persona horaciana,
contrariamente à de 1, 2, não será ambígua nem, diga-se, parcial. Segundo supomos, este
programa está realizado exemplar e plenamente nas odes laudatórias do quarto livro, em
35
que o elogio do imperador, amparado por um vate agora suficientemente apto a tal empresa,
alcança, comparado ao que vimos aqui, dignidade e relevância inauditas. Como igualmente
se verá, ao lado do elogio do imperador há de estar sempre, explícita ou implicitamente, o
elogio do poeta e da poesia que o levam a efeito, de modo que Augusto e Horácio, política
e poesia, se colocam neste livro em notável cooperação e reciprocidade, precisamente este
aspecto marcando, como nenhum outro, a diferença dele em relação aos outros três. Senão
vejamos.
5. Elogio da lírica e lírica do elogio: as odes laudatórias
do livro quarto das Odes de Horácio
Nesta seção, estudaremos em detalhe as nove odes laudatórias que compõem o quarto
livro. São elas: 4, 2; 4, 3; 4, 4; 4, 5; 4, 6; 4, 8; 4, 9; 4, 14; e 4, 15. Para tanto, o estudo feito
na seção anterior, como dissemos, terá sido de fundamental importância, por nos haver
permitido testar e desenvolver a aplicação dos conceitos retórico-poéticos que vimos
utilizando ao gênero de poesia que nos importa. Isto nos permitirá descobrir de que
elementos a lírica laudatória de Horácio, neste quarto livro de odes, particularmente se
compõe, e qual a especificidade dela em relação à sua presença nos três primeiros livros.
Antes, porém, de dar início ao trabalho, façamos, a título de introdução, outras observações
sobre o programa lírico de Horácio – observações estas que, particularmente profícuas para
o estudo de 4, 2, como se verá, nos servirão de complemento, por assim dizer, ao que, a
respeito do mesmo programa, já pudemos observar até aqui .
Que o poeta tivesse uma alta idéia de sua empresa lírica e de si como autor informa-
nos a ode que, por dez anos, lhe valeu de balanço, de conclusão de suas atividades nesse
gênero: a famosa e já citada ode 3, 30, Exegi monumentum. Não obstante, valeria enunciar,
antes de os identificarmos nas odes aqui escolhidas, quais são os materiais, por assim dizer,
que o poeta utiliza e de que maneira particular os utiliza. Eis, a propósito, o que nos diz
McDermott:
Thus, there is room in his [Horace’s] Odes for Pindar’s rushing genius, for Callimachus’
learned refinement, for Alcaeus’ masculinity, Anacreon’s elegance, and Sappho’s charm. No theme
36
or motif, whether classical or Hellenistic, is interdict, so long as it may be reworked and adapted to
his own poetic modes and purposes
34
.
A lírica grega, portanto, é, segundo a autora, a matéria-prima de Horácio (como teremos
ocasião de observar adiante, não a única). Se assim é, tal fato nos coloca, por sua vez,
diante de novo problema: que relação o poeta mantém com autores assim diversos e como
os remodela segundo os seus propósitos? Para respondê-lo, é preciso antes saber o modo
pelo qual o poeta nos mostra, a nós leitores, que faz uso deste modelo ou daquele. Segundo
a mesma autora:
The respective techniques by which Horace in his Odes adduces classical and Alexandrian
models differ significantly. Since Horace was undertaking to Romanize for the first time a Greek
form, it is natural that he should explicitly acknowledge his formal debt to his Greek predecessors in
the same genre. [...] Furthermore, within the “learned coterie” of neo-Alexandrian poets, the
accepted way to espouse Alexandrian poetics was not so much to name names as, first, to create a
finished product which would pass rigid scrutiny for fineness and craftsmanship; second, to drawn
on recognizably Alexandrian forms and/or themes; and, third, to adopt in one’s own programmatic
statements the terminology and motifs which had become, through usage, necessarily associated
with and redolent of Callimachean aesthetics
35
.
Ou seja: segundo lemos aqui, o Horácio das Odes romaniza tanto seus modelos gregos do
período arcaico (com efeito Safo, Alceu e Anacreonte são do século VII a.C., e teria sido
melhor que McDermott o tivesse explicitado) e do clássico (Píndaro) quanto do período
alexandrino (Calímaco). Usa, contudo, procedimentos diversos para o fazer, pois enquanto
os primeiros aparecem nominalmente nos poemas, fazendo referência explícita, como se
verá, à espécie lírica que celebrizaram (por exemplo: Safo à lírica amorosa e Píndaro à
laudatória), o último, no caso Calímaco, comparece de modo mais sutil, fornecendo a
Horácio o arsenal de termos retórico-poéticos e os elevados padrões de qualidade e
refinamento que constituem a tradicionalmente alardeada perfeição artística da ode
horaciana. Acrescentando-se a isso a circunstância de o resultado dessa operação vir à luz
numa língua e num ambiente tão diferentes dos originais gregos, diríamos que a lírica
34
Cf. McDermott, Emily A., “Greek and Roman Elements in Horace’s Lyric Program”, em: Aufstieg und
Niedergang der Römischen Welt, New York/ Berlin,Walter de Gruyter, 1981, pp. 1640-1672, p. 1671.
35
Idem, pp. 1644-1645.
37
horaciana, comparada aos elementos e expedientes de que se compõe, parece apresentar
notória novidade. Este inaudito programa lírico, portanto, – que, repita-se, analisamos
conceptualmente ao estudar acima um trecho da Arte poética –, teremos ocasião de o ver
aplicado logo na primeira ode laudatória do livro quarto, a ode 4, 2. Vale dizer: além de
termos aqui, nesta ode, asserções programáticas acerca do gênero de lírica que estudamos,
tais asserções se encontram, bem a propósito, exatamente no livro em que o estudamos, o
que nos permitirá, se disso formos capazes, chegar a bons resultados no estudo do tema.
Caberia, pois, agora, verificar como, em cada um dos poemas que escolhemos, tal
programa lírico se realiza. Poderemos notar exemplarmente então, e logo de início, de que
maneira Horácio faz uso dos modelos que Mcdermott chamou de clássicos segundo
estratégias poéticas de estirpe alexandrina – e apreciar o resultado, sui generis, desta fusão.
Quanto à nossa tradução, ela seguirá o mesmo método da seção anterior.
5. 1. Ode 4, 2
Pindarum quisquis studet aemulari,
Iulle, ceratis ope Daedalea
nititur pinnis, uitreo daturus
nomina ponto.
monte decurrens uelut amnis, imbres 5
quem super notas aluere ripas,
feruet inmensusque ruit profundo
Pindarus ore,
laurea donandus Apollinari,
seu per audacis noua dithyrambos 10
uerba deuoluit numerisque fertur
lege solutis,
seu deos regesque canit, deorum
sanguinem, per quos cecidere iusta
morte Centauri, cecidit tremendae 15
flamma Chimaerae,
siue quos Elea domum reducit
palma caelestis pugilemue equomue
dicit et centum potiore signis
munere donat, 20
flebili sponsae iuuenemue raptum
plorat et uiris animumque moresque
aureos educit in astra nigroque
inuidet Orco.
38
multa Dircaeum leuat aura cycnum, 25
tendit, Antoni, quotiens in altos
nubium tractus: ego apis Matinae
more modoque,
grata carpentis thyma per laborem
plurimum circa nemus uuidique 30
Tiburis ripas operosa paruus
carmina fingo.
concines maiore poeta plectro
Caesarem, quandoque trahet ferocis
per sacrum cliuum merita decorus 35
fronde Sygambros,
quo nihil maius meliusue terris
fata donauere bonique diui
nec dabunt, quamuis redeant in aurum
tempora priscum, 40
concines laetosque dies et urbis
publicum ludum super impetrato
fortis Augusti reditu forumque
litibus orbum.
tum meae, si quid loquar audiendum, 45
uocis accedet bona pars, et: 'o sol
pulcher, o laudande' canam recepto
Caesare felix.
teque, dum procedis, io Triumphe!
non semel dicemus, io Triumphe! 50
ciuitas omnis, dabimusque diuis
tura benignis.
te decem tauri totidemque uaccae,
me tener soluet uitulus, relicta
matre qui largis iuuenescit herbis 55
in mea uota,
fronte curuatos imitatus ignis
tertius lunae referentis ortum,
qua notam duxit, niueus uideri,
cetera fuluos. 60
Quem quer que se afane em emular Píndaro, ó Julo, se alça em asas de cera – obra de
Dédalo! – para dar nome a um vítreo mar.
Qual rio que do monte corre, a que as chuvas nutriram para além das conhecidas margens,
ferve e, imenso, se precipita Píndaro, o de voz profunda:
39
digno de receber o laurel de Apolo, quer em audazes ditirambos arroje novas palavras e seja
levado em ritmos libertos de leis;
quer cante deuses e reis – dos deuses sangue – por que tombaram os Centauros por morte
justa e caiu a flama da hórrida Quimera;
quer cante o pugilista e o cavalo que a palma Eléia conduz, divinos, de volta a casa dando
um presente mais valioso que cem estátuas;
quer chore o jovem arrancado à esposa flébil e as forças, o ânimo e os costumes áureos
leve aos astros e cause inveja ao negro Orco.
Um grande sopro eleva o cisne de Tebas, ó Antônio, sempre que chega às altas regiões
das nuvens: eu, pequeno, segundo o modo e a maneira da abelha de Matino
que colhe a muito custo pelos bosques e margens do orvalhado Tíbur o tomilho grato,
canções eu forjo trabalhadas.
Cantarás César, ó poeta de maior plectro, quando, ornado com a merecida coroa, ele
trouxer os ferozes Sigambros pelo monte sacro,
ele, de quem nada maior ou melhor os fados e os bons deuses concederam à terra nem
concederão, conquanto os tempos tornem ao prístino ouro.
Cantarás e os ledos dias e da Urbe o jogo público pelo ansiado retorno do forte Augusto e o
fórum livre de litígios.
Então da minha voz, se algo falar digno de ouvir, grande parte acederá e “ave, ó belo sol”
cantarei feliz pela volta de César.
E a ti, enquanto desfilas, “ió Triunfo”, não uma só vez toda a cidade diremos, “ió Triunfo”, e
incenso queimaremos aos benignos deuses.
A ti dez touros e dez vacas remirão os votos, a mim tenro bezerro que, deixada a mãe,
crescerá em largo pasto para remir os meus:
ele que na fronte imita os cornos ígneos da lua em seu terceiro ciclo: lua, que, marcada, ele
trouxe, branco ali de ver, fulvo, no restante.
Esta ode, claramente programática, parece dividir-se em quatro partes: a primeira, em
que desde logo se enuncia o tema e se interpela o destinatário, na qual acharemos um
retrato da lírica e, nela, do elogio (vv. 1-24); a segunda, contendo o posicionamento do
autor, ou antes de uma sua persona, a respeito do retrato antecedente (vv. 25-32); a terceira,
nova interpelação do destinatário do poema (vv. 33-44); e por fim a última, comparação
entre este destinatário e a persona do poeta (vv. 45-60).
40
A matéria do poema nos é dada desde a primeira palavra: Pindarum. Diz Horácio a
Julo, o destinatário, que tentar igualar-se ao grego é comportar-se como o também grego
Ícaro – é ir além do que se pode e deve e pagá-lo com a vida. Sabemos que Ícaro era filho
de Dédalo, o lendário artesão que, presos ambos no Labirinto, engenhou um modo insólito
de lá saírem: pelo ar. Sabemos também que as asas que fabricou estimularam, quem sabe, a
ousadia do filho: que subiu demais, perto do sol, teve-as derretidas, caiu e morreu e no mar,
que por isso ganhou o seu nome. Essa lenda nos fala, portanto, dos limites da arte no trato
com a natureza. Se assim é, e se Píndaro é precisamente o que se deseja aqui imitar, ele se
coloca do lado da natureza, isto é, segundo a já aludida doutrina aristotélica da mímese,
daquilo que se imita; todo aquele que, imitando-o, o queira igualar, é colocado, pois, do
lado da arte, daquilo que imita. Podemos, então, supor que também nesta ode se faz
referência à querela entre natureza e arte – e, segundo Horácio parece dizer a Julo,
nenhuma arte parece ser o bastante para, sem engenho natural que o permita, imitar um
Píndaro que se comporta como rio revolto.
Precisamente, pois, nesta imagem do fluxo d’água – assim como, por exemplo, na
epístola 40 de Sêneca e alhures – aparece um bem conhecido símile da facúndia, da
abundância oratória:
Habeat uires magnas, moderatas tamen; perennis sit unda, non torrens. Vix oratori
permiserim talem dicendi uelocitatem inreuocabilem ac sine lege uadentem [...]
36
.
Tenha [quem discursa] um grande vigor, porém contido; seja o fluxo constante, não
torrencial. Dificilmente eu permitiria ao orador tamanha velocidade do discurso, irrefreável e
progredindo sem lei [...].
No caso da eloqüência de Píndaro, porém, contrariamente à que Sêneca parece apregoar
como a conveniente no gênero do discurso filosófico, o andamento assemelha-se ao de um
rio que desce da montanha, numerisque fertur lege solutis. Note-se, então, que a mesma
torrente nos descobre, agora, seus afluentes, isto é, de que águas é constituída: a eloqüência
de Píndaro, diz-nos Horácio, divide-se em ditirambos (per audacis noua dithyrambos /
uerba deuoluit numerisque fertur/ lege solutis,), hinos e encômios (deos regesque canit),
36
Lucio Anneo Seneca, Lettere a Lucilio, 2 v., Milano, Biblioteca Universale Rizzoli, 1985, v. 1, p. 260.
41
epinícios (quos Elea domum reducit palma), e trenos (iuuenemue raptum plorat).
Comparemos então este catálogo com o que o mesmo Horácio nos fornece na Arte poética,
já estudado acima:
Musa dedit fidibus diuos puerosque deorum
et pugilem uictorem et equum certamine primum
et iuuenum curas et libera uina referre.
A Musa deu à lira cantar deuses e filhos de deuses, e o vitorioso pugilista e o primeiro cavalo
na corrida, e as curas dos jovens e o vinho que lhas livra.
Ora, o que temos aqui? Sobretudo que as espécies líricas ditas pindáricas não coincidem de
todo com as da Arte poética. Não poderíamos, contudo, incluir os ditirambos em libera
uina, os trenos
37
em iuuenum curas, já que os dois primeiros tratam do vinho e do seu deus,
os dois últimos das desventuras de amor? Parece plausível, sobretudo porque o vocabulário
de que Horácio se serve na Arte poética está longe de ser excludente – é antes próprio do
sermo uma prevista oscilação vocabular, que reproduz (ou remodela) a da fala
38
. Não
obstante, nosso poema nos dá indicação de que as coisas não são tão simples assim, pois,
considerada a sentença moresque/ aureos educit in astra nigroque/ inuidet Orco (vv. 22-
24), vê-se logo que o treno, tal como praticado por Píndaro, se põe claramente sob o signo
da celebração, isto é, do elogio. Explicita-o Porfirião, ao comentar estes versos:
Aut si, inquit, flebile carmen scribit de adulescente aliquo, cuius morte sponsa decepta sit;
quem inferis subducit atque inmortalem facit laudando animum moresque eius atque uirtutem
39
.
37
Cf., a respeito dos trenos e sua possível inclusão em iuuenum curas, Harvey, A. E., “The Classification of
Greek Lyric Poetry”, em: Classical Quarterly, 5, Oxford, Clarendon Press, 1955, p. 168: “Exiguous as these
fragments are, they present a notably consistent appearance: their content is entirely gnomic and consolatory.
Here is no wild tearing of the hair or floodgate of unrestraint emotion; the mood is one of resignation and of
philosophic admonition, resembling the calm detachment of the figures on fourth-century tombstones”. Com
efeito, os termos em que Harvey se refere aos trenos parecem como um exato resumo da ode 2, 33, Albi, ne
doleas, em que Horácio precisamente tenta consolar, aconselhando-o que refreie o seu sofrimento, as curas
do, no caso, já não tão jovem Álbio Tibulo. Que o treno seja uma espécie lírica, vê-se pela passagem de Fócio
citada acima, p. 11. Para a designação do treno como elegia, cf. Photius, Op. cit., 319b 8-9, p. 158:
to\ ga\r
qrh=noj e/¨legon e\ka/loun oi/ palaioi\
[...], “Os antigos chamavam o treno de elegia [...]”.
38
Note-se, por exemplo, a variação vocabular de Platão nos Diálogos, comparada a certa rigidez de
Aristóteles a este mesmo respeito.
39
Op. cit., p. 140.
42
Ou [é digno do laurel de Apolo] se, diz [Horácio de Píndaro], compõe um poema flébil sobre
algum jovem por cuja morte a esposa foi lograda – o qual subtrai aos infernos e torna imortal por
louvar-lhe a coragem e os costumes e a virtude.
E também Pseudo-Acrão, sobre a mesma passagem:
Etiam in epitaphiis Pindarum signicat magnum, cum aut iuuenem fortem aut puellam
moratam fuisse describit et alicuius adulescentis morte facit sponsam deceptam, quem inferis
subducit et dat inmortalitati laudando
40
.
Também nos epitáfios [Horácio] mostra que Píndaro foi grande, quando este escreve ter
havido ou um jovem corajoso ou a moça que o esperava [voltar da guerra], e faz a esposa lograda
pela morte do seu jovem [esposo] – o qual subtrai aos infernos e concede imortalidade mediante o
louvor.
Portanto, a principal diferença entre as espécies líricas que achamos na Arte poética e
as que se acham nesta ode é que, enquanto neste caso são todas elas formas de elogio,
naquele não o são – pelo menos não necessariamente. Assim, Horácio desde logo parece
colocar a lírica laudatória em situação de precedência, neste quarto livro, sobre as outras
espécies líricas
41
. Quanto a essa precedência, que, como dissemos, não se restringe ao dito
livro, cite-se o conhecido julgamento de Quintiliano, já referido em nota:
Nouem uero lyricorum longe Pindarus princeps spiritus magnificentia, sententiis, figuris,
beatissima rerum uerborumque copia et uelut quodam eloquentiae flumine: propter quae Horatius
eum merito credidit nemini imitabilem
42
.
Dos nove líricos Píndaro é de longe o primeiro pela magnificência da inspiração, pelas
sentenças, figuras, por preciosíssima cópia de matérias e de palavras e como que por uma certa
torrente da eloqüência: pelo que Horácio merecidamente o teve por inimitável por quem quer que
fosse.
40
Op. cit., pp. 330-331.
41
O argumento, repitamo-lo, é de estirpe aristotélica: se à dignidade da matéria tratada deve corresponder,
segundo as leis do decorum, uma dignidade de elocução, então necessariamente uma ode sobre personagens
ilustres será poeticamente superior à que trate, por exemplo, do amor de dois jovens. Cf. Lausberg, H.,
Handbuch der Literarischen Rhetorik, Stuttgart, Franz Steiner, 1990, pp. 519-526 (Elocutionis genera).
42
Op. cit., X, 1, 61-62, p. 245.
43
Ou seja: apoiando-se, segundo vemos pela referência explícita, exatamente na mesma ode
analisada aqui, Quintiliano estabelece a primazia de Píndaro sobre os outros líricos do
cânon. Isto significa que as espécies em que Píndaro foi excelente são alçadas, junto com
ele, à mesma altura aparentemente inalcançável, vale dizer, que as formas pindáricas do
elogio são tão superiores às demais formas líricas quanto ele aos demais congêneres; por
ordem decrescente de elevação, que ditirambos e peãs (hinos), encômios, epinícios e trenos
são o que há de mais sublime no gênero em questão. Por outro lado, convém notar que a
própria noção de cânon e a confecção de catálogos de autores são construtos de cepa
alexandrina, para os quais contribuiu enormemente, mais talvez que a de nenhum outro, a
atividade do poeta e filólogo Calímaco
43
. Sendo assim, já a elaboração horaciana de um
catálogo pindárico seria, ela própria, a aplicação de princípios alexandrinos – antes
calimaquianos – a matérias e espécies líricas tradicionais.
Chegamos agora ao centro do poema, em que o autor explicita o posicionamento da
sua persona em relação à recém-estabelecida hierarquia. Enquanto Píndaro, o poeta que,
posto do lado da natureza e em certa oposição à arte, é caracterizado como um cisne,
Horácio, por sua vez, se apresenta como abelha. Ora, a primeira coisa que logo salta à vista
parece ser a diferença entre as dimensões desses animais; a segunda, a diferença de
comportamento: se o cisne é levado às alturas pelos ventos, a abelha, per laborem
plurimum, compõe pequenas e trabalhadas canções. Como é patente, mais uma vez se trata
aqui da relação entre natureza e arte. Píndaro é todo natureza: são os ventos, e não esforço
definido e decisão da vontade, que o levam às alturas. Horácio parece ser só arte: com
muito trabalho burila suas miniaturas. A ser assim, Horácio parece recusar de todo o
exercício do elogio, pelo menos tal qual Píndaro o praticou. Haveria, porém, outro meio de
praticá-lo? É precisamente este, segundo cremos, o esforço e, antecipando, o sucesso de
Horácio neste poema e neste livro. De resto, a imagem da abelha, metáfora de si e de sua
empresa, encerra justamente a resposta de Horácio à pergunta por tal possibilidade.
Com efeito, já o próprio Píndaro, na décima Pítica (vv. 53-54), havia comparado a
canção mais fina com a abelha em vôo:
43
Cf., para o papel de Calímaco na construção do cânon que vai ser o horaciano, Pfeiffer, R., Op. cit., pp.
207-247.
44
e)gkwmi/wn g?a¨r a¨/wtoj u¨/mnwn
e)p” a)/llot` a)/llon w¨/te me/lissa qu/nei lo/gon
44
.
Os mais belos hinos de vitória se lançam como a abelha de um argumento a outro.
E também Calímaco, no fim do Hino a Apolo, nos conta a delicada atividade de abelhas
sacerdotisas:
Dhoi= d” ou)k a)po\ panto\j u/¨dwr fore/oussi me/lissai,
a¨ll” h(/+tij kaqarh/ te kai\ a¨xra/antoj a¨ne/rpei
pi/dakoj e)c i(erh=j o¨li/gh liba/j, a)/kron a)/wton
45
.
A Déo as abelhas não trazem água de qualquer lugar, mas aquela que jorra pura e intacta
de sagrada fonte: um raro fio, finura extrema.
Seguindo, pois, os passos de ambos os predecessores, Horácio parece realizar nada menos
que um elogio pindárico à maneira de Calímaco. Isso, porém, não é tudo. Como já nos
sugere a presença das uuidi Tiburis ripas, isto é, de uma localidade romana, é antes de
Roma, não da Grécia, o alvo deste insólito elogio. Seria ele o próprio Julo? Dificilmente.
Conforme nos diz a canção que Horácio descreve, aí sim, como própria de Julo, é César
Augusto a triunfar vitorioso, vencidos os inimigos e instituída a paz, que Horácio e toda a
cidade cantam.
Finalmente, falta comparar a oferenda final de Julo com a de Horácio. Enquanto
aquela é de dez touros e dez vacas, esta é de um único bezerro. Interessante notar, contudo,
que, enquanto àquela se dedica uma só linha, a esta se dedicam sete, ou seja, quase as duas
últimas estrofes do poema. Só este dado, digamos, quantitativo, já nos bastaria para inverter
– ou antes para ponderar – o aparente pendor da persona horaciana pela oferenda de Julo,
em detrimento da sua própria. Exatamente o mesmo ocorre com o anterior elogio – tanto
pindárico quanto calimaquiano – da figura da abelha como exemplo do que há de mais fino
em matéria de canto: a despeito de sua pequenez, ela ocupa cinco versos e meio do poema,
contra apenas dois e meio do elogio do cisne. De posse, pois, de uma arte tão refinada como
44
Cf., Pindar, Oden, Stuttgart, Reclam Jun., 2001, p. 166.
45
Cf. Callimaque, éd. et trad. Émile Cahen, Paris, Belles Lettres, 1948, vv. 110 ss., p. 231.
45
esta – que não por sê-lo deixa de fazer jus àquilo que imita –, Horácio, chegado à
maturidade e ao cume de sua empresa lírica, pretende elogiar e, elogiando, elogiar-se.
5. 2. Ode 4, 3
Quem tu, Melpomene, semel
nascentem placido lumine uideris,
illum non labor Isthmius
clarabit pugilem, non equos inpiger
curru ducet Achaico 5
uictorem, neque res bellica Deliis
ornatum foliis ducem,
quod regum tumidas contuderit minas,
ostendet Capitolio:
sed quae Tibur aquae fertile praefluunt 10
et spissae nemorum comae
fingent Aeolio carmine nobilem.
Romae, principis urbium,
dignatur suboles inter amabilis
uatum ponere me choros 15
et iam dente minus mordeor inuido.
o testudinis aureae
dulcem quae strepitum, Pieri, temperas,
o mutis quoque piscibus
donatura cycni, si libeat, sonum, 20
totum muneris hoc tui est,
quod monstror digito praetereuntium
Romanae fidicen lyrae;
quod spiro et placeo, si placeo, tuum est.
