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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
João Coelho da Rocha Neto
A língua portuguesa no Brasil e os elementos históricos representativos da
identidade do homem nordestino em Vidas Secas de Graciliano Ramos
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
2008
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
João Coelho da Rocha Neto
A língua portuguesa no Brasil e os elementos históricos representativos da
identidade do homem nordestino em Vidas Secas de Graciliano Ramos
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
como exigência parcial para a obtenção do título
de MESTRE em Língua Portuguesa pela
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo,
sob a orientação do Prof. Doutor Jarbas Vargas
Nascimento
SÃO PAULO
2008
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Banca examinadora
___________________________
___________________________
___________________________
AGRADECIMENTOS
ao pesquisador, amigo e orientador Dr. Jarbas Vargas Nascimento, pela confiança
e ensinamentos importantes no curso e em minha vida profissional;
à minha mãe que, do sertão do Piauí, me direcionou para a vida;
à pesquisadora Dra. Maria Célia Paulillo pelas sugestões, ensinamentos e auxílios
na análise do documento e no exame de qualificação;
ao pesquisador amigo Dr. Luiz Antonio Ferreira pela atenção durante o curso e no
exame de qualificação;
ao amigo Márcio Aventino da Silva que colaborou para a finalização deste
trabalho;
à Secretaria da Educação do Estado de São Paulo pelo subsídio concedido para
que este trabalho se realizasse.
Nenhum homem pode ser
totalmente feliz, enquanto não se
unificar, sintonizando sua vida com
o Deus do mundo de Deus.
Humberto Rohden
RESUMO
Esta dissertação tem como tema o estudo da relação língua, história, identidade e
condição social tomando como objetivo de análise o romance Vidas Secas de
Graciliano Ramos, produzido na configuração de pequenos contos de 1937 e
publicado em 1938 como romance. Refere-se, por conseguinte, uma pesquisa que
visa ao estudo da língua portuguesa em uso no Brasil na década de 30 no que se
refere às marcas histórico–sociais manifestadas como recursos expressivos no
romance selecionados.
Nossa pesquisa fundamenta-se na Historiografia Lingüística, nas perspectivas
apontadas por Konrad koerner, pois, entre outros aspectos, contempla as relações
que a Lingüística estabelece com a História para observação da língua. Nesse
sentido, a pesquisa objetiva examinar na amostra selecionada como, no século
XX, a língua em uso no Brasil dá conta de retratar o homem garantindo-lhe uma
identidade sócio-histórico-lingüística ao mesmo tempo em que permite identificar,
na dimensão interna do documento, a condição sociocultural do homem brasileiro
do sertão nordestino.
Vidas Secas é tomado como documento não somente por estar inserido num
contexto histórico-cultural, mas também por conter informações lingüísticas,
políticas e sociais de uma época. A década de 30, na História do Brasil, pode ser
considerada crítica do ponto de vista político e social, pois há uma tensão
ideológica entre socialistas e reacionaristas da ditadura Vargas. Assim sendo, o
drama de Fabiano e sua família, em Vidas Secas, expressa, na verdade, a
comovente fatalidade da sociedade brasileira de então.
ABSTRACT
This dissertation has as theme to study the issue of the relationship: language,
history, identify social condition and take as objective analysis “Vidas Secas from
Graciliano Ramos, produced in the configuration of small stories in 1937 and
published in 1938 as a novel. It is therefore a search to the study of the Portuguese
language in use in Brazil in the 30’s with regard to the historical a social mark that
manifest as expressive features in the novel we have selected.
Our research is based on the Linguistics Historiography, in the perspectives
identified by Konrad Koerner, because, among others aspects, contemplates the
relationship that Linguistics establishes with the history for observation of the
language Accordingly, the research aims to examine the sample selected as, in the
twentieth century, the language in use in Brazil tells portrayal of the man, assuring
him an identity socio-historical-linguistics at the same time as identifying in size
internal document, the social-cultural condition of the native Brazilian man from
northeastern of backwoods.
Vidas Secas” is taken as a document not only to be inserted in a historical
context-cultural, but also contains information by linguistic, political and social of a
time. A decade of 30, in the history of Brazil, can be considered critical from
political a social point of view, because there is an ideological tension between
socialists and reactionary of the dictatorship Vargas. Thus, the tragedy of Fabiano
and his family, in “Vidas Secas”, expressed, in fact, the moving fatality of Brazilian
society since then.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................... 1
CAPÍTULO I – HISTORIOGRAFIA LINGÜÍSTICA: PRINCÍPIOS DE
ANÁLISE LINGÜÍSTICA............................................................................. ........ 5
1.1 – A Lingüística e a História......................................................................... 5
1.2 – Mudança e inovação lingüística............................................................... 10
1.3 – Antecedentes da Historiografia lingüística................................................13
1.4 – A Historiografia lingüística: concepção, princípios e
procedimentos.........................................................................................22
1.5 – O documento em Historiografia lingüística...............................................31
1.6 – Identidade histórico-lingüística e cultural do homem nordestino..............33
CAPÍTULO II – AS SECAS E OS DESGASTES SOCIOECONÔMICOS NO
NORDESTE ................................................................................................ 40
2.1 - Secas no Nordeste: um problema histórico, econômico, político e
social...................................................................................................... 40
2.2 – A migração do homem nordestino: a evidência do desaparecimento de
uma identidade histórico-social.............................................................. 54
CAPÍTULO III – AS CONDIÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DE VIDAS
SECAS...................................................................................................................59
3.1 – O Modernismo no Brasil......................................................................... 59
3.2 – O manifesto regionalista: a defesa dos valores nacionais e regionais... 64
3.3 – O romance de 30: um documentário de reivindicação política para
o desenvolvimento regional brasileiro..................................................... 68
3.4 – A língua portuguesa no Modernismo brasileiro....................................... 71
CAPÍTULO IV – A LÍNGUA PORTUGUESA DO BRASIL E OS ELEMEN-
TOS REPRESENTATIVOS DA REALIDADE E DA IDENTIDADE DO HO-
MEM NORDESTINO ............................................................................................ 78
4.1 – Apresentação de Vidas Secas enquanto documento histórico-lingüís-
tico.......................................................................................................... 78
4.2 – A metalinguagem literária........................................................................ 81
4.3 – A compreensão dos principais aspectos de Vidas Secas....................... 83
4.3.1 – O documento Vidas Secas e o Modernismo literário...................... 83
4.3.2 – Seleção lexical................................................................................102
4.3.3 – A Constituição lingüística de Fabiano.............................................109
4.3.4 – A expressividade lingüística de Fabiano.........................................117
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................122
BIBLIOGRAFIA....................................................................................................126
ANEXO.................................................................................................................134
A – O Manifesto Regionalista
1
INTRODUÇÃO
O romance, de acordo com os apontamentos de Schüller (1989), retratou desde o
seu surgimento conflitos individuais e a vida cotidiana. Todas as formas de
conhecimento cabem no perímetro do romance, assim transformado numa espécie
de síntese ou de superfície refletora da totalidade do mundo. Além de passa tempo,
o romance expressa a percepção da realidade sociocultural e que o romancista se
propõe a retratar. Por ser globalizante, apresenta as várias faces das experiências
humanas, conforme aponta Moisés (2002). Nesse sentido, o romancista é um
conhecedor da realidade histórico-social, representa-a por meio desse gênero e a
disponibiliza ao leitor. O romance tem a função de entreter e mostrar o
funcionamento de uma determinada realidade sociocultural.
Moisés (2002) afirma, ainda, que, por um mecanismo natural de substituição, o
aparecimento do romance advém da morte da epopéia clássica que ocorre no século
XVIII. O romance constitui o que Hegel (apud Moisés, op.cit.:458) denominou de a
epopéia burguesa moderna. Essa narrativa herdou da epopéia a visão totalizante das
coisas e se particulariza por apresentar uma realidade pragmática no que se refere
aos acontecimentos, assim como à figuração dos personagens e seus destinos.
Vidas Secas, por exemplo, traça o papel característico do espaço e do homem
nordestino e Fabiano resume a tendência coletiva contra o individualismo opressor.
Assim, pode-se afirmar que o romance é um gênero épico caracterizado pela ruptura
insuperável entre o herói e o mundo (Goldmann, 1976).
Tomado como documento histórico-lingüístico, o romance Vidas Secas de Graciliano
Ramos, escrito na década de 30 do século XX, serviu-nos como amostra para
realizaçao dessa pesquisa histórico-lingüistica, pois nele estudamos a língua
portuguesa em uso no Brasil e sua dialogia com a história e o tempo. Essa pesquisa
refere-se, portanto, a um estudo da língua no que concerne às marcas histórico-
culturais consideradas relevantes para a concretização de nossos objetivos.
2
Apresentamos como objetivo geral de nossa pesquisa o exame, no romance Vidas
Secas, da língua portuguesa em uso na década de 30, a relação língua, história, a
reapresentação e a condição do homem nordestino. Para isso, levamos em
consideração o suporte teórico da Historiografia Lingüística para analisar e
compreender a relação língua e realidade sociocultural. A Historiografia Lingüística
nos possibilitou um foco específico, na proporção em que se ampliou a perspectiva
de observação de Vidas Secas com base no princípio da metalinguagem. Esse
campo da Lingüística nos facultou observar as permanências e as mudanças
histórico-lingüísticas ao longo do tempo. Nesse sentido, o diálogo entre a Lingüística
e a História resultou-se como de fundamental importância e como justificativa para
melhor compreender os dados lingüísticos materializados nesse documento.
O objeto língua em nosso trabalho é visto como uma prática social. Assim sendo, a
língua muda porque a sociedade também muda. O dinamismo é uma característica
peculiar da língua e da cultura. Uma mantém-se em função da outra. A cultura está
na língua assim como a língua está na cultura. Constitui-se uma relação dialógica, de
forma que a mudança numa implica mudança na outra. Esse movimento é histórico.
Com isso, qualquer estudo que se faz na língua é histórico, pois, segundo Coseriu
(1979; apud Souza, 2003:2) a língua se faz e a sua construção é histórica e se insere
num quadro de permanência e continuidade.
Ao lado dos princípios básicos de análise da Historiografia Linguística – a
contextualização, a imanência e a adequação teórica -, selecionamos para
operacionalizar, em nossa pesquisa, a metalinguagem, que a entendemos como a
linguagem por meio da qual nos remetemos à linguagem-objeto (Vidas Secas). Com
esse recurso, podemos identificar e descrever produções lingüísticas passadas pelo
modelo de representação atual, sem que haja desvios do valor original do
documento. Assim sendo, tomamos a metalinguagem como recurso que nos dá
suporte para a descrição das realizações histórico-lingüísticas manifestadas em
Vidas Secas.
3
O uso desse recurso, de acordo com os apontamentos de Nascimento (2005), pode
ser um refreador de distorções ou inferências não autorizadas no momento de
análise do documento, além de ser um recurso científico indispensável ao tratamento
da língua. Por isso, esse recurso tornou-se de extrema importância para a descrição
da materialidade lingüística em Vidas Secas que representa o homem, a língua em
uso, a identidade e sua condição sócio-histórica no momento de sua produção.
Nossa Dissertação está organizada em quatro capítulos:
No primeiro capítulo, tratamos da Historiografia Linguística e suas implicações
teórico-metodológicas. Focamos a importância da relação interdisciplinar que se faz
necessária entre a Lingüística e a História, destacando a importância desse vínculo
para a execução dessa pesquisa historiográfica. Buscamos compreender ainda o
tratamento dado à concepção de documento em Historiografia Linguística, bem como
o estudo dos aspectos identitários, histórico-culturais do homem brasileiro do
Nordeste.
No segundo capítulo, buscamos compreender, numa visão histórica, a seca como
agente natural que caus(a)ou o desgaste socioeconômico e cultural do Nordeste,
que, como resultado disso, formou-se uma corrente migratória incessante do homem
nordestino rumo às outras regiões do país e, com isso, uma crise e reflexão de sua
identidade e de seu papel histórico.
No terceiro capítulo, enfatizamos o contexto social, político, cultural e lingüístico que
abrange a produção de Vidas Secas, enquanto documento histórico-lingüístico do
Modernismo literário brasileiro, além de apresentar o manifesto regionalista como um
grito do Nordeste que reivindicou ações da comunidade nordestina no sentido de
representar e divulgar os valores e a importância histórica da cultura nordestina no
cenário brasileiro, resistência à xenofilia que era muito estimada naquele momento.
Apontamos também um estudo da norma lingüística do Modernismo literário.
4
No quarto capítulo, por fim, realizamos a análise e interpretação de Vidas Secas.
(Com)provamos por meio de marcas lingüísticas as conseqüências - o fracasso de
Fabiano, a secura econômica, corporal, de atuações, afetiva, lingüística e ambiental
– causadas pela seca enquanto agente natural vivo que ameaça uma identidade
sociocultural historicamente consolidada. Posto isso, entendemos Vidas Secas como
uma produção lingüística que reivindica o fortalecimento e o equilíbrio da identidade
do homem nordestino, frente à seca assustadora.
5
CAPÍTULO I
HISTORIOGRAFIA LINGÜÍSTICA: PRINCÍPIOS DE ANÁLISE LINGÜÍSTICA
1.1 – A Lingüística e a História
Com base nas idéias de Robin (1973), neste capítulo, compreendemos que
pesquisas científicas contemporâneas, cada vez mais, buscam uma valia na
interdisciplinaridade. Essa prática tornou-se um passo fundamental em direção a
uma nova compreensão da realidade, articulando conhecimentos de disciplinas
específicas. Essa associação realiza-se, sem dúvida, como uma realidade
necessária para a execução de pesquisas científicas, já que as disciplinas dialogam
entre si com a troca de informações de caráter científico. Além disso, busca-se o
conhecimento que vá contra o saber fragmentado, conforme destaca Morin (1996).
É com esse propósito de encontro de regionalidades científicas diferentes que
destacaremos nesta temática os pontos de encontros possíveis entre a Lingüística e
a História. Embora seja ainda cedo para avaliarmos uma relação tão recente e que
ainda se encontra em período de constituição, apontaremos as entrecruzilhadas
conceituais que uma e outra implicam. Mas podemos assegurar que a Lingüística e a
História são por natureza interdisciplinares. Para legitimar conceitos, recorremos em
específico às idéias de Robin (1973).
A Lingüística definiu-se como o estudo científico que visa a descrever ou a explicar a
linguagem verbal humana. O objeto de estudo da Lingüística é a linguagem verbal,
oral ou escrita. Para Mussalim & Bentes (2003:19), hoje
a Lingüística constitui um campo vasto, heterogêneo,
multidisciplinar que consolida seus domínios e constrói
seus objetos de estudo a partir de influências
interdisciplinares e de uma complexa, mas muito
6
produtiva, rede de relações com outros lugares de
construção do conhecimento.
A linguagem, por sua vez, é compreendida como o maior empreendimento conjunto
do ser humano. Por isso, ela não pode ser estudada apenas num aspecto, mas em
todas as suas manifestações histórico-culturais. A Lingüística analisa, por assim
dizer, todos os problemas que dizem respeito aos aspectos formais e estruturais,
processos comunicativos e interativos, cognitivos e sócio-históricos que envolvem o
ser humano em suas atividades diárias. O objeto de estudo da Lingüística é a língua
como uma prática sociocultural, ou seja, como uma totalidade organizada. É nesse
sentido que consideramos a língua como um guia para a compreensão da realidade
social. Ela nos fornece dados sobre os problemas e os processos sociais. Por isso,
entender um documento histórico-lingüístico significa compreender plenamente a
vida de uma comunidade, tal como ela se encontra na materialidade lingüística.
A História, assim como outras formas de conhecimento da realidade, investiga os
fatos sociais. O conhecimento que a História e outras disciplinas representam jamais
é completo ou acabado. É um conhecimento que está sempre em processo de
produção, ou melhor, em fase de constituição, de acordo com a realidade presente.
O estudo histórico tem como objeto a observação do homem nos tempos presente e
decorrido. A História expressa o esclarecimento, a explicação e a informação de um
fato concreto. Nesse sentido, compreende-se que ela contribui, de certa forma, para
expressar e interpretar o passado e até mesmo o momento em que vivemos. A
difusão da história é de intensa importância, pois, além de explicar a realidade, ela,
ao mesmo tempo, fornece subsídios para modificá-la.
Atualmente, percebe-se que, cada vez mais, há uma tendência de os historiadores
buscarem explicações para os momentos e situações que atravessam as sociedades
em que vivem. Observa-se, ainda, que os historiadores estão, mais do que nunca,
atentos à realidade atual, preocupando-se com questões sócio-históricas do
momento. Essa tendência consolida-se como uma tentativa de entender um
7
momento histórico concreto, presente ou proximamente passado. Nesse sentido, não
se procura mais conhecer uma realidade atemporal, mas a realidade específica em
que se vive, a de um determinado tempo e um determinado espaço. Por isso, há
uma preocupação explícita com a verdade materializada em documentos histórico-
lingüísticos e em outras fontes históricas.
É nesse sentido de buscar entender o desenvolvimento das atitudes individuais e
sociais, presentes ou passadas, que a relação da Lingüística com a História torna-se,
cada vez mais, uma realidade necessária e de crucial importância para o
entendimento desses acontecimentos. Por isso, parece-nos ser de alta relevância o
fato de o historiador interessar-se com freqüência pelos estudos lingüísticos
concretos, pois, na substância lingüística, esses dados mostram o homem em seu
momento, em seu espaço. É de certa forma cada vez mais freqüente a busca no
âmbito da linguagem pelos múltiplos meios que possibilitam entender o homem em
suas diversas relações socioculturais, por meio de documentos escritos.
O homem é um ser lingüístico, temporal, espacial, finito e histórico. Isso indica que a
relação Lingüística-História proporciona ao pesquisador diferentes olhares em
relação às práticas sociais e as diferentes formas de construção de sentidos que são
constituídos nas práticas humanas. As fronteiras que delimitam os objetos de estudo,
tanto da língua quanto da História, são instáveis e movediças.
Além disso, o conhecimento dos mecanismos e dos desenvolvimentos históricos das
línguas é de extremo valor para a compreensão da realidade sócio-histórica. A
linguagem é considerada o guia de simbolização de uma cultura. Por isso, a
Lingüística tem se mostrado um campo fértil e de grande auxílio para a História no
que diz respeito ao estudo dos fenômenos sociais. A língua materializa os
fenômenos sociais e as experiências humanas no percurso da história.
Robin (op. cit.:21) avalia o vínculo que a Lingüística mantém com a História e vice-
versa na possibilidade de lhe ser atribuído o mesmo papel e a mesma função que a
8
Estatística tem em relação à Economia. Enquanto a Estatística fornece para a
Economia dados e índices que são significativos para a demonstração dos fatos
econômicos, a Lingüística, por sua vez, fornece elementos, dados lingüísticos
necessários para que a História possa compreender o homem em determinados
momentos e espaços definidos. Na verdade, essa relação significa a consolidação de
um aparelho formalizado de cientificidade incontestável, ou seja, é um imenso
progresso no que se refere aos estudos descritivos da realidade sociolingüística,
histórica e cultural de experiências humanas pretéritas.
Numa relação lingüista-historiador, o historiador não se manifesta sobre a questão
linguística, nem o da relação das realizações lingüísticas com as práticas não
lingüísticas. O que o historiador pede ao lingüista são recursos e métodos, que lhes
permitam organizar, de forma coerente e racional, os dados expressos no documento
escrito. O historiador assume suas prerrogativas no momento de interpretação, em
que, em função de suas hipóteses, de suas pesquisas e dos resultados fornecidos
pela análise lingüística, proporá resultados da pesquisa realizada. O historiador, além
do mais, conseguirá revelar a rigor o que a leitura instrumentada do documento lhe
havia sugerido. A Lingüística não possui uma função de descoberta, e regulariza,
normaliza, formaliza e ordena os dados, as idéias materializadas no documento.
Todo documento histórico-lingüístico conduz uma ordem do mundo que lhe é
específica, uma estrutura a ser decodificada pelo pesquisador. É constituído por
noções extraídas da cadeia falada que, por sua vez, está situada no tempo e emana
de autores engajados em meios sociais precisos. O documento testemunha índices
de comportamento do homem num espaço e tempo determinados.
A língua é, por natureza, um documento social, que expressa uma visão do mundo,
uma cultura ideológica e, também, a expressão direta dos aspectos mais manifestos
de uma cultura. Nesse sentido, língua, cultura e realidade sócio-histórica são
formulações que exprimem as relações entre as línguas e as culturas no sentido
mais amplo do termo. A cultura está documentada na língua, assim como a língua
9
está documentada na cultura. A língua é o meio de expressão e documentação de
uma sociedade.
As fontes ou documentos não são um espelho fiel da realidade, mas são sempre
representações de parte ou momentos particulares do objeto em questão.Segundo
Borges (2003:61) um documento representa, muitas vezes, um testemunho, a fala de
um agente, de um sujeito histórico-lingüístico e deve ser sempre analisado como tal.
A Lingüística e a História juntas buscam compreender o funcionamento da língua
como objeto de representação de uma determinada realidade, de uma determinada
prática social, relacionando-a com as condições sócio-históricas de sua produção. A
Lingüística descreve o documento, diz precisamente o que existe nele, no seu
arranjo interno. Ela ordena a sua ideologia, mas o que significa socialmente a
ideologia está fora de seu campo de análise. O significado dessa ideologia é objeto
de análise da História e a materialidade na qual se manifesta o sentido ideológico
torna-se um compromisso da Lingüística.
A Lingüística trata de mostrar aos historiadores que a leitura de um documento
manifesta problemas, tais como a produção de sentido, que certas regiões da
Linguística podem ser-lhes de grande auxílio, desde que não se tornem
superposição, aplicação pouco razoável ou falsa interdisciplinaridade. A Lingüística
apresenta aproximações, métodos e interrogações que constituirão um instrumento
precioso de análise, na possibilidade de os historiadores terem uma formação
linguística e os lingüistas, por sua vez, uma formação histórica.
A Lingüística realizou-se por muito tempo como ciência guia, como ciência dirigente
das ciências humanas. Ela impôs seus modelos de análise, seus conceitos e suas
teorias. Atualmente é, portanto, cada vez mais freqüente o uso de métodos da
Lingüística por outras áreas do conhecimento, assim como é freqüente na Lingüística
o uso de métodos de outras áreas do conhecimento. Por isso, dissemos que a
relação da Lingüística, não somente com a História, mas com outras áreas está cada
10
vez mais regular. Dito isto, conclui-se que a interdisciplinaridade na época atual
apresenta-se como meio necessário para a compreensão da realidade em sua
globalidade.
1.2 – Mudança e inovação lingüística
O fenômeno da mudança lingüística é um fato inevitável em qualquer língua. A língua
não é um objeto estático; ao contrário, ela é, por excelência, um utensílio dinâmico.
O seu arranjo estrutural se altera continuamente no tempo. As línguas estão em
constante movimento. Para Faraco (2005:14) elas mudam, mas continuam
atualizadas, oferecendo aos seus falantes os recursos necessários para a circulação
de significados.
Língua e sociedade são dois objetos indissociáveis. A língua na maioria das vezes
muda porque a sociedade muda. Ela vive em função de seus falantes e qualquer
alteração no seu sistema social automaticamente acarretará mudança no sistema
lingüístico. Controlar ou manter a detenção de uma delas exige que detenhamos e
controlemos a outra, uma tarefa que só pode ter êxito muito limitado. A mudança
lingüística é imprevisível e também inevitável. A língua é um sistema que se mantém
em estado de equilíbrio enquanto as mudanças ocorrem dentro dele. É o que
denominamos de variação na invariação. A variação constitui, portanto, um processo
contínuo de fluxo e refluxo sem que haja o desequilíbrio em sua plenitude semiótica.
Para Coseriu (1979), a língua é entendida como um conjunto de modos sistêmicos,
sistemáticos que só podem mudar, renovar-se sistematicamente com base na sua
funcionalidade. Entende-se que as mudanças lingüísticas são exclusivamente
funcionais e culturais. Coseriu (op.cit.:50) afirma que funcional é:
O sistema é sistema de possibilidades, de coordenadas
que indicam os caminhos abertos e os caminhos fechados
de um falar compreensível numa comunidade a norma em
11
troca é um sistema de realização obrigatória consagrada
social culturalmente: não corresponde ao que se pode
dizer, mas ao que já se disse e tradicionalmente se diz na
sociedade considerada. O sistema abrange as formas
ideais de realizações de uma língua (...) a norma em troca
corresponde a fixação da língua em moldes tradicionais; e
neste sentido precisamente a norma representa a todo
momento o equilíbrio sincrônico externo e interno do
sistema.
Coseriu (op.cit.:19) confirma ainda que a língua não pode ser isolada dos fatores
externos, ou seja, de tudo que constitui a fisicidade, a historicidade e a liberdade
expressiva dos falantes.
No que diz respeito à mutabilidade das línguas, Coseriu destaca que a mudança é
um efeito da necessidade racional. As línguas, para ele, mudam, porque não estão
feitas, mas porque se constituem continuamente pela atividade lingüística de seus
falantes. Isto quer dizer que as línguas mudam porque são faladas. Neste sentido, o
falar é visto como uma atividade criadora e o falante é o criador e estruturador de sua
expressão dispondo-se da língua adaptando as suas necessidades expressivas.
As línguas mudam porque é inerente à natureza das línguas que elas mudem, pois
fatores extralingüísticos exercem influências sobre elas. Se as línguas não
mudassem, elas estariam fadadas a uma estabilidade eterna já que apenas línguas
abstratas
1
não mudam.
Na visão de Coseriu, a mudança lingüística se origina no diálogo, na troca dos
modos lingüísticos de falar dos interlocutores. Quando o modo lingüístico de um
deles se afasta dos modelos lingüísticos da língua em uso, origina-se a inovação. A
1
Entende-se por língua abstrata a língua compreendida fora de suas situações de uso, imutável, conforme os
princípios da gramática normativa.
12
aceitação dessa inovação pelo ouvinte, chama-se adoção e a difusão ou
generalização dessa inovação constitui a mudança lingüística.
Várias são as formas por meio das quais as mudanças lingüísticas podem se efetuar:
ou por economia isofuncional. Não se trata de uma casualidade; existe, portanto,
uma regularidade no processo de mudança lingüística. Ela não ocorre de modo
acidental; há uma determinação consistente por trás da mudança nas línguas.
Coseriu (1979) sustenta que as mudanças lingüísticas são necessariamente
individuais, mas as inovações adotadas e difundidas correspondem certamente às
exigências expressivas interindividuais. Essas necessidades expressivas atuam de
forma diferente em cada falante e nem mesmo a documentação de que a história
lingüística pode ser suficiente para explicar como isso atuou em cada falante. E
muitos falantes, sem perceberem, terão adotado o modo de falar como os outros, isto
é, por razões culturais, extralingüísticas.
Coseriu destaca, inclusive, que as mudanças lingüísticas só podem ser justificadas
por termos funcionais e culturais, porém não como causas de mudanças, mas sim
como fatores passivos, circunstâncias de fala e determinações históricas de
liberdade lingüística como selecionadores das inovações, como condições e limites
da liberdade lingüística, motivadas por uma necessidade exterior, ou causa nos
fenômenos culturais por uma necessidade interior ou finalidade. A linguagem
pertence ao domínio da liberdade e da finalidade, e os fatos lingüísticos não devem
ser interpretados e explicados em termos causais.
O pensamento de Coseriu (op. cit.:175-176) destaca que:
a mudança lingüística tem, efetivamente, uma causa
eficiente, que é a liberdade lingüística e uma razão
universal que é a finalidade expressiva (e comunicativa)
dos falantes.
13
1.3 – Antecedentes da Historiografia Lingüística
A compreensão dos princípios teóricos e metodológicos da Historiografia Linguística
é neste capítulo conduzida pela interferência das idéias de Koerner (1996), Almeida
(2003),Nascimento (2005), autores que apresentaram e divulgam a HL como
paradigma científico, ao lado de outras áreas de estudos dos fenômenos
lingüísticos. Nesse sentido, A Historiografia Lingüística (HL) tem como objeto de
estudo a língua em sua modalidade escrita em documentos. A HL entende o objeto
língua como expressão da cultura de um povo, um processo e um produto de uma
atividade histórica do homem (Nascimento, 2005:11). Entende-se por esse
transcurso o fato de que a dinamicidade é um fator de essência da língua, ou seja, a
dialogicidade que existe na língua na relação do presente com o passado é uma
realidade evidente. De certa forma, para a constituição da língua, é necessária uma
relação dialógica entre uma memória lingüística do presente em diálogo com a
memória lingüística do passado. A língua é, neste sentido, resultada de um processo
sócio-histórico e, por essa característica, é objeto de análise de um estudo
historiográfico. A língua é também um produto social muito abrangente, pois,
perpassa e avança em todas as atividades e experiências humanas. Na verdade, há
na língua a manifestação de diversos fenômenos sociolingüísticos que são descritos
por diferentes áreas da lingüística.
A HL, segundo Nascimento (op.cit.:11), se conceitua de uma maneira de reescritura
de fatos da historia da língua por meio de princípios. Compreende-se essa realização
como um ato, uma atualização e compreensão de fatos histórico-lingüísticos do
passado. E para a realização desse empreendimento, a Lingüística, como ciência da
linguagem humana, até o Estruturalismo lingüístico apresentava apenas princípios
teóricos e metodológicos para descrição sincrônica dos fenômenos lingüísticos. Com
o declínio do paradigma estruturalista, a Lingüística buscou uma relação
interdisciplinar com a História para que juntas pudessem dar conta de estudos
históricos e culturais materializados em documentos escritos. Diante disso, a
14
Lingüística, a partir da década de 60, como ciência da linguagem não conseguiu
mais se impor como ciência teórica autônoma. Ela passou a manter relações
interdisciplinares com várias áreas do conhecimento.
Em virtude dos inúmeros fenômenos sociais que se manifestam na língua, surgiram
várias disciplinas teóricas que destacam a língua como instrumento histórico,
sociocultural de comunicação e interação entre indivíduos e povos do presente numa
abordagem sincrônica e também num limite diacrônico, numa relação de povos do
presente em diálogo com povos do passado por meio de documentos escritos. É
nessa conjunção que se insere a HL. Diante disso, buscamos compreendê-la em sua
constituição, acentuando a sua importância na descrição dos fenômenos histórico-
lingüísticos.
Com um objetivo de olhar a língua como uma instituição que representa, incorpora e
combina fatos da realidade sócio-histórica, a HL se constitui como disciplina em
avanço no âmbito da Lingüística, ciência que é considerada por excelência
interdisciplinar atualmente. O desenvolvimento da HL deu-se com a expansão dos
estudos lingüísticos, sobretudo com a Lingüística histórica do século XIX. Por essa
razão, faz-se necessário um entendimento da seqüência histórica das idéias
lingüísticas até a consolidação da HL como paradigma, destacando os principais
momentos, autores e obras lingüísticas para que possamos compreender melhor a
formação da Lingüística enquanto ciência que investiga os fenômenos lingüísticos e
sociais.
