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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MARIA DE LOURDES MARTINS MURAMATSU
A LÍNGUA E A HISTÓRIA EM DOCUMENTOS PRODUZIDOS POR
CRUZ E SOUSA NO FINAL DO SÉCULO XIX
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
2007
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
MARIA DE LOURDES MARTINS MURAMATSU
A LÍNGUA E A HISTÓRIA EM DOCUMENTOS PRODUZIDOS POR
CRUZ E SOUSA NO FINAL DO SÉCULO XIX
Dissertação apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para obtenção do
título de MESTRE em Língua Portuguesa, sob a
orientação do Professor Doutor Jarbas
Vargas Nascimento.
MESTRADO EM LÍNGUA PORTUGUESA
SÃO PAULO
2007
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BANCA EXAMINADORA
___________________________________________
____________________________________________
____________________________________________
DEDICATÓRIA
Aos meus filhos, Bruno e Mayara. Eu amo vocês.
AGRADECIMENTOS
A Deus, pelo dom da vida e pela oportunidade de vivenciar um momento como
esse.
Ao professor Doutor Jarbas Vargas Nascimento, meu orientador e amigo, pela
paciência, disponibilidade e atenção.
Às professoras Doutoras da Banca do Exame de Qualificação, Mercedes Fátima
de Canha Crescitelli e Lilian Maria Ghiuro Passarelli, pelas expressivas sugestões
dadas a nossa pesquisa.
A todos os professores do Programa de Estudos Pós-Graduados em Língua
Portuguesa da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, pelos
ensinamentos, auxiliando-me, sobretudo, em minha formação.
Aos colegas do Programa, por dividirem experiências e conquistas.
À minha amiga Miriam Arruda, por me incentivar a ingressar na pós-graduação e
por estar ao meu lado durante todo o curso.
Aos meus colegas e amigos da Escola Estadual Professor José Jorge do Amaral,
por terem me incentivado e torcido por mim nos momentos mais difíceis da
elaboração desse trabalho.
À supervisora de ensino Helenir da Diretoria de Ensino de São Bernardo do
Campo, pela paciência, orientação, credibilidade, apoio e atenção durante todo o
curso.
À minha amiga Carla Dotto, pelo carinho e apoio na execução desta pesquisa.
Aos meus irmãos Altair e Rafael, a minha mãe Maria Angélica, a minha sobrinha
Fernanda e a minha cunhada Márcia pelo apoio técnico e afetivo que me deram
durante toda a minha vida e, em especial, durante a elaboração dessa pesquisa.
À Secretaria Estadual de Educação do Estado de São Paulo, pelo programa
Bolsa Mestrado e ajuda financeira.
MARIA DE LOURDES MARTINS MURAMATSU
A LÍNGUA E A HISTÓRIA EM DOCUMENTOS PRODUZIDOS POR CRUZ E
SOUSA NO FINAL DO SÉCULO XIX
RESUMO
Nesta Dissertação, ao aproximar Língua e História da realidade social com
o objetivo de examinar a língua portuguesa em uso no Brasil e as referencias ao
homem negro e à abolição da escravatura durante o século XIX, obtivemos como
resultado a identificação de características da época. Ao tomarmos a língua como
prática social, questionamos em que medida as escolhas lingüísticas expressam
as posições políticas, históricas e intelectuais de então.
O movimento pela abolição da escravatura mobilizou alguns dos nossos
intelectuais e a imprensa que, aliando-se a eles, materializou em documentos,
fatos ocorridos, tornando-os mais compreensíveis à sociedade. O reconhecimento
da importância do contexto e da análise histórico-lingüística do documento faz
com que o homem possa reconstituir o passado dele mesmo e da língua, fazendo
com que compreenda melhor à luz das teorias modernas esse passado.
A escolha da Historiografia Lingüística como suporte teórico-metodológico
se justifica em virtude do aparato interdisciplinar que ela estabelece, em essência
com a Lingüística e a História, no processo de interpretação de documentos,
abarcando uma visão ampla da língua e do homem, tratando-os em sua totalidade
e não apenas do ponto de vista sociológico ou antropológico, mas em uma
dimensão lingüística, fato que permite entender o homem e sua interação com o
grupo social.
O recurso da metalinguagem e a operacionalização dos princípios
propostos por Konrad Koerner são privilegiados em nossa análise. Valorizamos o
caráter documental dos textos Piparotes produzidos por Cruz e Sousa no jornal O
Moleque em 1885, e que foram tomados como amostra, chegando a considerar
que tais textos foram significativos na sociedade da época e auxiliaram a
reconstruir lingüisticamente a realidade.
Palavras-chave – Historiografia Lingüística, língua portuguesa, história, homem
negro.
THE LANGUAGE AND THE HISTORY IN DOCUMENTS PRODUCED BY CRUZ
E SOUSA IN THE END OF THE 19TH CENTURY
ABSTRACT
In this Dissertation, while bringing Language and History closer to the social
reality with the objective to check the references to the afro-american man and the
abolition of slavery during the 19th century, it turned in the identification of some of
the characteristics of the Portuguese in use to that time. While taking the language
like social practice, we question in which measure the linguistic choices express
the political, historical and intellectual positions of those days.
The movement for the abolition of the slavery mobilized some of our
intellectuals and the press that, allying with them, materialized occurred facts into
documents, making them more understandable to the society. The recognition of
the importance of the historical-linguistic context and of the analysis of the
document does so that the man can reconstitute his own past and the past of the
language, doing so they understand better this past by the light of the modern
theories.
The choice of the Linguistic Historiography as a theoretical and
methodological support, is justified in virtue of the interdisciplinary apparatus that it
established, in essence between Linguistics and the History, in the process of
interpreting documents, comprising a spacious vision of the language and of the
man, treating them in their totality and not only by the sociological or
anthropological point of view, but in a linguistic dimension, fact that allows us to
understand the man and his interaction with the social group.
The resource of the metalanguage and the application of the principles
proposed by Konrad Koerner are privileged in our analysis. We value the
documentary character of the Piparotes texts produced by Cruz e Sousa for “O
Moleque” newspaper between 1885, and which were taken like sample, coming to
think that such texts were significant in the society of the time and helped
rebuilding reality linguistically.
Key words: Linguistic historiography, language, history, afro-american man.
___________________________SUMÁRIO______________________________
INTRODUÇÃO ...................................................................................................... 01
CAPÍTULO 1 – A BASE TEÓRICA: A HISTORIOGRAFIA LINGUÍSTICA
1.0 - Considerações Iniciais ........................................................................... 08
1.1 - Antecedentes da Historiografia Lingüística ............................................ 08
1.1.1 – Alguns aspectos sobre Memória e História................................... 11
1.2 - Lingüística e História como ciência .........................................................16
1.3 - A Interdisciplinaridade..............................................................................27
1.4 - Historiografia Lingüística: Concepção e Princípios ................................ 30
1.5 - A noção de Documento .......................................................................... 35
1.6 – A Metalinguagem ....................................................................................36
1.7 – Argumento de Influência .........................................................................39
CAPÌTULO 2 – CONTEXTUALIZAÇÃO: O FINAL DO SÉCULO XIX
2.0 - Considerações iniciais............................................................................. 43
2.1 - O Brasil no final do século XIX ................................................................ 44
2.2 - A sociedade e sua constituição ............................................................... 53
2.3 - A Língua Portuguesa no final do século XIX ........................................... 57
2.4 – Situação do negro no final do século XIX ............................................... 60
2.5 - Florianópolis e a imprensa no século XIX ................................................ 65
CAPÍTULO 3 – A LÍNGUA E A HISTÓRIA EM DOCUMENTOS PRODUZIDOS
POR CRUZ E SOUSA
3.0 – Considerações Iniciais............................................................................ 68
3.1 – A vida e a obra de Cruz e Sousa............................................................ 69
3.2 – A amostra................................................................................................ 72
3.3 – A ortografia presente nos textos .............................................................74
3.3.1 – Características prosódicas............................................................ 76
3.4 – Relação tema e título .............................................................................. 77
3.5 – A estrutura do texto ............................................................................. 80
3.5.1. A organização do texto ...............................................................85
3.6 – A argumentação ....................................................................................88
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................92
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................... 95
ANEXOS..........................................................................................................100
1
INTRODUÇÃO
Filho meu, de nome escripto
Da minh’alma no Infinito.
Escripto a estrellas e sangue
No pharol da lua langue...
Das tuas azas serenas
Faz manto para estas penas.
Recólta d’estrellas – Cruz e Sousa
Este trabalho insere-se na linha de pesquisa História e Descrição de Língua
Portuguesa mais especificamente centrado nas investigações levadas a efeito no
Grupo de Pesquisa Memória e Cultura na Língua Portuguesa Escrita no Brasil,
cadastrado no diretório do CNPq e que reúne pesquisadores e estudantes da
PUC/SP, e pretende examinar, por meio do Português em uso no Brasil no século
XIX, as referências a etnia negra e a abolição nos anos finais do século XIX em
textos produzidos por Cruz e Sousa no Semanário O Moléque em 1885.
Esta dissertação tem como tema um estudo da língua e da história em 9
recortes retirados do semanário O Moléque do final do século XIX. Tais recortes
fazem parte de textos escritos sob o título de Piparotes, que se assemelham a
editoriais atuais, e foram produzidos por Cruz e Sousa durante sua fase
jornalística. Essa relação entre língua e história permite que reconheçamos a
importância do saber contextual, já que são propostas análises lingüístico-
históricas que reconstroem o passado e possibilitam a compreensão à luz de
teorias atuais.
Os recortes, que utilizaremos como amostra, fazem parte do semanário O
Moléque, publicado em 1885 em Florianópolis, Santa Catarina, arquivados no
acervo da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e serão analisados na perspectiva
2
histórico-lingüística, podendo revelar, dessa maneira, marcas do português em
uso àquela época, bem como as referências ao homem negro. Nosso intuito é
desvelar dados de usos lingüísticos do Brasil e da memória social que possibilitem
uma compreensão histórico-linguística do final do século XIX, partindo do seguinte
problema de pesquisa: como são as referências ao homem negro do final do
século XIX em textos produzidos também por um homem negro?
A possibilidade de contribuir para a historiografia da Língua Portuguesa,
também é fator determinante para a realização desta pesquisa, já que
estudaremos documentos significantes para o século XIX. Os recortes escritos em
meio às discussões sobre a abolição veiculados naquela sociedade, podem ser
examinados por diferentes olhares. Por um lado como um simples meio de
passagem de informação, por outro, como documento materializador de fatos
sociais que, por se tornarem objeto de reflexão e de um esforço de codificação,
evidenciam os usos revelando a representatividade social do indivíduo em sua
escrita e, também, as relações do grupo que influenciam essa mesma produção
A História Nacional e a Língua Portuguesa em uso no Brasil do final do
século XIX revelam a constituição da identidade social, entre outras, da etnia
negra e permitem que se faça um trabalho voltado para a reflexão sobre os
mecanismos lingüísticos, com base em seus postulados teóricos, explicitados
pelos princípios da Historiografia Lingüística. Pesquisas sobre esse assunto já
foram realizadas, e o processo de abolição da escravatura e as referências à etnia
negra durante o século XIX oferecem campo de pesquisa para muitos outros
trabalhos.
No final do século XIX, a escravidão impunha limites epistemológicos para o
desenvolvimento pleno do país, mas isso estava fora da preocupação dos
governantes. Somente com o movimento abolicionista é que o negro foi integrado
às preocupações nacionais, pois o sistema escravista não permitia a entrada do
progresso, sendo um entrave ao avanço econômico, político e cultural do país. Tal
movimento levou muitos escritores a defenderem a abolição e atos de libertação
de escravos, entre eles o produtor dos textos a serem analisados neste trabalho,
Cruz e Sousa que era negro e se distinguia dos outros negros da época por dois
3
motivos: era livre e, sendo assim, não participava da grande massa escrava; e era
um jornalista, o que lhe rendeu o emprego de redator do Jornal O Moléque
facilitando a divulgação de textos, produzidos por ele próprio, que faziam
referência à abolição e atos de libertação de negros.
Em nossa pesquisa, levaremos em consideração que a língua não é
apenas um conjunto de regras gramaticais e sim uma prática social, na qual se
situa o homem e seu tempo. A curiosidade cada dia mais acentuada pelos estudos
relacionados à vida do negro no cenário nacional é um dos aspectos de interesse
dedicado ao conhecimento dos problemas brasileiros e que motivaram nossa
pesquisa, já que os textos reúnem todo conhecimento de seu produtor num dado
momento, tornando-se uma realidade histórica, como assevera Sylvain Auroux
(1992: 11-12):
O ato de saber possui uma espessura temporal, um horizonte de
retrospecção, assim como um horizonte de projeção. O saber não
destrói seu passado; (...) ele o organiza, o escolhe, o esquece, o
imagina, o idealiza, do mesmo modo que antecipa seu futuro
sonhando-o enquanto o constrói. Sem memória e sem projeto,
simplesmente não há saber.
A língua possibilita a interação dos homens consigo mesmo e com o mundo.
É, portanto, uma prática social, onde as marcas lingüísticas revelam o dito e o
contexto das relações sociais, assim sua utilização é influenciada pelo meio social
que dita o que pode e deve ser dito, já que o exterior envolve o indivíduo e faz
com que ele escolha seu léxico a partir de seu envolvimento com o meio,
refletindo sua interação. Segundo Eugenio Coseriu (1979: 65-66):
O falar é sempre falar uma língua, justamente porque é falar (e não
mero exteriorizar), porque é “falar e entender”, expressar para que
o outro entenda, ou seja, porque a essência da linguagem ocorre
no diálogo. Donde também que o que é compreendido pelo
ouvinte, enquanto compreendido, seja apreendido e se torne
“língua” (saber lingüístico), e possa ver utilizado como modelo para
posteriores atos de expressão: o ouvinte não só entende o que o
4
falante diz, mas percebe, do mesmo modo, a maneira pela qual o
diz.
Para a análise, adotaremos o princípio da contextualização, o princípio da
imanência e o princípio da adequação teórica traçados por Konrad Koerner (1996).
Conforme afirma Jarbas Vargas Nascimento (2005: 7):
Embora os estudos histórico-lingüísticos constituam um campo
pouco desenvolvido no Brasil, eles vêm despertando interesses
internacionais e nacionais nas últimas décadas. Marcadas por
direcionamentos advindos de autores estrangeiros consagrados,
como Pierre Swiggers, Konrad Koerener, Sylvain Auroux, entre
outros, as pesquisas que objetivam uma relação entre a língua e a
história são poucas, devido, talvez, não somente à dificuldade de
acesso a documentos, mas também ao caráter interdisciplinar
pretendido pelo novo paradigma da ciência, que se contrapõe a
uma visão conservadora e unidimensional. Soma-se a isso a
atitude do historiógrafo da língua, de quem se requer conhecimento
amplo, competência em sua especificidade, além de abertura ao
diálogo que se faz necessário estabelecer entre a Lingüística e a
História dentre outras áreas de conhecimento.
Nos estudos na perspectiva da Historiografia Lingüística, segundo K.
Koerner (1996), não se deve apoiar em um discurso identificado com saberes
predeterminados e redutores, mas em uma abrangente e complexa rede
discursiva que pressuponha uma prática interdisciplinar para a determinação dos
aspectos lingüísticos de uma época. É o equilíbrio entre o conhecimento
lingüístico e as representações culturais, buscando ressaltar as relações sociais e
individuais, que perfazem os aspectos lingüísticos das formas de produção de um
determinado documento.
Por ser uma ciência descritiva e explicativa, a Historiografia Lingüística
permite a compreensão das particularidades da língua a partir de um determinado
documento inserido em um contexto histórico-social. Esse documento não precisa
5
ser necessariamente uma gramática, um dicionário, ou um livro didático, mas
também uma obra literária, correspondências, textos escritos em jornais etc.
A opção pela abordagem teórico-metodológica da Historiografia Lingüística
permite um olhar os textos produzidos pela imprensa como um documento
histórico, aberto à interpretação, que estabelece, por meio da concretização e da
repercussão dos direitos do homem, um estado de língua. Além disso,
percebemos que os fatos, as notícias, as informações e, particularmente, os
documentos podem ser interpretados interdisciplinarmente, pois refletem a língua
em uso e a história. Por isso a Historiografia Lingüística aparece como a base
investigativa de nossa pesquisa, fundamentando o processo de análise do
documento histórico-lingüístico enquanto materializador do cotidiano do homem.
O fato de que a imprensa tem impulsionado, ao longo do tempo, mudanças
profundas na formação de opinião e se apresenta como um processo de
objetivação da língua, também nos motivou a tomar os recortes de O Moléque
como objeto de análise. As influencias contextuais incidem sobre a vida de cada
indivíduo e de seu grupo gerando sobre eles uma imagem particular e social.
Dado que o homem se caracteriza como um ser lingüístico, investido das
influências que recebe, deixa que tais influências se reflitam em sua consciência e,
também, na língua que utiliza no processo de interação social.
A imprensa constitui-se um dos meio que o homem tem para documentar
os fatos e fazer com que as informações se perpetuem, tornando-se, assim, um
elo de ligação temporal que permite informar-se, entender-se e buscar o seu
autoconhecimento, no mesmo instante em que constrói a memória e busca uma
identidade nacional e lingüística. O passado constitui, assim, a história e os
documentos se tornam espaços da experiência vivida. Uma das funções da
história é a de indicar o funcionamento da sociedade, já que o documento, ao
retratar o passado, atua como um modelo para o presente e para o futuro.
Nossa proposta de pesquisa torna-se relevante aos conhecimentos
histórico-lingüísticos, pois os recortes de O Moléque consolidam-se não somente
como lugar da memória, isto é, espaço em que a lembrança social é perpetuada,
6
mas como uma metalinguagem, por meio da qual os fatos histórico-culturais
permitem interpretar a história, o homem, a língua e a sociedade.
Salientamos, ainda, que a orientação da Historiografia Lingüística, que se
configura nos domínios de articulação da Lingüística e da História, duas áreas de
conhecimento que, aliadas a outras ciências humanas, são capazes de dar conta
da descrição e explicação dessa articulação. Por conta disso, faz-se necessário
que, no processo de elaboração da pesquisa, aprofundemos o conhecimento
lingüístico, além de outros afins, para termos uma compreensão adequada de
nosso objeto particular de pesquisa. Como pesquisadores, devemos nos
familiarizar com mais de uma fonte de transmissão de teoria e práticas
lingüísticas, bem como de suas mudanças ao longo do tempo, pois a Historiografia
Lingüística não pode ser estudada separada das influências intelectuais gerais em
que os recortes de O Moleque foram escritos.
Esta dissertação apresenta-se estruturada em três capítulos, nos quais
estudamos os pressupostos teóricos e realizamos as análises decorrentes
daquela teoria.
No primeiro capítulo, A base teórica: A Historiografia Lingüística,
fornecemos os fundamentos teóricos que respaldam a análise da amostra
selecionada, ou seja, a explanação das concepções de História e Lingüística para,
depois, nos atermos à Historiografia Lingüística.
No segundo capítulo, Contextualização: o final do século XIX,
operacionalizamos o princípio de contextualização que marca o clima de opinião
ou espírito da época, de modo particular, o movimento pela abolição e o
tratamento que era dado ao negro, com a preocupação com as concepções
lingüísticas vigentes no Brasil, bem como com o uso da Língua Portuguesa.
No terceiro capítulo, A Língua e a História em documentos produzidos por
Cruz e Sousa, trabalhamos os princípios de imanência e de adequação teórica, a
fim de proceder à análise da amostra selecionada, em que buscamos verificar a
ortografia, relação entre título e tema, a estrutura do texto e argumentação
utilizados por Cruz e Sousa.
7
Por fim, seguirão as considerações finais, a bibliografia e os anexos.
8
CAPÍTULO 1
A BASE TEÓRICA: A HISTORIOGRAFIA LINGÜÍSTICA
1.0 Considerações iniciais
Como a língua tem como função básica a interação social, sendo processo e
produto da atividade histórica do homem, é possível estudá-la na perspectiva da
Historiografia Lingüística, que tem ganhado amplitude nas teorias de K. Koerner,
ao propor a análise de documentos com base nos princípios de contextualização,
imanência e adequação.
Trataremos, pois, inicialmente, das concepções e relações entre Memória,
História e Lingüística. A seguir, a concepção de Historiografia Lingüística,
documento, metalinguagem e argumento de influência que constituem a base
teórica desse trabalho.
1.1 Antecedentes da Historiografia Lingüística
A última metade do século XIX caracteriza-se como a época dos
neogramáticos, uma geração de lingüistas da Universidade de Leipzig que,
questionando certos pressupostos da prática histórico-comparativa, estabelece
uma orientação metodológica diferente para a mudança lingüística. A fonética
passa a explicar as transformações lingüísticas e um dos defensores dessa teoria
é Hermann Paul.
Segundo H. Paul (1966), a ciência de princípios é um modo de observação das
transformações lingüísticas. Por meio dessa ciência, defende que, para estudar
uma língua, é necessário observar os seus princípios fonéticos, morfológicos,
sintáticos e semânticos que têm origem físico-psíquica.
Para H. Paul o saber individual se refere a conclusões particulares. Há, porém,
uma relação que leva a concordância e ao entendimento. Essa concordância está
ligada ao espírito, à natureza e às vivências que possibilitam o entendimento entre
9
os indivíduos, observado o princípio de que a alma estranha tem as mesmas
relações e as mesmas impressões físicas com o mundo que a cerca.
Toda a manifestação criativa da linguagem é individual e, em concordância
com outros indivíduos, transmite-se e estes a transformam e a adaptam às suas
necessidades, ou seja, na medida em que a criação lingüística é transmitida a um
indivíduo e transformada por ele, se dá uma união e uma divisão de um trabalho
sem os quais não se pode imaginar qualquer cultura.
