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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
EDUARDO CARDOSO BRAGA
FLUXO, CORPO E PERCEPÇÃO NA COMUNICAÇÃO DIGITAL
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
SÃO PAULO
2007
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
PUC-SP
EDUARDO CARDOSO BRAGA
FLUXO, CORPO E PERCEPÇÃO NA COMUNICAÇÃO DIGITAL
DOUTORADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
Tese apresentada à Banca Examinadora
da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, como exigência parcial para
obtenção do título de Doutor em
Comunicação e Semiótica sob a
orientação do Professor Doutor Rogério
da Costa Santos.
SÃO PAULO
2007
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Banca Examinadora
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Á lembrança de Antônio José Braga, meu pai.
Agradecimentos
Ao meu orientador Prof. Dr. Rogério da Costa Santos pela compreensão,
diretrizes e incentivo.
Aos Profs. Sérgio Bairon por apontar caminhos e Lucia Leão pelo incentivo.
A minha mãe pelo constante apoio e incentivo.
Ao Centro Universitário Senac Campus Santo Amaro e seu Reitor, Diretores e
Coordenadores pelo estímulo.
Aos Coordenadores e Professores colegas da Comunicação, Artes e Design do
Centro Universitário SENAC, em especial, Alécio Rossi Filho e Maria
Sílvia Queiroga Reis pela ajuda e permanente incentivo.
A todos que, direta ou indiretamente, colaboraram na execução deste trabalho.
Eduardo Cardoso Braga
Fluxo, Corpo e Percepção na Comunicação Digital
Palavras-chave: Interface, Design, Estética, Mídia, Computação, Teoria da Percepção,
Incorporação, Filosofia das Novas Mídias, Bergsonismo
Resumo
Existem diferentes modos de conceber a imagem na comunicação digital. Ao investigar
alguns discursos referentes à imagem digital, nos deparamos com algumas constantes: o
predomínio da visão (ocularcentrismo) e a ausência de referencial corporal
(desincorporação). A imagem digital é concebida como simulacro (Baudrillard), como
desincorporada (Kittler), ou fenômeno sem referência (Mitchell). Além disso, em
muitos dos discursos sobre a comunicação, se concebe um espaço homogêneo de
absoluta transparência, no qual não existem obstáculos, nem conflitos, nem diferenças
(Vattimo). Em nossa tese defendemos que as razões dessas marcas conceituais são as
noções de simulacro, oriundas do platonismo; de representação, oriundas do
cartesianismo; de transparência, oriundas do neoplatonismo. Investigamos essas
tradições conceituais principalmente no que concerne ao conceito de imagem e ao
estatuto epistemológico da percepção. Estabelecemos um nexo entre algumas
experiências visuais do passado e as novas possibilidades disponibilizadas pelas
tecnologias digitais. Procuramos então novas bases filosóficas que libertassem a
imagem de sua condição epistemológica inferior. A fenomenologia bergsoniana
forneceu os fundamentos para pensar a imagem digital e a percepção como fenômeno
incorporado, no qual o corpo tem um papel fundamental na significação e na construção
da subjetividade. Assim, novas dimensões corpóreas e subjetivas se anunciam e
apontam para novos modos de ser do homem. Corpo e subjetividade se relacionam nas
mídias digitais abrindo novos horizontes para se pensar a comunicação e o estatuto
epistemológico da imagem digital como possibilidade de conhecimento.
Eduardo Cardoso Braga
Flow, Body and Perception in Digital Communication
Keywords: Interface, Design, Aesthetic, Media, Computation, Perception Theory,
Embodiment, Philosophy for New Media, Bergsonism
Abstract
There are different ways of conceiving the image in the digital communication. When
investigating some discourses regarding the digital image, we came across some
constant: the prevalence of the vision (ocularcentrism) and the absence of body
reference (disembodiment). The digital image is conceived as simulacrum (Baudrillard),
as disembodiment (Kittler), or phenomenon without reference (Mitchell). Moreover, in
many of the discourses about communication, one conceives a homogeneous space of
absolute transparency, in which obstacles do not exist, either conflicts, or differences
(Vattimo). In our thesis we assert that the reasons of those conceptual marks are the
slight knowledge of simulacrum, deriving from the Platonism; of representation,
deriving from the Cartesianism; of transparency, deriving of the Neoplatonism. We
mainly investigate those conceptual traditions with respect to the concept of image and
the epistemic statute of the perception. We established a connection between some
visual experiences of the past and the new possibilities disposed by the digital
technologies. We then looked for new philosophical bases that could set the image free
from inferior epistemic condition. The Bergson’s phenomenology fed the thinking of
the digital image and the perception as embodiment phenomenon, in which the body has
a fundamental role in the significance and in the construction of the subjectivity. Thus,
new corporal and subjective dimensions announce themselves and show new ways of
man being. Body and subjectivity together in the relation to digital medium open new
horizons to think the communication and the epistemic statute of the digital image as a
knowledge possibility.
SUMÁRIO
Fluxo, Corpo e Percepção na Comunicação Digital
Introdução______________________________________________________9
Capítulo 1
A imagem e suas Vicissitudes
Os Discursos sobre a Imagem Digital_______________________________25
A crítica de Baudrillard: do Traço Verdade à Trama Simulação___________26
A crítica de Mitchell: O Digital como a Era Pós-fotográfica_______________31
Imagem Digital e o Pós-moderno: Poética da Montagem________________36
O digital como Desmaterialização e Desincorporação__________________39
O Mito da Comunicação Transparente______________________________49
Em Busca da Superação do Solipsismo com o Retorno às Coisas Mesmas_57
As imagens e o Pensamento_____________________________________64
A imagem como Simulacro: A Dicotomia Aparência e Essência__________68
A Desconstrução de Derrida como Questionamento da Representação____77
As Imagens Fantasmagóricas como Diferença_______________________81
Capítulo 2
Imagem: Ilusão, Realidade ou Afecção?
____________________94
Platão e o Simulacro____________________________________________95
Aristóteles e a Reabilitação da Cópia pelo Conceito de Verossímil_______113
Reverter o Platonismo segundo Gilles Deleuze______________________125
Ser ou não Ser: A Questão da Simulação Digital_____________________129
Descartes e a filosofia da representação____________________________145
Imagem e Afecção: Uma estética anti-representacional________________164
Capítulo 3
Imagem: Afecção Sensório-motora segundo a Fenomenologia
Bergsoniana
_______________________________________________189
Matéria e Memória: Uma Teoria Sensório-Motora da Percepção_________203
O Que Percebemos? __________________________________________214
A Percepção Segundo uma Perspectiva____________________________228
A Percepção Segundo uma Perspectiva Variável_____________________239
A Consciência e a Percepção____________________________________252
Considerações________________________________________________261
Capítulo 4
Fluxo de dados, corpo e percepção
A Imagem-Simulacro___________________________________________265
A Filosofia da Representação Cartesiana e o Desprezo pelo Corpo______275
A Percepção Incorporada Segundo Bergson________________________279
Arte e Filosofia Processual: a relação Homem e Mundo_______________293
Corpo e Imagem Digital________________________________________300
Espaço, Corpo e Percepção Tátil: a Dimensão Háptica do Espaço______304
Conclusão
________________________________________________326
Bibliografia
_______________________________________________334
Introdução
Fluxo, Corpo e Percepção na Comunicação Digital
Fluxo, Corpo e Percepção na Comunicação Digital
"Por isso será sempre fácil para uma certa filosofia,
dizíamos, localizar a idéia geral em uma das duas
extremidades, cristalizando-a em palavras ou
evaporando-as em lembranças, quando em realidade
ela consiste na marcha do espírito que vai de uma
extremidade a outra” (Bergson, Matéria e Memória).
Introdução
Começo meu discurso em primeira pessoa do singular, o que não é muito usual
em se tratando de um trabalho acadêmico. Assim procedo com o intuito de diferenciar
esses parágrafos iniciais, de natureza mais biográfica, dos que se seguem, mais afeitos à
dimensão acadêmica, nos quais a primeira pessoa do singular é substituída pela primeira
do plural. A regra acadêmica de substituição tem como objetivo minimizar
subjetividades, buscando possíveis consensos, famílias de pensamento, metodologias
científicas ou comunicação intersubjetiva.
Entretanto, esse começo é de natureza singular, biográfica; uma visada para
atingir o mais singular como princípio, que se recusa mesmo a universalizar-se. Enfim,
será um discurso em primeira pessoa
1
.
Meu trabalho profissional iniciou-se com o término do curso de artes plásticas e
as atividades de pintor e arte-educador, trabalhando principalmente em museus de arte.
Após uma relação com a arte conceitual dos anos 70, materializada em objetos,
1
Rubens Rodrigues Torres Filho diz o seguinte a respeito da diferença entre os discursos de primeira
pessoa do singular e de primeira do plural: “Mas nós quem? – perguntará com razão, o leitor. Este texto
foi escrito inicialmente para ser lido diante de um auditório (Departamento de Filosofia da USP, aula
inaugural no ano letivo de 1974); por isso pressupõe, formalmente, um locutor e ouvintes, solidários, de
certo modo, dentro de uma determinada situação cultural. De resto, em textos escritos, eu, pelo menos,
sempre que uso assim a primeira pessoa do plural, tenho a impressão incômoda de estar escamoteando
alguma coisa. Mas eu, quem? “ (Torres Filho 1987: 25).
9
inscrições, escrituras, instalações e principalmente performances, entrei nos anos 80
voltando para uma atividade básica de um artista plástico: a pintura. Nessa década, a
pintura apareceu como um espaço de reflexão sobre a própria pintura e sua história.
Transvanguarda foi o termo empregado para caracterizar essa arte. Buscava-se atualizar
por meio de citações, ou micronarrativas, eventos da história da arte. Com isso o
passado era interpretado, rememorado e sentido no presente. Essa atualização da
memória resultaria numa modificação do próprio passado, do presente e do futuro.
Hoje, considero isso como uma atividade digital, pois temos uma relação temporal, por
meio de forças virtuais, e uma reconstrução de um novo espaço-tempo, estimulado pela
presença do passado. Trata-se de viver a memória como diferença em vez de repetição.
Recordar é elaborar a recordação para não repeti-la (Deleuze 2006).
Após essa experiência, nos finais dos anos 80 comecei minha atividade de
design; inicialmente na área da impressão, design gráfico, e posteriormente no mundo
digital. Comecei com a revolução do CD-ROM, para, em seguida, mergulhar na Web.
Juntamente com estas atividades que poderíamos chamar de práticas, estudava
filosofia no curso de graduação da Universidade de São Paulo. Continuei meus estudos
numa pós-graduação e dissertação de mestrado na área da filosofia. Estudei o século
XVIII, o Iluminismo, em especial o pensamento de Jean-Jacques Rousseau. Portanto, há
muito tempo que habito o espaço do “entre dois”, entre a teoria e a prática. Sempre senti
necessidade de pensar as práticas de arte e design, levando-as a se relacionar com um
ambiente cultural mais amplo. Ir além de questões simplesmente técnicas ou estéticas.
Isto é, tentar compreender as questões técnicas e estéticas a partir de pressupostos que
estão além da técnica e da estética.
Pretendi levar esse projeto para um Doutorado, onde a filosofia e a atividade de
design digital teriam uma oportunidade de diálogo, construindo uma significação
10
mútua. Isso me conduziu a cruzar as fronteiras entre a teoria e a prática do design de
hipermídia.
É verdade que a arte e o design contemporâneos enfatizam o aspecto conceitual
dessas práticas. No campo da arte temos mesmo um movimento de arte contemporânea
conhecido como arte conceitual. Um dos principais artistas desse movimento, Joseph
Kosuth, escreveu um texto seminal: “Arte Depois da filosofia”, no qual propõe que a
arte se separe da estética e se torne uma proposição conceitual de cunho analítico:
“É necessário separar estética da arte (…) afirmar que arte é algo
semelhante a uma proposição analítica (…) As obras de arte são
proposições analíticas, isto é, se observadas dentro de seu contexto – como
arte – não veiculam quaisquer informações sobre outra coisa” (Kosuth
1975).
Segundo Kosuth, do ponto de vista analítico e lógico, a arte seria uma tautologia,
referindo-se eternamente a si mesma. Isto porque, antes de tudo, um objeto, uma idéia,
para ser arte, deve se propor como arte. Trata-se, evidentemente, de um nominalismo
radical e, por vezes, redutivo. Isso porque é impossível livrar a arte da dimensão
estética. Outras linhas e formas de arte conceitual, ao contrário, procuraram outras
perspectivas para a relação entre estética e arte
2
.
A arte conceitual também teve outras vias que conduziram a desmaterialização
da obra de arte. Tratava-se de uma desrealização da arte com o fim de uma crítica
radical da sua condição de mercadoria. Isto é, enquanto um objeto inextricavelmente
ligado a seu contexto econômico. O objetivo de uma tal crítica era livrar a arte de suas
limitações enquanto objeto de troca, considerado como o “cárcere da arte”. No
2
Notável a esse respeito é o trabalho de Gilles Deleuze sobre o pintor Francis Bacon (Deleuze 1981).
Deleuze procura pensar uma lógica para a sensação situada no particular, no imediato e no devir. Assim, a
estética ganha uma nova dimensão situada além do universal e do fundamento último da arte. Torna-se
efeito, capacidade de afetar, transformar a experiência nos conduzindo para a vertigem do devir. Teremos
oportunidade de, em nosso trabalho, aprofundar essa estética deleuziana.
11
movimento da desrealização ou desmaterialização do objeto, a arte procura uma
dimensão de pensamento, de conceito, abrindo as possibilidades da reflexão e da
filosofia. Entretanto, isso não impediu, de forma alguma, que esta arte também se
convertesse em um tipo de mercadoria. Na verdade, a mercadoria, longe de ser uma
questão material, é qualquer coisa que pode ser vendida ou ter um valor de troca. Nesse
sentido, o próprio dinheiro é uma mercadoria abstrata, que pode se converter em um
lucro, ou seja, mais dinheiro. Na lógica hegeliana, o que é posto se repõe. A lógica do
capital implica num movimento de transformar tudo em mercadoria para gerar novas
mercadorias que, por sua vez, devem gerar mais capital. Portanto, a mercadoria não é
algo essencialmente material, mas qualquer coisa que possa transformar-se em lucro.
Apesar do fracasso da arte conceitual em escapar da lógica da mercadoria, ela teve o
mérito de chamar a atenção para o valor do conceito. Hoje, o conhecimento tornou-se
um enorme valor, tanto de mercadoria como de poder. Mas o processo do
conhecimento, longe de se situar fora da vida e do corpo, se faz na dimensão do estar-
no-mundo por meio do corpo, com todo o “chão” de uma cultura. Como dizia
Schopenhauer ([1819] 2007), o filósofo não é uma cabeça alada de anjo fora do corpo,
mas, antes de tudo, um corpo no mundo.
Também, o design contemporâneo concebe seus fundamentos práticos como:
forma, cor, construção e conceito, usufruindo esse último fundamento de uma
importância cada vez maior.
Em termos de comunicação, o design contemporâneo pode ser dividido em duas
grandes linhas. A primeira concebe o design como um tipo de comunicação de natureza
poética, afetiva e retórica. A segunda o concebe como um processo de depuração com o
objetivo de eliminar o ruído, atingindo a máxima transparência da comunicação. Esta
última linha, ainda concebe a informação em termos de sujeito emissor, meio e sujeito
12
receptor. A informação em seu estado puro não contém ambigüidades. Cabe assim ao
design manter esse estado puro durante o processo da comunicação, eliminando os
possíveis ruídos que conspurcam o fenômeno comunicativo. O designer é o guardião da
objetividade e transparência da comunicação. Evidentemente, como analisaremos ao
longo desse trabalho, essa posição concebe a função do design como representacional
em um sistema de comunicação cujos pressupostos são os mesmos de toda a metafísica
ocidental. O que a primeira linha, que concebe o design com função poética, exatamente
critica.
O conceito para nós não deve ser entendido como representação, ou seja, uma
elaboração mental prévia, destinada a ser substituída pelo objeto ou projeto no qual ele
seria totalmente absorvido. Não se trata de semantizar os objetos ou o mundo. Ele deve
ser entendido como o medium histórico da linguagem por meio do qual nós
constituímos e compreendemos o mundo em que vivemos. Nesse sentido o conceito é
vivenciado não somente por quem o elabora, mas também por todos que o habitam. A
compreensão é ação no mundo. O conceito é a criação de um plano de imanência do
qual podemos emergir virtualidades que o tornam flexível, dinâmico. Toda
compreensão, inclusive a do leigo, não é a projeção de uma série de estímulos sensíveis
sobre a retina passiva de nosso corpo.
Esses estímulos se projetam sobre a pré-compreensão, que o habitante já carrega.
Essa matriz pré-compreensiva é constituída, entre outras coisas, pelos conceitos e pela
memória. Então, um conceito para ser compreendido deve se remeter a outros conceitos
já compreendidos, numa rede de relações. Não há percepção que não ative uma rede de
conceitos que procura dar sentido àquilo que é percebido. Isto ocorre mesmo diante de
um objeto que nunca havíamos percebido antes (Heidegger [1927] 1985).
13
Trata-se então de investigar as teorias perceptivas como fundamentos da
compreensão de como habitamos o mundo. Além de compreender como a percepção
opera nas tecnologias digitais.
Mas para isso é necessário percebermos como a imagem
3
digital captura, como
um jogo, o criador e o fruidor. Nesse jogo, o projeto revela sua verdade, o conceito
torna-se experiência vivida (Gadamer 1997). Enfim, cumpre observar como o conceito é
capaz de fazer dialogar os universos distintos de quem cria e de quem habita.
O conceito assim entendido recupera suas raízes etimológicas, pois ele deriva do
latim conceptum e significa tanto pensamento e idéia como fruto ou feto. Concipiere
engloba tanto o significado mais comum de gerar e conceber como as ações de reunir,
conter, recolher, absorver, fecundar, exprimir ou apreender espiritualmente alguma
coisa. Como no grego logos, no qual se radicarão, por exemplo, “leitura” (legere) e
“legume”, a atividade mental de conceber é metáfora da atividade agrícola de colher
algo que é oferecido pelo mundo e apropriado pelo espírito ou pela vida prática (Arendt
1972). Essa origem etimológica não é apenas uma abordagem erudita, mas aponta para
a ligação entre a teoria e a práxis, entre a linguagem e o mundo, entre o conceito e a
existência cotidiana, entre a atividade abstrata do pensamento e o nosso modo concreto
de estar, habitar e se relacionar com o mundo e outros seres que também o habitam. Não
existe a separação do universo mental em que se crê formularem-se os conceitos,
pensamentos e idéias e o universo prático em que desenvolvemos nossos hábitos e
cultura, ou seja, nossa forma de habitar o mundo.
Os limites entre arte e design, no caso das novas mídias digitais, tornam-se
imprecisos devido ao fato que:
3
Usamos o termo imagem no sentido empregado por Bergson em sua fenomenologia. Teremos
oportunidade de melhor explicitar tal termo ao longo de nosso trabalho. Por ora, podemos dizer que
imagem é entendida como fenômeno, ou seja, como aquilo que aparece. Então pode ser um som, um
texto, uma figura ou mesmo um odor.
14
“ (...) de um lado, muitos artistas ganham a vida trabalhando como designer
comercial; de outro lado, designers profissionais são aqueles que mais
desenvolvem a linguagem das novas mídias, engajando-se em
experimentações sistêmicas, criando novas possibilidades e convenções”
(Manovich 2001, 14).
Assim, por todo nosso trabalho esses termos estarão concebidos de forma
híbrida. Seguindo este caminho, decidimos pensar a imagem, ou ambiente digital, como
experiência amplificada de questões que a filosofia e o pensamento teórico em geral já
há muito vêm modelando. Relacionar filosofia e questões digitais, como a imagem
digital, também não é algo novo. Inúmeros são os autores que realizaram
conceitualmente esta relação. André Parente, de forma seminal, já afirmou, num
importante texto, que se trata:
“ (...) de mostrar que alguns de seus conceitos (dos filósofos) –
subjetividade (Michel Foucault), rizoma (Gilles Deleuze e Félix Guattari),
pós-moderno (Jean-François Lyotard), multitemporalidade (Michel Serres),
estética da desaparição (Jean Baudrillard e Paul Virilio), último veículo
(Paul Virilio), redes de transformação (Bruno Latour e Michel Callon),
heterotopia (Michel Foucault), pantopia (Michel Serres), ideografia
dinâmica (Pierre Lévy) – formam um campo conceitual que pode ser
utilizado para fundar uma verdadeira teoria das novas tecnologias como
rede de comunicação biopolítica” (Parente 2004, 92).
Além dessa longa lista de autores de língua francesa, também poderíamos
acrescentar, somente como exemplo, alguns autores brasileiros. Além do já citado
André Parente, temos os trabalhos de Sérgio Bairon, Rogério da Costa e Lucia
Santaella, para ficarmos no âmbito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo.
Sérgio Bairon no seu trabalho seminal Psicanálise e História da Cultura, realizado em
conjunto com Luís Carlos Petry, afirma:
“ (...) a fenomenologia heideggeriana, a hermenêutica gadameriana e as
filosofias da linguagem de Wittgenstein e Bakhtine, que têm como ponto
essencial e final as manifestações da linguagem, podem convergir na
direção de um sistema hipermidiático que, por sua vez, na contrapartida,
15
revele a essência da utilização das tecnologias digitais aplicadas as
regionalidades citadas acima (...)” (Bairon e Petry 2000, 21).
Para os autores, trata-se de compreender a hipermídia em suas potencialidades
epistemológicas, transformando-a numa forma de conhecimento. Assim, os autores
questionam o texto escrito como única e privilegiada forma de conhecimento no mundo
acadêmico. As expressividades digitais, das quais a hipermídia é a linguagem, podem
produzir conhecimento, gerando um sistema de signos que funcionam como diferença
para o texto acadêmico e seu método. Texto acadêmico e método científico formam um
todo; portanto, quando um é questionado o outro também o será. A hipermídia abre as
possibilidades então de pensar e questionar o conhecimento, seu método e suas formas
de validade, propondo uma nova relação com a compreensão, situada além da dualidade
sujeito-objeto da epistemologia tradicional.
Rogério da Costa emprega metodologias filosóficas, em especial as de Foucault
e Deleuze, para pensar o agora da comunicação digital como diferença de um passado e
possibilidade aberta de transformar o futuro (Costa 2003).
Lucia Santaella em muitos de seus textos e livros utiliza-se de conceitos
filosóficos operando-os de forma criteriosa com o objetivo de desvelar as principais
questões surgidas pela presença da comunicação digital. Ela se serve, especialmente,
das críticas filosóficas ao cartesianismo, para romper com um tipo de modernidade
universalista e identitária.
Santaella, em um artigo de 2004, afirma:
“A idéia de que a identidade possa ser consistentemente una sustenta-se
sobre uma noção de sujeito e subjetividade herdada do cartesianismo e que
vem sendo colocada em crise pela filosofia e pela psicanálise há pelo
menos um século [...]” (Santaella 2000, 45).
16
Cito esses autores apenas como exemplo das possibilidades de se fundamentar o
pensamento das mídias digitais pela filosofia. Muitos outros autores também poderiam
ser citados; tanto em língua nacional como internacional.
Minhas opções, hipótese de trabalho e escolhas filosóficas podem eventualmente
diferir dos autores citados acima. O que é importante ressaltar é a opção comum de
buscar uma dimensão conceitual para a tecnologia. Isso acarreta em concebê-la como
não sendo natural. Em outros termos, relacionar filosofia e experiência digital significa
situar a tecnologia longe de um campo naturalizado. A naturalização da tecnologia, do
homem, da cognição, do corpo, enfim das questões contemporâneas tem obstruído as
relações mais complexas entre essas questões e a política, o poder, a estética, o signo e o
simbólico em geral. Relacionar tecnologia e conceito é situar o problema tecnológico
longe de uma materialidade unicamente concebida como progresso ou perfectibilidade.
Os adeptos da noção de progresso na ciência pensam a tecnologia como sendo o
resultado histórico do encontro da técnica com a ciência. Nessa perspectiva, a ciência é
geralmente distinguida dos outros domínios da cultura humana pela sua natureza
progressiva, ou seja, a ciência progride epistemologicamente graças ao acúmulo de
saberes proporcionado pela sua história. Assim, diferentemente da arte, religião,
filosofia, moral e política, existe um claro critério normativo para identificar o progresso
e o avanço na ciência. Desse ponto de vista, argumenta-se que a aquisição e
sistematização do conhecimento positivo engendram o processo cumulativo e
progressivo do saber; cuja evidência é inquestionável na ciência e não o é nos outros
campos do saber.
Entretanto, esse ponto de vista vem sendo sistematicamente criticado pelas
perspectivas ditas pós-modernas e por aqueles que pensam a histórica não como coleção
de fatos progressivos, mas como rupturas e descontinuidades. Desde então, o conceito
17
de progresso na ciência não é mais um consenso. Os debates sobre o conceito normativo
de progresso estão relacionados com questões axiológicas sobre as metas e objetivos da
ciência. Assim, a filosofia da ciência teve como tarefa considerar respostas alternativas
para a questão: o que significa progresso na ciência? Esta questão conceitual se
complementa pela questão metodológica: como podemos reconhecer o progresso na
ciência?
A idéia de que a ciência é uma empresa coletiva de pesquisadores em sucessivas
gerações, na qual o conhecimento é adquirido e acumulado, é característica da
modernidade (Nisbet 1980). O empirismo – Francis Bacon – e o racionalismo – René
Descartes – clássicos argumentavam que o uso do método apropriado garantiria a
descoberta e justificação de novas verdades. Este ponto de vista epistemológico
cumulativo do progresso científico foi um importante ingrediente otimista do
Iluminismo no século XVIII. Lembramos que um dos pensamentos mais caros ao
Iluminismo é a crença de que o progresso da ciência engendra obrigatoriamente um
progresso nos costumes, na moral e na ética. Essa crença, por volta de 1830, foi
integralmente incorporada por Auguste Comte no seu programa positivista: pelo
acúmulo das verdades e certezas empíricas a ciência promove o progresso na sociedade.
Outra marcante influência para a teoria do progresso cumulativo foi a visão romântica
do desenvolvimento orgânico da cultura. A avaliação dinâmica empreendida tanto por
Hegel como pela teoria da evolução é exemplo de uma possível conseqüência para uma
visada progressiva a respeito do conhecimento. Todos esses pontos de vista observam o
conhecimento humano como um processo. Foi nessa senda que filósofos-cientistas,
interessados na história da ciência, se preocuparam em investigar os aspectos da
mudança científica. Como exemplo, basta citar: William Whewell, Ernst Mach e Pierre
Duhem.
18
Mais recentemente, alguns filósofos da ciência começaram a investigá-la de um
ponto de vista “diacrônico”, preocupando-se com a questão da mudança científica como
ruptura, e não continuidade progressiva em direção a um fim último que poderia ser: o
Bem supremo, a racionalidade dominante ou a Verdade. Um novo campo de debate se
abriu então, com contribuições de: K. Popper, T. Kuhn, Feyerabend, Lakatos, L.
Laudan, entre outros.
Enfim, em nosso trabalho pensamos a tecnologia como uma mediação que
influência as formas de dizer o mundo, de pensar o mundo e, portanto, de estar no
mundo. Assim, a ciência e sua relação com a tecnologia modelaram um mundo, cuja
experiência de habitá-lo produziu uma ruptura com um tipo de racionalidade clássica,
cartesiana ou moderna.
Quando investigamos alguns dos mais importantes discursos teóricos a respeito
do fenômeno digital, nos deparamos com algumas constantes que fundamentam esses
discursos. Cabe destacar duas delas: o ocularcentrismo e a desincorporação. No discurso
sobre o digital, esses conceitos, geralmente estão associados às metáforas da visão e da
luz, as quais engendram o tema da desincorporação. O processo de digitalização da
sociedade é geralmente acusado de eliminar o real e liquidar a referência, a verdade e a
objetividade. Essa crítica é uma constante no pensamento de Jean Baudrillard (1983 a:
2-4). William Mitchell também acredita que a imagem digital, a qual ele chama de “era
pós-fotográfica”, não pode garantir mais a nenhum tipo de verdade visual. Ele vai mais
longo ao afirmar que a imagem digital não possui nenhuma significação estável,
portanto nenhum valor estável (Mitchell 1992: 57). Para muitos autores
4
, a vasta rede
mundial na qual circulam as imagens digitais está silenciosamente construindo a si
mesma como um sujeito com um olho reconfigurado e descentrado (Mitchell 1992: 85).
4
Além de Mitchell, neste caso também podemos citar o importante trabalho de Jonathan Crary, o qual
contribui para uma visão desincorporada na relação com a imagem digital. (Crary 1992).
19
Como resultado, o olho humano se transforma pelas práticas nas quais as imagens não
possuem as referências de um observador “real” e com posições estáveis no mundo. A
construção e exibição de uma imagem digital envolve um complexo processo, no qual
ela pode passar por satélites, escâner, e toda uma plêiade de dispositivos que capturam e
processam a imagem enviando-a para outros dispositivos, no qual ela é analisada e
interpretada em termos de algoritmos e protocolos digitais. Evidencia-se nesse processo
uma visão maquínica, na qual a forma humana de observar é substituída, no mesmo
plano, por máquinas da visão. A conseqüência é inevitável, o processo de comunicação
na imagem digital prescinde do corpo. O processo de digitalização da sociedade, então,
evidencia uma desincorporação. O fundamento dessa visão é a conceituação da imagem
digital como representação do código binário. Trata-se de uma concepção de
informação oriunda das pesquisas de Shannon e Weaver (1963), nas quais a
comunicação, nada mais é do que uma transmissão de mensagens. A fonte coloca a
informação num transmissor que a leva para um canal, este sujeito a ruídos, por meio do
qual chega em um receptor que a repassa a um destinatário. Segundo Shannon e Weaver
este modelo não se restringe aos problemas técnicos da comunicação, uma vez que seria
aplicável também aos problemas semânticos e pragmáticos da comunicação. O conceito
de informação de Shannon e Weaver torna a comunicação um processo imaterial e
desincorporado.
Uma outra questão constante na teoria das mídias digitais é a obsessão por um
espaço transparente de pura luz, no qual não existe obstáculos nem conflitos, nem
diferenças. Herança das esferas de luz concebidas pelos neoplatônicos, a comunicação
no sistema de pura transparência encara o ruído como verdadeiro Mal metafísico e
moral e, portanto, não constitutivo do fenômeno comunicação.
20
Uma notável exceção é o trabalho de Lucia Leão (1999) que concebe o
ciberespaço como uma cartografia labiríntica. O labirinto é o lugar do jogo entre
encontrar e perder. Trata-se sempre de uma aposta e um risco. A comunicação possui
então este caráter de aposta, da presença do ruído como constitutivo da mensagem.
Lucia Leão chega mesma a uma estética do labirinto, transformando-o em uma potência
de afetar e ser afetado (Leão 2002). Outra interessantíssima exceção é o conceito de
mídia úmida (moismedia) de Roy Ascott (2006), no qual o corpo humano e os seres
artificiais convivem no mesmo habitat. Trata-se de uma troca entre o humano e o
eletrônico evidenciando o corpo e o biológico.
Em nossa tese, a desincorporação e a ênfase no aspecto ocular das mídias
digitais são conceitos restritivos diante das novas dimensões corpóreas e subjetivas que
a tecnologia digital manifesta. Para desenvolver essas possibilidades, sentimos
necessidade de investigar e criticar a presença de tradições conceituais em boa parte das
teorias e discursos sobre a era digital. Essa presença se manifesta nos conceitos de
simulacro e representação, oriundos respectivamente do platonismo e do cartesianismo.
Assim, pretendemos analisar essas tradições e relacioná-las com os discursos sobre a
imagem em geral. Estabelecemos então um nexo entre algumas experiências visuais do
passado e as novas possibilidades disponibilizadas pelas tecnologias digitais, com o
objetivo de questionar o ocularcentrismo e a desincorporação. Como nosso problema é
de fundamento, nosso enfoque é estético e epistemológico baseado nas questões da
percepção da imagem. A percepção e sensação na tradição platônica e cartesiana sempre
foram consideradas como fonte de erro e voltadas para a particularidade, ou
singularidade, não alcançando a dimensão geral do conceito. Para nós, essa é uma das
razões do predomínio da matriz textual como expressividade científica. A imagem
sempre guardou relações problemáticas com o conceito e a verdade. Sérgio Bairon
21
(2004) procurou mostrar a perda que a ciência teve quando se divorciou da estética. Ele
mostra como nas tecnologias digitais recentes uma nova expressividade científica vem
pouco a pouco se estabelecendo. De fato, libertar a imagem de sua condição
epistemológica inferior é também contribuir para o questionamento da matriz textual
como única expressividade científica.
Para alcançar nossos objetivos nos valemos de uma fundamentação filosófica na
fenomenologia bergsoniana, em especial o monumental primeiro capítulo de Matéria e
Memória, no qual Bergson estabelece uma teoria sensório-motora da percepção. Assim,
investigamos o homem como corpo e a tecnologia digital como mundo e não
representação de um mundo. O homem, no seu cotidiano imediato e mais geral, não é
um ser auto-suficiente em relação ao mundo; também não é um sujeito indiferente, que
recebe impressões perceptivas e, deste modo, reflete o mundo exterior em seu espírito.
Pelo contrário, ele age nesse mundo ativamente. Ao relacionar a percepção com a ação,
Bergson enfatiza a dimensão interativa própria de uma percepção sensório-motora.
Estamos então numa nova relação entre sujeito e objeto, na qual a percepção é um
processo ligado eminentemente ao corpo. No fluxo dos dados, o corpo recorta e
significa por meio da percepção.
As análises de Deleuze sobre a percepção em Bergson, nos forneceu o caminho
para pensar uma estética anti-representacional, na qual a imagem não é compreendida
como representação, mas como momento no qual as forças se tornam visíveis. Enfim, a
teoria da percepção de Bergson nos forneceu os argumentos para questionar a tradição
que pensa o digital como desincorporação e, ao mesmo tempo, nos deu o alimento para
construir uma concepção de percepção que devolve ao corpo seu papel de centro de
indeterminação. Assim, recuperamos o estatuto epistemológico da imagem e
concebemos o pensamento como continuidade da ação.
22
Nosso trabalho não pretende estabelecer verdades absolutas, grandes rupturas,
criação de novos paradigmas, mas apenas tenta estabelecer um vínculo entre uma teoria
da percepção de base filosófica e as imagens produzidas, veiculadas e experimentadas
pela tecnologia digital. Sem dúvida, a crescente utilização das mídias digitais vem
colaborando para o surgimento de uma nova tendência que questiona os valores
estéticos anteriores e abre as possibilidades de pensar o corpo como centro de
indeterminação e criação de subjetividade.
Nossa exposição, ao longo desse trabalho, procurou uma expressividade
orgânica em vez de uma rígida seqüência linear na qual os elementos são arranjados por
subordinação. Trata-se daquilo que os gramáticos chamam de parataxe ou coordenação.
É a construção em que os termos se ordenam numa seqüência e não ficam conjugados
num sintagma. Na coordenação, cada termo vale por si e a sua soma dá a significação
global em que as significações dos termos constituintes entram ordenadamente lado a
lado (Câmara Júnior 1974: 127). A parataxe opõe-se portanto à hipotaxe, já que nesta as
relações entre os termos são de subordinação ou dependência. Em um desenvolvimento
lógico do tipo causa – conseqüência, por exemplo, os termos são encadeados
hipotaticamente. Enfim, nosso desenvolvimento em capítulos não obedece uma lógica
do tipo causa – conseqüência, ou por subordinação, mas por unidades que giram em
torno de idéias forças num movimento orgânico de pensamento. A forma paratática está
intimamente ligada ao próprio conteúdo das idéias apresentadas. Ela é condicionada
objetivamente pela preocupação de não violentar, por uma estrutura preestabelecida, o
que há de mais essencial num pensamento fluxo cujo objeto também é fluxo, devir.
23
Capítulo 1
A imagem e suas Vicissitudes
A imagem e suas Vicissitudes
Pensamos que sabermos ver. As obras de arte,
contudo, não deixam de nos mostrar o quanto somos
cegos” (Jean-François Lyotard).
Os Discursos sobre a Imagem Digital
Nosso objetivo é devolver ao corpo sua importância no processo perceptivo da
imagem digital. Porém, antes de fazê-lo, é necessário analisar as teorias que enfocam o
processo da comunicação digital como essencialmente desincorporado. De fato, quando
observamos a bibliografia sobre as novas mídias produzidas nas últimas décadas, nos
deparamos principalmente com dois conceito que se complementam. São eles: o
predomínio do sentido da visão – ocularcentrismo – e a desincorporação – a informação
desmaterializada. A desmaterialização atinge o próprio corpo humano, que num
processo de hibridização com o digital (pós-humano) sofre o efeito da desincorporação,
mesmo em seus processos perceptivos. A complementaridade conceitual do predomínio
da visão com processos de desmaterialização num ambiente digital ubíquo e pervasivo
ocorre em múltiplas metáforas nas quais a presença da luz engendra a desmaterialização
e mesmo a desincorporação. Essa presença digital em nosso mundo tem sido acusada de
se rivalizar com o real, subtraindo-o, liquidando com valores epistemológicos como
referência, verdade e objetividade. Para tanto, basta citar Baudrillard, que para criticar a
sociedade informatizada, se utiliza de argumentos de natureza epistemológica e ética.
25
A crítica de Baudrillard: do Traço Verdade à Trama Simulação
Segundo Baudrillard (1998), as velhas teses subjacentes à sociedade de consumo
eram baseadas e pressupunham um investimento libidinal nos objetos, o qual
engendrava desejos de posse e de status social. Isto implicava, de alguma maneira, a
distinção conceitual entre o exterior e o interior, entre o espaço público e o espaço
privado. Entretanto, estas teses estão hoje totalmente ultrapassadas. Sob o implacável
mundo luminoso da sociedade informatizada, não há mais cena, a qual implica nas
distinções descritas acima (público/privado). Agora, a realidade tornou-se, literalmente,
obscena, pois tudo é transparência, visibilidade imediata, predomínio do
ocularcentrismo, o qual exclui a dimensão da interioridade. Esse puro exterior engendra
uma realidade que não é mais pensada ou sentida, mas produzida ou simulada.
Baudrillard argumenta que a realidade, no mundo digital, se tornou simulação, ou seja,
signos sem nenhum referente, porque o real e o imaginário foram absorvidos no
simbólico. A hiper-realidade seria o estágio último da simulação, na qual um signo ou
imagem não tem mais nenhuma relação com nenhum tipo de realidade, mas é “seu puro
e próprio simulacro” (Baudrillard [1981] 1994: 6). Assim, o real tornou-se um efeito
operacional do processo simbólico. Agora as imagens são codificadas e geradas
tecnologicamente, antes mesmo que possamos percebê-las. Entre o manifesto percebido
– a percepção das imagens – e a matriz codificada, existe um hiato, uma perda de
referência. Isto significa que a mediação tecnológica tem usurpado o papel produtivo do
sujeito kantiano, ou seja, o “local” de uma original síntese de conceitos, idéias e
intuições. É a mesma usurpação, segundo Baudrillard, que o capital realiza em relação
ao trabalhador ou o inconsciente freudiano em relação aos mecanismos de repressão e
desejo. Agora, os signos são trocados por eles mesmos, num processo matricial, não
26
mais num intercurso com a realidade. Nesse sistema, produção significa signos
produzindo outros signos (Baudrillard [1981] 1994: 23). O sistema simbólico de troca
não mais se refere ao real, torna-se “hibernal”, ou seja, auto-referente. Temos então, de
um lado o real que é “aquilo do qual é possível providenciar uma reprodução
equivalente” e o hiper-real que é “aquilo que é sempre já reproduzido”. O hiper-real é
um sistema de simulação eternamente simulando a si mesmo (Baudrillard [1981]
1994:73).
Baudrillard afirma que o simulacro e a simulação cada vez mais ocupam um
papel de importância em nossa sociedade de consumo. Mais especificamente, ele define
três períodos históricos nos quais prevaleceram certas ordens específicas de simulação.
O primeiro, na Renascença ou período clássico, no qual se desenvolveu a capacidade de
reprodução técnica dos objetos. O segundo, na era industrial, na qual os objetos foram
produzidos em larga escala. O terceiro, na era pós-industrial, na qual apareceu a
reprodução dos signos e a simulação de natureza digital. Por isso mesmo, esse último
período é caracterizado pelo fenômeno da hiper-realidade, no qual os signos que
circulam na sociedade perderam sua comum medida com a realidade. Baudrillard
descreve essa hiper-realidade que, segundo ele, caracteriza muitos aspectos da
sociedade americana e espalha-se pelo mundo graças a potência de sua matriz. Por
exemplo, ele descreve o papel fundamental da empresa Disney na produção e
reprodução da hiper-realidade americana:
“Disneylândia é o modelo perfeito de todas as ordens de simulação […] A
Disneylândia existe para esconder o fato de que não existe o “verdadeiro”
país. Disneylândia se apresenta como imaginário para nos fazer acreditar
que o resto do país é verdadeiro, quando de fato, toda Los Angeles e toda a
América que cerca a Disneylândia não é verdadeira, mas é da ordem da
hiper-realidade e da simulação” (Baudrillard [1981] 1994: 85).
Baudrillard se apropria da divisão marxista da mercadoria como valor de uso e
como valor de troca, aplicando-a ao signo (Baudrillard [1972] 1987). Segundo ele, essa
27
divisão marxista foi retomada por Saussure na divisão do signo em significante e
significado. A troca dos signos lingüísticos, incluindo os culturais, no circuito do
sentido segue o modelo das trocas mercadológicas na circulação dos capitais. Ao caráter
intercambiável de toda mercadoria corresponde ao da troca de todo signo. Nessa
capacidade referencial total e nessa intercambialidade, nessa combinatória e nessa
simulação geral, os significantes tornam-se valores de troca e os significados valores de
uso. Desta forma, os significantes, livres e flutuantes, correspondem a intercambialidade
total e abstrata das mercadorias do capitalismo. Essa visão de Baudrillard teve
implicações na crítica da arte, pois esta visão mercantil do signo conduz a uma
identificação do objeto artístico ao objeto mercadoria, reduzindo-o assim a seu valor de
troca. Por conseguinte, a arte hoje se apresenta como sintoma de uma situação que a
transcende. Da era da criação de obras de arte, passamos para a era da produção,
culminando na era da manipulação dos signos culturais, ou seja, de valores equivalentes
e intercambiáveis.
Na era da simulação, o que preexiste ao signo não é mais o objeto, mas o
modelo, ou seja, uma série de números na memória de um computador. Um novo
universo virtual substitui o real. A memória e o monitor do computador criaram uma
nova transparência do real. Vivemos, agora, no imaginário do espelho, na duplicação da
cena, na alteridade e alienação (Baudrillard [1981] 1994).
As máquinas tradicionais, como a câmera fotográfica, estão fundadas sobre o
conceito do traço. Para que a imagem se constitua, é necessário que o objeto
preexistente envie, na direção do suporte sensível, a luz que o toca e sensibiliza. A
imagem ótica sempre nos envia a um real; a um real totalmente atualizado, cumprido,
literalmente cristalizado no grão da película ou na orientação das partículas das fitas
eletromagnéticas. A noção de representação – de um presente reatualizado pela imagem
28
– traduz fielmente o mundo da figuração próprio a tecnologia fotográfica. Toda nossa
cultura se alimentou disso, desde a Renascença, nossas artes aí estão enraizadas
(Baudrillard [1981] 1994: 167).
Já, segundo Baudrillard, quando analisamos as imagens digitais não
encontramos o traço característico da imagem fotográfica ou do desenho-pintura, mas
encontramos agora uma trama. O mundo da simulação não fornece a visão de um traço
ótico – o registro de alguma coisa fugidia, que foi e não é mais –, mas um modelo
lógico-matemático. Assim, assiste-se a uma mudança das relações entre o real e a
imagem. A nova imagem ultrapassa a aparência do real para animar sua fonte. O traço,
característico da fotografia, é substituído pela trama (matriz). O real torna-se significado
para inumeráveis variações. Um ambiente simulado possui todas as propriedades do
mundo real. Exceção, entretanto, a propriedade mais fundamental: falta a presença
física. Na simulação não existe matéria palpável. Os objetos de um mundo simulado
podem ser quebrados, reconstruídos, observados de todos os lados, modificados, etc.,
mas eles não podem ser tocados em sua carne. Eles existem objetivamente, mas não
estão situados no mundo natural. A materialidade do mundo real foi substituída por uma
matéria relativa, diferente, reorganizada pelos jogos combinatórios, sem memória, sem
passado e sem futuro. Possuem uma existência virtual ilimitada, infinitamente
manipulada e, paradoxalmente, totalmente ausente. Esta nova instabilidade do real
ultrapassa em muito a crise contemporânea da representação. Na experiência da imagem
digital, o efeito de desrealização amplifica o instantâneo, o imediato, o fragmentado
(Baudrillard [1981] 1994: 79 e Rodrigues 2003: 60). O signo está impactado pela
desterritorialização e pela destemporalização (Castells 1999: 26). A experiência da
imediaticidade é a do eterno presente, a de que tudo pode estar contido num instante.
Nessa experiência, segundo Baudrillard, todo acontecimento, na era digital, se dá em
29
tempo real, o qual se torna o parâmetro para as crenças. Dessa forma, os acontecimentos
não são mais valorados pelas possibilidades da verdade e falsidade, mas pela presença
em tempo real. A realidade sucumbiu à simulação e ao artifício. Baudrillard critica o
“tempo real” do mundo digital por considerá-lo como presentificação produzida e
geradora da idéia de que tudo é num instante.
Recapitulemos as principais linhas do pensamento crítico de Baudrillard, em
relação à imagem digital:
(1) O digital como a perda da referência. A trama substituiu o traço.
(2) O digital como simulação e a conseqüente desmaterialização e
desincorporação substituindo a presença física por signos sem
referência.
(3) O digital cria o “tempo real”, processo perceptivo que se dá totalmente na
imediaticidade, destruindo a memória e substituindo o conceito de
verdade por uma experiência intensa de um simples momento. O
singular não pode então ser subsumido pelo geral, pelo conceito,
conseqüentemente vivemos na imediaticidade sem atingir um
conceito.
Diferentemente das tecnologias analógicas como a fotografia, a qual adere à
realidade pela virtude de seu modo de produção, imagens digitais são construídas por
camadas de algoritmos computacionais processados sem nenhum traço da qualidade do
material mimético do filme como se dá na fotografia ou na televisão analógica. A
imagem digital é uma matriz de números, uma grade de células capazes de serem
armazenadas na memória do computador e com a possibilidade de ser transmitida
eletronicamente e interpretada por um determinado dispositivo, como um monitor de
computador, uma impressora, dispositivos de luz e etc.
30
Em suma, a imagem digital, segundo Baudrillard, é a perda de toda referência
possível, com todas as conseqüências de natureza epistemológica e ética que essa perda
acarreta.
Um outro autor cujas críticas cruzam epistemologia e ética é William Mitchell,
especialmente em seu trabalho The Reconfigured Eye: Visual Truth in The Post-
Photographic Era (Mitchell 1992). Mitchell também procede uma crítica à imagem
digital e seu estatuto epistemológico e ético.
A crítica de Mitchell: O Digital como a Era Pós-fotográfica
William J. Mitchell, professor de Arquitetura e Artes no MIT, escreveu um livro
de muito impacto que se tornou bibliografia básica de muitos cursos de graduação e
pós-graduação na área da comunicação digital. Ele desenvolveu uma comparação entre
a imagem digital e a imagem fotográfica concluindo que estamos numa era pós-
fotográfica, termo que acabou ganhando notoriedade.
“Podemos identificar certos momentos históricos, nos quais repentinamente
se cristaliza uma nova tecnologia tais como: pintura, gravura, fotografia,
computador. Estas novas tecnologias são nucleares e proporcionam novas
práticas sociais e culturais, marcando o início de uma nova era de
exploração artística. O fim da década de 1830 – o momento de Daguerre e
Fox Talbot – foi um desses. O início dos anos 90 será lembrado como um
outro – o tempo no qual o processamento digital da imagem começa a
suplantar a imagem fixada por emulsão fotográfica” (Mitchell 1992: 20).
A era pós-fotográfica, segundo Mitchell, se apresenta como a possibilidade de
novas práticas sociais, culturais e artísticas. Porém, se essas práticas têm o atrativo do
31
novo, não deixam de ser problemáticas do ponto de vista epistemológico, ético e moral
(Mitchell 1992).
Segundo Mitchell, hoje a idéia de veracidade fotográfica sofre radicais
mudanças devido a emergência da tecnologia de manipulação e síntese digitais da
imagem. Fotografias podem ser agora manipuladas de tal forma, que sua distinção das
não manipuladas se torna quase impossível. A capacidade de criação fotorrealista dos
softwares digitais, tais como o Photoshop, confunde real e simulação numa indistinta
percepção, tornando a referência dispensável. Mitchell (1992) em seu livro The
Reconfigured Eye providencia uma sistemática análise crítica dessa situação provocada
pela revolução digital. Ele investiga essa tecnologia em seus detalhes, explorando
algumas conseqüências epistemológicas, éticas e estéticas, desencadeadas pelo
desenvolvimento deste tipo de imagem.
A investigação de Mitchell da imagem digital se dá na sua comparação com a
imagem fotográfica que a precedeu, a qual “está fundamentada nas características
físicas que engendra conseqüências de caráter lógico e cultural” (Mitchell 1992: 4).
Em outros termos, a diferença física entre a imagem fotográfica e a imagem
digital engendra também diferenças perceptivas e culturais entre as duas formas de
imagens.
Qual o fundamento desta diferença? Mitchell para responder a esta questão
concentra-se exclusivamente nos princípios abstratos da imagem digital, tornando assim
essa diferença uma enorme diferença
1
.
1
Para Manovich, embora em termos abstratos Mitchell tenha razão, a análise dos usos das duas
tecnologias evidencia que a diferença na verdade não existe. Mitchell, para demonstrar essa diferença, se
apoiará em análises que Manovich irá questionar, como veremos mais adiante. É uma situação paradoxal,
pois, se no geral a diferença existe, no uso particular ela desaparece. Por isso mesmo, Manovich (1995)
intitula seu artigo “Os paradoxos da fotografia digital”.
32
A primeira alegada diferença entre fotografia e imagem digital, segundo
Mitchell (1992), concerne à relação entre o original e a cópia nas duas tecnologias, ou
seja, tecnologia analógica (fotografia), digital (imagem digital).
“A continuidade espacial e a variação tonal das imagens analógicas não são
exatamente replicáveis, então essas imagens não podem ser transmitidas ou
copiadas sem degradação de seu original […] Mas os estados discretos da
tecnologia digital podem ser replicados de forma precisa, então uma
imagem digital que é a centésima de um original é indistinguível em
qualidade de seu progenitor” (Mitchell 1992: 5).
Por conseguinte, numa cultura visual de característica digital: “uma imagem ou
arquivo pode ser copiado indefinidamente. A cópia é indistinguível de seu original pelo
fato de não haver perda de qualidade no processo de copiar”
2
(Mitchell 1992: 49).
O segundo aspecto, apontado por Mitchell (1992), para a diferença entre
fotografia e imagem digital concerne ao valor da informação contido numa imagem.
Mitchell resume esta questão da seguinte forma:
“Existe um indefinido valor de informação numa fotografia de tom-
contínuo. Então quando ampliamos essa fotografia, revelamos mais
detalhes e, ao mesmo tempo, produzimos uma imagem frisada e granulada
[…] Uma imagem digital, de outro lado, tem uma precisa resolução
espacial e tonal, contendo um valor fixo de informação” (Mitchell 1992: 6).
De fato, uma imagem digital consiste num número finito de pixels que ocupam
uma posição determinada numa matriz. Cada um deles possui uma cor distinta ou um
valor tonal distinto. A qualidade de uma imagem dependerá da quantidade de pixels da
2
Manovich concorda com Mitchell em teoria, porém ele observa que nas atuais práticas digitais a perda
de qualidade é uma constante. Essa perda existe em tal intensidade que chega mesmo a ser maior que no
período fotográfico analógico anterior. O fluxo de trabalho que envolve a produção e distribuição de
imagens digitais exigem o processo de compressão das mesmas. Essa compressão se faz com perdas de
informação, ou seja, perda de qualidade da imagem. Um exemplo claro disso é a veiculação da imagem
na rede web, na qual se utilizam os formatos de arquivos (“jpeg”, “gif”, “png”, etc.) que comprimem a
imagem com intensa perda de informação. Além disso a circulação acaba gerando compressão sob
compressão, processo que redunda numa intensa perda de qualidade que faz aparecer o que tecnicamente
chamamos de “artefatos”, que são ruídos intensos, degradadores da imagem.
33
mesma, bem como da possibilidade de cada um deles exibir um maior número de cores.
A capacidade de detalhamento é diretamente correspondente a quantidade de pixels,
porém absolutamente determinado para cada um dos pixels.
O terceiro aspecto, apontado por Mitchell (1992), para a diferença entre
fotografia e imagem digital, concerne à mutabilidade inerente à imagem digital. Em
essência, a imagem digital pode ser sempre manipulada. Mitchell entende que existe
uma prática “normal” da fotografia, engendrada por uma questão perceptiva e um uso
cultural. Segundo ele, quando olhamos uma fotografia, sempre esperamos que ela é uma
representação de algo que existe ou existiu no mundo. Já a imagem digital, por seu
potencial manipulável, guarda uma distância em relação ao seu referente, tornando-se
inerentemente mutável:
“A característica essencial da informação digital é o fato dela ser
manipulável de forma fácil e rápida pelo computador. Para tanto, basta
substituir dígitos por outros dígitos […] As ferramentas computacionais,
com seu poder de alterar, combinar e recriar, tornaram-se essenciais para os
artistas digitais, como os pincéis e os pigmentos os são para os pintores”
(Mitchell 1992: 7).
Temos então duas formas culturalmente diferentes de perceber as imagens. De
um lado, as imagens digitais que não guardam nenhum traço referencial, sendo
manipuláveis e, consequentemente, mutáveis. De outro lado, as fotografias que são
“confortavelmente observadas como sendo geradas de forma causal, veiculando
descrições verdadeiras sobre as coisas e o mundo real” (Mitchell 1992: 225).
Na verdade estamos diante de uma distinção de natureza ontológica: “real e
imaginário”, na qual a expressão do real está reservada para a fotografia, e a expressão
do imaginário reservada para a imagem digital. Segundo Mitchell, numa imagem
digital, a relação essencial entre significar e significado é algo incerto, já que nela a
referência não é mais possível.
34
De fato, Mitchell identifica a tradição pictórica do realismo como a essência da
tecnologia fotográfica e a tradição moderna da montagem e da colagem como a essência
da imagem digital. Assim, o trabalho fotográfico de Robert Weston e Ansel Adams, a
pintura realista do século XIX e XX e a pintura do renascimento italiano tornam-se os
paradigmas da imagem fotográfica. Já as montagens do construtivismo e futurismo, o
imaginário da propaganda contemporânea e a pintura germânica do século XVII, com
seu aspecto de montagem e sua ênfase no detalhe em detrimento do todo, tornaram-se
os paradigmas da imagem digital. Em outros termos, o que Mitchell toma como a
essência da tecnologia fotográfica e da imagem digital são duas tradições da cultura
visual.
A imagem digital é uma matriz de números, uma grade de células capazes de
serem armazenadas na memória do computador, transmitidas eletronicamente e
interpretadas por dispositivos que transformam a matriz numa imagem. Mitchell afirma
então que “imagens da era pós-fotográfica não podem ser garantida como verdade
visual – ou mesmo significar algum tipo de sentido ou valor estável” (Mitchell 1992:
57). Trata-se então de uma crise epistemológica da verdade, já que as imagens digitais
não podem ser submetidas a testes de falsidade, pois não possuem nenhum tipo de
referente, somente a auto-referência. Assim, o conceito de verdade torna-se inoperante
diante da imagem digital.
Podemos estabelecer algumas semelhanças entre a análise de Mitchell da
imagem digital e algumas posturas contemporâneas, catalogadas como pós-modernas.
Especialmente quando se trata da questão da verdade. Por exemplo, segundo Vattimo
(1991), em sua interpretação de Nietzsche, no mundo da comunicação contemporânea
estamos diante de “somente interpretações, os fatos não mais existem”. Assim, somente
nos resta a prática de uma “hermenêutica da negatividade”.
35
A oposição modernismo e pós-modernismo têm um importante papel na
interpretação de Manovich do trabalho de arte digital.
Imagem Digital e o Pós-moderno: Poética da Montagem
Em seu livro The Language of New Media, Lev Manovich (2001) sustenta que a
utilização de estilos do passado e reutilização de material já produzido nos processos de
criação e produção digital são resultados da cultura pós-moderna. Ele afirma que:
“A perpétua reciclagem e citações presentes nos conteúdos da pós-mídia,
juntamente com a combinação de diferentes estilos artísticos do passado
tornaram-se o novo ‘estilo internacional’ e a nova lógica da sociedade
contemporânea. Assim, as novas mídias reelaboram e recombinam os
materiais midiáticos já acumulados pela história, ao invés de simplesmente
reunir mídias que introduzem novos materiais” (Manovich 2001: 131).
Assim, as novas mídias têm essencialmente uma vocação auto-referente,
metacriação, ao invés de referir-se a um mundo exterior. A criação torna-se questão de
reelaborar e recombinar as criações acumuladas pela história. Trata-se do que Manovich
chama de “lógica-do-copiar-e-colar”.
Entretanto, esse tipo de recombinação difere da montagem moderna, pois nesta
última os elementos isolados ainda conservam uma certa independência. Já a
combinação pós-moderna resulta num todo que apresenta superfícies suaves tendendo
mais para o orgânico (Manovich 2001: 132).
Segundo Manovich as duas principais operações da cultura pós-moderna e dos
processos de criação nas novas mídias são a seleção e a combinação. Seleciona-se
36
conteúdos, estilos, objetos e elementos no “banco de dados da cultura”, para, em
seguida, recombinar essas seleções em novos objetos (Manovich 2001: 141-142).
Existe assim um importante papel desempenhado pela montagem na criação das
novas mídias. Entretanto, a montagem digital não se apoia mais nas técnicas do
modernismo do início do século XX, as quais pretendiam criar um espaço unificado,
privilegiando o uso da montagem temporal. Considerando que a montagem
eisensteiniana explora a relação dos objetos numa dimensão temporal como meio de
comunicar um sentido de lugar, a poética das novas mídias se utiliza, para alinhar
objetos, não somente a dimensão temporal, mas também o espaço bidimensional.
Privilegia-se a composição mais que a montagem. Com a extensão de possibilidades de
seqüenciar e organizar, o temporal perde seu status de dimensão privilegiada na edição
da imagem, enquanto o ganho espacial toma primazia como meio de criação de uma
mágica, fascinante e ilusória realidade. Trata-se da organização em forma de camadas,
característica marcante da forma de produzir imagens digitais.
Assim, resumidamente, Manovich aponta cinco princípios que caracterizam a
essência das novas mídias:
1. Todo objeto ou criação das novas mídias é composto de código digital.
2. Os objetos das mídias são modulares. Eles são uma coleção de elementos
discretos juntados para construir objetos mais complexos.
3. Modularidade e digitalização engendram a automação de muitas funções
envolvidas na criação das mídias.
4. Toda nova mídia tem o potencial de ser mudada e transformada, ela não é
estática e sim variável. Conseqüente a isso, os objetos das novas mídias
estão intimamente relacionados com “bancos de dados”.
37
5. Os objetos das novas mídias podem ser transcodificados, isto é, seu formato é
líquido para atender diferentes dispositivos, diferentes tamanhos de telas,
diferentes sistemas operacionais e diferentes mídias.
Assim, não podemos deixar de notar que ao investigar os processos poéticos das
novas mídias, Manovich encontra algumas das características da cultura pós-moderna,
especialmente a multiplicação dos signos, a criação de espaços auto-referentes, a
multiplicação das mídias e sua base comum feita pela codificação e modularidade
(Manovich 2001: 197). No caso das análises de Manovich cabe ressaltar que, se a
imagem digital possui algumas características pós-modernas, esse pós-modernismo não
está em ruptura com a modernidade, já que o processo de criação da imagem digital se
desenvolve a partir de práticas existentes no modernismo. Além disso, Manovich não se
situa exatamente na linha crítica à imagem digital. Se trazemos aqui suas análises é com
o intuito de melhor compreender seu processo criativo, além de alinhar um autor que
pensa a imagem digital num contexto estético pós-moderno, sem entendê-lo como
ruptura da modernidade. Também trazemos Manovich para nosso espaço dialógico com
o objetivo de levantar uma questão, importante para nosso trabalho. Não existiria algo
novo, fundamental e característico da imagem digital? Iremos retomar esta pergunta no
quarto capítulo de nosso trabalho. Por ora, aprofundemos as análises anteriores,
acrescentando algumas novas, para melhor caracterizar o discurso que desmaterializa e
desincorpora a imagem digital.
38
O digital como Desmaterialização e Desincorporação
Segundo algumas crenças teóricas, a digitalização do mundo o desmaterializou.
Há uma profunda alteração perceptiva que indicia alterações nos regimes da
subjetividade e da epistemologia. O evento digital alterou a constituição da
subjetividade do observador e mesmo a sua completa desmaterialização. Acredita-se
que a era digital, incentivada pelas instituições militar, médica, científica e midiática,
transformará a sociedade e desenvolverá novas crenças. Segundo Mitchell: “Uma vasta
rede mundial de sistemas de imagens digitais está rapidamente, silenciosamente, se
constituindo como um olho reconfigurado, descentrado e subjetivo” (Mitchell 1992:
85).
Os sistemas digitais, assim, estariam construindo imagens e práticas visuais que
negligenciam explicitamente qualquer referência a posição de um observador “real”,
situado empiricamente e oticamente percebendo o mundo. Pelo fato das imagens
digitais poderem se referir a qualquer coisa em seus milhões de bits de dados
matemáticos, a possibilidade deles representarem alguma coisa de sólido e estável
parece não existir mais. Também, pelo fato da visualidade agora ter a capacidade de ser
aumentada (realidade aumentada
3
) e manipulada, situando-se num território de natureza
cibernético, no qual os elementos visuais se tornam abstratos e lingüísticos, engendrou a
crença na total desincorporação desse olhar digital. Assim, a presença de um observador
corporificado parece que foi eliminada no processo de digitalização da sociedade.
Os processos de criação e interpretação das imagens tornaram-se fluidos e
tecnológicos, dispensando a presença de um observador, de uma testemunha ocular. As
3
Realidade aumentada, ou augmented reality, é basicamente a imagem real com uma camada de
sobreposição (gráfica) virtual, ou seja, a visão real (através de um display) com uma camada a mais. É
uma área de estudos da realidade virtual. Enfim, trata-se de uma investigação digital da realidade,
aumentado-a e, para muitos, transfigurando-a.
39
imagens não tem mais relações com eventos e fatos, elas tornaram-se eventos e fatos de
natureza instantânea e variável.
A visão tecnocrática pressupõe um ambiente de máquinas em interação junto
com sistemas de interação homem-máquina. Assim, ela cria um campo onde o trabalho
da percepção é o de decodificar as imagens produzidas por essas máquinas,
consequentemente, a legibilidade ou verdade dessas imagens estão intimamente
conectadas com as máquinas que as engendraram.
Em seu livro Cibermundo a política do pior, Paul Virilio (2001) denuncia as
relações entre a velocidade e o poder político evocando a noção tecnológica de “tempo-
real” cujas conseqüências seriam perigosas e tirânicas. Ele investiga como uma cidade
urbana pode sofrer os condicionamentos provocados pelas mídias e como a tecnologia
que se tornou midiática pode destruir o espaço real em proveito de “um tempo real”,
provocando um sentimento de perda corporal. O corpo está deslocalizado.
O sentimento de supressão das fronteiras provocado pelo mundo digital
engendra uma supressão das memórias privadas em proveito das memórias coletivas
cuja conseqüência é a perda de distância entre os próximos. Existe uma preferência pelo
distante, considerado desde então como menos constrangedor, menos “lá”. Enfim,
Virilio explica que a nova guerra provém do universo da informação, no qual todas as
estratégias são de natureza militar.
A rapidez da luz e o instante tornaram-se os tempos de referência. A tecnologia
realça o tempo mundial em detrimento do tempo local, o que é uma revolução já que
anteriormente tudo se construía segundo o tempo local. A questão da ruptura política, da
relação com o real se torna um fenômeno que toca em tudo: os costumes, a urbanização,
os modos de produção. Estamos caminhando na direção de um tempo único que pode
engendrar um pensamento único, fim de todas as diferenças. A história se fez ao longo
40
do tempo local, ou seja, a questão da memória sempre esteve ligada a um tipo de
territorialização. Por exemplo, a história de Paris ou de São Paulo não é igual a história
de Lyon ou Salvador. Assim, uma memória mundial para a diversidade dos povos
conduzirá a uma redução terrível e assustadora. Uma história mundial somente pode ser
redutora. Virilio explica que o tempo mundial não é em si o grande mal, mas sua
conseqüência redutora é que se torna um grande mal.
As antigas tecnologias geravam acidentes específicos e locais. Já por meio de
um tempo real e mundial os acidentes se potencializam como grandes catástrofes ou
potência de um acidente integral. Esse acidente integral se expressa na forma das três
grandes bombas que, segundo Virilio, foi pressentido por Albert Einstein: a bomba
atômica que explodiu em Hiroshima e Nagasaki, a bomba da informática que acaba de
explodir e a bomba da ordem demográfica. A segunda bomba, a informática, que acaba
de explodir, é a internet.
Segundo Virilio, a rede reforça o deslocamento social. A internet é ameaçadora e
quando fazemos referência a ela, não podemos deixar de pensar na democracia, que tem
dois inimigos. O primeiro, facilmente identificado, é a tirania, a ditadura. Entretanto,
existe um outro, mais escondido, é a guerra civil, a guerra de todos contra todos, como
dizia Hobbes. Hoje, a tirania que nos ameaça é a divisão do mundo, da qual a rede e
suas capacidades desconstrutivas da sociedade são um dos principais vetores. O que
ameaça nosso presente não é um novo Hitler, é a torre de Babel. Quando todos os
homens querem ir em direção à unidade, paradoxalmente eles se dividem ao infinito. O
acontecimento do tempo mundial põe em causa a memória.
Virilio, em suas análises, procura mostrar as perdas de ordem ética,
epistemológica e social que a difusão das mídias digitais geraram. Não é o progresso
técnico que é inquietante, mas o fato dele mascarar essa perda. Não existe aquisição sem
41
perda e, como os avanços tecnológicos têm a capacidade de globalizar seus efeitos, sua
potência, a perda então é multiplicada. Não se progredirá no sentido humano, isto é,
ético e estético, com as novas tecnologias se não se admitir a existência de sua
negatividade. Não se fará progressos nessas mesmas novas tecnologias senão
denunciando e lutando contra seus efeitos perversos, que são numerosos; porém
escondidos, devido a um discurso apologético engendrado pelas necessidades
publicitárias e propagandistas dos interessados em difundir essas tecnologias. Os
investimentos nelas, operados por multinacionais, são de tal ordem que todo efeito
negativo é escondido e mascarado. Virilio nos chama a atenção para não renunciar a um
pensamento crítico.
Os objetos percebidos em sistemas digitais não seguem obrigatoriamente as
regras normais da realidade física. Esse fato engendrou um imaginário que opõe
realidade e mundo digital. William Gibson em seu romance Neuromancer define o
ciberespaço como uma “alucinação consensual” e sua dimensão epistemológico como
“o não-espaço da mente” (Gibson 1984: 51). O ápice desse imaginário acontece com a
promoção de uma era pós-humana na qual o homem hibridizado com máquinas se
potencializa numa espécie de super-homem que, numa perspectiva nietzschiana, está
mais para o último homem do que o além do homem (super-homem). Celebra-se então
o homem que ultrapassa suas limitações corporais, especialmente sua finitude temporal.
Ora, são exatamente estes “consolos”, “artifícios”, que procuram iludir e afastar o
homem de sua condição finita, denunciados por Nietzsche como sintoma de niilismo
negativo. No pós-humano, não existe diferença essencial ou demarcação absoluta entre
a existência corporal e a simulação computacional; mecanismos cibernéticos e
organismos biológicos; teleologia robótica e objetos humanos (Hayles 1999: 3). Trata-
se então de uma imbricação da noção de pós-humano com a de informação como algo
42
sem corpo, desencarnado. Katherine Hayles (1999) localiza esta concepção da
informação, como desincorporação, na teoria de Shannon-Weaver, bem como entre os
membros participantes do início do movimento cibernético.
Shannon percebeu que os princípios da lógica, ou seja, proposições verdadeiras e
falsas, poderiam ser usados para descrever os dois estados de interruptores de relés
eletromecânicos, ou seja, estado ligado e estado desligado. Na sua famosa dissertação
de mestrado A symbolic Analysis of Relay and Switching Circuits de 1938, ele
apresentou a sugestão de que circuitos elétricos poderiam conter operações
fundamentais de pensamento. Assim, Shannon mostrou que circuitos de retransmissão e
de comutação como os que são encontrados em uma máquina eletrônica podiam ser
expressos em termos de equações do tipo booleano: pois o sistema verdadeiro/falso
poderia corresponder a interruptores ligado/desligado ou estados fechados e abertos de
um circuito. Na verdade, qualquer operação que pudesse ser descrita em um conjunto
finito de passos podia ser executada por esses retransmissores comutadores. O trabalho
de Shannon lançou os fundamentos para a construção de máquinas que executassem
operações de lógica verdadeira (truth-logic), e também sugeriu novas formas nas quais
os circuitos poderiam ser desenhados e simplificados. Em termos teóricos, ele também
indicou que a programação de um computador, ou seja, a disposição de um conjunto de
instruções codificadas para serem precisamente seguidas, deveria ser tratada como um
problema de lógica formal.
Após escrever esta tese e divulgar suas descobertas, Shannon trabalhou com
Warren Weaver e ambos passaram a desenvolver a noção-chave da teoria da
informação. Nessa teoria, a informação pode ser concebida de uma forma totalmente
divorciada de qualquer conteúdo ou assunto específico, simplesmente como uma
decisão única entre duas alternativas igualmente plausíveis. A unidade básica da
43
informação é o dígito binário (binary digit – bit): isto é, a quantidade de informação
necessária para selecionar uma mensagem dentre duas alternativas igualmente
prováveis. Assim, a escolha de uma mensagem dentre oito alternativas igualmente
prováveis exigiria três bits de informação: o primeiro bit reduziria a escolha de uma em
oito para uma em quatro; o segundo, de uma em quatro para uma em duas; o terceiro
seleciona uma das alternativas restantes. Informação torna-se então algo
desmaterializado, diferente de matéria ou energia. A conseqüência é a possibilidade de
conceber a informação independentemente de um aparelho transmissor específico. Em
vez disso, podia-se enfocar a eficácia de qualquer comunicação de mensagens via
qualquer mecanismo, e podia-se considerar os processos cognitivos independentemente
de qualquer corporificação particular. Informação é um processo independente do
contexto, uma função probabilística sem dimensão e extensão, sem materialidade e sem
ligação com a semântica ou sentido (Hayles 1999: 52).
Friedrich Kittler, em suas análises da mídia digital, recuperou as teses de
Shannon-Weaver, desincorporando a informação mediada pelo digital. Em sua obra
Gramaphone, Film, Typewrite, ele faz do modelo da informação de Shannon-Weaver o
centro de sua teoria das novas mídias. Uma de suas principais e influentes conclusões é
o fato de que quando filmes, músicas e telefone forem unidos pela fibra ótica e
padronizados pelo formato digital não haverá mais distinção formal possível entre
televisão, rádio, telefone, correio eletrônico. Assim, a convergência de todas as mídias,
sob o regime digital, teria como conseqüência o fim do conceito de mídia. Em vez de
mídias, teríamos então diferentes interfaces materializando o ubíquo fluxo da
informação.
“Estamos diante de alguma coisa caminhando para o seu final. A
digitalização dos canais de informação elimina as diferenças entre as mídias
tomadas individualmente. Som e imagem, voz e texto são reduzidos a
efeitos de superfície, conhecidos pelos consumidores como interfaces.
44
Sentido e sentidos tornam-se coisas dispensáveis. O glamour da produção
midiática ainda sobreviverá por um ínterim, mais como espetáculo
estratégico na economia da atenção do usuário. Porque, na verdade, dentro
do computador todas as coisas tornam-se números: quantificação sem
imagem, som ou voz. Uma vez que as comunicações por fibra ótica se
desenvolverem, se eliminará todas as distinções, já que temos apenas dados
fluindo em codificação digital. Neste contexto, nenhuma mídia pode ser
traduzida numa outra […] Uma mídia total ligada a uma base digital
eliminará o conceito de medium. Ao invés de conectar pessoas e
tecnologias, o conhecimento absoluto se movimentará num laço infinito”
(Kittler 1999: 1-2).
Trata-se de uma recuperação e um aprofundamento de certa corrente de
pensamento eminentemente “materialista”, já detectável em autores como Benjamin,
Simmel, Derrida e MacLuhan (lembremos: “o meio é a mensagem”). Além disso, o
trabalho de Kittler também se inscreve nas pesquisas, com crescente popularidade, que
se debruçam sobre a recepção social de tecnologias anteriores, como o telégrafo ou o
rádio (Kittler 1999). Isto parece indicar uma nova tendência no campo dos estudos de
mídia
4
.
Existem alguns preceitos epistemológicos próprios da teoria das materialidades
da comunicação. Um dos principais refere-se ao próprio método de investigação. Isso
significa que as tecnologias de inscrição, de comunicação, não são meros instrumentos
com os quais os sujeitos produzem sentido. Elas antes representam o horizonte a partir
do qual o próprio sentido em geral pode surgir. Conseqüente com este princípio, a
noção de medialidade é estendida a todos os domínios do intercâmbio cultural. A
medialidade constitui, assim, um dado não apenas da comunicação, mas da vida cultural
enquanto tal, dado que todos os meios de transmissão requerem um canal material, e a
4
Isto é muito claro num recente trabalho de Siegfried Zielinski, no qual o autor busca elaborar uma
história descontínua e fragmentária da mídia-projeto, portanto, bastante diverso dos tradicionais percursos
evolutivos que marcavam a visão moderna da técnica. Segundo o autor, seu objetivo é “revelar momentos
dinâmicos nos quais floresça a heterogeneidade no registro arqueológico midiático para, desse modo,
entrar em uma relação de tensão com vários momentos do presente, relativizá-los e torná-los mais
decisivos” (Zielinski 2006: 11, Ver também: Felinto 2006).
45
característica de cada canal material é produzir um certo ruído naquilo que transmite.
Desse modo, o processo comunicacional passa a ser definido não por aquilo que
significa, mas pela relação entre significado e tudo aquilo que é excluído do campo da
significação como ruído. A diferença entre esses dois elementos representa o campo de
estudos fundamental da teoria das materialidades.
Uma conseqüência dessa abordagem é o princípio da corporalidade, o qual
acarreta duas conseqüências importantes: a primeira é a desvalorização da noção de
agência. O corpo não é mais essencialmente um agente ou ator. Para se tornar um
agente ele deve sofrer algum tipo de restrição em suas possibilidades, ou seja, deve
encontrar outros corpos e resistências. Desse modo, a cultura pode ser resumida na idéia
do regime pelo qual os corpos têm de passar (Kittler 1990: xv). A segunda conseqüência
é que esse local de “sofrimento do corpo” se manifesta como um locus privilegiado de
análise para a teoria das materialidades, dado que é exatamente nas patologias
produzidas pelos sistemas de inscrição que estes mais claramente revelam sua
impressão específica. Por exemplo, Kittler sugere que certas idéias de Nietzsche possam
ter sido influenciadas pela forma arredondada da máquina de escrever com a qual
trabalhava. Foi o próprio Nietzsche, aliás, quem escreveu em uma de suas cartas
datilografadas que “nossos materiais de escrita contribuem com sua parte para nosso
pensamento” (Nietzsche, apud Kittler 1990: 196). O trabalho de Kittler explora uma
genealogia que investiga a ascensão e a queda de determinadas redes discursivas. Ele
pode ser definido segundo três princípios básicos, os quais podem ser considerados
como fundamentos da teoria da materialidade: exterioridade, medialidade e
corporalidade.
Assim, o instrumento tecnológico – em produção, gravação e armazenamento e
reprodução – exerce influência ou, de fato, determina o que se apresenta como mundos
46
semânticos, simbólicos, espirituais, etc. Mas é preciso se acautelar contra a idéia de que
o termo “materialidade” significa sempre uma matéria física e concreta. As
materialidades podem funcionar como uma metáfora geral para o conjunto das
instituições (igreja, sistemas educacionais, etc.) e dos meios que elas
predominantemente empregam (rituais, livros de tipos especiais, etc.).
Já no prefácio de seu livro Gramaphone, Film, Typewriter, Kittler dá-nos a
chave para a análise dos problemas que revelam a nova mediação tecnológica. Diz:
“Mídia determina nossa situação, a qual – a despeito ou por causa disso – merece uma
exposição” (Kittler 1999: 3). Aquilo a que podemos chamar uma forma de
contextualização histórica do problema é, páginas adiante, apresentado como um
princípio da sua ordenação. Kittler, recordando o espírito das teses de Marshall
MacLuhan assevera o seguinte: “Mídia define o que realmente é” (Kittler 1999: 3). O
real fica, deste modo, preso nos meios que nos darão a possibilidade de determinar, com
precisão, o próprio real, o qual é produzido por estes próprios meios. A estrutura do real
é, assim, a estrutura dos meios. Não surpreende então que Kittler continue a descrição
do seu princípio da seguinte forma: “Eles [meios de comunicação] determinam sempre a
futura estética” (Kittler 1999: 3). Os meios de comunicação têm assim um poder de
criação de sentido e não unicamente de transporte de sentido. Logo são objetos
privilegiados para a investigação nas ciências do espírito, da cultura, enfim, das ciências
humanas. Assim, é legítimo afirmar que à estética não lhe é dada a possibilidade de
determinar o sentido do real, mas unicamente definir as estruturas de recepção desse
real. Os meios assumem a forma de um a priori histórico. O núcleo central do problema
deixa pois de ter resposta na estética, passando a encontrar abrigo numa filosofia dos
meios, ou num termo mais consensual numa teoria dos meios. Mario Perniola, nesse
precioso livro que é A estético do século XX (1998), afirma com muita propriedade:
47
“Do ponto de vista da estética da forma, a importância desta teoria consiste
no fato de ela sublinhar, mais uma vez, o nexo entre forma e
transcendência: as formas não se encontram fechadas em si mesmas, mas
são constantemente movidas por um movimento que as ultrapassa. Um dos
méritos de MacLuhan consiste em ter evidenciado que tal movimento não é
unidirecional, mas assume uma infinita variedade de configurações”
(Perniola 1998: 79).
Assim, o sentido estrutural a que nos remete o advérbio “além”, em Kittler, deve
ser entendido como a condição de possibilidade da Estética. Condição de possibilidade
que deixa a estética “aquém” da determinação do sentido do real, mas que a inscreve no
próprio meio: ela passa pois a ser o cerne artificial, ela é artificialidade.
Uma Filosofia dos meios ou uma Teoria dos meios constitui-se, assim, como
uma teoria do real. Essa é a verdadeira tarefa que Kittler nos propõe. Não é nosso
propósito, porém, traçar aqui as raízes estruturais de tal forma de determinação do real.
Parece-nos, mais útil, neste contexto, tecer alguns esboços, esquemas sobre os efeitos
que daí decorrem.
A questão de fundo que a nova estrutura da atualidade apresenta está, pois,
apoiada na determinação do artifício, entendido como forma do real.
Quando as figuras clássicas da experiência humana entram em ruptura é o
entendimento do real como unidade intensiva de sentido que se rompe. Os sistemas de
mensagens na sua autonomia constituem, hoje, uma espécie de segunda natureza, cujo
funcionamento é necessário compreender. Diante disso o estudo da técnica desdobra-se
em duas vertentes complementares. A primeira se trata de compreender a técnica como
“destino último da humanidade” (Vattimo 1987). A segunda como “sistema absoluto e
autônomo que acabará por prescindir completamente do elemento humano (Kittler
1999).