Aquele que tu, Melpômene, um dia tenhas com teu olho plácido visto ao nascer
46
, a ele nem
o esforço no Istmo celebrizará como pugilista, nem veloz cavalo
46
Este poema é particularmente calimaquiano: tanto o tropo do olhar favorável recebido pelo poeta ao nascer
quanto o da luta contra a inveja são de Calímaco, que os utiliza juntos duas vezes:
Epigrama 21
(/
ostij e)mo\n para\ sh=ma fe/reij po/da, Kallima/xou me
i)/sqi Kurhnai/ou pai=da/ te kai\ geneth/n.
ei)dei/hj d' a)/mfw ken: o(\ me/n kote patri/doj o(/plwn
h)=rcen, o(\ d' h)/eisen kre/ssona baskani/hj: 5
ou) ne/mesij: Mou=sai ga\r o(/souj i)/don o)/mmati pai=daj
mh\ locw=i, poliou\j ou)k a)pe/qento fi/louj.
46
levará vitorioso num carro aqueu, nem gesta bélica ao Capitólio vai conduzi-lo, general de
folhas délias adornado por repelir soberbas ameaças de reis,
mas as águas que no fértil Tíbur fluem e as espessas copas dos bosques ilustre vão torná-lo
no eólio carme.
De Roma, primeira das cidades, a prole digna-se a me colocar entre os amáveis coros dos
vates: e já sou mordido menos pelo dente da inveja.
Ó tu, Piéride, que temperas da doirada lira o doce som, ó tu, que hás de dar até aos mudos
peixes, se te aprouver, voz de cisne,
esta é dádiva toda tua: ser apontado pelo dedo dos transeuntes como o tocador da Romana
lira; se estou inspirado e agrado, se é que agrado, isto vem de ti.
Esta ode é um hino a Melpômene, musa grega da poesia lírica, e desde logo nos
lembra outro hino do mesmo Horácio à mesma musa: coincidentemente ou não, a ode 3, 30,
mais de uma vez referida aqui. Com efeito, duas expressões da ode 3, 30, afora a
coincidência de destinatário, nos remetem nominalmente à ode 4, 3: dum Capitolium/
sandet cum tacita uirgine pontifex (vv. 8-9); e ex humili potens/ princeps Aeolium carmen
Saibas tu, que teus pés trazem até meu túmulo,
que sou pai, que sou filho de Calímaco
de Cirene. Eis: de hoplitas pátrios um foi chefe,
o outro cantou mais forte do que Inveja.
E é justo: a quem, menino, as Musas viram não 5
de oblíquo olhar não deixam quando em cãs.
Aos Telquines, vv. 37-38:
[ou) ne/mesij:] Mou=sai g]a\r o(/souj i)/don o)/mmati pai=daj
[mh\ loc%=, poliou\j] ou)x a)pe/qento fi/louj
E é justo: a quem, menino, as Musas viram não
de oblíquo olhar não deixam quando em cãs.
E vv. 17-18:
e/)llete Baskani/hj o)loo\n ge/noj: au)=qi de\ te/xn$ (Hu.)
[kri/nete,] mh\ sxoi/n% Persi/di th\n sofi/hn.
(Hous.)
Parti, nefanda raça da Inveja: a mestria
julgai da arte, não do alqueire Persa.
Tradução inédita de João Angelo Oliva Neto. As conjecturas são de Hunt e Houseman, apud C
ALLIMACHUS,
Aetia, Iambi, Hecale and Other Fragments. Edited and translated by C. A. Trypanis and T. Gelzer. Musaeus,
Hero and Leander. Edited and translated by Cedric H. Whitman. Cambridge, Harvard University Press, 1973,
p. 18.
47
ad Italos/ deduxisse modos (vv. 12-14). Em outras palavras, a circunstância de, em ambos
os poemas, a menção ao Capitólio preceder a menção ao eólio carme, de tais menções
serem feitas exata e respectivamente nos versos nono e duodécimo de ambos, e a
coincidência de destinatário, tudo isso bem nos permite, verossimilmente, levar a efeito
uma comparação entre estas odes.
Sendo assim, em que situação tais menções ocorrem em 4, 3? Ora, nesta ode, que
parece dividida em duas metades de doze versos, ocorrem na primeira delas, em que o
poeta, depois de apostrofar a Musa, enumera ofícios célebres até chegar àquele que, por
intermédio da mesma Musa, o celebrizará a si próprio. Os ofícios são: o pugilato, a corrida
de carros, o comando militar e finalmente a poesia lírica; note-se, pois, a propósito, que são
parte dos ofícios já citados por Horácio na ode precedente, 4, 2, ao enumerar as espécies
líricas em que Píndaro foi excelente – o que nos põe a discutir, também em 4, 3, a
excelência do mesmo elogio e de suas espécies no interior do gênero lírico.
Não por acaso, portanto, a enumeração de Horácio se faz numa só e única longa
sentença de doze versos que termina precisamente com a palavra nobilem (adjetivo verbal
de nosco, “conhecer”): “ilustre”, “conhecido”, “nobre”. Como que num crescendo, em que
passa gradativamente do mais baixo ao mais elevado – ou, segundo parece implícito nesta
ode, do que depende mais da força do corpo ao que mais depende da do espírito –, Horácio
logra finalmente, na última palavra da seção, o que Melpômene, já nos dois primeiros
versos, concedera com seu olho plácido: a reputação e a nobreza, não do poeta em geral,
mas deste em particular. Esta ode, pois, mais que um hino e por conseguinte um elogio a
Melpômene, parece ser um elogio do próprio poeta, de si para si. Algo como se Horácio,
reexaminando o catálogo pindárico da ode 4,2, quisesse inserir, abaixo dos deuses e acima
dos generais, nova matéria de canto, tão digna que inferior aos deuses apenas: o poeta. Eis
porque, ao que tudo indica, Horácio nos quis remeter, nesta ode, justamente a 3, 30, em
cujo verso final o poeta orgulhoso e seguro do monumento que construiu quase ordena à
Musa que o coroe: lauro cinge uolens, Melpomene, comam. Aqui, todavia, a situação é
outra. A persona é que parece submeter-se de bom grado à Musa e atribuir-lhe todo o dom e
méritos que tenha. Ainda assim, o elogio do poeta, a despeito do que possa parecer à
primeira vista, não sairia aqui rebaixado em dignidade, se comparado com o de 3, 30.
Contrariamente às aparências, esta submissão à Musa, segundo cremos, serviria antes para
48
elevar a nobreza do poeta que se lhe submeteu. Mas como tal seria possível? Senão
vejamos.
A ode 3, 30, como acabamos de dizer, é um poema de orgulho, de confiança naquilo
que se produziu. O tom soberbo e altivo, aliás, não passou despercebido ao Rilke dos
Sonetos a Orfeu, que o repreendeu nos seguintes termos:
Gesang, wie du ihn lehrst, ist nicht Begehr,
nicht Werbung um ein endlich noch Erreichtes;
Gesang ist Dasein
47
.
O canto, [ó Orfeu], tal qual o ensinas, não é desejo, nem propaganda do que finalmente se
erigiu; o canto é ser.
Não obstante, não nos parece que se possa atribuir um orgulho desmedido, uma pretensão
incondicional ao exegi monumentum horaciano – pois o que se lê nesta ode é, ipsis litteris
(vv. 7-9):
[...] usque ego postera
crescam laude recens, dum Capitolium
scandet cum tacita uirgine pontifex [...].
Sempre novo crescerei com póstero louvor enquanto o Capitólio com calada virgem o
pontífice subir.
Ou seja: apesar da insólita asserção inicial acerca da perenidade de sua obra, Horácio em
seguida a condiciona, esta perenidade, à permanência de um rito e de um lugar, à
permanência, portanto, das instituições e em última instância da própria Roma. E o mesmo
vale para a pretensão de ser princeps Aeolium carmen.
Ora, qual é o estado de coisas em 4, 3? Passando agora à segunda metade do poema,
lê-se na quarta estrofe que a prole de Roma é a responsável pela fama do poeta (Romae
suboles dignatur ponere me inter uatum choros). Até aqui, pois, a situação é mais ou
menos a mesma nas duas odes. Mas na quinta estrofe, e até ao fim do poema, Melpômene
aparece de novo e então se lhe a atribui a ela, se lhe condiciona a ela a fama que, por sua
47
Cf. Rilke, R. M., Die Sonette an Orpheus, Leipzig, Insel Verlag, s.d., III, p. 7.
49
vez, a prole de Roma ao poeta lhe concede (hoc tui est,/ quod monstror digito
praetereuntium, vv. 21-22). Isto é: enquanto a fama do poeta, em 3, 30, estava
condicionada à permanência concreta de um rito e de um lugar, em 4, 3 ela é dádiva da
Musa, ela própria presidindo à aprovação concreta que ele venha a receber. Qual dos dois
elogios do poeta – um, dependente de circunstâncias materiais, outro, da intercessão direta
do divino – é o mais elevado, isto é, concede mais honra e glória àquele que se elogia,
parece suficientemente claro, se se tem em mente a gradação aristotélica, estudada acima,
dos objetos que a poesia imita: 4, 3. Portanto, comparado ao que se dá em 3, 30, o elogio do
poeta em 4, 3, se é que se pode admitir, repita-se, a gradação da dignidade da matéria
poética tal qual a apresentamos aqui, ser-lhe-ia antes superior que inferior. Em outras
palavras, algo como se a modéstia, nesta ode, de submeter-se totalmente à Musa, se
revertesse ao fim e ao cabo no aumento da dignidade de quem se lhe submete: como se a
dignidade da Musa fosse, feito o balanço da sua atividade como Romanae fidicen lyrae, em
certo sentido a mesma do poeta. Fiquemos, finalmente, com Porfirião e Pseudo-Acrão:
Hac w)<i>dh<=i> adfirmat studio poeticae deditum nulli posse alii rei uacare
48
.
Nesta ode [o poeta] afirma que quem se entregou ao exercício da poesia não pode ocupar-
se de nenhuma outra coisa.
Hac ode adfirmat, qui Musarum gratiam in ipsis ortus sui initiis meruerit, nulli alii aptiorem rei
fore quam studio poetico; subiungit laudes deorum
49
.
Nesta ode [o poeta] afirma que quem mereceu a graça das Musas no princípio mesmo do
seu nascimento não há de ser mais apto ao exercício de nenhuma outra coisa senão ao da poesia;
acrescenta louvores dos deuses.
5. 3. Ode 4, 4
Qualem ministrum fulminis alitem,
cui rex deorum regnum in auis uagas
48
Op. cit., p. 142.
49
Op. cit., pp. 333-334.
50
permisit expertus fidelem
Iuppiter in Ganymede flauo,
olim iuuentas et patrius uigor 5
nido laborum protulit inscium
uernique iam nimbis remotis
insolitos docuere nisus
uenti pauentem, mox in ouilia
demisit hostem uiuidus impetus, 10
nunc in reluctantis dracones
egit amor dapis atque pugnae,
qualemue laetis caprea pascuis
intenta fuluae matris ab ubere
iam lacte depulsum leonem 15
dente nouo peritura uidit:
uidere Raeti bella sub Alpibus
Drusum gerentem Vindelici; quibus
mos unde deductus per omne
tempus Amazonia securi 20
dextras obarmet, quaerere distuli,
nec scire fas est omnia; sed diu
lateque uictrices cateruae
consiliis iuuenis reuictae
sensere, quid mens rite, quid indoles 25
nutrita faustis sub penetralibus
posset, quid Augusti paternus
in pueros animus Nerones.
fortes creantur fortibus et bonis;
est in iuuencis, est in equis patrum 30
uirtus neque inbellem feroces
progenerant aquilae columbam.
doctrina sed uim promouet insitam
rectique cultus pectora roborant;
utcumque defecere mores 35
indecorant bene nata culpae.
quid debeas, o Roma, Neronibus,
testis Metaurum flumen et Hasdrubal
deuictus et pulcher fugatis
ille dies Latio tenebris 40
qui primus alma risit adorea,
dirus per urbes Afer ut Italas
ceu flamma per taedas uel Eurus
per Siculas equitauit undas.
post hoc secundis usque laboribus 45
Romana pubes creuit et inpio
51
uastata Poenorum tumultu
fana deos habuere rectos,
dixitque tandem perfidus Hannibal:
cerui, luporum praeda rapacium 50
sectamur ultro, quos opimus
fallere et effugere est triumphus.
gens, quae cremato fortis ab Ilio
iactata Tuscis aequoribus sacra
natosque maturosque patres 55
pertulit Ausonias ad urbis,
duris ut ilex tonsa bipennibus
nigrae feraci frondis in Algido,
per damna, per caedis ab ipso
ducit opes animumque ferro 60
non hydra secto corpore firmior
uinci dolentem creuit in Herculem,
monstrumue submisere Colchi
maius Echioniaeue Thebae.
merses profundo, pulchrior euenit 65
luctere, multa proruet integrum
cum laude uictorem geretque
proelia coniugibus loquenda.
Carthagini iam non ego nuntios
mittam superbos: occidit, occidit 70
spes omnis et fortuna nostri
nominis Hasdrubale interempto.
nil Claudiae non perficient manus,
quas et benigno numine Iuppiter
defendit et curae sagaces 75
expediunt per acuta belli”.
Assim como ao alado ministro do relâmpago – a quem Júpiter, o rei dos deuses, concedeu o
domínio das errantes aves ao constatar que foi fiel no caso do louro Ganimedes –
outrora a juventude e o vigor paterno arrebataram do ninho, a ele que era ínscio dos
trabalhos, e os ventos primaveris, tendo já afastado as nuvens, ensinaram-lhe, temeroso, insólitos
esforços
e então logo um vívido ímpeto lançou-o, inimigo, contra redis e agora o amor do banquete e
da luta levou-o contra as serpentes relutantes.
Ou assim como ao leão, já afastado das mamas úberes da mãe, uma cabrita, ocupada nos
férteis prados, viu, prestes a morrer pelas presas recém-nascidas,
assim também a Druso a comandar a guerra sob os Alpes viram os réticos; os Vindélicos (a
cujo respeito desisti de indagar de onde lhes veio por todo o tempo o costume
52
de armar as destras com o machado das Amazonas: não se pode saber tudo), ora, seus
batalhões por largo tempo e espaço vencedores, mas vencidos pela estratégia do jovem,
perceberam
o que pode o espírito e o que pode a índole, piamente educados sob faustosos interiores, o
que pode o paterno ânimo de Augusto sobre os filhos de Nero.
Os fortes vêm de fortes e bons: há nos novilhos, há nos potros a coragem dos pais e ferozes
águias não geram pomba imbele;
a educação, porém, fomenta o vigor inato, e o cultivo do que é correto reforça o peito; toda
vez que decaem os costumes, as culpas desdouram as qualidades naturais.
Do que deves, ó Roma, à estirpe de Nero, é testemunha o rio Metauro e Asdrúbal vencido e
aquele belo dia em que, afugentadas as trevas do Lácio,
pela primeira vez sorriu a alentadora vitória desde que o Africano terrível, qual flama nos
abetos ou qual o Euro pelas ondas da Sicília, cavalgou pelas cidades da Itália.
Depois disso com trabalhos sempre bem logrados cresceu a juventude Romana, e os
templos devastados pelo ímpio assalto dos Cartagineses tiveram seus deuses restaurados;
e disse enfim o pérfido Aníbal: “Como cervos, presa dos rapaces lobos, nós perseguimos,
além dos que devemos, aqueles a quem enganar ou evitar é já copioso triunfo.
A gente que, lançada de Tróia em chamas às ondas Tirrenas, trouxe, corajosa, os Penates,
os filhos e os pais anciães às cidades da Ausônia,
tal como o carvalho podado por dura bipene no Álgido fértil de folhas negras, essa gente
consegue tirar – em meio a danos e em meio à matança – do próprio ferro suas forças e seu
ânimo.
Nem a Hidra, tendo sido mutilado o corpo, cresceu mais forte contra Hércules que sofria por
ser vencido, nem os Colcos ou Tebas de Equião submeteram monstro maior.
Imerge-a no profundo: ela emerge mais vistosa; combata-a: ela prostrará com grande glória
o incólume vencedor e moverá batalhas de que suas esposas falarão.
Eu não mais enviarei a Cartago soberbos núncios: morreu, morreu toda a esperança e a
fortuna do nosso nome com a morte de Asdrúbal.
Nada há o que as mãos da gente Cláudia não executem, as quais Júpiter com benigno
assentimento defende e sagazes decisões conduzem em meio às agruras da guerra”.
Esta ode começa com um longo símile: assim como a águia, ou assim como o leão
visto por sua presa, assim também Druso, enteado de Augusto e irmão do futuro imperador
53
Tibério, foi visto pelos Vindélicos, contra os quais venceu a guerra ao pé dos Alpes réticos.
Eis, com efeito, como Porfirião nos explica esta passagem:
Haec est egloga, propter quam, ut supra ostendimus, totus hic liber compositus est.
Scripta est ergo in Neronem Drusum priuignum et successorem Augusti, qui Rethos
Vindelicos bello uicit. De imperio autem principis huius duplicem facit comparationem. Nam Drusum
ait tanto uigore atque impetu hostes Vindelicos inuasisse, quanta ui soleat aquila in rapinam
inruere, primum ouium, mox corroborato uigore etiam draconum; ipsos autem hostes ita conterritos
esse caede belligerantis Drusi, ut capream uisu leonis in se inruentis.
Este é o poema por cuja causa todo este livro foi composto, como mostramos acima.
Foi portanto escrito para Druso Nero, enteado e sucessor de Augusto, que venceu na guerra
os Vindélicos da Récia. Com efeito, faz dupla comparação a respeito do comando deste príncipe:
pois diz que Druso com tanto ímpeto e vigor atacou as hostes dos Vindélicos quanta costuma ser a
força da águia na rapina, primeiro dos apriscos, depois, confirmado o seu vigor, também das
cobras; [diz também que] estas mesmas hostes ficaram tão aterrorizadas com o beligerante Druso
quanto a cabra com a vista do leão que se precipita sobre ela.
Independentemente, pois, de ser esta ou não a ode por cuja causa Horácio compôs o quarto
e último livro de odes – questão que, de resto, já discutimos na segunda seção deste
trabalho –, o caso é que a dupla comparação, bem considerada, contém em si o principal
assunto do poema: não o elogio da glória militar de Druso senão, mais abstratamente, o
elogio da educação, doctrina, a que se imputa o aperfeiçoamento dos dotes naturais,
indoles. É a mesma questão que vimos a propósito de 4, 2 – isto é, o que, entre natureza e
arte, faz de um poeta um poeta consumado –, transposta agora, porém, ao domínio militar:
o que determina o sucesso bélico de um general? A resposta de Horácio, mui
verossimilmente, aliás, não poderia diferir muito da que deu à questão anterior: se à
doutrina cabe lapidar a índole – donde sua maior responsabilidade e peso, em última
instância –, nada lapidaria, é claro, se nada houvesse a lapidar.
A ode parece dividida em duas grandes seções, cada uma delas, por sua vez, também
composta de duas partes: a primeira seção, que ocupa as nove primeiras estrofes, é a já
mencionada dupla comparação, que por sua vez se estende do primeiro ao vigésimo oitavo
verso, mais a oitava e a nona estrofe do poema – espécie de gnoma ou sentencioso arremate
54
do que precede; a segunda, que vai da décima à décima nona e última estrofe desta ode,
compõe-se de um exórdio e do longo discurso de Aníbal, e é nesta seção que encontraremos
propriamente o elogio de Druso.
A respeito, pois, da comparação inicial, que indícios nos permitem afirmar que se
trate realmente aqui de um poema sobre educação? Ademais, que papel teriam educador e
educando recebido no tratamento do tema? A ode, como pudemos ler, começa com Júpiter
conferindo à águia o domínio sobre as demais aves, porque ela se lhe mostrou fiel no rapto
de Ganimedes. Ora, se se puder dizer, com Pseudo-Acrão, que nesta ode
Comparatur autem Ioui Augustus et aquilae Nero
50
.
Compara-se Augusto a Jove e [Druso] Nero à águia.
– então diríamos que Druso, também porque foi fiel ao imperador em certa circunstância,
dele recebeu o imperium sobre as hostes romanas que lutaram ao pé dos Alpes réticos. Até
aqui, não há palavra sobre educação; se se atenta, porém, à seqüência de advérbios
temporais olim (v. 5), mox (v. 9) e nunc (v. 11), vê-se então que com o tempo se desenvolve
também o caráter do herói que é comparado à águia: outrora (olim, v. 5) a juventude e o
vigor paterno (iuuentas et patrius uigor, v. 5) arrebataram-na do ninho e os ventos
ensinaram-lhe insólito vôo quando ainda temia voar (pauentem, v. 9); logo depois (mox, v.
9) ela atacou de vívido ímpeto (uiuidus impetus, v. 10) os redis (ouilia, v. 9), que eram
então a presa que lhe convinha ; agora (nunc, v. 11) por amor do banquete, tropo para o ato
de atacar a presa (amor dapis, v. 12), ela luta contra serpentes. Ora, segundo parece, nesta
seqüência temporal se mostra justamente a formação de um caráter – no caso, o caráter de
um guerreiro. Como e por que se passaria, então, no caso de Druso, de patrius uigor a amor
dapis? Muito a propósito, acompanha a resposta a esta questão exatamente o indício de que
se trata aqui de um poema sobre educação: os Vindélicos derrotados por Druso sensere
quid mens rite, quid indoles/ nutrita faustis sub penetralibus/ posset, quid Augusti paternus/
in pueros animus Nerones (vv. 25-28). Portanto, é na última estrofe da primeira parte que
vem a nosso encontro, digamos, a própria economia da educação tal qual a compreende
50
Op. cit., p. 336.
55
Horácio nesta ode: o paterno ânimo de Augusto influencia os filhos de Nero, isto é, Tibério
e Druso; o espírito e a índole deles são alimentados pela casa imperial.
A segunda parte da primeira seção, como dissemos, encerra uma espécie de suma da
precedente, e compõe-se de duas estrofes. Se a primeira delas, contudo, parece bem ou mal
se ajustar à concepção que um Píndaro, por exemplo, desenvolve em célebre passagem da
segunda Olímpica, a segunda matiza e circunstancia esta concepção segundo um paradigma
que diríamos mais propriamente horaciano. Eis o trecho de Píndaro:
Sofo\j o(
polla\ ei¨dw\j fu#=!
maqo/ntej de\ la/broi
pagglwssi/# ko/rakej w/¨j
a(/kranta garue/twn
Dio\j pro\j o)/rnixa qei=on [...]
51
.
Sábio é o que por natureza conhece muitas coisas; os tagarelas que as aprendem são, por
sua logorréia, como corvos que dão falsos augúrios diante da divina águia de Zeus [...].
Segundo vemos, há, aqui, um elogio do que é inato, em completa oposição ao que é
adquirido: entre natureza e arte, franca opção pela primeira, condenação da segunda. Ora, a
sentença da oitava estrofe de 4, 4, sem propriamente condenar a arte, concentra-se todavia
no aspecto natural das perfeições: fortes creantur fortes. Eis senão que se segue uma
espécie de ressalva na estrofe seguinte, introduzida por uma conjunção adversativa:
doctrina sed uim promouet insitam/ rectique cultus pectora roborant. Ou seja: conquanto a
natureza gere as perfeições de caráter, digamos, em estado bruto, lapidá-las e pois
transformá-las em verdadeiras perfeições é tarefa da arte, da educação. Tanto assim é, que
tudo o que esta não tenha conseguido polir desdoura os dotes naturais que requeriam tal
polimento: indecorant bene nata culpae. Contrariamente, pois, ao que Píndaro parece
defender no trecho apenas citado, em que abertamente rebaixa quem aprende diante de
quem por natureza sabe o que sabe, Horácio nos parece propor uma solução conciliatória,
em que os pares da aparente dicotomia não se excluem, mas são co-dependentes – solução,
51
Cf., Pindare, Olympiques, éd. et trad. Aimé Puech, Paris, Belles Lettres, 1970, vv. 93-98, p. 47.
56
aliás, bem à maneira da que nos ofereceu, como vimos, a propósito da questão mais
específica da perfeição poética.
Quanto ao elogio de Druso, direto ou indireto que seja, ele ocupa toda a segunda
seção de 4, 4. Eis como Putnam comenta o que, em nosso comentário, chamamos de
exórdio ao discurso de Aníbal:
In the central stanza of the poem, where Horace’s speaker apostrophizes the city of Rome for
the only time in his poetry, we turn to the past. In this education by poetry, which is to say by
exemplification, the speaker looks backward for his evidence. The victory of Gaius Claudius Nero,
during his consulship in 207, over Hannibal’s brother at Sena, on the Umbrian river Metaurus, was a
turning point in the Second Punic War. What Rome owes Claudius Nero is what it owes and will
owe Augustus’ stepsons. The model for them to follow is located in their own past, and the poetry
supports the interconnection in several ways
52
.