H. Paul postula que todos os campos lingüísticos evoluem gradativamente,
uma vez que o indivíduo ora é agente, ora paciente na relação da língua com a
comunidade a que esse indivíduo pertence. Dessa relação, surgem as
divergências individuais que possibilitam as mudanças necessárias no uso da
língua.
Essas modificações ocorrem por meio das relações espontâneas do
indivíduo, como falar, pensar e seu convívio social com os outros elementos que o
cercam. Uma modificação do uso só poderá efetuar-se quando ambas as coisas
coincidirem. O indivíduo está sempre sujeito à influência de outros, mesmo
quando já absorveu completamente o que é usual na língua.
Para criar uma língua individual, as línguas de muitos outros indivíduos
participam de formas diferentes, de acordo com os contatos que ele tem durante
sua vida. As línguas individuais podem ser ativas e passivas em relação umas às
outras no processo de criação. A criação da língua de um indivíduo se dá pela
convivência com o grupo de outros falantes. A origem só é contada na medida em
que influencia a natureza física e espiritual de cada um e é um fator na formação
da língua, mas muito secundário em comparação com as influências do convívio.
As modificações no uso da língua são, de um lado, produto dos impulsos
espontâneos de cada indivíduo e, por outro, das relações de convívio.
As mudanças são mais sentidas na fonética, já que um som nunca é
reproduzido da forma que é recebido. A causa disso é que tudo influencia a fala
pelo convívio pessoal imediato. A transmissão indireta não oferece dificuldades no
que diz respeito ao vocabulário e ao sentido das palavras.
10
As diferenças fonéticas são maiores do que as morfológicas e sintáticas e
se estendem por longo período de tempo. Porém, quando se dá uma verdadeira
separação lingüística, a diferença que mais caracteriza a mudança nas línguas é a
fonética. Disso decorre a prevalência, na época, das chamadas leis fonéticas, das
quais nenhuma falante escapava.
Com referência ao vocabulário, as mudanças também aparecem com
intensidade, pois sobre ele incidem influências de hábitos. Termos técnicos, por
exemplo, estão em constante transformação, acompanhando a evolução científica.
Novos termos são criados a todo o momento, ou adaptados de acordo com a
necessidade. Na formação das línguas artificiais, entram condições semelhantes
às da criação dos dialetos.
H. Paul afirma que, para se compreender os fenômenos relacionados à
língua, é preciso, antes, entender os fenômenos lingüísticos manifestados na alma
humana.
Ainda sobre essas modificações da língua, segundo Ricardo Cavalliere
(2000), a perspectiva histórica nos estudos da língua no século XIX foi uma
inovação, já que os fatos passados, até aquele momento, tinham apenas
referências superficiais. Assim, as línguas começaram a ser estudadas desde
suas origens. Porém, no final do século XIX e começo do século XX, a questão
histórica na língua foi deixada um pouco de lado, por conta dos avanços
tecnológicos e, surge então, a teoria gerativista de Chomsky que privilegia os
estudos históricos da língua e observa a formação de sentenças lingüísticas do
indivíduo apoiada em outras já existentes. Observadas as contribuições que
deram à Lingüística as teorias gerativistas, estruturalistas e a pragmática, não
podemos dizer que somente os fenômenos das línguas ao redor de si mesmas
devam ser colocadas, mas também, os estudos históricos. Assim a Historiografia
Lingüística, com seu caráter pluridisciplinar, apresenta no âmbito de sua
cientificidade, o elo que podemos fazer frente aos estudos histórico-contextuais e
dos estudos lingüísticos.
11
1.1.1 Alguns aspectos sobre memória e história
É necessário entendermos as relações entre memória e história, para que
possamos estudar a amostra escolhida, ou seja, os textos do jornal O moleque.
Esses textos abordam questões referentes ao homem negro e ao processo de
abolição, desencadeado no final do século XIX.
Segundo Jacques Le Goff (2003:419), memória é:
Fenômeno individual e psicológico (cf. soma/psiche), a memória
liga-se também à vida social (cf. sociedade). Esta varia em função
da presença ou da ausência da escrita (cf.oral/escrito) e é objeto
da atenção do Estado que, para conservar os traços de qualquer
acontecimento do passado (cf. passado/presente), produz diversos
tipos de documento/monumento, faz escrever a história (cf. fillogia),
acumular objetos (cf. coleção/objeto). A apreensão da memória
depende deste modo do ambiente social (cf. espaço social) e
político (cf. política): trata-se da aquisição de regras de retórica e
também da posse de imagens e textos (cf. imaginação social,
imagem, texto) que falam do passado, em suma, de um certo modo
de apropriação do tempo( cf. ciclo, gerações,
tempo/temporalidade).
As direções atuais da memória estão, pois, profundamente ligadas
às novas técnicas de cálculo, de manipulação da informação, do
uso de máquinas e instrumentos (cf. máquina,instrumento), cada
vez mais complexos.
A memória, para se tornar coletiva, parte das memórias individuais, que são
construídas com base na interação oral entre as pessoas. J. Le Goff (2003: 424)
expõe que o primeiro domínio no qual se cristaliza a memória coletiva dos povos
sem escrita é aquele que dá um fundamento aparentemente histórico – à
existência das etnias ou das famílias, isto é, dos mitos de origem.
A memória, bem como sua importância e funcionamento, vem sendo
estudada há séculos. Para os antigos gregos, a memória era sobrenatural. Um
dom a ser exercitado. A deusa Mnemosine, mãe das musas e protetora das artes
12
e da história, possibilitava aos poetas lembrarem do passado e transmiti-lo aos
mortais, já que memória e imaginação tinham a mesma origem: lembrar e
inventar.
O registro era visto como algo que contribuía para o enfraquecimento da
memória, já que era transferido para fora do corpo do sujeito, mas os gregos
desenvolveram muitas técnicas para preservar a lembrança sem lançar mão do
registro escrito.
A invenção da imprensa e a urbanização, com mudanças fundamentais na
organização, nas relações sociais, nas atividades, papéis e percepções do
indivíduo, trouxeram mudanças importantes para a memória individual e coletiva
de uma sociedade, baseada na transmissão oral dos saberes necessários ao
trabalho e à vida em grupo. Novas ocupações, relacionadas ao comércio e à vida
nas cidades, demandaram registros, desenvolvendo-se, a partir daí, artifícios cada
vez mais sofisticados para guardar e disseminar a memória em textos e imagens.
J. Le Goff (2003:422-423) assevera que:
O estudo da memória social é um dos meios fundamentais de
abordar os problemas do tempo e da história, relativamente aos
quais a memória está ora em retraimento, ora em
transbordamento.
No estudo histórico da memória histórica é necessário dar
uma importância especial às diferenças entre sociedades de
memória essencialmente oral e sociedades de memória
essencialmente escrita, como também às fases de transição da
oralidade à escrita a que Jack Goody chama “a domesticação do
pensamento selvagem”.
A memória se transforma em algo inscrito e é objeto, na época moderna, de
estudo de uma ciência chamada Epigrafia, auxiliar da História. Esse objeto de
estudo não se restringe ao que está escrito em um suporte próprio para isso, mas
em qualquer suporte. Vale lembrar que a escrita aparece em osso, estofo, pele e,
então, em papiro, pergaminho e papel.
13
Conforme afirma J. Le Goff (2003:427-428):
O aparecimento da escrita está ligado aa uma profunda
transformação da memória coletiva. Desde o “Paleolítico Médio”,
aparecem figuras nas quais se propôs ver “mitogramas”, paralelos
à “mitologia” que se desenvolve na ordem verbal. A escrita permite
à memória coletiva um duplo progresso, o desenvolvimento de
duas formas de memória. A primeira é a comemoração, a
celebração através de um monumento comemorativo de um
acontecimento memorável. A memória assume, então, a forma de
inscrição e suscitou na época moderna uma ciência auxiliar da
história, a epigrafia.
(...) A outra forma de memória ligada à escrita é o
documento escrito num suporte especialmente destinado à escrita
(depois de tentativas sobre osso, estofo, pele, como na Rússia
antiga, folhas de palmeira, como na índia; carapaça de tartaruga,
como na China e finalmente papiro, pergaminho e papel). Mas
importa salientar que todo documento tem em si um caráter de
monumento e não existe memória coletiva bruta.
A escrita passou a ter grande importância e ocupar o espaço que antes era
destinado à tradição oral, substituindo a efemeridade pela permanência e, com
isso introduziu novos hábitos.
Apesar da escrita se tornar a memória de um povo e de uma cultura, havia
um problema a ser sanado: os manuscritos iniciais eram gigantescos e pesados.
Assim, houve necessidade da invenção e do refinamento do papel na China, o que
facilitou a invenção da imprensa de Gutenberg, que se constituiu num instrumento
de mudança que permitiu a emergência da ciência, da religião, da cultura, da
política e dos modos de pensar.
Com a evolução da imprensa, o leitor é colocado em presença de uma
memória coletiva enorme, cuja matéria não é mais capaz de se fixar
integralmente, pois também pode ser constantemente colocada em situação de
exploração de novos textos. A memória coletiva passa a ter importância como
mecanismo de luta das forças sociais pelo poder, uma vez que aqueles que
14
dominam as sociedades, são detentores , também, da memória e do
esquecimento. Os esquecimentos e os silêncios da história são reveladores
desses mecanismos de manipulação da memória coletiva. (Le Goff, 2003:422).
Até nossos dias, história e memória confundem-se. Parece que a história se
desenvolveu sobre o modelo da rememoração, da anamnese e da memorização.
Há uma relação intrínseca entre memória, história e historiografia.
No domínio da história, sob a influência das novas concepções do tempo
histórico, desenvolve-se uma nova forma de historiografia – a história da história –
que, de fato, evidencia, na maioria das vezes, os estudos da manipulação pela
memória coletiva de um fenômeno histórico que só a história tradicional tinha, até
então, estudado.
Devido às divergências entre autores, acerca do que é a história, surgem
múltiplas definições. Conforme Le Goff (2003), a história define-se em relação a
uma realidade que não é observada e nem construída, mas sim indagada e
testemunhada. Assim, a história começa como um relato em virtude de seu objeto
de estudo ser o homem, por isso também é considerada uma prática social.
Mediante a necessidade de o historiador misturar relato e explicação, ele
fez da história um gênero literário, uma arte, ao mesmo tempo em que é uma
ciência. Esse múltiplo posicionamento da história, no entanto, perdurou até o
século XIX, a história misturou-se com a arte e com a filosofia, esforçou-se por se
tornar mais específica, técnica e científica e menos literária e filosófica. No século
XX, com o crescimento tecnológico, pode-se observar uma nova escritura da
história.
O tempo é a matéria fundamental da história, pois desempenha papel de fio
condutor e auxiliar da história. A oposição passado/presente é essencial na
aquisição da consciência do tempo. No que se refere ao tempo histórico, podemos
certificar-nos de que a visão de um mesmo passado muda segundo as épocas e
que, o historiógrafo está submetido ao tempo em que vive. Essa relação entre
presente e passado, no discurso sobre história, é sempre um aspecto essencial do
problema tradicional da objetividade em história.
15
Se a história resumia-se à narrativa dos acontecimentos, a Historiografia
tem como papel fundamental o registro desses acontecimentos sem problematizá-
los ou questioná-los. É a vigência do paradigma da ciência normal que não tem
como objetivo trazer à tona novas espécies de fenômeno; na verdade aqueles que
não se justam aos limites do paradigma freqüentemente nem são vistos, de
acordo com Thomaz S. Kuhn (2001:45).
A historiografia, nessa perspectiva científica, institui-se como método
interdisciplinar, pelo fato de aceitar a colaboração de outras disciplinas como a
Sociologia, a Psicologia, a Economia, a Geografia além da Lingüística a fim de
registrar os feitos humanos em sua totalidade.
Assim, a memória não pode ser confundida com a história, mas como
objeto de elaboração da história, levando o pesquisador a buscar um método que
possibilite ampliar sua percepção de mundo e desenvolver a historiografia.
A memória é imprescindível para a construção da história. Em razão disso,
a escrita e a imprensa sempre tiveram um papel importante nessa relação com
textos que resgatam fatos passados e projetam, às vezes, o futuro, ao se
compreender melhor o presente.
Ao observarmos os textos Piparotes de O Moléque, que constituem nossa
amostra, percebemos que a memória coletiva faz-se presente, por exemplo, no
texto “A Bastilha”, publicado em julho de 1885, em que Cruz e Sousa, por meio de
seu pseudônimo Zé K, faz referência à batalha ocorrida na França em 14 de julho
de 1789:
Ha edificio que tem a sua historia da mesma maneira que as
sociedades, porque n’elles encarnara-se jà um grandioso ou jà um sinistro
espirito – mais que nenhum outro acha-se neste caso, a terrivel prisão
derrubada pelo sopro immortal da liberdade no notavel dia 14 de julho de
1789.
16
1.2 A Lingüística e a História como ciência
Os estudos científicos realçaram a lógica como fator preponderante para os
estudos da linguagem, na tentativa de buscar um paradigma científico. Segundo
Julia Kristeva (1969:226):
Enquanto os gramáticos de Port-Royal tinham demonstrado que a
linguagem obedece aos princípios da lógica do juízo, enquanto os
Enciclopedistas queriam ver nela a lógica da natureza sensível e a
confirmação da influência das circunstâncias materiais (clima, governo), o
século XIX pretende demonstrar que a linguagem também tem uma
evolução para basear nela o princípio da evolução da idéia e da sociedade.
Cristina Altman (19928:27) afirma que:
Na visão Kuhniana de processo científico, cada nova etapa de
evolução implica em ruptura – de teorias, métodos, seleção de problemas
e critérios de solução de problemas – como o conhecimento anterior. Ao
invés de somente continuidade e acumulação, haveria, de tempos em
tempo, períodos de descontinuidade e ruptura responsáveis pela formação
de um novo paradigma, incomparável e incomensurável em relação ao que
o precedeu. Assim, na conhecida – e controvertida – distinção Kuhniana
entre períodos de “ciência extraordinária” (Kuhn 1987, Toulmn 1979,
Watkins 1979), a Lingüística contemporânea, se encontraria, na melhor
das hipóteses, em pleno estado de crise, à procura de um novo paradigma.
A língua se faz pelo aspecto histórico, num quadro de permanência e de
continuidade, revelando a visão de mundo dos falantes, dos usuários que,
individual ou coletivamente, alteram essa língua. Assim, as palavras só
sobrevivem e têm história se aceitas e pronunciadas por uma coletividade. As
manifestações lingüísticas, no continuum histórico, mostram-se de várias formas.
Segundo Carlos Alberto Faraco (2005), os primeiros estudos, denominados de
gramática foram inaugurados pelos gregos. Eram baseados na lógica e estavam
desprovidos de qualquer visão científica desinteressada da própria língua;
visavam unicamente a formular regras para distinguir as formas corretas das
17
incorretas. Seguiram-se os estudos filológicos em que as questões lingüísticas
eram abordadas, sobretudo, para comparar textos de diferentes épocas. Essa fase
abriria os caminhos para a Lingüística Histórica. Segundo C. A. Faraco (2005:81)
A lingüística histórica – compreendida como a reflexão sobre as
mudanças
das línguas no eixo do tempo, sistematicamente
realizada dentro dos pressupostos da prática científica moderna –
nasceu nos fins do século XVIII.
A descoberta do sânscrito entre 1786 e 1816, leva a um método comparativo,
em que se destaca o alemão Franz Bopp, que procurava estabelecer o ponto de
contato entre os diversos sistemas lingüísticos, formulando o princípio de
mudança lingüística aplicável a todas as línguas, provando que eram idênticas na
origem, sofreram alterações e foram se diversificando.
Guilherme de Humboldt, outro lingüista, elaborou um mapa genealógico das
línguas humanas, estabelecendo uma tipologia das estruturas das línguas, para
que não entendêssemos a língua como uma entidade abstrata, ideal, fora da vida
humana.
Esse método comparativo ampliou-se e criou áreas especializadas com o
estudo específico. O estudo histórico-comparativo das línguas oriundas do latim foi
denominado Filologia Românica.
Já nas últimas décadas do século XIX surgem os neogramáticos, uma nova
geração de lingüistas que defendiam uma posição histórica, questionando certos
pressupostos tradicionais da prática histórico-comparativa, estabelecendo uma
orientação metodológica diferente e um conjunto de postulados teóricos para a
interpretação da mudança lingüística. Um de seus representantes mais
expressivos, Hermann Paul (1966), foi fundamental para que se estabelecesse à
linguagem um caráter científico. Em seus estudos, Hermann Paul concebeu a
língua como produto coletivo, já que todas as modificações no uso da língua são
resultado do falar e do ouvir de muitos indivíduos.
O estabelecimento de pressupostos teóricos, que conferiram à linguagem o
status de ciência, foi creditado a Ferdinand de Saussure (1916), que define a
18
língua como a parte social da linguagem exterior ao indivíduo, que existe em
decorrência de um contrato estabelecido entre os membros de uma mesma
comunidade e que o indivíduo tem necessidade de aprender para compreender
seu funcionamento.
A língua é um objeto que se pode estudar separadamente, uma vez que se
constitui num sistema de signos que une o sentido à imagem acústica e é um
objeto de natureza concreta.
Para Ferdinand de Saussure, a fala é uma realização concreta e individual
da língua, tendo como característica essencial à liberdade das combinações. A
língua é a condição para a existência da fala, exatamente como a sociedade é
condição para a existência do indivíduo. O signo lingüístico, segundo esse autor,
une um conceito a uma imagem acústica.
Uma outra colocação de Ferdinand de Saussure é a distinção entre os
eixos sobre os quais se situam os fatos que a ciência estuda. Os fatos científicos
podem ser estudados como se estivessem situados num eixo de simultaneidade
ou outro de sucessividade. O autor, para determinar o cruzamento desses dois
eixos, nos introduz a Lingüística Sincrônica e a Lingüística Diacrônica. Na
Sincrônica impõe-se o uso coletivo, e na Diacrônica há os processos de mudança
que trata de fatores dinâmicos.
O dinamarquês Louis Hjelmslev (1975) apresenta uma teoria organizada no
reconhecimento do sistema lingüístico em sua totalidade e língua como um
sistema de figuras geradoras de signos. Segundo o autor, a teoria lingüística deve
ser formulada de forma explícita e rigorosa, fazendo valer-se dos princípios,
axiomas e definições previamente estabelecidos. Para ele, a Lingüística deve
restringir seus estudos aos planos da forma da expressão e da forma do conteúdo.
Assim, o autor recusa-se a ver a língua como uma simples nomenclatura,
como rótulos para as coisas e prefere empregar o termo “signo” para designar
combinações de conteúdo e de expressão. O lingüista conclui que, todas as
línguas têm em comum o princípio da estrutura. O que as diferencia, é o modo de
aplicação concreta deste princípio em cada caso particular.
19
Já para a Lingüística Norte-Americana, em especial para um de seus maiores
representantes, Edward Sapir (1969), a língua deve ser estudada em face da
cultura e da organização do pensamento. Para o autor, a língua é uma função
adquirida cujo processo de aquisição é totalmente distinto das funções biológicas
inatas, é a comunicação de idéias por meio de símbolos.
A língua, para Edward Sapir, não é uma atividade simples e sim uma trama
complexa e é impossível definir o vocábulo dentro de seu aspecto funcional, pois
pode ser tudo, desde a expressão de um conceito simples até a expressão de um
pensamento completo. O fato lingüístico essencial consiste na classificação, na
configuração formal, na referência aos conceitos. Vista como uma estrutura, a
língua, no seu aspecto interno, é a marca do pensamento.
Outro aspecto a considerar é que a língua é um produto histórico. As
variações individuais desaparecem diante de concordâncias que ressaltam a
língua do grupo em conjunto quando comparada à de outro grupo. Essa
comparação evidencia uma identidade lingüística na fala individual dos membros
do grupo, pela qual a liberdade individual acaba policiada e contida pela norma
coletiva.
Para Edward Sapir, toda língua tem uma sede, já que as pessoas que a
falam pertencem a uma raça, ou seja, a um grupo que se destaca de outros
grupos por caracteres físicos. A língua não existe isolada de uma cultura, ou seja,
ela foi herdada de práticas e crenças determinadas por um conjunto social.
Para compreendermos o caráter científico do fenômeno lingüístico, precisamos
observar, também, o pensamento de Émile Benveniste, que procura estabelecer
as relações entre o biológico e o cultural, entre a subjetividade e o social, entre o
signo e o objeto, entre o símbolo e o pensamento e, também, trata das questões
intralingüísticas.
O autor procurava se desvencilhar das amarras que encontrava em quadros
pré-fabricados e nos apoios em disciplinas que já haviam se estabelecido. E.
Benveniste (1991:17) observa que a língua é também um fato humano e é, no
homem, o ponto de interação da vida mental e da vida cultural e ao mesmo tempo
20
o instrumento dessa interação. A relação língua, cultura e personalidade devem
ser também alvo de estudo do lingüista.
O princípio fundamental da teoria de Émile Benveniste (1991:43) é que a
linguagem, como quer que se estude, é sempre um objeto duplo formado de duas
partes, cada uma das quais não tem valor a não ser pela outra. Em função dos
estudos saussurianos, a Lingüística se tornou uma ciência importante entre as que
se ocupam do homem e da sociedade, uma das mais ativas em pesquisa teórica,
assim como nos seus desenvolvimentos técnicos.
Para o autor, o laço que une o significante e o significado não é arbitrário;
pelo contrário, é necessário. O que é arbitrário é que um signo, mas não outro,
aplica-se a determinado elemento da realidade, mas não a outro. Assim, E.
