Download PDF
ads:
ads:
Livros Grátis
http://www.livrosgratis.com.br
Milhares de livros grátis para download.
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES
DEPARTAMENTO DE JORNALISMO E EDITORAÇÃO
FICÇÃO
E REALIDADE:
AS TRAMAS DISCURSIVAS DOS PROGRAMAS DE TV
Rosane da Silva Borges
Tese apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação da Escola de
Comunicações e Artes da
Universidade de São Paulo como
requisito parcial para a obtenção do
título de doutor(a).
Orientadora: Professora Doutora Jeanne Marie Machado de Freitas
São Paulo – SP
fevereiro/2008
ads:
BANCA EXAMINADORA
Jeanne Marie M. Freitas (orientadora)
Em memória de
Cláudio Borges, meu querido pai. Sei
exatamente o que diria nesse
momento se por aqui estivesse. De
você, fica a doce e eterna lembrança!
***
A Fernando, pelo amor e carinho.
Reconhecimentos e Afinidades
O final (ou recomeço) de um percurso de trabalho é sempre balizado pela
trajetória desse percurso: como o trilhamos, em que condições, sob que critérios,
a partir de que perspectivas e finalidades. Somos, em grande parte, motivados
pelo conforto e apoio dos familiares e dos amigos, pela interlocução com a
orientadora, pela possibilidade de se dizer algo. Se todo trabalho intelectual
contrai dívidas desprovidas de valor de troca, o contra dom é apenas o justo
reconhecimento de que o dom (recebido de um conjunto diverso de pessoas) é
impavel.
À minha orientadora, Jeanne Marie M. de Freitas. Inspiro-me em sua
fortaleza e admiro o seu eterno compromisso em articular outras formas de
pensar a comunicação, contagiando aqueles que também se predispõem a fazê-
lo.
Aos professores Dulcília Helena S. Buitoni e Eugenio Bucci, pelas
valiosas colaborações no exame de qualificação.
À Capes, pelo financiamento da pesquisa.
A Paulo César Bontempi, nosso querido Paulinho, pela prontidão e
agilidade em resolver as questões administrativas e burocráticas do cotidiano
da pós-graduação.
A Ângelo Reinaldo Jerônimo (ARJ). Agradeço por ter sido um
intermediador na edão das fitas dos programas.
***
À minha querida mãe, Alda Borges. Pelo amor, dedicação e afeto. As
conversas a distância e presencial, as trocas, os conselhos, a partilha de
momentos bons me deram equilíbrio durante a jornada.
A Fernando. Amor, afeto, cuidado e dedicação partilhados na maior
parte do doutorado. Obrigada pelo incentivo e encorajamento. Você, meu
querido, é parte desse processo.
Às minhas irmãs e irmão: Áurea, Cláudia, Clêudes, Izolina e Paulo. O
carinho e o afeto fazem da gente, para além domero, uma grande família.
Às sobrinhas queridas: Brendinha, Paulinha (também afilhada) e
Cecília: sinto saudades das nossas estripulias.
***
Aos amigos de ontem, de hoje e de sempre.
Alex, irmão querido, pela sincera amizade. O mundo nos espera. Ele que
nos aguarde. Conto sempre com você.
Cláudia Gouveia, André Barreto e Janaína. Lembro com muitas
saudades das nossas conversas no Rio. Vocês são especiais.
Cidoca (Cidinha). Amizades se constroem. Sinto orgulho em ter
construído uma com vo. Obrigada pela leitura final de alguns textos da tese e
pelas descontraídas e divertidas conversas na reta final de produção. Elas
tiveram efeito balsâmico.
Carlos e Evânia. Torço pela felicidade de vos. Obrigada pelas
conversas amistosas e apoio durante cirurgia.
Flávio Carrança. A sua disponibilidade em revisar parte dos textos é
prova de sincera amizade e carinho.
Élide Fogolari. Lembro sempre do seu incentivo e afeto.
Equipe da Revista Caligrama (Jeanne Marie, Joanita Mota, Regina
Azevedo e Luz). Nos encontramos pouco nesse período, mas partilhamos bons
momentos.
R
ESUMO
O trabalho tem como propósito refletir sobre ficção e realidade na TV brasileira.
Parte do princípio de que os programas do veículo, tradicionalmente definidos
e classificados pelos formatos e gêneros, não podem ser diferenciados por
critérios de “irrealidade” e “realidade”, pois ambos possuem uma base fictícia,
ou seja, são fabricações, realidades discursivas. Postula, assim, uma abertura de
fronteiras entre os formatos televisivos. O telejornalismo, que se constrói com
base em indícios seguros e inequívocos, passa a exigir outras ferramentas de
análise. Para tornar viáveis essas articulações, a tese busca subdios teórico-
metodogicos nas ciências da linguagem. A filiação teórica a esse campo é
motivada pelo fato de que os problemas visados no terreno do estudo das
dias são, por definão, questões de linguagem (concebida não como
instrumento de comunicação, mas como instituinte do humano). Desse modo,
resulta difícil subtrair do debate tópicos como sujeito, discurso, narrativa –
temas que foram explorados com acuidade por disciplinas que compõem a
ciência dos significantes. A inscrição nesse campo de estudo exige,
invariavelmente, que se interpele as teorias da comunicação quanto à sua
renúncia em participar das discussões fundantes, delineadas a partir de
Saussure, que pensaram o discurso – matéria-prima da comunicação.
Desse lugar de fala, a tese vem colocar em cena a primazia do Olhar, e não dos
gêneros, no processo de mediação televisiva. Ambos, olhar e mediação, estão
em sintonia estreita. Os programas Mais Você, Fantástico, Big Brother Brasil, Linha
Direta, Jornal Hoje e Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão compõem o
corpus de análise da tese.
Palavras-chave: ficção e realidade – mediação – discursos – olhar – televisão
RESUMÉ
Ce travail a pour but de réfléchir sur les thèmes de la fiction et de la réalité à la
TL . On part du principe que les programmes de ce hicule, traditionnellement
définis et classés selon les formats et les genres, ne peuvent être différenciés
selon les critères du « réel » ou de « l´irréel » , car tous deux possèdent une
base fictice, c´est dire que ce sont des fabrications, des réalités discursives. On
postule, ainsi, une ouverture de frontières entre les formats télévisés. Les
journaux télévisés, construits sur le support d´indicess sûrs et sans équivoques,
en viennent á exiger d´autres instruments d´analyse. Pour rendre viables ces
articulations, la thèse cherche des appuis théorico-méthodologiques dans les
sciences du langage. L´attache théorique à ce domaine de recherche provient du
fait que les problèmes visés para l´étude des midia sont, par définition, des
questions de langage (conçu non comme un instrument de comunication, mais
comme instituant de l´humain). De cette façon, il résulte difficile de soustraire
du débat des topiques comme celui du sujet, du discours, de la narrative , – tous
thèmes explorés avec acuité par les disciplines composant la science des
signifiants.inscription dans ce champétude exige, invariablement que l´on
interpelle les théories de la communication quant à leur refus de participer des
discussions fondatrices, dessinées á partir de Saussure, celles qui pensèrent le
discours en tant que matière première de la communication.
A partir de ces principes, la thèse veut mettre en scène la primauté du Regard,
remplaçant celle des genres, au cours du processus de médiation par la TL.
Tous deux, regard et médiation, se tiennent en étroite syntonie.
Les programmes Mais Você, Fantástico, Big Brother Brasil, Linha Direta, Jornal
Hoje et Jornal Nacional des Entreprises Globo de Televisão composent le corpus
de l´analyse.
Mots-Clefs : fiction - médiation – discours - regard
ABSTRACT
This piece of work intends to ponder about fiction and reality on Brazilian TV.
It is ground on the principle that the TV´S programs, traditionally defined and
classified by formats and genders, can not be distinguished trough standards of
“reality” andunreality”, for both possess a fictitious base, in other words, they
are manufactures, discursive realities. We postulate, therefore, an opening of
borders among televised programs. Journalistic activities performed on TV that
build themselves based on secure and unequivocal evidences are requiring
other tools to help investigation. To make feasible these proceedings, this thesis
looks for theoretical and methodological subsidies in the sciences of language.
The theoretical enrolment to this field is due to the fact that questions related to
the study of media are, by definition, questions of language (conceive not as
instrument of communication, but as human establisher).Thus, it ends difficult
to withdraw from the contest topics such as subject, discourse, narrative,
themes that have been explored with acuity by disciplines which compose the
sciences of meaning. Inscription in this field of researches demands, invariably,
to summon the theories of communication when they escape the founding
discussions, outlined since Saussure, that have thought about discourse –raw
material of communication.
From this outlook, the thesis brings to the stage the primacy of the Eye, not of
genders, in TV´S process of mediation. Both, Eye and mediation, are in close
syntony. The programs Mais Você, Fantástico, Big Brother Brasil, Linha Direta,
Jornal Hoje e Jornal Nacional, from the Globo de Televisão System, compose the
set of documents of our investigation.
Key-Words: fiction and reality, mediation, discourse, Eye, television.