48
O Mito da Comunicação Transparente
Um dos mitos persistentes na cultura ocidental é possibilidade de um sistema,
artificial ou humano, no qual a comunicação se torne transparente. Se idealiza espaços
onde o ruído possa ser totalmente eliminado. Trata-se de uma zona lisa, sem conflitos e
sem obstáculos.
Em seu recente livro Sphères (esferas), Peter Sloterdijk analisa a insistência no
tema da comunicação, perspectivando essa insistência numa linha central do
pensamento ocidental. O platonismo, na versão neoplatônica de uma metafísica da luz,
pode ser visto como a tentativa de pensar, para além do mundo físico, a existência de
um universo ou meio ideal de comunicação plena, liberto das opacidades, das
distâncias, dos obstáculos e das contingências que caracterizam a comunicação no
mundo material em que vivemos. Muitos discursos recentes, em torno da tecnologia
comunicacional, mostram que a força motivacional do projeto neoplatônico ainda hoje
continua persistente. Sonha-se com um transcender da matéria, por meio da informação,
e com uma sociedade da transparência total entre os sujeitos graças a uma comunicação
sem obstáculos. Podemos incluir aqui a teoria do “agir comunicacional” de Jüger
Habermas, que, sem fazer apelo a uma corrida aos equipamentos informáticos, mantém
a insistência num uso puramente “comunicacional” e “não estratégico” da simples
linguagem. De fato, sua teoria comunicacional visa como telos uma sociedade da
transparência total entre os sujeitos graças a uma comunicação ideal, sem obstáculos.
Ela também constitui, por conseguinte, à sua maneira, a reativação de um ideal
neoplatônico de transparência. Trata-se de uma situação ideal em que os homens
possam chegar a um entendimento mútuo sobre questões vinculadas ao mundo objetivo
das coisas, discurso científico; ao mundo social das normas, discurso moral; ao mundo
subjetivo das vivências e emoções, discurso estético.
49
O próprio Habermas admite que nas condições contemporâneas o consenso
obtido pode não ser um consenso racional, pois não estão dadas as condições para uma
ação comunicativa pura, já que esta pressupõe a ausência de violência e a participação
de todos os interessados (Rouanet 1987). Os participantes do processo comunicativo
julgam estar agindo autonomamente e agem segundo as evidências do senso comum
hegemônico, difundido pelos aparelhos midiáticos culturais. Fica evidente que a ação
comunicativa pressupõe um sistema de transparência que não se encontra em nossas
condições atuais. A tese de que mesmo em sociedades como a nosso existem ainda
brechas de racionalidade não-sistêmica, talvez é um otimismo não justificado pelos
fatos, ou ainda, a velha persistência do ideal de comunicação transparente.
O modelo paradigmático, ou pelo menos mais sistemático, de um espaço ideal
de comunicação foi fornecido pela metafísica neoplatônica da luz. O fato de alguns
textos de Platão terem servido de base à especulação neoplatônica em torno da luz não
nos deverá autorizar a reduzir o platonismo de Platão a esse modelo metafísico de
comunicação, nem atribuir-lhe todas as culpas ou todos os méritos, consoante a
perspectiva, da metafísica da luz. Em Platão, pode-se encontrar várias abordagens,
mesmo diferentes, do que hoje chamamos de comunicação.
Uma das principais temáticas platônicas que toca a questão da comunicação é a
alegoria do Sol; originariamente concebida para indicar a solução de um problema de
conhecimento, de fenomenologia da experiência. A alegoria solar iria dar origem a uma
metafísica da luz e a uma teologia da fonte luminosa. Platão, no Livro VII da República,
exemplifica a condição humana por meio da Alegoria da Caverna e usa toda a força da
metáfora luminosa. No mundo sensível, a luz solar, que não é um simples objeto,
ilumina os objetos e fornece ao órgão de visão a capacidade de ver. Da mesma maneira,
no mundo inteligível deve haver algo, o “Bem”, que não é um simples objeto inteligível,
50
idéia entre as idéias, mas está “para além das idéias”, as “ilumina” e dá ao intelecto,
órgão de visão supra-sensível, capacidade de compreender. Tal é, muito sinteticamente,
o significado epistemológico da Luz na alegoria da caverna. (Platão, República VII,
514a-517d). O neoplatonismo vai mais longe, ao interpretá-lo num âmbito
decididamente cosmológico e teológico. Aquilo que a metáfora luminosa mostra é,
então, o espetáculo da gênese das idéias a partir do centro luminoso, da origem ou do
“Um” plotiniano. O heliocentrismo é, agora, teocentrismo. Do ponto de vista que nos
interessa há a reter, não apenas o teocentrismo cosmogônico desta visão, mas,
sobretudo, as propriedades do espaço interior definido por essa teoesfera a que a
explosão luminosa dá lugar. Trata-se de um espaço no qual, como escreve Plotino:
“tudo é transparente, sem escuridão, sem obstáculos, onde cada um é visível para todos
até à sua mais profunda intimidade” (Plotino, V, 8, 4, 1954: 139). Como a luminosidade
é um contínuo, o espaço da teoesfera é um lugar interno de “elevadíssima transparência
e comunicabilidade”, no qual todos os pontos participam da luz do centro e, graças a ela
“estão ligados entre si por uma infinidade de comunicações luminosas”. (Sloterdijk
2003: 478).
A metafísica ocidental é regrada pela obsessão de pensar a totalidade e
multiplicidade como unidade. Para tanto vai além dos limites que a experiência e a
finitude humana nos impõem. Sloterdijk irá acrescentar à obsessão da totalidade o
sonho da comunicabilidade total, como sua inevitável conseqüência (Sloterdijk 2003).
A teoria das esferas de Sloterdijk tem por base uma fenomenologia geral da
experiência do espaço, que é aplicada à problemática da cultura. A experiência
fundamental do espaço não consiste na fixação de distâncias num espaço homogêneo,
mas na constituição de um lugar privilegiado, de um espaço de intimidade, uterino e
natal, emocionalmente segregado de uma exterioridade correlativa: “Desde sempre que
51
os homens estiveram empenhados na tarefa de trazer para dentro, daquilo que
encontram no exterior, tanto quanto necessitam, e de afastar do centro da vida boa tanto
quanto possível” (Sloterdijk 2003: 143). O critério separador do interior/exterior remete
para uma tonalidade afectiva ( tonalité affective). Essas afetividades variam numa escala
que vai do familiar à inquietante estranheza. O espaço de intimidade não é, pois,
definido por um raio de ação, um fazer ou um poder, mas por uma capacidade inicial de
sentir. A função da cultura é construir um espaço protetor de intimidade, que Sloterdijk
chama de “microesfera”.
A metafísica ocidental, tanto na forma da filosofia grega como na da teologia
cristã, introduz, de certo modo, uma ruptura na constituição tradicional da microesfera.
Seu objetivo é atingir o pensamento de uma “macroesfera”, ou seja, subsumir a
totalidade ontológica ao Um Luminoso, pensado como esfera absolutamente exterior. A
teoesfera luminosa dos neoplatônicos constitui um modelo de “macroesfera”. Essa
macroesfera é um campo de pensamento da relação de um centro de luz com uma
periferia composta de trevas e materialidade, cujos estatutos moral, ontológico e
teológico são os objetos privilegiados da reflexão.
A cultura visa a criação de uma microesfera que sublime a inquietante
estranheza deste mundo, tornando-o habitável e um lugar atmosfericamente protegido.
O neoplatonismo, e sua versão cristã, pretendeu, segundo Sloterdijk, estabelecer uma
relação indelével de intimidade entre a esfera menor da proximidade e a esfera maior
representada pela luminosidade envolvente da totalidade.
Quando aplicado ao fenômeno da comunicação, este mundo neoplatônico cria
um meio no qual a transparência da luz banha tudo sem ter obstáculos. Em nossa
contemporaneidade, esse mundo será o parâmetro para duas teorias comunicacionais
que, apesar das diferenças, se complementam na invocação da transparência luminosa.
52
Assim, para um conjunto de teorias, as mensagens ou conteúdos semânticos não
possuem emissor humano. Elas se reduzem a informação circulante, a um conjunto de
puras mensagens, a um pacote de bytes. Assim, desapareceram os mensageiros.
Friedrich Kittler e Nobert Bolz defendem o mundo “pós-humano” das puras mensagens,
do “sistema total”, dos “dados” que se “calculam a si próprios” (Kittler 1999). O mundo
se desmaterializou e se desincorporou na esfera da luz total.
Um outro conjunto de teorias interpreta as novas tecnologias como destino final
do humano, numa referência a Heidegger, fim da “alienação” pela comunicação total,
“emancipação” (Vattimo 1992) e integração do particular no todo, que são as “redes”. A
comunicação não se dá pelo trabalho e pelo encontro, os quais podem ser bons ou maus,
em função de ajudarem ou prejudicarem a expansão de minhas tendências,
materializadas necessariamente pelo corpo. Ao contrário, a comunicação elevada à
velocidade da luz, tudo banhará eliminando todos os obstáculos e conflitos.
No computador e nas redes a única coisa que conta são os “dados”, a
“quantidade”, os bytes, o som, a imagem, a voz ou o texto não passam de efeitos de
superfície (Kittler 1999: 7). Essas crenças geraram uma espécie de monismo eletrônico,
um hiper-humanismo, no qual, graças à ligação em rede, se atinge uma comunicação
perfeita que faz desaparecer os conflitos humanos, coletivos e individuais. O ápice da
pastoral tecnológica é a abolição de duas coisas horríveis – esse atrito fundamental do
humano – chamado política e o corpo expressão da finitude e limitação humana. Para
muitos filósofos políticos, Habermas por exemplo, a política é fundamentalmente busca
de consenso. Para outros, Foucault por exemplo, a política é busca de diferença, conflito
e resistência.
Assim, a transparência tona-se o corolário do monismo digital. É,
epistemologicamente, a idéia segundo a qual, uma vez identificada a Substância e
53
conhecidas as leis fundamentais das suas operações, tudo se torna claro, explicável e
compreensível. É, ontologicamente, a realização da idéia neoplatônica de um mundo de
comunicação infinita, absoluta e perfeita, da transparência total, da não ambigüidade
absoluta. Perante esta perspectiva, em nosso entender, a tarefa mais urgente de uma
teoria da comunicação seria, paradoxalmente, salvar os atritos ou os ruídos da
comunicação, defender o obstáculo e, principalmente, introduzir o corpo na
comunicação como um centro de indeterminação.
Há duas maneiras correlativas de se obter transparência. A primeira é a
semantização exaustiva da realidade, a segunda a dissolução do factual nas combinações
dos possíveis. Merleau-Ponty viu na primeira a principal característica do idealismo, o
qual consiste em “substituir os seres pelo sentido” (Merleau-Ponty 1999: 148). A
semantização é transparente, a realidade não.
A segunda alternativa, que é dissolver o factual nas combinações possíveis, é
representada por Gianni Vattimo. Ele curiosamente faz uma crítica ao “ideal de
transparência” dos filósofos da Escola de Frankfurt, em particular Habermas (Vattimo
1992: 17). Para Vattimo o “pessimismo mediático” destes autores tem por origem uma
epistemologia objetivista que, em nome de uma pretendida verdade, vê nos meios de
comunicação, essencialmente, meios de manipulação da comunicação e distorção da
realidade. Habermas apenas se distinguiria dos seus predecessores por meio de uma
teoria da comunicação que, idealmente, pretende ultrapassar tais efeitos e ter, em
relação aos meios de comunicação, uma atitude menos pessimistas. Porém, mesmo
Habermas pressupõe uma epistemologia objetivista que ignorou a grande viragem
(hermeneutic turn), introduzido pelo axioma de Nietzsche, segundo o qual “não há
fatos, só há interpretações” (Vattimo 1991: 21). Este axioma permite uma dissolução da
realidade e, a partir daí, uma libertação da exigência de verdade, ou de autenticidade na
54
versão existencialista (Vattimo 1991: 20-21). A “sociedade da comunicação” na qual
vivemos o “caos babilônico dos discursos” e a possibilidade de ser um participante ativo
por meio da criação de emissoras de rádio e canais de televisão independentes
testemunham a diluição do real em suas possibilidades. Tudo isso demostra a presença
de uma “liberdade hermenêutica” e justifica o “otimismo midiático” professado por
Vattimo. Ele endossa a reflexão de Rorty ao considerar Nietzsche como uma espécie de
relativista que dissolve a realidade com o objetivo de atingir a máxima de Rorty (“to
keep the conversation going”) de permanecer no eterno diálogo, na eterna indagação,
sem fechar a questão por meio de qualquer tipo de “verdade”.
O que caracteriza o mundo contemporâneo é a impossibilidade dele ser uma
totalidade, de nos proporcionar uma experiência unitária e total com respeito a um
referente. O mundo criado pelas novas mídias é um perspectivismo permanente, onde
posições contrárias, mesmo contraditórias, podem coexistir. Trata-se da vivência de
uma descrição ou redescrição nos termos de Richard Rorty (1994), os quais são
estratégias para o discurso permanecer acontecendo, por meio de divergências
produtivas. Toda descrição pode engendrar uma redescrição que não é um movimento
dialético, pois seu objetivo não é a síntese ou o acordo, mas o permanecer na diferença,
no pensamento, nas atividades de ler, escrever, interpretar, comentar e criar.
Richard Rorty (1994) retoma as análises de Thomas Kuhn (1994) e introduz uma
variante ao contrapor ao Discurso normal o Discurso não-normal. As ciências
estabelecidas alcançam a normalidade nas fases de progressos teóricos reconhecidos,
quando se conhecem os procedimentos que permitem resolver problemas e arbitrar
disputas. Rorty chama esses discursos de comensuráveis, no sentido de se poder confiar
em normas que asseguram o consenso. Entretanto, quando as orientações básicas são
controversas, os discursos permanecem incomensuráveis ou não-normais. Os discursos
55
incomensuráveis, ou não-normais, não são mais conduzidos com o objetivo da
passagem à normalidade, mas se desviam do objetivo do acordo universal e se
contentam com a esperança de um “desacordo interessante e fecundo” (Rorty 1994, 87).
Quando os discursos não-normais se bastam a si próprios, eles podem alcançar as
qualidades que Rorty caracteriza com o conceito de “edifying” (edificante). É nesses
diálogos edificantes que a filosofia desemboca, depois de abrir mão da sua intenção de
resolver problemas, desvelar fundamentações ou alcançar a verdade como
correspondência do mundo. Assim, a filosofia torna-se diferença, engendrando um
discurso permanente e infinito, cujo motor é um desacordo produtivo. Rorty pretende
com o desenvolvimento dos discursos não normais superar a posição clássica da
filosofia como “espelho da natureza” ou da verdade como representação e
correspondência com o mundo. Se houver a Verdade, assim que a alcançarmos, os
discursos calar-se-ão diante de um consenso cuja conseqüência é a mudez. Entretanto,
se não houver a Verdade, os discursos se multiplicarão graças a possibilidade de uma
discórdia fecunda.
Esses idéias de comunicação total e transparência acabam concebendo o mundo
digital como mídias digitais nas quais os discursos, sem sofrer restrições ou
constrangimentos, se proliferam sem relação com a realidade e com qualquer idéia de
verdade. Se Baudrillard critica a digitalização por não possuir qualquer tipo de
referência, agora essa falta é vista como positiva por permitir um diálogo sem fim que,
na verdade, é um monólogo de múltiplas vozes.
56
Em Busca da Superação do Solipsismo com o Retorno às Coisas Mesmas
Para nós, a filosofia de Nietzsche, longe de preconizar uma simples dissolução
da realidade e um simples abandono da verdade, é um aprofundamento destas noções.
Vattimo descreve de maneira correta e objetiva aquilo a que se poderia chamar
de o regime efetivo do discurso público da sociedade da comunicação midiática. Esta
descrição do regime discursivo converge com o resultado da análise que faz, por
exemplo, Luhmann (1997) da “opinião pública” moderna ou com o resultado da
genealogia da modernidade de Sloterdijk (2003), no sentido em que se trata de uma
situação “babilônica”, caracterizada por uma elevada poluição semântica, na qual todos
estão dispensados de dizer o que quer que seja de pertinente (Sloterdijk 2003). Todos
são convidados a participar na comunicação, sendo o receptor, que somos nós mesmo,
obrigado a ouvir disparates e banalidades em quantidades nunca antes suportadas. É
verdade que, como diz Sloterdijk (2003), hoje em dia já ninguém é morto por causa
daquilo que diz, mas, apesar desta vantagem do atual regime discursivo, é difícil ver
num tal estado de coisas uma emancipação e um motivo de otimismo.
Como vimos, Merleau-Ponty define a atitude do idealista como aquela que
substitui a realidade pelo sentido. Se aceitarmos essa definição do idealista, sem dúvida
que a hermenêutica de Vattimo é um idealismo radical. A atitude fenomenológica, ao
contrário, é a submissão a uma experiência das coisas, daquilo que surge. É uma volta
às próprias coisas como dizia Husserl. Ela inclui a mediação da linguagem e da
interpretação, mas não se reduz a uma produção descontrolada de sentido e de
interpretações. O relativismo mole da hermenêutica anarquista de Vattimo não é menos
idealista e não exprime menos um desejo de “transparência” que o absolutismo da
epistemologia objetivista por ele condenada. Despreza-se as resistências da realidade, os
57
obstáculos da vida, a opacidade e muda teimosia das coisas. Forma-se assim um meio
semântico amorfo constituído pela conversação rortyana, concretizado na Babel de
notícias transmitidas pelas mídias.
Nesse contexto, liberdade significa hiperativismo comunicacional.
Teoricamente, realiza-se, assim, graças às mídias, o equivalente pós-moderno da
libertação do filósofo neoplatônico em relação à incômoda matéria que lhe tolhia os
movimentos e era um obstáculo à comunicação e ao pensamento. Não é só na ontologia
da verdade objetiva que se realiza um desejo de “transparência”; a hermenêutica do
sentido proliferante e anárquica vai ainda além nessa obsessão. Nada é mais
transparente que o puro sentido, a “interpretação” infinita liberta da incômoda e opaca
realidade. No discurso de Vattimo a técnica surge como o grande agente que pensa e
realiza as possibilidades de variação. Vattimo não poupa a “humanidade” do trabalho de
realizar a hermenêutica da negatividade: “A humanidade deve pôr-se, hoje, à altura das
suas possibilidades técnicas e criar um ideal humano que está consciente destas
possibilidades e as esgota até à última” (Vattimo 1992: 25). A este imperativo técnico,
ético e estético, segundo Vattimo, só se oporiam os últimos “nostálgicos da realidade”,
uns “fundamentalistas” com a sua “exigência neurótica de horizontes de tranqüilidade e
disciplina (Vattimo 1992: 24-25).
Mas como pensar uma emancipação fundada no caráter formal e fechado dos
possíveis realizados por meio da tecnologia? A antinomia prática que sustenta o
imperativo vattimiano é entre realidade e possibilidade, entre uma opção estática e uma
dinâmica pela “realização de todos os possíveis”. Mas por que somente a realização dos
possíveis pode emancipar? Aonde está a abertura dos possíveis? No fluxo
informacional, formatado segundo protocolos tácitos, ou no corpo que age sobre essas
fluxos?
58
Vários autores, geralmente de tendência pós-moderna, concebem a lógica da
tecnologia como a realização e esgotamento dos possíveis. Lyotard chamou essa lógica
de varredura (Lyotard 1988). Porém, ao contrário de Vattimo, para Lyotard o jogo dos
possíveis na tecnologia não deve ser a última palavra da história, nem impõe,
necessariamente, à humanidade um imperativo. Segundo Lyotard é preciso uma
“resistência às sínteses de varredura”, para libertar possibilidades práticas.
Porém é absolutamente necessário dizer que a resistência e a superação do
solipsismo não implica em uma recusa da tecnologia. Muito pelo contrário, é no seio
dela que tal tarefa deve ser cumprida. Trata-se de superar uma antinomia. Como vimos,
a semantização geral ou a aplicação do axioma de Nietzsche conduz à dissolução da
realidade. Assim, temos a antinomia: a técnica realiza, e a hermenêutica vattimiana
desrealiza. Para superar essa antinomia, Vattimo toma duas medidas. Uma negativa, que
consiste em isolar o tecnológico, separá-lo de tudo. Outra positiva, hipostasiar uma
mobilidade perpétua de maneira total e não isolada, sem atritos ou conflitos que
poderiam pará-la.
Tudo isso significa a pretensão de controlar totalmente o que aparece, ou seja,
amalgamar o tecnológico e o semântico, dar ao tecnológico a leveza do ser
hermenêutico. Assim, como dizia Merleau-Ponty a respeito do idealista clássico:
realidade foi substituída pelo sentido. Trata-se então de uma sublimação da matéria pela
informação. Transformar o mundo com a mesma facilidade com que se produzem
interpretações.
Para nós a tecnologia e as novas mídias não são questões puramente semânticas
ou interpretações, ou jogo discursivo, ou representação. Trata-se de um fato no mundo
como uma imagem, uma coisa, uma nuvem, um elemento da realidade. Esta realidade
não é, simplesmente, um conglomerado de coisas, fatos ou dados “fora de nós”, como
59
diria um realista. Ela é o resultado de uma “constituição”. Uma tal constituição possui
limites, não é de modo algum “arbitrária”. Nunca poderá conduzir a um fechamento
solipsista, ou seja, a um encapsulamento semelhante aos teóricos da autonomia absoluta
da tecnologia e da esfericidade insular do ciberespaço. Merleau-Ponty considera a
relação com o mundo uma abertura e uma inesgotabilidade, os quais são os predicados
essenciais daquilo a que chamamos realidade (Merleau-Ponty 1999: 374). O conhecer
fenomenológico é diferente do conhecer matemático, das ciências sociais ou da
natureza; ele não é concernente a uma região particular do ser, mas à veracidade
enquanto tal: às relações humanas, à tentativa humana de descobrir o modo como as
coisas são e à habilidade humana de agir de acordo com a natureza das coisas; por fim, é
concernente ao ser enquanto ele manifesta a si mesmo para nós. Se a realidade é
constitutiva, então ela não pode ser conhecida sem a presença do corpo. Trata-se de
ingênuo realismo acreditar que se pode compreender uma coisa a simulando.
“Sob condições computacionais compreender uma coisa significa poder
simulá-la por meio de imagens calculadas. Nesta perspectiva, a chamada
realidade natural aparece como uma simples configuração de dados, um
caso específico de operações mediáticas com números computáveis” (Bolz
2006: 57).
A realidade não é uma soma de objetos naturais. Para Husserl a “realidade” já é,
um “sistema global de relacionamentos inter-referenciais” (Levinas 1970, Moura 1989).
O que constitui a coluna dorsal da realidade não são coisas graníticas, mas regras de
coerência que permitem, finalmente, uma grande flexibilidade de conteúdos. A
fenomenologia tenta descrever estruturas de coerência que funcionam e constituem, na
sua globalidade, um mundo, constantemente pressuposto.
No plano da teoria da experiência, a concepção da realidade referida, por
exemplo, no âmbito da fenomenologia é suficientemente flexível para permitir toda uma
60
série de “efeitos de anormalização”, desvios em relação a estruturas dominantes, sem
que isso implique de modo algum uma “dissolução da realidade”, ou uma autonomia
ontológica ou fenomenológica das tecnologias.
Sem dúvida que a televisão, a telepresença alargam imensamente os nossos
pontos de vista sobre o mundo e as possibilidades de ação, relativamente à
“normalidade” a que estamos habituados. Acontece, porém, que, primeiro, o hábito
atenua rapidamente os primeiros “efeitos de anormalização”, e que, segundo, essas
novas “possibilidades”, não modificam em nada estruturas profundas da experiência
humana, a começar pelas estruturas da atenção e da finitude da perspectiva do
observador, ou interator: “A multiplicação dos pontos de vista da experiência e a
atenuação da ligação ao aqui do meu corpo não suprimem a contingência dos pontos de
vista” (Levinas 1970: 134), ou seja a necessidade de seleção na formação de um “relevo
da experiência”. Por outro lado, problemas clássicos e antigos da experiência, longe de
desaparecerem agravam-se. Sem dúvida que as tecnologias da telepresença trazem
“novas possibilidades”, mas o problema da seleção se agudiza drasticamente à medida
que aumentam as possibilidades técnicas. Eu posso ter a possibilidade de ver tudo em
todo o planeta, ou até no resto do universo, de suprimir todas as distâncias, mas a
estrutura da atenção humana só me permite ver, na realidade, uma perspectiva de cada
vez sobre uma parcela do mundo, e de fazer uma coisa de cada vez. A finitude é
constitutiva e o corpo sempre seleciona, recorta.
Os discursos sobre as tecnologias digitais exprimem um “paradoxo”: eles
aspiram, por um lado, à mais completa reprodução do real, por outro, à sua completa
liquidação. De qualquer forma, reproduzindo ou liquidando, esse real está sempre longe,
ou fora, do corpo.
61
O paradoxo é que nessa suposta desmaterialização e desincorporação dos
ambientes digitais acontece que o “não-ser” do virtual só se mantém graças a injeções
maciças de “ser”. É por isso que vemos nos ambientes digitais, especialmente a web,
para não se tornar um tédio, um processo de reciclar a experiência e as histórias reais.
Os ambientes e sites que fazem sucesso são os que exatamente falam das experiências e
das histórias reais, possivelmente reais ou razoavelmente reais.
Os discursos sobre a cibercultura desvelam antinomias expressas por sonhos de
omnipotência e de liberdade infinita, por um lado, mas também pesadelos de dominação
e controle total do homem pela técnica, por outro. Afirma-se o poder totalitário da
técnica, levando à impotência e ausência de liberdade do sujeito. Porém, também se
afirma a liberdade total e, finalmente, a omnipotência do sujeito graças à técnica.
De qualquer forma, os discursos sobre o digital enfatizam seu aspecto de
dissolução do real, desmaterialização e desincorporação, ao mesmo tempo, que
hipostasiam um sujeito abstrato e sem corpo. A questão da realidade do mundo exterior,
na verdade, é sem sentido. Ela surge apenas pelo fato de que, em vez de se analisar e ter
ante os olhos o próprio fenômeno do estar-no-mundo, se constrói, por rompimento da
unidade, um sujeito abstrato, que em vão se procura agora colar com os demais
estilhaços, ou seja, com o mundo exterior. O conhecimento só é possível porque o
existente humano é capaz de descobrir nele mesmo o que há de disponível e
compreensível no ser do estar-no-mundo.
A desincorporação, promovida pelos discursos que consideram a informação
como desmaterializada, implica num preconceito contra o conhecimento de base
sensorial. Desconfiar do corpo, é desconfiar da percepção. Essa atitude torna a
percepção e a imagem simples representações presentes numa mente que pensa sem
relação com o corpo.
62
Os trabalhos de Baudrillard, Mitchell e Virilio procuram analisar o poder de
manipulação da imagem digital e sua tendência em desligar o observador de sua
corporificação, seu senso háptico e físico, enfim, de sua dimensão de “ser-ai-no-
mundo”. A percepção da nova mídia eletrônica é de natureza abstrata, desincorporada e
descontextualizada pela falta de referência.
A necessidade de um pensamento crítico é uma condição do próprio ato pensar.
Evidentemente que nunca poderemos renunciar ao ato crítico, sem, ao mesmo tempo,
renunciar à capacidade de pensar. Entretanto, podemos e devemos nos perguntar se, de
fato, é somente como desincorporação que podemos entender as mídias digitais e suas
imagens? O efeito de desincorporação e desmaterialização é inevitável no uso de tais
mídias? Como criar um acontecimento de resistência à dominação e controle da
subjetividade? Como engendrar novas formas de vida? Como passar da crítica à prática?
Nossa tese é de que para desenvolver novas alternativas para pensar a imagem
digital de forma incorporada, devemos, antes de tudo, entender a persistência em nossas
estruturas compreensivas de fundamentos conceituais oriundos de uma tradição
metafísica ocidental que insiste e persiste em velar uma abordagem mais direta do
problema. Trata-se das práticas estruturadas por meio da relação modelo e cópia, bem
como da concepção da imagem como representação e do pensamento como distinto do
corpo. Em outros termos trata-se do platonismo e do cartesianismo presentes em nossas
estruturas conceituais. Por isso, achamos importante estudar, mesmo que parcialmente,
a relação entre a imagem e essas tradições conceituais, bem como os desdobramentos
relacionais da imagem e do conhecimento, da imagem e da percepção.
63
As imagens e o Pensamento
A fotografia e as figuras movendo-se na tela do cinema cristalizaram as
concepções clássicas da representação. O público acostumou de uma tal forma a esse
tipo de imagem que resiste à apresentação de qualquer outra proposta. Porém quando
estudamos a história, podemos constatar que, mesmo em seus inícios, tanto a fotografia
como o cinema procuraram sua linguagem fora dos quadros de uma arte estritamente
figurativa.
O projeto artístico da modernidade caracterizou-se pela procura de materiais que
expressassem a dinâmica do mundo moderno. Assim, se procurou expressão, além da
pintura, na colagem, na fotografia, no planejamento tipográfico, nas artes aplicadas. Na
vanguarda Russa, as idéias revolucionárias eram transpostas para o domínio da
figuração. O novo homem emergiria junto com as novas formas de representação. A
arte tradicional, burguesa segundo a vanguarda russa, valia-se das possibilidades
narrativas da imagem. A importância maior era a cena; a visualidade era substituída pela
leitura da cena apresentada no quadro. O espectador sobrepunha à imagem uma
narrativa que, então, passava a ter o papel de exemplo capaz de sublimar os valores
perceptivos e também de subestimá-los. Tratava-se do mesmo movimento que vimos
anteriormente, ao qual Merleau-Ponty chamou de semantização do sensível, ou seja,
sobrepor um discurso e uma interpretação anterior à percepção da forma pura. Para a
modernidade trata-se de recuperar essa forma pura, ou seja, estabelecer um contato com
o real sem mediações previamente interpretativas. Quase todos os movimentos da
modernidade – Impressionismo, Cubismo, Futurismo, Surrealismo, Produtivismo,
Construtivismo, etc. – tinham em comum a valorização dos elementos visuais. A cor e a
configuração das formas, dos ritmos e da direção eram mais importantes do que as
64
técnicas antigas de apresentação ilusionista da natureza. Ora, é a estrutura visual o que
primeiro se percebe, e ela se produz pela conjunção de elementos não-imitativos. A
relação com o objeto ao qual a imagem se refere é um suplemento posterior ao
desempenho das formas.
Na filosofia, Gottlob Frege ([1892] 1978), em texto seminal de 1892, altera o
estatuto da representação ao questionar o sentido e a referência. Este é exatamente o
nome do texto “Sobre o sentido e a referência” (Über sinn und bedeutung). Trata-se de
questionar se a igualdade é uma relação entre objetos ou entre nomes e sinais de objetos.
Assim, graças a uma operação discursiva, posso ter dois discursos diferentes
referenciando o mesmo objeto. Por exemplo, imaginemos uma situação na qual
trabalhamos em uma empresa e descobrimos que ela cometeu uma ação condenável
eticamente em grandes proporções. Então, eu poderia dizer: “Como funcionário, devo
respeitar a empresa e suas decisões, bem como manter sigilo sobre suas atividades;
portanto, não levar a público aquilo que considerei uma ação que prejudicou os outros.
De outro lado, como cidadão me sinto na obrigação de denunciar a empresa na qual
trabalho”. Diríamos que estamos diante de um dilema ético. Esse dilema, em seu
discurso interno dialógico, o discurso da alma consigo mesma, como diria Platão, criou
dois personagens com intenções contrárias, habitando o mesmo referente: o funcionário
da empresa em conflito com o cidadão do mundo. Frege usou como o exemplo o
planeta Vênus, o qual pode ser referenciado com duas declarações diferentes e
contrárias: “a estrela da manhã é idêntica à estrela da tarde”. Frege conclui: “Quando
dizemos que a estrela da manhã é idêntica à estrela da tarde, as nossas descrições
referem-se à mesma coisa, mas a fazem de maneiras diferentes porque não têm o
mesmo significado” (Frege [1892] 1978: 84). Embora a expressão "a estrela da manhã"
e a expressão "a estrela da tarde" tenham o mesmo referente — o planeta Vênus —
65
mesmo assim estas expressões têm um sentido (Sinn) diferente. A diferença no sentido
destas expressões está no fato do planeta Vênus ser apresentado por cada uma delas de
uma maneira diferente. O sentido é assim considerado por Frege como o modo de
apresentação de um objeto. No caso da expressão "a estrela da manhã" o seu modo de
apresentação seria algo do tipo "a estrela muito brilhante que aparece no céu
imediatamente antes do sol nascer". No caso da expressão "a estrela da tarde" seria
qualquer coisa do tipo "a estrela muito brilhante que aparece no céu imediatamente
depois de anoitecer". Assim, no caso, as expressões têm um sentido diferente e não
podem ser tratadas como idênticas, apesar de se referirem ao mesmo objeto. No caso da
filosofia de Frege, o importante para ele era aplicar essa situação nos problemas da
matemática, já que sua principal questão filosófica era entender o que é o número.
Assim 1 + 1 e 2 são nomes de um mesmo número, mas nomes com significados
diferentes.
As reflexões de Frege tiveram enorme impacto tanto na filosofia como em outras
regionalidades científicas. Isto porque a noção de representação, tal como a filosofia
clássica havia entendido, passou a ser questionada em sua base. Assim, o ser descrito
não cria o discurso; ele apenas o constata. É o discurso que produz os seus personagens,
desde que obedeça ao sentido. Trata-se de uma tática de expressão. Estamos aqui muito
além dos limites da imitação. Transposto para o campo da arte, podemos inferir que um
objeto de arte sempre tem um duplo discurso, fala de alguma coisa, e fala de si mesmo.
Como assinala Eduardo Neiva
“Uma senhora visita uma exposição de arte moderna e queixa-se de que
nenhuma mulher real tem, como num quadro de Picasso, visto por ela, dois
olhos oblíquos sobrepostos num mesmo perfil. Mesmo sem conhecer a
distinção de Frege entre sentido e referência, o artista tem direito a
responder que diante de seus olhos não está uma mulher; trata-se de uma
pintura” (Neiva Jr. 1986: 20).
66
Passamos então para um novo estatuto da imagem, dado que agora ela não aspira
mais à duplicação do mundo. Paul Klee pronunciará então a frase profética de toda a
modernidade: A arte (imagem) não reproduz o visível, torna-se visível” (Klee [1945]
1998: 2). Toda uma nova forma de conceber o fenômeno da percepção começa a se
desenhar então. Agora, não nos maravilhamos com a capacidade da imagem substituir o
que é representado, passamos a nos maravilhar com a disposição das formas no espaço.
Toda a fatura de uma pintura, ou imagem em geral, são constituídos de elementos que
não são imediatamente percebidos como cópias do real, por exemplo, formas, texturas,
movimentos, etc. Apesar de toda a arte moderna ter nos chamado a atenção para o fato
de que a percepção de uma imagem acontece, primeiramente, na sensação de seus
elementos formais e materiais, na cultura ocidental continua existindo uma necessidade
da imagem imitar, que pede a cada instante para ser satisfeita. Raramente vemos uma
fila para assistir um filme abstrato de formas ou cores. Aliás raramente vemos
anunciado a exibição de um filme dessa natureza. Raramente tomamos consciência dos
dispositivos envolvidos numa projeção cinematográfica, tais como a sala escura, o
sistema de projeção, a presença da tela, os espectadores sentados imóveis, etc. Na
sociedade midiático o clichê é satisfazer a necessidade imitativa imposta pelas próprias
mídias. É a expectativa ao se observar uma fotografia, o cinema ou a televisão. Quando
se escolhe representar por imitação o que se apresenta à percepção, se fixa o ponto de
vista de quem contempla por meio de uma janela uma cena. Trata-se de evocar uma
testemunha, um sujeito que presencia um acontecimento (Gombrich 1986). Em nossa
sociedade, a testemunha tem um papel jurídico fundamental. Como a sociedade estatal é
estruturada em termos jurídicos, fica evidente a necessidade das mídias reforçarem este
caráter de observardor-testemunha. Além disso, ou conseqüente a isso, a representação
mimética está atravessada por um problema filosófico exemplar: a questão da verdade.
67
A imagem é aparência, porém, no caso da representação mimética, se procura
regrar essa aparência de tal forma que sua configuração seja verdadeira, ou seja,
parcialmente correspondente às condições da coisa representada. Neste tipo de imagem,
a composição é o resultado de um esquema prévio, abstrato e simplificado, que na arte
antiga era suficiente, mas que agora deve ser apenas uma aproximação primeira tornada
precisa por uma série de técnicas especializadas com o fim de se adaptar à forma a ser
reproduzida (Gombrich 1986).
A imitação, nesse contexto, é essencialmente lógica, pois pretende-se baseada
num modelo verdadeiro da realidade. Ela é então uma hipótese sobre a realidade, uma
possível representação, ou seja, uma representação conjectural. Isso é, antes de tudo,
uma questão epistemológica que remonta ao platonismo.
A imagem como Simulacro: A Dicotomia Aparência e Essência
Platão considerava esse mundo sensível à nossa volta como uma imagem,
mesmo que deformada, de uma ordem maior, Divina e Verdadeira. Diante da
multiplicidade do sensível, Platão evocou a semelhança entre todos os fenômenos da
natureza, chegando a conclusão de que “por cima” de tudo o que vemos à nossa volta há
um número limitado de Formas ou Idéias, que são o fundamento inteligível do mundo.
Porém junto às coisas do mundo que são cópias das Formas, se imiscuem pretensas
cópias, que na verdade não guardam uma relação de semelhança com as Formas
primeiras. São os simulacros que nos iludem e nos fazem acreditar em sua falsa
aparência. Trata-se da fundamental dicotomia da metafísica ocidental entre aparência e
68
essência. O principal alvo de Platão era os filósofos Sofistas gregos que, segundo ele,
relativizavam o conhecimento. Ele acreditava haver um perfeito paralelismo entre o
pintor e o sofista, já que o pintor produz uma impressão da realidade e o discurso do
sofista fornece somente a impressão de ser verdadeiro. Platão dirá então que a pintura é
uma imagem no espelho, ilusão especular de verdade (Platão, República VII).
Um carpinteiro faz uma cama; ao executar essa ação ele traduz a idéia, ou
conceito de cama, em uma matéria. O pintor que representa a cama apenas produz uma
aparência de segunda mão, ou de terceira ordem, se levarmos em conta a seqüência:
modelo, cópia e simulacro. Essa passagem de Platão é bem conhecida, e voltaremos a
ela várias vezes em nosso trabalho. O que se extrai imediatamente dela é a condenação
da arte feito por Platão. De fato, isso ocorre, mas o que também está em questão é o
estatuto epistemológico da imagem. Este estatuto persegue a imagem na cultura
ocidental. A imagem é como algo afastado do processo de conhecimento. Assim, Neiva
(1986) transfere esse problema para uma situação contemporânea:
“Se telefonamos a um carpinteiro para encomendar-lhe um cama, ele sabe
(ou deve saber) o que a palavra significa ou, que peça ou peças estão
incluídas no conceito “cama”. Um pintor que esboça o interior de um
quarto não precisa forçar a cabeça para designar corretamente os nomes
dados no comércio de móveis às peças que tem à sua frente. Ele não tem
nada a ver com conceitos ou classes, e sim com objetos particulares” (Neiva
1986: 29).
Assim, a distinção entre o pintor e o carpinteiro não está no meio expressivo,
pois podemos perfeitamente conceber um carpinteiro que desenhasse ou projetasse,
antes de executar, o seu objeto. Para Platão a distinção é fundamentalmente
epistemológica, ou seja, entre conceitos ou classes e a multiplicidade do sensível. O
carpinteiro executa um fazer que implica em manipular conceitos, portanto atinge o
plano do geral. Já o pintor não ascende a esse geral, pois sua imagem está diretamente
69
ligada a uma cama em especial, ou seja, sua imagem é representação do singular,
portanto afastado da Forma que é geral.
Para Platão e o platonismo em geral, as definições eram algo criado no céu. As
idéias pertencem ao que é eterno, fixo, às leis imutáveis. A imagem é um grau do
processo de conhecimento. Há o objeto, depois o nome, a definição, a representação e,
finalmente, o conhecimento e o entendimento. Por exemplo, existe o círculo, que
nomeamos pela palavra círculo, definido como a eqüidistância da circunferência ao
centro, possível de ser desenhado por compasso e entendido como o conceito de círculo.
Todos os estágios descritos acima relacionam-se por imitação: o objeto, o nome, a
definição e a imagem representam a idéia de círculo, idéia objetiva, plena, verdadeira,
imutável, perfeita. Quando a representação é imitativa, a verdade passa a ser o padrão
lógico que julga as imagens e permite a seleção das verdadeiras e a exclusão ou
condenação das falsas. Assim, a imitação, no platonismo, não é uma atividade restrita à
arte, mas a todo o universo, tanto humano como natural. Ele é regido pela imitação. O
universo é dividido em três níveis hierárquicos. No primeiro nível, acima de tudo,
existem as formas intelectuais e perfeitas. No segundo nível, existe o mundo sensível no
qual as multiplicidades copiam deformando o modelo ideal. No terceiro nível existem as
cópias das cópias, mutantes e de extrema falsidade, como os reflexos do sol criando as
imagens luminosas e instáveis na superfície das águas ou nos espelhos.
O carpinteiro constrói várias camas imitando o modelo conceitual. O pintor, que
representa cama, o faz a partir do ponto de vista de um espectador que simplesmente
observa, que percebe uma cama. Assim, o pintor produz algo distantes três graus da
natureza. Ele imita não o que é, mas o que parece ser; não a verdade, mas um fantasma.
Somente a forma é verdade; a realidade sensível que experimentamos é
imitação. Platão sentencia: os pintores, enquanto produtores de imagens contraditórias e
70
enganosas, devem ser coroados de louros e expulsos do convívio social, da República.
Trata-se de uma posição moral diante das representações, oriunda da doutrina platônica
de uma identidade entre Virtude, Beleza e Verdade. Em As Leis, obra monumental,
Platão propõe um controle do estado sobre as imagens, as quais devem ser produzidas
segundo critérios de aprendizado ético e político. Ele admira os cânones rígidos da arte
egípcia, o qual impede, segundo Platão, a modificação e a presença do novo. Nessa arte,
existe uma aspiração ao eterno. No Egito, as pinturas e relevos são os mesmos de há
10.000 anos
5
, porque as mesmas regras artísticas são seguidas pelos pintores (Leis II,
656-657).
Um caráter essencial de nossa época é a avidez pela novidade, a predileção por
tudo aquilo que ainda não se verificou, enquanto é típica do mundo arcaico a aversão
por aquilo que é novo e portanto frágil. Na realização de suas obras, os esforços do
mundo antigo se dirigiam para o que volta, permanece, em oposição a toda ação
subjetiva e particular. Platão vê nas formas geométricas elementares, a beleza em si,
porque reconhece nestes elementos formas originárias do ser e elementos estruturais da
realidade. Por exemplo, no Timeu servem para construir o mundo. No Filebo:
“Como beleza de formas não queremos citar agora aquela em que todos
pensariam primeiro, isto é, a beleza de seres vivos ou de certas pinturas;
penso, pelo contrário, no que é reto e redondo e nas figuras planas e sólidas
que daí se podem obter por meio do compasso, da régua e do esquadro, se
bem me entendes. Porque eu digo que isto não é belo em relação a alguma
outra coisa, como as outras, mas é belo em si por natureza, e dá um prazer
particular…” (Filebo, 51 c).
As formas geométricas representam fases do real, formas originárias, existentes
em si e não condicionadas por referências individuais.
5
Evidentemente que está era a visão de Platão. Sabemos hoje que de fato existem diferenças nas imagens
egípcias. Além disso é uma arte cuja função é totalmente outra de nossa concepção. Trata-se de uma arte
do cerimonial, diretamente ligada às questões do Estado.
71
Existe em Platão um nexo entre o eros, o belo e o ser em si, o qual é uma
ascensão no ser, sendo portanto metafísico; conduz do mundo das aparências ao mundo
do ser.
Toda alma, antes de iniciar a vida terrestre, contemplou em lugar hiper-urânico,
o ser existente em si. A beleza, diferentemente da justiça e da prudência, já possuía
naquele lugar um “esplendor particular”. “A vista é de fato o mais agudo de todos os
sentidos, no entanto por meio da vista não vemos a sabedoria… nem todo o restante
daquilo que é digno de amor; só à beleza coube ser para nós o que mais resplandece e
mais causa o amor” (Fedro 250 d). A alma lembra este esplendor quando vislumbra as
belezas individuais e cai em êxtase, na mania. O entusiasmo despertado por um rosto
belo ou por um belo corpo leva ao amor e à amizade e graças a esta ocorre a passagem
da esfera dos sentidos e ética, a uma realidade superior.
“Pois quem quer agir certamente neste âmbito, deve exercitar-se na
juventude… A partir daí considerará a beleza das almas muito mais
esplêndida do que a dos corpos… e ser assim induzido a ver o belo nas
aspirações e nos costumes… Porém das aspirações deve passar depois para
os conhecimentos, para que contemple também a beleza destes…”
(Simpósio 210 a-e).
De acordo com os trechos citados acima, a dialética do amor na natureza se
desenvolve no âmbito do belo que transcende a esfera dos sentidos. O belo tem um
caráter de aparência exterior que outros graus da realidade, como por exemplo a
verdade, não possuem. A beleza visível do corpo é para Platão a estrada principal que
conduz às idéias e é esta a verdadeira função da beleza na vida do espírito. Todas as
alusões dos pré-socráticos e de Xenofonte à relação entre beleza e visibilidade são
assumidas filosoficamente por Platão no mesmo sentido ontológico (Grassi 1975). Se a
beleza não existisse, a perfeição, a harmonia e a divindade do mundo não seriam
evidentes.
72
Segundo Platão, o lugar supremo da realidade é o ser originário, o reino das
formas e das idéias primigênias. O que existe e constitui nosso mundo visível, audível e
portanto perceptível mediante os sentidos é uma imagem dele e em certo sentido a
sombra do ser originário; só por meio do saber (epistéme) conseguimos ordenar os
fenômenos sensíveis num nexo fundamentado. De fato, saber significa compreender
aquilo que neste mundo de sombra se nos apresenta por meio dos sentidos, como um
multiplicidade sempre mutável, para captá-lo numa idéia, numa forma que esclareça a
essência dos fenômenos. Demonstrar, fundamentar, saber significa estar em condições
de indicar as razões deste “compreender” (a multiplicidade), em função dos princípios
válidos no mundo originário. Saber e demonstrar significa reportar-se àquele mundo.
A arte como mímesis (imitação) nasce da representação do mundo das sombras.
De fato, os objetos que caem sob a percepção dos sentidos são imitações das formas
originárias, das idéias, que só são acessíveis por conhecimento intelectivo; daí o fato do
artista ser um imitador da imitação, porque capta apenas um reflexo da realidade que,
por sua vez, é uma cópia efêmera de formas originárias realmente existentes. O artista é,
portanto, um prestidigitador e um imitador (República 598 b). Ele não ultrapassa o
terceiro estágio da realidade que está abaixo da verdade.
Platão faz uma distinção entre a arte que cria e aquela que simplesmente imita.
Da primeira faz parte a arquitetura que, justamente por isso, se encontra, segundo ele
num nível superior em relação à pintura e à escultura; a arquitetura não imita o mundo
das sombras, mas cria alguma coisa que deve à arte a própria existência no mundo das
sombras. Esta distinção teve mais tarde grande importância na teoria da arte do
Renascimento.
Se a imitação consiste na reprodução de uma realidade cuja forma originária
coincide com a idéia, a arte que produz também pode imitar a idéia.
73
“Podes dizer-me o que seja na verdade a representação (mímesis)?... Nós
fixamos em geral um só conceito para muitos objetos, aos quais damos o
mesmo nome… Não são nosso costume dizer que os fabricantes destes
móveis, tendo em mente o conceito, fazem, uns as camas e outros as mesas
de que nos servimos, e assim todas as outras coisas? O próprio conceito não
é fabricado por nenhum desses artesãos, como poderia sê-lo?... Bem, disse,
tu captas o sentido do discurso como convém. De fato, um desses artesãos é
precisamente o pintor” (596 a-e). “Então se ele não faz o que é, também não
faz o que é existente, mas apenas algo de semelhante ao existente e não o
próprio existente?... Queres agora que partindo deste ponto consideremos
também o imitador (tón mimeton), para saber quem é ele? – Como quiseres
respondeu ele. – Então, estes serão para nós três leitos: um, é o existente na
natureza, sobre o qual diríamos, penso eu, que foi feito por Deus… um pelo
carpinteiro… e um pelo pintor… portanto, o pintor, o carpinteiro e Deus
são os três prepostos da fabricação dos três leitos…” (República 597 a-e).
O pintor, portanto, simplesmente reproduz. É um sofista porque engana com a
aparência do não-real (a realidade exterior). No Sofista (265 a-b) Platão faz a mesma
distinção. Sendo producente, a arquitetura precede a escultura e a pintura que se
esgotam na imitação. No Sofista (266 c) diz, para exemplificar: a pintura de uma casa é,
em confronto com a casa fabricada, um sonho criado por quem está acordado: o artesão
que constrói um leito está mais próximo da verdade e do saber do que o artista que o
representa numa pintura (República 597 a-c). No Crátilo (430 d) Platão atribui à arte o
predicado da “exatidão” porquanto ela reproduz o objeto representado de modo
adequado para o olho do observador, procurando, iludi-lo.
A arte, portanto, não percorre o caminho do conhecimento; não visa à essência
das coisas, nem à verdadeira natureza dos objetos particulares, mas segue apenas a
verossimilhança e cria imagens ilusórias (República 511 e, 602 a).
Esta última objeção à arte implica também a seguinte: o artista não só não sabe,
como também visa a criar imagens enganosas, que representam ações humanas como as
que se encontram na história, portanto em nosso mundo incessantemente mutável.
74
“Qual destas duas coisas a pintura visa? Imitar o que existe e como é na
realidade, ou aquilo que aparece e como parece? Imita a aparência ou a
verdade? – A aparência, diz ele. – A arte imitativa está muito longe da
verdade e é por isso que ela faz qualquer coisa, porque capta de cada uma
apenas uma pequena parte, que é sombra daquela” (República 598 b; 377 e
ss.).
Logo Platão contrapõe a esfera do belo, ou seja o esplendor do ser primigênio,
ao belo da arte, que se encontra num plano inferior, pois o artista reproduz um nível
inferior da realidade, tal como se manifesta no mundo das sombras. Por este motivo,
Platão, no livro V da Repúbica (576 b), exclui com profundo desprezo os
“espectadores”, os simples amantes da arte, do círculo restrito dos sábios: contesta sua
capacidade de reconhecer a essência do belo.
O pintor não representa a forma da cama; copia o que já é cópia, produzindo um
simulacro. Está irremediavelmente afastado da verdade. Platão tinha horror à
perspectiva. Parecia-lhe imoral que o pintor corrigisse as proporções da realidade,
adaptando-as às condições da visão.
A perspectiva representa somente um dado da realidade: a maneira pela qual as
linhas e os volumes se apresentam para o espectador. Ela é, portanto, pura aparência,
mera ilusão, que resulta da intenção consciente de enganar por parte de quem desenha,
pinta, esculpe ou planeja arquitetonicamente. Platão preferia a objetividade, a
permanência, à subjetividade do ponto de vista.
A deformação é feita por perspectiva de tal modo que não possibilita o seu
reconhecimento. O espectador tem a impressão de ver os objetos tais como eles são,
sem saber que os vê apenas como aparentam ser. Só haveria um expediente contra a
aparência: a medida fixa e objetiva das proporções. A verdade não pode sofrer correções
a partir do ponto de vista do espectador. Platão percebe como, na imagem, a ilusão de
saber é imediata; reconhece o perigo da transformação da presença, que caracteriza a
75
materialidade da representação, em critério de evidência. A imagem que é feita na
medida da consciência do espectador produz a ilusão de certeza. Ao se apresentar como
certa, ela forja uma proximidade excessiva do conceito, e isso é um profundo erro: a
imagem em perspectiva representa o transitório, se expressa a partir da subjetividade,
enquanto o conceito é permanente. Logo, é impossível assimilar duas naturezas tão
distintas.
Esse é um dos principais momentos no qual se dá, na cultura ocidental, a
desvalorização da imagem e da percepção como conhecimento e a valorização de um
tipo de conhecimento desincorporado, o qual redundará na fala, ou diálogo, como a
forma privilegiada de se alcançar o conhecimento. O problema central aqui, então, é o
estatuto de uma expressividade, a fala, que guarda uma relação de representação do
modelo, que é o próprio conhecimento.
A posteridade herdou de Platão a desconfiança em relação aos sentidos e o
desejo de criar um sistema de representação que fosse o mesmo de um modelo. No caso
de Platão era a fala; em nosso cultura contemporânea é a forma textual. Nas ciências
exatas é a criação de uma linguagem artificial, principalmente na lógica. Nesse sentido,
a desconstrução de Derrida torna-se uma estratégia para desvelar a pretensão de uma
determinada forma expressiva ser o porta-voz do conhecimento.
76
A Desconstrução de Derrida como Questionamento da Representação
A desconstrução significa certas estratégias para ler, interpretar e escrever
textos. O termo foi introduzido na literatura filosófica em 1967, com a publicação de
três textos de Jacques Derrida: “Gramatologia”, “Escritura e Diferença” e “Fala e
Fenômeno”. Esta plêiade de publicações, imediatamente estabeleceu Derrida como uma
das maiores figuras no novo movimento filosófico e pensamento das ciências humanas.
Dos três livros de 1967, “Gramatologia” é o mais compreensivo na exposição do
conceito de desconstrução como um caminho de leitura das modernas teorias da
linguagem, especialmente o estruturalismo, e as meditações de Heidegger sobre a não-
presença, ou esquecimento do ser.
Derrida, em grande parte, continua o projeto heideggeriano de destruição da
metafísica, transformado, no caso de Derrida, em desconstrução. Agora, a metafísica
será nomeada como “logocentrismo” ou “fonocentrismo” (Derrida 1974). A metafísica
privilegiou a palavra oral, considerada como a linguagem originária e autêntica, em vez
da palavra escrita, vista como algo secundário e artificial com relação à linguagem oral.
Esse privilégio se radica na idéia metafísica do divino como presença imediata do
sagrado no homem. A metafísica ocidental, segundo Derrida, origina-se da idéia da
presença do original na voz, nessa oralidade primordial da qual toda escrita, e
principalmente a escrita fonética ocidental, é uma perversão e uma instrumentalização.
Para Derrida, é preciso descontruir o mito fonocêntrico, mostrando que não é a voz que
é primária, e sim a escritura, a écriture. É ela que está na origem de toda linguagem. A
escritura não é secundária, mas original. Não é um veículo de unidades lingüísticas já
constituídas, mas o modo de produção que constitui essas unidades. A escritura, nesse
sentido amplo, significa toda prática de diferenciação, de articulação, de espaçamento.
77
O conceito fundamental para Derrida é o de diferença. A escritura é a atividade mais
primordial de diferenciação, e é por isso que está na origem de toda a linguagem. A
linguagem é este conjunto de unidades, cujo sentido é dado exclusivamente por seu
caráter diferencial com relação a todos os demais signos. Os signos podem realizar-se
tanto na substância material da letra como na substância fônica da voz.
A desconstrução gramatológica supõe a investigação de todos os textos, de toda
a história humana concebida como textualidade infinita, para alcançar a escritura
reprimida, invertendo, nesse processo, a relação de subordinação implícita em cada
polaridade e desvendando a diferença como atividade original. Derrida, como Nietzsche
e Heidegger, quer destruir a metafísica ocidental do logos ou fonocêntrica, na qual estão
embutidas a repressão e a colonização da diferença pelo sempre-igual e pelo
homogêneo, representados pela presença, pela voz, pela consciência, pelo conceito,
categorias que têm dominado o pensamento moderno.
Na tradição da metafísica, a escritura é entendida como um signo, no sentido de
marca visível, de um outro signo, a fala. A superação da metafísica se consolida com o
último desenvolvimento na lingüística, ciências humanas, matemáticas e cibernética,
onde a escrita se torna puramente técnica, se desvinculando completamente da fala.
Precisamente, a liberação da função sobre o significado indica que a época, a
qual Heidegger chamou de metafísica da presença, atingiu o seu fechamento, embora
esse fechamento não significa necessariamente o seu término de uma vez por todas.
Derrida toma o fechamento da metafísica como sua “rasura” onde ela não desapareceu
inteiramente, mas permanece inscrita como um dos lados da diferença, e onde a marca
de apagamento de si mesma é um traço da diferença que junta e separa esta marca e sua
risca. Derrida chama este juntar e separar dos signos “différance” (Derrida 1974, 23),
um dispositivo que pode somente ser lido e não ouvido, pois “différance” e “différence”
78
possuem o mesmo som, porém escritas diferentes. O “a” é uma marca escrita que se
diferencia independentemente da voz, a qual é o meio preferido da metafísica. Neste
sentido, différance como um espaço da diferença como “escrita original” poderia ser o
“grama” da gramatologia.
Em seu nível funcional, toda linguagem é um sistema de diferenças, diz Derrida
(1974, 63), toda linguagem, mesmo a fala, é escrita. Para Derrida, marcas escritas ou
significadas não são ordenadas junto de seu natural limite, mas formam cadeias de
significados que se irradiam por todas as direções. Como Derrida assinala: “Não existe
o texto de fora” (Derrida 1974, 158). O que existe é o texto que inclui a diferença entre
“dentro” e “fora”. Um texto, então, não é um livro, e, estritamente falando, também não
tem um autor. Ao contrário, o nome do autor é um significado relacionado com outros,
e não existem significados maiores presentes ou mesmo ausentes no texto. Isto conduz
para o termo “diferença” como um suplemento para produzir espaço entre os signos.
Entretanto, Derrida insiste que “diferença não é, literalmente, nem uma palavra, nem um
conceito” (Derrida 1982, 3). Como pode então a diferença ser caracterizada? Derrida se
recusa a responder a questões “quem” ou “o que” se diferencia, porque isto sugere a
existência de um nome próprio para diferença em vez de suplementos infinitos, dos
quais “diferença” é mais um.
Derrida considera Nietzsche como o pensador que nos ensinou pensar a
diferença de falar ao mesmo tempo muitas línguas e de produzir muitos textos.
Nietzsche nos introduziu no fato de que se trata de estilos, que precisam estar o plural.
A metafísica ocidental, ao contrário, compreendeu o texto como algo que
sempre remete a uma totalidade natural. Assim compreendeu a teologia, o
logocentrismo e o enciclopedismo, situando-se contra a irrupção da escritura. Em
Nietzsche, segundo Derrida (Derrida 1983, 5), a escrita não está originalmente
79
submetida ao logos e à Verdade. Ele liberta o significante de sua dependência a um
Logos. Leitura, escrita e texto são operações originárias.
A ênfase de Derrida na interpretação e no jogo infinito dos signos assemelha-se,
em parte, à hermenêutica de Gadamer. O modelo de Gadamer para o ato de
entendimento é a conversa, o diálogo, o dar e receber que ocorre entre o eu e o texto;
assim como a contínua troca de diferenças oriundas de um determinado contexto. A
interpretação é um “projetar” de sentido. Inicia-se quando um primeiro sentido se
mostra, mas que, inicialmente, ainda é só pré-projeto, que será revisto por outros rivais,
com o fim de que o movimento do sentido de entender e interpretar seja continuamente
abastecido de novos projetos até chegar a uma unidade de sentido único. Segundo esse
modelo, a hermenêutica entende não apenas o ato isolado do entendimento, mas
também o processo do entendimento no interior das ciências individuais, da história
humana e do estar-no-mundo.
Uma leitura desconstrutiva, então, não declara ou impõe sentido, mas marca
lugares onde a função do texto trabalha contra seu aparente sentido, ou contra a história
de sua interpretação.
Poderíamos dizer que, no contexto platônico, se trata de uma libertação do
simulacro, que, agora, não se pretende mais como pretensa cópia, mas como diferença
do modelo. É preciso assinalar que essa libertação do simulacro de forma alguma
implica necessariamente numa liquidação do real, de seu aniquilamento. Pelo contrário,
trata-se de uma relação com o real, de uma tensão que não visa reproduzi-lo, mas
experimentá-lo.
80
As Imagens Fantasmagóricas como Diferença
Quando a relação entre imagem e coisa é imitativa, o suporte da representação
funciona como um espelho, devolvendo, serenamente, a aparência do que é
representado para o olhar. O espelho é uma metáfora idealizada do tipo de
relacionamento que define a realidade. Os teóricos renascentistas da perspectiva já
sabiam disso. Segundo Alberti,
“…um bom juiz é o espelho. Não sei por que as coisas pintadas têm tanta
graça no espelho. É maravilhoso que a menor fraqueza esteja tão
manifestadamente deformada no espelho. As coisas da natureza serão,
portanto, corrigidas com um espelho.” (Alberti [1435] 1989: 75).
No espelho, as distâncias são ainda mais aprofundadas; revelam-se os limites
da perspectiva. O espelho é uma boa metáfora, pois supõe uma correspondência
termo a termo entre a representação e o objeto representado. O espelho é sempre fiel
e servil à coisa que ele reproduz. Seu valor de verdade deriva exatamente dessa
servidão imediata, sem que seja outorgado à imagem o menor direito de interferência
nos traços da coisa representada.
A estética platônica falava na cópia de um modelo inacessível ao mundo dos
sentidos. A Idade da Ciência não poderia ver a verdade fora das coisas: é no mundo
dos objetos sensíveis que ela habita. Na filosofia de Platão, a geometria funcionava
como meio de transcender a realidade sensível e, assim, intuir especulativamente a
essência da verdade ideal e divina. As formas matemáticas na Idade da Ciência, não
nos afastam das coisas, mas expõem as estruturas do mundo. Não se deve admitir
que a Ciência rejeite as aparências como falsa realidade; simplesmente diz que elas
81
são o que são: o que vem à luz, pura manifestação, e nada mais. O erro seria tomá-las
como realidade total, impondo-lhes um valor que lhes é estranho.
Para homens como Galileu e René Descartes, a geometria expõe a estrutura,
enquanto, à primeira vista, a aparência do mundo sugere desordem. As formas da
visão envolvem-se em si mesmas, num redemoinho enlouquecido e labiríntico. Não há
mesmo repouso na aparência. As imagens recusam-se a representar um exterior que
possa normatizar seu descontrole e sua abundância. Representar o objeto é uma
propriedade subalterna. Como é possível representar o que não tem permanência? A
ilusão espalha-se pela superfície do mundo; por isso, a atitude é ignorá-lo. A vida é um
sonho povoado de imagens livres, complexas e reunidas por conexões arbitrárias que
não obedecem às regras triviais da realidade.
A partir do século XVI, as imagens na pintura ocidental aspiram à autonomia.
Gustav R. Hocke menciona que esse estilo – o maneirismo – tem origem num quadro
de 1523 – Auto-retrato diante de um espelho convexo –, pintado por Francesco
Mazzola, Il Parmigianino (1503-1540). A imagem é deformada porque Mazzola
representa-se numa pose diante de um espelho convexo.
“Sobressai da tela uma beleza quase abstrata. Por causa da perspectiva
distorcida do espelho convexo vê-se, em primeiro plano, uma mão
demasiadamente grande e anatomicamente insólita. Nota-se um movimento
convulsivo que chega a ser vertiginoso. Ao fundo, distingue-se apenas
confusamente uma minúscula parte da janela em forma de um triângulo
alongado, onde a luz e a sombra tentam desenhar alguns sinais
hieroglíficos. O retrato, em forma de medalhão, apresenta-se como modelo
característico do espírito. Para empregarmos a terminologia da época,
poderíamos dizer que se trata de um engenhoso concetto, de uma figura
prenhe de sentido, apresentada sob forma ótica. Sua forma e seu conteúdo
encerram exatamente aquilo que entre os anos de 1520 e 1650 um pintor ou
um literato europeu deveria ressaltar para poder ser chamado de moderno”.
(Hocke 1975: 15)
Como no quadro de Mazzola, as figuras do Juízo Final, de Michelangelo
Buonarroti (1475-1564), iniciado em 1536, são o que são: imediatas e diretas. Só
secundariamente as imagens apontam para o mundo exterior, labiríntico e de formas
82
retorcidas, onde desordem e angústia se refletem, como jogo, num inferno de espelhos.
O espelho, que garantia fidelidade ao que se representava, passa a ser instrumento de
autonomia das imagens, índices do labirinto tenebroso que é o mundo. A perspectiva
não poderia representar plenamente a visão. Vemos com dois olhos, móveis, que
exploram o campo visual. Na perspectiva, a situação é bem outra: o olhar é unificado e
imobilizado. A perspectiva não representa a visão, mas é uma representação dela.
Vemos da forma que não representamos, pois o olhar percebe de modo ligeiramente
esférico, enquanto a perspectiva é linear. Caminhando, posso, pelo “rabo do olho”,
saber se alguém me segue. Isso quer dizer que a visão acontece como se fosse a
projeção num globo: o globo ocular. A perspectiva, por sua vez, tem os limites restritos
à superfície da imagem; já a percepção retiniana não os tem. Existe uma discrepância
entre a percepção e a perspectiva linear. Por que, então somos capazes de entender uma
pintura em perspectiva ou mesmo uma fotografia? Certamente porque fomos treinados
para isso. As pinturas em perspectiva, assim como quaisquer outras, têm que ser lidas.
A habilidade de leitura deve ser adquirida (Goodman 1984). Os tratados renascentistas
reforçavam esse aprendizado: os quadros educavam a visão dos espectadores, enquanto
os tratados revelavam as técnicas para outros pintores.
A convenção do olhar, que se supunha natural e inevitável, é questionada. Nosso
único modo de ver era frontal; as outras projeções eram postas de lado. Agora, um novo
mundo se revela. Surgem as anamorfoses, as quais nos obrigam a contemplar a partir de
um ângulo que distorce e desfaz a interpretação frontal, à altura dos olhos. As
anamorfoses são aberrações que afirmam que a perspectiva não é um instrumento de
representação exata, mas uma mentira (Baltrusaitis 1984). Elas procuram ver além das
soluções que se limitam às condições aparentes do olhar. Cada anamorfose é uma
projeção de formas segundo regras autônomas e com o menor teor de referência. O
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efeito é distorcido, monstruoso e mágico. Experimentamos uma disjunção do real e da
aparência. A ordem natural da visão é abalada, mesmo que ainda seja possível
reconhecer elos de tênue correspondência entre o real e a aparência. As formas recusam
a semelhança com um modelo que supúnhamos real. A tradição platônica qualificaria a
anamorfose de falsa semelhança, pura fantasmagoria, que nos remete a um abismo de
simulacros capazes de enlouquecer. Não há maior simulacro do que aquele apoiado na
visão, por onde se insinuam os mais aberrantes fantasmas. Quem conhece as condições
da visão adquire o poder de deformá-la. Para o platonismo, “a anamorfose e a pintura
realista reúnem-se numa mesma ordem de princípios: a medida falsa e a realidade
enganosa”. (Baltrusaitis 1984: 102).
Assim, quanto maior a autonomia da imagem, maior a possibilidade de ilusão.
No auge da Idade da Ciência, no século XVII, começa a surgir uma paixão social pelas
possibilidades visionárias e fantasmagóricas da perspectiva. Quem melhor exemplifica
essas possibilidades é Athanase Kircher (1602-80), que escreve, em 1646, um tratado
chamado Ars magna lucis et umbrae (A grande arte da luz e da sombra), descrito por
Baltrusaitis: “todos os problemas da perspectiva artificial e natural, com correções e
deformações por meios geométricos e mecânicos, são expostos minuciosamente na
parte que trata das radiações” (Baltrusaitis 1984: 82).
Obrigatoriamente, as imagens são construídas a partir dos raios luminosos e das
sombras que se oferecem ao olhar. É pela aparência – em si mesma precária e mutante –
que a verdade se manifestará. A independência da aparência implica imagens
transbordando alucinada e incontrolavelmente, sucedendo-se rapidamente sem que haja
um reconhecimento definitivo do real. Tudo flui. Por isso, não há ordem estável no
mundo. Nos jardins alternam-se as visões fugidias de plantas e árvores que se
transformam em animais. A perspectiva não é uma forma estática que apenas registra os
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raios visuais; ela tem “uma força ativa e projeta em torno de si mundos que se fazem e
se desfazem como que por encanto” (Baltrusaitis 1984: 81). A deformação por
anamorfose sugere a fragilidade da matéria, até então suposta constante e imutável.
As semelhanças proliferam, instalando a inquietude, a ansiedade e a estranheza.
As teorias da interpretação, no século XVI, trouxeram uma lição de abismo: qualquer
coisa poderia assemelhar-se a qualquer coisa. Conhecer era apenas contemplar; a
contemplação produzia uma rede ilimitada de semelhanças escondidas. Se todas as
coisas são semelhantes entre si, tudo é possível. A dúvida se instala como algo que tem
que ser levado em conta ou como algo que tem que ser superado.
Num ensaio sobre a experiência, Michel de Montaigne (1533-92) expõe com
clareza a vertigem da dúvida, própria do século XVI, dizendo que, para o pensamento,
só existe um emaranhado de dúvidas: “a razão e a experiência têm tantas formas que
não sabemos qual escolher”. Em Montaigne surge uma filosofia da dúvida, da recusa às
sínteses generalizantes e apaziguadoras, um cultivo da multiplicidade.
“ […] As conseqüências que procuramos tirar da comparação dos
acontecimentos não oferecem segurança, porquanto não são jamais
idênticas […] o que encontramos nas coisas mais semelhantes é a
diversidade, a variedade […] a diferença introduz-se por si só em nossas
obras e nenhuma arte pode chegar à similitude […] a semelhança não
unifica na mesma proporção em que a dessemelhança diversifica […] a
natureza parece ter-se esforçado por não criar duas coisas idênticas”
(Montaigne [1580] 1972: 481).
Para estabelecer os princípios primeiros dos quais deriva todo o saber científico,
Descartes responde ao ceticismo de Montaigne, transformando a dúvida em método.
Um método exagerado: duvida-se de maneira radical e sistemática e, assim, cria-se um
critério de exclusão para ordenar, por seleção, o emaranhado de semelhanças
responsável pelo incômodo da dúvida.
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Seria então possível começar tudo novamente: desfazendo-se de toda e qualquer
opinião a que até então se dera crédito. A dúvida metódica cartesiana é clara: bastará
reconhecer a menor dúvida para que a opinião examinada seja excluída. Se uma coisa
foi passível de dúvida uma única vez, nada garante que isso não se repetirá.
Trata-se, portanto, de não admitir nenhuma crença; a não ser a que se apresente
clara e distinta ao espírito. As crenças já acolhidas foram apreendidas pelos sentidos que
são enganosos e falhos. A obra de Descartes – Meditationes de prima philosophia
(Meditações de filosofia primeira [1641]) –, que encena um percurso filosófico para o
qual o eu que narra é simplesmente todos nós que refletimos, começa com o exame dos
corpos que vemos e tocamos: “as coisas mais comuns e que acreditamos compreender
mais distintamente”. Aplicando o método da dúvida exagerada e metódica, ficaremos
com a seguinte pergunta, de natureza filosófica: a realidade sensível, representada a
partir da consciência, é uma forma de conhecimento isento de dúvida? À primeira vista,
a realidade sensível define um conhecimento, composto por um eu que percebe e um
objeto percebido, do qual não se pode razoavelmente duvidar. Só haveria um caso de
dúvida que poderia negar as realidades corpóreas: no caso da loucura ou no da
alucinação. Alguns loucos são:
“Insensatos, cujo cérebro está de tal modo perturbado e ofuscado pelos
negros vapores da bile que constantemente asseguram que são reis, quando
são muito pobres; que estão vestidos de ouro e de púrpura, quando estão
inteiramente nus; ou imaginam ser cântaros ou ter um corpo de vidro”
(Descartes [1641] 1973: 114).
Descartes entretanto sabe que não está louco e que não poderia deixar-se guiar
por esses exemplos. Ao afirmar que sua situação não é comparável à dos loucos, ele não
quer com isso dizer que a realidade sensível é completamente isenta de dúvida. Seria, se
não houvesse a mínima possibilidade de experimentarmos a alucinação na vida
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cotidiana. Verifica-se que, ao dormirmos, sonhamos: uma experiência ainda mais geral
a todos os homens do que a loucura. O sonho é universal e nos afunda diariamente
numa noite de dúvidas.
O sonho poderia ser uma evidência clara e distinta? Ele não é uma forma de
conhecimento absolutamente certa. Ao sonharmos, vemos coisas que se desfazem em
imagens que não existem na natureza; sonhamos com ações que não cometemos. Às
vezes, porém, sonhamos tão distintamente que não sabemos separar a vigília e sonho.
Podemos ter sonhos tão vívidos que nos parecem reais, enquanto, por êxtase ou
desconforto, algumas situações vividas nos parecem irreais.
Na primeira Meditação, Descartes propõe que se acredite na falsidade de todos
os pensamentos e também de tudo: “o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e
todas as coisas que vemos são apenas ilusões e enganos”. A ilusão é comum. O próprio
eu é um pesadelo, uma experiência sem armação: “estou absolutamente desprovido de
mãos, olhos, carne, desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter
todas essas coisas”. Tudo está sob a mais radical suspeita. Para Descartes, é o único
caminho de se alcançar alguma certeza.
O conhecimento verdadeiro deverá estar desligado das percepções sensíveis.
Haverá mesmo um conhecimento que independa do sensível, que se componha da auto-
suficiência da reflexão racional? Aparentemente, as ciências matemáticas. A aritmética
e a geometria são formas de conhecimento que escapam da incerteza? O seu
conhecimento é desprovido de dúvidas?
A geometria e a aritmética não estão desprovidas de erro. Descartes vai ao
encontro da dúvida, perguntando que garantias hão da certeza absoluta das verdades
matemáticas. O questionamento radical da dúvida exagerada valerá também para a
geometria e a aritmética. Assim, Descartes imagina a existência de um gênio maligno –
87
poderoso, atuante, competente e enganador – enviado por Deus, de propósito para nos
fazer cometer desatinos, para mostrar a nossa falibilidade; evitando assim que a soberba
e a arrogância do ser humano tente emparelhar com a de Deus. Então, os fundamentos
da matemática estão em questão devido a hipótese do gênio maligno. Os números
também se movem na ilusão.
“Suporei, pois, que há não um verdadeiro Deus, que é a soberana fonte da
verdade, mas um certo gênio maligno, não menos ardiloso e enganador do
que poderoso, que empregou toda a sua indústria em enganar-me. Pensarei
que o céu, o ar, a terra, as cores, as figuras, os sons e todas as coisas
exteriores que vemos são apenas ilusões e enganos de que ele se serve para
surpreender minha credulidade. Considerar-me-ei a mim mesmo
absolutamente desprovido de mãos, de olhos, de carne, de sangue,
desprovido de quaisquer sentidos, mas dotado da falsa crença de ter todas
essas coisas […]” (Descartes [1647] 1973: 96).
Não haverá conhecimento absolutamente certo, isto é, isento de dúvida? Todos
os pensamentos serão falsos? As representações do pensamento podem ser
passíveis de erro; só uma coisa está à margem da incerteza: o meu ato de pensar.
Pensando certo ou errado, em estado alucinatório ou não, é que conheço a minha
existência. Parando de pensar, deixo de existir, isso é imediato, evidente e
inquestionável. Assim Descartes formula no Discurso do método: eu penso, logo
existo:
“E, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão
certa que todas as mais extravagantes suposições dos céticos não seriam
capazes de a abalar, julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o
primeiro princípio da Filosofia que procurava” (Descartes [1641] 1973: 54).
Se, por um lado, aquele que pensa não tem certeza da verdade das
representações, por outro, seu pensamento produz a evidência e a clareza instantâneas
de que pensar é a condição para a certeza de existir. Nessa situação, duas naturezas
distintas estão em relação de exclusão; o pensamento e a matéria, esta qualificada como
88
extensão. O pensamento pode ser desligado dos sentidos e do corpo, desincorporado. As
formas do pensamento são puramente inteligíveis e autônomas em relação à realidade
corpórea, a partir da qual se instaura o erro.
O engano e a ilusão existem porque, enquanto homens, participamos tanto do
pensamento como do corpo sem ter necessariamente o poder de impedir a mistura
confusa de naturezas tão distintas.
Descartes exige que se abandone uma lógica ternária – princípio da semelhança
e do silogismo – e que se formule uma lógica simplificada, binária, base de uma
linguagem matemática que interpreta, experimentalmente, a natureza. Segundo ele,
existe uma distinção radical entre o pensamento e a matéria sensível. As idéias não têm
origem nos sentidos: elas são inatas. Uma prova disso é o raciocínio geométrico que não
é abstraído dos sentidos e que nos produz a impressão de já conhecê-lo:
“E não conheço estas coisas com distinção apenas quando as considero em
geral; mas, também, por pouco que eu a isso aplique minha atenção,
concebo uma infinidade de particularidades referentes aos números, às
figuras, aos movimentos e a outras coisas semelhantes, cuja verdade se
revela com tanta evidência e se acorda tão bem com minha natureza que,
quando começo a descobri-las, não parece que aprendo algo de novo, mas,
antes, que me recordo de algo que já sabia anteriormente, isto é, que
percebo coisas que estavam já no meu espírito, embora eu ainda não tivesse
voltado meu pensamento para elas” (Descartes [1647] 1973: 131).
Por serem inatas, as idéias antecedem e ordenam a experiência sensível. O
mundo corpóreo é uma dedução feita a partir de princípios claros e evidentes que
habitam o espírito, antes do contato com as coisas. A geometria é a expressão formal de
idéias inatas; ela detém o segredo, ou a chave, da natureza.
Descartes prega uma correspondência absoluta, termo a termo, entre cada ponto
no espaço e sua representação no pensamento e no plano. Verdade é adequação do
pensamento do sujeito ao objeto pensado. O modelo é o da geometria analítica, com as
89
projeções de pontos em dois eixos ortogonais: nasce uma concepção binária da
representação.
Com a filosofia cartesiana começam a ser instauradas as condições propícias
para uma concepção técnica da imagem que exige uma participação reduzida do
trabalho manual do pintor e do desenhista. Quando as teses de Descartes forem
históricas e, portanto, estiverem absorvidas sem que seja necessário reconhecê-las,
então aparecerá a fotografia: uma imagem técnica com menor intervenção do homem,
efeito direto do contato da luz com uma superfície sensível (Flusser 1985: 69-70).
Toda essa exposição de alguns aspectos da filosofia de Descartes é pertinente a
uma teoria das imagens, se nos lembramos do que Panofsky dizia a propósito das
representações do espaço em perspectiva: “são uma sistematização e uma estabilização
do mundo exterior e uma extensão da esfera do Eu” (Panofsky 1999: 162). Para o
próprio Panofsky, o cartesianismo racionalizava perfeitamente os termos desse conceito
de espaço: o mundo está à disposição do sujeito, objetivado e pronto para ser tocado. O
homem pode dispor das coisas à sua frente. A imagem do mundo é a de um quadro
6
.
A teoria cartesiana pressupõe um tipo de imagem fria, totalmente determinada
por seu método e, principalmente, mecânica. A imagem verdadeira será a aquela que
representa as qualidades primeiras da matéria, figura e extensão. Portanto, a cor, e todas
as sensações são descartadas da imagem técnica que reproduz a estrutura de um mundo
cinza (Marion 1993). É uma imagem próxima ao pensamento cartesiano que
desincorpora o ato de pensar e desconfia das percepções e das sensações. A imagem de
tipo cartesiano apresenta uma estrutura, solidez e imobilidade que figura a representação
clara e distinta do mundo. Trata-se de uma imagem sem cor, sem mobilidade.
6
Heidegger chamou essa situação de “o mundo como imagem” e considerou com um dos principais
momentos da metafísica da presença.
90
As imagens tradicionais são como espelhos que capturam vetores de significado
no mundo, os codificam e refletem transcodificados à superfície. Já as imagens
tecnológicas são projeções, capturam signos sem significação que se precipitam do
mundo sobre elas e as codificam para lhes dar significado.