O homem, ao longo da história, sempre manteve uma inquietação no que se refere
ao entendimento de seu espaço circundante. Buscou conhecer a razão de
materialização dos fenômenos naturais, histórico-sociais e também lingüísticos.
Durante milhares de anos, em diferentes sociedades, houve preocupações
constantes em estudos a respeito da linguagem. Hoje conhecemos, pelos estudos de
historiadores das idéias lingüísticas, que os primeiros povos a fazerem isso foram os
hindus e os pensadores gregos que, de certa forma, revelaram um interesse em
15
entender os mecanismos de funcionamento da linguagem. Essa preocupação com a
linguagem foi abordada antes da era cristã, mais precisamente nos séculos IV e III.
Na tradição hindu, destaca-se a conhecida gramática de Panini, do século IX a.C. E
na Grécia antiga destaca-se o célebre diálogo de Platão, o Crátilo, que dá
testemunhos dessas discussões filosóficas sobre a linguagem. Além disso,
destacam-se, no pensamento grego sobre a linguagem, as célebres gramáticas de
Dionísio da Trácia (téchne grammatiké, a primeira gramática do ocidente) e Apolônio
Díscolo (Instituto Gramaticae) (Neves, 2005: 125-130).
Podemos considerar, neste período da Antiguidade Clássica, a fase embrionária da
Lingüística moderna. Essa tradição da gramática foi transmitida aos romanos pelos
gramáticos alexandrinos. A realização dessa contribuição deve-se a contribuição de
Crates de Malos, que foi embaixador em Roma enviado do rei Átalo. Além disso,
Crates foi professor de gramática e fundou nesse período a escola dos gramáticos
romanos (Kristeva, 1969:124). Foi, também, nesse período que se deu a
consolidação do pensamento lingüístico romano, destacando-se os mais célebres
gramáticos romanos, entre os quais destacam-se: Varão I a.C. (De língua latina),
Quintiliano I a.C. (Instituto Oratoria), Donato 350 d.C. (De partibus orationis Ars
minor) e Prisciano 500 d.C. (Institutiones gramaticae), quando a gramática latina
chega ao seu mais alto grau. O modelo gramatical de Prisciano tornou-se o modelo
de todos os gramáticos na Idade Média.
Na Idade Média, em seqüência a tradição lingüística romana, a língua foi descrita
como objeto que significa o mundo, refletindo-o como um espelho: speculum
(Kristeva, 1969:144). Durante esse período, as especulações lingüísticas referem-se
a língua latina. Os eruditos apenas comentavam os textos de Donato e de Prisciano,
ou decifravam a Vulgata. Há apenas uma atividade lingüística importante da Idade
Média que merece ser destacada. Trata-se do trabalho de Isidoro de Sevilha
denominado Etimologiae, amplo tratado enciclopédico composto de vinte livros.
Nesse trabalho, Isidoro dá informações sobre a língua ou os usos lingüísticos de sua
época.
16
Foi somente no final da Idade Média que se apresentou uma constante preocupação
de elaborar gramáticas apropriadas às línguas nacionais. Surgiu, então, nesse
período a primeira gramática francesa de Walter de Bibles Worth L’aprise de la
Langue francaise, e do Leys d’amor. Somou-se a esse fato a fala de Dante Alighieri
em defesa do italiano em De vulgare eloquentia. Assim, no final da Idade Média, os
interesses lingüísticos deslocaram-se para as línguas nacionais. Iniciaram-se então
as concepções lingüísticas do Renascimento. A gramática de Port Royal (1660)
desse período é um exemplo clássico da preocupação humana em entender os
fenômenos lingüísticos.
Após o século XVIII, marcado pela gramática da Enciclopédia, surge, no século XIX,
quando se estudam os processos de mudanças das línguas no tempo (Gabas Jr.,
2004:77), a Lingüística Histórica que é considerada o suporte-base para a formação
da HL na década de 60 do século passado. A mudança de paradigma no estudo da
língua no século XIX deve-se a William Jones, um juiz inglês acolhido na Índia, onde
fez estudos consideráveis e comparativos sobre o sânscrito, o grego e o latim. Jones
afirmou que essas línguas eram semelhantes entre si. Essas descobertas
despertaram a atenção de especialistas e em todo o mundo, pois esse
acontecimento tornou-se o marco que provocou procedimentos de estudos a respeito
das línguas, suas origens e semelhanças. Desse princípio, concluiu-se que toda
língua falada no mundo está em processo constante de evolução.
Para Gabas Jr. (2005:77), um dos propósitos da Lingüística Histórica foi a
classificação genética entre línguas e sua reconstituição. Essa ação classificatória
deu-se por critérios de ordem fonético-fonológicos, gramatical e correlação entre
elementos lingüísticos. No que diz respeito a reconstrução lingüística, os lingüistas
do século XIX, fazendo uso do método comparativo, buscaram a reconstrução da
língua-mãe, o que eles denominam de indo-europeu, a partir de documentos escritos
existentes na época.
17
Os trabalhos comparativos de Sr. Willian Jones foram pioneiros para o
estabelecimento do método comparativo nos estudos histórico-lingüísticos no século
XIX. Após Jones, surgiram vários outros estudiosos que deram seguimento aos
estudos comparativos, entre eles, temos: Schlegel (1772-1829) que reforçou as
afirmações de Jones, afirmando que o parentesco entre o sânscrito, o grego e o latim
realizou-se pelos traços morfofonológicos; e F. Bopp (1791-1867) com quem houve
de fato a verdadeira divulgação do parentesco entre as línguas.
A pesquisa autenticamente histórica do século XIX consolidou-se de forma efetiva
com os estudos de Jacob Grimm (1785-1863) que em 1819 interpretou a existência
de correspondência fonética sistemáticas entre as línguas como resultado de
mutações regulares no tempo (Faraco, 2004:32). O que determinou realmente o
trabalho de Grimm como histórico-comparativo foi a forma como ele lidou com os
dados lingüísticos. Grimm, ao contrário de Jones, Schlegel e Bopp, não se
preocupou apenas com um momento histórico da língua. Ele recolheu e comparou
fontes documentais por uma seqüência cronológica de quatorze séculos e pôde
então dessa forma assegurar e demonstrar a herança histórica das formas que
estava comparando. A partir desse trabalho, concluiu-se que a comunicação entre as
línguas tinha a ver com o censo histórico e com a freqüência dos procedimentos de
mudança lingüística.
Ainda na seqüência do método histórico-comparativo, surgem, na metade do século
XIX, os estudos do alemão A. Schleicher (1821-1867) que, seguindo a teoria
evolucionista de Charles Darwin, demonstrou a língua em seus trabalhos como um
organismo vivo. O seu trabalho pode ser considerado de maior importância histórica
no campo da Lingüística comparativa do século XIX. Ele foi além dos seus
antecessores, voltando-se para o estudo da forma de um hipotético idioma fonte
(indo-europeu) e para o estudo sistemático entre esse idioma e seus procedentes
concluídos. Para Schleicher, a linguagem foi analisada como um organismo natural
e, assim sendo, deveria ser tratada segundo os princípios das ciências naturais. Nas
justificativas de Schleicher, a linguagem insubordinada aos arbítrios dos falantes
18
estendia-se nos estágios de desenvolvimento, maturidade e declinação; por isso ela
podia ser analisada como uma espécimen viva.
Relaciona-se, também, com esse período da Lingüística Histórica, ainda que de
forma questionadora a respeito dos tradicionais métodos da prática histórico-
comparativa, a teoria de um grupo de lingüistas denominados neogramáticos
vinculados a universidade de Leipzig, na Alemanha, grupo ao qual esteve associado
Ferdinand de Saussure. Para esses lingüistas, a linguagem foi vista como uma
atividade orgânica, supra-individual dotada de vida própria como abordou Schleicher.
Os significativos representantes desse grupo foram Hermann Osthoff (1847-1909) e
Karl Brugmann (1849-1919). Os postulados do grupo a cerca da linguagem foram
constituídos a partir da visão de que a linguagem só tem existência nos indivíduos
que constituem uma comunidade de fala e sustentou-se nesse momento o princípio
de que as mudanças ocorridas na linguagem eram resultadas da mudança de
hábitos individuais. Por isso, na visão dos neogramáticos, a linguagem foi estudada
primeiramente como meio de expressão individual. A mudança lingüística resultava
do trabalho consciente dos indivíduos e também era reflexo de sentimentos
nacionais. Assim, de acordo com as idéias lingüísticas desse período, os fatores
estéticos também eram considerados como um dos principais estímulos das
inovações lingüísticas.
Após esse movimento de idéias histórico-comparativas, no início do século XX,
marca-se o surgimento da Lingüística moderna com a publicação do Curso de
Linguística Geral de Ferdinand de Saussure (1857-1913), em 1916. Com o Curso de
Saussure, a Linguística adquiriu o status de ciência. A partir desse momento, os
estudos lingüísticos tomam nova orientação. O conceito de linguagem abordada por
Saussure é analisado como imanente, ou seja, a língua é vista como autônoma,
independente do falante. Com Saussure, abrem-se os estudos lingüísticos em várias
posturas metodológicas no trabalho com a língua. Essas abordagens estão
intrinsecamente marcadas pelas famosas dicotomias saussurianas: sincronia vs
diacronia, língua vs fala, paradigma vs sintagma. Levando-se em consideração os
19
princípios lingüísticos de Saussure, a Lingüística, no século XX, tornou-se sincrônica
no que diz respeito ao tratamento dado aos fenômenos lingüísticos. Essa nova
posição teórica, abordada nos estudos lingüísticos, encabeçada por Saussure
recebeu a denominação de Estruturalismo.
Segundo Nicola Abbagnano (2003: 377-378), o Estruturalismo lingüístico manifestou
sua contestação a três frentes que predominaram no século XIX: o historicismo, o
idealismo e o humanismo. A aversão ao historicismo diz respeito ao Estruturalismo
levar em consideração uma visão longitudinal da realidade lingüística e não
horizontal como fizeram os comparatistas. Vale dizer, nesse sentido, que o
Estruturalismo destacou a realidade lingüística como um sistema relativamente
constante e uniforme de relações. Em oposição ao idealismo, o Estruturalismo
confirmou a objetividade dos sistemas de relações, que, mesmo quando concebidos
como modelos conceituais, ou seja, como construções científicas, não se reduzem a
um ato ou função subjetiva, mas tinha a função fundamental de explicar o maior
número de fatos constatados. Em oposição ao humanismo, o Estruturalismo
privilegiou o sistema lingüístico, as estruturas sociais, e a organização econômica e
política, negando o homem, as escolhas e atitudes lingüísticas individuais. No
Estruturalismo, a língua é concebida, antes de mais nada, como um sistema que
deve preservar a identidade de suas unidades e cuja a função primordial é comunicar
informações da maneira mais econômica possível.
Robins (1983:162-163) acentua que a contribuição lingüística de Saussure pode ser
dividida em três partes: a primeira coube a ele formalizar e tornar explícito as duas
dimensões ou perspectivas metodológicas, fundamentais e indispensáveis ao estudo
da linguagem: a dimensão sincrônica e a dimensão diacrônica. Na dimensão
sincrônica, a língua é considerada tal como existe e funciona num dado ponto da
linha temporal. E na dimensão diacrônica há uma focalização em mudanças pelas
quais passam a língua no curso do tempo. Com essa distinção metodológica -
sincronia e diacronia -, cada um desses princípios possui seu campo de
20
investigação, seus métodos e princípios de análise. Por essa razão, eles devem ser
obrigatoriamente discutidos num adequado curso de Lingüística.
Na segunda parte, Saussure separou a competência lingüística do falante dos
fenômenos ou dados lingüísticos reais (enunciados), dando-lhes respectivamente os
nomes de langue (língua) e parole (fala). A parole, conforme o autor, representa os
dados imediatamente acessíveis ao observador, porém o objeto próprio da
Linguística é a langue de cada comunidade: o léxico, a gramática e a fonologia que
são interiorizados por cada indivíduo e que lhe permitem falar e entender a língua da
sociedade em que foi educado.
Na terceira parte, Saussure mostrou que a langue deve ser sincronicamente
considerada e descrita como um sistema de elementos lexicais, gramaticais e
fonológicos inter-relacionados e não como um aglomerado de entidades autônomas.
Para Saussure, cada elemento lingüístico define-se em função dos outros e não de
modo absoluto. Essas inter-relações se manifestam nas duas dimensões
fundamentais do plano sincrônico: o eixo sintagmático, ou da ordenação seqüencial
dos elementos no enunciado, e o eixo paradigmático, ou eixo dos sistemas de
categorias ou elementos contrastivos.
Câmara (1986:185) destaca que Saussure focalizou um problema de linguística
geral, manifestando-se a respeito da natureza da linguagem. Saussure encarou a
língua como um sistema de signos, um objeto que se apresentava como a realização
mais elaborada e mais completa do homem e sua capacidade de operar com signos.
Para ele, o ensinamento de Saussure também valorizou na língua tudo aquilo que é
sistemático, sincrônico e relegou a fala. Diante disso, o método sincrônico acabou
fixando-se, em oposição ao diacrônico, em primeiro plano, numa posição de
vanguarda científica nos estudos lingüísticos.
Em meados do século XX, surgiu um novo modelo de análise lingüística que rompeu
com os postulados lingüísticos saussurianos. Referimos-nos ao Gerativismo
21
desenvolvido por Noam Chomsky. Os estudos gerativistas fundamentaram suas
teorias de mudanças na concepção imanetista de língua. No fundo, o objetivo da
gramática gerativa era construir um mecanismo computacional capaz de formar e
transformar representações que simulem o conhecimento lingüístico de um falante
de uma língua natural, registrado em sua mente/cérebro (Borges, 2004:97). O
Gerativismo Chomskiano deu avanço ao pensamento estruturalista acerca da língua,
desconsiderando, em suas reflexões lingüísticas, o falante e as questões históricas e
sociais.
A partir da década de 60, tem-se uma nova mudança nos estudos lingüísticos. Nesse
período, dá-se ênfase ao estudo da variação lingüística. Os aspectos históricos,
sociais e culturais passam a ser objetos constantes de pesquisas e atenção dos
estudiosos da linguagem. Vê–se ressurgir uma ênfase nas relações entre os
aspectos históricos, sociais e lingüísticos, ou seja, podemos afirmar que há, a partir
de então, um destaque na relação intrínseca entre linguagem e sociedade nos
estudos lingüísticos.
Essa mudança de método nos estudos lingüísticos está estabelecida nas diversas
disciplinas teóricas da linguagem que destacam o papel da língua como instrumento
histórico-sócio-cultural de comunicação e interação entre indivíduos e povos. Essas
disciplinas estudam a linguagem levando em consideração o sujeito falante e os
fatores contextuais na produção de sentido. Tais disciplinas lingüísticas são:
Historiografia Lingüística, Sociolingüística, Dialetologia, Semântica, Psicolingüística,
Pragmática, Análise da conversação, Neurolingüística, entre outras. São áreas de
conhecimento que possuem teoria e método de análise do sistema lingüístico.
Nessa perspectiva, nas tendências realizadas pelas análises históricas da
linguagem, compete-nos acentuar algumas indagações para entender a ciência que
nos fornece suporte teórico-metodológico para a concretização desse trabalho.
Trata–se de uma referência à HL que destacaremos a seguir num estudo de seus
22
princípios, sua atuação e importância na análise dos fenômenos histórico-
lingüísticos.
1.4 – A Historiografia Linguística: concepção, princípios e procedimentos
A linguagem humana expressa a realidade histórico-social de uma comunidade
lingüística quando é usada ou vivenciada no fluxo das práticas sociais. Dito isto, para
se compreender uma língua, deve-se levar em consideração os ingredientes a ela
entrelaçados: os aspectos históricos, antropológicos, sociológicos e cognitivos.
Esses fatores estão relacionados às experiências humanas e costumes de uma
comunidade lingüística, históricos e culturalmente estabelecidos.
Com o declínio do Estruturalismo, a língua como objeto de estudo alcançou
significativa importância que impulsionou o aparecimento de múltiplas abordagens,
ampliando o campo da Lingüística, de forma interdisciplinar, com outras ciências,
entre elas a História, a Psicologia, a Antropologia, a Sociologia, a Filosofia, entre
outras. Com essa relação, o objeto língua é observado como resultado de uma ação
interativa entre o passado e o presente em seu contexto sociocultural. Considera-se
ainda que esse processo ocorre no fato de reatualização do passado por meio de
documentos lingüísticos.
É nessa situação de rompimento com o Estruturalismo que surge, na década de 60,
a HL e procura descrever fatos históricos materializados em língua por meio de
documentos escritos. A HL se constituiu, antes de mais nada, como uma disciplina
que tem o objetivo, de acordo com seus princípios, de interpretar documentos
escritos. Nesse sentido, afirmamos que a HL é uma disciplina inovadora a que busca
estudar os fenômenos lingüísticos numa visão multidisciplinar, a partir da qual se
pode fazer uma relação com diversas áreas do conhecimento, valorizando, dessa
forma, os fatores determinantes da produção lingüística. Assim, a HL procura estudar
o homem por meio da língua. Ela explica e descreve fatos histórico-lingüísticos, de
23
forma que, a partir de dados do passado, haja no presente a construção de novos
conhecimentos.
Para Nascimento (2005:11) a HL se conceitua como uma maneira de reescritura dos
fatos da história da língua, por meio de princípios. De certa forma, pode-se ampliar
esse conceito, pois, sendo a HL o resultado da relação interdisciplinar entre a
Lingüística e a História, apontamos que a HL compreende a reescritura de fatos
históricos representados em documentos escritos. Isso compreende o estudo da
língua em uso em documentos escritos em tempos e lugares diferentes nas
diversificadas áreas do conhecimento.
A HL apresenta-se em avanço no domínio da Lingüística. Ela se constituiu em
oposição às idéias estruturalistas e valoriza os dados históricos que aos estudos
lingüísticos do século XIX, com o método histórico-comparativo. Daí dissermos que a
HL nasceu em decorrência da evolução da Lingüística Histórica. Isso se constituiu da
seguinte forma: tem-se a constituição de um novo paradigma que se manifesta pela
recusa às idéias estruturalistas e com a revalorização das idéias históricas que são
anteriores ao Estruturalismo. Determina-se que é um paradigma valorizador do
falante, da história, da língua e de tudo que a ele está associado. Marca-se que,
desse modo, temos um estudo da língua conectado aos elementos históricos e
sócio-culturais apresentados de forma regular e ordenados.
Nascimento (op.cit.:15) afirma que a HL tende a romper o dogma reducionista de
mera descrição dos fenômenos lingüísticos. A HL ocupa-se das relações complexas
que a Lingüística e a História organizam entre si de forma convergente no tratamento
da língua. Ainda segundo Nascimento, a HL nasce com o propósito de inserir a
língua no universo humano, não para isolar, mas para situá-la nesse universo, para
integrar e fazer convergir a ela os elementos que a envolvem. Dito isto, a relação
Lingüística e História colabora de forma eficiente para a consolidação da pesquisa
em Historiografia Lingüística.
24
Tendo-se em vista o fato de que a HL estuda a língua como um imenso documento
histórico-cultural, um meio que difunde e expressa dados históricos e culturais
passivos de uma pesquisa historiográfica, a HL busca compreender o passado numa
sucessão de atualização de dados registrados em documentos escritos. O retorno ao
passado é importante para que possamos de fato compreender a fonte primária e, a
partir daí, podemos compreender o social e produzir uma interpretação do homem e
de seu passado, bem como a língua em uso no período observado. A HL permite-
nos entender dados do passado por meio de uma ordenação lingüística,
convertendo-as em memória, ao mesmo tempo em que se abre ao homem para
reconstituir os fatos do passado por meio de documentos escritos.
Se considerarmos o fato de que o organismo que vive é algo que dura, podemos
expor que, de certa forma, o passado dessa organização se prolonga integralmente
em seu presente e nele permanece operante. Manter-se é conservar-se na corrente
da vida. Nesse sentido, é que podemos compreender a língua em sua historicidade.
Ela é uma continuidade de mudanças resultadas do dinamismo social. Mesmo assim,
como afirmamos antes, ela mantém no presente o passado, de forma real,
verdadeira e dinâmica.
Para Almeida (2007:1), a natureza do ser está na verdadeira duração que apresenta
o novo progresso, o novo que faz progredir incessantemente. A língua é o elemento
primordial da consciência do falante. É pela língua que o falante se insere na
comunidade em que vive e constitui a sua identidade. Na proporção em que toma
consciência de sua ação por meio do conhecimento histórico, ele naturalmente toma
conhecimento de sua própria duração. O falante do presente é a projeção do falante
do passado e o do futuro a projeção do presente. É por conta disso, e pelo processo
de duração que o homem evolui por meio da criação do novo a partir de elementos
pretéritos. E a HL propõe-se a explicar e a descrever esses fatos em sua constituição
e evolução. Ela aponta a herança dos fatos marcantes que são visíveis por meio da
língua em sua vitalidade.
25
A HL busca a reconstituição do passado fixado em documentos escritos por meio da
prática linguística e explicação de elementos do devir da língua. Nele, essa disciplina
busca compreender os fatos históricos da forma mais completa possível. E para essa
realização tornam-se necessárias as relações com outras ciências a fim de apropriar
elementos lingüísticos pertinentes pela HL para a realização de uma referida análise.
Por conta disso, a interdisciplinaridade, como um paradigma relevante de pesquisa
científica na atualidade, desloca-se em auxílio à HL para cientificar, de maneira mais
abrangente possível, os fatos da língua em sua evolução histórica. Assim sendo,
uma pesquisa historiográfica é um trabalho pluridisciplinar que requer do
historiógrafo um preparo de extrema expressividade.
Pelo seu caráter de buscar entender os fenômenos lingüísticos em múltiplas
dimensões funcionais, a HL define-se como disciplina que tem como propósito
retratar e expor a maneira como a experiência lingüística é adquirida, formulada,
comunicada e como se desenvolve através do tempo. Essa disciplina também se
preocupa com a descrição e explicação de conteúdos semânticos, envolvendo os
contextos socioculturais de produção de documentos escritos. Assim, a HL busca
compreender as causas de fatos lingüísticos por meio de módulos, técnicas e
princípios de análise em documentos escritos. Posto isso, vemos que a referida
disciplina se preocupa com o exame exaustivo de fontes históricas de gêneros
diversos, ou seja, ela abarca o estudo de múltiplos gêneros de produção lingüística e
suas respectivas condições de produção.
A HL não se restringe ao registro histórico da língua. Ela busca entender esse
registro de fatos históricos em documentos escritos. A partir disso, não se reduz
apenas a descrição histórico-lingüística. Interessam-lhe os fatos, a concretude das
realizações e a diversidade no tempo e não apenas os acontecimentos determinados
cronologicamente e que se deixam catalogar. Ela permite ainda a apreensão e o
conhecimento do objeto língua em sua mobilidade, mas alicerçada na estabilidade do
presente. A partir disso, afirmamos que os procedimentos de análise em documentos
são histórico-sociais.
26
Segundo Almeida (2003:63) a língua é, para a HL, expressão e veículo de dados
histórico-culturais. É considerada processo e produto desses fatos sociais. Dado o
dinamismo em que a língua é tomada para estudo, o estabelecimento de dados do
passado lingüístico é quase sempre visível, cujas razões devem ser explicadas, bem
como mudanças ou possíveis descontinuidades.
De acordo com Koerner (1996), um documento não pode ser considerado fora de
seu contexto de produção. Ao ser analisado, podem ser aplicados os princípios de
análise defendidos por Koerner: contextualização, imanência e adequação teórica. A
aplicação adequada desses princípios de análise, para o autor, evita alterações do
conteúdo semântico veiculado pelo documento; por isso, prima-se pela coerência no
que diz respeito a desvelação da complexidade dos fatos em investigação. Isso quer
dizer que o documento lingüístico não deve ser considerado dissociado da realidade
histórica em que foi produzido.
Por se preocupar com o desenvolvimento do saber lingüístico no tempo, a HL
destaca a compreensão desse conhecimento pelo recurso da metalinguagem. De
acordo com os registros de Koerner (1996) e Almeida (2003), essa disciplina opera
com a prática lingüística. Para esse exercício, a metalinguagem é um elemento
inerente a ela, pois fornece subsídios para a atualização de idéias do passado, sem
que, de certa forma, no presente, haja uma distorção de conteúdo semântico no
documento em sua originalidade.
Antes de abordarmos a referência e a importância de cada princípio para a
percepção adequada de dados lingüísticos registrados no documento, apontaremos
uma observação sobre o recurso experimental da metalinguagem, um recurso de
relevância e presente em qualquer estudo científico, seja do objeto língua ou
qualquer outro objeto de estudo científico.
27
A metalinguagem, sem fugir do conceito corrente das funções da linguagem, é vista
como uma linguagem utilizada para descrever idéias passadas (linguagem-objeto)
pela própria linguagem. É entendida como um processo dialógico da língua voltado
para a descrição da materialização das estruturas lingüísticas. Entende-se a língua
por si mesma. Koerner (1996) declara que esse termo foi proposto pela primeira vez
pelo lógico e filósofo polonês Stanislaw Lesniewsk. De fato, ao considerarmos essa
afirmação, constata-se que o vocábulo é de safra positivamente recente no campo
da Lingüística, embora o fato de a linguagem ser um referente, ou melhor, um objeto
de análise pela própria linguagem seja um fato antigo que se remete aos filósofos
gregos quando passaram a investigar sobre a realidade circundante.
Do processo de instigação de conhecer a realidade, a língua não escapou desse
anseio. Por esse motivo, compreender a língua em seu funcionamento, como veículo
de comunicação, tem movido pesquisadores em diferentes épocas com várias
hipóteses e diferentes resultados e conceitos obtidos a respeito de sua importância
para organização e manutenção de uma estrutura social. Com isso, quando
buscamos compreender a metalinguagem na história da Lingüística e discutimos
teorias do passado, estamos, de certa forma, tornando-as acessíveis ao leitor do
presente sem distorcer a intenção do autor em seu sentido original.
Em ampliação às idéias de Koerner no que diz respeito aos princípios teóricos e
metodológicos da HL por ele proposto, Almeida (op. cit.: 91-130) propõe uma
subdivisão da metalinguagem em: metalinguagem científica, metalinguagem de uso,
metalinguagem de apropriação, metalinguagem literária, metalinguagem crítica ou de
formas.
A metalinguagem científica é entendida pela autora como uma linguagem científica
empregada para os estudos da linguagem, sobretudo aquelas mais distantes ou
distintas dos empregos atuais. É em reconhecimento aos seus recursos que se faz a
diferença de termos lingüísticos inseridos em determinado documento, com função
ou objetivo específico, seja de análise ou de interpretação. Esse recurso é de
28
singular importância para a HL, porque, de acordo com Koerner (1996), evita-se uma
análise equivocada dos fatos lingüísticos em questão.
Na metalinguagem de usos, há uma compreensão centrada na técnica do
questionamento da linguagem, principalmente, da palavra na estrutura. Nessa
metalinguagem, as referências apontam para si próprias e tornam explícita a
descrição da língua como objeto. Esse fato denomina-se autodesignação, auto-
referência ou mesmo auto-reflexão. A linguagem possui, pois, uma característica que
lhe é peculiar: ela possui uma dinamicidade de referir para si mesma na designação,
na análise, na crítica, na abordagem de suas propriedades ou características, ou
então na própria necessidade ou possibilidade de tornar a própria linguagem como
referente ou objeto de análise.
Já a metalinguagem da apropriação é entendida pela autora a partir da noção de
desvio, em relação de aproximação: paráfrase e estilização, e conjunto de
diferenças: paródia e estilização. Em relação à paráfrase, tem-se uma correlação
com o texto fonte, e a estilização, por sua vez, marca um desvio tolerável. Na
paródia, há uma inversão de significado que tem sua realização na apropriação. A
paráfrase pode ser considerada uma quase autoria, enquanto a apropriação revela
uma força crítica. Em lugar de reprodução, ela pode ser considerada produção de um
novo texto. Essa metalinguagem não foge a noção estabelecida por Koerner no que
diz respeito ao argumento de influência. Refere-se, em vista disso, à criação de um
novo documento lingüístico a partir de dados anteriores denominados por Almeida de
uma criação por desvios, por meio da manipulação da realidade anterior, ou seja, é
uma releitura do passado, constituindo, dessa forma, uma nova realidade no
presente.
A metalinguagem literária procura abrir perspectivas que são questionadoras do
real, bem como uma preocupação voltada para referências do que se toma por
convencional e por não-convencional na configuração da linguagem literária. É uma
metalinguagem que, na verdade, se remete, em sua totalidade, à preocupação com a
29
linguagem literária. Isso quer dizer que na literatura a linguagem reflete, até certo
ponto, o processo de construção do texto, incluindo nele denotadores de efeito
artístico-literário. Constitui, por assim dizer, uma maneira de figurar a essência da
arte, quer por vocábulo, que a ela se remetem, quer por mecanismos sintéticos ou
outros mecanismos de elaboração da arte literária.
A metalinguagem crítica ou de formas atua no âmbito do objeto artístico. Opera
com o código, como processo de definição, mas o faz pelo tema, por recursos visuais
ou sonoros, explorando a peculiaridade morfofonológica do código, examinando
todos os recursos expressivos e estilísticos. O processo de representação atribuído a
essa metalinguagem caracteriza-se por um caráter multi e pluri criador de realidades
atribuídas por um sistema funcional conotativo. Posto isso, podemos assegurar que a
expressão artística é reveladora de verdades, ainda que essas verdades estejam
subjacentes à própria arte. O certo é que toda expressão artística ou não é
manifestadora de uma experiência vivenciada; é, por conseguinte, uma
representação do mundo exterior, de forma subjetiva, criadora e artística.
A metalinguagem é um elemento de expressiva relevância para os estudos
realizados pela HL. Ela proporciona um suporte para o entendimento do passado da
língua nas suas diferentes manifestações. Diante disso, essa ampliação de conceitos
relativos à metalinguagem proposta por Almeida (2003) apresenta uma contribuição
de valor inegável para o estudo dos fatos da língua no passado, pois a língua na sua
essência é representativa e veiculadora de idéias historicamente organizadas.
Em nossa análise, ao invés de serem aplicados os princípios da contextualização, da
imanência e da adequação teórica, propostos por Koerner (1996), optamos pelo uso
apenas do recurso da metalinguagem literária, uma vez que o documento de análise,
Vidas Secas, é um documento histórico do Modernismo literário brasileiro, período de
reflexão e representação da realidade brasileira. Como a linguagem literária
manifesta situações dúbias de sentido, o uso da metalinguagem literária pode
esclarecer as condições lingüísticas imprecisas, muito freqüentes na linguagem
30
literária. Com isso, o conteúdo do documento pode ser analisado de forma mais
exata.