Notemos, pois, desde logo que esta é, segundo Putnam, a única vez em que Horácio
diretamente se dirige à cidade de Roma em toda a sua obra. A ser assim, o caráter público,
civil, desta segunda metade do poema salta especialmente à vista; e com este caráter,
presumivelmente, também o elevado grau de dignidade poética que, consoante a doutrina
que já expusemos em algum detalhe, a este mesmo caráter seria conveniente. Ademais,
convém igualmente observar que, juntamente com Augusto, também a persona horaciana
coloca-se aqui, segundo o mesmo estudioso americano, na posição de educador. Algo como
se à função paterna de Augusto, exercida concreta e diretamente sobre os filhos de Nero,
correspondesse, no domínio mais abstrato e indireto da poesia, a função “paterna” deste
poeta-educador. Ora, exatamente a este tipo de educação pelos exempla maiorum, que
Horácio emprega aqui, também se refere Tácito quando, pela boca de Messala, enumera no
Diálogo dos oradores as possíveis causas da decadência da oratória (28, 2):
Quis enim ignorat et eloquentiam et ceteras artes desciuisse ab illa uetere gloria non inopia
hominum, sed desidia iuuentutis et negligentia parentum et inscientia praecipientium et obliuione
moris antiqui
53
?
52
Cf. Putnam, M. C. J., Artifices of eternity: Horace’s Fourth Book of Odes, Ithaca/ London, Cornell
University Press, 1996, pp. 91-92.
53
Cf. P. Cornelii Taciti Libri Qui Supersunt, T. II, 2, ed. E. Koestermann, Leipzig, Teubner, 1964, p. 94.
57
Quem ignora que a eloqüência e as demais artes degeneraram da sua antiga glória não por
falta de homens senão por indolência da juventude, negligência dos pais, ignorância dos mestres e
esquecimento do antigo costume [grifo nosso]?
Portanto, a lembrança dos antigos costumes seria, segundo a opinião de Tácito nesta
passagem, parte imprescindível da formação do bom orador. Ora, não seria esta a atitude de
Horácio – isto é, educar pelo exemplo dos antigos – quando se põe a narrar num suposto
elogio a Druso a história de seu antepassado Cláudio Nero? Assim parece, com efeito. À
diferença de que, neste caso, não se trata de educar um orador, mas um general; e de que tal
instrução se inscreve, por sua vez, num plano maior, qual seja, o elogio do educando e de
seus feitos.
Segundo nos parece, o comentário de Putnam explica convincentemente o exórdio ao
discurso de Aníbal: quid debeas, Roma, Neronibus, testis Metaurum flumen, Hasdrubal
deuictus, ille dies qui adorea risit. Ou seja, o discurso de Aníbal tratará da derrota do irmão
Asdrúbal pelas mãos do cônsul Cláudio Nero. Parece razoável que este assunto tenha sido
escolhido para, tecnicamente falando, amplificar a vitória de Druso sobre os Vindélicos,
comparando-a à de seu antepassado sobre os Cartagineses, sobretudo numa espécie
demonstrativa de lírica com esta. E aqui surge a pergunta: mas tal comparação, em que se
equipara o passado longínquo ao recente, seria razoável em termos propriamente históricos,
a despeito das convenções retórico-poéticas que, no interior do poema, a levam a bom
termo? Não poderíamos honestamente responder a tal pergunta sem antes proceder a um
minucioso estudo de uma e outra guerra, tarefa que foge, claro está, do escopo desta
dissertação. Não obstante, e mantendo-nos estritamente no domínio da lírica e suas
convenções, diríamos que o elogio de Horácio à vitória de Druso, ao compará-la à de
Cláudio Nero sobre Asdrúbal, confere-lhe inaudita e especial dignidade, cumprindo,
ademais, a função que se espera de um elogio: elogiar. Eis como Fraenkel nos explica esta
comparação:
In an aristocratic society it is natural that a recent victory should recall the achievements of
the conqueror’s ancestors; consequently such a connection of the present with the past plays a
great part in Pindar’s (and not only in Pindar’s) epinikia and gives rise to some fine pieces of
58
narrative. Horace’s artistic tact and his understanding of Roman traditions show themselves in his
choice of an episode of Rome’s most famous war
54
.
Portanto, a escolha do episódio púnico da história romana como termo de comparação
àquele de que Druso é o protagonista se mostra especialmente adequado, haja vista a
espécie e o intuito do poema em questão. Como já sugerimos acima, a re-elaboração
horaciana do legado pindárico resulta numa poesia nova, ou seja, na renovação da tradição
laudatória, em geral, de Píndaro, em particular, tão apropriada, esta tradição, a efetuar
comparações como a que vimos de ver.
Finalmente, se é que esta ode possui um destinatário, é nada menos que a própria
cidade de Roma, apostrofada na décima estrofe. Este fato liga-a estritamente às odes
chamadas romanas – as seis primeiras do terceiro livro –, em que, aliás, se trata de assunto
semelhante: as causas da suposta decadência da Urbe. Deste modo, ao tom “pessimista” das
odes romanas Horácio responde, alguns anos mais tarde, com esta ode marcadamente
“otimista” em que, sob os auspícios do paternus animus Augusti, nil Claudiae non
perficient manus. Como veremos ao estudar a ode 4, 14 mais adiante, estreitamente ligada a
esta não só pelo assunto senão também pelo metro, o elogio de Augusto, aqui como
indivíduo educador de indivíduos, passará, em 4, 14, a elogio de Roma como civilizadora
dos povos. Eis porque a apóstrofe de Roma, na ode que acabamos de estudar, soa como
uma espécie de elevação de dignidade, de subida de tom, que demandaria um tratamento
menos particular do assunto em questão. A ode, contudo, já se aproxima do final – o que
nos deixará em suspenso até que, em 4, 14, se dispense ao tema, tornado público com a
menção de Roma, o tratamento mais geral que o complemente.
5. 4. Ode 4, 5
Diuis orte bonis, optume Romulae
custos gentis, abes iam nimium diu:
54
Cf. Fraenkel, E., Horace, Oxford, Clarendon Press, 1957, p. 428.
59
maturum reditum pollicitus patrum
sancto consilio, redi.
lucem redde tuae, dux bone, patriae. 5
instar ueris enim uoltus ubi tuus
adfulsit populo, gratior it dies
et soles melius nitent.
ut mater iuuenem, quem Notus inuido
flatu Carpathii trans maris aequora 10
cunctantem spatio longius annuo
dulci distinet a domo,
uotis omnibusque et precibus uocat
curuo nec faciem litore dimouet,
sic desideriis icta fidelibus 15
quaerit patria Caesarem.
tutus bos etenim rura perambulat,
nutrit rura Ceres almaque Faustitas,
pacatum uolitant per mare nauitae,
culpari metuit Fides, 20
nullis polluitur casta domus stupris,
mos et lex maculosum edomuit nefas,
laudantur simili prole puerperae,
culpam poena premit comes.
quis Parthum paueat, quis gelidum Scythen 25
quis Germania quos horrida parturit
fetus incolumi Caesare? quis ferae
bellum curet Hiberiae?
condit quisque diem collibus in suis
et uitem uiduas ducit ad arbores; 30
hinc ad uina redit laetus et alteris
te mensis adhibet deum.
te multa prece, te prosequitur mero
defuso pateris, et Laribus tuum
miscet numen, uti Graecia Castoris 35
et magni memor Herculis.
longas o utinam, dux bone, ferias
praestes Hesperiae! dicimus integro
sicco mane die, dicimus uuidi,
cum sol Oceano subest. 40
Ó tu, nascido dos bons deuses, ótimo guardião da gente de Rômulo, estás ausente já há
muito tempo: pois, tendo prometido ao sagrado conselho dos pais breve retorno, retorna.
Traz de novo a luz à tua pátria, ó bom guia. Pois quando o vulto teu, semelhante à
primavera, esplende ao povo, mais alegre vai o dia e os sóis luzem melhor.
60
Tal como a mãe que com todos os votos e preces chama o filho que o Noto, com sopro
invejoso, afasta do doce lar por mais de um ano pelas águas do mar Cárpato,
mãe que não tira os olhos do curvo litoral, assim também, golpeada de fiéis desejos, a pátria
pede por seu César.
Com efeito, seguro o boi nos pastos perambula; Ceres e a abundante Fertilidade nutrem os
pastos; os nautas voam por um mar pacato, a Confiança teme ser repreendida;
por nenhuma infâmia a casta casa é poluída; o costume e a lei baniram o maculoso
sacrilégio, as puérperas são louvadas por causa de uma prole semelhante; a pena oprime a culpa,
sua companheira.
Quem temeria o Parto, o gélido Cita e os rebentos que a hórrida Germânia gera, enquanto
César está incólume? Quem cuidará da guerra da feroz Ibéria?
Cada qual passa o dia nas suas colinas e leva a vide às árvores vazias; de lá volta contente
às vinhas e no segundo prato te cultua como a um deus.
Cumula-te com muita prece e vinho deitado às taças, e aos Lares acrescenta o teu nume, tal
como fez a Grécia, lembrada de Castor e do magno Hércules.
“Oxalá concedas, ó bom guia, longos feriados à Hespéria!”, dizemos sóbrios de manhã,
quando o dia está inteiro, dizemos bêbedos quando o sol já está sob o Oceano.
Esta ode, como tentaremos mostrar, não é um simples elogio de Augusto como pater
patriae; ao apresentar o princeps como objeto de culto religioso, Horácio logra colocá-lo,
sutilmente embora, acima dos heróis e quase ao lado dos deuses – procedimento, de resto,
bem semelhante ao que vimos a propósito da ode 4, 3, em que o promovido, diferentemente
de agora, não era o comandante militar, dux, senão o próprio poeta lírico Horácio, fidicen.
Paralelamente a este plano, por assim dizer, mais óbvio do elogio, em que se roga pela
volta do imperador e se oferece um catálogo de suas reformas, desenvolve-se, como se
verá, também outro, mais sutil e abstrato, que nos vai pouco a pouco descobrindo um
segundo elogiado: novamente o poeta. Expediente mui recorrente sobretudo no quarto livro
das Odes, trata-se aqui, como poderemos mais uma vez averiguar, de traçar uma espécie de
proporção, ou comparação que seja, entre Augusto e Horácio, entre política e poesia: o que
significa Augusto para a política, Horácio significa para a poesia.
Atentando a seu desenvolvimento, nosso poema mostra-se divido em três partes: a
primeira, que ocupa as quatro primeiras estrofes e contém a invocação inicial a Augusto e a
61
comparação de Roma com a mãe de um jovem guerreiro ausente; a segunda, que
compreende as três estrofes seguintes, em que se listam as reformas de Augusto e a
segurança que o imperador concede aos seus; e a terceira, enfim, que compreende as três
estrofes seguintes, em que se descreve a rotina de um lavrador em tempos de paz e o lugar
de Augusto nesta rotina.
A primeira estrofe do poema, a despeito dos dois elogios de Augusto que contém
(Diuis orte bonis, optume Romulae/ custos gentis, vv. 1-2), é pouco mais que exortação ou
interpelação direta para que o príncipe volte, pelo que mui habilmente, aliás, o verso
termina com o imperativo redi. Pela estrofe somos informados de que, contrariamente ao
que prometera no senado (pollicitus sancto concilio), o imperador está ausente há muito
tempo já (nimium diu). Ou seja: para compreender esta passagem de modo adequado, seria,
se não obrigatório, ao menos razoável recorrer à história romana – sem que isso importe,
certamente, numa redução total da mesma estrofe, que segue padrões e convenções poéticas
já identificadas por nós em outros poemas do autor, ao mesmo biografismo já citado a
propósito de 1, 2, o qual tudo explica, ou procura explicar, recorrendo às circunstâncias de
produção de determinada obra. Aqui, a menção de tais circunstâncias sirva pouco mais ou
menos de complemento, digamos assim, da interpretação propriamente poética que se
propõe. Eis então, a propósito, como Fraenkel nos explica esta passagem:
Although after the clades Lolliana order on the Rhine frontier was soon restored, Augustus
was detained in Gaul and Spain far longer than had been expected. Not until the summer of 13 B.C.
did he return to Rome. While he was still absent, Horace wrote the ode (and in all probability sent a
copy of it to Augustus) which he later on placed in the book after the epinikion for Drusus
55
.
Bem considerada esta informação histórica, qual seria, porém, seu valor propriamente
poético, ou, em outros termos, de que modo se elaboraria este dado no interior do poema e
segundo suas convenções? O exame da terceira e quarta estrofes nos há de aclarar o
problema. Por ora, no entanto, atentemos à segunda.
A segunda estrofe, como nos informa Doblhofer, é composta exatamente segundo as
regras retórico-poéticas do panegírico dos soberanos:
55
Op. cit., p. 440.
62
Was hier begegnet, ist aus dem Ideenbereich des Herrscher-Sonnen-Vergleichs genommen;
es ist aber grundverschieden von dessen geschmackloser Form, die Persius in sat. 1, 7 im Munde
führt. Der Herrscher wird hier nicht mehr direkt mit der Sonne gleichgesetzt. [...] Augustus wird hier
vielmehr mit dem Frühling vergliechen
56
.
O que se encontra aqui é tomado do círculo de idéias da comparação entre o soberano e o
sol; é, contudo, fundamentalmente diferente da sua forma mais vulgar, a que Pérsio na Sátira 1, 7
empresta a voz. Não se compara mais aqui o soberano diretamente com o sol. [...] Aqui, Augusto é
antes comparado à primavera.
Ao renovar, portanto, o uso tradicional de um topos, Horácio não estaria imitando – como,
aliás, já sugerimos – no domínio poético as reformas e a renovação moral e política do
próprio Augusto? Assim parece, com efeito. Mas para que possamos constatá-lo com maior
evidência e precisão, é mister que levemos nossa análise até ao fim deste poema.
Chegamos, então, à terceira estrofe. Nela, como dissemos, se encontraria um exemplo
particularmente claro e feliz de como um dado histórico é elaborado segundo padrões
propriamente poéticos. Como o poema nos informa, o imperador há muito está ausente. Tal
ausência, bem ponderada, seria motivo antes de desalento que de alento, de lamentação que
de celebração. Ora, que outra espécie da lírica seria particularmente apta a expressar o
lamento de uma ausência senão justamente o treno, de resto mencionado por Horácio em 4,
2 quando a propósito da lírica pindárica escreve flebili sponsae iuuenem raptum/ plorat (vv.
21-22)? A leitura destes versos não parece deixar dúvida razoável: entre as espécies que
Píndaro cultivou, está aquela em que “deplora o jovem marido arrancado à esposa flébil”.
Isto é: a circunstância da ausência, ou melhor, a circunstância poética da ausência, –
ausência entendida como estratégia de concepção e produção poética e não como dado que
lhe fosse exterior ou adventício – pediria por si só, segundo as convenções do gênero lírico
que vimos detectando e analisando, um treno. Que este treno se dê, como em 4, 5, no
56
Cf. Doblhofer, E., Die Augustuspanegyrik des Horaz in Formalhistorischer Sicht, Heidelberg, Carl Winter,
1966, p. 87. Para um estudo aprofundado das raízes helenísticas do panegírico horaciano, cf. toda a primeira
parte deste mesmo trabalho, em que o estudioso alemão identifica e analisa na obra de Horácio, comparando-a
com as prescrições de retores como Menandro, o uso original que faz o poeta dos mais importantes topoi da
retórica panegírica – entre eles, mencione-se a propósito, a comparação do soberano com o sol. Os versos de
Horácio a que se faz referência são os seguintes (Sátiras, 1, 7, 23-25): laudat Brutum, laudat cohortem,/
solem Asiae Brutum appellat stellasque salubris/ appelat comites exepto Rege [...], “ele louva Bruto, louva
seu exército,/ chama Bruto sol da Ásia e favoráveis estrelas/ seus companheiros – salvo o Rei [...]”.
63
interior de um elogio de quem por cuja causa se lamenta em nada muda, de um lado, o uso
de expedientes próprios do mesmo treno, de outro, a elaboração de um dado supostamente
estranho segundo as convenções intrinsecamente poéticas que regem tais expedientes. Em
resumo, diríamos que entre a circunstância histórica e o poema haveria as regras de poética.
E que essas regras, a despeito do seu caráter inevitavelmente histórico, se não prescrevem
ao menos permitem o cruzamento de espécies no interior de um mesmo gênero. Portanto,
ainda que seja verossímil supor que a demora de Augusto tenha ensejado a composição
desta ode, o fato é que, entre os motivos intrinsecamente poéticos que justificam o emprego
lírico da espécie em questão, está a ausência, entendida como topos e não como dado
histórico, daquele cuja mesma ausência se deplora.
A respeito da segunda parte do poema, em que se enumeram as reformas de Augusto,
atentemos mais uma vez à explicação de Putnam:
To underscore the high tone of his speaker’s magisterial pronouncements in these stanzas,
Horace uses vocabulary that might have surprised even his ancient reader. Faustitas he invents, as
we have seen, and uolitant is unique in his works, but lines 21 and 22 contain the greatest cluster of
verbal novelties in book 4 and perhaps in his entire poetic output. Polluitur, stupris, maculosum and
edomuit all appear for the first and only occasion in Horace’s work. All are rare words in poetry
(edomuit, unusual in itself, finds its first poetic use here). In the speaker’s perception, their presence
vivifies the abstractions whose domination over Roman life Augustan moral reforms have brought to
an end by suppressing the corrupt
57
.
Portanto, segundo o estudioso norte-americano, o emprego de neologismos e palavras raras
e arcaicas mimetiza, no plano lexical, o plano semântico das sentenças. Sendo assim, mais
que simples catálogo das suas reformas, Horácio parece oferecer a Augusto quase que um
exemplo prático, embora em outro domínio que não o político, do modo mesmo como se
fizeram tais reformas combinando tradição e renovação, passado e futuro, o esquecido e o
inaudito. Fique, pois, esta análise como mais uma evidência da equiparação, tão ao gosto do
poeta neste livro, entre ele próprio e o imperador. Note-se, porém, que, como aponta o já
57
Op. cit., pp. 108-109.
64
citado Doblhofer
58
, o elogio dos feitos de paz de certo soberano é feito segundo as virtudes
por que os empreendeu. No caso, estas virtudes são Faustitas, Fides, casta domus, mos e
lex, série que nos revela, subjacente à invenção vocabular, a presença, renovada embora, de
uma dimensão tradicional, como se Augusto encarnasse em si mesmo todo o caráter dos
pais, o mos maiorum.
A terceira e última parte do poema, como dissemos, imagina e descreve o dia de um
viticultor. A menção ao vinho, em primeiro lugar, nos introduz em ambiente de
comemoração, de festa – o tom final desta ode, portanto, seria, como mostraremos adiante,
marcadamente alegre. Antes porém, atentemos a uma passagem de Horácio na epístola a
Augusto, 2, 1, vv. 1-17, que nos parece vir extremamente a propósito para a interpretação
dessas três estrofes, em particular, e do poema todo, em geral:
Cum tot sustineas et tanta negotia solus,
res Italas armis tuteris, moribus ornes,
legibus emendes, in publica commoda peccem,
si longo sermone morer tua tempora, Caesar.
Romulus et Liber pater et cum Castore Pollux 5
post ingentia facta deorum in templa recepti,
dum terras hominumque colunt genus, aspera bella
componunt, agros assignant, oppida condunt,
plorauere suis non respondere fauorem
speratum meritis. diram qui contudit hydram 10
notaque fatali portenta labore subegit,
comperit inuidiam supremo fine domari.
urit enim fulgore suo, qui praegrauat artis
infra se positas: exstinctus amabitur idem.
praesenti tibi maturos largimur honores, 15
iurandasque tuum per numen ponimus aras,
nil oriturum alias, nil ortum tale fatentes.
Uma vez que tantos e tão grandes negócios empreendes sozinho, uma vez que os
interesses da Itália defendes com armas e com leis emendes, eu atentaria contra o bem público se
com um longo discurso tomasse o teu tempo, ó César. Rômulo, Líber pai, Castor e Pólux, foram
admitidos nos templos dos deuses depois de ingentes feitos, mas enquanto cultivavam a terra e o
gênero humano, travavam ásperas guerras, distribuíam campos e fundavam cidades, lamentaram
que a seus méritos não correspondia o esperado favor. E aquele que esmagou a terrível Hidra e
subjugou famosos monstros por trabalho que lhe impôs o fado, descobriu que a inveja é domada
só pelo supremo fim. Com efeito, queima no próprio fogo quem ofusca as artes que são inferiores
58
Op. cit., p. 92, precisamente a respeito do panegírico dos soberanos: “Seine Friedenstaten sollten gegliedert
werden nach den Tugenden, von denen sie zeugten […]”, “Seus feitos de paz deviam ser divididos de acordo
com as virtudes donde procederam […]”.
65
às suas: morto é que será amado. A ti, que estás vivo, despendemos honras tempestivas,
construímos altares para jurar pelo teu nume, afirmando que nada assim jamais há de suceder ou
já sucedeu.
Logo à primeira vista, são muitas as semelhanças entre epístola e a ode 4, 5. Antes de
mais, o trecho moribus ornes,/ legibus emendes (vv. 2-3) não pode deixar de evocar as três
estrofes que compõem a segunda parte da ode, em que se enumeram as reformas de
Augusto, assim como mos et lex, no vigésimo segundo verso. Também a menção a Baco
(Liber pater, v. 5), Castor (Castore, v. 5) e Hércules (qui contudit Hydram, v. 10) na
epístola encontra paralelo na ode, segundo também a mesma seqüência: uina, por
metonímia Baco (v. 31); memor Castoris et Herculis (v. 36). Em que circunstância,
contudo, na epístola e na ode, se mencionam estes nomes, e qual é o lugar de Augusto num
e noutro catálogo? Ora, no que diz respeito à primeira, o catálogo de heróis introduz certa
oposição, certa diferença entre os heróis e Augusto: enquanto aqueles foram divinizados e
cultuados apenas depois da morte (post ingentia fata in templa recepti, v. 6), a Augusto se
prestam honras divinas enquanto ainda vive (praesenti tibi largimur honores, v. 15). A
dignidade do imperador, portanto, ultrapassa a de todos estes que o acompanham no
catálogo. Além disso, a menção da coisa pública logo no início do segundo verso (res
Italas) parece conceder à epístola uma solenidade a que corresponde, no final do trecho
citado, a mesma atitude da parte dos que adoram o imperador: largimur maturos honores;
ponimus aras iurandas; nil tale ortum, oriturum fatentes. Quanto à ode, digamos desde já
que o Augusto que nela se cultua é antes matéria de culto privado que público, presente,
como os deuses domésticos, no quotidiano de qualquer viticultor (miscet tuum numen
Laribus). A relação que mantém com os outros heróis é aqui de afinidade, não de oposição:
uti Graecia Castoris et Herculis memor. Não obstante, pois, a aparente menor solenidade
deste culto privado, em que Augusto parece entre iguais, se comparado ao público em que
se destaca dos que o acompanham, digamos que a circunstância, aqui implícita, de ser
cultuado enquanto ainda vive é uma honra e um elogio que não passam despercebidos ao
ouvido mais atento. Ademais, a última estrofe introduz ambiência convivial, de simpósio e
celebração coletiva, em que à voz do poeta se junta a da comunidade: dicimus mane,
dicimus cum sol Oceano subest. O cotidiano de um particular qualquer (quisque), na
antepenúltima e penúltima estrofe, é agora o de toda a comunidade em festa, unida, sóbria
66
pela manhã (sicci), à noite bêbada (uuidi), para aclamar o mesmo dux bone que, ao repetir-
se no fim da ode o mesmo vocativo do começo, a poesia parece tornar presente. Se,
finalmente, no plano da matéria interna do poema há os belos feitos de Augusto e a
conseqüente festa de cidadãos comuns, que são fatos tomados como históricos, no plano
propriamente poético da linguagem há a mediação estratégica de espécies líricas que o
público bem conhece: tudo acaba em poesia. Lembremos que à ambiência festiva, isto é, à
matéria báquica, corresponde uma espécie particular de lírica, que é a convivial, de modo
que Horácio, para elogiar o imperador, agencia também outra espécie lírica que não apenas
a laudatória. Em outras palavras, em prol do elogio a Augusto, a espécie lírica convivial,
ela mesma média relativamente à elevação da laudatória, precisamente se submete, como
qualquer humilde viticultor, a esta última. A contrapartida é evidente: Augusto é tão
excelso, que acaba por viabilizar não só elogios de cidadãos qualificados como o próprio
Horácio, mas também a celebração festiva e convivial de pessoas comuns, por exemplo, de
viticultores. Com efeito, como este final seria, como é, festivo, se Augusto de algum modo
aí não comparecesse?
5. 5. Ode 4, 6
Diue, quem proles Niobea magnae
uindicem linguae Tityosque raptor
sensit et Troiae prope uictor altae
Pthius Achilles,
ceteris maior, tibi miles impar, 5
filius quamuis Thetidis marinae
Dardanas turris quateret tremenda
cuspide pugnax –
ille, mordaci uelut icta ferro
pinus aut inpulsa cupressus Euro, 10
procidit late posuitque collum in
puluere Teucro;
ille non inclusus equo Mineruae
sacra mentito male feriatos
Troas et laetam Priami choreis 15
falletet aulam,
sed palam captis grauis, heu nefas, heu
nescios fari pueros Achiuis
ureret flammis, etiam latentem
matris in aluo, 20
67
ni tuis flexus Venerisque gratae
uocibus diuom pater adnuisset
rebus Aeneae potiore ductos
alite muros:
doctor argutae fidicen Thaliae, 25
Phoebe, qui Xantho lauis amne crinis,
Dauniae defende decus Camenae,
leuis Agyieu.
spiritum Phoebus mihi, Phoebus artem
carminis nomenque dedit poetae: 30
uirginum primae puerique claris
patribus orti,
Deliae tutela deae, fugacis
lyncas et ceruos cohibentis arcu,
Lesbium seruate pedem meique 35
pollicis ictum,
rite Latonae puerum canentes,
rite crescentem face Noctilucam,
prosperam frugum celeremque pronos
uoluere mensis. 40
nupta iam dices: “ego dis amicum,
saeculo festas referente luces,
reddidi carmen docilis modorum
uatis Horati”.