Acreditamos que as imagens digitais, ao contrário das imagens cartesianas,
introduzem a questão do fluxo e são eminentemente temporais. Sua experiência nos
fazer perceber que não temos acesso ao tempo apertando-o, como por meio de pinças,
entre os pontos de referência da medida; ao contrário, para termos idéia dele, é preciso
deixá-lo fazer-se livremente, acompanhar o nascimento contínuo que o torna sempre
novo e, justamente por isso, sempre o mesmo. São imagens que expressam o devir, ao
contrário da imagem cartesiana que expressa o fixo o imutável.
Há seres, estruturas, organizações, como a melodia, que nada mais são do que
uma certa maneira de durar. A duração não é somente mudança, devir, mobilidade, é o
ser no sentido vivo e ativo da palavra.
Tomando contato com o composto de alma e corpo, Bergson era reconduzido à
duração. Ela é o meio no qual a alma e o corpo encontram sua articulação, porque o
presente e o corpo, o passado e o espírito, diferentes em natureza, passam contudo um
para o outro. A intuição já não é decididamente coincidência simples ou fusão: estende-
se a “limites”, como a percepção pura e a memória pura, e também ao que está entre as
duas, a um ser que, diz Bergson, abre-se ao presente e ao espaço na exata medida em
que visa um futuro e dispõe de um passado.
No apreender a Duração, o sentido se refaz com o risco de se desfazer, é um
sentido volúvel, bem de acordo com a definição bergsoniana do sentido, que é “menos
uma coisa pensada do que um movimento de pensamento, menos um movimento do que
uma direção”.
91
O que nos interessa muito na fenomenologia bergsoniana é a incorporação do
processo perceptivo. É a relação com uma imagem que não é representação, mas
constitutiva da presença de um corpo com a propriedade da afecção e de ação no
mundo.
Durante a exposição desse capítulo, procuramos mostrar situações teóricas nas
quais a imagem é entendida como produto da percepção, a qual é propriedade de um
corpo que é um empecilho para o conhecimento verdadeiro. A imagem, em sua
especificidade, também é compreendida como simulacro, ilusão; portanto destituída da
possibilidade de participar de alguma forma das estruturas do conhecimento. Ela é
somente aceita como representação, ou cópia de uma realidade que se lhe superior. Os
discursos sobre o ambiente digital e suas imagens enfatizam um conceito de informação
como desmaterialização e desincorporação. Isso tudo reflete uma estrutura conceitual
que permeia a cultura ocidental e que é projetada na imagem digital. Nossa proposta é
enfrentar a imagem digital como algo que existe autonomamente e se relaciona em sua
autonomia com nosso corpo. Porém, antes de atingirmos esse ponto, pretendemos
aprofundar um pouco mais as estruturas conceituais que desqualificam a percepção
como conhecimento e conseqüentemente concebem o texto e a palavra como únicos
signos capazes de expressar o conceito.
92
Capítulo 2
Imagem: Ilusão, Realidade ou Afecção?
Imagem: Ilusão, Realidade ou Afecção?
“Trata-se de assegurar o triunfo das cópias sobre os
simulacros, de recalcar os simulacros, de mantê-los
encadeados no fundo de impedi-los de subir à superfície
e de se ‘insinuar’ por toda parte” (Gilles Deleuze 1974:
262).
Neste capítulo pretendemos defender a hipótese de que certos modos de pensar a
imagem em geral, e a digital em particular, estão profundamente ancorados em certos
enquadramentos teóricos cujas referências são um tipo de platonismo e um tipo de
cartesianismo. A imagem digital torna-se simulacro quando é compreendida apenas
como uma representação da realidade. Isto porque sua relação causal não é com a
realidade, mas com um código escondido na memória do computador. Ela torna-se puro
efeito, aparência, máscara de uma essência, cuja verdade é ser fluxo de código. Pretensa
cópia da realidade, sua condição é ser simulacro. Abordar a imagem digital desta
maneira implica em aceitar como fundamento uma certa tradição platônica, somado a
uma noção de representação
1
de caráter biunívoco presente na tradição do
cartesianismo. Neste enquadramento, conseqüente com o fundamento, a imagem torna-
se simulacro, idéia confusa, ou simplesmente informação desmaterializada e
desincorporada. Por conseguinte, para melhor esclarecer esta afirmação e a filiação do
enquadramento com os fundamentos apontados convém, primeiro, debruçar-se sobre as
1
Por representação nos referimos uma situação epistemológica caracterizada por Michel Foucault (1999)
como “era da representação”, ou seja, um tipo de pensamento surgido no século XVII que enquadra os
signos da linguagem como já não tendo outro valor senão a tênue ficção daquilo que representam. Neste
momento a escrita e as coisas já não mais se assemelham. Em sua forma privilegiada, a partir da
dessacralização da natureza por Descartes, representação significa a equivalência estabelecida, idealmente
de modo geométrico, entre uma cena empírica primeira e uma cena produzida e projetiva, isto é, capaz de
reproduzi-la e, por isso, de tecnicamente dominá-la. Assim, não se trata de um sentido fraco da palavra
representação na qual não ocorre qualquer compromisso epistemológico ou ontológico forte, como por
exemplo ao dizer que um mapa de alguma área geográfica representa certas características do terreno e
então constrói aquele terreno como sendo de determinada forma. Trata-se, ao contrário, de representação
no sentido forte, um compromisso ontológico e epistemológico, ou seja, uma teoria do conhecimento.
Teremos oportunidade no decorrer do capítulo de melhor esclarecer este ponto.
94
duas tradições teóricas em questão; segundo, propor um outro enquadramento
conceitual que livre a imagem digital de sua caracterização como simulacro ou
informação desmaterializada e desincorporada.
Platão e o Simulacro
“Como o pintor que pinta a imagem de uma cama, o
imitador faz um produto afastado três graus da
natureza, pois ele imita não o que é, mas o que parece
ser; não a verdade, mas um fantasma, o fantasma do
simulacro” (Platão, República, Livro X, 596e – 601d)
O conceito de simulacro
2
em Platão filia-se à sua teoria das Idéias exposta por
toda sua obra, notadamente no mito da caverna tal como descrito no Livro X da
República. Esse mito desenvolve-se por meio de um diálogo entre Sócrates e Glauco e
seu objetivo é eliminar a possibilidade do simulacro abrindo caminho para o reino do
Mesmo e do Semelhante, isto é, do esquema Modelo/cópia. O simulacro pode ser então
definido como uma falsa cópia, mantendo relações de superfície, sem profundidade,
com um Modelo. O platonismo desenvolve um método de pensamento cujo objetivo é
distinguir claramente dois tipos de imagens, ou imitações: as cópias-ícones e os
simulacros-fantasmas. “Aí estão as duas formas que te anunciei da arte que produz
imagens: a arte da cópia e a arte do simulacro” (Platão: Sofista 236b, 264c). As cópias-
ícones são consideradas boas cópias, bem fundadas; enquanto que os simulacros-
fantasmas estão submersos na dessemelhança. Isto porque, o modelo das cópias-ícones
2
Nos concentramos aqui na teoria platônica do simulacro, o qual foi tematizado pela filosofia antiga
numa outra vertente diferente de Platão. Trata-se de Lucrécio que privilegia o efeito sensorial do
simulacro. Um interessante estudo que pretendemos realizar posteriormente a esta tese é a comparação
entre o simulacro de Platão e o de Lucrécio, aplicando esses dois campos teóricos na diferenciação de
várias teorias da comunicação digital.
95
é o Mesmo, ou seja, a Idéia, sendo “a identidade superior da Idéia que funda a boa
pretensão das cópias” (Deleuze 1974: 262). Os simulacros tentam se passar por cópias,
apoiados sobre uma aparência. Eles não possuem, de fato, nenhuma relação essencial ou
de participação com qualquer tipo de Modelo. Sua relação com o Modelo é de pura
exterioridade. Existe uma certa “autonomia” do simulacro em relação ao modelo, que o
torna potencialmente perigoso, desregrado. Então é necessário desmascará-lo, sendo de
fundamental importância, para Platão e o platonismo em geral, estabelecer um método
que possibilite a clara distinção entre a Idéia, o Modelo, a Cópia e o Simulacro. Existe
uma hierarquia entre esses elementos. A Idéia, que deve ser o Modelo, é de natureza
divina. A cópia, que possui uma relação de semelhança com o Modelo, é da condição
humana. Já o simulacro, que se pretende cópia, porém não o sendo, pertence à
obscuridade da ignorância, do preconceito, do prejuízo e da superstição. Existe então
uma degradação progressiva que percorre a escala de cima a baixo, sendo o simulacro a
completa degradação.
Deleuze considera a motivação do platonismo da seguinte forma: “o motivo da
teoria das Idéias deve ser buscado do lado de uma vontade de selecionar, de filtrar”
(Deleuze 1974: 259). Trata-se então de um método que se ancora no processo de
divisão. Quando se pensa em tal método logo se cogita no processo de “divisão do
gênero em espécies contrárias para subsumir a coisa buscada sob a espécie adequada”
(Deleuze 1974: 259). Entretanto, o objetivo profundo da divisão é selecionar linhagens.
Nesse sentido, a dialética platônica deixa de se basear na contradição ou na
contrariedade, baseando-se, de fato, na dialética da rivalidade (amphisbetesis), ou seja,
uma dialética destinada a selecionar os rivais ou pretendentes (Deleuze 1974: 260).
Platão expõe o método da divisão em três grandes obras: Fedro, Político e
Sofista. Nos dois primeiros, o método está fundamentado em um mito fundador,
96
enquanto no último, não existe mito fundador. Deleuze explica da seguinte forma esta
ausência: “No Sofista o método da divisão é paradoxalmente empregado não para
avaliar os justos pretendentes, mas, ao contrário, para encurralar o falso pretendente
como tal, para definir o ser (ou antes o não ser) do simulacro”. A sofisticada análise,
empreendida por Deleuze, sobre o abismo do simulacro conduz à conclusão que Platão
desvela “no clarão de um instante” que não se trata somente de uma falsa cópia, mas o
simulacro “põe em questão as próprias noções de cópia e de modelo” (Deleuze 1974:
261). Assim, o método platônico da divisão tem como objetivo desmascarar os
simulacros sempre submersos na dessemelhança (Deleuze 1974: 262). A distinção
ontológica entre Idéia e cópia tem como único objetivo assegurar a distinção entre duas
espécies de imagens e fornecer um critério que permite selecionar as boas das más
imagens.
Segundo Bergson, quando estudamos a filosofia antiga, podemos perceber que
as concepções dos mais antigos pensadores da Grécia, os chamados pré-socráticos,
eram, certamente, muito vizinhas da percepção, uma vez que é pelas transformações de
um elemento sensível, como a água, o ar ou o fogo, que elas completavam a sensação
imediata, por meio de conceitos, os quais explicariam os acontecimentos e as
transformações. Mas, assim que as filosofias da escola de Eléia, da qual Platão se filia,
criticando a idéia de transformação, mostraram ou acreditaram mostrar a
impossibilidade de se manter tão próximo dos dados dos sentidos, a filosofia internou-se
na via pela qual veio caminhando desde então, aquela que conduzia a um mundo
“supra-sensível”: conviria explicar as coisas, de agora em diante, por meio de puras
“idéias” (Bergson [1934] 1990). Assim, para os herdeiros da escola de Eléia, Platão em
particular, o mundo inteligível estava situado fora e acima daquele que nossos sentidos
e nossa consciência percebem: nossas faculdades de percepção só nos mostravam
97
sombras projetadas no tempo e no espaço pelas Idéias imutáveis e eternas (Platão,
República). Trata-se então de estabelecer uma diferença essencial entre aparência e
essência, empurrando o movimento, o devir, para a dimensão da aparência. Surge a
distinção entre Modelo (Idéia) supra-sensível e Cópia, repetição do mesmo na dimensão
sensível. Este é o quadro da assim chamada metafísica antiga.
Essa metafísica praticamente nasceu dos argumentos de Zenão de Eléia relativos
à mudança e ao movimento. Agenciando uma série de paradoxos, Zenão chamava a
atenção para o absurdo de se aceitar ontologicamente o movimento e a mudança. Os
paradoxos de Zenão implicam a confusão do movimento com o espaço percorrido ou,
pelo menos, a convicção que de se pode tratar o movimento como se trata o espaço, ou
seja, dividi-lo sem levar em conta suas articulações. Por exemplo na corrida entre
Aquiles e a tartaruga, Zenão dizia que Aquiles nunca alcançará a tartaruga que ele
persegue, pois quando chega ao ponto em que estava a tartaruga, esta terá tido tempo de
andar, e assim por diante, indefinidamente. Outro exemplo é a distância percorrida por
uma flecha até o alvo. Zenão dizia que a flecha deveria gastar um determinado tempo
para percorrer o espaço entre o arco e o alvo. Entretanto, se dividirmos ao meio este
espaço, a flecha teria que gastar também um determinado tempo. Se dividirmos ao
infinito, a flecha sempre gastará um determinado tempo para percorrer um determinado
espaço. Conclusão a flecha na verdade não saiu do lugar. Os filósofos, ao longo da
história, refutaram esse argumento de muitas maneiras. Para nosso propósito,
dedicaremos especial atenção à refutação de Bergson, na qual espaço e tempo são
rigorosamente diferenciados. Teremos oportunidade de desenvolver a fenomenologia
bergsoniana ao longo de nosso trabalho, em especial no capítulo três. Por ora, é
importante assinalar que esta desconfiança da mudança, do devir é integralmente
assumida por Platão, que busca então a realidade coerente e verdadeira naquilo que não
98
muda. É pelo fato de acreditar que nossos sentidos e nossa consciência se exercem
efetivamente num Tempo verdadeiro, ou seja, num Tempo que muda incessantemente,
numa duração que passa, para usar uma expressão de Bergson, é, que, no platonismo, os
sentidos não produzem conhecimento. Existe uma relação entre sentidos, mudança e
simulacro, pois o simulacro introduz uma diferença no Mesmo (Modelo), por meio de
efeitos destinados aos sentidos. Assim, o simulacro é da ordem da mudança, portanto da
ilusão, do não conhecimento.
Por toda a história da filosofia
3
, existe uma tentativa de reverter essa forma de
avaliação. A filosofia de Nietzsche expressa essa vontade ao desfazer o mundo das
aparências e das essências (Deleuze 1974).
1. O verdadeiro mundo, alcançável ao sábio, ao devoto, ao virtuoso – eles
vivem nele, são ele. (Forma mais antiga da Idéia, relativamente
esperta, singela, convincente. Transcrição da proposição “eu, Platão,
sou a verdade”).
2. O verdadeiro mundo, inalcançável por ora, mas prometido ao sábio, ao
devoto, ao virtuoso (“ao pecador que faz penitência”). (Progresso da
Idéia: ela se torna mais refinada, mais cativante, mais impalpável – ela
vira mulher, ela se torna cristã…)
3. O verdadeiro mundo, inalcançável, indemonstrável, imprometível, mas
já, ao ser pensado, um consolo, uma obrigação, um imperativo. (O
velho sol ao fundo, mas através de neblina e sképsis: a Idéia tornada
sublime, desbotada, nórdica, königsberguiana).
4. O verdadeiro mundo – inalcançável? Em todo caso, inalcançado. E
como inalcançado também desconhecido. Conseqüentemente, também
não consolador, redentor obrigatório: a que poderia algo desconhecido
nos obrigar?... (Cinzenta manhã. Primeiro bocejo da razão. Canta o
galo do positivismo).
5. O “verdadeiro” mundo – uma Idéia que não é útil para mais nada, que
não é mais nem sequer obrigatória – uma Idéia que se tornou inútil,
supérflua, conseqüentemente uma Idéia refutada: expulsemo-la! (Dia
claro; café da manhã; retorno do bom sens e da serenidade; rubor de
vergonha em Platão; alarido dos demônios em todos os espíritos
livres).
6. O verdadeiro mundo, nós o expulsamos: que mundo resta? O aparente,
talvez?... Mas não! Com o verdadeiro mundo expulsamos também o
aparente! (Meio-dia; instante da mais curta sombra; fim do mais longo
erro; ponto alto da humanidade; INCIPIT ZARATHUSTRA).
(Nietzsche [1888] 1974: 340-41).
3
Antes de Nietzsche, Deleuze situa as filosofias de Leibniz, Kant e Hegel como tentativas de reverter o
platonismo: “A dupla recusa das essências e das aparências remonta a Hegel e, melhor ainda, a Kant”
(Deleuze 1974: 259).
99
Desde então, a imagem cessa de ser segunda em relação ao modelo, ao mesmo
tempo que o simulacro deixa de ser uma pretensa cópia. Esta reversão ocasiona a
libertação e subida
4
dos simulacros com toda a sua subversividade. Deleuze assinala
que: “entre o eterno retorno e o simulacro, há um laço tão profundo, que um não pode
ser compreendido senão pelo outro” (Deleuze 1974: 270). Segundo Nietzsche, a
degeneração da filosofia surge claramente com Sócrates. Se a metafísica é definida pela
distinção de dois mundo, pela oposição entre a essência e a aparência, do verdadeiro e
do falso, do inteligível e do sensível, é necessário então admitir que Sócrates, se não
inventou, ao menos desenvolveu, e muito, a metafísica
5
. A vida torna-se então algo que
deve ser julgado, medido, limitado. O pensamento torna-se uma medida, um limite que
se exerce em nome de valores superiores – o Divino, o Verdadeiro, o Belo, o Bem. O
Eterno Retorno não é um ciclo, caso o fosse seria um retorno de Tudo. Trata-se de um
retorno do Mesmo e não um retorno ao Mesmo. O segredo de Nietzsche é que o Eterno
Retorno é seletivo (Deleuze 1974: 37). Duplamente seletivo. Primeiro como
pensamento, porque nos dá uma lei para a autonomia da vontade desimpedida de toda
moral. Pela lei do Eterno Retorno, minhas ações devem estar sob o primado de um
querer como se quisesse eternamente, ou seja, num Eterno Retorno. Assim tudo que
vivo, quero viver de uma tal forma que admitiria sua repetição num Eterno Retorno.
Conseqüentemente está eliminada toda a possibilidade de “meias-vontades” e anulado o
que queremos uma vez, apenas uma vez. Trata-se então de uma potência ativa de total
afirmação. O Eterno Retorno não é somente o pensamento seletivo, mas também o Ser
4
Dizemos que os simulacros sobem devido a sua condição espacial na escala. Eles estão situados
embaixo na escala hierárquica. Isto também explica o uso da expressão: “os simulacros estão
submersos…” (Deleuze 1974).
5
Definimos então aqui metafísica como esta espécie de duplicação de mundos, na qual o nosso mundo é
julgado e valorado segundo critérios de um outro mundo.
100
seletivo. Somente retorna a afirmação, aquilo que pode ser afirmado, somente a alegria
retorna. Tudo o que pode ser negado, tudo o que é negação, é expulso pelo próprio
movimento do Eterno Retorno. Segundo Deleuze (2005: 38), o Eterno Retorno deve ser
comparado a uma roda dotada de movimento com poderes centrífugos que eliminam
toda negatividade. Isto porque o Ser se afirma no devir, ele expulsa de si tudo o que
contradiz a afirmação, todas as formas de niilismo e de reação, tais como a má
consciência, ressentimento, ódio, etc.
O Eterno Retorno libera as potências do novo e da diferença, porque o que se
repete é o próprio retorno e não a experiência retornada. Esta é sempre nova e
dependente de uma afirmação. O simulacro é então afirmado como potência da
diferença, recusa do Mesmo e da repetição no Mesmo; permanente diferença na
repetição.
Como vimos, o conceito de eterno retorno, por meio do esquecimento, pode
produzir o “novo”. Entretanto, este não é o seu único alcance. Muitos comentadores e
interpretes de Nietzsche leram o eterno retorno como uma repetição infinita, idêntica a
si mesma, entendendo então que nenhum fato pode acontecer sem que tenha já
acontecido um número infinito de vezes anteriormente. Por outro lado, podemos
entendê-lo em conjunção com a noção de que a história é repetição de um momento
ahistórico, um momento que é sempre novo. Como resolver essa aparente contradição?
Nietzsche apenas diz que o novo eternamente se repete enquanto novo e,
conseqüentemente, recorrência é uma questão de diferença mais do que identidade
(Deleuze 1988).
Além disso, devemos compreender o eterno retorno como um movimento
circular que se contrapõe ao movimento linear das escatologias cristãs ou absolutistas.
Nessas, o tempo é pensado como um movimento linear com uma origem, uma arché no
101
sentido grego, e um telos, ou fim, no qual tudo se dirige. Paraíso, queda e ressurreição
são para a escatologia cristã os lances do movimento linear. Viver segunda a crença do
eterno retorno é viver segundo o fato de não existir uma origem ou fundamento, nem
uma teleologia que justifique as ações ou as possa avaliar. Conseqüentemente, viver
segundo o eterno retorno é fazer com que cada ação, por menor que seja, tenha um tal
valor que faça com que eu queira, pela minha vontade, que ela se repita infinitamente.
Trata-se, segundo Nietzsche de construir a existência segundo o modelo da obra de arte,
única possível justificativa. Isto é, imprimir em cada ação, cada gesto, a força de um
caráter. Esse será o fundamento da ética da subjetividade de Michel Foucault, a qual
teremos oportunidade, nos desenvolvimentos subseqüentes, de relacionar com a questão
da percepção em ambientes digitais.
O eterno retorno situa-se também em relação direta com a transvaloração de
todos os valores (Deleuze 2005). A transvaloração se define como um devir ativo das
forças, um triunfo da afirmação na vontade de potência. Sob o reino do niilismo
passivo, o negativo é a forma e o fundo da vontade de potência. A afirmação é somente
secundária, subordinada à negação, recolhendo e trazendo os frutos do negativo. O
eterno retorno transmuta o niilismo passivo em niilismo ativo, com o fim de ultrapassar
todo tipo de niilismo. Agora então tudo muda. A afirmação torna-se a essência ou a
própria vontade de potência. Sob o aspecto negativo, a afirmação ainda subsiste, mas
como o modo de ser daquele que afirma. Como a agressividade própria da afirmação.
Como o clarão anunciador e a tormenta que se segue após a afirmação. Como a crítica
total que acompanha a criação. Zaratustra é a afirmação pura, mas que precisa levar a
negação ao seu grau máximo, quando de uma ação, de um instante a serviço daquele
que afirma e acredita. A transvaloração dos valores significa esta mudança das relações
entre afirmação e negação. Ela está relacionada diretamente com a questão do niilismo.
102
É necessário ir até o último dos homens, em seguida até ao homem que quer perecer,
para que a negação se volte enfim contra as forças reativas, tornando-se ela mesma uma
ação transmudada em afirmação superior. É a fórmula de Nietzsche: o niilismo vencido,
mas vencido por ele mesmo.
A afirmação é a mais alta potência da vontade. Mas o que é afirmado? A Terra, a
Vida, o Instante... Mas qual a forma que toma a Terra a Vida e o Instante quando são os
objetos da afirmação? Formas ainda desconhecidas por nós. Ainda não habitamos a
Terra afirmada como tal, nem a Vida, nem experienciamos o Instante em sua pura
afirmação. O que o niilismo condena e se esforça em negar não é o Ser, já que este
também se despediu juntamente com toda a Metafísica no momento da afirmação. É o
múltiplo, é o devir que é negado pelo niilismo. Este considera o devir como algo que
deve expirar, que deve ser assimilado pelo Ser. O múltiplo como alguma coisa de
injusto, que deve ser julgado na transcendência e subsumido no Um. O devir e o
múltiplo são culpáveis, este é o julgamento derradeiro do niilista. Assim, sob o reino do
niilismo, a filosofia tem por móbil um obscuro sentimento de culpabilidade. Ao
contrário, o primeiro movimento da transmutação é elevar o devir e o múltiplo a mais
alta potência, fazendo-os objeto de uma afirmação. É na afirmação do múltiplo que
renasce a alegria prática da experiência do diverso. A alegria surge assim como o único
móbil do verdadeiro filósofo.
A valorização dos sentimentos negativos ou das paixões tristes é a mistificação
sobre a qual o niilismo funda seu poder.
O múltiplo é afirmado enquanto múltiplo, da mesma forma o devir afirmado
enquanto devir. Isto é, ao mesmo tempo em que a afirmação é múltipla nela mesma, o
devir e o múltiplo são eles mesmos afirmações. Existe um jogo de espelho na própria
afirmação: “Eterna afirmação... eternamente eu sou tua afirmação!” (Deleuze 2005: 34).
103
Em Nietzsche, diretamente ligado ao processo de afirmar a afirmação está a
dupla divina Dionísio e Ariana, que pode ser considerada como um desdobramento da
própria afirmação. Segundo Deleuze (Deleuze 2005), Dionísio está por toda a obra de
Nietzsche. Entretanto, ele sofre transformações conceituais à medida que Nietzsche vai
desdobrando seu pensamento pelo tempo. Inicialmente, Dionísio foi concebido sobre a
influência de Schopenhauer, representado como um “Fundo Original” no qual a vida
deve subsumir-se. Na “Origem da Tragédia”, primeiro grande escrito de Nietzsche,
Dionísio faz uma aliança com Apolo para produzir a tragédia como harmonia entre duas
forças opostas. Entretanto, já nessa obra, Dionísio foi definido em oposição a Sócrates,
que julgava e condenava a vida em nome dos valores superiores. Dionísio, ao contrário,
pressentia que a vida não pode ser julgada, que ela é muito justa e muito saudável em si
mesma. À medida que Nietzsche avança em sua obra, a verdadeira oposição lhe
aparece. Não mais Dionísio contra Sócrates, mas Dionísio contra o Crucificado. Ambos
personagens têm destinos e martírios semelhantes. O primeiro trucidado e o segundo
crucificado. Entretanto, a interpretação e avaliação do martírio são completamente
diferentes para os dois personagens. Para o Crucificado, trata-se de um testemunho
contra a vida, uma empresa de vingança, a qual consiste em negar a vida. Para Dionísio,
a afirmação da vida, afirmação do devir e do múltiplo; até no dilaceramento dos
membros dispersos de Dionísio: “O homem trágico afirma, mesmo diante de um forte
sofrimento, pois ele é forte, rico e capaz de divinizar a existência; o cristão nega, mesmo
as formas mais felizes da terra; ele é pobre, fraco, deserdado a ponto de sofrer na vida
sob todas as formas possíveis” (Nietzsche 1995, 464).
Dança. Leveza e riso são as propriedades de Dionísio. Como potência da
afirmação, ele evoca um espelho em seu espelho, um elo em seu elo: é necessária uma
104
segunda afirmação para que a afirmação seja ela mesma afirmada. Essa afirmação
desdobrada se dá no enlace de amor entre Dionísio e Ariana, que é a pura afirmação.
O múltiplo não é justificado a partir do Um. O devir também não é justificado a
partir do Ser. Isto gera uma nova definição tanto para o Um como para o Ser. Agora o
Um é derivado do múltiplo e o Ser é derivado do devir. Não existe mais a oposição de
um e outro. Opô-los e avaliá-los são exatamente as categorias do niilismo.
Como diz Nietzsche, agora se afirma à necessidade a partir do acaso, como o
Um a partir do múltiplo. Dionísio é jogador. O verdadeiro jogador faz do acaso um
objeto de afirmação. Afirmam-se os fragmentos, os membros do acaso. Afirmar o acaso,
o fragmento, o contingente é jogar o jogo do Eterno Retorno. Retornar é precisamente o
ser do devir, o um do múltiplo, a necessidade do acaso. Assim, é necessário evitar a
compreensão do Eterno Retorno como um retorno do Mesmo. Concebê-lo dessa forma
seria desconhecer a forma da transmutação e a mudança nas relações fundamentais.
Porque o Mesmo não preexiste ao diverso. Isto somente acontece nas categorias do
niilismo, em que o absoluto fundamenta a circunstância. Assim, não é o Mesmo que
retorna, já que retornar é a forma original do Mesmo. É o processo de retornar que é o
Mesmo, porém é o diverso que se manifesta. Portanto, não existe essência no Eterno
Retorno. Este é seletivo, duplamente seletivo. Primeiro como pensado. Porque ele nos
dá uma lei para a autonomia da vontade; agora livre de toda moral. O meu querer deve
ter a intensidade para que aquilo que eu queira possa se repetir num eterno retorno. Isso
só é possível se o viver se torna transparente e autêntico. Elimina-se, portanto, o mundo
das “meias-vontades”, “vontades frouxas”, porque nesse mundo só queremos uma vez.
Quando a vontade é forte, é potência, queremos infinitas vezes.
O Eterno Retorno não é somente um pensamento seletivo para as vontades, mas
também é o Ser seletivo. Somente volta aquilo que foi afirmado, portanto, o que volta é
105
a própria afirmação e o Eterno Retorno é sempre a alegria do retorno. Tudo o que pode
ser negado, tudo o que é negação, é expulso pelo próprio movimento do Eterno Retorno.
Assim, não precisa se temer que o niilismo, o rancor e a reação retornem. Como diz
Deleuze (Deleuze 2005: 19), o Eterno Retorno deve ser comparado a uma roda
possuidora de uma força centrífuga, que elimina todo o negativo. Agora, o Ser se afirma
no devir, expulsando de si tudo o que contradiz a afirmação, todas as formas de niilismo
e de reação: má consciência, ressentimento, rancor, etc.
Contudo, em várias passagens de sua obra, Nietzsche considera o Eterno
Retorno como um ciclo, no qual tudo retorna, até o Mesmo retorna. O que isto
significa?
Nietzsche é um pensador que “dramatiza” as idéias, isto é, que as apresenta
como acontecimentos sucessivos, com diferentes níveis de tensão. Isto fica claro na
seguinte passagem do Zaratustra, em que ele se apresenta doente e em seguida
convalescente, quase curado. O que torna Zaratustra doente é precisamente a idéia do
ciclo: a idéia de que tudo retorna, que o Mesmo retorna e tudo retorna ao mesmo:
‘Que sejas o primeiro a ter de ensinar esse ensinamento – como não haveria
esse grande destino de ser também teu maior perigo e doença!’
‘Vê, nós sabemos o que tu ensinas: que todas as coisas retornam
eternamente, e nós próprios com elas, e que já estivemos aqui eternas vezes,
e todas as coisas conosco.’
Após declarar isso, os animais de Zaratustra, a águia e a serpente esforçam-
se para o consolar. Zaratustra responde:
‘Vocês fizeram do Eterno Retorno uma ladainha, vocês reduziram o Eterno
Retorno em uma conhecida fórmula, muito bem conhecida, banal’
(Nietzsche [1885] 2003: 261-62).
Assim exposto, o Eterno Retorno não poderia deixar de ser terrificante, pois se
trata do retorno ao mesmo; então, o homem pequeno e mesquinho, o niilista e a reação
também retornam:
106
Em inferno mudava-se para mim a terra dos homens, seu peito afundava,
tudo que vive se tornava para mim mofo humano e ossos e passado podre.
Meu suspirar sentava-se sobre todos os túmulos humanos e não podia mais
se levantar; meu suspirar e questionar coaxava e sufocava e roía e
lamentava dia e noite: ‘Ai, o homem retorna eternamente! O homem
pequeno retorna eternamente’ (Nietzsche [1885] 2003: 262).
O que se passou então quando Zaratustra esteve convalescente? Parece que
inicialmente ele não suporta a idéia do Eterno Retorno. Mas em seguida, ele aceita e até
extrai uma alegria dessa aceitação. Trata-se de uma mudança psicológica ou fatalista?
Evidentemente que não. Trata-se de uma mudança na compreensão e na significação do
próprio Eterno Retorno. Zaratustra reconhece que, doente, não compreendeu o Eterno
Retorno; pois ele não é um ciclo, não é o Retorno do Mesmo, porque não é o retorno ao
mesmo. Também não é uma evidência natural, algo banal, como queriam seus animais.
Não se trata de um triste castigo para os homens, como pareceu a princípio.
A alegria se estabelece não pela aceitação fatalista ou por uma mudança
psicologia, mas pela compreensão da identidade: Eterno Retorno igual a Ser seletivo. O
que é reativo e niilista bem como o negativo não podem retornar, já que o Eterno
Retorno é o produto da afirmação, do devir em ação. Roda centrífuga “constelação
suprema do Ser que nenhum voto atinge, que nenhuma negação enlameia” (Nietzsche
[1885] 2003: 274). O Eterno Retorno é a repetição que seleciona e, por isso mesmo,
salva. Pródigo segredo de uma repetição libertária e seletiva que Zaratustra tem a honra
de ensinar.
A transmutação, ou transvaloração de todos os valores tem como objetivo
produzir o “além-do-homem”. A afirmação e o Eterno Retorno são a possibilidade de
encarar a vida e a existência sem as próteses morais e os consolos metafísicos que o
homem se utilizou para enfrentar sua existência, incluindo o humanismo que é a
transformação da metafísica em política, ou uma antropotécnica.
107
O além-do-homem designa a concentração de tudo o que pode ser afirmado, o
tipo que expressa o Ser seletivo, o rebento da subjetividade desse Ser. A situação além-
do-homem não é produzida pelo homem, mas no homem. Seus produtores são a soma
do último dos homens e o homem que quer perecer, mais um processo de forças não
humanas que transformam a essência humana. Ele é o fruto de Dionísio e Ariana. O
próprio Zaratustra não é o além-do-homem, mas seu anunciador. Zaratustra chama o
além-do-homem de a sua criança, mas ele é, e quer ser, ultrapassado por sua criança,
cujo verdadeiro pai é Dionísio; mãe, Ariana: ‘E pela última vez me disseram:
‘Zaratustra, os teus frutos estão maduros, mas tu és que não estás maduro para os teus
frutos. ‘Precisas voltar para a solidão’ (Nietzsche 2003 A, II, “A hora do supremo
silêncio”).
Retomemos de forma esquemáticas as figuras e suas significações:
(1) Dionísio, a afirmação;
(2) Dionísio-Ariana, a afirmação desdobrada;
(3) O Eterno Retorno, a afirmação redobrada;
(4) O além-do-homem, ou o tipo e produção da suprema afirmação.
A afirmação e suas figuras têm como principal objetivo superar o niilismo
cultural que Nietzsche detecta na modernidade. Esse niilismo tem um duplo aspecto. Ele
reflete a moderna humanidade que se vê em meio a uma enorme ausência de valores,
mas, ao mesmo tempo, em meio a uma desconcertante abundância de possibilidades.
Em “Além do Bem e do Mal”, escrito em 1882 por Nietzsche, encontramos uma
explanação em que, tal como em algumas passagens de Marx, tudo está impregnado do
seu contrário.
108
Nessas viradas da história se mostra, um ao lado do outro, e com freqüência
um no outro emaranhado e entrelaçado, um esplêndido, silvestre,
multiforme incremento e extensão para o alto, uma espécie de ritmo
tropical no afã do crescimento, e um tremendo perecer e se arruinar,
mediante egoísmos que se opõem selvagemente e como que explodem, que
disputam entre si por ‘sol e luz’ e já não sabem extrair, da moral até então
vigente, nem limite, nem freio, nem consideração...
(Nietzsche [1886] 2005, seção 262, 160-61).
Também gostaríamos de citar essa outra longa passagem:
Inútil apresentar-se como romântico, ou clássico, cristão, florentino,
barroco ou “nacional”, in moribus et artibus [nos costumes e nas artes]:
“não cai!” Mas o “espírito” em especial o “espírito histórico”, divisa
também uma vantagem nesse desespero: repentinamente, um novo pedaço
do passado e do exterior é experimentado, vestido, retirado, guardado,
sobretudo estudado – somos a primeira época estudiosa in puncto [em
matéria de] “fantasias”, quero dizer morais, artigos de fé, gostos artísticos e
religiosos, preparada, como nenhuma época anterior, para o Carnaval do
grande estilo, para a mais espiritual gargalhada e exuberância momesca,
para a altura transcendental da suprema folia e derrisão aristofânica do
mundo (...).
O passado de toda forma e todo modo de vida, de culturas que então
coexistiam e se superpunham, graças a essa mistura precipita-se em nós,
“almas modernas”, em toda parte nossos instintos correm para trás, nós
mesmos somos uma espécie de caos –: afinal, como foi dito, “o espírito”
divisa a sua vantagem nisso. (...) Como um ginete sobre o corcel em
disparada, deixamos cair às rédeas ante o infinito, nós, homens modernos,
semibárbaros; e temos a nossa bem-aventurança ali onde mais estamos –
em perigo... (Nietzsche 2005, seção 223-224, 114-17).
Nietzsche apresenta o seu tempo como uma vivência heróica com contrastes,
mazelas e, ao mesmo tempo, imensas potencialidades. Em tempo como esses, “o
indivíduo ousa individualizar-se”. Mas, esse ousado indivíduo necessita
desesperadamente de um conjunto de leis próprias, que lhe permitam desenvolver
habilidades e competências necessárias a sua autopreservação e auto-afirmação. As
possibilidades são ao mesmo tempo gloriosas e deploráveis. O sentido que o homem
moderno possui de si mesmo e da história vem a ser na verdade um instinto apto a tudo,
um gosto e uma disposição por tudo. Muitas estradas se descortinam a partir desse
ponto. Nietzsche observa que há uma grande quantidade de rancorosos e mesquinhos,
109
que propõem deixar de viver como solução para o caos da vida. Para eles, tornarem-se
medíocres, serem cordeiros ou gados da opinião de outros é a única moralidade que faz
sentido. A posição de Nietzsche em relação aos perigos da modernidade consiste em
abarcar tudo com alegria. Ele deposita sua fé e esperança numa nova espécie de homem:
“o homem do amanhã e do dia depois do amanhã”. Situação limite, que se opondo ao
seu hoje, terá coragem e imaginação para criar novos valores, os quais homens e
mulheres do futuro necessitarão para abrir seu caminho em meio aos perigos originados
pelas imensas forças de dominação.
Nietzsche, nas passagens que citamos acima, bem com em diversas outras, na
descrição de seu tempo, mostra um ritmo acalorado, uma vibrante energia, riqueza
imaginativa; mas também rápidas e bruscas mudanças de tom e inflexão, uma prontidão
para voltar-se contra si próprio, questionar e negar tudo o que foi dito, transformar a si
mesmo em um conjunto de perspectivas e vozes harmônicas ou dissonantes, buscando
uma perspectiva sempre mais ampla. Trata-se de criar desafios e provocações que
despertem a vontade de pensar e explorar. Sua complexa e expressiva escritura tenta
descrever e compreender um mundo no qual tudo está impregnado de seu contrário, um
mundo em que, como na famosa frase de Marx: “tudo o que sólido desmancha no ar”
(Berman 1989).
Eterno Retorno e simulacro se implicam, pois, inicialmente, o retorno é uma
duplicação do Mesmo (Modelo), porém numa dimensão temporal, que torna o modelo
afastado da cópia. Trata-se não de uma simples duplicação, mas de uma repetição
temporal que engendra uma simulação ou um retorno ao mesmo. É o caso da moda.
Dizemos que os “anos 60 estão de volta”. Evidentemente que neste caso estamos diante
de um simulacro. Como dizia Marx, a história não se repete senão como farsa.
110
Entretanto, o Eterno Retorno, não é o retorno ao mesmo. Trata-se de uma afirmação que
torna a repetição o novo, o imponderado, a abertura.
A concepção nietzschiana do eterno retorno evoca o que se quer demonstrar pela
expressão “libertar os simulacros” e introduz a questão da estrutura da realidade.
Libertar os simulacros é viver a repetição como novo e introduzir a novidade no sistema
da realidade e suas forças.
Reverter o platonismo significa ao mesmo tempo fazer um elogio da cópia,
reverter os valores respectivos do original e da cópia, libertar o simulacro e pensar o
novo, a originalidade, pensando-a fora do âmbito do Mesmo. Assumir a diferença e a
multiplicidade sem necessidade de transformá-las em simples manifestações do Uno.
No âmbito da imagem digital, trata-se de libertá-la da relação causal com o Uno do
código escondido. Sua multiplicidade deve ser afirmada e não compreendida como
epifenômeno, ou ilusão, de uma informação desmaterializada e desincorporada
entendida como código binário.
Em nossa cultura, um certo tipo de cópia tem uma má reputação. Por exemplo,
consideramos um gesto ruim o aluno que copia a prova de seu vizinho de carteira.
Consideramos também crime o falsário de arte que copia uma obra-prima e a vende
como original. Essas más cópias pertencem a categoria de simulacro. Essa avaliação
também ocorre na filosofia. Platão fez da imitação e da especularidade a suspeição que
toca e denuncia a essência mesma da alienação. Simular é habitar a exterioridade,
renunciar as profundidades nas quais se encontra a verdade. O simulacro é então
duplamente condenável – como mentira e falsidade, já que é apenas pretensão – e –
como falta moral, já que consiste em desregramento, culto da aparência em detrimento
da verdade.
111
Compreende-se então que nesse movimento de reprovação a arte esteja no
coração da mira. Se simular é se regrar pela exterioridade, então não se duvida que a
arte seja eminentemente suspeita. Isto porque ela se constrói pela exterioridade, pela
relação de aparência engendrada pela percepção sensível. Evidentemente que uma cópia
reprodutora fiel de um Modelo é uma boa cópia, fundada na semelhança, ela permanece
em contato com seu original do qual ela retém a essência. O simulacro, ao contrário,
funda-se sobre uma dessemelhança, se regra sobre um efeito externo de semelhança.
Sua conseqüência, segundo o platonismo, é “dar férias para verdade”, pois seu princípio
está em descartar e se distanciar da autenticidade. Toda uma temática filosófica da
aparência como paradoxalmente disjuntiva da essência repousa nesta distinção. A arte é
condenada no enquadramento platônico exatamente porque antes de Hegel, Platão viu
que a arte eleva o sensível à aparência e, assim fazendo, faz da aparência uma essência.
O mundo é cindido em duas partes completamente disjuntivas: a verdade una e eterna, e
o sensível, multiplicidade e devir. O simulacro é exatamente da ordem da multiplicidade
e do devir.
Deleuze em seu artigo “Simulacro e Filosofia Antiga” (Deleuze 1974), após
estabelecer a distinção platônica entre cópia e simulacro, reabilita este último com os
acentos nietzschianos de uma transvaloração dos valores. Segundo ele, o “devir-louco”
de Nietzsche é um questionamento da noção clássica substancial de um Ser fixo e
imutável. Da mesma forma, o simulacro é um questionamento da relação cópia e
Modelo, reivindicando seu desregramento e sua novidade, ou não reprodução do
Mesmo. Fazer o elogio do simulacro supõe então uma modificação no regime de
exterioridade e pensar a possibilidade do novo.
No Sofista (234 a-e, 235 a-e, 236 a-e) Platão definiu imitação como uma criação
de imagens e não de coisas reais, pelo que é uma criação humana e não divina. Na
112
República, Platão argumenta que quando um pintor pinta um objeto fabricado, cria uma
aparência deste objeto. Com rigor não pinta a essência ou a verdade deste objeto, mas a
sua imitação na Natureza. A imitação artística passa a ser uma imitação dupla, ou seja, a
imitação de uma imitação. Por isso a arte da imitação não aflora mais que um fantasma,
simulacro ou imagem da coisa. Platão nunca abandonou na sua teoria estética a sua
doutrina da imitação metafísica.
Aristóteles, ao contrário, explicou o problema da imitação no campo da poética.
Segundo ele, as artes poéticas são modos de imitação (Poética 147 a, 13-27). O imitador
ou artista representa sobretudo ações, com agentes humanos bons ou maus, havendo
tantas espécies de artes como maneiras de imitar as diversas espécies de objetos e ações
humanas.
Aristóteles e a Reabilitação da Cópia pelo Conceito de Verossímil
“A história conta o que aconteceu; a poesia, o que
deveria acontecer” (Aristóteles, Poética).
Na Poética, Aristóteles esboça, a respeito da obra de arte, um estatuto da
exterioridade capaz de questionar a relação entre cópia e Modelo (Costa Lima 2000). O
poeta ultrapassa a realidade ordinária e produz a aparência e a verossimilhança,
atingindo o esquema produtivo do qual a obra deriva. A poesia não deve mostrar o
mundo como ele é, mas tal como poderia ser.
A doutrina estética da imitação, tal como foi formulada por Aristóteles, exerceu
considerável influência até inícios do século XVIII. A idade clássica retomou
113
Aristóteles e concebeu a obra de arte em termos de mímesis
6
. Isto significa que a arte é
tomada numa relação com o que os clássicos chamavam “natureza”. A arte é
impensável em si mesma, mas sempre em relação a alguma coisa, em sentido transitivo.
É no seio dessa concepção mimética da arte que a verossimilhança encontra sua razão
de ser. Isso é muito claro quando lemos a obra do Abade Batteux, obra capital da
estética do século XVIII. Ela se intitula As Belas Artes Reduzidas a um Único Princípio
(Les Beaux-arts réduits à un même principe). Como indica o título, o Abade Batteux
pensa as artes não em sua especificidade, mas segundo um princípio único, que é o da
imitação. Esta obra publicada em 1746 pretende-se um tratado sistemático, no qual se
desenvolve as idéias a respeito da imitação. Após Aristóteles, é considerada a grande
síntese da filosofia da arte na história da estética. O Abade Batteux traduz o essencial do
pensamento estético clássico ao definir a imitação por meio de um enunciado notável
por sua concisão e pertinência:
As artes, nisto que é propriamente arte, não são senão imitações,
semelhanças que não se referem à natureza, mas parecem o ser; e […]
assim a matéria das belas artes não é de forma alguma a verdade, mas a
verossimilhança. (Batteux [1746] 1989: 86).
Por meio de uma série de oposições, Batteux desarticula a arte da realidade, a
qual ele chama de natureza, definindo-a como uma distância que separa duas coisas. A
oposição entre verossímil e verdadeiro é significativa e constitutiva. Esta oposição se
encontra como um topos extraído da poética clássica desde a Renascença e remonta
claramente a Aristóteles.
Na Poética a poesia é definida em oposição à história, como um discurso que
toma as coisas tais como poderiam ser, e não tais como elas são. Seu argumento
fundamental é que a arte não visa à representação do que é ou do que foi, mas do que
6
Para Aristóteles, mímesis e mimeisthai não significam “imitação” no sentido estrito, mas “tornar
visível”, “mostrar”. Ver Grassi (1975).
114
poderia ser. Neste sentido, Aristóteles aproxima a arte da filosofia e ressalta sua
diferença em relação com a história. Tudo aquilo que é ou foi tem caráter individual e
particular; está ligado a um determinado momento, a um determinado lugar, longe de
toda universalidade. O possível, ao contrário, desvinculado do aqui e agora, alcança
uma importância mais ampla, uma universalidade maior.
“Pelas precedentes considerações se manifesta que não é ofício de poeta
narrar o que aconteceu; é, sim, o de representar o que poderia acontecer,
quer dizer: o que é possível segundo a verossimilhança e a necessidade.
Com efeito, não diferem o historiador e o poeta por escreverem verso ou
prosa (pois que bem poderiam ser postos em verso as obras de Heródoto, e
nem por isso deixariam de ser história, se fossem em verso o que eram em
prosa) – diferem, sim, em que diz um as coisas que sucederam, e outro as
que poderiam suceder. Por isso a poesia é algo de mais filosófico e mais
sério do que a história, pois refere aquela principalmente o universal, e esta
o particular. Por ‘referir-se ao universal’ entendo eu atribuir a um indivíduo
de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame de
necessidade e verossimilhança, convêm a tal natureza; e ao universal, assim
entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes às suas personagens;
particular, pelo contrário, é o que fez Alcibíades ou que lhe aconteceu”
(Aristóteles, Poética 1451 a 36, b, p. 451).
A arte não está mais voltada – como queria Platão (no caso da arte egípcia) –
para a verdade e para a representação da perfeição humana e sim para a revelação das
possibilidades próprias do homem.
No seio deste sistema mimético da arte, a verossimilhança goza um papel
essencial, constitutivo. Trata-se então de considerações ontológicas na medida em que
existe a questão de se examinar a modalidade da existência da verossimilhança,
enquanto ferramenta da mímesis na arte. A verossimilhança é algo que impõe uma
crença por si mesma, se impõe ao espírito como evidente, como uma imagem clara a
qual se adere facilmente. A verossimilhança coloca então em questão a relação cópia e
Modelo tal como formulada pelo platonismo. Ela não busca a verdade interior,
estrutural; mas o efeito, uma relação de exterioridade.
115
Os jansenistas
7
que aderem a uma filosofia de tipo neoplatônica e cartesiana
consideram a verossimilhança como o instrumento mais perigoso da ficção, na medida
em que ela esfacela toda distinção entre o falso e o real, devido a sua perfeição
mimética. Esta crítica se apoia sobre a concepção de Port-Royal
8
do signo, que
podemos compreender por meio das análises de Michel Foucault (1999). Nos séculos
XVII e XVIII, as palavras e as coisas se separaram e perderam sua identidade. Não
existem mais “assinaturas” para se ler no mundo, mas “representações” a interpretar. A
linguagem torna-se significação, ela adquire um conteúdo representativo. Assim, a
concepção do signo de Port-Royal é binária: o signo consiste em um suporte que
representa uma coisa (o significante) e a coisa representada (o significado). O signo é
considerado uma unidade transparente: o suporte significante, qualquer que seja, não é
percebido, é a imagem do significado que aparece ao espírito. “De fato o significante é
inteiramente ordenado e transparente” (Foucault 1999: 79). O exemplo preferido pela
Lógica de Port-Royal para explicar um signo é o quadro (pintura): “É característico que
o exemplo primeiro de um signo que fornece a Lógica de Port-Royal, seja a
representação espacial e gráfica – o desenho, carta ou quadro. De fato o quadro não tem
por conteúdo senão isto que ele representa” (Foucault 1999: 79).
Esta transparência do signo conduz à proeminência do significado sobre o
significante, chegando mesmo a assolar este último. Sob a influência de Santo
Agostinho e de Descartes que afirmam que a verdade não é para os olhos que percebem,
mas para a alma, a Lógica de Port-Royal distingui claramente as imagens da percepção
e aquelas provenientes da imaginação. Estas últimas vêm perturbar a percepção impor
7
O Jansenismo foi uma teologia cristã que surgiu na França e Bélgica, no século XVII e se desenvolveu
no século XVIII.
8
Centro Jansenista e intelectual. Arnauld, Lancelot, Pascal são alguns dos pensadores ligados a Port-
Royal. Este centro elaborou uma lógica e uma gramática que foram paradigmáticas para história da
filosofia e lingüística. Antoine Arnauld (1612-1694) e Pierre Nicolle (1625-1695), ambos do convento
parisiense de Port-Royal, trouxeram importante contribuição para o cartesianismo.
116
suas imagens e conduzir a confusão entre as ficções imaginárias e o real objetivo. “O
signo encerra duas idéias, uma da coisa que representa, outra da coisa representada; e
sua natureza consiste em excitar a primeira pela segunda” (Nöth 1995: 43).
A literatura em particular, segundo Port-Royal, conduz ao perigo de eliminar a
distinção fundamental entre o verdadeiro e o falso. Ao mascarar o intervalo entre as
palavras e as coisas, a literatura engendra um grave risco tanto ontológico como
epistemológico, dando às vãs ficções o mesmo valor que o real. Essa aparência de real,
a ficção adquiriu pela verossimilhança, cuja eficácia poética é reconhecida por todos os
teóricos clássicos. A verossimilhança é então um artifício que fornece às ficções a
aparência de verdade, e funciona desde então como um instrumento perigoso para o
leitor que afasta assim o seu pensamento de Deus para se deleitar em fantasias. Os
críticos agostinianos estimam que a arte verossímil embaralha as fronteiras entre a arte,
que não é senão ilusão, e a verdade. Com o verossímil a cópia começa a se destacar de
seu Modelo e se afirmar como ontologia, como poder de afectar. Sua avaliação se dá
então por meio de seu poder de convencer, devido à sua inserção na dimensão do
sensível, do perceptível (Costa Lima 2000).
Fora do âmbito estrito do platonismo, as relações entre a cópia e o original
(Modelo) podem tornar-se muito complexas. Jean-Jacques Rousseau expõe uma questão
interessante em seu Artigo “Copista” de seu Dicionário de Música:
“Enfim, o dever do copista ao escrever uma partitura é corrigir todas as
falsas notas que podem se encontrar no seu original. Não entendendo por
falsas notas as que se encontram no original, mas nas sucessivas cópias que
o copista toma como original. A perfeição da arte do copista é expressar
fielmente as idéias, boas ou más. Este tipo de avaliação não é a sua função,
porque ele não é o autor nem o corretor, mas simplesmente o copista. É
bem verdade que, se o autor trocou por desleixo uma nota por outra, ele
deve a corrigir; mas se este mesmo autor a fez por ignorância, ele a deve
deixar. Se ele quiser ou poder, que ele componha melhor, mas se for apenas
copista, ele deve respeitar o original. Assim, um copista não só deve ser
bom em harmonia e composição, com também dominar os vários estilos,
117
além de reconhecer um autor pelo seu estilo, sabendo, desta forma, o que
este autor fez ou poderia ter feito. Existe também, uma espécie de método
ou crítica que se pode utilizar: comparar uma determinada passagem com
outra afim de poder reconstitui-la; remeter um forte ou suave onde o
compositor esqueceu; unir frases mal ligadas; restituir medidas omitidas;
existem exemplos desses procedimentos, mesmo nas partituras. Sem
dúvida, é necessário muito saber e gosto para restabelecer um texto em toda
sua pureza. Poder-se-ia afirmar que poucos copistas assim procedem. Eu
poderia responder que todos assim deveriam proceder” (Rousseau
Dictionnaire de Musique, O. C., v. 5, 739).
Segundo Rousseau, o copista de música ao se deparar com seu original, que na
verdade é uma cópia, deve se remeter a um original que não é dado, mas intuído a partir
de suas cópias. Em outros termos, são as cópias que engendram o original. É a partir do
contato com uma cópia que se pode reconstituir o modelo e, assim procedendo, corrigir
as próprias cópias. Estamos ainda numa relação entre modelo e cópia, na qual a cópia
deve ser o mesmo de um original. Entretanto o original não é dado, necessitando-se para
atingi-lo toda uma metodologia que parte da cópia e intui o modelo. Poder-se-ia dizer
que, nesse caso, é necessário todo um trabalho hermenêutico sobre a cópia para atingir
uma intencionalidade supostamente dada no original. A leitura da cópia engendra a
possibilidade da construção de um original. Da mesma maneira, quando lemos um
poema, não existe nenhum sentido fixo no qual descende as palavras; o sentido se
constrói na leitura que se efetua não somente ao enunciar o que se diz, mas também ao
fazer constantemente a hipótese disto que poderia ser. O copista, usando de sua
sensibilidade e competência, engendra um original que poderia ter sido, corrigindo-o se
necessário; pois podem existir erros no original cometidos contra a vontade do
compositor. Ao fazer uso de como poderia ter sido, Rousseau situa a atividade do
copista na poética da verossimilhança. De fato, esse copista, apresentado inicialmente
como um trabalhador ligado à mecânica de seu ofício, mantém uma singular e nada
mecânica relação com seu autor. Tudo se passa como se ele restituísse um texto
118
extraviado e como se, no ato de copiar, o autor sofresse uma purgação. Assim, a cópia
manifesta um paradoxo da autoridade. O autor, no fundo, é destituído de sua criação
original, e a cópia torna-se o fato que engendra o autor, ou o restitui ao que deveria ter
feito.
A presença de um original essencialmente e constitutivamente perdido é uma
forma de se interpretar o conceito fundamental da Poética de Aristóteles: a mímesis.
Pelo menos parece que o classicismo assim o interpretou. Como assinala Arthur Danto
(1993: 131), Aristóteles não afirma que a mímesis deve imitar alguma coisa que lhe é
preexistente. A imitação, ao contrário, faz, em algum grau, emergir alguma coisa que
não existe ainda. A imitação não remonta a um original, mas constitui o original, do
qual ela é uma prova.
Os pitagóricos chamavam imitação ao modo como as coisas se relacionavam
com os números, considerados como as realidades essenciais e superiores que aquelas
imitam.
“ […] Como vissem nos números as modificações e as proporções da
harmonia e, enfim, como todas as outras coisas lhes parecessem, na
natureza inteira, formadas à semelhança dos números, e os números as
realidades primordiais do Universo, pensaram eles que os elementos dos
números fossem também os elementos de todos os seres, é que o céu inteiro
fosse harmonia e número […]” (Aristóteles, Metafísica, Cap. V, p. 221).
Em sua Metafísica Aristóteles criticou essa doutrina concluindo que não existe
diferença fundamental entre a teoria pitagórica da imitação e a teoria platônica da
participação.
“A tais realidades deu então o nome de ‘idéias’, existindo os sensíveis fora
delas, e todos denominados segundo elas. É, com efeito, por participação
que existe a pluralidade dos sinônimos, em relação às idéias. Quanto a esta
‘participação’, não mudou senão o nome: os pitagóricos, com efeito, dizem
que os seres existem à imitação dos números, Platão, por ‘participação’
mudando o nome; mas o que esta participação ou imitação afinal será,
esqueceram todos de o dizer.” (Aristóteles, Metafísica, Cap. VI, 224).
119
O problema já é enfrentado por Platão no Parmênides ao estabelecer a relação
do Uno fundamento com a multiplicidade dos fenômenos. Assim, a unidade existe
segundo a razão e a pluralidade segundo os sentidos. A noção de “participação” na
filosofia platônica procura dar conta desse problema. É uma noção central na filosofia
platônica. Trata-se da relação das idéias entre si e das idéias com as coisas sensíveis.
Esta relação efetua-se mediante a participação. A coisa ou o ente somente adquire a
dimensão do Ser na medida em que participa da sua Idéia ou Forma, do seu Modelo ou
Paradigma.
Platão não ignora as dificuldades desta noção. Assim, no Parmênides, Ele se
pergunta: a coisa participa da totalidade da Idéia ou só de uma parte dela? Visto que
deve aceitar-se que a idéia permanece una em cada um dos múltiplos sensíveis, não há
outra solução que supô-la análoga à luz que, sem estar separada, ilumina cada coisa.
Entretanto, pode-se entendê-la como um véu estendido sobre uma multiplicidade, e
então cada coisa participa de uma parte da Idéia. Aristóteles sublinhou insistentemente a
dificuldade seguinte: caso admita-se que a unidade da Idéia se reparte sem deixar de ser
unidade, é imprescindível fornecer uma definição da participação e não deixar a questão
em suspenso (Aristóteles, Metafísica, Cap. VI, 224-225). No Sofista, Platão procura
uma solução para o problema da participação do sensível no inteligível sem que este
último se divida materialmente. Para encurralar o sofista, Platão necessita mostrar que
as imagens produzidas pelos seus adversários pertencem ao não-ser. A dificuldade
lógica evidentemente se impõe: para que o não-ser tenha efetividade é necessário que
ele exista, se ele existir ele é o ser, então como o não-ser pode tornar-se ser? Para
resolver esta dificuldade, Platão deverá cometer uma espécie de parricídio, pois terá de
reformular a doutrina de seu mestre Parmênides, o qual sempre afirmava: “jamais
120
obrigarás os não-seres a ser; antes, afasta teu pensamento desse caminho de
investigação” (Platão, Sofista 237b, p. 163). Mas para desmascarar o sofista, Platão terá:
“necessariamente de discutir a tese de nosso pai Parmênides e demonstrar, pela força de
nossos argumentos que, em certo sentido, o não-ser é; e que, por sua vez, o ser, de certa
forma, não é”. (Platão, Sofista 242 a, p. 168).
O conceito de participação mantém a relação entre a Idéia e a cópia, ao mesmo
tempo que introduz a dimensão do não-ser para desmascarar o discurso do sofista. A
relação entre Idéia e sua cópia se dá pela presença do Mesmo. Assim, quando
afirmamos que algo é o Mesmo, é porque, em si mesmo, ele participa do Mesmo, e
quando dizemos que ele não é o Mesmo, é em conseqüência de sua comunidade com “o
outro”. Esta comunidade o separa do “Mesmo” e o torna não-Mesmo, ou seja, “outro”.
Assim, podemos chamá-lo de “não-o-Mesmo”. Segue-se, pois, que existe um ser do
não-ser, em toda a série dos gêneros;
“Pois na verdade, em todos eles a natureza do outro faz cada um deles outro
que não o ser e, por isso mesmo, não-ser. Assim, universalmente, por essa
relação, chamaremos a todos, corretamente, não-ser; e ao contrário, pelo
fato de eles participarem do ser, diremos que são seres”. (Platão, Sofista
256 e, p. 189).
Assim, Platão graças à noção de participação pode introduzir a negatividade do
não-ser, já que sua efetividade se dá pela afirmação da não participação na Idéia. O
simulacro é totalmente da ordem do não-ser, pois não participa em nada do Modelo, ou
da Idéia, por isso é uma pretensa cópia, já que é a cópia quem participa do ser da Idéia.
Cada Forma, ou Idéia encerra uma multiplicidade de ser e uma quantidade infinita de
não-ser. A noção de participação também permite a Platão explicar a diversidade e
multiplicidade do sensível, sem perder sua referência à estabilidade da Idéia; ao supor
que um objeto tem, não só uma figura patente e visível, mas também uma figura latente
e invisível captável somente pela mente.
121
O conceito de verossímil de Aristóteles altera a relação entre o Modelo e a cópia
platônica. No caso da arte o conceito de “bela natureza”, o qual é uma aplicação do
conceito de verossímil, não reenvia jamais ao Modelo do mundo tal como ele é, mas
trata o mundo como um simples exemplo de como deveria ser (Gilson 2002). A
verossimilhança da qual a arte se autoriza, mesmo quando pode ser imaginada como
objeto, não pode ser pensada senão como operação de produção de uma originalidade
sempre a constituir, e não como referência a um original pré-dado, ou pré-constituído. O
verossímil é um efeito oriundo de uma mímesis, a qual nunca esteve completamente
confundida com a cópia. Segundo Aristóteles, a mímesis está articulada com a música e
a dança, além das artes figurativas e o teatro.
“A epopéia, a tragédia, assim como a poesia ditirâmbica e a maior parte da
aulética e da citarística, todas são, em geral, imitações. Diferem, porém,
umas das outras, por três aspectos: ou porque imitam por meios diversos,
ou porque imitam objetos diversos ou porque imitam por modos diversos e
não da mesma maneira. Pois tal como há os que imitam muitas coisas,
exprimindo-se com cores e figuras (por arte ou por costume), assim
acontece nas sobreditas artes: na verdade, todas elas imitam com o ritmo, a
linguagem e a harmonia […]” (Aristóteles, Poética, 1447 a 13-17, p. 443).
Embora a mímesis não seja sinônimo de arte, ou aplicável somente à arte, é neste
contexto que ela claramente não se confunde com a reprodução de um pré-dado. Pelas
operações lógicas que estabelece, provoca um efeito diferenciado no receptor. Para
Aristóteles, não é idêntica a resposta de um receptor diante de uma cena da natureza ou
diante de um quadro.
Evidentemente que o verossímil, em Aristóteles, é um conceito extremamente
complexo e que teve uma fortuna de leituras e interpretações, mesmo divergentes,
conforme as épocas. Entretanto, se aqui trazemos a sua discussão é devido ao fato de
introduzir uma relação diferenciada entre a cópia e o Modelo. Trata-se de uma
reabilitação da cópia, ou de um elogio da cópia, se assim podemos nos expressar. Ela
122
escapa da normatização do Mesmo presente na relação cópia/Modelo do enquadramento
platônico. Enquanto sujeita a uma expectativa interna, a relação cópia/Modelo no
enquadramento do verossímil não pode ser normativa, pois exige a capacidade
inventiva, tanto do artista como do receptor (Costa Lima 2000).
As vicissitudes do verossímil atingem o século XVIII no apelo de Vico ( [1725]
1979) ao Senso Comum. Vico posiciona-se antagonicamente com relação à ciência
moderna. Não contesta as vantagens da ciência crítica dos tempos modernos, mas lhe
indica seus limites. Ninguém poderá dispensar à sabedoria dos antigos, o cultivo da
prudência e da eloqüência. Propõe, para a educação, a formação do Senso Comum, que
não se alimenta do verdadeiro mas do verossímil. O Senso Comum não significa apenas
aquela capacidade universal que existe em todos os homens, mas é também o sentido
que institui comunidade. Vico acredita que o sentido e a direção da vontade humana são
fornecidos não pela universalidade abstrata da razão, mas a universalidade concreta
representada pela comunidade de um grupo, de um povo, de uma nação, do conjunto da
espécie humana (Vico [1725] 1979). O desenvolvimento do Senso Comum é, por isso,
de decisiva importância para vida e a cultura. Vico fundamenta o significado e o direito
autônomo da eloqüência sobre esse Senso Comum do verdadeiro e do correto, que não é
um saber baseado em razões, mas que permite encontrar o que é plausível ou verossímil
(Gadamer 2004). O que opera aqui é o antigo antagonismo aristotélico entre saber
prático e saber teórico, um antagonismo que ecoa na oposição entre verdadeiro e
verossímil. O saber prático, a phronesis, é uma forma de saber distinta do saber teórico.
“Que a sabedoria prática não se identifica com o conhecimento científico, é
evidente; porque ela se ocupa, como já se disse, com o fato particular
imediato, visto que a coisa a fazer é dessa natureza. Ela opõe-se, por outro
lado, à razão intuitiva que versa sobre as premissas limitadoras das quais
não se pode dar a razão, enquanto a sabedoria prática se ocupa com o
particular imediato, que é objeto não de conhecimento científico mas de
percepção – e não da percepção de qualidades peculiares a um determinado
sentido, mas de uma percepção semelhante àquela pela qual sabemos que a
123
figura particular que temos diante dos olhos é um triângulo; porque tanto
nessa direção como na da premissa maior existe um limite. Mas isso é antes
percepção de outra espécie que não a das qualidades peculiares a cada
sentido”. (Aristóteles, Ética a Nicômaco, 8, 1142a 25-30).
A sabedoria prática e o verossímil, sua expressão, estão orientados para as
situações concretas. Elas terão de abranger então as circunstâncias em sua infinita
variedade. Aristóteles descreve como a partir de muitas percepções forma-se a unidade
de uma experiência e como a partir da multiplicidade das experiências lentamente acaba
formando-se algo como a consciência do universal que se conserva nesse fluxo de
aspectos mutáveis da vida da experiência (Gadamer 2004: Vol II, 235).
Tanto em Platão como em Aristóteles a cópia supõe um ato de adequação ou
correspondência entre a imagem produzida e algo. Em Platão, esse algo é anterior e
claramente superior numa ordem hierárquica. Ao lado desse aspecto em comum, a cópia
aristotélica adquire um acentuado grau de liberdade quanto a este algo, seja por seu
próprio ato de feitura, seja pelo efeito que causa: “ […] contemplamos com prazer as
imagens mais exatas daquelas mesmas coisas que olhamos com repugnância, por
exemplo, as formas de animais ferozes e cadáveres.” (Aristóteles, Poética, 48 b 9-12).
Trata-se de entender a percepção como uma distinção e uma opinião sobre um
universal.
Platão afirmava, diante dos sofistas, que a sensação, ou seja, a “percepção
sensível”, não proporciona verdadeiro conhecimento nem sequer das coisas sensíveis.
Para Platão, a sensação tem um alcance bem grande, significando toda apreensão que
não seja de natureza intelectual. Já Aristóteles, com o conceito de verossímil nos
devolve para as situações concretas sem deixar de visar o universal.
Se em Aristóteles se processa uma espécie de libertação da cópia, ainda não
percorremos nosso caminho de pensamento de forma completa, pois ainda não
124
revertemos o platonismo completamente. Para tanto, necessita-se libertar os simulacros.
Com a libertação dá cópia, o simulacro também começa a emergir como puro efeito,
como força autônoma e capacidade de afectar, além da significação da auto-referência.
Reverter o Platonismo segundo Gilles Deleuze
“A repetição em Proust não é reprodução do mesmo,
mas “potência da diferença” (Deleuze, Proust e os
signos).
Em seu artigo “Simulacro e Filosofia Antiga”, Deleuze (1974) formula uma
hipótese aparentemente paradoxal. Segundo ele, o próprio Platão, em sua obra Sofista,
anuncia a possibilidade da inversão do platonismo. Entretanto, Deleuze nos adverte da
existência de uma consciência, em Platão, dos riscos que se pode correr, na própria
“Teoria das Idéias”, caso se efetive essa inversão. Porém, é absolutamente necessário
passar por esse risco para a própria salvação do pensamento platônico. Trata-se de um
risco calculado. Mas por que Platão apontou para essa inversão do seu pensamento?
Porque, segundo Deleuze, é no interior de sua doutrina que encontramos a possibilidade
do princípio de desvio, o qual conduz à sua inversão. Em outros termos, é no seio de sua
doutrina que encontramos a condição de possibilidade de sua inversão. Se Platão foi o
primeiro a antever a inversão do platonismo, para evitá-la construiu uma teoria
responsável por não abrir caminhos para essa possibilidade. Para alcançar esse fim,
Platão acaba visando o simulacro para dele se libertar, para eliminá-lo pela raiz de uma
vez por todas. Mas, ironia do destino, em seu processo, o pensamento platônico deixa
em aberto essa “potência positiva”, segundo Deleuze, do simulacro na sua condição
imprevisível do dissemelhante: “o simulacro não é uma cópia degradada, ele encerra
125
uma potência positiva que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a
reprodução […] Não basta nem mesmo invocar um modelo do Outro, pois nenhum
modelo resiste à vertigem do simulacro” (Deleuze 1974: 267-68). O simulacro
dissimula o seu próprio processo, que não é de simular semelhanças, mas desencadear
dissemelhanças. Eles são, portanto, originalmente “sempre-outros”.
Distinguir a “coisa” e suas imagens, o original e a cópia, o modelo e o simulacro
é o projeto inicial de Platão. Porém deveríamos nos perguntar se todas essas expressões
são equivalentes? Platão responderia obviamente que não. A distinção entre essas
expressões está em comum acordo com o projeto mais amplo de enfrentar o problema
da dualidade entre a essência e a aparência. Porém, segundo Deleuze, esse seria o
projeto mais geral e superficial de Platão, o qual remonta à “Teoria das Idéias”, como já
vimos. O projeto mais profundo surge quando nos reportamos ao método da divisão:
“pois este método não é um procedimento dialético entre outros. Ele reúne toda a
potência da dialética, para fundi-la com uma outra potência e representa, assim, todo o
sistema” (Deleuze 1974: 259). A divisão constitui o método de filtragem, de triagem.
Funciona como uma segunda passagem por um crivo, o qual dissipa de vez qualquer
possibilidade de confusão na relação entre os simulacros, as imagens e os modelos. Os
simulacros, “falsos pretendentes” objetivam esconder sua realidade ilusória, ou seja,
criar a miragem de semelhança entre imagem e modelo. Com esta estratégia, eles se
declaram como pretendentes, ou melhor, falsos pretendentes. Por exemplo, em sua obra
Político, Platão tenta definir o político. Assim que surge uma primeira definição: “o
político é o pastor dos homens”, surge uma série de rivais: médico, comerciante,
trabalhador; todos com a intenção de reivindicar para si a definição. Todos dizem; “eu
sou o verdadeiro pastor dos homens”. Assim, o método da divisão visa distinguir os
pretendentes. Distinguir o puro e o impuro, o autêntico e o inautêntico. Trata-se então
126
de selecionar linhagens; por exemplo, o verdadeiro político ou o pretendente bem
fundado, depois parentes, auxiliares, escravos, até chegar nos simulacros e contrafações.
“A maldição pesa sobre estes últimos; eles encarnam a má potência do falso
pretendente” (Deleuze 1974: 261). Os simulacros seriam perigosos, pois engendram
situações onde o falso pretendente se faz passar pelo verdadeiro pretendente. Por isso a
necessidade de criar um sistema de filtragem ou triagem para as pretensões: “filtrar as
pretensões, distinguir o verdadeiro pretendente dos falsos” (Deleuze 1974: 260).
Porque, de fato, o simulacro é da ordem da dissemelhança interna. Devido a isso, abre-
se sempre a possibilidade do próprio modelo deixar de fazer sentido e ser substituído
pelo simulacro. É por uma perversão e subversão, desvio de rota, que se insinuam os
simulacros, por meio de um movimento que aparentemente ultrapassa o binômio cópia-
modelo. O simulacro, ao mesmo tempo que opera uma cisão na relação ícone-modelo,
opera uma fusão dos dois num outro, a tal ponto que se coloca em causa a legitimidade
do ícone e do original: “Platão, no clarão de um instante, descobre que [o simulacro]
não é simplesmente uma falsa cópia, mas que põe em questão as próprias noções de
cópia… e de modelo” (Deleuze 1974: 261). Assim, ultrapassar por “entre” o binômio
cópia-modelo, aparência-essência é o modo como o simulacro se insurge, se insinua,
graças a presença de uma dissemelhança interna. É em relação a esta ameaça de
subversão que é necessário proceder, segundo Deleuze, ao método da divisão, ou seja,
triagem para distinguir os verdadeiros dos falsos pretendentes. Os falsos pretendentes
seriam os caminhos para não serem seguidos, mas evitados; pelo simples fato de não
caberem na lógica da semelhança imagem-modelo, mas sim na ordem da
dissemelhança. De fato, o simulacro pertence a uma outra ordem de imagens. A
investigação platônica teria como objetivo não cair como uma presa nas armadilhas do
simulacro, detectar aquilo que de maneira alguma é, mas se faz passar por ser. Ora
127
cópias, ora modelos, ora nem uma coisa nem outra, os simulacros são o devir-louco da
inconstância. Como ele, na verdade, não é alguma coisa; ele pode ser tudo.
O simulacro encontra-se no meio dos extremos, representados pela cópia e pelo
modelo. Ele percorre essa distância do “entre dois”. Entretanto, paradoxalmente ele
também está nos dois extremos. Devido a isso, na medida em que os extremos se tocam,
passa cada um para o lado do outro, e, assim procedendo, já não se trata de extremos
que se tocam, mas sim de séries que se cruzam. Porque as séries internas extravasam as
delimitações dos extremos, criando-se, assim séries externas. Elas, tantos as internas
como as externas, não deixam de se percorrerem mutuamente, sendo infinita e
multiplamente variáveis nas suas combinatórias. Como diz Deleuze:
“Pelo menos das duas séries divergentes interiorizadas no simulacro,
nenhuma pode ser designada como original, nenhuma como cópia. Não
basta nem mesmo invocar um modelo do Outro, pois nenhum modelo
resiste à vertigem do simulacro. Não há mais ponto de vista privilegiado do
que objeto comum a todos os pontos de vista. Não há mais hierarquia
possível: nem segundo, nem terceiro… A semelhança subsiste, mas é
produzida como o efeito exterior do simulacro, na medida em que se
constrói sobre as séries divergentes e faz com que ressoem” (Deleuze 1974:
268).
Devido ao fato do simulacro criar séries divergentes, portadoras de uma
verdadeira vertigem, Deleuze o relaciona ao devir, em especial ao devir do eterno
retorno tal como foi concebido por Nietzsche. Ele é o retorno não ao Mesmo, mas do
Mesmo. Em outros termos, o que se repete é o ato de retornar e não o conteúdo do
retorno. Esse será sempre novo, pois duas coisas iguais ou homogêneas no espaço
tornam-se heterogêneas e potencialmente diferentes no tempo. Assim, o mesmo se torna
outro; ou o acontecimento, mesmo cíclico, é heterogêneo, por se construir em séries
divergentes ao longo do tempo. O acontecimento X que vivi ontem, ao se repetir hoje,
será diferente, pois será X
2
. Ele inclui o antecedente. Trata-se de um movimento não
128
circular, mas espiralado, tridimensional. É a insinuação do simulacro, pois o mesmo se
torna outro, pois não existe mais modelo nem cópia, mas diferenças infinitas.
No mundo da imagem digital, podemos pensar os simulacros como irrupções
que abrem caminho para as multiplicidades e para o virtual.
Ser ou não Ser: A Questão da Simulação Digital
9
Desde o aparecimento das possibilidades de simulação digital e a criação do
hiperespaço fomos lançados num debate de grandes proporções e prestigiosos atores. De
um lado uma visão otimista das novas possibilidades
10
, representadas principalmente
por Pierre Lévy. Esse pensador sempre enfatizou os aspectos fascinantes da simulação e
suas aplicações no desenvolvimento do conhecimento, da imaginação, do raciocínio e
da comunicação (Lévy 1998). Um dos grandes atrativos da simulação apontados por
Lévy é sua natureza interativa. Os jogos de “realidade virtual”, por exemplo, põem em
contato, por meio da simulação, toda uma dimensão corporal dos atores envolvidos,
com gestos e expressões. O próprio contexto em que os atores se movem é partilhado e
transformado. Assim, a simulação, com a interatividade que lhe é subjacente, poderia
realizar os seguintes tipos de troca (Lévy 1999):
1. Apropriações com personalização da mensagem recebida.
9
Baseado num artigo que publicamos: Braga, Eduardo Cardoso (2003). “Ser ou não ser: a questão da
simulação”. In: Leão, Lúcia [org]. Cibercultura 2.0. São Paulo: U.N.Nojosa.
10
Além de Pierre Lévy, podemos listar nesta vanguarda das utopias tecnológicas os seguintes nomes: o
canadense Derrick de Kerckhove, o alemão Peter Wiebel e o norte-americano Nicholas Negroponte.
129
2. Reciprocidade da comunicação, dispositivos comunicacionais com base
no “um a um” (peer to peer) ou com base no “todos a todos”
(rede neural).
3. Virtualidade, enfatizada pelo processamento de mensagens em tempo
real.
4. A telepresença.
5. A incorporação de imagem dos participantes nas mensagens vinculadas.
Dessa forma, a simulação, para Lévy, é definida como a virtualização das ações
humanas. Os jogos em rede simulam as estratégias de um jogador com o objetivo de
superar dificuldades e atingir metas. Para tanto, este deve passar por referências
espaciais e temporais que são partilhadas por todos os outros jogadores.
Devemos assinalar que Lévy não considera a simulação como um simples
transposição ou representação
11
de nosso mundo concreto “experienciado”. As
possibilidades vão muito além; por exemplo, podemos simular de forma gráfica e
interativa fenômenos muito complexos e abstratos, para os quais não existe nenhuma
“imagem” natural. Assim, a ideografia dinâmica possibilitaria, por exemplo,
materializar por meio de imagens: dinâmica demográfica, evolução de espécies
biológicas, ecossistemas, guerras, crises econômicas, crescimento de uma empresa,
orçamentos, etc. Neste caso, a modelagem traduz de forma visual e dinâmica aspectos
em geral não-visíveis da realidade e pertence, portanto, a um tipo particular de
encenação (Lévy 1999: 67). A simulação é muito mais do que representação do que é
visível. Trata-se, na verdade, não de representação, mas de criação de mundos possíveis,
11
Usamos aqui o termo representação no sentido mais amplo, ou seja, como (re)apresentação de algo que
aparece. Neste sentido, a semelhança é uma importante qualidade desse tipo de representação. Mais
adiante nesse trabalho, retomaremos a questão da representação num contexto no qual a semelhança não é
uma qualidade necessária e suficiente para o ato de representar.
130
nos quais a imaginação desempenha papel ativo
12
. A ação ou situação simulada pode
ser também imaginada e sentida. Esta característica lhe confere enorme potencial para
uso nos processos de ensino-aprendizagem.
Assim, podemos resumir que, para Pierre Lévy, a simulação é encarada como
experiência positiva, devido aos seus enormes potenciais de produção de conhecimento,
desenvolvimento cognitivo e pelo fato de conectar pessoas conhecimentos e
experiências num espaço de diversidade dimensional e temporal. Essa intensa conexão
entre pessoas pode mesmo gerar a emergência de uma “inteligência coletiva”
13
(Lévy
2003). A simulação não é representação nem transfiguração do mundo, mas criação de
mundos possíveis.
Entretanto, existe no debate da cultura contemporânea uma outra visão da
questão da simulação. Uma visão que poderíamos classificar de pessimista e
apocalíptica. Um de seus principais representantes é Jean Baudrillard (1983, 1994,
1998), que lançou os alicerces da crítica da simulação por meio do conceito de
“simulacro”. Ele alerta para o alcance incalculável causado pela irrupção do sistema
binário. Por meio dele, criou-se um sistema desarticulador dos discursos por afetar o
sistema de representação, provocando um curto-circuito em tudo o que foi dialética de
um significante e de um significado, de um representante e de um representado.