L ISTA DE FIGURAS
FIGURA 1 TAVOLETTA DE BRULLESCHI 96
FIGURA 2 CÂMARA OBSCURA 96
FIGURA 3 TAVOLETTA 2 97
FIGURA 4 TAVOLETTA 3 97
FIGURA 5 PALIMPSESTO 148
FIGURA 6 HIPERTEXTO 148
FIGURA 7 MILAGRE DE SÃO MARCOS 149
FIGURA 8 SUPERMAN 149
FIGURA 9 TETO CAPELA SISTINA 150
FIGURA 10 LOGOMARCA FANTÁSTICO 219
FIGURA 11 LOGOMARCA MAIS VOCÊ 225
FIGURA 12 APRESENTAÇÃO FANTÁSTICO 227
FIGURA 13 ABERTURA FANTÁSTICO 230
FIGURA 14 ABERTURA FANTÁSTICO 230
FIGURA 15 ABERTURA FANTÁSTICO 230
FIGURA 16 APRESENTAÇÃO FANTÁSTICO 231
F
IGURA 17 TROMPE-L´OEIL MAGRITE 244
F
IGURA 18 EXEMPLO DE TROMPE-L´OEIL 244
FIGURA 19 TROMPE-L ´OEIL BOI VOADOR 244
FIGURA 20 ANA MARIA E PAPAGAIO 244
FIGURA 21 LAS MENINAS 253
FIGURA 22 EXPOSIÇÃO DE CONFINADOS 268
FIGURA 23- DIVULGAÇÃO DE FOTO MÔNICA GRANUZZO 268
FIGURA 24 BANCADA JH 292
F
IGURA25 BANCADA JN 292
SUMÁRIO
DEDICATÓRIA
AGRADECIMENTOS
À GUISA DE APRESENTAÇÃO
I INTRODUÇÃO 15
PARTE I – NOÇÕES, CONCEITOS E PROCEDIMENTOS
1 COMUNICAÇÃO E CNCIAS DA LINGUAGEM: NA ARESTA, A TELEVISÃO 31
1.1 A questão antecedente 32
1.2 A demarcação do campo 33
1.3 O campo da comunicação 38
1.4 Uma rota, várias possibilidades 47
2 FICÇÃO E REALIDADE: AS FORMAS NARRATIVAS DA TELEVISÃO 64
2.1 O sentido radical da ficção 65
2.2 Real, Realismo, Ficção e Realidade 66
2.3 Itens para compor o roteiro: a inclusão da ficção 77
PARTE II – CERCANDO O OBJETO
3 TELEVISÃO, UM DIÁLOGO COM O OBJETO 86
3.1 Afinal, o que é televisão? 87
3.2 Imagem (ao vivo): marca registrada da TV 94
3.3 O olho da TV: o lugar da pesquisa 103
3.4 Televisão, essa desconhecida 111
3.5 Televisão no Brasil: o percurso do olhar 116
4 GÊNEROS TELEVISIVOS: ARTICULAÇÃO DOS ENUNCIADOS IMAGÉTICOS E VERBAIS
4.1 Preparando o suporte (de análise) 123
4.2 O dispositivo televisual 131
4.3 Gêneros: o tecido dos programas televisivos 138
4.4 Os antecedentes dos gêneros televisivos 143
4.5 Gêneros Televisivos: os programas em tela 164
PARTE III – NO DOMÍNIO DAS ANÁLISES
5 NARRATIVAS TELEVISIVAS:TODOS, PROCEDIMENTOS E POSTURAS 175
5.1 Prólogo: o início do diálogo 176
5.2 As vias propostas, os caminhos percorridos 177
5.3 Um alerta para a comunicação 181
5.4 Protocolo de leitura 185
5.5 Tatear, caçar, conjecturar: a difícil busca da comunicação 188
5.6 Nem tanto ao mar, nem tanto a terra: quais as possibilidades metodogicas
de se analisar a televisão 191
6 PROGRAMAS TELEVISIVOS: FLUXO NARRATIVO NAS VIAS DA FICÇÃO E DA
REALIDADE
6.1 Materialidades discursivas: verbal, imagética e sonora 196
6.2 Programas Televisivos: discursos e vestígios 207
6.2.1 Um excurso pela Rede Globo de Televisão 208
6.2.2 Grade de programação da Rede Globo e seus respectivos gêneros 213
6.3 A cena do enunciado dos programas 219
6.3.1 Fantástico, o show da vida, e Mais Você: tudo pela informação e pelo
entretenimento 219
6.3.2 Linha Direta e Big Brother Brasil: vigilância, punição e bonificação 262
6.3.3 Jornal Nacional e Jornal Hoje: o melodrama narrativo 287
7 LIÇÕES DAS ANÁLISES 308
7.1 A cena do mundo (televisivo) se organiza pela função do olhar 309
7.2 A emergência do imaginário tecnológico 318
7.3 Narrativas Televisivas: destinação final da ficção e do entretenimento 328
7.4 Um breve ajuste de contas com o jornalismo 331
7.5 A ficção na cadeia simbólica 335
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS 346
9 FONTES 353
14
I
À GUISA DE APRESENTAÇÃO
15
I INTRODUÇÃO
A lógica de um pensamento é como um vento
que nos impele, uma série de rajadas e de
abalos. Pensava-se estar no porto, e de novo
se é lançado ao alto mar.
Leibniz
Anedota 1. Duas pessoas testemunham uma briga em praça pública e
repentinamente ouvem o barulho de supostos tiros oriundos da confusão de
que eram espectadoras a distância. O ocorrido instaura alguns impasses: afinal, o
barulho que elas ouviram era realmente de tiros? As pessoas envolvidas na
briga foram atingidas pelo projétil? Para dirimir as dúvidas, as testemunhas
oculares apresentam como solução o jornal televisivo da noite: – vamos
verificar o que aconteceu realmente mais tarde no jornal!
Anedota 2. Ator de telenovela passeia em shopping do Rio quando,
inadvertidamente, é surpreendido com agressões verbais de um transeunte.
Motivo da interpelação: o desconhecido queria “ajustar as contas” com o vilão
da novela, uma ameaça aos mocinhos e mocinhas da trama. Para o defensor do
eixo do bem da narrativa novelística, ator e personagem são entidades
inseparáveis.
***
AS ANEDOTAS COM AS QUAIS PRINCIPIO
1
ESTA TESE apresentam alguns
pontos que se interseccionam e, em certo sentido, prestam serviço para a
realização do trabalho. Entre eles, ponho em relevo: 1) a importância da
1
Roland Barthes, no precio de A fala intermediária, de François Flahaut, considera que dizer
“eu” quando se escreve é uma operação dispendiosa que exige, constantemente, um balanço
sobre a escrita. No entanto, assegura ele, não é efetivamente possível falar da linguagem sem de
certo modo reconhecer que se está dentro dela, não é possível tratar a linguagem como uma
atividade intersubjetiva sem que nos coloquemos no terreno da caça. A ressalva de Barthes
indica em tempos atuais a transição e as alterações do paradigma científico que primava pela
ausência do sujeito. Faço uso da primeira pessoa do singular aludindo às ações por mim
realizadas (posturas, tomadas de decisão, avaliações) e na primeira pessoa do plural, no que diz
respeito às reflexões teóricas, numa perspectiva dialógica.
16
televisão como agenciadora dos fatos; 2) a relação inextricável entre ficção e
realidade, pois a primeira parece informar, eclipsar, “confundir” e construir a
realidade; 3) a potência da mediação televisiva (nem mesmo o testemunho in
praesentia, como no primeiro caso, foi suficientemente capaz de garantir uma
“interpretação” do ocorrido) para a construção da verdade, ou para a formação
de consenso, no dizer de Chomsky.
2
Segundo Au, o acervo audiovisual produz “um novo regime de fião,
e esse regime se instaura afetando nossa vida social a ponto de nos fazer
duvidar da realidade. As reportagens de televisão adquirem uma aparência de
ficção, e a ficção imita o real”. (1998: 6). De acordo com ele, a nova composição
de real e ficção também condiciona a circulação entre o imaginário individual (o
sonho), o imaginário coletivo (os mitos, os ritos e os sonhos) e a obra de ficção.
A televisão parece ser a síntese mais bem acabada deste regime,
pontuado pelo dispositivo do ver e do olhar:
As guerras do Golfo e do Iraque podem ser citadas como
exemplo dessa flutuação na distinção entre real e ficção: “para os
espectadores, pretensas testemunhas de uma guerra da qual eles
nada viram – a guerra do Golfo teve a aparência de um videogame
que tinha a guerra por tema, e que demonstrava o caráter preciso
e “próprio” da ação ocidental. A esse respeito, lembremos aqui a
necessidade, para o acontecimento potico-militar, de existir
como espetáculo, e a obrigação exigida do cidadão de ser
testemunha de um acontecimento ficcional”. (Id. Ibid.: 7).
Tornou-se moeda corrente dizer que, em tempos de inegável supremacia
da técnica, inundados de rápidas transformações, a cultura das mídias instaura
outras formas de sociabilidade. As histórias descritas inicialmente ilustram,
ainda que de modo caricatural, como a televisão ocupa papel nuclear nessas
formas de sociabilidade: é ela a responsável por nos oferecer a matéria-prima
2
Para Chomsky (1988), apesar de a “fabricação de ilusões necessárias para a gestão social ser
um estratagema muito antigo, foi a partir do início do século XX, com o autoritarismo
comunista e fascista, que o atual “modelo de propaganda” foi aperfeiçoado. É nesse período,
segundo o pensador, que a instrumentalização dos cidadãos atinge o ápice, por meio dos
sistemas de comunicação (manipulação) de massas: a imprensa, o radio e a televisão.
17
do laço social,
3
a base para a res publica possível, para o que possa haver de
comum entre nós e os demais (cf. RIBEIRO, 2004). Estou considerando, assim,
que ao nos fornecer informações variadas a TV acaba por criar e delimitar o
mundo do ponto em que ele deve ser visto, de fazer possível a socialização
desse comum, trazendo à cena o “mundo real”, instituindo, na letra de Bucci, o
telespaço público.
É de trivial evidência que o repertório de assuntos e temas que circula no
tecido social é fornecido, sobretudo, pela TV. A teoria da agenda setting
4
(fixação
da mídia), [para muitos uma hipótese e não uma teoria], considera que a mídia
hierarquiza temas e assuntos em agenda para serem debatidos na sociedade
(política, pública e jornalística). É ela, a mídia, que organiza a agenda, a
hierarquiza, ofertando ao leitor/telespectador/ouvinte suas prioridades
temáticas. Sob esse viés, é muito mais fácil entabularmos uma conversa com
estranhos em espaços públicos a partir do menu temático que os meios de
comunicação nos oferecem cotidianamente (o jogo de futebol, o desclassificado
do Big Brother Brasil, o acidente aéreo que chocou o país etc.). Mas o que estou
supondo aqui vai além do que essa teoria, posta sob suspeita, postula. A noção
de laço social, termo erigido na sociologia por meio de Durkheim, está
relacionada ao que instaura a vinculação, a liga entre o eu e o outro, concebida
“na radicalidade da diferenciação e aproximação entre os seres humanos”
(SODRÉ, 2002: 223). Uma das anotações de teóricos e pesquisadores de diversos
canteiros teóricos é que, com o enfraquecimento de instituições e discursos
antes ordenadores, como a família, a escola e a igreja, os meios de comunicação
3
Para Lacan e Lévi-Strauss, o laço social tem de construir e inventar um lugar em que as
economias subjetivas permitam aos sujeitos permanecerem satisfatoriamente atados. Contardo
Calligaris e Jurandir Freire Costa asseveram que não há laço social ideal, todo laço social tende a
se fixar imaginariamente sob o modo da potencialidade perversa. (C
ALLIGARIS, 2004: 3).