Ó divino, a quem a prole de Níobe sentiu como vingador da soberba língua, e também Títio,
o raptor, e o Ptio Aquiles, quase vencedor da alta Tróia,
Aquiles, soldado maior que os outros, inferior a ti, por mais que, filho da marina Tétis,
abalasse pugnaz as torres dos Dárdanos com terrível lança,
ele, qual pinho golpeado por ferro mordaz ou cipreste arrancado pelo Euro, tombou ao largo
e o colo repousou no pó dos Teucros;
ele, incluso no cavalo que forjou sacrifícios a Minerva, não enganaria os Troianos
desgraçadamente em festa e o palácio de Príamo, alegre com as danças,
mas cenhoso aos prisioneiros capturados em campo aberto, queimaria – ai, ai, sacrilégio! –
com aquéias chamas crianças incapazes de falar e até mesmo a escondida no ventre da mãe,
– se, dobrado por teus rogos e os da grata Vênus, o pai dos deuses não tivesse concedido
a Enéas muros levantados com auspício mais poderoso!
Ó Febo, flautista e mestre da arguta Tália, que lavas os cabelos no rio Xanto: defende a
honra da Musa Dáunia, ó imberbe Agieu!
Espírito Febo me deu, Febo me deu a arte da canção e o nome de poeta. Ó primeiras entre
as virgens, ó meninos nascidos de ilustres pais,
68
ó protegidas da deusa Délia, que com o arco captura fugitivos linces e cervos, mantende o
ritmo Lésbio e a batida de meu dedo,
cantando segundo o rito ao filho de Latona, cantando segundo o rito à Noctiluca de facho
crescente, que faz prosperar as searas e é rápida em volver os meses que se precipitam.
Ó menina, uma vez casada, tu dirás: “eu, no século que trazia de volta as festivas luzes,
cantei uma canção grata aos deuses, dócil aos modos do vate Horácio”.
Quais são o tema e a particularidade desta ode nos dizem nossos dois escoliastas:
Haec w)<i>dh\ hymnum Apollinis continet, qua commendat ei carmina sua, et simul adloquitur
pueros puellasque, quos carmen saeculare docet
59
.
Esta ode contém um hino a Apolo; por meio dela [o poeta] lhe confia suas canções e ao
mesmo tempo se dirige aos meninos e meninas a quem ensina o Carmen Saeculare.
Hymnum hic Apollini dicit et commendat carmina sua saecularibus ludis, qui celebrantur post
centum annos supra Tiberim in Capitolio
60
.
Canta [o poeta] este hino a Apolo e [lhe] confia suas canções para os jogos seculares, que
se celebravam depois de cem anos no Capitólio Tibre acima.
Segundo Porfirião, como se vê, esta ode contém um hino a Apolo, canções confiadas ao
deus e a apóstrofe dos jovens a quem se ensina o Carmen Saeculare. Já segundo Pseudo-
Acrão, o poeta canta este hino a Apolo e lhe pede proteção para suas canções na ocasião
dos jogos seculares. São ligeiramente diferentes os dois comentários; não obstante, cremos
que se pode tomar, seguindo os comentadores, o deus Apolo e a menção aos jogos
seculares ou ao poema que Horácio compôs para a ocasião como, respectivamente, o tema e
a particularidade desta ode. Todavia, que canções seriam estas que, segundo Porfirião e
Pseudo-Acrão, Horácio confia ao deus? Este poema? O Carmen Saeculare? Os dois? Ou
toda a sua obra lírica? Como veremos, esta é uma ode, não exatamente sobre Apolo ou
sobre a circunstância dos jogos seculares, senão sobre um gênero – o lírico –, sobre um
59
Porfyrionis Op. cit., p. 147.
60
Pseudacronis Op. cit., p. 346.
69
poeta – Horácio –, e a consagração de ambos. De modo que as canções a que os escoliastas
se referem seriam, em última instância, todas as que Horácio já compôs.
Como sabemos, houve um intervalo de dez anos entre a primeira e a segunda
coletânea lírica de Horácio. Ora, que tal intervalo possa ter sido motivado pela fria acolhida
que – diz-nos o próprio poeta na sua décima nona epístola, a Mecenas (1, 19, vv. 32-41) – o
público dispensou àquela primeira coletânea, parece muito razoável:
hunc ego, non alio dictum prius ore, Latinus
uolgauit fidicen. iuuat inmemorata ferentem
ingenuis oculisque legi manibusque teneri.
scire uelis, mea cur ingratus opuscula lector 35
laudet ametque dimi, premat extra limen iniquus;
non ego uentosae plebis suffragia uenor
inpensis cenarum et tritae munere uestis;
non ego nobilium scriptorum auditor et ultor
grammaticas ambire tribus et pulpita dignor: 40
hinc illae lacrimae.
Este poeta [Alceu], não mencionado antes por boca alguma, eu, lírico latino, divulguei.
Agrada-me, quando refiro o inaudito, ser lido e folheado por olhos e mãos nobres. Queres saber, [ó
Mecenas], por que o leitor ingrato louva e ama os meus opúsculos em casa e fora dela, iníquo, os
rebaixa? Não ando à compra dos votos da volúvel plebe a expensas de jantares e com regalo de
um farrapo; nem tampouco, dos nobres escritores ouvinte e vingador, me digno a andar atrás das
tribos dos gramáticos e de suas cátedras: daí essas lágrimas.
Ao que se acrescenta estoutra passagem, agora da primeira epístola, também a Mecenas (1,
1, vv. 10-12), em que a decisão de não mais se dedicar à lírica, mas apenas à filosofia –
filosofia moral, entenda-se, isto é, a uma matéria apropriada ao sermo e suas convenções –,
parece irrevogável:
nunc itaque et uersus et cetera ludicra pono;
quid uerum atque decens, curo et rogo et omnis in hoc sum;
condo et compono quae mox depromere possim.
E assim abandono agora os versos e demais brincadeiras; cuido do que é verdadeiro e
decente e os busco e estou todo nisto; crio e componho o que possa usar em seguida.
70
Ou seja, o pouco impacto público da sua lírica e a decisão de abandoná-la aparecem
nominalmente nestes trechos das Epístolas do autor. Que o primeiro, contudo, tenha sido
“a” causa da segunda, não podemos afirmá-lo com certeza, conquanto pareça verossímil; de
que tenha sido uma das suas causas, não se poderia razoavelmente duvidar.
Ora, mas o que as supostas razões do intervalo entre a primeira e a última empresa
lírica de Horácio teriam exatamente que ver com a ode 4, 6? Precisamente porque, nesta
ode, se trata de um gênero e um poeta agora consagrados, e porque o Carmen Saeculare,
mencionado nela nominalmente, parece representar o sinal de tal consagração, cremos ser
conveniente que nos detenhamos neste mesmo intervalo e na mudança do juízo público
sobre a lírica horaciana para que, daí sim, possamos oferecer justa apreciação deste poema.
Especular sobre as razões que teriam levado o público, ou os dirigentes do gosto
público, a mudar de opinião sobre a lírica de Horácio parece-nos fora dos limites e
propósitos deste trabalho. Não obstante, a circunstância de ter ele sido o escolhido para
compor uma ode a ser executada em ocasião tão solene como os jogos seculares nos revela,
por um lado, que sua lírica caíra, como quer que fosse, nas graças dos organizadores do
festival, por outro, que a amargura e decepção expressas na décima nona epístola não
teriam, conseguintemente, mais razão de ser. Mas, pergunte-se, subordinar a aventura
poética, lírica no caso, à possibilidade de fama não seria compreendê-la de fora, quer dizer,
do exterior ao interior, quando o intuito desta dissertação parece ser justamente o contrário?
Dada uma afirmação como a de Fraenkel –
Horace’s annoyance at the cool reception which the three books of his carmina met with after
their publication in 23 B.C. proved to be more than a transitory mood. [...] It seems likely that he
would to the end of his life have persisted in his resolution had it not been for the extraordinary task
to which he was called in connection with the celebrations of the ludi saeculares in 17 B.C.
61
–, para quem a notoriedade pública que lhe concedeu o Carmen Saeculare é que teria
estimulado o poeta a declinar da decisão de abandonar a lírica, como seria possível colocá-
la à prova sem um estudo que estabelecesse de uma vez por todas que Horácio, chez lui
même e independentemente do público, absolutamente nada, desde sua primeira coletânea
lírica, escrevera no gênero até o Carmen Saeculare? Como, ademais, supor que não
61
Op. cit., p. 365.
71
escreveria nenhuma ode, se não fosse estimulado pela ocasião dos tais jogos? Não obstante,
se se transferir o argumento de Fraenkel, da composição de um novo livro, que pode ser
privada, para a sua publicação, que nunca o é, cremos que adquire certa plausibilidade: com
efeito, que este hino festivo, com ser uma espécie de chancela oficial da sua lírica, possa tê-
lo estimulado a publicar as odes que, supostamente, estivesse compondo em privado,
parece muito verossímil. Portanto, quaisquer que tenham sido os motivos particulares da
renúncia e da volta de Horácio à lírica, e qualquer que tenha sido aí o papel do Carmen
Saeculare, cremos poder afirmar que, do ponto de vista da publicação de um novo livro de
odes, este hino teve, como chancela oficial que foi, influência decisiva. Pois como negar
que esta chancela favoreça, de um modo ou de outro, a acolhida pública de uma obra? E
como negar que este clima favorável, por sua vez, estimule sua publicação? Dito isto,
façamos agora o caminho inverso, ou seja, partindo da ode 4, 6, vejamos o que nos diz do
gênero, do poeta e da consagração aqui mencionados.
A ode pode dividir-se em duas partes: a primeira compreende as sete primeiras
estrofes; a segunda vai da oitava à décima primeira. O leitor atento há de ter notado,
sobretudo na primeira parte, outra particularidade: as transições um tanto abruptas de um
motivo ou tema para o seguinte. Com efeito, a ode já de início começa em ritmo rápido, à
apostrofe de Apolo como vingador de Níobe, Títio e Aquiles na primeira estrofe
sucedendo-se a história deste último e sua queda em Tróia nas quatro seguintes. A sexta,
segundo nos parece, seria uma espécie de exclamação, em que se agradece a Apolo e Diana
que, em vista da crueldade de Aquiles para com seus prisioneiros troianos, tenham
convencido Jove a conceder a Enéas um futuro mais auspicioso. A sétima, enfim, é nova
apóstrofe de Apolo, agora não mais como vingador senão como mestre da lira. Antes de
entrarmos no detalhe destas estrofes, notemos então que esta rapidez, representada
sintaticamente pelo uso da parataxe, parece bem conforme à descrição que o mesmo
Horácio nos deu da eloqüência de Píndaro em 4, 2, vv. 5-8: monte decurrens uelut amnis,
imbres/ quem super notas aluere ripas,/ feruet inmensusque ruit profundo/ Pindarus ore.
Ora, tratando da súbita apóstrofe das virgens e meninos na oitava estrofe do poema, eis
como o já citado Fraenkel a explicita:
The apparent harshness of this transition, which has been used as an argument for
assuming that ode 4, 6 is not a poem but two, can now be properly understood. An abrupt transition
72
of the same kind was used by Pindar in the very poem which suggested to Horace one of the main
topics of this ode. Pindar’s sixth paean begins with an address to Pytho, but at line 121 (90 Turyn)
the poet turns to the young men of whom the chorus consists
62
.
Somando-se, pois, à evidência do próprio Horácio a opinião do erudito alemão, parece-nos
plausível afirmar que esta ode, um hino a Apolo, se remeta, em particular, a um
determinado peã de Píndaro. O caráter elevado, portanto, as transições abruptas entre os
motivos e o uso da parataxe, características tão deste último, não poderiam faltar neste
poema do seu êmulo latino.
Desde já, note-se que Apolo, na primeira estrofe, é invocado como quem pune o mau
uso da língua (magnae uindicem linguae). A despeito dos sucessos de Aquiles narrados
neste poema, note-se também que este herói, publicamente, comete o sacrilégio de matar
crianças ainda incapazes de falar e mesmo a que está no ventre materno (palam, heu nefas,
nescios fari pueros et latentem ureret). Este ato por si mesmo etimologicamente nefando,
isto é, que nem sequer se pode nomear, refere-se, pois, aqui, precisamente ao extermínio
dos que ainda não podem dizer o próprio nome, dos que ainda não podem falar. Portanto,
ainda que, à primeira vista, Apolo seja tão infanticida quanto Aquiles (proles Niobea
uindicem sensit), sua vingança queda justificada como punição do que é nefando, da
corrupção do que se pode e deve dizer, isto é, da transformação de fas em nefas. Tanto
assim é, ou seja, tanto Apolo faz bom uso da língua, que é pela sua voz (tuis uocibus) que o
pai dos deuses, na sexta estrofe, é convencido a secundar Enéas em sua viagem. Detendo-
nos aqui um pouco mais, esta estrofe representa a passagem da Tróia de Príamo – e da
Grécia de Píndaro – para a Roma de Enéas – e de Horácio. Algo como se, traçada uma
espécie de genealogia do mau uso da língua, e do lugar de Apolo como vingador deste mau
uso, fosse chegado o momento de tratar poeticamente do pólo oposto, qual seja, o bom, o
uso religiosamente lícito da língua. É a esta altura que chegamos à sétima e última estrofe
da primeira parte, em que Apolo é novamente invocado. Não, como dissemos, a título de
vingador do que quer que seja, senão como mestre da lira e professor da musa Tália (doctor
argutae fidicen Thaliae). Findo o tempo dos Titãs – representado na ode pela figura de
Títio –, é chegado o dos olímpicos. E este novo tempo, em que a tarefa educadora,
civilizadora portanto, é marca já então tradicional, não pode deixar de assimilar-se, nesta
62
Idem, p. 401.
73
ode, ao de Horácio e, por conseguinte, de Augusto: por isso o assunto da segunda parte é o
papel do poeta, mais exatamente deste poeta, nesta nova e favorável circunstância.
O fim do tempo titânico seria aqui também, possivelmente, o fim do tempo épico.
Dito de outro modo, o fim do tempo de caos e guerra – e portanto de deplorar, epicamente,
a destruição e a perda –, e o início do tempo de ordem e paz, isto é, de celebrar, liricamente,
o ganho e a renovação. Assim, este hino a Apolo, sob cujo patrocínio se perpetrará a tarefa
educadora, nasce de uma espécie de superação das condições que impediam o bom uso, no
caso o bom uso lírico, da língua, da eloqüência. Que esta nossa última asserção pareça
tolerar, se não mesmo supor, uma interpretação mais particular e concreta, em que tais
condições desfavoráveis à lírica referir-se-iam às condições, agora superadas, vividas pelo
próprio Horácio, é pelo menos plausível – sobretudo porque, na estrofe em que de novo se
dirige a Apolo, pede-lhe o poeta que defenda a sua Musa (Daunia Camena).
Foi precisamente de Apolo que a persona, segundo nos diz na oitava estrofe, recebeu
inspiração, técnica e o próprio renome como poeta (spiritum, artem nomenque poetae dedit
Phoebus). Munido, pois, de engenho, arte e reconhecimento público de sua condição, o
poeta se dirige às virgens e meninos que, na ode, participam do evento que justamente
propicia este reconhecimento. Sob os auspícios do mesmo Apolo mais sua irmã Diana, o
poeta roga aos jovens que mantenham o ritmo lésbio – o metro sáfico – do seu poema.
Como sabemos, tanto esta ode 4, 6 quanto o Carmen Saeculare estão escritos neste metro; a
qual dos dois, então, o poeta se referiria? Segundo se nos diz na última estrofe do poema,
em que Horácio imagina, quando já casada, um futuro discurso de uma destas virgens,
trata-se aqui, sem dúvida razoável, do Carmen Saeculere (redi carmen dis amicum saeculo
festas referente luces). O reconhecimento público de seu estatuto de poeta, portanto, se se
deve de maneira especial, como vemos, à ode secular, muito naturalmente se estende a toda
a sua lírica, como indica a última palavra do poema: Horácio. Com efeito, esta é a única
vez, nas duas coletâneas, em que aparece o nome do poeta. Tal nome e condição, como
vimos, que o próprio Apolo lhe concedeu, conquanto não apareça na boca do poeta senão
no discurso de um terceiro – no caso, de uma das virgens quando já casada –, não deixa de
incluir-se no costume grego da
sfragi/j (tão ao gosto de um Catulo, por exemplo, entre os
latinos), em que o poeta termina o poema com sua assinatura, seu selo. Esta maneira de
renovar um procedimento tradicional, portanto, é paradigmática de toda a ode e, para não
74
dizer da obra toda, de todo o livro. Resumindo os passos deste poema, vimos que, partindo
de um modelo pindárico e seu entourage titânico-mitológico, em que Apolo aparecia como
deus vingador, Horácio chega, na sexta estrofe, a Enéas secundado pelo rei dos olímpicos e
enfim a Apolo doctor fidicen na sétima, isto é, a um resultado propriamente horaciano. Esta
pequena mas aparentemente inequívoca genealogia, portanto, poderia dizer respeito tanto a
esta quanto, considerado tudo que temos visto sobre o assunto, a qualquer ode laudatória do
livro. Amparado pelo reconhecimento público, de que Apolo e o Carmen Saeculare são
aqui os responsáveis, Horácio, nesta ode, parece traçar o caminho – o seu método – que
levou um gênero e um poeta a tal consagração.
5. 6. Ode 4, 8
Donarem pateras grataque commodus,
Censorine, meis aera sodalibus,
donarem tripodas, praemia fortium
Graiorum, neque tu pessuma munerum
ferres, diuite me scilicet artium 5
quas aut Parrhasius protulit aut Scopas,
hic saxo, liquidis ille coloribus
sollers nunc hominem ponere, nunc deum.
sed non haec mihi uis, non tibi talium
res est aut animus deliciarum egens: 10
gaudes carminibus; carmina possumus
donare, et pretium dicere muneri.
non incisa notis marmora publicis,
per quae spiritus et uita redit bonis
post mortem ducibus, [non celeres fugae 15
reiectaeque retrorsum Hannibalis minae,
non incendia Carthaginis inpiae
eius qui domita nomen ab Africa
lucratus rediit] clarius indicant
laudes quam Calabrae Pierides, neque 20
si chartae sileant quod bene feceris,
mercedem tuleris. Quid foret Iliae
Mauortisque puer, si taciturnitas
obstaret meritis inuida Romuli?
ereptum Stygiis fluctibus Aeacum 25
uirtus et fauor et lingua potentium
uatum diuitibus consecrat insulis.
[dignum laude uirum Musa uetat mori]
caelo Musa beat. sic Iouis interest
optatis epulis impiger Hercules, 30
clarum Tyndaridae sidus ab infimis
quassas eripiunt aequoribus rates,
[ornatus uiridi tempora pampino]
Liber uota bonos ducit ad exitus.
75
Daria de bom grado taças, Censorino, e grato bronze a meus companheiros; daria trípodas,
prêmio dos fortes gregos, e dos presentes tu não receberias o pior quinhão, fosse eu rico nas artes
que Parrásio ou Escopas praticou, este na pedra, aquele em cores líquidas, expertos em formar
ora um homem, ora um deus. Mas não tenho este poder, nem és falto, pela fortuna e por ânimo, de
tais delícias: gostas de poemas; poemas te podemos dar, e dizer o valor do presente.
Nem de inscrições públicas os talhados mármores, mediante os quais espírito e vida tornam
aos bons generais depois da morte, nem as céleres fugas de Aníbal e suas ameaças repelidas
contra si, nem o incêndio da ímpia Cartago mais notoriamente mostram as glórias daquele que da
África domada voltou com o nome feito do que as Piérides da Calábria, e se os papiros calarem o
bem que fizeste, não receberás compensação.
O que seria do filho de Ília e Marte, se a taciturnidade obstasse invejosa os méritos de
Rômulo? A coragem, o favor e a língua de potentes vates, depois de arrebatar Éaco às ondas do
Estige, consagram-no às ilhas bem-aventuradas. Um varão digno de louvor a Musa proíbe de
morrer, a Musa o torna feliz no céu. Assim nos cobiçados banquetes de Jove o incansável
Hércules está presente, dos Tindárides a clara estrela resgata do profundo mar as naves rotas,
Líber, ornada a fronte com o verde pâmpano, leva os bons votos a bom êxito.
Esta ode, sendo a oitava das quinze que compõem o livro, ocupa nele a posição
central – posição esta, portanto, que procura realçar, como vimos, sua importância no
interior da coletânea. Compreender os motivos que teriam levado Horácio a destacá-la não
significa, segundo cremos, especular sobre motivos psicológicos; significa, antes, buscar no
próprio poema e nas relações que trava com alguns outros razões que justifiquem, tanto
quanto possível, esta destacada posição.
Como sabemos, a obra lírica de Horácio conta cento e quatro composições. Dentre
elas, somente três estão escritas no primeiro metro de Asclepíades: 1, 1; 3, 30; e a nossa 4,
8. Tal circunstância, sobretudo no caso de um poeta como Horácio, já por si deveria ensejar
um exame mais atento da relação entre essas odes: para além da coincidência métrica,
haveria outro liame que as unificasse? Observando, pois, a matéria dos três poemas,
constatamos que todos – cada um à sua maneira, é verdade – tratam do tempo e da
sobrevivência ao tempo. Mais detalhadamente – e limitando-nos por ora aos dois primeiros
–, enquanto 1, 1, é a introdução e dedicatória de todo o livro, 3, 30, como já tivemos
ocasião de observar, foi por dez anos sua conclusão. O que era, pois, naquele, promessa
feita, tornou-se neste, ao menos segundo o autor, promessa cumprida. Bem entendido:
76
depois da condição, estipulada pelo poeta e submetida à aprovação de Mecenas, para
conseguir imortalidade (1, 1, vv. 35-36), –
qodsi me lyricis uatibus inseres,
sublimi feriam sidera uertice.
pois se me contares entre os vates líricos, [ó Mecenas], tocarei os astros no sublime vértice.
– eis que se nos apresenta, ao fim e ao cabo, o cumprimento desta condição (3, 30, v. 1):
Exegi monumentum aere perennius [...].
Erigi um monumento mais perene que o bronze.
Ora, cumprir uma promessa, especialmente em se tratando de uma promessa poética – quer
dizer, em poesia, por meio de poesia e se referindo à poesia que, segundo a mesma
promessa, há de futuramente apresentar tais e tais características –, implica engenhosa
adequação de meios e fins, pretensões e resultados. Sendo assim, todos os poemas que
entremeiam 1, 1 e 3, 30 seriam, na espécie particular de cada um, com o assunto,
prescrições e estratégias de execução próprios de cada um, precisamente esta adequação
entre o que se pretendeu no início e o que se diz ter conseguido no fim. Uma resposta
satisfatória, portanto, à questão de saber se Horácio erigiu o monumento poético que alega
e como o teria feito pressuporia, quando menos, um detalhado exame de toda a primeira
coletânea de odes, tarefa esta que, evidentemente, supera os limites desta dissertação. Não
obstante, somando-se à análise da ode 4, 6, em que se procurou realçar a consagração de
Horácio como poeta lírico, a opinião do grande filólogo que, além de grande poeta, foi
Giacomo Leopardi, poderíamos dizer que a fama de Horácio, entre os antigos seus
contemporâneos, além de notória era devida, donde se poder supor, com alguma
verossimilhança, que esta obra estivesse à altura das próprias pretensões:
Se incomparabili e soli autori di bella letteratura fuorono in tutta l’antichità i Greci e i Latini (e
possa chi lo nega rimanersi in pace eternamente nella beatissima opinione sua), manifesta cosa è
che in somma riverenza e in pregio altissimo debbesi avere i giudizi che delle opere di genio (dirò
77
alla francese per nol saper dire altramente) portarono essi medesimi, ove sia vero che quella età
ben giudica la quale ben fa. [...]
E per cominciare com buona cronologia dai contemporanei, basta aver letto la Vita che di
Orazio lasciò Svetonio, per sapere non esser lui stato di coloro cui fama sopraggiunge dopo la
morte, e tristissima necessità stringe ad appellare alla sentenza de’ posteri: che anzi, se i beneficii e
la famigliarità de’ Grandi fan beato un sapiente, egli fu beatissimo e rarissimo esempio di felicità
[...]
63
.