Benveniste afirma (1991:59):
O signo, elemento primordial do sistema lingüístico, encerra um
significante e um significado – como Saussure o definiu – cuja ligação
deve ser reconhecida como necessária, sendo esses dois componentes
consubstanciais, um com o outro. O caráter absoluto do signo lingüístico
assim entendido comanda, por sua vez, a necessidade dialética dos
valores em constante oposição, e forma o princípio estrutural da língua.
Talvez o melhor testemunho da fecundidade de uma doutrina consista
em engendrar a contradição que a promove. Restaurando-se a
verdadeira natureza do signo no condicionamento interno do sistema,
reforça-se, além de Saussure, o rigor do pensamento saussuriano.
É interessante também verificar a explicação de mesma autoria (1991:262)
sobre a historicidade da língua:
A enunciação histórica, hoje reservada à língua escrita, caracteriza a
narrativa dos acontecimentos passados. Trata-se da apresentação dos
fatos sobrevindos num certo momento do tempo, sem nenhuma
intervenção do locutor na narrativa. O plano do discurso é toda
enunciação que suponha um locutor e um ouvinte e, no primeiro, a
intenção de influenciar, de algum modo, o outro.
21
O tempo narrado não tem interferência direta do narrador, pois se detém à
realidade factual. Já no discurso, o tempo é constantemente atualizado pelo
enunciador, considerando a realidade histórica em que está inserido. Assim, o
trabalho do historiógrafo da língua se instaura nessa perspectiva: a busca de um
saber histórico-lingüístico constituído por homens de um outro tempo, que
influenciaram a constituição de uma identidade social.
A língua possui um caráter de grande subjetividade e, dessa maneira, medeia
o homem e o objeto do conhecimento. O homem é capaz de propor-se como
sujeito no processo de interlocução. A consciência de si mesmo só é possível por
contraste, ou seja, no caráter dialógico, a pessoa se constitui.
No discurso, o tempo se divide em três categorias: o tempo físico que é o
tempo do mundo, do contínuo; o tempo crônico, o dos acontecimentos marcados
por um fato significante; e o tempo lingüístico que é a função do discurso, o
exercício da fala.
Assim, ao tomarmos a língua como produto social, que possibilita a interação
dos homens com eles mesmos e com o mundo, verificamos que as marcas
lingüísticas no documento estudado estão ligadas às condições sócio-ideológicas
pelas quais o homem procura investigar o mundo, a si mesmo e, nesse confronto,
compreender a sua própria história.
Em síntese, a Lingüística é uma ciência que tem como objetivo a língua, por
meio da qual veiculamos as informações, externamos nossos sentimentos e
agimos sobre os outros. A língua representa a soma dos usos da linguagem verbal
por locutores e interlocutores, historicamente situados, localizados em um espaço
particular, interagindo com um propósito definido.
Depois de colocarmos as principais concepções lingüísticas, sem com isso ter
esgotado a questão, necessitamos esboçar a História como "ciência", como uma
tarefa epistemológica, política e institucional, extremamente desafiadora. Muitas
pessoas preocupadas com as diversas áreas do conhecimento, como a Filosofia,
e a História, assim como a área de historiografia, buscam definir a epistemologia
da História.
22
O século XIX tem sido denominado “o século da História”. Nele, define-se a
história como um conhecimento científico que aperfeiçoa seus métodos e técnicas,
constrói-se independente da literatura e constitui-se como uma disciplina científica
no mesmo nível da Sociologia. Por toda parte, avança a organização das
instituições complementares do trabalho dos historiadores, como os arquivos,
publicação de fontes, bibliotecas, revistas e associações especializadas.
Segundo Edward Halled Carr (2002:45):
A história consiste num corpo de fatos verificados. Os fatos
estão disponíveis para os historiadores nos documentos, nas
inscrições, e assim por diante, como os peixes na tábua do
peixeiro. O historiador deve reuni-los, depois levá-os para casa,
cozinhá-los e então servi-los da maneira que o atrair mais.
Seguindo de perto a evolução das disciplinas Economia, Sociologia e
Antropologia, verificamos que todas elas surgem no final do século XIX, como uma
reação contra o evolucionismo desmedido e, no caso da Economia, contra
concepções de valor potencialmente perigosas. Essas três disciplinas entendem a
sociedade como um sistema em equilíbrio estático, assim, o objeto legítimo da
ciência consiste em determinar as regras desse equilíbrio.
A partir do século XIX ocorreu a consolidação da História como ciência. Em
1823, verificou-se um olhar revolucionário em vários campos do conhecimento: o
cientificismo e o filosófico se impuseram. O fazer história passou a centrar-se na
tendência explicativa determinista mono-causal, concorrendo, para isso, a luta de
classes, as raças e o determinismo.
Nesse contexto de novas estruturas, há um trabalho minucioso, de
organização somente dos arquivos e de edição de textos, limitado aos
documentos oficiais da Corte. Por isso, a história da cozinha é ignorada, uma vez
que não consideram matéria de história a vida cotidiana e os sentimentos (Cf.
Caire-Jabinet, 2003: 103).
Segundo Vavy Pacheco Borges (2002) foi na França que esse modo de se
fazer história começou a tomar novos rumos, quando um grupo de historiadores
23
franceses, nos primeiros anos do século XX, dentre eles Marc Bloch e Lucien
Febvre, desenvolveu trabalhos que foram publicados na revista Anaes de História
e Social, tornando-se conhecidos por “escola francesa” ou “escola de Annales”.
Há muito que a História está, no Brasil, confinada à prisão das
escolas e universidades. Encontra-se, pois, afastada de sua principal
finalidade: levar o ser humano a refletir sobre as formas de vida e de
organização social em todos os tempos e espaços, procurando
compreender e explicar suas causas e implicações. E uma vez que
presente e passado estão indissociavelmente ligados na História, o ensino
e o estudo da História tornam-se imprescindíveis para o perfeito
entendimento dos tempos modernos. (Vavy Pacheco Borges)
Esses autores criticam a escola “historicizante” e lançam os princípios da
história comparada, ainda em 1923, com Henri Pirenne, afirmando a vontade de
inscrever a história na vasta perspectiva de uma reflexão econômica e social.
A escola francesa dos Annales aparece com um aspecto inovador: valorizar a
história-problema. O historiador não pode contentar-se em escrever sob o ditado
dos documentos, deve questioná-los, inseri-los numa problemática. Longe de
serem uma unanimidade, os Annales recebem inúmeras críticas, como a ausência
de uma teoria global de sociedade, a confusão entre teoria e metodologia, a
defesa de uma história geral, o relevo dado à história econômica e a pouca
atenção ao estabelecimento de modelos.
Se a História sempre foi feita cristalizada em datas, feitos e heróis,
desprezando-se a historicidade do indivíduo, é certo que nunca foi escrita sob a
ótica do grupo social dominado, mas pela visão, pelos desejos e interesses da
chamada classe dominante. Isso se dá porque qualquer sociedade sempre se
estrutura em diversos grupos ou classes, uma das quais detém o poder político, o
poder econômico e o prestígio social.
Se pensarmos em História como uma sucessão de fatos no tempo,
deixaremos uma História desvinculada daquilo que somos hoje. Julgamos que há
possibilidade de se buscar por meio de documentos, conhecimentos que nos
24
tragam uma carga informativa que ainda não nos foi contada, conforme afirma V.
P. Borges (2002:45):
História não é o passado, mas um olhar dirigido ao
passado: a partir do que esse objeto ficou representado, o
historiador elabora sua própria representação. A história se faz
com documentos e fontes, com idéias e imaginação.
As duas primeiras gerações da Annales tratam da substituição de uma história-
narração por uma história-problema, de acordo com a formulação de hipóteses de
trabalho. Assim, a história apropria-se de conceitos e problemáticas, de métodos e
técnicas das ciências sociais, além da quantificação sistemática e uso de modelos
em favor de estudos históricos, em virtude de ser menos estruturada em relação a
tais ciências.
A terceira geração da Annales, intitulada “Nova História” ou História das
Mentalidades, sofre considerável mudança de rumos. Os trabalhos franceses
defendem a abordagem quantitativa ou serial e, logo após, há o interesse em favor
da micro-história e da antropologia.
A Nova História apresentava uma interpretação antitotalitária e propunha
alguns rescaldos teóricos para novos tempos, métodos, novos objetos e novas
possibilidades de ensino e de compreensão da história. Vimos derivar dessa
vertente, décadas mais tarde, a também chamada história das mentalidades.
Se aceitarmos que a História é história contemporânea, a Nova História
pode ser traduzida na história do mundo que se descortina e busca nas fontes
uma compreensão do mundo. Há de ser resgatar o caráter de
interdisciplinaridade, da globalidade e dos estudos das mentalidades. Tais fontes
não são um espelho fiel da realidade, mas são sempre uma representação de
parte ou momentos particulares tornando os atores, nelas presentes, sujeitos
históricos.
Para a História, mais do que cronológico, o tempo é a dimensão da análise
dos acontecimentos e, em que medida, ao tornarem-se fatos, influenciaram a
constituição do homem e da sociedade. No transcorrer diário, percebemos uma
25
sucessão de acontecimentos que se transformarão em fatos, na medida em que
for tendo maior incidência nos rumos do cotidiano das pessoas.
Edward Hallet Carr (2002) afirma que sociedade e indivíduo são
inseparáveis, pois se complementam. O homem é produto da sociedade, mas age
de maneiras distintas enquanto indivíduo e enquanto membro dessa sociedade.
Segundo o autor, o historiador é um ser humano individual que faz parte da
história, sendo seu ponto de vista, o que determina a visão do passado. Antes de
começar a escrever História, o historiador é um produto do passado, portanto,
antes de estudar a História, devemos compreender o historiador.
Os fatos, também, são determinados de acordo com a sociedade, pois o
homem transforma-os de acordo com sua necessidade. É exatamente nesse
ponto que o rebelde ou dissidente na História tem papel importante, pois
desencadeiam mudanças, atualizando os fatos.
Para E. H. Carr (2002:90), o diálogo entre presente e passado é, na
realidade, um diálogo entre a sociedade de ontem e a sociedade de hoje e,
portanto, história significa:
Tanto o exame conduzido pelo historiador quanto os fatos
do passado que ele examina, é um processo social em que os
indivíduos estão engajados como seres sociais; a antítese
imaginária entre a sociedade e o indivíduo nada mais é do que
uma pista falsa atravessada no nosso caminho para confundir
nosso pensamento.
Segundo V. P. Borges (2002:48), História é a história do homem, visto
como um ser social, vivendo em sociedade. É a história das transformações
humanas, desde o seu aparecimento na terra até os dias em que estamos
vivendo. A autora afirma, ainda, evidentemente impulsionada pela teoria de Karl
Marx, que são os homens que fazem a história, mas o fazem dentro das
condições reais que encontram já estabelecidas, e não dentro das condições de
nossa realidade, tendo em vista o delineamento de nossa atuação na história.
26
A função da História, segundo V. P. Borges (2002), é de fornecer à
sociedade uma explicação sobre ela mesma. A História se coloca, hoje em dia,
cada vez mais próxima das outras áreas do conhecimento que estudam o homem,
procurando explicar a dimensão que o homem teve e tem em sociedade. Apesar
da propensão de se considerar a História como uma ciência, a falta de
unanimidade deixa a questão em aberto, mesmo tendo a História objetos e
métodos próprios.
Assim, entendemos a História como a ciência que estuda as
transformações pelas quais passaram as sociedades humanas, sendo essas
transformações perceptíveis no e através do tempo e, também, como uma forma
de conhecimento, que procura desvendar, revelar e sistematizar as relações
materializadas no documento, propiciando sua compreensão de vida humana à
sociedade.
Quando a Lingüística se associa à História e a outras ciências torna-se
pluridisciplinar e, dessa parceria se constitui a Historiografia Lingüística que, por
sua vez, se apropria dos recursos metodológicos dessas diferentes áreas de
conhecimentos, para consolidar seu referencial.
A Historiografia Lingüística confirma-se como ciência, porque tem a língua
como prática social e, ainda, pode ser uma teoria utilizada por meio de várias
perspectivas de abordagem, tendo em vista que pode ser tomada como um reflexo
do comportamento do homem no contexto sociocultural. A língua muda porque
está a serviço do homem e configura-se como fato social. Se não mudasse, ela
morreria. È por isso que a Historiografia Lingüística assume a língua, no dizer de
E. Sapir (1969) como um valioso instrumento de uma dada cultura.
Atualmente, existem novas e relevantes pesquisas sobre historiografia, as
quais revelam a intenção de atos diante de um simples levantamento de fatos.
Nosso trabalho pretende verificar se a caracterização da luta pela abolição não era
uma tentativa de mitigar um problema que se avolumava social e historicamente,
já que a escravidão, no Brasil, não era de ordem humanitária e sim econômica,
uma vez que a libertação, mais do que uma necessidade social, atrelava-se à
27
modernidade de um país que lutava contra os atrasos em relação aos países mais
desenvolvidos.
1.3 A Interdisciplinaridade
Segundo Serafim da Silva Neto (1986), a língua muda concomitantemente ao
homem e, o homem e a língua, são indissociáveis para analisarmos qualquer
questão histórica sob o ponto de vista lingüístico. Assim, traçando uma analogia
entre o homem e a língua, podemos chegar às mesmas atribuições sobre
Lingüística e História. As duas ciências, inseridas no processo histórico de uma
língua, são indissociáveis.
A Historiografia Lingüística entende a língua como prática social de
interação e, ao considerar a língua como prática social, coloca-a como um
elemento integrante de um processo de interação entre os homens e a sociedade,
portanto, a língua está marcada por esse processo e mudará de acordo com o
grupo social.
Dentre os pesquisadores consagrados em Historiografia Lingüística,
destacamos Pierre Swiggers (1990) e Konrad Koerner (1995). Seus estudos
revelam que esta ciência permite que o pesquisador a relacione com a História, a
Sociologia, a Filosofia, a Psicologia, a Antropologia, enfim com as demais ciências
que têm o homem como objeto de análise, gerando uma multi e
interdisciplinaridade.
A Historiografia Lingüística nasceu em decorrência do desenvolvimento da
Lingüística Histórica e se constitui, segundo Jarbas Vargas Nascimento (2005:11),
como uma ciência em ascensão no âmbito da Lingüística, integrando o universo
das áreas de conhecimento que concebem a língua em sua relação com a história
e a realidade social.
Da necessidade de uma ciência que englobasse a abordagem sócio-
histórica para um estudo mais aprofundado das transformações e regularidades
da língua surgiu a Historiografia Lingüística, apresentando uma proposta de
pesquisa sócio-histórica da língua.
28
Nosso interesse é compreender a Historiografia Lingüística e, para tanto,
identificamos as acepções do termo em sua totalidade, a fim de nortear nossa
investigação científica. Nesse sentido, Konrad Koerner (1996:45) diz que há a
necessidade de compreendermos a Historiografia Lingüística como modo de
escrever a história do estudo da linguagem baseado em princípios científicos e
não mais como mero registro da história da pesquisa lingüística. Essa nova
concepção requer um olhar mais cuidadoso por parte do historiógrafo, que se
diferenciará do olhar do historiador a partir do momento em que a Historiografia
Lingüística se estabelece como disciplina.
Segundo J. V. Nascimento (2005:14)
Mesmo integrada à vida acadêmica, a noção de
interdisciplinaridade carece, ainda, de uma clarificação e conseqüente
afirmação no interior da História Intelectual, a fim de que não fique no
esquecimento e dificulte ao pesquisador o diálogo e as parcerias possíveis
entre as diferentes áreas de conhecimento. Faz-se necessário mostrar que
não há nada de errado no comportamento interdisciplinar, muito pelo
contrário: as contribuições do lingüista para o historiador e vice versa, têm
sido fundamentais, na medida em que, delimitadas as fronteiras de ambas
as especificidades, os pesquisadores possam interpretar representações
inscritas no documento escrito, decorrentes de atitudes de diálogo e de
troca de resultados de pesquisas.
A Historiografia Lingüística não pode ser confundida com outras áreas do
conhecimento que assumem a língua como eixo comum e sua vinculação com
fatores históricos e socioculturais, por exemplo, a História da Lingüística, a História
das Idéias Lingüísticas e a Historiografia da Lingüística. Essas ciências
distinguem-se pelo modo específico de análise e devem suscitar não uma
igualdade, mas sim, uma possibilidade de interdisciplinaridade com a
Historiografia Lingüística.
Essa interlocução, apoiada nos constantes avanços nas ciências humanas,
sobretudo na Lingüística, torna-se ainda maior em contato com a História,
possibilitando novos conceitos e metodologias de abordagem da língua em
29
documentos escritos. A partir disso podemos identificar as diferentes formar de ver
o objeto língua. Tais colocações fazem-nos perceber a mudança efetiva de um
paradigma no interior da Lingüística e a originalidade da Historiografia Lingüística,
enquanto impulsionadora de atividade investigativa.
A língua transforma-se em um fazer humano num contexto histórico-social,
levando o ser à necessidade de um outro para estabelecer essa língua como meio
de comunicação e preservação cultural, o que determina mudanças conscientes
do ser, conservando o passado no presente. Essa consciência se torna
participante ativa da mudança no que se refere à criação, reorganizando
elementos do passado com elementos do presente. Segundo H. Bérgson
(1979:180):
Quanto mais tomamos consciência de nosso progresso na pura duração,
mais sentimos as diversas partes de nosso saber entrarem umas nas
outras e nossa personalidade completa concentra-se num ponto, ou
melhor, numa ponta, que se insere no futuro, encetando-o sem cessar.
A língua é o elemento essencial para a aquisição da consciência. Portanto,
é pela língua que o falante se insere no meio em que vive e, à proporção que toma
consciência de sua ação por meio do conhecimento histórico, percebe a sua
própria duração. Por meio do passado, o homem muda e cria o novo.
Por meio da linguagem, a História e a Historiografia Lingüística se
relacionam. Assim, o pesquisador tem função primordial, uma vez que, com
objetividade, faz o relato dos fatos, deixando que eles falem por si mesmos. Isso
permite que a história do ser humano apareça. A História serve-se de elementos
da semântica para atingir a interpretação dos fatos, já que estão relacionados a
dados imensuráveis, mas não se esquece dos dados mensuráveis ao apresentar
datação de objetos culturais. Necessita, portanto, desses dados para estabelecer
o tempo e o espaço.
O conhecimento é cumulativo e superar visões não implica negar as teorias
anteriores, pelo contrário, só chegamos a uma nova teoria em função das teorias
do passado que se tornaram obsoletas.
30
1.4 Historiografia Lingüística: Concepção e Princípios
No começo do século XX, a História das Ciências da Linguagem adquire
uma nova concepção, pois os pesquisadores se preocupam em mostrar, em seus
estudos, novos caminhos, baseados em contextos históricos e socioculturais. Ao
final do século XX, surgem alguns trabalhos teóricos, como os de Konrad Koerner
(1989) que propõe alguns caminhos para a definição da teoria da Historiografia
Lingüística.
Para Konrad Koerner (1989), a compreensão da Historiografia Lingüística
como modo de escrever a história do estudo da linguagem, baseado em princípios
científicos, é primordial e faz com que o pesquisador observe com mais cuidado
os fatos a serem estudados.
Surgida na Europa, a Historiografia Lingüística é definida como ciência há
mais de duas décadas. No Brasil, aparece como disciplina em 1994, no programa
de pós-graduação em Lingüística da Universidade de São Paulo, com o objetivo
de descrever e explicar um fato lingüístico em um determinado contexto
sociocultural de uma determinada época.
A Historiografia Lingüística surge como alternativa de trabalho sobre a
história do conhecimento lingüístico, tendo como objetivos práticos a organização
e sistematização do material documental e, como objetivos teóricos, os estudos e
proposições de mecanismos adequados à descrição dos processos definidores da
produção de conhecimento lingüístico no Brasil.
Muitas são as contribuições dos estudiosos brasileiros buscando resgatar
os fatos relevantes do passado lingüístico, além de seu processo de produção e
recepção. Podemos elencar o Prof. Dr. Jarbas Vargas Nascimento, do Grupo de
Pesquisa Memória e Cultura na Língua Portuguesa escrita no Brasil (PUC/SP); a
Prof.ª Dr.ª Neusa Maria Oliveira Barbosa Bastos, do Grupo de Pesquisa de
Historiografia da Língua Portuguesa (PUC/SP); a Prof.ª Dr.ª Maria Cristina Salles
Altman (USP).
Inicia-se, na década de 70, a tentativa de estabelecer a Historiografia
Lingüística como disciplina, tentativa essa influenciada por T.S. Kuhn, que coloca
31
a questão da mudança de paradigma na ciência, denominando de revoluções
científicas os episódios extraordinários.
É necessário recuperar o passado lingüístico como parte integral da
disciplina, não desprezando a influência de outras ciências como a Psicologia, a
Sociologia e a Ciência Política. Esse procedimento interdisciplinar, segundo K.
Koerner (1996:47), requer do pesquisador um conhecimento amplo dos campos
científicos para
[...] favorecer o restabelecimento dos fatos mais importantes do nosso
passado lingüístico ‘sine ira et studio’ e explicar, tanto quanto possível, as
razões da mudança de orientação e de ênfase e a possível
descontinuidade que nelas se pode observar, sua prática requer,
ainda,capacidade de síntese, isto é, a faculdade de destilar o essencial da
massa dos fatos empíricos coligidos a partir de fontes primárias.
Ainda segundo K. Koerner (1986) a Historiografia Lingüística é conceituada
como uma maneira de reescritura de fatos da história da língua, por meio de
princípios. O autor aponta que a Historiografia Lingüística opera com questões de
periodização, de contextualização e com temas relativos à prática lingüística
efetiva, com o intuito de identificar diferentes fases de desenvolvimento da língua
ou de períodos mais longos. K. Koerner completa mencionando que a
Historiografia Lingüística lida com questões que envolvem os fatores externos que
influem ou podem causar impacto no pensamento lingüístico.