4
As idéias básicas da Teoria do Agendamento podem ser atribuídas ao trabalho do jornalista
americano, Walter Lippmann. Em 1922, Lippmann propôs a tese de que as pessoas não
respondiam diretamente aos fatos do mundo real, mas que viviam em um pseudo-ambiente
composto pelas "imagens em nossas cabeças". A mídia teria papel importante no fornecimento e
geração destas imagens e na configuração deste pseudo-ambiente. (cf. B
ARROS FILHO, 1995).
18
– e em especial a TV – infundem-se como os protagonistas na promoção de
laços sociais, de partilha.
Para Ribeiro, aí está a principal razão pela qual a filosofia política deve
ver no veículo uma fonte de exploração, um “objeto” de estudo capital: “é nela
que se encontra não o bem comum ideal, o a república imagiria, mas a
possível, a real, com seus defeitos, mas também suas potencialidades”. (2004: 3).
Sod nota este fato com perspicia, estendendo-o para a comunicação em
geral; para ele, o objeto dos estudos da comunicação é o vínculo social que ela
promove. Por decorrência, compreender a televisão, ainda segundo a
diversidade de argumentos, significa nos compreendermos como sociedade,
nos percebermos como sujeitos e cidadãos (conforme as reflexões de cepa
política), nos pensarmos como público e coletividade.
Postas essas observações, considero que nesse estoque de assuntos
veiculado pela TV menos importa se os relatos emanam do campo da ficção ou
do real, até porque eles possuem a mesma base discursiva. O que desperta
interesse é o fato de os programas televisivos fazerem parte da textura cotidiana
das nossas experiências, independente dos gêneros dentro dos quais estão
engavetados. O trançado de códigos, fundado no som, na imagem e na escrita,
nos enreda de tal modo que somos tele-guiados pelas narrativas do veículo.
Para muitos pesquisadores, a exemplo de Mazziotti, a tele-visão tem sido
freqüentemente pensada como um “continuum, um conjunto de escritas que se
sobrepõem: o palimpsesto. Um fluxo indefinido e flexível que precisa dos
gêneros para orientar o percurso dos espectadores”. (2001: 204). Estou
inclinada a pensar que nesse continuum, nesse conjunto de escritas que se
sobrepõem, se há algo que orienta o percurso dos espectadores, esse algoo
reside na especificidade deste ou daquele gênero, mas na forma significante das
espécies televisivas que articula eixos em torno dos quais o olhar assume papel
central para a definição de sociedade escópica, a sociedade que “tele-vê”. As
supostas difereas entre os programas televisivos não teriam, a rigor, nenhum
19
efeito para a assistência diuturna, pois eles são, por natureza, primo-irmãos,
partilham de bases semelhantes e se oferecem à assistência de maneira
entrelaçada.
É nesse aparente embaralhamento que vamos construindo e
sedimentando cotidianamente nossos vínculos com os programas televisivos,
daí a plausibilidade dos termos telepresea e a telerrealidade. As anedotas
nas quais me apoio permitem notar que ficção e realidade parecem, como disse
Deleuze, “correr uma atrás da outra, trocar de papel e tornarem-se
indiscerníveis”. (2005: 156). Elas mostram como os limites entre uma e outra, na
tela da TV, vão perdendo rigidez, se é que um dia tiveram, e tornando-se mais
fluidos e menos nítidos. Lanço mão rapidamente da tragédia do 11 de setembro
de 2001, agora clássica, para falar sobre o ficcional na televisão (ela será
retomada nas considerações sobre as análises): A TV francesa veiculava
imagens com o letreiro: “Isto não é uma ficção”.
Assim, o problema da pesquisa pode ser sintetizado no seguinte
enunciado interrogativo: Como pensar a ficcionalidade na televisão –
usualmente vista como puro avesso à realidade – e, em especial, no
telejornalismo, reduto da transparência e do verossímil? Quais os laços de
vizinhança entre realidade e ficção?
Do lugar de fala de onde o trabalho se institui, que permite notar as
espécies televisivas como laço social que liga a todos em seu ritual cotidiano,
tornou-se necessária a análise do universo televisivo como um complexo onde
os formatos narrativos que povoam a programação dessa mídia possuem
estreitas relações. Poder-se-ia, então, falar de uma especificidade dos
programas? O que particulariza e, portanto, diferencia o jornal do programa de
auditório, o filme da telenovela, do docudrama, do sitcom?
Ficção e realidade: as tramas da produção televisiva tem por objetivo examinar
algumas produções desse veículo (Fantástico, Mais Você, Linha Direta, Big Brother
Brasil, Jornal Nacional e Jornal Hoje – todos da Rede Globo), partindo do
20
pressuposto de que elas possuem uma base narrativa comum – som e imagem –
constituem uma matriz,
5
uma estrutura invariante, pertencem a domínios
contíguos. A chave-mestra de investigação pela qual procuro fazer esta conexão
é o campo visual, do (in)visível, articulando-o com outras materialidades, como
o som (música e outras inscrições sonoras) e a fala. O corpus recobre, em linhas
gerais, programas de entretenimento, jornalísticos, reality shows, docudrama –
matéria-prima do trabalho.
Como disse Leibniz na epígrafe que reproduzo acima, a aproximação a
alguns programas televisivos vem lançando-me novamente ao mar,
transtornando o porto seguro oferecido por algumas escolas e correntes do
pensamento comunicacional, apontando novos (outros) modos de pensar as mídias,
em especial a TV. Perfilo-me às iniciativas que apostam na possibilidade de
abertura de uma rota, cogitada nas brechas abertas pelo campo da
comunicação.
UMA JUSTIFICATIVA DO TEMA
CERTAS ORDENS DE INQUIETAÇÃO FORAM DEFINITIVAS para a escolha do
tema: parto do entendimento de que os telejornais possuem uma estrutura
muito parecida com os programas de entretenimento, que por sua vez se
aparentam aos programas esportivos, se avizinham dos programas de
5
O termo é capital para os estudos da linguagem, particularmente da lingüística. Courtine em
Analyse du discours politique (1981) compreende as formações discursivas (FD) como "matriz de
sentidos que regula o que o sujeito pode e deve dizer e, também, o que não pode e não deve ser
dito". Kristeva definiu texto como "matriz geradora de significantes", ou seja, como uma
superfície aonde vêm à tona, surgem, cifrados, rigorosamente, em letras, apenas, alguns sinais,
vagos, de seu significado. Para ela, o entendimento de um texto é sempre interino, enigmático,
esparso, mutável. Segundo o conceito mais amplamente divulgado, matriz (discursiva) diz
respeito ao conceito situado no plano da descrição dos elementos lingüísticos dos textos, mas
aparentado ao de tipo ou ao de gênero discursivo. Foi utilizado nos primeiros trabalhos de
análise do discurso realizados no quadro da didática do francês ensinado como língua
estrangeira. (B
EACCO E DAROT, 1984). Funda-se sobre a constatação empírica de que cada texto
singular pode sempre ser apreendido e descrito como único, como irredutível a outros, mas que
certos textos apresentam afinidades, de natureza diversa, entre eles. (C
HARADEAU &
MAINGUENEAU, 2004: 322).
21
auditório. Não há território interior no domínio televisivo: ele está inteiramente
situado sobre fronteiras; fronteiras que passam por todo lugar e coabitam o
campo do relato. Como disse Fausto do Macrocosmos, tudo é tecido num
conjunto, cada coisa vive e atua sobre a outra. A meu ver, nesse conjunto, a
ficção seria a estrutura que empresta irmandade a esses programas. A noção de
ficção aqui adotada é de fabricação, criação, como veremos a seguir.
Lembro-me vivamente que quando analisei programas policiais na
pesquisa de mestrado,
6
uma das dificuldades que tive foi a de enquadrar esses
programas em determinado gênero. Eles tinham uma estrutura excessivamente
sincrética, com características de documentário, telejornal, reality show. As
múltiplas feições dos programas policiais me fizeram atinar para as fronteiras
frágeis que separam os gêneros televisivos. Entre as várias questões que ficaram
de fora, as discussões relativas à ficção e à realidade tornaram-se a pedra
angular das reflexões prévias ao projeto de pesquisa que originou esta tese. Foi
em primeiro lugar como um embaraço, até mesmo como um questionamento,
que apareceu a dificuldade em inserir os programas em uma rota classificatória
consensual. O embaraço tornou-se ainda maior quando os telejornais se
mostraram como uma mixórdia de relatos aparentemente estranhos aos modos
narrativos da atividade noticiosa.
A mínima aceitação dessas desconfianças implicou em alguns
redimensionamentos na reflexão acumulada em torno do jornalismo, pois
contrasta com a tradição trica da área. Tido como um “gênero” que se funda
6
Sob a orientação da professora doutora Dulcília Schroeder Buitoni, a pesquisa procurou
alcançar dois objetivos: destacar o processo de representação social que é deflagrado nesses
“telenoticiosos” a respeito dos/as entrevistados/as e inserir os noticiários policiais, programas
de elevada audiência na TV brasileira, no campo específico dos estudos de linguagem. A
hipótese central que motivou a produção do trabalho partia da premissa de que os noticiários
policiais e, em particular, o programa Bandeira 2, nomeavam negativamente os seus
entrevistados. Cf. Borges, Rosane da Silva. Jornalismo-verdade ou condenação sumária? jornalismo
policial e os mal-ditos no programa de TV Bandeira 2. São Paulo: ECA/USP, 2002.