Conquanto assim seja, o que todo este discurso sobre fama e qualidade da obra teria
exatamente que ver, em primeiro lugar, com 1, 1 e 3, 30, em última instância e
principalmente com 4, 8? Ora, como dissemos, se aquelas odes são, respectivamente, o
exórdio e o epílogo da primeira coletânea – e, portanto, todas as outras que as entremeiam
seriam precisamente a adequação entre pretensões e resultados –, a circunstância de 4, 8,
ligada às anteriores por coincidência métrica e temática, por sua vez ocupar a posição
central do quarto livro bem ou mal transfere para a adequação aquilo que, nos três livros
anteriores, estava reservado ao exórdio e ao epílogo. Expliquemo-nos melhor. O de que se
pretende mostrar aqui a plausibilidade é que, se a comunidade de metro e de assunto nos
permite considerar as três odes que mencionamos como ligadas e portanto úteis para o
entendimento uma da outra, o deslocamento de 4, 8 para o centro desta coletânea, por
comparação à posição, de introdução e de súmula, que as outras ocupam na sua, desloque
também para o centro o que antes era, por assim dizer, periferia. Algo como se o
monumento poético a que, na primeira coletânea, Horácio se refere de modo prospectivo
em 1, 1, retrospectivo em 3, 30, estivesse agora, na segunda, literalmente no centro da
praça ou no meio do templo, como as efígies e pinturas que se mencionam em 4, 8, para ser
visto pelos olhos de todos. Em outras palavras, o reconhecimento público que, segundo
vimos a propósito da ode 4, 6, a obra lírica do poeta alcançou com o Carmen Saeculare
seria, segundo nos parece, uma das razões que o teriam levado a positivamente destacar, na
sua última coletânea do gênero, o monumento que era, na primeira, desejado no exórdio, no
epílogo admirado.
Dito isto, comecemos, então, por notar que o mesmo assunto do tempo e da
sobrevivência ao tempo é tratado agora, não mais levando em conta estrita ou
63
Cf. Leopardi, G., Della Fama di Orazio presso gli Antichi, em: Tutte le Poesie e Tutte le Prose, Roma,
Grandi Tascabili Economici Newton, 1997, p. 950.
78
principalmente a relação entre o poeta e suas obras, ou o papel do poeta no sucesso da sua
empresa, mas estoutra relação, não menos importante, entre a eternidade da poesia e a da
matéria que escolhe tratar. Sendo assim, nosso poema pode dividir-se em três partes:
delimita-se, na primeira, por comparação com outras artes, a poesia como o domínio e a
atividade da persona do poema (vv. 1-12); na segunda, explicita-se qual é o valor deste
domínio e atividade, a princípio também por comparação com outras artes (vv. 13-27); e na
última, finalmente, o valor próprio da poesia, estabelecido na parte anterior, estende-se ao
objeto de que porventura trate (vv. 28-34).
Já no segundo verso do poema conhecemos o nome do destinatário: Censorino. Este
nome é especialmente significativo, pois em latim Censorinus liga-se a censor, “juiz” ou
“censor”. Mas juiz ou censor exatamente de quê? Ora, como nos diz Horácio nos primeiros
doze versos do poema, sua persona daria de bom grado taças, bronze, esculturas e quadros a
Censorino se os tivesse, mas, segundo lemos, gaudes carminibus (v. 11). Ou seja, o
destinatário, cujo nome significa “censor” ou “juiz”, gosta de poemas. Seria, portanto, pelo
menos em nível lexical, alguém na posição de apreciar o justo valor do poema que ora se
lhe oferece. Além dele, também a persona se diz capaz de fazê-lo: carmina possumus/
donare, et pretium dicere muneri (vv. 11-12). Estabelece-se, pois, aqui, uma espécie de
cumplicidade entre quem julga e quem faz, bem à maneira, de resto, dos poetas-críticos da
Biblioteca de Alexandria, mormente Calímaco, que compunham e julgavam, classificavam
e catalogavam a produção alheia, passada e presente, segundo os criticamente bem-
estabelecidos critérios da própria. Fazendo breve digressão, o que diferenciava os poetas
clássicos e os arcaicos dos alexandrinos era, pois, que estes, além de compor, também
julgavam, eram juízes
64
de poemas, tal como Censorino. Deste modo, a cumplicidade entre
64
Sobre o conceito de “juiz” aplicado à atividade crítica, lembremos que em grego o termo técnico filológico
kritiko/j, “crítico”, é cognato de krith=j, “juiz”: “E o que é mais importante [na atividade da Biblioteca de
Alexandria] é que, mantida a divisão genérica que já havia desde a Poética de Aristóteles, é notável, em cada
um dos gêneros da poesia narrativa, a presença de uma lista de autores escolhidos, amiúde chamada ‘cânone’,
isto é, a presença de rol e de crivo segundo o qual poetas e poemas são sim comparados, julgados e
decrescentemente avaliados:
tou= e)/pouj poihtai\ kra/tistoi, ‘os melhores poetas épicos’, diz Proclo; iudices
poetarum, ‘juizes de poetas’ diz Quintiliano (10, 1, 54) sobre Aristarco e Aristófanes de Bizâncio [...]. A
importância dessas listas, isto é, dos
pi/nakej de Calímaco, ou modernamente, como disse, dos ‘cânones’ de
poetas verifica-se pelo fato mesmo de que não são para os latinos outra coisa que as classes, aquilo, pois, que
em âmbito pedagógico determinará, gostemos ou não, o que é ‘clássico’ ”. Em: Oliva Neto, João Angelo,
Epos e as Guerras: Algumas Considerações sobre ‘Épica’ em Horácio Quintiliano e Proclo”, comunicação
proferida no VI CONGRESSO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ESTUDOS CLÁSSICOS, Memória & Festa,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Câmpus da Praia Vermelha, julho de 2005, inédita, pp. 8-9, itálicos
79
juiz e julgado se entende aqui como uma espécie de identidade mesmo entre o que se diz do
que se fez e o que se pretende ter feito: exatamente como Leopardi descreveu acima, não
haveria desnível, nesta situação que não seria exagero chamar de ideal, entre o juízo do
crítico e a realização do poeta.
Qual seria, pois, o justo valor de tal realização? Comparando-a com as estátuas
levantadas em honra pública dos heróis de guerra, non marmora clarius indicant laudes
quam Calabrae Pierides. Esta asserção, bem considerada, nos parece remeter a outra, da
ode 4, 2. Referindo-se a Píndaro, diz Horácio (vv. 18-20): pugilemue equomue/ dicit et
centum potiore signis/ munere donat. Ou seja: ao cantar a vitória do pugilista e do corredor
de cavalos – isto é, ao compor epinícios –, Píndaro daria um presente superior a cem
estátuas. Onde estaria, pois, em se tratando agora das Musas do próprio Horácio, a
superioridade delas em relação aos monumentos públicos? Diz o poeta: neque/ si chartae
sileant quod bene feceris,/ mercedem tuleris (vv. 20-22). Vale dizer, os feitos dignos de
lembrar são lembrados nos escritos e pelos escritos. Mas por que, afinal, esta precedência
aparentemente arbitrária da poesia sobre as demais artes na eternização do seu objeto?
Segundo cremos, porque o objeto de eternização, nesta ode, são os feitos, não de quaisquer
generais ou mesmo de Censorino, senão do próprio poeta: é a sua própria obra. Como
Horácio bem parece ter percebido, a eternidade de um feito digno de memória só estaria
assegurada pela coincidência entre fama e realização, entre o que outorga e o que recebe a
eternidade, e é precisamente esta relação de coincidência que estabelece entre Censorino e
ele próprio. Ora, sendo assim, isto é, se a eternidade, como Horácio parece sugerir, depende
deste acordo profundo e não apenas superficial entre juízo e obra, desta espécie de
identidade, diga-se, entre ambos, a poesia teria capacidade superior de eternizar, se não
todos os objetos, ao menos a si própria, porquanto, neste caso, o que eterniza e o que é
eternizado são idênticos: a própria poesia. Mas não se poderia, então, estender este
argumento a todas as artes, e dizer que a pintura ou a escultura, por exemplo, se auto-
eternizam tão bem e eficientemente quanto a poesia? Certamente. Eis porque, para manter o
argumento da precedência desta sobre as demais formas artísticas de eternização –
do original. O próprio Horácio, referindo-se aos gramáticos na Arte Poética, diz que a pendenga entre eles
sobre os exiguos elegos está sub iudice, e a expressão quodsi me lyricis uatibus inseres “pois se me contares
entre os vates líricos” (Odes, 1, 1, 1) dirigida a Mecenas não deixa de emular a linguagem dos gramáticos,
que, como visto, incluem poetas em determinado gênero.
80
argumento, de resto, defendido por Horácio, como vimos de notar, não só neste poema –,
somos levados a supor que o assunto desta ode, aquilo que se designa de modo genérico por
quod bene feceris (v. 21), não seria outro feito digno de louvor senão principalmente o
poético. Pois só assim, se se tratar aqui de feito poético, se poderia assegurar a
coincidência, nesta ode, entre o que dá e o que recebe aprovação. Talvez seja este o motivo,
de resto, por que nada sabemos de Censorino, por que nenhum feito se lhe nomeia: porque
não são as suas façanhas, em última análise, que estariam em questão. Pois que assim é,
pois que se trata, aqui, antes da função própria da poesia – qual seja, salvar seu objeto do
esquecimento – que de um seu assunto em particular, é que Horácio pode dizer, no final da
segunda parte, uirtus et fauor et lingua potentium/ uatum diuitibus consecrat insulis (vv.
26-27). Portanto, esta ode trata antes do poder que a poesia tem de eternizar que da
qualidade do que é eternizado.
Enfim, a terceira e última parte do poema é pouco mais ou menos que um catálogo de
entidades divinizadas, e portanto eternizadas, pela poesia. São, de resto, as mesmas, note-
se, que Horácio comparou com Augusto na ode 4, 5 e na epístola 2, 1: Hércules, os
Tindárides, Baco. Não obstante, sua dignidade, agora, que lhes permitiu alcançar a
imortalidade, não provém de uma nobreza que lhes seja própria e inalienável, senão da
capacidade ou qualidade da própria poesia, que, como vimos na seção anterior, logra
eternizar, salvando-o do olvido, o assunto de que chegue a tratar. Por fim, como também
vimos acima, se, de um lado, todas essas entidades só se tornaram matéria de culto após a
morte, Augusto, de outro, é cultuado enquanto ainda vive. Deste modo, o poema termina
não com um, senão com dois velados elogios: a Augusto e àquele que, por meio da poesia,
neste livro o eterniza ainda em vida. Ao fazê-lo, nada mais natural que também a si mesmo,
em vida, o poeta se eternize.
Como Porter sugeriu acima a propósito dos três primeiros livros de odes, também
neste, como vimos, o centro parece ser um momento de elevação, exaltação e
autoconfiança. A diferença, pois, entre as duas coletâneas de odes estaria em que a
apreciação do que se produziu, que na primeira só aparece em 3, 30, seu epílogo, na
segunda é apresentada por assim dizer publicamente em 4, 8, é dedicada a Censorino,
homem público, para que a julgue. Que a este, como dissemos, deslocamento do juízo sobre
a própria obra, da solitária periferia para o centro aqui comum ao crítico e ao poeta,
81
corresponda não só um aumento de autoconfiança senão a confirmação pública do que era
antes pretensão privada, é no mínimo plausível, dada a análise que fizemos. Tal
confirmação, representada na ode pela coincidência, digamos, entre juiz e julgado na
apreciação das façanhas deste último, é precisamente o que permitirá a Horácio, na ode
seguinte, que continue a desenvolver o assunto da presente: a eternidade da poesia, em
geral, desta, em particular.
5. 7. Ode 4, 9
Ne forte credas interitura quae
longe sonantem natus ad Aufidum
non ante uolgatas per artis
uerba loquor socianda chordis:
non, si priores Maeonius tenet 5
sedes Homerus, Pindaricae latent
Ceaeque et Alcaei minaces
Stesichoriue graues Camenae,
nec siquid olim lusit Anacreon,
deleuit aetas; spirat adhuc amor 10
uiuuntque commissi calores
Aeoliae fidibus puellae.
non sola comptos arsit adulteri
crines et aurum uestibus inlitum
mirata regalisque cultus 15
et comites Helene Lacaena,
primusue Teucer tela Cydonio
direxit arcu, non semel Ilios
uexata, non pugnauit ingens
Idomeneus Sthenelusue solus 20
dicenda Musis proelia, non ferox
Hector uel acer Deiphobus grauis
excepit ictus pro pudicis
coniugibus puerisque primus.
uixere fortes ante Agamemnona 25
multi; sed omnes inlacrimabiles
urgentur ignotique longa
nocte, carent quia uate sacro.
paulum sepultae distat inertiae
celata uirtus. non ego te meis 30
chartis inornatum silebo
totue tuos patiar labores
82
inpune, Lolli, carpere liuidas
obliuiones: est animus tibi
rerumque prudens et secundis 35
temporibus dubiisque rectus,
uindex auarae fraudis et abstinens
ducentis ad se cuncta pecuniae,
consulque non unius anni,
sed quotiens bonus atque fidus 40
iudex honestum praetulit utili,
reiecit alto dona nocentium
uoltu, per obstantis cateruas
explicuit sua uictor arma.
non possidentem multa uocaueris 45
recte beatum; rectius occupat
nomen beati, qui deorum
muneribus sapienter uti
duramque callet pauperiem pati
peiusque leto flagitium timet, 50
n ille pro caris amicis
aut patria timidus perire.
Não creias porventura que hão de morrer as palavras que eu, nascido junto ao Áufido que
ressoa ao longe, digo para associá-las às cordas com artes nunca dantes divulgadas:
se os primeiros postos ocupa o Meônio Homero, as Camenas de Píndaro não se ocultam,
nem as de Ceos, nem as de Alceu, minazes, nem as graves de Estesícoro,
e se algo outrora brincou Anacreonte, o tempo não deliu; até agora o amor ainda respira e
vivem os calores da menina Eólia confiados à sua lira.
A Lacedemônia Helena não foi a única que ardeu ao admirar os cabelos penteados do
adúltero e o ouro aplicado em suas vestes e o aprumo real e a comitiva;
nem foi Teucro o primeiro que atirou as flechas com o Cidônio arco nem só uma vez Ílio foi
assaltada; o ingente Idomeneu ou Esténelo não foram os únicos
que lutaram guerras que as Musas haveriam de dizer; nem o feroz Heitor nem o acre
Deífobo não foram os primeiros a receber graves golpes em prol das pudicas esposas e dos filhos.
Muitos homens fortes viveram antes de Agamêmnon; mas todos, sem ser chorados, são
oprimidos, ignotos, por longa noite, porque carecem de um vate sacro.
Pouco dista a virtude calada da sepulta inércia. Eu não me calarei deixando-te sem ornato
nos meus papiros nem permitirei que tantos trabalhos teus
impunemente, ó Lólio, pálidos oblívios colham: teu espírito é sábio nos negócios e reto nas
circunstâncias favoráveis e nas dúbias,
83
é vingador da avara fraude e isento da pecúnia que a si tudo arrasta, é cônsul não só de um
ano senão de tantas vezes em que bom e fiel como juiz
ao útil antepôs o honesto, rejeitou com vulto altivo propinas de criminosos, entre catervas
inimigas brandiu vitorioso suas armas.
Não se deve dizer que é feliz quem possui muito: com mais justiça adquire fama de ditoso
quem se afez a usar sabiamente os dons dos deuses
e a dura pobreza suportar e teme a ignomínia mais que a morte: este pelos caros amigos e
pela pátria não tem medo de morrer.
Nesta ode, como dissemos, Horácio continua a desenvolver o assunto da anterior: a
eternidade que a poesia, salvando-a do esquecimento, outorga à sua matéria. Agora,
contudo, o acento passa, da função ou papel da poesia como meio de eternização, para a
qualidade do eternizado como digno de tal, como se Horácio, dando a conhecer
publicamente, em 4, 8, o valor de seu monumento como obra que eternizasse uates e res,
focalizasse agora, em 4, 9, as qualidades que, nesta res, se julgaram dignas de tanto. Eis
porque os feitos de Lólio, o destinatário desta ode, receberão aqui, ao contrário dos de
Censorino na anterior, menção e até proeminência.
Cremos que se pode dividir esta ode em duas partes: na primeira, composta das sete
primeiras estrofes, o poeta nos oferece uma espécie de autobiografia poética, apresentando-
nos em seguida sua versão das gestas homéricas; na segunda, que se estende pelas restantes
seis estrofes do poema, o elogio de Lólio, ou antes de suas virtudes, passa a primeiro plano.
Eis como Putnam nos descreve as três primeiras estrofes do poema:
First, the heritage of the poet. In the speaker’s “autobiographical” self-placement, origin and
originality, the Aufidus and the artistry that ultimately stems from its precincts, each complements
each other. This birth takes form through synecdoche, in the words that are the poet’s self-
extension and that […] escape mortality
65
.
Glosando, pois, este trecho, diríamos que a novidade que o lugar de nascimento do poeta
representa na, por assim dizer, geografia dos seus predecessores – todos eles gregos –
reflete-se ou antes toma corpo nas palavras que ele emprega, ao mesmo tempo, para
descrever sua genealogia e, non ante uolgatas per artis (v. 3), alegar tal novidade. Atendo-
65
Op. cit., p. 160.
84
nos em particular, pois, à primeira estrofe, a persona, segundo nos parece sugerir o verso
recém-citado, pretende-se pioneira, em Roma, de um certo gênero de poesia – donde a
novidade, como vimos, que toma forma nas suas palavras. Qual é este gênero e sua
tradicional dignidade deduz-se de non interitura uerba quae loquor socianda chordis; trata-
se do gênero lírico, cuja eternidade o catálogo genealógico, digamos, que se estende pelas
duas estrofes seguintes, tratará de mostrar literalmente por argumento de autoridade.
O catálogo é simples: Homero, Píndaro, Simônides, Alceu, Estesícoro, Anacreonte e
Safo. De todos, apenas Homero não é poeta lírico; qual seria o motivo, então, da sua
presença nesta lista? Ora, talvez o motivo seja tão tradicional quanto a lista mesma: porque
Homero, certamente antes porém nominalmente na Poética de Aristóteles, era considerado,
mercê da própria antigüidade e primazia, o poeta por excelência, suas virtudes devendo,
pois, imitar-se, sempre que se mostrassem concordes com as prescrições do gênero, mesmo
que não fosse o épico, em questão
66
. Como quer que seja, Homero é tomado, pois, menos
como épico que como agenciador de canções que eternizam, isto é, como aquele que não
permitiu que as gestas, acidentalmente bélicas aqui, caíssem no esquecimento. Resolvido
este problema de como incluir um poeta não-lírico nesta genealogia, notemos então que é à
poetisa Safo, a última da lista, que se concede o maior número de versos e, no caso, o
tratamento mais privilegiado do catálogo. Ora, a Safo que se nos apresenta aqui não é outra
senão a da lírica amorosa (sprirat adhuc amor Aeoliae puellae); portanto, é justamente esta
espécie, ao que tudo indica, que a seqüência do poema tratará de privilegiar.
A quarta estrofe dá início a um tipo de versão horaciana da guerra de Tróia, e
conseqüentemente da Ilíada de Homero. E é bem o acento amoroso dos episódios aqui
narrados que os diferencia da narração homérica, algo como se o tópico da militia amoris,
que o mesmo Horácio, a propósito, usou em na ode 1, 6, Scriberis Vario, ao recusar o
gênero épico em prol do lírico, vv. 17-19: –
nos conuiuia, nos proelia uirginum
sectis in iuuenes uinguibus acrium
cantamus uacui […].
Nós os banquetes, as batalhas das acres virgens com as unhas metidas nos jovens,
cantamos desocupados [...].
66
Cf. Aristóteles, Op. cit., 1451a 23-30, p. 156.
85
– fosse precisamente o que lhe permitisse essa mudança, por assim dizer, de ponto de vista:
ou seja, exatamente a circunstância de tanto o amor, matéria da lírica, quanto o ódio,
matéria da épica, serem certo tipo de guerra tornaria possível que se oferecesse, como aqui
se oferece, uma versão lírica do épico de Homero. Não obstante, esta, digamos, pequena
história amorosa da guerra de Tróia é contada com um intuito muito preciso: realçar que a
poesia por que sabemos tais sucessos é a causa exclusiva de os sabermos, de modo que, diz
o poema, a pretensa exclusividade deles se deve totalmente a ela. Ou seja: não só Helena,
previsivelmente, ardeu por Páris, mas se apenas dela temos notícia a esse respeito isto se
deve exclusivamente à poesia que no-la deu. De Helena, pois, a lista se estende a
Agamêmnon, passando por Teucro, Idomeneu, Esténelo, Heitor e Deífobo. Eis senão que
na sétima estrofe Horácio nos oferece um remate gnômico do seu argumento: uixere fortes
ante Agamemnona/ multi; sed omnes inlacrimabiles/ urgentur ignotique longa/ nocte,
carent quia uate sacro. Não fossem os poetas, os varões ingentes (Idomeneu e Esténelo),
ferozes (Heitor), acres (Deífobo) e fortes por fim (Agamêmnon) cairiam em total
esquecimento – em outras palavras, as virtudes dignas de memória permaneceriam, sem
poetas que as cantassem, desconhecidas
67
.
Chegamos agora à segunda parte do poema, dedicada, como dissemos, às virtudes de
Lólio. Com efeito, dele diz-se ser homem de caráter ou coragem (animus), sábio (prudens),
justo (uindex fraudis) e temperante (abstinens pecuniae) – virtudes que sem dúvida o
caracterizam como digno de louvor, como homem mais preocupado com o bem público que
com a felicidade privada (iudex honestum praetulit utili) e portanto como eterno modelo de
estadista (consul non unius anni)
68
. Ora, que tais virtudes também o definam como sábio
estóico podemos afirmar ao comparar esta passagem com outra da já mencionada epístola
1, 1, vv, 16-19, mais o comentário de Porfirião a esta última:
67
Donde, num tempo sem virtudes, ser desnecessária a existência de poetas – pelo menos no sentido que
vimos de ver. Talvez seja também este o sentido que lhe dá Hoelderlin quando, na sétima elegia de Brot und
Wein, lamenta: “[...] wozu Dichter in dürftiger Zeit?”, “[...] para que poetas em tempo mesquinho?”
68
Cf. o comentário de Plessis e Lejay em Horace, Oeuvres. Texte latin. Publiés par F. Plessis et F. Lejay, 5
éd. révue. Paris, Hachette, 1912, p. 217: “Consulque non unius anni s’unit adjectivement à animus […].
Horace veut dire, de Lollius, qui ne fut consul qu’une fois (en 21 av. J. -C.), qu’il avait une âme consulaire,
qu’il était ‘consul dans l’âme’ […]”. Ou seja: o que se predica, nesta passagem, de Lólio, isto é, o ser ele
modelo de estadista, refere-se antes a seus dotes morais e, diríamos também, intelectuais que propriamente às
eventuais realizações do seu consulado. Estudaremos o ponto algo mais detalhadamente adiante, ajudados por
uma citação de Tácito sobre o desempenho político do mesmo Lólio.
86
nunc agilis fio et mersor ciuilibus undis,
uirtutis uerae custos rigidusque satelles;
nunc in Aristippi furtim praecepta relabor,
et mihi res, non me rebus subiungere conor.
Ora me torno ágil e mergulho nas ondas civis, guardião e rígido sentinela da verdadeira
virtude, ora furtivamente recaio nos preceitos de Aristipo, e tento não me submeter às coisas, mas
submetê-las a mim.
Inter Stoicam et Epicuream iactari se ait, et ideo se undis ciuilibus mergi dixit, quia Stoici
administrationem rei probant, Epicurei uoluptatem, unde furtim relabi se ad eam ait
69
.
[O poeta] diz que se move entre a [doutrina] estóica e a epicurista, e assim disse haver
mergulhado nas ondas civis porque os Estóicos aprovam a administração da coisa [pública] –
[mas] os Epicureus aprovam o desejo, donde ele diz que recaiu furtivamente nesta doutrina.
Segundo, pois, a interpretação já tradicional de Porfirião a esta passagem, a doutrina estóica
diferiria da epicurista porque nela o indivíduo se submete às coisas, na outra, porém, as
submete a si. Deste modo, a caracterização de Lólio, ou das suas virtudes, como estadista,
não poderia deixar de fazer-se segundo o modelo do sábio estóico, pois, segundo o mesmo
comentador, estes aprovam, como vimos, a administração da coisa pública, tarefa bem
apropriada, certamente, às vicissitudes das honores.
Finalmente, as duas últimas estrofes arrematam a descrição do sábio-estadista Lólio
com uma espécie de digressão sobre o que é a felicidade ou dita pessoal. Segundo o poeta,
feliz ou ditoso não seria o homem rico, senão quem usa sabiamente o que lhe dão os
deuses, ainda que lhe dêem pobreza; quem prefere a morte à infâmia, e conseqüentemente é
capaz de morrer pelos amigos e pela pátria. Que tal descrição da dita pessoal se faça,
portanto, segundo os atributos do animus, não segundo um específico e beatífico estado de
coisas, parece evidente, segundo o que vimos de notar a respeito destes atributos
70
. Deste
modo, haveria ainda estoutra diferença entre a épica e a lírica: enquanto a primeira se ateria
69
Op. cit., p. 317.
70
Note-se que antepor o cultivo da alma ao do corpo é também um conhecido tópico da doutrina estóica,
como nos mostra a seguinte passagem de Sêneca (Ad Lucilium 15, 3): Itaque quantum potes circumscribe
corpus tuum et animo locum laxa, “E assim o quanto possas limita o teu corpo e deixa lugar à alma”. Em: Op.
cit., p. 132.