Para Nascimento (2005:22), entre o passado e o presente há diferenças substanciais
que não podem ser confundidas pelo pesquisador em HL. É nessa dinamicidade
entre o presente e o passado, feita pelo recurso da metalinguagem, que podemos
instrumentalizar os princípios de análise em HL proposto por Koerner que visa a
colocar o passado em relação ao próprio passado e em seguida transportar esses
dados do passado para a atualidade, de forma fiel ao conteúdo original do
documento, a fim de que o historiógrafo da língua possa compreender no documento
aquilo que o produtor revela, ou seja, as influências implícitas e explícitas advindas
do contexto em que o documento foi produzido, para que, no processo de
interpretação, considere de fato o momento sociocultural e a partir dele faça
aproximações com a atualidade (Nascimento, 2005:17). Os princípios apontados por
K. Koerner (1995; apud Nascimento, 2005: 23) são: o princípio da contextualização,
o princípio da imanência e o princípio da adequação teórica.
Princípio da contextualização diz respeito ao processo de atribuição de sentido ao
documento. Isso quer dizer que o documento reflete seu tempo de produção. Diante
disso, neste princípio, o historiógrafo da língua faz um levantamento do ambiente
social levando em consideração o espaço e o contexto de produção desse registro
histórico. Trata-se, nesse sentido, do levantamento da concepção de mundo
considerada pelo homem neste momento. Ao contextualizar um documento, o
historiógrafo deve observar todas as informações que podem de toda a forma atribuir
sentido ao documento. Nenhum documento é destituído da realidade material.
Qualquer que seja a sua natureza, ele aponta, pois, os dados sócio-culturais, as
concepções lingüísticas, sociais, políticas e econômicas em curso no instante de sua
realização.
Princípio da imanência refere-se ao modo de compreensão intensiva do documento.
Tem-se nesse princípio uma espécie de rodeamento do documento sem
31
interferências de concepções históricas, sociais e lingüísticas do presente. Para
Nascimento (2005:23), trata-se de um modo de recuperação de dados presentes
nesse documento. Sendo assim, Nascimento acrescenta também que para
compreender o documento é preciso apreendê-lo em todos os seus ângulos
expressivos de forma simultânea. Deve-se refazer a sua trajetória, investigar os
fatores vigentes nos acontecimentos históricos dando lhe atualidade e vida integral
novamente. Em vista disso, neste princípio, temos a reconstrução e compreensão do
pessoal, uma vez que esse documento já se encontra composto, mas aberto a novas
possibilidades de construção de sentido no futuro.
Princípio da adequação teórica diz respeito ao processo de interpretação do
documento, ajustando-o às nomenclaturas e conceitos atuais de forma que o
documento não perca o seu valor original. Refere-se ao processo de renovação de
dados contidos no documento para que o homem atual consiga percebê-lo com
maior facilidade e também seja capaz de extrair conhecimentos produtivos e
essenciais para os empreendimentos humanos presentes.
1.5 – O documento em Historiografia Lingüística
Uma pesquisa historiográfica visa à busca de informações de épocas passadas e
também do presente a respeito de uma realidade sociocultural. Como sem
documentação não há história, o pesquisador, ao iniciar numa investigação
historiográfica, uma ocorrência torna-se fundamental e, muitas vezes, dificultosa para
a realização de seu estudo. Trata-se da localização de fontes documentais. A história
é registrada com base em documentos, seja ele escrito ou de qualquer outra
natureza representativa. Diante disso, a memória histórica só há para os povos que
fazem uso da escrita como forma de registro de suas experiências coletivas.
Documento histórico é toda comunicação registrada em suporte material, possível de
se valer para consulta, estudo e pesquisa, pois ele comprova fatos, fenômenos,
formas de vida e pensamentos do homem numa determinada época ou lugar. Assim
32
sendo, pode-se declarar que todo documento é uma fonte de informação e prova
científica de dados do passado.
No mundo moderno, com o desenvolvimento da tecnologia e ampliação das
atividades humanas, as funções que o homem desenvolve faz com que haja a
emissão ou recepção de uma grande quantidade de informações registradas em
suporte material. Trata-se de documentos históricos de diversos gêneros com
diferentes propósitos comunicativos. Essa formação não constitui um fim em si
mesma. Ela atende, antes de mais nada, a uma necessidade de informação que
permite ao homem agir, decidir, atestar e analisar retrospectivamente os fatos e
ações humanas passadas.
Documento histórico pode ser entendido, também, como escrito produzido ou
recebido por uma pessoa física ou jurídica, pública ou privada, no exercício de suas
atividades. Esses documentos constituem-se como fonte de informações. Eles
formam um conjunto orgânico refletindo as atividades a que se vinculam,
representando os atos de seus produtores no exercício de suas atividades. Na
verdade, a razão das origens dos documentos escritos ou a função pela qual são
produzidos é que determina a sua condição de documento e não a natureza e
suporte de seu formato.
Os documentos históricos de arquivos públicos, em particular, são todos os
documentos de qualquer gênero, suporte ou formatos produzidos ou recebidos por
um órgão governamental na condução de suas atividades. Incluem-se também no
domínio desses documentos aqueles produzidos ou recebidos por instituições de
caráter público e por entidades privadas responsáveis pela execução de serviços
públicos.
O documento escrito re(a)presenta dados quantitativos da realidade histórico-social
na qual foi produzido. Por essa característica, ele pode apresentar um número
mínimo de informações concretas que viabilize de fato o trabalho científico, de forma
33
que haja uma garantia de validade aceitável pela comunidade científica. Isto quer
dizer que os resultados de uma pesquisa histórico-lingüística não devem apresentar
determinações sem características de atribuições científicas.
Um documento histórico não é um registro neutro e indeterminado. Ele conduz a
visão de mundo de quem o escreveu, inserido numa observação de determinados
valores sociais do momento e local em que foi escrito. Retrata inclusive a herança
cultural de um povo: as relações sociais, econômicas e culturais de um momento
específico. Por conta disso, as informações materializadas no documento devem ser
analisadas tendo como direcionamento o entendimento do homem nas relações
sociais. Isso explica que, por meio do documento escrito, pode se fazer uma
reconstituição histórica de um país, estado, município ou até mesmo de uma vida
familiar específica.
Segundo Koerner (1995) o trabalho do historiógrafo da língua é uma atividade de
detetive em busca de informações por meio da leitura de registros legados pelos
homens em diferentes momentos e que lhe são cabíveis para a realização de seu
trabalho científico, atuando de forma cuidadosa na leitura e transcrição de
informações encontradas. Pesquisar em documentos escritos requer, portanto, do
historiógrafo, como acentuou K. Koerner (1995:95-124), um vasto domínio de
conhecimento de mundo, técnicas de leitura e até mesmo conhecimento de
Paleografia.
1.6 - Identidade histórico-lingüística e cultural do homem nordestino
É inquestionável o fato de que a língua pode ser considerada um dos fatores de
determinação da identidade étnica de um indivíduo e de uma coletividade. A
identidade cultural é o legado mais representativo e mais precioso de um povo. Um
nativo carrega consigo uma expressão de orgulho e sentimento de pertencer a um
determinado grupo étnico, ou seja, em particular, aqui em foco, a questão de
relevância à identidade nordestina. O homem nordestino tem orgulho de pertencer ao
34
Nordeste, ainda que combatendo vários problemas seculares de ordem ambiental
(seca) que conseqüentemente o afetam em suas atividades sócio–econômicas.
Uma das marcas características de identidade do nordestino pode ser observada no
uso lingüístico. A norma lingüística do nordestino manifesta-se de maneira particular
em comparação às outras normas lingüísticas regioniais no Brasil. Pode-se afirmar
que essa característica lingüístico-regional é histórica. Na maior parte, a identificação
do nordestino pode ser observada pela base articulatória. A partir disso, salientamos
que a identidade de um povo pode estar na língua. A língua revela seu papel na
formação da identidade de um indivíduo e de uma coletividade. Ela mantém a
coesão de um grupo. De acordo com Mey (2002:74; apud Durando, 1993) o
sentimento de pertencer a um grupo étnico é uma identificação étnica gerada por um
sistema específico de produção cultural, cimentada por uma língua comum entre os
membros de um grupo.
Com base nessa afirmação de Mey, destacamos que a língua está intrinsecamente
relacionada com o ambiente sócio-histórico e cultural de um grupo social. Ela
expressa os anseios humanos de se congregar socialmente, de construir e
desenvolver o mundo. Nesse sentido, afirmamos que a língua é dialética no sentido
de que ela está baseada em fatos indubitáveis de realidades políticas e econômicas
que condicionam o nosso viver.
Nesse trabalho, o nosso propósito é mostrar a relação entre língua e sociedade e a
importância dela como forma de constituição da identidade de um grupo. A estrutura
dinâmica da língua serve-nos para uma arquivação da realidade extralingüística e
para a hierarquização do mundo. Por meio da língua, certificamos que o mundo é
realmente ordenado. Ela contribui para a tentativa de tornar consciente a formação e
organização do mundo restrito. Por isso, é pertinente a afirmação de que essa
estrutura se identifica com a língua. Conhecimento, realidade e verdade são
aspectos da língua e esses aspectos podem ser analisados pela Historiografia
Lingüística. As lexias são unidades lingüísticas significativas que representam os
35
elementos do mundo. Por esse motivo, há uma relação de identidade entre a
organização do mundo e a organização da língua.
O historiógrafo da língua, ao utilizá-la, faz uso dela em busca de conhecimento da
realidade e da verdade histórico-social. Ao identificarmos a linguagem como
representação dessa realidade, destacamos o conceito de língua como aparência
histórico-social. Nesse sentido, por meio da HL, há a possibilidade de conservar em
parênteses os conhecimentos conservados no curso da história, deixá-los em
pendência, como que disponível para futuras experiências; daí nos aproximarmos da
língua despidos desses conhecimentos de mundo por ela veiculados. A identidade
da língua em relação com a estrutura do mundo é assim evidente para qualquer
leitor.
A língua é caracterizada, em sua imensa riqueza expressiva, como instrumento mais
perfeito que herdamos de nossos antepassados. É nesse processo de herança que
constituímos a nossa identidade. A identidade de um povo é constituída na/por meio
da língua em dialogia com a herança sócio-cultural transmitida por ela.
Na língua, manifesta-se uma multiplicidade de variação. Isso existe de fato e
expressa a relatividade das categorias do conhecimento. Há variações lingüísticas
porque a realidade social é diferente. Qualquer língua possui dois horizontes: os
dados brutos que tendem a realizar-se nela e os intelectos que nela pensam. Com
isso, o estudo da língua é possivelmente a única pesquisa legítima do universo
humano concebível.
Na perspectiva de que a identidade de um grupo é formada a partir da língua,
consideramos que a identidade social de um grupo é uma construção simbólica que
envolve processos de caráter histórico e social que se atualizam no ato individual de
atribuição (Penna, 2002:92). Em particular, a caracterização da identidade homem
nordestino é marcada pelo processo engajado de construção coletiva do nordeste
como região que possui valores sociais, históricos, acadêmicos, artísticos e culturais
36
de extrema importância na formação da cultura nacional. Nesse sentido, o nordestino
é um agente social, concreto, com referências espaciais e histórico-lingüísticas
próprias e diferenciadas comparadas às de outras regiões do país. Isso é o que de
fato constitui a identidade do nordestino, um ser em busca de sua atribuição e
firmação em seu próprio espaço e historicamente negado por problemas ambientais
e por práticas políticas repressoras, marginalizadoras e preconceituosas,
direcionadas por uma elite política, acadêmica e burguesa do próprio Nordeste e do
centro-sul do país.
Na atribuição da identidade do homem nordestino, Penna (1992) destaca como fator
constitutivo dessa identidade a naturalidade, a vivência, a cultura e a auto-atribuição.
Na perspectiva da autora, não há nenhuma referência direta ao aspecto lingüístico
como forma de atribuição da identidade do nordestino, ainda que o aspecto
lingüístico seja resultado de um processo sócio-cultural e elemento determinante da
cultura de um grupo social. Por isso, além da base articulatória, as características
lingüísticas do nordestino podem ser percebidas também no léxico, na sintaxe e na
tonalidade dura, que é típica de sua expressividade, em particular do homem
habitante da zona rural.
Penna (op.cit.:167), em referência a Luiza Erundina, uma bem sucedida migrante
nordestina em São Paulo, destaca que a identidade não está na condição de
nordestina, de classe ou de mulher, mas sim no modo em que estas condições são
apreendidas e organizadas simbolicamente. As marcas de identidade não estão
inscritas no real, embora os elementos sobre os quais as representações de
identidades são construídas sejam deles selecionados. Estão em pauta, portanto, os
processos de apreensão do mundo social: esta apreensão dá-se sempre através de
atos de pensamentos e linguagens, cujas coordenadas são geradas social e
culturalmente. Isto quer dizer que marcas de referência e autenticidade de uma
identidade social são complexas e de difícil entendimento, já que Luíza Erundina
considera-se uma nordestina, mesmo com residência e exercício político em São
Paulo.
37
Em referência à auto-afirmação da identidade do homem nordestino que, diante de
sucessivas crises econômicas causadas principalmente por problemas ambientais e
pelos efeitos da revolução industrial, vê-se afetada por um contínuo processo de
migração para as grandes metrópoles, em particular, as do Sudeste do país, surge o
discurso regionalista de 30, em plena fase de modernização da cultura brasileira,
persuadido por Gilberto Freyre. O elemento central e básico do discurso regionalista
é chamar a atenção para os problemas sociais enfrentados pelo homem nordestino,
principalmente o homem rural que, para sua sustentabilidade, depende das
condições climáticas. Diante desse fato, o discurso regionalista surge com o
propósito de homogeneização (simbólica) do espaço nordestino, tecido sobre a idéia
de crise.
O discurso regionalista, segundo Penna (1992), é caracterizado por dois elementos
fundamentais: a oposição ao sul, enquanto espaço obstáculo por ser privilegiado
pelo governo central no que diz respeito ao desenvolvimento da lavoura cafeeira e ao
estado, ao qual são dirigidas as reivindicações de um povo que sofre as
conseqüências da seca e da crise econômica causada, em específico, pelo declínio
do ciclo da cana-de-açúcar na segunda metade do século XIX. Nesse período,
principalmente com a grande seca de 1877-1879, o Nordeste, que já apresentava
uma economia desestabilizada, chegou ao seu declínio econômico, resultando, por
conseguinte, um grande êxodo rural com destino aos grandes centros urbanos do
Nordeste, do Sudeste, do Sul e também para o norte do país. Para o Sul e o
Sudeste, os migrantes nordestinos eram atraídos pelas ofertas de emprego na região
da agricultura cafeeira e na indústria em processo de desenvolvimento. E para o
Norte, a migração dos nordestinos era despertada pelo que ficou conhecido como
ciclo da borracha. A mão-de-obra era absorvida para a exploração dos seringais que
deles era extraído o látex, substância da qual era extraída a borracha, que, da região
amazônica, era comercializada para diversas partes do mundo.
38
Esse período de decadência econômica do Nordeste, secas e fluxo muito grande de
migração do homem é conhecido como a época mais catastrófica da história do
Nordeste. A seca de 1877–1879 resultou a morte de quase a metade da população
dos sertões. Devido a esse efeito calamitoso, houve, nesse momento, uma
verdadeira comoção nacional, devido às condições angustiantes em que se
encontrava a população do Nordeste. Pode-se afirmar que, a partir desse momento,
quando as políticas centrais do governo federal estavam direcionadas para o
desenvolvimento da região Sudeste, o discurso da seca, de caráter científico e
literário, é abraçado pelos regionalistas nordestinos.
Esse discurso regional atingiu relevância nos principais veículos de comunicação e
também na literatura. A determinação dos regionalistas, por meio dessa
expressividade, foi despertar a atenção das autoridades políticas para o sofrimento
do homem nordestino, em particular, o homem agrário. O objetivo dessa
manifestação foi conquistar meios, subsídios e melhores condições de vida para que
o homem sertanejo se fixasse definitivamente em seu espaço de origem, evitando,
pois, a migração em massa para os grandes centros urbanos que não tinham
estrutura para suportar tantas famílias.
O manifesto regionalista, principiado por Gilberto Freyre, constitui uma determinada
forma de representação da região do Nordeste caracterizada por um discurso de
delimitação de identidade étnica e de espaço. Esse fato resultou a caracterização
desse discurso como ideológico por alguns estudiosos por está associado aos
grupos de elite que comandavam a política no Nordeste. Esse manifesto guarda as
reivindicações de políticas públicas para o desenvolvimento do Nordeste. Freyre no
documento ataca o regimento estadualista da República Velha e critica o centralismo
de ações políticas que discrimina o Nordeste e favorece os estados das regiões Sul e
Sudeste do país.
Penna acentua, ainda, que o discurso regionalista não se construiu e se expressou
apenas através dos discursos de políticos, ou através de uma produção intelectual
39
que fornecia embasamento científico a forma de percepção da realidade social do
Nordeste e a reivindicação da classe dominante regional. Na visão de Penna,
construiu-se e expressou-se, ainda, por meio de uma produção literária formal de
elite, representada por José Lins do Rego, Raquel de Queiroz, Graciliano Ramos,
José Américo de Almeida, entre outros, que, segundo ela, procurava afirmar o
Nordeste contra o Sul desenvolvido, buscando identificar traços característicos da
região: o agrário, a pobreza, a secura, a linguagem. Essa literatura visava, por assim
dizer, com o status de cientificidade, descrever e redirecionar a história econômica e
social do Nordeste.
O Nordeste, antes de mais nada, foi e ainda é, sem dúvida, um espaço significante
que muito tem contribuído para a formação e consolidação da cultura nacional. Essa
região é focalizada como região enquanto experiência histórica, cultura e social que
se distingue das demais regiões brasileiras por certas marcas de representações
identificadas em seus habitantes. Enfatizamos região porque de fato ela existe,
possui valores relevantes e mantém, desde o Brasil-colônia, uma tradição histórico-
cultural que lhe é característica e que constitui a identidade nordestina.
Com base nisso, dissemos que o Nordeste constituiu um discurso ao longo de sua
história que é marca característica de representação e da tradição experimental do
homem nordestino. Constitui esse discurso um referencial de reconhecer a relação
intrínseca que há entre a realidade social e a língua que a representa. Destaca-se
ainda que nenhuma outra região brasileira, no percurso da história do Brasil,
formalizou um discurso tão expressivo e de importância para a cultura nacional como
o discurso constituído pelos intelectuais nordestinos. A língua portuguesa em sua
variante nordestina representa uma cultura rica em termos, ritmos e expressões que
caracteriza o Nordeste brasileiro. Dito isto, destacamos que a particularização,
enquanto identidade característica do nordestino, está atrelada a fatores de ordem
de naturalidade regional e lingüística.
40
CAPÍTULO II
AS SECAS E OS DESGASTES SOCIOECONÔMICOS NO NORDESTE
2.1 - - Secas no Nordeste: um problema histórico, econômico, político e social
Quando se fala em Nordeste, a visão que se tem no imaginário coletivo de outras
regiões do país, principalmente na região Sudeste, é as seca devastadora, atroz e
uma legião de familiares que se aglomera em ônibus da Viação Itapemirim e de
outras companhias em direção às principais metrópoles do país. Sabemos que a
realidade não é bem assim, pois, no imaginário sulino, há uma indução generalizada
de miséria no Nordeste. Não negamos essa realidade. Entretanto, há, também, no
Nordeste, áreas de desenvolvimento sustentável com agricultura, indústria, comércio
desenvolvidos e com crescente emprego de mão-de-obra. A seca afeta, sobretudo a
população habitante da zona rural. E o fluxo migratório para outras regiões tem
origem nessa população. Esse(a) moviment(açã)o humano(a) tornou-se constante
com periódicas secas ao longo da história do Brasil.
Para que retratemos o percurso histórico das secas no Nordeste, faz-se necessário,
antes de mais nada, uma reflexão sobre o que é a seca. Joaquim Guedes Corrêa
Gandim (1984:05) interpreta que a seca, no sentido léxico, significa falta de
precipitação atmosférica sob a forma de chuva, falta de umidade. Gandim esclarece
que a expressão “seca do Nordeste”, além do fenômeno físico por falta de água, o
seu verdadeiro significado tem amplitude muito maior e traz à baila fenômenos
econômicos que provocam transformações no habitat social da região.
É importante analisarmos que a afirmação de Guedes é meritória no que diz respeito
aos fenômenos econômicos resultados pelas constantes secas. Na verdade, essa
realidade é conseqüência advinda pela não regularidade de chuvas no sertão
nordestino. Com as irregularidades das chuvas, não há produção agrícola. O pasto
para o gado seca. Os animais não têm como se alimentar e morrem. E sem estrutura
preventiva pela falta de recursos para o enfrentamento da seca, ou seja, sem reserva
41
de alimentos, os sertanejos começam a sentir o aspecto da fome. Submetem-se às
condições subumanas. Como conseqüência, valem-se como solução do êxodo rural.
Os sertanejos migram para as grandes cidades a procura de fontes de sobrevivência
adequadas. E o governo surge apenas com medidas paliativas emergenciais para as
dificuldades do homem sertanejo, o que não alivia em nada a situação dos desgastes
causados pelas secas.
Várias ações governamentais e vários órgãos regionais foram constituídos em
diversos períodos da história do Brasil para enfrentar os problemas da seca no
Nordeste. Entretanto, nenhuma ação foi eficiente a ponto de obter uma solução
definitiva para tão forte problema físico que tem como conseqüência um desajuste
social e ambiental calamitoso.
A primeira ação política contra a seca ocorreu só após uma das maiores secas da
história do Nordeste ocorrida em 1844-1845 durante o governo imperial de D. Pedro
II. Em virtude do fato, D. Pedro II enviou uma comissão formada por cientistas
brasileiros de formação naturalista ao Ceará para estudar o problema da seca e
apresentar relatório conclusivo e com recomendações de ações a serem executadas.
O relatório da comissão aconselhou o governo a executar obras estruturais para o
represamento de água, perfuração de poços, construção de rodovias e ferrovias.
Entretanto, segundo Antonio Henriques Leal (apud Villa, 2001: 38) nenhuma obra de
utilidade pública se realizou.
Além disso, foram constituídos os seguintes órgãos em vários momentos da história
do país: Inspetoria de Obras Contra as Secas – IOCS (1909), Inspetoria Federal de
obras Contra as Secas - IFOCS (1919), Departamento Nacional de Obras Contra as
Secas DNOCS (1945), Banco do Nordeste do Brasil - BNB (1952), Superintendência
do Desenvolvimento do Nordeste - SUDENE (1959). Esses órgãos foram formados
com a finalidade de combater os efeitos das secas, com ações voltadas para
promover o desenvolvimento sustentável do Nordeste no que diz respeito à
administração de projetos por meio dos quais houvesse uma progressiva
42
capacitação técnica e também financeira para os agentes produtivos da região.
Entretanto, até a atual realidade histórica brasileira, nenhuma ação política encontrou
uma solução eficaz para os problemas sociais e ambientais causados pelas secas no
Nordeste.
O drama das secas no Nordeste possui uma extensa história. Nenhum pesquisador
até hoje desenvolveu um trabalho de pesquisa tão original e instigante, pela
importância que oferece para a compreensão dessas abordagens históricas como
Villa (2001) em Vida e morte no sertão: história das secas do Nordeste nos séculos
XIX e XX. É de acordo com as idéias de Villa que mostraremos a história das
principais secas ocorridas no Nordeste, apontando os efeitos calamitosos desse
agente natural vivo na vida dos sertanejos e a incúria, a corrupção, as disputas
políticas em torno dos problemas da seca.
Sabemos que o pilar de sustentação econômica do Nordeste, desde o Brasil colônia,
foi a agricultura e a pecuária de subsistência. A seca caracterizou-se como uma
situação climática em que a ausência ou carência de chuva acarretasse graves
crises de produtividade agrícolas e criatórias. Na economia regional, ao longo da
história do Nordeste, este fato acentuou o abandono da terra e contribuiu para o
despovoamento do mundo rural e ao inchaço urbano das grandes cidades
brasileiras.
Villa afirma que, antes da chegada dos portugueses, há indícios de intensa
movimentação espacial dos indígenas habitantes do polígono das secas. As causas
disso podem estar relacionadas com os períodos de estiagem, seca e com a disputa
pelas terras com abundância de água.
Fernão Cardim, padre jesuíta, que chegou ao Brasil em 1583 como secretário do
visitador Cristóvão de Gouveia, escreveu as particularidades do efeito de uma seca
ocorrida nesse mesmo ano em que ele chegou ao Brasil. Mencionou que, em 1585,
houve uma seca tão grande na província de Pernambuco que os engenhos não
43
funcionaram muito tempo. As fazendas de canaviais e mandioca muitas secaram,
houve grande fome, principalmente no sertão de Pernambuco. Milhares de índios
apertados pela fome migraram do sertão para o litoral, socorrendo-se aos brancos.
No decorrer do século XVII, Villa afirma que houve seis grandes secas: 1603, 1605 a
1607, 1614, 1645, 1652 e 1692. Estas secas afetaram várias províncias do Nordeste.
Devido à primitiva condição de vida do sertanejo e com isso a escassez de meios de
sobrevivência, houve o impulso de conflitos entre colonizadores e indígenas. A última
seca desse século, a de 1692, acarretou grandes prejuízos aos rebanhos e às
populações interiores. Neste período, morreram muitos escravos.
Na proporção em que havia a expansão demográfica e econômica no Nordeste,
maior eram os prejuízos causados pelas periódicas secas. Foi o que ocorreu no
século XVIII. Das secas ocorridas neste século as mais devastadoras foram as que
ocorreram em 1722-1727, 1777, 1791-1793. O historiador Tomás Pompeu de Souza
Brasil (apud Garcia, 1984:62) registrou que 1722 foi um ano de grande seca, em que
não só morreram numerosas tribos indígenas, como o gado e até as feras e as aves
se encontravam mortas por toda a parte. Villa, por sua vez, menciona que esta seca
atingiu todo o Nordeste e promoveu desastrosos efeitos econômicos e a migração da
população do sertão para as áreas menos afetadas pelo flagelo. Neste período, as
águas secaram, a lavoura sem água foi esterilizada; e, sem pastagem,
conseqüentemente o gado morreu. Diante isso, aos sertanejos restou apenas a
mudança para as margens dos rios para não morrerem ao rigor da sede.
Na seca de 1777, Villa menciona que a pecuária foi atingida de forma severa. Nesse
período, os pecuaristas nordestinos perderam o mercado consumidor das Minas
Gerais e do mercado açucareiro para o mercado pecuarista do Rio Grande do Sul.
A seca de 1791-1793 foi a maior seca do século XVIII no Nordeste. Em algumas
províncias, as águas desapareceram por completo. Como conseqüência disso,
morreram o gado, os vaqueiros, muitos fazendeiros, animais domésticos e
44
selvagens. Villa confirma que, neste período, as estradas que cortavam o sertão
ficaram alastradas de cadáveres, famílias inteiras mortas de fome e sede. O interior
ficou totalmente deserto. A população encontrava-se em estado de esfomeação e
dizimada por doenças em virtude da falta de defesa do organismo em resistir aos
agentes patológicos por falta de uma alimentação sustentável. A destruição foi tão
assustadora que as pessoas se alimentavam de raízes e frutas agrestes, couro cru
torrado ao fogo. Apesar disso, não há registro de antropofagia.
No século XIX, os registros históricos sobre as secas são maiores. Garcia (1984:65-
66) afirma que há registro de estiagem em: 1804, 1808-1809, 1814, 1824-1825,
1829, 1830, 1833, 1844-1845, 1870, 1876-1878, 1888-1889, 1898. Dessas contínuas
secas ao longo do século XIX, destacaremos apenas os fatos ocorridos em que
consideramos de maior relevância para o período. Trata-se dos períodos de 1824-
1825, 1844-1845 e 1877-1878. A seca de 1824-1825 aconteceu justamente na época
de ocorrência do movimento de independência do Brasil. O sertão nordestino foi
agravado por várias epidemias nesse momento, entre elas preponderou a varíola.
Este surto de doenças era causado em particular pelas precárias condições de vida
dos sertanejos.
É importante considerar que, durante a era colonial, não houve nenhuma ação
política voltada para aliviar os sintomas dos efeitos das secas no Nordeste. Villa
ressalta que foi apenas no período regencial que o poder central aprovou verbas
para enfrentar as conseqüências de uma seca. Em 1833, o ministro do império
autorizou a abertura de fontes artesianas no Ceará, na Paraíba e em Pernambuco.
Entre 1844-1845, outra grande seca atingiu grande parte do sertão nordestino.
Segundo Guerra (1927) nessa época nem aves se viam nas estradas. A imagem de
desertificação era bem expressiva. Ocorreu também a dizimação de quase todo o
rebanho. É nesse momento em que há o surgimento de pressões políticas locais.
Mantém-se um olhar para os problemas sócio-econômicos do Nordeste. Uma das
ações, ainda que paliativa e sem resultado concreto satisfatório, está na criação da
45
Comissão Cientifica de Exploração (1856). Essa comissão, conhecida também como
comissão do Ceará e pejorativamente como a comissão das Borboletas, quando não
de comissão defloradora, fez parte da ação política de intensificação, construção e
conhecimento do território nacional. Ela foi criada pelo Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro, com o apoio do imperador D. Pedro II. A comissão foi
concretizada pela lei do orçamento e despesas de 1857 e 1858. Foi organizada em
cinco sessões: Botânica dirigida por Francisco Freire Alemão, um dos mais
conhecidos botânicos brasileiros; Geológica e mineralógica, por Guilherme Schuch
de Capanema, o adjunto da seção de Geologia e Mineralogia do Museu Nacional
desde 1849; Zoológica por Ferreira Lagos; Astronômica e Geográfica por Giácomo
Raja Gabaglia, matemático e lente da Academia da Marinha; Etnográfica e Narrativa
da viajem pelo conhecido poeta romântico Antonio Gonçalves Dias, professor de
História e latim do Colégio Pedro II.
A preocupação da equipe era a busca de recursos materiais de possível uso
econômico bem como o estudo da qualidade dos solos agrícolas e das águas em
função de encontrar soluções para os problemas causados pelas secas. A expedição
científica contou com 14 camelos importados da Argélia. Os dromedários faziam
parte de uma ação política, logo frustrada, de aclimatá-los como forma de solução
para os problemas de transporte no sertão nordestino. Ainda durante a expedição, os
camelos foram trocados por jegues
2
. Os gastos com a importação dos dromedários
foram altos. Por fim, a experiência de aclimatação desses animais foi um fracasso.
Eles não se adaptaram e morreram anos depois.