J. V. Nascimento (2002;3) diz:
É importante afirmar que, pela HL, enquanto impulsionadora de
atividade de engajamento investigativa de amplitude pluridisciplinar,
podemos conhecer melhor aquilo que faz do homem um ser sócio-histórico
capaz de depreender o que está materializado no documento e, por sua
experiência atual, reconhecer melhor os elementos da realidade passada e
compreender mais profundamente a si mesmo, a realidade em que vive
programar-se para o futuro.
32
Existem diferenças entre o passado e o presente de uma língua e de uma
sociedade que não podem ser confundidas pelo historiógrafo. Desta forma, K.
Koerner (1996) propõe, como solução possível do problema para o historiógrafo
da língua, a adoção de três princípios que devem ser utilizados sucessivamente
no momento da análise: os princípios de contextualização, de imanência e de
adequação teórica.
O princípio da contextualização trata do clima intelectual da época e do
contexto de produção dos documentos, traçando o clima de opinião, ou seja,
procura delinear a atmosfera intelectual do momento em que se insere o
documento a ser interpretado. A Historiografia Lingüística observa o fato histórico-
lingüístico, os homens presentes, falantes ou não, os aspectos sócio-históricos da
época do documento.
O documento não deve ser destituído de seu contexto histórico-cultural, já
que as idéias lingüísticas nunca se desenvolvem de maneira independente de
outros movimentos intelectuais do período.
J. V. Nascimento (2005:23), afirma que:
Isso significa que o documento a ser analisado não pode
ser destituído de seu contexto histórico-cultural, das concepções
lingüísticas, sócio-econômicas e políticas em circulação à época de
sua produção. À inserção temporal do documento, bem como às
condições em que foi elaborado devem ser somados o autor, o
tipo, a organização, além do editor, capa, tiragem, prefácio,
introdução, sumário. Todos esses elementos entre outros, servem
de referência para que o leitor relacione-as a todas as informações
e atribua sentidos ao documento.
O princípio da imanência tenta estabelecer uma relação entre o fator
histórico e o crítico do documento analisado, procurando um entendimento amplo,
observando a visão crítica do documento e considerando seu tempo de produção.
Neusa Maria de Oliveira Barbosa Bastos (2004:11) afirma que esse
princípio refere-se ao esforço do historiógrafo de entender o texto lingüístico
33
produzido nos séculos enfocados de forma completa, histórica e criticamente e
filologicamente, se possível.
J. V. Nascimento (2005:23), afirma que
Na verdade, para compreender o documento, é preciso apreendê-lo em
todos os seus aspectos simultaneamente: refazer sua trajetória, investigar
os fatores vigentes nos acontecimentos históricos, dar-lhes atualidade e
vida integral novamente. O princípio de imanência produz um efeito
restaurador do passado e possibilita a compreensão do documento e,
somado ao princípio de contextualização, constitui-se como uma diretriz
segura para a operacionalização do processo de interpretação que se
consolida pela prática do princípio da adequação teórica.
Em outras palavras, ao investigar determinado documento devemos
considerá-lo no seu tempo, e não em referência à doutrina lingüística moderna.
O resultado obtido após seguir esses dois princípios é a localização e
compreensão de um pronunciamento lingüístico no seu contexto histórico original.
O princípio da adequação teórica trata da possibilidade que o historiógrafo
da língua tem para re-atualizar o documento de forma a aproximá-lo das teorias e
idéias atuais, no intuito de que o homem moderno possa entendê-lo com
facilidade. Esse princípio torna-se, então uma atividade hermenêutica, realçando
os fatos do passado, mediados pelas preocupações do presente, para torná-los,
na atualidade, socialmente úteis e necessários ao homem. Sobre esse princípio, J.
V. Nascimento (2005:23) afirma que:
Esse princípio requer que o pesquisador, a priori, tenha compreensão do
passado, presente no documento e, posteriormente, interprete, à luz de
tendências modernas, os dados registrados nele. Processa-se por esse
princípio uma atividade hermenêutica, cujo objetivo é realçar os fatos do
passado, mediados pelas preocupações do presente, para torná-los, na
atualidade, socialmente úteis e necessários ao homem.
34
A observância destes três princípios permite-nos verificar a “atualização” do
documento e de que forma se torna compreensível ao homem contemporâneo.
Identificamos, na realidade contemporânea. os indícios históricos lingüísticos que
nos remetem às experiências historicamente acumuladas. K. Koerner (1996:61)
considera que:
Se, e somente se, estes três princípios, isto é, a contextualização teórica e
intelectual, a análise do texto no seu próprio quadro de trabalho (o que os
historiadores da literatura alemã entendem por ‘interpretação[...]) e uma
descrição clara das ferramentas empregadas na tentativa de fazer o texto
mais facilmente acessível ao leitor moderno estiverem sendo
adequadamente levados em conta, é que há uma boa chance de que
distorções importantes das idéias e intenções dos lingüistas, dos filósofos
da linguagem, ou dos gramáticos do passado possam ser evitadas.
A proposta de princípios aponta, segundo K. Koerner, um aparato
metodológico para a Historiografia Lingüística. Contudo, essa proposta pressupõe
que o historiógrafo da língua esteja atento a todos os aspectos que possam levá-lo
a um entendimento amplo do documento.
Ao historiógrafo cabe detectar, analisar e explicar as diversas mudanças
ocorridas no período a ser investigado, evitando as ilusões advindas de
aclamações de novidade, originalidade e criatividade, geralmente feitas pela
geração imediatamente ulterior. Para tanto, N.M.O.B.Bastos (2002:39) afirma que
Deve ser estabelecida uma lista de princípios práticos e
teóricos, amplos o suficiente para encontrar aceitação entre os
demais historiógrafos, por poderem ser adaptados a períodos
diferentes da história das ciências da linguagem e a aspectos
particulares sob investigação.
Na amostra selecionada, utilizaremos os princípios propostos por K.
Koerner. No que diz respeito à contextualização, o capítulo II servirá para nos
subsidiar quanto ao aspecto contextual da época. Ao que se refere ao princípio de
imanência e ao princípio de adequação teórica, ou seja, ao levantamento de
35
informações, à compreensão total do documento e à re-atualização do mesmo, o
capítulo III nos subsidiará.
1.5 A noção de documento
Para Paul Veyne (1995:37), o documento pode ser definido como todo
acontecimento que deixou, até nós, uma marca material. Observando esse
conceito, percebemos que a amostra escolhida constitui-se em documento pela
materialidade lingüística para a compreensão do momento histórico-cultural
durante o qual foi produzido.
J. V. Nascimento ( 2005:25) argumenta que o documento caracteriza-se por
ser:
Uma composição que resulta das relações
múltiplas em circulação fora e dentre dele, as quais,
historicamente, se bifurcam, condensam-se e se sustentam
por uma atitude de assimilação consciente ou não do autor.
O documento constitui-se, por conseguinte, como um conjunto de
influências compartilhadas com o autor e o contexto, o que dificulta tarefa do
historiógrafo da língua, quando tenta identificá-las. O autor de um texto, no
momento da produção do documento, de forma consciente ou inconsciente,
coloca suas idéias a partir de uma vivência pessoal.
Segundo Jean Glénisson (1983) o documento é denominado como fonte,
testemunho ou traço e, que qualquer arquivo público ou particular , assim como
tudo aquilo que foi impresso ou manuscrito, como leis, biografias, obras literárias,
jornais e revistas, constituem-se documentos.
Também são válidos, para a cientificidade da história, fontes não escritas
como monumentos, pinturas e fotografia que podem auxiliar o historiógrafo da
língua e o historiador em sua investigação. Mas, para o historiógrafo da língua o
documento escrito é fonte primária necessária para a investigação e obtenção de
resultados.
36
A afirmação de que o documento não é algo restrito ao passado, e que é
produto e produtor da sociedade que o fez, leva o pesquisador a interpretá-lo pela
operacionalização dos princípios de contextualização, de imanência e de
adequação teórica, preocupando-se com as condições socioculturais e lingüísticas
presentes nesse documento.
Ao selecionarmos um documento e reconhecê-lo como fonte de
investigação, pretendemos verificar a materialização das relações humanas e as
diversas manifestações culturais do homem em dimensão histórica.
1.6 A Metalinguagem
A metalinguagem, às vezes, é deixada de lado por alguns lingüistas por
acreditarem que ela está mais ligada aos filósofos, já que esse termo surgiu da
discussão entre filósofos e matemáticos. Mas, para que historiógrafo da língua não
cometa equívocos na análise, ela é fundamental e visa ao esclarecimento de
idéias passadas à luz da atualidade.
Esse termo foi utilizado pela primeira vez por Stanislaw Lesniewski e
desenvolvido por seu aluno Alfred Tarski que, apoiado em um método matemático,
concluiu que se deve sempre distinguir claramente a linguagem sobre a qual
falamos da linguagem na qual falamos. Portanto, o historiógrafo lingüístico
estabelece uma metalinguagem para decidir sobre a validade ou adequação de
uma determinada teoria.
A Metalinguagem, segundo Konrad Koerner (1996), nasceu das reflexões
de filólogos e matemáticos e significa, para a Historiografia Lingüística, a
linguagem empregada para descrever idéias passadas sobre a linguagem e a
Lingüística. Trata-se de um meio que o historiógrafo da língua utiliza para tratar do
assunto linguagem, ou seja, a linguagem é empregada para reportar à linguagem-
objeto: a língua.
Nesse sentido, a metalinguagem é uma linguagem científica, já que
consiste num recurso utilizado pelo pesquisador para identificar e descrever fatos
lingüísticos realizados pelo homem em outras épocas de sua história e, também,
37
compreender e interpretar tais fatos no momento em que a eles se refere. Isso
significa dizer que os fatos são atualizados, levando-se em consideração o
contexto para a descrição dos termos lingüísticos, além de sua interpretação de
acordo com os limites do uso de tais termos.
Levando-se em consideração que a Historiografia Lingüística é uma ciência,
seu objetivo é, por um lado, descrever conceitos difundidos em períodos
passados, utilizando os mesmos termos em voga na época; por outro, tornar
acessíveis ao leitor do presente as teorias de épocas passadas, utilizando termos
atuais, sem provocar distorções das intenções e dos significados originais. Em
outras palavras, se as teorias lingüísticas do passado forem distorcidas, o estatuto
de ciência da Historiografia Lingüística estará ameaçado.
Tratando dessa questão, Konrad Koerner (1995;34) afirma:
Quando se trata de determinado assunto na Historiografia Lingüística, o
pesquisador não pode fugir à questão da metalinguagem, especialmente
quando, ao discutir teorias de períodos passados, estiver ao mesmo tempo
tentando torná-las acessíveis ao leitor do presente e tentando não
distorcer sua intenção e significados originais. A menos que o único
objetivo do historiógrafo seja colecionar antiguidades, isto é, descrever
conceitos desenvolvidos muitos anos atrás unicamente nos próprios
termos utilizados, ele será tentado a usar um vocabulário técnico moderno
na sua análise. Este procedimento, entretanto, tem levado a inúmeras
distorções na HL e qualquer historiógrafo perspicaz deve perceber as
armadilhas e voltar-se para a questão da metalinguagem, isto é, a
linguagem empregada para descrever idéias passadas sobre a linguagem
e a Lingüística.
Desta forma, a metalinguagem torna-se um recurso científico para o
historiógrafo da língua, na medida em que evita análises equivocadas. O
documento precisa ser compreendido para depois ser explicado e sua
interpretação se dá, primeiramente, pela operacionalização da metalinguagem.
38
Marly de Souza Almeida (2003:92), em sua tese de doutoramento, diz que
metalinguagem é:
a maneira pela qual o historiógrafo aborda o
assunto da linguagem com o qual nos reportamos
à linguagem objeto, a que se pode chamar “o
objeto da investigação em lingüística”, a própria
língua, um aspecto particular da língua, daí por
diante.
Para a autora, a metalinguagem é um recurso que está ao alcance de
várias áreas de conhecimento, haja vista que tudo pode ser transformado em
linguagem. Contudo, no que concerne à Historiografia Lingüística, a
metalinguagem é postulada como um diferenciador da linguagem, para que não se
confundam os dois níveis operacionais: enquanto objeto de investigação e
enquanto técnica de observação.
M. de S. Almeida nomeou e sistematizou os aspectos que dizem respeito à
questão da metalinguagem. Desta forma, temos um recurso científico de análise
em Historiografia Lingüística que torna possível e inteligível a leitura de
documentos passados, a partir das implicações contextuais da época a ser
estudada: a metalinguagem científica que, segundo a autora (2003:92) é exercida
pelo analista, que identifica e descreve realizações distantes no passado, mas
compreende e interpreta tais realizações em um panorama atual de
representação.
Como fonte de investigação, a autora refere-se, ainda, a partir de
sistematização produzida em seu trabalho, à metalinguagem de usos, à
metalinguagem de apropriação, à metalinguagem literária e à metalinguagem de
crítica ou de formas. Entretanto, em nossa pesquisa aplicaremos somente, como
recurso científico, a metalinguagem científica já elucidada acima.
O recurso da metalinguagem é, portanto, de grande relevância para o
trabalho do historiógrafo da língua, já que este, por ser um pesquisador de um
tempo e, o documento que examina, de outro, lança mão de tal recurso com o
objetivo de evitar equívocos no processo de análise científica dos fatos
39
lingüísticos. Além disso, revelam-se expressivas as contribuições apontadas por
Marly de Souza Almeida, pois o desdobramento do recurso da metalinguagem em
diferentes categorias é bastante útil para o trabalho do historiógrafo da língua, pois
direciona suas atitudes ao analisar um documento.
1.7 O Argumento de influência
A Historiografia Lingüística possui alguns temas que ainda não foram
adequadamente conceituados, como o argumento de influência, que necessita de
uma melhor explicitação, já que o contexto sociocultural, materializado no texto, é
marcado por interferências implícitas e explícitas.
Todo documento, ao ser produzido, sofre influências de experiências
sociais e individuais, sendo possível uma interpretação multidisciplinar. Assim, em
sua produção, o documento pode revelar o clima intelectual em que o produtor se
formou e viveu, estabelecendo um diálogo entre o passado e o presente.
Konrad Koerner (1989) traz exemplos sobre o argumento de influência em
Historiografia Lingüística e diz que a maioria dos escritores não define o termo
influência, mas simplesmente o colocam como se todos estivessem de acordo
sobre o entendimento dessa questão. Por isso nossa intenção é identificar, por
meio dos textos produzidos por Cruz e Sousa, outro exemplo de influência em
análises historiográficas.
É difícil encontrar uma conceituação precisa sobre o termo “influência”. K.
Koerner (1995) ressalta que a má conceituação se deve à utilização
indiscriminada deste conceito. É claro que ao trabalho interpretativo, é necessário
ter precisão no que está sendo dito, observando tanto os elementos externos
quanto os internos, propiciando o entendimento de que há um compartilhamento
de saberes no seio social.
40
J. V. Nascimento (2005:24) trata dessa questão, relacionando as influências
com o documento a ser analisado:
O documento caracteriza-se como um lugar onde estão
representadas diferentes visões de mundo que se fundem. Por
isso, as influências, que se fazem ali presentes e que, na maioria
das vezes são difíceis de identificação, provocam correlações e
diálogo com as situações e posições assumidas pelo produtor e
sempre devem ser consideradas no processo de interpretação.
Parafraseando J. V. Nascimento podemos dizer que, em Historiografia
Lingüística o argumento de influência traz, enquanto categoria de análise, o
contexto sociocultural, marcado por interferências implícitas e explícitas
apreendidas pelo escritor por uma atitude de transformação e assimilação de
idéias em circulação no momento da elaboração do documento.
É importante associar o clima geral de uma época específica ao ato de
escrever do produtor do texto. Em nosso trabalho, o movimento social pela
abolição influenciou Cruz e Sousa a apresentar suas idéias e opiniões em relação
ao fato noticiado. O movimento, assim, torna-se um exemplo do que K. Koerner
propôs. Toda a mídia, na época, estava influenciada pela vontade da nação em
abolir a escravidão. Seria impossível dissociar uma particularidade da outra,
principalmente se considerarmos o que afirma J. V. Nascimento (2005:24):
as influências se organizam a partir de implicações adivinhas da
centralização de idéias e teorias vinculadas anteriormente e no
momento da produção do texto e que, de alguma maneira, se
reconstroem no interior do documento, sendo compartilhado com o
conhecimento de mundo do produtor do texto.
Ao se analisarem os textos escritos durante o século XIX, é possível
constatar que os lingüistas foram influenciados pelos estudos de Darwin sobre a
evolução das espécies, pois defendem as línguas passam pelo mesmo processo
dos seres vivos. Para a filosofia de Hegel, a língua é como um depósito do
41
pensamento e ele propõe uma hierarquização das línguas segundo a sua aptidão
para exprimirem, por meio de categorias gramaticais, as operações lógicas.
Konrad Koerner (1995) cita como exemplo possível de influência a obra de
Ferdinand de Saussure, que, ao definir a língua como um fato social, nos remete à
obra de E. Durkheim. Embora não seja citado pelo autor, é plausível que haja eco
das concepções de E. Durkhein e de outros estudiosos em F. de Saussure, pois
as idéias do sociólogo impregnaram o clima de opinião da época.
K. Koerner destaca, ainda, na busca de uma melhor conceituação da
“influência”, primeiramente, que a verificação da formação intelectual de um autor
é significativa no processo de investigação de possíveis influências em suas idéias
e teorias, pois permite estabelecer relações entre o que ele assimilou de sua
formação e do clima intelectual manifestado.
Segundo J. V. Nascimento (2005:25),
A influência não apenas interfere na língua, mas
também no conteúdo do documento, visto que essa
interferência nos possibilita caracterizar a influência
enquanto uma ação histórica vinculada ao conjunto dos
fatos que permeiam a vida cotidiana e que constituem a
memória.
Na interpretação de um documento, é necessário buscar os dados internos
e externos do mesmo para analisá-los com mais precisão. Lembramos que isso
deve ser feito sem que haja uma hierarquia ou subordinação entre eles, pois há
uma interdependência e uma correlação, que pode ser extremamente útil ao
historiógrafo na referência às influências contextuais.
Tendo em vista que as reflexões sobre o papel das influências no
documento ainda não mereceram um estudo mais aprofundado no âmbito da
Historiografia Lingüística, nossa intenção foi propiciar mais um exemplo, com o
objetivo de deixar abrir perspectivas para um próximo trabalho que vise a tratar
dessa com mais objetividade.
42
Ao apresentarmos conceitos teóricos da Historiografia Lingüística,
pretendemos garantir o que K. Koerner (1995) aponta como escopo dessa ciência:
a Historiografia Lingüística deve estar voltada para a teoria e não para os dados.
Os dados deverão ser entendidos a partir do estabelecimento das bases da
Historiografia Lingüística que se apóia num conhecimento quase enciclopédico do
pesquisador. A partir disso, queremos levantar o clima de opinião da época em
que os textos produzidos por Cruz e Sousa foram constituídos. Para isso, há
necessidade de utilizarmos o princípio da contextualização como via de
composição para o capítulo seguinte.
43
CAPÍTULO 2
CONTEXTUALIZAÇÃO: O FINAL DO SÉCULO XIX
O’ Estrellas tranquillas, esquecidas
No seio das Esphéras,
Velhos biliões de lagrimas, de vidas,
Refulgentes Chiméras.
Astros que recordais infancias de ouro,
Castidades serenas,
Irradiações de magico thesouro,
Aromas de assucenas.
Esquecimento – Cruz e Sousa
2.O Considerações iniciais
No final do século XIX, o conjunto das manifestações emancipacionistas e
dos decretos criou, no Brasil, uma situação real de independência que precisava
ser oficializada. Os anos seguintes foram dedicados à consolidação da
independência, à organização do novo Estado e à busca do reconhecimento
internacional.
Neste capítulo, trataremos do princípio da contextualização, ou seja,
estabeleceremos o clima de opinião da época em que os documentos de nossa
amostra foram produzidos. Esses documentos não devem ser destituídos de seu
contexto histórico-cultural, das idéias em circulação, da situação econômica e
política do momento em que foram produzidos para serem estudados.
44
2.1 O Brasil no final do século XIX.
Para o perfeito entendimento do que ocorreu no final do século XIX,
precisamos considerar algumas questões importantes do período imediatamente
após a independência, ou seja, as idéias que se buscavam consolidar no período.
Para tanto, apresentamos um panorama dessas idéias.
Adauto Novaes (1994) afirmou que as duas maiores invenções da
humanidade foram o passado e o futuro. Sem passado e futuro não há história,
portanto:
(...) narrar a história de um povo a partir apenas do tempo
presente, tempo fragmentado, direcionado, é negar a
articulação de épocas e situações diferentes, o simultâneo,
o tempo da história e o pensamento do tempo. Ora, é
reconhecer que práticas políticas e culturais, consideradas
estranhas e indesejáveis em determinado momento, sejam
vistas de maneira diferente no futuro, é abolir a
possibilidade do novo a casa instante. Mas ainda as idéias
de justiça, liberdade, alteridade, pensamento se tornam
abstrações, vazias no espaço e no tempo, a partir do
momento em que qualquer ação já se sabe eternamente
feita e absolutamente irreparável. (Novaes, 1994:09)
A Constituição do Estado brasileiro independente e as parcelas mais
influentes da aristocracia agrária saíram vitoriosas no confronto político com os
adeptos do liberalismo e dos ideais democráticos, no final do século. O Estado
brasileiro foi construído sobre os alicerces do conservadorismo e do escravismo.