87
principalmente às qualidades físicas (ingens, v. 19) ou dependentes da compleição física
(ferox, v. 21; acer, grauis, v. 22), relativas, bem entendido, ao corpus dos que escolhe
salvar do esquecimento, a última daria preferência, na sua forma horaciana, às qualidades
morais do animus (prudens, v. 35; rectus, v. 36; uindex, abstinens, v. 37; consul, v. 39;
iudex, v. 41). Ora, qual seria o motivo desta preferência numa ode que pretende elogiar
precisamente um homem de estado, um homem, portanto, de ação? Cremos que esta
passagem dos Anais de Tácito (1, 10), em que o historiador se refere, resumindo a carreira
política de Augusto, a uma derrota militar sofrida pelo mesmo Lólio, nos possa ajudar a
esclarecer o ponto:
Pacem sine dubio post haec, uerum cruenta: Lollianas Varianasque cladis, interfectos
Romae Varrones, Egnatios, Iullos
71
.
Sem dúvida houve paz depois disso [isto é, depois da morte de Marco Antônio], mas foi
sangrenta: houve as derrotas de Lólio e de Varo, foram mortos Varrões, Egnácios, Julos.
Se a carreira de Lólio, portanto, estava marcada por uma derrota que a pena de Tácito
não deixará de julgar, segundo parece, como infamante, nada mais natural, num elogio cujo
tom estóico aparentemente não deixa margem para ironia, que Horácio se concentrasse nas
virtudes morais – no caráter, em suma – do seu elogiado, atributos que, a despeito desta sua
derrota, haveriam de permanecer, ao parecer do poeta, imunes, intocados e, por meio da sua
poesia, doravante eternos.
5. 8. Ode 4, 14
Quae cura patrum quaeue Quiritium
plenis honorum muneribus tuas,
Auguste, uirtutes in aeuum
per titulos memoresque fastus
aeternet, o qua sol habitabilis 5
inlustrat oras maxime principum,
quem legis expertes Latinae
Vindelici didicere nuper,
71
Cf. Tacite, Annales, éd. et trad. Henri Goelzer, Paris, Belles Lettres, 1946, p. 12.
88
quid Marte posses. milite nam tuo
Drusus Genaunos, inplacidum genus 10
Breunosque uelocis et arces
Alpibus impositas tremendis
deiecit acer plus uice simplici,
maior Neronum mox graue proelium
conmisit immanisque Raetos 15
auspiciis pepulit secundis,
spectandus in certamine Martio,
deuota morti pectora liberae
quanti fatigaret ruinis,
indomitas prope qualis undas 20
exercet Auster Pleiadum choro
scindente nubes, inpiger hostium
uexare turmas et frementem
mittere equum medios per ignis.
sic tauriformis uoluitur Aufidus, 25
qui regna Dauni praefluit Apuli,
cum saeuit horrendamque cultis
diluuiem meditatur agris,
ut barbarorum Claudius agmina
ferrata uasto diruit impetu 30
primosque et extremos metendo
strauit humum sine clade uictor,
te copias, te consilium et tuos
praebente diuos. nam tibi quo die
portus Alexandrea supplex 35
et uacuam patefecit aulam,
Fortuna lustro prospera tertio
belli secundos reddidit exitus
laudemque et optatum peractis
imperiis decus adrogauit. 40
te Cantaber non ante domabilis
Medusque et Indus, te profugus Scythes
miratur, o tutela praesens
Italiae dominaeque Romae.
te fontium qui celat origines 45
Nilusque et Hister, te rapidus Tigris,
te beluosus qui remotis
obstrepit Oceanus Britannis,
te non pauentis funera Galliae
duraeque tellus audit Hiberiae, 50
te caede gaudentes Sygambri
conpositis uenerantur armis.
89
Que zelo dos Pais da Pátria ou dos Quirites com dádivas plenas de honra poderia eternizar
nos séculos, mediante inscrições e fastos mêmores, tuas virtudes, ó Augusto,
tu, o maior entre os primeiros onde quer que o sol ilumine habitáveis regiões? A ti os
Vindélicos isentos da lei Latina há pouco aprenderam
o que podes com Marte. Pois com teu exército o agro Druso em dobro abateu os Genaunos,
gênero indomável, e os velozes Breunos e as cidadelas incrustadas nos terríveis Alpes.
O mais velho dos Neros logo moveu dura batalha e com auspícios favoráveis rechaçou os
Retos bestiais,
digno de ver, no certame marcial, com quanta ruína fatigava peitos devotados a morrer livres
– quase como o Austro acossa as indômitas ondas,
quando a turba das Plêiades dilacera as nuvens –, intrépido em assaltar os exércitos dos
inimigos e em dirigir o corcel fremente em meio ao ardor do tumulto.
Tal como o tauriforme Áufido, que banha os reinos da Dáunia Apúlia, se revolve quando se
encoleriza e prepara horrenda enchente para os campos cultivados,
assim também Cláudio as férreas fileiras dos bárbaros desbaratou com ímpeto monstruoso,
e, ceifando os primeiros e os últimos, prostrou-os ao chão, vencedor sem baixas,
porque tu lhe forneceste as tropas, o plano e teus deuses. Pois no mesmo dia em que
Alexandria te escancarou, súplice, os portos e o palácio vazio,
a próspera Fortuna no terceiro lustro te trouxe bons sucessos de guerra e atribuiu louvor e
cobiçada glória às batalhas concluídas sob teu comando.
A ti o Cântabro antes indomável e o Medo e o Indo, a ti o prófugo Cita te admiram, ó atuante
proteção da Itália e de Roma senhoril.
A ti o Nilo, que esconde as origens das nascentes e o Istro, a ti o arrebatado Tigre, a ti o
Oceano pleno de monstros que ruge aos remotos Britanos,
a ti a terra da Gália, que não teme funerais, e da Ibéria, dura, te obedecem, a ti os
Sigambros, que se alegram com a matança, depostas as armas, te veneram.
Esta ode, escrita no metro de Alceu, só por isso possibilitaria comparação com 4, 4.
Acrescentando-se, pois, a circunstância de ambas serem elogios de Augusto por meio do
elogio de seus enteados, a comparação, antes apenas possível, torna-se quase inevitável.
Como vimos a propósito da primeira, os dotes naturais dos enteados de Augusto dependem,
para pleno desenvolvimento, da educação que o mesmo Augusto lhes propiciara. Na
segunda, a vitória militar dos filhos de Nero é subordinada às tropas (copias), ao plano
90
(consilium) e aos deuses (tuos diuos) que, quase como atributos do imperador, se lhes
transmitem como que por empréstimo. Assim como, na sétima estrofe de 4, 4, os
Vindélicos derrotados sentiram quanto o caráter de Augusto pode influir sobre Tibério e
Druso (sensere quid Augusti animus posset super Nerones), ou seja, experimentaram a
derrota que, mediante os enteados, lhes infringiu o próprio imperador, assim também este
povo, na terceira estrofe de 4, 14, dedicere quid Marte posses, isto é, aprenderam aquilo de
que Augusto, mediante os mesmos enteados, é capaz na guerra. Como se vê pelo verbo,
disco, usado por Horácio para descrever a reação dos Vindélicos ante a destreza militar que
os derrota, este poema também trata da educação, da relação entre doctrina e indoles.
Contrariamente, porém, a 4, 4, o acento desta ode não estaria na educação de indivíduos,
em Augusto que educa Tibério e Druso, senão na que todos os três, subordinados os
últimos ao primeiro, podem oferecer, como figuras públicas que são, a povos inteiros,
resgatando-os da barbárie. Esta ode, portanto, trata principalmente do papel civilizador de
Augusto e, com ele, de Roma, papel que não deixará de partilhar, como veremos,
precisamente daquilo contra o qual se volta
72
.
A ode divide-se em três partes. A primeira, que compreende as seis estrofes iniciais,
trata respectivamente, depois de um elogio a Augusto nas duas primeiras estrofes, da vitória
de Druso (a mesma de 4, 4) na seguinte e da vitória de Tibério nas demais. A segunda parte
estende-se da sétima à décima estrofe e é o centro do poema: compara-se aí a ação de
Tibério à do rio Áufido, que acabamos de ver nomeado em 4, 9, e procede-se a um elogio
das virtudes do princeps. Na terceira parte, que ocupa as três últimas estrofes, continua-se,
de maneira só aparentemente protocolar, o elogio a Augusto da seção anterior.
Desde logo, a pergunta inicial coloca-nos o problema de como eternizar
convenientemente as virtudes do princeps: que dádivas, que presentes seriam tão dignos
dessas virtudes, a ponto de poder eternizá-las? Ora, se nos lembrarmos do presente
oferecido a Censorino em 4, 8 e do elogio das virtudes de Lólio em 4, 9, a primeira resposta
que Horácio nos oferece aqui, contida na própria pergunta – per titulos memoresque fastus
72
Segundo Putnam, Op. cit., p. 239, nota 1, “Ode 14 is the least discussed poem of book 4. It has been studied
recently in detail only by Doblhofer (103-05). Fraenkel (Horace, 431-32) sees the poem primarily as
documentation for the constitutional position of Augustus vis-à-vis his stepsons. The ode is not mentioned by
Commager”. Ainda assim, nem mesmo o erudito americano, cujo trabalho tantas vezes citado aqui é o maior e
mais completo estudo recente do livro quarto das Odes de Horácio, parece ter percebido que neste poema,
como em 4, 4, Horácio também trata, lato sensu, da educação, embora, como se verá, de outro ponto de vista.
91
(v. 4) –, soará previsivelmente como falsa resposta. Como veremos pela estreita afinidade,
apenas esboçada, de 4, 14 com 4, 9 e, pois, com 4, 8 (lembremos que ambas tratam do
mesmo tema), o único meio que se mostrará digno das virtudes de Augusto há de ser a
própria poesia em que se coloca tal questão.
Contrariamente ao que sucedia em 4, 4, em que absolutamente não se descreviam as
batalhas ganhas por Druso, a descrição da vitória de Tibério ocupa duas estrofes inteiras, a
quinta e a sexta. Note-se, então, que os povos contra os quais combateu, primeiro Druso,
depois Tibério, recebem cada qual um qualificativo, também à diferença do que se dava em
4, 4: os Genaunos e os Breunos são, respectivamente, inplacidum genus (v. 10) e uelocis (v.
11); os Retos, que nos importam mais por terem sido exatamente os vencidos por Tibério,
são immanis (v. 15). Que tais qualificativos caracterizem, pois, estes povos, e sobretudo o
último, como suscetíveis de sofrer contenção, de ser domados, humanizados ou educados,
parece suficientemente claro. Voltando, pois, especificamente às estrofes
supramencionadas, eis como Porfirião, que, todavia, confunde Tibério com Druso no seu
comentário, as explicita:
Mirum a)nako/louqon. Cum enim praedixisset qualis, non intulit, quod erat consequens
talis, sed inpiger. Ergo sic totum intellegendum: Qualis est Auster cum ortu Pleiadum concitatus
exercet undas, tam inpiger Drusus hostium turmas uastabat
73
.
Admirável anacoluto. Pois, ainda que antes houvesse dito “tal”, [o poeta] não inferiu o “qual”
que era conseqüente, mas “intrépido”. O todo, portanto, se deve entender assim: Tal como o
Austro é agitado com o nascimento das Plêiades, assim intrépido Druso [isto é, Tibério] devastava
os exércitos dos inimigos.
Quase como (prope qualis, v. 20), portanto, o Austro acossa as indômitas ondas,
assim Tibério assalta as hostes inimigas. Notemos então que o advérbio prope não aparece
casualmente. Com efeito, enquanto ao vento se atribui o verbo exerceo (v. 21), a Tibério é
uexo que se atribui (v. 23). Ora, sabemos que o primeiro, além de “acossar”, pode significar
“cultivar” ou “amainar” – mas o segundo, via de regra, apresenta sentidos “negativos”,
73
Op. cit., p. 159.
92
ligados sempre à destruição ou desorganização de certa ordem
74
. O que tal comparação,
portanto, quereria dizer? Porventura que Tibério absolutamente não partilha do aspecto
pacificador que a conquista e humanização dos bárbaros traz em si, mas apenas e tão-
somente daquele que, pois de conquista se trata, é necessariamente destrutivo? Mas se
Tibério é aqui, e sobretudo, lugar-tenente do princeps, isto significaria que a ode trata do
lado “negativo” da ação civilizadora, e portanto educadora, de Roma, leitura esta reforçada
pela virtuosa caracterização dos Retos como deuota morti pectora liberae (v. 19), isto é,
como homens que preferem a morte à perda da liberdade? Assim parece, com efeito. Tanto
mais que, tal qual o terrível Aníbal, em 4, 4, é comparado a acampamentos em chamas e ao
Euro que cavalga sobre as ondas da Sicília (dirus per urbis Afer ut Italas/ ceu flamma per
taedas uel Eurus/ per Siculas equitauit undas, vv. 42-44), assim também Tibério, em 4, 14,
é, como acabamos de ver, comparado ao Austro. A semelhança de ambos os retratos se
torna então ainda maior quando percebemos que o futuro imperador, no último verso desta
primeira parte, é descrito como quem avança seu cavalo pelo meio do ardor do tumulto, isto
é, pelo meio do fogo (mittere equum medios per ignis, v. 24). Deste modo, o aspecto
devastador da ação civilizadora de Roma, aspecto que partilha, como dissemos, justamente
da violência que procura domar, não deixa de comparecer – sub-repticiamente, embora, por
meio do retrato de Tibério – a este elogio a Augusto e sua doctrina. Não obstante, isto
absolutamente não significa, segundo nos parece, qualquer tipo de identificação moral com
os inimigos, qualquer sentimento de piedade ou compaixão, mas sobretudo que a bravura
com que morrem enaltece, pelos obstáculos que cria, a bravura dos que os vencem
75
. Por
outro lado, conquanto a apreciação da violência de guerra não seja, segundo supomos,
74
Cf. Oxford Latin Dictionary, s. u. exerceo, respectivamente 2A e 3B e s. u. uexo, toda a abonação.
75
Note-se, a propósito, que isto a que chamamos aspecto devastador ou “negativo” da civilizadora conquista
romana talvez não soasse tão negativamente, pelo menos não tão negativamente como a nós nos soa, nem a
Horácio nem a seus contemporâneos. Com efeito, numa sociedade cujos padrões de julgamento e conduta, tão
diferentes dos nossos, antes aprovavam que condenavam a guerra, é possível que a violência e a destruição,
sua conseqüência inevitável, não parecessem tão funestas quanto nos parecem. Cf. a este respeito Nietzsche,
F., Jenseits von Gut und Böse, München, Walter de Gruyter, 2005, pp. 209-210: “Alles, was sie an sich kennt,
ehrt sie: eine solche Moral ist Selbstverherrlichung. Im Vordergrunde steht das Gefühl der Fülle, der Macht,
die überströmen will, das Glück der hohen Spannung, das Bewusstsein eines Reichthums, der schenken und
abgeben möchte: – auch der vornehme Mensch hilft dem Unglücklichen, aber nicht oder fast nicht aus
Mitleid, sondern mehr aus einem Drang, den der Überfluss von Macht erzeugt”, “A tudo o que reconhece em
si ela presta honras: uma tal moral é autoglorificação. Em primeiro plano está o sentimento de plenitude, do
poder que quer transbordar, a felicidade do grande interesse, a consciência da riqueza que se gostaria de
oferecer ou tomar: certamente o homem aristocrático ajuda o desditoso, mas nunca ou quase nunca por
compaixão senão antes por um ímpeto que a superabundância de poder produz”.
93
completamente negativa entre os romanos, isto não impede a um Horácio, como vimos, que
designe a mesma guerra, matéria da épica, de tristia bella no seu catálogo de gêneros e
espécies de poesia; nem tampouco que distinga, na aventura civilizadora de Roma, dois
aspectos que, a despeito do seu valor moral – isto é, a despeito de serem julgados como
positivos ou negativos, em termos morais –, podem ser descritos, um, como edificante (a
educação), outro, como destrutivo (a conquista).
Chegamos agora à segunda parte do poema, que, tal como acaba a anterior, começa
com um símile: assim como o Áufido tauriforme inunda os campos cultivados, assim
também Tibério ceifa os inimigos e os põe por terra. Como vimos em 4, 9, este é o rio a
cujas margens Horácio diz ter nascido. Portanto, a menção presente, como termo de
comparação com o desempenho militar de Tibério, pode nos remeter à menção passada, em
que o poeta nascido junto a este rio, non ante uolgatas per artis (v. 3), salvava do
esquecimento as virtudes de Lólio. Ademais, esta nova menção, ao lembrar-nos do poder da
poesia – que, como vimos, possui excelência por eternizar o que canta –, lembra-nos
sutilmente da questão inicial do poema, sugerindo-lhe uma resposta: um poema, em
particular esta espécie de poema lírico, que é a laudatória, é o melhor e único presente
realmente digno das virtudes do imperador. Tanto assim é, que as duas estrofes que se
seguem elogiam precisamente as virtudes que, passadas do paternus animus de Augusto a
seu enteado Tibério, foram as responsáveis pela vitória que aqui se celebra: como já
mencionamos, copias, consilium e diuos. A propósito, o costume de elogiar um general,
durante o principado, por meio de um seu lugar-tenente é-nos explicado por Fraenkel:
Under the new régime it was the Princeps to whom the auspicia belonged and who had the
supreme command of all troops in all Empire; he alone, with a few exceptions in special cases, was
entitled to the triumph. This state of affairs is perfectly reflected, in general, in the fact that Horace’s
triumphal ode for Drusus has no addressee and the ode for Tiberius is addressed to Augustus, and,
in particular, in the expressions milite tuo (9) and te copias, te consilium et tuos praebente diuos
(33-4)
76
.
76
Op. cit., pp. 431-432.
94
No caso específico de Tibério, que embora subordinado a Augusto também recebe um
panegírico, as virtudes guerreiras elogiadas são, no símile que inicia esta seção do poema,
tauriformis (v. 25), uasto... impetu (v. 30) e sine clade uictor (v. 32).
Além de 4, 9, esta passagem nos lembra também outra, de 4, 2, em que Horácio
compara a eloqüência de Píndaro a um rio, monte decurrens uelut amnis feruet Pindarus.
Não é à toa, portanto, que esta segunda parte de 4, 14 se estende ininterruptamente por
todas as quatro estrofes de que se compõe, isto é, por quase um terço do poema, donde
podermos dizer, uma vez mais, que a própria estrutura sintática mimetiza o que, por meio
de tal estrutura, o poeta procura dizer, constituindo-se em mais um notável exemplo de
como Horácio, sempre que se trata da lírica em sua forma específica de elogio, habilmente
se apropria da poesia pindárica, modelo máximo do gênero.
A respeito das três últimas estrofes do poema, que constituem a terceira e última
parte, ouçamos Doblhofer:
Die eigentliche Lob des Friedens, die letzten drei Strophen im feierlichen Hymnenstil, sind
ein kunstvolles Gewebe: zwischen zwei Völkerkatalogue ist ein Füssekatalog eingebettet. Die
Funktion dieser Kataloge ist nicht die herkömliche, sie ist in charakteristischer Weise modifiziert:
diese Völker und Flüsse werden nicht einfach als Besiegte aufgezählt, sondern sie bewundern
(miratur) und verehren (uenerantur) den Herrscher
77
.
O verdadeiro elogio da paz, as últimas três estrofes em estilo de hino festivo, é uma tessitura
engenhosa: entre dois catálogos de povos está imiscuído um catálogo de rios. A função destes
catálogos não é a tradicional, mas foi modificada de modo característico: estes povos e rios não
são descritos simplesmente como vencidos, mas admiram (miratur) e veneram (uenerantur) o
imperador.
Ou seja: segundo o erudito alemão, a função tradicional e protocolar dos catálogos de
povos e rios no panegírico de reis e generais é modificada por Horácio quando os descreve
não só como vencidos, senão também como devotos, em certo sentido, do imperador. Com
efeito, não nos parece que este toque, digamos, passional e quase religioso (uenerantur) da
descrição horaciana, em que os vencidos parecem capitular de corpo e, mais importante,
também de alma ante o vencedor, seja motivo suficiente para caracterizá-la como não-
77
Op. cit., p. 104.
95
tradicional. Mais importante que isto nos parece a circunstância de ser precisamente os
Sigambros – os mesmos que, em 4, 2, Horácio imagina capturados e conduzidos a Roma
por um Augusto em procissão solene – o povo que, nos últimos dois versos da ode, aparece
de armas depostas venerando o imperador, circunstância esta que, mais que a suposta
renovação de catálogos tradicionais, nos parece dar ao elogio de Augusto um quê de novo e
inusitado. Mas como? Precisamente porque, no tempo decorrido no interior do próprio livro
à medida que as odes se sucedem, o que era imaginação do futuro ter-se-ia tornado, neste
que é o penúltimo poema, celebração presente. Nas palavras de Putnam:
In the course of Horace’s book the future has become present, the Sygambri have been
conquered, Augustus has been lured home by the poet’s words, and Roman epic militarism has
been tamed to Horace’s lyric hymn
78
.
Nós, por nosso turno, não iríamos tão longe a ponto de dizer, desta ode, que o
belicismo épico nela deu totalmente lugar à celebração lírica. Parece suficientemente claro,
pela análise que fizemos, que a doctrina Augusta, ou seja, que a missão civilizadora e
educadora da Roma de Augusto absolutamente não foi tratada, nesta ode, com parcialidade:
ambos os lados da empreitada, a humanização e a dizimação dos povos conquistados,
parecem, aqui, ter sido contemplados – sem que isto necessariamente implique, como
vimos, um juízo que reprove, ou reprove de todo, esta mesma dizimação. Que a ode, no
entanto, termine com um tom festivo de celebração, como prelúdio da completa festa que é,
sem dúvida, o epílogo 4, 15, não nos parece enfim razoável negar.
5. 9. Ode 4, 15
Phoebus uolentem proelia me loqui
uictas et urbis increpuit lyra,
ne parua Tyrrhenum per aequor
uela darem. tua, Caesar, aetas
fruges et agris rettulit uberes 5
et signa nostro restituit Ioui
derepta Parthorum superbis
postibus et uacuum duellis
78
Op. cit., pp. 253-254.
96
Ianum Quirini clausit et ordinem
rectum euaganti frena licentiae 10
iniecit emouitque culpas
et ueteres reuocauit artis,
per quas Latinum nomen et Italae
creuere uires famaque et imperi
porrecta maiestas ad ortus 15
solis ab Hesperio cubili.
custode rerum Caesare non furor
ciuilis aut uis exiget otium,
non ira, quae procudit ensis
et miseras inimicat urbis; 20
non qui profundum Danuuium bibunt
edicta rumpent Iulia, non Getae,
non Seres infidique Persae,
non Tanain prope flumen orti;
nosque et profestis lucibus et sacris 25
inter iocosi munera Liberi
cum prole matronisque nostris
rite deos prius adprecati
uirtute functos more patrum duces
Lydis remixto carmine tibiis 30
Troiamque et Anchisen et almae
progeniem Veneris canemus.
Querendo cantar guerras e vencidas cidades com a lira Febo me repreendeu: que não
lançasse pequenas velas pelo mar Tirreno. Tua era, ó César,
aos campos devolveu ricas searas, e os baluartes arrancados aos soberbos pórticos dos
Partos restituiu ao nosso Jove, e vazio de guerras
fechou o [templo] de Jano Quirino, e pôs freios à licenciosidade que escapava à reta ordem,
remitiu as culpas e restabeleceu as antigas artes
por que o nome Latino e os Ítalos vigores cresceram e a fama e majestade do império se
estenderam ao nascimento do sol desde onde se deita.
Sendo César o guardião do Estado, nem furor civil ou violência expulsarão o ócio, nem a ira,
que forja espadas e faz inimigas cidades infelizes;
nem os que bebem o profundo Danúbio romperão os editos Julianos, nem os Getas, nem os
Seres, nem os Persas traiçoeiros, nem os nascidos às margens do rio Tanaide.
E nós, nos dias profanos e nos sagrados, entre os dons do jocoso Líber com a prole e com
nossas matronas, tendo antes rogado aos deuses segundo o rito,
97
os generais que lutaram com coragem e Tróia e Anquises e a progênie da alma Vênus,
acompanhando a canção com flautas Lídias, segundo o costume dos pais
79
cantaremos.
Já a primeira estrofe apresenta-nos uma ambigüidade: ao poeta, querendo cantar com
a lira, Febo repreende, ou repreende-o com a lira? Os antigos, conforme indicam
respectivamente os comentários de Porfirião e Pseudo-Acrão, parece que liam do primeiro
modo:
Non lyra increpuit, sed uolentem me proelia lyra loqui, id est: lyrico carmine
80
.
Não “increpou com a lira”, mas “querendo eu com a lira dizer as batalhas”, isto é, com um
poema lírico.
Non lyra increpuit, sed uolentem me proelia lyra loqui, quod est lyrico carmine, Phoebus
increpuit (ex Porph.) [...]
81
.
Não “increpou com a lira”, mas “querendo eu com a lira dizer as batalhas”, ou seja, com um
poema lírico, “Febo increpou” [...].
Já os modernos, como se vê, por exemplo, na tradução portuguesa de Elpino Duriense e na
italiana de Mario Ramous, tendem a ler do segundo:
Cantar querendo eu guerras, e vencidas
Cidades, me increpou com a lira Febo [...]
82
.