O certo é que, nas ações políticas brasileiras, a corrupção parece estar sempre
presente. Antonio Henrique Leal (apud Villa, 2001:38), historiador e sociólogo
maranhense destacou que o trabalho da comissão científica não apresentou nem
uma obra de utilidade, nem um poço artesiano, nem um escrito científico sobre
2
O mesmo que jumento, animal domesticável utilizado como animal de tração e carga, principalmente no interior
do Nordeste.
46
Botânica geodésia ou finalmente simples descrição que ateste o que de fato
estudaram ou observaram.
É válido observar que, na verdade, o Imperador D. Pedro II não estava preocupado
com as condições sociais do homem nordestino que sofria com as conseqüências
das periódicas secas. O expedicionário mais importante desta comissão era
Guilherme de Capanema, especialista em Geografia e Mineralogia. A província do
Ceará foi escolhida não em função de ser a mais castigada pelas secas, mas em
função das opiniões de que existiam nessa província grandes jazidas de ouro e
outros materiais preciosos. O Imperador buscava, de certa forma, a expansão das
políticas portuguesas de exploração, ignorando, à vista disso, os problemas sociais
dos flagelados das secas. O resultado de tudo isso é que o projeto não ofereceu
nenhum benefício social e o governo perdeu todo o dinheiro investido.
Em 1877, a situação no sertão nordestino tornou-se extremamente grave. Mais uma
seca voltou a angustiar o sertanejo. Houve poucas e localizadas chuvas e nenhuma
safra. O resultado foi um grande êxodo rural em direção às grandes cidades.
Caminhavam-se léguas pelo sertão e não se encontrava nenhuma folha verde. O
gado morria por falta de água e comida.
Villa apresenta que esta seca foi a maior do século XIX, na qual morreu
aproximadamente 5% da população brasileira e acabou transformando o Nordeste
em uma região-problema. Há historiadores que mencionam ser essa seca a maior
em toda a história do Nordeste. Resultou na morte de quase metade da população
dos sertões. Calcula-se que morreram por estimativa 500 mil pessoas neste ano,
vítimas dessa apavorante seca. Os efeitos para a economia nordestina foram
devastadores. Os historiadores afirmam que o Nordeste nunca mais foi o mesmo de
antes. A pecuária não teve mais o prestígio que até então desfrutava na economia
regional. O setor primário - a agricultura - foi devastado em virtude do abandono do
campo pela população. Houve, então, um insulamento da região nas discussões
47
políticas, pois, enquanto o Nordeste vivia a ressaca desta devastosa seca, o sul vivia
o boom do café.
A partir de então, o Sudeste-Sul passou a ser o pólo de atenção das políticas
nacionais. E o Nordeste, por sua vez, passou a ser identificada como uma região-
problema. Os investimentos do poder central concentraram-se no Sudeste-Sul para o
desenvolvimento da cafeicultura e em seguida para o desenvolvimento industrial. Já
o Nordeste, sem projeto econômico e social, passou a fornecer mão-de-obra barata
para as outras regiões do país. Sem sustentabilidade local, formou-se um fluxo
migratório intenso do Nordeste para outras regiões, realidade representada por
Graciliano Ramos em Vidas Secas.
No século XX, há ocorrências de secas em diferentes momentos. Garcia (1984)
expõe que aconteceram secas em 1900, 1903, 1915, 1919, 1932, 1942, 1951-1953,
1966, 1970, 1976, 1979-1984. É importante frisar que os registros históricos variam
de acordo com os historiadores. Em nosso trabalho, colocamos relevância nas secas
de 1915, 1932, 1951-1953, 1958, 1970, 1979-1984. Nesse período, as políticas de
combate às secas no Nordeste foram constantemente motivos de críticas por
técnicos, especialistas e sobretudo por escritores e intelectuais nordestinos que
presenciaram de perto as conseqüências tão destruidoras de tal fenômeno natural e
regional.
Em 1915, ao contrário das previsões de que no Nordeste haveria muitas enchentes,
a região passou por uma grande seca que ficou marcada no imaginário nordestino,
por meio da história e da literatura, como a grande seca de 15. Nesse ano, em
muitos estados nordestinos, a situação foi desesperadora. Muitas pessoas morreram
de fome. Outras migraram para a região litorânea, outras para os centros de maior
progresso econômico. A lavoura perdeu-se completamente, o gado definhou e o
preço dos alimentos atingiu valores exorbitantes. Entre os sertanejos que migraram,
muitos eram pequenos proprietários que venderam suas terras a preço ordinário. Ou,
quando não, muitos abandonaram definitivamente suas casas, roçados, criações e
48
migraram sem um norte certo para resistirem aos efeitos ambientais e manterem-se
vivos. Nos processos migratórios, muitos sertanejos morreram de fome e sede. Os
pais, muitas vezes, abandonavam os filhos por não ter como alimentá-los. Os
flagelados se reuniam em lugares denominados de campo de concentração. Nesse
espaço, aglomeravam-se sem a mínima higiene e, como conseqüência, os retirantes,
principalmente as crianças, eram vítimas de doenças como varíola, sarampo e
disenteria, que causavam a morte dessas crianças, já que não eram assistidas com
ações de saúde preventivas pelos órgãos públicos.
Villa menciona que, enquanto os sertanejos migrantes sofriam as conseqüências das
secas, as autoridades políticas os desprezavam. Os sertanejos, no discurso das
autoridades, eram animais brutos, pois de homens só tinham a fisionomia e a
maldade. Eram vistos como os rebotalhos da sociedade. Essa era a visão científica
do Evolucionismo do século XIX, ainda muito presente na intelectualidade brasileira.
Com a sucessão de poucos investimentos para o combate dos efeitos do tenebroso
enigma nordestino – a seca -, em 1932 o Nordeste é novamente vítima de uma
grande seca e, mais uma vez, sem que houvesse investimentos públicos
consideráveis para suprimir os resultados da falta de chuvas, o homem sertanejo
sofreu com a falta de ações políticas concretas que pudessem resolver tais
problemas. Neste período de 1932, há registros históricos afirmando que pequenas
cidades ficaram praticamente desertas. O comércio parou. Na zona rural, o quadro
foi desolador. O gado definhava e morria de forma assustadora pela falta de pasto e
água. Animais eram vistos com apenas o couro sobre os ossos.
Em vários estados do Nordeste, a situação era de calamidade pública. Sem
perspectivas de vida, os retirantes debilitados invadiam cidades, perambulavam
pelas ruas. Crianças raquíticas com barriga dilatada, as pernas desfiguradas pelas
inchações choravam de fome e sede e se recusavam a andar. Diante dessa
situação, a ajuda governamental era um fato que não surgia. Sem auxílio, vivendo as
conseqüências “áridas da seca” formou-se nesse momento um grande êxodo
49
constituído de homens analfabetos em direção às terras do Sudeste-Sul, que se
transformaram, até hoje, no eldorado mítico do nordestino expulso do semi-árido.
Em 1951, quando Getúlio Vargas foi eleito presidente da República, o início de seu
governo foi marcado por mais uma seca no Nordeste, a de 1951-1953. Este
cataclismo atingiu até o Maranhão, estado que não está localizado no polígono das
secas. O governo não tinha estrutura nem recursos para planos emergenciais. As
pessoas, para escaparem da morte, alimentavam-se de vegetais típicos da região
xiquexique, maniçoba, macambira, entre outros. Essa realidade, freqüente em
períodos de seca no Nordeste, foi, anteriormente, registrada por Graciliano Ramos,
em Vidas Secas. O narrador registra que Fabiano (...) Chegara naquele estado, com
a família morrendo de fome, comendo raízes! (Vidas Secas, 1938:22).
Diante de tanta calamidade causada por tão forte seca e com a melhoria do sistema
de transporte rodoviário, a migração que até então se realizava em vapores
3
pela
costa litorânea tornou–se constante para os estados do Sul e do Sudeste. Nos
denominados paus-de-arara, muitos nordestinos deixaram seus lares e familiares,
em viagem de até 14 dias sem as mínimas condições de segurança até o Sudeste do
país. Estima-se que cerca de 350 mil pessoas retiraram-se do Nordeste nesse
período. Os retirantes eram atraídos pela crescente oferta de empregos em virtude
das políticas governamentais direcionadas para o processo de modernização do
país.
No governo de JK, com ênfase direcionada para o processo de industrialização do
Sudeste e a construção de Brasília, não houve ações e investimentos concretos para
o combate dos efeitos das secas. O DNOCS operava com parcos recursos. O certo
é que, em 1958, mais uma seca chegou e abalou o tão angustiado espírito do
sertanejo que não tinha preparo suficiente para resistir às conseqüências de mais um
histórico flagelo. E como antes, a esperança para milhares de flagelados foi a
migração para São Paulo. Os efeitos mais desgastantes das secas no Nordeste
3
Vapores eram navios arremessados por máquina de vapor.
50
foram sem dúvida nas fontes primárias da economia Nordestina: agricultura e a
pecuária. Sem as chuvas necessárias, o desgaste na agricultura e na pecuária foi
inevitável, o que, de certa forma, acarretou o desgaste econômico do Nordeste.
Além disso, pode-se mencionar que os poucos recursos contra as secas eram
administrados em favor dos interesses políticos e econômicos da elite nordestina.
Esse poder político que controlava os recursos de combate aos efeitos das secas
pelas oligarquias nordestinas se popularizou com a expressão de “industriais da
seca”. Esse é o quadro sócio-político opositivo no que se refere ao uso dos recursos
públicos que, pelo direito democrático, seriam destinados aos afetados pelas secas.
Em 1970, o país está sob o controle do militarismo. O Nordeste enfrenta mais uma
seca. Os serviços de meteorologia antecipavam o fato. Entretanto, quando
anunciada a possível realização dessa ocorrência, as autoridades militares não
deram importância ao fato, e outra vez o sertanejo teve que sofrer as causas dos
desequilíbrios provocados pela seca. O panorama no sertão foi trágico nesse
momento. Rios, açudes secaram e milhões de pessoas no polígono passaram fome.
Em algumas regiões do Nordeste, foi decretado estado de calamidade pública. Para
as autoridades que ficaram apenas sentadas no conforto de seus escritórios, não
havia seca. Para elas, havia apenas algumas situações anormais em alguns locais
isolados no interior da região. O certo é que, naquele ano, a lavoura se perdeu por
completo. Sem terem o que comerem, os flagelados da seca saqueavam o comércio
nas mais importantes cidades do sertão. E devido à baixa condição imunológica
resultada da precária alimentação, alastrou-se uma epidemia de doenças como tifo,
sarampo, gripe, disenteria, vitimando, principalmente em crianças que morreram
desidratadas por falta de assistência social.
Registrou-se, nesta época, um elevado aumento do índice de mortalidade infantil.
Ocorreu, além disso, o surgimento de um surto de ratos e formigas relacionado com
o desequilíbrio ambiental provocado pela seca. Os roedores, por sua vez, eram
mortos e servidos como alimento. No campo, a situação foi mais alarmante. A
51
pastagem secou pelo efeito da estiagem e o gado morreu por falta dela. E as
autoridades da união continuamente ignoraram o noticiário da grande imprensa e de
autoridades regionais e não houve de imediato liberação de recursos emergenciais
para o socorro de vítimas da seca.
Villa destaca que, com a incessante demanda de mão-de-obra na região Sudeste e
Centro-Oeste, muitos nordestinos de novo migraram incessantemente. As passagens
de ônibus esgotavam-se com dois meses de antecedência. Em São Paulo,
chegavam em média 700 pessoas por dia, conforme divulgação da imprensa. Devido
a esse grande fluxo migratório, resultaram no surgimento de manifestações de
discriminações contra os nordestinos nos estados do Sudeste. Situação que segue
até o momento atual.
Com a forte pressão da imprensa e das autoridades políticas locais, o governo
federal liberou recursos emergenciais para frentes de trabalho na construção de
estradas e açudes. É importante salientar que o valor recebido pelos sertanejos por
um dia de trabalho árduo era suficiente para comprar apenas 1 quilo de feijão. E
muitas vezes recebiam com longos períodos de atraso. Sabe-se que novamente foi
uma medida paliativa que não aliviou em nada o sofrimento dos sertanejos vitimados
pelos efeitos da seca.
O governou federal apostou num projeto de integração nacional por meio do qual
objetivava aproximar as diversas e diferentes regiões brasileiras. Em princípio, esse
projeto surgiu com a de construção da Rodovia Transamazônica como solução para
a integração e colonização da Amazônia pelos milhares de nordestinos
desempregados em conseqüência da seca. A construção da rodovia iniciou-se em 1°
de setembro de 1970 e permanece inacabada até o momento atual. Foram milhões
em investimentos usados de forma inconveniente. O estado atual da rodovia é ligar
nada a lugar nenhum. Das pessoas que para lá migraram, estima-se que apenas a
metade vive às margens da rodovia. As demais retornaram frustradas aos seus
locais de origem. Ao final desse período de seca, assistiu-se ainda um inchaço
52
urbano nas principais capitais do Nordeste e também do Sudeste do país com
pessoas morando em locais de extrema situação de precariedade.
Após essa seca, os sertanejos que lá permaneceram ou que ao final da seca
retornaram, voltaram a sua rotina habitual. E as políticas públicas do governo militar
entre 1970 e 1979, foram precárias. Os investimentos econômicos do governo
central no Nordeste só contribuíram de forma significativa para aprofundar o fosso
entre o Nordeste e as regiões Sul e Sudeste. Estima-se que 70% dos empréstimos
do BNDE foram direcionados ao desenvolvimento do Sudeste. São Paulo, por sua
vez, recebeu a maior parcela. O certo é que em quase dez anos não houve nenhum
crescimento econômico no Nordeste
Em 1979, tem-se início mais uma grande seca que se prolongou até 1984, a última
ocorrida no século XX e até o momento atual. É importante mencionar que
atualmente ainda não há investimentos suficientes no Nordeste como prevenção aos
efeitos de futuras secas.
Villa menciona que, no percurso dessa seca, os recursos emergenciais liberados
pelo governo federal foram insuficientes e, ao contrário de antes, os recursos foram
liberados para os grandes proprietários de terra para benfeitoria em suas
propriedades. E o sertanejo agregado, como sempre, passivo de barganhas foi
vítima do meio ambiente e do meio social. No discurso oficial, a meta era liberar
recursos aos proprietários de terra para que eles pudessem oferecer trabalho aos
agricultores e com isso manter essa população em suas localidades, evitar, pois, o
êxodo rural em massa. Meta que, entretanto, não ocorreu. Muitas pessoas deixaram
suas casas. Os que não podiam pagar passagem de ônibus caminhavam léguas
pelas estradas, pegavam caronas em caminhões em direção aos grandes centros
urbanos do Nordeste e do Sudeste do país.
É importante destacar que nesse momento as políticas do atual presidente João
Baptista Figueiredo, último governo militar, estavam centradas no desenvolvimento
53
industrial. Não havia, de certa forma, investimentos para o desenvolvimento de
projetos agrícolas. Sabe-se que a seca afetou principalmente os pequenos
agricultores que mantinham uma agricultura de subsistência. Na falta disso, a fome
era uma ocorrência inevitável. Dessa forma, o projeto de desenvolvimento industrial
e de exclusão de projetos agrícolas de Figueiredo recebeu fortes críticas do Banco
Mundial. Nos períodos mais críticos desta seca, várias áreas rurais do Nordeste
ficaram em condições desérticas. O gado morreu, a lavoura perdeu-se por completo.
Os açudes e os riachos secaram e os recursos emergenciais foram poucos para
amenizar a miséria do povo, que se encontrava em diferentes locais do sertão.
Com o percurso do tempo, ações políticas concretas eram apenas planos
imaginários e discursivos dos órgãos governamentais, sobretudo, da SUDENE, que
havia sido instituída com o objetivo de elaborar ações globais para o
desenvolvimento do Nordeste e criar estruturas para o combate às secas. A
destruição da lavoura e da pecuária causou a paralisação do comércio e da indústria
regional. Enquanto a ajuda com os recursos dos planos emergenciais do governo
federal não atendiam às necessidades humanas básicas dos sertanejos, a
população, sobretudo crianças, morria de fome, e as autoridades mantiveram-se
insensíveis diante de tanta penúria e calamidade.
O certo é que, segundo Villa, no final de 1983, com o fim da seca que durou cinco
anos consecutivos, a economia brasileira apresentava uma acentuada crise. A
agricultura, a indústria e o comércio tiveram queda. O PIB caiu e a inflação atingiu
níveis exorbitantes, chegando a atingir um índice de 211% ao ano. No Nordeste, em
particular, não houve nenhum resultado econômico benéfico. Até o momento atual,
não há políticas públicas eficazes para o desenvolvimento econômico do Nordeste. E
os pequenos agricultores continuam subservientes aos latifundiários e sobrevivendo
por si sós, enfrentando as limitações ambientais e sociais. E a mudança sócio-
econômica no Nordeste espera-se até o momento presente. Em relação às perdas
humanas, econômicas e ambientais, nesta seca, podemos sustentar que são
incalculáveis. É possível assegurar que o número de perda humana deve ter sido
54
superior a 100 mil pessoas, mais que duas vezes o total de soldados americanos
mortos na Guerra do Vietnã.
2.2 – A migração do homem nordestino: a evidência do desaparecimento de uma
identidade histórico-social
Entende-se, de acordo com os apontamentos de Santos (1994:6), por migração o
processo de movimento da população pelo espaço. Esse movimento é causado por
alterações ambientais, econômicas, sociais e políticas que ocorrem em diferentes
espaços geográficos delimitados. Na verdade, os seus significados e suas
motivações variam, pois, tanto no tempo como no espaço.
Santos (op.cit.:6) esclarece que, na realidade, a migração não é um fenômeno atual.
Ela é antiga. Desde os tempos primitivos, o homem se desloca pelo espaço. Sendo
antigo, esse fenômeno é constantemente renovado por fatores diversos. Em cada
momento histórico, as condições que levam o indivíduo a deixar um lugar por outro
são diferentes, relacionadas ao desenvolvimento de cada sociedade. Diante disso,
Santos reafirma que a migração é um fenômeno histórico e social.
É com base nesses preceitos de Santos que tratamos da intensidade do fluxo
migratório do homem nordestino em princípio para os diversos pontos mais
desenvolvidos do Nordeste e depois também para outras regiões do país.
Apontaremos as principais causas desse constante fluxo e também as
conseqüências nefastas que tal fenômeno acarretou para muitos nordestinos que se
desprenderam de sua terra natal para aventurar em outras regiões, por um
imaginário alimentado pela situação de vida melhor.
A partir disso, consideramos que as causas do fluxo migratório do homem nordestino
são diversas. A concepção prevalente, em sua maioria, é de que a migração do
homem nordestino, em particular, a do pequeno agricultor está relacionada ao
desequilíbrio ambiental provocado por periódicas secas que, por um efeito dominó,
55
afeta as condições socioeconômicas do homem do sertão. Na falta de chuvas
regulares, a terra torna-se improdutiva. Como solução imediata para suprir suas
necessidades básicas, a migração apresenta–se como recurso rápido, como solução
para a precisão orgânica e mental. O fluxo migratório do homem nordestino deu-se,
pois, pela desigualdade econômica em nosso país.
A extração vegetal na Amazônia, a expansão industrial em São Paulo e o
crescimento agrícola em São Paulo, Paraná e Planalto central foram as forças
responsáveis pelo processo de configuração do perfil industrial e capitalista
brasileiro. Com isso, buscaram-se forças humanas para atuação nesse sistema
econômico em desenvolvimento. Com periódicas secas, falta de oferta de trabalho e
salários condizentes, esses fatos apresentaram-se como os motivos mais
indiscutíveis de repulsão dos sertanejos, nas zonas de emigração. O fato é que a
mudança econômica no Brasil alterou o modo de vida do homem no espaço
geográfico.
É importante salientarmos que esta migração, principalmente para o Sudeste, se
intensificou quando o expansionismo industrial ganhou força e a agricultura que até
então era o sustentáculo da vida nacional passou a ser marginalizada. Os recursos
governamentais passaram a ser direcionados apenas para a expansão industrial.
Desvalido pelo governo, o homem buscou na cidade outras formas de sobrevivência.
No processo de redistribuição geográfica da população brasileira, a região Nordeste
foi a região que a expulsão do trabalhador rural foi mais acentuada. Há estimativas
de que 76% dos emigrantes nordestinos deslocaram-se, sobretudo para o Sudeste.
São Paulo, por sua vez, recebeu a grande maioria. Esse processo ocorreu também
devido ao fator de estagnação ou decadência da economia regional: a economia
açucareira. A agricultura de subsistência não possuía capacidade de elevar a
produtividade da terra para atender às necessidades produzidas pelo crescimento
familiar. O excedente familiar teve como alternativas possíveis o trabalho em outros
locais da mesma região ou a emigração para os centros urbanos para que os demais
membros da família pudessem sobreviver com o produto da agricultura familiar. Isso
56
significa, portanto, o estabelecimento do equilíbrio interno da unidade da produção
familiar.
Há quem afirme que a migração em si não é nenhum bem, nem um mal. Poderá ser
uma ou outra coisa, dependendo do destino que se lhe dê e dos resultados
econômicos, sociais e culturais e espirituais que dela derivem para o país e para os
próprios migradores. Sousa (1956:15), por exemplo, testemunha que tem havido
muitos clamores no Brasil contra o êxodo rural, o que, na opinião dele, não passa de
uma feição de migração espacial em nosso meio. Deixar, porém, os locais
empobrecidos, afetados por negativas condições de vida em busca de outras onde
passam a usufruir uma condição de vida mais digna, humana e onde podem ser mais
úteis a seu próprio país, isso constitui um valor benéfico e não maléfico, como
proclamam muitas vozes da intelectualidade e da política brasileira.
Sousa (op.cit.:26) confirma que a seca é um episódio que acelerou o processo
migratório, mas ela não é, no seu fundamento, a causa central do processo
migratório do sertanejo. Ela apenas acelera, precipita, agrava o fenômeno migratório.
Em outros momentos, mesmo havendo chuvas, havia uma média elevada de
nordestinos direcionando-se para os centros econômicos mais desenvolvidos. Diante
disso, conclui-se que o fato não é movido por uma causa ambiental, mas por uma
força psíquica que conduz o migrante numa constante aspiração de riqueza, de
conseguir fortuna, de maneira fácil.
Em certo sentido, a migração é uma realidade e que, até certo ponto, tem trazido
conseqüências acidentais para o homem nordestino. Esse processo causou o grande
crescimento populacional de várias áreas metropolitanas no Brasil. A maioria dos
migrantes pertencia às camadas mais pobres da população, originários da zona rural
onde eram pequenos proprietários, parceiros arrendatários. Sem preparo técnico-
profissional para atuarem na indústria e comércio dos grandes centros, em particular,
Rio de Janeiro e São Paulo para onde se direcionavam, eles atuavam em tarefas
braçais na indústria, na construção civil e no setor informal da economia, atividades
57
estas que não fornecem subsídios para a realização de uma vida digna, passando a
viver de forma marginal na urbanidade. É nesse momento que o imaginário
impressiona-se com a verdadeira realidade social. Apresenta-se então o sentimento
de frustração e o desejo de voltar aos seus locais de origem, o que, muitas vezes,
torna-se impossível por diversos fatores: falta de recursos, constituição familiar e
também pela nova adequação a partir do nada.
Como está representado em Vidas Secas (1938), o processo de desterritorialização
e desenraizamento do indivíduo (Fabiano) do seu espaço onde se constituiu a sua
identidade, enquanto um conjunto de características pisicossociais comuns entre os
indivíduos do mesmo espaço social, traz resultados danosos a esse homem,
afetando-o social, cultural e emocionalmente. A migração ocasiona perdas
referenciais no que se refere às possibilidades de constituição de uma cidadania
plena. A não constituição de sua identidade como cidadão tira-lhe os direitos políticos
no sentido de manifestação de voz ativa na qual se reporta ao processo de
mudanças e constituição de novos valores socioculturais.
Situações que também podem ser observadas no percurso de Fabiano são as
perdas referenciais que ocasionam uma extrema situação de frustração,
marginalização e o migrante, muitas vezes, culpa-se pela situação em que se
encontra. O que ele não sabe é que é presa de um sistema econômico opressor e
injusto, onde uma minoria desfruta dos bens públicos de promoção sócio-cultural.
Sem suportar essa extrema situação de marginalização social, o migrante em seu
refúgio parte para o uso de drogas, alcoolismo, roubos como mecanismos aleatórios
de superação da situação em que se encontra. Essa dramática situação o leva ainda
a assumir atitudes de apatia social e de indiferença na observância dos princípios
éticos e religiosos, o que ocorre com Fabiano em Vidas Secas:
(...) Preguiçosos, ladrões, mofinos (p. 117).
(Fabiano) estava convencido de que todos os
habitantes da cidade eram ruins (p.117).
58
(Fabiano) Bebeu ainda uma vez e empertigou-se,
olhou as pessoas desafiando-as
- Apareça um homem! Berrou (p.117).
Diante disso, observa-se que, no itinerário do migrante, o seu imaginário é movido
pela práxis de libertação. Em vista disso, podemos avaliar que o ato migratório
reflete, em princípio, o imenso desejo de tantos migrantes de alcançar, de superar as
limitações ambientais, geográficas, sociais e alcançar a liberdade de serem aceitos,
de poder viver em paz, sem perseguições. Com isso, o migrante busca a
permanência num local onde possa ter a sua sustentabilidade por autodeterminação.
É o objeto que Fabiano persegue em seu curso na narrativa.
59
CAPÍTULO III
AS CONDIÇÕES SÓCIO-HISTÓRICAS DE VIDAS SECAS
3.1 - O Modernismo literário no Brasil
Vários autores contemporâneos manifestaram-se sobre a produção literária do
Modernismo literário. Neste capítulo, entre outros autores, enfatizamos as idéias de
Passoni et alii (1998) e Oliveira (2002). A formação do pensamento intelectual
brasileiro direcionou-se de forma bifurcada. Por um lado, os intelectuais
manifestavam-se em oposição às influências culturais européias e, por outro, as
rejeitavam por necessidade de promover a sua independência cultural. A dicotomia
nacional versus estrangeiro perdurou em toda a História do Brasil e pode ser
observada nas sátiras de Gregório de Matos, nas vozes poéticas de Cláudio Manoel
da Costa e Tomás Antonio Gonzaga, na prosa romântica de José de Alencar e com
maior esforço no Romantismo, quando as vozes nacionalistas “parecem” apresentar
um grito de maior sustentabilidade em defesa de valores e interesses nacionais em
detrimentos de valores estrangeiros que nessa ocasião desfrutavam de grande
prestígio social e elegância. O chique era mesmo ignorar o Brasil e delirar por Paris
(Broca, 1960:95).
Pode–se mencionar que a mobilização modernista foi, antes de mais nada, resultada
mais por efeitos econômicos do que artístico-literário. Essa mobilização foi
direcionada por um carregado sentimento nacionalista. A configuração desse
pensamento deu-se, ainda que de forma bifurcada, em virtude das ideologias
histórico-culturais levantes, no auge de crise da economia agrícola e início do
processo de configuração do papel industrial e capitalista brasileiro, que, para se
concretizar de fato, teve de se prender ao setor estrangeiro. O dinamismo da relação
entre o estrangeiro e o nacional constituiu-se nesse momento de crise quando o
pacto do bloco dominante externo desestabilizou a organização interna, num
confronto ideológico interessante: o setor nacional, ao se ver ameaçado pelo capital
internacional, apelou para o nacionalismo e pediu a proteção do estado por meio da
60
expressão científica e artística para se salvar. Como justificação desse fato,
afirmamos que a decadência da economia açucareira no Nordeste e cafeeira em São
Paulo foi afetada pela economia externa. A produção de açúcar sofreu com a
competição dos franceses e dos ingleses que também mantiveram essas atividades
econômicas em suas colônias. E a produção cafeeira foi duramente atingida com a
queda do preço do café afetada pela intensa crise econômica ocidental que levou a
queda da Bolsa de Nova York em 1929. O que fez com que não houvesse
investimentos necessários à política de valorização do café.
Assistiu–se, no início do século XX, a estas alterações, de ordem econômica,
seguidas naturalmente de modificações sociais. Logo, uma sociedade de base
agrícola - latifundiária foi sucedida por outra de caráter urbano social. Alterou-se
então a problemática brasileira. Dificuldades, até este momento inexistentes,
surgiram e iniciou-se o momento da maciça imigração européia para o Brasil, o que
obrigou o brasileiro a uma nova posição no sentido de igualar-se ao europeu que se
fixou no Brasil e não se deixar suplantar. O sentimento de “brasilidade” nesse
momento é sacudido e urgiu valorizar o que lhe pertencia, o nacional. São Paulo, o
centro econômico e de progresso brasileiro, foi o palco de inúmeras transformações
sociais e na qual situou-se, em princípio, o pensamento modernista brasileiro
insurgido em defesa dos valores culturais brasileiros.
Nesse momento de crise interna, o capitalismo estrangeiro fazia-se cada vez mais
presente no início do século XX. Fausto (2002) afirma que os serviços básicos das
maiores cidades brasileiras estiveram em mãos de companhias estrangeiras. A partir
disso, marcamos que o movimento modernista foi, antes de qualquer coisa, um
movimento político cultivado por meio da expressão artística pela burguesia nacional
economicamente em crise que clamava por um nacionalismo sustentado pela teoria
lingüística, artística e social. Logo, “nacionalismo” tornou-se a unidade léxico-
semântica de forma ideológica mais cultivada pelos escritores modernistas.
61
Desse modo, as manifestações do Modernismo podem ser estruturadas numa
articulação de causas e conseqüências, muitas delas situadas fora do sistema
literário. O Modernismo não foi um acontecimento aleatoriamente marcado pela
Semana de Arte Moderna em São Paulo em virtude das comemorações dos cem
anos de Independência do Brasil. Ele é resultado de um processo econômico e
histórico não definido de forma clara pelos burgueses afrancesados da Semana de
Arte Moderna.
A Semana de Arte Moderna realizou-se em São Paulo em 1922. No ideal de seus
organizadores, apresentou uma autêntica teatralização da modernidade em reação
ao cultivo de valores (ultra)passados. Como já afirmado, o movimento modernista
não se limitou à semana paulistana. Na verdade, essa consciência nacionalista
começou antes de 1922 e se prolongou pela década de 30. Tampouco se restringiu a
São Paulo. Houve uma modernidade carioca, mineira e nordestina. O raio do
movimento modernista foi mais amplo do que realmente é divulgado atualmente.