22
com e pela realidade e que, portanto, submete-se à prova de verdade, o
(tele)jornalismo garante sua particularidade na rica palheta da programação
televisiva pela via do verossímil, o que o isenta de ser visto em sua estrutura
ficcional. Ele está incólume à suspeita de fabricação, “invenção”, “criação”. Em
alguns círculos de pesquisa jornalística o tema é inabordável, pois quando se
cogita a possibilidade de o jornalismo ser pensado desse modo, a tradição
teórica e o universo profissional nos dizem que estamos frente a um problema
de natureza deontológica, de distorções da prática profissional, ou abreviando
vulgarmente, estamos frente a um “caso de polícia”.
Mais do que pensar a ficção no (tele)jornalismo como um desvio, ou
como recurso apenas do chamado jornalismo literário, do new journalism,
franqueado pela “licença poética”, considero que ela é o traço essencial das
narrativas do cotidiano, dentro das quais está o jornalismo. Esta é a hipótese
nuclear que ordena a prodão desta tese. Assim, acabo propondo, também,
falar de uma prática jornalística que não receie ir além da consagrada
circunspecção de seu território estritamente referencial (a relação com a
realidade é de exterioridade, com o testemunho emprestando legitimidade aos
seus relatos) – tido por tantos como placidamente indiscutível e insuscetível de
alargamento. A insolência, outra vez, reconduz à crise do sagrado: o inviolável
pode ser violado, o instituído pode ser questionado do lugar de sua instituição.
O enfrentamento dessas questões impôs diversas tarefas para o trabalho:
uma das preliminares consiste em verificar o que garante o traçado, se é que ele
existe, de uma linha divisória entre ficção e realidade. O que demarca as
fronteiras entre esta e aquela? De que forma os enunciados televisivos podem
ser pensados como entidades autônomas, isentas de “contaminações” entre
aquilo que é, solenemente, considerado ficção e o que é considerado realidade?
Sob que ponto de vista esta diferenciação se sustenta?
Cultivo a idéia de que ficção e realidade na TV, parafraseando Arri (cf.
2004: 5), não se separam nem por uma intransponível muralha, tampouco por
23
uma frágil treliça, o que parece ser a fechadura que protege uma da outra.
Ambas, a meu ver, quando separadas, o são por um biombo ao mesmo tempo
poroso e trespassado de aberturas, que oferece várias brechas como passagem.
Ainda que perpassadas de abertura, do ponto de vista conceitual e da
organização da programação televisiva em horários e núcleos de produção, a
parede permanece erigida, intacta. Os departamentos aparentemente estanques
que separam um programa do outro são mais uma forma elegante e cômoda de
arrumar o acervo televisivo, do que algo verificável na prática.
Aí está uma das razões iniciais para que o trabalho entre em confronto
com algumas crenças já enraizadas, obrigando-nos a promover alguns
deslocamentos de conhecimentos estabilizados, a implantar questionamentos
inabituais na seara da comunicação. É a partir das sobras
7
e brechas dos
argumentos costumeiros que procuro dar sustentabilidade às inquietações que
suscitaram a confecção desta tese. Esses deslocamentos visam, ao menos, atuar
em três frentes: 1) homologar aproximações entre ficção e realidade; 2) conceber
o (tele)jornalismo como um gesto fundador da realidade e não apenas um
transmissor de fatos já dados e existentes; 3) essas duas instâncias, assim postas,
participam de uma questão mais extensa: a da linguagem e mais, pontualmente,
a do discurso. De mero instrumento do pensamento, ela, a linguagem, passa a
ser vista como instituinte do humano, das relações sociais.
Mapeei territórios e lugares nos quais essas questões consideradas
cardinais pudessem se movimentar e que, como todo mapeamento, foram
assediados por proposições de vários flancos que se esparramaram sobre a
superfície delimitada. Deparei-me, inicialmente, com problema semelhante ao
que foi descrito por Jorge Luis Borges a respeito do mapa do Imrio: “(...)
7
A noção de sobra não é vista de forma negativa, pois levando em conta que sempre vai haver
uma parte não-apreensível, as sobras e os restoso vistos como importantes, pois “nada pode
ser dito senão por contornos em impasse, demonstrações de impossibilidade lógica, onde
nenhum predicado basta”. (L
ACAN, 1985: 20).
24
Naquele império, a arte da cartografia chegou a tal perfeição que o mapa de
uma proncia ocupava toda uma cidade, e o mapa do imrio toda uma
província. Com o tempo, esses mapas desmesurados já não bastavam mais. Os
colégios de cartógrafos elaboraram um mapa do Império que tinha a imensidão
do próprio Império e coincidia perfeitamente com ele. Mas as gerações
seguintes, menos afeitas ao estudo da cartografia, pensaram que este mapa
enorme era inútil e, não sem impiedade, abandonaram-no às inclemências do
sol e dos invernos”. (MIRANDA apud BORGES, 2002).
A lição dessa pilhéria é que o mapa, como um instrumento semiótico,
o é o território, ele não representa tudo de um território, deve ser auto-
reflexivo. Se cada escolha importante se dá em função de uma possibilidade
única, tentei tirar da moral da história do mapa as lões para a delimitação
necessária. Recortei alguns expedientes que considerei o mais producente para
a elaboração do trabalho.
Assim, dividi a tese em três partes distintas, cuja sobreposição contribui,
por sua vez, ao tipo de encadeamento que se pretende como um percurso. A
primeira parte se dedica prioritariamente às questões relativas aos conceitos.
Nela, constam dois capítulos: 1) Comunicão e Ciências da Linguagem: na
aresta, a televisão e 2) Ficção e Realidade: as formas narrativas da TV.
Comunicação e Ciências da Linguagem: na aresta, a televisão procura
situar o lugar teórico em que abrigamos a produção da tese. É nele que indico
os deslocamentos teóricos que levaram o trabalho para o terreno (in)comum da
linguagem, não transigindo do caráter fundante das relações sociais e do
humano. Essa condução – que se tornou mais insistente a partir do olhar
lançado, mesmo que oblíquo, para as chamadas teorias da comunicação –
organiza e recorta um campo de reflexão sobre o qual as articulações aqui feitas
encontram abrigo: o das ciências da linguagem. Inevitavelmente, interpela as
teorias da comunicação, (que se vêem envoltas no eterno problema atinente à
delimitação de um corpus reflexivo), transporta o escopo teórico do trabalho
25
para outros campos e convida-nos a fazer algumas anexações tricas com
determinados postulados de disciplinas aliadas, como a psicanálise, a
lingüística, a semiologia e a antropologia. Integra este capítulo o elenco de
categorias diretoras da tese, como real, simbólico e imaginário (RSI).
Ficção e Realidade: as formas narrativas da TV rastreia, em largos
traços, algumas definições de realismo, real, ficção e realidade que foram
projetadas em um terreno mais amplo de investigação com o fito de demonstrar
como o termo ficção foi interditado como forma legítima de expressão da
realidade. Procuro explorar o nicho onde se acha refugiada a palavra,
dialogando com áreas diversas onde o par ficção e realidade tornou-se a pedra de
toque de sua constituição, perturbando-as, como a literatura e a história.
A segunda parte se ocupa do objeto da tese: a televisão. Está igualmente
seccionada em dois capítulos: 3) Televisão, um diálogo com o objeto e 4)
Gêneros Televisivos: articulação dos enunciados imagéticos e verbais.
Televisão, um diálogo com o objeto aborda as definições de TV, a sua
irrefutável importância no cotidiano das pessoas, em especial na construção da
identidade brasileira, aponta que a tradição trica devotada a explicar o seu
papel e funcionamento, normalmente, renuncia pensar a televisão como forma
significante e tenta mostrar que a TV não mostra apenas lugares, como também
disse Bucci (2003), mas é um lugar, o lugar do Olhar. Gêneros Televisivos:
articulação dos enunciados imagéticos e verbais é um capítulo intermediário,
porque antecedente das análises, que se empenha em demonstrar que a
classificação dos programas televisivos em infinitos gêneros e formatos resulta
apenas como uma convenção que contribui muito pouco para se pensar a
mediação, contrariando o que dizem alguns pesquisadores e produtores do
veículo. Por definição, os programas são palimpsésticos, exibem os traços de
programas anteriores e as características de “gêneros” vizinhos. Tudo se faz na
fragilidade dos relatos que se desfazem, por força da ditadura dos índices de
audiência que dizem qual “a bola da vez”, em qual modalidade discursiva a
26
grade de programação da TV deve investir (no momento, os reality shows são a
“bola da vez”). A estética da redundância e da repetição é característica
primordial dos enunciados televisivos; elas podem ser observadas tanto nos
remakes (Linha Direta é um exemplo), os retornos de programas já veiculados,
quanto nos empréstimos entre os programas de suas formas narrativas (técnicas
de jornalismo em programas de entretenimento e vice-versa). (Deleuze [2004]
compreende que a comunicação só pode funcionar como redundância).
A terceira e última parte é reservada para a descrição e análises dos
programas propostos e para a leitura dos vestígios e rastros que conseguimos
captar com a empresa analítica. Três capítulos congregam esta seção: 5)
Narrativas Televisivas: métodos, procedimentos e posturas, 6)Programas
Televisivos: fluxo narrativo nas vias da ficção e da realidade e 7) Lições das
Análises.
Dialogando com o primeiro capítulo, no que tange à definição do campo
da comunicação, Narrativas Televisivas: métodos, procedimentos e posturas
intenciona mostrar que a definição de operadores metodológicos nesse campo
padece de problemas provenientes da eterna busca do objeto da comunicação.
Se não se sabe, afinal, qual é o objeto da comunicação, escorrega-se no
estabelecimento de um método para estudá-lo, conhecê-lo. Com o mesmo
espírito do primeiro capítulo, considerei necessário refazer o percurso de
algumas discussões, considerando que, juntas (reflexões do primeiro capítulo e
deste), esboçam um retrato parcial da epistemologia da comunicação. Os
problemas mais freqüentes com os quais se confrontam o pesquisador da
comunicação concernem sucessivamente à coabitação de infinitos modelos de
análise que normalmente não tocam o cerne dos problemas, não chegam à
“nervura do real”: a mediação televisiva. Faço, ainda, observações em relação à
suposta supremacia empírica como um modo de explicar os “fenômenos”
comunicacionais, relativizando tal supremacia. De acordo com as avaliações
corriqueiras, as dificuldades tendem a se acentuar com o objeto-TV, que é
27
composto por uma sobreposição de significantes (imagéticos, verbais e
sonoros). Ato contínuo, passo para as análises dos programas selecionados –
Fantástico, Mais Você, Linha Direta, Big Brother Brasil, Jornal Nacional e Jornal Hoje.