Febo, quando volli parlare di bataglie
79
Seguimos aqui a leitura de Putnam, que more patrum antes ligado a canemus que a uirtute functos duces.
Com efeito, conquanto esta ligação seja mais tortuosa e menos natural, ela tem a vantagem de, assim
constituída, fazer menção a um antigo gênero autenticamente romano de elogio dos homens ilustres, que
Horácio explicitamente, como veremos adiante, estaria renovando aqui. Como quer que seja, é mister
reconhecer que uma leitura mais direta ligaria more patrum a uirtute functos duces, o que, de resto, não
impede nunca que também se ligue a canemus. Cf., por exemplo, a tradução italiana de Mario Ramous:
“cantaremo come i nostri avi un inno,/ che si accompagna al flauto lidio, i condottieri/ vissuti per la patria e
Troia, Anchise/ e i discendenti di Venere feconda”. Em: Q. Orazio Flacco, Le Opere, a cura di Mario
Ramous, Milano, Garzanti, 1988, p. 599.
80
Op. cit., p. 160
81
Op. cit., pp. 372-373.
82
Cf. Horácio, Obras Completas, trad. Elpino Duriense, José Agostinho de Macedo, Antônio Luiz de Seabra
e Francisco Antônio Picot, São Paulo, Edições Cultura, 1941, p. 118.
98
e città vinte, mi ammoní con la sua lira [...]
83
.
Mas não seria o caso de supor que lyra, no ablativo, seja literalmente instrumento comum a
Febo e ao poeta? Assim nos parece, com efeito. O deus, portanto, ao poeta que quer cantar
com a lira, com a mesma lira adverte e repreende, o que já de início nos coloca no campo
da conveniência, do decoro poético, de uma discussão sobre o quê e como a lira, metonímia
de lírica simplesmente, deve ou não deve tomar por matéria de canto. Esta ode, pois, última
do livro e da carreira do autor, é ao mesmo tempo recusa, meta-ode e peroração. Eloqüente
resumo das que a precederam.
Cada leitura do termo lyra, verossimilmente, implica diferente leitura do poema como
um todo. No primeiro caso, isto é, lendo como os antigos, seria esta uma recusa, digamos,
das “componentes bélicas” do gênero lírico, o que nos levaria a um terreno precisamente
intragenérico, em que somente a lírica, suas espécies e, no sentido que lhes dá Cairns,
sobretudo seus elementos secundários
84
seriam discutidos. No segundo – como, por
exemplo, na já aludida 1, 6, Scriberis Vario –, a ode seria, ao recusar o gênero épico, um
tipo de afirmação ou defesa do lírico, e, portanto, tratar-se-ia de discutir aqui os limites,
intersecções e em suma a confinidade de ambos os gêneros, colocando-nos num terreno,
pois, intergenérico. Ora, tais leituras, como no exemplo acima, nos parecem antes
complementares que excludentes. Como procuraremos mostrar, esta ode, como epílogo que
é da carreira lírica do autor, discutiria tanto o lugar da lírica em relação à épica quanto, no
interior daquela, o lugar, grosso modo, do elogio da guerra e do elogio da paz.
Segundo vimos a propósito de 4, 9, que nos mostrava algo como uma versão lírica das
gestas homéricas, a circunstância de tanto o amor e quanto a ira serem, cada um a seu
modo, certo tipo de guerra é precisamente o que nos permitia, como nos permite agora,
classificar lírica e épica como gêneros confins. Se assim é, a leitura, digamos, antiga dos
83
Op. cit., p. 597.
84
Cf. Cairns, F., Generic Composition in Greek and Roman Poetry, Edinburgh, Edinburgh University Press,
1972, p. 6: “For the purposes of analysis every genre can be thought of as having a set of primary or logically
necessary elements which in combination distinguish that genre from every other genre. […] As well as
containing the primary elements of its genre every generic example contains some secondary elements
(topoi). These topoi are the smallest divisions of the material of any genre useful for analytic purposes. Their
usefulness lies in the fact that they are the commonplaces which recur in different forms in different examples
of the same genre. They help, in combination with the primary elements, to identify a generic example. But
the primary elements are the only final arbiters of generic identity since any particular individual topos
(secondary element) can be found in several genres”.
99
dois versos iniciais, por nós condicionada a uma discussão intragenérica, poderia referir-se,
considerando o exemplo de 4, 9, justamente a versões líricas de gestas épicas. É importante
então observar que, ao mencionar tais versões, não designamos com isso nenhuma espécie
lírica propriamente dita, senão aqueles elementos ou topoi secundários que, presentes, no
caso, na segunda espécie mais elevada do gênero – isto é, o encômio ou elogio dos heróis –,
realçam as virtudes guerreiras do elogiado. Em outras palavras, este poema, segundo tal
leitura, não recusa certa espécie lírica em prol de qualquer outra, mas, no interior do
encômio, isto é, mais exatamente, de um elogio a Augusto, recusa-lhe o elogio como
príncipe da guerra para o elogiar como guardião da paz (custode Caesare non furor ciuilis
exiget otium). Levando a análise ao fim da primeira estrofe, o próprio parentesco da matéria
bélica, ainda que liricamente considerada, com o gênero épico confirma sua precedência,
em dignidade poética, sobre as não-bélicas, donde o significado de ne parua Tyrrhenum per
aequor uela/ darem (vv. 3-4) se preservar intacto, quer se trate de discussão intra ou
intergenérica: tanto o elogio dos feitos de guerra é mais elevado que o dos feitos de paz
como é a épica em relação à lírica.
Lida, porém, à maneira moderna, a estrofe – e a ode toda – é uma variação da
tradicional recusatio de um gênero por outro, dentre cujos ilustres precedentes se destaca,
particularmente relacionado a esta passagem, um trecho do elegíaco Propércio (3, 3, vv. 13-
20):
Cum me Castalia speculans ex arbore Phoebus
sic ait aurata nixus ad antra lyra:
Quid tibi cum tali, demens, est flumine? quis te
carminis heroi tangere iussit opus?
non hinc ulla tibi speranda est fama, Properti:
mollia sunt paruis prata terenda rotis,
ut tuus in scamno iactetur saepe libellus,
quem legat exspectans sola puella uirum
85
.
Quando, olhando-me da árvore da Castália, Febo assim diz ao pé da gruta, apoiado na
dourada lira: “O que tens que ver, ó demente, com tamanha correnteza? Quem te mandou tocar o
gênero do poema heróico? Daqui fama alguma deves esperar, Propércio: suaves prados devem-se
trilhar com pequenas rodas, para que se deixe amiúde no banco o teu livrinho, que a jovem leia só,
esperando pelo amante”.
85
Cf. Propercio, Elegías, ed. Francisca Moya y Antonio Ruiz Elvira, Madrid, Cátedra, 2001, p. 408 ss.
100
Pelas semelhanças que possui com a primeira estrofe de 4, 15, a passagem de Propércio é
especialmente esclarecedora. Em primeiro lugar, porque também se trata, como se vê, de
recusa do gênero épico. Depois, porque esta recusa, lá como aqui, é lavrada em termos tais
que ninguém senão o próprio Febo, deus da poesia, repreende o poeta ou o dissuade de
embarcar em aventura épica. Quanto às diferenças, também esclarecedoras, note-se que a
grandeza da elocução épica (tali flumine), em Propércio, é trocada por matéria mais
conveniente à elegia, a saber, matéria amorosa (mollia prata). No caso de Horácio, porém,
a matéria continua aparentemente a mesma, antes e depois da recusa: tua Caesar aetas.
Ora, se assim é, o que poderia justificar a alegada inadequação do engenho lírico para tratar
de assunto que, supostamente épico e portanto superior às suas forças, ainda assim é tratado
segundo as mais rigorosas leis do decorum, isto é, adequando-se quem diz e como diz ao
que se diz? Segundo nos parece, o assunto, embora o mesmo, sofre mudança de foco: se o
engenho lírico não está à altura de cantar as gestas de Augusto, o que importaria em
compor outra Eneida, ele pode, não obstante, sem prejuízo do decorum, elogiar as virtudes
de quem as levou a efeito. Em outras palavras, o engenho lírico, em vez de compor uma
epopéia, que acentua as façanhas do herói, comporá um encômio, cujo acento está no
caráter, nas virtudes heróicas de quem as realizou.
Já no estudo da primeira estrofe, pois, vê-se o quanto a leitura que designaremos
“complementar”, por abordar o aspecto intra como o intergenérico desta ode, pode ser
profícua em resultados. Com efeito, acabamos de ver o que a recusa do gênero épico pelo
lírico coloca em jogo – a saber, uma mudança de foco no interior do mesmo assunto, o
qual, liricamente considerado, privilegia menos o feito que o caráter de quem o fez.
Acrescentando-se a isto a circunstância de a recusa, por assim dizer, das componentes
bélicas do encômio nos levar à consideração de outros elementos secundários da espécie,
temos como resultado possível o elogio, não propriamente dos feitos de paz, senão das
virtudes que, em Augusto, propiciaram esta paz; numa palavra, temos a ode 4, 15.
Depois desta já longa discussão em torno da recusatio, consideremos o aspecto
metalingüístico do poema. Para tanto, diga-se desde já que a ode se divide em duas partes
iguais, de quatro estrofes cada uma. Não por acaso, num poema que trata da renovação de
101
antigos costumes, essas partes se referem, respectivamente, ao passado e ao futuro: ao que
idade de Augusto realizou e à canção que se lhe fará.
Como se vê pelos verbos de que Horácio lança mão – rettulit (v. 5), restituit (v. 6),
clausit (v. 9), iniecit (v. 11) e reuocauit (v. 12) –, três das cinco realizações descritas são
ressurgências de um passado então desprezado ou esquecido. O resgate do antigo, portanto,
combina-se com o inaudito. Detenhamo-nos, contudo, nos versos que resumem tais
façanhas: et ueteres reuocauit artis,/ per quas Latinum nomen et Italae/ creuere uires
famaque et imperi/ porrecta maiestas (vv. 12-15). Em primeiro lugar, note-se que, à
medida que a sentença avança, passamos do Lácio à península Itálica e finalmente a todo o
império: as artes, pois, que a era de Augusto restabeleceu são as responsáveis pela glória
universal de Roma, por seu domínio sobre o orbe. São estas artes, não exatamente os efeitos
de seu restabelecimento, que se elogiam na passagem. Mas afinal de que artes se trata aqui?
Segundo o comentário de Pseudo-Acrão:
In his quattuor uirtutibus ueteres uitae artes esse dicebant: prudentia, iustitia, fortitudine et
temperantia. Per has omnem politiam constare uoluerunt
86
.
Diziam que as antigas artes da vida estavam nessas quatro virtudes: prudência, justiça,
coragem e temperança. Desejaram que todo governo consistisse delas.
De acordo, pois, com o escoliasta, as artes, elogiadas aqui, responsáveis pela grandeza de
Roma, são precisamente certas virtudes. Não há, com efeito, referência explícita, no poema
de Horácio, a tais virtudes: apenas se menciona a instauração da paz (clausit Ianum) e, em
termos não muito específicos, as reformas de cunho moral do imperador (iniecit frena
licentiae). Como quer que seja, é possível que tais reformas, justamente pelo cunho que
tiveram, se interpretem como o restabelecimento de certas virtudes, e a própria
circunstância de Pseudo-Acrão o ter feito sugere que nossa hipótese, segundo a qual
encômio é antes elogio de virtudes que de feitos, é plausível e já tradicional.
Quanto à segunda parte do poema, em que, sob a guarda de Augusto, se imagina um
futuro de paz (custode rerum Caesare non furor/ ciuilis aut uis exiget otium, vv. 17-18),
destacam-se as duas estrofes finais. Nelas o poeta descreve o futuro em que, nos dias
86
Op. cit., p. 374.
102
comuns e nos festivos (profestis et sacris), ele e sua família cantarão os generais de provada
coragem (duces uirtute functos) e a progênie de Vênus (progeniem Veneris). Em primeiro
lugar, convém observar que a voz do poeta se mistura e como que se dilui num canto
comum, em que toma parte uma das figuras mais tradicionais e venerandas da sociedade
romana, a matrona (cum matronis nostris). Deste modo, o canto mostra-se rigorosamente
concorde com as reformas e resgates de Augusto, estudados há pouco. Nas palavras de
Putnam:
The origins of Rome, at the poem’s conclusions, are complemented by reference to the
initiation of communal lyric practice, and the Augustan renewal, in the hands of Horace, has its own
poetic revivals and new beginnings. The poet is the agent of both transformations, lending the
power of his own imaginative originality to his version of Augustus ethical fresh start. […] Never in
Horace do content and means of expression complement each other as profoundly as in this poem.
He is to poetry what Augustus is to Roman political institutions, but the final power to perpetuate
Augustus by imaginative reinvention lies with the verbal, not the political, artist
87
.
Mais uma vez, não concordaríamos com Putnam a ponto de dizer que o poeta, neste poema,
teria total precedência sobre o imperador no que toca à eternização de ambos; antes parece-
nos haver aqui fusão completa, poesia e política agindo reciprocamente em prol, diga-se,
deste bem que lhes é comum: a eternidade. Com efeito, se Augusto não os tivesse realizado,
como Horácio mimetizaria, em domínio poético, suas reformas e resgates políticos? Não
obstante, pois que de poesia se trata, a última palavra, certamente, permanece com o poeta;
o que alegamos é tão-só que as virtudes de Augusto, por si sós e sua manifesta grandeza,
merecem de pleno direito a eternidade poética que ora recebem
88
. Dando seqüência à
comparação, assim como as artes responsáveis pela grandeza política de Roma foram,
como vimos, restabelecidas e renovadas, assim também a responsável por sua grandeza
87
Op. cit., p. 281.
88
Cf. a este respeito a opinião de Plínio o Moço (Epístolas 5, 8, 1), para quem o historiador, que nisto se
assemelha ao poeta, não permite que pereçam as coisas dignas de eternidade: Suades ut historiam scribam, et
suades non solus: multi hoc me saepe monuerunt et ego uolo, non quia commode facturum esse confidam (id
enim temere credas nisi expertus), sed quia mihi pulchrum in primis uidetur non pati occidere, quibus
aeternitas debeatur, aliorumque famam cum sua extendere, “Persuades-me a que escreva história, e não
sozinho o fazes: muitos amiúde mo incentivaram, e eu o quero, não porque confie que o farei facilmente (pois
temerariamente o crerás, se o não tiver comprovado), mas porque me parece sobremaneira belo não permitir
que morram as coisas a que se deve eternidade, e aumentar com a própria a fama alheia”. Em: C. Plini Caecili
Secundi Epistularum Libri Decem, ed. R. A. B. Mynors, Oxford, Clarendon Press, 1988, p. 146.
103
poética, de que esta ode se quer novo exemplo, é resgatada e projetada no futuro. Deste
modo, Horácio termina esta ode com um toque metalingüístico; mas que arte, que espécie
de poema ter-se-ia resgatado aqui, e qual seria o seu assunto? Eis, a propósito, uma
surpreendente passagem de Cícero (Tusculanas 1, 2):
Sero igitur a nostris poëtae uel cogniti uel recepti. Quamquam est in Originibus solitos esse in
epulis canere conuiuas ad tibicinem de clarorum hominium uirtutibus, honorem tamen huic generi
non fuisse declarat oratio Catonis, in qua obiecit ut probrum M. Nobiliori, quod is in prouinciam
poëtas duxisset
89
.
Tarde, portanto, os poetas foram conhecidos ou acolhidos por nós. Conquanto esteja nas
Origens que os convivas costumavam, nos banquetes, cantar à flauta sobre as virtudes dos
homens ilustres, o discurso de Catão declara que este gênero não tinha boa fama: no discurso
Catão censura Marco Nobílior como ímprobo porque tinha levado poetas à província.
Como dissemos, a passagem é surpreendente. Quando menos, porque a descrição que
Cícero, apoiado nas Origens de Catão, o Censor, nos oferece de um suposto gênero
autenticamente romano de poesia laudatória
90
é surpreendentemente conforme à que
Horácio nos dá na última estrofe desta ode: duces uirtute functos more patrum canemus
carmine remixto Lydis tibiis. Uma espécie genuinamente romana de elogio, que canta a
muitas vozes as virtudes dos homens ilustres, é, pois, precisamente o que Horácio resgata e
renova.
Mas como, afinal, se daria tal renovação? Segundo nos parece, sobretudo pela
componente especificamente grega (Lydis tibiis) que Horácio lhe acrescenta, ausente, como
é provável, da tradição romana original. Ou seja: ao re-elaborar um costume genuinamente
romano segundo padrões gregos de excelência poética isto é, segundo o duplo exemplo,
constante no decorrer de todo o livro, de Píndaro e de Calímaco Horácio cumpre nada
mais nada menos que a promessa feita, como vimos, em 3, 25, quando se referia a um
futuro elogio de Augusto: dicam isigne, recens, adhuc/ indictum ore alio (vv. 7-8). Assim,
a novidade do programa lírico de Horácio apresenta-se aqui, nas últimas estrofes de 4, 15,
89
Cf. Cicero, Tusculan Disputations, edited and translated by J. E. King, em: Loeb Classical Library, London,
Harvard University Press, 1989, p. 4.
90
Cf., sobre a existência deste gênero especificamente romano de elogio, Momigliano, A. M., “Perizonio,
Niebuhr and the Character of Early Roman Tradition”, em: Journal of Roman Studies, 47, 1957, pp. 104-114.
104
de maneira nítida e exemplar: nova matéria (a idade de Augusto) e novos modos de
expressão (canção romana concebida e composta em termos gregos, segundo os quais ela se
classifica como encômio e se pretende poeticamente à altura de seus modelos). Que tal
novidade da matéria e da expressão tenha fundas raízes no passado é sinal de erudição e
mestria, não – pelo menos não no caso de Horácio – de repetição mecânica e obediência
servil.
Até agora, consideramos o poema como recusa e meta-ode respectivamente. Falta
considerá-lo, ainda que mui brevemente, como peroração, como selo, enfim, da carreira
lírica do autor. Senão vejamos.
Comparado com 3, 30, o epílogo da primeira coletânea, 4, 15 apresenta-se com
pretensões bem mais modestas: é celebração presente e futura, não orgulhoso balanço do
passado. O poeta soberbo e altivo que se gabava de ter erigido um monumento eterno é,
pois, substituído por uma voz que canta acompanhada da família, numa eternidade que não
se afirma poeticamente considerando o passado, mas projetando o canto no futuro.
Ademais, o que antes era auto-elogio direto torna-se, quando muito, oblíquo agora, à
medida que o acento das últimas estrofes está na celebração (inter iocosi munera Liberi, v.
26) e nos celebrados, não no celebrante. Elogio, se algum há, ao que quer que não seja tua,
Caesar, aetas, é a tal ponto pôr em destaque a lírica perenemente festiva e elogiosa que se
criou neste livro, que a última palavra da ode, súmula de todas as odes anteriores, não é
deus, nem rex, nem uictor, nem amor, nem uinum: é canemus.
6. Possíveis conclusões
A esta altura, depois de estudados os testemunhos antigos sobre os quarto livro das
Odes, a doutrina greco-latina de gêneros e espécies da poesia, em geral, da lírica, em
particular, exemplos de lírica laudatória tirados da primeira coletânea do autor e, last not
least, os poemas laudatórios da sua última, convém que se resuma, agora, nosso percurso, a
ver se uma visão de conjunto, digamos, do trabalho nos sugere certas constantes a que
chamaremos, não simplesmente conclusões, o que seria temerário, senão, mais
humildemente, conclusões possíveis.
105
Na segunda seção deste trabalho, como vimos, consideramos os valiosos testemunhos
antigos que contêm informações sobre o quarto e último livro de odes de Horácio e
felizmente se nos conservaram: uma Vita Horati de Suetônio, e os comentários de Porfirião
e Pseudo-Acrão. Ao analisá-los, pudemos perceber que a opinião do primeiro, segundo
quem Horácio fora coagido a compor o dito livro, provavelmente se derivava de, no
mínimo, apressada inferência, ligando sem mais uma suposta ordem imperial a que se
compusessem três poemas – a saber, as odes 4, 4; 4, 14; e o Carmen Saeculare – à
confecção de todo um livro composto de quinze. Legítima ou não, o fato é que a inferência
de Suetônio, cujo tom de censura não deixa de se fazer sentir quando aprecia o livro como
obra de encomenda, foi literalmente apropriada pelos escoliastas, que reproduzem a mesma
seqüência lógica e até o vocabulário do historiador. Ora, em primeiro lugar, ainda que se
tratasse de obra de encomenda, isto não seria o bastante para, independentemente de toda
leitura, considerar a coletânea como necessariamente inferior à antecedente. Ademais, se,
como vimos na terceira seção acima, as espécies laudatórias da lírica são poeticamente mais
elevadas que as demais – e se o conhecimento desta circunstância não poderia ter faltado,
nem a Suetônio, nem aos escoliastas, como leitores que foram da obra do poeta –, seria
natural que um livro em que tais espécies predominam, como o livro quarto, também fosse
tido por poeticamente elevado e superior. Portanto, o tom de condenação e censura,
presente nos testemunhos de que dispomos, só pode referir-se à suposição de ser o livro
obra de encomenda, suposição esta que, por um lado, é fruto de apressada e duvidosa
inferência, por outro, não é o bastante para, de antemão, condenar no todo ou em parte
qualquer produção artística.
Na terceira seção traçou-se um tipo de genealogia, digamos, do catálogo de gêneros e
espécies de poesia que Horácio nos oferece na Arte Poética. Segundo pudemos observar –
referindo-nos particularmente ao gênero lírico e suas espécies –, este catálogo mostrou-se
hierarquicamente aristotélico, genericamente platônico e materialmente alexandrino. Ou
seja, considerando, primeiramente, excertos da Poética de Aristóteles e comparando-os
com o catálogo de Horácio, viu-se que o princípio que presidia à hierarquização de todos os
gêneros e espécies de poesia era, em ambos, precisamente o mesmo: quanto mais digna a
matéria, isto é, o assunto de determinado poema, mais digna a elocução, persona e portanto
gênero ou espécie. Concluímos daí que no interior da lírica as espécies estavam organizadas
106
em nível decrescente, passando das laudatórias, que eram as mais elevadas (hinos,
encômios e epinícios respectivamente), à amorosa e enfim à convivial. Esta conclusão, de
resto, nos importava diretamente: o quarto livro é eminentemente laudatório e, pois, como
acabamos de ver, poeticamente elevado. Depois disso, estudamos um trecho de Platão
referente ao denominava de mousiké, e o catálogo do alexandrino Proclo conservado na
enciclopédica Biblioteca de Fócio. Voltando, em seguida, ao catálogo de Horácio, pudemos
perceber que aquilo que unificava as espécies líricas no interior do mesmo gênero não
podia ser coincidência métrica nem temática que tais espécies estavam longe de possuir: tal
como na lista de Platão, em que todas as espécies nomeadas recebiam a rubrica de mousiké
por serem cantadas em tais e tais circunstâncias, isto é, por partilharem da mesma
estratégia, musical e verbal, de composição e execução, assim também, no catálogo de
Horácio, conquanto este caráter musical já houvesse então desaparecido, era a coincidência
de estratégias escritas de composição o que lhe permita classificar como líricas espécies de
temas e metros tão diferentes entre si. Ademais, comparando-o com o catálogo de Proclo,
observamos que todas as espécies mencionadas por Horácio apareciam ali nominalmente,
divididas, porém, estranhamente para nós, em elogio aos deuses, aos homens, a ambos e a
circunstâncias eventuais. Então, para que pudéssemos compreender melhor o princípio que
presidia à classificação de Proclo, foi-nos preciso recorrer a estudos modernos sobre o
tema, em particular o de Guerrero: o que nos permitiu observar que, para os alexandrinos,
embora as espécies líricas fossem formas escritas de poesia, o princípio que as classificava
como tais era sua antiga forma oral, ligada a circunstâncias específicas de execução. Assim,
segundo o mesmo estudioso – eis o que mais nos importa –, teria sido Horácio o primeiro
poeta a transformar não só as estratégias de composição do gênero lírico, que para os
alexandrinos já eram escritas, senão a classificar as espécies do gênero segundo as mesmas
estratégias escritas de sua composição.
