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modos, injetar-lhe o fel e a amargura no coração, como se, ofuscados pelas aparências, não pudessem admitir um
tão completo exemplo de felicidade. As injúrias versavam principalmente sobre o caráter da mulher.
Então um desgosto sombrio principiou a persegui-lo; abominou a pátria — esse covil de maus e de
invejosos — qualificou ele, revezando o seu tédio!
Em breve, qualquer maledicência a seu respeito, que lhe chegava aos ouvidos, punha-o num estado
lastimável de irritação. E, no despenhadeiro de seu azedume, tudo foi aos poucos lhe parecendo mau e
mesquinho; chegou a desconfiar da mulher; a supô-la sem amor, sem gratidão, capaz talvez de uma deslealdade;
suspeitou de todos que o cercavam, detestou a sociedade; e, por não encontrar sobre quem descarregasse
diretamente o seu ressentimento, bramou contra o atraso do Brasil, contra a falta de distrações, contra a
ignorância geral do
público, contra a incompetência dos poderes, contra toda a “podridão social enfim”!
— Uma terra de bugres! dizia e repetia ele aos amigos, que o visitavam todas as noites. Uma terra de
bugres! Aqui, um homem, para não morrer de tédio, para divertir-se um bocado, precisa atirar-se aos vícios, ou
não sair de casa! — País de lama!
E para esquecer-se de seu desgosto, jogava.
De resto, o governo português acabava de o fazer barão de Itassu, e o Rio de Janeiro fariscava em torno
de sua casa, atraído pelo som da música e pelo barulho dos pratos.
A casa! A casa, ou antes o museu do Borges, que outra coisa não era esse ninho de raridades de que se
falava em toda a corte, dessas magnificências do luxo antigo e moderno, desses ricos objetos de arte de todos os
tempos e de todas as paragens. A casa transformara-se, como o dono.
Tudo foi reformado. Exibiram-se novos trastes, novas cortinas, tapeçarias, peles, cachemiras, bronzes,
faianças, cristais, porcelanas, quadros, estatuetas, aquários, álbuns, mosaicos, vasos florentinos, lustres de
vermeil, espelhos venezianos talhados à biscau, cariátides de Jean Goujon, servindo de peanhas a esculturas de
Germain Pilou e uma variedade interminável de tetéias e relíquias, que a baronesa colecionara por todo o mundo.
Expuseram-se velhas cadeiras com espaldar e assento de couro de Córdoba, lavrado, e tacheado de metal
amarelo; leitos à Renascença de colunas retorcidas e métopes talhados em madeira fusca; jarras do Oriente,
sarapintadas de hieróglifos; objetos preciosos de marfim, manufaturados na China; molduras delicadíssimas de
porcelana, à Luís XIV, representando grinaldas coloridas; consolos de breche-antique, sustentados por delfins de
olhos e barbatanas douro, luzido; sem contar as otomanas asiáticas, os divãs, os fauteuilles, os étagères de xarão,
de palissandra, de ébano; enfim o que podia haver de raro, de singular, de extraordinário. Não era uma casa, era
um prolongamento do Hotel Cluny. Cada objeto, cada móvel, cada peça representava uma época, um reinado,
uma escola.
Mas o barão, quando ficava a sós no meio de tudo isso, sentia-se acabrunhar por uma espécie de remorso;
afigurava-se-lhe fugir debaixo dos pés o chão sólido e áspero do dever, para dar lugar aos tapetes felpudos e
voluptuosos; parecia-lhe ouvir uma voz austera, que se levantava de tudo aquilo para o argüir e reprovar.
— Pois foi nisto que esbanjaste o teu dinheiro, João Borges?!... Foi nestas quinquilharias que enterraste
essa fortuna, que teu pai, à custa de tanto sacrifício, conseguiu juntar para ti, insensato? Perdulário!... E agora
vão ver!... Tudo por quê? —Porque o pedaço de asno adora cegamente uma mulher, um demônio, a quem se
entrega de corpo e alma e que faz dele o que bem entende, sem talvez lhe dedicar um pouco de afeição, pois, se
dedicasse não seria a primeira a cavar-lhe deste modo a ruína!... Oh, sim! dizia o infeliz, deixando-se cair em
uma de suas cadeiras preciosas. — Oh, sim! sou um miserável, mas amo-a tanto! adoro-a tão extremosamente,
que ainda seria capaz de muito mais para conservá-la sempre ao meu lado!
E procurando fugir ao ferretear dessas considerações, refugiava-se no entorpecimento da embriaguez, nos
sobressaltos do jogo e na conversa agitada dos amigos, que o iam cardando e descodeando todas as noites.
Filomena, por outro lado, não se mostrava, apesar do título, completamente feliz.
— Mas que te falta ainda?... perguntou-lhe o marido, sem se poder conter, uma vez que a viu mais triste e
desconsolada. — Creio que até hoje tenho cumprido à risca, e com sacrifício de nosso futuro, todos os teus
desejos e todos os teus caprichos! Possuis uma casa como ambicionaste; és requestada pela melhor sociedade;
ostentas um título, e tens plena certeza de que eu, teu marido, teu amante apaixonado, só vivo por ti, e para ti!
Sabes perfeitamente que não há em todo o mundo, por toda a parte onde estivemos, uma única mulher, escrava
ou rainha, que me fizesse esquecer um instante de ti, minha querida Filomena! E, no entanto, tu, tu! que és a
minha única preocupação, o meu cativeiro, tu, nem por isso te mostras mais satisfeita e mais agradecida! Mas
com todos os demônios! Se te falta ainda alguma coisa, fala com franqueza! Exige! Ordena! Mas por amor de
Deus não me tortures com essas tristezas e com esses suspiros que me desesperam! Bem sabes que és tudo
quanto possuo! És a minha vida! a minha felicidade! Vamos! Fala! fala! diz o que te oprime, Filomena de
minh'alma.
— Nada! Não tenho nada! respondia a mulher com um esgar fastidioso. Quero apenas que me deixem!...
Que me não apoquentem com perguntas!...
— Tudo isso prova que nunca me amaste!... disse o Borges retraindo-se.
— Aí temos outra! observou Filomena, e, depois de um novo gesto de tédio, afastou-se, resmungando —
que não estava disposta àquilo!
Borges atirou-se sobre uma das tais cadeiras, e escondeu o rosto nas mãos,