O escravismo, uma ideologia marcante na mentalidade brasileira até então, era
aceito como normal pela sociedade, não se tratando apenas de uma imposição da
elite proprietária de terras.
A língua portuguesa foi determinada por Portugal como língua oficial do
Brasil desde o século XVIII por Marquês de Pombal. O modo, porém, de falar o
português no Brasil era muito diferente do da metrópole, o que fez com que esse
45
falar se tornasse deferente de Portugal foram as influências socioculturais
indígenas e africanas e a geografia brasileira.
A presença das forças populares nas ruas, em 1831, exigindo a saída de
D. Pedro I, levou muitas pessoas, até mesmo alguns membros das classes
dominantes, a sonhar com a possibilidade de ver instalado no Brasil um governo
comprometido com reformas liberais e democráticas que atendessem, pelo menos
parcialmente, às reivindicações do povo.
A imprensa foi uma forte aliada às reivindicações populares e, em Santa
Catarina, surgiu, em 28 de julho de 1831, três meses depois de Dom Pedro I
abdicar, o jornal “O Catharinense”, primeiro jornal naquela região. No primeiro
número, o fundador do jornal, o capitão de engenheiros Jerônimo Francisco
Coelho, atacava violentamente: “Se não fora ela (a imprensa), talvez hoje
estivéssemos escravos desse Pedro estúpido, avarento e doido, que, há poucos
dias, espavorido, abandonou as praias do solo americano”. O jornal divulgou
idéias liberais, antilusitanas e defensoras da liberdade de imprensa.
O sonho, porém, não se realizou, já que a elite agrária manteve a
monarquia, a escravidão e a exclusão política das camadas populares. Essa
realidade transformou a consolidação do Estado brasileiro em um processo
marcado por disputas pelo poder entre as próprias elites agrárias e urbanas e por
rebeliões sociais reivindicatórias, que envolveram as camadas populares do
campo e das cidades no Brasil.
Ainda em 1831 foi aprovada uma lei extinguindo o tráfico de escravos,
porém nunca posta em prática, já que nenhum de seus artigos foi cumprido.
Conforme afirma Sérgio Buarque de Hollanda (1997:143):
Proclamada a Independência, o governo brasileiro,
necessitando o reconhecimento do governo britânico
endossou os acordos anteriormente firmados entre a
Inglaterra e Portugal e se comprometeu a proibir
definitivamente o tráfico no prazo de três anos. Em virtude
desses acordos a Regência decretou, em 1831, uma lei
declarando livres todos os escravos vindos de fora do
46
Império e impondo severas penas aos traficantes de
escravos.
A lei, porém, revelou-se ineficaz. os fazendeiros e os
mercadores de escravos tenham todo interesse no
prosseguimento do tráfico. O governo, no qual as forças
agrárias e os negreiros tinham sólida representação, não
desejava contrariá-los. A repressão ao contrabando era
difícil, ia além das possibilidades da marinha brasileira a
fiscalização do litoral em toda sua vasta extensão. As
autoridades do Império nada podiam contra as oligarquias
que detinham o poder político e administrativo nas
localidades.
O Brasil começa a enfrentar pressões contra o tráfico de africanos, já que a
Inglaterra passou a atacar em alto mar os navios que carregam escravos. Chega-
se a propor o fim da escravidão, porém de forma cautelosa, uma vez que a
economia dependia dela. Em 1850, o governo imperial brasileiro promulgou a Lei
Eusébio de Queirós, pela qual determinava o fim do tráfico negreiro no Brasil.
Do ponto de vista das relações entre o Brasil e a Inglaterra, essa lei se
encaixava no contexto das exigências inglesas aos governantes de sociedades
escravistas, como a brasileira, para que extinguissem o tráfico e abolissem a
escravidão. A abolição interessava aos ingleses, pois o negro livre se tornaria
assalariado e, assim segundo os ideais liberais econômicos, um possível
comprador de produtos ingleses industrializados.
As exigências inglesas de extinção do sistema escravista no continente
americano, que datavam do início do século XIX, fizeram com que, a partir da Lei
Eusébio de Queirós, o tráfico passa-se a ser punido como ato de pirataria, e os
escravos apreendidos eram mandados de volta para a África. Mas, apesar das
perseguições e punições aos traficantes, muitos continuaram, clandestinamente,
trazendo africanos escravizados para o Brasil.
47
Sérgio Buarque de Hollanda (1997: 144-145) escreve o seguinte sobre o
fato:
No Brasil a opinião pública começava a dividir-se:
fazendeiros abarrotados de escravos ou endividados com a
compra deles, passavam a encarar com maior
complacência a perspectiva da interdição do tráfico. Viram
talvez nesse ato a valorização de sua propriedade. Os
mais interessados em prosseguir eram os traficantes e os
lavradores das zonas novas que ainda não contavam com
braços suficientes para cultivar suas terras. A
questão passou para o domínio do jogo político partidário
[...] medidas severas foram tomadas contra os
contrabandistas pela lei de 04 de setembro de de 1850.
Traficantes estrangeiros foram expulsos do país e as
autoridades reforçaram a fiscalização. O contrabando,
porém, prosseguiu, em pequena escala, por mais alguns
anos, mas acabou por cessar definitivamente. Os últimos
desembarques de que se tem notícia data de 1856.
A indústria brasileira que alcançara a sua liberdade em 1808 com D. João,
e que fracassara nas suas primeiras tentativas de crescimento devido,
principalmente, às imposições inglesas e a falta de uma política protecionista,
ganhou grande impulso na segunda metade do século XIX. O crescimento
industrial brasileiro ocorrido na segunda metade do século XIX está relacionado
também à extinção do tráfico negreiro em 1850, na medida em que parte do
capital que era empregado nessa atividade ficou disponível e foi aplicado no setor
industrial.
Embora o processo de industrialização brasileiro tenha se iniciado de
maneira significativa, a principal atividade econômica continuava a ser o café, que
era bem aceito no mercado internacional. Como necessitavam de escravos e a lei
tinha posto fim ao tráfico, os fazendeiros acabaram criando um tráfico interno, uma
vez que ofereciam grandes somas para adquirir escravos em algumas cidades do
nordeste. A elite política do país, ao mesmo tempo que reprimia as revoltas,
48
tentava convencer os latifundiários das províncias a concordar com maior
centralização política e com o regime monárquico. Essas classes dominantes
regionais ainda não conseguiam ver a coroa como uma garantia da ordem.
A maioridade e a coroação antecipada do jovem imperador D. Pedro II
ajudou no convencimento. Os revoltosos pertencentes às classes dominantes
perceberam que podiam chegar ao poder tendo o imperador como juiz do jogo
político e que a monarquia era capaz de manter a ordem na cidade e no campo.
Mal acabava de se completar o processo de consolidação da soberania do
Estado Brasileiro, o governo imperial atirou o país na Guerra do Paraguai (1864-
1870). O conflito aumentou a crise financeira e a dívida externa no Brasil, devido
aos novos empréstimos solicitados à Inglaterra pelas autoridades brasileiras bem
como contribui para significativas mudanças políticas e sociais, conforme assevera
Octávio Ianni (1988: 43-44):
A guerra do Paraguai, nos anos 1864-70, pôs em evidência
a relativa fraqueza da formação social escravista, como
sistema político-econômico. As dificuldades para vencer os
paraguaios e a necessidade de lançar mão de escravos
brasileiros para lutar na guerra, tornaram mais visíveis as
limitações do escravismo, como forma de organizar a
produção e o poder. Tanto que praticamente todos os
historiadores reconhecem que a Monarquia e a
Escravatura entram em declínio irreversível com essa
guerra.
Após a Guerra do Paraguai e por todos os anos 70 e 80 do século XIX, o
governo imperial brasileiro viveu a dura realidade de não ter se atualizado em
relação às transformações pelas quais passam o país e o mundo.
Segundo Caio Prado Júnior (1998:178):
(...) 0 Imperador, sem modificar fundamentalmente a
situação no poder, mas remodelando-a com a inclusão no
governo de uma fração mais tolerante dos conservadores,
revive os antigos projetos discutidos no Conselho de
Estado seis anos antes, e amenizando-os muito, faz votar
49
nas Câmaras a chamada lei do ventre Livre (28 de
setembro de 1871), em que se declaram livres os filhos de
escravos nascidos daquela data em diante, e se dão
algumas providências para estimular a alforria dos
escravos existentes.
Ainda segundo o próprio autor:
A lei de 28 de setembro nada produzira de concreto, e
servira apenas para atenuar a intensidade da pressão
emancipacionista. Ela estabelecera para os filhos de
escravos, até a sua maioridade, um regime de tutela
exercida pelo proprietário dos pais. Ele teria obrigação de
sustentá-los, mas podia utilizar-se de seus serviços. De
modo que continuaram escravos de fato, o mesmo que os
pais.
As instituições políticas do Império não se modernizaram e a frágil
monarquia mostrava-se desatenta às novas aspirações da sociedade. A
população brasileira crescera de 3 milhões de habitante, à época da
independência, para 14 milhões, na década de 1880. O escravismo estava em
crise havia décadas e grande parte da aristocracia cafeeira do Oeste Paulista
passara a adotar a mão-de-obra assalariada na lavoura.
Além disso, os novos meios de comunicação e de transporte promoveram a
diversificação da economia, com aplicação de capitais em indústrias, bancos,
ferrovias etc. A agricultura, embora continuasse predominante, deixou de ser o
único setor de atração para os investidores.
Nesse período há registros de rebeliões em vários pontos do Brasil. Emília
Viotti da Costa (1998:363) afirma:
Certa ocasião, em Campinas, diante das constantes
ameaças de revolta dos escravos, fazendeiros e
comerciantes enviaram uma petição ao governo pleiteando
um efetivo de cem praças para policiamento da região.
Referiam nesse documento ao antagonismo “congênito”
50
entre as duas raças – uma que sempre dominara, outra
que relutava em obedecer – e concluíam que o município
sempre teria a esperar dos escravos toda sorte de males
que a sua própria condição lhes inspirava.
Nesse quadro de mudanças na sociedade e de crescente instabilidade do
governo imperial, entrou em cena um novo grupo de intelectuais, políticos, artistas
e militares cujas idéias de modernizar as instituições políticas contrastavam com
as velhas e conservadoras idéias da elite política e econômica.
Esse grupo inovador sofria influências diretas de intelectuais europeus
como, por exemplo, Auguste Comte, o criador do positivismo, uma corrente
filosófica que pregava a idéia de ordem e progresso. Segundo Comte, o progresso
origina-se da ordem e aprimora a religião, a família, a propriedade, a linguagem,
que são as esferas permanentes de qualquer sociedade.
O governo enfrentava, também, as contestações das camadas médias
urbanas: professores, artesãos, funcionários públicos, bancários, estudantes,
comerciantes, padres, intelectuais, que se empenhavam ativamente nas
campanhas abolicionistas e republicanas. Além disso, passaram a apoiar com
vigor os movimentos em prol da reforma no ensino, da separação entre a Igreja e
o Estado, das reformas eleitorais, exigindo eleições livres e diretas e o fim do voto
censitário.
O movimento abolicionista foi se desenvolvendo e crescendo mais nas
cidades mais desenvolvidas do país, embora, também, se estenda ao campo
quando, segundo Emília Viotti da Costa (1998:494):
(...) é por um processo de expansão do movimento
originalmente urbano que passa a atuar sobre as massas
escravas com o intuito de desorganizar o trabalho e
acelerar a reforma desejada. É só então que ele revela
conexões com os meios rurais. De maneira geral, os
elementos rurais eram refratários à campanha.
51
Outro autor, Jacob Gorender (1992:157), afirma que:
Á altura de 1880, o movimento abolicionista se recuperou
dos efeitos neutralizadores da Lei Rio Branco. Ressurgiu
com ímpeto e logo estabeleceu um divisor de águas entre
emancipacionistas, adeptos do gradualismo, e os
propriamente ditos abolicionistas, propugnadores da
abolição imediata, incondicional, sem indenização.
As lutas pela abolição definitiva da escravidão no Brasil faziam surtiram
efeito em todo país forçando o governo a decretar várias leis como em 1871 a Lei
do Ventre Livre, em 1885 a Lei dos Sexagenários e finalmente em 1888 a Lei
Áurea. Emília Viotti da Costa (1998:511) assevera:
(...) mais do desejo de libertar a nação dos malefícios da
escravatura, dos entraves que esta representava para a
economia em desenvolvimento, do que propriamente do
desejo de libertar a raça escravizada em benefício dela
própria, para integrá-la à sociedade dos homens livres.
Alcançado o ato emancipador, abandonou-se a população
de ex-escravos à própria sorte.
A abolição da escravatura foi tratada pela imprensa de todo o país e, em
especial, em Florianópolis como “assunto de branco”. Era apenas uma dádiva a
ser concedida para uma “raça de infelizes”. A crítica à escravidão foi tratada nos
periódicos, de forma bastante racista. A defesa da abolição foi feita no bojo de um
projeto de “branqueamento da sociedade” onde a imigração aparecia como parte
de uma utopia de modernização, em que o “branqueamento” era considerado
essencial.
A defesa da abolição fazia parte de um projeto civilizatório maior, conforme
deixa claro o jornal Regeneração em 1880:
Sendo a escravidão não só um crime que nos apouca e
degrada perante a civilização, como ainda uma das
52
maiores atrocidades que há três séculos se pratica
impiedosamente contra uma raça de infelizes, que só tem
vivido sob a humilhação dos homens que fizeram e fazem
dela a sua fonte de lucros, conseqüentemente, é justo e
puro humanitarismo que se empenhe renhida luta para
libertá-la das garras dos que, perseguindo-a e
estigmatizando-a lançam o opróbio à sua própria pátria.
Durante a campanha abolicionista foram criados vários clubes e periódicos,
como a Sociedade Abolicionista (1883) e o Clube Abolicionista do Desterro (1884)
e os jornais a Tribuna Popular (1885), O Vigilante (1887), O Moléque (1885), entre
outros.
Com o advento do movimento abolicionista, um longo e gradual processo
de concessão de direitos teve início. Foi concedido aos escravos o direito de
reclamar em juízo contra os eventuais exageros disciplinares de seus donos.
Entretanto, este expediente não era muito comum, em virtude do pouco acesso
dos escravos a quem poderia representá-los naquelas ações. A Historiografia
Brasileira registra casos de escravos que foram aos tribunais reclamar de seus
donos e, considerando a gravidade dos fatos, alguns senhores chegaram a ser
condenados. Além de processos criminais, podemos encontrar processos de
Reconhecimento de Paternidade e Justificação de Liberdade, que objetivavam
reconhecer, em juízo, o direito dos negros.
Em meio à turbulência social, ainda que não significasse uma consciência
política da população escravizada, o governo imperial tentava administrar a força
que emergia das senzalas com uma legislação que atendesse aos reclamos
incessantes dos cativos e da sociedade. Por motivos óbvios, estes eram mais no
sentido de garantir o direito à propriedade e à ordem pública. Conforme assinala
O. Ianni (1988:53):
Nessas condições, características da situação de casta
vivida pelo escravo, este não dispunha de elementos para
organizar uma crítica política da sua alienação e
possibilidades de luta. O escravo podia fugir, esconder-se,
53
suicidar-se, matar ou roubar o senhor e membros dessa
casta; inclusive podia rebelar-se em grupo. Mas esses atos
não eram o produto de uma crítica política da alienação
escrava.
Em 13 de maio de 1888, a Princesa Isabel, regente do Império Brasileiro,
assinou a lei no. 3353, aprovada pelo Parlamento, Lei Áurea. No texto da lei,
observamos que ela se restringe ao art. 1ª, que declara extinta, sem maiores
detalhes, a escravidão no Brasil. As demais partes do texto revelam-se como
ordens da Regente para o cumprimento da lei que assinara.
2.2 A Sociedade e sua constituição
A imposição européia na América, pelo processo de colonização, teve
como conseqüência a escravidão de povos indígenas e africanos, provocando
uma mistura de raças que resultaram nos atuais povos americanos, entre os quais
estamos nós, brasileiros. Dessa forma, a chamada cultura brasileira foi se
formando lentamente pela troca de elementos culturais entre os invasores
dominantes, os povos indígenas que aqui viviam e os africanos.
A sociedade brasileira foi composta de forma heterogênea, com mobilidade
e miscigenação tão ou mais intensa que outras sociedades contemporâneas,
como a da América Inglesa e as da América Hispânica. Sob a égide de um Estado
que impunha determinado modelo social e religioso às comunidades que viviam
nos seus limites legais, mesclaram-se ou apartaram-se portugueses
transplantados, indígenas e africanos de diferentes culturas, cada qual trazendo
consigo suas instituições e seus quadros mentais. O resultado foi uma sociedade
diferente, com traços das sociedades originais e elementos novos, num mosaico,
cuja diversidade era acentuada pelas dimensões continentais do país.
A presença do negro no Brasil confunde-se com a história da escravidão e
com a estrutura comercial montada para efetivar o tráfico intercontinental. Sabe-se
que várias tribos e reinos africanos praticavam a escravidão dos vencidos na
guerra, mas a presença do homem branco transformou essa prática num
54
empreendimento econômico que promoveu vasta desorganização nas sociedades
africanas, cujas comunidades foram assaltadas com freqüência crescente entre os
séculos XVI e XIX, à medida que se expandia a colonização americana.
O escravismo foi uma relação social que se apresentou em movimentos
distintos ora desconsiderando, ora considerando a natureza produtiva, a relação
de produção. O. Ianni (1988:123-124) assevera que:
Para compreender a escravatura como uma formação
social, é indispensável tomar em conta as suas relações e
determinações externas e internas. Nesse confronto é que
se evidencia que as formas de trabalho compulsório não
podem ser tomadas como capitalistas; mas sim como
sistemas político-econômicos singulares, com alguma
especificidade essencial.(...)
A escravatura não é apenas um sistema de organização
dos fatores produtivos, ou da racionalidade da empresa
açucareira, algodoeira ou outra. Ao contrário, para os
autores que partem de uma perspectiva dialética, a
sociedade escravista é uma configuração histórico-
estrutural, que se forma e desenvolve no interior do
mercantilismo, primeiramente, e no interior do capitalismo,
em seguida. E são os desenvolvimentos do capitalismo
mundial, mas ou menos entre meados do século XVIII e
meados do século XIX, que estabelecem as condições do
declínio e o colapso final do escravismo. Assim, a
formação social escravista deve ser vista como uma
estrutura peculiar de apropriação econômica e dominação
política; como um sistema de poder sem o qual não se
pode compreender a especificidade da sua produção
econômica, das técnicas de violência, dos padrões de
organização e controle do trabalho escravo.
Em 1840, com o segundo reinado, deu-se o apogeu da monarquia com a
continuidade da centralização política e administrativa e pacificou-se o Brasil, com
55
a repressão às revoltas herdadas e a novos movimentos que colocavam em risco
a ordem monárquica.
Depois da superação de disputas e divergências, conservadores,
burocratas, grandes comerciantes, fazendeiros ligados à lavoura de exportação,
liberais, profissionais, liberais urbanos e agricultores encarregados do
abastecimento do mercado interno integram o governo elitista que consolidou a
ordem imperial oligárquica brasileira.
No Brasil, o escravismo foi praticado por quatro séculos, representando um
dos fatores de constituição de nossa identidade nacional. Pelo escravismo, o
negro foi importado como elemento inferior, que devia servir. Entretanto, o negro,
desafiando a lógica dominante, marcou de forma substancial a constituição da
sociedade brasileira, haja vista o que Darcy Ribeiro (1996:197) diz:
O objetivo (da classe dominante) jamais foi criar um povo
autônomo, mas cujo resultado principal foi fazer surgir
como entidade étnica e configuração cultural um povo
novo, destribalizando índios, desafricanizando negros,
deseuropeizando brancos.
Ao desgarrá-los de suas matrizes de suas matrizes, para
cruzá-los racialmente e transfigurá-los culturalmente, o que
se estava fazendo era gestar a nós brasileiros tal qual
fomos e somos em essência.
Apesar da aparente continuidade entre o período colonial e o império,
emergiram novas forças sociais, em especial as nascidas do surto industrial e do
processo de urbanização, na segunda metade do século XIX. O cacau e a
borracha, de alto valor comercial no mercado externo, ganharam destaque na
produção agrícola brasileira e a mão-de-obra escrava foi sendo gradualmente
substituída pela assalariada, constituída basicamente por imigrantes.
Ao mesmo tempo em que se mantinha o caráter elitista da dominação
política, a economia tornava-se mais racional e produtiva, avançando no sentido
do desenvolvimento capitalista, modificando também os mecanismos de exclusão
social. Tais transformações promoveram a definitiva transferência do eixo
56
econômico do nordeste para o sudeste, como atestam o crescimento populacional
no novo pólo econômico e as mudanças na estrutura étnico-social da população.
Caio Prado Jr. (1998;167) afirma que:
(...) é a decadência das lavouras tradicionais do Brasil – da
cana-de-açúcar, do algodão, do tabaco – e o
desenvolvimento paralelo e considerável da produção de
um gênero até então de pequena importância: o café, que
acabará por figurar quase isolado na balança econômica
brasileira. O renascimento agrícola iniciado em fins do
século XVIII e grandemente impulsionado depois da
abertura dos portos e da emancipação política do país,
favorece sobretudo de início as regiões agrícolas mais
antigas do Norte; as províncias marítimas que se estendem
do Maranhão até a Bahia. Elas voltam então a ocupar
posição dominante desfrutada no passado e que tinham
parcialmente perdido em favor das minas. Mas este novo
surto do norte brasileiro não durará muito: já na primeira
metade do século XIX o centro-sul irá progressivamente
tomando a dianteira das atividades econômicas do país. E
na segunda chega-se a uma inversão completa de
posições: o Norte estacionário senão decadente; o sul em
primeiro lugar e em pleno florescimento.