O que não é divulgado é que, assim como a Exposição Universal do Rio de Janeiro
de 1922, a Semana de Arte Moderna fazia parte da agenda oficial comemorativa do
centenário da Independência. O evento, entretanto, teve grande impacto na época
por formalizar e discutir questões que já estavam sendo delineadas em relação aos
hábitos e costumes nacionais. Em momentos experienciados por crises, buscava-se
um fortalecimento cultural no sentido de redefinir a identidade brasileira que
abrangesse todos os seguimentos sociais do país, alguns então marginalizados ou
suficientemente marginalizados. A ênfase desse grupo foi direcionada mais aos
aspectos emocionais e idealizados do corpo social brasileiro do que em suas
dimensões econômicas, sociais e políticas. Explica-se, com isso, a tão acentuada
prioridade dos modernistas em celebrar o uso lingüístico. A língua corporifica o papel
que cada nação tem a desempenhar na história. Ela constitui uma força integradora
e de fortalecimento de uma identidade de um estado estabelecido e fortificado por
seus ideais de nacionalidade. Afinal, Um estado-nação é determinado pela língua e
pela cultura.
62
A sustentação do pensamento modernista em São Paulo é de origem estruturalista
importada da França por Oswald de Andrade. Constitui uma consciência
estruturalista na medida em que rejeita a diacronia e prima pela sincronia, sobretudo,
no uso lingüístico expresso no romance e na poesia na primeira fase do Modernismo
brasileiro. É um movimento, em princípio, de negação e destruição de cânones
anteriores (...) (Rezende 1993:8). É imemorial, ainda que de aparência, pois essa
reação ao passado histórico aqui divulgada é apenas fruto de novas tendências
européias de vanguarda, uma vez que, por ser modelo europeu, foram esteticamente
admiradas, adotadas e poderiam ser integradas à sociedade brasileira por
recomendação da gálica burguesia paulista. Essa foi a verdadeira identidade do tão
reacionário Modernismo paulistano.
É inegável a influência francesa nos modernistas paulistanos. Nos anos 20, assistiu-
se na capital francesa a uma atmosfera de descontraída aceitação e valorização de
tudo: a arte do negro, os exotismos, os primitivismos. Esse fato proporcionou aos
modernistas de são Paulo o direito de imitação desses padrões franceses. O que
seria na Semana de Arte Moderna (1922) uma evocação para o despertar de um
sentimento de brasilidade, não passava, na verdade, da inserção de mais um
galicismo na cultura brasileira, manifestado por caipiras das rodas chiques de Paris
naquilo que advogava ser uma expressão autenticamente brasileira.
Para Carvalhal (1970:149) não há em literatura geração espontânea. Tal como a
língua em que se expressa, ela não basta a si mesma. É fruto de influências
diversas, de contatos permanentes, de múltiplas inspirações alheias que, caindo em
terreno fértil, logram em florescer e alcançar originalidade própria e características
individuais. Por esse caráter de influências, Carvalhal menciona que a presença de
valores franceses no Brasil constitui uma tradição. Histórica e culturalmente, estamos
ligados à França desde a fomentação do Iluminismo no Brasil, por meio do qual
inspiraram-se as idéias liberais da Inconfidência Mineira.
63
Alguns anos depois da Semana da Arte Moderna, em avaliação ao movimento, os
modernistas paulistanos descobriram que não haviam feito, até então, mais do que
perpetuar um hábito secular neste país: importar modas literárias e correntes de
pensamento com as quais interpretavam a própria realidade. Não distante de dar um
caráter nacional à nossa literatura, não se subtraíam ao “destino” de nação periférica,
que vivia com a convicção atávica de que tudo o que chegasse dos centros mais
avançados seria, de qualquer maneira, melhor, superior ou mais sofisticados do que
a produção local. E por isso deveria ser imitado.
Oswald de Andrade (1928; apud Oliveira, 1990:65) avaliou o Modernismo:
ainda não proclamamos direito a nossa
independência. Todas as nossas reformas, todas as
nossas reações costumam ser de dentro do bonde
da civilização importada. Precisamos saltar do
bonde, precisamos queimar o bonde.
Podemos destacar com esta afirmação que o imaginário ingênuo dos Andrades de
São Paulo estava centrado na busca da realização de um desejo compulsivo de
constituir um Brasil incontaminado de influências culturais externas. Eles almejavam
um Brasil estruturalista em si e para si. Sabemos, porém, conforme a afirmação de
Carvalhal (1970), que este fato constitui uma atitude virtuosa, já que não há uma
cultura homogênea, radicalizada e fechada às influências externas. O contato direto
com valores externos é um feito inevitável em qualquer cultura, sobretudo, nas
sociedades em desenvolvimento.
Mário de Andrade (1926; apud Oliveira, 1990:65) também afirmou:
Também creio que em parte a culpa foi minha em
ignorar tanto minha gente, vivi tanto de minha vida
na Europa!..
64
O incômodo de peso na consciência é um fato presente nesta afirmação de Mário de
Andrade. A pretensão de consolidar um caráter nacional à cultura brasileira por meio
de uma conscientização crítico-literária não passou de uma utopia, de um narcisismo
paulistano. As inspirações andradinas foram buscadas na Europa. As produções dos
grandes centros eram mais avançadas. Mário de Andrade em tempo algum saiu do
Brasil, mas por convicções mantinha vínculos com a cultura francesa por meio da
Literatura. Oswald de Andrade mais do que Mário descobriu o Brasil na Europa em
suas utopias de burguês comportado nos ambientes sofisticados da França.
Foi nesse encontro–embate de valores sócio-econômicos e culturais que surgiu um
sujeito social moderno capaz de radicalizar, ainda que em vão, a nossa
independência cultural. Essa consciência paulistana de despertar um específico
sentimento de solidariedade diante das influências externas foi sustentada pela
língua e a cultura que, são elementos essencialmente determinativos na constituição
de uma nação e que, na realidade, não se concretizou. O Brasil ainda não alcançou
a tão sonhada independência econômica, cultural e lingüística.
3.2 – O manifesto regionalista: a defesa de valores nacionais e regionais.
A geração intelectual e artística que surgiu no Brasil ousadamente inovadora, na
década de 20, teve, no Brasil, pelo menos dois grupos divergentes que os estudiosos
estimam e põem em relevância para a cultura brasileira: trata-se do chamado
Modernismo (Rio–São Paulo) e o regionalista-tradicionalista-modernista (Recife). Em
particular, buscamos entender as principais idéias do movimento regionalista, de
1926, de iniciativa de Gilberto Freyre e, por ele, tempos depois, denominado de
Movimento regionalista, tradicionalista e a seu modo modernista. Esse movimento
mostrou uma nova fase de nossas manifestações culturais, a de viés regionalista,
fenômeno existente em praticamente todo o mundo, principalmente, em países de
maior extensão territorial ou densidade populacional.
65
Em 1926, na efervescência das idéias modernistas no Brasil, depois de estudos nos
Estados Unidos, Gilberto Freyre começou a sua atuação e a pôr em prática um
conjunto de idéias, fundando o movimento regionalista do Recife. O manifesto
celebrado por Gilberto Freyre em 1926 em Recife pode ser entendido como um
convite-guia para a intelectualidade nordestina no sentido de direcioná-la, por meio
de um ideal nacionalista, a valorizar os elementos regionais no cenário nacional, que,
por meio da ciência, da literatura, da pintura, do desenho, da música, evidenciasse o
ambiente e o espírito criativo do homem nordestino.
Nesse sentido, mencionamos que o Manifesto Regionalista é um documento
histórico-lingüístico de manifesto que, ao contrário do movimento paulista, que
enfatizou a atualização da cultura brasileira em relação à cultura européia e
cultivando um antipassadismo, buscou preservar a tradição cultural brasileira, em
particular do Nordeste em suas manifestações sociais, da culinária, moradia às
práticas lingüísticas. O documento buscou principalmente a defesa dos valores
regionais, enquanto valores nacionais. O esforço de reorganização interna da cultura
brasileira foi decorrido pelo fato de o Brasil suportar desde que é nação as
conseqüências deletérias de modelos estrangeiros que lhe são impostos sem levar
em consideração suas particularidades e suas diversidades físicas e sociais.
Em proteção aos valores culturais, tradicionais do passado e do presente, o
movimento do Recife, sem deixar de incluir também valiosos estímulos e sugestões
importados da Europa e dos Estados Unidos, empenhou-se, desde o seu início, em
pesquisar, reinterpretar, valorizar inspirações vindas de raízes telúricas tradicionais,
orais populares, folclóricas, algumas como que antropologicamente intuitivas, da
mesma cultura. Coisas cotidianas, espontâneas, rústicas desprezadas pelos que, em
arte ou em culturas sensíveis, somente estimados valores ao requintado e ao erudito.
Foi um movimento que procurou suscitar, estimular inteligências e sensibilidades
para as quais abriu perspectivas porventura novas que cada um seguisse ao seu
modo.
66
Como assinalou Gilberto Freyre (1976), o movimento foi de reabilitação de valores
regionais e tradicionais do Nordeste, composto por homens práticos que conheciam
de perto a realidade histórico–social da região, com seus problemas urbanos e
rurais. Na verdade, buscou-se, no evento, reunir pessoas de diversas áreas do
conhecimento para que, juntas, pudessem apresentar trabalhos focando o homem
brasileiro, em particular, o nordestino em suas relações sociais e ambientais. Assim
sendo, participaram do congresso políticos, de esquerda e direita, centristas,
literatos, fotógrafos, historiadores, professores, homens do campo ou lavradores,
homens de Pernambuco e de outros estados do Nordeste.
Há críticos que afirmam ter sido um movimento eminentemente político da classe
dominante regional empenhado em afirmar o Nordeste contra o Sul desenvolvido.
Embora Gilberto Freyre expresse que o objetivo do congresso não era desenvolver a
mística de que, no Brasil, só o Nordeste tinha valor, ele mesmo expressa no mesmo
texto que, talvez não haja região no Brasil que exceda o Nordeste em riqueza de
tradições ilustres e em nitidez de caráter (Gilberto Freyre, 1976:57). Diante disso,
podemos de fato salientar que se trata de um discurso eminentemente político,
implicitamente marcado pelos valores ideológicos da Confederação do Equador, que,
na década de 20, completava cem anos, e também pelos ideais confederativos
americanos que cederam às suas províncias autonomia política e econômico-
administrativa. A convicção de Gilberto Freyre foi movida por um ideal de
descentralização, político-administrativa em favor de uma administração político-
regional autônoma. Regionalmente é que deve o Brasil ser administrado (Gilberto
Freyre, 1976:56).
Em vista disso, Gilberto Freyre em seu texto fez severas críticas à forma de divisão
política do Brasil que teve essa ação política, como conseqüência, constantes
conflitos e turbulências internas entre estados e destes com o governo central.
Constituiu-se então no Brasil um poder central impotente, por um lado, e anárquico,
de outro. Gilberto Freyre defendeu uma administração regional de forma autônoma.
67
Gilberto Freyre (1976:55) destacou ainda ser perigoso falar-se precipitadamente de
um novo ‘sistema’ quando o caminho indicado pelo bom senso para a reorganização
nacional parece ser ou de dar-se, antes de tudo, atenção do corpo do Brasil (...),
promovendo a cultura nacional, em detrimento a tão forte presença e valorização das
culturas francesas e americanas pela burguesia nacional. Fausto (2001:96) destaca
que o presidente da ainda província de Pernambuco, o general Abreu e Lima,
contratou Louis Vauthier, arquiteto francês, para embelezar o Recife. Fausto
menciona ainda que nesse período as terras concentravam-se nas mãos de uns
poucos proprietários e o comércio era monopolizado por estrangeiros. Em vista
disso, o movimento regionalista priorizou a configuração física e social do Brasil.
Para o pernambucano de Recife, o Brasil é uma combinação, uma mistura de valores
que formam e constitui a identidade nacional. E pela defesa desse valor, em
particular, da região Nordeste, Freyre chama a atenção para a divulgação e
movimentação de estilos tradicionais da região que, aos poucos, estavam sendo
desprezados e substituídos por um falso modernismo europeizado. Contra a
firmação disto, os valores regionais, nacionais deveriam ser defendidos e
desenvolvidos. É o anúncio, o grito do nacionalismo sob o binômio de região-tradição
manifestado por Freyre no Manifesto Regionalista. Além disso, ele tece críticas ao
pensamento moderno ocidental por ver em tudo o que é antigo e oriental um
arcaísmo a ser abandonado. Para ele, a tradição é um patrimônio cultural. Por isso,
deve ser preservado como forma de constituição da identidade nacional; e nordestina
em particular.
Freyre (1976) frisou no documento que o Nordeste é uma região que muito tem
contribuído em oferecer à cultura ou à civilização brasileira autenticidade e
originalidade, por sua vez, de destaque no cenário mundial por suas belezas
tropicais. Entre os valores regionais destacados por ele estão: o açúcar, o Pau-Brasil,
o sal, a faca de ponta de Olinda, a rede do Ceará, a goiabada de Pesqueira, o
Catolicismo de Dom Vital, o algodão de Seridó, os abacaxis de Goiana, o Balão de
Augusto Severo, as telas de Rosalvo Ribeiro, a diplomacia do Barão de Penedo, a
68
relevante produção literária de Joaquim Nabuco, a culinária e o ‘mucambo’, que
representa o valor do abrigo humano adaptado à natureza tropical. São valores
regionais que, segundo Gilberto Freyre, tornaram-se nacionais e são, na verdade,
fontes e tradições nas quais o Brasil, em particular, o Nordeste se orgulha como
valores originalmente nacionais.
Podemos destacar que o Manifesto Regionalista apontou direções para um estudo
psicológico e antropológico significativo para a compreensão do ethos nacional por
meio do intimismo, do ecologismo e de uma atenção aos aspectos cotidianos, além
de regionais de convivência. Buscou-se um estudo sociológico do cotidiano, o que
vem de fato ocorrer na literatura expressa pela genialidade e brasilidade nordestina
de José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge Amado e
Graciliano Ramos. Esses escritores foram cultivadores do Romance social
nordestino tocados pela influência recifense iniciada em 1926 por Gilberto Freyre.
3.3 – O romance de 30: um documentário de reivindicação política para o
desenvolvimento regional brasileiro
Neste estudo, compreendemos os aspectos históricos de manifestação político-social
do romance de 30, no qual se insere o romance Vidas Secas, de Graciliano Ramos.
Tratamos, por uma abordagem historiográfica, o romance como um documento
histórico-lingüístico, pois ele comprova, na sua materialidade lingüística, dados e
informações significativos de uma realidade histórico-social, econômica e lingüística
de uma época. Nesse sentido, apresentamos a documentação desse período como
uma produção sistemática na qual se incluem aspectos que ultrapassam os limites
do texto e também numa referência que supera os limites do esteticismo literário. A
partir disso, consideramos a documentação de 30, em particular, Vidas Secas, como
uma verdadeira observação dos grandes problemas sociais desse período, uma
aplicação social consciente na incumbência de revelar, em tom de depoimento, a
realidade nacional.
69
Bueno (2006) atesta que a década de 30 do século XX se destaca pela época da
documentação social de cunho neonaturalista preocupada em representar quase,
sem intermediação, aspectos da sociedade brasileira na forma de narrativa que
beiram a reportagem ou o estudo sociológico. Observa-se num grupo de escritores a
busca de compreender e representar a realidade próxima, de valorização do homem
comum, do negro, do caboclo, assim como a preocupação de registro do uso da
linguagem coloquial desse homem simples do interior. Por isso, nesse período, põe-
se em evidência o homem mal sucedido, um indivíduo desfigurado pelas atrocidades
ecossistemáticas e se expõe, com isso, um sentimento antropofílico, insurgindo,
portanto, uma concepção nacionalista.
A produção lingüística desse período trata de um manifesto de análise negativa da
realidade, de forma que não houvesse nenhuma possibilidade de encontrar um
terreno onde pudesse fundar qualquer projeto o quer que seja. Podemos denominá-
la antiutópica. Nesse sentido, só é possível pensar em invenção depois de mergulhar
nas misérias do presente. Reunir e mostrar de forma gradual as misérias do país
foram a grandes propostas dessa documentação lingüística de 30. E isso não se
reduz apenas no plano de problemas sociais, no qual se percebe o fenômeno com
maior clareza. Há, de certa forma, uma mostragem de um conjunto de questões de
ordens ambientais, políticas, econômicas e sociais. São fatores que, até certo ponto,
afetam o homem em suas manifestações sociais.
Assim sendo, esses registros procuraram ainda a formação de uma consciência
nacional de que o Brasil é um país subdesenvolvido. Produziram-se então
romances/registros históricos que apontam, de certa forma, para o aspecto injusto da
realidade brasileira ou no aprofundamento de uma realidade equivocada que
contribuiria para esse efeito de decadência. O herói dessas narrativas, ao invés de
formar ações para transformar essa realidade negativa, servia para incorporar os
efeitos do atraso. Como exemplo disso, podem ser apontados os delírios de Fabiano,
em Vidas Secas, que, diante do caos causado pelas secas, vê-se impotente e a
evasão tornou-se o único recurso como garantia de manter-se vivo com a família.
70
Dacanal (1986:11), num estudo sobre a produção literária de 30, afirma que a arte é,
por evidência, integrante e produto de estruturas históricas da comunidade em que
surge. Com base nessa assertiva, embora a produção literária dessa década de 30
seja de fato uma produção artística, assinalamos que essa documentação apresenta
os problemas sociais do homem brasileiro desse período. Assim sendo, a literatura,
do ponto de vista da HL, reveste-se de grande importância histórico-lingüística, pois,
além de ser uma expressão artística, é a expressão do ser humano e da vida e, além
do mais, retrata épocas, idéias, costumes e valores. Posto isso, em concomitância
com o valor artístico, reconhecemos a literatura como documento histórico-
lingüístico.
Dacanal (op.cit.:11) expõe que a produção literária de 30 refere-se a um conjunto de
obras escritas no Brasil a partir de 1928, quando José Américo de Almeida publica A
Bagaceira. Fazem parte desse ciclo, além de José Américo de Almeida, escritores na
qualidade de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Jorge
Amado, Érico Veríssimo, entre outros. Esses escritores produziram obras de
temática agrária. Prevaleceu nessas produções o gênero romance, a arte burguesa
que, a partir de então, rebelou-se contra os valores da burguesia, ou seja, em
contraposição ao cenário urbano, os escritores desse período valorizaram o espaço
agrário, retratando os problemas econômicos, histórico-sociais do homem brasileiro.
As forças que permanecem no mundo narrado são as que, de certa forma, agem no
mundo real.
As obras desse período, enquanto produção representativa da realidade econômica,
política e econômico-social desse ciclo, possuem valor documental de testemunho
histórico. Numa modulação de depoimento, a realidade que está composta, integrada
e representada na literatura desse decênio reflete-se em situações, episódios,
ambientes e criaturas. A produção escrita dessa época mantém de forma
representativa um contato imediato com a vida. O universo humano é apontado, em
quadro e imagem, problema e drama, linguagem e paisagem, de forma ficcional,
71
como retrato fiel do caráter nacional e da personalidade do povo à vista de um
sistema social injusto e opressor.
O escritor dessa época é revelador de uma realidade sócio-cultural complexa. Em
forma de testemunho, procurou conhecer na capacitação e no registro de expressão
racial e humana a realidade brasileira. O ciclo nordestino, em particular, abrangeu os
problemas da seca, do cangaço, do fanatismo religioso na sua evolução que iniciou
com Franklin Távora, Domingos Olímpio, e Lindolfo Rocha para chegar à década de
30 a José Américo de Almeida, José Lins do Rego, Rachel de Queiroz, Graciliano
Ramos e Jorge Amado (Adonias, 1964:14). A atuação desses escritores limitou-se
ao exame de problemas do homem rural para que houvesse uma visão desses
obstáculos existentes como fato de preocupação social. De certa forma, houve,
portanto, uma preocupação com os problemas sociais do mundo brasileiro.
Graciliano Ramos, integrante do ciclo regionalista do Nordeste, referencia em torno
de reações perante os cesaristas nordestinos e o ambiente cáustico das secas. Ele
não expõe causas dessa complexa situação sócio-ambiental; ao contrário, debruça-
se sobre as conseqüências advindas dessa intrincada forma de organização social.
Em Vidas Secas, o escritor aponta a migração do homem nordestino, fato
conseqüente da hostilidade social e do espaço árido nordestino, que, desde o
processo de colonização, sofre os efeitos de severas secas. Dito isso, interpretando
o homem no cenário árduo, Ramos expõe no seu texto um drama sócio-ambiental
tão expressivo que o drama humano estende aos animais, às aves e à vegetação
que também sofrem com os efeitos dessa catástrofe ecossistemática em Vidas
Secas. O documentário ramiano estabeleceu-se mais propriamente no conjunto de
Vidas que secam, num cenário seco geograficamente definido: o sertão nordestino.
3.4 - A língua portuguesa no Modernismo brasileiro
No Modernismo brasileiro, mais do que um movimento de expressão artística,
assistiu-se a uma agitação político-ideológica em torno da tão sonhada língua
72
brasileira. Essa causa de cunho nacionalista surgiu no Romantismo, movimento de
idéias que coincidiu com a realização da Independência do Brasil, em torno do
escritor cearense José de Alencar. Nesse período, o agito de independência política
realizou-se, de fato, mas a emancipação lingüística, assim podemos observar,
defendida por Alencar, a partir de então, gerou polêmica entre liberais e
conservantistas. A discussão ganhou espaço e até o presente momento não há de
fato nenhum consenso entre as partes divergentes.
No início do século XX, na ocasião de comemoração da independência da jovem
nação brasileira, mais uma vez, a polêmica de emancipação lingüística ressurge, em
torno do Modernismo literário, movimento anarquista, do anti, de desconstrução do
passado no presente, conduzido por Mário de Andrade e Oswald de Andrade em
São Paulo.
Em referência a essa discussão, esclarecemos que a conjuntura não é tão simples
como podemos imaginar. A cultura brasileira é resultada da hibridização das culturas
lusitana, africana e indígenas e várias outras culturas que, ao longo da história do
Brasil, contribuíram para o fortalecimento da identidade brasileira. O rompimento
espontâneo com essa fecunda herança nos legada pelos lusitanos não é uma
realidade científica sustentável, do ponto de vista historiográfico. O rompimento com
o passado cultural tão gloriado pelos modernistas paulistas, incultos em matéria de
língua, constituiu o grito de independência - que de fato não se realizou - dos
modernistas principiantes da semana de 22.
No âmbito lingüístico, sabemos que esse grito de independência não passou de uma
utopia. Apesar de haver controversas em torno desse fato, defendemos nesse texto
a afirmação de que, no Brasil, se fala a língua portuguesa revestida de um estilo
brasileiro resultado pela sincretização dos elementos de várias culturas que a ela se
incorporaram no curso da história do Brasil. O sistema da língua é o mesmo em
todas as comunidades lusófonas. Afirmamos que são diferentes apenas os
elementos lingüísticos em função dos espaços geográficos e socioculturais. A língua
73
foi então sendo enriquecida no seu processo de expansão territorial ao longo do
percurso histórico de domínio português.
Chaves de Melo (1971; apud Barbadinho, 1972: 5-9) assegurou que a morfologia,
espinha dorsal do esquema (estema ou sistema) da língua é a mesma no Brasil e em
Portugal se nos atermos à feição culta. Se considerarmos o uso popular, salta aos
olhos que houve no Brasil uma sensível redução de flexões. Mas é, segundo o autor,
inegável que tal simplificação constitui desvio e não evolução orgânica. Tanto que os
falantes, pelos muitos fenômenos de ultracorreção, põem de manifesto essa
consciência lingüística de afastamento da norma ideal.
Os modernistas de São Paulo, motivados pela teoria social do fenômeno do
nacionalismo do século XIX, em confronto com o avanço do capitalismo e da
globalização, insurgiram-se com o objetivo de preservação de valores e da
identidade nacional. Eram intelectuais que manifestaram comportamento de
intolerância aos estrangeirismos ainda que fossem xenófilos. Na presunção de
guardiões da identidade brasileira, a língua falada no Brasil exerceu a função de
escudo em defesa contra os padrões culturais externos. Os modernistas buscaram
na língua, por meio da literatura, a realização, a coesão e a amostragem de traços
referenciais da cultura nacional.
Nesse momento de mudanças políticas, econômicas e sociais, os modernistas
objetivaram a autodeterminação e o fortalecimento da cultura brasileira no cenário
mundial. E para isso a língua nacional exerceria um papel importante no sentido de
autodefinição e independência de um estado-nação recém-constituído. Diante de tal
fato, ao lado de um processo de fortalecimento de integração nacional, o sentimento
de identidade nacional permaneceu sustentado pela independência lingüística. E foi
com base nesses fatos de base político-ideológicos que ressurgiu a tão aclamada e
intrigante idéia da língua brasileira em oposição ao ultrapassado imperialismo do
colonizador europeu.
74
Em oposição à militância de uma língua brasileira, Barbadinho (1972) numa pesquisa
sobre as tendências e constância da língua do Modernismo concluiu que não há de
fato uma língua brasileira como foi tão idealizada pelos modernistas brasileiros, em
particular, os da semana de 22. O sistema da língua do Brasil ainda é o mesmo de
Portugal, sem embargos das leves diferenças de normas e da nítida existência de
um estilo nacional americano e um estilo nacional português. Para justificar esse
fato, Barbadinho serviu-se de um texto de Mário de Andrade (1962:49), uma das
figuras-chave do Modernismo brasileiro, no qual ele declara que,
na verdade, apesar das aparências, e da brilha que
faz agora certas santidades de ultima hora, nós
estamos ainda atualmente tão escravos da
gramática lusa como qualquer português. Não há
duvida nenhuma que nós hoje sentimos e
pensamos o ‘quantum satis’ brasileiramente.
Diante desse embate em torno da língua, observamos que, num momento de
turbulências, os modernistas, por meio de protestos, manifestos e a literatura
objetivaram despertar o senso nacional para o autocontrole e a firmação do estado
brasileiro, que, ao longo da sua história, foi muito atingido por ações estrangeiras. E
para esse despertar viram na linguagem oral os elementos de expressão de cultura
brasileira.
De certa forma, podemos afirmar ainda que, na dicotomia langue / parole de
Saussure e no par antinômico clássico / atual, os modernistas buscaram firmar seus
propósitos de caracterização da identidade brasileira pelos segundos elementos, a
parole e o atual, em oposição ao passado e a tradição européia tão presente em
todas as manifestações culturais brasileiras. Embora tenham seguido por essa
tendência, a marca característica de uma língua nacional tornou-se indefensável,
pois uma ruptura de forma brusca e instantânea com o passado não se confirma
cientificamente. Na verdade, são populistas as afirmações de que havia e de que há
75
uma língua brasileira manifesta de forma autônoma. A reafirmação da independência
cultural brasileira foi um empreendimento que frustrou seus idealizadores logo em
seguida. Foi um fato que ficou vulnerável a inúmeras críticas, de importantes
estudiosos da língua. Na dicotomia língua falada / língua escrita, não há uma
realização de forma homogênea entre as partes dessa bifurcação dicotômica. A
língua falada é por natureza heterogênea. Ela apresenta variações em virtude de
vários fatores de ordem sociocultural e geográfica. Assim sendo, a língua falada no
território brasileiro não se constituiu e até o presente não se constitui como uma
língua diferente da língua portuguesa em uso em Portugal e em outras comunidades
lingüísticas de expressão lusófona.
Não podemos negar o fato de que haja no Brasil o português brasileiro com
peculiaridades advindas da diversidade lingüística que a cultura nacional absorveu.
Nessa confluência de diferenças, a língua de maior prestígio social, neste caso, o
português europeu, com evidência, sobrepôs–se às demais línguas, ocorrendo, o
fenômeno o qual os filólogos denominam de superstrato lingüístico. Em territórios
conquistados, não é comum a manutenção do bilingüismo. A língua de maior
influência cultural e política, no caso do Brasil, a língua portuguesa tendeu a se impor
naturalmente sobre as línguas nativas existentes e sobre as demais que chegaram
com os africanos escravizados. Essas línguas, por forças político-ideológicas,
perderam os seus falantes que acabaram por assumir o idioma lusitano que, por sua
vez, fluía com supremacia sociocultural. As línguas indígenas, por seu lado,
tornaram-se restritas às regiões periféricas, rurais e fronteiriças do Brasil. Como
conseqüência dessa situação, afirmamos que a língua falada no Brasil é a língua
portuguesa que, como expressou Camões em Os Lusíadas, foi se dilatando e
enriquecida no território brasileiro pelos substratos lingüísticos das línguas indígenas
e africanas.
Podemos avaliar que os modernistas de São Paulo engajaram-se num trabalho de
caráter político-ideológico no desejo de revelar a consciência e a expressão de
legítimos valores nacionais. Nesse propósito autárquico de inovação, transformação,
76
equilíbrio e autodefinição como marca de distinção da tradição européia tão presente
no Brasil, os modernistas, inserindo-se em um processo de conhecimento,
interpretação e divulgação da realidade nacional, romperam com a norma lingüística
bacharelesca, artificial e idealizante que revelava os ideais de homogeneidade
lingüística, norma ideal do colonizador europeu. Nesse sentido de renovação, os
modernistas buscaram representar na norma literária do Modernismo o estilo
brasileiro de expressão lingüística. Para isso, mantiveram o registro do oral na
escrita.
Graciliano Ramos, em Vidas Secas, documentou a fala e os valores regionais
característicos do homem nordestino do campo, em específico, do vaqueiro, que
nesse documento busca sua autodefinição e superação da condição social em que
está inserido. Ele dirige-se a um espaço geosocial imaginariamente idealizado, mais
justo e modesto. A expressão lingüística desse homem típico apresenta-se em forma
de frases curtas e com uso limitado do léxico da língua. A norma lingüística de
Fabiano, resultada do monologismo do índio e do uso lingüístico do colonizador
europeu, constitui-se, nesse sentido, de um sincretismo lingüístico, que, na sua
realização, não se afasta do sistema da língua portuguesa. Graciliano apresentou
uma norma de uso, entre tantas características do homem do campo do sertão
nordestino. Ele empenhou-se em mostrar em seus diversos matizes, uma cultura
preste a estinguir-se pela migração causada por periódicas secas que destroem o
sertão nordestino.
Diante desses fatos controversos, o que se assistiu de fato no Modernismo literário
foi um importante levante em favor de mostrar e valorizar a cultura brasileira,
valendo-se para esse fim da língua no uso falado como marca característica de
identidade nacional. Os escritores modernistas procuraram detectar as tendências e
constâncias de uso nacional da língua portuguesa e recolheram os traços mais
pertinentes para fins de caracterizar a expressão literária brasileira (Pimentel Pinto,
1988:13). Entretanto, como suporte de sustentação da tão decantada e discutida
77
língua brasileira, a literatura modernista não conseguiu consagrar finalmente essa
realidade lingüística muito desejada.