Segundo Baudrillard, existe uma sedutora imagem da cultura contemporânea
circulando nos meios discursivos hoje em dia. Nosso mundo nos lançou no hiperespaço
numa espécie de pós-modernismo apocalíptico. Nesse hiperespaço a atmosfera rarefeita
asfixiou o referente, deixando-nos como satélites numa órbita sem objetivo em torno de
um centro vazio. Esse centro é vazio de significação, porém habitado por números, ou
12
Lembramos que, em A ideografia dinâmica, Lévy (1998: 97-109) dedica um capítulo inteiro à
imaginação, enfatizando seu importante papel na construção de modelos mentais.
13
A este propósito ver: SANTOS, Rogério da Costa (2005). “Por um novo conceito de comunidade: redes
sociais, comunidades pessoais, inteligência coletiva”. Interface, São Paulo, v. 9, n. 17, p. 235-248.
131
seja, um código binário sem referência material. De fato, o código é construído por uma
diferença de matéria não importando qual elemento material provoca esta diferença.
Basta uma simples e mínima diferença para se construir, por meio de zeros e uns, ou de
uma dualidade, um código que armazene instruções para dispositivos realizarem. Trata-
se de uma sintaxe criada arbitrariamente, por convenção, e sobreposta à mínima
diferença material. Nós descansamos num éter de imagens flutuantes que não tem
nenhuma relação com a realidade (Baudrillard 1994: 10). Isto, de acordo com
Baudrillard é simulação, espaço habitado pelo simulacro: a substituição dos signos do
real pelo real (Baudrillard 1994: 3). Na hiper-realidade, signos não mais representam ou
se referem a um modelo externo. Eles suportam apenas a si mesmos, e referem-se
apenas a outros signos, são realidades em si. Existem para a percepção, formando-se por
combinatória binária, como os fonemas da linguagem (Baudrillard 1994: 147). Segundo
Baudrillard, esse falar por fonemas não passa de um gaguejar, um gaguejar pós-
moderno. Na ausência de qualquer atração gravitacional para uni-los, são fluxos de
imagens formando-se por meio de fragmentos, cacos sem significação. Tudo é
combinatória, portanto tudo torna-se intercambiável. Qualquer termo pode ser
substituído por qualquer outro. Trata-se de uma completa indeterminação (Baudrillard
1983: 56). Na contemplação dessas superfícies homogêneas de sintagmas deslizantes,
tornamo-nos mudos. Podemos apenas contemplar em completa e catatônica fascinação
(Baudrillard 1983 35-39). O segrede desse processo está escondido do próprio ato
perceptivo e, conseqüentemente, além de nossa compreensão. O sentido foi implodido.
Não existe mais nenhum modelo externo, mas somente imanência interna. Aqui se
mostra claramente o platonismo de Baudrillard, o simulacro mantém com o modelo
apenas uma aparência externa, no interior ele guarda uma diferença que o torna auto-
referente e imanente. Na superfície sintagmática deslizante, os simulacros são criados
132
por meio de uma mínima diferença e cuja função é sua troca, circulação e efeito.
Escondida nas imagens digitais existe uma espécie de código genético responsável pela
sua geração: o código binário, imaterial (Baudrillard 1994). O sentido está fora do
alcance e fora do signo, mas não porque está recuado numa certa distância, mas porque
o código se miniaturizou. Objetos tornam-se imagens, imagens tornam-se signos, signos
são informação e a informação está ajustada num chip, caixa preta, opaca para a
percepção e para o pensamento. Tudo se reduz a esse binarismo molecular. Finalmente
estamos cumprindo a generalizada digitalização da sociedade computadorizada
(Baudrillard 1994).
No processo digital, segundo Baudrillard, criar uma imagem consiste em retirar
do objeto todas as suas dimensões; o peso, o relevo, o perfume, a profundidade, o tempo
e, principalmente, o sentido. O fascínio da imagem digital reside exatamente nessa
desincorporação, a qual torna a imagem uma objetividade pura. O auge da simulação
consistira então em restabelecer todas as dimensões suprimidas com o intuito de tornar a
imagem mais real do que a realidade.
Estamos magicamente hipnotizados. Segundo Baudrillard, não podemos dizer
que somos exatamente passivos, porque toda a polaridade, incluindo a dicotomia
passividade-atividade, desapareceu. Não temos mais a terra para nos centrar, mas temos
nós mesmos como função e fundamento – no sentido elétrico
14
(Baudrillard 1983: 1-2).
Não atuamos, porém também não somos meramente passivos. Absorvemos tudo, por
todos os sentidos, por olhos abertos e bocas escancaradas. Neutralizamos o jogo das
imagens energizadas na entropia massificada da maioria silenciosa. Enfim, por meio de
ironias, metáforas e imagens de qualidade literária, Baudrillard pinta um mundo cuja
14
O indivíduo tornou-se empresa e toda sua vida é pautada e avaliada conforme índices performáticos
empresariais. Até mesmo suas relações familiares e humanas em geral, além de sua relação com o
ambiente e a natureza ou mundo. Neste sentido, a crítica de Baudrillard é muito interessante e pertinente.
133
principal característica é a total perda de referência. Nesse sentido, ele é totalmente
platônico ao condenar o simulacro como imagens que enganam, que possuem uma
diferença e são construídas por essa diferença. Qualquer referência com a realidade é
apenas aparência, na essência essas imagens-simulacros conservam sua autonomia em
relação a qualquer tipo de modelo. Sem dúvida que a leitura de Baudrillard é divertida,
irônica, inteligente e de muita qualidade literária, porém guarda uma nostalgia de um
tempo, que talvez nunca tenha existido, no qual a imagem se referia ao mundo. Agora,
vivemos em tempos difíceis, nos quais domina a invasão dos simulacros, processo do
capitalismo, o qual pretende formar uma massa dominada, consumista e silenciosa.
Habermas (2002) criticou a concepção de razão da Escola de Frankfurt. Segundo
essa escola, existiu uma razão substancial clássica, que se degenerou a partir da
metafísica de Platão em razão instrumental, cuja tecnicidade foi se aprofundando até seu
ápice na sociedade capitalista atual. Para Habermas (2002), trata-se de uma concepção
mística da razão, próxima do conceito de história cristã tal como foi formulado por
Santo Agostinho: paraíso, queda, redenção, ou volta a situação paradisíaca. Ora, esta
mesma crítica pode ser estendida para a concepção de imagem de Baudrillard. O paraíso
é representado pela situação na qual os signos tinham referência no mundo. A queda, a
situação digital, na qual os signos tornam-se realidade, ou são substituídos por uma
realidade. O paraíso, a fotografia analógica, na qual existe o traço, o rastro da luz sob
um suporte, desvelando uma referência ao mundo.
Segundo Baudrillard (1997: 41-42), a fotografia preservaria a idéia do real, ao
constituir-se no próprio vestígio de seu desaparecimento. Ao contrário, na imagem
digital o real desapareceu substituído por um outro real. A fotografia preserva o
momento da desaparição e, portanto, o encanto do real como uma vida anterior.
134
Baudrillard historia os simulacros encontrando três momentos que produziram
diferentes tipos de simulacros: Antiguidade e Renascença, Revolução Industrial e Era
digital.
A imagem numérica representaria, para Baudrillard, a simulação da era digital,
na qual temos um princípio metafísico inaugurado pelo sistema binário, produtor de
“simulacros de simulação” (Baudrillard 1997: 52). Baseados na informação, no modelo,
no jogo cibernético, contrastariam não apenas com os “simulacros naturais”
(Antiguidade e Renascença) baseados na imagem e no fingimento, mas também com os
“simulacros produtivos” (Revolução Industrial), baseados na energia, na força da sua
materialização pela máquina e em todo o sistema de produção.
Na essência dos simulacros não existe nada, apenas ausência. Essa característica
as torna fetiche sagrado como os ícones bizantinos com seu poder assassino. As
imagens seriam assassinas do seu próprio modelo, como os ícones de Bizâncio o
podiam ser da identidade divina. Tal situação faria ruir o próprio sistema de
representação o qual se baseia na aposta de que um signo possa remeter para a
profundidade do sentido, que um signo possa trocar-se por sentido e que alguma coisa
sirva de caução a esta troca. A simulação destrói o sistema de representação por reduzir
a realidade aos signos que a comprovam. A representação se baseia no princípio de
equivalência do signo e do real, enquanto a simulação é a radical negação do signo
como valor, pois parte de sua reversão e do aniquilamento de toda a referência
(Baudrillard 1997: 26-28).
Entretanto, nossa relação com a imagem digital somente pode se dar nessa
perspectiva? Somente nos resta a escolha entre um platonismo ingênuo ou ser uma
esponja que tudo suga? Os simulacros são somente esta potência negativa que engana,
ilude e subverte a referência? Não estaríamos na imagem digital diante de uma
135
verdadeira reversão do platonismo e, nesse sentido, ancorando nossa percepção no
concreto e libertando as diferenças para criar o novo?
Deleuze e Guatarri abrem uma via de pensamento, no qual podemos pensar a
imagem e a imagem digital em particular, sem cair numa apologética da técnica e do
maravilhoso mundo novo. Para melhor compreendê-la devemos unir a proposta de
libertação do simulacro, desenvolvida no artigo “Simulacro e Filosofia Antiga”, com
seus trabalhos posteriores, em especial, Mil Platôs. Esses trabalhos podem nos dar uma
análise de nossa condição cultural sob o capitalismo avançado sem conduzir-nos em
direção aos dinossauros ou lançar-nos no hipercinismo.
“Não é nos grandes bosques nem nas veredas que a filosofia se elabora,
mas nas cidades e nas ruas, inclusive no que há de mais factício nelas. O
intempestivo [referência a Nietzsche] se estabelece com relação ao mais
longínquo passado, na reversão do platonismo, com relação ao presente, no
simulacro concebido como o ponto desta modernidade crítica […] Pois há
uma grande diferença entre destruir para conservar e perpetuar a ordem
restabelecida das representações, dos modelos e das cópias e destruir os
modelos e as cópias para instaurar o caos que cria, que faz marchar os
simulacros e levantar um fantasma – a mais inocente de todas as
destruições, a do platonismo” (Deleuze 1974: 271).
O projeto de reverter o platonismo tem uma repercussão na Pop-Art, a qual
transformou o factício numa cópia da cópia levando-o até o ponto em que mudou de
natureza, se reverteu num simulacro e se afirmou como imagem autônoma,
ontologicamente posta no mundo urbano. Uma definição muito comum de simulacro,
como já vimos, é ele ser uma cópia da cópia, no qual a relação com o modelo tonou-se
tão atenuada que não se pode mais chamar propriamente de uma cópia. Poderíamos
dizer que é uma situação na qual temos uma cópia sem modelo. Frederic Jamenson
15
exemplifica essa situação com o movimento de arte chamado hiper-realismo
16
. A
15
Como Baudrillard, Jamenson é um dos principais críticos da sociedade pós-moderna, especialmente em
seu atual momento digital.
16
O hiper-realismo, também conhecido como realismo fotográfico ou fotorealismo é um estilo de pintura
e escultura, que busca mostrar uma abrangência muito grande de detalhes, tornando a obra quase idêntica
136
pintura é uma cópia não da realidade, mas de uma fotografia, a qual é já uma cópia de
um original (realidade). Além disso, ela é pintada com tal grau de atenção aos detalhes
que se torna mais real que a realidade (Jamenson 1984: 75).
Deleuze em sue artigo “Simulacro e Filosofia Antiga” (Deleuze 1974) toma uma
definição semelhante como seu ponto de partida, mas enfatizando a sua inadequação.
Para além de um certo ponto, a distinção não é mais somente uma questão de grau –
cópia da cópia. O simulacro é menos uma cópia dupla instalada do que um fenômeno de
uma natureza inteiramente diferente. Ele abala o solo e a certeza da distinção entre
cópia e modelo. Os termos cópia e modelo se referem ao mundo da representação e
(re)produção objetiva. Uma cópia, não importa quantas vezes distantes de um original,
autêntica ou falsificada, é definida pela presença ou ausência de uma relação interna,
essencial, de semelhança com um modelo. O simulacro, de outro lado, carrega somente
uma externa e ilusória semelhança, portanto, na verdade, uma dessemelhança com um
suposto modelo. O processo de sua produção, seu dinamismo interno, é inteiramente
diferente de seu suposto modelo; sua semelhança é meramente um efeito de superfície,
uma ilusão. Diferentemente do que pensa Baudrillard, a produção e função de uma
fotografia não têm relação com o objeto fotografado
17
. Uma pintura hiper-realista
guarda uma diferença essencial com a realidade, pois seu objetivo é atingir esse efeito
de “mais real do que a realidade”. O simulacro tem como efeito tencionar sua relação
com o modelo e produzir a sensação de esquisitice ou estranhamento, tão geralmente
associada com o simulacro. Uma cópia é produzida com as regras e normas que a fazem
a uma fotografia ou a uma cena da realidade. Os artistas hiper-reais partem de fotografias e procuram na
pintura reproduzir essas fotografias com uma exatidão de detalhes bastante minuciosa e impessoal,
gerando um efeito de irrealidade e formando o paradoxo: "É tão perfeito que não pode ser real". Teve
início em 1968, apresentando expansão no início dos anos 70, tendo grande popularidade na Inglaterra e
nos Estados Unidos.
17
A este propósito ver o excelente livro de Arlindo Machado, A ilusão especular. Neste trabalho,
Machado procura recompor a herança iconográfica clássica que atuou na fotografia. Assim, a fotografia
se remete muito mais à pintura do que ao real que ela fotografa.
137
permanecer semelhante ao seu modelo. O simulacro tem uma agenda diferente, entra em
circuitos diferentes, é subversiva por não se basear nessas regras e, com isso, criar a
diferença, recusar o Mesmo. A Pop-Art, como já vimos, é um exemplo, que Deleuze usa
freqüentemente, de um simulacro que quebrou sua relação com o modelo: sua dinâmica,
sua multiplicação e sua estilização são processos autônomos que a diferenciam do
modelo, criando sua própria série de reprodução. Seu impulso não é tornar-se um
equivalente do modelo, mas voltar-se contra ele e se afirmar como ser autônomo. O
simulacro sempre afirma sua própria diferença. Ele não é uma implosão, como quer
Baudrillard, mas uma diferenciação, uma distância. A semelhança para o simulacro é
um meio e não um fim. Um simulacro, escreve Deleuze e Guattari,
“Com o fim de tornar-se aparente, é forçado a simular estados estruturais e
passar despercebido estados de força os quais permanecem debaixo da
máscara e por meio dela, investir em formas terminais e estados mais altos
cuja integridade irá posteriormente ser estabelecida” (Deleuze e Guattari
1972: 91).
Semelhança é apenas um mascaramento inicial com o objetivo de proporcionar a
irrupção de toda uma nova dimensão vital. Isto ocorre igualmente na natureza. Um
inseto que imita uma folhagem não é com o objetivo de ser igual ao modelo, mas para
se esconder do animal predador e preservar sua vida que é, de fato, diferente do vegetal
que ele imita. Imitação, de acordo com Lacan, é camuflagem (Lacan 1981: 99). Trata-se
então de uma zona de guerra. Existe um poder inerente ao falso: o positivo poder da
astúcia, da camuflagem, com o objetivo de ganhar vantagem estratégica. A máscara,
imitação, esconde força e vida próprias.
Um exemplo interessante e que enquadra o simulacro na ótica de Deleuze, nos é
fornecido pelas observações de Brian Massumi (1987) sobre o filme de Ridley Scott:
138
Blade Runner
18
. O inimigo final na guerra da astúcia, nesse filme, é o assim chamado
“modelo”. Os replicantes, que estavam fora do mundo, retornam para a terra não para se
misturar com a população, mas para achar o segredo de sua construção e conseqüente
obsolescência. Seu objetivo é eliminar a possibilidade do surgimento repentino dessa
obsolescência e, com isso, viver suas vidas plenamente, escapando da escravidão. Os
replicantes imitam os seres humanos, mesmo em suas memórias e sentimentos, porém,
essa mesma imitação os leva em direção de sua singularidade. Como os homens eles
amam a vida. Porém aos homens não é dado a possibilidade de superar a própria morte.
Já para os replicantes, essa possibilidade se apresenta. Então, por ser semelhante aos
homens, buscam sua absoluta diferença: serem eternos. Como os simulacros, sua
imitação é somente uma estação provisória na rota do desmascaramento e a libertação
da pretensão, não do mesmo, mas da diferença.
Baudrillard evita a questão de se a simulação substitui um real que de fato
existiu alguma vez, ou que nunca existiu (Baudrillard 1983: 70-83). Se a resposta for a
segunda – um real que nunca existiu – poderíamos estar não mais sob o domínio do
platonismo, mas da verossimilhança aristotélica. Esta última, pelo menos no campo da
arte e da maneira como foi interpretada pelo classicismo, concebe a imagem como a
natureza poderia ser, ou seja, se permite uma correção do modelo. Por exemplo, Ingres,
quando pinta um corpo feminino, chega a introduzir uma vértebra a mais no modelo
para atingir um ideal de beleza da forma serpentinada e harmônica. Trata-se então, neste
caso, de vincular a imagem, cópia, a um real que pode nunca ter existido de fato, mas
18
Blade Runner é um filme de ficção científica realizado por Ridley Scott e editado em 1982, ilustrando
uma visão negra e futurística de Los Angeles em Novembro de 2019. O argumento, escrito por Hampton
Fancher e David Peoples, baseia-se na novela Do Androids Dream of Electric Sheep? de Philip K. Dick.
O filme descreve um futuro em que a Humanidade inicia a colonização espacial, para o que cria seres
geneticamente alterados - replicantes - utilizados em tarefas pesadas, perigosas ou degradantes nas novas
colônias. Fabricados pela Tyrell Corporation como sendo "Mais Humanos que os Humanos", os modelos
Nexus-6 são fisicamente idênticos aos humanos mas são mais fortes e ágeis. Devido a problemas de
instabilidade emocional e reduzida empatia, os Replicantes são sujeitos a um desenvolvimento agressivo,
pelo que o seu período de vida é limitado a 4 anos.
139
sua existência é hipostasiada por um Modelo ideal de beleza. Nesse contexto a imagem
é uma revelação e acaba tornando sensível, visualmente, um ideal que é extra-sensível
ou mental.
Mas para Deleuze e Guatarri, a alternativa e conseqüente questão são falsas,
porque simulação é um processo que produz o real, ou, mais precisamente, mais real do
que o real, porém na base do real: “ele (o simulacro) conduz o real além de seu
princípio, para o ponto no qual ele é efetivamente produzido” (Guattari & Deleuze
1972: 87). Toda simulação toma como seu ponto de partida um mundo regularizado
contendo aparentemente identidades estáveis ou o que Guattari & Deleuze chamam de
territórios. Mas, se o simulacro toma como ponto de partida uma realidade já dada, ele
não a simplesmente copia, mas cria uma situação ou ponto de fuga, no qual a dimensão
construtiva da própria realidade é desvelada. Torna visível o que era invisível, ou na
expressão de Klee, não reproduz o visível, torna visível. Em outros termos, o real torna-
se conhecimento.
O simulacro não coloca as coisas em termos de modelo e cópia, mas em termos
de percepção, ou num vocabulário fenomenológico, em termos de intencionalidade.
Minha consciência intenciona a realidade de uma forma diferente da que intenciona uma
imagem digital. O simulacro introduz uma diferença no ato de figurar. “Simulação não
substitui a realidade […] mas, antes apropria-se da realidade numa operação de
sobrecodificação” (Deleuze & Guatarri 1972: 210). Em outros termos, a simulação é
uma desterritorialização da realidade, ou uma linha de fuga, que multiplica os pontos de
vistas, colocando em questão, forçando o pensamento a questionar a dimensão
territorial. Em termos fenomenológicos, o simulacro cria, em relação à realidade, outros
espaços intencionais. Assim, a questão não é mais a distinção entre modelo e cópia, ou
real e imaginário; mas entre dois modos de simulação, afinal não damos o nome de
140
“realidade” a um sistema de leitura dos objetos e do próprio homem baseado numa
abstração chamada valor e capital (Marx, O Capital)? Essa “realidade” é simulada pelo
Capital. Portanto o que chamamos de “real” também é uma simulação. Dizer que o
“real” é uma simulação, não significa dizer que ele não existe. Ao contrário, ele existe
de fato. O que o simulacro desvela é o fato desse real ser sempre apreendido de um
determinado ponto de vista. O simulacro revela a estrutura finita da percepção. Ela é
sempre apercepção, ou seja, um recorte de um fluxo segundo um ponto de vista.
Nem todos os simulacros possuem uma força para produzir a diferença. Existem
dois modos dos simulacros se apresentarem ou aparecerem. O primeiro modo de
simulação é do tipo normativo, regularizado e reprodutivo. Ele seleciona algumas
propriedades das entidades e tenta reproduzi-las. Por exemplo, o trabalho dignifica, a
lealdade é fundamental, o bom parentesco, existem bons e maus homens pela natureza,
etc. São semelhanças superficiais dado que reproduzem apenas ações padronizadas.
Poderíamos dizer até que se trata de uma cópia, talvez uma cópia passando-se por
simulacro! Na verdade, não se trata de simulacro, mas de clichês, os quais são a
reprodução do Mesmo, portanto não a diferenciação do Mesmo, que é o efeito do
simulacro.
O outro modo de simulação é aquele que se volta contra todo o sistema de
semelhança e reprodução. Aqui, podemos falar de simulacro propriamente dito. Ele
recria um território cuja perspectiva engendra um centro de indeterminação no qual as
antigas dicotomias, modelo-cópia não tem mais razão de existir. Deleuze e Guattari
chamam este segundo modo de simulação de “devir”
19
(Guattari & Deleuze 2002, Vol.
4, Cap. 10).
19
A este respeito ver: Guattari, Felix & Deleuze, Gilles (2002). Mil Platôs. Capitalismo e Esquizofrenia.
São Paulo: Editora 34; em especial o capítulo 10 do vol. 4: “Devir-Intenso, Devir-Animal, Devir-
Imperceptível”.
141
“Um devir não é uma correspondência de relações. Mas tampouco é ele
uma semelhança, uma imitação e, em última instância, uma identificação
[…] O devir não produz outra coisa senão ele próprio. É uma falsa
alternativa que nos faz dizer: ou imitamos ou somos. O que é real é o
próprio devir, o bloco de devir, e não os termos supostamente fixos pelos
quais passaria aquele que se torna […] O neo-evolucionismo parece-nos
importante por duas razões: o animal não se define mais por características
(específicas, genéticas, etc.), mas por populações, variáveis de um meio
para outro ou num mesmo meio; o movimento não se faz mais apenas ou
sobretudo por produções filiativas, mas por comunicações transversais entre
populações heterogêneas. Devir é um rizoma, não é uma árvore
classificatória nem genealogia. Devir não é certamente imitar, nem
identificar-se; nem regredir-progredir; nem corresponder, instaurar relações
correspondentes; nem produzir uma filiação, nem produzir por filiação.
Devir é um verbo tendo toda sua consistência; ele não se reduz, ele não nos
conduz a “parecer”, nem “ser”, nem “equivaler”, nem “produzir […] O
vampiro não filiaciona, ele contagia. A diferença é que o contágio, a
epidemia coloca em jogo termos inteiramente heterogêneos: por exemplo,
um homem, um animal e uma bactéria, um vírus, uma molécula, um
microorganismo” (Guattari & Deleuze 2002: Vol. 4, 18-23).
Para Deleuze o momento cultural no qual no simulacro se desmascara e afirma
sua diferença engendrando um contágio estilístico e uma multiplicação de signos, além
de novas relações entre objetos, espaços e acontecimentos, se deu com a Pop-Art e, no
cinema, o Neo-Realismo italiano e a Nouvelle Vague francesa (Deleuze 1985: 7-22). A
propósito, Deleuze descreve o método de Robbe-Grillet, o qual teve enorme influência
na Nouvelle Vague francesa:
“É como se o real e o imaginário corressem um atrás do outro, se refletindo
um no outro, em torno de um ponto de indiscernibilidade […] quando
Robbe-Grillet faz sua grande teoria das descrições, ele começa por definir
uma descrição “realista” tradicional: é a que supõe a independência de seu
objeto e engendra então uma discernibilidade do real e do imaginário […] a
descrição neo-realista do nouveau roman é totalmente outra: como ela
substitui o seu objeto, de um lado ela apaga ou destrói a realidade que passa
no imaginário, mas, de outra, desvela toda a realidade que o imaginário ou
a mente criou pela palavra e visão” (Deleuze 1985: 15).
142
Esse mesmo processo se dá em “O ano Passado em Marienbad”
20
(L´année
dernière à Marienbad) no qual presenciamos uma descrição geométrica de ambientes,
personagens e situações. Nesse contexto, o próprio tempo é analisado, diminuído sua
velocidade até o ponto zero para que a percepção dos detalhes descritos possa ser fruída
em profundidade. Entretanto, apesar dessa descrição precisa e geométrica, temos a
impressão de estar dentro de uma consciência que procede a uma memorização e, desta
forma, atualiza seu passado virtual. Assim máxima objetividade descritiva coincide com
máxima subjetividade. Na verdade, o que está em questão é a própria dicotomia
objetivo-subjetivo. A realidade criada pela consciência torna impossível a distinção
entre realidade e imaginário, por conseguinte, modelo-cópia. Ora, esta é a potência do
simulacro. Quando desdobrada, esta potência torna inoperante a divisão modelo-cópia.
A semelhança, para o simulacro, é apenas uma máscara que esconde toda potência da
diferença e do contágio, modos de questionamento da relação modelo-cópia. Duas irmãs
gêmeas: qual delas seria a cópia da outra? Uma fileira de carros num pátio de uma
montadora: qual dos carros seria o modelo para as cópias? O simulacro desvela que a
semelhança não garante a relação modelo-cópia, porque a semelhança é apenas uma
máscara. A potência do simulacro torna tudo diferente. Duas folhas da mesma árvore
não são iguais. Nessa indiscernibilidade total, nada pode ser cópia ou modelo.
Segundo Deleuze, esse movimento combinatório dos signos, o qual torna as
imagens independentes e autônomas é uma desterritorialização engendrada pelo capital
avançado e a informação disseminada por contágio (Guattari & Deleuze 2002: vol 5,
“Aparelho de Captura”). Entretanto, esta desterritorialização é efetivada somente para
tornar possível uma reterritorialização de uma grande e mais gloriosa terra de um
20
No luxuoso hotel, um estranho tenta convencer uma mulher casada a fugir com ele, alegando que
ambos haviam tido um caso amoroso no ano anterior, em Marienbad. Mas a mulher não se lembra do
relacionamento. Direção de Alain Resnais.
143
capitalismo renascido, o qual engendra novos modelos para serem copiados e torna o
valor o modelo supremo. Mas nas entrelinhas e nos acontecimentos uma brecha foi
aberta. O desafio é assumir este novo mundo da simulação e levá-lo bem mais longe,
para um ponto no qual não haja retorno e não seja mais possível acontecimentos e ações
baseadas na representação e na hierarquia modelo-cópia.
Boa parte do pensamento atual quando se depara com a imagem digital não a
pode pensar senão como simulacro, por exemplo Baudrillard. Nesta perspectiva, a
imagem digital ora pretende-se modelo, por criar uma hiper-realidade, mas real do que o
real; ora pretende-se cópia, representação da realidade e suas possibilidades. Porém não
existe nenhum vínculo material ou produtivo com a realidade. Sua verdade é ser código,
escondido na caverna de um microcomputador.
O desafio de libertar os simulacros não pode ser alcançado por meio de votos de
piedade. O trabalho de Baudrillard é um longo lamento, apesar de sua belíssima forma
literária e seus lances de fina ironia. Em termos deleuzianos, não se pode mais proceder
e pensar por meio de uma causalidade tanto linear como dialética, porque tudo é
indeterminação. Entretanto, se assumirmos, como Baudrillard o faz, que a única
alternativa para o pensamento é a representação e que, hoje, a ordem representativa está
numa absoluta indeterminação, então tudo se passa como descreve Baudrillard. O centro
do sentido está vazio, conseqüentemente, somos satélites numa órbita perdida. Não
podemos mais agir como sujeitos-legisladores ou ser passivos como escravos,
conseqüentemente, somos como esponjas. As imagens estão ancoradas pela
representação, conseqüentemente, elas flutuam sem peso no hiperespaço. Palavras não
são mais unívocas, conseqüentemente, significados escorregam caoticamente de forma
intercambiável. Uma fusão aconteceu entre real e imaginário, conseqüentemente, a
realidade se implodiu numa indefinível proximidade com a hiper-realidade. Porém,
144
todas essas declarações fazem sentido somente se mantermos duas fundamentações: a
diferença ontológica entre essência e aparência, conseqüentemente modelo-cópia, e a
noção de que uma imagem é sempre representativa de alguma coisa.
O enquadramento de Baudrillard revela uma nostalgia de um mundo onde estas
fundamentações faziam sentido. O que Deleuze e Guattari oferecem, particularmente
em Mil Platôs, é uma lógica capaz de iluminar o deficiente mundo da representação de
Baudrillard e proporcionar um vislumbre de possibilidades senão de libertação, pelo
menos de resistência. Contra o cinismo, uma esperança – de nós mesmos nos tornarmos
mais real do que o real e num monstruoso sistema de contágio afirmar os direitos das
diferenças. Para tanto é necessário pensar fora do sistema da representação. Uma
imagem só pode ser entendida como uma representação de alguma coisa?
Descartes e a filosofia da representação
“Sólido, frio, sem cor, silencioso e morto; um mundo da
quantidade, um mundo de movimentos computáveis
matemática e regularmente. O mundo de qualidades
imediatamente percebidas pelo homem torna-se apenas
um efeito curioso e bem menor em relação àquela
máquina infinita que o ultrapassa” (Burt 1954: 239 apud
Neiva 1986: 41 sobre a imagem do mundo engendrada
pela física moderna).
Antes de tudo, precisamos deixar claro o que entendemos por representação. O
binômio signo-representação possui um longo percurso conceitual, com diferentes
momentos, na história da filosofia. Assim, o conceito de representação constitui o cerne
de várias espécies de teorias como por exemplo: o cartesianismo, a semiótica, as
ciências cognitivas, etc. Existe certamente uma unidade na longa história deste conceito.
Nöth apresenta esta unidade:
145
“A doutrina do signo, que pode ser considerada como semiótica avant la
lettre, compreende todas as investigações sobre a natureza dos signos, da
significação e da comunicação na história das ciências. E a origem dessas
investigações coincide com a origem da filosofia: Platão e Aristóteles eram
teóricos do signo e, portanto, semioticistas avant la lettre” (Nöth, 1995b:
p.20).
Entretanto, também existem diferenças, rupturas neste conceito. Tomamos o
conceito de representação tal como aparece na filosofia de Descartes e em sua
influência posterior: o cartesianismo. Não se trata portanto de como ele é tratado na
semiótica contemporânea, na qual ele aparece mais com o sentido de mediação. Trata-se
de pensá-lo no âmbito da problemática cartesiana, na qual a representação se torna o
problema ontológico da existência de sua referência. O drama cartesiano é clássico.
Tenho apenas acesso às representações em minha mente. Então, como garantir que esta
representação tenha uma existência de fato fora de minha consciência? Temos uma
correspondência biunívoca entre uma representação (significante) e sua referência
interior (significado). Segundo Foucault, nem sempre foi assim. A semelhança
desempenhou papel fundamental no Renascimento, guiando a representação. Há quatro
formas essenciais que caracterizam e constituem a similitude:
1. A Convenientia designa a aproximação das coisas, na qual a extremidade
de uma delimita o início da outra. É uma “semelhança ligada ao
espaço sob a forma da graduação. “É da ordem da conjunção e
do ajustamento. (...) O mundo é a ‘conveniência’ das coisas”
(Foucault, 1999: 36).
2. A Aemulatio se apresenta como um reflexo. O semelhante envolve o
semelhante e por duplicação pode se desenvolver ao infinito.
Para Foucault, há na emulação “algo que se parece com o
reflexo e o espelho; mediante ela as coisas dispersas através do
146
mundo relacionam-se umas com as outras” (Foucault 1999:
p.37).
3. A Analogia se sobrepõe a conveniência e a emulação. Pode aproximar
todas as coisas do mundo, sendo seu ponto de convergência o
homem. O espaço das analogias é um espaço de irradiação. Por
todos os lados, o homem é envolvido por ele; mas esse mesmo
homem, inversamente, transmite as semelhanças que recebe do
mundo. “Ele é o grande foco das proporções – o centro em que
as relações vêm apoiar-se e a partir do qual se refletem de
novo” (Foucault, 1999: 41).
4. A Simpatia atua livremente, ela é dotada de grande mobilidade. Atrai as
coisas umas para as outras através de um movimento externo
que acaba por gerar um movimento interno de deslocamento de
qualidades que podem se substituir umas às outras. A simpatia
transforma.
Toda a espessura do mundo, as aproximações da convenientia, os nexos da
analogia, são sustentados, mantidos e duplicados pelo espaço da simpatia e da antipatia,
o qual não cessa de aproximar e afastar as coisas (Foucault 1999: 46). No Renascimento
os signos eram formas de similitude e a Natureza um livro no qual as coisas se
relacionavam, se aproximavam ou se separavam em virtude de um laço secreto de
semelhanças.
No século XVII existe uma ruptura em relação ao Renascimento; a semelhança
deixa de ser a forma do saber. O pensamento clássico exclui a semelhança como
experiência fundamental. As palavras e as coisas que, no Renascimento, se remetiam
147
umas às outras, não mais se assemelhavam: “os signos da linguagem já não têm outro
valor para além da tênue ficção que representam. A escrita e as coisas já não se
assemelham” (Foucault 1999: 57). Por conseguinte a representação passou a ser o
princípio de arbitrariedade do signo: “as semelhanças passaram a estar sujeitas ao
exame racional de uma prova de comparação. A nova ordem era estabelecida sem
referência a uma entidade exterior” (Nöth 1996: 136).
Durante o Racionalismo de base cartesiana, o sistema dos signos deixa de ser
ternário, ou seja, significante, significado e objeto referido; passando a ser binário, ou
seja, significante, significado. Por exemplo, a gramática e lógica de Port-Royal “exclui a
referência exterior ao considerar que o signo representa a idéia de uma coisa e não a
coisa em si “(Nöth 1995: 43).
A linguagem passa a organizar as coisas para o pensamento. O mundo já não é
mais da semelhança, mas o da representação. Com a divisão entre signo e seu objeto, as
palavras não se ligam mais diretamente às coisas: a alternativa é a representação como
elemento de ligação (Foucault 1999).
As críticas à imagem digital a supõem sempre como representação, ou seja, algo
na mente de uma pessoa que a induziria a ter uma idéia de que esse algo existe de fato.
Ora, essa pessoa, ao raciocinar dessa forma, cometeria um erro. O que a levou a
proceder assim? Emitiu um juízo sem estar de posse de uma idéia clara e distinta. As
imagens nunca proporcionam idéias claras e distintas, porque são afecções ligadas ao
corpo, segundo a lógica cartesiana. Por exemplo, estamos diante de duas imagens, uma
é fotografia analógica de uma maçã; a outra é uma imagem digital dessa fotografia.
Diante das duas, usando somente nossos sentidos, não podemos determinar o que é joio
e o que é trigo. Os sentidos não nos dão uma idéia clara e distinta para distinguirmos.
Então é necessário proceder por exames técnicos e por um processo de racionalização
148
técnica finalmente dizer que a imagem digital é o simulacro, pois não tem nenhuma
relação com a maçã, ela substitui o objeto maçã (“os signos foram substituídos pelo
real, com diz Baudrillard). A fotografia foi a impressão da luz que deixou um rastro do
objeto no filme analógico. Porém, se tivéssemos uma fotografia da primeira fotografia,
poderíamos dizer que se trata de um simulacro. Não, porque existe uma diferença, uma
evidente degradação da imagem nesse caso (Mitchell 1992). Assim, um não se pode
passar pelo outro. E a imagem digital? Teoricamente a degradação não existe. O arquivo
digital não se degrada no ato de sua reprodução. Teoricamente podemos multiplicar a
imagem digital ao infinito sem perdas
21
. Essa possibilidade é mais um exemplo da
dificuldade em relacionar a imagem digital a um contexto modelo e cópia; pois na
multiplicação qual é a matriz? Na verdade, é uma reprodução sem matriz. Essa é a
essência da imagem digital. Devemos lembrar a caracterização que faz Deleuze do
simulacro como multiplicação por contágio e não reprodução.
Assim, devemos perguntar: a imagem digital somente faz sentido num
enquadramento representativo? No caso da fotografia, a imagem digital da fotografia
pretende de fato imitá-la? Ou é nosso raciocínio segunda a representação que nos força
a pensá-la sempre como se referindo a uma outra coisa? Os processos afetivos, ou as
afecções sempre criam idéias confusas? As imagens só existem em função de um
sujeito? Para encaminhar estas questões, então, seria muito útil investigarmos o cerne
dessa concepção de representação.
Descartes, no início da filosofia moderna, critica a semelhança, mas não exclui
do pensamento racional o ato comparativo, apenas o limita à forma da medida e da
21
Evidentemente que isto é em teoria. Nos processos de movimentação, adaptação para diferentes
circunstâncias: internet, vídeo, impressão, etc, a imagem digital sofre processos de compactação e sofre
perdas. Entretanto não é contraditório pensar uma situação ideal onde possamos multiplicar a imagem
digital em todos os contextos sem necessidade de compactação, ou com um sistema de compactação sem
perdas.
149
ordem. É por meio da comparação pela medida e pela ordem que, no século XVII, o
pensamento se organiza.
A comparação pela medida exige a aplicação de uma unidade comum, de um
modelo para comparar os dois. A medida estabelece relações de igualdade e de
desigualdade. A comparação pela ordem não implica na aplicação de outro elemento,
ela é um ato simples que dispõe as diferenças estabelecendo séries organizadas
(Guenancia 2000). A busca de Descartes e de todos filósofos do Grande Racionalismo
era a de certezas e verdades que resistissem ao ataque do ceticismo. A razão era o guia
dessa busca. A comparação, em detrimento da similitude, contribuía para o objetivo
maior de alcançar essas verdades. A comparação pode, portanto, atingir uma certeza
perfeita, ou seja, clara e distinta, sempre aberta para novas eventualidades; já o velho
sistema de similitudes, deste novo ponto de vista, somente podia, por meio de
confirmações sucessivas, tornar-se cada vez mais provável, porém nunca totalmente
certo (Foucault 1999: 82). A comparação é a essência da representação cartesiana. Ela
pressupõe uma hierarquia e medidas comuns. É exatamente o contrário do sistema anti-
representativo do simulacro, o qual pressupõe a afirmação da diferença e não a
comparação.
Todo saber cartesiano clássico se relaciona com a mathesis, ciência universal da
medida e da ordem. A ordenação da natureza simples se realiza por meio da mathesis,
cujo método universal é a álgebra. Já a taxonomia (classificação) é um método para
ordenar as naturezas complexas, por meio da instauração de um sistema de signos. A
taxonomia:
“Não se opõe à mathesis: inclui-se nela e, no entanto, distingue-se dela;
porque ela é também uma ciência da ordem – uma mathesis qualitativa.
Mas entendida no sentido estrito, a mathesis é a ciência das igualdades,
portanto das atribuições e dos juízos; é a ciência da verdade; a taxonomia,
por sua vez, trata das identidades e das diferenças; é a ciência das
articulações e das classes; é o saber dos seres” (Foucault 1999: 105).
150
A episteme clássica caracterizou-se pelo sistema articulado entre mathesis e
taxonomia. Descartes, em seu Discurso do Método, apresenta um método de
investigação baseado na razão que objetiva livrar-se do saber dogmático e escolástico.
Para Descartes, os pensamentos são de duas espécies, uns são como as imagens das
coisas, os outros contém alguma coisa a mais que essas imagens, ou seja, um ato do
espírito pelo qual ele afirma ou nega; se coloca a favor ou rejeita alguma coisa. Somente
as primeiras espécies são pensamentos propriamente falando. A segunda espécie trata-se
de julgamentos, vontades, ou tudo o que o espírito acopla a essas idéias. A idéia não é
certamente para Descartes uma imagem, toda sua teoria do conhecimento rejeita
firmemente a identificação empirista das idéias com as imagens. As idéias estão no
espírito; as imagens das coisas se imprimem no cérebro, as primeiras tem a natureza da
alma, as segundas tem a natureza do corpo. Desenha-se aqui o típico dualismo
cartesiano. As imagens cerebrais “nos dão a ocasião”, como diz Descartes, para a alma,
de conceber as coisas as quais elas se referem, mas estas imagens, espécies de sinais,
não são as idéias que a alma concebe na ocasião da formação das imagens no cérebro.
Uma imagem, na física de Descartes, não é uma cópia de uma coisa, ela não se
assemelha a esta coisa. É necessário apenas que ela represente esta coisa. As idéias são
como desenhos feitos com um pincel sobre o papel, os quais não se assemelham senão
longinquamente às coisas ou cenas que eles invocam. Assim, as palavras despertam no
espírito as idéias das coisas que elas significam, porém não existe nenhuma semelhança
entre estas palavras, que são puros sinais, e as idéias que elas significam. Da mesma
forma, uma idéia, pura concepção do espírito, não se assemelha à coisa da qual ela é a
idéia. Trata-se então de uma representação. Se esta idéia de fato representa algo que
existe é uma idéia clara e distinta; porém, coso contrário, é uma idéia confusa. Se
151
mantivermos nossos juízos em estreita sintonia com a distinção das idéias, faremos
sempre juízos certos, dado que uma idéia, clara e distinta, é sempre verdadeira e uma
idéia confusa é sempre errada. O erro sempre se introduz por uma vontade que não
obedece a razão. O juízo é emitido antes da razão determinar a clareza das idéias. Para
Descartes a condição humana implica numa vontade infinita e uma razão finita. A
vontade sempre se impõe à razão, somente no sábio, que se guia segundo a ordem das
razões, a vontade esta dominada e os juízos são geralmente corretos.
O mundo cartesiano é por certo o mundo da representação. Mas que o
representante signifique visivelmente o representado, não significa de modo algum que
o representante seja a cópia do representado. A Natureza concede ao homem, a seu
corpo e a seu espírito, uma linguagem cujos princípios são geométricos. Trata-se então
de fundar com toda a legitimidade o discurso da física no plano epistemológico,
assegurar a ciência da natureza sobre uma base irrecusável, em suma, construir um
sistema da Natureza. Para tanto, Descartes construirá um modelo representativo da
Natureza que não mantém com o mundo real nenhuma relação de semelhança, mas de
adequação geométrica.
Na filosofia clássica, a representação substitui a semelhança em todos os
domínios (Foucault 1999). Mais exatamente, a semelhança é um efeito da
representação. É necessário bem representar uma coisa para que esta representação se
lhe assemelhe o melhor possível. No Discurso do Método, Descartes compara seu
processo e sua empresa àquela dos pintores. “Estimaria muito mostrar, neste discurso,
quais os caminhos que segui, e representar nele a minha vida como num quadro […]”
(Descartes [1637] 1973: 38). Ele retoma essa mesma comparação na quinta parte da
mesma obra, momento no qual expõe seus trabalhos em física:
152
“Mas, tal como os pintores que, não podendo representar igualmente bem
num quadro plano todas as diversas faces de um corpo sólido, escolhem
uma das principais, que colocam à luz, sombreando as outras, só as fazem
aparecer tanto quanto se possa vê-las ao olhar aquela; assim, temendo não
poder pôr em meu discurso tudo o que tinha no pensamento, tentei apenas
expor amplamente o que concebia da luz […]”(Descartes [1637] 1973: 60).
Pascal evoca também essa questão da perspectiva que implica que o expectador
se coloque num certo ponto de vista para que o quadro represente a realidade e pareça
assim verdadeiramente semelhante:
“Assim acontece com os quadros vistos de muito longe e de muito perto; só
há um ponto indivisível, que é o verdadeiro lugar: os outros estão perto
demais, longe demais, alto demais ou baixo demais. A perspectiva assinala
este fato, na arte da pintura; na verdade e na moral, quem o assinalará?”
(Pascal ([1670] 1979: 130).
Descartes já tinha de uma certa maneira respondido a esta questão de Pascal.
Este “ponto indivisível” a partir do qual se pode julgar a verdade é aquele ao qual
Descartes chama de idéia clara e distinta: “e, portanto, parece-me que já posso
estabelecer como regra geral que todas as coisas que concebemos muito clara e muito
distintamente são todas verdadeiras” (Descartes [1647] 1973: Meditação Terceira, §2,
108). Uma idéia clara e distinta é uma idéia que representa bem seu objeto, de uma
forma tão distinta que não se pode o confundir com um outro (Guenancia 1996).
Quando concebo um triângulo, não confundo sua figura com a de um quadrado.
Também, se me coloco no lugar certo, verei o quadro com uma boa luz e perceberei
distintamente todas as coisas que representa. Inversamente, uma idéia obscura e confusa
representa mal seu objeto, de tal forma que não pode distingui-lo de um outro.
Semelhante a um quadro visto contra a luz, mal iluminado, visto de “muito longe” ou de
“muito perto”, uma idéia obscura não nos revela o que ela representa verdadeiramente.
Os exemplos que dá Descartes das idéias obscuras e confusas são a maior parte tomados
na esfera dos sentimentos e das sensações: a fome, a sede, o calor, o frio, a dor, as cores,
153
etc. (Guenancia 1996). É somente em relação a sua função representativa que estas
idéias são ditas obscuras e confusas. Consideradas nelas mesmas, são “vivas e
expressivas” (Guenancia 1996). Seu caráter confuso se deve ao fato de não saber-se
verdadeiramente se estas idéias correspondem às coisas realmente existentes. O que é o
frio, o calor ou as cores fora da consciência? É como se sobre um quadro víssemos as
formas, as cores vivas, sem, entretanto, distinguir o que elas representam. As idéias
podem então ser comparadas com os quadros porque o espírito ao percebê-las se dirige
para o que elas representam. Se as idéias são claras, a representação se revela. Se são
obscuras, a representação não se revela. Assim, idéias claras são, em geral, idéias
intelectuais ou materiais. Já as idéias das coisas sensíveis são obscuras. Trata-se de uma
total desvalorização epistemológica da sensibilidade. Mas o que dizer das paixões da
alma? Uma paixão parece menos da ordem da representação e mais da ordem do afecto.
O objeto de uma paixão, o amor por exemplo, pode ser comparada à uma imagem ou a
um quadro, como as idéias? A paixão não parece eliminar a distância entre a alma e o
objeto, experimentando-o mais como afecto e menos como objeto? Quando se
experimenta uma paixão, não se faz a experiência de uma espécie de fusão com o objeto
que parece ser uma experiência vivida mais do que representada? (Guenancia 2000).
Aliás, é devido a esta dimensão experiencial que se diz que a razão não pode ser senão a
escrava das paixões. Segundo Hume:
“Uma paixão é uma existência original, ou se você quiser, modificação da
existência, e não contém nenhuma qualidade representativa, a qual se possa
referenciar. Quando estou irado, atualmente estou possuído pela paixão, e
esta emoção não tem nenhuma referência a qualquer outro objeto […] É
então impossível que esta paixão possa ser combatida pela verdade e pela
razão ou que elas possam a contradizer, porque a contradição consiste no
desacordo das idéias, consideradas como cópias dos objetos que elas
representam” (Hume [1739] 1985: 415).
Assim, para Hume, a paixão não representa nada porque ela constitui um fato
primitivo, enquanto que uma idéia é sempre a cópia de uma impressão primitiva da qual
154
ela se distingue pela diferença de força ou vivacidade. Uma idéia toca sempre mais
fracamente o espírito do que a impressão da qual ela deriva, já a paixão é da ordem do
primeiro, portanto da maior força e vivacidade. Sobre este caráter de força e vivacidade
da paixão não existe divergência entre Hume e Descartes. Porém enquanto Hume
classifica a paixão como fato primitivo e, portanto, não representando nada, Descartes a
classifica como percepções da alma; o que implica que uma paixão, mesmo sendo forte,
sempre fornece para a alma alguma coisa a conceber. Assim, para Descartes, uma
paixão é uma idéia concebida pelo espírito da mesma forma quando ele imagina ou
recorda; porque ela está sempre acompanhada de um movimento particular dos
“espíritos animais”
22
e, assim, testemunha uma mudança no corpo. Uma idéia é, para
Descartes, alguma coisa que faz pensar.
“Depois de ter assim considerado todas as funções que pertencem somente
ao corpo, é fácil reconhecer que nada resta em nós que devemos atribuir à
nossa alma, exceto nossos pensamentos, que são principalmente de dois
gêneros, a saber: uns são as ações da alma, outros as suas paixões. Aqueles
que chamo suas ações são todas as nossas vontades, porque sentimos que
vêm diretamente da alma e parecem depender apenas dela; do mesmo
modo, ao contrário, pode-se em geral chamar suas paixões toda espécie de
percepções ou conhecimentos existentes em nós, porque muitas vezes não é
nossa alma que os faz tais como são, e porque sempre os recebe das coisas
por elas representadas” (Descartes [1649] 1973).
Deixemos por um instante indeterminada a questão de saber quais são “estas
coisas” que as paixões representam para a alma. Mas podemos presumir, inicialmente,
que não são coisas corporais. As paixões representam para alma coisas que possuem
valor para essa alma: prazeres, alegrias, sofrimentos, dores e etc. A paixão partilha com
a idéia o fato de representar alguma coisa para a alma, de lhe fazer conhecer uma
determinada coisa. Esta comunidade de natureza ou de gênero entre as idéias e as
paixões da alma interditam a existência, no cartesianismo, de uma dualidade entre o
entendimento e a afetividade, consideradas duas potências antagônicas. Mas
comunidade não quer dizer identidade. A principal distinção entre as idéias dá-se entre
22
Os “espíritos animais” pertencem aos conceitos da fisiologia cartesiana. São uma espécie de fluído do
sangue. Segundo Descartes, os espíritos animais entravam em contato com substâncias racionais no
cérebro e circulavam ao longo dos canais dos nervos com o intuito de animar os músculos e outras partes
do corpo. Assim, os espíritos animais são os responsáveis pela ligação entre o corpo e o espírito.
155
aquelas que são claras e distintas e aquelas que são obscuras. As paixões, embora ideais,
pertencem à dimensão das idéias obscuras:
“Podemos chamá-las percepções quando nos servimos em geral desse
termo para significar todos os pensamentos que não constituem ações da
alma ou vontades, mas não quando o empregamos apenas para significar
conhecimentos evidentes; pois a experiência mostra que os mais agitados
por suas paixões não são aqueles que melhor as conhecem, e que elas
pertencem ao rol das percepções que a estreita aliança entre a alma e o
corpo torna confusas e obscuras
23
” (Descartes [1649] 1973: 237).
Que as paixões sejam representações confusas significa que a alma é tocada
pelas paixões de uma maneira que não é comparável a nenhuma outra idéia ou
percepção: nada a agita ou a estremece tão forte como elas, nada lhe é tão próximo e
interior. Por isso a impossibilidade – ou grande dificuldade – para o espírito de manter-
se à distância das paixões quando elas o agitam ou o emocionam fortemente. A idéia
constitui a possibilidade para o espírito conhecer a coisa que ela representa. Qualquer
que seja o modo de pensar, a idéia apresenta-se ao espírito como alguma coisa para ser
percebida, como um quadro ou uma imagem, falando metaforicamente. Assim, a
primeira questão, que se pode formular, é como conceber a paixão como representando
alguma coisa, por exemplo um bem ou um mal? Seria no mesmo sentido no qual uma
idéia representa um objeto? A segunda questão refere-se ao fato de Descartes, nas
Paixões da Alma, comparar frequentemente as paixões à representação teatral. Parece
que nesta comparação, representação tem o sentido de um artifício destinado a
proporcionar uma ilusão da realidade, como um quadro é também a representação de
uma coisa real. No caso do teatro, Descartes observa que um espectador observa uma
representação de acontecimentos tristes ou trágicos, mas mantém uma distância
suficiente para poder tirar um prazer em fruir esta representação. Assim, o que significa
a expressão, freqüente nos escritos de Descartes, “a paixão representa”? Por exemplo:
23
Grifo nosso.
156
“todas nossas paixões nos representam os bens os quais sua busca elas nos incita,
tornando-os maiores do que realmente os são” (Descartes [1643-1647] 1996: 147).
Descartes convida Elisabeth, a interlocutora do texto acima, para, em semelhantes
ocasiões, suspender seu julgamento até que a emoção provocada pela paixão reflua; e só
então emitir uma opinião ou realizar uma ação. Isto significada que Descartes concebe
as paixões como as idéias confusas das coisas sensíveis como o calor, a luz, a cor, etc;
as quais, mesmo sendo idéias e não julgamentos, são nomeadas como idéias
“materialmente falsas”.
“Pois, ainda que eu tenha notado acima que só nos juízos é que se pode
encontrar a falsidade formal e verdadeira, pode, no entanto, ocorrer que se
encontre nas idéias uma certa falsidade material, a saber, quando elas
representam o que nada é como se fosse alguma coisa” (Descartes [1647]
1973: 114).
Relembremos rapidamente os dois aspectos, indissociáveis sob os quais as idéias
se apresentam e que constituem a própria natureza da idéia:
1. A idéia é um modo do pensamento ou do espírito. A este respeito não existe
diferença entre as idéias, sendo todas igualmente modos de
pensamento e, neste sentido, o pensamento é a realidade formal da
idéia.
2. A idéia representa uma determinada coisa. Isto que consiste sua realidade
objetiva, a qual é diferente entre as idéias e mesmo diferente
segundo o grau de ser da realidade ou da perfeição da coisa que a
idéia representa.
Sob o primeiro aspecto, a idéia é “uma obra do espírito”; sob o segundo, ela é
como uma imagem ou um quadro de uma coisa. Assim, segundo Descartes, todas as
idéias representam alguma coisa e esta função é inerente à própria natureza da idéia.
157
Consideradas nos limites da representação que elas geram no espírito, não são nem
verdadeiras, nem falsas. Entretanto, algumas dessas idéias, como aquelas de calor e luz,
parecem representar uma realidade que é somente uma negação ou privação de uma
outra. Se a idéia que me representa o frio não me representa nada de real fora do
espírito, somente a privação de calor; ela é então uma idéia “materialmente falsa” em
sua própria representatividade. Ao representar para o espírito um Bem maior do que
realmente o é, a paixão também está na categoria da idéia “materialmente falsa”.
Em todas essas situações, a representação tem a função de tornar o objeto
sensível ao espírito. Nas Paixões da Alma, artigo 138, Descartes assim se refere às
paixões:
“[…] fazem parecer, quase sempre, tanto os bens como os males que
representam, bem maiores e mais importantes do que são, de modo que nos
incitam a procurar uns e a fugir de outros com mais ardor e mais cuidado do
que é conveniente, como vemos também que os animais são muitas vezes
enganados por meio de engodos, e que para evitar pequenos males
precipitam-se em outros maiores […]” (Descartes [1649] 1973: 276).
Poderíamos explicar esta função recorrendo a uma distinção semiótica, porém
que está ausente nos escritos de Descartes. A distinção é entre as idéias-cópias e as
idéias-signos, as primeiras seriam semelhantes a seus objetos, as segundas diferentes.
Os intelectuais de Port-Royal, seguindo uma leitura de Descartes, parecem, de
fato, usar a distinção entre idéias-cópias e idéias-signos:
“Quando se considera um objeto nele mesmo e em seu próprio ser, sem
levar em consideração a observação do espírito para a sua representação, a
idéia que se tem é uma idéia de uma coisa, como a idéia de Terra, de Sol,
etc. Mas quando nós não observamos um certo objeto senão como
representando um outro, a idéia que se tem é uma idéia de signo, e este
primeiro objeto se chama signo. É assim que se observa normalmente as
cartas e os quadros” (Arnauld & Nicole [1662] 1992: 327).
Quando nos concentramos especificamente em Descartes, concordamos com
Guenancia (2000) que devemos dar preferência para os dois tipos de idéias: idéias claras
158
e distintas e idéias obscuras. Embora, para nossos propósitos, que é investigar como a
noção cartesiana de representação influenciou alguns enquadramentos conceituais da
imagem, não existe diferenças significativas entre a proposta das idéias-cópias e idéias-
signos da tradição cartesiana de Port-Royal; e as idéias claras e distintas e idéias
obscuras de Descartes. Em ambas abordagens existem uma desvalorização do
conhecimento adquiro pela sensação e uma valorização da representação que é a única
forma efetiva de conhecimento. Na Lógica ou a Arte de Pensar de Port-Royal ([1662]
1987), Arnauld e Nicole verificam o distúrbio causado pelas imagens, derivadas das
paixões e dos afetos, em última análise do estado de pecado em que vive o homem
desde sua queda. A clareza então se extravia na representação que o sujeito se faz de si
mesmo, vendo-se a si de acordo com o que considera grande ou pequeno, bom ou mau.
Para que o sujeito cartesiano possa ser “uma coisa que pensa”, precisa se confundir com
a constância de representações estáveis, não sujeitas à mobilidade dos afetos.
Assim, Tendo um poder de afecção, de encantamento, a imagem é confusa e
engendra uma representação falsa. No caso da imagem digital, no enquadramento
cartesiano, em vez que representar o código do computador da qual ela é a verdadeira
fonte, ela representa elementos matérias da sensação cor, luz; ou então a realidade
existente no mundo. Quando pensamos a imagem digital como uma intensa afecção,
representando mais do que realmente é, “mais real do que o real”, no enquadramento da
filosofia da representação, trata-se de uma afecção que produz uma idéia confusa e
“materialmente falsa”. Conseqüente a isso temos um completo esvaziamento das
possibilidades epistemológicas da afecção e conseqüentemente da imagem digital.
Em Descartes, temos claramente duas maneiras de conceber as idéias. As idéias
claras e distintas, as quais são representadas no espírito de forma clara e distinta; as
idéias obscuras, nas quais representar significa parecer.
159
O importante é realçarmos que a representação é uma das fundamentais
categorias da epistemologia tradicional. Ela se impôs no pensamento ocidental numa
solidariedade estreita com o princípio de identidade e, conseqüentemente, com uma
concepção estática e substancialista do real
24
. O conceito de representação está
subjacente a uma epistemologia realista que parte do princípio de que existe um real
objetivo que funda o conhecimento e o sujeito se apropria dele por meio de suas
representações e imagens, cuja verdade repousa na respectiva adaequatio a essa
realidade exterior e existente. A noção de representação também está fortemente
presente na epistemologia cartesiana, a qual progressivamente começa a deslocar o
centro do processo cognitivo do objeto para o sujeito (Marion 1993: 113-148). Essa
questão é importante, pelo fato de associar representação e sujeito; dito de maneira mais
precisa: na obrigação de considerar a equivalência estabelecida entre uma razão forte e
um sujeito central, capaz de modelar e manter o comando de suas representações. Se
numa concepção realista a representação é instrumentalizada como meio de acesso às
coisas, ela não é menos instrumentalizada numa concepção idealista ao traduzir o poder
do próprio sujeito como autor de suas representações.
Nestas circunstâncias, o que pode escapar à representação é o ser mutante e
mutável da realidade, o devir sempre renovado entre objeto e sujeito que faz do
conhecimento um processo indefinido. A noção de representação recusa o desvio entre
o significante e o significado, entre as palavras e as coisas, a separação, a ausência.
Recusa a errância e as “anormalidades” que são as características próprias de toda
atividade de estar-no-mundo. Ela conduz à ilusão ontológica da unidade, da identidade,
da estabilidade e da permanência do sentido (Laplantine 1999). Paul Ricoeur, em uma
24
Naturalmente, como já assinalamos, existe diversos sentidos para o conceito de representar. Nesse
sentido, ver: Gil, Fernando (1984). Mímesis e Negação. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, pp.
35-87.
160
de suas últimas obras (2004: 87-103), analisa o conceito de “reconhecimento” e dedica
o primeiro capítulo da obra ao estudo do “reconhecimento como identificação”,
centrando-se nas concepções de Descartes e Kant. Ele denuncia o caráter problemático
de toda a construção cartesiana e kantiana ao desvelar, como sua base fundamental, a
noção de representação (Vorstellung). Para se contrapor a essa noção de
“representação”, Ricoeur chama os filósofos que exploram o fundamento da experiência
humana como o ser-no-mundo (Husserl, Heidegger, Levinas e Merleau-Ponty). Esta é
uma outra forma de pensar o homem, como ser no tempo, desformalizando-o, isto é,
não o reduzindo a uma estrutura interna ao próprio sujeito.
A imagem digital é representação quando é pensada em relação a alguma coisa
que não ela mesma. Por exemplo, o código sintático que ela guardaria em sua estrutura.
O mundo que ela cria, ou suas possibilidades de simular praticamente quase tudo que
existe na realidade. Destinada aos sentidos, essas representações seriam confusas e
teriam o poder de iludir, criando no espectador a crença de sua existência real. Seriam
como as paixões para Descartes, capaz de gerar uma representação que visa a
aproximação e obtenção, no caso das paixões boas, e o afastamento e repugnância, no
caso das paixões más. Porém essa representação, associada ao corpo, seriam sempre
obscuras, representando distorcidamente o que de fato ocorre. Em suma seriam sempre
representações obscuras, não podendo definir o objeto ao qual se refere.
Transposta para a realidade da computação, a imagem digital é uma idéia
confusa e tem como sua referência causal um código binário. A manifestação deste
código é afecções para os sentidos, os quais remetem para outras realidades que não o
código. Em suma, existe uma diferença entre o código e suas manifestações. Como a
verdade está no código, a imagem digital não proporciona uma relação biunívoca com
sua referência. Sua multiplicidade é então ilusória. Dai se concluir que, na verdade,
161
nesse sistema todas as mídias estão integradas, como quer Kittler, mais precisamente,
nem poderemos falar mais em mídia, mas de uma civilização pós-midiática. Assim, toda
a rica manifestação sensorial da imagem digital seria da ordem de representações
confusas, destinadas à diversão e não ao conhecimento. Ilusão para agradar. Por isso os
sentidos, enquanto vozes do corpo, e a imaginação, demônio tentador da razão, são
alijados do homem. “Assim, porque os nossos sentidos nos enganam às vezes, quis
supor que não havia coisa alguma que fosse tal como eles nos faz imaginar” (Descartes
[1637] Discurso do Método, Quarta Parte, 1973: 54). Da mesma forma, Descartes
repetirá nas Meditações Metafísicas esse princípio: devemos saber que a mudança de
aspecto de uma substância comum como a certa não afeta a sua permanência, a
sensação de alteridade é efeito da intervenção dos sentidos, “pois todas as coisas que
caíam sob o gosto ou sob o odor ou sob a vista ou sob o tato ou sob a audição se
mostram mudadas […]” (Descartes Meditações Metafísicas, 1973: 105).
Contra a insegurança desse mundo escravizado às impressões enganosas dos
sentidos, contra as aparências e os devires, posso contar apenas com aquilo que
permanece: sou uma coisa que pensa. Essa certeza não depende das coisas cuja
existência não me é ainda conhecida, nem daquelas que são fingidas e inventadas pela
imaginação.
“Considerando que todos os mesmos pensamentos que temos quando
despertos nos podem também ocorrer quando dormimos, sem que haja
nenhum, nesse caso, que seja verdadeiro, resolvi fazer de conta que todas as
coisas que até então haviam entrado no meu espírito não eram mais
verdadeiras que as ilusões de meus sonhos. Mas, logo em seguida, adverti
que, enquanto eu queria assim pensar que tudo era falso, cumpria
necessariamente que eu, que pensava, fosse alguma coisa. E, notando que
esta verdade: eu penso, logo existo, era tão firme e tão certa que todas as
mais extravagantes suposições dos céticos não seriam capazes de a abalar,
julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro princípio da
Filosofia que procurava” (Descartes [1637] Discurso do Método, Quarta
Parte, 1973: 54).
162
Como vemos, a certeza proposta por Descartes passa pela suspeita do corpo, tido
por lugar apenas enquanto espaço para a ação da mente. A ciência, decorrente desse
enquadramento e vista como razão e pesquisa. Não há lugar na ciência para as
representações e afecções oriundas do corpo. O conhecimento, que se quer de corpos e
coisas, parte da afirmação da incorporeidade de quem conhece.
“Examinando com atenção o que eu era, e vendo que podia supor que não
tinha corpo algum e que não havia qualquer mundo, ou qualquer lugar onde
eu existisse, mas que nem por isso poderia supor que não existia; e que, ao
contrário, pelo fato mesmo de eu pensar em duvidar da verdade das outras
coisas seguia-se muito evidente e muito certamente que eu existia; ao passo
que, se apenas houvesse cessado de pensar, embora tudo o mais que alguma
vez imaginaria fosse verdadeiro, já não teria qualquer razão de crer que eu
tivesse existido; compreendi por aí que era uma substância cuja essência ou
natureza consiste apenas no pensar, e que, para ser, não necessita de
nenhum lugar, nem depende de qualquer coisa material” (Descartes [1637]
Discurso do Método, Quarta Parte, 1973: 54-55).
Esse mesmo desprezo pela dimensão corporal é transferido para a imagem
digital. Fala-se então em desmaterialização e desincorporação da informação. Pensar
dessa forma é considerar que a capacidade de afecção da imagem digital pertence a uma
dimensão imaginativa, já que na realidade ela é código binário, portanto informação
imaterial sem relação com um corpo.
Mas é somente no enquadramento da representação clássica que podemos pensar
uma estética e uma epistemologia da imagem?
Deleuze, novamente nos conduz para uma nova forma de pensar e viver a
imagem digital: uma estética não-representacional.
163
Imagem e Afecção: Uma estética anti-representacional
“Nosso olho insaciável e no cio” Gauguin (Apud
Deleuze 1981: 40).
“O eterno objeto da pintura: pintar as forças…” (Gilles
Deleuze & Felix Guattari, O que é a filosofia?)
Quando Aristóteles refletiu sobre o problema da tragédia criou duas vertentes
que abordam a arte segundo perspectivas diferentes e permanecem até os dias de hoje.
A questão apresenta-se no conceito de catarse (Katharsis) (Aristóteles, Poética, 1449b
e 1455b.), o qual permanece moderno, sendo retomado pelas reflexões estéticas
contemporâneas. Um dos problemas conceituais que Aristóteles encontra no tratamento
da tragédia é a natureza quimérica do chamado “prazer estético”; isto devido a tragédia
realizar-se com cenas de homicídios, infanticídios, incestos, traições, sacrifícios
humanos, etc. Apesar disso, a platéia está formada por um público numeroso, atento,
que sente um “prazer estético” diante desse espetáculo sanguinário. Sem dúvida,
estamos em face de uma situação ambígua. A resposta a esse problema dividirá a
estética em duas grandes vertentes. Segundo Aristóteles, a razão deste extraordinário
fato consiste na instauração de um processo psicológico no espectador, que finalmente é
conduzido, através de uma série de horrores, a um estado de purificação, precisamente
uma catarse, que elimina as sombras da angústia e ilumina a consciência com uma nova
e pura luz. Porém, a passagem onde Aristóteles desenvolve essa reflexão
25
possui
enormes ambigüidades, sendo, segundo os eruditos, de difícil tradução e gerando,
devido a este fato, várias e controvertidas interpretações. Uma delas estabeleceu o foco
da comunicação artística no fruidor e sua psicologia, dando origem às diversas estéticas
da recepção. A outra vertente interpretativa é inaugurada por Goethe ([1749–1832]
1994) intuindo que o processo catártico tem lugar fisicamente sobre o cenário e não na
25
A passagem a qual estamos nos referindo encontra-se em: Aristóteles. Poética, cap. VI, 1449b.
164
psique dos espectadores. A catarse é exibida e não experimentada, ou melhor, o fato de
experimentá-la subjetivamente é somente uma conseqüência do fato de tê-la exibido
claramente. A genial interpretação de Goethe foi retomada por muitos teóricos
contemporâneos. Um exemplo marcante é G. F. Else (1968) que reforça a interpretação
de Goethe realizando uma análise rigorosa do ponto de vista lexicográfico e gramatical
(Beardsley 1966). Também para Else, a catarse acontece na cena, o que implica uma
concepção arquitetônica do drama que termina por assumir uma unidade própria,
independente da resposta emotiva do espectador. A essência do drama consiste,
precisamente, no fato de conter sua própria resolução. Assim, temos as duas linhas
básicas na interpretação do processo estético. Por um lado, a interpretação “objetiva” ou
“ontológica”, com idealização da forma e a presença de uma “conclusão”, respeitando
uma estrutura arquitetônica, por vezes temporal. A outra interpretação, a que transfere a
catarse para a mente do espectador, revela uma direção subjetiva. A evocação de um
estado interno “alterado” mostraria nossa própria natureza. Assim como um relâmpago
ilumina uma paisagem, as emoções mostrariam a nós mesmos nossa própria natureza.
Estas duas vertentes, a catarse na própria obra ou na mente do espectador, introduzem a
tradicional disputa entre sentidos e razão ou entre estética da recepção e estética
ontológica. Diante dessa discussão, Gilles Deleuze ocupa uma posição singular e
interessante. De um lado ele admite que a arte tem estrutura e realidade próprias. Assim
sendo, a realidade da arte seria ontológica, revelando o seu próprio ser. Entretanto,
Deleuze nega a existência do ser como universal, como essência imutável. A realidade
da arte estaria do lado do vir-a-ser num permanente nomadismo. Numa obra de arte
existe uma tensão interna, onde se materializam forças não sensíveis. Como
conseqüência, essa tensão coloca a arte como potencialmente capaz de provocar
sensação. Teríamos então em Deleuze uma arte autônoma, com realidade própria e
165
independente do espectador, mas potencialmente com a capacidade de provocar
sensação neste fruidor, cujo resultado seria novas conexões no cérebro num permanente
Devir. Porém, no caso de Deleuze, a relação de um fruidor com a arte, por meio da
sensação, tem como conseqüência o desaparecimento da noção clássica de sujeito e
objeto e, conseqüentemente, a transformação do homem numa série de devires: devir-
sensação, devir-animal, devir-intenso, devir-imperceptível. Assim, a tradicional
distinção entre estética da recepção e estética ontológica deixam de existir. Na verdade,
como veremos, é a própria idéia de separar um sujeito de um objeto que está em
questão.
O conceito de “sensação” possui uma multiplicidade de significados, variando
segundo contextos e épocas. Houve filósofos que consideraram a sensação como um
modo inferior de conhecimento, por vezes chegaram mesmo a duvidar que fosse
propriamente conhecimento. Por exemplo, Platão (Platão, O Sofista) afirma, contra os
filósofos sofistas de sua época, que a sensação, ou seja a “percepção sensível”, não
proporciona verdadeiro conhecimento, nem mesmo das próprias coisas sensíveis, pois
estas somente podem ser compreendidas à luz das Formas, entidades não sensíveis. O
mundo sensível, para Platão, é sombra, formada por cópias das verdadeiras Formas ou
simulacros, pretensas cópias (Platão. República, 511e, 598b, 602a). Pela sensação, por
exemplo, pode-se apreender uma cor, mas não se pode dizer que a cor apreendida é
semelhante ou não à percepção sensível de outra cor. É a mente, a natureza intelectual
do homem que compara as sensações e emite juízos sobre sua natureza. Assim, na
filosofia platônica, a sensação abrange tudo o que chamamos de percepção, sendo esta
considerada como uma apreensão de natureza não intelectual. Sensação e intelecto são
naturezas diferentes e por vezes divergentes. Esta concepção de separar sensação e
intelecto, com raras exceções permaneceu até a filosofia moderna. Descartes ainda
166
afirmava que a sensação é “um modo confuso de pensar” (Descartes [1637]). Durante
toda a época do “Grande Racionalismo” do século XVII foi outorgado um lugar
subordinado à sensação na estrutura do conhecimento. A situação mudou com a entrada
em cena dos empiristas, os quais destacaram, em compensação, a importância do
sensível. Para Hume, o sujeito cognoscente é um “receptáculo” no qual ingressam os
dados do mundo exterior transmitidos pelos sentidos mediante a percepção (Hume
[1777] 1987). Os dados que ingressam nesse sujeito são chamados de sensações por
Hume. Essas sensações são a base de todo conhecimento. Entretanto, o conhecimento
não se reduz a elas. É necessário que as sensações sejam ligadas a outras sensações,
para tornar possíveis operações como recordar, pensar, ajuizar, etc. Caso contrário, o
conhecimento seria apenas uma série desconexa de dados presentes. Assim, é necessária
uma segunda fase do processo cognitivo, para que o conhecimento se processe em meio
a presença das percepções continuamente mutáveis. A inferência somente será possível
ao se estabelecer as relações de idéias formadas pelas sensações. Assim, no empirismo
de Hume existe uma diferença básica entre os fatos e as idéias, sendo as relações entre
as idéias meras possibilidades de combinação derivadas das sensações reais.
Evidentemente, estas podem conduzir a um processo de reflexão, mediante o qual se
torna possível o reconhecimento de conceitos e, em geral, de algo que poderíamos
chamar de “universal”. Entretanto, isto não significa que o “universal” seja aceito como
propriamente real. O empirismo de Hume manifesta especial desconfiança em relação a
tudo que apareça como “abstração” e “universalismo”. O importante deste breve e
obrigatoriamente perigoso resumo é o fato do empirismo de Hume estabelecer uma
importância para as sensações como fonte de conhecimento; cabendo ao sujeito
cognoscente, que não passa de um “feixe de sensações”, relacionar estas, formando
idéias por meio do hábito. Entretanto, existe um perigo cognitivo. Na formação das
167
idéias pode acontecer o afastamento da sensação original, tornando-se abstrações que
possuem apenas uma tênue relação com o real. Importante também reforçar que o
primeiro grande livro de Deleuze, Empirismo e Subjetividade, é uma reflexão e um
comentário sobre a filosofia de David Hume. Também Deleuze foi o responsável pelo
verbete “Hume” para a importante Histoire de la philosophie de Châtelet (Châtelet
1972). Evidentemente que isto não foi por acaso. Existe efetivamente em Hume o
convite a permanecer perto das sensações como a fonte da “Grande Experiência” e
realizar conexões a partir destas sensações, bem como a desconfiar de tudo o que é fixo,
abstrato e universal. Assim, a sensação passa a fazer parte da malha conceitual da
filosofia de Deleuze. Ela é explicitada no trabalho que Deleuze realiza sobre a pintura
de Francis Bacon
26
, Logique de la Sensation (Deleuze 1981: Cap. VI).
Segundo Deleuze, o projeto de Francis Bacon é “pintar a sensação” o que “é
uma questão muito densa e difícil a de saber porque uma pintura toca diretamente os
nervos” (Deleuze 1981: 20). Embora a questão da sensação permeia toda a obra, é no
capítulo VI: “Pintura e sensação”, que o conceito é claramente introduzido e
explicitado. Deleuze começa o capítulo afirmando que a sensação é uma maneira da
pintura ultrapassar a figuração de tipo narrativo, ilustrativo e anedótico. Esta figuração
seria para o homem contemporâneo os clichês que devem ser vencidos para que a arte
possa atingir algum grau de significação. Existiriam então duas formas de vencer este
clichê: a abstração e, numa linha aberta por Cézanne, a sensação. Trata-se de duas vias
possíveis, uma rumo à forma pura, por abstração; ou rumo ao puro figural, por extração
ou isolamento (Deleuze 1981: 9). Na via de oposição ao figurativo, que “implica […] a
relação de uma imagem com um objeto que ela se impõe ilustrar” (Deleuze 1981: 10), o
figural visa a romper com toda a organicidade do que expõe. As duas vias têm em
26
Um bom site para visualizar as obras de Francis Bacon encontra-se em: www.francis-bacon.cx/
- (visitado em 29 jan. 2005)
168
comum configurarem resistência ao propósito representacional. Elas, contudo, não
ocupam o mesmo plano, por serem mais restritas as possibilidades da via abstrata, “[…]
via que reduz ao mínimo o abismo ou o caos e também o manual” (Deleuze 1981: 67).
Por força de ser abstrato o código arrisca-se a ser uma simples codificação simbólica do
figurativo.
“Mesmo a pintura abstrata, em sua tentativa extrema de instaurar um
espaço ótico de transformação, assim se apoiará em fatores desagregantes,
nas relações de valor, de luz e sombra, de claro e de escuro, reencontrando
além do século XVII uma pura inspiração de Bizâncio: um código ótico…”
(Deleuze 1981:82).
A sensação, de modo contrário, introduziria uma relação háptica, tátil,
dependente de a própria vista descobrir em si uma função de toque, que lhe é própria e
que só a ela pertence, distinta de sua função ótica (Deleuze 1981: 99).
Mas o que seria essa sensação capaz de vencer a figuração ilustrativa? Em outros
termos, o que é uma Figura estética para Deleuze? Esta é a principal questão da Lógica
da Sensação, escrito depois de uma outra lógica: Lógica do Sentido. Percorrendo a
questão da sensação, Deleuze se pergunta: o que é uma Figura? Uma Figura
27
é, antes
de tudo, uma imagem; mas não uma imagem representação de alguma coisa
(ilustração); também não é uma relação entre representações imaginadas (narração); é
um fato pictórico. Essa fato, ou acontecimento, somente pode ser obtido no ato de
pintar, portanto, se trata de um pictórico performativo. A função primeira da Imagem ou
Figura é de se desvencilhar das imagens-cópias, rebelar-se contra o caráter figurativo,
ilustrativo e narrativo que caracteriza a imagem. Esse projeto foi específico da
modernidade? Segundo Deleuze, em todas as épocas houve o ato de extrair a Figura da
dimensão figurativa, ilustrativa ou narrativa. Ele dedica vários capítulos (Deleuze 1981:
27
Deleuze escreve desta forma: Figura ( com F maiúsculo). Trata-se de um conceito que não pode ser
confundido com figura.
169
capítulos XII, XIII e XIV) para mostrar esse projeto ao longo da história. Todos os
grandes momentos da arte das Figuras são não figurativos: arte egípcia, bizantina,
gótica, moderna, etc. Por exemplo, a arte gótica possui uma potente vida orgânica; é
assim que Wörringer ([1911] 1967) a definiu. Ela se opõe, em princípio, à representação
orgânica da arte clássica. Existe também uma abstração clássica. A arte clássica pode
ser figurativa, na medida em que remete a algo representado, mas pode ser também
abstrata, quando desprende uma forma geométrica da representação. Já a linha pictural
gótica, sua geometria e sua figura são bem outras.
“Esta linha é a princípio decorativa, na sua superfície, mas é uma
decoração material, que não traça nenhuma forma: uma geometria que não
está a serviço do essencial ou do eterno, mas uma geometria a serviço dos
“problemas” e “acidentes”, afastamento, junção, projeção interseção. É
assim uma linha que não para de mudar de direção, curvada, quebrada,
contornada, voltada sobre si, enrolada, ou ainda prolongada para fora de
seus limites naturais, morrendo numa “convulsão desordenada” […]”
(Deleuze 1981: 33-34).
A arte grega clássica foi a arte figurativa por excelência. Ela possui um estatuto
essencialmente negativo. Da mesma forma que a filosofia clássica grega desempenhava
o centro negativo da filosofia, segundo Deleuze em Diferença e Repetição, a arte grega
desempenha o mesmo papel de centro negativo na Lógica da Sensação (1981) e na arte
de Francis Bacon. Isto porque tanto a arte como a filosofia grega criaram um espaço
particular para o pensamento e a sensação. Espaço estriado e contínuo. Essa
continuidade seria tanto da manutenção da função paterna e, em conseqüência, podemos
inferir, da ordem social que conhecemos, como de uma lógica que reconduz à razão,
isto é, que, na obra de arte, sempre e apenas aponta para o que é discursivo, narrativo,
apto a ser comunicado. Em termos nietzschianos, para o que abafa o dionisíaco. Trata-se
de um pretenso espaço transparente de comunicação.