Elas são o temário do capítulo Programas Televisivos: fluxo narrativo nas vias
da ficção e da realidade, onde mostro o quanto regimes de ficção estão
entranhados nos modos de produção dos enunciados televisivos, a tal ponto de
os programas, como o Fantástico, se verem obrigados a dizer que a narrativa
transmitida não é ficção. A referencialidade de algumas matérias e quadros
depõe contra si mesma.
Lições das Análises faz articulações das análises com o tópico do olhar,
já que nos alinhamos à assertiva de Verón: “a relação do olhar é a condição
estruturante comum a todos os gêneros propriamente televisivos”. (apud SODRÉ,
2006: 105). É aí que reside o processo de mediação, é pela fascinação que nos
tornamos homo videns de uma sociedade que abusivamente se mostra. A TV é o
veículo que possibilita o exercício do ver a distância de maneira singular. Esta
ligação TV-olhar vem produzindo desde a sua consolidação final do século XIX
e início do XX efeitos duráveis em nossas formas de ser e estar no mundo, pois
aí pedaços significativos de nossas vidas e trajetos do humano se desenharam
de maneira inédita. E o contorno do desenho é assegurado pela ordem do
imaginário, que incita a produção de a-mais-do-olhar.
***
É digno de nota que esta tese, como tudo aquilo que está abrigado sob a
rubrica de “produção humana”, se vê tributária da concepção dialógica
bakhtiniana sobrias e diferentes maneiras. Aqui gostaria de reaar uma
delas: como se sabe, o conceito de dialogismo de Bakhtin, entre outras coisas,
relativiza a autoria individual, destacando o caráter coletivo, social, da
produção de idéias e textos. O humano já nasce como um efeito do outro, para
ele, um intertexto, sua experiência de vida se tece, entrecruza-se e interpenetra
28
com o outro. As palavras de um falante estão sempre e inevitavelmente
atravessadas pelas palavras do outro: o discurso elaborado pelo falante se
constitui também do discurso do outro que o atravessa, condicionando o
discurso de um eu que imaginariamente se considera absoluto, autônomo.
Onde se pensa estar produzindo algo inédito, esse algose mostra como efeito
de um antecedente.
Entre os diversos discursos e vozes que atravessam este trabalho, três se
sobressaem em tons mais agudos. Refiro-me às vozes de três teóricos: Eugenio
Bucci, Jeanne Marie M. de Freitas e Muniz Sodré. Essa tríade vem apostando
boa parte de suas fichas argumentativas na busca de desafios tricos bem mais
produtivos, efetivando-os em outros modos de pensar a TV e a comunicação.
Nesse sentido, muita coisa do que irá nos ocupar nesta tese já ressoa em
trabalhos dos referidos pesquisadores. Nas mãos de Bucci, a televisão ocupa
uma centralidade cuja chave explicativa colabora significativamente para se
pensar relações sociais, políticas e econômicas que ela deixa transparecer
porque delas provenientes. Nas de Freitas,o retorno da questão reiterada, da
questão inconsciente, da linguagem, porque nunca satisfatoriamente posta
pelos estudos da comunicação. Já nas mãos de Sodré somos exortados a ter
outra posição interpretativa para o campo da comunicação, pois, como ele diz, a
força primordial do sensível, com a qual concordamos, exige outras ferramentas
teóricas e de análise, dadas as insuficiências do patrimônio comunicacional em
discutir os afetos e as paixões.
O que esse gesto de reconhecimento quer assinalar? Quer assinalar que
embora não reivindique para este trabalho um ineditismo (seria arrogante se
não irresponvel aclamá-lo assim), tampouco me resigno a ver nele apenas
uma fusão de idéias, pois almejo também ver realizada a fisão. Fusão e fisão
foram utilizadas por Mcluhan e teóricos da Intelincia Artificial (AI) (as
exploraremos no quarto capítulo) em referência aos processos de conversão e
transformação das tecnologias. Fusão poderia ser comparada, segundo o teórico
29
canadense, a um acostamento de uma estrada e ocorre quando há conversão de
dois conceitos (ou perceptos) em um (os termos videoclipe, audiovisual, pós-
moderno são exemplos de fusão). Fisão seria o outro lado do acostamento em
que se realiza a divergência gradual de um novo objeto, em relação ao objeto-
modelo: “sempre que o novo sistema de signos recebe o atrito do sistema
anterior, o novo sistema se autonomiza e começa a perder o caráter de réplica
perfeita”. (VILCHES, 2003: 235).
Na tensão entre os dois termos, instala-se, irrevogavelmente, o novo, que
tentarei manufaturar linhas adiante.
30
PARTE I
NOÇÕES, CONCEITOS E PRESSUPOSTOS
31
1
COMUNICAÇÃO E CIÊNCIAS DA
LINGUAGEM: NA ARESTA, A TELEVISÃO
32
1.1 A QUESTÃO ANTECEDENTE
Ah, mas para se chegar à mudez, que grande esforço da
voz. Minha voz é o modo como vou buscar a realidade; a
realidade, antes da minha linguagem, existia como um
pensamento que não se pensa, mas por fatalidade fui e
sou impelida a precisar saber o que o pensamento pensa.
A realidade antecede a voz que a procura, mas como a
terra antecede a árvore, mas como o mundo antecede o
homem, mas como o mar antecede a visão do mar, a vida
antecede o amor, a matéria do corpo antecede o corpo, e
por sua vez a linguagem um dia terá antecedido a posse
do silêncio.
Clarice Lispector
A anterioridade da linguagem, expressa no fragmento de Clarice
Lispector, é um fio condutor cuja espessura nos possibilita delinear um quadro
teórico-metodológico capaz de abrigar os pressupostos do trabalho. Partir do
lugar em que a linguagem institui o humano, exige conduções substantivas dos
aportes teóricos da comunicação para outros lugares, uma vez que os estudos
da área estiveram assentados em perspectivas que a concebem como
instrumento, privilegiando o “real” dos acontecimentos vividos. O esquema
básico E – M – R cristalizou, em definitivo, o ideário da linguagem como
utenlio. Segundo Kristeva:
Se observamos diferenças entre a prática da linguagem que
serve à comunicação e, digamos, a do sonho ou de um
processo inconsciente ou pré-consciente, a ciência de hoje tenta
o excluir estes femenos particulares da linguagem, mas
pelo contrário alargar a noção de linguagem permitindo que
englobe aquilo que à primeira vista parece escapar-lhe. Por
isso evitamos afirmar que a linguagem é o instrumento do
pensamento. (1997: 18).
Kristeva nos fornece horizontes teóricos para transcendermos a
dimensão instrumental da linguagem. Para a autora, o questionamento “qual é
a função primeira da linguagem: a de produzir um pensamento ou a de
comunicar?” (1997: 18) não faz sentido, pois a linguagem é tudo isso ao mesmo
33
tempo. Vilém Flusser advertiu que “somos como pequenos portões pelos quais
ela [a linguagem] passa para depois continuar em seu avanço rumo ao
desconhecido”. Mas no momento de sua passagem pelo nosso pequeno portão,
sentimos poder utilizá-la”. (2004: 37). No entanto, as escolas e teorias da
comunicação tomam a linguagem em seu aspecto veicular, percebem-na apenas
no momento de sua passagem pelo nosso pequeno portão, como uma
ferramenta do comunicar, pura e simplesmente, tentando apagar as marcas do
constituído simbolicamente. Transige-se do fato de que o enredo (os discursos
da mídia) está envolvido com o seu protagonista oculto: a linguagem. Postula-
se aqui o retorno daquilo que, paradoxalmente, não desertou, considera-se que
um dos desafios teóricos da comunicação é a tarefa de dar conta de um
imperativo duplo: além de correias de transmissão (este aspecto é apenas a
parte emersa do iceberg) os discursos são, antes, efeitos do significante,
construtores de laços sociais, de vínculos. A desconsideração desse duplo
imperativo é o nosso problema congênito. A fragilidade das teorias em relação a
isso nos conduz ao limiar de sua constituição. Reportemo-nos a elas.
1.2 A DEMARCAÇÃO DO CAMPO
Telenovelas, jornais impressos e televisivos, peças publicitárias,
programas radiofônicos, textos da world wide web, todos esses suportes prestam-
se a estudos relativos ao campo no qual estão delimitados: o campo da
comunicação. Análise de discursos, estudos de análise de conteúdo, estudos de
mediações e recepção, análises quantitativas, explorações sociológicas, estudo
dos efeitos dos meios, estudos das interações sociais, etnocomunicação, estudos
culturais, vêm se constituindo em disciplinas e aportes metodológicos que, para
além das particularidades de cada um, compõem um quadro comum de
pesquisa das mídias. O problema de comunicação, assegura Sodré, é um
problema de episteme, de precariedade de ferramentas tricas e analíticas.
34
Qual seria o denominador comum que possibilita que peças publicitárias,
jornais impressos, programas de rádio, sejam analisados ou pesquisados sob o
mesmo guarda-chuva? Essa pergunta sugere a formulação de outras:
Considerando as convergências na produção midiática, a partir do quê essa
convergência é possível? O que indica ainda outros questionamentos: a teoria
da comunicação é teoria do quê? Sobre o quê se fazem teorias da comunicação?
Que campo a conforma mais adequadamente? Como operacionalizar estudos e
pesquisas nas fronteiras desse campo? Que objeto demarca o fazer
comunicativo? Para Sodré,
8
a determinação do objeto específico gera dúvidas.