78
IV – CAPÍTULO
A LÍNGUA PORTUGUESA DO BRASIL E OS ELEMENTOS LINGÜÍSTICOS
RESEPRESENTATIVOS DA REALIDADE E DA IDENTIDADE LINGÜÍSTICO-
SOCIAL DO HOMEM NORDESTINO EM VIDAS SECAS
4.1 - Apresentação de Vidas Secas enquanto documento histórico-lingüístico
Numa visão geral, buscamos fazer uma apresentação do documento Vidas Secas
(1938), escrito por Graciliano Ramos, um escritor alagoano. O propósito é inseri-lo no
contexto da época em que foi escrito, desvendando, neste importante documentário
sobre o drama vivido pelo nordestino habitante do campo, a verdadeira e
desmistificada realidade socioeconômica do homem brasileiro do interior.
Constatamos nesse sentido que a primeira edição publicada de Vidas Secas surgiu
em 1938 pela livraria José Olympio, do Rio de Janeiro, onde Graciliano Ramos
estabeleceu-se após ter sido posto em liberdade em 13 de Janeiro de 1937, depois
de ter passado dez meses e dez dias na prisão, no período da ditadura Vargas. Em
perseguição aos opositores políticos, principalmente aos comunistas, Vargas
ordenou a prisão de muitos intelectuais brasileiros. Graciliano Ramos foi incluído
entre os presos políticos sob a acusação de ser militante comunista. Com a sua
soltura, recusou-se a voltar a morar em Alagoas, onde foi preso. Permaneceu no Rio
de Janeiro, em princípio, com muitas dificuldades financeiras, escrevendo em vários
jornais fluminenses. A partir de 1976, a Editora Record, localizada no eixo Rio-São
Paulo assumiu os encargos de editar não somente Vidas Secas, mas toda a
produção literária de Graciliano Ramos.
Em carta escrita ao jornalista e crítico literário João Condé em junho de 1944,
Graciliano Ramos informa o percurso de escrita e publicação de Vidas Secas que
ocorreu em forma de narrativas separadas na imprensa carioca. Graciliano compôs
Vidas Secas num prazo curto de quatro meses: de Junho de 1937 a outubro de
1937, em pequenas histórias constituídas, isoladas e desmontáveis. A primeira
79
narrativa publicada foi a que referencia o sacrifício de Baleia. A partir dessa
publicação, Graciliano deu continuidade ao seu intento literário, publicando os textos
na imprensa. Em seguida, articulou-os publicando em forma de um romance o qual
intitulou-se Vidas Secas. A idéia do título é atribuída a Daniel Pereira, responsável
pela editoração e irmão de José Olympio (Moraes, 1993:165).
O documento Vidas Secas refere-se à quarta publicação de Graciliano Ramos ao
lado de Caetés (1933), São Bernardo (1934) e Angústia (1936). Vidas Secas, por sua
vez, apresenta o comovente percurso histórico/narrativo de uma família de migrantes
nordestinos num deslocamento pelo espaço nordestino em busca de melhores
condições de sobrevivência numa área que sofre as ressacas de fortes secas. O
protagonista da história, o vaqueiro Fabiano, juntamente com a esposa, Sinhá
Vitória, os dois filhos, o papagaio e a cachorra Baleia são apresentados nesse trajeto
em condições miseráveis, subumanas até “chegarem” a uma fazenda abandonada.
Neste espaço, permanecem trabalhando para o proprietário da fazenda, em
condições precárias, num período de uma idealizada e promissora prosperidade,
que, de fato, não se realiza. Ao final de mais um infortúnio, já que a vida desta família
não se alterou em absolutamente nada, o sertão, mais uma vez, é abatido por uma
aterrorizante seca. Diante disso, esgotam-se as chances de manterem-se
persistentes. O grupo com o imaginário alimentado pelo progresso do Sul direciona-
se a este destino com uma duvidosa esperança de renovação e mudança de sua
condição social, imaginariamente pretendida.
O contexto sociocultural de Vidas Secas está atrelado à dura realidade enfrentada
pelo homem do sertão nordestino, realidade esta que Graciliano Ramos conhecia
muito bem de perto. Nesse sentido, afirmamos que em Vidas Secas estão inseridas
as impressões e as experiências biográficas vividas e presenciadas pelo escritor
Graciliano Ramos. Ou quando não, refere-se ao registro de narrativas orais
chegadas até Graciliano por meio de histórias do povo. Vidas Secas é resultado de
um conjunto de impressões de Graciliano Ramos acerca do sertão estarrecedor,
ácido em algumas condições e saboroso em outras. Graciliano Ramos conhecia os
80
problemas sociais no Nordeste de perto. Eram causados pela falta de assistência
social e indisponibilidade de recursos públicos para que o homem pudesse manter-
se, produzir bens e serviços capazes de suprir suas necessidades econômicas.
Vidas Secas expressa o drama sócio-histórico vivido pelo homem sertanejo.
Essa obra expõe as forças que reduzem o homem a uma condição de vida
mesquinha e miserável no interior da alienação do pequeno mundo individual. Com
essa força redutiva, o homem impulsiona-se, rompe com a unidade, no sentido de
descobrir um novo sentido para uma vida em comunidade, justa, fraterna, em
superação ao individualismo. Sendo assim, observamos neste documento um
conflito entre as forças de alienação e do humanismo, encarnadas nas classes
sociais brasileiras no início do século XX.
Em Vidas Secas, Graciliano Ramos expressou o drama do sofrimento humano.
Observa-se o infortúnio, o controle da terra pelos latifundiários, o sofrimento das
pessoas em suas reações mais elementares à fome, ao cansaço, à dor, à fuga inútil,
ao sofrimento humilde e sem remédio. Vê-se nas personagens um clima de
insegurança e incerteza que perseguia o homem nordestino do campo em todo o
percurso da história do Brasil. Sem políticas sociais, constata-se a frustração, a
desagregação da estrutura social brasileira, vitimada pela ação da política burguesa.
Entende-se que, no fundo, Vidas Secas expõe uma desgraça irremediável que
aniquila seus personagens. Há vidas exteriores que arfam: a paisagem da seca, a
paisagem social e humana que se apresentam de forma atormentada, fundida com
características semelháveis, em estado de secura. Apresenta-se em páginas
precisas de uma excelência e concentrada autenticidade lingüístico-literária. Em
geral, tudo é indefinido, arrasado, comovente nas personagens que figuram no
documento. Não há nenhuma referência ao amor como tema.
Entre as personagens formadas por Graciliano Ramos, Fabiano, em Vidas Secas,
integra-se a um grupo de perturbados, movidos pelo insucesso, vítimas do desajuste
social, o que faz com que sejam acometidos por desajustes anteriores. Com isso,
81
esses indivíduos, em sua figuração, apresentam-se numa exteriorização de ações
duras e brutais causadas pela fragilidade desses sujeitos diante de suas pretensões
que não se realizam, por causa de uma estrutura chocante que comprime esses
indivíduos no seu espaço de coabitação. Destacamos que Vidas Secas apresenta os
impasses da constituição histórico-político–social brasileira. Essas temáticas, ao
longo da história do Brasil, agitaram e motivaram muitas produções escritas pela
intelectualidade nacional. O documento mostra que, ainda no século XX, a sociedade
brasileira apresentava-se frágil no que diz respeito ao seu envolvimento no processo
de decisões na política nacional. Apresentava-se um estado de formação absolutista
que insiste em avançar com as marcas da colonização opressora no inconsciente
coletivo. Vidas Secas surge em rupturas com esses valores passadistas: a
passividade do sujeito diante da escuridão causada pelo poder que limita e mantém
o controle sobre ele.
4.2 – A metalinguagem literária
Neste trabalho, procuramos descrever a metalinguagem literária em seu aspecto
original de criação enquanto documento lingüístico-literário e não no aspecto
conceitual, resultado a partir da linguagem-objeto. A língua sob esse foco de uso
constitui-se na metalinguagem levando em consideração o caráter de interferências
históricas que se constituem por rupturas e permanências. Com isso, consideramos
que, em contato com um texto/documento literário, estamos diante de uma
metalinguagem, já que essa produção surge no processo de influências histórico-
lingüísticas, num procedimento de esvaziamento semântico do signo lingüístico, na
sua organização historicamente convencionada, ou seja, no seu uso freqüente na
prática social. Essa base sígnica vazia assume novos valores referenciais atribuídos
por uma relação de traços comuns entre dois objetos de âmbitos diferentes, os quais
são atribuídos por uma equivalência de comportamento, forma ou função entre a
referência do uso lingüístico convencional e o novo valor a ele atribuído por meio de
uma configuração alegórica. Assim, no seu aspecto primário, a metalinguagem
literária surge em ruptura com o uso lingüístico convencional, direcionando os
82
elementos lingüísticos expressos no documento para outras referências histórico-
sociais, numa ocorrência de substituição semântica.
A metalinguagem literária, na sua constituição, apresenta a realização de
conhecimento a respeito de algum referente social. Essa atividade de representação
descritiva explica-se por meio de influências com outras referências histórico-
lingüísticas. Nesse sentido, concordamos com Chalhub (2005) ao afirmar que a
metalinguagem liga-se à idéia de leitura relacional, equação, referências recíprocas
de um sistema de signos de linguagem. A leitura assume, dessa forma, um valor
fundamental na constituição da metalinguagem literária.
Um documento literário ou não, assim podemos afirmar, é um fato metalingüístico
que na sua forma atual manifesta o passado como resultado de um diálogo entre
várias áreas do conhecimento. Com isso, a metalinguagem é uma operacionalização
de elementos lingüísticos, num movimento de ir e vir, retornando sempre ao seu
ponto de partida e chegando ao uso atual, investidos de novos valores por meio do
ato de leitura e escrita, numa dinâmica de auto-reflexão e novas adequações
representativas de novas referências de mundo.
A metalinguagem literária constitui-se numa função de representação e fator de
consciência política de uma sociedade, já que desmistifica a realidade social de uma
coletividade. Nesse sentido, a metalinguagem literária não é uma organização
lingüística de passatempo, um produto anacrônico e virtual de uma sociedade
enfraquecida. Ela expressa a alegria, as incertezas, os enigmas do homem na
história. E desse modo permanecerão as futuras metalinguagens que vão variar de
acordo com a sua contextualização, o que faz com que mudará o objetivo, o tempo e
o espaço no qual esse objeto será representado, ou seja, os elementos lingüísticos
serão investidos de novos traços histórico-semânticos.
Vale destacar, ainda, que a metalinguagem literária constitui um campo de
expressão lingüística. Nela, reúne-se um agrupamento de fenômenos sociais que
83
são partes de época e sociedades diversas. Dito isto, a metalinguagem pode ser
considerada estável na sua instituição formal e instável enquanto prática
sociolingüística que, a partir do seu reconhecimento histórico-literário, estará em
contínuo processo de elaboração de acordo com a configuração histórica. Isso faz
com que o documento esteja aberto a um novo processo de semantização o que se
realiza pela metalinguagem crítica.
A metalinguagem literária constitui-se como atividade de expressão escrita que se
caracteriza por um “sinfronismo” particularizado pela apropriação espiritual de estilo,
de módulo vital entre o homem de uma época e o de todas as épocas, dos próximos
ou dispersos no tempo e no espaço (Moisés, 2004). A organização dos elementos
sígnicos no documento literário é realizada de constituintes polissêmicos, o que nos
faz assegurar que a metalinguagem literária expressa a realidade histórico-social por
meio de elementos simbólicos carregados de metáforas representantes da realidade
por desvios, com o uso de torneios semânticos que se elaboram nas possibilidades
lingüístico-semântico-pragmáticas disponibilizados pela língua aos seus usuários.
4.3 – Compreensão dos principais aspectos de Vidas Secas
4.3.1 – O documento Vidas Secas e o Modernismo literário
Ao mantermos um diálogo com a afirmação de Candido (1980) de que as obras
literárias representam a sociedade, descrevendo os seus vários aspectos,
examinamos Vidas Secas enquanto documento histórico-lingüístico do Modernismo
brasileiro ao passo que o percurso narrativo dele e os personagens nele figurados
apresentam uma realidade histórico-social de perversão e controle autocrático, a
qual ocorre no Brasil na tirania do governo de Getúlio Vargas na década de 30. Vidas
Secas manifesta um anseio de mudanças políticas, sociais e econômicas no Brasil.
Assim sendo, podemos observar que o documento apresenta a problemática política
de domínio e controle, a miséria na qual se apresenta o camponês e a questão
latifundiária no Brasil.
84
Vidas Secas surge na tumultuada década de 30, quando o cenário político e cultural
brasileiro é marcado por efervescências políticas, revoluções, contestações da
estrutura social presente, expansão do capitalismo com o apoio do governo Vargas e
temor ao comunismo soviético que contornava o mundo após a Revolução Russa
(1917). Encontrava-se nesse período duas frentes políticas em conflitos:
conservadores versus reformadores. Estes eram conduzidos pelos ideais do
comunismo no sentido de abater a política de domínio no Brasil, modelo e referência
política do colonialismo europeu. É um período influenciado historicamente pelo
espírito nacionalista do século XIX, que em razão da comemoração do centenário de
Independência do Brasil, ressurgiu com maior vigor e abrangência no meio
intelectual, mas de forma, contrária do Romantismo. Enquanto o Nacionalismo
romântico apresentou a sociedade com o arquétipo da perfeição, o nacionalismo
moderno a expressou apresentando a verdadeira realidade social do homem
brasileiro.
Nesse sentido, Vidas Secas pode ser vista como uma produção lingüístico-histórica
de manifesto e desafio à realidade histórica de seu momento de surgimento. Esse
documento se origina do ciclo literário nordestino constituído em torno da importante
figura histórica de Gilberto Freyre que se manteve voltado para o estudo dos
problemas sociais do homem brasileiro. Inserido nesse intuito, Vidas Secas tornou
públicas as condições miseráveis do homem brasileiro do campo, o qual apresenta-
se desapropriado da terra. Foi uma expressão que objetivou formar a “cortina de
ferro do Modernismo” que se caracteriza no sentido de rompimento com o passado e
com a realidade presente e formar, a partir de uma consciência lingüístico-literária,
uma radical mudança política e social. É uma obra de caráter literário e anárquico,
contra o domínio e a exploração capitalista que é a causa do surgimento de pobreza
e atraso, na qual se constituem pessoas privadas dos benefícios naturais e sociais
necessários à auto-sustentabilidade e garantia de participação social e política.
85
Uma das características importantes de Vidas Secas enquanto documento
histórico/narrativo e anárquico é o seu caráter de narrativa aberta. O documentário
constitui uma narrativa organizada numa sucessão de rápidas e diferentes
impressões, ou seja, é uma composição fracionada, que está sempre aberta a novas
perspectivas de leitura. É uma narrativa marcada pela estética da desestruturação,
do desconserto. Organiza-se em “flashes”, numa norma de inovação e fenda em
relação à narrativa tradicional. Por isso, enquanto narrativa aberta, Vidas Secas
manifesta a norma lingüístico-literária do Modernismo. Em sua estrutura, cada parte
constitutiva da obra mantém uma organização lingüístico–semântica interna que
pode ser organizada em isolamento, mas que mantém uma relação com as outras
unidades constitutivas em vinculação ao objeto retratado, à referência espacial e
temporal que mantém entre si uma unidade coesiva em inovação e ruptura com a
estrutura tradicional de organização dos fatos no percurso histórico/narrativo.
Vidas Secas aponta também críticas ao esplendor urbano brasileiro que
conseqüentemente levou ao êxodo rural em massa no início do século XX. A
situação econômica nesse período presidida pelo governo getulista foi direcionada
para uma intensa política de promoção da indústria nacional. Com isso, assistiu-se
nesse período o desenvolvimento urbano e uma intranqüilidade no campo, pela falta
de investimento financeiro para a produtividade agrícola. Isso acarretou graves
problemas na história do país que ainda se mantém atualmente: refere-se ao êxodo
rural e ao inchaço urbano o que ocasionou tanto problemas sociais como ambientais
aos moradores citadinos. Esse documento apresentou com expressividade a
migração, já que naquele período os problemas urbanos não se apresentavam numa
dimensão tão preocupante como no momento atual. Esse fato ocasionou ainda a
constituição da sociedade brasileira de forma dicotomizada: citadinos em oposição
aos camponeses, sulistas em oposição aos nordestinos. Fatos estes ocorridos por
razões de arbitrariedade político-ideológica.
Vidas Secas descreve a condição histórico-social brasileira na década de 30. Aponta
uma época reconhecida como fase de equilíbrio do Modernismo brasileiro, quando
86
os escritores regionalistas, ao contrário dos modernistas paulistas que representaram
uma realidade já representada, ou seja, apresentando o homem brasileiro nos seus
aspectos e convicções urbanos ainda presos aos aspectos burgueses do
Romantismo, buscaram compreender a problemática do homem brasileiro, sobretudo
o homem rural nas suas angústias sociais e psicológicas. Nesse sentido, Vidas
Secas mostra um retrato insuspeito da realidade vivida pelo homem nordestino,
mostrando a condição humana, psicológica e social de Fabiano, de sua esposa, de
seus filhos da hostilidade socioambiental.
Esse elemento de ameaça à existência humana caracteriza-se como uma força
ideológica abstrata de poder e domínio que direciona e particulariza a identidade do
homem nordestino a uma condição animal. Ele é desprovido de recursos naturais,
econômicos e também lingüísticos, o que faz com que esse homem se apresente
num estado de secura física e psicolingüística, já que ele não tem acesso ao
principal elemento de sustentação e organização social: a fonte econômica, o salário
e a educação. Fabiano apresenta-se numa relação de produção e trabalho que
imprime um caráter semifeudal, uma vez que ele mantém uma relação com um amo,
mas não é remunerado pelo seu trabalho. Ele recebe por partilha, relação de
trabalho ainda muito freqüente no interior do Nordeste.
Observamos, ainda, que a língua em uso em Vidas Secas expressa a realidade
brasileira de então, entendida como um conjunto de dados brutos ou imediatos,
característico do espaço físico, humano e de outros víveres, vegetal e mineral. Na
verdade, essa realidade física externa do indivíduo influencia diretamente a
constituição psíquica dele, a qual se exterioriza por meio da fala e das ações do
sujeito. Com isso, o sujeito (indivíduo) e o meio (objeto) fundem-se numa relação de
mútua e contínua constituição entre ambos de forma que o homem apresenta-se
como revelação do meio e vice–versa, numa constante atividade de interação e
mutação.
87
(...) fazia horas que pisavam a margem do rio, a lama
secca e rachada que escaldava os pés (p. 9).
Os calcanhares (de Fabiano), duros como cascos,
gretavam-se e sangravam (p. 11).
Em Vidas Secas, essa relação entre sujeito e objeto é percebida na constituição de
suas personagens. Em Fabiano, por exemplo, essa marca apresenta-se bastante
caracterizada, uma vez que os calcanhares dele mantêm uma dureza semelhante
aos cascos dos animais. São rachados semelhantes aos rachados apresentados
pela terra seca pela ausência de água e efeitos sol abrasador. Em verdade, da
mesma forma que o solo greta e torna-se seco com o efeito das altas temperaturas,
os pés de Fabiano também reagem da mesma forma. Os pés calejam, endurecem e
gretam enquanto forma de reação e adaptação do organismo às agruras do meio. É
por isso que a crítica literária tem considerado Vidas Secas como uma produção
literária neonaturalista.
Em Vidas Secas, parece-nos que a crítica de Graciliano Ramos não está direcionada
para a seca enquanto fenômeno natural, mas à seca como fato de negação, controle
e domínio dos recursos públicos por grupos autocráticos e absolutistas: quem é do
chão não se trepa (p.139). No percurso narrativo do documento, Fabiano já surge e
se direciona, tendo como referência a margem do rio seco até chegar a uma fazenda
abandonada. Estabelece-se com a família nesse espaço até a chegada da chuva,
quando chega também o fazendeiro que o expulsa. Uma vez que tinha objetivos de
lutar contra a seca, Fabiano faz-se de desentendido e oferece seus préstimos, os
quais são aceitos pelo fazendeiro. Passa-se a bonança, que é o período de chuvas e
prosperidade, e chega um outro período de estiagem. No final da bonança, o produto
resultado do trabalho de Fabiano é insuficiente para liquidar a dívida contraída com o
Patrão. O rompimento dele com o patrão se realiza pela fuga em direção ao Sul, já
que não possui suporte financeiro para liquidar a dívida contraída.
88
O que se observa de fato com isso é que, em todo o percurso histórico/narrativo de
Fabiano, embora haja um período de intensas chuvas, a sua condição de vida não
muda. Essa condição permanece estável, o que nos faz destacar que não é desta
seca enquanto falta de chuva a que Graciliano Ramos se refere. Ele fala da seca
enquanto regime ditatorial centrado na autocracia, o domínio e a repressão aos
indivíduos que não são assistidos pelos meios de assistência social. Esta é a
verdadeira seca mostrada em Vidas Secas.
Na história de migração do homem nordestino, observa-se que o trajeto realizado
historicamente pelos migrantes dá-se no eixo campo–cidade. Em Vidas Secas, o
curso de Fabiano, embora na narrativa ele já apareça no espaço da seca, direciona-
se de forma contrária ao percurso da história até atingir uma fazenda abandonada,
onde nela permanece até a fuga, quando então se direciona no eixo campo–cidade.
(...) e o vaqueiro precisava chegar não sabia onde
(p. 8).
Revestido do ideal de mudança, de rompimento com uma unidade constituída,
observa-se na voz do narrador que Fabiano demandava por chegar, fato que difere
de partir, sair. O seu referencial de direcionamento era o juazeiro. Fabiano surge,
portanto e se move num percurso inverso ao do ocorrido na história da migração no
Brasil: migração (campo-cidade). Ele age de encontro ao direcionamento do percurso
histórico no Brasil, que foi o tão almejado projeto político–cultural do Modernismo.
Buscou-se um redirecionamento para a história do Brasil.
Em Vidas Secas figuram-se, além de Fabiano, que será mostrada a sua constituição
histórica/narrativa numa outra temática, os seguintes personagens: O papagaio,
Sinhá Vitória, o menino mais velho e o menino mais novo, a cachorra Baleia e seu
Thomaz da bolandeira. Esses, entre outros existentes, são os mais importantes para
que possamos compreender Vidas Secas na sua associação com o Modernismo
literário.
89
Vidas Secas apresenta a realidade cultural brasileira do início do século XX. Aponta-
se, pela figura de Fabiano, uma população inserida numa sociedade arcaica,
atrasada, colonizada e submissa aos padrões socioculturais europeus. É uma
sociedade que não possui um aspecto enquanto marca característica de identidade e
autonomia. Pode-se entender que, em sua marcha, Fabiano busca redirecionamento,
um renascimento da fazenda-Brasil, rompendo com um passado seco, sem cultura,
determinado pela ignorância, interesse da colonização.
Sinha Victoria (...) pensava em acontecimentos antigos
que não se relacionavam: festas de casamento,
vaquejadas, novenas, tudo numa confusão. Despertara-a
(Sinha Vitória ) um grito áspero, vira de perto a realidade e
o papagaio andava furioso, com os pés apalhetados numa
atitude ridícula. Resolveram de supetão aproveital-o como
alimento e justificara-se declarando a si mesma que ele
era mudo e inutil. Não podia deixar de ser mudo.
Ordinariamente a família falava pouco. E depois daquele
desastre viviam todos calados, raramente soltavam
palavras curtas. O louro aboiava (...) e latia arremedando a
cachorra (p.10 -11).
Observa-se que, no percurso narrativo, ocorre uma mudança de determinação em
Sinhá Vitória. Essa alteração constata-se no uso do verbo despertara. Compreende-
se que, antes, ela se mantinha distante da realidade concreta. Estava inserida num
universo imaginário: festas de casamento, vaquejadas, novenas, manifestações
culturais características do sertão nordestino. Com o desperto, Vitória desloca-se da
realidade do fluxo da consciência, do imaginário para a dura realidade externa,
motivada por um grito áspero, uma súplica. Ela descortina a realidade na qual estão
inseridos: fome, miséria, desraigados, sem fontes de sobrevivência que lhes
garantam sustento das faculdades físicas e mentais, esgotadas pela seca.
90
Sem alimentos, reses na caatinga ou até mesmo raízes de plantas silvestres à volta
dos retirantes como solução imediata de combate à fome, Vitória vale-se do
papagaio, membro do grupo, e justifica-se, como causa da ação fratricida, com a
afirmação de que o louro era mudo e inútil. Entretanto, na voz do narrador, enquanto
o grupo mantém-se introvertido, o louro abóia e conduz um rebanho inexistente, além
de representar, com constância, o latido da cachorra.
O papagaio caracteriza-se como personagem que já não mantém uma coesão com o
grupo. Ele manifesta comportamento de indiferença diante do real: andava furioso,
os pés apalhetados, atitude ridícula, situações que manifestam estado de resistência,
zombaria, desvio e insensibilidade à situação do grupo. Por não manifestar as
convenções do grupo, é anulado e servido como alimento.
Constata-se também que os membros do grupo permanecem introvertidos,
raramente se comunicam com o uso de palavras curtas. São movidos pelo silêncio,
privações de fala, sobretudo após aquele desastre que o narrador não o define de
forma clara, mas que pode ser compreendido pelo uso do pronome demonstrativo
aquele que se refere a algo além da realidade habitual dos retirantes que os
impossibilita de se expressarem. O desastre, por sua vez, pode ser entendido como
o fracasso, o mau êxito, o sofrimento, os prejuízos físicos, materiais e psíquicos
ocasionados pela seca como agente natural de destruição e extermínio de Vidas.
Pode-se entender também o desastre como a frustração diante da situação social de
domínio e controle dos meios de produção pelo absolutismo histórico-político pelo
qual passava o Brasil na década de 30, momento de surgimento de Vidas Secas,
documento histórico-lingüístico que apresenta indivíduos impotentes lingüístico e
socialmente, vitimados por um sistema de organização político-social excludente,
injusto, retratado no documento. Nesse sentido, tem-se vidas que, para continuarem
no percurso da existência, retiram-se do espaço da seca.
91
Além disso, o papagaio é uma ave da flora brasileira. Ele apresenta as cores da
Bandeira Nacional. Graciliano Ramos, numa atitude iconoclasta, em visita ao Colégio
São Bento como inspetor do MEC, no Rio de Janeiro, afirmou:
- Mas que bandeira feia a nossa! Parece um
papagaio (Graciliano Ramos; Apud Moraes, 1993:
232).
A Bandeira Nacional é o símbolo característico de identidade de uma nação, de uma
cultura. A manifestação irônica de Graciliano Ramos de comparar a Bandeira
Nacional com o papagaio parece-nos uma expressão de que o Brasil / o povo
brasileiro não possui uma identidade, já que o papagaio apenas repete os modelos
culturais europeus, não possui um direcionamento próprio e não atribui sentido ao
que diz, apenas reproduz o que os outros falam. Por isso, Vidas Secas, enquanto
documento do Modernismo, movimento de rupturas estéticas radicais e de
transformações sociais, apresenta o papagaio como figura que já não se sustenta em
união com os retirantes. Nesse sentido, ele pode ser entendido como ave-símbolo do
Brasil que expressa as qualidades do homem brasileiro. É ousado e fescenino e
apresenta-se em clausura comprimido numa gaiola pequena, sem equilíbrio. Com
suas cores alegres e carnavalescas, ele encerra as múltiplas faces do sincretismo
brasileiro que expressa uma identidade amorfa, quer dizer, a cultura brasileira não
possui uma característica definida, apresenta-se sem energia própria. O Brasil é
conduzido por interferências histórico-culturais externas, embora afirme que:
Nasceu livre o papagaio,
Um tirano o escravizou
Mas no 7 de Setembro
A bico os ferros quebrou
( Anais da Imprensa da Bahia, 1911: 64).
92
Na Literatura brasileira, a figura do papagaio parece ser usada para apresentar
crítica ao padrão cultural e lingüístico brasileiro. Em Macunaíma, Mário de Andrade o
representou como conservador no silêncio dos feitos heróicos de Macunaíma.
Entende-se, com isso, que as línguas indígenas, suprimidas pelo domínio da língua
do colonizador europeu, apresentam-se apenas como substratos lingüísticos no
português brasileiro.
E só o papagaio preservava do
esquecimento os casos e a fala
desaparecida. Só o papagaio conservava no
silêncio as frases e feitos do herói
(Macunaíma, 1999: 162)
Nesse sentido, podemos compreender que a avefagia
4
em Vidas Secas pode manter
uma relação intertextual com o Manifesto Antropofágico (1928) de Oswald de
Andrade. Essa fagomania, entendida como o desejo insaciável de eliminar a seca,
refere-se a uma ação de interromper com o anacronismo sem valor lingüístico-
funcional e direcionar o Brasil no sentido de construir sua própria identidade,
valorizar o espaço e o homem brasileiro, já que a glória no passado é marcada pela
seca, a espremedura e o esvaziamento da força humana e dos recursos naturais
brasileiros.
Figura-se, também, como personagem em Vidas Secas a esposa de Fabiano, Sinhá
Vitória. Ela pode ser compreendida como força, impulsos e anseios de conquistas e
mudanças. Vitória representa a manifestação psíquica do êxito e sucesso, já que
conduz e está sempre à frente de Fabiano. Realiza contas, planeja o futuro e cultiva
o anseio de possuir uma cama igual a do Sr. Thomaz da bolandeira.
4
Entende-se por avefagia um neologismo que nomeia o ato de usar ave como alimento.
93
Dormiam naquillo, tinham se acostumado, mas seria mais
agradável dormirem numa cama de lastro de couro, como
outras pessoas (p.57)
Sinha Vitória desejava uma cama real, de couro e sucupira
igual á do seu Thomaz da bolandeira (p.65).
Sinhá Vitória não aceita a condição humana e social de seca que enfrentam, embora
estejam condicionados física e psiquicamente a esse a esse tipo de existência. Ela
os imagina fora dessa existência, dormindo em posição de repouso. O que se
observa é que Vitória mantém-se em disjunção com a situação em que estão
dispostos e sustenta uma psíquica conjunção com outra realidade socioeconômica.
Ela direciona para a mudança esperada, no sentido de serem, após a mudança
social desejada, outras pessoas. Ao contrário do que se tem afirmado de que Sinha
Vitória em Vidas Secas manifesta-se como pessoa egoísta e ambiciosa, observamos
nela desejos de mudanças de condições de vida. O anseio dela pela cama realiza-se
pelo princípio da isonomia. Vitória não quer desfrutar de uma cama melhor e nem
inferior a de seu Thomaz da bolandeira. Ela deseja uma cama igual à de seu
Thomaz. Na consciência dela, há uma disposição para que todos estejam nas
mesmas condições sociais e econômicas.
Nesse sentido, a cama pode ser vista nesse documento como elemento de uma vida
renovada. Na qualidade de espaço que oferece conforto, apoio, segurança ao corpo
e na qual realizamos os nossos sonhos, a cama pode ser vista enquanto figura
alegórica de uma almejada e justa condição social, sem privação dos meios de
sobrevivência. Vitória constitui-se como figura representativa que conduz para a
libertação do sofrimento, significando, nessa configuração, a sabedoria perfeita, a
vitória, a superação de condição sóciopolítica.