170
A especificidade da arte grega foi criar uma nova forma de representação, a qual
é, segundo Deleuze, a própria essência da arte figurativa. Esta figuração caracteriza-se
por ser uma espacialização figurativa das coisas, não somente por ser uma cópia do
mundo, mas por ter no olhar humano seu centro de construção. Arte inteiramente
intelectual, “antroporfomiza” tudo, já que não vê nada além da forma humana,
conduzida à mais rigorosa adaptação e função da harmonia (Faure 1990: 162). A arte
grega produziu uma forma de representação que exprime a vida orgânica do homem
enquanto sujeito, desta maneira a representação já se põe a serviço do sujeito unitário.
Ela criou um espaço táctil–ótico conectado à atividade orgânica do homem, na qual as
formas adquirem uma silhueta, uma dimensão independente dos jogos de sombra e luz,
um contorno tangível, tornando-se invariável na própria variação visual e na diversidade
dos pontos de vista (Deleuze 1981: 81). Deleuze cita Maldiney (1973):
“A despeito de todas as afirmações sobre a luz grega, o espaço da arte grega
clássica é um espaço tátil-ótico. A energia da luz é ritmada segundo a
ordem das formas… As formas se dizem elas mesmas a partir de si
mesmas, no entre-dois dos planos que suscitam. E quão mais livres do
fundo mais e mais se tornam livres para o espaço, no qual o olhar as acolhe
e os recolhe. Mas este espaço não é nunca o espaço livre que investe e
atravessa o espectador…” (1973 apud Deleuze 1981: 81).
Deleuze conclui que o contorno então deixou de ser geométrico para tornar-se
orgânico, o olho está subordinado a potência manual tátil, a Grécia inventou o contorno
tangível. O sentido dessa análise, Deleuze o encontra em Wörringer ([1908] 1986) que
assinala o fato de uma tal arte não procurar:
“reproduzir as coisas do mundo exterior ou a restituí-lo em sua aparência,
mas em projetar para o exterior, em uma independência e perfeição ideais,
as linhas e as formas da vitalidade orgânica, a harmonia de sua rítmica, em
resumo todo o seu interior […]” (Wörringer [1908] 1986: 62 apud Deleuze
1981: 81 [nota 5 de rodapé]).
171
Poder-se-ia afirmar que esta espacialização estética que Deleuze nomeia por
“representação orgânica” é exatamente o contrário do que ele visa em sua estética da
não-representação. Trata-se então de desfazer a representação orgânica, a qual serve
como molde, ou modelo que regra e controla o devir da coisas e dos olhares, ou pontos
de vista.
Se quisermos apreender o que é um espaço figurativo, devemos inverter o
próprio sentido do que comumente se compreende como o ato de figurar: é figurativo
não pela imitação das coisas pelo homem, mas a imitação do homem pelas coisas
(Guerrin & Montebelo 1997). Tornamo-nos figurativos quando criamos um espaço
humano, um cosmos humano. Nesse espaço, inventamos uma interioridade humana que,
expressa pelo olho, projetou-se sobre as coisas.
“A arte pode então ser figurativa; vê-se bem que ela não o é em primeiro
lugar e que a figuração não é senão um resultado. Se a representação está
em relação com um objeto, essa relação decorre da forma da representação;
se este objeto é o organismo e a organização é porque a representação é, em
primeiro lugar, ela mesma orgânica, é porque a forma da representação
exprime, em primeiro lugar, a vida orgânica do homem enquanto sujeito”
(Deleuze 1981: 81).
Uma das periodizações mais comuns da história da arte é considerar que a
pintura ocidental começa com a criação desse espaço e se transforma na crítica
modernista. Entretanto, segundo Deleuze, as coisas não se passam exatamente desta
forma. A pintura, em todos os tempos, sempre encontrou formidáveis dispositivos para
evitar o regime da “representação orgânica”. Por exemplo, a transformação bizantina da
Forma grega pela a assunção espiritual dos corpos na pura luz do Pantocrator
28
. As
deformações góticas da Forma grega por meio de uma linha viva e cantante na qual se
28
Pantocrator (ȆĮȞIJȠțȡȐIJȦȡ) é uma palavra de origem grega que significa etimologicamente "todo-
poderoso" ou "onipotente". Geralmente seu uso encontra referência no ícone bizantino "pantocrator", que
representa Cristo, tendo sua mão direita inclinada, em posição de bênção — com o polegar voltado para
si, os dedos médio e apontador, em posição oblíqua, quase vertical, e os demais dedos dobrados em
direção à palma da mão (fechados).
172
exprime uma potente “vida não orgânica” mesclando traços humanos, animais e
motivos abstratos. Se a arte pictórica não começa pelo figurativo, a razão fundamental é
que ela não é, em essência, figurativa. As coisas não sofreram necessariamente a
espacialização humana, nem se relacionam obrigatoriamente com a forma humana, com
a habitação humana.
A questão da arte grega é importante porque coloca em cena a oposição entre
representação orgânica e vida inorgânica. É somente quando a arte acolhe uma potência
de Vida diferente da subjetividade e da vida humana que ela deixa de ser figurativa. A
recusa deleuziana da estética da carne não tem outra razão, e percorre toda sua filosofia.
Em O que É a Filosofia? (Deleuze & Guattari 2000), Deleuze e Guattari combatem, por
meio de uma luta surda, silenciosa, pontuada, a estética da carne. Os autores terminam
por se interrogar:
“A questão de saber se a carne é adequada à arte pode ser enunciada assim:
é ela capaz de levar o percepto e a afecção, de constituir o ser da sensação;
ou não é a ela que se deve encarregar tal tarefa e então passá-la para outras
potências de vida?” (Deleuze & Guatarri 1991: 169).
Apesar das críticas dirigidas à estética da carne, Deleuze retoma o elogio que
Merleau-Ponty (2004) dirige para Cézanne e sua arte, a qual procura a realidade sem
deixar a sensação. Esta parece ser a lógica de Francis Bacon; a submissão do desenho à
cor, seu domínio em criar as deformações corporais.
“A figura não é apenas o corpo isolado, mas o corpo deformado que se
evade. O que faz da deformação um destino é que o corpo tem uma relação
necessária com a estrutura material: não só esta se envolve em torno dele
mas ele deve alcançá-la e aí se dissipar e, para isso, passar por ou nestes
instrumentos-próteses, que constituem passagens e estados reais, físicos,
efetivos, sensações e de modo algum imaginações” (Deleuze 1981: 18).
A Figura é distorcida, contorcida num movimento de vai e vem sob um cenário
impassível, limite do corpo e da ação. Porém existe, como entre meu corpo e os objetos,
173
uma interação entre o cenário e a Figura. Ambos se movimentam no sentido de passar
de uma ordem para a outra. O corpo se alonga como querendo fugir de sua convulsão
interna e atingir o cenário limpo e liso, sujando-o com sua deformidade e liquidez. De
outro lado o fundo/cenário movimenta-se em direção da figura como buscando uma
agitação que o tire de seu impassível colorido e lisa textura. Como se a experiência do
estriado, do disforme o completasse atingindo sua significação. Cenário e Figura
formam uma unidade indissolúvel em seu recíproco movimento em recíproca direção.
Merleau-Ponty assinala o caráter inumano da natureza em Cézanne, que o
conduz a pintar um rosto como se fosse um objeto, e a não ter por motivo senão a
paisagem em sua totalidade e em sua plenitude absoluta (Merleau-Ponty 2004). Deleuze
retoma esta questão em sua análise de Francis Bacon evidenciando em sua pintura os
rostos não humanos e as paisagens não humanas. A pintura deve transpassar o universo
e não o universo transpassar a pintura. Ela é uma percepção e uma afecção do mundo e
não uma representação dele. Diante de uma pintura, devemos estar diante de algo de que
irradiam intensidades. A maça de Cézanne é um corpo de que promanam sensações e,
tais sensações, farão com que o receptor, ao reencontrar depois a maça-do-mundo, tenha
a possibilidade de percebê-la de forma diferente. A sensação torna-se uma experiência
que transforma o mundo e tudo que nele habita, inclusive o sujeito e seu corpo.
“A sensação não está ‘no jogo livre’ ou desencarnado da luz e da cor
(impressões), pois a Sensação, ao contrário, está no corpo, seja o corpo de
uma maçã. A cor está no corpo, a sensação está no corpo e não nos ares. A
sensação é o que é pintado. O que está pintado no quadro é o corpo, não
enquanto é representado como objeto, mas enquanto é vivido como
experimentando tal sensação” (Deleuze 1981: 27).
Mas, se Deleuze fala de corpo, não se trata do corpo organizado. O corpo
organizado é o grande Modelo que formata a representação figurativa. Como vimos, a
representação não necessita da semelhança para se instalar. Ela necessita de um modelo,
174
geométrico no caso de Descartes, corpo organizado segundo princípios de harmonia, no
caso da figuração grega. Para Deleuze, a arte precisa encontrar um outro corpo, além do
organismo (corpo organizado), limite do corpo vivido. Deleuze encontra essa Potência
no conceito de “corpo sem órgãos” de Artaud: “O corpo é o corpo. Ele é sozinho. E não
precisa de órgãos. O corpo nunca é um organismo. Os organismos são os inimigos dos
corpos” (Artaud [1948] 1977: 38-39 apud Deleuze 1981: 33).
A pintura nos põe os olhos em toda parte: na orelha, na barriga, nos pulmões. O
quadro respira. É a dupla definição da pintura: subjetivamente, ela investe nosso olho
que deixa de ser orgânico para se tornar órgão polivalente e transiente; objetivamente,
ela desvenda diante de nós a realidade do corpo, linhas e cores livres da representação
orgânica: “e um se faz pelo outro: a pura presença do corpo será visível ao mesmo
tempo em que o olho será o órgão destinado desta presença” (Deleuze 1981: 38).
O corpo descobre a materialidade que o compõe, a pura presença de que é feito,
o que não descobriria de outro modo. Em resumo, é a pintura que descobre a realidade
material do corpo com seu sistema de linhas-cores, e seu órgão polivalente, o olho.
“Nosso olho insaciável e no cio” diria Gauguin (Deleuze 1981 40).
Se nos reportarmos ao “quadro” da histeria tal como se dá no século XIX, na
psiquiatria e em outras áreas, encontramos um certo número de características que não
deixam de animar os corpos de Bacon. As célebres contraturas de paralisias, as
hiperestesias ou as anestesias, associadas ou alternantes, sejam fixas ou migrantes,
seguem a passagem da onda nervosa, seguem as zonas que a sensação investiu e se
retira.
Deleuze insiste em ressaltar a arte que poria em xeque o orgânico e a
representação. A libertação do modelo representacional desvela as forças intensivas e
uma ontologia imanente, as quais não podem ser reduzidas por uma razão mecânica. Na
175
arte, e na pintura como na música, não se trata de reproduzir ou de inventar formas, mas
de captar forças:
“Pode-se crer que Bacon reencontra Artaud em muitos pontos: a Figura é
precisamente o corpo sem órgãos (desfazer o organismo em proveito do
corpo, o rosto em proveito da cabeça) […] O corpo sem órgãos se define
pois por um órgão indeterminado, enquanto o organismo se define por
órgãos determinados” (Deleuze 1981: 33-35).
Se Deleuze agencia Artaud e Bacon, o faz, sem dúvida, via Bergson, o qual
fundamenta o caráter inumano da natureza desvelada pela pintura, indo além da
percepção humana, em direção a um Plano Puro do Aparecer, tal como conceituado no
primeiro capítulo de Matéria e Memória. Mas o que é este Aparecer, revelado pela
pintura? Porque esse Aparecer é inumano?
Porque este Aparecer é um Aparecer em si, sem olho e sem sujeito, um aparecer
para ninguém. No universo bergsoniano tudo se torna imagem:
“Como é que se fala de um Aparecer, visto que nem sequer há um olho?
Por duas razões pelo menos. A primeira é para distinguir as coisas
concebidas como corpos. Com efeito, a nossa percepção e a nossa
linguagem distinguem corpos (substantivos), das qualidades (adjetivos) e
das ações (verbos). Mas as ações, neste sentido preciso já substituíram ao
movimento a idéia dum lugar provisório para onde se dirige, ou de um
resultado que obtém: e a qualidade substitui ao movimento a idéia de um
estado que persiste ao esperar que um outro o substitui; e o corpo substituiu
ao movimento a ideia de um sujeito que o executaria, ou de um objeto que
o sofreria, dum veículo que o levaria” (Deleuze 1981: 88).
“O meu corpo é uma imagem, logo, um conjunto de ações e de reações. A
minha vista, o meu cérebro são imagens, partes do meu corpo. Como é que
meu cérebro contém as imagens, dado que é uma entre as outras? As
imagens exteriores agem sobre mim, transmitem-me movimento, e eu
restituo movimento: como é que as imagens estão na minha consciência,
visto que eu próprio sou uma imagem, isto é, movimento? E posso eu até, a
este nível, falar de mim, de vista, de cérebro, e de corpo? É por simples
comodidade, porque nada se deixa identificar deste modo. Seria antes um
estado gasoso. Eu, o meu corpo, seria antes um conjunto de moléculas e de
átomos continuamente renovados […]” (Deleuze 2001: 86).
176
Deleuze invoca por meio de Bergson um aparecer que é como um plano de luz
que precede toda consciência e que, para existir, não necessita ser percebido. É uma
divergência com a fenomenologia de base hursserliana. A luz não vem da consciência:
“A fenomenologia participa ainda plenamente desta tradição antiga;
simplesmente, em vez de fazer da luz uma luz interior, abria-a para o
exterior, um pouco como se a intencionalidade da consciência fosse o raio
de uma lâmpada elétrica (‘toda a consciência é consciência de alguma
coisa…’). Para Bergson, é o contrário. As coisas é que são luminosas por
elas próprias, sem nada que as ilumine: toda consciência é alguma coisa, ela
confunde-se com a coisa, isto é, com a imagem de luz. Mas, de direito,
trata-se de uma consciência, difusa por todo o lado e que não se revela;
trata-se exatamente de uma fotografia já tomada e tirada a todas as coisas e
para todos pontos, mas ‘translúcida’ […] Em suma, não é a consciência que
é a luz, é o conjunto das imagens, ou a luz, que é consciência, imanente à
matéria. Quanto à nossa consciência de fato, será apenas a opacidade sem a
qual a luz, ‘ao propagar-se continuamente, nunca teria sido revelada’. A
oposição de Bergson e da fenomenologia é radical a este respeito” (Deleuze
1981 89).
A arte deve atingir o momento privilegiado onde a percepção do sujeito se
dissolve na coisa, e se eleva assim a uma impessoalidade radical, fusão do ver e do
visto. Os afetos pertencem ao mesmo regime, os quais se libertam do sujeito central e
tornam-se ontologicamente forças que nada tem a ver com o vivido pessoal, as
lembranças, as imagens pessoais, os fantasmas. Existe um combate incessante contra a
literatura e arte neurótica do segredo e do fantasma, dos cochichos subjetivos e
burgueses.
Essa crítica do sujeito da metafísica ocidental faz Deleuze reencontrar com
Nietzsche. Ele é o precursor da filosofia pós-estruturalista em sua análise genealógica
dos conceitos fundamentais, especialmente aquele que é o conceito essencial da
metafísica ocidental, o conceito de “eu”. Segundo Nietzsche, esse conceito resulta num
imperativo moral para nos responsabilizar por nossas ações. Em suma, para ser
responsável nós devemos assumir que somos a causa de nossas ações. Essa causa deve
manter-se o tempo todo, retendo sua identidade, para que a retribuição e punição
177
possam ser aceitas como conseqüência de nossas ações, segundo o julgamento de
benéficas ou prejudiciais aos outros (Nietzsche [1887] 1991, 27-35). Nesse sentido, o
conceito de “eu” ocorre como uma construção social e ilusão moral. De acordo com
Nietzsche, o senso moral do “eu”, como causa idêntica, é projetado sobre os eventos do
mundo, em que a identidade das coisas, causas, efeitos, amoldam-se em representações
de fácil comunicação.
Na “Genealogia da Moral”, Nietzsche afirma:
“Uma quantidade de força corresponde exatamente à mesma quantidade de
instinto, de vontade, de ação, e não pode parecer de outro modo, senão em
virtude dos sedutores erros da linguagem, segundo a qual todo o efeito está
condicionado por uma causa eficiente, por um “sujeito”. Isto é um erro.
Assim como a plebe distingue entre o raio e o seu resplendor como uma
ação do sujeito raio, assim a moral plebéia distingue entre a força e os
efeitos da força, como se detrás do homem forte houvesse substratum
neutro que fosse “livre” para manifestar ou não a força. Mas não há tal
substratum, não há um ser por detrás do ato; o ato é tudo. O que a plebe faz
é desdobrar um fenômeno em efeito e causa” (Nietzsche [1887] 1991: 17).
Assim, a lógica do sujeito nasce da demanda para aderir ao comum das normas
sociais, as quais moldam o rebanho humano numa sociedade de conhecimento e ação
subjetivas.
A genealogia nietzschiana tornou-se uma importante referência para as filosofias
que pretendem ir além do humanismo clássico burguês, construindo uma ética que seja
de fato aplicável à experiência contemporânea. Na obra: “sobre verdade e mentira no
sentido extramoral”, Nietzsche ([1873] 1974: 77-97) formula a hipótese de que os
conceitos científicos são cadeias de metáforas enrijecidas nas verdades aceitas como tal.
Assim, a metáfora começa quando um estímulo nervoso é copiado como uma imagem, a
qual é então imitada no som, dando origem, quando repetida, à palavra, a qual, por sua
vez, se torna um conceito quando esta é usada para designar múltiplas instâncias de
eventos singulares. Então, metáforas são mentiras, porque igualam coisas
178
necessariamente desiguais. As metáforas se organizam em cadeias que se movem de um
nível a outro Deleuze (2005).
A estética anti-representacional é a superação do corpo organizado e do sentido
do “eu” como centro de determinação da representação.
Quando a memória intervém, podemos fazer então uma comparação entre a
literatura e a pintura. Bacon e Proust são comparados à memória involuntária, ou seja,
heceidades. As heceidades são somente os graus de potência que se compõem, aos quais
correspondem um poder de afetar e de ser afetado, de afetos ativos e passivos, de
intensidades, sensações irredutíveis, epifanias dirigidas. Afetos não subjetivos, como os
perceptos são inobjetivos, desvinculados da estrutura da representação e da vontade.
Deleuze em Imagem e Movimento sublinha a impessoalidade dos afetos:
“Afecções puras, ilocalizáveis porque sem relação com um espaço
determinado, presente sob a única forma de um ‘há…’, porque sem relação
com um ego (as dores de um hemiplégico, as imagens flutuantes do torpor,
as visões da loucura). O afeto é independente de qualquer espaço-tempo
determinado; mas não deixa de ser criado numa história que o produz como
o expresso e a expressão de um espaço ou de um tempo, de uma época ou
de um meio (é por isso que o afeto é o ‘novo’ e novos afetos não param de
ser criados, nomeadamente pela obra de arte)” (Deleuze 2001: 138).
Deleuze compara esses afetos impessoais com a primeiridade da fenomenologia
de Peirce por serem qualidades-potências, ou seja, a imagem-afecção é a qualidade ou
potência, a potencialidade considerada em si mesma, enquanto expressa. Trata-se então
de expressão e não de atualização. Os afetos podem ser apreendidos de duas maneiras:
ou como atualizados num determinado estado de coisas, ou como expressos, por um
rosto, um equivalente de rosto ou uma ‘proposição’. No primeiro caso temos a
secundidade, enquanto no primeiro a primeiridade, segundo Deleuze
“O que a arte pode realizar é nos fazer encontrar esta experiência da
presença do mundo: ser realmente em tudo o que percebemos, atingir o
ponto no qual as coisas se revelam em nós, sem nós, operando em nós, sem
nós, são sentidas porém não pela subjetividade de um sujeito. O Corpo sem
179
órgãos é por esta razão também pura amnésia, perto de si e da memória de
si, no momento onde o fluxo do real escorrega sobre o corpo. A arte
plástica descreve bem essa presença do real sob a representação. O
organismo se desfaz sendo conectado aos fluxos de vida mais potentes: é
nesse sentido que a pintura é histeria, presença hipnótica do real em nós, a
pintura coloca olhos em todos os órgãos. A pintura histeriza ao dar a ver o
“il y a”, o efeito da presença sobre nós; é patente que os corpos pintados
por Bacon se convulsionam como corpos histéricos, eles desvelam a ação
do real sobre eles, o fluxo do real que cola em nós. De onde estes corpos
com contraturas e paralisias, hiperestesias, anestesias como se tivesse ação
sobre o sistema nervoso, esta forma de ser “sonâmbulo no estado de vigia”,
esta forma de sentir o corpo “sob o organismo”, estas maneiras de
autoscópia
29
: ‘não é mais minha cabeça, mas eu me sinto em uma cabeça,
eu vejo e eu me vejo em uma cabeça; ou bem eu não me vejo em um
espelho, mas me sinto em um corpo que eu vejo e que eu me vejo neste
corpo nu quando estou vestido […] ” (Deleuze 1981: 35).
A representação orgânica será sempre uma limitação da experiência primeira,
como a percepção útil será uma limitação da percepção imediata, a memória uma
limitação do imemorial, a figura geométrica rígida (Eidos) uma limitação da figura de
luz.
Podemos entender que a teoria dos perceptos e dos afetos não é outra coisa que
um bergsonismo amplificado. Em Bergson, o que impede nossa percepção de abraçar as
coisas, é justamente a “condição humana”, o útil, a linguagem, o social, a necessidade, a
visão caleidoscópica: o mundo tornando-se uma curva no horizonte. As coisas se
espacializam para nós, se decompõem em faces e se proliferam para nós, variam para
nós. Mas, diz Bergson, quando os artistas “olham para alguma coisa, vêem-na por ela
mesma, e não mais para eles” (Bergson [1934] 1990: 152). É isto o que a pintura
realiza, é isto que Vertov realiza no Cinema e é isto o que Deleuze quer encontrar na
arte:
“O que Vertov materialista realiza pelo cinema é o programa materialista
do primeiro capítulo de Matéria e Memória: o em si da imagem. O cine-
olho, o olho não humano de Vertov, não é o olho de uma mosca ou de uma
águia, o olho de um outro animal. Também já não é, à maneira de Epstein,
29
Autoscopia é definida como uma experiência em que uma pessoa que acreditar estar acordada, vê seu
corpo, o ambiente e o mundo a sua volta como se estivesse fora do seu corpo físico.
180
o olho do espírito que seria dotado de perspectiva temporal, e apreendia o
todo espiritual. É pelo contrário o olho da matéria […]” (Deleuze 2001:
118).
Mundo antes do homem. Trata-se então de um olho que estaria nas coisas. O
universo como Metacinema, imagem em si. Deleuze encontra a idéia de um corpo sem
órgãos sob a forma deste corpo imenso e inorgânico, com seus perceptos partilhando o
fluxo do Universo e seus afetos intensivos. Compreende-se porque seus textos sobre a
arte tem uma ressonância tão bergsoniana, o afeto deleuziano é a emoção que arte criou,
esta emoção original e única, nasceu de uma coincidência entre o autor e seu objeto, a
fusão da qual falávamos, a reversão do ver no visto. Entrar no universo como numa
dança. Dançar, como Zaratustra encena a dança de Dionísio. Viver a duração das coisas.
Estabelecer uma grande Passagem da Vida em nós. Esta maneira de renovar com a força
anônima e criativa da coisas, de sempre libertar a vida onde ela é prisioneira, tanto em
moral como em arte, é a máxima tanto bergsoniana como deleuziana. Daí a máxima
bergsoniana: “a filosofia deveria ser um esforço para ultrapassar a condição humana”.
Trata-se então de captar as forças infinitas sob todas as suas formas e de as tornar
sensíveis.
Deleuze quer mostrar que, entre os modernos, Bacon segue uma via particular e
muito especial. Ele pretende atingir o infinito por um acesso sensível, não pelo código
visual abstrato da abstração, por exemplo de Mondrian e Kandinsky, ou a invasão
manual da linha como no expressionismo abstrato de Pollock. E se Deleuze se interessa
tanto por Bacon, é evidentemente porque esta via é a sua. A filosofia, como a pintura de
Bacon, revela um face a face com o caos. Captar o infinito, é então ser capaz de dar uma
consistência ao caos. A pintura de Bacon filtra o caos, o retém, é capaz de lhe dar uma
tênue espessura, de o fazer sentir mesmo no corpo.
181
Entretanto, não devemos considerar que Deleuze está propondo um abandono da
razão e um mergulho no fluxo da vida. Se assim fosse, ele não passaria de mais um
adepto das “filosofias da vida”. Não se trata de um simples mergulho no caos. A arte e a
filosofia tem por único problema a consistência: é necessário que a pintura não seja um
puro caos, que ela tenha consistência, o mesmo para os conceitos da filosofia. Os corpos
de Bacon são desfigurados, desorganizados, deformados, e entretanto muito bem
compostos picturalmente para que fique junto deles as sensações, traduzindo nossa
conexão com as forças elementares. Deleuze considera que fazer arte é se ater a um
plano de composição, formado por afetos e perceptos. Este plano é criado no finito, mas
visa atingir o infinito. Da mesma forma que o artista, o filósofo deve se ater a um plano
de imanência formado por conceitos para salvar o infinito. Deleuze distingue dois tipos
de plano sobre os quais se distribui uma vida ou um pensamento: um plano de
organização e um plano de consistência ou plano de imanência. O plano de organização
dispõe sempre de uma dimensão suplementar e transcendente, de um princípio de
composição mais ou menos escondido, de um desenho ou de uma Lei, os quais
organizam e orientam a evolução das formas e o desenvolvimento dos sujeitos. O plano
de consistência ou de imanência desenvolvem elementos não-formais, particularidades
ou moléculas movimentadas pelo fluxo, além de processos de subjetivação, que se
tornam um tempo flutuante em todas as direções e num espaço sempre aberto para a
exterioridade. Trata-se não de relações formais, mas de relação entre forças. Não
existem sujeitos, mas processos de subjetivação sem sujeito, constituindo
agenciamentos coletivos. Trata-se de viver, pensar e expressar o próprio devir. Em
Francis Bacon, há uma grande força do tempo, o tempo é pintado. Colocar o tempo na
figura, esta é a força dos corpos de Francis Bacon.
182
Pelas cores, pelas linhas, a sensação investe-se sobre o olho. Mas ela não trata o
olho como sendo um órgão fixo. Liberando as linhas e as cores da representação, ela
libera ao mesmo tempo o olho de sua pertença ao organismo, ela o libera de seu caráter
de órgão fixo e qualificado: o olho se torna virtualmente um órgão indeterminado,
polivalente, que vê o corpo sem órgãos, ou seja a Figura, como pura presença.
O pensamento estético deleuziano se interessa pela arte como forma de crítica
aos modos de vida dominantes na sociedade contemporânea. Para Deleuze, o importante
é variar os esquemas de sentido que condicionam ou interrompem os fluxos vitais.
Assim, o que interessa a Deleuze é a arte que se compõe com os fluxos e forças vitais,
que atuam nos modos de ver e relacionar-se com a existência. A arte materializa por
meio de objetos, feitos propostas as forças imateriais que são invisíveis, silenciosas e
ilegíveis. As forças ou intensidade imateriais com as quais se compõe um fato estético
se articulam com as forças da realidade que constantemente atravessam o sujeito. Os
fatos estéticos não irrompem ao acaso, senão que provém de um exercício com essas
forças, de uma atenção a respeito do modo como essas forças criam o que é visto e
pensado por um sujeito. O fato estético abriga essas forças, se configura com essas
forças e as materializa. Um fato estético agrega intensidades que se condensam em
determinadas formas.
A capacidade que tem a arte de afetar a percepção do sujeito acontece devido à
capacidade de ativar as partículas de intensidades na experiência do homem. Deleuze se
interessa fundamentalmente pela capacidade da arte em manifestar o que não é
facilmente reconhecível pelos saberes do homem. As partículas imateriais que
compõem a realidade, a arte e a experiência estética, Deleuze as chama de sensações,
afetos e perceptos. As sensações e os perceptos não são idênticos às percepções.
183
Também os afetos não se identificam com os sentimentos
30
. Os sentimentos e a
percepção pertencem à ordem do sujeito e seus condicionamentos culturais, como os
clichês. Já as sensações, afetos e perceptos pertencem ao anterior a qualquer
subjetividade. Na verdade são os materiais que constroem a própria subjetividade.
Como dizia Nietzsche não é o sujeito que têm um ponto de vista, mas é o ponto de vista
que forma o sujeito. As partículas imateriais (sensações, afetos e perceptos) atravessam
continuamente os sujeitos modelando sua subjetividade. Elas são realidade não
subjetivas que desorganizam as formas do sujeito e dão acesso à zona de
indeterminação que transforma a subjetividade.
Para Deleuze, sujeito e objeto são indissolúveis na própria noção de corpo que
atua e padece, afeta e é afetado, que cria mediante uma ação e sofre alterações mediante
uma força. Assim, um corpo é ao mesmo tempo sujeito de ações que engendram coisas,
fatos e discursos, e como objeto afetado por essas mesmas coisas fatos e discursos. Com
as sensações experimentadas por um corpo pode materializar-se novas maneiras de ver e
sentir. A sensação implica então em uma variação, uma oscilação de temperatura, um
espasmo que o corpo experimenta no encontro com um fato estético. São os corpos de
Bacon. Quando o corpo perde suas medidas de reconhecimento, quando se recusa a se
representar, quando se estende ou se contrai deformando sua organização, aí se encontra
apto para acolher o poder dos afetos e perceptos. Nos fazemos por meio de sensações.
“A idéia de Tarde relida por Lazzarato, e que eu retomo nesse contexto de
maneira excessivamente suscinta, é que todos produzem constantemente,
mesmo aqueles que não estão vinculados ao processo produtivo. Produzir o
novo é inventar novos desejos e novas crenças, novas associações e novas
formas de cooperação. Todos e qualquer um inventam, na densidade social
da cidade, na conversa, nos costumes, no lazer - novos desejos e novas
crenças, novas associações e novas formas de cooperação. A invenção não
é prerrogativa dos grandes gênios, nem monopólio da indústria ou da
ciência, ela é a potência do homem comum. Cada variação, por minúscula
30
Para aprofundar essas diferenças ver: Deleuze, Gilles & Guattari, Félix (1991). Qu’est-ce que la
philosophie. Paris: Éditions de Minuit.
184
que seja, ao propagar-se e ser imitada torna-se quantidade social, e assim
pode ensejar outras invenções e novas imitações, novas associações e novas
formas de cooperação. Nessa economia afetiva, a subjetividade não é efeito
ou superestrutura etérea, mas força viva, quantidade social, potência
psíquica e política” (Pelbart 2002).
A crítica da representação e a liberação dos simulacros se faz, em Deleuze, numa
fundamentação que traça uma epistemologia que vai muito além da relação sujeito-
objeto. Trata-se de pensar as forças em fluxo no mundo, ou as imagens-movimentos,
conceito que Deleuze usa para caracterizar a fenomenologia bergsoniana. Trata-se
também de estabelecer a relação entre o corpo, que também é uma imagem-movimento,
porém com algumas características especiais, e as imagens-movimentos que compõe a
matéria. É nesse enquadramento que a imagem digital ganha autonomia e pode escapar
de sua conceituação como simulacro ou representação. É nesse enquadramento que a
imagem digital pode ser lida como afecção que cria uma estética não-representacional.
Toda a estética de Deleuze pode então ser aplicada da mesma forma à imagem digital.
Por tudo isso podemos falar de um verdadeiro renascimento da fenomenologia
bergsoniana. Não só em Deleuze, mas em outros autores como Ilya Prigogine. As
indicações de Prigogine sobre a transferibilidade da noção de estruturas dissipativas do
mundo físico para o humano pode-se dar pela arte, já que nas artes da Figura existe
uma convergência com as ciências da complexidade, enquanto ambas se ocupam do
tempo não como movimento, mas como duração (Prigogine & Pahaut 1984). A este
propósito os autores sublinham a obsessão bergsoniana da duração em todas as
vanguardas do século XIX. Também Hansen retoma a fenomenologia bergsoniana
numa pesquisa de fundamentação estética. Em especial a questão da estética da imagem
digital. Hansen traça a história da mudança de paradigma em matéria de experiência
estética ocasionada pela introdução das “novas mídias” no domínio das práticas
185
artísticas atuais. Ele propõe igualmente uma nova forma de teorizar a imagem digital,
especialmente em seu trabalho New Philosophy for New Media. Segundo Hansen, o
acontecimento da imagem digital necessita que se passe de uma estética centrada sobre
a visão para uma estética háptica, isto é, fundada sobre uma espacialidade interiorizada,
ancorada na afetividade do corpo. Esta percepção háptica precede a percepção do
espaço geométrico tornando-se totalmente independente deste último (Hansen 2004:
12). Para Hansen, a imagem digital é uma co-produção. Trata-se de fato de um processo
dialético do qual os dois polos são constituídos, de uma parte o fluxo de informação
digital não organizada e, de outra parte, o processo de enquadramento da imagem
digital, graças à mediação pelo corpo do observador. Para fundamentar sua proposição
estética, Hansen se baseia sobre a teoria da percepção de Bergson. Este último apresenta
a percepção como uma função incorporada na experiência concreta na qual o corpo
afetivo é o mediador (Hansen 2004: 5). Por “corpo afetivo”, Hansen entende a
capacidade dos indivíduos de fazer as experiências de natureza sensível que lhes
permite experimentar seu corpo de forma nova e criativa (Hansen 2004: 6). É então pela
mediação do corpo que cada um produz, a partir do universo das imagens nas quais está
imergido, uma expressão que lhe é significante. Hansen sustenta que não pode existir
informação ou imagem possível sem a mediação do corpo. Na era do computador, a
seleção não se faz a partir de um conjunto de imagens preexistentes, mas pela filtragem
da informação não organizada desembocando diretamente sobre a criação de imagens
pelo receptor (Hansen 2004: 11). De fato, enquanto configuração de pontos
descontínuos e independentes uns dos outros, a imagem digital adquire significação na
filtragem efetuada pelo corpo. As imagens digitais nascem então de um processo de co-
criação, na medida em que necessitam de um receptor para lhes dar um sentido. A
função do enquadramento se situa então no corpo e não no exterior deste (Hansen 2004:
186
8). De fato, a estética particular das novas mídias decorre da posição ativa do corpo na
organização da imagem digital (Hansen 2004: 11).
É sob o modo do diálogo com diferentes autores, como Benjamin, Bergson,
Deleuze, que Hansen constrói a argumentação que sustenta suas posições: posições de
natureza fenomenológicas que colocam o acento sobre o papel da dimensão afetiva,
proprioceptivo (capaz de receber estímulos provenientes dos músculos, dos tendões e de
outros tecidos internos) e táctil da experiência na constituição do espaço. Cada uma das
etapas que conduzem o leitor pela teoria proposta é sustentado por exemplos de obras de
artistas (Jeffrey Shaw, Douglas Gordon, Bill Viola, etc), os quais contribuem para
desvelar novas formas de significar as tecnologias digitais. Diante de tudo isso e devido
aos nossos objetivos, fundamentar a imagem, em especial a imagem digital, e dialogar
com a filosofia, consideramos de suma importância comentar a teria sensório-motora da
percepção de Bergson, principalmente tal como foi formulada no primeiro capítulo de
Matéria e Memória.
187
Capítulo 3
Imagem: Afecção Sensório-motora segundo a
Fenomenologia Bergsoniana
Imagem: Afecção Sensório-motora segundo a
Fenomenologia Bergsoniana
Meu corpo, objeto destinado a mover objetos, é
portanto um centro de ação; ele não poderia fazer
nascer uma representação”. (Bergson, Matéria e
Memória).
Se a imagem digital no enquadramento teórico do simulacro e da representação
torna-se ilusão e dificulta a compreensão da realidade, para libertar o simulacro e criar
uma estética anti-representacional, que valorize a imagem digital em sua justa
dimensão, é absolutamente necessário buscar um outro enquadramento conceitual.
O bergsonismo e sua teoria da imagem-movimento construíram uma nova forma
de compreender o fenômeno da percepção que vai além dos quadros teóricos das
metafísicas realista e idealista. Acreditamos que um bergsonismo atualizado poderá
libertar a imagem digital de seus atuais quadros teóricos. Deleuze (1985, 1998 a, 2001)
realizou esse bergsonismo atualizado ao mostrar as profundas relações entre a
concepção de imagem-movimento, desenvolvida por Bergson, e a prática e teoria do
cinema. Mais recentemente Hansen (2004) desenvolveu e aplicou o bergsonismo na
análise das mídias digitais em associações teóricas com importantes artistas
1
que
exploram estas mídias. Diante disso, procuramos pesquisar e desenvolver a visada de
Bergson sobre essas questões, enfatizando sua novidade e pertinência para o debate da
imagem digital.
Como vimos, em capítulos anteriores, a imagem digital tem sido interpretada e
fundamentada segundo diferentes posições e perspectivas, as quais têm gerado um
1
Podemos citar os nomes de Jeffrey Shaw, Douglas Gordon e Bill Viola entre os artistas analisados por
Hansen. Essas análises engendram um interessante diálogo entre a imagem digital e a fenomenologia
bergsoniana. Temas como corpo, afecção e fluxo de dados são desenvolvidos em profundidade. A obra de
Hansen foi uma referência e inspiração para o presente trabalho.
189
amplo debate em torno desta questão. Para uns, a imagem digital é simulacro
apresentando-se como uma pretensa cópia. Baudrillard (1994) ao comparar a fotografia
com a imagem digital conclui pela natureza de simulacro desta última. A fotografia
guarda uma relação de traço com o modelo, ou a realidade, da qual ela é referenciada. Já
a imagem digital é gerada por meio de uma matriz que não guarda nenhuma relação
com um modelo externo, mas é a emanação de um código escondido no computador,
puro simulacro. Para Kittler (1999), estamos a caminho da era da pós-mídia, pois todas
as mídias convergirão para uma única materialidade: o código binário. Este código é a
verdade da mídia, sendo as imagens geradas por ele apenas epifenômenos ilusórios. A
realidade digital se apoia numa concepção de informação como sintaxe, cálculo
desmaterializado e desincorporado. Ambas posições concebem a imagem num quadro
platônico e segundo uma concepção de representação, nos quais existem uma diferença
entre aparência e essência. Entretanto, a imagem digital pode ser concebida de uma
outra perspectiva, como fenômeno portador de uma realidade ontológica e
epistemológica. Trata-se de compreendê-la como fluxo, movimento. De fato, a imagem
digital por sua natureza de matriz manipulável engendra sempre um movimento, seja de
natureza interna ou externa. Interna como as experiências de Motion graphic
2
e a Video
Arte. Externas como a Hipermídia
3
. Mesmo quando parada, a imagem digital pode ser
concebida como um movimento infinitamente pequeno, virtual. A fenomenologia de
Bergson torna-se então uma importante matriz conceitual para a fundamentação deste
tipo de imagem.
Uma das conseqüências da presença ubíqua dos computadores e da dinâmica de
nossos meios de comunicação é a percepção do tempo como algo em fluxo;
2
Os Motion-Graphics são trabalhos de design que exploram o movimento em sua dimensão expressiva.
Internas no sentido de usar o próprio movimento, ou seja, um tempo registrado.
3
Externas no sentido de usar os links para relacionar as diversas mídias, ou seja, um tempo real.
190
acontecimento em tempo-real. Consonante com esta presença ocorre o ressurgimento da
filosofia fenomenológica de Bergson e sua visada em relação ao tempo e,
principalmente, a multiplicidade. Gilles Deleuze é um, senão o maior, responsável por
este surgimento, ao se debruçar sobre o pensamento de Bergson. Mais recentemente o
trabalho de Hansen (2004), New Philosophy for New Media, acrescenta uma importante
contribuição para este debate.
No pensamento de Bergson as coisas não são substâncias independentes do
tempo e do devir, mas “fases” de um devir, de um tornar-se. Em outros termos, uma
coisa não é o efeito de uma causa, mas a expressão de uma “tendência”. A tendência é
uma fase do vir-a-ser. Bergson constrói uma ontologia em que a vida e o mundo se
tornam imagem-movimento, na qual as coisas estão em perpétua variação umas em
relação às outras. Quando pensamos na relação estética com um objeto ou o ambiente,
imediatamente pensamos na fruição do espaço e do movimento. Quando pensamos em
movimento, imediatamente pensamos num ponto se deslocando no espaço, que é a
forma típica da física moderna encarar a noção de tempo. Uma das características desta
ciência é a de se negar a tratar o problema da mudança ontológica, reduzindo a questão
da mudança à da deslocação de partículas no espaço. Ao contrário, Bergson constrói
uma ontologia em que a vida e o mundo se tornam imagem-movimento, na qual as
coisas estão em perpétua variação umas em relação às outras. Por que Bergson se utiliza
da palavra imagem? Trata-se de imagem enquanto “imago”, ou seja, aquilo que aparece
enquanto aparecer, em outros termos, um fenômeno imanente ao universo.
O pensamento de Bergson teve uma enorme influência na crítica de arte e na
estética da primeira metade do século XX. A nova forma do cubismo entender o espaço,
por meio de um tempo interior aos objetos, tem enormes relações com a filosofia de
Bergson. Entretanto a expressão estética do bergsonismo nesse período é o
191
simultaneismo elaborado principalmente por Delaunay e Léger. Seus trabalhos nesta
vertente caracterizam-se pela presença constante de arcos e círculos, os quais são a
expressão do simultaneismo, ou seja o tempo apreendido enquanto conjunto. Trata-se de
uma pesquisa e uma captura do desmensurável, ou do infinito atualizado, de um sublime
visual, ou seja, do conjunto do tempo. O simultaneismo é a imensidade do futuro e do
passado enquanto simultâneos no conjunto do tempo. Assim, por exemplo, um círculo
de Delaunay é uma reposta à questão o que é o conjunto do tempo? (Deleuze 2001). No
design gráfico, temos as experiências tipográficas do futurismo e dadaísmo nas quais
aparecem o círculo e o semicírculo como expressão deste conjunto do tempo.
Essa ontologia conduz a uma nova forma de conceber o tempo em relação com o
conceito de multiplicidade heterogênea. Assim, um bom caminho para compreender o
conceito de tempo bergsoniano é analisar o conceito de multiplicidade, o qual se
pretende aqui esboçar em seus contornos gerais.
O conceito de multiplicidade tem dois desenvolvimentos filosóficos durante o
século XX. Um é a fenomenologia influenciada por Husserl, o outro é o bergsonismo
(Deleuze 1998a). Existem algumas semelhanças e enormes diferenças entre essas duas
tendências filosóficas. Uma das diferenças é extamente o tratamento da multiplicidade.
Para a fenomenologia, em geral, a multiplicidade dos fenômenos está relacionada a uma
unidade processada na consciência. Já no bergsonismo tudo é multiplicidade, inclusive
“os dados imediatos da consciência” (Bergson [1888] 2001). A afirmação bergsoniana
guarda uma sutil diferença em relação à fenomenologia hursseliana. Enquanto que para
esta última os dados são para a consciência; em Bergson os dados são da consciência.
Já em sua primeira grande obra Essai sur les données immédiates de la
conscience, Bergson polemiza com Kant, pois para Bergson, Kant concebeu a liberdade
como fora do tempo e do espaço, porque, enquanto as funções de conhecimento têm
192
como fundamento a sensibilidade espaço-temporal, a faculdade prática e a atividade
moral opõem-se a toda determinação sensível. O tempo é uma forma aplicável aos
fenômenos, ou seja, aos objetos do conhecimento. A alma humana, a consciência moral
e a vontade livre são alheias ao espaço e ao tempo.
Para Bergson, Kant confundiu o espaço e o tempo como um misto não passível
de diferenciação. Conseqüente a isso, Kant concebeu a liberdade da vontade segundo
dois contextos diferentes. Primeiro, considerou-a no quadro do mundo fenomênico,
efetuando-se no mundo sensível, no qual cada uma de nossas ações tem suas causas e,
portanto, está integralmente determinada. Neste contexto a vontade não é absolutamente
livre. Segundo, Kant considerou a vontade no contexto do mundo inteligível, no qual
ela não está sob o aspecto de causa, de determinação, mas sob o aspecto do dever.
Objetiva a prática do bem. Este é o efeito possível da liberdade do ponto de vista moral.
Nesse contexto a vontade pode ser concebida como livre, não determinada por nenhum
tipo de causa.
Bergson, ao contrário de Kant, a fim de definir consciência e conseqüentemente
liberdade, propõe estabelecer uma diferença entre tempo e espaço. Trata-se então de
separar os elementos de um misto, com o objetivo de estabelecer elementos simples,
passíveis de uma intuição, e, desse modo, problematizar corretamente as coisas. Assim,
Bergson definirá os dados imediatos da consciência como sendo de natureza temporal,
em outros termos, como duração (no vocabulário de Bergson: durée). Na duração não
existe justaposição dos eventos, conseqüentemente não existe causalidade, e é neste
contexto que Bergson situa a liberdade. Portanto é no contexto do sensível, o qual Kant
considerou não passível de liberdade dado que é submetido às leis da causalidade, que
Bergson pensa a liberdade concebida como duração. Trata-se então de uma liberdade
incorporada, materializada por meio de atos dirigidos em direção ao sensível.
193
Para Bergson devemos compreender a duração como uma multiplicidade
qualitativa, a qual é oposta à multiplicidade quantitativa. Em sua primeira grande obra,
Bergson assim se expressa a esse respeito:
“Não é suficiente dizer que o numeral é uma coleção de unidades: é
necessário acrescentar que essas unidades são idênticas entre si, ou ao
menos que elas supõem identidades desde que se as conte. Sem dúvida,
contar-se-á as ovelhas de um rebanho e dir-se-á que totalizam cinqüenta;
mesmo que elas se distingam uma das outras e o pastor possa reconhecê-las
individualmente. Neste caso, então, negligencia-se suas diferenças
individuais realçando sua função comum” (Bergson, [1889] 1993, p:39).
O exemplo acima de Bergson nos é útil para distinguir uma multiplicidade
quantitativa de uma multiplicidade qualitativa e, com essa distinção, estabelecer a
diferença entre espaço e tempo. Quando observamos um rebanho de ovelhas, podemos
perceber imediatamente a semelhança entre elas; portanto uma multiplicidade
quantitativa é sempre homogênea. Também podemos numerar as ovelhas desse rebanho.
Somos capazes de enumerá-las porque cada ovelha está espacialmente separada, ou
seja, as ovelhas estão justapostas umas às outras. Então, cada uma delas ocupa uma
localização discernível; por conseguinte, multiplicidades quantitativas são homogêneas
e espaciais.
Devido ao fato de uma multiplicidade quantitativa ser homogênea, podemos
representá-la por meio de um símbolo, por exemplo, a soma “50”.
Ao contrário das multiplicidades quantitativas, multiplicidades qualitativas são
heterogêneas e temporais. Isto é uma idéia difícil de ser assimilada, pois ela marcha
contra a tradição de pensamento da metafísica ocidental; já que quando pensamos em
heterogeneidade, pensamos em justaposição. Mas, na duração, heterogeneidade não
implica em justaposição, ou implica apenas retrospectivamente:
“É uma sucessão de estados em que cada um anuncia aquele que o segue e
contém o que o precedeu. A bem dizer, eles só constituem estados
múltiplos quando, uma vez os tendo ultrapassado, eu me volto para
observar-lhes os traços. Enquanto os experimentava, eles estavam tão
194
solidamente organizados, tão profundamente animados com uma vida
comum, que eu não teria podido dizer onde qualquer um deles termina,
onde começa o outro”. (Bergson, [1903] 1979:16).
Para melhor compreender esta difícil questão, Bergson nos dá um exemplo de
uma multiplicidade qualitativa. O exemplo é o sentimento de simpatia, que é um
sentimento moral e estético:
“Essa simpatia se produz, em particular, quando a natureza nos apresenta
seres com proporções normais, nos quais nossa atenção se divide
igualmente entre todas as partes da figura sem se fixar em nenhuma delas.
Nossa faculdade de perceber se encontra então embalada por uma espécie
de harmonia […] na qual o todo e as partes se integram […] as partes
refletem o todo e o todo as partes […] Resulta dessa análise que o
sentimento do belo não é um sentimento especial, mas que todo sentimento
experimentado por nós se reveste de um caráter estético”. (Bergson, [1889]
2001:13-14).
Nossa experiência de simpatia começa, de acordo com Bergson, quando nos
colocamos no lugar dos outros. Trata-se então, inicialmente, de associar simpatia com
compaixão
4
. Mas, num segundo momento, a simpatia se relaciona a um complexo de
sentimentos que seria o exemplo de uma multiplicidade qualitativa. Assim ele distingue
dois movimentos da simpatia. O primeiro, que ele chama de “forma inferior de
piedade”, no qual procuramos ajudar alguém que sofre com o interesse de também ser
ajudado quando nos encontrarmos na mesma situação. Aqui temos um movimento, da
repugnância inicial para o medo de se encontrar na mesma situação. O segundo
movimento é chamado por Bergson de “forma superior de piedade”. Agora não
ajudamos alguém que precisa somente por medo de um dia, na mesma situação, não ser
ajudado. Agora, a simpatia desenvolve sentimentos superiores de altruísmo nos
colocando numa posição fora do próprio sofrimento. Entretanto, também nos conduz
4
Esse procedimento relaciona Bergson com uma tradição moral com antecessores como Jean-Jacques
Rousseau e David Hume. Compadecer é “sofrer com”. Ter compaixão é a virtude de compartilhar o
sentimento do outro. Hume definiu o conceito de simpatia em seu Tratado da Natureza Humana ([1738]
1978: 34): “Ninguém é completamente indiferente à felicidade ou miséria dos outros”. A idéia de que a
simpatia é um sentimento político que vincula as pessoas umas às outras forma um dos principais
conceitos da filosofia política de Hume (Deleuze 1993). Trata-se de uma afecção que relaciona o homens
entre si e com o mundo.
195
para uma humildade, pois sabemos que poderemos um dia estar na mesma situação,
afinal somos, por princípio todos iguais perante a dor. A essência da piedade é então
uma necessidade de humildade própria, uma aspiração em direção à experiência da
condição humana.
Assim, segundo Bergson, existem um movimento que se expressa numa
transição da repugnância para o medo, do medo para a simpatia, e da própria simpatia
para a humildade.
Esse exemplo é importante, pois, primeiro, ele demonstra um método típico de
Bergson: começar por investigar as questões pelas nossas percepções e afecções
internas; para, em seguida, referenciá-las na realidade exterior. Segundo, ele marca a
importância da afecção para o conceito de percepção de Bergson. Nossa relação com o
mundo, ou seja, com a imagem-movimento se dará primordialmente pela faculdade da
afecção.
Para Bergson existe uma heterogeneidade de sentimentos na simpatia, porém
não somos capazes de justapô-los ou mesmo dizer que um nega o outro. Não existe
negação na duração. Os sentimentos são contínuos uns com os outros; eles se
interpenetram. A multiplicidade qualitativa é então heterogênea (ou singularizada),
contínua (ou interpenetrante), relativa a oposições ou dualística nos extremos (no caso
da simpatia, piedade inferior e piedade superior são os extremos), progressiva
(temporal), um fluxo irreversível, o qual não é dado todo de uma vez. Por conseguinte, a
multiplicidade qualitativa não pode ser adequadamente representada por um símbolo; de
fato, segundo Bergson, a multiplicidade qualitativa é inexprimível. Trata-se então de
uma progressiva mobilidade temporal. Para Bergson a liberdade é duração, ou seja,
mobilidade. Liberdade não é mais um atributo de um sujeito (livre-arbítrio), mas uma
mobilidade incorporada no sensível.
196
Em sua Introdução à Metafísica, Bergson nos dá três exemplos interessantes que
nos ajudam a pensar a duração como multiplicidades qualitativas (Bergson, [1903]
1979, p:16-17). Trata-se de três imagens cuja analogia nos aproxima da duração, sem
contudo representá-la. Como vimos, a duração por ser fluxo contínuo e permanente não
pode ser fixada por um símbolo.
A primeira imagem é a de dois novelos pelos quais corre uma linha. Um dos
novelos enrola a linha, o outro, a desenrola. O ato de desenrolar o novelo caracteriza o
tempo que passa; viver consiste em envelhecer. “Não há ser vivo que não se sinta
chegar pouco a pouco ao fim de sua meada” (Bergson, [1903] 1979: 16). Mas a duração
é também um enrolar-se contínuo, pois nosso passado nos segue sem cessar a cada
presente que incorpora em seu caminho. Assim, para Bergson, consciência significa
memória.
Entretanto, se esta imagem nos dá uma boa idéia do que seja a duração, ela
também possui limitações ao tentar representá-la. Esta imagem evoca a representação de
linhas e superfícies cujas partes são homogêneas e podem ser sobrepostas ou
justapostas. Entretanto na duração não há dois momentos idênticos, pois o momentos
seguinte contém sempre, além do precedente, a lembrança que este lhe deixou. Uma
consciência que possuísse dois momentos idênticos seria uma consciência sem
memória, dado que na significação de qualquer evento presente a memória desempenha
papel fundamental. A conclusão é que a imagem dos novelos desenrolando-se e
enrolando-se não é suficiente para explicar a duração.
Bergson parte então para uma segunda imagem. Um espectro com mil nuances,
um gradiente no qual a passagem de uma cor à outra é imperceptível. As cores estão de
tal forma entrelaçadas umas nas outras que não há delimitação clara na sua passagem. A
duração seria então a imagem de uma corrente de sentimento que ao atravessar o
197
espectro o tingi, cada vez, com uma das nuances. A experiência seria então de
mudanças graduais, cada uma anunciando a seguinte e resumindo nela as que a
precedem. Essa imagem é melhor que a anterior, pois os elementos representam uma
situação menos homogênea que a precedente. Entretanto, também esta imagem é
incompleta para explicar a duração; pois as nuances sucessivas do espectro são
exteriores umas às outras. Elas se justapõem e ocupam espaço. Já a duração exclui toda
idéia de justaposição, de exterioridade recíproca e de extensão.
Bergson então formula uma última imagem. Trata-se de um elástico
infinitamente pequeno, contraído num ponto matemático. Ao esticá-lo progressivamente
vemos uma linha que irá sempre se encompridando. Se fixarmos nossa atenção para o
ato e não para a linha, veremos que esta ação é indivisível, imaginando que ela está
sendo realizada sem interrupção; já que não é a ação de mover que é divisível, mas a
linha imóvel que deixa atrás de si como um traço no espaço. Assim, se descartarmos “o
espaço que subjaz ao movimento para levar em conta somente o próprio movimento, o
ato de tensão ou de extensão, enfim a mobilidade pura; teremos desta vez uma imagem
mais fiel de nosso desenvolvimento na duração” (Bergson, [1903] 1979: 16).
Entretanto, mesmo esta última imagem não é exatamente uma representação da
duração. Isto porque o desenrolar-se de nossa duração se assemelha em certos aspectos
à unidade do movimento que progride e, nesse caso, a imagem é muito fiel. Porém o
desenrolar-se da duração também se assemelha a uma multiplicidade de estados que se
espalham, e, nesse caso, a última imagem é incompleta. Segundo Bergson nenhuma
metáfora pode dar conta de um desses aspectos sem sacrificar o outro. Assim:
“Se evoco um espectro de mil nuances, tenho diante de mim uma coisa
completamente pronta, ao passo que a duração se faz continuamente. Se
penso num elástico que se alonga, numa mola que se encolhe ou se
distende, esqueço a riqueza de colorido que é característica da duração
vivida para não ver mais que o movimento simples pelo qual a consciência
passa de um tom ao outro” (Bergson, [1903] 1979: 17).
198
A duração consiste de duas características: unidade e multiplicidade. Então, o
tempo cronológico, mensurável, métrico deve ser distinguido de uma “duração” que é
pura qualidade, progresso, que não escoa de forma mecânica como um relógio, mas, ao
contrário qualitativamente ligada à vida, com uma incorporação fundamental na
existência. Para Bergson, a vida é multiplicidade temporal, variação qualitativa. Não
somente a vida em seu sentido geral, mas também a memória, na qual se dará a
compreensão da vida psíquica como devir e duração. Uma realidade temporal como a
consciência humana é uma realidade que dura, muda e se diferencia. O conceito de
duração encerra uma dupla idéia: passagem e conservação. Para que haja mudança ou
diferenciação é necessário que alguma coisa passe, tenha passado e se conserve. O
conceito de tempo ou de duração requer uma passagem em direção ao passado e uma
conservação desse passado. Sem esses dois aspectos, não existe nem tempo, nem
duração. Por isso a importância para Bergson da memória, que será o principal tema de
sua monumental obra Matéria e Memória ([1896] 1990). Por memória se entende um
princípio de conservação do passado, o qual não é aquilo que passou ou desapareceu,
mas, ao contrário, o que se conserva. Não se trata da necessidade de se lembrar de tudo,
mas simplesmente que a memória é absolutamente integral. A questão é entender por
que esta ou aquela memória é experimentada pela consciência, e por que todo o resto
das experiências passadas permanece no estado virtual ou inconsciente.
A memória não é somente o princípio de conservação do passado, mas também
o retorno incessante do passado em direção ao presente, a presença do passado no
presente ou para este presente. Trata-se de pura ontologia. Em Bergson é o passado que
é ontológico, enquanto o presente é psicológico. Guattari descreve uma experiência que
testemunha a memória ativa bergsoniana:
199
“Um dia, quando eu caminhava com um grupo de amigos em uma grande
avenida de São Paulo, senti-me interpelado, ao atravessar uma determinada
ponte, por um locutor não-localizável. Uma das características dessa
cidade, que me parece estranha em vários aspectos, consiste no fato de que
as interseções de suas ruas procedem freqüentemente por níveis separados
com grandes alturas. Enquanto meu olhar se dirigia, de cima para baixo,
para uma circulação densa que caminhava rapidamente, formando uma
mancha cinzenta infinita, uma impressão intensa, fugaz e indefinível
invadiu-me bruscamente. Pedi então que meus amigos continuassem sua
caminhada sem mim e, como em um eco das paradas de Proust em seus
‘momentos fecundos’ (o sabor da madalena, a dança dos sinos de
Martinville, a pequena frase musical de Vinteuil, o chão desnivelado do
pátio do hotel de Guermante…), imobilizei-me em um esforço para
esclarecer o que acabava de acontecer comigo. Ao fim de um certo tempo, a
resposta me veio naturalmente, algo da minha primeira infância me falava
do âmago dessa paisagem desolada, algo de ordem principalmente
perceptiva” (Guattari, 1992: 54).
Assim, o momento presente de nossa vida não é, e nem pode ser, um recomeço
do zero. Cada ato que cumprimos, cada momento vivido presentemente convoca nossa
experiência anterior e a reativa, isto é, torna novamente viva ou consciente essa
experiência. Não importa qual é a experiência interior, o que interessa é a ação presente
na qual estou comprometido. Assim, quando levanto de manhã, não necessito
reaprender a andar; simplesmente começa a andar, reativo novamente toda a minha
experiência anterior do andar. Mesmo quando não expressa uma experiência consciente
ou refletiva, minha ação torna viva experiências do passado. Toda vivência da
consciência faz surgir a lembrança que a torna possível, segundo diversos graus de
possibilidade. Esta é a razão pela qual Bergson diz:
“Consciência significa primeiramente memória. À memória pode faltar
amplitude; ela pode abarcar apenas uma parte ínfima do passado; ela pode
reter apenas o que acaba de acontecer; mas a memória existe, ou então não
existe consciência. Uma consciência que não conservasse nada de seu
passado, que se esquecesse sem cessar de si própria, pereceria e renasceria a
cada instante; como definir de outra forma a inconsciência? […] Toda
consciência é, pois, memória – conservação e acumulação do passado no
presente”. (Bergson, [1919] 2001: 819).
Mais adiante ele acrescenta:
“Mas toda consciência é antecipação do futuro. Consideremos a direção de
nosso espírito a qualquer momento: veremos que ele se ocupa do que ele é,
mas sobretudo em vista do que ele vai ser. A atenção é uma expectativa, e
200
não há consciência sem uma certa atenção à vida. O futuro lá está: ele nos
chama, ou melhor, ele nos puxa: esta tração ininterrupta, que nos faz
avançar na rota do tempo, é também a causa de que ajamos
continuadamente. Toda ação é um penetrar no futuro” (Bergson, [1919]
2001: 819).
Podemos dizer então que se a consciência é essencialmente duração, não importa
qual vivência da consciência é experimentada, o fato é que sempre ocorre uma certa
relação, cada vez singular, do presente no passado; ou, em outros termos, um certo
retorno do passado no presente. Esta relação com o passado é sempre singular porque
existe infinitos modos de se relacionar com este passado, infinitos modos de retorno ao
passado e de retorno do passado. Num certo sentido, o presente é diferente porque o
passado retorna sempre de forma diferente, enriquecendo-o a cada retorno. Não é essa a
experiência que temos ao fruir uma obra de arte? Ou ao navegar por uma hipermídia?
As lembranças nos chegam de diferentes formas, mais ou menos conscientes ou
exprimidas. Por exemplo, a lembrança de um encontro acontecido no passado pode ser
voluntariamente reativado, ou seja, o objeto de uma consciência atenta. Entretanto o
puro hábito motor que eu convoco para andar, se não é consciente no sentido estrito,
não deixa de pertencer à vida da consciência porque torna sensíveis experiências
acumuladas no passado.
Cada vivência da consciência, segundo sua modalidade própria, implica uma
certa relação de tensão entre passado, presente e futuro. Dado que esta relação define
precisamente a duração, em termos bergsonianos, então cada ato ou vivência da
consciência realiza nela própria uma certa tensão da duração. Esta tensão é sempre
qualitativa, ou seja, uma certa intensidade qualitativa da consciência. Poderíamos
concluir então que não existe ação que se contente em repetir mecanicamente o passado.
Menos o presente se diferencia ou transforma – como no caso do hábito motor, o qual é
uma espécie de memória do corpo material – menos a vida da consciência é intensa. A
201
consciência é portadora da mais alta intensidade quando a tensão entre o passado e o
presente é produtora de diferenciação, de progresso, de novidade ou ainda de criação.
Quando relembro e significo diferentemente o presente, também acrescento uma nova
dimensão nesse passado. Passado e presente são vivenciados como novo. A filosofia de
Bergson nos propõe uma nova forma de perceber o tempo e como nós vivemos em
relação a ele.
Quando pensamos a imagem na perspectiva da duração bergsoniana, deixamos o
espaço, multiplicidade quantitativa, e mergulhamos no tempo multiplicidade qualitativa.
Nos deparamos com o que é móbil, fluente, fluxo ininterrupto, porém heterogêneo; não
por diferenciação espacial mas pela intensidade. A imagem fluxo é construída por
indivíduos, também fluxos, e conjuntos sociais, também fluxos. Trata-se então de fluxos
em permanente interação e mútua transformação.
Em sua significação, a imagem digital necessita da memória, não como passado
morto, mas como virtualidade capaz de se atualizar no presente construindo
significações coletivas. Esse movimento do passado em relação ao presente e às
possibilidades do futuro, como vimos, Bergson chama duração. É nessa duração que a
vida é construída. Nessa perspectiva, o pensamento que analisa também deverá mudar
para se adequar ao seu objeto. Deverá se libertar de conceitos rígidos e pré-fabricados
para criar conceitos bem diferentes daqueles que manejamos habitualmente, isto é,
deverá engendrar hipóteses flexíveis, móveis, quase fluidas, sempre prontas a se
moldarem sobre as formas fugidias do mundo sensível em movimento. As experiências
em Design de Movimento atestam a necessidade deste preceito. A significação da
imagem não está mais em seu fotograma, mas sim no fluxo cuja apreensão do todo é o
significado de um tempo vivido. Trata-se de um pensamento que se adéqua ao movente.
202
Por tudo isso o bergsonismo permanece um referencial para o pensamento
contemporâneo.
Matéria e Memória: Uma Teoria Sensório-Motora da Percepção
Bergson, prêmio Nobel de Literatura em 1928, estabeleceu, em sua obra Matéria
e Memória de 1897, as bases de uma teoria sensório-motora da percepção. Teoria
radicalmente nova ao final do século XIX, que tornou o ciclo ação/percepção o próprio
centro da atividade perceptiva.
Com o objetivo de melhor compreender o papel que a percepção tem no
contexto da obra de Bergson, convém estabelecer suas conexões com o conjunto de sua
obra teórica, bem como o seu contexto histórico e conceitual do final do século XIX e
seus problemas epistemológicos.
O final do século XIX é a era da modernidade como uma realidade acabada, na
qual ciência e tecnologia, incluindo os transportes e meios de comunicação redesenham
a percepção humana. Os ritmos e timbres peculiares da modernidade do século XIX se
materializam na nova paisagem, altamente desenvolvida, diferenciada e dinâmica, na
qual tem lugar a experiência moderna (Abruzzese 2006). Trata-se da metrópole,
ambiente diferenciado das cidades. Paisagem de engenhos a vapor, fábricas
mecanizadas, ferrovias, novas e amplas zonas industriais. São metrópoles que, em geral,
se desenvolveram de prolíficas cidades do dia para a noite, quase sempre com
aterradoras conseqüências para todos que nela habitavam. Surgem jornais diários,
telégrafos, telefones e outros instrumentos de mídia, os quais se comunicam em escala
cada vez maior. Os Estados nacionais tornam-se cada vez mais fortes e, no seu interior,
surgem conglomerados multinacionais de capital e movimentos sociais de massa, os
203
quais lutam contra a modernização executada de cima para baixo. Também surge um
mercado mundial que a tudo abarca, em crescente expansão, capaz de um estarrecedor
desperdício e devastação, capaz de tudo exceto de obter uma solidez e estabilidade.
Quase todos os grandes pensadores e artistas do século XIX criticaram com intensidade
e paixão esse ambiente. Eles procuram eliminá-lo, superá-lo ou explorá-lo a partir do
seu interior. Suas afecções oriundas desse ambiente são complexas, capazes da crítica
mais contundente junta com uma certa admiração e mesmo entusiasmo. Não é essa a
mesma experiência de muitos dos artistas e pensadores do ambiente digital? Não
vislumbramos as possibilidades de controle e poder das novas mídias, mas, ao mesmo
tempo, não somos atraídos por suas enormes potencialidades?
Todos se sentem à vontade em meio ao impactante, avassalador e, por vezes,
terrível ambiente moderno. Todos são críticos e movidos antes de tudo por uma ética
afetiva e empírica que os levam a pensar, teorizar e expressar as formas de habitar esse
novo mundo criado pelo ambiente urbano. Eles são sensíveis às novas possibilidades,
positivos ainda em suas negações radicais. Divertidos e irônicos em seus momentos de
mais grave seriedade e profundidade. Estamos pensando principalmente em
Kierkegaard, Marx e Nietzsche.
Neste cenário existe uma multiplicidade epidêmica de signos e artefatos, os
quais engendram uma dificuldade na experiência para uma clara distinção entre o
natural e o artificial. De fato, tanto a experiência digital quanto a filosofia
contemporânea desafiam a viabilidade de uma tal distinção. O acabamento da
modernidade trouxe a emergência de um problema, a distinção entre natural e artificial,
que a tradição filosófica tinha reprimido. A conseqüência do acabamento da
modernidade é o que a filosofia pós-moderna chama de desrealização. Ela afeta tanto o
204
sujeito como os objetos da experiência. O chão torna-se movediço e a experiência
dissolve o sentido da identidade, constância e substância.
Importantes precursores do conceito de desrealização são encontrados
exatamente no século XIX. Podemos citar: Kierkegaard, Marx e, principalmente,
Nietzsche.
Em Marx temos uma análise do fetichismo das mercadorias (Marx ([1859])
1983: 444-461). Os objetos perdem a solidez de seu real valor e tornam-se figuras
espectrais sob o aspecto do valor de troca. Sua natureza fantasmagórica resulta de sua
absorção numa rede social de relações, na qual seus valores flutuantes são
independentes de seu ser material ou corporal. Os próprios seres humanos experienciam
essa desrealização porque as mercadorias são o produto de seu trabalho. Os
trabalhadores perdem seu próprio ser nesse sistema de produção, pois são ao mesmo
tempo o vetor da mercadoria e também uma mercadoria.
Segundo Marx, o fato básico da vida moderna é possuir uma natureza
contraditória:
“De um lado, tiveram acesso à vida forças industrial e científicas nunca
antes experimentadas na história humana. De outro lado, estamos diante de
sintomas de decadência que ultrapassam em muito os horrores dos últimos
tempos do Império Romano. Em nossos dias, tudo parece estar impregnado
do seu contrário. O maquinário, dotado do maravilhoso poder de amenizar e
aperfeiçoar o trabalho humano, só faz, como se observa, sacrificá-lo e
sobrecarregá-lo. As mais avançadas fontes de saúde, graças a uma
misteriosa distorção, tornaram-se fontes de penúria. As conquistas da arte
parecem ter sido conseguidas com a perda do caráter. Na mesma instância
em que a humanidade domina a natureza, o homem parece escravizar-se a
outros homens ou à sua própria infâmia. Até a pura luz da ciência parece
incapaz de brilhar senão no escuro pano de fundo da ignorância. Todas as
nossas invenções e progressos parecem dotar de vida intelectual às forças
materiais, estupidificando a vida humana ao transformá-la em força de
trabalho” (Marx ([1867]) 1971: 577-578).
205
Em Marx, a experiência diferencial da contradição e do ambiente moderno
desencadeia um impulso em direção à sua superação, não por pura negação ou
nostalgia, mas pelo aprofundamento da própria experiência.
Trata-se de uma vivência notadamente dinâmica, já que:
“Todas as relações fixas, enrijecidas, com seu travo de Antigüidade e
veneráveis preconceitos e opiniões, foram banidas; todas as novas relações
se tornam antiquadas antes que cheguem a se ossificar. Tudo o que é
sólido desmancha no ar, tudo o que é sagrado é profano, e os homens
finalmente são levados a enfrentar (...) as verdadeiras condições de suas
vidas e suas relações com seus companheiros humanos”. (Marx ([1846])
1965: 475-76; Berman 1989: 20).
Ao nascimento da mecanização, da indústria moderna e do capital seguiu-se um
abalo em intensidade e extensão das estruturas e visões de mundo da tradição clássica.
Como conseqüência foram rompidos todos os limites da moral e da natureza, de idade e
sexo, de dia e noite. “O capital celebrou suas orgias...” (Marx [1859] 1983: 143).
Marx mantém por todo sua obra uma atitude crítica em relação ao capital e suas
conseqüências, porém essa crítica sempre permaneceu como uma afirmação, como
vontade de explorar as possibilidades abertas pelas forças oriundas do potencial
humano. Marx talvez nos ilumine para uma atitude de afirmação e mudança a partir de
dentro, na pura imanência. Essa atitude pertence a uma dimensão crítica afirmativa, em
contraste com atitudes de pura negatividade e voto de piedade.
A noção de um colapso entre o real e o aparente é sugerida por Nietzsche já em
seu primeiro livro, de 1871: O Nascimento da Tragédia no Espírito da Música. Nessa
obra, ele apresenta a tragédia grega como uma síntese do impulso natural da arte
representado pelos deuses Apolo e Dionísio. Apolo é o deus das formas e imagens
belas, Dionísio é o deus do frenesi e da intoxicação, por meio do qual a harmonia e
encanto da existência individual são quebrados em um momento de indiferenciação com
a natureza. Nietzsche estabelece então uma diferença entre a arte, que é a afirmação do
206
jogo, no ir e vir desses dois impulsos, e a lógica e ciência, que são construções oriundas
das representações puramente apolíneas, as quais se tornam frias e sem vida.
Conseqüentemente, Nietzsche acredita que somente o retorno do impulso da arte
dionisíaca pode salvar a sociedade e existência moderna da esterilidade e niilismo.
Em estreita conexão com sua genealogia, Nietzsche critica o historicismo do
século XIX, especialmente em um ensaio de 1874: “Da utilidade e desvantagens da
história para a vida” (Nietzsche 2003). O ponto de vista de Nietzsche é que a vida de um
indivíduo e de uma cultura depende de sua habilidade para repetir um momento
ahistórico, uma espécie de esquecimento, repetindo assim um momento ahistórico no
presente como algo “novo”. A este respeito, Nietzsche e Baudelaire descrevem a
modernidade como um gesto que é “visitante, passageiro, contingente” e repetido em
todas as idades (Cahoone 2003: 100).
Nietzsche apresenta uma versão desse conceito, o qual ele chamará de eterno
retorno, na “Gaia Ciência”:
“E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária
solidão e te dissesse: ‘Esta vida, assim como tu a vives agora e como a
viveste, terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes; e não
haverá nela nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e
suspiro e tudo o que há de indizivelmente pequeno e de grande em tua vida
há de retornar, e tudo na mesma ordem e seqüência – e do mesmo modo
esta aranha e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu
próprio. A eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez – e
tu com ela, poeirinha da poeira! ‘
-Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e amaldiçoarias o demônio
que te falasse assim? Ou viveste, alguma vez, um instante descomunal, em
que lhe responderias: ‘Tu és um deus, e nuca ouvi nada mais divino!’
(Nietzsche [1882] 1974: 216-17).
Viver segundo o eterno retorno é fazer com que cada ação, por menor que seja,
tenha um tal valor que faça com que eu queira, pela minha vontade, que ela se repita
infinitamente, Todos os instantes tornam-se descomunais. Trata-se, segundo Nietzsche
207
de construir a existência segundo o modelo da obra de arte, na qual tudo é afirmado. Isto
é, imprimir em cada ação, cada gesto, a força de um caráter.
O sentimento de desrealização provocado pelo desenvolvimento científico e
tecnológico, no século XIX, engendrou um desejo de voltas às coisas mesmas.
Entretanto, os enquadramentos teóricos oriundos da tradição não eram suficientes para
satisfazer esse desejo. Uma crise se instala. A psicologia passa por esta crise. Segundo
Deleuze:
“A crise histórica da psicologia coincide com o momento em que já não é
possível afirmar uma certa posição: essa posição consistia em por as
imagens na consciência, e os movimentos no espaço. Na consciência, só há
imagens, qualitativas, inextensas. No espaço, só há movimentos, extensos,
quantitativos. Mas como passar duma ordem para outra? Como se explica
que os movimentos produzem de repente uma imagem, como na percepção
ou que a imagem produza um movimento, como na ação voluntária? Se se
invocar o cérebro, é preciso dotá-lo de um poder milagroso. E como
impedir que o movimento já não seja de antemão imagem pelo menos
virtual, e que a imagem não seja de antemão movimento pelo menos
possível? O que parecia sem saída, era, por fim a confrontação do
materialismo e do idealismo, um querendo reconstituir a ordem da
consciência com puros movimentos materiais, o outro, a ordem do universo
com puras imagens na consciência. Era necessário a todo custo ultrapassar
esta dualidade da imagem e do movimento, da consciência e da coisa. E, na
mesma época, dois autores muito diferentes iam empreender essa tarefa,
Bergson e Husserl. Ambos lançaram o grito de guerra: qualquer consciência
é consciência de algo (Husserl), ou ainda toda consciência é algo
(Bergson)” (Deleuze 2001: 83).
Um outro estudo que apaixona o século XIX é o estudo do ser vivo e o
evolucionismo darwiniano, os quais passam então a influenciar a filosofia e as outras
ciências nascentes como a psicologia e a biologia. A pesquisa do organismo vivo
remonta a Aristóteles que assim o definiu:
“Retomando o princípio da investigação, digamos então que o animado se
distingue do inanimado pelo viver. E de muitos modos diz-se o viver, pois
dizemos que algo vive se nele subsiste pelo menos um destes – intelecto,
percepção, sensível, movimento local e repouso, e ainda movimento
segundo a nutrição, o decaimento e o crescimento” (Aristóteles, De Anima,
Capítulo II, 2, 413 a).
208
A posteridade aplicou o comentário aristotélico na divisão entre corpo e espírito.
Assim, concluiu-se que as faculdades de locomoção e de nutrição são próprias ao corpo
enquanto que as faculdades sensitivas e intelectuais são atributos do espírito. Para
Descartes, a percepção é sobretudo uma ato intelectual; essa concepção levou muitas
vezes a uma distinção rigorosa entre percepção e sensação, mesmo que se considere a
primeira como apreensão de objetos sensíveis. Entretanto, no século XIX, com o
desenvolvimento da fisiologia este tradicional postulado foi criticado, graças às novas
pesquisas e às crenças delas derivadas. Estabeleceu-se a crença de que as sensações
estavam localizadas no cérebro. Então a faculdade sensitiva não seria mais da ordem do
espírito, como na tradição aristotélica. Agora ela é estritamente corporal; logo somente
o pensamento é o privilégio do espírito. Naturalmente, também existiu uma reação dos
espiritualistas que consideravam o avanço do materialismo em direção às faculdades
antes atribuídas ao espírito um perigoso movimento de destruição do que é
tradicionalmente humano. Criam-se então dois campos teóricos em debate, os quais
Bergson relacionará com o antigo debate epistemológico entre realistas e idealistas. De
modo esquemático, podemos dizer que realismo e idealismo são vertentes
epistemológicas que tratam de um dos problemas mais gerais e persistentes na história
da filosofia: a relação entre sujeito e objeto. A primeira vertente é representada pelo
realismo, o qual trata a relação sujeito-objeto sob o primado do objeto. A representação
que fazemos das coisas está subordinada aos objetos em si mesmos, ou as coisas em si
mesmas apreendidas pelos sentidos e em seguida registradas pelo intelecto. O ponto de
partida para o conhecimento é o objeto ou as coisas mesmas. A segunda vertente é a do
idealismo, a qual, ao contrário do realismo, se atém à primazia do sujeito, das idéias na
mente. O sujeito é o ponto de partido para a reconstituição de um acordo entre as coisas
e a mente, entre o objeto e o sujeito. Esse acordo ou essa correspondência se estabelece
209
a partir de uma análise das idéias, que o sujeito é portador, relacionando-as
posteriormente com o mundo. Somente temos acesso às coisas por meio das idéias que
estão em nossa mente. Portanto para reconstituir o estado de coisas do mundo tenho que
me ater às representações desse mundo em minha mente.
Bergson, entretanto, adota uma estratégia diferente que acaba se constituindo
como uma terceira via, diferente do realismo e do idealismo
5
. Ele está de acordo com a
tese de que a sensação é da ordem corporal, mais precisamente, material. Ele adota
então a continuidade entre faculdades motoras e faculdades sensitivas. Até aqui,
Bergson estaria do lado dos realistas, ou materialistas, sofrendo a objeção dos
espiritualistas, ou idealistas, os quais argumentariam que o pensamento se inscreve no
prolongamento da percepção, sendo uma propriedade da mente. Entretanto, Bergson
não acata o realismo e suas conseqüências. Se ele endossa o ponto de vista dos realistas
quanto à materialidade da percepção, ele introduz entre a percepção e o pensamento um
intervalo que torna incompatível a redução da percepção às características do
pensamento. Para tanto, a noção de movimento é de fundamental importância, pois ela
possibilita a Bergson reintroduzir uma continuidade entre a percepção e “o movimento e
o repouso segundo o lugar”, além do “movimento que implica nutrição, decaimento e
crescimento”, na expressão de Aristóteles. Somente esta reintrodução permitiu atribuir a
percepção às características que se manifestam como incompatíveis com as
características do pensamento. Trata-se da diferença por meio de um intervalo entre o
corpo material e o espírito. Tratemos então de explicar a natureza desse intervalo ao
longo deste capítulo.
5
Usamos os termos realismo e idealismo conforme a conceituação que Bergson tem deles em Matéria e
Memória. Naturalmente que Bergson toma esses termos em sentido muito geral e conforme suas
necessidades e perspectivas. Portanto não se pretende nenhum rigor no uso desses termos. Isto também
não é importante, na medida que eles servem apenas como caminho para se chegar às idéias de Bergson e
assinalar sua originalidade, questões estas sim pertinentes.
210
Para Bergson o que principalmente caracteriza o pensamento é o atributo de ser
desinteressado. Assim procedendo, Bergson filia-se à tradição antiga que considerava o
pensamento como teoria e o significado primário do vocábulo “teoria” é contemplação.