No início do século XIX há, no Brasil, uma renovação intelectual motivada
pelos movimentos ideológicos como o positivismo, o cientificismo e o darwinismo.
Os representantes desse novo pensamento eram os filhos de comerciantes e
burocratas pertencentes à burguesia que se iniciava. Esses representantes
tornavam mais nítida a oposição entre a economia agrária latifundiária e o
comércio a caminho da indústria.
E. Viotti da Costa (1998:72) observa que:
Em pleno século XIX, o Brasil se afirmava como país
independente e incorporava à sua Constituição as fórmulas
liberais européias, ao mesmo tempo em que conservava o
57
regime servil ligado que estava ao passado colonial.
Juridicamente, o país era independente, novas
possibilidades se abriam para a economia, mas a cultura
do café se organizava ainda nos moldes coloniais, e com
ela se prolongava o sistema escravista.
A economia brasileira assentava-se, desta forma, na exploração da mão de
obra escrava. A sua base econômica estava centrada na produção cafeeira, e a
melhor forma de garantir a sua efetividade era manter os negros como escravos.
O Ianni (1988) considera que as formações sociais decorrentes dessa relação
fundamentavam-se nas unidades produtivas, uma vez que a produção e a
reprodução do status senhor/escravo justificavam todos os mecanismos de
controle, repressão e tortura.
2.3 A língua portuguesa no final do século XIX
O processo de colonização brasileiro se alicerçou em três pilares: o
português europeu, o índio e o negro. O mais marcante, porém, foi a influência
portuguesa, já que era a classe dominante, por ser o colonizador oficial.
Em 1808, com a chegada da família real ao Brasil, houve um aumento da
população portuguesa, principalmente no Rio de Janeiro, já que quase 15 mil
portugueses vieram com a família real segundo Paul Teyssier (2001).
Esse fato acelerou a expansão da cultura portuguesa no país e,
conseqüentemente, ouso da Língua Portuguesa. No Rio de Janeiro foi inaugurada
a Biblioteca Nacional com um acervo trazido da Real Biblioteca da Ajuda de
Portugal, que podia ser consultado pelo público em geral.
Em 1814 foi criada a imprensa, tornando-se um instrumento importante na
implantação definitiva da língua. Surge, nessa época, um movimento que defende
a tese que os professores utilizassem a gramática da língua nacional nas aulas de
leitura e escrita.
A língua literária do século XIX, também, é uma das marcas reveladoras da
identidade brasileira. Após a independência, o Brasil sentiu necessidade de se
58
impor perante as nações livres. Não sem resistência da ex-metrópole, os
escritores nacionais revelaram, em suas obras, como era grande o desejo de
transformar em realidade a liberdade alcançada.
Gladstone Chaves de Melo (1981: 91) afirma que:
No segundo quartel do século passado, por efeito da
independência política, o povo brasileiro toma consciência
de sua existência como um todo nacional, já
acentuadamente diverso do português. Nasce daí um
anseio por literatura própria, anseio que se realiza
integralmente quando surge, na língua literária, um estilo
brasileiro, ou seja, uma expressão lingüística reflexo da
sensibilidade, do modo de ser e de viver brasileiro, por um
lado, e eco, espelho, ressonância da paisagem, da terra e
das vicissitudes históricas, das condições sociais dos
acidentes da nossa formação religiosa, humanística,
política , econômica, por outra.
Nas obras escritas no século XIX, principalmente, é possível verificar o
trabalho com a língua para mostrar a grandiosidade de um povo e de como sua
cultura era distinta da antiga Metrópole. Isso pode ser observado nas obras de
Gonçalves Dias, José de Alencar, Aluísio de Azevedo e Machado de Assis, entre
outros.
Os escritores, dessa época, utilizavam-se de um código que fazia a fusão
da língua herdada do meio social com a adquirida no meio acadêmico, porque já
constatavam que o português praticado na escola se diferenciava daquele
praticado pela maioria da população. Serafim da Silva Neto (1976: 53) afirma que
a Língua Portuguesa era a língua de prestígio, de cultura, da situação de domínio,
era a língua da escola, disciplinada em gramáticas; era a língua da administração
e dos cargos públicos e documento.
A busca de uma diferenciação no português falado no Brasil do falado em
Portugal levou a vários debates entre autores portugueses e brasileiros como, por
exemplo, o texto Polêmica de Carlos de Laet, defendendo o português falado no
59
Brasil e Camilo Castelo Branco que defendia o português de Portugal. Outro
exemplo foi o Post Scriptum à Iracema, escrito por José de Alencar (1870).
Para se manter a unidade lingüística nacional, durante o século XIX, houve
uma preocupação em se divulgar os conhecimentos gramaticais da língua. Nesse
sentido, foram publicados vários trabalhos, voltados para a área editorial, que
traziam citações de obras clássicas lusitanas. O ano de 1881 é um marco
importante, pois é a data da publicação da gramática de Júlio Ribeiro. Segundo
Silvio Elia (2003: 147) a Gramática Portugueza de Julio Ribeiro quis romper com a
tradição gramatical de origem humanística (greco-latina) e procurou arrimar-se nos
princípios científicos que jorravam da Velha Europa.
Depois de Júlio Ribeiro, outras gramáticas foram publicadas e continuaram
a dar importância à descrição da língua, sem observar o que escrevia e o que
falava a população nacional. O que se queria era a boa linguagem como garantia
da unidade nacional e como necessidade de que os alunos a estudassem e com o
uso da boa linguagem garantiriam identidade lingüística.
Durante divulgação do Romantismo, a literatura atinge maturidade, busca
uma expressão lingüística brasileira e apresenta a inovação de retratar o nativo
sob vários ângulos, criando as bases para os trabalhos que foram escritos nas
correntes estéticas subseqüentes, como o Realismo, o Naturalismo, o
Parnasianismo e o Simbolismo.
Nas obras românticas, eram comuns os diálogos que aproximavam o leitor
de seus textos ficcionais, com personagens que se assemelhavam às pessoas
reais.
Segundo Silveira Bueno (1967: 271) foram tantas as palavras que vieram
do romantismo brasileiro ao português em uso no Brasil, que algumas delas
aparecem em textos portugueses. Ainda segundo o autor os elementos
vocabulares são tão numerosos e correntes no Brasil, que os escritores brasileiros
poderiam escrever muitas páginas sem que os portugueses conseguissem
entendê-las.
O autor (1967: 271) afirma ainda que os românticos introduziram um modo
a mais de formar palavras na morfologia e explica que na época romântica
60
brasileira, os autores reuniam dois substantivos, um deles funcionava em oposição
ao outro, como adjetivo, tais como: vestido-laranja, vida-martírio, biblioteca-rosa,
móveis-malva, verde-mar.
Quanto à sintaxe, o autor (1967: 272) afirma que a frase se torna direta,
evitando, desse modo, orações de grande extensão. Além disso, o verbo deixa de
ir para o final da frase e os hipérbatos tendiam ao desaparecimento. Nesse
processo, o uso da terceira pessoa ocupa o lugar de uso da segunda e, também,
há preferência pelo uso da próclise, que era uma característica do Romantismo.
Em relação à ortografia, temos na história da língua portuguesa três
períodos: o fonético, até o século XVI; o pseudo-etimológico, desde o século XVI
até 1904; o moderno desde 1911 até hoje. No século XIX, o movimento da
ortografia brasileira foi influenciado pelo nacionalismo proveniente da
independência do Brasil e outras conquistas políticas e sociais.
2.4 Situação do negro no final do século XIX
A servidão humana sempre foi objeto de reflexão: seres humanos objetos
de negócios eram, à época, relacionados lado a lado com o gado e com os
resultados da produção, em listagens de bens de proprietários de terra e em
relatos em que predominavam os “olhares brancos”. Enquanto escravo, o negro
teria sido passivo frente à denominação dos senhores, só o deixando de sê-lo
quando lutando de maneira clara contra a instituição escravista: morrendo ou se
organizando em quilombos e mocambos.
No Brasil, a escravidão foi praticada por quase quatro séculos,
representando um dos fatores de constituição de nossa identidade nacional. O
negro foi trazido como elemento inferior, que devia servir e, portanto, todos os atos
de violência e a não concessão de direitos eram compreensíveis para a sociedade
daquela época. Segundo J. Gorender (1992:47), o escravo o é por toda a vida e
sua condição social se transmite aos filhos.
61
E. V. da Costa (1998:72) observa que:
Em pleno século XIX, o Brasil se afirmava como país
independente e incorporava a sua constituição as fórmulas
liberais européias, ao mesmo tempo em que conservava o
regime servil, ligado que estava ao passado colonial.
Juridicamente, o país era independente, novas
possibilidades se abriam para a economia, mas a cultura
do café se organizava ainda nos moldes coloniais, e com
ela se prolongava e sistema escravista.
A escravidão aqui se justifica por considerar-se a etnia negra como inferior,
já que na África não havia uma organização social nos moldes da européia, não
havia uma língua nacional e sim línguas tribais que, em geral, eram ágrafas e uma
economia centrada na agricultura. A maioria da população africana era viril e de
muita força física, o que atraia a atenção de alguns mercadores.
A base econômica no Brasil estava centrada na produção agrícola e a
melhor forma de garantir a sua efetividade era manter os negros como escravos.
Assim, para garantir essa escravidão, foram criados meios legais de garantia de
propriedade e de possibilidade de castigo aos senhores de escravos. O escravo
estava física e moralmente ligado e subordinado ao seu senhor em todos os
aspectos de sua vida.
Legalmente, o senhor não tinha o direito de vida ou de morte sobre seus
escravos, mas poderia aplicar-lhes castigos moderados como medidas punitivas,
porém, os castigos não eram especificados e, nesse contexto, era difícil a
interpretação do “moderado”. Existiam os senhores que mantinham a escravaria
sob ferros e praticavam açoites e palmatórias aos negros mais rebeldes.
Além dos açoites e da palmatória, a figura do tronco é uma outra realidade
importante. O objetivo, segundo E. V. da Costa (1998:343), era imobilizar o
escravo. Obrigava a posições mais ou menos forçadas, torturava-o pelo cansaço,
pela impossibilidade de se defender dos insetos que o atacavam, pelo desgaste
físico e moral. O que se pretendia com essas ações era a domesticação do negro
que era considerado um instrumento, uma propriedade de seu senhor. Essa
62
coisificação do negro marcou de forma significativa a sociedade brasileira e, até os
dias de hoje, os negros ainda lutam para ver a sua dignidade humana
reconhecida.
Com o surgimento do movimento abolicionista, teve início a concessão de
direitos ao negro, que podia reclamar de maus-tratos de seus donos em juízo, o
reconhecimento de paternidade e justificação de liberdade, porém era difícil
encontrar quem o representasse nessas ações.
Assim, a escravidão foi declinando, declinando, até que um dia ficou tão
insignificante, que pôde ser até abolida. O sistema sofreu um acentuado declínio
antes da abolição e, em 1888, se para alguns brasileiros a escravidão ainda era o
mais grave dos problemas, para a economia do país, como um todo, tinha pouca
importância, já que a abolição do tráfico negreiro, a transição do trabalho escravo
para o trabalho semi-servil e a transição do trabalho escravo para o trabalho
assalariado seriam os responsáveis por esse declínio.
A transição do trabalho escravo para o assalariado, iniciada ainda no tempo
de D. João VI desenvolveu-se muito lentamente até meados do século XIX; tomou
velocidade com a abolição do tráfico e o crescimento da cafeicultura. Havia
basicamente três maneiras possíveis de se expandir o trabalho assalariado:
transformar os escravos em assalariados; aproveitar mão-de-obra livre, mas não
assalariada, que trabalhava nas vastas áreas agrícolas voltadas para a
subsistência e promover a vinda de imigrantes europeus.
Pensar em transformar o escravo em assalariado seria a solução mais fácil.
Não se perderia tempo nem dinheiro indo buscar trabalhadores em regiões
distantes. Dava-se liberdade aos escravos, pagava-se um salário que os
motivariam a produzir mais e melhor. Porém, não foi isso que a elite da época
pensou. Ao reconhecer a superioridade do trabalhador remunerado, fazia um
raciocínio muito mais racista do que técnico. Em outras palavras, julgava que o
assalariado produzia mais do que o escravo, não pela maior produtividade de um
sistema de trabalho em relação ao outro, mas, sim, pela raça do trabalhador. O
branco tido como um ser superior seria esforçado, honesto e inteligente e o negro,
considerado inferior, era visto como vagabundo, ladrão e burro.
63
É claro que, com essa linha de raciocínio, um fazendeiro considerava uma
idiotice um desperdício pagar salário a um negro. O aspecto mais perverso dessa
situação é que os escravos negros, quando recebiam a liberdade, muito raramente
apresentavam uma eficiência comparável à dos trabalhadores brancos. O que, à
primeira vista, parecia confirmar a mentalidade preconceituosa das camadas
dominantes.
O que não se podia perceber na época é que a escravidão destruía a
produtividade e o espírito de iniciativa do negro no Brasil, tornando-o incapaz, em
curto prazo, de competir num mercado de trabalho assalariado, em moldes
capitalistas. Por todos esses motivos, não se cogitou transformar os escravos em
assalariados, restando a vinda de trabalhadores estrangeiros que, sob o ponto de
vista da elite, tinham a grande vantagem de serem brancos.
Se na zona cafeeira a elevada lucratividade e a disponibilidade de grandes
capitais tornaram possível a adoção do trabalho assalariado, o mesmo não
aconteceu nas regiões mais pobres. As áreas voltadas para uma economia de
subsistência ou as regiões exportadoras decadentes não tinham condições de
promover a imigração e a adoção de trabalho assalariado.
A maioria dos fazendeiros percebeu que não valia a pena resistir. Se, para
eles, a escravidão não mais trazia grandes vantagens econômicas, continuar a
defendê-la seria uma bobagem, que só lhes causaria desgaste político. E assim se
efetivou a abolição. A esmagadora maioria dos escravos ou permaneceu no
campo, num sistema miserável de subsistência, ou migrou para as cidades,
fundando aquilo que tanto assusta a classe média hoje em dia: as favelas. Otávio
Ianni (1988:59) assim se manifesta sobre a abolição:
Em nenhum país abolição da escravatura foi uma ruptura
estrutural na qual os próprios escravos tiveram os papéis
relevantes. Em sua significação histórico-estrutural, a
abolição foi sempre um negócio de brancos, o resultado
dos antagonismos entre os interesses da casta dos
senhores brancos e os interesses da burguesia branca
emergente.
64
É muito natural que assim fosse. Afinal de contas, o principal objetivo da Lei
Áurea era livrar a elite do problema representado pelos escravos, ou seja,
promovida principalmente por brancos, ou por negros cooptados pela elite branca,
a abolição libertou os brancos do fardo da escravidão e abandonou os negros à
sua própria sorte. A promulgação da Lei Áurea nasce, segundo E. V. da Costa
(1998:511):
...mais do desejo de libertar a nação dos malefícios da
escravatura, dos entraves que esta representava para a
economia em desenvolvimento, do que propriamente ao
desejo de libertar a raça escravizada em benefício dela
própria, para integrá-la à sociedade dos homens livres.
Alcançando o ato emancipador, abandonou-se a população
de ex-escravos à própria sorte.
Até hoje o grande problema é o preconceito, a discriminação e o racismo e
como fazer para superá-los. Fundamentalmente se tomarmos consciência das
marcas impressas pelo racismo talvez possamos eliminá-lo. Evidente que esta é
uma tarefa árdua e cabe a nós levá-la a cabo. Nesse sentido, a promulgação da
nova Constituição da República Federativa do Brasil, em 1988, tenta avançar um
pouco na tentativa de acabar com o racismo, fazendo constar no Título II - Dos
direitos e garantias fundamentais -, Capítulo I - Dos direitos e deveres individuais e
coletivos -, Artigo 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer
natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes:
Artigo XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e
imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei.
65
2.5 Florianópolis e a imprensa no século XIX
A história de Santa Catarina começa em 1502 com a descoberta da Ilha de
São Francisco, por Américo Vespúcio. No século seguinte inicia o povoamento da
região. Em 1726 funda-se a atual Florianópolis.
Segundo Oswaldo Rodrigues Cabral (1979), Florianópolis era vista como
uma comunidade rural-urbana com atividades políticas, administrativas e militares.
A elite da sociedade de Florianópolis residia no centro da cidade, enquanto os
mais pobre e aqueles que descendiam ou eram africanos residiam em bairro
periféricos.
Ainda, segundo o mesmo autor, coincidentemente, Florianópolis era a
cidade que contava com maior número de africanos e descendentes deles na
província de Santa Catarina. Segundo o censo de 1872, dos 26.311 habitantes da
capital catarinense 6.919 eram de origem africana e correspondiam a cerca de
26% de toda a população que habitava a cidade; cerca de 3.431 eram escravos.
Ao que se refere à produção de trabalhos sobre a escravidão em Santa
Catarina, o mais conhecido é "Cor e Mobilidade Social em Florianópolis" de
Fernando Henrique Cardoso e Otávio Ianni publicado em 1960 pela Companhia
Nacional.
Segundo os autores, durante os 50 anos que antecederam a
independência do Brasil, a mão-de-obra escrava foi pouco aproveita em
Florianópolis, já que a região não tinha um grande desenvolvimento econômico.
Assim, os primeiros escravos chegaram a Florianópolis a partir da metade do
século XVIII junto com oficiais portugueses que foram transferidos para a região.
Estudos realizados nos anos 80 permitem-nos perceber que a economia de
Florianópolis estava integrada desde o final do século XVIII, ao mercado de
abastecimento interno via cabotagem e a uma política de abastecimento da corte
do Rio de Janeiro. Florianópolis manteve-se praticamente isolada até os anos
1850, quando foi inserida subsidiariamente no mercado de abastecimento interno,
conforme F. H. Cardoso (2004).
66
O autor expõe que desde o fim do século XIX, o comércio de abastecimento
urbano desenvolveu-se em Florianópolis, tornando-se fonte de enriquecimento
para os que a ele se dedicaram. O comércio desenvolveu-se continuamente,
acompanhando o crescimento da população. A ele, na segunda metade do século
XIX, acrescentou-se o comércio de mercadorias e de exportação.
Em 1831, é inaugurado o primeiro jornal de Florianópolis, O Catharinense,
cujo proprietário e fundador foi Jerônimo Coelho. O jornal surgiu depois de 13
anos da inauguração dos primeiros jornais brasileiros (Correio Braziliense e
Gazeta do Rio de Janeiro). No primeiro número, o fundador do jornal, o capitão de
engenheiros Jerônimo Francisco Coelho, ataca violentamente o império dizendo
que se não fora ela (a imprensa), talvez ainda hoje estivéssemos escravos desse
Pedro estúpido, avarento e doido. O jornal divulgou idéias liberais, anti-lusitanas e
defensoras da liberdade de imprensa, segundo Moacir Pereira (1992)
A imprensa, conforme Celestino Sachet (1970), apresentava-se à
sociedade catarinense como um veículo capaz de consolidar o sistema de
liberdade, dar alguns esclarecimentos acerca dos negócios do Brasil, investigar a
maneira de se fazerem alguns melhoramentos na província, indagar sobre os
abusos existentes e a maneira de remediá-los, censurar os autores e os
procedimentos ilegais, noticiar quanto houver ocorrido na província e na Corte,
publicar alguns atos do poder legislativo, relatar o que houver de mais interessante
nos diferentes periódicos, e, finalmente, expender tudo quanto julgar digno de
publicidade.
Segundo C. Sachet (1970) quase todos os jornais de Florianópolis no
século XIX, se identificavam como imparciais. As tendências, entretanto, podiam
ser facilmente reveladas pelos ataques ou elogios aos políticos locais. Além disso,
alguns jornalistas, às vezes, dirigiam dois tipos de jornais, um que se denominava
imparcial e outro com vinculação explícita a partido político.
Ainda segundo o mesmo autor, alguns grupos literários se reuniam em
torno de atividades jornalísticas, como é o caso do grupo chamado “Guerrilha
Literária dos 80”, que floresceu de 1880 a 1890, liderado por Virgílio Várzea e
Gama Rosa e com a participação de João da Cruz e Sousa. Esses grupos
67
criticavam e advertiam explicitamente o comportamento dos cidadãos da
sociedade local, geralmente assinando com um pseudônimo que mantinha o
anonimato e a ironia. Tratavam, também, da abolição da escravatura como
“assunto de branco”, sendo defendida como um projeto de “branqueamento da
sociedade”, na qual a imigração aparecia como parte de uma utopia de
modernização, em que o branqueamento era considerado essencial.
Na campanha abolicionista foram criados vários clubes e periódicos, entre
eles “O Moleque” um periódico humorístico crítico e, muitas vezes, agressivo. Em
1885, Cruz e Sousa assume o cargo de redator-chefe desse jornal porque estava
ligado às idéias renovadoras abolicionistas e republicanas, à liberdade política e
religiosa, a conceitos artísticos avançados, à filosofia naturalista e evolucionista.
Nesse jornal, ao lado de seu amigo Virgílio Várzea, ridicularizou a sociedade,
principalmente os políticos, com galhofas e caricaturas. Nesse período, Cruz e
Sousa ainda não era reconhecidamente um poeta valorizado e ainda não
integrava o grupo dos simbolistas brasileiros, apenas se dedicava a escrever
sobre aflições sociais, como o preconceito, tendo uma atuação discreta.
Nossa mostra foi constituída de recortes retirados do jornal O Moléque e
produzidos por Cruz e Sousa durante sua passagem como redator-chefe, em que
há referências ao homem negro e a abolição.