Destaca-se também entre os personagens de Vidas Secas a cachorra Baleia. Ela
representa uma das figuras mais enigmáticas da literatura brasileira. Baleia, ao
contrário do que se pode imaginar enquanto uma pobre e frágil cachorra de vaqueiro,
94
registra uma carga simbólica, semântica e histórica determinante para a
compreensão de Vidas Secas como produção lingüístico-literária do Modernismo.
Numa interferência história, pode-se estabelecer uma aproximação entre Baleia e a
loba capitolina, a loba romana, que, segundo Chevalier et alli (2001: 179), juntamente
aos inúmeros outros canídeos, representa o herói colonizador / dominador, sempre
ligado à instauração do ciclo agrário. Nesse sentido, Baleia pode ser compreendida
como demonstração alegórica e zoomórfica do modelo político tirânico e opressor do
colonizador europeu, implantado no estado brasileiro. As ações e atitudes de Baleia
podem ser entendidas como os procedimentos de dirigentes políticos que
representam esse modelo político que (a)condiciona os cidadãos à seca, mantém-
nos sob intensa pressão, domínio e exploração.
É importante destacar que o substantivo cachorra é determinado pelo substantivo
Baleia que, por derivação imprópria, exerce a função de adjetivo. Tem-se então um
animal morfologicamente pequeno designado por uma referência animal de grande
dimensão. É válido observar que, no campo semântico da política, o substantivo
baleia é usado para denominar os países que apresentam grandes extensões
territoriais, um mercado interno de consumo ascendente, um enorme contingente
populacional de poder aquisitivo crescente. Assim, o Brasil é considerado um país
baleia. E por essas características era, no inicio do século XX, um espaço sócio-
político, visado pelo capitalismo mundial em situação de expansão. Nesse sentido,
temos em Vidas Secas sintagma nominal: cachorra Baleia, no qual cachorra
simbolicamente representa a figura do estado brasileiro enquanto organização sócio-
política e Baleia pelo fato de o Brasil representar uma grande extensão territorial. O
fato de Baleia no percurso histórico/narrativo pensar e agir como gente é justificado
por ser uma figura simbólico-representativa do estado enquanto organização política,
pois um estado se constitui necessariamente pela opinião pública, que representa
como unidade política constituída. A cachorra Baleia mantém–se à frente do grupo
de migrantes, na condição de guardiã.
95
Ausente do companheiro (o menino mais velho) a
cachorra Baleia tomou a frente do grupo (p. 9)
Iam-se amodorrando e foram despertados por Baleia que
trazia nos dentes um preá (p. 14)
Aquilo era caça bem mesquinha, mas adiaria a morte do
grupo. E Fabiano queria viver (p. 14)
Baleia, ouvido attento, o trazeiro em repouso e as pernas
da frente erguidas, vigiava, aguardando a parte que lhe iria
tocar, provavelmente os ossos do bicho e talvez o couro.
(p.14-15)
Observa-se que, quando os indivíduos chegam ao juazeiro, a cachorra Baleia caça e
traz aprisionado aos dentes um preá para saciar a fome de quatro indivíduos. O ato
de caçar de Baleia que pode ser entendido como o ato de direcionamento de
recursos, que se encontram no morro, símbolo de um espaço que está fora do
cotidiano de Fabiano, de onde Baleia assiste e mantém o seu domínio. O preá pode
representar os recursos de contribuição do espaço brasileiro. O ato de Baleia trazer
aprisionado aos dentes o preá - que é uma referência alegórica do homem brasileiro,
enquanto contribuinte – aos retirantes expressa a forma miserável de como o povo é
assistido na seca. Constitui uma ação proposital de Baleia para que, de certa forma,
mantenha sob seu domínio o grupo. É uma ação sovina no sentido postergar o
sofrimento do grupo. Fabiano, por meio da fala do narrador, ainda que ache a caça
insuficiente, aceita-a com reserva, pois o que ele persegue é a existência, a
sustentação dele e sua família.
Observa-se que o comportamento de Baleia pode ser comparado às ações de
políticos brasileiros. Após assistir miseravelmente Fabiano, observa-se a majestosa
postura dela: O trazeiro tranqüilo, estado de cautela absoluta e audição atinada, no
aguardo à parte que iria mantê-la no trajeto, ou seja, no domínio do grupo. Quando a
voz do narrador expressa o que toca a Baleia provavelmente os ossos do bicho ou
talvez o couro, ele afirma que a ocupação da Baleia é manter a guarda de restos
96
mortais para consumi-los continuamente. Diante disso, compreende-se que a
determinação de Baleia de assistir miseravelmente Fabiano com apenas um preá
para alimentar quatro pessoas consiste numa decisão propositada, a fim de mantê-
los na seca, aparentemente só o couro e os ossos. Com os indivíduos nessa
condição, Baleia mantém-se na sua condição de guardiã e domínio sobre eles.
No percurso histórico/narrativo, a cachorra Baleia adoece. Para Fabiano, manifesta
um princípio de hidrofobia: horror aos líquidos e resolve matá-la.
A cachorra Baleia estava para morrer. Tinha emagrecido,
o pêlo cahira-lhe em vários pontos, as costellas avultavam
num fundo róseo, onde manchas escuras suppuravam e
sangravam, cobertas de moscas. As chagas da boca e a
inchação dos beiços difficultavam-lhe a comida e a bebida.
Por isso Fabiano imaginara que ela estivesse com um
princípio de hydrophobia e amarrara-lhe no pescoço um
rosário de sabugos de milho queimados (p. 127).
Compreende-se que neste percurso narrativo numa leitura atenta que a cachorra
Baleia acha-se num estado de compensação material; situação que afetou a sua
constituição orgânica. Baleia apresenta-se com perda de ânimo e doentia. O fato de
emagrecer, o pêlo cair, as costelas avultarem num fundo róseo, manchas escuras,
cobertas de moscas são referências que indicam a exploração, o esgotamento e os
desvios de rendimentos. As moscas que representam os capitalistas, ou o pseudo-
homem de ação, ágil, febril, inútil e reivindicador que reclama seu salário sem nada
ter feito além de imitar os trabalhadores (Chevalier et alli, 2001: 623) são os
aproveitadores que debilitaram Baleia. Os prejuízos à boca dela, enquanto local de
oportunidade de ganho e sustentação, e a inchação dos beiços, enquanto aumento
de oportunidade e local de acesso à sustentação de Baleia, apresentam-se
desgastados. Baleia mantinha-se em dificuldade de ganhos para a sua sustentação
orgânica. Ao ser impossibilitada disso, tornou-se debilitada, doentia, o que fez com
97
que Fabiano imaginasse que ela estivesse com hidrofobia. Na verdade, Baleia
encontrava-se vitimada por parasitas e exploradores que dificultavam suas condições
de auto-sustentação.
Com isso, ao imaginá-la com hidrofobia, em expressão irônica, o narrador menciona
que Fabiano colocou no pescoço de Baleia um rosário de sabugo de milho queimado
para que, de acordo com a crença popular, curasse as sarnas surgidas em Baleia. A
colocação do rosário no pescoço, além de representar um ato de coragem e
enfrentamento ao animal, manifesta o desejo de Fabiano de corrigir as
impertinências em Baleia. Como isso não ocorreu, Fabiano resolveu matá-la, fato
que, na narrativa, apesar do embate, não se realiza. Assiste-se, portanto, nesse
percurso histórico/narrativo, a posição de Baleia numa situação oposta à de Fabiano.
Fabiano manifesta-se hidrófilo, Baleia, por sua vez, na visão de Fabiano, manifesta-
se hidrofóbica. Figura-se então uma situação de divergência, o que fez com que
Fabiano sacrificasse Baleia, que metaforicamente significa o combate e o
desaparecimento do estado de seca enquanto organização que age de maneira
hostil e aliena os indivíduos. Além disso, representa o ato de querer o fim da
arbitrariedade e do controle sócio-político que se manifesta na seqüência narrativa
de Vidas Secas.
Olhou-se de novo, afflicta. Que lhe estaria acontecendo?
O nevoeiro engrossava e aproximava-se (p.132)
Sentiu um cheiro bom dos preás que desciam do morro,
mas o cheiro vinha fraco e havia nelle partículas de outros
viventes. Parecia que o morro havia se distanciado muito.
Arregaçou o focinho, aspirou o ar lentamente com vontade
de subir a ladeira e perseguir os preás, que pulavam e
corriam em liberdade (p. 133).
Compreende-se que Baleia se deparou com uma situação não esperada.
Confrontava-se a ela um nevoeiro que se expandia. Como marca representativa de
98
obscuridade, presença de gotículas de água, o nevoeiro indica ser a causa de aflição
e incerteza de Baleia diante da situação conflituosa na qual esbarra. Ainda assim, o
animal pressentia pelo olfato o cheiro lucrativo dos preás, que, pela ausência do
domínio dela, desciam e circulavam em liberdade. A cachorra, ainda que em estado
de agonia, manifestou anseio de perseguir os animais libertos de sua tirania. A
presença de outros viventes que entendemos como manifestadores de
conscientização para que o morro, enquanto situação externa que foge ao cotidiano
do círculo de Fabiano e sua família, libertasse-se de Baleia. Nesse sentido, a
liberdade dos preás representa a liberdade do Brasil, uma vez que historicamente o
Brasil constituiu-se e direcionou-se num modelo de política tirânico-colonizador. Por
isso, a anseio pela morte de Baleia representa o fim da seca, o fim da política tirânica
em que vivia o Brasil na década de 30; e também representa a realização do
propósito do redirecionamento da situação sócio-política e cultural idealizada pelo
Modernismo enquanto movimento histórico de renovação cultural.
Além da significante atuação da cachorra Baleia para compreensão de Vidas Secas
enquanto realização literária no Modernismo, participam também desse processo
constitutivo de Vidas Secas duas figuras curiosas: o menino mais velho e o menino
mais novo. Eles são apresentados sem qualquer referência de nomeação e
identidade humana em estado de inserção e participação social, já que não
apresentam uma denominação própria. Eles são nomeados por substantivos
comuns, caracterizados pelo adjetivo novo e velho intensificado pelo uso do advérbio
de intensidade “mais”. Essas marcas de categorização e distinção entre os dois
meninos: “mais velho” e “mais novo”, mantêm–se no documento uma relação de
simetria, por serem irmãos e participar do mesmo contexto social, e assimetria em
virtude de referência histórico-temporal de formação de cada um deles.
Em referência ao menino mais velho, o narrador expressa que:
Todos o abandonavam, a cadelinha era o único vivente
que lhe mostrava sympathia (p.85).
99
Agora tinha tido a idéia de aprender uma palavra (inferno),
com certeza importante porque figurava na conversa de
Sinha Terta. Ia decoral-a e transmittil-a ao irmão e a
cachorra. Baleia permaneceria indifferente, mas o irmão
se admiraria, invejoso. (p.87)
Em referência ao menino mais novo, o narrador revela que:
(...) Não era propriamente idéa: era o desejo vago de
realizar qualquer acção notável que espantasse o irmão e
a cachorra Baleia (p.69)
Naquele momento Fabiano lhe causava grande
admiração. Mettido nos couros de perneira, gibão e
guarda peito, era a criatura mais importante do
mundo.(p.69)
Compreende-se que esses personagens são marcados por uma relação paradoxal.
Enquanto o menino mais velho tinha tido a idéia, o menino mais novo, na voz do
narrador, afirma que não era propriamente idéia. O anseio do menino mais novo era
realizar uma ação, uma atividade importante que afugentasse o irmão e a cachorra
Baleia. Na circunstancia manifesta, a pessoa exclusiva para ele e que lhe despertava
grande admiração era Fabiano, membro e condutor do grupo. Isto quer dizer que o
menino mais novo mantém uma relação coesiva com o grupo de Fabiano.
Em relação ao menino mais velho, que Sinhá Vitória caracterizou de insolente,
atrevido, percebe-se em sua constituição uma atitude de rompente com o grupo. A
referência de constituição histórico-discursiva dele é vinda de Sinhá Terta,
personagem externa ao grupo. Há, dessa forma, entre os dois meninos,
direcionamentos opostos: o mais velho realiza-se na esfera do ideal, enquanto que o
mais novo tende a se satisfazer em situações pragmáticas, concretas e reais, fator
determinante do Modernismo, enquanto movimento de renovação e ruptura com
100
valores culturais sem valor funcional. Percebe-se também que o menino mais velho
encontra-se atrelado ao ideal, ao romântico, em distanciamento da realidade efetiva,
ou seja, ele vaga em sua imaginação na tentativa de compreender realidades
abstratas. Observa-se que, no percurso histórico/narrativo, o menino mais velho é
rejeitado pelos integrantes do grupo. Apenas Baleia mantinha com ele um contato
efetivo. Esse fato pode ser explicado pelo fato de Baleia manter-se em hostilidade e
vigilância ao grupo. Ele manifesta resistência e desafio ao percurso do grupo que
visa a superar a condição humana, perseguida por Fabiano, já que A seca aparecia-
lhe (menino mais velho) como um facto necessário – e a obstinação da criança
irritava-o (Fabiano) (p. 8)
É importante destacar ainda que, pelo comportamento do menino mais velho, o
saber é uma forma de domínio sobre o outro. A credibilidade de uma ação lingüística
depende da posição social ocupada pelo enunciador de onde mantém interferências
histórico-lingüísticas no enunciatário. O reconhecimento da importância da palavra
inferno, que, por figurar na fala de Sinhá Terta que era pessoa de muito saber
naquelas beiradas, apresenta valor de influência e prestígio. Com o domínio da
palavra inferno, Baleia manter-se-ia indiferente, mas no irmão despertaria um
comportamento de inveja. Compreende-se que há entre os meninos o desejo de
domínio de um sobre o outro numa relação dialógica de rupturas que figura na
constituição de cada um deles na narrativa. Com isso, compreende-se que o
processo de constituição da ordem social representada em Vidas Secas apresenta
sujeitos que atualizam a sua memória histórica, ou seja, a sua identidade nos
pronunciamentos com os convivem.
Em análise aos capítulos: O menino mais novo e O menino mais velho, Bosi (2003)
afirma que esses capítulos narram a frustração da criança perante o universo do
adulto nas condições precisas da vida sertaneja. O menino mais novo frustrou-se ao
imitar Fabiano nas artes da montaria, ao saltar no lombo de um bode que o
arremessou violentamente ao chão. A referência dele era ser tal como Fabiano, um
herói no sertão. E acalenta imagens que nascem do seu enlevo pelo pai.
101
Já o menino mais velho, ao contrário, move-se no rumo de outro horizonte. Ele
supera os limites do adulto, ao querer ir além das limitações de verdade do adulto e
da realidade concreta. A indagação do menino à mãe, no sentido de compreender o
que seria o inferno, é respondida com violência, interação humana movida pela
agressão física, numa relação de forças que se rompem e resistem numa relação de
poder: forte e fraco no universo sertanejo. O único elo amistoso forma-se entre ele e
a cachorra Baleia. Nas demais situações, depara-se com o rigor dos outros. Diante
disso, o inferno no seu imaginário se reconstitui como um lugar possível: o inferno
são os outros (Bosi, 2003: 29-32).
Já em referência a seu Thomaz da bolandeira que também é afetado de forma cruel
pela seca, destaca-se na narrativa como protótipo de pessoa letrada e referência de
precisão e respeito às outras pessoas.
Ele, Fabiano, muitas vezes dissera: “Seu Thomaz,
vossemecê não regula. Para que tanto papel? Quando a
desgraça chegar, seu Thomaz se estrepa, igualzinho aos
outros.” Pois viera a secca e o pobre do velho tão bom e
tão lido, perdera tudo, andava por ahi, molle (p.28).
A figura de Thomaz em sua apresentação nos possibilita vê-la como indivíduo do
sertão que Fabiano admira pelos referenciais de conhecimento das palavras,
cordialidade, cortesia e ações direcionadas em atender aos anseios de seus
empregados. Constitui-se como um indivíduo paternalista que possui resistências
pela sua intelectualidade. Entretanto, mesmo com seu mundo de papel, seu Thomaz
não resistiu à penúria da seca. Perdeu tudo por causa dela e morreu por causa do
estômago doente e das pernas fracas.
Almeida (2002) analisa essa passagem que Graciliano Ramos se refere a seu
Thomaz mostrando sua descrença no conhecimento como forma de solução dos
102
problemas sociais e melhoria do homem, o que, muitas vezes, levaria os indivíduos a
desprezarem a formação intelectual em detrimento da força física (a violência), como
forma de resistência às forças ameaçadoras. Por isso, seu Thomaz pode ser
entendido como o estereótipo da fragilidade diante de algo maior e poderoso: a seca.
Para combatê-la, precisavam ser duros, virar tatus. Se não callejassem, teriam o fim
de seu Thomaz (p. 32), quer dizer, a resistência física, ao contrário da força
intelectual, apresenta-se como a maneira de resistirem e se manterem vivos diante
dos obstáculos causados pela seca.
Ao entendermos o documento Vidas Secas enquanto produção histórico-lingüístico-
literária que levanta uma problemática social grave no Brasil no início do século XX,
apresentamos situações capazes de comprovar, pelas personagens representadas
no documento que se apresentam indefesas na tirania do estado e do latifúndio
capitalista, o desejo de mudança do homem moderno. Vidas Secas mostra um
homem (a)condicionado a um espaço miserável e sem perspectivas de afastamento
deste estado. Com isso, afirmamos que as personagens do documento estão ainda
em vias de se estruturar nos aspectos sociais, políticos, econômicos e lingüísticos.
Romper com as estruturas sociais de domínio que caracteriza o percurso da política
brasileira é, na verdade, um dos temas centrais que integra Vidas Secas na norma
lingüístico-literária do Modernismo brasileiro.
4.3.2 - Seleção lexical
Ao procurarmos entender a manifestação lingüística em Vidas Secas como até então
já legitimado enquanto documento histórico–lingüístico do Modernismo literário
brasileiro, consideramos a língua em sua função de interação social como processo
e produto de atividade histórico e cultural do homem brasileiro e como sistema de
representação que contém um inventário da história, da realidade regional e
geográfica, ou seja, a língua como sistema no qual está fixada uma catalogação do
mundo por meio de elementos lexicais.
103
O Modernismo brasileiro em sua constituição planejou consubstanciar uma
descontinuidade com o provecto histórico brasileiro em confronto à persistência de
valores ultrapassados, anacrônicos, resultados pela ação da colonização européia.
Buscou-se, então, nesse momento histórico, a consolidação deste tão idealizado
projeto cultural voltado para um redirecionamento da realidade histórica brasileira.
Nesse sentido, procurou-se realizar uma produção cultural voltada para a
apresentação, a descrição e a reflexão acerca da nossa realidade. Pretendeu-se
constituir uma nova cultura, a autêntica identidade nacional, com suas características
particularizantes.
Vidas Secas, nesse sentido, procurou mostrar o isolamento no qual até então se
mantinha de forma marginalizada social e economicamente o homem brasileiro do
interior no início do século XX. Em oposição a esta realidade, há nesse documento o
registro, em forma de documentário, da manifestação de denúncia, compromisso
social e político contra a exclusão, o impedimento de participação nas decisões
políticas e o furto do direito deste homem de ter acesso aos recursos naturais que
foram monopolizados pelos latifundiários e aos meios de integração à produção
cultural, como, por exemplo, a escola, que, ao longo da história do Brasil, tornou-se
privilégio de uma minoria e que também era mantida com exclusividade para a
formação da classe dominante. E o homem-animal, o homem nordestino habitante
do sertão, sem identidade histórica constituída, que figura no texto, é um produto
histórico resultado de um processo de rejeição e uso do homem pelo sistema
político–econômico de colonização que tende a manter sob seu domínio a terra e o
homem. Este se constituiu historicamente como uma presa, comprimida numa
caverna primitiva, uma vez que esse homem não tinha acesso à escrita, como no
caso de Fabiano, orientado por Sinhá Vitória que realiza as contas fazendo o uso de
sementes de várias espécies (p.140). Com o intuito de explorar e ter acesso aos
bens de produção para fins comerciais, os exploradores mantiveram o homem em
condição de animal, domesticado para aproveitamento, uso e enriquecimento dos
latifundiários e senhores de engenho.
104
Além disso, examinamos a relação existente entre a língua em uso em Vidas Secas
e a realidade brasileira do Nordeste, onde se compõe o espaço narratIvo. Em
princípio, observamos que os elementos lexicais manifestos são dados lingüísticos
de uso cotidiano, o que nos leva a indicar que Graciliano Ramos atribuiu
expressividade, estilo literário e história à fala de pessoas simples, documentando e
universalizando-a por meio da literatura. Vidas Secas é um documento que
apresenta a identidade do homem brasileiro do Nordeste até então desconhecida. O
documento expressa de forma coerente a relação língua-realidade cultural em seus
aspectos morfossintáticos e semânticos.
Diante disso, arrolamos os elementos lexicais do documento referentes ao espaço, à
vegetação, ao homem, à condição socioeconômica e animais figurados no
documento, no sentido de mostrar Vidas Secas como documento histórico-lingüístico
do Modernismo que expressa a realidade física e as condições socioeconômicas e
lingüísticas do homem brasileiro no início do século XX. A literatura da primeira fase
do Modernismo caracteriza-se como uma literatura burguesa de gabinete, idealista,
expressa do conforto de escritórios luxuosos, sem o conhecimento da realidade
concreta, efetiva. Como exemplo disso, citamos Macunaíma (1928) de Mário de
Andrade que expressa um índio em aventuras míticas que, na sua caracterização,
não expressa o fenótipo do homem brasileiro. Tem-se então uma literatura presa aos
cânones do Romantismo. Vidas Secas, ao contrário disso, rompe com a estrutura
burguesa e apresenta os conflitos do vaqueiro Fabiano, o legítimo homem brasileiro,
que, pela sua coragem, desbravou e povoou o sertão e muito contribuiu para a
formação econômica e sociocultural do Nordeste brasileiro.
O espaço de ação narrativa de Vidas Secas caracteriza-se como fazenda, aonde
chegam os retirantes; apresenta-se um espaço sem existência, com desestímulos e
sem incentivos para o desenvolvimento e o avanço moderno. Na fazenda,
encontram-se o rio secco, a lagoa secca, lama secca, o chão gretado e a areia é
fofa. Mesmo com a fazenda em completa desatenção, o sertanejo sustenta o
imaginário de mudança, construindo um ideal de que, num futuro próximo, a seca
105
findaria e a fazenda renasceria, haveria uma ressurreição e todos eram felizes (Vidas
Secas, p. 17).
Em referência à vegetação apresentada no documento, encontra-se um espaço
descaracterizado de flora doméstica, particularizado pela apresentação de uma flora
silvestre típica do sertão nordestino. Destacam-se no documento: o alastrado, o
alecrim, o angico, a aroeira, a barahuna, a catinga, o chique-chique, o imbu, a
imburana, o jatobá, o joazeiro, a macambira, o mandacaru, a mucunã, o mulungu, a
palma, a quixabeira, a sucupira, o taquari e o turco. Essa vegetação predominante
em Vidas Secas é caracterizada por plantas que agem, ou melhor, comportam-se de
acordo com os elementos climáticos e seus efeitos. Na realidade, essa vegetação
aponta para as características regionais do sertão nordestino. Outra característica
significativa dessa vegetação observada em Vidas Secas é que não é comestível
pela espécie humana. Serve, na sua maioria, de alimento para o gado em período de
seca.
A referência do homem em Vidas Secas figurada na imagem de Fabiano, Sinhá
Vitória e os dois meninos apresenta-se de forma descaracterizada em todos os
aspectos apresentados. É um homem movido e perturbado por causa da carência de
recursos econômicos. Ele é identificado como: bicho, bruto, cabra, cançados,
defunctos, faminto, fugitivo, infeliz, indefeso, sertanejo, fraco, vaqueiro, não
escolarizado e com um vocabulário pequeno e monossilábico, porém com bons
costumes. Comunica-se na maior parte do tempo por meio de gestos, sons gutturais,
grunidos, rosnos, resmungos, murmúrios, berros, rugidos e palavras curtas,
onomatopéias, interjeições e exclamações. Figura-se um homem na morfologia
humana e com comportamento, atitudes e ações de animais. A alimentação é
bastante precária e de baixo valor nutritivo, restringindo-se: o azeite, a carne, a
farinha, o feijão, a raiz de imbu, semente de mucunã e toicinho.
O vestuário também é escasso, limitando-se no espaço de domicílio ao uso de
alpercatas, camisa encardida e rasgada, farrapos, molambos, saia de chita e vestido.
106
Vestiam-se mal. Já a vestimenta para o uso na festa de Natal da cidade foi costurada
por Sinhá Terta. Por falta de tecido, as roupas saíram curtas, estreitas e cheias de
emendas (p.108). Fabiano apresentou-se apertado na roupa de brim branco , chapéu
de baeta, collarinho, gravata, botinas de vaqueta e elástico, também apertados.
Sinhá Vitória apresentou-se num vestido vermelho de ramagens e sapatos de salto
enorme nos quais se equilibrava mal. E os meninos estrearam calça e paletot.
Observa-se que Fabiano encontra-se apertado na roupa de brim e na botina de
baeta. Essa compressão sobre o corpo de Fabiano expressa o estado de um
indivíduo em dificuldades, angustiado pelo meio físico, social e econômico. Em
relação a Sinhá Victória, observa-se a falta de equilíbrio dela nos sapatos, o que nos
dirige a julgar esse episódio como uma desarmonia com a realidade que o sapato
expressa. Sinhá Vitória não reconhece a realidade na qual está estabelecida, mas
também não está habilitada para se destacar numa realidade de glamour, uma vez
que o meio não lhe proporciona esta configuração de elegância e estética. Por isso,
ela apresenta-se em transtornos sobre os sapatos e se desloca aos tombos.
Em relação ao ambiente socioeconômico, podemos compreender o drama
vivenciado pelas personagens no percurso narrativo. A moradia revela-se como
baixa e escura com copiar na frente e coberta de telhas pretas; as paredes são de
taipa e rachadas; as janelas apresentam-se com gretados fortes e baixas; identifica-
se também bastante teia de aranha. A aparência externa é de tapera. Além disso,
encontram-se os seguintes objetos e utensílios de uso doméstico e de trabalho:
abano, aiol, bahu de folhas, banco de madeira, binga, cabaça, cachimbo, cama de
vara, candeeiro, caneco, correia, creolina, cuia, cumbucos, espingarda de
perdeneira, faca de ponta, facão, fuzil, panela, picuá, pilão, pote erguido numa
forquilha de três ganchos, quenga de coco e rede. Os objetos expressam uma
realidade bastante rudimentar e original que denuncia a dependência ao meio e a
incapacidade de aquisição de bens que lhes proporcionem conforto, segurança e
higiene. Em referência ao domicílio, constatamos que o fato de ser baixo apresenta
uma circunstância desfavorável, um estado de desânimo, esfacelamento e asfixia;
por ser escuro, faz-nos compreender um ambiente que causa inquietação e
107
repelência pelo estado de penúria que apresenta. Assim como ocorre com o solo que
racha pela ausência das chuvas, as paredes e janelas da casa também são
gretadas. A condição externa dela é de tapera. Uma condição domiciliar imprópria
para a residência humana. No Nordeste, a tapera caracteriza-se por ser uma
habitação em ruínas e abandonada que serve para o gado se proteger do sol e da
chuva.
Observamos, ainda, os animais que fazem parte do espaço narrativo do documento.
Destacam-se a arribação, a cabra, a cachorra Baleia, o caetetu, o carrapato, o
cavalo, o cupim, a égua, as cobras jararaca e sussuarana, o macaco, o papagaio, o
preá, o rato, o tatu, o urubu e a vaca. São todos animais pertencentes à fauna
brasileira.
Observa-se que, em Vidas Secas, de acordo com a escolha lexical inventariada, há a
expressão de uma problemática sociológica trágica do homem brasileiro do sertão
nordestino. O documento apresenta um homem na tentativa do ser e do manter-se
vivo. Afirmamos ainda que Vidas Secas (1938) é um documento que expressa em
seus elementos lingüístico-lexicais os conflitos e angústias existenciais do homem
brasileiro sem instituições culturais, assistenciais e, em vista disso, sem uma
identidade social constituída. Apresenta-se também no documento a prática social de
um homem que, no início do século XX, se revela num estágio de vida primitivo. A
realidade socioeconômica é caracterizada pela ausência. O espaço é seco, o que
contribui para a existência de precariedade na habitação, na alimentação, no
vestuário e nas ações afetivas. Como os indivíduos mantêm uma convivência
imediata e mais intensa com os animais, eles absorveram e carregam consigo, como
modelo de representação de comportamento, as atitudes e ações de animais,
inclusive na expressão lingüística. Vidas Secas nos proporciona uma compreensão
do homem nordestino por meio de suas fortes e radicais expressões simbólicas que
exteriorizam a sua condição psíquica animalizada e que se encontram registradas
lingüisticamente na voz de um narrador onisciente.
108
Entre os elementos lingüístico-lexicais caracterizadores do espaço geográfico no
qual estão inseridos os retirantes, destaca-se uma unidade lexical que denomina
uma espécie vegetal típica do sertão nordestino e de importante valor lingüístico-
simbólico para a constituição do percurso narrativo do documento. Trata-se da figura
do juazeiro. Entre todas as designações de árvores elencadas do léxico de Vidas
Secas, o juazeiro é a árvore mais tipicamente sertaneja. Ele é a árvore-símbolo do
Nordeste e a mais comum da caatinga. Em vidas Secas, o juazeiro constitui o
símbolo de referência e orientação de Fabiano. Apresenta um investimento
simbólico-semântico muito marcante por ser uma árvore que apresenta vida longa,
resistente à estiagem, mantem-se verde em períodos de seca, fornece sombra e
alimento ao gado e não perde a folhagem . Nesse sentido, analisamos o espaço do
juazeiro de referencia almejada por Fabiano, um espaço nordeste-joazeiro no qual o
gado, elemento lingüístico-lexical simbólico representativo de rebanho que no
documento pode expressar a organização do homem nordestino, compartilha de
forma comum e coletiva, sem referência à classe, uma vez que o juazeiro fornece
sombra e alimento ao gado, independente de ser bovino, caprino, eqüino, suíno e
ovelhuns.
A representação do juazeiro nos leva a analisar o percurso de Fabiano em direção
ao juazeiro com o objetivo de restabelecer a fazenda, tornando-a uma organização
produtiva na qual possa ter acesso aos recursos naturais e de produção que lhe
garantam sobrevivência. Essa relação está metaforizada no juazeiro, uma árvore–
Fabiano resistente à seca e típica da flora brasileira. Nesse sentido, assiste-se em
Vidas Secas uma expressão lingüístico-literária típica do Modernismo que se
caracteriza pelo ideal de ruptura e reparos aos danos histórico-sociais causados pela
colonização européia. Nessa tendência, observa-se no percurso narrativo uma ação
de ruptura com o deslocamento de Fabiano com propósito de mudanças de
organização socioeconômica, política e cultural que malogra devido à forte
resistência apresentada pelo sistema econômico e social orientado pelo Capitalismo.