Daí que se possa definir a teoria como uma visão inteligível ou uma contemplação
racional. Evidentemente que, no caso de Bergson, não se trata de contemplar o Uno
Estático, mas o Elã Vital, puro movente. Trata-se de associar o pensamento ao movente
não com o objetivo de realizar ações práticas, mas pura contemplação. Aristóteles já
havia distinguido as ciências teóricas e o conhecimento prático como dois campos de
conhecimentos diferenciados. Ora, se o pensamento é desinteressado e diferente da
percepção, trata-se então de mostrar que a percepção é fundamentalmente interessada. A
prova estará contida na tese segundo a qual a percepção é ação.
Em Matéria e Memória, Bergson irá desenvolver o estudo da percepção
juntamente com as críticas das insuficiências e equívocos que tanto realistas como
idealistas não puderam superar. O estudo da percepção se insere no contexto
epistemológico da relação entre sujeito e objeto. Uma divergência muito debatida entre
realistas e idealistas é quanto ao caráter mediato ou imediato da percepção. O realismo
inclinou-se geralmente para defender a imediatez. O idealismo, em contrapartida, tende
a afirmar que a percepção é mediada. Quando alguém vê um objeto, vê a aparência de
um objeto – ou, se se quiser, vê o objeto enquanto aparência –, mas não vê propriamente
o objeto. Em contrapartida, os realistas defendem que quando alguém vê um objeto este
aparece sem que haja diferença entre a aparência e o objeto. Os idealistas defendem que
a “mediação” entre objeto e aparência consiste no “pensamento”, na “reflexão”, etc.
Para Bergson, tanto idealistas como realistas fundamentam a percepção como
um conhecimento intelectual. Trata-se então de se afastar dessas doutrinas
demonstrando que a percepção é, antes de tudo, ação.
211
Bergson dirige uma série de objeções tanto a realistas como idealistas em suas
explicações da relação sujeito e objeto, ressaltando que quando se trata de explicar a
percepção, tanto realistas como idealistas acabam adotando a posição contrária a que
deveriam se ater se fossem conseqüentes com suas filosofias. Nesse sentido, podemos,
para propósitos de síntese, dividir os argumentos bergsonianos em quatro grande etapas.
1. Toda percepção é percepção de alguma coisa. Toda teoria da
percepção deve explicar como acontece a união entre a percepção e a
coisa percebida, bem como a diferença entre percepção interna e coisa
externa.
2. Toda percepção é percepção de alguma coisa segundo uma
perspectiva. Toda teoria da percepção deve explicar a união e a
diferença entre o que me aparece e o que me aparece, entre o em-si e o
para-mim, entre coisa-em-si e o fenômeno.
3. Toda percepção é percepção de alguma coisa segundo uma perspectiva
variável. Toda teoria da percepção deve explicar a união e diferença
entre a perspectiva invariável da ciência com sua subordinação às leis
objetivas, isto é, universais e necessárias, e a perspectiva variável do
sujeito perceptor com sua subordinação à fantasia subjetiva, isto é,
particular e contingente. Trata-se então de compreender a diferença do
que Kant ([1781] 1980) chamou a ordem do tempo e o curso do
tempo
6
.
6
Kant distingue a sucessão subjetiva da apreensão dos fenômenos que abre para fantasia à determinação
do curso do tempo e a própria ordem do tempo, que é a idéia do tempo como condição dos fenômenos,
portanto, não é um conceito empírico derivado da experiência; tem de ser uma representação necessária
que subjaz em todas as nossas intuições.
212
4. Toda apercepção
7
é percepção consciente de alguma coisa segundo
uma perspectiva variável. Já que a apercepção é percepção da
percepção, toda teoria da percepção deve explicar a união e a diferença
entre percepção e apercepção, em última instância, matéria e espírito.
Assim, toda teoria da percepção deve explicar a união e diferença entre
percepção interna e a coisa externa, entre fenômeno e a coisa-em-si, entre o curso do
tempo e a ordem do tempo, enfim, entre o espírito e a matéria. As teses idealistas e
realistas, segundo Bergson, não podem nos satisfazer. Para explicar esta questão,
realistas e idealistas reduziram a distância entre exterioridade e interioridade sempre em
proveito de uma delas. No caso dos realistas, a coisa externa. No caso dos idealistas, a
percepção interna. Mas ambos têm dificuldade em explicar tanto a diferença como a
união entre elas.
Então nos resta examinar as próprias teses bergsonianas a este respeito
enfatizando sua superação dos problemas oriundos do enquadramento sujeito e objeto.
Porque é exatamente esse o problema dos realistas e idealistas, sempre eliminado, ou
atenuando, um dos termos em benefício do outro, mas sempre permanecendo a
oposição. Para tanto examinaremos o conjunto do primeiro capítulo de Matéria e
Memória.
7
Sobre a diferença e continuidade entre percepção e apercepção ver por exemplo Leibniz: Novos Ensaios
sobre o Entendimento Humano, II, IX, §4: “Gostaria de distinguir melhor entre percepção e apercepção.
A percepção da luz ou da cor, por exemplo, da qual nos damos conta (percebemos) se compõe de uma
série de pequenas percepções, das quais não nos damos conta (não percebemos), sendo que um ruído de
que temos percepção, mas no qual não prestamos atenção, se torna perceptível por uma pequena adição
ou aumento. Com efeito, se o que precede não tivesse nenhuma influência sobre a alma, também esta
pequena adição não teria nenhuma” (Leibniz [1765], Novos Ensaios sobre o Entendimento Humano, II,
IX, §4, 1988: 80).
213
O Que Percebemos?
Toda percepção é percepção de alguma coisa. Bergson assinala que quando se
trata de determinar a união e a diferença entre a percepção e a coisa percebida, as
soluções habituais de idealistas e realistas não são totalmente satisfatórias.
Segundo Deleuze, a inovação de Bergson consiste em afirmar que “toda
percepção é alguma coisa” (Deleuze 2001: 83). Mas, qual é afinal essa novidade, em
outros termos, o que significa essa afirmação?
Antes de tudo, devemos notar que a reciprocidade da afirmação não é
verdadeira, ou seja, toda coisa não é uma percepção. Caso afirmássemos isso, seríamos,
sem dúvida idealistas, pois a ação mais fundamental do idealismo é tomar como ponto
de partida o que é interno a um sujeito, porque ele é fundamentalmente “ideador” e
“criador”. Entretanto, o real não existe somente quando ele é atualmente percebido. Se
fecho os olhos, ele continua existindo. Assim, não podemos afirmar, segundo Bergson,
que toda coisa é da mesma natureza que uma percepção, como quer o idealista. Anula-
se a transitividade na afirmação com o objetivo também de não possibilitar a
transformação da coisa em uma percepção heterogênea. É este espaço que os realistas se
apropriam quando conferem a uma porção da matéria como o cérebro os misteriosos
poderes de transformar uma matéria em outra, por exemplo, a coisa em percepção.
Bergson escapa dessa via ao afirmar que a matéria é da mesma natureza que a
percepção. Seu ser é ser-percebida. O que isto significa?
O que percebemos são imagem. A matéria, homogênea à percepção, não é então
composta de coisas das quais se faria uma imagem. Ela própria é composta de imagens.
A percepção, homogênea à matéria, não é então a imagem que se faz de uma coisa; ela é
214
a própria coisa. Assim dizer que a percepção é alguma coisa significa que as coisas são
da mesma natureza que a percepção. Esta natureza comum é a da imagem, segundo
Bergson.
“A matéria, para nós, é um conjunto de ‘imagens’. E por ‘imagens’
entendemos uma certa existência que é mais do que aquilo que o idealista
chama uma representação, porém menos do que aquilo que o realista chama
uma coisa – uma existência situada a meio caminho entre a ‘coisa’ e a
‘representação’ […]” (Bergson [1896] 1997: 1).
A noção de imagem no tempo de Bergson designava, nos psicólogos tais como
Hypolite Taine ou Théodule Ribot, a de representação de um objeto. É dessa noção que
Bergson quer escapar entrevendo uma distância entre esses termos. A imagem, em
Bergson, escapa da alternativa abstrata do realismo e do idealismo. É verdade que a
realidade em si não é distinta do que percebemos. Berkeley sobre este ponto tinha razão,
esse est percepti
8
, ou seja, o real não é nada mais do que sua aparência. Mas, e isto
Berkeley não compreendeu, é falso concluir que a matéria coincide com nosso próprio
espírito. Ela é também o que eu não percebo. Existem coisas que não são percebidas,
porém mantém sua existência. Uma pintura, não necessita ser vista para ser uma obra de
arte. Bergson então se coloca na mesmo posição do senso comum: “Portanto, para o
senso comum, o objeto existe nele mesmo e, por outro lado, o objeto é a imagem dele
mesmo tal como a percebemos: é uma imagem, mas uma imagem que existe em si”
(Bergson [1896] 1997: 2).
Bergson argumenta que o homem comum acharia muito estranho a concepção
idealista que diz que o objeto que está diante dele, que ele vê e toca, só existe em seu
8
Mais precisamente e em suas Notes philosophiques que constituem um trabalho preparatório às futuras
obras, Berkeley escreve: “Existir é ser percebido ou perceber”. Assinalamos que Bergson não retém senão
a primeira parte da proposição. E isto se compreende porque não existe, como tal, ato perceptivo da parte
de um sujeito em Bergson. Existe somente o movimento perceptual, precedendo a distinção entre sujeito e
objeto.
215
espírito e para seu espírito. Da mesma forma, a mesma estranheza se instala diante da
concepção realista que diz que o objeto é bem diferente daquilo que ele percebe, não
tem a cor que olho lhe atribui, nem a resistência que a mão encontra nele. Para o senso
comum, o objeto existe independente da consciência que o percebe. Também, a cor e a
resistência estão no objeto, não são estados de nosso espírito, são os elementos
constitutivos de uma existência independente da nossa. Assim, Bergson, como ponto de
partida, se estabelece no senso comum e conclui que a matéria é plena identidade do ser
e da aparência, ela é o ser real do percebido, e o ser perceptível do real. Bergson parte
do senso comum como fundamento, para em seguida construir sua concepção de
matéria como imagem-movimento. A noção de imagem é obtida de forma muito
simples. Ela é proveniente de uma épochè
9
, ou seja colocar entre parênteses tudo o que
não é dado na experiência comum, seguindo o imperativo de voltar às coisas mesmas,
voltar à concepção da matéria considerada “antes de sua dissociação que o idealismo e o
realismo operaram entre ela e sua aparência” (Bergson [1869] 1997: 2). Voltemos então
à uma existência situada a meio caminho entre a coisa dos realistas e a representação
dos idealistas, isto é, à uma concepção de imagem, mas uma imagem que existe em si.
O senso comum então estabelece uma união de fundamento entre a coisa
percebida e a própria coisa. Entretanto, é necessário também estabelecer a sua distinção,
pois em alguma coisa elas se distinguem, pois o próprio senso comum também
estabelece que a coisa existe independentemente de ser percebida. Existiram diversas
tentativas ao longo da história da filosofia de resolver esta questão. Uma das principais
foi estabelecer a diferença entre qualidades primeiras e qualidades segundas. É comum
citar Locke como o filósofo que estabeleceu de forma clara esta distinção. Entretanto,
9
Usamos o termo Epoché em seu sentido primeiro que é uma atitude de suspensão do juízo perante o
conteúdo doutrinal de qualquer dado filosofia e realizamos todas as nossas comprovações dentro dos
limites dessa suspensão. Assim, “mundo natural” e o “senso comum” não negam, nem duvidam da
existência de um mundo exterior.
216
ela possui, na verdade, uma longa tradição. Sua origem reside na distinção aristotélica
entre o sentido do tato e as diversificações operadas nele. No tato, segundo Aristóteles,
aparecem diversas qualidades de natureza polar, por exemplo: quente e frio, úmido e
seco, pesado e leve, duro e mole, rijo e frágil, rude e liso, compacto e amolecido. Destas
qualidades, destacam-se quatro como primárias: duas qualidades ativas: quente e frio,
duas qualidades passivas: úmido e seco. Estas, que Aristóteles chama primeiras
diferenças, contrapõem-se às restantes qualidades. Não se trata, contudo, de
“diferenças” psicológicas, mas físicas. A elas se reduzem as restantes qualidades, e
assim se produz, nelas, uma distinção entre o primário e o secundário. As qualidades
primeiras designam, pois, as qualidades fundamentais e irredutíveis. As qualidades
segundas designam as qualidades acidentais e redutíveis. Os filósofos modernos
mantiveram, a este respeito, duas teses. A primeira defendida por Francis Bacon
([1620]) no Novum Organum, segundo a qual, de um modo parecido aos escolásticos,
há dois tipos de qualidades, ambas reais, mas umas mais patentes ou visíveis que as
outras. A segunda defendida por Hobbes ([1651]), segundo a qual há, por um lado, uma
matéria sem qualidades, ou então uma matéria com propriedades puramente mecânicas,
que é objetiva, e por outro lado, certas qualidades – que também podem distribuir-se em
primeiras e segundas – que são subjetivas
10
. Esta última tese foi predominante à medida
que se foi desenvolvendo a concepção mecânica da Natureza. Descartes ([1647]), nas
Meditações Metafísicas, propõe o célebre exemplo do pedaço de cera que quando se
aproxima do fogo perde todas as suas qualidades, menos as fundamentais: flexibilidade,
movimento e, sobretudo, extensão.
“Tomemos, por exemplo, este pedaço de cera que acaba de ser tirado da
colméia: ele ainda não perdeu a doçura do mel que continha, ainda retém
algo do odor das flores de que foi recolhido; sua cor, sua figura e sua
10
Subjetivo aqui é usado no sentido da filosofia moderna, ou seja, apreendido por um sujeito local que é a
fonte do conhecimento.
217
grandeza são evidentes: ele é duro e frio quando o tocamos e, se nele
batermos, produzirá algum som. Enfim, todas as coisas que podem
distintamente fazer conhecer um corpo, encontram-se neste. Mas eis que,
enquanto falo, alguém o aproxima do fogo: o que nele restava de sabor,
exala-se, o odor se desvanece, sua cor se modifica, sua figura se perde, sua
grandeza aumenta, ele se torna líquido, esquenta-se, mal podemos tocá-lo,
e, ainda que batamos nele, não produzirá som algum. A mesma cera
permanece após essa transformação? Cumpre confessar que sim; e ninguém
o pode negar. Que é, então, que conhecíamos nesse pedaço de cera com
tanta distinção? Certamente não pode ser nada do que observei nela por
intermédio dos sentidos, uma vez que todas as coisas que se apresentavam
ao paladar, ou ao olfato, ou à visão, ou ao tato, ou à audição se encontram
modificadas e, no entanto, a mesma cera permanece. Talvez fosse o que
penso atualmente, a saber, que a cera não era essa doçura do mel, nem esse
agradável perfume das flores, nem essa brancura, nem essa figura, nem esse
som, mas apenas um corpo que, pouco antes, se apresentava sob essas
formas e que agora se faz notar sob outras […] Consideremo-la atentamente
e, afastando todas as coisas que não pertencem à cera, vejamos o que resta.
É certo que não permanece senão algo de extenso, de flexível e mutável
[…] E eu não conceberia claramente, e segundo a verdade, o que é a cera;
se não pensasse que é capaz de receber mais variedades segundo a extensão
do que nunca imaginei. Por conseguinte, é preciso que eu concorde que não
poderia mesmo conceber pela imaginação o que é essa cera, e que só meu
entendimento é quem o concebe”. (Descartes ([1647] 1973: 114-115).
Descartes, no Discurso do Método ([1637] 1973), diz que as grandezas, figuras e
outras propriedades semelhantes se conhecem de modo diferente das cores, sabores,
etc., e que nada há nos corpos que possa excitar em nós qualquer sensação, exceto o
movimento, a figura, situação e grandeza das suas partes. Em resumo, vemos nesse
período a tendência para distinguir o primário ou mecânico e o secundário ou sensível.
Ora, enquanto os filósofos citados parecem afastar-se cada vez mais da terminologia
escolástica, ao reservarem o nome de qualidades para todas as propriedades redutíveis a
outras propriedades fundamentais, Locke seguiu uma tendência parecida, porém se
utilizando do vocabulário escolástico. Assim, no Ensaio sobre o Entendimento Humano
([1706] 1978), Locke introduz a célebre distinção entre qualidades primeiras ou
originais, isto é, qualidades dos corpos que são completamente inseparáveis deles, “e
tais que em todas as alterações e mudanças que o corpo sofre se mantém como é”.
Exemplos de qualidades primeiras: solidez, extensão, figura e mobilidade. Qualidades
218
segundas, isto é, qualidades que não se encontram, na verdade, nos próprios objetos,
mas que são possibilidades de produzir várias sensações em nós mediante as suas
qualidades primárias. Exemplos de qualidades segundas: cores, sons e gostos.
Assim, desde o Ensaio de Locke, se distingue as qualidades primeiras das
qualidades segundas. As primeiras, as quais adquirimos um conhecimento pelos
diferentes sentidos, são as características internas da coisa. Trata-se, com já vimos, da
figura, do contorno, do movimento e da solidez dos corpos. As segundas que, em
termos aristotélicos, procedem de um ato comum dos sentidos e do sentir, são
percebidas a cada vez por um único de nossos sentidos que recebe uma forte impressão;
por isso podemos dizer que são subjetivas. Trata-se, como já vimos, das cores, dos
sabores, dos odores, dos sons, do calor e do frio. Assim, pode-se sempre reduzir uma
delas à outra. Locke, por exemplo, se esforça por reduzir as segundas às primeiras.
Berkeley, ao contrário, se esforça por reduzir as primeiras às segundas. De uma certa
maneira, estamos diante do mesmo problema e da mesma polêmica entre realistas e
idealistas, apontada por Bergson.
Diante de tudo isso, poderíamos mapear as diferentes posições no seguinte
quadro:
1.Concebem-se as qualidades como únicas propriedades específicas das coisas
(Berkeley).
2. Conceberam-se as qualidades como propriedades das coisas, mas não como
propriedades únicas. Podem ser propriedades que modificam o objeto ou formas
acidentais (Aristóteles e muitos escolásticos)
3. Conceberam-se as qualidades como propriedades redutíveis a outra
propriedade ou a outra série de propriedades (mecanismos). As qualidades são então
subjetivas. Se se mantiver o nome “qualidade” também para as qualidades objetivas,
219
introduz-se então a citada distinção entre qualidades primeiras (objetivas) e qualidades
segundas (subjetivas).
4. Conceberam-se as qualidades como entidades irredutíveis. (Esquema baseado
nas obras: Marion 1993, Mora 1982).
Qual a posição de Bergson diante das relações entre qualidades primeiras e
qualidades segundas. Para Bergson, trata-se não mais de reduzir um dos dois termos ao
outro, mas de os identificar. A qualidade primeira é qualidade segunda e inversamente.
A imagem é “imagem-movimento” e o movimento “movimento-imagem”. “Para além
das condições da percepção natural, a descoberta da imagem-movimento foi a
prodigiosa invenção do primeiro capítulo de Matéria e Memória” (Deleuze 1983: 11).
Deleuze apresenta a relação entre movimento abstrato ou “movimento como corte
móvel” e movimento concreto ou “mudança qualitativa” sob a seguinte equação:
Cortes imóveis movimento como corte móvel
------------------- = ---------------------------------------
movimento mudança qualitativa
O corte imóvel é uma imagem fixa cortada a partir de um movimento. É esse
tipo de corte ao qual recorre Zenon para criar os seus famosos paradoxos, os quais
teremos oportunidade de desenvolvê-los mais à frente. O movimento ou movimento
como corte móvel é o movimento estudado nas ciências físicas (mecânica e cinemática).
Da mesma maneira que o corte imóvel é uma parte do movimento, o corte móvel é uma
parte do movimento como devir. Para melhor exemplificar, imaginemos um filme
capturado por uma câmera. Um fotograma desse filme corresponderia a um corte
imóvel do movimento filme. O filme seria então um corte móvel de um movimento
maior um Devir (por exemplo: o cinema como um todo, sua história, ou um tempo
maior).
220
Assim, o movimento não é mais considerado como deslocamento no espaço
homogêneo e infinitamente divisível. Devemos não pensar o movimento como
deslocamento de um móvel no espaço, mas como mudança, por exemplo: o movimento
de crescimento de um ser vivo. Se pensarmos o movimento apenas como deslocamento
espacial, a proposição “a imagem é imagem-movimento” torna-se incompreensível. No
Ensaio sobre os dados imediatos da consciência ([1889] 1993), Bergson criticou
fortemente a vontade de fazer deste espaço abstrato e homogêneo o fundamento da
totalidade do real. É esta concepção de movimento, como simplesmente deslocamento
espacial, que gerou os paradoxos de Zenon.
No século V a.C., Zenon de Eléia formulou célebres paradoxos (contradições
aparentes), os quais estão diretamente ligado à concepção de movimento como
deslocamente espacial. Um deles é “Aquiles e a Tartaruga”. Aquiles aposta uma corrida
com a tartaruga e é muito mais veloz que ela. A tartaruga parte antes, de modo que está
a uma distância d à frente, quando ele parte. Quando Aquiles atinge a distância d, a
tartaruga já terá percorrido uma distância adicional d1, e continuará à frente de Aquiles.
Quando Aquiles tiver percorrido d1, a tartaruga terá percorrido d2, e assim por diante. A
conclusão do paradoxo é que Aquiles nunca conseguia alcançar a tartaruga. Um outro
paradoxo é a “Flecha e o Alvo”. Um arqueiro atira uma flecha em direção ao alvo. A
flecha percorre uma certa distância do arco até o alvo em uma determinada quantidade
de tempo. Se dividirmos a distância, entre o arco e o alvo, ao meio, a flecha também
terá que percorrer esta distância em uma determinada quantidade de tempo. Se
dividirmos infinitamente, a flecha sempre terá que gastar uma quantidade de tempo para
percorrer um intervalo. Logo a flecha não sai do lugar.
Contra os filósofos que reduzem a extensão ao espaço homogêneo e desde então
indefinidamente divisível, Bergson afirma que a extensão na verdade é indivisível. Ela é
221
de fato imagem-movimento; ela possui a heterogeneidade qualitativa das imagens,
imagens que não podem ser divididas sem que sua qüididade, ou seja, virtude essencial,
não seja modificada. A extensão é real, precisamente porque ela é ao mesmo tempo
imagem-movimento, qualitativamente heterogênea e contínua. O movimento real,
distinto do movimento abstrato, pode então ser ao mesmo tempo qualidade primeira
(movimento) e qualidade segunda (imagem qualitativa). Assim temos uma primeira
máxima extraída dessa concepção bergsoniana: “O móvel é o corte longitudinal da
matéria imagem-movimento que é uma porção da extensão”.
“Os argumentos de Zenão de Eléia não têm outra origem senão essa ilusão.
Todas consistem em fazer coincidir o tempo e o movimento com a linha
que os subtende, em atribuir-lhes as mesmas subdivisões, enfim, em tratá-
los como linha. A essa confusão Zenão era encorajado pelo senso comum,
que transporta geralmente ao movimento as propriedades de sua trajetória, e
também pela linguagem, que traduz sempre em espaço o movimento e a
duração. Mas o senso comum e a linguagem estão aqui em seu direito, e
inclusive cumprem, de certo modo, seu dever, pois, considerando sempre o
devir como uma coisa utilizável, eles não têm por que se inquietar mais
com a organização interior do movimento do que o operário com a estrutura
molecular de suas ferramentas. Ao tomar o movimento por divisível com
sua trajetória, o senso comum exprime apenas os dois únicos fatos que
importam na vida prática: 1) que todo movimento descreveu um espaço; 2)
que em cada ponto desse espaço o móvel poderia se deter. Mas o filósofo
que reflete sobre a natureza íntima do movimento é obrigado a restituir-lhe
a mobilidade que é sua essência, e é isto que Zenão não o faz”. (Bergson
[1896] 1997: 225).
Para melhor esclarecer o que é o movimento concreto em Bergson, me apoio
nessa longa, porém muito explicativa, citação de Imagem-movimento de Deleuze:
“Vamos ver com o brilhante primeiro capítulo de Matéria e Memória.
Com efeito, encontramo-nos perante a exposição de um mundo em que
IMAGEM = MOVIMENTO. Chamamos Imagem o conjunto daquilo que
aparece. Podemos até dizer que uma imagem aja sobre outra ou reaja a uma
outra. Não há móbil que se distinga do movimento executado, não há
movido que se distinga do movimento recebido. Todas as coisas, isto é,
todas as imagens se confundem com as suas ações e reações: é a variação
universal. Cada imagem é apenas um ‘caminho’ sobre o qual passam todos
os sentidos as modificações que se propagam na imensidão do universo.
Todas as imagens agem sobre outras e reagem a outras, sobre ‘todas as
suas faces’ e ‘por todas as suas parte elementares’. ‘A verdade é que os
movimentos são muito claros enquanto imagens, e que não há razão de
procurar no movimento outra coisa senão o que se vê’. Um átomo é uma
imagem que vai até onde vão as suas ações e reações. O meu corpo é uma
222
imagem, logo, um conjunto de ações e de reações. A minha vista, o meu
cérebro são imagens, partes do meu corpo. Com é que o meu cérebro
contém as imagens, dado que é uma entre as outras? As imagens exteriores
agem sobre mim, transmitem-me movimento, e eu restituo movimento:
como é que as imagens estão na minha consciência, visto que eu próprio
sou uma imagem, isto é, movimento? E posso eu até, a este nível, falar de
mim, de vista, de cérebro e de corpo? É por simples comodidade, porque
nada se deixa identificar deste modo. Seria antes um estado gasoso. Eu, o
meu corpo, seria antes um conjunto de moléculas e de átomos
continuamente renovados. Posso falar de átomos? Eles não se distinguem
dos mundos, das influências interatómicas. É um estado demasiado quente
da matéria para que não se distinga dos corpos sólidos. É um mundo de
variação universal, ondulação universal, marulhar universal: não há eixos,
nem centro, nem direita nem esquerda, nem alto nem baixo…
Este conjunto infinito de todas as imagens constitui uma espécie de plano
de imanência. A imagem existe em si, sobre esse plano. Este em-si da
imagem, é a matéria: não algo que estaria escondido atrás da imagem, mas
pelo contrário, a identidade absoluta da imagem que nos faz concluir
imediatamente à identidade da imagem-movimento e da matéria. ‘Digam
que o meu corpo é matéria, ou digam que é imagem…’ A imagem-
movimento e a matéria-escorrimento são estreitamente a mesma coisa”.
(Deleuze 1981: 86-87).
Assim, para Bergson, a qualidade primeira é qualidade segunda. A qualidade
segunda é qualidade primeira. O movimento é imagem. A imagem é movimento.
Percepção da coisa e coisa percebida são imagens-movimento. A matéria é constituída
de imagens-movimento.
Traçamos então o que Deleuze chama de uma plano de consistência. A matéria é
para Bergson imagem-movimento. Porém uma objeção a essa concepção surge de
imediato. O movimento não é um absoluto, ele é sempre relativo a um determinado
ponto de vista adotado, movimento e repouso são pontos de vista. Bergson responde a
essa possível objeção. De fato, se tomarmos a tese bergsoniana da identidade do
movimento e da qualidade, seria suficiente dizer que uma mesma qualidade é, ao
mesmo tempo, movimento e repouso. Entretanto, uma tal afirmação, a princípio parece
contraditória. Então é preciso desenvolver melhor a questão.
De fato, todos reconhecem, inclusive Bergson, que uma parte da imagem, por
exemplo, um indivíduo sobre um barco, pode efetivamente ser considerada em
223
movimento em relação a uma outra parte, por exemplo um indivíduo na margem do rio
e, ao mesmo tempo, imóvel relativamente a uma outra imagem em movimento, por
exemplo um barco que segue em paralelo com mesma velocidade e aceleração.
Entretanto, para uso desse argumento necessitou-se invocar a mobilidade, então ela
permanece como fundamento da relatividade. Pode-se apenas reconhecer uma
relatividade das trajetórias descritas pelos móveis. Mas não se trata, novamente, de
movimento no sentido espacial, mas no sentido de mudança, qualitativa, ou seja, cujos
momentos não podem ser divididos sem mudar de qualidade. Segundo Bergson,
“Todo movimento é relativo para o geômetra: isto significa apenas, em
nossa opinião, que não há símbolo matemática capaz de exprimir que é o
móvel que se move e não os eixos ou os pontos aos quais está relacionada.
E é natural que seja assim, já que esses símbolos, sempre destinados a
medidas, só são capazes de exprimir distâncias. Mas que haja um
movimento real, ninguém pode contestar seriamente: caso contrário, nada
mudaria no universo, e sobretudo não se percebe o que significaria a
consciência que temos de nossos próprios movimentos”. (Bergson [1896]
1997: 217).
Notemos que Bergson não faz aqui verdadeiramente apelo à consciência para
desenvolver seu argumento. O argumento pode ser dividido em dois pontos,
encontrando todos dois seu recurso não nos dados da experiência, mas no princípio de
não contradição da lógica. O sentido óbvio do propósito de Bergson é mostrar que não
se pode afirmar, ao mesmo tempo, uma absoluta inexistência de movimento no ser em
sua totalidade e a existência de movimentos que existem ao menos numa localizada
região do ser, os organismos vivos. Isto seria contraditória. Não se pode, sem
contradição, extrair do real todos os móveis, afim de demonstrar que nenhum
movimento absoluto existe, ou que nada muda no universo. Mesmo que se diga que a
objeção não trata disso, isto é, que se afirma que a forma do movimento é relativa e não
que a matéria não contém absolutamente nenhuma mudança, trata-se novamente de
precisar o conceito de movimento. Para Bergson o movimento só tem sentido se
224
pensado como mudança, devir e não como deslocamento espacial. Lembremos que, para
Aristóteles, o movimento como deslocamento é apenas um dos tipos de movimento, o
que ele chama de “movimento local”. O paradigma de movimento para Aristóteles é o
crescimento de uma árvore, ou de um ser vivo. Assim, a objeção acima usaria o
“movimento local” como paradigma para todo tipo de movimento. Não poderíamos
então dizer que todas as formas de movimento são relativas. Existe um movimento que
é Devir, o qual é movimento em si.
Bergson usa frequentemente em seus argumentos a referência ao princípio de
não contradição
11
.
“Tal é, com efeito, a marcha regular do pensamento filosófico: partimos
daquilo que acreditamos ser a experiência, procuramos diversos arranjos
possíveis entre os fragmentos que a compõem aparentemente, e, diante da
fragilidade reconhecida de todas as nossas construções, acabamos por
renunciar a construir. – Mas haveria um último empreendimento a tentar.
Seria ir buscar a experiência em sua fonte, ou melhor, acima dessa virada
decisiva em que ela, infletindo-se no sentido de nossa utilidade, torna-se
propriamente experiência humana”. (Bergson [1896] 1997: 205).
Esta passagem manifesta de fato claramente o caráter não somente regulador do
princípio de não-contradição, mas também, por assim dizer, constitutivo do pensamento
de Bergson. O próprio método da intuição, tipicamente bergsoniano, apoia-se
integralmente no princípio de não-contradição. A intuição não é um sentimento de
inspiração, uma simpatia confusa, mas um método elaborado. Ele tem suas regras
estritas e precisas, que constituem o que Bergson chama “a precisão” em filosofia
(Deleuze 1998 a). Entretanto, devemos nos perguntar como a intuição, que é, antes de
11
Princípio da não-contradição (também conhecido como princípio da contradição), cujo enunciado é: “A
é A e é impossível que seja, ao mesmo tempo e na mesma relação, não-A”. Assim, é impossível que a
árvore que está diante de mim seja e não seja uma mangueira; que o cachorrinho de dona Filomena seja e
não seja branco; que o triângulo tenha e não tenha três lados e três ângulos; que o homem seja e não seja
mortal; que o vermelho seja e não seja vermelho, etc.
Sem o princípio da não-contradição, o princípio da identidade não poderia funcionar. O princípio da não-
contradição afirma que uma coisa ou uma idéia que se negam a si mesmas se autodestroem, desaparecem,
deixam de existir. Afirma, também, que as coisas e as idéias contraditórias são impensáveis e impossíveis
(Chauí 2000, Capítulo 1: A Razão, “os vários sentidos da palavra razão).
225
tudo, um conhecimento imediato, pode formar um método, uma vez que ele implica em
uma ou mais mediações? Bergson apresenta a intuição como um ato simples. Mas esta
simplicidade não exclui uma multiplicidade qualitativa e virtual em diversas direções as
quais ele se atualiza. A intuição implica percorrer uma multiplicidade de vias. Como
pensar o movimento sem desenvolver um pensamento movente? Para tornar um objeto
de pensamento, ou um conceito um ato simples da intuição é necessário uma série de
análises que o separem de mistos confusos. Um dos procedimentos é separar falsos
problemas, dos verdadeiros problemas. Nesse sentido, a divisão entre movimento,
qualidade primeira e repouso, qualidade segunda, dado que pode ser percebido por
alguém em determinadas circunstâncias, é um falso problema. Isto porque, qualidade
primeira é igual a qualidade segunda, ou seja, o repouso é uma forma especial de
movimento, um movimento infinitamente pequeno, ou não percebido pelo observador,
dado que sua percepção é voltada para o mundo prática e neste interessa percebê-lo
como repouso. De qualquer forma, o que fundamenta a intuição bergsoniana é o
princípio de não-contradição, pois se atinge à intuição após o pensamento proceder a
uma marcha de limpeza dos clichês.
Assim, é necessário colocar em questão a distinção entre qualidades primeiras e
qualidades segundas. Também é necessário repensar a percepção, afirmar que ela é
imagem, isto é, imagem entre as imagens, imagem-movimento em relação com todas as
imagens-movimento, de tal forma que: “todas essas imagens agem e reagem umas sobre
as outras em todas as suas partes elementares segundo leis constantes […]” (Bergson
[1896] 1997: 11).
A mudança não pode verdadeiramente ser compreendida em sua materialidade
senão com a condição de não se separar dos moventes, os quais se renovam do ponto de
vista da totalidade em permanente mudança. Essa totalidade é qualitativamente
226
diferenciada. Permanece então que as partes não devem ser rompidas. As imagens-
movimento devem sempre ser compreendidas como parte de uma totalidade mais vasta
que as engloba. Quando se diz que a percepção é alguma coisa, deve-se entender como
a percepção sendo uma parte da imagem total, da qual também a coisa percebida é
parte. Coisa e percepção são as partes distintas no interior de um mesmo todo. É por
esse fato que se explica a diferença e a união entre coisa e percepção. São diferentes por
serem partes distintas. Podem se unir por pertencerem ao mesmo todo. Se, por exemplo,
eu percebo a cor de um objeto, é porque os raios luminosos tocaram minha retina e são
transmitidos ao centro cerebral. O movimento que vai do objeto ao cérebro é uma
imagem. Uma parte dessa imagem, que é o todo, esta situada no território da imagem-
objeto, a outra parte que chamamos percepção está situada na imagem-cérebro. A
imagem-objeto e a imagem-cérebro estão distantes no espaço e no tempo, quando do
acontecimento da percepção. Isto é o que faz a diferença entre objeto e percepção.
Entretanto tanto a imagem-objeto como a imagem-cérebro pertencem a uma mesma
imagem total, ou seja, os movimentos que vão da imagem-objeto até a imagem-cérebro.
Isto é o que faz com que objeto e percepção estejam unidos.
Realistas e idealistas, para explicar a diferença e união da percepção e da coisa,
partem primeiro de sua diferença, para em seguida explicar a união. A união somente
pode ser explicada reduzindo um dos termos, coisa ou percepção, à uma ilusão. A
percepção torna-se para o realista um ilusório epifenômeno dos movimentos cerebrais.
As coisas tornam-se para o idealista ilusória crença nascida das exigências pragmáticas.
Bergson, ao contrário, parte, desde sempre, da união entre a percepção e a coisa,
uma e outra são imagens-movimento. A diferença consiste em que a percepção,
imagem-percepção, é uma parte distinta da outra parte que é o objeto, imagem-objeto.
227
Ambos são partes da mesma imagem-movimento, porém partes que possuem uma
distância espacial e temporal quando do movimento no acontecimento percepção.
Existem as imagens, existe o movimento, existem as “imagens-movimento”. O
cérebro é uma imagem-movimento, a coisa é uma imagem-movimento. As duas estão
distantes quando acontece uma percepção e, a partir dai, percepção e coisa entram em
relação. Este movimento que as relaciona é a imagem. Existe então percepção quando
percepção e coisa entram em contato por meio de uma única e mesma imagem-
movimento (vibração).
A Percepção Segundo uma Perspectiva
Se a distância foi suficiente para explicar a diferença entre percepção e coisa, já
não parece suficiente para explicar a diferença entre fenômeno e coisa em si. Logo nas
primeiras páginas de Matéria e Memória, Bergson, após ter estabelecido que a realidade
é imagem, ele declara que, entre todas essas imagens que;
“Agem e reagem umas sobre as outras em todas as suas partes elementares
segundo leis constantes, que chamo leis da natureza, e, como a ciência
perfeita dessas leis permitiria certamente calcular e prever o que se passará
em cada uma de tais imagens, o futuro das imagens deve estar contido em
seu presente e a elas nada acrescentar de novo. No entanto há uma que
prevalece sobre as demais na medida em que a conheço não apenas de fora,
mediante percepções, mas também de dentro, mediante afecções: é meu
corpo” (Bergson [1896] 1997: 11).
Ora, já que sou dado somente aquilo que existe, a saber, as imagens, não me é
possível avançar no estudo do corpo vivo senão observando sua imagem, imagem que é
uma parte da imagem total, no caso da percepção, da imagem que vai da coisa ao meu
corpo. Percebo a diferença e a singularidade de meu corpo devido a imagem-afecção,
que é uma parte da imagem total. Na imagem-afecção, percebo “movimentos
228
começados, mas não executados, a indicação de uma decisão mais ou menos útil, mas
não a coerção que exclui a escolha” (Bergson [1896] 1997: 12). Dito de outra forma,
percebo, na imagem total, um movimento que parte do objeto e, uma vez no meu corpo,
se suspende, experimenta eventualmente numerosas direções, sem imediatamente se
decidir em favor de nenhuma delas. Nesta imagem total, o movimento que se prolonga
no espaço entre as imagens é interrompido na parte da imagem que é meu corpo,
tomando nova direção, inabitual. Os movimentos dos quais meu corpo não participa têm
a regularidade das leis científicas. Porém quando o movimento atinge meu corpo, essa
regularidade se interrompe produzindo algo novo.
“Portanto, ou todas as aparências são enganosas, ou o ato em que resulta o
estado afetivo não é daqueles que poderiam rigorosamente ser deduzidos
dos fenômenos anteriores como um movimento de um movimento, e com
isso ele acrescenta verdadeiramente algo de novo ao universo e à sua
história”. (Bergson [1896] 1997: 12).
Temos então uma diferença imanente às imagens-movimento, diferença que se
expressa em duas modalidades de movimentos:
1. Aquelas que obedecem às leis da natureza.
2. Aquelas que, rompendo com as leis da natureza, introduzem sua novidade no
cerne das próprias imagens-movimento.
“Estudo agora, em corpos semelhantes ao meu, a configuração dessa imagem
particular que chamo meu corpo” (Bergson [1896] 1997: 13). Deste estudo, poder-se-ia
deduzir a maneira pela qual uma percepção pode ser percepção de alguma coisa
segundo uma perspectiva.
O que vemos em corpos semelhantes ao nosso? Eles apresentam um sistema
centrado, já que é constituído, de uma parte, de centros nervosos, como o cérebro, e, de
outra parte, de um envoltório. A zona intermediária é estriada de nervos que, por
vibrações, conduzem os movimentos de um sentido ao outro. Um movimento
229
permanece sempre sendo um movimento. Porém, poder-se-ia os distinguir segundo a
direção que eles seguem. Existe então primeiro um movimento centrípeto que parte da
periferia em direção ao centros nervosos. As imagens exteriores influem sobre meu
corpo ao lhe transmitir o movimento. Elas produzem vibrações que são transmitidas
pelos nervos aferentes cuja direção se dá da periferia de meu corpo aos centros
nervosos. São esses movimentos centrípetos que, segundo os realistas, engendram as
representações do mundo exterior. Como sabemos, para Bergson isso é um equívoco.
Não existem (re)apresentação das coisas. A percepção é a coisa, pois ambas fazem parte
do mesmo movimento e são o mesmo movimento. Existem também o movimento
centrífugo que parte do centro nervoso em direção à periferia. Os nervos eferentes
conduzem as vibrações do centro em direção à periferia, permitindo assim mover uma
parte do corpo ou o corpo inteiro. Este movimento do corpo influenciará sobre as
imagens exteriores lhes restituindo movimento. São os movimentos de ação.
Pode-se igualmente observar as afecções, as quais se intercalam entre os dois
movimentos, ou seja, entre os movimentos recebidos e os movimentos executados pelo
corpo. A afecção é sempre sofrida, recebida, experimentada. Nisto ela se diferencia da
percepção, a qual eu posso orientar ou modificar. Mas, a afecção não é somente puro
afeto, sua função é ser motor ou freio da ação. Vimos que podemos observar na
imagem-afecção a suspensão e a bifurcação dos movimentos aferentes. Nisto, ela já é a
marca da liberdade de uma ação esclarecida pela percepção. A afecção está sempre
situada no intervalo entre a percepção e a ação, “entre uma percepção perturbadora a
certo respeito e uma ação hesitante” (Deleuze 1983: 96). Existem duas formas de
expressão da afecção. Uma forma é cerebral, assinala a liberdade de nossas ações, a
outra é corporal, assinala a necessidade de ação que organismo vivo possui.
230
Na imagem total, podemos observar três momentos: movimentos centrípetos,
movimentos centrífugos e a suspensão de movimento. Entretanto, não observamos, até
o momento, nada comparável à uma consciência. Ela será derivada do processo da
imagem-afecção. A consciência é uma imagem-movimento acompanhada da imagem-
afecção, a qual é produzida no momento em que existe uma suspensão do movimento
no corpo. Assim, a consciência é o produto do intervalo que surge entre a percepção e a
resposta corporal. Poder-se-ia então dizer que a consciência é a testemunha da ação e da
liberdade do corpo, mas somente no sentido que ela acompanha: “todas as iniciativas
que julgo tomar, que ela se eclipsa e desaparece, ao contrário, a partir do momento em
que minha atividade, tornando-se automática, declara não ter mais necessidade dela”
(Bergson [1896] 1997: 12). Nossas ações, respostas corporais aos estímulos nas partes
das imagens-movimento, dividem-se em ações imediatas, repostas corporais
automáticas (memória-corporal) e ações providas de consciência, respostas corporais
nascidas após um certo intervalo de tempo. Quando maior esse intervalo de tempo,
maior a intensidade da consciência.
O cérebro, imagem parcial da imagem-corpo, é o centro do sistema global. Ele
tem, diz Bergson, a capacidade de orientar e de frear o movimento oriundo do estímulo
recebido e, nisto, ele é o órgão da escolha. Meu corpo, enquanto dotado de um cérebro,
é também dotado da capacidade para efetuar escolhas. Nisto ele se distingue do restante
das imagens-movimento, já que estas são regidas pelas leis da Natureza. O corpo, que
também é uma imagem-movimento, possui entretanto um diferencial. Ele não reage da
mesma forma que o restante das imagens-movimento. Nele existe a possibilidade de um
intervalo entre o estímulo e a resposta, intervalo que possibilita que a resposta seja algo
novo, fora dos padrões de ação e reação presentes na natureza. O corpo, insistamos,
pertence à natureza, ele é uma imagem-movimento, isto é, uma imagem na qual são
231
veiculadas as imagens-movimento parciais. A única diferença do corpo em relação às
imagens-movimento é sua particularidade em produzir uma modalidade de ação. Mas,
basta a Bergson, essa pequena diferença para introduzir uma série de explicações e,
principalmente, introduzir e conceituar a liberdade
12
.
Temos então duas modalidades de ação, uma regrada pelas leis da natureza, a
outra, produzida pelo corpo, a qual traz a marca da novidade.
Interessante observar que para Bergson, o cérebro é responsável por atividades
práticas. Ele permite ações livres, porém elas são uma modalidade de ação pragmática.
Ora, usualmente, a filosofia atribui ao cérebro a função teórica.
Quando observamos uma imagem-cérebro encontramos apenas movimentos.
Não encontraremos nada parecido com as coisas percebidas ou algum tipo de qualidade.
Como bem notou Thomas Nagel (1995):
“Se um cientista cortar vosso crânio e observar no interior dele enquanto
você se delicia com uma barra de chocolate, tudo o que ele verá, é uma
massa cinzenta de neurônios. Se ele se servir de instrumentos para medir o
que se passa em seu cérebro detectará diferentes espécies de processos
físicos extremamente complexos. Mas, conseguirá encontrar o gosto do
chocolate? […] Não é somente pelo fato de o gosto do chocolate ser um
sabor que, consequentemente, não pode ser visto. Suponhamos que um
cientista seja tão louco para tentar observar vossa experiência do gosto do
chocolate […] Ele não teria conseguido penetrar em vosso espírito e
observar vossa experiência do gosto do chocolate, ou seja vossa percepção
gustativa do chocolate”. (Nagel 1995: 30).
Quando comemos chocolate, por exemplo, a experiência tem uma certa
qualidade, um conjunto de propriedades que são a maneiro como sentimos e
saboreamos o chocolate. Todos nós temos, aparentemente, um conhecimento em
primeira-mão, imediato e direto da rica fenomenologia das cores, sons, sabores, aromas
12
A este propósito ver: Worms, F. (1997). Introduction à Matière et mémoire de Bergson. Paris, PUF.
Parece-nos, que a liberdade bergsoniana será retomada e radicalizada por Foucault. A resistência
biopolítica ao biopoder é essa abertura da liberdade. Assim, quanto maior o intervalo da resposta, maior a
possibilidade de produzir o novo, a arte na existência.
232
e sensações táteis que enriquecem nossas experiências – as qualia
13
. Todos esses
elementos constituem um modo específico de ser para cada indivíduo; eles determinam,
de acordo com a famosa frase de Thomas Nagel, como é ser aquele indivíduo. O
problema é que tais experiências parecem se perder quando adotamos a perspectiva da
terceira pessoa, que é tipicamente a perspectiva científica. Podemos abrir o cérebro de
alguém que, no momento, come uma barra de chocolate, e descobrir que quando se
saboreia o chocolate certas partes do cérebro são ativadas e outras não; podemos
descobrir imensas coisas da perspectiva da terceira pessoa, mas nunca saberemos o que
é saborear chocolate se não o tivermos saboreado nós mesmos. Assim, do ponto de vista
epistemológico existem duas formas de enunciados. Enunciados objetivos, formulados
em terceira pessoa e que descrevem estados de coisa independentes do sujeito que os
enunciam. Enunciados subjetivos, os quais expressam estados subjetivos de qualidades,
como preferências e experiências. John Searle assim descreve estas formas de
enunciação:
“Algumas entidades, montanhas por exemplo, têm uma existência que é
objetiva no sentido de que não dependem de ser sentidas por um sujeito.
Outras, a dor por exemplo, são subjetivas no sentido em que sua existência
depende de ser sentida por um sujeito. Têm uma ontologia subjetiva ou na
primeira pessoa”. (Searle 1998:79).
Esse conhecimento afetivo em primeira pessoa, que a imagem-movimento
produz no cérebro quando do intervalo da resposta, em termos bergsonianos, é a
consciência e as qualia.
No cérebro, então, encontram-se apenas imagens-movimento. Também podemos
assinalar que, quer se trata de uma simples ameba ou de uma mosca ou ainda do
13
Qualia (plural de quale) é o nome que se dá na filosofia da mente para o aspecto qualitativo das nossas
experiências. Como, por exemplo, experenciar o azul, ter a sensação de ouvir uma música, o odor que
uma rosa, sentir dor em seu pé esquerdo, ter ódio de alguém, etc. Nagel se pergunta, como é ser um
morcego? Podemos estudá-lo, conhecer todas suas reações e o porquê dessas reações, porém jamais
poderemos saber com se sente um morcego, jamais poderemos sentir como é ver pelos ouvidos.
233
automatismo puro que tem sua sede no cérebro dos vertebrados superiores, o estímulo
nos seres vivos é sempre traduzido por uma reação. Nesta ação reflexa, “o movimento
centrípeto comunicado pela excitação reflete-se imediatamente, por intermédio das
células nervosas da medula, num movimento centrífugo que determina uma contração
muscular” (Bergson [1896] 1997: 25). Entretanto, o mesmo não ocorre exatamente nos
vertebrados superiores, nos quais a excitação ou estímulo recebido não se prolonga
necessariamente em movimento executado. Neste caso:
“O estímulo periférico, em vez de propagar-se diretamente para a célula
motora da medula e de imprimir ao músculo uma contração necessária,
remonta em primeiro lugar ao encéfalo, tornando depois a descer para as
mesmas células motoras da medula que intervêm no movimento reflexo”.
(Bergson [1896] 1997: 25).
Por este caminho, desta vez, especificamente cerebral, o estímulo nervoso não
tem, portanto, o poder, na substância cerebral, de se transformar em representação das
coisas. O estímulo não é de forma alguma espiritualizado em conhecimento. O cérebro,
com certeza, é de imensa complexidade. Muitos mistérios estão aí escondidos. Mas a
transformação de um movimento numa outra coisa, por exemplo, uma percepção de
natureza substancial diferente, não poderia ser pensado sem contradição, dado que a
transubstancialidade é geralmente considerada um privilégio apenas de Deus. Se
admitirmos isso, teríamos de pensar numa permanente intervenção divina quando de
nossos movimentos cerebrais
14
.
Ou seja, em termos bergsonianos, a percepção engendrada por um movimento, é
também um movimento e não uma representação desse movimento.
As configurações motoras do cérebro permitem, segundo Bergson, aos estímulos
recebidos ganharem, por uma pluralidade de possibilidades de vias percorridas, efeitos
14
É exatamente esta a tese de Malebranche ([1675] 2001), na qual todos os movimentos que se efetuam
entre os corpos e entre a alma e o corpo, além dos movimentos internos da alma, teriam em Deus sua
causa eficiente.
234
variados, segundo a rota tomada. Uma suspensão da resposta ao estímulo então se
processa momentaneamente até que uma escolha aconteça. Várias tentativas são
processadas por vários caminhos, sendo a mais convincente, para a memória corporal, a
escolhida e, assim, torna-se ação efetiva. Esta variedade de caminhos possíveis constitui
o cérebro enquanto instrumento de análise, variáveis de indeterminação e órgão de
escolha. A atividade cerebral é mediadora; ela conduz os estímulos recebidos para as
funções executoras do sistema nervoso, mas a estrutura do cérebro permanece material e
a única coisa que a diferencia da medula espinhal, ou do sistema nervoso, é sua
capacidade de executar escolhas. A exclusiva função do cérebro permite então a
Bergson de comparar este último a uma central telefônica, cujo papel se limita a efetuar
a comunicação sem nada acrescentar ao que recebe. Portanto não existe nenhum
epifenômeno criando representações no cérebro. Bergson adota a posição geral da
filosofia da ciência contemporânea que compreende a matéria como sistema
homogêneo.
“O cérebro não deve portanto ser outra coisa, em nossa opinião, que não
uma espécie de central telefônica: seu papel é ‘efetuar comunicação’, ou
fazê-la aguardar. Ele não acrescenta nada àquilo que recebe; mas, como
todos os órgãos perceptivos lhe enviam seus últimos prolongamentos, e
todos os mecanismos motores da medula e do bulbo raquidiano têm aí seus
representantes titulares, ele constitui efetivamente um centro, onde a
excitação periférica põe-se em contato com este ou aquele mecanismo
motor, escolhido e mais imposto […] O cérebro nos parece um instrumento
de análise com relação ao movimento recolhido e um instrumento de
seleção com relação ao movimento executado”. (Bergson [1896] 1997: 26-
27).
O cérebro então, cujo papel está relacionada à exterioridade das outras imagens,
não tem outro conteúdo senão os movimentos. Então, não é possível transformar os
movimentos aferentes em representações. Não existe potência capaz de transformar
movimentos físicos em representações não físicas.
235
A conclusão inicial de Bergson a respeito do corpo é de que se trata de um órgão
de ação.
A observação da imagem-corpo nos permitiu perceber somente um centro
nervoso e sua periferia, os movimentos recebidos e reenviados entre os quais se
intercalam as afecções, e uma consciência, mas que não é entretanto senão o signo de
uma suspensão temporária dos movimentos. Nesse sistema, temos somente imagens-
movimento em geral e uma imagem-movimento em particular, o corpo, cuja diferença
se situa apenas pela possibilidade de suspender os efeitos de ação e reação.
Quando temos dois compostos na relação de ação e reação, somente uma parte
desses compostos entra em interação.
“O ácido clorídrico age sempre da mesma maneira sobre o carbonato de
cálcio – seja o mármore ou o cré –, dir-se-á que o ácido distingue entre as
espécies os traços característicos de um gênero? Ora, não há diferença
essencial entre a operação pela qual este ácido obtém do sal sua base e o ato
da planta que extai invariavelmente dos solos mais diversos os mesmos
elementos que irão lhe servir de alimento”. (Bergson [1896] 1997: 177).
Nas coisas, a ação está submetida às leis do universo, necessariamente
estabelecidas; por exemplo em química nem o ácido clorídrico, nem o carbonato de cal
não contém em seu cerne o meio de suspender o movimento de transformação que se
desencadeio quando ambos entram em contato. Diferentemente, no caso de uma
interação entre uma coisa e um corpo vivo, como um vertebrado superior, uma parte da
coisa age sobre o corpo que, entretanto, tem a capacidade de suspender o movimento
recebido. Esta capacidade é devido a singularidade de uma parte desse corpo vivo: o
cérebro. A suspensão do movimento é então a relação que o corpo vivo dos vertebrados
superiores tem com o ambiente. Essa interação especial é causa então de um intervalo,
um retardo, entre o estímulo e a resposta. Assim, junto à distância espacial na qual
localizamos a diferença entre a coisa e a percepção da coisa, devemos acrescentar agora
também um retardo temporal. Bergson ([1896] 1997) dirá que essa distinção temporal é
236
o corolário da diferença espacial entre coisa e corpo. É a distinção temporal a evidência
maior da diferença entre coisa e corpo, já que a diferença espacial, na maior parte dos
casos, acontece numa imediaticidade como a atração gravitacional entre os corpos.
Assim, Bergson afirma que “a percepção dispõe do espaço na extra proporção em que a
ação dispõe do tempo” (Bergson [1896] 1997: 29).
Bergson estabelecerá a diferença entre espaço e tempo na relação entre uma
coisa e um corpo pela diferença entre modalidades sensitivas.
“Em uma palavra, quanto mais imediata deve ser a reação, tanto mais é
preciso que a percepção se assemelhe a um simples contato, e o processo
completo de percepção e de reação mal se distingue então do impulso
mecânico seguido de um movimento necessário”. (Bergson 1896] 1997:
28).
Em outros termos, uma parte da imagem-coisa é suscetível de ter uma ação tátil
sobre meu corpo. Quando a percepção da coisa acontece primordialmente de forma tátil,
a resposta corporal é quase imediata. Quando a percepção da coisa acontece por outros
sentidos diferentes do tato, entre estímulo e resposta poderá acontecer um intervalo. A
reação futura do corpo dependerá desta ação ser interpretada
15
como ameaça ou
promessa. Assim, o movimento motor é da ordem tátil. Se o movimento é de odores, já
é tátil, ele se prolonga num movimento que lhe é homogêneo, ou seja, motor. A
percepção tátil é então tanto percepção do corpo como percepção de uma coisa. Trata-se
de uma afecção, no sentido definido por Bergson:
“Num organismo como o nosso, as fibras ditas sensitivas são
exclusivamente encarregadas de transmitir excitações a uma região central
de onde o estímulo se propagará por elementos motores, Parece portanto
que elas renunciaram à ação individual para contribuir, na qualidade de
sentinelas avançadas, às evoluções do corpo inteiro. Mas ainda assim
permanecem expostas, isoladamente, às mesmas causas de destruição que
ameaçam o organismo em seu conjunto: e, enquanto esse organismo tem a
faculdade de se mover para escapar ao perigo ou para reparar suas perdas, o
elemento sensitivo conserva a imobilidade relativa à qual a divisão do
trabalho o condena. Assim nasce a dor, que não é, para nós, senão um
15
Evidentemente que trata-se de uma interpretação de natureza biológica (instinto de sobrevivência), não
ocorrendo nenhum tipo de mediação cultural ou intelectual.
237
esforço do elemento lesado para repor as coisas no lugar – uma espécie de
tendência motora sobre um nervo sensitivo”. (Bergson [1896] 1997: 56).
É essa homogeneidade entre movimento aferente e movimento eferente que está
no princípio da continuidade e imediaticidade da ação-reação. A gravitação se efetua
imediatamente mesmo em grandes distâncias; mas a causa é homogênea ao efeito, a
relação de causalidade pode ser considerada nos dois sentidos, ela é reversível. Esse é o
efeito tátil do mundo sobre meu corpo. Entretanto, esse modo de apreensão não é o
único que nosso corpo dispõe. Existem, aquelas ações que acontecem após um intervalo
entre ela e o estímulo. Na apreensão tátil, esse intervalo não existe, temos uma
imediaticidade, como a da atração gravitacional. Se existem diferentes modalidades
sensitivas, existem heterogêneos modos de apreensão. Os heterogêneos modos de
apreensão referem-se a distinção entre duas modalidades de ação: uma necessária e a
outra livre. Esta possibilidade de distinção reside na diferença temporal entre
movimentos aferentes e movimentos eferentes de nosso corpo, em outros termos, entre
o estímulo e a resposta. O fundamento do intervalo temporal entre estímulo e resposta
reside em duas diferentes modalidades de apreensão. Em termos bergsonianos: a
diferença interna nos movimentos eferentes se funda numa diferença externa nos
movimentos aferentes.
Quando percebemos alguma coisa, percebemos apenas parte dessa coisa, a
percepção é sempre percepção de uma parte da totalidade da imagem-coisa. A parte que
percebemos é aquela mais imediata e próxima. Neste sentido podemos dizer que toda
percepção é percepção de alguma coisa segundo uma perspectiva. Também, a partir dai,
podemos estabelecer uma distinção entre fenômeno e coisa-em-si, na qual percepção é
uma parte da imagem-coisa total e a coisa-em-si é a imagem-coisa total.
238
Toda percepção é para Bergson ação; ação de um ser livre que retira da coisa
uma parte da imagem. Uma aparência, ou fenômeno, é somente uma parte da coisa-em-
si. Compreende-se então que isto que me aparece e isto que me aparece estão ao mesmo
tempo unidos e distintos. Unidos porque é a própria coisa que me aparece, diferentes
porque é uma parte da coisa que me aparece.
Diante disso, Bergson só pode concluir que, se a aparência é uma perspectiva
parcial sobre a coisa, ela não pode ser enganosa. Entretanto, uma objeção pode ser feita
a Bergson. É necessário admitir que, pelo menos às vezes, nos enganos em nossa
percepção. Além disso, é preciso explicar a relação entre percepção e o sistema, ou
enunciados, científicos. Afinal, a ciência se efetua também por meio de uma percepção.
A Percepção Segundo uma Perspectiva Variável
Como vimos, segundo Bergson, a coisa percebida e o corpo perceptor são
espacialmente distintos. O corpo visa sempre uma parte da imagem-coisa total. Esta
parte percebida pode ser interpretada pelo corpo vivo como ameaça ou promessa. A
percepção dessa diferença somente é possível devido a presença, no ser vivo superior,
de um retardo entre estímulo e resposta. A percepção é interpretada como ameaçadora
enquanto existe o risco do corpo perder sua integridade, já que a sobrevivência é o
esforço de preservar seu ser íntegro. A percepção será interpretada como promessa se
despertar a esperança de satisfazer uma necessidade do corpo. Trata-se então, no caso
da promessa, de um esforço para reduzir a alteridade externa. No caso da ameaça, de um
esforço para proteger a identidade interna contra a alteridade externa. A necessidade é
sempre atual, mas sua satisfação permanece virtual. A necessidade age então como uma
pressão que a partir da percepção se estende no intervalo e na escolha da ação que a
239
satisfará. Ora, é a necessidade que preside e determina a parte percebida pelo corpo, ou
seja, ela recorta na imagem-total a parte que lhe convém. Assim, a percepção é uma
dimensão pragmática, é fruto da necessidade do corpo vivo. Ela é simplesmente o
movimento das imagens exteriores atingindo os órgãos dos sentidos, modificando os
nervos, propagando sua influência no cérebro. O movimento irá atravessar a substância
cerebral, não sem ter aí permanecido, e se manifestará então em ação voluntária.
Segundo Bergson, este é o mecanismo da percepção:
“As imagens exteriores atingindo os órgãos dos sentidos, modificando os
nervos, propagando sua influência no cérebro. Prossiga até o fim. O
movimento irá atravessar a substância cerebral, não sem ter aí permanecido,
e se manifestará então em ação voluntária. Eis aí todo o mecanismo da
percepção”. (Bergson [1896] 1997: 38).
Assim, Bergson contesta o postulado de uma identificação da percepção com
uma atividade teórica. A redução da percepção à questão da ação é um esforço por
manter a realidade homogênea. O postulado que identifica percepção como atividade
teórica: “é desmentido pelo exame, mesmo o mais superficial, da estrutura do sistema
nervoso na série animal. Não se poderia aceitá-lo sem obscurecer profundamente o
tríplice problema da matéria, da consciência e de sua relação” (Bergson [1896] 1997:
24).
Bergson esforça-se em mostrar que no processo evolutivo desde a ameba até o
vertebrado superior existe continuidade. A emergência de novas propriedades não é
funções de naturezas diferentes, mas diversificação de uma mesma função vital. A
percepção é, antes de tudo, uma ação subordinada à função motora dos seres vivos,
manifestando suas necessidades corporais. A percepção é sempre percepção de parte da
imagem-total que poderia satisfazer uma necessidade.
Existe uma relação entre a caracterização do objeto percebido de Bergson e a de
Heidegger. Para Heidegger, o momento fundamental apriorístico do existente humano é
240
o estar-no-mundo. Esse momento fundamental é contraposto ao solipsismo metódico de
Descartes que aceita como dado imediato apenas a consciência certa do seu próprio ser.
Em Heidegger o ser-em ou ser-dentro significa, não o estar presente de uma coisa
dentro de outra, como por exemplo o corpo dentro do mundo, mas sim o íntimo
demorar-se junto de alguma coisa, o morar-em. O homem mora dentro do mundo que
lhe é familiar, e está, desde sempre, imediatamente no mundo, sem para isso ter a
necessidade de atravessar os limites de uma consciência coisificada teoricamente. Estar
no mundo é ter-que-fazer algo, recolocar algo, empregar algo, empreender algo, ou seja,
modalidades de ordem pragmáticas. O mundo consiste num cosmo de coisas naturais no
qual, antes de mais nada, o que é dado não são coisas presentes, mas sim utensílios.
Assim, qualquer disposição teorética pressupõe um velamento da posição de estar-no-
mundo, em benefício de uma postura do “olhar”
16
, e desse modo o teórico acredita,
erroneamente, que aquilo que se mostra em primeiro lugar seja as coisas que ele
contempla “em presença” (Heidegger [1927] 1985). Por isso a crítica de Heidegger à
metafísica tradicional, que por “existente” compreende naturalmente “presença”
(Dreyfus 1993). Somente, segundo Heidegger, a partir de uma representação artificial e
teórica que se pode obter a visão do mundo como um conjunto mecanicamente
conectado de coisas. O utensílio que a existência humana manipula é, antes de mais
nada, algo que não aparece à vista; o mundo circundante, correspondente a este
utensílio, continua oculto em seu caráter universal. Este último, da mesma forma, não é
descoberto por meio de um conhecimento teórico, mas na medida da falta do utensílio
necessário (Heidegger [1927] 1985: 72). O utensílio não é somente o objeto
16
“Por conseguinte, imagem do mundo, entendida essencialmente, não significa uma imagem do mundo,
mas o mundo compreendido como imagem. A totalidade do existente é tomada agora de maneira que o
existente começa a ser e somente é se for colocado pelo homem que representa e elabora. Quando se
chega à imagem do mundo, realiza-se uma decisão essencial sobre a totalidade do existente. O ser do
existente é buscado e encontrado na condição de representado do existente” (Heidegger [1938] 1996: 80).
241
manufaturado, concebido e produzido para servir. Todas as coisas, segundo Heidegger,
pertencem a esta modalidade. Entendemos por manuais todos os entes que se
manifestam desde a ocupação, ou daquilo que podemos tratar como paradigma do uso.
Daí um manual pode ser um utensílio (Zeug), um instrumento, uma ferramenta
(Werkzeug) ou o que quer que se manifeste como passível de manuseio. Por manuseio
não se entenda, aqui, apenas o uso restrito à motricidade do órgão mão, mas a
possibilidade de apropriação do utensílio, seja ele qual for, em um registro de uso. Daí,
não só a mesa e a caneta, mas uma casa, uma igreja, as lápides de um cemitério, são
manuais na medida em que são utilizados pelo ser-no-mundo em um certo contexto de
uso e significado (Heidegger [1938] 1996: 121).
Trata-se então da relação de interesse do sujeito perceptor que constitui a coisa
como “estar-a-mão”, isto é, como fenômeno suscetível de ser percebido. Assim, a
despeito das enormes diferenças, temos aqui a mesma tese defendida tanto por Bergson
como por Heidegger: toda percepção é sempre percepção de utensílios.
Entretanto, entre os dois filósofos, entre as inúmeras diferenças, uma é
importante para nós. A fenomenologia de Heidegger deduz a forma do sujeito perceptor
(Dasein) a partir da forma da percepção; já a fenomenologia de Bergson deduz, ao
contrário, a estrutura da percepção a partir da estrutura do sujeito perceptor, que é corpo
vivo. Entretanto, no segundo capítulo de Matéria e Memória consagrado notadamente
às relações entre memória e percepção, Bergson privilegia a estrutura utensiliar da
percepção para daí deduzir as modalidades próprias ao sujeito que rememora:
“Reconhecer um objeto usual consiste sobretudo em saber servir-se dele.
Isso é tão verdadeiro que os primeiros observadores deram o nome de
apraxia a essa doença do reconhecimento que chamamos cegueira psíquica.
Mas saber servir-se dele é já esboçar os movimentos que se adaptam a ele, é
tomar uma certa atitude ou pelo menos tender a isso em função daquilo que
os alemães chamaram “impulsos motores” (Bewegungsantriebe). O hábito
de utilizar o objeto acabou portanto por organizar ao mesmo tempo
movimentos e percepções, e a consciência desses movimentos nascentes,
242
que acompanhariam a percepção à maneira de um reflexo, estaria, aqui,
também, na base do reconhecimento”. (Bergson [1896] 1997: 100).
Assim, a duas formas, heideggeriana e bergsoniana, de visar a relação entre
coisa e percepção se complementam. Elas confirmam a tese do caráter pragmático da
percepção.
Abro os olhos, um mundo me é dado. Fecho os olhos, ele desaparece. Abro os
olhos e vejo uma fruta vermelha em minha mão. Corto a fruta e uma superfície branca
aparece. Seguro um cubo colorido em minhas mãos. Observo uma face azul, viro o
cubo, e o azul é substituído por uma face vermelha. Toda percepção é percepção
segundo uma perspectiva. Perspectiva iminentemente variável. Fecho os olhos, minha
percepção do mundo desapareceu sem que contudo o mundo deixe de desaparecer.
Basta abrir novamente os olhos e tenho o mundo correlativo com meu olhar. O mundo
está sempre lá, indiferente aos olhares lançados sobre ele e não se modifica em nada
quando observado. O vermelho continua vermelho, a despeito de ser olhado. A face azul
do dado, mesmo escondida de meu olhar, permanece azul. O sistema da natureza não
tem a versatilidade do sistema de minha percepção.
Toda percepção é percepção de utensílios mediados, por exemplo a faca para
descascar a laranja, ou imediatos, por exemplo a própria laranja. Toda percepção é o
corolário de uma necessidade, interna a um corpo, corpo que muda e se desloca. Todas
as necessidades são conseqüência de uma diferenciação interna de um mesmo elã de
vida. Essa diferenciação pode tomar a forma de uma necessidade de satisfação, na qual
o objeto exterior é a promessa mediada de uma satisfação interna; ou tomar a forma de
uma necessidade de se evitar, na qual o objeto exterior é uma ameaça imediata à
integridade do corpo vivo. Assim, as necessidades são, ao mesmo tempo, homogêneas e
diferentes. Homogêneas por serem variação do mesmo elã vital; diferentes por possuir
243
uma distinção de natureza interna. Todas as necessidades se ordenam em torno do
corpo. O corpo é plástico, por possuir um cérebro que introduz um intervalo entre o
estímulo e a resposta. Portanto, o corpo é um centro de indeterminação. A
plasticidade do corpo tem como corolário a plasticidade do círculo da percepção, em
outros termos, a plasticidade do corpo é, por homologia, princípio de variação do
sistema de percepção. A variabilidade de minha percepção é produto da bijeção, ou
função biunívoca, operada entre corpo e ambiente.
Notamos que uma tal concepção permite superar a aparente contradição entre
ponto de vista interno e ponto de vista externo, entre sistema da percepção plástico e
sistema da ciência inflexível. O ponto de vista da ciência toma apenas uma parte da
realidade, fazendo abstração da outra parte, ou seja, da percepção corporal. As duas
partes estão presentes na imagem-total sem que isto implique em contradição. Tomemos
o exemplo clássico que demonstra a ilusão da percepção: vejo um bastão com metade de
seu tamanho mergulhado na água. O bastão me parece quebrado em sua parte
mergulhada na água. Um ponto de vista externo, científico, entretanto afirma que o
bastão não está quebrado. Do ponto de vista da minha percepção, o bastão está
quebrado. Em virtude do princípio de não-contradição, o bastão ou está ou não está
quebrado. Qual opção então é verdadeira?
Segundo Bergson, o ponto de vista objetivo, considera simplesmente a parte tátil
da imagem-total, levando em conta o objeto como um todo, em sua continuidade. O
ponto de vista subjetivo considera uma outra parte da imagem. Os fótons refletidos pelo
objeto constituem uma imagem descontínua. Não existe contradição. A contradição
somente se manifesta quando consideramos o objeto substancialmente contínuo ou
descontínuo. Segundo Bergson, a percepção visual leva em conta apenas uma parte da
imagem-total, parte descontínua; enquanto o ponto de vista objetivo leva em conta o
244
objeto como um todo, contínuo, ou seja, segundo a percepção tátil. A percepção do
espaço, por exemplo, é uma afecção interna de natureza tátil (Hansen 2004).
Assim, sistema da ciência e sistema da percepção corporal são compatíveis na
medida em que são sistemas acêntrico e cêntrico do mesmo real. Existe então uma
diferença e uma união entre o sistema da ciência e a percepção variável subjetiva.
Não se pode reduzir um dos pontos de vista ao outro. É impossível compreender
o real de um ponto de vista em detrimento do outro. Ambos são reais e possuem uma
função.
“O problema é quando observo a Mona Lisa gerando em minha experiência
visual uma certa qualidade, da qual não se pode encontrar nenhum traço
quando se observa no fundo de meu cérebro. Porque mesmo se encontrasse
dentro dele uma imagem minúscula da Mona Lisa, não se teria nenhuma
razão em identificá-la com a experiência visual de ver a Mona Lisa”.
(Nagel 1995: 207).
A irredutibilidade entre ponto de vista interno e ponto de vista externo é
evidente, segundo Nagel. Bergson considera também ilegítima essa redução. A idéia
reguladora da ciência não é a idéia de um conhecimento completo, mas a de um
conhecimento acêntrico. Para construir um tal conhecimento não se pode considerar as
partes da matéria que estão em relação variáveis com o corpo. O conhecimento
científico não leva em conta os movimentos suspensos e bifurcados no cérebro. A
ciência tem uma ambição de universalidade. Assim, ela somente se interessa nas
porções da extensão segundo uma perspectiva acêntrica, a qual opera por um corte
longitudinal na extensão. A percepção privilegiada da ciência, portanto, é a tátil.
Minha percepção não é observável por ninguém senão por mim mesmo. Isto,
entretanto não quer dizer que exista uma diferença substancial entre o mundo interno e o
mundo externo. Bergson tenta evitar esse dualismo, que alguns filósofos
contemporâneos parecem assumir, se não o dualismo substancial, ao menos o dualismo
de propriedade. Nagel é considerado um dos maiores defensores do dualismo de
245
propriedades no século XX. Ele é normalmente lembrado pelo seu artigo famoso What
is like to be a bat? Nesse ensaio, ele tenta nos mostrar que nós nunca poderíamos saber
como é ser um morcego sem que nós fôssemos um morcego. Isto implica a existência
de um ponto de vista em primeira pessoa que não pode ser descrito em uma linguagem
de terceira pessoa. Nagel chega a dizer “o que sobraria de como é ser um morcego se
fosse removido o ponto de vista do morcego?”. Este seria justamente o caráter privado
da experiência que não pode ser capturado pela linguagem científica.
Outro famoso artigo de Nagel é Physicalism, no qual ele tenta mostrar que se o
fisicalismo
17
fosse verdadeiro a proposição “Eu sou JFK”, por ser um estado cerebral,
poderia acontecer em outra pessoa, mas seria absurdo supor que duas pessoas pudessem
ser o mesmo JFK.
Nagel tentou defender um tipo de dualismo de propriedades, mostrando que a
atividade cerebral não pode ser explicada somente em termos físicos. Sua atividade
subjetiva pressupõe a existência de propriedades não-físicas.
David Chalmers é justamente um dualista de propriedades que defende que estas
propriedades mentais seriam propriedades fundamentais. No seu livro The Conscious
Mind, ele tenta formular uma teoria que liga o funcionalismo ao dualismo de
propriedades. Chalmers não vai defender que a consciência supervém a partir de um
determinado grau de complexidade do cérebro, como faria um epifenomenalista. Por
meio da teoria do duplo aspecto
18
da informação, que é uma das leis psicofísicas e que
17
De modo resumido, o fisicalismo é a doutrina de que tudo o que existe no mundo espaço-temporal é
físico, e que cada propriedade de algo físico ou é uma propriedade física ou uma propriedade intimamente
relacionada de algum modo com a sua natureza física. O fisicalismo implica uma posição ontológica com
corolários epistemológicos e metodológicos.
18
É o princípio básico e fundamental da teoria da consciência de Chalmers. Ele toma como ponto de
partida a noção de informação tal como é definida por Shannon (1948) e sustenta que esta tem um duplo
aspecto: um físico e outro fenomênico. É o aspecto fenomênico que dá origem à experiência consciente e
este princípio é, sem dúvida, o mais controverso na teoria de Chalmers: afinal, quais são as peculiaridades
da informação que podem dar origem a estados conscientes? Será a consciência privilégio apenas de
246
muitos consideram como o principal ponto fraco da teoria de Chalmers, ele defende que
não só os cérebros, mas todas as coisas que processam informação teriam uma espécie
de mente. Deste modo, não só os seres humanos, mas os computadores, por exemplo,
teriam uma mente, só que com graus diferentes de complexidade. Isto seria assim
porque a informação teria um aspecto físico e objetivo e um outro aspecto subjetivo. A
consciência, então, estaria agora inexoravelmente ligada ao conceito de informação e
seria uma propriedade fundamental de nosso mundo assim como o é a massa e a carga
elétrica. Por isso Chalmers (1996) chama seu dualismo de “dualismo naturalista”
19
.
No entanto, um problema permanece junto a estas formas de dualismo: é o
problema da causação mental. No dualismo de substância a causação mental iria contra
o fechamento causal do mundo físico. No dualismo de propriedades a mente qualitativa
não causa nada, o que vai contra as nossas intuições de que a nossa mente causa nosso
comportamento. Tais intuições nos dizem que há uma relação causal entre a mente e o
mundo físico. Se bebemos substâncias entorpecentes, sentiríamos uma mudança na
mente, acreditamos que a nossa vontade causa nosso comportamento, etc. Por isso, sem
uma resposta ao problema da causação mental, o dualismo contemporâneo não parece
ser uma alternativa viável.
A filosofia de Bergson oferece meios de não subscrever a teoria do duplo-
aspecto, ou seja, a teoria que defende o cérebro como a sede da consciência, a qual
possui estados que não podem ser reduzidos a estados físicos. Poder-se-ia traduzir esse
cérebros humanos ou poderá ela ser estendida a outros processadores de informação como cérebros de
animais ou até mesmo máquinas?
19
Esta posição é uma variedade de dualismo, na medida em que ela postula propriedades básicas além
daquelas estipuladas pela física. Mas trata-se de uma variedade inocente de dualismo, inteiramente
compatível com uma visão científica do mundo. Como assevera Chalmers, não há nada místico ou
espiritual nesta teoria. É uma teoria inteiramente naturalista, na medida que, segundo ela, o universo não é
nada mais do que uma rede de entidades básicas que obedecem a um conjunto de leis e a consciência
pode ser explicada a partir destas.
247
ponto de vista dizendo que não somos corpo e alma, mas somente um corpo, o qual,
entretanto, possui um cérebro que não é apenas um sistema físico (Nagel 1995: 43).
A solução proposta por Bergson é simples: perceber não é conhecer. Isto
significa que a percepção não pode ter outra pretensão, a não ser servir à ação. Afirmar
que perceber não é conhecer é recusar a percepção o status de (re)apresentação. É a
noção de representação que cria a necessidade do dualismo, ou do duplo-aspecto.
Assim, de um lado temos as coisas físicas, de outra uma representação na mente que
não é física. O cérebro, entidade física, pode gerar propriedades não físicas. Para
Bergson, a percepção é somente uma parte da imagem-total, o que significa reordenar as
coisas em torno do corpo. A representação científica é uma outra parte da imagem,
acêntrica, cujas partes estão em relação invariável. Desde então sistema da ciência e
sistema da percepção são inerentes ao mesmo sistema de imagens. Nenhum dos dois é
cópia um do outro; nenhum dos dois é causa um do outro; nenhuns dos dois são
propriedades diferentes da mesma matéria.
Relembramos que na epistemologia bergsoniana as qualidades segundas são
qualidades primeiras, isto é, a cor é real e não produzida pelo cérebro. Bergson
reconhece um papel do cérebro na percepção da cor. O cérebro é órgão de análise, isto
é, seleção e posterior síntese recompondo o que já estava na coisa. Mas isto pressupõe
que as qualidades primeiras, ou seja, a própria matéria, seja igual às qualidades
segundas. Perceber não é conhecer precisamente porque o objeto do “conhecimento” já
está presente na matéria. O processo perceptivo não é produção de uma
(re)apresentação, mas somente reorganização do que já está presente na mateira. É o
que indica Deleuze ao propor que em Bergson:
“Há uma ruptura com toda a tradição filosófica, que punha a luz, de
preferência, do lado do espírito, e fazia da consciência um facho luminoso
que tirava as coisas da obscuridade nativa. A fenomenologia participava
ainda plenamente desta tradição antiga; simplesmente, em vez de fazer da
248
luz uma luz interior, abria-a para o exterior, um pouco como se a
intencionalidade da consciência fosse o raio de uma lâmpada elétrica (“toda
consciência é consciência de alguma coisa…”). Para Bergson, é o contrário.
As coisas é que são luminosas por elas próprias, sem nada que as ilumine:
toda consciência é alguma coisa, ela confunde-se com a coisa, isto é, com a
imagem de luz”. (Deleuze 2001: 89).
O cérebro é então somente um órgão de seleção que retém uma parte da luz já
existente, deixa passar o restante dessa luz e permite, desde então, à parte selecionada se
manifestar como cores selecionadas. Dizer então que o real é como a luz, é dizer que as
qualidades segundas estão na realidade externa. Assim, a percepção não é produção. A
percepção, segundo Bergson, acontece na coisa externa e, portanto, já possui em si a
matéria. Compreendemos então que a percepção é reorganização da matéria externa,
mas não compreendemos ainda as modalidades desta ação de reorganizar operadas pelo
cérebro.
Como vimos a percepção não é uma coisa no nosso cérebro à nossa disposição e
suscetível de ser manipulada. Bergson não pensa a percepção e o material da percepção,
sensação, como alojados no cérebro. Perceber a matéria e destacar, no cerne do
universo, uma imagem parcial são um mesmo processo.