68
CAPÍTULO 3
A LÍNGUA, A HISTÓRIA E O NEGRO EM DOCUMENTOS
EDITADOS E ESCRITOS POR CRUZ E SOUSA
O’ cândidos phantasmas da Esperança,
Meigos espectros do meu vão Destino,
Volvei a mim nas leves ondas do Hymmo
Sacramental da Bemaventurança.
Nas veredas da vida a alma não cancã
De vos buscar pelo Vergel divino
Do céo sempre estrellado e diamantino
Onde toda a alma no Perdão descança.
Sem Esperança – Cruz e Sousa. Pharóes 1900
3.0 Considerações iniciais
No capítulo anterior consideramos alguns aspectos relativos à História,
objetivando identificar as condições histórico-culturais nas quais ocorreu a
produção dos textos Piparotes, ou seja, utilizamos o princípio da contextualização
de Konrad Koerner, já que esse princípio leva em conta o fato histórico-lingüístico,
os homens presentes, os aspectos sócio-históricos da época, entre outros fatores.
Neste capítulo, pretendemos contemplar o princípio da imanência
observando os textos Piparotes em seu tempo de produção e o princípio da
adequação teórica aproximando o vocabulário da terminologia atual. Escolhemos
alguns recortes desses textos que serão o viés de nossa análise. Analisaremos a
organização lingüística desses documentos, a fim de desvelar determinadas
marcas do português em uso no Brasil, nos anos finais do século XIX.
69
3.1 A vida e a obra de Cruz e Sousa
Nossa intenção é verificar, neste trabalho, de que maneira a condição de
homem negro e de simpatizante da abolição da escravatura, no Brasil, influencia a
produção de textos da fase jornalística de Cruz e Sousa. Para tanto, consideramos
necessário conhecer, em primeiro lugar, a vida desse escritor utilizando com fonte
teórica o livro Literatura comentada. Seleção de Textos, notas, estudos
biográficos, histórico e crítico e exercícios de João da Cruz e Sousa de 1982.
João da Cruz e Sousa nasceu em Florianópolis, no dia 24 de novembro de
1861, filho de Guilherme da Cruz, mestre pedreiro e Carolina Eva da Conceição,
escravos pertencentes ao Coronel Guilherme Xavier de Sousa e sua esposa
Clarinda Fagundes Xavier.
Como os proprietários dos pais de Cruz e Sousa não tinham filhos,
dedicaram atenção especial a ele. A senhora Clarinda lhe ensinou as primeiras
lições em casa, matriculando-o, depois, na escola primária. Cruz e Sousa, aos oito
anos de idade, já escrevia e lia seus primeiros versos para o Coronel Guilherme.
Logo depois, Dona Clarinda matriculou Cruz e Sousa no Ateneu Provençal,
um colégio para meninos, em Florianópolis, onde se destacou nas aulas de
francês, latim, inglês e grego.
Terminando o curso de Humanidades, Cruz e Sousa começou a lecionar à
noite na casa dos pais e foi indicado para professor do Ateneu. Logo começou a
sentir o peso da cor da pele na reação da sociedade local, que não aceitava um
negro como professor, e abandonou o magistério para empregar-se como caixeiro
numa casa comercial de Florianópolis, emprego que durou pouco.
Ainda quando estudava no Ateneu, conheceu Virgílio Várzea, Oscar Rosas,
Juvêncio Araújo de Figueiredo e Santos Lostada e com eles fundou um grupo que
movimentou o jornalismo e o meio literário da Província na época.A partir de 1879
esse grupo passa a assinar a coluna Prosa e Verso em alguns jornais de
Florianópolis. As poesias de Cruz e Sousa se destacam, publicadas no jornal O
70
Artista, depois no jornal A Regeneração órgão do Partido Liberal e no Jornal do
Comércio, ligado ao Partido Conservador.
Em 1881, o grupo lança o jornal Colombo, em que Cruz e Sousa é o
redator principal. O jovem poeta se destacou recitando seus versos e o de outros
poetas, inclusive Dante e Petrarca no teatro, nas festas populares e nas
serenatas. A inteligência do filho de ex-escravos provocava inveja. Contudo era
difícil superar o preconceito.
Em 1883 esteve em Florianópolis a Cia Teatral da atriz Julieta Santos,
quando um de seus colaboradores se desliga da compania e Cruz e Sousa é
convidado a substituí-lo. Em 15 de fevereiro de 1883 parte com a Cia Teatral. No
teatro atua como “ponto” e como declamador. Assim, viajou do Rio Grande do Sul
para São Paulo. No palco aproveita para pregar o Abolicionismo.
Em 1885, na Bahia, é convidado a proferir uma conferência no auditório do
Jornal da Tarde, em favor da Abolição, obtendo grande repercussão que o leva a
fazer sua conferência em Pernambuco, Ceará, Pará e Maranhão.
Em abril de 1885, Cruz e Sousa volta para Santa Catarina, Florianópolis, e
assume o cargo de redator do semanário recém fundado O Moléque, um jornal
irreverente e contestador.
Em julho, em parceria com Virgílio Várzea, estréia com o livro “Tropos e
Fantasias” , obra que contém seis trabalhos de cada um de seus autores, alguns
de cunho abolicionista.
Apesar de redator-chefe de O Moléque, Cruz e Sousa continuou sofrendo
as pressões do preconceito. Quando a imprensa de Florianópolis era convidada
para festas e solenidades, ele nunca recebia convite. No final de 1885 o jornal é
fechado e ele vai procurar um emprego no Rio Grande do Sul, porém sem
sucesso e em 1887 volta a Florianópolis.
Em 1888, no Rio de Janeiro, recebe o amparo de Oscar Rosas e conhece
José do Patrocínio, Luiz Delfino e Gama Rosa, porém não conseguiu colocação
em nenhum jornal. Após oito meses de dificuldades, volta Florianópolis dedicando-
se quase que exclusivamente aos livros.
71
Nessa época adere ao Simbolismo, escola literária que começa a ser
reconhecida no Brasil. Em 1891, mais uma vez desembarca na Capital, agora
República. Fica alguns meses no jornal de José do Patrocínio.
Em março de 1893, Cruz e Sousa publicou seu livro Missal, um volume de
prosa, e em agosto, Broqueis, recebendo elogios de vários jornais.
Ainda em 1893, a 9 de novembro, casa-se com Gavita Rosa Gonçalves,
jovem negra criada da casa do Juiz Abolicionista Antonio Monteiro de Azevedo. O
casamento transtornou sua vida e o levou a trabalhar como operário da Estrada de
Ferro Central do Brasil. No emprego é humilhado por seus superiores e nos
jornais e revistas, não encontrou mais espaço para as suas produções.
O poeta, em 1897, fica tuberculoso e sem recursos para o tratamento, vai
definhando. Os amigos passam listas para angariar recursos para o tratamento.
Em 18 de março de 1898 morreu numa cidade de Minas Gerais. Seu corpo é
transladado para o Rio de Janeiro, onde foi sepultado no dia 20.
Cruz e Sousa sofreu influências do meio ambiente. Durante sua vida foi
escravo dos preconceitos sociais buscava o quilombo quimérico de uma paz
espiritual, através dos caminhos de sua arte, incompreendida e criticada pelos
analistas da época. O preconceito pode ser observado quando Cruz e Sousa foi
promotor de Laguna, foi repudiado porque era negro. Seus amigos sempre
destacaram a preocupação que ele tinha pela aparência pessoal: bons trajes,
variados finos e bem feitos. Mas nem com isto dissimulou a sua cor e a sua raça e
a convivência social sempre foi difícil.
Sempre usou de seu talento e arte para tentar enfrentar as indiferenças
sociais para galgar o reconhecimento e sucesso. Talvez essa condição de
rejeitado, de inconformado com a situação o tenha levado ao simbolismo.
Hoje perdura somente a sua arte incomparável, triste e bela, que se
expandiu, ganhou o mundo, conquistou celebridade, empolgou discípulos e pairou
com a dos maiores autores simbolistas.
72
3.2 A amostra
O produtor de nossa amostra, Cruz e Sousa, foi criado dentro de um
ambiente harmônico, sem conflitos ou tensões, fruto de um discurso onde se
propagava a “democracia racial”, buscou ascender socialmente e ambicionou
ocupar posição de prestigio no meio literário no Brasil do final do século XIX.
Em 26 de abril de 1885, de volta a Florianópolis, reencontra seus amigos
Virgílio Várzea, Oscar Rosas e Araújo Figueiredo. Tal fato foi registrado pelo
recém criado semanário O Moléque: Acha-se entre nós, depois de uma longa
excursão por todo o Brasil, o valente e rutilante poeta realista Cruz e Sousa.
Estabelecido na residência de seus pais na Praia de Fora, seu nome logo figurou
em outros jornais da cidade, com poesias cada vez mais apreciadas, além de
outros textos. Recitava e falava com eloqüência em reuniões de circunstância.
Em maio, os amigos de Cruz e Sousa conseguem que ele se torne o
redator-chefe de O Moléque. Fazendo desse jornal uma réplica melhorada do
anterior Colombo, de maneira que, além dos assuntos sociais, se ocupasse
também dos literários. A diferença era que o anterior fizera prurido romancista, ao
passo que agora o barulho é do naturalismo e simbolismo.
O Moléque, publicado durante um ano (1884 a 85), era um periódico de
formato pequeno, ilustrado litograficamente, como podemos verificar nos recortes
1 e 2. Com humor, sátiras e caricaturas, criticava os costume e a política. Cruz e
Sousa escrevia, nessa época, com os pseudônimos de Zé K. e Trac.
O jornal pertencia a um jovem ex-comerciário, que o pusera em circulação
semanal desde 22 de dezembro do ano anterior (de 1884). Contudo, “O Moleque”
não contava com as graças e simpatia da alta sociedade de Florianópolis. Era
ignorado e seus colaboradores não recebiam convites para as festas mais
importantes. No dia 14 de julho de 1885, data em que a colônia francesa
comemorava com um elegante banquete o aniversário da queda da Bastilha no
Grande Hotel, O Moléque não foi convidado para o evento e Cruz e Sousa saiu
73
em defesa do jornal publicando uma nota de repúdio:
O Moléque não é o esfolla cara das ruas, na
phrase de Valentim Magalhães, nem o abocanhadôr
peralta e atrevido que salta a noite os muros altos para
lançar a prostituição no seio das familias, não é o garôto
das praças publicas, o gamin das latrinas sociaes, o tartufo
encasacado e enluvado que arrasta a sua imbecilidade
cornea pelos clubs, pelos theatros, pelas reuniões, p2elos
passeios. É um jornal moço, moço quer dizer nervoso
moço quer dizer sangüíneo, cheio de pulso forte, vibrante,
evolucionista, adiantado. (recorte 5 – O Moléque – nº 31 de
19/7/1885)
Cruz e Sousa engajou-se ao objetivo de dar ao jornal credibilidade junto a
sociedade de Florianópolis, informando com clareza os fatos ocorridos, mesmo
que esses fossem fatos que demonstrassem certo preconceito e discriminação.
A obstinação pelas causas abolicionista e o fato de ser negro, rendeu a
Cruz e Sousa uma discriminação social como, por exemplo, quando o Club 12 de
agosto, local de reuniões da alta sociedade de Florianópolis, promoveu um jantar
em comemoração ao aniversário de inauguração do clube e convidou os
representantes da imprensa local, menos O Moléque. Cruz e Sousa, então, redigiu
e publicou texto que refletia a sua indignação diante de tal atitude:
Uma vez que O Moléque não é um trapo sujo do
monturo, um caracter enluvado com syhilis moral por
dentro, um pasquim ordinario e safado, um bebado de
todas as esquinas ou um leproso de todas as lamas, havia
obrigação, obrigação, ouça o Club 12,de ser O Moléque
considerado como gente, uma vez que foi considerado a
outra imprensa que não está em nada, em cousa nenhuma
superior a este órgão.
Não é com brutalidade que se adquire sympathia.
Se não se destribuio convite para o Moléque
porque o seu redactor chéfe é um creoulo, é preciso saber-
74
se que não o saiba e o diga bem alto, por sua honra, por
seu orgulho, porque não se vexa de hombrear com
ninguem deste mundo que saiba o que é cavalheirismo,
educação e probidade. (recorte 7 – O Moleque – nº 35 de
16/8/1885)
Assim selecionamos os Piparotes, pequenos textos parecidos com os
editoriais atuais, para podermos verificar como eram as referências do jornal O
Moléque e de seu editor, Cruz e Sousa, a alguns fatos sociais do momento.
Em certa medida atualmente o país se assemelha muito ao Brasil do final
do século XIX. È verdade que não somos mais um país agrário, mas continuamos
tendo os mesmos problemas em decorrência da estrutura fundiária que
privilegiava o latifúndio. Atualmente a questão do preconceito contra o negro está
minimizadas algumas camadas sociais, porém ainda resiste, o que faz com que a
igualdade esteja um pouco longe.
A análise da obra poética do autor não será realizada nesta pesquisa, pois
optamos por utilizar textos mais originais, como os produzidos para o jornal, e que
acreditamos dêem a dimensão do problema que levantamos e da grandiosidade
do autor. Não obstante, observado os levantamentos desta pesquisa, acreditamos
que muitas outras pesquisas ainda poderão ser feitas e escritas sobre Cruz e
Sousa, tanto de sua prosa quanto de sua poesia, entretanto deixaremos para
outros pesquisadores tal tarefa.
3.3 A ortográfica presente no documento
Observando a estrutura interna dos textos Piparotes, verificamos que eles
permitem que se observe a língua portuguesa em uso no Brasil na segunda
metade do século XIX. Há palavras com grafias diferentes das atuais, uma vez
que houve oscilações entre o período fonético e pseudo-etimológico da língua
portuguesa a partir de meados do século XIX.
75
Há palavras grafadas com consoantes dobradas, hoje grafadas com
somente uma consoante:
.n’elles (neles), cidadellas (cidades ou cidadezinhas) – recorte
4, L 19 E L 59.
. collegas (colegas), della (dela), - recorte 6, L 1.
. anniversario (aniversário), scintillações (cintilações), elles
(eles) – recorte 7, L 27, L 30 E L 34.
. occasiào (ocasião), illumina (ilumina), aquelles (aqueles) –
recorte 8, L 20, L 32 E L 33.
. commandante (comandante), applausos (aplausos) – recorte
9, L 2 E L 8.
. soffre (sofre), ella (ela), litteratura (literatura) – recorte 11, L
3, L 4 E L 13.
Outras palavras são grafadas com consoante muda, hoje em desuso:
. escripta (escrita), factos (fatos) – recorte 3, L 8 E L 8.
. seductora (sedutora), directoria ( diretoria) – caracter (caráter
– recorte 7, L 38, L 51 E L 53.
. acto (ato), redempçào (redenção) – recorte 8, L 17 E L 24.
. facto (fato) – recorte 9, L 5.
. redemptora (redentora) fucturo (futuro) – recorte 11 L 11.
Palavras grafadas com y e que, atualmente, se grafam com e ou i:
. sympathia (simpatia) – recorte 7 L 63.
. gyrandolas ( girândolas) - recorte 9 L 7.
76
Palavras que, agora, são grafadas com z, grafadas com s:
. organisadores (organizadores) – recorte 6 L 9.
. rasão (razão) - recorte 11 L 25.
. jornalsinho (jornalzinho) – recorte 5 L 15.
Palavras hoje grafadas retirando o h:
. theatro ( teatro), enthusiasmos (entusiasmos), - recorte 6 L 2
e L 7.
. symphatia (simpatia) – recorte 8 L 23.
. enthusiasta (entusiasta) – recorte 11 L 54.
Palavras que representam os numerais com grafia diferente da de hoje:
. dous (dois) – recorte 3, L 4
. cincoenta ( cinqüenta) – recorte 6, L 9.
3.3.1 – Características prosódicas
Segundo Julio Ribeiro (1885), as paroxítonas do século XIX deveriam ser
acentuadas graficamente, quando terminassem com a, e, o, ea, eo, ia, ie, io, ua,
uo, x etc. No entanto , há palavras que constam nos Piparotes que não estão
acentuadas graficamente como:
. colonia (colônia) – recorte 5 L 11.
. amavel (amável) – recorte 6 L 4.
. adoraveis (adoráveis) – recorte 7 L 35.
. Palacio (Palácio) – recorte 8 L 13.
77
J. Ribeiro aponta vários casos de acentuação gráfica nas palavras
proparoxítonas, contudo, o autor ressalta que existem muitas delas que só serão
percebidas como tal a partir de uma prática. Desse modo percebemos que as
palavras proparoxítonas que aparecem em nossa amostra não levam acento,
como:
. magnifico (magnífico) – recorte 3 L 6
. fatidica (fatídica)recorte 4 L 11.
. politica (política) – recorte 10 L 5.
. masculo (másculo) – recorte 11 L 61.
A crase que a indicação da fusão da preposição a com o artigo é
representada pelo acento agudo e não pelo grave como é atualmente:
. hoje á noite - recorte 6 L 2.
. por elles á fora – recorte 7 L 34.
Emprego de apóstrofe, assinalando a supressão de uma vogal:
. d’uma – recorte 4 L 16.
. d’ahi – recorte 7 L 77.
3.4 Relação tema e título
Ocupando-se com o tema universal da ascensão do homem negro, Cruz e
Sousa combate a desumanidade da escravatura, integrando-se ao movimento
abolicionista com reflexos em sua poesia e nos escritos em prosa. Como o que se
pode observar no trecho transcrito, em que Cruz e Sousa cumprimenta
Florianópolis, Provincia, pedindo-lhe que tenha mais atenção e carinho para com
os negros tão sofridos:
E’ agora a occsião de felicitar a Provincia e pedir-
lhe, em nome da Liberdade que tem vivido a chorar á
78
sombra do anacbronismo escravocata, toda a sympathia,
todo amor, todo o carinho pela redempção da desgraçada
raça dos tristes.(recorte 8 – O Moléque – nº 38 de
13/9/1885)
Nesse outro trecho, podemos perceber que Cruz e Sousa se orgulha de sua
etnia e de ter uma boa educação, igual a cada cidadão daquela comunidade.
Se não se destribuio convite para o Moléque
porque o seu redator chèfe é um creoulo, é preciso saber-
se que esse creoulo nào è um imbecil que não o saiba e o
diga bem alto, por sua honra, por seu orgulho, porque não
se véxa de hombrear com ninguém deste mundo que saiba
o que è cavalheirismo, educação e probidade.
E’ um creoulo que tem muita presumpção em o ser
e que nào se curva, a despeito de tudo, senão ao talento, á
bondade e ao carcter. (recorte 7 –O Moléque – nº 35 de
16/8/1885)
Alguns textos escritos por Cruz e Sousa refletiam seu pensamento
abolicionista de maneira clara, a começar pelas conferências proferidas por ele na
Bahia e no Ceará: estamos em face de um acontecimento estupendo, cidadãos: A
abolição da escravatura no Brazil. Estes textos foram editados, em partes, em O
Moléque. Algumas partes desses textos ficaram perdidas por não se encontrarem
devidamente guardados os exemplares daquele jornal. Observe o trecho:
Estamos em face de um acontecimento estupendo,
cidadãos:
A abolição da escravatura no Brazil.
Neste momento, do alto desta tribuna, onde se tem
derramado em ondas de inspiração, o verbo vigoroso e
masculo de diversos outros oradores, eu vou tentar vibrar
nas vossas almas cidadãos, no fundo de vossos corações,
brasileiros, os grandes sentimentos emanados da abolição;
eu vou appellar pára vossas mães, para vossos filhos, para
79
vossas esposas. (recorte 11 – O Moléque – nº 43 de
12/10/1885)
Outro tema abordado nos textos de Cruz e Sousa são os Direitos Humanos,
principalmente, no que se refere à confraternisaçáo dos grandes principios da
igualdade e a Todos os homens são iguaes em face da natureza, sempre em
relação ao homem negro.
Fiamo’-nos em nos mesmos no direito commum do
pensamento humano, na confraternisaçáo dos grandes
principios da igualdade, que presamos, que admiramos.
Fiamo’-nos ainda, nisto:
Na comunháo livre das almas, na crença de que na
terra só vemos espíritos e corações e não preconceitos de
cores e arreganhos de potentados.
Fiamo’-nos neste poder absoluto da sciencia
sociológica:
Todos os homens são iguaes em face da natureza.
(recorte 10 – O Moléque – n º 43
de 12/10/1885 )
Nessa fase da obra de Cruz e Sousa não se observa de maneira específica
a preocupação com os direitos dos negros, já que o que importava realmente não
era somente a liberdade, mas sim os direitos, ou seja, verificar as condições de
sobrevivência social do negro após a abolição, uma vez que a lei que foi aprovada
não privilegiava a condição social mínima necessária para a manutenção da
liberdade dada, pois não oferecia a ele o direito a emprego, saúde e moradia.
O título dado à coluna, para a qual os textos de nossa amostra foram
escritos, foi Piparotes que é definido, no dicionário, como pequenas pancadas com
a cabeça do dedo médio ou do indicador, que momentaneamente apoiados ao
polegar, dele se soltam com força. E talvez a idéia de Cruz e Sousa tenha sido dar
uma sacudidela na sociedade elitista do século XIX, tentando fazê-la refletir sobre
80
questões que afligiam a ele e a todos os cidadãos que observavam os problemas
sociais e políticos do país e, em especial, a abolição.
Segundo noticiaram os nossos collegas, hoje á
noite haverá no theatro Santa Isabel, uma festa
abolicionista, com o concurso amável da S.D.P. Álvaro de
Carvalho.
Sim, é bom isso:...
Mas que no fim dos enthusiasmos justos, não
saiam, o respeitavel publico e os organizadores da festa
com cincoenta arrobas de gelo nas...idéas... patrioticas e
humanitarias.
(recorte 6 – O Moléque – nº 33 de
02/8/1885 )
3.5 A estrutura do texto
Aqui objetivamos analisar as características gerais de uma produção
jornalística, uma vez que nossa amostra são textos produzidos para o jornal O
Moléque.
O texto jornalístico está sempre ligado à sociedade e é difícil separá-lo da
realidade, já que sua função é informar justamente fatos e ações da sociedade
em que está inserido. Segundo Alceu Amoroso Lima (1990:60):
Essa função informativa é, pois, o primeiro e
precípuo fim do jornalismo. È para isso que o jornalismo
tem de estar a par das coisas, estar bem informado para
poder informar. É para isso que tem de viver no meio dos
acontecimentos, em pleno fluo vital.
81
Todo texto jornalístico, portanto, tem a função de informar o leitor sobre
algum fato ou idéia do cotidiano. Segundo Nilson Lage (2005:73):
O que caracteriza o texto jornalístico é o volume de
informação factual. Resultado da apuração e tratamento
dos dados pretende informar, e não convencer. Isso
significa que o relato, por definição, está conforme o
acontecimento – este sim, passível de crítica e capaz de
despertar reações distintas nos formadores de opinião e
entre os receptores da mensagem em geral (...) O texto
jornalístico é a notícia, que expõe um fato novo ou
desconhecido, ou uma série de fatos novos ou
desconhecidos do mesmo evento, com suas
circunstâncias.
Um texto retrata as idéias do tempo e da sociedade em que vive o seu
autor, ou seja, torna-se um depoimento sobre uma realidade. Assim, por exemplo,
os editoriais, as manchetes de jornais, inclusive documentos, trazem matérias
sobre os temas que estão em evidência naquele preciso momento. Não se deve
depreender desta afirmativa que a relação do texto com a história signifique dizer
que ele narra, obrigatoriamente, fatos históricos. Não se trata disso, significa dizer
que, nos textos, são materializados os ideais, as concepções, os anseios e os
temores de um povo numa certa época. Como, por exemplo, no trecho retirado de
O Moléque, em que há referências a situação da escravidão no Brasil à época de
1885 e a questão da libertação dos escravos feita no Ceará:
A escravatura, escrevia < Correio Brasiliense> em
Londres, é um mal para o individuo que a soffre e para o
estado onde elle se admitte, lemos no < Brazil e a
Inglaterra ou o Trafico dos Africanos.
No intuito de esboroar, derruir a montanha negra da
escravidão no Brazil, ergueram-se em toda a parte
apostolos decididos, patriotas sinceros que pregam o
avançamento da luz redemptora, isto é, a abolição
completa.
82
O Ceará que foi o berço da litteratura por que deo Alencar,
quis também ser a cabeça libertadora da raça escrava
deste paiz, e, à golpes de direito e a vergastadas de
clarões, conseguio este Alleluia supremo:
Não ha mais escravo no Ceará.
(recorte 11 – O Moléque – nº 43 de 12/10/1885)
È muito difícil ou praticamente impossível não se revelar no momento da
produção do texto jornalístico, a subjetividade e as influências pessoais do redator,
levando a um questionamento da imparcialidade do texto escrito. Sobre isso
assevera N. Lage (2006:15):
A par do sensacionalismo, e no esforço para
superá-lo, os jornalistas conseguiram empregar rigor às
técnicas de apuração e tratamento de informações. Foram
buscar no espírito científico o respeito pelos fatos
empíricos e o cuidado para não avançar além daquilo que
os fatos permitem ao senso comum inferir.
Portanto a compreensão de um texto vai além da simples decodificação de
termos nele impressos, não basta simples reconhecimento de palavras, parágrafo,
é preciso levar em conta em que situação ele é produzido. A compreensão exige
do leitor uma sintonia com os fatos referendados no texto.
O texto jornalístico tem como características principais apuração dos fatos,
que são as informações, a produção textual e a opção por frases curtas e é uma
via importante para a sociedade, pois, é a partir dele que se partilham
experiências e se discutem idéias, mesmo sem contato físico. No texto jornalístico,
o diálogo é sempre estabelecido e estabelece uma função social, um
compromisso com a ideologia, não se fazendo jornalismo dissociado da
sociedade e do tempo histórico, isto o torna não só um veículo de informação
acerca dos fatos relativos ao interesse social, como também um instrumento de
propagação da idéias desta sociedade. No trecho abaixo, percebemos que há um
diálogo entre o jornalista e os responsáveis por uma obra pública, em que o
83
jornalista cobra providências pela morosidade da obra, assumindo, assim, a voz
da coletividade.
Continúa parado o aterro da praia do <Menino
Deus>.
Não temos cessado de gritar contra isso, mas as
cousas param no mesmo.
Snrs. Da Presidência e Edilidade, andem-me para
a frente com esse aterro que me parece um carro de bois
morosos, cansados, que esbarrou em alguma pedra
colossal e que não ha meio de o fazer seguir para diante.
Vá lá, comtudo, toquem os bois, mettam-lhes as
varas e...caminhem.
Siga o carro de bois.
Olha esse aterro que saia...do enigma, que passe a
ser um problema resolvido.
Queremos ver como se arranja o trabalhinho...
Siga o carro de bois.
(recorte 8– O Moléque – nº 38 de 13/9/1885)
O texto jornalístico obedece a uma estrutura particular para a transmissão
da informação. Temos, inicialmente, o que é chamado de lead, que significa
conduzir, comandar, dirigir. Em jornalismo impresso lead é o primeiro parágrafo da
notícia, que se inicia por um tópico frasal ou sentença-tópico. Segundo N.
Lage (2005), a origem do lead está relacionada ao uso oral da língua, ou seja, à
maneira como alguém relata algo a que assistiu.
Fernando Cascais (2001:125), conceitua lead como:
Introdução de uma notícia, correspondendo normalmente
ao primeiro parágrafo (...) Este primeiro parágrafo permite
condensar a informação mais relevante sobre o
acontecimento e seu conteúdo condiciona fortemente o
corpo da notícia e o título.
Lead é a ferramenta que os jornalistas utilizam para situar o leitor, para
trazê-lo ao texto e para indicar qual será o assunto específico que a matéria vai
84
abordar. Logo após o lead vem o desenvolvimento do texto, onde o jornalista a
partir do fato produz o texto com total imparcialidade. Como podemos perceber no
recorte a seguir, Cruz e Sousa coloca logo de início a que se destina a notícia:
registrar a liberdade da escrava Ursula através de um belo ato de D. Rita, depois
comenta o fato e parabeniza tanto a senhora como a escrava.
A Exmª. Snrª. D. Rita, esposa do Snr. José Manoel
de Souza, ex-commandante do corpo policial, concedêo
liberdade á sua escrava Ursula. (recorte 9 – O moléque – n
º 41 de 06/10/1885)
Editoriais são textos jornalísticos em que o conteúdo expressa a opinião da
empresa, da direção ou da equipe de redação, sem a obrigação de se ater a
nenhuma imparcialidade ou objetividade. Geralmente são reservados espaços
predeterminados para os editoriais nas primeiras páginas. Os Piparotes de O
Moléque se assemelham a esta estrutura, já que é assumida uma visão crítica da
realidade brasileira, principalmente no que diz respeito a condição do homem
negro:
No dia 7, à uma hora da tarde, houve em Palácio a
entrega de 28 cartas de liberdade, pela caixa-fundo de
emancipação provincial.Foram distribuídas pelo Dr. Chefe
de Polícia que dêo fulgores ao acto, proferindo um bonito
discurso aos libertandos. É agora ocasião de felicitar
a Provincia e pedir-lhe, em nome da liberdade que tem
vivido a chorar à sombra do anacbronismo escravocata,
toda a sympathia todo o amor, todo o carinho pela
redempção da desgraçada raça dos tritstes. Vinte e oito
cartas de Liberdade, são vinte e oito bênçãos de consolo,
de purificação moral! Vamos Santa Catharina, mais uma
esforço sobre ti mesma e galgará o pedestal do Capitolio
da Luz Democrática que encoraja os fracos e illumina os
fortes, e aquelles que estão sob a terrível noite das
desesperanças e das duvidas!Mais um passo para a
igualdade dos direitos, para a comunhão das almas.
85
Obrigado, pelos libertandos do dia 7. (recorte 8 – O
Moléque – nº 38 de 13/9/1885)
Como se observa os anos 80 e 90 do século XIX foram marcados por
atribulações sociais no que se refere à abolição da escravatura, já que o fato do
Brasil ainda manter um modelo tão arcaico, fez com que a modernidade e o
progresso demorassem a se implantar no país. Santa Catarina, em especial,
Florianópolis não ficaram a quem dessas atribulações, refletidas nos textos dos
jornais da época.
3.5.1 – A organização do texto
Observando a maioria dos recortes escolhidos, verificamos que a
organização é quase sempre a mesma. Esses recortes iniciam–se localizando a
pessoa ou o lugar que motivaram o fato, normalmente essa pessoa ou lugar é um
destaque na sociedade de Florianópolis naquela época. Logo depois há o
cumprimento pelo ato que praticou, um comentário e, ao final, uma reflexão sobre
esse ato. Como exemplo, escolhemos os recortes 6 e 9:
Recorte 6:
. No primeiro parágrafo, linhas 1, 2, 3, 4 e 5,há referência ao local: theatro
Santa Isabel e S.D.P. Álvaro de Carvalho.
Segundo noticiaram os nossos collegas, hoje á
noite haverá no theatro Santa Isabel, uma festa
abolicionista com o concurso amavel da S.D.P. Álvaro de
Carvalho.
. No segundo parágrafo, linha 6, o cumprimento pela festa abolicionista e
concurso.
Sim, é bom isso.
.
A partir do terceiro parágrafo, linha 7, até o nono parágrafo, linha 28,
aparecem os comentários sobre o motivo da festa: a luta pela abolição, e os
86
comentários para que seus participantes não se percam nos festejos e esqueçam
o real motivo da festa, levando o leitor a uma reflexão sobre o objetivo dessa festa.
Mas que no fim dos enthusiasmos justos, não
saiam, o respeitavel publico e os organisadores da festa
com cincoenta arrobas de gelo nas...idéas... patrioticas e
humanitarias.
Sentido com essa causa do Direito.
Uma vez na frente della, è fechar com força os
olhos aos ridiculos interesses e aos chatos egoísmos e
romper na treva uma catadupà de de luz.
Eia, minha gente desta America de Tiradentes,
façam isso de forma que o Brasil, não explusa mais pela
tuba da..., pelo grito formidavel do desespero dantesco e
genial de Castro Alves, estes versos, encharcados de
sangue e fé!: -
<<Mas que bandeira é esta que impudente na
gavea tripudia...
Silencio Musa, chora e chora tanto que o pavilhào
se lave no teu pranto>>.
Uma aurora de bençòes, haja a festa abolicionista.
Recorte 9:
. No primeiro parágrafo, linhas 1, 2 e 3, o autor identifica a pessoa que
pratica o ato de libertação com seu nome e como sendo esposa de um policial,
situando-a como pessoa importante na sociedade de Florianópolis.
A Exmª. Srnrª. D. Rita, esposa do Snr. José
Manoel de Souza, ex-commandante do corpo policial,...
. Ainda no mesmo parágrafo, linhas 3 e 4, coloca o fato que motivou o
editorial: liberdade á sua escrava Ursula . A escrava é identificada apenas pelo
pré-nome, diferente da senhora, o que mostra a distinção entre elas.
..., concedêo liberdade á sua escrava Ursula.
87
. No segundo parágrafo, linhas 5, 6, 7, e 8, cumprimenta D. Rita pelo ato de
libertação como ato de muito importância.
O <Moléque> tendo sciencia desse facto um tanto
tarde, cumprimenta respeitoso a digna Snrª estrugindo no
ar gyrandolas de applausos!...
. Já no terceiro parágrafo, linha 9, o cumprimento é mais contido por se
tratar de cumprimentar a escrava.
Parabens á Ursula.
.
No quarto parágrafo, linha 10, e quinto parágrafo, linhas 11, 12 e 13, faz o
comentário dizendo que os que libertam escravos são abençoados e que honram
Guilherme Tell, levando o leitor a uma reflexão sobre a importância daquele ato.
Abençoados os que libertam escravos.
Como que honram a memória de Guilherme Tell, o
grandioso libertadôr da Suissa.
3.6 A argumentação
Argumentar é fornecer argumentos, ou seja, razões a favor ou contra uma
determinada tese. Segundo Chain Perelman (1996:73), toda argumentação parte
de um
88
acordo que tem por objeto ora o conteúdo das premissas
explícitas, ora as ligações particulares utilizadas, ora forma
de servir-se dessas ligações: do princípio ao fim, a análise
da argumentação versa sobre o que é presumidamente
admitido pelos ouvintes...
Como recurso de argumentação nos textos que compõem a amostra, Cruz
e Sousa utiliza expressões de cumprimento como “Felicitar a província”,
“Obrigado”, “curva-te”, “magnifíco”, “applausos” para tentar conquistar um auditório
ideal e universal, constituído por todos os seres racionais ou dotados de razão.
Isso, segundo Perelman (1996), permite distinguir um discurso que visa
convencer, isto é, que procura a adesão de um auditório universal.
Assim observando os recortes de nossa amostra, reconhecemos alguns
mecanismos argumentativos como:
1. argumentos de valor universal – que buscam a adesão incontinenti dos
leitores por crença religiosa como abençoados, por modernidade como a grande
obra do progresso, por exaltação Magnifico, por distinção social toilettes
adoraveis, entre outros conforme exemplos abaixo:
. Abençoados os que libertam escravos – recorte 9 L 10
. A abolição, a grande obra do progresso è uma torrente que se
despenca; não ha mais pôr-lhe embaraços à sua carreira vertiginosa.
– recorte 11, L 68, L 69, L 70 e L 71.
. Magnifico – recorte 3 L 5.
. Desfillava por elles à fora um esplendido cortejo de moças, com
toilettes adoraveis, com collar entado de flores deliciosas. – recorte 7
L 34, L 35 , L 36 e L 37.
89
. Vamos, Santa Catharina, mais um exforço sobre ti mesma e galgará
o pedestal do Capitolio da Luz Democrática que encoraja os fracos e
illumina os fortes, e aquelles que estão sob a terrível noite das
desesperanças e das duvidas! – recorte 8, L 29, L 30, L 31, L 32, L
33 e L 34.
. Eia minha gente desta America de Tiradentes, faça, isso de forma
que o Brasil, não expulsa mais pela ..., pelo grito formidável do
desespero dantesco e genial de Castro Alves estes versos,
encharcados de sangue e fé! – recorte 6, L 17, L 18, L 19, L 20, L 21
e L 22.
2. dados colhidos na realidade – as informações têm de ser exatas e do
conhecimento de todos como sr. Almeida- commandante da Policia, a queda da
Bastilha, D. Rita e snr. Jose Manoel de Souza – pessoas importantes e distintas,
Palacio, Club 12 de Agosto – lugares conhecidos, snr. Marcianno de Carvalho:
. Foi demittido do cargo de commandante da Policia, o digno cidadào
o illm. sr. Almeida. – recorte 10, L 1, L 2 e L 3.
. Terça-feira, 14 do corrente, teve lugar no Grande Hotel o Banquete
em homenagem a quéda da Bastilha, emancipação dos direitos de
liberdade da gloriosa França. – recorte 5, L 1, L 2, L 3, L 4 e L 5.
. A Exmª Snrª D. Rita. Espos do Snr. José Manoel de Souza, ex-
commandante do corpo policial, concedêo liberdade á sua escrava
Ursula. – recorte 9, L 1, L 2, L 3 e L 4.
. No dia 7, á uma hora da tarde, houve em Palacio a entrega de 28
cartas de liberdade, pela caixa-fundo de emancipaçào provincial.
recorte 8, L 12, L 13, L 14 e L 15.
90
. A 12, houve no Club 12 de Agosto, o grande baile de Anniversario
ao qual o luxo e o bom gosto, a magnificencia, nào faltaram.
recorte 7, L 26, L 27, L 28 e L 29.
. O Snr. Marcianno de Carvalho, acaba de dar liberdade, isto é, de
enveredar para a luz, dous escravos que possia – recorte 3, L 2, L 3
e L 4.
3. exemplos – para fortalecer a argumentação há referências a exemplos
conhecidos retirados da História Universal e que é de domínio público como
Guilherme Tell, Carlos I, Luiz XVI, Maria Antonieta e Rainha Isabel:
. Como que honram a memória de Guilherme Tell, o grandioso
libertador da Suissa. – recorte 9, L 11, L 12 e L 13.
. É’ ahi que desapparecem na noite da historia os Carlos I e Luiz XVI,
as Maria Antonieta e Rainha Isabel, é ahi que desapparece o se’
epiro, para dar lugar á republica, a unica forma de governo
compatível com a dignidade humana, na phrase de Assis Brasil, no
seu bello livro – Republica Federal. – recorte 11, L 100 a L 107.
4. citações de autoridades – utilizar textos de outros escritores ou teóricos,
fazendo citação de seu nome e parte da obra, como se observa neste trecho em
que coloca o nome de Castro Alves e cita um trecho de sua poesia:
. ...pelo grito formidavel de Castro Alves, estes versos, encharcados
de sangue e fé!:
<<Mas que bandeira é esta que impudente na gávea tripudia...
91
Silencio Musa, chora e chora tanto que o pavilhào se lave no teu
pranto>>.-recorte 6, L 20 a L 26.
Esses mecanismos ajudam a convencer o leitor e mostram a necessidade
de sintonia entre o leitor e o produtor do texto. No caso dos Piparotes serviram
para mostrar ao leitor a importância da libertação do negro, não para o próprio
homem negro mas também para o reconhecimento da modernidade e
benevolência dos homens brancos daquela sociedade.
92
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Foram retomados aspectos da língua portuguesa escrita no Brasil,
considerando os fatores históricos e socioculturais que caracterizam os textos
produzidos por Cruz e Sousa, em Florianópolis, em 1885, examinando os
documentos por meio do aparato teórico e dos princípios norteadores da
Historiografia Lingüística que se constitui como uma ciência, fazendo uma
interface com os estudos da língua e da história, com o objetivo de reconstruir
acontecimentos humanos.
Durante o século XIX, ocorreram no Brasil manifestações pela abolição da
escravatura, porém poucos foram aqueles que se aventuraram a defendê-la
publicamente, uma vez que, por ser o Brasil extremamente agrário, a questão da
libertação não despertava interesse daqueles que detinham o poder. Mas com o
advento da industrialização, o Brasil sentiu necessidade de uma modernização, da
ajuda de países mais desenvolvidos que impunha condições para essa ajuda,
como a de extinção da escravidão.
Ao executarmos esta pesquisa pudemos examinar, sob o ponto de vista
histórico-lingüístico, um período marcante para a sociedade brasileira que
antecedeu a abolição da escravatura. Entendemos que a análise de documentos
permite-nos observar pistas históricas e identitárias que se materializam
lingüisticamente. O fato de tomarmos a língua como prática social ofereceu-nos
condições de análise de elementos histórico-sociais.
Na metade do século XIX, a imprensa teve grande importância na
divulgação dos novos pensamentos e teorias sociais, políticas e econômicas,
sempre documentando os fatos e tornando-os mais compreensíveis a seus
leitores. Os textos Piparotes retratam atos de libertação dos negros antes da
abolição, manifestações pela abolição e discriminações sofridas por Cruz e Sousa
por sua condição de homem negro.
O apoio teórico-metodológico da Historiografia Lingüística, permitiu-nos
olhar os textos produzidos por Cruz e Sousa como um documento histórico aberto
à interpretação, além de possibilitar-nos entender que a língua não pode ser
93
tomada apenas sob a perspectiva de sua dimensão interna, mas faz-se necessário
olhá-la no contexto do clima de opinião da época em que o documento foi
produzido. O documento que analisamos concretiza e faz repercutir os direitos do
homem por meio da língua.
As informações e opiniões contidas nos Piparotes foram interpretadas de
forma interdisciplinar, uma vez que refletiam a língua em uso e a história do final
do século XIX, assim chegamos à conclusão de que os objetivos a que nos
propusemos foram alcançados, já que identificamos as práticas sócio-histórico-
políticas e os aspectos da língua em uso no Brasil àquela época.
O enfoque histórico-lingüístico contribuiu para que a língua em uso naquela
época, no Brasil, fosse compreendida em sua dimensão interna e externa, bem
como permitiu que fizéssemos um resgate da história, da política, da economia e
do social do Brasil e de Florianópolis, observando que o homem estabelece
relações com o meio em que vive por meio da língua.
Ao longo desta pesquisa, verificamos que os temas constantes dos
Piparotes eram as referências à libertação do homem negro e à discriminação
sofrida pelo jornal O Moleque, por ter como redator um homem negro.
Constatamos que os documentos analisados apresentam em sua
materialidade lingüística características do português em uso no Brasil, nos anos
finais do século XIX, tais como as oscilações ortográficas e a argumentação.
Os recortes dos textos de O Moléque confirmam, portanto, que a língua não
pode ser vista apenas sob o olhar de sua dimensão interna, mas faz-se necessário
olhá-la no contexto do clima de opinião da época em que foram produzidos, pois
refletem lingüisticamente à época em que foram escritos e a influências sofridas
por seu produtor.
Percebe que as manifestações pela libertação do homem negro eram
também uma concessão do homem branco e uma tentativa de salvar a economia
da época, já que o negro e a escravidão tinham deixado de ser fonte de renda.
Por fim, esperamos que os estudos empreendidos, nessa dissertação,
possam ter alcançado a meta a que se propôs, abrir novas perspectivas para a
continuidade desse tipo de pesquisa, a fim de que, por meio de estudos históricos
94
e historiográficos em língua portuguesa, possamos entender melhor a língua, a
sociedade, o homem e seus comportamentos sociais.
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