Ele indaga: será que merece o nome de objeto, cncia? É preciso enveredar para
outros caminhos para se chegar a um solo ontológico firme:
A trajetória desses esforços não tem sido isenta de obstáculos;
esse campo de estudo vem sendo atravessado desde o início por
uma série de tensões, contradições e dificuldades – decorrentes
algumas da natureza de seu objeto, ou da relação por vezes
conflituosa que se estabelece entre o campo da teoria e o campo
da prática; outras de ordem propriamente teórica (na
acomodação dos diferentes tratamentos conceituais e na
construção de seus próprios referenciais) (2001: 47).
Esses questionamentos freqüentam de maneira asdua as discussões
alusivas à epistemologia da comunicação. Aprendemos com os teóricos da
metodologia científica que existem alguns critérios e requisitos para que essa ou
aquela seção de pesquisa seja alçada à categoria de disciplina ou de ciência, ou
seja, “a ciência é um sistema empírico de atividade social que se define não
somente por um certo tipo de discurso, mas também pelas condições concretas
de sua elaborão, difuo e desenvolvimento cumulativo. São as condições de
produção que definem o horizonte dentro do qual se movem as decies que
permitem falar de uma certa maneira sobre um certo objeto”. (LOPES, 1998: 2).
8
Muitas discussões de Sodré aqui utilizadas foram feitas na aula inaugural da Pós-Graduação
da Escola de Comunicações e Artes da USP, em março de 2007.
35
E como se fala sobre o objeto da comunicação? As vias são várias, mas o
porto de chegada é praticamente o mesmo. Estudiosos insistem na situação
incômoda do suposto objeto da comunicação, apontado como heteróclito e
diversificado. Alguns pesquisadores (FRANÇA, MELO) reiteram tal característica,
colocando-a no centro das discussões metodológicas.
O caráter interdisciplinar seria, de acordo com os estudiosos, um
invibializador, ou na melhor das hipóteses, um dificultador, da delimitação das
fronteiras do campo. Desafortunadamente, encaramos esse traço como algo que
adia indefinidamente a realização do projeto de carimbarmos a comunicação
como ciência ou qualquer coisa que o valha. De acordo com a afirmativa abaixo:
A questão reside então na possibilidade de estabelecer a
particularidade de um campo de análise de um saber que ora
aparece como o fundamento das ciências do homem, ora
aparece como uma síntese do produto dessas ciências. Em todo
caso, o que se vê hoje em dia é a Comunicação passar
diretamente do sentido filosófico para o sentido radicalmente
interdisciplinar, sem espaço para a constituição de uma
disciplina autônoma (Id. Ibid.: 29).
A afirmação abaixo está em acordo com o que foi dito acima:
Diremos que é, por princípio, difícil avaliar objetivamente os
resultados de “uma operão de comunicão”. Donde
incessantes polêmicas (em torno da psicanálise, da arte, da
mídia e, claro, da comunicação política). A comunicação política
aparece, assim, como a parte maldita, ou mal dita, de nossas
trocas, aquela que não se deixa quantificar, tecnicizar, nem
descrever objetivamente. Onde relões pragmáticas aleatórias
conseguiram fixar-lhe a objetos, a pontos fixos ou a rotinas bem
conhecidas, elas perderam o nome de comunicação
(B
OUGNOUX, 1999: 18).
Ora, sabemos que a interdisciplinaridade não é virtude (ou problema?)
exclusiva do saber comunicacional; disciplinas, ciência e teorias diversas têm a
indisfarçável marca da interdisciplinaridade. Assim, a questão se dissolve como
problema particular da comunicação. A ubiqüidade da comunicação não
corresponde a um postulado teórico do tudo pode, ou ainda evocando Sodré, o
36
caos do objeto não supõe o caos da teoria. Considerando a noção de campo de
Bourdieu, considero que a forma específica de interesse do campo da
comunicação está, a meu ver, no modo como ele se institui, enquanto instituição
discursiva, em meio a outros campos, igualmente revestidos de formas
específicas próprias.
A lógica concorrencial do campo científico faz de suas ramificações
disciplinares departamentos com aspectos intrínsecos para se diferenciar e se
legitimar face à multiplicidade das teorias e saberes. E a particularidade do
campo da comunicação, insisto, está, malgrado o assédio de várias teorias e
seções do conhecimento, na sua organização discursiva. Sérias objeções poderão
ser levantadas contra o nosso argumento, visto que as outras ciências
produzem, igualmente, discursos. No entanto, a resposta para as contraposições
repousa no fato de que não obstante as ditas ciências exatas (para usar
exemplos aparentemente díspares) como a física e a matemática, ou as naturais,
como a biologia e a química,
9
se valerem igualmente de discursos, eles não são o
produto e quesito fundante destas ciências. Os discursos articulam resultados,
que se fundam sim no próprio discurso, mas que se apresentam de outras
formas (números transfinitos, fórmulas químicas, que revelam uma veemente
obscuridade, exceto se forem decodificados por matemáticos e químicos). Na
comunicação, em sua feição midiática, o discurso é o elemento fundante e ao
mesmo tempo o produto das mídias (fala-se, escreve-se, filma-se dentro de um
código legível, cujo regimento é o discurso):
O discurso não é uma das funções entre outras da instituição
midiática; é o seu principal produto e o resultado final do seu
9
Discussões a respeito são feitas por Steiner em Linguagem e silêncio. Para ele, até oculo XVIII,
a esfera da linguagem (palavras) recobria a totalidade da experiência e da realidade. Grandes
áreas do significado e da práxis pertencem agora a linguagens não-verbais como a matemática,
a lógica simbólica e as fórmulas de relações químicas ou eletrônicas. O autor ironiza
perguntando: “isso significa que hoje em dia estão sendo usadas menos palavras? Essa é uma
pergunta muito intrincada e, até o momento, não respondida (...). estima-se que a língua inglesa
no momento contenha cerca de 600 mil palavras. Acredita-se que o inglês elisabetano tivesse
apenas 150 mil”. (1988: 43).
37
funcionamento. A mídia produz discursos como os pintores
pintam telas, ossicos compõem músicas, os arquitetos
projetam edifícios. É claro que a mídia desempenha também
outras funções, mas todas elas têm no discurso o seu objetivo e
a sua expressão final. (R
ODRIGUES, 1996: 217).
Nesse quesito, concordo com Rodrigues: os discursos da mídia são o
objeto da própria mídia, componente de seu espaço, demarcador de seu campo.
Pensar assim não significa que estamos desconsiderando as variáveis políticas,
econômicas, culturais e sociais implicadas nos meios de comunicação. Muito
pelo contrário, concebemos discurso como encarnado no social, portanto,
portador, per si, da dinâmica da qual somos sujeitos; sabemos que os discursos
representam um modo de narrar o mundo e nesse modo vem junto o mundo a
ser vivido. Não há contexto de um lado e discurso de outro. Do que nos fala
Foucault quando nos diz que o discurso instala mecanismos de poder pela sua
força fundacionista? De que nos fala Peirce em seu conceito de signo, por
excelência, mediador? Ou mesmo Bakhtin com a sua noção de signo e discurso?
Do que nos fala Taylor quando diz que discursos são intercâmbios que geram
textos, entendendo por textos uma produção posicionada histórica e
socialmente? Não vejo plausibilidade nas críticas que insurgem contra a
centralidade do discurso em nome de eventos externos, como o político e o
social. Não estou interditando as críticas, que, aliás, são válidas e necessárias,
mas por esse viés não assustam. A tenaz resistência em considerar o discurso
como estruturante dos meios de comunicação, portanto o eixo central de sua
análise, acontece por meio de uma rota em que a linguagem é vista como
transporte. Em sendo transporte, efetivamente, ela não tem estatura para
explicar a capilaridade do fenômeno comunicacional. Concepção que há muito
renunciamos.
Eis o primeiro esforço epistemológico: tento, aqui, vincular o campo da
comunicação à esfera discursiva tendo como pano de fundo a questão da
linguagem. Antecipadamente, faço, em linhas gerais, um passeio pelas teorias
38
da comunicação, pondo em realce a tradição teórica assentada nas teorias
instrumentalistas da linguagem, que solidarizam o signo e o real.
1.3 O CAMPO DA COMUNICAÇÃO (DIAS) E SUAS TEORIAS
A tentativa, aqui, não é resenhar o conjunto das teorias da comunicação,
mas observar esse campo que as engloba a partir de orientações disciplinares
que o vem, precariamente, determinando. Sodré perturba a constituição desse
campo com questionamentos acerbos: levando em conta que a constituição dos
campos disciplinares não é motivada apenas por interesses internos ao campo,
mais também por meio de pressões
10
políticas, quem acaba respondendo ao
rigor dos campos disciplinares é o poder, materializado seja nas instituições de
pesquisa acadêmica ou de mercado. Para ele, é preciso refazer a pergunta de
Freud - o que quer uma mulher – reformulando-a para a comunicão: o que
quer um comunicólogo? O que ele deseja?
Ora considerada ciência, ora disciplina, ora prática, ora técnica, as
pesquisas da comunicação navegaram sobre dois mares (o do mercado e o da
academia, ambos se complementando, em alguns casos). É escusado dizer que
a formação do que se convencionou chamar de campo das teorias da
comunicação é relativamente recente, emerge em momento de vertiginoso
crescimento e aperfeiçoamento dos meios de transmissão, etapa fulgurante da
razão técnica. Enquanto atividade humana e social, a comunicação remonta a
períodos bem mais longínquos, ou para ser mais precisa, se institui na medida
que o homem se constitui simbolicamente. De origem latina communicatio, a
comunicação é distinguida a partir de três elementos: uma raiz munis, que
significa ‘estar encarregado de’, que acrescido do prefixo co, o qual expressa
simultaneidade, reunião, forma a iia de uma “atividade realizada
10
Vide os exemplos da psicologia e da antropologia que surgiram por interesses do Estado. O
campo da psicologia surge para avaliar comportamento, o da sociologia para realizar pesquisas
encomendadas de fábrica e o da comunicação é priorizado pelo mercado.
39
conjuntamente”, completada pela terminação tio, que por sua vez refoa a idéia
de atividade.