Os conceitos retórico-poéticos identificados na terceira seção foram logo em seguida
aplicados e desenvolvidos na quarta, em que estudamos três exemplos de lírica laudatória
da primeira coletânea de Horácio: 1, 2; 2, 19; e 3, 25. Segundo nos parece, tal aplicação
mostrou-se profícua, quando menos, porque logrou desvelar a matéria, o grau de elevação,
o estilo, a persona, os topoi secundários e enfim atribuir uma espécie à ode, no caso, ou
hino, ou encômio. Além do mais, seguindo nisto a tese de Porter, cremos haver
107
selecionado, dentre os poemas laudatórios possíveis, aqueles que representavam as
principais linhas-de-força da coletânea, aqueles que acompanhavam o desenvolvimento
geral de temas, metros e estilos dos três primeiros livros. Resumindo as três odes estudadas,
vimos primeiramente que o elogio de Augusto em 1, 2, em que o poeta o imagina como
possível encarnação de Mercúrio, parecia pedir um basta à vingança e à guerra civil, e
também possivelmente, pela característica própria deste deus, o estabelecimento de um
consenso entre os romanos. Por fim, ao tratar vingança e fratricídio como ímpios, a adesão,
nesta ode, da persona de Horácio ao princeps e sua ars nos pareceu ambígua ou mesmo
parcial, embora a posição da ode, a segunda da coletânea, nos leve a supor que seja o
principal testemunho do poeta ao imperador e sua política. Já em 2, 19, um hino a Baco,
vimos um poeta que recebia inspiração divina para poder tratar convenientemente, em
termos poéticos, da sua matéria: o mesmo deus que lhe concedera tal inspiração. Este
mesmo modelo, pois, se repetiu em 3, 25, também um hino a Baco, à diferença de que a
inspiração, agora, é pedida, não para cantar o deus, mas compor um futuro elogio do
imperador. Ou seja: de uma adesão hesitante e parcial – porém inequívoca – ao princeps e
sua era, passamos a uma exaltação da inspiração báquica como meio de elevar o engenho,
isto é, de torná-lo apto a cantar matéria elevada e em regra superior às suas forças e, enfim,
à instituição de um futuro “programa laudatório”, digamos, do imperador, em que,
patrocinado por Baco, o poeta se torna digno de, futuramente embora, o elogiar. Tal
programa, em que a adesão do poeta à sua matéria de canto há de ser direta e mais ou
menos irrestrita, está, pois, realizado, segundo supomos, nas odes laudatórias da segunda
coletânea lírica. O poeta, em 3, 25, estava ciente do perigo desta empresa (dulce periculum
sequi deum). Vejamos como a levou a termo.
Em 4, 2, a primeira ode laudatória do quarto livro, Horácio, segundo pudemos
perceber, dava início a seu programa: elogiar Augusto na mesma espécie lírica em que
Píndaro fora excelente, seguindo, porém, os padrões de refinamento e perfeição poética
estabelecidos por Calímaco. O catálogo das espécies cultivadas por Píndaro (vv. 10-24), as
imagens do cisne e da abelha (vv. 25-32) e, finalmente, a do novilho (vv. 54-60), nos
descobriram, respectivamente, a excelência das espécies laudatórias no interior do gênero
lírico, a elevação de Píndaro (cisne) em comparação ao laborioso esforço de Horácio e
108
Calímaco (abelha), e, por fim, como seria o tal elogio horaciano de Augusto (o novilho):
pindárico no grau de elevação, calimaquiano nos padrões de composição.
A ode seguinte, 4, 3, é, como 3, 30, hino a Melpômene. Como vimos, o ofício do
poeta era, aqui, comparado a outros tantos – a saber: o do pugilista, do condutor de carros e
do general –, sendo digno de nota que estes últimos compunham o catálogo das espécies
pindáricas de elogio na ode anterior, isto é, eram matéria de elogio do poeta laudatório por
excelência. Segundo supusemos então, esta re-elaboração, digamos, do catálogo pindárico
de 4, 2 equivalia, pouco mais ou menos, a inserir, abaixo dos deuses e acima dos generais,
nova matéria de canto: o poeta. O poema, portanto, como já o indicava sua afinidade com 3,
30, era um elogio do poeta, à diferença de que, contrariamente a este último, a eternidade
de tal elogio não estava condicionada à permanência concreta de um lugar – no caso, Roma
–, senão à já em si eterna, porque divina, benevolência de Melpômene, a deusa da poesia.
O poema subseqüente, a ode, 4, 4, é especialmente complexo e refinado. É, em
primeiro lugar, um elogio a Druso. Além disso, é um poema sobre a educação, isto é, sobre
o que, entre doctrina e indoles, seja a causa responsável pelo sucesso, no caso, de um
general. Por fim, é também um elogio a Augusto como educador e portanto responsável
pelo sucesso do enteado, assim como também, sutilmente embora, do poeta que compõe
este poema. Com efeito, tratava-se aqui, como dissemos, da mesma querela entre natureza e
arte, transposta, contudo, do domínio poético para o militar. A solução da aparente
dicotomia, pois, não estava em escolher um desses pólos, mas antes, como vimos a
propósito da excelência poética, em juntá-los e fazê-los cooperar. Não obstante, o poeta
acentuava, neste poema, o papel da educação, e portanto da ars e de Augusto, no
aperfeiçoamento da índole em si já predisposta a ser aperfeiçoada que era a índole de
Druso. Deste modo, ele conseguia elogiar, no mesmo poema, Druso (natureza), Augusto
(arte) e a si próprio (artífice), pois que se colocava positivamente, em primeira pessoa,
como o autor deste duplo elogio (distuli, v. 21).
A ode 4, 5 é um elogio de Augusto que, como é praxe neste livro, é acompanhado por
um elogio do poeta. Ao explícito catálogo das reformas do imperador na quinta e sexta
estrofe do poema corresponderia, pois, o implícito catálogo das reformas de Horácio, o
qual, assim como Augusto no plano político, procede, no plano poético, por resgates do
passado e criações inauditas, como indicam, segundo vimos, os arcaísmos e neologismos da
109
passagem. No plano mais óbvio e direto deste elogio, portanto, estava a divinização de
Augusto ainda em vida, circunstância que o coloca acima de Baco, os Tindárides ou mesmo
Hércules, divinizados apenas depois da morte. No plano mais sutil e oblíquo, estava o
agenciamento de uma espécie não-laudatória de lírica – a saber, a convivial – para que,
conforme as leis do decorum, ao caráter inaudito de quem se elogia correspondesse o
caráter inaudito do próprio elogio. Ou seja: assim como Augusto é o único dos heróis a ter
sido divinizado em vida, assim também este elogio é único em agenciar uma espécie lírica
não-laudatória para fins laudatórios.
Quanto a 4, 6, é, em primeiro lugar, um hino a Apolo, depois, um testemunho da
consagração do poeta como Romanae fidicen lyrae e, assim, um elogio da lírica e seu cultor
latino: o próprio Horácio. Partindo-se, pois, de um Apolo descrito como vingador do mau
uso da língua – descrição que se realiza em ambiente exclusivamente grego, com referência
aos Titãs e à guerra de Tróia –, passava-se ao Apolo responsável pelo bom-êxito de Enéas,
e portanto de Roma, e, por fim, ao Apolo mestre da lira, professor da Musa e patrono do
poeta. Em outras palavras, algo como se passássemos do tempo do caos e da guerra,
representado pela menção aos Titãs, à mais auspiciosa e, por que não?, olímpica aventura
de Enéas, chegando ao fim e ao cabo ao tempo da ordem, de Augusto e de Horácio, da paz
política e seu lírico elogio. Por fim, sendo Apolo, como é, o patrono deste elogio,
assegurou-lhe o reconhecimento público que, como vimos, faltara à primeira empresa lírica
do autor, donde o poema fazer menção ao Carmen Saeculare – que não por acaso conta
com Apolo entre seus destinatários e propiciou, como sabemos, precisamente este
reconhecimento e terminar com o nome mesmo do poeta, como a elogiá-lo por ter sido o
escolhido, em ocasião tão solene como os jogos seculares, para elogiar Augusto e sua era.
A respeito da ode 4, 8, nossa análise fundava-se principalmente em considerações
sobre sua posição – central – neste livro, por comparação ao exórdio e ao epílogo dos três
primeiros: 1, 1 e 3, 30. Segundo vimos, a coincidência métrica e temática destas odes era
precisamente o que nos permitia proceder a tal comparação, sobretudo porque, em toda sua
carreira lírica, elas foram as únicas que Horácio escreveu no primeiro metro de
Asclepíades, singularidade que, de resto, não podia passar despercebida e só por si daria
ensejo a estudo comparativo. Aquilo, portanto, que nos três primeiros livros de odes estava
reservado à introdução e à súmula a saber, a pretensão de estar entre os vates líricos em 1,
110
1, a constatação de havê-lo conseguido em 3, 30 passou, no quarto, a ser o centro da
coletânea, sendo a ode 4, 8, como vimos, à diferença do que sucedia com as duas primeiras,
manifestação de singular concordância entre realização poética e juízo crítico. A
“eternidade”, pois, de uma obra, expressão máxima desta concordância entre a pretensão do
artífice e a apreciação do público, achava-se exemplarmente expressa nesta ode, porquanto
a matéria eternizada e o meio, publicamente reconhecido, como se viu em 4, 6, de eternizá-
la eram aqui, segundo tentamos mostrar, exatamente o mesmo: a própria poesia.
Como dissemos, a ode 4, 9 continuava a tratar do assunto da anterior, mas de outro
ponto de vista. Tratava-se, pois, de acentuar, não mais a capacidade que a poesia tinha de
eternizar sua matéria de canto, senão a qualidade desta matéria como digna de eternidade.
Para tanto, era mister, em primeiro lugar, diferenciar a matéria lírica da épica, ambas
certamente dignas de eternidade, porém, sendo matéria, como são, de gêneros distintos, por
razões também distintas uma da outra. Eis porque Horácio nos oferecia, antes de chegar ao
principal assunto do poema – isto é, o elogio das virtudes de Lólio –, uma versão lírica, por
assim dizer, das gestas homéricas: para que pudéssemos perceber que, enquanto a épica se
atém mais às qualidades físicas daqueles que eterniza, a lírica prefere as morais e
intelectuais. Dito isto, abria-se, pois, o caminho ao elogio das virtudes, ou seja, do caráter
de Lólio, constituindo-se a ode num exemplo particularmente feliz da singularidade da
matéria lírica e da espécie poética que, devendo tratar de virtudes morais, lhe seria
conveniente: o encômio.
A ode 4, 14, assim como 4, 4, é um poema sobre educação e um elogio a Augusto
por meio, no caso, não mais de Druso, senão de seu outro enteado: o futuro imperador
Tibério. Ao elogiar, assim, a vitória deste último sobre os Retos, Horácio a imputava às
qualidades que o elogiado recebera do padrasto, pelo que tal elogio, em última instância,
não se dirigia a Tibério, mas a Augusto. Quanto à educação, tema de 4, 4, era tratada aqui,
não mais em relação ao pai Augusto que educa Tibério e Druso como filhos, senão de
modo mais abstrato e geral, a saber, com referir-se à missão conquistadora, civilizadora e,
pois, educadora de Roma. Assim, o elogio da vitória de Tibério sobre os Retos poderia ler-
se também como elogio da vitória da ordem sobre o caos, da doctrina Augusta sobre a
barbara indoles. Tal vitória, como vimos, se não deixava de partilhar justamente da
violência que procurava domar, nem por isso era tida por funesta, pelo que esta ode, como
111
elogio que é das virtudes educadoras de Augusto, seria uma espécie de contraponto a 4, 9:
mesmo quando elogia um guerreiro, o gênero lírico, ao contrário do épico, privilegia as
virtudes, não as façanhas.
Finalmente, a ode 4, 15, recusa, meta-ode e peroração, é, segundo procuramos
mostrar, uma espécie de súmula de toda a carreira lírica do autor. Lida em termos
intragenéricos, tal recusa, como vimos, referia-se às componentes bélicas do encômio, isto
é, ao elogio da guerra, preterido pelo da paz. Já em chave intergenérica, a recusa referia-se
diretamente ao gênero épico, preterido pelo lírico. Pois que ambas as leituras se mostravam
plausíveis, resolvemos tratá-las, não como excludentes, mas como complementares, o que
encarecia, aliás, a notória qualidade e amplitude do poema. Como meta-ode, 4, 15
significava uma espécie de resgate de um gênero autenticamente romano de elogio dos
homens ilustres, levado, porém, a efeito, esse resgate, segundo padrões propriamente
gregos de excelência poética – em especial, a saber, segundo os modelos de Píndaro e
Calímaco, presenças constantes em todo o livro quarto. Assim sendo, a este aspecto
metalingüístico da ode unia-se nada mais nada menos – e esta é outra constante do livro, e a
principal diferença dele em relação aos outros três – que o elogio a Augusto e sua era: neste
caso, o último elogio. Portanto, a proporção ou correspondência entre política e poesia,
Augusto e Horácio, encontrava aqui, nesta ode, sua expressão final, já que o procedimento
de Augusto no domínio político seria de uma vez por todas pois não se modificaria mais
em nenhum outro poema o mesmo de Horácio no poético: resgate do passado e invenção
do inaudito. Considerada, então, como peroração, a ode, enfim, alcançava o tom público e
coletivo que faltava à peroração anterior, a ode 3, 30. A voz do poeta, agora, se diluía na da
comunidade, numa espécie de coro que, ao fim e ao cabo, podia equiparar-se em qualidade
poética e ressonância pública aos que o próprio Píndaro, modelo máximo do gênero,
compusera, contrariando ou, no mínimo, matizando a assertiva de que o grego, neste
gênero, seria inimitável: ao que tudo indica, o êmulo, neste livro, conseguiu igualar-se ao
mestre.
112
7. Bibliografia
I. Edições de Horácio
H
ORACE. Oeuvres. Texte latin. Publiés par F. Plessis et F. Lejay, 5 éd. révue. Paris,
Hachette, 1912.
______. The Odes and Epodes, ed. C. L. Smith, Boston, Ginn & Company, 1903.
_______. The Satires and Epistles, ed. J. B. Greenough, Boston, Ginn & Company, 1887.
HORÁCIO. Arte Poética, intr., trad. e com. de R. M. Rosado Fernandes, Mem Martins,
Inquérito, 2001.
______. Obras Completas, trad. de Elpino Duriense, José Agostinho de Macedo, Antônio
Luiz Seabra e Francisco Antônio Picot, São Paulo, Edições Cultura, 1941.
HORAZ. Oden und Epoden, übersetzt und herausgegeben von Bernhard Kytzler, Stuttgart,
Reclam Jun., 1995.
ORAZIO. Arte Poetica, intr. e com. Augusto Rostagni, Torino, Loescher, 1986.
ORAZIO FLACCO, Quinto. Odi Scelte e Il Carme Secolare, intr., cenni di metrica e
commento di Alfredo Bartoli, Milano, Carlo Signorelli, s.d.
______. Le Opere, a cura di Mario Ramous, Milano, Garzanti, 1988.
Q. HORATI FLACCI OPERA, ed. H. W. Garrod, Oxford, Clarendon Press, 1901.
Q. HORATI FLACCI OPERA, ed. F. Klingner, Leipzig, Teubner, 1959.
II. Estudos e comentários sobre Horácio
A
CHCAR, F., Lírica e Lugar-Comum: Alguns Temas de Horácio e sua Presença em
Português, São Paulo, Edusp, 1994.
B
ABCOCK, C. L. “Carmina Operosa: Critical Approaches to the Odes of Horace, 1945-
1975”; em: Aufstieg und Niedergang der Römischen Welt, vol. 31, 3, New York/
Berlin,Walter de Gruyter, 1981, pp. 1560-1611.
BECKER, C. Das Spätwerk des Horaz, Göttingen, Vandenhoeck & Ruprecht, 1963.
COLLINGE, N. E. The Structure of Horace’s Odes, Oxford, Oxford University Press, 1962.
COMMAGER, S. The Odes of Horace: A Critical Study, New Haven, Yale University Press,
1962.
DOBLHOFER, E. Die Augustuspanegyrik des Horaz in formalhistorischer Sicht, Heidelberg,
Carl Winter, 1966.
113
______. “Horaz und Augustus”, em: Aufstieg und Niedergang der römischen Welt, v. 31, 3,
New York/ Berlin,Walter de Gruyter, 1981, pp. 1922-1986.
F
RAENKEL, E. Horace, Oxford, Clarendon Press, 1980.
HARMS, E. Horaz in seinen Beziehungen zu Pindar, Marburg, Hermann Bauer, 1936.
LEBEK, W. D. “Horaz und die Philosophie: Die Oden”, em: Aufstieg und Niedergang der
römischen Welt, v. 31, 3, New York/ Berlin,Walter de Gruyter, 1981, pp. 2031-2091.
MOMIGLIANO, A. M., “Perizonio, Niebuhr and the Character of Early Roman Tradition”,
em: Journal of Roman Studies, 47, 1957.
NISBET, R. G. M. & HUBBARD, M. A Commentary on Horace: Odes, Book 1, Oxford,
Oxford University Press, 1989.
______. A Commentary on Horace: Odes, Book 2, Oxford, Oxford University Press, 1991.
______. A Commentary on Horace: Odes, Book 3, Oxford, Oxford University Press, 2004.
M
CDERMOTT, Emily A. “Greek and Roman Elements in Horace’s Lyric Program”, em:
Aufstieg und Niedergang der Römischen Welt, New York/ Berlin,Walter de Gruyter,
1981, pp. 1640-1672.
MICHEL, A. “Poétique et Sagesse dans les Odes d’Horace”, em: REL 70, Paris, Belles
Lettres, 1992.
PASQUALI, G. Orazio Lirico, Firenze, Le Monier, 1920.
PORTER, D. H. Horace’s Poetic Journey: A Reading of Odes 1-3, New Jersey, Princeton
University Press, 1987.
PUTNAM, M. C. J., Artifices of Eternity: Horace’s Fourth Book of Odes, Ithaca/ London,
Cornell University Press, 1996.
MARTINHO DOS SANTOS, Marcos. As Epístolas de Horácio e a Confecção de uma Ars
Dictaminis: o Opus, dissertação de mestrado apresentada ao Departamento de Letras
Clássicas e Vernáculas da FFLCH-USP, São Paulo, 1997.
S
BORDONE, F. “La Poetica Oraziana alla Luce degli Studi più Recenti”, em: Aufstieg und
Niedergang der Römischen Welt, Band 31, Berlin/ New York, Walter de Gruyter,
1981, pp. 1866-1920.
III. Estudos vários e obras de referência
A
DORNO, T. W. Rede über Lyrik und Gesellschaft, em: Noten zur Literatur, Gesammelte
Schriften, v. 11, Frankfurt, Suhrkamp, 1997.
BENJAMIN, W. Über Sprache Überhaupt und die Sprache des Menschen, em: Gesammelte
Scriften, v. II, 1, Frankfurt, Suhrkamp, 1991.
114
C
ALVINO, I. Lezioni Americane: Sei Proposte per il Prossimo Millenio, Milano, Garzanti,
1988.
CAIRNS, F. Generic Composition in Greek and Roman Poetry, Edinburgh, Edinburgh
University Press, 1972.
CAMPOS, H. A Arte no Horizonte do Provável, São Paulo, Perspectiva, 1969.
CONTE, G. B. Genres and Readers: Lucretius, Love Elegy, Pliny’s Encyclopedia, trad.
Glenn W. Most, Baltmore/ London, The John Hopkins University Press, s.d.
ELIOT, T. S. Selected Essays, New York, Harcourt & Brace, 1932.
ELSE, Gerald F. Aristotle’s Poetics: the Argument; published with the cooperation with The
University of Iowa. Leiden, E. J. Brill, 1957.
GRIMAL, P. Le Lyrisme à Rome, Paris, PUF, 1978.
G
UERRERO, G. Teorías de la Lírica, México, Fondo de Cultura Económica, 1998.
HARVEY, A. E. “The Classification of Greek Lyric Poetry”, em: Classical Quarterly, 5,
Oxford, Clarendon Press, 1955.
HAVELOCK, E. A. The Muse Learns to Write, New Haven/ London, Yale University Press,
1986.
HÖLDERLIN, F. Die Gedichte, herausgegeben von Jochen Schmidt, Frankfurt, Insel Verlag,
2001.
______. Übersetzungen: Pindar, em: Sämtliche Werke, Band 5, Stuttgart, W. Kohlhammer,
1965, pp. 51-127.
LAUSBERG, H. Handbuch der Literarischen Rhetorik, Stuttgart, Franz Steiner, 1990.
LEOPARDI, G. Della Fama di Orazio presso gli Antichi, em: Tutte le Poesie e Tutte le
Prose, Roma, Grandi Tascabili Economici Newton, 1997.
______. Zibaldone, Roma, Grandi Tascabili Economici Newton, 1997.
N
IETZSCHE, F., Jenseits von Gut und Böse, herausgegeben von Giorgio Colli und Mazzino
Montinari, München, Walter de Gruyter, 2005.
OLIVA NETO, João Angelo. “Epos e as Guerras: Algumas Considerações sobre ‘Epica’ em
Horácio Quintiliano e Proclo”, comunicação proferida no VI CONGRESSO DA
SOCIEDADE BRASILEIRA DE ESTUDOS CLÁSSICOS, Memória & Festa, Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Câmpus da Praia Vermelha, Julho de 2005, inédita.
P
AVESE, C. O. Tradizioni e Generi Poetici della Grecia Arcaica, Roma, Edizioni
dell’Ateneo, 1972.
P
ERRONE-MOISÉS, Leyla. Altas Literaturas, São Paulo Companhia das Letras, 1998.
PFEIFFER, R. Storia della Filologia Classica: dalle Origini alla Fine dell’ Età Ellenistica,
Napoli, Macchiaroli, 1973.
115
______. History of Classical Scholarship: from the Beginnings to the End of the Hellenistic
Age, Oxford, Oxford University Press, 1968.
P
OUND, E. ABC of Reading, London, Faber & Faber, s.d.
RILKE, R. M. Die Sonette an Orpheus, Leipzig, Insel Verlag, s.d.
ROSSI, L. E. “I Generi Letterari e le Loro Leggi Scritte e non Scritte nelle Letterature
Classiche”, em: Bulletin of The Institute of Classical Studies, 18, 1971.
SELLAR, W. Y. The Roman Poets of the Augustan Age: Horace and the Elegiac Poets,
Oxford, Clarendon Press, 1924.
SEVERYNS, A. Recherches sur la Chrestomathie de Proclos, t. II, Paris, Belles Lettres,
1977.
VASCONCELLOS, Paulo Sérgio de. Efeitos Intertextuais na Eneida de Virgílio. São Paulo:
Humanitas / FAPESP, 2001
V
EYNE, P. L’Élegie Érotique Romaine, Paris, Seuil, 1983.
______. L’Inventaire des Différences, Paris, Seuil, 1976.
IV. Autores Antigos
A
RISTOTELE. Etica Nicomachea, Roma/ Bari, Laterza, 2001.
______. Retorica, Milano, Mondadori, 1996.
ARISTÓTELES. Poética de Aristóteles, ed. trilingüe por Valentín García Yebra, Madrid,
Gredos, 1992.
CALLIMACHUS. Aetia, Iambi, Hecale and Other Fragments. Edited and translated by C. A.
Trypanis and T. Gelzer, Cambridge, Harvard University Press, 1973.
C
ALLIMAQUE. éd. et trad. Émile Cahen, Paris, Belles Lettres, 1948.
CATULL. Sämtliche Gedichte, Frankfurt/ Leipzig, Insel Verlag, 1995.
C
ATULO. O Livro de Catulo, introdução, tradução e notas de João Angelo Oliva Neto, São
Paulo, Edusp, 1996.
CICERO. Brutus. Orator. Edited and translated by E. H. Warmington. Loeb Classical
Library, London, Harvard University Press, 1952.
______. Tusculan Disputations. Edited and translated by J. E. King. Loeb Classical
Library, London, Harvard University Press, 1989.
LIRICI GRECI. trad. Salvatore Quasimodo, Milano, Mondadori, 2004.
MENANDER RHETOR. Edited with translation and commentary by D. A. Russel & N. G.
Wilson, Oxford, Clarendon Press, 1981.
116
O
VID. Heroides and Amores. Edited and translated by E. H. Warmington. Cambridge,
Massachusetts / London, Harvard University Press, 1977.
OVIDIO. Lettere de Eroine, Milano, BUR, 1989.
PHOTIUS. Bibliothèque, t. V, Paris, Belles Lettres 1967.
PINDAR. Oden, Stuttgart, Reclam Jun., 2001.
PINDARE. Olympiques, éd. et trad. Aimé Puech, Paris, Belles Lettres, 1970.
PLATON. Ion, Stuttgart, Reclam Jun., 1988.
PLATO. Laws. Vol. I. Cambridge Massachusetts: Harvard University Press/ London:
William Heinemann, LTD, 1984.
C. PLINI CAECILI SECUNDI EPISTULARUM LIBRI DECEM. ed. R. A. B. Mynors, Oxford,
Clarendon Press, 1988.
P
OMPONI PORFYRIONIS COMMENTUM IN HORATIUM FLACCUM. New York, Arno, 1979, fac-
símile da edição de A. Holder, Innsbruck, Wagner, 1894.
PSEUDACRONIS SCHOLIA IN HORATIO VETUSTIORA. Ed. O. Keller, 2 v., Stuttgart, Teubner,
1967.
PROPERCIO. Elegías, ed. Francisca Moya y Antonio Ruiz Elvira, Madrid, Cátedra, 2001.
M. FABI QUINTILIANI INSTITUITIONES ORATORIAE. Ed. L. Radermacher, 2 v., Leipzig,
Teubner, 1965.
LUCIO ANNEO SENECA. Lettere a Lucilio, Milano, BUR, 1985.
TACITE. Annales, 3 v., éd. et trad. Henri Goelzer, Paris, Belles Lettres, 1946.
P. CORNELII TACITI LIBRI QUI SUPERSUNT; 2 v., ed. E. Koestermann, Leipzig, Teubner, 1964.
VIRGILE. Les Bucoliques et Les Géorgiques, ed. Maurice Rat, Paris, Garnier, 1953.
VIRGILIO. Eneide, ed., intr. e com. Ettore Paratore, trad. Luca Canali, Milano, Mondadori,
1991.
117
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo