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Breton In LÉVY, 2004). A própria palavra corpo não aparece no texto bíblico, sendo que o
Antigo Testamento utiliza o termo grego sarx, que significa carne. A carne, lembram
Rahner e Vorgrimler (1970), designa no mundo cristão o homem como um todo, o ser
humano corporal em sua totalidade e, como tal, se distingue do espírito (pneuma), que é a
potência divina capaz de salvá-la. Esta distinção, porém, não é substancial, sendo que
“nessa concepção bíblica, não se pode falar do corpo como algo que o ‘eu’ ‘possui’, como algo
exterior a ele, um ‘instrumento’: o homem ‘é’ também seu corpo” (1970:100-1). Neste sentido, o
corpo cristão se opõe ao dualismo grego, especialmente platônico, no qual o corpo emerge
como a possessão da alma. Já no Novo Testamento, Paulo desenvolve uma teologia do
corpo, porém, não como sarx e sim como soma, no sentido da unidade humana passível de
redenção, implicando assim em um corpo igualmente celeste. Em nenhum desses casos,
porém, trata-se da mesma noção de corpo que se instaura com a modernidade
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quaresma. Para os autores, “esse balanço sinaliza sem dúvida o lugar central que o corpo ocupa no
imaginário e na realidade da Idade Média” (2003:36).
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Contrariamente ao que se costuma imaginar, o pensamento cristão, pelo menos um certo
pensamento cristão antigo, não é totalmente negativo em relação à carne. Na verdade, podemos
dizer que ele é ambivalente. Por um lado, o corpo é desqualificado como a “abominável vestimenta da
alma”, lugar onde o pecado original torna-se pecado sexual, de modo que abstinência e continência
são as grandes virtudes humanas desse período. Por outro, ele assume um valor positivo na
medida em que a condição sexual concorre para o “aperfeiçoamento da natureza humana mantida após
a ressurreição no Paraíso, não para a geração que não tem mais razão de ser, mas para a perfeição e a beleza
dos eleitos” (LE GOFF & TRUONG, 2003:12) e onde as paixões sensíveis são vistas como
colaboradoras para o aperfeiçoamento do espírito. É preciso lembrar que o centro do culto cristão,
a eucaristia, celebra o corpo e sangue de Cristo. Ele é simultaneamente o lugar da queda e da
ressurreição, já que o fato de Cristo ter se tornado homem é visto como uma valorização da carne.
Como diz Defois, “a humanidade de Cristo exerce um poder de influência sobre os homens pela alma e pelo
corpo” (In MARTIN, 1991:129). Do mesmo modo, a noção de Igreja como corpo de Cristo remete à
imagem do corpo como princípio normativo da socialização cristã, cuja finalidade é o amor.
Também Rahner e Vorgrimler (1970) sustentam que a tarefa da filosofia e da teologia cristãs era a
de afirmar a unidade do homem por meio de uma alma indiscernível do corpo material e sem o
qual ela não pode se realizar, como teria proposto, por exemplo, São Tomás de Aquino. Lembra
Defois, porém, que em São Tomás já existe uma hierarquia entre as diversas partes do corpo, por
exemplo, conferindo à cabeça a função mais importante, hierarquia essa que será emprestada à
sociedade medieval. A alma aqui se serve instrumentalmente do corpo e, neste sentido, o controla.
Assim, dizem Le Goff e Truong que “o corpo cristão medieval é de parte em parte atravessado por essa
tensão, este movimento pendular, esta oscilação entre a rejeição e a exaltação, a humilhação e a veneração”
(2003:13). Não se pode negar, porém, que houve uma grande renúncia ao corpo, de modo que as
manifestações sociais ostensivas a ele relacionadas foram em geral proibidas, como as termas, o
jogo e o teatro. Neste sentido, há um recuo do corpo em relação ao mundo antigo, onde era objeto
de um verdadeiro culto, recuo esse promovido pela Igreja que impõe o ideal ascético como modelo
ideal da vida cristã. Trata-se de uma forma de liberar a alma da tirania do corpo. Isto assume duas
formas principais: a renúncia ao prazer e a luta contra as tentações. O cristianismo é, assim, o