Matéria: ciência e ontologia
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isso não significa ser desprovida de toda forma, pois tem ser
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e foi concriada
com o tempo, como afirma Tomás
135
, o que implica que a protomatéria tem ser,
essência, ainda que desprovida de formas especificadoras ou substanciais, pois
opera segundo sua natureza de ente em potência, pelo que tem aptidão
indeterminada por formas especificadoras. Dado que a operação segue o ser, a
protomatéria tem aptidão para o bem, isto é, para aquilo que lhe convém por
natureza, e isto somente é possível se ela tem aquele caráter entitativo mínimo
com o qual aspira a realizar o que lhe é próprio
136
. Ademais,
E porque o ser segue a forma das coisas, elas existem quando possuem forma e
deixam de existir quando privadas da forma. Deve, portanto, existir nelas algo
que em um tempo possa receber a forma e, em outro tempo, possa ser privado
dela: a esse algo denominamos matéria [protomatéria]. Por conseguinte, as coisas
ínfimas entre as outras necessariamente se compõem de matéria e forma.”
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E tal potencialidade é indeterminada, no sentido de que deve ser entendida
como uma capacidade (potencial) ou indiferença para receber quaisquer formas
especificadoras.
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Ou seja, a protomatéria
*
possuiu então em sua origem
(criação) o mínimo de caráter entitativo (ser em ato), informada por diversos α-
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Cf. TOMÁS DE AQUINO, O Ente e a Essência, c.5, n.48, p.79: “Nas coisas que se relacionam
entre si, sendo uma a causa do ser da outra, aquela que exerce a função de causa pode ter ser sem a
outra, mas o contrário não vale. Ora, essa é a relação existente entre a matéria e a forma, pois a
forma dá o ser à matéria. Por isso, é impossível à matéria ser sem alguma forma [grifo nosso]”.
Ademais, afirma TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I q.74 a2 sol.): “A matéria, na
produção primeira das coisas, existia sob as formas substanciais dos elementos”.
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Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I q66 a4 sol.
136
Cf. TOMÁS DE AQUINO, Suma Teológica, I
a
q5 a3 ad3: “A matéria prima, sendo ser
potencial, também é bem potencial [pois] participa algo do bem, a saber, sua ordenação ou
aptitude para o mesmo. E, por isso, não lhe convém o ser desejado, mas o desejar”. Ora, a
operação segue o ser, e este tem forma, donde a protomatéria tem ser e forma.
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TOMÁS DE AQUINO, Compêndio de Teologia, c.74. Ora, este trecho de Tomás nos aponta
com muita precisão que, ao nos debruçarmos sobre os entes mais elementares, (tais como as
entidades subatômicas), aumenta o nível de indeterminação do ser, posto que nos aproximamos da
indeterminação proveniente da matéria associada a formas cada vez mais elementares. Dito de
outro modo: considerando a composição de matéria e forma (composição hilemórfica) desses entes
elementares, a balança pende a favor da matéria; diversamente, quanto mais complexo o ser, é
porque em sua composição hilemórfica há um grau imensamente maior de determinação do ente
(número maior de propriedades espaço-temporais determinadas, complexidade, auto-organização,
etc.).
138
Ibid., c. 19.
*
Visto que, a partir deste ponto, precisamos adequar com mais ênfase a terminologia atual,
passaremos a usar com maior freqüência protomatéria em vez de matéria (que já estava
substituindo a matéria primeira), e quando houver risco de confusão conceitual ou terminológica
(que estamos a evitar a todo custo), o sentido correto será explicitado.