Existe inicialmente uma imagem-movimento, sem corpo, ou melhor, como
corpo desorganizado (corpo sem órgãos). Existe uma imagem-movimento especial, meu
corpo, imagem relativamente fixa, na qual as imagens variam iminentemente segundo
os deslocamentos desta imagem fixa no seio delas. O corpo se distingue das coisas
percebidas ou utensílios para esse corpo. Mas, apesar desta distinção, o que existe de
fato é apenas uma única imagem-movimento, na qual corpo e utensílios são termos de
uma relação. Como afirma Deleuze: “não é a linha que está entre dois pontos, mas o
ponto que está no cruzamento de várias linhas” (Deleuze 1990: 219).
A percepção é o movimento que, partindo da coisa, age de maneira perceptiva
quando passa pelo cérebro.
249
“Seja, por exemplo, um ponto luminoso P cujos raios agem sobre os
diferentes pontos a, b, c, da retina. Nesse ponto P a ciência localiza
vibrações de uma certa amplitude e de uma certa duração. Nesse mesmo
ponto P a consciência percebe luz. Nós nos propomos a mostrar, ao longo
deste estudo, que tanto uma como outra têm razão, e que não há diferença
essencial entre essa luz e esses movimentos, com a condição de que se
devolva ao movimento a unidade, a indivisibilidade e a heterogeneidade
qualitativa que uma mecânica abstrata lhe recusa, com a condição também
de que se vejam nas qualidades sensíveis outras tantas contrações operadas
por nossa memória: ciência e consciência coincidiriam no instantâneo […]
Em outras palavras, se existem no mundo material pontos nos quais os
estímulos recolhidos não são mecanicamente transmitidos, se há, como
dizíamos, zonas de indeterminação, estas zonas devem precisamente
encontrar-se no trajeto daquilo que é chamado processo sensório-motor; e a
partir daí tudo deve se passar como se os raios Pa, Pb, Pc fossem
percebidos ao longo desse trajeto e projetados em seguida em P” (Bergson
[1896] 1997: 40-41).
A percepção é então um movimento indivisível que, partindo da coisa, se dirige
ao cérebro; movimento no qual a imagem percebida está na imagem-coisa, ou seja, a
percepção está na coisa. A princípio, o universo de imagem-movimento parece
mecânico por suas relações, por meio de vibrações e ondulações, entre as diversas
partes das imagens-movimento. Entretanto não se trata de um universo mecânico.
Deleuze usa a expressão universo “maquínico” (Deleuze 2001). Este universo engloba
uma tríplice identidade imagem=movimento=matéria. Trata-se de um agenciamento
maquínico das imagens-movimento. A imagem é tanto material como dinâmica. O
universo da imagem-movimento de Bergson não é mecânico, pois o mecânico implica
sempre sistemas fechados, ações de contato e cortes imóveis instantâneos. O mecânico
não é um em-si-mesmo, é sempre relação, na qual os termos são importantes. Já o
universo bergsoniano é um conjunto infinito cujo movimento se estabelece entre as
partes de cada sistema e de um sistema ao outro, atravessa-os, mistura-os, submetendo-
os a uma condição que os impedem de ser fechados. Ele também é um corte móvel, ou
seja, um corte ou perspectiva temporal. Como afirma Deleuze:
“É [o universo bergsoniano] um bloco de espaço-tempo, visto que lhe
pertence de cada vez o tempo do movimento que nele se produz. Haverá
mesmo uma série infinita de semelhantes blocos ou cortes móveis, que são
250
como outras tantas apresentações de plano, correspondente à sucessão dos
movimentos do universo. E o plano não é distinto desta apresentação dos
planos. Não é mecanismo, é maquinismo. O universo material, o plano de
imanência, é o agenciamento maquínico das imagens-movimento”
(Deleuze 2001: 87).
Bergson compara a percepção neste universo maquínico, na expressão de
Deleuze, como um circuito, no qual todos os elementos, inclusive o próprio objeto
percebido, se mantém em estado de tensão mútua, semelhante a um circuito elétrico.
“Costuma-se representar a percepção atenta como uma série de processos
que avançariam ao longo de um trajeto único, o objeto excitando sensações,
as sensações fazendo surgir idéias diante delas, cada idéia estimulando
sucessivamente pontos mais recuados da massa intelectual. Haveria aí,
portanto, uma marcha em linha reta, pela qual o espírito se distanciaria cada
vez mais do objeto para não mais voltar a ele. Pensamos, ao contrário, que a
percepção refletida seja um circuito, onde todos os elementos, inclusive o
próprio objeto percebido, matem-se em estado de tensão mútua como num
circuito elétrico, de sorte que nenhum estímulo partido do objeto é capaz de
deter sua marcha nas profundezas do espírito: deve sempre retornar ao
próprio objeto” (Bergson [1896] 1997: 118-119).
A metáfora elétrica permite explicar a modificação do estado cerebral
engendrada pelo processo perceptivo.
De fato, esta metáfora é constante na obra de Bergson. Ele se utiliza das teorias
de Maxwell quando se trata precisamente de compreender as modalidades de uma
interação diferente dos termos da mecânica.
“Experiências muito simples mostram que não há jamais contato real entre
dois corpos que interagem; por outro lado, a solidez está longe de ser um
estado absolutamente definido da matéria. Solidez e choque obtêm portanto
sua aparente clareza dos hábitos e necessidades da vida prática; - imagens
desse tipo não lançam nenhuma luz sobre o âmago das coisas” (Bergson
[1896] 1997: 234).
Bergson, em notas de rodapé, referencia essas afirmações às pesquisas de
Maxwell
20
, as quais unificaram mecânica e magnetismo na teoria geral do
20
As referências de Bergson são as seguintes: Maxwell, “Action at a Distance” (Scientific Papers,
Cambridge, 1890, t. II, pp. 313-14). Maxwell, “Molecular Constitution of Bodies” (Scientific Papers,
Cambridge, 1890, t. II, p. 618).
251
eletromagnetismo. Ele se refere sempre à tensão como o esforço de contenção operada
pelo cérebro.
O cérebro não produz em seu cerne uma (re)apresentação, isto é, um objeto
diferente da coisa percebida. Trata-se apenas de uma recombinação das partes da
imagem-coisa, ato que não implica em acrescentar nenhuma propriedade que não esteja
já na coisa. O processo de recombinação se faz ao longo do trajeto que, imediatamente,
passa em um sentido e repassa em outro sentido. O “objeto-percepção” se realiza na
imagem-total que se recorta em imagem-coisa no processo perceptivo. Processo
semelhante ao que estou fazendo nesse momento ao escrever esta tese de doutorado. O
trabalho se atualiza na tese que se constitui como tese no trabalho.
A percepção se faz na coisa e o ordenamento do sistema perceptivo pode ser real
sem que o real seja desdobrado no cérebro.
A Consciência e a Percepção
Toda percepção é percepção de alguma coisa segundo uma perspectiva variável.
A consciência é, por assim dizer, imanente à própria coisa, já que esta coisa é luminosa
ou perceptível por si mesma. Entretanto, segundo Bergson, existe uma distinção
fundamental entre percepção e apercepção.
Locke, em seu Ensaio acerca do Entendimento Humano, defendeu que a
percepção é um ato próprio ao entendimento humano, de tal modo que a percepção e a
posse de idéias são uma e mesma coisa (Locke [1706] 1978). Leibniz, ao contrário,
distinguiu percepção e aperceção, ou consciência da percepção. Assim percepção é o
estado passageiro que compreende e representa uma multiplicidade na unidade ou na
substância simples: “o estado passageiro, envolvendo e representando a multiplicidade
252
na unidade ou na substância simples, é precisamente o que se chama Percepção, que
deve distinguir-se da apercepção ou da consciência” (Leibniz [1714] 1983,
Monadologia, §14). Em Leibniz encontramos claramente uma distinção entre percepção
e apercepção, esta última envolvendo o tipo de conhecimento consciente que acontece
na percepção humana ordinária. Isto implica a possibilidade de percepção
“inconsciente”. Leibniz aduziu vários argumentos em favor dessa possibilidade. O mais
importante entre eles gira em torno da idéia de petites perceptions. Chamou a atenção
para o fato de que, quando ouvimos o som do mar, escutamos uma combinação de um
grande número de ruídos produzidos por ondas diferentes. Não escutamos
conscientemente esses ruídos distintos. A percepção consciente única, disse, é
constituída de grande número de “petites perceptions” que não são conscientes. Os
infinitos sons das minúsculas partículas de água se chocando (percepção) convertem-se
num único som de um onda do mar (apercepção).
Percepções claras implicam apercepções; percepções confusas envolvem, pelo
menos em parte, outras que são pequenas, ou inconscientes. Sobre o conceito de
percepção esclarece-se que: a percepção é atributo inextirpável da mônada leibniziana;
ela é de dois tipos, como vimos, percepções claras e pequenas percepções. Leibniz
declara que “a única certeza é que nós percebemos” como se os seres, nas palavras do
autor, estivessem condenados a perceber. Assim, Leibniz convoca os sentidos para se
fazerem presentes na descrição dos componentes do universo. As enteléquias, ou ainda
mônadas, tem no processo de suas percepções uma forma natural de ser no mundo.
Perceber então, faz parte da transição de toda substancialidade, do seu surgimento ao
seu aniquilamento, sendo a percepção um componente inexorável da existência.
Bergson, por sua vez, retoma a clássica distinção de Leibniz entre percepção e
apercepção. Ele critica a noção de percepção como apreensão de uma realidade por um
253
sujeito psíquico, pois a conseqüência é separar consciência e coisa percebida. Essa
noção, compartilhada, segundo Bergson tanto por realistas como idealistas, engendrou
duas concepções diferentes: (1) para a ciência, na qual há um sistema de imagens sem
centro, a percepção só pode ser explicada mediante o suposto de uma consciência
concebida como epifenômeno ou fosforescência da matéria. (2) Para a consciência, a
percepção representa uma harmonia entre a realidade e o espírito. Daí as doutrinas
opostas do realismo e do idealismo que têm como fundamento comum a concepção da
percepção como um conhecimento. Para Bergson, em contrapartida, a percepção é
primeiramente ação. Segundo estas doutrinas, quando percebo um objeto, eu produzo
uma cópia que repousa em meu cérebro. Este novo objeto pode ser percebido também.
O objeto da percepção é aqui a própria coisa. O objeto da apercepção é a percepção ou
cópia desta coisa. Os objetos são assim distintos, ou seja, percepção e apercepção
possuem objetos diferentes. Tal não é o caso em Bergson. A percepção enquanto
imagem percebida está na coisa. Assim, perceber e aperceber tem um único e mesmo
objeto.
A consciência para Bergson é inicialmente anônima, anterior ao fato de ser
consciência de um sujeito. As relações são primeiras e os termos se cristalizam como
pontos posteriormente. A percepção é percepção de um sujeito em um segundo
momento. Então se aperceber é perceber que se percebe, trata-se de explicar essa
gênese. Temos as imagens que percebemos. Temos um corpo que percebemos como
imagem estável em torno da qual se ordenam as outras imagens variáveis. Num
primeiro momento podemos explicar a apercepção como o trabalho de filtragem e
seleção, segundo intenções pragmáticas, que o corpo executa no processo de percepção.
Assim, existem os fluxos das imagens-movimento, os quais são selecionados por um
corpo, o qual retém partes da imagens e dispensa o restante dela. A aperceção seria esse
254
trabalho de filtragem executado pelo corpo. Entretanto a questão é mais profunda, já
que a apercepção é consciência da percepção. Assim, chegamos finalmente à questão
central da percepção. Trata-se de investigar, por meio da percepção, a relação entre
consciência e matéria, ou alma e corpo.
O projeto bergsoniano visa, como vimos, ultrapassar o dualismo, estabelecendo
a unidade de natureza entre a matéria e o espírito. Uma das principais questões, que
engendraram o dualismo e as respostas realistas e idealistas para o problema do
conhecimento, foi a pergunta se a matéria é divisível ou indivisível.
Consciência e matéria, alma e corpo relacionam-se por meio da percepção.
Entretanto, está idéia ainda é confusa porque nossa percepção e conseqüentemente
nossa consciência parecem então participar da divisibilidade que se atribui à matéria.
Segundo o dualismo, não é possível estabelecer a coincidência entre o objeto percebido
e o sujeito que percebe porque temos consciência da unidade indivisível de nossa
percepção, enquanto os objetos parecem ser, por essência, indefinidamente divisíveis.
Assim, nos resta a hipótese de uma consciência com suas sensações inextensas em
oposição a uma multiplicidade extensa que é a matéria. Porém a divisibilidade da
matéria é relativa a nossa ação sobre ela, isto é, nossa faculdade e poder de modificar
seu aspecto. Se a divisibilidade não pertencesse à própria matéria, mas ao espaço que
criamos na apreensão dessa matéria, a dificuldade se esvaneceria. A matéria extensa,
visada em seu conjunto (imagem-total), é como uma consciência na qual tudo se
equilibra, se compensa e se neutraliza. Ela se oferece à indivisibilidade de nossa
percepção. Esses dois termos, percepção e matéria, marcham uma em direção ao outro,
desde que nos livremos daquilo que Bergson chama dos prejuízos de nossa ação. A
sensação reconquista a extensão, a extensão concreta retoma sua continuidade e sua
indivisibilidade naturais. A percepção é a própria coisa. O espaço homogêneo e
255
divisível que se ergue entre os dois termos como uma barreira insuperável, não tem
mais realidade senão como um esquema ou um símbolo. Ele foi criado por um ser que
age sobre a matéria, visando questões pragmáticas. Entretanto, ele não existe de fato
para um espírito que teoriza e especula sobre sua essência. Para esse espírito a matéria é
heterogênea e não divisível.
Para o dualismo, a consciência e a matéria não se aproximam porque suas
naturezas são incompatíveis. Ele considera a matéria como uma extensão
indefinidamente divisível. Entretanto, para Bergson, esta hipótese conduz a uma aporia,
já que o contato entre matéria e consciência seria entre duas realidades diferentes. A
aporia, a qual se chegaria, é a oposição irredutível entre a extensão (matéria) e
inextensão (consciência). Procedendo assim, o dualismo é incapaz de compreender a
percepção. Temos uma relação entre dois pontos irredutíveis, um naturalmente
inextenso e o outro uma coisa extensa; um uma qualidade e o outro uma quantidade. Se
a matéria é indefinidamente divisível, então não se pode relacionar uma coisa inextensa
e indivisível (a percepção) com a matéria. Bergson recoloca a percepção em novas bases
conceituais. Ele desenvolve uma hipótese oposta ao dualismo: a matéria não é divisível.
Esta hipótese vai se transformar em tese, atacando o dualismo em seu próprio princípio.
Bergson, então, procede a uma distinção entre a divisibilidade em si e a
divisibilidade para nós, ou devido à nossa ação. Se existe uma divisibilidade na matéria
é em função de nós, em função de nossa ação. Ela não é senão aparente, enquanto
relativa a nós, explicada devido às nossas necessidades pragmáticas de ação e
sobrevivência.
Bergson recorre a uma segundo hipótese que esclarece melhor a primeira. Esta
segunda hipótese procura explicar a aparente divisibilidade, a qual se torna um artifício
humano. O homem age imprimindo uma rede na matéria, e esta rede é o espaço. Assim,
256
Bergson opõe matéria e espaço. A matéria como ser, e não como utensílio para o
homem, não é divisível. Nossas categorias intelectuais, a “rede” que impomos às coisas
para poder agir sobre elas, não são ontológicas
21
. Assim, a dificuldade em relacionar
matéria e consciência se esvanece. Ela é um falso problema, isto é, artificialmente
constituído pelo espírito humano.
Para Bergson então a matéria, considerada como totalidade, tem a mesma
natureza da consciência, a qual se torna o paradigma para compreender a própria
natureza da matéria. Conseqüentemente, a matéria é outra coisa, diferente do espaço
divisível. A extensão é medida, delimitação e divisão. A matéria é outra coisa. Existe
um ser da matéria que não é redutível ao ser da extensão e do espaço. O espaço não é
senão uma aparência, a matéria “para nós”, uma ficção cômoda para a prática. O espaço
homogêneo não é senão uma ficção, um artifício, um esquema ou símbolo útil à
intelecção da ação. O espaço não é o ser, é uma aparência, uma ficção cômoda e
indispensável para a prática.
A convicção de Bergson é que o mundo é um, existe uma integridade da matéria.
Por isso mesmo, ele fala em osmose, em inter-penetração entre máteria e percepção.
Existe uma unidade fundamental em tudo. Porém não se trata de uma unidade de ordem
antropológica, esta unidade existe na imanência do próprio mundo. Assim, existe uma
troca, uma reciprocidade, entre percepção e matéria.
O universo bergsoniano é dinâmico e, consequentemente, aberto, movente e
variável. A sensação não é somente subjetiva, isto é, fechada no sujeito; ela se abre em
21
Explicita crítica a Kant, para quem as regras, as categorias, pelas quais unificamos os fenômenos
esparsos na experiência, são exigências a priori do nosso espírito. A experiência nos fornece a matéria de
nosso conhecimento, mas é nosso espírito que, por um lado, dispõe a experiência em seu quadro espaço-
temporal (o que Kant mostrará na Estética transcendental) e, por outro, imprime-lhe ordem e coerência
por intermédio de suas categorias (o que Kant mostra na Analítica transcendental). Aquilo a que
denominamos experiência não é algo que o espírito receberia passivamente. É o próprio espírito que,
graças às suas estruturas a priori, constrói a ordem do universo, as quais são portanto de natureza
ontológica.
257
direção à exterioridade. Ela é, ao mesmo tempo, uma vibração que vêm do objeto e que
retorna em direção a esse objeto, isto é, ao mesmo tempo subjetiva e exterior. O que
fundamenta ontologicamente a fenomenologia da percepção bergsoniana, ou seja, o
discurso sobre o aparecer da percepção, é a realidade da duração (durée) de todas as
coisas, ou melhor, o fato que a duração é todas as coisas.
A duração é o tempo real. Somente a consciência, que vive a duração, pode
apreender o tempo real. “Sua essência consistindo em passar, nenhuma de suas partes
está aí quando a outra se apresenta” (Bergson [1934] 1990: 7). Bergson diferencia o
tempo real e o tempo matemático. O tempo real não é mensurável. A interrogação
epistemológica acerca do tempo implica numa interrogação ontológica, que visa a
realidade profunda do ser. Como podemos conhecer esse tempo real? Certamente não
será pela ciência que o matematiza. O tempo não é mensurável, porque medir é
introduzir uma quantidade, a qual é uma sobreposição de uma parte em outra parte, isto
é, se transforma em número e homogeneíza a coisa que é medida:
“A superposição de uma parte à outra com vistas à mensuração é, portanto,
impossível, inimaginável, inconcebível. Sem dúvida, em toda mensuração
entra um elemento de convenção, e é raro que duas grandezas que são ditas
iguais sejam diretamente superponíveis uma à outra. Apesar disso, é preciso
que a superposição seja possível com relação a um de seus aspectos ou
efeitos que conserve algo delas: esse efeito, esse aspecto são então aquilo
que é medido. Mas, no caso do tempo, a idéia de superposição implicaria
um absurdo, pois todo efeito da duração que for superponível a si mesmo e,
por conseguinte, mensurável, terá por essência não durar”. (Bergson [1934]
1990: 7).
O tempo não é mensurável pois não pode ser superponível a si mesmo, ou seja,
seus instantes não são equivalentes entre si. Ele é heterogêneo, porém indivisível.
Bergson se refere ao tempo como “aquilo que passa”. Trata-se então de uma
coisa exterior a nós, que é real. O tempo bergsoniano não é somente uma questão
subjetiva, ele existe e é uma realidade profunda. A idéia de movimento absoluto está
258
intimamente associada à idéia de tempo real, que significa uma mudança interna,
absoluta, em nós ou fora de nós, no sujeito ou no espaço.
É necessário então associar o movimento à transformação. Essa necessidade fará
Bergson objetar à noção de tempo e espaço da física relativista clássica, ou seja, a
galileana e cartesiana. Quando a física clássica substitui a física aristotélica, ela fez o
movimento tornar-se uma relação entre dois corpos, um transporte. Então o movimento
deixa de ser transformação do corpo como o era em Aristóteles (De Anima). Bergson se
opõe à concepção relativista do movimento cuja formulação geométrica moderna
remonta, segundo ele, a Descartes. Em Matéria e Memória, Bergson, dirá que Descartes
nega o movimento absoluto, porém está constrangido a duplicar o movimento relativo
(movimento recíproco), por um movimento absoluto (leis do movimento). A
contradição surge devido “simplesmente a que Descartes trata do movimento como
físico, após tê-lo definido como geômetra” (Bergson [1896] 1997: 216). O movimento
do geômetra não é o movimento real de um corpo, mas o deslocamento recíproco e
relativo entre dois corpos, em repouso ou em movimento um em relação ao outro:
“Todo movimento é relativo para o geômetra; isto significa apenas, em nossa opinião,
que não há símbolo matemático capaz de exprimir que é o móvel que se move e não os
eixos ou os pontos aos quais está relacionado” (Bergson [1896] 1997: 217).
Diante do movimento uma certeza me aparece: “toco a realidade do movimento
quando ele me aparece, interiormente, a mim, como uma mudança de estado ou de
qualidade” (Bergson [1896] 1997: 217). Porém, isto não é tudo. É certo que posso tocar
o movimento real das coisas. Quando me observo, me apercebo desde que faça o
esforço de separar minha percepção da espacialização necessária à ação vital, em suma,
quando eu a esvazio de todos os artifícios simbólicos, convenções necessárias para uma
representação útil. Bergson se pergunta: “por que não se passaria o mesmo quando
259
percebo mudanças de qualidade nas coisas?” (Bergson [1896] 1997: 219). Existe, de
fato, no ato de perceber, alguma coisa que ultrapassa a própria percepção. Trata-se da
continuidade movente do real infinitamente delineada no seu ritmo vibratório, que a
memória humana transforma em seu próprio ritmo. Em suma, essa metafísica da matéria
estabelece que nós atingimos o movimento real do universo diferentemente da mecânica
relativista que concebe o espaço somente como deslocamentos recíprocos no espaço. O
movimento é uma mudança de duração, uma transformação: “todo movimento é relativo
para o geômetra […] Mas que haja um movimento real, ninguém pode contestar
seriamente; caso contrário, nada mudaria no universo, e sobretudo não se percebe o que
significaria a consciência que temos de nossos próprios movimentos” (Bergson [1896]
1997: 217).
O movimento exprime uma mudança na duração ou no todo.
“O movimento é uma translação no espaço. Ora, cada vez que há translação
de partes no espaço, também há mudança qualitativa no todo. Bergson dá
múltiplos exemplos em Matéria e Memória. Um animal move-se, mas não
é por nada, é para comer, para migrar, etc. Dir-se-ia que o movimento
supõe uma diferença de potencial, e propõe-se preenchê-la. Se considerar
partes ou lugares abstratamente, A e B não compreendo o movimento que
vai de um ao outro. Mas estou em A, cheio de fome, e B há alimentos.
Quando atingir B e tiver comido, o que mudou, não é apenas o meu estado,
é o estado do todo que compreende B, A e tudo o que havia entre os dois.
Quando Aquiles ultrapassar a tartaruga, o que muda, é o estado do todo que
compreendia a tartaruga, Aquiles e a distância entre os dois” (Deleuze
2001: 18).
Bergson descobre, segundo Deleuze, um além da translação. Ele descobre a
mudança que é transformação. Esta tese implica em uma nova forma de entender a
consciência. Bergson desvela a duração investigando a consciência, porém mostra que
ela não existe na consciência. Ela se abre sobre um todo e coincide com este todo.
Trata-se, segundo Deleuze, de uma Relação. O universo é Relação, o Todo que muda é
Relação, e isto é o que explica que o movimento absoluto seja necessariamente mental e
real ao mesmo tempo. O exemplo clássico desta Relação é o copo com água açucarado:
260
“Caso queira preparar-me um copo de água com açúcar, por mais que faça,
preciso esperar que o açúcar derreta. Esse pequeno fato está repleto de
lições. Pois o tempo que preciso esperar já não é mais esse tempo
matemático que ainda se aplicaria com a mesma propriedade ao longo da
história inteira do mundo material ainda que esta se esparramasse de um
golpe no espaço. Ele coincide com minha impaciência, isto é, com uma
certa porção de minha própria duração, que não pode ser prolongada ou
encurtada à vontade. Não se trata mais de algo pensado, mas de algo
vivido”. (Bergson [1907] 1996: 17).
Assim, o movimento de translação que separa as partículas de açúcar e as põem
em suspensão na água exprime uma mudança no todo, uma passagem qualitativa da
água. As deslocações extremamente superficiais de massas e moléculas, que a física e a
química estudam, tornam-se em relação ao movimento vital uma transformação de
qualidade. Segundo Deleuze, “o que Bergson quer dizer sobretudo com o copo de água
açucarada, é que a minha expectativa, o que quer que ela seja, exprime uma duração
como realidade mental, espiritual” (Deleuze 2001: 22).
Considerações
Toda percepção é percepção de alguma coisa. Toda percepção é alguma coisa.
Toda percepção é imagem-movimento. Toda percepção é matéria e a consciência é
imanente a esta matéria. A matéria constitui o presente. O presente é o atual, isto é, uma
parte do real, o real que age e se constitui enquanto Todo, o qual muda incessantemente.
Todo pensamento é pensamento de alguma coisa. Todo pensamento é alguma
coisa. Todo pensamento é memória em crescimento. Todo pensamento é espírito
enquanto se ausenta da consciência, a qual é uma afecção da percepção. A percepção é
sempre interessada em sua relação com o corpo. O espírito é o passado enquanto devora
lentamente o futuro. O passado é virtual, isto é, a outra imensa parte do real, o real que
não age. Bergson procede a uma profunda modificação nas categorias do presente e do
passado. Da mesma maneira que os objetos não desaparecem quando fecho os olhos e
261
não são mais visíveis, os objetos que não são visíveis também não deixam de agir. O
virtual não se opõe ao real, mas ao atual. O real transborda infinitamente o atual que não
é senão um ponto. A totalidade do passado está em torno de mim, pronta para se
atualizar. Quando observamos a terra, concluímos que os sedimentos que não
alimentam mais a vida tornaram-se a memória da terra, a qual não cresce em direção ao
futuro sem depositar mais sedimentos, que não deixam de ser reais e constitutivos do ser
terra.
Toda percepção é percepção de alguma coisa segundo uma perspectiva. Toda
percepção é uma porção da matéria, isto é, uma porção de um corte do real. Toda
percepção recorta a matéria visando uma ação pragmática. A variabilidade da percepção
é uma função da variabilidade das necessidades. A percepção não tem como fim o
conhecimento, mas a ação, porque a evolução da percepção é regrada pela evolução do
sistema nervoso. A matéria não têm outros fins senão aqueles assinalados por um corpo
vivo e sua necessidade de sobrevivência.
Toda apercepção é pensamento consciente de alguma coisa segundo uma
perspectiva variável. Sou consciente da percepção quando percebo que percebo. Sou
consciente da percepção quando percebo no interior de meu corpo a atividade corporal
que acompanha a atividade externa que percebo. O corpo é diferente da coisa percebida.
Ele é o segundo termo de uma relação perceptiva; a relação, não os termos desta
relação, é o dado primeiro. O corpo é o objeto de uma gênese. Ele é ação e morte, com a
decomposição de suas partes, que lhe interdita a possibilidade de prosseguir a ação. O
presente passa, o corpo morre.
Todo pensamento é pensamento de alguma coisa segundo uma perspectiva.
Todo pensamento é uma porção do espírito, isto é, uma porção de um corte no real. Ele
262
é uma porção do real cuja freqüência é tão baixa que ela não é detectável por um de
nossos sentidos.
Trata-se então de pensar a tecnologia como fluxo de dados e o corpo como
recorte desse fluxo de dados e centro de indeterminação da comunicação. Essa
indeterminação é uma dupla possibilidade. Uma opacidade da comunicação. Mas
também a abertura para o novo. A tecnologia e a imagem digital também podem, por
meio da construção de um tempo real, desvelar informações, as quais, por diferença de
freqüência, não são percebidas pelo corpo. Ela torna aperceptível, para o corpo, muitas
informações que são perdidas no processo da percepção. Trata-se então de um sistema
de conhecimento, por meio da afecção, ou da imagem-afecção, na qual o corpo é o
centro da significação. A própria radicação biológica da consciência é feita por meio da
idéia de imagem corporal. Uma concepção biológica da consciência se relaciona a uma
concepção subjetiva do corpo. Trata-se então de uma crítica da redução da percepção ao
“ser-objeto” ou ao “ser-coisa”. Crítica também ao predomínio de um discurso em
terceira pessoa como o único discurso científico. Qualquer referência à percepção e ao
meu corpo, implica numa referência à variabilidade e ao ponto de vista, ou seja, à
indeterminação. Então, nos resta investigar as possiblidades da imagem-afecção
enquanto percepção que implica um tipo de conhecimento que possa ser formulado em
primeira pessoa.
263
Capítulo 4
Fluxo de dados, corpo e percepção
Fluxo de dados, corpo e percepção
Os nomes próprios designam forças, acontecimentos,
movimentos e os móveis, os ventos, os tufões, os males,
os lugares e os momentos, bem antes de designarem as
pessoas ” (Deleuze, O que é filosofia?).
A Imagem-Simulacro
A teoria do simulacro platônica têm como fundamento estabelecer de forma
clara e operante as categorias de verdadeiro e falso. O simulacro se insere na
classificatória platônica como imagem enganosa, artifício disfarçado de natureza, em
suma, como falso pretendente.
Vivemos no mundo inferior no qual se inserem as pálidas cópias das Idéias. Mas
é preciso garantir que, mesmo nesse mundo, o conhecimento se torne possível. Para
tanto é necessário que as imagens e matérias desse mundo se submetam aos objetos
ideais do mundo inteligível, de modo a copiar-lhes o modelo. É assim que os corpos
enlouquecidos que povoam o mundo sensível ganham contornos e limites, recebem uma
organização, uma ordem. Esta distinção funda o que mais tarde acabaremos por
conhecer como representação, uma vez que estas cópias se mantêm como imagem e
semelhança de seus modelos, já que aceitaram ser-lhes conformes. Quanto aos corpos
que não se deixarem subjugar pelos modelos, que não interiorizaram convenientemente
um nível necessário de semelhança, tanto pior: deverão, em qualquer participação, ser
preteridos em favor das boas cópias. A estas, todas as graças. Aos simulacros, a pena do
exílio.
Segundo a tradição platônica, as imagens-simulacros guardam e escondem uma
assimetria em relação ao modelo – identidade de aparência e desvio de essência – e por
isso mesmo são falsos pretendentes ao universo do Belo do Bem e Verdadeiro. Sua
265
relação com o modelo é exterior e de superfície, ao contrário da boa cópia que guarda
uma relação de interioridade e profundidade
1
. A simulação se tornou assim, na cultura
teórica ocidental sinônimo de farsa.
Baudrillard (1994) investe radicalmente contra o simulacro digital
contemporâneo ao qual ele atribui uma lógica estritamente binária. Vimos no segundo
capítulo alguns dos ataques dirigidos ao simulacro, porém quase todos se concentram na
dualidade que o simulacro apresenta entre essência e aparência. De um lado ele parece
um signo como qualquer outro, porém, seu efeito de superfície é o de uma realidade
mais real do que o real. Portanto, ele substitui o real por um outro real, e não o real por
um signo o qual o referência. De outro lado, a essência do simulacro digital está em sua
natureza binária e não nas opulentas imagens, sons e movimentos que se manifestam na
tela de um computador. Entretanto, um dos problemas da abordagem binária da
simulação é sua inserção na dicotomia do verdadeiro e do falso, essência e aparência.
Assim, a percepção digital conduz à mentira, pois não desvela a verdade que é, neste
caso, binária. Mesmo aqueles que aceitam a simulação digital, operam ainda com
conceitos e valores engendrados na dicotomia verdadeiro e falso. É comum, por
exemplo, a idéia de que simulações voltadas ao aprendizado e conhecimento científico,
portanto à busca da verdade, são legítimas, enquanto aquelas que visam enganar são
ilegítimas.
As distinções entre essência e aparência, verdadeiro e falso em relação ao
sistema de simulação digital são inadequadas, visto que a simulação opera entre o real e
a ficção, entre o verdadeiro e o falso, em suma, no “entre dois”, não sendo nem um, nem
outro. Ela guarda alguma dose de engano, mesmo que esse engano somente se restrinja
1
A metáfora da profundidade é sempre machista e fálica. Somente o homem e seu falo de fato podem se
aprofundar. A mulher é sempre superfície, pele. As palavras e os conceitos sempre escondem as relações
de poder, os quais estão, não na profundidade, mas escondidos na superfície.
266
ao sentidos, como no caso de um simulador de vôo. Mas ela guarda também a potência
da diferença, mesmo com toda a imersão sensorial numa simulação de vôo, estou
consciente de participar de uma simulação. As fronteiras entre razão e sentido são
inevitavelmente problemáticas, pois são instáveis no jogo aberto da simulação. Participo
de uma simulação, executo movimentos a partir de estímulos digitais, vivo tudo como
se fosse real, mas sei que não é real. Consigo estabelecer esta distinção porque as
imagens não são representações, mas movimentos que tocam meu corpo, o qual
responde adequadamente, graças a sua característica de indeterminação. Essa abertura
da indeterminação produz a possibilidade de, em algum momento, minha percepção
conseguir distinguir real e simulação, ou melhor, responder de formas diferentes aos
estímulos diferentes. Trata-se do que a fenomenologia chama de “intenção”. Intenciono
diferentemente a simulação e a realidade.
Irredutível à representação do modelo, porém inseparável da existência de
modelos, sempre lhe escapando e eternamente retornando, a simulação parece formar
com o modelo um vínculo de complementaridade, entrelaçamento e hibridação. Se a
representação concerne aos objetos e aos sistemas, a simulação concerne à dinâmica,
funcionamento, comportamento e movimento desses mesmos objetos e sistemas.
As presenças ubíquas e pervasivas da tecnologia informacional introduziram, em
nossa experiência cotidiana, a dimensão da simulação, produzindo mudanças nos
estatutos da experiência e no conceito de realidade. A idéia de simulação, que no
enquadramento platônico é classificada como farsa ou falso pretendente, ganhou nos
últimos anos uma positividade, não só na arte e nos jogos, mas também na esfera do
conhecimento. Hoje, técnicas de simulação são aplicadas largamente no processo de
ensino-aprendizagem e na produção de conhecimento científico.
267
Num mundo no qual ocorre processo de convergência digital numa velocidade
espantosa, a reprodução de signos, em especial as imagens, atinge tal proporções que já
podemos falar em proliferação, ao modo de contágio, das imagens. A própria estrutura
digital da imagem numérica, na qual sua reprodução não demanda perda de qualidade,
ao mesmo teoricamente, engendra a perda de todo sentido na distinção entre original e
cópia. Nesse contexto os conceitos de essência e aparência devem sofrer uma
remodelação, e, dado que era o fundamento clássico da simulação como farsa, a
simulação também deve sofrer uma reviravolta conceitual.
De fato, o simulacro liberado pela tecnologia digital possui uma certa dualidade,
não no sentido platônico, mas no sentido da ambigüidade e do paradoxo. Por exemplo,
quanto mais sofisticados os modelos algoritmos digitais, mais abre a possibilidade das
interfaces produzirem um efeito analógico, ou de realidade.
Em linhas bem gerais, o ciclo de produção de uma simulação computacional
obedece a algumas etapas.
1. Trabalho de campo na aproximação com o fenômeno a ser modelado,
registros como gravação de imagens, sons, etc. Armazenagem desses
registros em uma base de dados.
2. Análise dos elementos e seleção dos relevantes. Parametrização de
todos os dados.
3. Codificação do fenômeno em sistemas formais lógicos. Modelagem
dos elementos na linguagem formal escolhida.
4. Definição da expressão computacional, como linguagem de
programação, requisitos de hardware, desenvolvimento das
interfaces. Construção do modelo.
268
5. Teste sistemático do modelo e comparação com o fenômeno de base.
Testes de usabilidade.
6. Ajuste do modelo a partir dos testes e realimentação da base de dados.
A simulação computacional então demanda todo um saber para se realizar como
potência de afetar. A interatividade da simulação tem sempre a forma de um jogo,
mesmo quando se trata de questões científicas. Ela pressupõe regras, ou seja, um código
que constitui espaço e tempo como variáveis e que mescla determinação com uma certa
abertura para o acaso. A expressão “efeito de real” enfoca a dimensão imersiva da
simulação, com sua capacidade de absorver a atenção do interator. Ela remete à
capacidade da imaginação de antecipar no plano lógico um evento que poderá ocorrer.
Isto é comum entre os jogadores de xadrez, os quais estão sempre antecipando o lance
de seu adversário. Aparentemente, a simulação privilegia o digital, devido à sua
capacidade de desenvolver cálculos rapidamente. Entretanto, é graças à capacidade de
resposta motora do corpo que a antecipação de um evento, em simulação digital, pode
de fato ocorrer. Além disso, como já notamos, é graças ao fato do corpo ser um centro
de indeterminação quanto à ação que é possível simular digitalmente. Além disso,
também é graças a essa capacidade que podemos, mesmo numa intensa imersão, saber
perfeitamente que se trata de simulação e não de real. Claro que estamos falando de
situações nas quais os sujeitos envolvidos gozam de perfeita saúde física e capacidade
mental. O senso comum, permite perceber quando se trata de uma simulação ou da
realidade, mesmo que por um certo lapso de tempo os dois tenham se confundido.
Podemos dar um exemplo muito prático. Supomos que estamos dirigindo um
carro e passamos rapidamente por algo no chão que parece uma porção de vidro
quebrado. Seguimos em frente para em seguida voltar ao local e recolher os cacos de
269
vidro. Para nossa surpresa, quando voltamos, nos deparamos com uma poça de água no
local. Então conjecturamos e concluímos que na verdade se tratava de pedaços de gelo e
não de vidro. Houve, de fato, uma ilusão por um lapso de tempo. Mas, por intermédio
da própria percepção, a ilusão foi desfeita. A percepção pode até enganar, mas, com
certeza, pode esclarecer o engano. Podemos imergir tão funda que, por um lapso de
tempo, confundimos simulação e realidade, mas basta uma simples variação perceptiva,
um intervalo um pouco maior entre estímulo e resposta para a confusão se esvanecer.
Existe uma perversidade na simulação. Tecnicamente, o que define um
simulador não é só o alto grau de interatividade e imersão induzido pelo aparelho, mas
também um ambiente totalmente controlado por meio de cálculos algoritmos que
regram as entradas e saídas do sistema. A simulação é criada a partir de um modelo, os
quais são tradicionalmente usados para serem imitados e, cujo efeito, é estabilizar o
processo de copiar. Assim são modelos um molde, um paradigma, uma norma a ser
seguida, um padrão a ser reproduzido, um ídolo pop a ser imitado, ou um conjunto de
hipóteses a serem testadas. Hoje, aprende-se por simulação todo tipo de estratégia de
mercado, além de projetar com segurança qualquer tipo de empreendimento como a
construção de um prédio ou a invasão militar de um pais. Entretanto, é somente quando
a simulação se inscreve no real que atinge de fato sua meta. Nesse momento, todo o
controle possível abre a possibilidade do acaso na indeterminação da ação do corpo.
Mesmo levando em consideração as possibilidades de controle, no limite a
indeterminação pode ocorrer quando se trata do envolvimento do corpo. Evidentemente
que o corpo pode ser disciplinado e conduzido a responder de forma precisa aos
estímulos engendrados. Por exemplo, técnicas de simulação de vôo com fins de
treinamento de guerra. Entretanto, no limite o corpo é sempre um centro de
indeterminação. A liberdade inscrita nas suas ações, sempre podem emergir, mesmo que
270
a história comprove a presença constante da escravidão. O centro de indeterminação, no
limite, tem a potência de criar o novo, de responder de forma a violar as leis da cópia e
do clichê. Por isso o controle, mesmo o de natureza sofisticada, sempre pressupõe a
disciplina corporal. Foucault emprega o termo “controle” para se referir às formas mais
sofisticadas e fluidas de poder que se desenvolveram na própria sociedade disciplinar,
expressas na noção de risco e nas técnicas do panoptismo (Foucault 1999 a: 112).
A noção de controle de Deleuze difere um pouco da de Foucault, por ele
diferenciar a disciplina e o controle. Assim as novas forças do capitalismo pós-industrial
engendraram novas formas de controle, as quais são diferentes das disciplinas do
capitalismo industrial. Segundo Deleuze, a disciplina requer a presença de espaços
demarcados, fronteiras definidas e confinamentos. O controlo se exerce num ambiente
diferente, com espaços abertos e limites flexibilizados. Enquanto a disciplina funciona
por modelos do tipo molde, o controle age por modulações (Deleuze 1992). A sociedade
de controle parece privilegiar os modelos de simulação, dado que a definição de
Deleuze se aplica muito bem a eles. A fluidez das fronteiras espaciais e temporais, a
exacerbação da mobilidade, a modulação contínua de identidades e funções, o crescente
predomínio dos computadores.
A condenação da simulação deve-se então ao fato de seu uso engendrar um
possível controle social, e pelo fato de instaurar uma realidade sem referência, pois sua
essência é ser algoritmo numérico e sua aparência é ser “mais real do que o real”, ou
seja, substituir o real por um outro real (Baudrillard).
Entretanto, é o próprio Deleuze que concebe o simulacro como uma potência
construtiva. Nesse sentido, sua posição contrasta com Baudrillard, cujas concepções se
aproximam de um platonismo. Deleuze propõe uma reversão do platonismo, a qual
consistiria numa dupla recusa, ou seja, a abolição do mundo das essências e do mundo
271
as aparências. O projeto platônico de filtrar os pretendentes e instaurar a distinção entre
cópia e simulacro baseia-se no fato de que as cópias estão em segundo lugar garantidas
por uma semelhança de natureza interna e essencial, enquanto os simulacros seriam
como falsos pretendentes, construídos a partir de uma dissemelhança, implicando uma
perversão, um desvio essencial.
Platão divide então as imagens em dois grandes domínios: imagens-ícone e
simulacros-fantasma. Assim, ele estabelece uma diferença entre as boas e as más cópias,
a fim de garantir o triunfo das cópias ou ícones, que são as boas imagens e, com isso,
recalcar os simulacros, impedindo-os de emergir e de se insinuar por toda parte. As
cópias seriam boas imagens porque são dotadas de semelhança, a qual não deve ser
entendida como uma relação extrínseca entre duas coisas, mas como uma relação
intrínseca entre uma coisa e uma Idéia. Enquanto as cópias fundamentam-se sobre uma
semelhança interna, os simulacros não se dirigem à Idéia, mas buscam o objeto por
meio de uma agressão, de uma insinuação, de uma subversão.
A proposta deleuziana de reversão do platonismo implica numa visão contrária a
de Platão. Trata-se da afirmação dos diretos dos simulacros entre os ícones ou as cópias.
O simulacro, segundo Deleuze, não é uma cópia degradada, mas uma potência positiva
que nega tanto o original como a cópia, tanto o modelo como a reprodução.
Assim, na dimensão digital, o virtual deixaria de ser prisioneiro da atividade
imaginária. Ele agora emerge num ambiente digital povoado por novos objetos
virtualizados. O virtual é uma dimensão do real que não pretende substituí-lo, mas
simplesmente se afirmar como diferença, como potência de apresentá-lo, estendê-lo,
prolongá-lo ou interpretá-lo. O simulacro nesse contexto realiza uma hibridação entre o
real e o virtual criando um novo objeto perceptivo que não mais se rivaliza com real,
não é mais cópia, nem modelo, mas um espaço perceptivo experiencial de dimensão
272
tátil (Weissberg 1999). Agora, ele não mais pode ser entendido no enquadramento
representativo; ao se afirmar, sua natureza torna-se auto-referente.
Assim, uma imagem digital é uma presença no mundo. A percepção dela
acontece da mesma forma que qualquer outra imagem no mundo. Porém, a imagem
digital tem a vantagem de tornar explícita sua dimensão de movimento de fluxo de
dados. Sua percepção acontece no encontro com meu corpo, o qual processa uma
seleção de alguns dados recortados no fluxo contínuo da imagem digital. Nessa
perspectiva, ela não é nem simulacro nem representação. Trata-se de um acontecimento
perceptivo, desencadeador de fluxos motores em meu corpo e de uma continuidade
entre a dimensão motora e a dimensão intelectual. Em outros termos, o processo
perceptivo e comunicativo na imagem digital é desencadeador de processos cognitivos,
processos de conhecimento.
“O que nos força a pensar é o signo. O signo é o objeto de um encontro;
mas é precisamente a contingência do encontro que garante a necessidade
daquilo que ele faz pensar. O ato de pensar não decorre de uma simples
possibilidade natural; é, ao contrário, a única criação verdadeira. A criação
é a gênese do ato de pensar no próprio pensamento. Ora, essa gênese
implica alguma coisa que violenta o pensamento, que o tira de seu natural
estupor, de suas possibilidades apenas abstratas” (Deleuze 1987: 91).
No momento em que Deleuze apresenta o signo como aquilo que move o
pensamento, aquilo em função do qual o pensamento não consegue permanecer impune,
ele está promovendo uma inversão em relação à imagem tradicional que se tem do que
seja pensar. Tradicionalmente, pensar é buscar descobrir uma verdade oculta, desvelar
esta verdade, recôndita desde que se postulou o distanciamento e a separação entre o
mundo inteligível – lugar dos modelos, das Idéias – e o mundo sensível, nosso mundo –
lugar das cópias e dos simulacros. Deleuze quer inverter esta concepção (reverter o
platonismo) e diz que não há verdade original a ser restituída, a qual encontraríamos em
função de nossa boa vontade, do amor natural que lhe teríamos (Deleuze 1987:16). Pelo
273
contrário, a verdade é construção, invenção, decifração e criação de sentido, tudo
resultado de uma violência exercida pelos signos, forçando o pensamento a exercer sua
atividade. Essa violência pode ser desencadeada pelo contágio dos simulacros e sua
desestabilização dos processos representativos.
A libertação dos simulacros nos obriga a nos relacionar com as coisas em sua
diferença, ou seja, em sua unicidade. Trata-se de uma relação estética, que valoriza o
conhecimento do específico.
“Assim como é certo que nunca uma folha é inteiramente igual a uma outra,
é certo que o conceito de folha é formado por arbitrário abandono dessas
diferenças individuais, por um esquecer-se do que é distinto, e desperta
então a representação, como se na natureza além das folhas houvesse algo,
que fosse “folha”, eventualmente uma folha primordial, segundo a qual
todas as folhas fossem tecidas, desenhadas, recortadas, coloridas, frisadas,
pintadas, mas por mãos inábeis, de tal modo que nenhum exemplar tivesse
saído correto e fidedigno como cópia fiel da forma primordial” (Nietzsche
[1873] 1974: 56).
Propomos o relacionamento com a imagem digital tomando-a em sua
especificidade, como objeto no mundo e não como uma representação de um mundo
predeterminado. A libertação dos simulacros nos faz admitir que o mundo é de muitas
formas. Existem muitos mundos engendrados pela experiência. A quantidade deles
depende da estrutura do corpo envolvido na experiência e dos tipos de distinção que ele
é capaz de fazer. A cognição é uma experiência que parte da percepção como um
processo e não é a representação de um mundo preconcebido por uma mente
preconcebida mas, ao contrário, é ação sensório-motora de um mundo e de uma mente
com base na diversidade de ações desempenhadas por um ser no mundo. A mente não é
um espelho da natureza e a percepção não é representação (Rorty 1994). A concepção
da representação pressupõe três noções fundamentais.
1. A noção fundamental de que habitamos um mundo com propriedades
particulares e fundamentais como extensão, cor, movimento, figura, som, etc.
274
2. Nossa mente em relação com esse mundo seleciona e recupera essas
propriedades representando-as internamente.
3. A crença de que existe um “eu” subjetivo separado do mundo que realiza
essas tarefas, centralizando a representação e manipulando-as.
Esses pressupostos da filosofia da representação tem suas origens na teoria do
conhecimento de base cartesiana.
A Filosofia da Representação Cartesiana e o Desprezo pelo Corpo
Descartes considera a existência de uma passividade do corpo na recepção dos
dados sensoriais. Contrariando as teorias que acreditam que o conhecimento provém
diretamente das sensações, ele acredita que o conhecimento somente é obtido por meio
do raciocínio. O verdadeiro conhecimento das coisas não pode ser obtido senão por
meio da razão. Ele opera, assim, uma distinção entre dados dos sentidos e
conhecimento, entre o corpo e o espírito. Neste contexto dualista, a percepção não pode
ser senão uma representação interna das coisas externas. O corpo pertence à substância
material que é, em essência, extensão divisível, e o espírito pertence à substância
pensante, indivisível. As faculdades corporais de locomoção e de nutrição são próprias
ao corpo, enquanto as faculdades sensitivas e intelectuais atributos do espírito. Desenha-
se um dos maiores problemas da filosofia ocidental: a relação mente-corpo. A partir de
Descartes, o corpo e a mente são duas substâncias distintas. A oposição entre sujeito e
objeto é consoante com esse dualismo e constitui o cerne da metafísica na cultura
ocidental. Antes de Descartes, a palavra idéia era utilizada apenas para os conteúdos da
mente de Deus. Descartes foi um dos primeiros a tomar esse termo e aplicá-lo à
275
epistemologia
2
. Esta mudança lingüística e conceitual é apenas um aspecto do que
Richard Rorty (1994, capítulo I) descreveu como a “invenção da mente como um
espelho da natureza”, uma invenção que foi o resultado de uma oposição fundamental
entre sujeito e objeto. De acordo com esse ideal, o processo de conhecimento implica
em atingir um mundo que está fora e existe independente de minha mente. É somente
por meio de representações precisas, claras e distintas, internas à minha mente, que
poderei conhecer esse mundo lá fora.
A descoberta do cogito por Descartes – sou uma coisa pensante – engendrou a
noção de que a reflexão é sempre de natureza desincorporada, ou seja, sem relação
como o corpo.
O representacionalismo em suas versões contemporâneas assume alguns
pressupostos ontológicos e epistemológicos herdeiros do cartesianismo. Ele assume que
o mundo é predeterminado e suas características podem ser especificadas antes de
qualquer atividade cognitiva. Então, para explicar a relação entre essa atividade
cognitiva e um mundo predeterminado, hipotetiza-se a existência de representações
mentais no interior do sistema cognitivo. Essas representações, conforme o partido
teórico, podem tomar diversas formas: imagens, símbolos ou padrões subsimbólicos de
atividades distribuídas por meio de redes, etc. Em suma, o mundo é sempre
predeterminado e nossa cognição é sobre esse mundo – mesmo se apenas parcialmente.
O modo pelo qual conhecemos esse mundo predeterminado é representando suas
características e então agindo com base nessas representações. Assim, mesmo que a
representação seja concebida de forma complexa em algumas teorias, ela é, todavia,
2
Em suas respostas às objeções de Hobbes, Descartes escreveu: “Pelo nome de idéia, não quero dizer as
imagens das coisas materiais dependentes da fantasia corporal […] Estou utilizando o termo idéia para
significar tudo aquilo que a mente percebe diretamente […] Empreguei esse termo porque era o termo
comumente utilizado pelos filósofos para as formas de percepção da mente Divina, embora não possamos
discernir nenhuma construção de imagem em Deus; além disso, eu não possuía nenhum outro termo
adequado” (Descartes [1641] 1824-1826: 481).
276
fundamentalmente entendida como a recuperação ou a reconstrução de características
ambientais extrínsecas e independentes. Se alegarmos que a atividade do processo
perceptivo e cognitivo é representar um ambiente independente, então nos
comprometemos a construir esses processos como pertencentes à classe de sistemas
comandados de fora, definidos em termos de mecanismos de controle, ou seja, um
sistema heterônomo. Nesse sistema, as informações são concebidas como quantidades
pré-especificadas, que existem independentes no mundo e podem agir como input para
um sistema perceptivo. Esse input fornece as premissas iniciais sobre o processo de
cognição que redunda em informações no output. É um sistema no qual o ambiente é
sempre compreendido como algo exterior e alienígena a um corpo, o qual é
compreendido, nas palavras de Varela, como um informívero (Varela 2003: 149).
Ao contrário do sistema descrito acima, no bergsonismo, a percepção é vista
como um processo ativo de formação de hipóteses, não como o espelhamento simples
de um ambiente predeterminado. O mundo é concebido como um background – um
cenário e uma área para toda a nossa experiência. Se queremos compreender nossa
percepção como engendrada na situação de estar-no-mundo, então devemos inverter a
atitude representacionista e tratar o conhecimento como algo dependente do contexto, e
não como um artefato residual.
A hermenêutica contemporânea de Heidegger e Gadamer é um paradigma
teórico nesse tipo de enfoque, no qual o fenômeno da interpretação é compreendido
como uma produção de significado a partir de um background da compreensão. Assim,
o conhecimento depende de estarmos em um mundo inseparável de nossos corpos,
nossa linguagem e nossa história social, em resumo de nossa incorporação. A
compreensão é então um evento no qual temos um mundo, ou mais apropriadamente,
uma série de eventos de significados correlacionados e contínuos, nos quais nosso
277
mundo sobressai. Como na Gestalt uma figura sobressai do fundo. A relação entre o
signo e o mundo não é fixa. A objetividade não é alcançada por meio de um ponto de
vista que transcende a incorporação humana, a inserção cultural, a compreensão
imaginativa e a localização dentro das tradições historicamente desenvolvidas. O
significado então inclui padrões de experiência incorporada e do próprio processo
perceptivo, isto é, de nossa forma de perceber, de nos orientarmos, de interagir com
outros objetos, eventos e pessoas. Esses padrões incorporados não permanecem
privados ou restritos à pessoa que os experimenta. Nossa comunidade nos auxilia a
interpretar e codificar muitos de nossos padrões. Eles se tornam modos culturais
compartilhados de experiência e ajudam a determinar a natureza de nossa compreensão
coerente e significativa de nosso mundo. Então se somos forçados a admitir que a
cognição não pode ser adequadamente entendida sem o senso comum, e que esse não é
outra coisa senão nossa história corporal e social, então a inevitável conclusão é de que
aquele que conhece e aquilo que é conhecido – a mente e o mundo – se relacionam por
meio da mútua especificação, ou seja, possuem uma origem comum e dependente.
O sistema visual nunca é simplesmente presenteado com objetos
predeterminados. Ao contrário, a determinação do que é e onde está um objeto, bem
como de seus limites de superfície, sua textura e sua orientação relativa no espaço, sua
cor e qualidades é um processo complexo que o sistema visual deve continuamente
alcançar. Dar conta desse processo, como vimos, resulta de uma cooperação complexa
envolvendo o diálogo ativo entre todas as modalidades visuais. Assim, todo esse
sistema perceptivo depende de nossas capacidades incorporadas.
278
A Percepção Incorporada Segundo Bergson
"a percepção, em seu conjunto, tem sua verdadeira razão
de ser na tendência do corpo a se mover" (Bergson,
Matéria e Memória)
No século XIX surgem as metrópoles, as quais são ambientes perceptivos
engendrados pela presença da tecnologia e da proliferação dos signos devido ao
desenvolvimento das mídias impressas. Os estudos biológicos influenciam a filosofia e
uma nova convicção em relação à teoria da percepção se desenvolve. Agora, se localiza
as sensações no corpo, em particular no cérebro. Mas o cérebro é de natureza corporal
ou mental? Em outros termos, a faculdade sensitiva é de ordem estritamente corporal?
Ou as faculdades intelectuais permanecem o privilégio do espírito? Diante da redução
corporal, operado no século XIX, das funções do espírito, duas posições surgem com
suas respectivas teses. Uma das posições conserva a concepção da passividade dos
dados sensoriais, defendendo o dualismo em suas múltiplas ocorrências. A outra recusa
a dualidade entre corpo e espírito, afirmando a continuidade dos laços entre percepção e
ação.
A oposição entre realismo e idealismo está baseada na noção de representação
como um véu de idéias que fica entre nossa mente e o mundo lá fora. Por um lado, o
realista pensa que existe uma diferença entre nossas idéias ou conceitos e o que eles
representam, ou seja, o mundo. Para Descartes a validade de nossas representações era
garantida por Deus. Segundo ele, as idéias, enquanto são “imagens das coisas”, diferem
entre si pela maior ou menor riqueza de seu conteúdo. A idéia de um Deus eterno e
infinito é, dentre todas, a mais rica. A “luz natural”, ou seja, a evidência das idéias
claras e distintas que o Cogito me revelou, ensina-me que deve haver tanta realidade na
causa quanto em seu efeito. Assim, esta idéia de perfeição que tenho somente pode vir,
279
não de mim, mas de um ser bastante poderoso e real para sustentar essa idéia. Assim, o
encontro de uma idéia que seja efetivamente uma essência objetiva, me garante a
existência e a natureza de seu objeto. Isto é o que funda a objetividade da ciência. Esta
idéia é a de Deus, e a existência de um Deus veraz irá converter a necessidade subjetiva
das idéias em necessidade objetiva. Porém, no mundo contemporâneo, Deus não pode
desempenhar tal papel na fundação da ciência. Assim, o que irá validar as nossas
representações é o mundo independente. As nossas representações então são padrões
internos cujo objetivo é aumentar a probabilidade de que globalmente nossas
representações correspondam ou se adaptem a um mundo externo e independente.
Por outro lado, o idealista afirma que não temos acesso a esse mundo
independente, exceto por meio de nossas representações. Não podemos ficar fora de nós
mesmos para observar se nossas representações correspondem aos fatos do mundo.
Somente uma terceira pessoa poderia constatar essa correspondência. Para o idealista
não temos idéia de como é o mundo exterior, exceto que ele é o objeto presumido de
nossas representações. Assim, a própria idéia de um mundo independente de
representações é por si só apenas mais uma de nossas representações.
Mais contemporaneamente, na filosofia da mente permanece a divisão em duas
grandes categorias: as teorias dualistas e as teorias materialistas. Segundo a abordagem
dualista, a mente é uma substância não-física. Para as teorias materialistas, o mental não
é diferente do físico. Todos os estados, propriedades, operações e processos mentais
são, em princípio, idênticos a estados, propriedades, operações e processos físicos.
Alguns materialistas, conhecidos como behavioristas, afirmam que toda discussão sobre
causas mentais pode ser eliminada da linguagem da psicologia e substituída pela
discussão dos estímulos ambientais e das respostas comportamentais.
280
Boa parte das teorias cognitivas contemporâneas, por exemplo os modelos
computacionais da mente, permanece numa concepção em parte cartesiana
3
, defendendo
a condição passiva da recepção dos dados sensoriais. A cognição é identificada com um
sistema de tratamento linear da informação. Os dados dos sentidos são considerados
como entrada, as quais se tornam percepção e raciocínio, gerando, por fim, a ação,
compreendida como uma saída. Este processo cognitivo tem como fundamento uma
cognição entendida como um cálculo sobre representações mentais, segundo o modelo
cartesiano. É uma teoria funcionalista do raciocínio entendido como manipulação de
representações simbólicas. Daí sua analogia com o computador, já que este é
exatamente cálculo e manipulação de símbolos compreendidos em sua dimensão
sintática. Esse modelo computacional da mente tem como fundamento uma distinção
entre informação simbólica e estruturada e o suporte material ao qual ela está ligada, ou
que a gerou. A informação é independente do material particular que a suporta. Trata-se
de uma concepção totalmente desmaterializada da informação.
Uma Máquina de Turing pode ser informalmente caracterizada como um
mecanismo com um número finito de estados do programa. Os inputs e outputs da
máquina são escritos em uma fita, que é dividida em quadrados, cada um deles contendo
um símbolo de um alfabeto finito. A máquina escaneia a fita, um quadrado de cada vez.
Ela pode apagar o símbolo de um quadrado e imprimir um outro em seu lugar. Ela pode
executar apenas as seguintes operações mecânicas: escanear, apagar, imprimir, mover a
fita e mudar de estado.
Os estados do programa da Máquina de Turing são definidos somente em termos
dos símbolos de input e output da fita, as operações elementares e os outros estados do
programa. Cada estado do programa é funcionalmente definido, portanto, pela parte que
3
Embora, de fato, essas teorias se esforcem em superar o dualista cartesiano. Porém, mesmo se o
dualismo é superado, ainda permanece uma concepção da percepção como passividade.
281
ele assume na operação geral da máquina. Uma vez que o papel funcional de um estado
depende de sua relação com outros estados e também com os inputs e outputs, o caráter
relacional do mental fica preservado nesta versão do funcionalismo, chamada de
funcionalismo tipo Máquina de Turing. Já que a definição de um estado do programa
nunca se refere à estrutura física do sistema que roda o programa, o funcionalismo tipo
Máquina de Turing também preserva a idéia de que o caráter de um estado mental é
independente de sua realização física. Um ser humano, uma sala cheia de pessoas, um
computador e um espírito desencarnado seriam todos uma Máquina de Turing, se eles
operassem de acordo com um programa de uma Máquina de Turing. Trata-se
novamente de uma concepção totalmente desincorporada da informação e sua relação
perceptiva
4
.
Esse modelo informacional foi estendido à concepção da mente humana. Porém,
neste contexto, se concebeu um paralelismo estrito entre o estado mental e o estado
físico do cérebro. Assim, é preciso associar cada tipo de estado mental com um tipo de
estado cerebral preciso. Os teóricos defensores dessa “teoria da identidade” entre
atividade mental e mecanismo cerebral acreditam superar, com sua teoria, os impasses
do dualismo (Churchland 1989). Assim, os teóricos da identidade defendem a existência
de causas mentais e a identidade dessas com eventos neurofisiológico no cérebro.
Uma outra via teórica procurou fundar uma dualidade entre estado físico e
estado funcional sem, entretanto, defender uma dualidade substancial. Ela é o resultado
de uma reflexão filosófica sobre os desenvolvimentos da inteligência artificial, da teoria
4
Katherine Hayles (1999), em seu livro: How We Became Posthuman: Virtual Bodies in Cybernetics,
Literature, and Informatics, procura mostrar as relações entre o pós-humano e corpo. Num dos capítulos,
ela analise Turing e suas teorias, assinalando que a mente brilhante de Turing o levava a preferir um
relacionamento com o mundo em bases lógicas, se envolvimento corporal. Uma situação semelhante a
estar num quarto trocando informação de ordem lógica com um mundo lá fora. Entretanto, como muito
bem observa Hayles, o próprio Turing sofreu na vida concreta a violência simbólica em seu próprio
corpo, devido à sua condição de homossexual. A medicina e seus agentes usaram uma série de
“remédios”, experimentais na época, para tentar curar Turing de seu “mal”. Acabou se suicidando.
282
computacional, da lingüística, da cibernética e da psicologia. Todos esses campos,
conhecidos coletivamente como as ciências cognitivas, possuem em comum um certo
nível de abstração e uma preocupação com sistemas e processos de informação. O
funcionalismo, que é uma tentativa de fornecer uma explicação filosófica desse nível de
abstração, reconhece a possibilidade de sistemas tão diversos como os seres humanos,
as máquinas de calcular e os espíritos desencarnados poderem ter estados mentais.
Segundo a visão funcionalista, a psicologia de um sistema não depende da matéria a
partir da qual ela é feita (células vivas, energia mental ou espiritual), mas sim do modo
como ela é arranjada. ‘Funcionalismo’ é um conceito difícil e uma das maneiras de lidar
com ele é rever as deficiências das filosofias dualistas e materialistas que ele pretende
substituir.
O principal inconveniente do dualismo é o seu fracasso em explicar
adequadamente a causação mental. Se a mente é não-física, ela não ocupa posição no
espaço físico. Como, então, pode uma causa mental provocar um efeito comportamental
que tem uma posição no espaço? Em outras palavras, como pode o não-físico dar
origem ao físico, sem violar as leis científicas do mundo físico?
O dualista poderia responder que o problema de como uma substância imaterial
pode causar eventos físicos não é mais obscuro do que o problema de como um evento
físico pode causar outro. Entretanto, há uma diferença importante: existem muitos casos
evidentes de causação física, mas nenhum caso evidente de causação não-física. A
interação física é algo com que os filósofos, como todas as outras pessoas, têm que
conviver. A interação não-física, por outro lado, pode ser apenas um artefato da
construção imaterialista do mental. Hoje em dia, a maioria dos filósofos concordam que
nenhum argumento demonstrou com sucesso por que a causação mente-corpo não deve
ser considerada como uma espécie de causação física.
283
Informação não é so bit, é também semântica e forma. Enquanto a teoria
canônica da informação de Shannon desincorpora e desmaterializa a informação,
Bergson ressalta a dimensão processual e complexa da percepção e da comunicação.
Vários teóricos, anteriores a Bergson, questionaram a concepção linear e
seqüencial do processo perceptivo e propuseram que a percepção não necessita de
nenhuma representação, ou seja uma (re)apresentação do real, uma cópia mais ou menos
exata do real. Nem cópia, nem representação, a percepção é um processo, uma
atividade, um acontecimento. O vocabulário fenomenológico sugere o uso de
“presentificação”
5
, o qual se refere à atividade de apresentar, mais do que a coisa
apresentada. É na base desta recusa de considerar a percepção como fundada sobre as
representações que emergem as teorias ativas da percepção, inauguradas notadamente
pela fenomenologia bergsoniana (1896) e husserliana (1907). Essas duas
fenomenologias foram as respostas para a crise histórica da psicologia no século XIX,
originada pela disjunção entre a consciência com suas imagens qualitativas e inextensas;
e o espaço, com seus movimentos quantitativos e extensos. O problema era como passar
de uma ordem a outra, já que eram substancialmente diferentes. Era preciso então, como
vimos no capítulo anterior, superar esse dualismo entre a consciência e a coisa, entre a
imagem e o movimento. Husserl tentou superar o dualismo por meio da fórmula: toda
consciência é consciência de alguma coisa. Bergson por meio da sobreposição entre
consciência e coisa, ou melhor, toda consciência é alguma coisa (Deleuze 2001).
Procuramos, no terceiro capítulo, estudar a teoria sensório-motora da percepção
desenvolvida por Bergson, notadamente em sua obra Matéria e Memória ([1896]), bem
como relacioná-la com o contexto geral do pensamento do filósofo. A teoria de
5
Brentano, que teve enorme influência na fenomenologia, em sua monumental obra Psychologie du Point
de vue Empirique, de 1874, declarava: “por ‘presentificação’ eu não quero dizer o que é presentado, mas
a atividade mesma da presentação” (Brentano [1874] 1992: 7).
284
Bergson, novidade em seu tempo, concebe o centro da atividade perceptiva no processo
ação/percepção, desvelando o caráter eminentemente ativo da percepção. O sistema
nervoso não é entendido como um aparelho que fabrica as representações (Bergson
[1896] 1997). Para Bergson, o cérebro não possui nenhum poder suficiente para
transformar a percepção em alguma coisa diferente, como uma representação interna.
Assim, quando Bergson afirma que a percepção é alguma coisa, está afirmando que ela
é da mesma natureza que a matéria. Diante dos teóricos da percepção
representacionalista, Bergson solicita insistentemente:
“Que renuncie à sua varinha mágica, e que continue no caminho onde havia
entrado inicialmente. Você nos havia mostrado as imagens exteriores
atingindo os órgãos dos sentidos, modificando os nervos, propagando sua
influência no cérebro. Prossiga até o fim. O movimento irá atravessar a
substância cerebral, não sem ter aí permanecido, e se manifestará então em
ação voluntária. Eis aí todo o mecanismo da percepção” (Bergson [1896]
1997: 23).
Para Bergson as coisas são claras, no cérebro existem apenas movimentos e não
representações das coisas. Assim, trata-se de um processo de receber e transmitir o
movimento, ou as imagens-movimento, num ciclo de ação e reação, o qual não é
automático. É a existência ou não de uma solução de continuidade que distingue o
movimento automático do ato perceptivo. A ação é a resposta motora para um estímulo
sensorial. Ela pode ser imediata ou acontecer após um intervalo. Se ela é imediata, os
movimentos aferentes se traduzem em reações automáticas. Se ela é diferenciada, os
movimentos aferentes se prolongam não numa ação, mas em um intervalo que se
manifesta como percepção. Bergson propõe, desde então, considerar o corpo como um
órgão de ação e somente de ação, e a percepção como uma função corporal de ordem
pragmática.
A percepção é percepção de um objeto externo. Entretanto, é necessário
distinguir a percepção e a coisa percebida. A percepção não é percepção de alguma
285
coisa, ela é alguma coisa, portanto, não se trata de representação, mas de
presentificação. Ela se distingue entretanto das outras percepções, pois sempre se trata
da percepção de uma coisa em particular.
Bergson enfrenta então a questão como uma percepção pode também ser uma
coisa, já que a percepção é classicamente definida como qualidade segunda, em outros
termos, imagem, e a coisa é entendida em termos físicos, movimento, ou seja,
qualidades primeiras?
Como vimos no segundo capítulo, o real, para Bergson, é imagem-movimento.
Assim, o cérebro também é imagem-movimento, da mesma forma que a coisa exterior.
Cérebro e coisa estão distantes e uma percepção acontece quando um movimento se
propaga de um a outro, havendo num determinado momento a suspensão desse
movimento. Assim, existe percepção quando percepção e coisa entram em solidariedade
no cerne de uma mesma imagem. Porém, a percepção é também uma ação de recortar
uma parte da imagem total, tornando essa parte uma coisa para si. A aparência é então,
se não a própria coisa, pelo menos uma parte do real, da coisa em si. Assim, a percepção
se realiza nas coisas e o ordenamento do sistema perceptivo se realiza no real sem que
tenha necessidade do real se desdobrar no cérebro. Para Bergson, a percepção é a visão
de um detalhe selecionado em primeiro lugar por mecanismos sensório-motores. Seu
conteúdo é as próprias coisas. Vemos diretamente nas coisas, nenhuma representação
interna se constitui. Assim, o corpo é visado enquanto órgão unicamente de ação, o qual
não possui nenhum aparelho para fabricar as representações.
É a partir do par conceitual matéria-memória que Bergson conceituou a natureza
da percepção, procurando superar as dicotomias clássicas de sujeito e objeto e suas
derivações: corpo-mente, cérebro-mundo, natureza-cultura, etc. O conhecimento é
pensado então a partir de hibridações e interferências. As coisas não estão dentro da
286
mente, independentes do mundo real, biológico e cultural à nossa volta. Contrariamente
à visão idealista, ou subjetiva, as coisas percebidas pertencem ao nosso mundo
biológico e cultural, mundo compartilhado. Contrariamente à visão realista, ou
objetivista, as coisas percebidas são experienciais.
Para o bergsonismo a coisa é a imagem, a matéria é o conjunto das imagens.
Entre as imagens há uma simples diferença de grau, mas não de natureza. Isso quer
dizer que todo o conjunto da realidade é dado primeiramente como participando da
consciência, ou melhor como da consciência: senão, essa realidade nunca poderia
tornar-se consciente, isto é, tomar de empréstimo um caráter que seria estranho à sua
natureza. Não há capacidade que se oponha à luz e a receba, constituindo assim um
objeto iluminado; há luz pura, fosforescência, sem matéria iluminada; somente, essa luz
pura, difusa por toda parte, não se torna atual a não ser refletindo-se sobre certas
superfícies.
Esse centro, ao mesmo tempo de reflexão e de obscuridade, que atualiza a
consciência virtual, é o corpo. O corpo age como instrumento de seleção; graças a ele, a
imagem torna-se percepção; a percepção é a imagem relacionada à ação possível de
uma certa imagem determinada, que é, justamente, o corpo. “Dêem-me as imagens em
geral e meu corpo acabará necessariamente por se desenhar no meio delas como uma
coisa distinta, uma vez que elas mudam sem cessar e ele permanece invariável”
(Bergson [1896] 1997: 53).
O presente é, por essência, sensório-motor. É um corte que a percepção pratica
em uma massa em vias de escoamento. Este corte é, precisamente, o mundo material. É,
ainda, uma coisa absolutamente determinada e que se recorta sobre meu passado. O que
é atual é o presente. O presente é definido pela ação do corpo. Evocar uma lembrança é
tornar presente uma imagem passada: mas a imagem evocada não é simples ressurreição
287
da imagem armazenada, pois do contrário não compreenderíamos como, a propósito de
um semblante do qual possuo uma multiplicidade de lembranças distintas
correspondentes à multiplicidade de percepção, evoco uma imagem única, que pode
mesmo não recobrir nenhuma das lembranças registradas. É preciso, para reaparecer à
consciência, que a imagem se insira no corpo, ela é uma encarnação no corpo e nos seus
mecanismos motores da lembrança pura, inativa, despercebida, que existia apenas
virtualmente. Viver, para o espírito, é sempre inserir-se nas coisas por intermédio de um
mecanismo. A lembrança é submetida a esta condição; no estado puro ela é clara,
precisa, mas…sem vida; parece com essas almas de que fala Platão, que devem deixar-
se cair em um corpo para poderem atualizar-se: ela é virtual. Tem, pois, necessidade,
para tornar-se presente, de se inserir numa atitude corporal; chamada do fundo da
memória, ela se desenvolve em imagens-lembrança que se inserem em um esquema
motor e se torna então uma realidade ativa, uma imagem. Nesse sentido, a imagem é um
estado presente e não pode participar do passado a não ser pela lembrança da qual ela
saiu. Bergson insiste sobre o papel do movimento; mostra que toda imagem visual,
auditiva, etc., é sempre acompanhada por um esboço de movimento, pela criação de
esquemas motores. Duas conseqüências resultariam daí: primeiramente, nada
distinguiria a imagem da percepção, que é igualmente uma atitude presente, e a imagem
seria, como a percepção, ação e não conhecimento; em seguida, a imagem não seria
uma lembrança mas uma criação nova, respondendo às atitudes sempre novas do corpo.
Para o representacionista, o ponto de partida para compreender a percepção é o
problema do processamento das informações, além do fato da necessidade de recuperar
as propriedades predeterminadas do mundo. Para Bergson, trata-se de pensar a
percepção como uma informação de como nosso corpo pode orientar suas ações em sua
situação local. A atividade desse corpo engendra a mudança constante das situações
288
locais. Assim, o ponto de referência para compreender a percepção não é mais um
mundo predeterminado independente do observador, mas sua estrutura sensório-motora
presente no mundo. Em termos bergsonianos, a percepção é dirigida no sentido da ação
no mundo. No processo perceptivo, o perceptor é incorporado no ato de perceber.
Assim, não se trata de determinar como a realidade independente do perceptor pode ser
recuperada por meio de uma representação. Trata-se, ao contrário, de determinar os
princípios comuns entre o sistema sensorial (percepção) e o sistema motor (ação) que
explicam como a ação pode ser perceptivamente orientada em uma realidade
dependente do perceptor, já que ele é corpo e o corpo é parte da realidade. Em termos
bergsonianos, tanto corpo como as coisas são imagem-movimento. As propriedades do
objeto e as intenções do sujeito não estão apenas entrelaçadas, mas também constituem
o todo. Assim, tanto o corpo como o ambiente estão reunidos em especificações e
seleções recíprocas. Dessa maneira, a dinâmica da informação dispensa todas as
unidades a priori, pois é anterior aos seus agentes. A comunicação é processo no qual as
categorias de mensagem, emissor e receptor se constituem no decorrer do processo da
in-formação. Conseqüentemente, torna-se impossível decompor o conjunto em
entidades independentes. O tempo desdobra-se tornando-se o fio condutor do processo.
O corpo como processo de seleção do fluxo torna-se o centro da produção do novo.
A teoria de Bergson da relação entre percepção e ação reafirma o que as novas
tecnologias interativas tem explicitado sobre o estatuto da percepção enquanto momento
privilegiado do agir (Hansen 2004). No bergsonismo o processo de ver é um convite à
ação. Perceber é agir virtualmente sobre algo. A partir dos estímulos recebidos, o corpo,
centro de indeterminação, manipula seu esquema sensório-motor de ação e reação. O
olhar manipula nosso esquema sensório-motor. Na interface mouse, teclado e tela,
quando olhamos a tela movimentamos olhos e mãos, os quais se ocupam de controlar os
289
movimentos do mouse. A percepção desvela esse momento tátil de exploração do
espaço. A reação sensório-motora ao estímulo percebido é o que experimenta um
“espectador-ator” imerso num espaço virtual, o qual é explorado pela dimensão tátil do
sistema perceptivo.
James Gibson (1974, 1983) afirma, em sintonia com o bergsonismo, que o modo
como navegamos nosso mundo e manejamos as coisas dentro dele formam a nossa
visão e o modo como vemos o mundo (Gibson 1974: capitulo 13). A DataGlove (luva
cibernética), que manipulava um objeto virtual no ciberespaço, simulou a crença
gibsoniana e bergsoniana de que nós literalmente nos agarramos ao nosso mundo e
fazemos dele parte da nossa experiência. A extensão do braço e mão virtuais do usuário
no ciberespaço foi teorizada de modo a permitir uma espécie de mapeamento das
dimensões do mundo virtual em perfeita relação com os movimentos corporais.
Percepção é incorporação. Cognição é uma extensão da percepção.
Na imersão da realidade virtual isto se torna mais patente ainda, embora não seja
nesse único ambiente que ocorra o processo perceptivo, tal como Bergson explicou em
sua teoria da percepção. Digamos que a realidade virtual é um ambiente privilegiado
para experimentar esse processo. Neste ambiente, um movimento real do corpo é capaz
de produzir modificações no espaço virtual. Um simples deslocamento do globo ocular
ou gestos sutis encontram contrapartida no interior desses espaços simulados. Podemos
explorar corporalmente imagens sintéticas, formas e cores, ambientes, por meio de
óculos especiais e máscaras visuais conectadas à luvas de dados que captam estímulos
corporais como gestos de mão, movimentos de cabeça, dos membros, direção do olhar e
até temperatura do corpo, respiração, etc. Bergson mostrou, como vimos no terceiro
capítulo, que a percepção está sempre ligada a uma tendência motora, ao que ele
chamou de “esquema sensório-motor”. Esse esquema é a filtragem pelo corpo de uma
290
parte do fluxo da imagem-movimento, operando uma decomposição do percebido em
função da sua utilidade para a satisfação das necessidades de um corpo. Assim, nossa
percepção está sempre ligada a uma ação, mesmo que ela não se realize, permanecendo
virtual (Bergson [1896] 1997). Se ver implica necessariamente em agir, temos
inevitavelmente uma relação sensorial entre o sentido do olho e o sentido do tato. Essa
relação sensorial, nas experiências de interação digital, é explorada ao ponto de se
tornar extremamente complexa (Hansen 2004). Nesse ambiente, o que assegura nosso
deslocamento no interior da imagem é o deslocamento do nosso próprio campo visual.
O olhar torna-se fisicamente não mais receptor e organizador, mais emissor, ativo na
relação entre coisa e percepção. O sistema visual nunca é simplesmente passivo na
captação de objetos predeterminados. Ao contrário, a determinação do que é e onde está
um objeto, bem como de seus limites de superfície, sua textura e sua orientação relativa
ao espaço é um processo complexo que o sistema visual deve continuamente alcançar
(Varela 2003). Todo o processo, então, resulta de uma cooperação complexa
envolvendo o diálogo ativo entre todas as modalidades visuais. Por exemplo, a visão de
cores está efetivamente envolvida em um processo cooperativo, pelo qual as cenas
visuais se tornam segmentadas em um conjunto de superfícies. Assim, é impossível
separar o objeto percebido de sua cor, pois é o próprio contraste da cor que forma o
objeto. Como vimos, no processo perceptivo, segundo Bergson, as qualidades segundas
são iguais as qualidades primeiras, ou seja, cor é igual à coisa (Gouras & Zenner 1981).
Assim, as cores e as superfícies andam juntas: ambas dependem de nossas capacidades
perceptivas incorporadas.
A fenomenologia bergsoniana é uma superação das aporias clássicas entre ser e
aparecer, corpo e mente, corpo e imagem. A experiência perceptiva da imagem digital
cria ambientes perceptivos nos quais existe o aspecto da interação entre ver e agir.
291
Nesses ambientes, podemos misturar imagens do nosso próprio corpo com outras
imagens numa experiência digital que amplifica o bergsonismo na superação da
dualidade substancial entre sujeito e objeto.