A história registra que problemas de comunicação foram percebidos
entre os gregos, mais precisamente com os sofistas. O empenho dos gregos
esteve centrado no uso adequado da palavra e no exercício do discurso como
técnica. Deve-se a Platão as distinções iniciais entre retórica e discurso.
Aristóteles expandiu os estudos de Platão ao organizar o estudo da retórica,
inspirando, numa escala gigantesca de tempo, a famosa análise de conteúdo de
Harold Laswell.
Alguns autores, a exemplo de Armand e Michèle Mattelart, apontam o
século XIX como o momento em que noções fundadoras concebiam a
comunicação como fator fundamental de integração das sociedades humanas,
como gestora das multidões humanas. (cf. 1999: 13). É a noção da sociedade
enquanto organismo que vai, portanto, impulsionar aquilo que mais tarde seria
chamado de ciência da comunicação. Alguns vetores são considerados basilares
para a formação desse campo científico, entre eles, a divisão do trabalho (a
comunicação consistiria, segundo esse aspecto, em uma contribuinte na
organização do trabalho coletivo e na estruturação dos espaços econômicos) e a
formação de uma rede e da totalidade orgânica (que tentava compreender o social a
partir da metáfora do ser vivo), constituindo-se como o pensamento do
“organismo-rede”.
A fisiologia de Saint-Simon integra essa última vertente. É com Herbert
Spencer que a noção da sociedade como sistema orgânico ganha espessura; ele
defendia a tese de “uma sociedade-organismo cada vez mais coerente e
integrada, onde as funções são cada vez mais definidas, e as partes cada vez
mais interdependentes”. (MATTELART, 1999: 14). Para esse sistema, a
comunicação é vista como componente essencial dos aparelhos orgânicos.
Fazendo comparações com o sistema vascular, Herbert Spencer vai dizer que a
comunicação torna possível a “gestão das relações complexas entre um centro
40
dominante e sua periferiapor meio das informões (imprensa, petões,
pesquisas) e dos meios de comunicação pelos quais o centro pode “propagar
sua influência” (correio, telégrafo, agências noticiosas).
Essas considerações inspiraram as correntes consideradas fundadoras
dos estudos da comunicação, formuladas nas décadas de 1930 e 40 e bastante
propaladas nas de 1950 e 60. O trabalho de Harold Lasswell sobre Propaganda
política, publicado em 1927, foi considerado referência obrigatória,
influenciando um sem-número de pesquisas.
A fecunda produção em torno da comunicão terá no modelo
cibernético um momento capital. Para esse modelo, a comunicação constita-se
em mecanismos que “favorecem o desenvolvimento das relações humanas e,
em particular, nos fenômenos de simbolização, assim como nos mecanismos de
transmissão dos conteúdos. A comunicação é ao mesmo tempo um processo
(para o qual contribuem meios diversificados) e o resultado desse processo”.
(MGE: 2000: 24-25).
A multiplicidade dos fenômenos advindos dos mass media e das
telecomunicações exigiu que fossem criados modos de reduzir a diversidade
das situações reais à unidade de um esquema básico: emissor-canal-receptor. A
comunicação tinha de se impor enquanto área do conhecimento, ela tinha de se
curvar às cobranças do receituário técnico-científico. A saída encontrada para
integrá-la no horizonte do saber contemporâneo foi a formalização behaviorista,
expressa no esquema referente, emissor, mensagem, receptor, código.
O processo da comunicação, segundo o seu esquema canônico, seria
efetivado pelos seguintes vetores:
Emissor que pode tratar-se de um ser ou grupo de seres, uma
administração, etc (o remetente de Jakobson);
Um canal físico por onde circulam mensagens, seqüências ordenadoras
de elementos conhecidos;
41
Um receptor que submetido a essas mensagens, apresentará
comportamento resultante da experiência vicarial da qual participa
(destinatário de Jakobson);
Um repertório de signos ou elementos comuns dos quais se serve o emissor
para elaborar uma mensagem, criação da mensagem segundo certos
signos (código) nos quais o receptor irá procurar, para identificá-la, a
natureza dos elementos recebidos (decodificação).
As inflncias do modelo cibernético podem ser percebidas em estudos
como a Teoria matemática da comunicação, publicada em 1949 pelos engenheiros
Claude Shannon e Warren Weaver. Esses dois pesquisadores intencionavam
construir uma fórmula que permitisse passar da entropia à informação,
11
criando, com isso, um sistema geral de comunicação. Na esteira da matriz
cibernética, muitos estudos e teorias procuraram dar sua contribuição. A
formação das chamadas escolas americana e européia possibilitou a realização
de várias pesquisas, entre elas a análise de conteúdo pensada por Harold D.
Laswell. O modelo de Laswell edificou-se sobre as perguntas: Quem? Diz o
quê? Através de que canal? Com que efeitos?
Esse modelo, base da abordagem empírico-funcionalista, durante muito
tempo gozou do status de ser uma verdadeira comunicação, muito próximo à
teoria da informação. Retomando as categorias esboçadas por Aristóteles, no
Organon, Laswell procurou aglutinar, para os estudos vigentes, a totalidade das
questões pertinentes à comunicação (análise de conteúdo e seus efeitos). Assim
ele defendia a iia de que:
11
Entropia e informação podem ser conceituadas, respectivamente como: “quantidade de
energia de um sistema, que não pode ser convertida em trabalho mecânico sem comunicação de
calor a algum outro corpo, ou sem alteração de volume. A entropia aumenta em todos os
processos irreversíveis e fica constante nos reversíveis”. A informação foi formalizada nas
primeiras décadas do século XX, tendo se apresentado inicialmente como um sistema de base
matemática destinado a estudar os problemas de transmissão de mensagens pelos canais físicos
(telégrafo, rádio etc.). (C
OELHO NETO, 1980: 131).
42
O estudo científico do processo da comunicão tende a centrar-
se numa ou noutra destas questões. O especialista do “quem” (o
“comunicador”) dedica-se ao estudo dos fatores que geram e
dirigem a comunicação. Denominamos esta subdivisão “análise
de regulação” [control analysis]. O especialista dodiz o quê
pratica a análise de conteúdo [content analysis]. Aquele que
estuda, sobretudo a rádio, a imprensa, o cinema e os outros
canais de comunicação participa na “análise dos media” [media
anlysis]. Quando o centro de interesse é constituído pelas
pessoas atingidas pelos media, falamos de “análise de
audiência” [audience analysis]. Se o problema abordado for o do
impacto sobre os receptores, tratar-se-á de uma “análise dos
efeitos” [efect analysis] (apud W
OLF, 1995: 26).
Sodré aponta o viés mecanicista e unilateral das pesquisas funcionalistas,
motivadas pela lógica do mercado, num momento em que a palavra massa
substitui a noção de público, antecedida pela de multidão, do século XIX:
Os momentos cientificamente mais esreis, embora
eventualmente frutíferos para agências de publicidade, jornais
e estrategistas de consumo, têm a ver com o sociologismo
funcionalista, ancorado no mecanicismo dos modelos
industrialistas do processo comunicacional, que implicava um
paradigma informacional: transmissão de uma mensagem,
organizada por um código, através de um canal entre um
emissor e um receptor. (S
OD, op. cit: 221-2).
O modelo norte-americano não ficou incólume a revisões e apreciações.
A Teoria Crítica reage frontalmente a esses estudos, motivada por outras
perspectivas. Teve como principais representantes Max Horheimer, Theodor
Adorno, Herbert Marcuse e Walter Benjamin – pesquisadores da propalada
Escola de Frankfurt, firmando-se como uma construção analítica dos fenômenos
sociais, mormente dos fenômenos de comunicação. A Teoria Crítica representa,
segundo Wolf, a corrente da communication research, da pesquisa social e se
propõe a ser uma teoria da sociedade. As dencias de manipulação ideológica
operada pelos meios de comunicação alicerçam os ideais da teoria.
Os estudos e pesquisas do campo da comunicação, obviamente, não
pararam por aí. Centros de pesquisa vêm disponibilizando, para a comunidade
43
acadêmica, escopos teórico-metodológicos aparentemente renovados. Não vale
a pena compulsar todos, mas prosseguirei na apresentação do painel para
deixar claro por que reclama-se o deslocamento do lugar em que o campo da
comunicação se constitui. As sociologias interpretativas,
12
os estudos de
mediações são aquisições recentes que surgem, resumindo vulgarmente, para
dizer que receptor também é sujeito. O esquema emissor-canal-mensagem-
receptor passa por revisões substanciais, solapando a trajetória linear e
unilateral do esquema E – M – R: o receptor passa a ser considerado em sua
potência interativa.
Diz-se, orgulhosamente, que uma das áreas que vem promovendo alguns
deslocamentos nos estudos da comunicação é a dos Estudos Culturais.
Origirios do Centro de Birminghan – Inglaterra, os Estudos Culturais operam
revisões no esquema canônico da comunicação, insistindo que o receptor não é
apenas sujeito passivo, mas também ativo. Ao invés de trabalhar com análises
que procuram saber a intenção dos meios, os Estudos Culturais caminham em
sentido contrário: trabalham na perspectiva do cotidiano
13
– lugar onde a cena
social e individual é protagonizada na confluência entre a comunicação e a
cultura. O marco teórico dos Estudos Culturais tem como refencia os estudos
de Richard Hoggart com The uses of literacy (1957), de Raymond Williams com
Culture and society (1958) e E. P. Thompson com The making of the english working-
class (1963), com contribuições de Stuart Hall. A cultura é vista a partir do seu
fazer diário, tecida na subjetividade, no mundo prosaico habitado por sujeitos
históricos. Os receptores, de acordo com os Estudos Culturais, exercem, no
campo dos discursos midiáticos, diferentes vínculos interpessoais, onde
12
Embora sejam facilmente associadas à pragmática, as sociologias interpretativas possuem
uma história própria com bases teórico-metodológicas específicas. Voltadas para o microssocial,
elas englobam o interacionismo simbólico, fenomenologia social, etnometodologia,
desenvolvidas a partir da década de 1960 nos países anglo-saxões.