Assim sendo, Vidas Secas apresenta a realidade social do homem nordestino que
necessita de mudança, assistência social, política e econômica.
109
4.3.3 – A constituição lingüística de Fabiano
A figura de Fabiano como personagem central de Vidas Secas está representada na
figura histórico-lendária do vaqueiro nordestino. Vaqueiro, Fabiano encarna em Vidas
Secas um dos símbolos mais expressivos da cultura brasileira. Ele está representado
na narrativa como figura tipicamente brasileira, já que historicamente o vaqueiro se
caracteriza como um fenótipo humano miscigenado resultado de uma mistura
continuada entre o colonizador europeu com os grupos indígenas dos sertões
(Ribeiro, 1995:343).
Fabiano encerra em sua figuração de vaqueiro o símbolo maior da cultura sertaneja.
Ele representa a garra, a coragem, marca representativa de resistência humana na
caatinga nordestina. Em Vidas Secas, é investido da coragem, força e dignidade do
homem que se empenha no combate às irregularidades ambientais e sociais que faz
com que o Nordeste se apresente no cenário nacional como uma região econômica
frágil, subdesenvolvida com tipos humanos raquíticos, secos e famintos.
As ações de Fabiano no documento caracterizam-se por ser um vaqueiro que zela e
conduz a sua família e o rebanho de gado. Apesar de representar-se como um tipo
grosseiro, ignorante, duro e angustiado, Fabiano atua pela voz do narrador como um
indivíduo que direciona os outros, por meio de suas ações, ao manifesto de rupturas
e quebra de barreiras contra as estruturas opressivas. Nesse sentido, observa-se
que Fabiano apresenta características de um herói revolucionário, já que nele se
manifesta uma persuasão no sentido de libertação do homem das arbitrariedades
dominantes.
A fama de Fabiano, vaqueiro que conduz e trata do gado em Vidas Secas, pode ser
remetida à figura do pastor que conduz um rebanho. Na configuração de um pastor,
Fabiano, metaforicamente no percurso narrativo, manifesta-se como um instrutor
espiritual que influencia um rebanho no sentido de superá-lo das limitações
110
existenciais causadas pelo espaço físico e social. Nesse sentido, observamos em
Fabiano um investimento de valores e ações sociais que privilegiam o coletivo.
Dessa forma, podemos considerá-lo como um herói revolucionário.
Vermelho, queimado, tinha os olhos azuis, a barba e os
cabelos ruivos; mas como vivia em terra alheia, cuidava de
animais alheios, descobria-se, encolhia-se na presença
dos brancos e julgava-se cabra.(p.23)
Compreende-se que há, em Fabiano, um afastamento ou ocultamento de sua
verdadeira identidade em virtude de sua condição sociocultural. Constitui-se como
um indivíduo que não se realiza enquanto sujeito social, já que se encontra em
disjunção com o objeto. Na verdade, socialmente, Fabiano mantém-se numa posição
de objeto, já que ele está afastado da terra. No espaço, tudo lhe é negado e exposto
ao outro, o branco, que, por sua vez, exerce a condição de sujeito social, o qual
mantém o domínio sobre Fabiano que é apresentado como um indivíduo preso,
alienado pela sua situação enquanto indivíduo-objeto que não possui o instrumento
de produção: aterra, ainda que mantenha uma relação com ela.
Fiorin (2001) afirma que o narrador pretende mostrar que Fabiano é um ser
degradado, colocado num nível infra-humano. O narrador reitera isso por uma série
de intersecções. Fabiano possui as cores primárias da paisagem seca no amarelado
da barba e dos cabelos, no vermelho da pele e no azul dos olhos. Há, na visão de
Fiorin, uma fusão homem e mundo natural. Fabiano manifesta uma capacidade física
capaz de vencer a luta selvagem pela sobrevivência por efeito de uma adaptação ao
ambiente rude e hostil em que vivia.
Compreende-se na voz do narrador que Fabiano é um homem como qualquer
semelhante. As diferenças apontadas são determinadas por fatores econômicos. A
identidade de cabra lhe é atribuída em virtude de sua classe socioeconômica, já que
vivia em terra alheia, cuidava de animais alheios. Por esse fato, julgava-se cabra. O
111
valor e a classe do indivíduo na sociedade representada são determinados pelo
capital que possui, ou seja, pela sua relação com o instrumento de produção, neste
caso, a terra.
Tudo secco em redor. E o patrão era secco também,
arreliado, exigente e ladrão espinhoso como um pé de
mandacaru.
Indispensável os meninos entrarem no bom caminho,
saberem cortar mandacaru para o gado, concertar cercas,
amansar brabos. Precisavam ser duros, virar tatus. Se não
callejassem teria o mesmo fim de seu Thomaz da
bolandeira. Coitado. Para que lhe servira tanto livro, tanto
jornal? Morrera por causa do estomago doente e das
pernas fracas.(p. 32)
Observa-se que, com uso do quantificador universal tudo, Fabiano encerra-se numa
totalidade de coisas e/ou animais e/ou pessoas que se caracterizam pela hostilidade
da seca. O patrão, o representante do capitalismo agrário, inclui-se nesta totalidade
austera e áspera, pois, além de ser desonesto, rigoroso, se apresenta em
semelhança ao mandacaru, cacto que apresenta obstáculo de aproximação por
causa de seus espinhos. Além disso, o mandacaru, assim como o patrão, é um cacto
que se mantém verde e vigoroso na seca. Nesse sentido, Fabiano, na voz do
narrador e num ensinamento de vida que direciona para uma organização social
justa, expressa que os meninos, marca figurativa das possibilidades, devem saber
cortar mandacaru para o gado. Nessa passagem, o narrador, em comparação
metafórica do mandacaru com o patrão, o proprietário de terras, expressa que os
meninos devem acabar com o capitalista agrário, disponibilizando a terra para o
sustento do gado, o homem sertanejo. E para combater as securas do meio, devem
apresentar resistência física, pois seu Thomaz da bolandeira que expressava força
espiritual pelo domínio da palavra, nem por isso escapou da seca. Acabou-se por
causa de sua fragilidade física.
112
Fabiano constitui-se pela marca de resistência e reação a uma organização
conservadora, contrário às idéias que envolvem importantes transformações político-
sociais.
Agora Fabiano era vaqueiro, e ninguém o tirava d’ali.
Aparecera como um bicho, entocara-se como um bicho,
mas criara raízes, estava plantado. Olhou os quipás os
mandacarus e os chiques-chiques. Era mais forte que tudo
isso, era como as catingueiras e as barahunas. Ele, Sinha
Vitória, os dois filhos e a cachorra Baleia estavam
agarrados na terra (p. 24).
Fabiano apresenta-se na condição de zelador de um rebanho, era vaqueiro. Embora
seja um homem que tenha se apresentado numa condição animalesca, ele possui
uma identidade social, já que o fato ter criado raízes e estar plantado na terra refere-
se a sua característica enquanto indivíduo que está associado a um determinado
meio sociocultural e ambiental em referência neste caso ao Nordeste com sua
histórica tradição sócio-cultural que muito contribuiu para o fortalecimento da
identidade social brasileira. Nesse sentido, mantém-se apegado às suas referências
e experiências coletivas enquanto rede de relação e identificação, o seu lugar de
origem, o sertão nordestino.
No aspecto de resistência de Fabiano em comparação com os quipás, os
mandacarus e os chiques-chiques - vegetação cactácea e espinhosa que representa
a figura do patrão e as obstinações do meio em favor da seca –, Fabiano apresenta-
se numa identidade metafórica às catingueiras e às barahunas, vegetação que se
caracteriza pela rigidez, vigor e resistência. A catinga, na estiagem, seca, mas não
morre. É uma vegetação xerófila genuinamente brasileira. Em nenhuma outra parte
do planeta ela pode ser encontrada. É um tipo de vegetação característica do
Nordeste brasileiro. E em relação às barahunas caracteriza-se como vegetação do
113
sertão nordestino que se particulariza por apresentar uma madeira extremamente
dura que é utilizada como dormentes, peças de madeira nas quais se assentam e se
fixam os trilhos das estradas de ferro, que, por sua vez, pode ser entendida como
figura representativa de progresso econômico e social. Assim sendo, Fabiano
enquanto barahuna constitui-se como trabalhador por meio do qual o capitalismo se
sustenta. Apesar disso, ele resiste para extingui-lo, já que se caracteriza como um
sistema econômico e social injusto em Vidas Secas. Fabiano, ao mesmo tempo em
que se constitui na narrativa como força dura que age contra o desgaste do
organismo, apresenta-se com uma estrutura física que aponta as conseqüências da
agressão e ameaças do meio.
Chapchap. As alpercatas batiam no chão rachado. O
corpo do vaqueiro derreava-se, as pernas faziam dois
arcos, os braços moviam-se desengonçados. Parecia um
macaco (p.24)
Entende-se que Fabiano se compara com o solo seco e rachado. As rupturas do solo
manifestam-se também no corpo dele. A gravidade que atua sobre ele demonstra-se
firme e compacta, pois o seu corpo e as pernas apresentam-se dobrados e os braços
desconjuntados. O enrolamento é causado pela intranqüilidade. É uma manifestação
de comportamento do organismo em resistência às ameaças externas.
Fabiano apresenta-se fisicamente desarticulado, em aparência de um macaco, figura
representativa que indica que Fabiano se manifesta rebaixado a uma condição
animal. Entende-se também que a relação metafórica dele com o macaco, apesar de
se encontrar com uma estrutura corporal desajustada, refere-se a um indivíduo feio
numa situação primitiva, porém astuto, muito experiente, com habilidade de equilíbrio
e que não cai em enganos.
Em seu percurso, Fabiano ao reconhecer-se enquanto indivíduo que se encontra
preso à terra, porém sem a posse dela afirma na voz do narrador:
114
Entristeceu. Considera-se plantado em terra alheia!
Engano. A sina delle era correr mundo, andar para cima e
para baixo, á toa, como judeu errante. Um vagabundo
empurrado pela secca (p.24)
Observa-se que Fabiano, além de ser um herói revolucionário, apresenta
características do herói trágico, uma vez que ele luta contra o destino de aparente
condenação ao nomadismo. Em interferência à lenda do Judeu errante, o narrador
estabelece uma comparação metafórica entre Fabiano e o homem judeu que
também sofre em terra alheia. Na tradição cristã, reza-se que os judeus pediram a
Pilatos a morte de Jesus Cristo. Como conseqüência disso, os judeus foram, desde
então, castigados à eterna dispersão. Os judeus, povo com uma identidade social,
vivem dispersos pelo mundo, conservam no meio de outros povos a sua
nacionalidade, o seu caráter, as suas tradições e a sua religião. Eles formam uma
nação sem estado. Encontra-se nesse mesmo fado Fabiano enquanto homem do
sertão nordestino. Ele parece reconhecer uma destinação prenunciada de manter-se
em peregrinação em terras alheias. Fabiano sente-se numa condição de
excomungado do seu espaço social direcionado a manter os seus costumes em
contato com grupos ou pessoas diferentes. Apresenta-se um indivíduo que busca
uma resposta para os seus conflitos. Como isso não ocorre, autodenomina-se como
indivíduo tocado pela seca, enquanto má sorte e perpétua desgraça existencial.
Fabiano curou no rasto a bicheira da novilha raposa.
Levava no aiol um frasco de creolina, e se houvesse
achado o animal, teria feito o curativo ordinário. Não o
encontrou, mas suppoz distinguir as pisadas delle na
areia, baixou-se, cruzou dois gravetos no chão e rezou. Se
o bicho não estivesse morto, voltaria para o curral, que a
oração era forte. (p.23)
115
Entendemos que nesse percurso narrativo, a figura da novilha raposa não representa
vaca nova. A figura da novo-ilha expressa um valor semântico de um coletivo novo
confesso, designado como astuto, esperto, configurado na imagem da raposa. Em
referência a isso, o que o narrador expressa é que a novilha raposa encontra-se
metamorfoseada, não manifesta entre os outros animais. Vale destacar ainda que a
figura da raposa e do cão, que são animais que biologicamente manifestam uma
oposição violenta, ainda que pertençam a mesma espécie dos canídeos, no
documento, é compreendida na imagem da novilha raposa e da cachorra Baleia. A
cura da bicheira da novilha representa o restabelecimento, a manifestação do animal
ao curral, local de congregação dos animais. E o fato desta cura realizar-se pelo
rastro expressa o fato de restabelecer essa novilha pelas marcas históricas deixadas
por ela. O fato de Fabiano rezar uma oração, cruzando dois gravetos, marca
representativa dos dedos polegar e indicador na ação de escrita, pode ser entendido
como tentativa de convencer o animal a manifestar-se pela interferência e pela força
da expressão lingüística, já que a oração era forte.
Essa situação expressa um fato metalingüístico, já que pela situação histórica do
documento foi a primeira publicação de Graciliano Ramos depois de sair da prisão.
Esse período caracterizou-se pelo rechaço aos comunistas na ditadura de Getúlio
Vargas. Os rebeldes não só nesse período, como também no século XIX no Brasil,
eram apelidados de raposas pelos legalistas. Nesse sentido, a busca da novilha
raposa no sentido de restabelecê-la ao curral pelo rastro, pode significar em Vidas
Secas uma manifestação, um convite à resistência; portanto um esforço de mudança
na organização sócio-político-econômico-cultural no Brasil.
Fabiano apresenta-se, apesar de sua caracterização de resistência, como um herói
que fraqueja diante das circunstâncias opositivas confrontadas por ele. A fuga do
espaço tornou-se o único recurso de tentativa no sentido de manter-se vivo. O
espaço manifestou-se não propício à ânsia do ser. Na verdade, a fuga refere-se a um
ato de resistência à morte, que o persegue, associada à imagem da seca.
116
(...) os mandacarus e os alastrados vestiam a campina,
espinho, só espinho. E Baleia aperreava-o precisava fugir
daquella vegetação inimiga. (p.185)
(...) encarquelhou as pálpebras contudo as lagrimas, uma
saudade grande espremeu-lhe o coração, mas um instante
depois vieram-lhe ao espírito figuras insupportaveis: o
patrão, o soldado amarello, a cachorra Baleia inteiriçada
junto ás pedras do fim do páteo (p.188)
(...) Chegaram a uma terra desconhecida e civilizada,
ficariam presos nella. E o sertão continuava a mandar
gente para lá. O sertão mandaria para a cidade homens
fortes, brutos, como Fabiano, Sinha Vitória e os dois
meninos.(p.197)
Entende-se que o espaço afigura-se infértil para a sobrevivência. Os latifundiários
metaforizados nas figuras do mandacaru e dos alastrados mantinham a ocupação da
terra e sobre ela agiam como escudeiros em guerra para sustentar a sua autoridade
e com isso a exploração do homem. Fabiano sentiu-se prostrado, impotente diante
das forças que agiam contra ele. Configurava-se um poder constituído, centrado na
figura de Baleia, do patrão e do soldado amarelo. Baleia, ao contrário do que se pode
interpretar, no percurso narrativo, não desvanece. Na voz do narrador, Fabiano
afirma que ela continuou inteiriçada e o aperreava, ou seja, o perseguia
constantemente. Baleia manteve-se inflexível diante das ações de Fabiano. O patrão
roubava-lhe e o soldado amarelo o reprimiu com seu autoritarismo, colocando-o na
cadeia. Por tudo isso, Fabiano manifesta-se em Vidas Secas sem capacidade de
desenvolver e sustentar os seus desejos. Sem capacidade de lutar, de mudar o
percurso histórico constituído, ele arrasta-se em busca da cidade onde idealiza
manter contato com pessoas civilizadas, uma vez que no sertão não se encontram
meios que possam garantir a sua sobrevivência e a educação dos meninos. Fabiano
segue o seu percurso de alienação. E na figura dele, seguem inúmeros Fabianos,
homens de coragem; e por essa condição são explorados em seus destinos, na
117
ilusão e no sonho do poder ser cidadão de consciência, liberdade e superação de
barreiras e limites geo–econômico–político–culturais.
4.3.4 – A expressividade lingüística de Fabiano
Buscamos retratar, de acordo com os estudos de Lapa (1998) e Martins (2000),
nesta temática, as características estilísticas do vocabulário de Fabiano na tentativa
de compreendê-lo por meio de sua fala. Neste sentido, vale observar antes que, no
percurso narrativo de Vidas Secas, as personagens são realizadas numa situação
quase de mudez. Apresenta-se um enredo que materializa o pensamento sem
realizá-lo por meio da fala. Expressa-se um imaginário reprimido por circunstancias
histórico-político-sociais que se rompe de forma silenciosa e encoberta por meio da
expressão alegórica da literatura. Entre as personagens, realizam-se poucos
diálogos. Quando ocorrem, observa-se, sobretudo em Fabiano, como figura central
do grupo, uma fala dura, expressa num tom alto e barulhento, o que revela o seu
estado de aflição psicológica.
A expressão lingüística que Fabiano usa para se comunicar com Sinhá Vitória e os
meninos realiza-se na mesma tonalidade que é dirigida aos animais. Caracteriza-se
por ser bastante arbitrário. No mesmo padrão lingüístico enérgico usado para
conduzir o gado, Fabiano manifesta nas relações familiares. É uma relação social
meio brutal, o que é muito freqüente no interior do Nordeste; onde os pais discutem,
convivem e educam os filhos como se estivessem cuidando de animais.
Por isso, buscamos compreender Fabiano, também, por meio de sua fala,
investigando a sua caracterização, a sua condição de sujeito social a partir de suas
ações lingüísticas que são diminutamente vivas.
(1) – Anda, condemnado do diabo, gritou-lhe o pai (p.8)
(2) – Anda, excommungado (p.8)
(3) – Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta (p. 22)
118
(4) – Você é um bicho, Fabiano (p.23)
(5) – Um bicho, Fabiano (p.23)
(6) – Você é um bicho, Baleia (p.25)
Embora o documento expresse uma realidade psicológica interior caracterizada pelo
silêncio, observa-se a pouca realização de fala dos personagens de Vidas Secas.
Enquanto sujeito social, sob os efeitos da seca, Fabiano manifesta por meio de sua
fala um individuo bastante perturbado e aflito. Esse fato é resultado da preocupação
dele com a sua condição social de carência e ausência de subsídios
socioeconômicos que lhe garantam uma sobrevivência digna de um cidadão em
gozo de seus direitos políticos.
Nas falas (1) e (2), observamos, numa análise suprasegmental, um indivíduo que
apresenta um estado emocional de desequilíbrios que se externalizam no momento
em que Fabiano age verbalmente à insatisfação do menino mais velho em se manter
no percurso, o que, para Fabiano, se torna uma resistência à realização da trajetória
de mudança. Vê-se que Fabiano transfere ao menino as suas angústias, por vê-lo
como causador de obstáculos aos propósitos de transformação da realidade de seca
em que se encontram.
No plano da realização fonética, constatamos uma cadência de velocidade
enunciativa associada à marcha de pressa do vaqueiro, além de manifestar um
impulso de agressão e violência. Essa realização é observada na manifestação do
fonema vocálico [a] em anda, condemnado, diabo, excommungado. O som do [a]
realiza-se forte no enunciado, o que indica uma tonalidade alta, agressiva, autoritária
e rápida na fala de Fabiano, na sua relação com o menino.
No campo léxico-semântico, percebemos o uso do verbo andar no imperativo
afirmativo, na segunda pessoa do singular. Estilisticamente, o verbo, quando usado
na terceira pessoa, expressa um tom alto, duro. O uso desse verbo expressa a
vontade de prosseguir o seu percurso em oposição a resignação do menino que
119
oferece resistência à marcha. Por isso, ele age numa atitude enérgica em relação à
atitude opositiva do menino.
Além disso, manifesta-se o uso dos substantivos excommungado e condemnado,
atribuídos ao menino mais velho. O substantivo condemnado apresenta-se
designado pelo sintagma preposicional do diabo, o que expressa um indivíduo
possuído por forças opositoras. Condemnado e excommungado referem-se a
indivíduos acometidos por erros. São termos determinantes de indivíduos que
praticam ações causadoras de danos materiais e psíquicos aos outros. Em relação
ao menino, Fabiano atribui-lhe as causas das secas, uma vez que afirma que a
secca apparecia-lhe como um facto necessário (p.8). Por isso, Fabiano agiu de forma
enérgica e brutal no sentido de aniquilar as forças da seca que agiam sobre o
menino.
Situações opostas às falas (1) e (2) de Fabiano, encontram-se nas falas (3), (4), (5) e
(6). Enquanto nas falas (1) e (2), o tom duro e pavoroso, em (3), (4), (5) e (6), tem-se
um tom mais compassivo, carregado de um ritmo de fala de valor mais emotivo. Mas
a dureza transparece na sua relação de fala. Fabiano é uma novilha raposa
metamorfoseada. Em diálogo consigo, confirma com reserva a sua identidade de
homem enquanto indivíduo social que apresenta virtudes e fraquezas. Ao afirmar
isso, Fabiano achou-se imprudente. O seu orgulho era ser considerado, diante dos
outros, bicho. Mas em seu íntimo, quando (Fabiano) pisou com firmeza no chão
gretado, puxou a faca de ponta, esgaravatou as unhas sujas exclamou em
monólogo: - Fabiano, você é um homem (p 22). Fabiano tinha a convicção de que
era um homem, um herói que apresentava virtudes capazes de transformar uma
realidade sócio-historica estanque. E a sua identidade enquanto um bicho, capaz de
vencer dificuldades (p.23), caracteriza-o como indivíduo corajoso, valente e enérgico.
Ele é movido pela braveza e a resistência física, ainda que apresente atribulações
físicas e psíquicas em conseqüência dos fatos da seca.
120
Enquanto as falas (1) e (2) caracterizam-se pelo uso do pronome pessoal tu que não
está manifesto, as demais falas caracterizam-se pelo uso do pronome você. O uso
do pronome tu e você no Brasil, principalmente no interior do Nordeste, representa
situações expressivas diferentes. Enquanto o uso do você indica uma atitude mais
cordial, o tu representa um tom postiço e de ênfase na fala do sujeito enunciador em
relação ao efeito pretendido no enunciatário. Essa variação lingüística tonal em
Fabiano indica que, por um lado, ele é superior diante de algumas circunstâncias
sociais e, por outro, figura-se como inferior, o que faz com que ele transfira aos
outros o seu estado de repressão e angústia como mecanismo de autodefesa.
Nas falas (3), (4), (5) e (6), apresenta-se o verbo ser conjugado na terceira pessoa
do singular. O uso deste verbo nesta conjugação marca estilisticamente um tom
baixo. O verbo ser, neste caso, indica, além do valor emocional do enunciado, a
posição de identidade de Fabiano que oscila na condição de homem no enunciado
(3) e na condição de bicho no enunciado (4) e (5), situação que não pode ser
interpretada no documento como uma representação negativa de Fabiano, já que
esta atribuição expressa o seu estado de ânimo e coragem de resistir às agruras da
seca.
Fabiano, à frente de Baleia, enternece, ou seja, manifesta-se sensível e atribui a ela
a condição de bicho. Com isso, afirmamos que Fabiano e Baleia encontram-se na
mesma condição de valentia e coragem, mas em posição ideológica diferente. Como
já afirmamos, Baleia não figura no documento como um simples animal doméstico.
Enquanto Fabiano busca o restabelecimento da novilha raposa, Baleia sai à procura
dela num vôo entre as macambiras (p.27),
Por tudo isso, em avaliação a expressividade lingüística de Fabiano, podemos
analisá-la enquanto expressão de um sujeito dotado de uma força moral, autoritária e
também emocional. Observa-se uma fala com palavras que se repetem, períodos
curtos e truncados, o que demonstra uma competência lingüística não desenvolvida.
Seu vocabulário é parco. Por isso, essa ausência de repertório lingüístico o sufoca.
121
Assim sendo, Fabiano pode ser considerado um indivíduo que representa o homem
brasileiro vitimado por um sistema social histórico-marginalizador, que mantém os
indivíduos presos às forças primitivas, negando-lhes até mesmo o acesso à
linguagem enquanto objeto de representação plena e decisão própria das práticas
políticas e sociais.
122
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Esta Dissertação teve como tema o estudo da língua portuguesa do Modernismo
literário no Brasil e os elementos histórico-lingüísticos representativos da identidade
e da condição do homem nordestino em Vidas Secas de Graciliano Ramos. No
decorrer do trabalho, procuramos examinar no documento os elementos lingüísticos
enquanto unidades que representam o uso lingüístico da época de origem do
documento e os fatos históricos caracterizadores da realidade sociolingüística,
política e econômica do Brasil, no momento de surgimento do texto. Para a
explicação desses fatos, levamos em consideração o recurso científico da
metalinguagem, na Historiografia Lingüística, o que nos permitiu compreender a
relação entre a língua e a realidade sociocultural expressa no documento.
Buscando consubstanciar os objetivos elaborados para a realização da análise,
observamos o documento Vidas Secas numa perspectiva específica, examinando a
sua realização num contexto histórico-social determinado de produção, que
comprova esse texto como um documento histórico lingüístico que variou formal e
semanticamente no decorrer dos anos até chegar à forma atualmente conhecida. No
processo de análise, pudemos perceber que os fatos políticos, sociais e culturais são
revelados no interior do texto por meio de marcas histórico-lingüísticas, a partir dos
elementos lexicais do texto, que são uma categoria lingüística que mantém uma
relação direta com os elementos extratextuais, ou seja, com os elementos do mundo
natural e cultural. Nesse sentido, compreendemos que a relação entre os aspectos
externos, contextuais e as dimensões internas, lingüísticas, nos possibilitou entender
os aspectos socioculturais representados em Vidas Secas de Graciliano Ramos.
Em Vidas Secas, a língua apresenta-se enquanto processo histórico-social que
expressa a visão de mundo de um sujeito social num lugar e tempo determinados.
Dito isto, Vidas Secas surge como um documento que mostra o homem nordestino
numa determinada época. Por meio dele, percebemos inclusive as transformações
histórico-lingüísticas, principalmente as políticas sociais brasileiras que ocorriam no
123
contexto em que surgiu a obra em relação às que ocorrem atualmente no Brasil.
Com isso, tem-se em Vidas Secas o registro da língua portuguesa em uso no Brasil
na década de 30, em pleno Modernismo, quando se buscou mostrar a realidade
sócio-histórica do homem brasileiro do Nordeste (a)condicionado a uma vida de
animal. Buscou-se mostrar também o homem brasileiro em ruptura com o modelo
político do colonialismo europeu, ainda persistente na cultura nacional. Em vista
disso, por estar coerentemente relacionado com a realidade social da época em que
foi escrito, destacamos o momento histórico como revelador dos fatos concomitantes
presentes na materialidade lingüística do documento.
A opção pela Historiografia Lingüística explica-se pelo fato de a língua ser objeto de
realização histórica. Além disso, reconhecemos ser esse paradigma, entre outros
existentes na Lingüística, a teoria que forneceria um suporte para justificar a
realidade histórico-social e lingüística presente no documento. Da relação da
Lingüística com a História, a HL parece-nos a teoria mais completa para descrever e
explicar os fatos histórico-lingüísticos mostrados em Vidas Secas. Nesse sentido,
observamos que as interferências históricas de produção do texto nos permitiram
compreender que Vidas Secas é instituído, em sua maioria, a partir de fatos do
cotidiano rural. O propósito disso é mostrar a situação histórico-social e política do
Brasil no início do século XX, principalmente a visão ramiana dos efeitos desse
modelo de política na existência humana, no interior do Nordeste.
As marcas lingüístico-lexicais foram verificadas na amostra com o intuito de
compreender os aspectos sócio-históricos do período de surgimento do documento.
Dito isto, Vidas Secas apresenta um uso lingüístico do português brasileiro numa
norma coloquial, com um requinte literário. Esse apuro estilístico é complexo.
Entretanto, Graciliano Ramos, um mestre de uso da palavra, aplicou com maestria e
talento essa unificação em Vidas Secas. Tem-se como resultado disso documento
que apresenta uma espontaneidade lingüística que o torna, para um leitor atento,
uma leitura de fácil compreensão. Nesse sentido, o romancista ultrapassa a
transitoriedade dos fatos cotidianos e alcança a universalidade da literatura. Com
124
isso, Vidas Secas atinge um status de arte, centrado na norma de uso do
Modernismo literário brasileiro.
Compreendemos que Vidas Secas, com o registro do cotidiano de um vaqueiro, é
marcado por aspectos histórico-culturais que nos forneceram elementos para uma
leitura da época de sua produção, já que encontramos em sua materialidade
lingüística um passado sociocultural da realidade brasileira. Observamos inclusive
que, na constituição do texto, há a confluência de várias esferas teóricas, ou seja,
diferentes visões de mundo, várias interferências históricas, que nos permitiu essa
visão numa perspectiva interdisciplinar fundamentada pela HL.
Manteve-se como de fundamental importância em nosso trabalho a forma de arranjo
de Vidas Secas, em função do tempo, do lugar e dos aspectos socioeconômicos da
época em que surgiu. Por ser o Modernismo um movimento de desestruturação do
passado em busca de novo direcionamento histórico, Vidas Secas envolveu esses
aspectos na sua estruturação e também no seu percurso narrativo. A narrativa é
constituída numa condição fracionada em ruptura com a narrativa tradicional. O
homem é apresentado como um produto histórico, desarticulado, que absorve os
aspectos do meio, ou seja, reflete, em seus vários aspectos, as atrocidades do meio
físico e do sistema sócio-político brasileiro. Tem-se um homem que busca superar a
condição social de alienado. Assim sendo, as marcas lingüísticas empregadas no
documento sustentam a concepção de memória histórico-social de fatos políticos
ocorrentes no Brasil no início do século XX, principalmente na década de 30.
Essa Dissertação buscou, por fim, destacar que Vidas Secas é um documento
histórico-lingüístico que apresenta marcas histórico-sociais da condição do homem
brasileiro do Nordeste no início do século XX, ainda primitivo na modernidade. Tal
condição pôde ser analisada pela língua em uso em Vidas Secas, no qual a língua se
apresenta numa função social, política e histórica, por expressar o homem em seus
anseios e frustrações, em suas práticas sociais.
125
Ao tratarmos da língua portuguesa do Brasil em uso no Modernismo literário,
percebemos que ela, em Vidas Secas, apresenta os valores sociais e ideológicos
reivindicados neste período: a mudança na organização social e política da
sociedade brasileira. Com isso, afirmamos que a língua representa, por conseguinte,
a sociedade que faz uso dela para as suas necessidades expressivas, políticas e
sociais.
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