A dimensão ontológica que a fenomenologia bergsoniana atribui à imagem-
movimento, aliada à libertação do simulacro afirmado como diferença, explicitam as
forças que trabalham a imagem do seu interior. O cinema clássico presentifica as
imagens determinadas por leis de associação, contigüidade, semelhança, oposição, ou
seja, por leis exteriores a própria imagem. Já as imagens digitais de síntese, em sua
autonomia, se autoproduzem do interior, numa gênese maquínica associada a gênese
físico-biológica do ser vivo. Como simulacros libertos, a reprodução da imagem de
síntese assemelha-se à proliferação por contágio entre seres heterogêneos, vírus e
homem, bactéria e hospedeiro. Segundo Simondon: “o ser vivo resolve problemas, não
apenas se adaptando, ou seja, modificando sua relação com o meio (como uma máquina
pode fazer), mas modificando-se ele mesmo, inventando estruturas internas novas,
introduzindo-se a si mesmo, inteiro, nos axiomas dos problemas vitais” (Simondon
1995: 9).
Essa mesma capacidade de auto-organização e auto-reprodução que Simondon
observa no processo de formação do vivo, Bergson observa na relação corpo e mundo,
ou seja, na imagem-movimento. Esta possui a qualidade, que é a maneira de ser que
aperfeiçoa um objeto, seja em seu ser, como a beleza, a duração, seja em sua operação,
como a virtude. Assim, a força é uma qualidade da matéria, a saúde uma qualidade dos
vivos, a ciência uma qualidade do espírito.
Na Evolução Criadora (1907/1964), Bergson descreve o movimento de evolução
da vida desde seu impulso original de vida, o elã vital, até o surgimento do ser humano
e, com ele, da consciência psicológica; através da consciência psicológica ainda
292
atravessa a energia do elã vital que lhe garante as mesmas qualidades do movimento que
a criou, dessa maneira, também, ela é criadora (artística e eticamente), una em seu
movimento contínuo e múltipla em virtualidades.
Em seu processo de proliferação e autoprodução, a imagem digital cria uma
nova topologia constitutiva do espaço que habita. O espaço é constituído e constitui a
imagem, dado que não existe de forma a priori. Como assinala Deleuze:
“As novas imagens já não têm exterioridade (extracampo), tampouco
interiorizam-se num todo: têm, melhor dizendo, um direito e um avesso
reversíveis e não passíveis de superposição, como um poder de se voltar
sobre si mesmas. Elas são objetos de uma perpétua reorganização, na qual
uma nova imagem pode nascer de qualquer ponto da imagem precedente”
(Deleuze 1985: 328)
Arte e Filosofia Processual: a relação Homem e Mundo
Um dos maiores traços que distinguem a arte moderna é seu interesse pelas
idéias filosóficas, principalmente as que exploram a relação entre o homem e o mundo
exterior. A arte moderna pode ser compreendida como uma resposta para uma situação
ambiental que se apresenta diferente de todas as outras na história do homem. Para tanto
desenvolveram uma linguagem
6
que está em ruptura com o passado. Segundo Foucault,
este período histórico acontece quando a visão classificatória do mundo, fundamentada
na razão, dá lugar às regularidades históricas, à pesquisa da evolução e da historicidade
das coisas. Esse novo paradigma rompe com a representação clássica, pois “os pontos
6
Acreditamos que a preocupação de muitos artistas ditos pós-modernos é um aprofundamento das
questões apresentadas na modernidade. Assim a questão da “morte de Deus e do autor” e o uso do “signo
vazio” é uma intensificação do modernismo, no qual o artista e seu trabalho nascem de uma relação
complexa com a cultura urbana. O pós-modernismo utiliza-se das mesmas técnicas do modernismo como:
justaposição, ironia e paradoxo. De fato, é difícil classificar tanto em arte como em filosofia o que seria o
pós-moderno como ruptura. Pós-modernismo tornou-se uma palavra polissêmica, quase um slogan
publicitário.
293
de referência dos signos não se encontram mais no próprio sistema dos signos, mas no
exterior da representação” (Santaella e Nöth, 1999: 24).
O desenvolvimento das mais diversificadas áreas do conhecimento, durante o
século XIX, propiciou que as coisas passassem a não obedecer às leis da gramática e
sim àquelas inerentes à evolução histórica. Foucault conclui que “a linguagem não está
mais ligada ao conhecimento das coisas, mas à liberdade dos homens” (Nöth, 1996:
p.141). Esta liberdade seria a origem das ciências humanas.
Essa nova situação quase que obriga o artista a se preocupar com o processo
criativo, com a gênese da própria obra. Sem dúvida, a filosofia processual de Henri
Bergson
7
na relação com o conceito de experiência individual em sua interação com a
temporalidade fornece um enquadramento das questões referentes ao processo criativo.
Neste ponto, nossa tese é simples: o ponto de vista do bergsonismo sobre a
natureza da percepção e da temporalidade são princípios fundamentais que redundaram
numa frutificação estética para a compreensão do processo criativo e a gênese da arte
em geral. Como assinala Sanford Schwartz (1988), em sua obra The Matrix of
Modernism, as características do modernismo: inesperada justaposição, ironia, paradoxo
e o acontecimento, são estratégias para expressar o fluxo e o movimento perceptivo nas
grandes metrópoles que moldam o corpo (Sanford 1988). Como bem notou Lawrence
Gamache em seu livro Toward a Definition of “Modernism, a mudança para o período
modernista acontece paralelamente à mudança de uma atitude otimista na descoberta do
mundo real, para a atitude cética em relação a essa possibilidade bem como no
questionamento da própria idéia de um sujeito sólido, unitário e dono de suas
representações (Gamache 1987). Nesse sentido, Nietzsche representa uma referência
7
Devemos acrescentar a filosofia de Alfred North Whitehead como um outra fonte de inspiração para os
artistas pensarem o processo criativo e a gênese da obra de arte. Nesse sentido, é nossa intenção em
estudos posteriores relacionar Bergson e Whitehead como duas filosofias do processo de criação.
294
conceitual imediata para a arte dos inícios do Século XX. Para Schwartz existe uma
relação entre Nietzsche e os artistas modernos, notadamente na questão referente à
metáfora, mas também no seu conceito de experiência temporal, a qual Nietzsche
chamou de um “caos de sensações” (Nietzsche [1881-1888] 1974). Em “Sobre Verdade
e Mentira num sentido Extra-Moral”, Nietzsche descreve a metáfora como um processo:
“Um estímulo nervoso, primeiramente transposto em uma imagem!
Primeira metáfora. A imagem, por sua vez, modelada em sum som!
Segunda metáfora. E a cada vez completa mudança de esfera, passagem
para uma esfera inteiramente outra e nova […] Acreditamos saber algo das
coisas mesmas, se falamos de árvores, cores, neve e flores, e no entanto não
possuímos nada mais do que metáforas das coisas, que de nenhum modo
correspondem à entidades de origem” (Nietzsche [1873] 1974: 55).
Uma metáfora é uma construção que funciona como mediação entre a abstração
conceitual e a sensação concreta, uma forma que unifica particularidades sensoriais
desprezando as diferenças entre elas. Para os artistas modernos trata-se então de superar
as metáforas e atingir essa realidade articulada como um “caos de sensações”, um
desconhecido, amorfo e disjuntivo mundo de aleatórias particularidades concretas.
Enfim, trata-se então de buscar uma estética anti-representacional; atingir o fluxo dos
eventos concretos. O mundo temporal é caótico, aleatório, impessoal e
significativamente, sem sentido! Conseqüentemente, temporalidade e sentido estão
separados. Temporalidade é um fluxo de eventos vazio de sentido, sem finalidades.
Sentido é uma estruturada abstração conceitual imposta ao fluxo dos acontecimentos
por uma consciência individual. Assim, conseqüente com a noção de metáfora
nietzschiana, o artista é a consciência que, por meio de metáforas, expressa o fluxo dos
acontecimentos. Em termos bergsonianos trata-se da consciência do papel do corpo na
modelação dos fluxos das imagens-movimento.
A influência da noção nietzschiana de metáfora e do papel do poeta, quem por
meio de metáforas modela sentido para o temporal, está no trabalho de T. S. Eliot, Ezra
295
Pound e Wallace Stevens (Sanford 1988). Segundo Sanford, mesmo que Eliot e Pound
se rebelaram contra uma série de conceitos de Nietzsche, ambos utilizaram-se de seus
conceitos a respeito da metáfora. Por exemplo, Eliot em seu seminal trabalho The Waste
Land exemplifica esta crença de que a metáfora tem o poder de salvar a sociedade
moderna mergulhada no niilismo. Somente pelo poder unificador da metáfora, o
fragmentado mundo moderno pode ser revitalizado.
Bergson, na esteira de Nietzsche, representa uma poderosa alternativa para o
niilismo, o desconstrutivismo pós-moderno e o solipsismo
8
da consciência subjetiva e
individual, ou seja, aquilo que Bergson chamou self; desvelando o que poderíamos
chamar de processo poético. O conceito de duração é particularmente importante para a
noção de processo em geral e poético em particular. Na filosofia de Bergson, existe um
convite à experiência temporal, a qual enche de significado um self, ao mesmo tempo
que desperta a liberdade como espaço dilatado entre o estímulo e a reação. Viver este
espaço dilatado é atingir um domínio sobre si mesmo, experimentando a liberdade
enquanto processo encarnado no sensível. Duração real e a temporalidade dinâmica são
uma experiência psíquica que acontece na relação do self e sua resposta para a
temporalidade em geral.
O tempo não possui uma natureza matemática, quantitativa; ele é pura qualidade,
na qual nossas experiências ficam inseparáveis de como nós as percebemos. O tempo é
tingido por nossas emoções, valores e experiências passadas, colorindo nossas
experiências presentes. É somente na experiência do tempo que tomamos contato com a
realidade, contudo, diferente dos platonismos, esta realidade não é habitada por formas
fixas, permanentes e eternas. A realidade é um fluxo de imagem-movimento imanente.
8
Usamos aqui o sentido de solipsismo como o de uma doutrina segundo a qual só existem, efetivamente,
o eu e suas sensações, sendo os outros entes (seres humanos e objetos), como partícipes da única mente
pensante, meras impressões sem existência própria. Trata-se de um idealismo extremado e radical.
296
Bergson, não pensa essa realidade como somente um “caos de sensações”, como
Nietzsche; nem tampouco como um “conjunto de imagens fragmentadas”, como Eliot;
mas como a fonte da qual é possível, por intermédio de um corpo incorporado numa
situação, emergir uma consciência e uma ação em direção a essa mesma realidade a
modificando.
Bergson não concebeu a arte como um meio de impor e ordenar o fluxo dos
eventos temporais, mas como um meio de recuperar e construir uma subjetividade na
experiência mais próxima desse fluxo. Estar próximo desse fluxo é torná-lo sensível por
meio da arte e se libertar dos clichês construídos pela necessidade. Também é
experienciar a afecção por meio da percepção de que se percebe, ou seja, da consciência
da presença de uma liberdade materializada pela recusa à ação ou por uma ação que se
recusa em ser automática, ou seja, por uma ação construída como se fosse uma obra de
arte, na qual tudo é afirmado, mesmo o acaso, o incerto e o súbito.
A atualidade de todas as coisas é a situação em que tudo está sujeito a mudança,
crescimento e perecimento. O corpo também é uma coisa entre as coisas:
"Meu corpo é portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que
atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a
única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em uma certa
medida, a maneira de devolver o que recebe." (Bergson [1896] 1997: 14).
Portanto, meu corpo é vir-a-ser tanto como a matéria. Devir é um processo tanto
subjetivo como objeto. Na interação entre o corpo e o mundo, os objetos que cercam
meu corpo refletem a ação possível de meu corpo sobre eles. Assim, segundo Bergson,
toda imagem, que compõe o universo, é interior a certas imagens e exterior a outras;
mas do conjunto das imagens não é possível dizer que ele nos seja interior ou que nos
seja exterior, já que a interioridade e a exterioridade não são mais que relações entre
imagens.
297
A relação corpo e temporalidade é expressa de forma dramática pelos trabalhos
de Body-Art e Performance da arte contemporânea. São tendências da tradição das
poéticas plásticas e visuais cuja centralidade de objeto se encontra enunciada na
corporeidade do próprio artista. O artista toma o seu corpo como objeto central de sua
reflexão, fazendo-a integrar-se ao conjunto do que se chama incorporação
9
.
Trata-se da tentativa de atingir, por meio do corpo, certos ritmos temporais e
vivê-los como uma experiência primeira. Daí a presença do ritual como suporte possível
desse contato com o fluxo e o caos, como o tempo “esquecido”. O ritual caracteriza a
estrutura de linguagem de vários desses trabalhos contemporâneos. Ele fala da luta de
construir o futuro por meio de um mergulho no passado, o qual se torna a esperança de
uma libertação das máculas do presente. Somente o mergulho na memória, atualizada
no corpo e o contato com o fluxo caótico possibilita regenerar a existência, salvando o
homem da presença maciça do clichê e do automatismo motor e psíquico. Essa
reatualização mítica do passado, do ato cosmogônico é a característica comum de
muitos artistas
10
dessa tendência. Seus trabalhos pertencem a diferentes correntes da arte
atual, mas todos apontam para uma nova atitude corporal diante da temporalidade,
implicando o surgimento de um homo novus. Se as atitudes referentes à temporalidade
são semelhantes, a elaboração de seus vocabulários e os aspectos da realidade que eles
manipulam diferem sensivelmente.
A cerimônia, por outro lado, manifesta-se igualmente no trabalho de vários
desses artistas, visando, pelo caráter solene que comporta, a produzir uma afecção de
natureza perceptiva e corporal. O corpo é o mediador que regula e acentua o valor dos
9
Antes da Body-Art vários artistas trabalharam tendo o corpo, ou as questões corporais, como suporte. É
importante citar os trabalhos de Oscar Schlemmer, os quais foram analisados e relidos pelo Prof. E artista
Ernesto Boccara.
10
Os artistas dessa tendência a que nos referimos são: Hélio Oiticica, Lígia Clark, Gina Pane, Jaume
Xifra, Michel Journiac, Hermann Nitsch, Otto Muehl, Gunter Brus e Rudolf Schwarzkogler.
298
dispositivos, para tornar a intenção da experiência desses rituais, mais perceptíveis. Pela
cerimônia, a função dos símbolos, objetos, gestos e atividades corporais, nos faz
pressentir mais ainda a intenção subversiva dos artistas, em relação à ordem
estabelecida e aos clichês, os quais não pertencem à ordem do ritual. Sendo contre-
environnement crítico, esses trabalhos assumem o papel iniciático de preparar as
consciências para a morte de um estado presente, posto em questão, e o nascimento de
um estado conseqüente sugerido. Enfim, trata-se de usar o corpo para atingir uma
percepção de um fluxo e de um passado atualizando-os no presente e transformando a
experiência perceptiva ordinária. Nesse sentido, essas propostas artísticas e estéticas
indiciam o desejo de um movimento mais amplo em direção à incorporação
(embodiment) da cultura e da busca de novas chaves interpretativas para o pensamento
entronizado em matrizes corpóreas.
Não podemos deixar também de mencionar a presença de Francis Bacon, já
analisado por nós, na construção da estética anti-representacional de Deleuze. O
movimento de retorno à pintura, praticado durante os anos 80, tem uma de suas raízes
paradigmáticas na pintura de Francis Bacon. Nesse paradigma, o corpo é alvo de uma
estratégia para ressaltar ainda e sempre as qualidades específicas da pintura a óleo e de
uma definição eminentemente tecnológica do fazer – especializado – artístico. Essa
pintura é uma superação da tradição iconográfico ocidental que hierarquizou seus
conjuntos de imagens e deu ao corpo humano um lugar privilegiado como modelo de
organização espacial e significativa. A pintura de Bacon materializa as forças em fluxo
que destroem essa representação corporal, desterritorializando o corpo em um Devir que
o torna um corpo sem órgãos. Na perspectiva greco-renascentista, o corpo do
espectador, ou fruidor da imagem, é uma simples testemunha que se posiciona, imóvel,
diante de uma cena na mesma posição que o pintor a registrou. O corpo torna-se então
299
um centro de determinação, apenas um olhar que constata e testemunha a cena
(Gombrich 1986). O rompimento do espaço perspectivo é o devolver ao corpo o centro
de indeterminação, ou seja, a sua possibilidade de ação e conseqüente intervenção no
mundo e criação do novo.
Existe também uma correlação entre as novas mídias digitais e o processo
perceptivo no qual o corpo tem papel ativo. Em geral as teorias das novas mídias as
interpretam como uma desincorporação virtual. O que pretendemos, aqui, é demonstrar
que o processo perceptivo no ambiente digital, longe de desprezar o corpo, somente
pode ser cumprido por meio dele.
Corpo e Imagem Digital
"Ato de fundação, pelo qual o homem cessa de ser um
organismo biológico e se torna um corpo pleno, uma
terra, sobre a qual seus órgãos se aferram, atraídos,
repelidos, miraculados conforme as exigências de um
socius. Que os órgãos sejam talhados no socius, e que
os fluxos escorram sobre ele" (Deleuze & Guattari
1976:184).
A percepção é um corte no fluxo da realidade. A imagem digital é a realização
temporal de um processo da informação no qual a intervenção corporal tem o papel
constitutivo e produtivo em relação ao fluxo de dados. Esta reconfiguração fundamental
da imagem pelo corpo é o que podemos chamar de interface, momento especial para a
interatividade ou ação corporal diante de um estímulo. Entretanto, a imagem não deve
ser restringida ao seu aspecto de superfície, mas deve ser entendida dentro de todo o
processo no qual a informação se torna percepção devido a uma experiência
incorporada. (Hansen 2004: 10). Esse processo perceptivo, que torna o fluxo de dados
300
em imagem por intermédio do corpo, é o que Hansen (2004) chama de imagem digital.
Evidentemente que o fundamento desta abordagem está em Bergson que, como vimos,
concebe o corpo como um filtro seletivo para as imagens. Hansen, aplicando a teoria
perceptiva de Bergson para a experiência digital, concebe a imagem como uma criação
por meio de um processo de enquadramento da informação digital pelo corpo. Os
ambientes digitais criados por uma série de artistas são paradigmáticos para
compreender o processo perceptivo nos fluxos de dados como uma conversão em
imagens apreendidas corporalmente. Naturalmente usamos imagens no sentido
bergsoniano, ou seja, aquilo que aparece e existe independente de ser percebida.
Portanto, temos imagens visuais, audíveis ou táteis. Hansen procura mostrar que a
estética em ambientes digitais altera o modelo que considera a estética como a
percepção de um objeto auto-suficiente, para um modo de encarar a estética como
intensidades afetivas incorporadas (Hansen 2004: 12-13). É a afetividade entre todas as
capacidades humanas a que introduz o poder da criatividade no corpo sensório-motor. É
a base sensório-motora do corpo humano que outorga um papel criativo ao
enquadramento da informação digital, gerando imagens independentemente dos
dispositivos técnicos utilizados (Hansen 2004: 266). Trata-se de compreender a imagem
digital não como um acontecimento pós-cinemático de características essencialmente
ocular e desincorporada, mas de compreendê-la como uma criação a partir de uma
modelação do fluxo de informação, na qual sobressai as características de incorporada,
processual e afetiva. Um dos principais teóricos da imagem digital como dispositivo
pós-cinemático é Lev Manovich, que, segundo Hansen (2004: 33), compreende a
imagem digital como determinada pela estética do cinema e, por conseguinte, retira dela
todo o potencial estético de uma nova mídia. Manovich, assim procedendo acaba
reduzindo as novas mídias a uma mera amplificação da mídia anterior historicamente,
301
no caso o cinema. Ele ratifica a imobilidade cinemática em geral e neutraliza suas
possibilidades ao estender os conceitos do cinema para as formas de cultura visuais que
enfatizam o corpóreo. Para Hansen, os dados digitais podem se materializar em uma
ordem quase ilimitadas de quadros, não se limitando ao retângulo característico da
imagem cinematográfica. Este potencial polymorphous da imagem digital é
completamente ignorado por boa parte das teorias da comunicação digital, incluindo as
de Manovich (Hansen 2004: 35).
Assim, ao contrário da imagem cinematográfica e de seu processo perceptivo, no
qual o corpo não tem a função de materializar, a imagem digital somente pode ser
compreendida como filtragem do fluxo de dados por meio do corpo. Ela introduz
perceptivamente um regime diferenciado de experiência visual, no qual não ocorre o
processo de (re)apresentação de uma imagem, mas, ao contrário, a criação da imagem
dentro do próprio corpo do usuário (Hansen 2004: 39). Vários teóricos
11
avaliam a
realidade virtual como um momento no qual se aboliu a diferença, até então
estabelecida pela tradição, entre representação e simulação. Assim, a realidade virtual
não representa o espaço físico, mas o simula, porém é uma simulação que esvazia esse
espaço de toda dimensão física. O que existe na realidade virtual é tudo, menos
realidade (Baudrillard 1994). Hansen critica essa posição defendendo que não se pode
negligenciar a dimensão física, pois ela está presente na criação do espaço virtual por
meio da afetividade do corpo.
O corpo não é compreendido como pulsão ou imobilizado como centro receptivo
para as imagens. Também ele não é compreendido como simples reação mecânica às
11
Cabe destacar as produções teóricas de Edmond Couchot e Jean Weissberg, embora esses autores ainda
possuem traços de uma concepção mecânica do corpo em relação à interface. Faço isso com meu corpo e
o computador responde com aquilo. Nossa tese, apoiada no bergsonismo, vai muito além. O corpo é o
lugar da síntese da imagem digital. É ele que recorta e enquadra, no fluxo de dados, porções da
informação e gera as possibilidades de ação. Portanto o corpo é a interface, a imagem visual é a projeção
das virtualidades possíveis ao corpo em sua ação.
302
imagens que são independentes do próprio corpo, como existências predeterminadas.
Ao contrário, trata-se de compreender o corpo como o lugar onde acontece o processo
de modelagem da informação. O corpo tem a função de materializar a totalidade virtual,
sendo uma fonte de afecção para um contato sensório-motor com a informação. A
imagem torna-se então um correlato ao afeto corporal que já não se restringe somente ao
domínio visual. O significado das imagens digitais está diretamente ligado às
virtualidades do corpo. Por exemplo, quando um designer digital desenha um simples
botão em sua interface, está imaginando a possibilidade de haver aí um clique, ou seja, a
possibilidade de uma resposta corporal. Então essa resposta, já está inscrita na própria
interface, faz parte dela. É o corpo e suas ações virtuais que modelam o projeto da
interface. Essa dimensão do contexto corporal se amplifica quando pensamos na
proliferação dos dispositivos móveis e suas respectivas interfaces. Também a realidade
virtual amplifica as questões corporais no contexto do fluxo de dados digitais. Ela
espacializa e temporaliza o corpo pela possibilidade de nossa percepção agir e medir
nossa ação possível sobre as coisas e por isso, inversamente, a ação possível das coisas
sobre nós. Quanto maior a capacidade de agir do corpo, mais vasto o campo que a
percepção abrange.
"Ela [a percepção] exprime e mede a capacidade de agir do ser vivo, a
indeterminação do movimenta ou da ação que seguirá o estímulo recolhido.
Essa indeterminação [...] se traduzirá por uma reflexão sobre si mesmas, ou
melhor, por uma divisão das imagens que cercam nosso corpo; e, como a
cadeia de elementos nervosos que recebe, retém e transmite movimentos é
justamente a sede e dá a medida dessa indeterminação, nossa percepção
acompanhará todo o detalhe e parecerá exprimir todas as variações desses
mesmos elementos nervosos. Nossa percepção, em estado puro, faria
portanto verdadeiramente parte das coisas. E a sensação propriamente dita,
longe de brotar espontaneamente das profundezas da consciência para se
estender, debilitando-se, no espaço, coincide com as modificações
necessárias que sofre, em meio às imagens que a influenciam, esta imagem
particular que cada um de nós chama seu corpo” (Bergson [1896] 1997: 67-
68).
303
Experimentações estéticas com interfaces de realidade virtual podem ser
interpretadas como uma junção dinâmica entre o corpo e a imagem, ou, mais
precisamente, como uma produção de espaço no corpo, um espaçamento corporal.
Espaço, Corpo e Percepção Tátil: a Dimensão Háptica do Espaço
"Espaço tátil, ou antes o espaço háptico, por diferença
ao espaço óptico. Háptico é um termo melhor do que
tátil, pois não opõe dois órgãos dos sentido, porém deixa
supor que o próprio olho pode ter essa função que não é
óptica" (Deleuze & Guattari, Mil Platôs. Capitalismo e
Esquizofrenia)
Os estados afetivos provocados pela percepção em ambientes digitais funcionam
como espécies de gatilhos para a produção de imagens em tempo real. A presença do
corpo como constitutiva para a leitura de espaços enfatiza a dimensão háptica da
percepção. Lembremos do bastão mergulhado na água que Bergson usou como
exemplo. Visualmente ele parece quebrado. Porém eu sei que ele não está quebrado.
Ambas posições são verdades perceptivas. Suas diferenças derivam da modalidade da
percepção. Enquanto a visual fornece ao corpo a descontinuidade do bastão, a tátil
fornece a percepção da continuidade. Assim, o espaço no qual o corpo se move,
geralmente é percebido como contínuo, portanto prevalece a percepção tátil. Ela é a
mais rápida no movimento que produz do objeto ao corpo. O que o ambiente digital
amplifica é as possibilidades do corpo como centro indeterminado das imagens, como
um espaço não dimensional, local intensivo no qual se materializa a informação e cuja
percepção, no caso do espaço, se dá por meio de uma sensação háptica internalizada, a
qual formaliza o espaço para o próprio corpo se mover.
304
Foi Alois Riegl (Riegl 2004, Olin 1992) quem definiu a evolução artística, nas
artes plásticas ocidentais, como a passagem de um espaço háptico a um espaço ótico.
Em um espaço háptico, exemplificado nos sistemas “primitivos” de expressão visual, os
objetos aparecem separados no interior do campo visual e do espaço expressado. As
cenas se constituem em agregados de objetos, superpostos e amontoados, sem se
organizar em um espaço homogêneo e unitário. Diante desse espaço háptico primitivo, a
evolução dos sistemas de expressão visual ocidentais desdobrou-se em direção ao
espaço ótico, ou seja, um espaço contínuo e unitário, organizado e homogêneo. A partir
do Renascimento, a introdução e implementação da perspectiva geométrica como
sistema de expressão homogêneo nas artes visuais, favoreceu uma produção visual e
gráfica sistemática, organizada a partir de um ponto de vista fixo e imóvel,
racionalizando o ponto de vista, aspecto, iluminação e cor de todos os elementos
incluídos em uma determinada cena em perspectiva. O sentido ótico da imagem, assim,
procura eliminar o corpo do fruidor, imobilizando-o, desincorporando-o. Já o sentido
háptico da imagem, coloca o corpo dentro da cena. A sensação de nosso espaço
dimensional, no qual o corpo se move, é iminentemente de natureza háptica.
A presença do corpo como o local de modelagem do fluxo informacional e sua
capacidade de afecção pelas imagens digitais transformam o espaço digital de espaço
visual em espaço háptico.
Na arte moderna, a visão do homem a respeito de si mesmo sofre uma
transformação que desencadeia mudanças perceptivas. A visão se altera profundamente
na pintura moderna, na medida em que já não se necessita figurar uma representação
orgânica do mundo, e muito menos solicita um órgão especializado. A visão deixa de
ser puramente ótica. Ocorre uma espécie de disfunção do órgão da vista, dando lugar a
uma confusão das funções da vista e do tato. Esta idéia levou Deleuze (Deleuze &
305
Guattari 2002, Buydens 1990) a pensar a existência de duas formas de ver, ou duas
atitudes diferentes da percepção visual: uma visão mais orgânica chamada ótica, e uma
visão do corpo chamada háptica. Por isso, na pintura, “o olhar tem pelo menos dois
sentidos”. Na pintura moderna se devolve ao tato sua atividade. Se desordena as funções
orgânicas de um e outro sentido, se alteram as funções dos sentidos. O olho passa a
“tocar” as superfícies, o tato passa a “ver” a partir do contato do olho com as
superfícies.
A visão háptica se refere então à reunião de dois sentidos: a visão e o tato. Na
visão háptica, a vista e o tato procedem conjuntamente, criam outra possibilidade de
percepção mais além ou aquém das funções de uma ou outra. O háptico designa uma
“possibilidade do olhar” distinta da visão ótica. Ele acontece quando a própria visão
descobre em si uma função do tato que lhe é própria, e que não pertence senão a ela,
sendo distinta de sua função ótica (Deleuze 1981: 158). Na visão háptica não existe
subordinação entre os sentidos. O háptico na visão é uma possibilidade de visão que
existe em potência, ou virtualmente. Trata-se do descobrimento de uma propriedade da
visão que passa a atuar quando a própria visão se descobre em si mesma outra função,
porém que lhe é inerente.
A ordem distinta da visão háptica, segundo Deleuze (1981), é a visão ótica,
visão própria da arte clássica que descende dos gregos antigos. É a visão que habilita a
representação clássica e é confirmada por ela, como um modo específico de ser sensível
à realidade. De fato, o surgimento da representação clássica depende do surgimento de
um tipo de olhar, de um espaço visual propriamente ótico. A constituição de modos
diferentes de ver, ao longo da história da arte, gerou formas distintas de uso da visão, e
com ela a formação de espaços pictóricos também distintos. A visão ótica e háptica não
têm função opostas, não se contradizem ou se anulam mutuamente. Elas geraram
306
espaços visuais distintos, revelaram imagens e universos estéticos distintos. As funções
e procedimentos das diferentes visões fundaram espaços pictóricos também diferentes,
pois tratam de modo diferente o espaço visual.
A visão ótica constrói perspectivas modelando a forma, modelando seus limites,
instaurando um interior e um exterior à forma. A visão háptica não modela a forma, mas
constata sua modulação (Deleuze 1981). Ela proporciona um espaço próximo e
ressonante, um contorno que une e não exclui, que põe em relação. A forma não é
fixada dentro de seus limites e limitada pelos seus contornos. Quando a visão é
próxima, o espaço não é visual, ou melhor, o próprio olho têm uma função háptica e não
ótica. A visão háptica aproxima a visão do tato, é uma “possibilidade do olhar” que gera
um espaço de encontro e ressonância.
Existe assim um elo entre a superfície estriada e a percepção ótica; a superfície
lisa e a percepção háptica. Um elo que dará lugar às soberbas análises dos modelos
estéticos do liso e do estriado de Mil Platôs. Ainda que a oposição entre o estriado
(sedentário, geométrico, fechado, quadriculado por intervalos como a grade da pintura
modernista) e o liso (aberto, infinito, feito de direções e afetos) não fosse absoluta, é o
liso da arte nômade, aquele dos espaços absolutos dos desertos e dos mares, que define
a superfície por excelência. Encontramos certos termos de Lógica do sentido: o liso não
tem avesso, nem direito, nem centro. É uma superfície de acontecimentos, feita de
vetores, de direções, de trajetos e de ritmos. Superfície fracionária e riemaniana, o liso é
o modelo estético da arte nômade com essa modalidade bem particular da visão que
Deleuze retoma de Riegl e de Maldiney, o háptico, essa visão aproximada que suscita o
toque.
A superfície metafísica gera um tipo de abstração nômade, aquela que vai da arte
das estepes a Pollock. Feita de rapidez, declínios, turbilhões e ritmos, essa abstração
307
remete às “multiplicidades intensivas” de Bergson. Assim como as ligações entre
superfície/acontecimento/abstração darão lugar a uma estética da matéria como
conjunto de operações sobre forças. A superfície será expandida e reformulada a partir
da problemática do plano. Pois a arte, como a filosofia e a ciência, é como um chaoïde
12
que obtém planos no caos. Contudo, se a filosofia produz variações e conceitos, a arte
retira dessas “variedades” um “ser do sensível”. Essas variedades são somente traços,
percepções e afetos, maneiras. É por isso que, em A Dobra: Leibniz e o Barroco, o par
fundo-maneira destrona a forma e a essência e abre para uma estética barroca das
inflexões, para uma expansão da problemática do virtual.
Mark Hansen propõe que o digital tem a capacidade para aumentar o “limiar do
agora” e “intensificar a experiência do corpo”, de afetar e ser afetado. Certos trabalhos
em mídias digitais, em especial os trabalhos de Bill Viola, nos investem na experiência
corporal da afetividade que encarna a consciência do tempo. Afetividade não é
percepção de estruturas predeterminadas, mas interação e construção da significação.
Bergson pensou a percepção como um processo no qual o corpo é um centro de
indeterminação num universo acêntrico. O corpo funciona como um filtro que seleciona
as imagens do universo que circulam em torno deste corpo. A seleção tem como base o
interesse do próprio corpo, sua sobrevivência. Bergson é claramente um teórico da
percepção incorporada, na qual se desenvolve o afeto e a memória juntamente com a
12
Chaoïde é um termo usado por Deleuze para designar o que é primeiro, ou seja, o caos é primeiro e
definido como um fluxo incessante de fatos de todas as ordens, perceptivas, afetivas, intelectuais, cujo
único caráter em comum é o estado aleatório, não ligado. Isto não quer dizer que o caos é um estado
informe ou mescla confusa e inerte, mas o lugar de um devir plástico e dinâmico, no qual jorram
ininterruptamente as determinações que se esboçam e se desvanecem com uma rapidez infinita. Deleuze
& Guattari assinalam: “O que caracteriza o caos é menos a ausência de determinações que a velocidade
infinita com a qual elas se esboçam e se apagam: não é um movimento de uma a outra mas, ao contrário,
a impossibilidade de uma relação entre duas determinações, já que uma não aparece sem que a outra
tenha já desaparecido, e que uma aparece como evanescente quando a outra desaparece como esboço”
(Deleuze & Guattari 1991: 44-45).
308
vida concreta do corpo no mundo. Ele é o responsável por decidir quais elementos do
fluxo material entram no domínio da experiência perceptual.
Bergson explicou a base da percepção incorporada derivando-a de seu esforço,
notadamente no primeiro capítulo de Matéria e Memória, para superar os erros
simétricos do idealismo e do realismo, deduzindo a percepção da própria matéria. Ele
compreende o mundo como um composto agregado de imagens, o qual é a própria
definição de matéria. Essa forma de pensar a questão da imagem e sua relação com a
mente, a torna antitética para uma compreensão da imagem como representação.
"Há um sistema de imagens que chamo minha percepção do universo, e que
se conturba de alto a baixo por leves variações de uma certa imagem
privilegiada, meu corpo. Essa imagem ocupa o centro; sobre ela regulam-se
todas as outras; a cada um de seus movimentos tudo muda, como se
girássemos um caleidoscópio. Há, por outro lado, as mesmas imagens, mas
relacionadas cada uma a si mesma, umas certamente influindo sobre as
outras, mas de maneira que o efeito permanece sempre proporcional à
causa: é o que chamo de universo." (Bergson [1896] 1997: 20).
O problema, então, é como reconciliar o específico agregado de imagens que
aparecem para meu corpo, o qual funciona como um “centro de indeterminação”, e o
agregado de imagens que compreende o universo como um todo. Bergson formula esse
problema nos seguintes termos:
“O problema pendente entre o realismo e o idealismo, talvez mesmo entre o
materialismo e o espiritualismo, coloca-se portanto, em nossa opinião, nos
seguintes termos: Como se explica que as mesmas imagens possam entrar
ao mesmo tempo em dois sistemas diferentes, um onde cada imagem varia
em função dela mesma e na medida bem definida em que sofre a ação real
das imagens vizinhas, o outro onde todas variam em função de uma única,
e na medida variável em que elas refletem a ação possível dessa imagem
privilegiada?” (Bergson [1896] 1997: 12-13).
A resposta de Bergson é fundamentar a noção de percepção como um
diminuição ou subtração do que ele chama de a presença da imagem. O que distingui
minha percepção da coisa e a própria coisa em si mesma é o fato de poder somente
309
percebê-la isolando certos aspectos, deixando o resto passar
13
. Assim, perceber é filtrar
apenas uma parte da imagem total. A diferença entre minha percepção e a coisa em si é
simplesmente a diferença entre o atual e o virtual. No universo a coisa existe em todas
as suas possibilidades virtuais em sua relação com o conjunto das outras imagens-coisa:
"O que a distingue, enquanto imagem presente, enquanto realidade objetiva,
de uma imagem representada é a necessidade em que se encontra de agir
por cada um de seus pontos sobre todos os pontos das outras imagens, de
transmitir a totalidade daquilo que recebe, de opor a cada ação uma reação
igual e contrária, de não ser, enfim, mais do que um caminho por onde
passam em todos os sentidos as modificações que se propagam na
imensidão do universo. Eu a converteria em representação
14
se pudesse
isolá-la"
(Bergson [1896] 1997: 20).
Minha percepção filtra ou destaca certos aspectos dessa imagem-total.
"Ora, se os seres vivos constituem no universo "centros de indeterminação",
e se o grau dessa indeterminação é mediado pelo número e pela elevação de
suas funções, concebemos que sua simples presença possa equivaler à
supressão de todas as partes dos objetos nas quais suas funções não estão
interessadas. Eles se deixarão atravessar, de certo modo, por aquelas dentre
as ações exteriores que lhes são indiferentes; as outras, isoladas, tornar-se-
ão "percepções" por seu próprio isolamento. Tudo se passará então, para
nós, como se refletíssemos nas superfícies a luz que emana delas, luz que,
propagando-se sempre, jamais teria sido revelada. As imagens que nos
cercam parecerão voltar-se em direção a nosso corpo, mas desta vez
iluminada a face que o interessa; elas destacarão de sua substância o que
tivermos retido de passagem, o que somos capazes de influenciar.
Indiferentes umas às outras em razão do mecanismo radical que as vincula,
elas apresentam reciprocamente, umas às outras, todas as suas faces ao
mesmo tempo, o que equivale a dizer que elas agem e reagem entre si por
todas as suas partes elementares, e que, conseqüentemente, nenhuma delas
é percebida nem percebe conscientemente. E se, ao contrário, elas deparam
em alguma parte com uma certa espontaneidade de reação, sua ação é
diminuída na mesma proporção, e essa diminuição de sua ação é justamente
a representação que temos dela. Nossa representação das coisas nasceria
13
Trata-se na verdade da distinção entre percepção e apercepção tal como vimos no capítulo terceiro de
nosso trabalho. Nesse contexto a percepção envolve muito mais do que aquilo que temos consciência. No
exemplo de Leibniz, a percepção do som de uma onda do mar envolve a presença dos infinitos contatos
das infinitas gotículas. Porém o que ouço é um recorte dessa percepção, constituindo a minha aperceção.
Aqui, neste capítulo não fazemos esta distinção, usando o termo percepção como equivalente de
apercepção, para tornar nosso discurso mais claro, menos tortuoso.
14
Bergson usa o termo representação para essa ação da percepção que diminui ou subtrai aspectos da
imagem-total como uma forma de se inserir no debate epistemológico e criticar tanto idealistas como
realistas. Na verdade não se trata de uma representação no sentido que idealistas e realistas usam esse
termo, já que para estes é uma (re)apresentação, ou seja, uma duplicação da imagem-total. Para Bergson é
a própria imagem que é percebida, sem duplicação, apenas recorte. Então trata-se na verdade de uma
presentação e não de uma (re)apresentação nos termos idealistas ou realistas.
310
portanto, em última análise, do fato de que elas vêm refletir-se contra nossa
liberdade” (Bergson [1896] 1997: 21-22).
O que é crucial nessa superação filosófica do dualismo é a coexistência do atual
e do virtual implicada na teoria perceptiva bergsoniana. “A representação está
efetivamente aí, mas sempre virtual, neutralizada, no momento em que passaria ao ato,
pela obrigação de prolongar-se e de perder-se em outra coisa” (Bergson [1896] 1997:
20). O atual está imediatamente em contato com o virtual, do qual ele é somente uma
diminuição.
A dedução do corpo como pertencente ao mundo e como centro de
indeterminação acompanha a concepção desse corpo como agente de produção do novo.
Trata-se da função criativa desse corpo, sua capacidade de afetar e ser afetado.
“É verdade que uma imagem pode ser sem ser percebida; pode estar
presente sem estar representada; e a distância entre estes dois termos,
presença e representação, parece justamente medir o intervalo entre a
própria matéria e a percepção consciente que temos dela […] se a
representação de uma imagem fosse menos que sua simples presença; pois
então bastaria que as imagens presentes fossem forçadas a abandonar algo
delas mesmas para que sua simples presença as convertesse em
representações […] A representação está efetivamente aí, mas sempre
virtual, neutralizada, no momento em que passaria ao ato, pela obrigação de
prolongar-se e de perder-se em outra coisa. O que é preciso para obter essa
conversão não é iluminar o objeto, mas ao contrário obscurecer certos lados
dele, diminuí-lo da maior parte de si mesmo, de modo que o resíduo, em
vez de permanecer inserido no ambiente como uma coisa, destaque-se
como um quadro. Ora, se os seres vivos constituem no universo ‘centros de
indeterminação’, e se o grau dessa indeterminação é medido pelo número e
pela elevação de suas funções, concebemos que sua simples presença possa
equivaler à supressão de todas as partes dos objetos nas quais suas funções
não estão interessadas. Eles se deixarão atravessar, de certo modo, por
aquelas dentre as ações exteriores que lhes são indiferentes; as outras,
isoladas, tornar-se-ão ‘percepções’ por seu total isolamento” (Bergson
[1896] 1997: 20-21).
Bergson também enfatiza o corpo como a fonte da ação. É uma ação corporal
que subtrai os aspectos relevantes de uma imagem destacando-a do fluxo universal das
imagens. Nossa representação da matéria é a medida de nossa ação possível sobre os
311
corpos. Ela resulta da eliminação de tudo o que não interessa para as nossas
necessidades e, de maneira mais geral, nossas funções.
O corpo introduz um intervalo nas ações e reações, produzindo o “centro de
indeterminação”, ou seja, a possibilidade da consciência e da liberdade, as quais não
existem no universo da imagens-movimento, dado que estas estão submetidas às leis da
natureza. O corpo pode criar o novo por meio de uma resposta que não se enquadra nas
leis da natureza. Este intervalo que o corpo produz, Deleuze compreendeu como sendo
homólogo à montagem no cinema, pois ela é um corte entre duas tomadas, introduzindo
um intervalo entre a ação e a reação (Deleuze 2001). Para Deleuze, a função do corte é
homóloga ao que é para o corpo entendido como “centro de indeterminação”. O
processo pelo qual o corpo isola certos aspectos da imagem para gerar percepções. Este
processo é exatamente igual ao processo de enquadramento, o qual isola parte da
imagem e torna visível esta parte, a presentificando. De fato, em sua obra Imagem-
movimento, Deleuze considera o corte e o enquadramento como homólogo do processo
de subtração da imagem-total na percepção bergsoniana. Entretanto, a camêra têm a
potencialidade de ir além do corpo e atingir a percepção do próprio fluxo sem
necessidade de reduzi-lo ou filtrá-lo. Trata-se do projeto estético deleuziano de tornar
sensível as forças invisíveis e, com isso, provocar um abalo no corpo desorganizando-o.
“Se no cinema não tem de modo nenhum a percepção natural subjetiva
como modelo, é porque a mobilidade dos seus centros, a variabilidade dos
seus enquadramentos o conduziram sempre a restaurar vastas zonas
acentradas e desenquadradas: tende então a alcançar o primeiro regime da
imagem-movimento, a variação universal, a percepção total objetiva e
difusa. De fato, percorre o caminho nos dois sentidos” (Deleuze 2001: 93).
312
Assim, o cinema torna-se homólogo ao fluxo universal das imagens
15
. O corpo
nesse enquadramento perde importância. Porém não podemos deixar de observar que o
corpo continua, para Deleuze, sendo a possibilidade de atualização das intensidades não
humanas (afectos, perceptos e sensações). Deleuze divide a experiência corporal em
dois tipos. As comuns que tornam-se clichês e são destinadas ao controle e as
extraordinárias que remodelam as formas de vida e, consequentemente, a maneira de
pensar e se relacionar com o mundo. Quanto mais próxima estiver a percepção do fluxo
universal das imagens, mais intensa será a percepção, tornando-se sensação e afastando-
se do sentimento, que são as respostas aos estímulos na forma de clichês. Então para
gerar uma resposta nova a um estímulo, é necessário a experiência de um corpo
desorganizado, um corpo sem órgãos.
O simples enquadramento de qualquer tipo de imagem: pintura, fotografia,
cinema, vídeo necessita, em alguma escala, de uma percepção incorporada, na qual o
corpo é um centro de indeterminação. Apesar disso, é a imagem digital que melhor
desvela a condição incorporada do processo perceptivo. Isto porque é ela que
desestabilizou as teorias da imagem técnica. No ambiente digital, a imagem não pode
ser mais compreendida como algo fixo, um ponto de vista objetivo sobre a “realidade”.
Se a imagem até então foi compreendida como quadro, janela ou espelho, no sistema
digital, ela tornou-se tudo isso e mais além, dada a flexibilidade de sua base numérica e
sua constitutiva virtualidade. De fato, trata-se do que chamamos de libertação dos
15
Aqui existe uma divergência entre Hansen e Deleuze. Para Hansen a afetividade é uma propriedade
eminentemente corporal e o processo de corte e enquadramento somente pode ser compreendido com a
participação do corpo. Trata-se de tornar as mídias digitais com cara humana, mostrando a importância do
corpo na síntese das imagens. Para Deleuze as sensações, afectos e perceptos são intensidades não
humanas. O objetivo da percepção artística é tornar sensíveis esses elementos e provocar um choque no
corpo, agora atravessado por essas intensidades. No caso do cinema, a câmera torna-se mais que corpo,
pois tenta não selecionar, mas capturar o próprio fluxo universal das imagens. Entretanto, no caso das
mídias digitais, penso que poderíamos manter o enquadramento conceitual deleuziana e, ainda assim,
atribuir importância ao corpo. Para tanto, basta pensar-mos que o corpo sempre atualiza as virtuais
intensidades afectivas.
313
simulacros, acontecimento no qual se perde totalmente a estabilidade da relação modelo
e cópia. O simulacro pode ser tudo e sempre se afirmar como diferença.
Edmond Couchot assim define a imagem digital:
“Uma imagem numérica é uma imagem composta de pequenos fragmentos
“discretos”, ou pontos elementares, aos quais se atribuem valores
numéricos inteiros que posicionam cada um destes pontos num sistema de
coordenadas espaciais (em geral cartesiana), em duas ou três dimensões, e
no caso de uma imagem colorida, os valores complementares aos quais
correspondem uma determinada cor. Estes valores numéricos fazem de
cada fragmento um elemento inteiramente descontínuo e quantificado,
distinto dos outros elementos, sobre os quais se exerce um total controle. A
imagem numérica se apresenta como uma matriz de números (um quadro
composto de colunas e linhas) contida na memória de um computador e
suscetível de ser traduzida sob a forma visual de uma imagem vídeo ou
imagem impressa. Pode-se a partir de agora sintetizar integralmente uma
imagem fornecendo ao computador a matriz dos valores adequados de cada
um de seus pontos. Inversamente, uma imagem convencional, como uma
foto ou um desenho, pode ser analisada numericamente; neste caso, o
computador a decompõe automaticamente por meio de um dispositivo
especializado (escâner) e a transfere em sua memória sob a forma de uma
matriz de números” (Couchot 1984: 124).
Se a imagem digital é a acumulação de tais fragmentos descontínuos, cada um
dos quais pode ser dirigido independentemente do todo, então não existe nenhuma
relação material entre o conteúdo da imagem e seu enquadramento, que é um corte no
fluxo do real. Assim, a imagem tornou-se uma mera e contingente configuração
numérica que pode sofrer modificações moleculares. São imagens que possuem o
potencial de transformação, imagem-devir, ou seja, um conjunto de pontos elementares
de natureza numérica passíveis de permutação. Mesmo uma imagem digital
aparentemente em repouso, potencialmente é sempre passível de mudança. Portanto,
virtualmente é movimento.
Manovich considera a imagem digital com essencialmente uma “imagem-
interface” ou “reticular”, ou seja, uma “imagem-instrumento”. Nesse contexto a imagem
não é compreendida como uma representação de uma realidade preexistente e
314
independente, mas como um instrumento para o interator produzir o “real”. Aqui o foco
é na capacidade de um computador materializar informação ou afetar diretamente a
“realidade” por meio de uma telepresença. Segundo Manovich:
“As Novas Mídias mudaram nosso conceito do que é uma imagem, porque
transformaram um simples ponto de vista num usuário ativo. Uma imagem
ilusionista funciona se a memória comparar a realidade representada com a
realidade observada antes. As imagens das novas mídias é alguma coisa que
o usuário ativamente entra dentro, amplia, clica em uma parte e estabelece
um hiperlink…” (Manovich 2001: 183).
Para Hansen, a compreensão do processo digital necessita uma reconsideração
da relação entre o corpo e a imagem (Hansen 2004), não simplesmente porque a
imagem é um instrumento para o usuário controlar sua inserção no ambiente digital,
como sugere Manovich, mas porque a própria imagem se tornou um processo ligado
diretamente à atividade do corpo. Então, ela deixa de ser simplesmente uma superfície e
torna-se um processo no qual a informação é percebida na experiência corporal. No
processo perceptivo da imagem digital desvela-se a concepção bergsoniana da
percepção como uma função seletiva de um corpo entendido como um centro de
indeterminação. Segundo Hansen, esse bergsonismo digital deve, entretanto, ser
atualizado concebendo o corpo não somente como um centro de indeterminação como
um universo de imagens acentradas, mas como um corpo que opera filtrando
informação diretamente e, devido a esse processo, cria as imagens (Hansen 2004: 100-
127). Juntamente com o advento da digitalização, o corpo, então, adquiriu um certo
poder, já que não somente seleciona partes de um conjunto de imagens do fluxo
universal de acordo com sua singularidade (afecção e memória), mas também enquadra
a informação digital, que é, de um ponto de vista material, completamente sem forma.
Assim, para o corpo perceber o fluxo informacional, a percepção deve transformá-lo em
imagens. Trata-se então de um esforço para estender a margem de indeterminação do
315
corpo, dominando desta forma o ambiente digital no qual está mergulhado. Lembremos
que é no intervalo, criado pelo corpo, entre o estímulo e a resposta que a consciência e a
afecção emergem. Quanto maior o intervalo, maior a intensidade da consciência que
emerge. Quanto menor o intervalo, mais a resposta está ligada a questões práticas de
sobrevivência e menos consciência emerge. Assim, grandes intervalos fazem emergir a
inteligência e a possibilidade de transformar a ação prática num raciocínio teórico.
Desse ponto de vista, trata-se então de pensar imagens que gerem intervalos
consistentes. Essas imagens criadas pelo próprio corpo, em seu processo de filtragem do
fluxo informacional, são as interfaces. Os movimentos rápidos e automáticos
executados em videogames e realidade virtual são respostas imediatas para alcançar fins
práticos. Já a imagem que pede uma certa contemplação antes da resposta, proporciona
a emergência da consciência do próprio processo perceptivo, o qual se torna uma
exploração de um universo háptico de um espaço interiorizado.
Uma outra questão que deve ser discutida, mesmo que de forma rápida, é o
caráter novo, prefixo das “novas mídias”. Em outros termos, o que há de novo nestas
mídias. Diante dessa questão, geralmente temos duas posições. A primeira acredita que
as novas mídias são de fato uma ruptura em relação às mídias do passado. A outra
acredita que não existe de fato nada novo que possa ser designado para essa mídias.
Nossa posição situa-se a meio caminho tanto de uma como de outra. Alem disso, essa
questão também deve ser resolvida no enquadramento bergsoniano. O corpo em seu
processo de enquadramento da informação torna-se corpo afectivo, alterando a
materialidade da mídia. Essa introdução do corpo como parte fundamental da mídia a
diferencia em relação às mídias do passado. Assim, o fluxo de informação é renderizado
com a efetiva participação do corpo, materializando-se em várias formas de imagens
como: imagens-sons, imagens-táteis, imagens-imersivas, mundo interativo e etc.
316
Consequentemente, o papel da seleção torna-se central em dois principais aspectos. De
um lado, o artista, ou designer, deve selecionar as interfaces capazes de expressar seus
objetivos estéticos e comunicacionais tendo em vista, ou como background, as
possibilidades virtuais de ação de um corpo. De outro lado, o usuário deve participar no
processo para que os dados digitais transformem-se em imagem percebidas. Bergson
concebeu a percepção como sempre voltada para uma ação. Os objetos que cercam
meu corpo refletem a ação possível de meu corpo sobre eles. A escolha do percurso e
do processo de materialização das imagens no corpo acontece por meio da atualização
de situações virtuais. Cabe ao artista, ou designer, criarem estas possibilidades virtuais
que serão atualizadas no processo corporal de escolha nas imagens-interface.
"Meu corpo é portanto, no conjunto do mundo material, uma imagem que
atua como as outras imagens, recebendo e devolvendo movimento, com a
única diferença, talvez, de que meu corpo parece escolher, em uma certa
medida, a maneira de devolver o que recebe” (Bergson [1896] 1997: 140).
O sistema nervoso corporal não trabalha com vistas ao conhecimento: apenas
esboçam de repente uma pluralidade de ações possíveis, ou organizam uma delas. A
experiência digital, entretanto, com sua crescente riqueza perceptiva simboliza
simplesmente a parte crescente de indeterminação deixada à escolha do corpo em sua
conduta em face das coisas. A exploração da imagem-digital é um acontecimento que
requer a ampla atividade corporal para produzir a experiência, e isto é seu diferencial
em relação às outras mídias. Para unificar a diversidade, o corpo é o “lugar” no qual tal
diversidade pode ser unificada numa não redutiva agregação (Hansen 2004).
Suponhamos uma coisa em processo de percepção. Nesse processo emanam
lembranças, não só de outras coisas ou de outros aspectos da coisa, mas imagens
microscópicas, fragmentos ínfimos de imagens de cores, espaços, de luz, que Deleuze
chamou de “partículas” ou “efêmeros”. São também as intensidades perceptuais. Assim,
317
toda a percepção de uma coisa atual se rodeia de um mundo de “virtuais”. Mundo de um
dinamismo intenso, problemático, sem o qual a percepção visível não seria possível.
Sem esse processo não se poderia dar sentido à coisa, já que esta ficaria reduzida à sua
superfície isolada, não conectada. A coisa isolada somente tem sentido quando “esse
objeto toma emprestado suas propriedades físicas das relações que ele mantém com
todos os outros, e deve cada uma de suas determinações – sua própria existência,
conseqüentemente – ao lugar que ocupa no conjunto do universo" (Bergson [1896]
1997: 12).
As imagens digitais também possuem esta virtualidade
16
. Elas emitem partículas
virtuais e efêmeras, que se proliferam e, parte delas, atualizam-se no corpo, centro de
indeterminação, portanto de abertura, acaso, para permanentes filtragens. A
digitalização permite um potencial quase ilimitado de modificação da imagem em sua
relação com o corpo, ou seja, em sua incorporação. O digital nos convida a investir
nossos corpos como o “lugar” no qual a diferença específica da mídia digital se
concretiza.
Se a importância do corpo como fundamento da imagem digital é o aspecto novo
das “novas mídias”, não podemos deixar também de associá-la, pertinentemente, às
mídias anteriores, já que certos modos do corpo enquadrar e do designer projetar são
tomados desse patrimônio perceptivo cultural. Nesse sentido, as análises de Manovich
nos parecem bem pertinentes.
16
Deleuze de fato criticou algumas teorias que aplicam indiscriminadamente o conceito de “virtual” ao
processo informacional e comunicativo. Entretanto, essas críticas visam à operação de reduzir a realidade
ao virtual. O virtual é uma ontologia da diferença para Deleuze, ele difere do atual e se deriva deste por
diferenciação. Aqui, de forma alguma estamos igualando virtual e real. Acreditamos escapar à crítica de
Deleuze, exatamente, por inserir o corpo como centro de indeterminação e elemento essencial do
processo perceptivo na imagem digital. O corpo filtra e materializa certas “partículas”, certos “efêmeros”,
deixando na virtualidade o todo destas “partículas” e “efêmeros”.
318
Manovich não acredita que as mídias digitais tenham realmente algo que se
possa se chamar de novo. Sua atenção se concentra especialmente nas relações entre o
cinema e as novas mídias. Suas reflexões abrem um leque de considerações sobre as
linguagens das mídias e aponta o cinema como linguagem-síntese que pode ser
representada como um banco de dados para as linguagens digitais. Ele considera o
cinema como o cruzamento de códigos e sistemas culturais, os quais são difundidos em
diversos canais: sala de cinema, TVs, internet, etc. Assim, já a cem anos atrás, quando
nasceu o cinema, os modos cinemáticos de ver o mundo, de estruturar o tempo, de
contar uma história, de ligar uma experiência com outra tornaram-se a base pela qual os
usuários de computador interagem com todos os dados culturais (Manovich 2001: 78-
79). Para Manovich, mesmo as formas distintas das novas mídias – a base de dados e o
espaço navegável – encontram antecedentes nos experimentos cinematográficos da
vanguarda russa, notadamente o filme O Homem da Câmera de Dziga Vertov.
No primeiro capítulo de sua obra, Manovich (2001), analisa o impacto das novas
técnicas sobre o cinema. Ele insiste sobre a emancipação do cinema em relação ao
registro fotográfico da realidade e sobre a transformação das relações entre produção e
pós-produção. No cinema digital a película física não é mais o objetivo final, mas
somente uma matéria primeira destinada a ser elaborada por um computador, no qual se
precede a construção real das cenas. “Neste sentido, a produção torna-se primeira em
relação à pós-produção” (Manovich 2001: 303). A manipulação e a animação das
imagens, que darão nascimento ao cinema, estão hoje no coração do cinema numérico.
Sem fazer futurologia, e se distanciando do utopismo técnico que caracteriza boa
parte da produção teórica sobre as novas mídias, suas reflexões reconstroem uma das
genealogias possíveis das técnicas da informação e da comunicação. A atenção
exclusiva reservada ao aspecto visual das novas mídias conduz Manovich a se
319
concentrar unicamente sobre certas aplicações, notadamente os jogos e a realidade
virtual, em detrimento de outras, por exemplo a web e os processos de contatos, como
ambientes multiusuários. Também, por mais importante que o cinema tenha sido para a
construção da linguagem digital, não se pode negligenciar as outras mídias. Por
exemplo, a falta de profundidade de campo da tela da TV, obriga a construção de
imagens complexas por meio de camadas sobrepostas. Este procedimento também é
muito usual na construção de interfaces digitais. Entretanto, o maior problema nas
análises de Manovich é a ausência da importância do corpo na gênese da imagem
digital.
Por todo esse capítulo, procuramos mostrar o fundamento incorporado da
imagem digital, o qual tem, hoje, cada vez mais se desvelado, principalmente no uso
dos dispositivos móveis que rompem o quadrado da tela e enfatizam os movimentos
corporais. As novas interfaces de toque, também mostram a importância do corpo.
As reflexões de Manovich representam uma constante na análise da imagem
digital: a desincorporação e desmaterialização. Estes conceitos são operantes também
nas análises de Baudrillard, quando este acusa a imagem digital de simulacro, e nas
análises de Kittler, as quais pretendem demonstrar que a emergência do digital nos
levou para uma nova era “pós-midiática”.
Kittler demostra de forma muito convincente que o termo mídia é relativo, isto é,
somente faz sentido num quadro de pluralidade de mídias. Kittler fará então uma
genealogia e uma arqueologia cultural das mídias. Inicialmente ele postula um primeiro
momento caracterizado por uma pré-mídia: a época do alfabeto, na qual a
universalidade do idioma faz dela uma forma universal para a inscrição de toda a
experiência. É a “era da escrita”. Neste momento, não podemos caracterizar essa
presença universal, esse monopólio do alfabeto como propriamente uma mídia (Kittler
320
1999: 9). Esta surge com a diferenciação, ou seja, com o aparecimento de mais de uma
mídia. Trata-se da invenção do gramofone, do cinema e da máquina de escrever. Essas
mídias especializam os sentidos e se tornam produtos autônomos, autoreferentes (Kittler
1999: 10).
O cinema é para Kittler uma das três mídias fundamentais que inauguram a “era
das mídias”, ao lado do gramofone e da máquina de escrever. Elas são tratadas
separadamente na obra, embora colocadas em relação em diversas ocasiões, cada uma
sendo tomada em sua própria especificidade e desdobramento no tempo, com as
características distintivas oriundas das considerações tecnológicas utilizadas para
explicar sua evolução. As características principais das mídias são de fornecer uma
“reprodução” da realidade. Segundo Kittler, elas escapam assim aos constrangimentos
do simbólico. Trata-se de garantir a semelhança por meio de processos técnicos (Kittler
1999: 12). Deste ponto de vista, o fenômeno indicial se torna essencial na
argumentação. A “era das mídias” é segundo Kittler, definida pela separação dos três
meios de reprodução em questão; é isto que determina a ruptura em relação à “era da
escrita”, caracterizada por sua unidade (Kittler 1999: 14). A coincidência histórica da
emergência das três mídias, acontecidas no final do século XIX, engendra, no registro
da reprodução da realidade, a existência autônoma das informações acústicas, visuais e
escritas. As possibilidades posteriores, na história, de suas combinações não modificam
a sua constante diferenciação. O jogo da diferenciação das mídias é uma questão
essencial das análises de Kittler. As três mídias são distinguidas, umas das outras, a
partir das categorias lacanianas: o real, para o fonógrafo, que registra a continuidade das
ondas sonoras, a matéria da voz (Kittler 1999: 16); o imaginário, para o cinema, que
reenvia ao espelho, ao jogo dos duplos, a toda ilusão ótica do cinema dos primeiros
tempos; o simbólico, para a máquina de escrever, que disseca os signos e os discursos
321
em elementos discretos, as letras, as palavras, separadas pelos espaços que se impõe
pelo toque mecânico no momento de sua reprodução (Kittler 1999: 115-116).
A análise da materialidade da mídia e de seu poder de reprodução são elementos
fundamentais da teoria de Kittler. Ele aplica esse mesmo princípio da materialidade e da
reprodução na análise das mídias digitais. Nesse momento, parece se perder toda a
riqueza de sua arqueologia e genealogia das mídias. No caso digital, para encontrar a
materialidade, ele baseia-se no conceito de informação de Shannon e na máquina de
Turing. Com o advento da linguagem binária, o puramente arbitrário cede lugar a uma
nova concepção do código enquanto submissão a regras que no limite transcendem até
mesmo o indivíduo que codifica, na medida em que se lhe tornam alheias. Com Turing
tal concepção ganha redobrado fôlego, levando a que o anteriormente arbitrário código
se torne algo passível de ser naturalizado. Segundo Kittler, há paralelos notáveis entre
os problemas do físico e os do criptógrafo. O sistema segundo o qual uma mensagem é
descodificada corresponde às leis do universo. É certo que a intenção subjacente a tais
afirmações não era a de equivaler a Natureza a qualquer código, e sim tentar demonstrar
que o processo pelo qual se tenta desvendar um código secreto, seja por via humana seja
com o auxílio do computador, se depara com métodos, hipóteses e especialmente
incertezas equiparáveis aos que nos habituamos a associar ao esforço da ciência para
conhecer os fenômenos naturais.
A informação é compreendida então como código binário aplicável a qualquer
tipo de matéria e fundamentalmente de natureza sintática. A conclusão é inevitável. A
“era digital” desmaterializa e desincorpora a informação. Além disso, se processa uma
união de todas as mídias sob o controle da codificação. Logo não temos mais a
diferenciação das mídias, mas uma única mídia suportada por um padrão binário.
Entramos na era da pós-mídia, na qual, de fato, não existe mídia mas um único e
322
universal processo de codificação, como na “era da escrita” (Kittler 1997). Também,
enquanto nas mídias de fato, a reprodução sempre envolve uma perda da qualidade e da
informação, na “era da pós-mídia” a reprodução ao infinito é possível, sem haver
qualquer perda de qualidade. O conceito de mídia tornou-se obsoleto. Mas como
entender a riqueza sensorial e sinestésica da imagem digital. Segundo Kittler trata-se
apenas de epifenômenos, destinados ao show midiático para o grande público. De fato,
não existe mais mídia, porque não existe diferenciação.
Para nós, todas as análises que acabam por desmaterializar e desincorporar a
imagem digital abstraem completamente o corpo, considerando-o como dispensável ou
um ruído no processo perceptivo, ao modo cartesiano de conceber a cognição. Ao
contrário, para nós o corpo é o lugar onde se constrói os elementos da comunicação, ou
seja, a subjetividade, o sentido e o compartilhar desse sentido. Como assinala Bergson,
no processo perceptivo:
"Há para as imagens um simples diferença de grau, e não de natureza, entre
ser e ser conscientemente percebidas. A realidade da matéria consiste na
totalidade de seus elementos e de suas ações de todo tipo. Nossa
representação da matéria é a medida de nossa ação possível sobre os
corpos; ela resulta da eliminação daquilo que não interessa nossas
necessidades e, de maneira mais geral, nossas funções. Num certo sentido,
poderíamos dizer que a percepção de um ponto material inconsciente
qualquer, em sua instantaneidade, é infinitamente mais vasta e mais
completa que a nossa, já que esse ponto recolhe e transmite as ações de
todos os pontos do mundo material, enquanto nossa consciência só atinge
algumas partes por alguns lados. A consciência – no caso da percepção
exterior – consiste precisamente nessa escolha. Mas, nessa pobreza
necessária de nossa percepção consciente, há algo de positivo e que já
anuncia o espírito: é, no sentido etimológico da palavra, o discernimento”
(Bergson [1986: 1997: 23-24).
Diante disso, uma nova ética começa a surgir: fazer do corpo um centro de
indeterminação não controlável, cuja ação de fato crie o novo. Esta ética visa a criar
novas formas de vida que podem escapar a processos de controle. O poder e seu efeito
imediato: o controle não passam, como diz Negri, de superstição, organização do medo:
323
"Ao lado do poder, há sempre a potência. Ao lado da dominação, há sempre
a insubordinação. E trata-se de cavar, de continuar a cavar, a partir do ponto
mais baixo: este ponto […] é simplesmente lá onde as pessoas sofrem, ali
onde elas são as mais pobres e as mais exploradas; ali onde as linguagens e
os sentidos estão mais separados de qualquer poder de ação e onde, no
entanto, ele existe; pois tudo isso é a vida e não a morte." (Negri 2001: 13).
Para o designer e o artista, trata-se então de sempre criar ou projetar interfaces
que visam explorar o corpo como um centro de indeterminação, no qual a ação
resultante no mundo propicia o surgimento do novo. Na ética do Eterno Retorno de
Nietzsche, trata-se então de imprimir uma marca, um caráter em todas as ações
possíveis, afirmando o aleatório e o acaso. Viver e construir a vida como uma obra de
arte.
324
Conclusão
Fluxo, Corpo e Percepção na Comunicação Digital
Fluxo, Corpo e Percepção na Comunicação Digital
"A consciência parece ser proporcional ao poder de
escolha do ser vivo. Ilumina a zona de potencialidades
que envolve o ato e preenche o intervalo entre o que é
feito e o que poderia ser realizado". (Bergson, Matéria
e Memória)
Conclusão
Tivemos ao longo de nosso trabalho a oportunidade de tecer uma série de
comentários a respeito das teorias da comunicação de importantes teóricos
contemporâneos. Evidentemente que nossas críticas não se destinaram ao todo de uma
determinada teoria, concentraram-se no aspecto das mídias digitais. Por exemplo,
quando Kittler analisa as mídias analógicas ou obsoletas, não temos nenhuma crítica.
Entretanto, quando ele passa suas análises para as mídias digitais, então podemos
detectar que sua teoria das materialidades toma o conceito de informação de Shannon e
Weaver como modelo de materialidade. Consequentemente, ele acaba
desmaterializando e desincorporando o processo comunicativo nas mídias digitais. A
imagem torna-se então simulacro ou representação confusa, na medida que sua
referência é o código binário. Nessa perspectiva, de fato, a imagem digital não guarda
nenhuma relação aparente ou perceptiva com o código escondido no chip do
computador. Permanecer nesse enquadramento conceitual é não escapar das dicotomias
e aporias que a metafísica ocidental engendra como fundamento do pensamento.
Epistemologicamente, esta tradição insiste em pensar a irredutibilidade entre o sujeito e
o objeto. O sujeito como centro anterior a toda relação e lugar privilegiado do
conhecimento. O objeto como portador de conteúdos preestabelecidos. Enfim um
326
sistema de conhecimento que elimina a presença do corpo como um centro de
indeterminação na ação humana.
A fenomenologia bergsoniana nos alimentou com os fundamentos para pensar a
relação sujeito e objeto fora desta metafísica representacionalista. Antes de tudo, trata-
se de estabelecer de que o primeiro é a Relação. É ela que engendra os elementos
constitutivos, ou seja o sujeito e o objeto. Logo, é na relação que a subjetividade é
formada e o objeto é percebido enquanto objeto e não representação de um objeto. A
imagem torna-se presença no mundo, torna-se ontologia, Ser no sentido de algo que
existe por si mesmo e para si mesmo.
O corpo está presente no processo da imagem digital com uma evidência
inquestionável. O fato de, nos atuais computadores de mesa, o corpo, aparentemente,
permanecer imóvel, criou a ilusão de sua pouca importância no processo da
comunicação. Entretanto, mesmo nessas interfaces se pode detectar a forte presença do
corpo. O mouse é considerado por muitos como uma das mais importantes invenções da
computação. De fato, ele permitiu o desenvolvimento da interface gráfica. Ora, existe
uma atividade constante do corpo na relação com essa interface gráfica. As vezes os
olhos são guiados pela mão que manipula o mouse, outras vezes é o contrário, a mão
que é guiada pelo olho. Mão e olho quase que se tornam um mesmo órgão. Temos um
corpo que é olho e mão. Um corpo desorganizado, sem órgãos, na expressão de Deleuze
referenciando Artaud. A mão é também o tato. Trata-se então de um olho tátil que
experimenta e investiga um espaço mutável, um fluxo de dados. Esta situação tem se
intensificado nos dispositivos de toque (Touchscreens), também conhecidos como telas
táteis. A mobilidade do corpo, em relação às tecnologias digitais, também se acentua
com todos os dispositivos móveis, que investem em novas atitudes corporais. Além
disso, podemos citar as “roupas inteligentes”, os calçados que acumulam energia
327
cinética transformada para “carregar” dispositivos com celulares. Enfim, o corpo é
sempre requerido no processo da comunicação digital.
Como tivemos oportunidade de mostrar, o corpo desempenha um papel
fundamental no processo perceptivo na fenomenologia bergsoniana. Imagem entre
imagens, ou seja, objeto entre objetos, ele tem entretanto uma característica que o
diferencia de todos os outros objetos. Nele se instala um intervalo entre os estímulos e
as respostas. No mundo da natureza essa relação entre estímulo e resposta é dada por
meio de padrões que a ciência pode entender e, com isso, antecipar os fenômenos. No
corpo não. O intervalo cria um centro de indeterminação, ou seja, a possibilidade de que
a resposta tenha alguma coisa de novo, algo que fuja dos padrões. Em suma, trata-se de
introduzir a diferença em todo o sistema por meio desse centro de indeterminação. No
intervalo entre o estímulo e a resposta é que surge a percepção e a consciência da
percepção, em termos bergsonianos a apercepção. Todo esse sistema perceptivo está
destinado originalmente para a ação do corpo. Antes de tudo, o homem é ação e não um
ser contemplativo ou teórico. A teoria surge na continuidade da possibilidade da ação,
ou seja, num intervalo demasiadamente largo. O corpo estabelece uma relação com o
mundo que é fluxo permanente de imagens. No caso digital, fluxo permanente de dados.
É nessa relação que a consciência e a subjetividade emergem produzindo as
possibilidades de novas formas de ser do homem. Existe uma clara relação entre os
sistemas digitais, nos quais a ação interativa produz o “tempo real” e o conceito de ação
como a essência do ser-no-mundo bergsoniana.
A teoria da percepção de Bergson devolve a importância epistemológica para a
imagem. Ao contrário da filosofia platônica, Bergson atribui à imagem um estatuto
ontológico, além de recusar as dualidades opositivas e excludentes como aparência e
essência, em benefício da Relação, que engendra dualidades complementares geradoras
328
de híbridos. Ao contrário do platonismo e do cartesianismo, na filosofia bergsoniana
não há lugar para a percepção falsa, ou enganosa.
Para Bergson tempo e movimento são categorias indivisíveis. A fragmentação
conduziu a uma visão espacializada dessas categorias. Porém, essa visão não passa de
um artifício da percepção dirigido à finalidade, inteiramente prática de estabilizar o
incessante movimento das imagens para organizar a ação. Trata-se de um filtro que o
corpo estabelece, ou de um recorte nesse fluxo incessante, com o objetivo de dirigir uma
ação para um fim específico. Não se trata portanto de ilusão, mas de um modo de operar
corporal. A percepção não representa um objeto, mas estabelece uma relação com uma
parte do fluxo total, ou da imagem-total. O erro não está no artifício do corpo, nem
tampouco na ilusão sensorial, mas na tendência de que ela se torne uma verdade para a
ciência, formando em nós o hábito de pensar o real somente a partir desse filtro.
Bergson critica a insuficiência das categorias estáticas da cognição. A atividade
mental é um fluxo contínuo e mutante que mistura percepções, desejos, pensamentos,
afetos. A concepção de um real descontínuo, formado por objetos dispostos
espacialmente, é uma estratégia da percepção fundada inteiramente no interesse humano
para sobreviver.
Trata-se então de questionar o próprio fundamento de uma percepção
compreendida enquanto representação que se expressa na separação entre sujeito e
objeto. A percepção humana é tanto objetiva como subjetiva, e está inexoravelmente
ligada ao corpo, com suas oscilações e mudanças permanentes. Não é possível separar
os objetos que percebemos da nossa ação sobre eles, ainda que seja apenas virtual essa
ação.
O corpo torna-se então um centro de indeterminação voltado para a ação sobre
os objetos do mundo. Segundo Bergson, pode-se distinguir duas espécies de memórias.
329
A memória-hábito, que é a da repetição e do adestramento, formando padrões e se
prolongando quase instantaneamente em ação. Nessa ação da memória no corpo quase
que não existe intervalo entre o estímulo e a resposta. A outra é a memória-imaginação,
que é a da diferença e da invenção, transformando os padrões. É ela a responsável pela
construção da subjetividade. Ela necessita do intervalo, do tempo (duração) para se
desdobrar em ação. Esta memória da imaginação nunca se repete. As duas memórias,
apesar de irredutíveis uma à outra são inseparáveis e funcionam em sinergia na afecção
corporal.
Trata-se então de pensar e projetar interfaces que abram as possibilidades de
ocorrência da memória-imaginação, provocando no centro de indeterminação que é o
corpo uma resposta nova. Cria-se a diferença na ação e, conseqüentemente, a
constituição de novas formas de ser do humano.
Assim, nossas propostas seguem na direção oposta das teorias que acreditam na
obsolescência do corpo. Apostamos em um corpo que constrói a subjetividade, que
interage com os fluxos de dados digitais, que participa ativo na construção do sentido de
suas experiências. Um corpo que na relação com as mídias digitais é capaz de produzir
novas subjetividades.
A tecnologia digital é o lugar em que o corpo atinge uma relação simbiótica com
a imagem nunca antes acontecida, pelo menos na mesma intensidade. Hoje, graças a
essa tecnologia podemos experimentar um corpo mais presente do que nunca, além de
uma nova maneira de percebê-lo. Nessa era do virtual acontece novas maneiras de
conceber a ética, a estética, a natureza e a cultura, o corpo e a subjetividade, o real e o
simulacro, os quais devem ser pensados então em novos enquadramentos teóricos.
A desconstrução das noções tradicionais de sujeito foi amplamente discutida nas
obras de Foucault e Deleuze. Segundo Foucault não há sujeito prévio, mas uma
330
produção de subjetividade que não pode ser entendida como uma formação de saber ou
de poder. A subjetivação é uma operação artística, ética e estética, é a produção dos
modos de existência, das formas de vida, a partir da relação da força consigo mesma.
Deleuze conduz essa máxima foulcaultiana para a construção dessas novas
subjetividades múltiplas, nômades. O ambiente digital é um campo fértil para o
exercício da subjetividade.
Já no século XIX ocorreram as transformações sofridas pelo modelo de
subjetividade em sua relação com o desenvolvimento dos dispositivos de visão, além
dos estudos das geometrias não euclidianas e do conceito de quarta dimensão. Tais
descobertas abriram caminhos para novas subjetividades e influenciaram a estética
moderna. São estratégias que se apresentam como alternativas a supremacia do
ocularcentrismo instaurada pelo modelo da perspectiva renascentista que posicionou o
sujeito como figura central e testemunha imóvel de uma cena. Hoje, as técnicas
permitem uma multiplicidade de pontos de vistas que apontam para o descentramento
do sujeito porém elas, de forma alguma, desincorporam esse sujeito. Ao contrário,
enfatizam um corpo em movimento que, ao multiplicar os pontos de vistas, exploram o
espaço por meio do tato e de um olho-tátil.
O cartesianismo estabeleceu um sujeito estável e universal cuja forma
privilegiada de conhecer descarta a presença do corpo em prol de um sujeito idêntico ao
seu pensamento. A crise desse sujeito universal se aprofunda com as experiências da
relação entre o corpo e a subjetividade numa cultura atravessada pelas tecnologias
digitais.
A desconstrução das noções tradicionais de sujeito e corpo foi amplamente
desenvolvida por Foucault que propôs um sujeito processual sem essência ou natureza
fixa. Deleuze concebe os sujeitos como agenciamentos que se metamorfoseiam à
331
medida que expandem suas conexões. Assim, a subjetividade não existe previamente,
mas é construída por meio de uma relação. As relações entre o corpo e as mídias digitais
são possibilidades para se construir subjetividades. Então é necessário pensar e projetar
interfaces que em sua relação com o corpo privilegiem as construções subjetivas e seus
questionamentos, ou seja, trata-se da construção de subjetividades múltiplas, fluidas e
heterogêneas. Uma ética e estética para o designer de interfaces se desenha. No
horizonte da criação a eterna pergunta: que subjetividades estamos criando por meio do
corpo?
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caleidoscópio: reflexões sobre as novas mídias. São Paulo: Ed. SENAC, 2005
345
ANEXO CD-ROM
No CD-ROM existem dois arquivos digitais que expressam alguns pontos
desenvolvidos neste trabalho. Não se deve tomá-los nem como ilustração, ou arte;
mas como simples expressão e reflexão. Ambos trabalhos são de minha autoria.
1. Gerador.swf
Este trabalho é uma engine construída em Flash que funciona como um gerador de
imagens. Uma série de instruções pede ao computador que desenhe formas em várias
camadas com variações na transparência. Trata-se, a princípio, de um trabalho de
natureza contemplativa, dado que se pede somente para o usuário fruir contemplando
as formas que se segue em permanente fluxo. Entretanto, mesmo neste contexto
contemplativo, o corpo desempenha um papel fundamental. Primeiro no fato de ao
observarmos o trabalho do computador, o associarmos à um organismo vivo. O
processo de geração das imagens é uma gênese maquínica associada a gênese
físico-biológica do ser vivo. Essa associação se dá em virtude de minha intimidade
com meu corpo e seus processos perceptivos sensório-motores.
Segundo, experimento o fluxo de imagens de forma qualitativa, com momentos
diferenciados, porém formando um todo que passa. Tenho essa experiência porque
meu corpo também é um fluxo que dura. É devido à presença de meu corpo que
posso intuir o fluxo de dados na permanente criação das imagens. É uma projeção
virtual das possibilidades de meu corpo. Também, no complexo fluxo de luz que o
computador gera, meu corpo configura alguns dados significando a imagem.
2. Palavras.swf
Este trabalho é uma engine construída em Flash, a partir de um código de Jared
Tarbell. O usuário agenciador digita uma frase num campo de input de texto e a
máquina transforma a frase em composições tipográficas. O corpo age e máquina
responde. O corpo percebe e configura as formas. O olho toca o tempo. A experiência
é o tempo-real como fluxo que dura e, nessa duração, o corpo recorta e significa.
Livros Grátis
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