13
Estudos sobre o cotidiano foram analisados sistematicamente pela sociologia da vida
cotidiana assentada em disciplinas como sociologia, antropologia, história, geografia, literatura
e, até mesmo, a filosofia. Michel de Certeau e Henri Lefèbvre são alguns dos expoentes dessa
área disciplinar
44
projetam fantasias, partilham valores semelhantes, compartilham expectativas e
evocam projetos. Jesus Martín-Barbero assim sintetiza a carta de intenção dos
Estudos Culturais: “quer resgatar a iniciativa, a criatividade dos sujeitos, a
complexidade da vida cotidiana como espaço de produção de sentido, o caráter
lúdico e libidinal na relação com os mesmos” (1997: 87). Segundo esse autor, o
estudo da “recepção,
distintamente das propostas funcionalistas, não busca medir a
distância entre a mensagem e seus efeitos, mas construir uma
análise integral do consumo – entendido como o conjunto dos
processos sociais de apropriação dos produtos, inclusive os
simbólicos. Outra realidade é ‘descortinada’ quando se ouvem
os relatos dos setores populares. É aí que se revelam a
criatividade e a liberdade”. (1999: 87).
A evolução dos estudos da comunicação até o estágio dos Estudos
Culturais e das chamadas sociologias interpretativas permite visualizar que o
receptor é um ser ativo, um ator no seu meio social. É um ser que interfere no
processo de recepção, remodelando-a de acordo com suas vivências
particulares e grupais. A recepção será sempre diferente para diferentes
pessoas, como sugerem tais estudos. Até aqui nada de altissonante.
Não é, porém, para a contenda entre escolas e teorias que quero chamar
atenção com o percurso traçado acima, mas para a desconsideração do fato de
que a linguagem é o “mistério que define o homem”. (S
TEINER, 1988: 16). A
despeito das diferenças e particularidades das correntes teóricas devotadas ao
estudo das mídias, o pano de fundo dessas discussões foi e é constituído por
uma concepção de linguagem usada para determinados fins. Conquantoo
concebam o receptor como passivo, iniciativas como Estudos Culturais acabam
bebendo da fonte em que brota a instrumentalidade da linguagem. Transferir a
dinâmica do processo da comunicação para o receptor não parece nos conduzir
a uma mudança estrutural no paradigma que define e orienta o campo da
comunicação: o esquema E-M-R. Qual seria, então, a saída?
45
A reivindicação não é pelo abandono da troca transferencial, mas é pela
admissão de que essa troca deve ser feita a partir da noção radical de vínculo,
pois é a partir dela que se realiza a mediação, que se realiza a comunicação de
um pólo a outro deste processo. Para se vincular, considera Sodré, é preciso que
cada um perca a si mesmo, pois ser é ser com; o vínculo não tem substância, o
vínculo é com a linguagem. A vinculação, completa ele, é condição originária
do ser. O aforismo de Sodré serve de suporte para perturbarmos os lugares dos
sujeitos da comunicação, da forma em que foram pensados pelo conjunto das
teorias: as teorias privilegiam o sujeito do enunciado, o eu (moi), ele é o sujeito
tal como se representa no discurso, está ligado à dimensão do imaginário (eu
faço, eu escrevo, eu penso) em detrimento do sujeito da enunciação, o sujeito do
desejo/inconsciente que se aliena e se perde tão logo se diz na linguagem, ligado
à dimensão do simbólico.
Ora, se vincular é perder a si mesmo, o sujeito do enunciado é
fragilíssimo para a consagração do vínculo. Há uma questão antecedente que
nos engloba e nos ultrapassa e que comanda os processos de comunicação. A
relação Eu(emissor)-Tu (receptor) é uma relação onde um terceiro vive e reina
plenamente.
O tema nos acompanha na constituição de nossa humanidade. Platão,
Aristóteles, Bakhtin, Kristeva, entre vários, todos irmanados nas possibilidades
e destinos dessa vinculação. O filósofo Martin Buber (2006) considerou a
palavra-princípio Eu-Tu como o primeiro modo de relação humana, a relação
Eu-Tu é anterior ao próprio Eu. Para Buber, “nós aprendemos a ser humanos
sendo chamados para uma relação Eu-Tu - uma relação na qual um ‘se abre
totalmente com o outro”. (2006: 32). É pelo Tu que o Eu se descobre como
consciência não-objetivável, não-coisificada, mas sim como projeção do outro.
A noção de comunicação de Bakhtin, fundada no dialogismo, a que já
referimos na introdução deste trabalho, também considera um sujeito que não
46
se faz plenamente na superfície da linguagem. Eis uma das fragilidades para a
constituição do campo.
Posta assim a questão, se quisermos provas de que as teorias são frágeis,
Sodré e Freitas parecem fornecer uma quantidade suficiente: preponderância do
mercado, precariedade das ferramentas (para o primeiro), a pouca ou
inexistente exploração da linguagem (para a segunda).
Salvo engano, estou tentada a vaticinar que as teorias da comunicação
não apresentam indícios seguros que apontem a linguagem como algo além de
um instrumento da comunicação humana. Somos instados a aderir ao princípio
de que:
A linguagemo pode ser considerada um simples instrumento,
utilitário ou decorativo, do pensamento. O homem não preexiste
à linguagem, nem filogeneticamente nem ontogeneticamente.
Jamais atingimos um estado em que o homem estivesse separado
da linguagem, que elaboraria então para “exprimir” o que nele
se passasse: é a linguagem que ensina a definição do homem,
não contrário. (B
ARTHES, 2004: 15).
Esse princípio desafia a comunicação, visto que o problema crucial que o
modelo do confronto entre linguagem e realidade acarreta é o de como transpor
o abismo entre palavras e coisas que esse mesmo modelo cavou. Tal abismo faz
das teorias acima devedoras da linguagem, já que como assegurou Kristeva,
não há comunicação sem linguagem, e todo sentido da linguagem é
comunicação.
Empenho-me, pois, no sentido de identificar um fundo comum suscetível
de juntar, em torno de algumas características, como vimos, démarches
procedentes de orientações em que a linguagem e o discurso são fundantes.
É preciso descobrir uma nova janela de análise. Doravante, é nela que
nos debruçamos a fim de descobrir paisagens em que possamos nos emaranhar.
As dívidas da comunicação que, extensivamente, são as dívidas das ciências
humanas com as ciências da linguagem, podem ser sublinhadas, ao menos, sob
três aspectos importantes: a noção de sujeito, a noção de discurso e a emergência
47
do inconsciente. A linguagem é o pólo de atração entre esses três aspectos, que se
mostram como vetores fundamentais para a moldura teórico-metodológica dos
estudos dasdias. Ainda segundo Kristeva:
E trabalhar a língua implica, necessariamente, remontar ao
próprio germe onde despontam o sentido e seu sujeito. É o
mesmo que dizer que o produtor da língua (Mallarmé) é
obrigado a um nascimento permanente, ou melhor, às portas
do nascimento, ele explora o que o precede. Sem ser uma
criança de Heráclito que se diverte com seu jogo, ele é esse
ancião que volta, antes de seu nascimento, para mostrar
àqueles que falam que eles são falados. (2005: 10).
A irremediável dependência do homem em relação à linguagem
apontada por Barthes e Kristeva nos obriga, na fronteira da televisão, a
enveredar no litoral entre o ser e o dizer, como disse Lispector, onde o sujeito
não está situado num lugar seguro de enunciação, mas em instâncias sempre
precárias, em sua errância e transitoriedade.
1.4 UMA ROTA, VÁRIAS POSSIBILIDADES
Eu tenho à medida que designo – e este é o esplendor do se ter
uma linguagem. Mas eu tenho muito mais à medida que não
consigo designar. A realidade é a matéria-prima, a linguagem é
o modo como vou buscá-la – e como não acho. Mas é do buscar
e não achar que nasceu o que eu não conhecia, e que
instantaneamente reconheço. A linguagem é meu esforço
humano. Por destino volto com as mãos vazias. Mas volto
com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do
fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é
que obtenho o que ela não conseguiu.
Clarice Lispector
APOIANDO-NOS MAIS UMA VEZ EM UM EXCERTO do poema de Clarice
Lispector somos levados a destituir o homem do lugar soberano que
imaginariamente ocupa, de senhor absoluto de suas ações, proprietário de sua
consciência. No universo da comunicação, esse sujeito, seja emissor ou receptor,
não está confortavelmente determinado por esses pares estanques. A sua
48
determinação e conseqüentemente a do discurso que ele pensa produzir
autonomamente vem de outro lugar. Mas qual lugar?
É um lugar provisório em que a busca pelo saber absoluto, pela
transpancia plena, pela representação, pela integralidade do fato, sempre
fracassa. É um lugar onde reina o indizível, segundo Lispector, onde somos
arrastados por esse vazio e confrontados por pedaços do real. Analisar a TV,
particularmente o (tele)jornalismo, não como a representação do real, a
transcrição da realidade, já que essa tentativa está fadada ao eterno fracasso,
nos remete ao simbólico, onde já estamos instalados desde sempre. Partindo
desse lugar, torna-se inadmissível pensar a linguagem como mero instrumento.
Examinar a televisão inscrevendo-a neste vasto campo, em que estão
implicadas questões de matizes diversos, significa lidar com as questões
fundantes do tecido social. De acordo com Kristeva:
Seja qual for o momento em que tomemos a linguagem – nos
mais afastados períodos históricos, nos ditos povos selvagens ou
na época moderna –, ela apresenta-se sempre como um sistema
extremamente complexo em que se misturam problemas de
ordem diferente. (1997: 17).
A afirmação de Kristeva que aponta para a complexidade da linguagem
desde tempos imemoriais – o interesse pela linguagem é milenar – faz cair por
terra os aspectos instrumentais e técnicos que operam sobre a definição do
termo.
A conformação dos estudos sobre a Linguagem reflete, mais ou menos
precisamente, aquilo que é – e deveria ser – o seu território de exploração
permanente, pois está envolvida com tudo aquilo que com o humano se
relacione; daí a revelação inevitável exposta em muitos estudos e compêndios
sobre a Linguagem: a da constituição enciclopédica dessa área do saber.
Filosofia da Linguagem, Lingüística, Semtica, Psicanálise, Antropologia, entre
outras, em seus diversos desdobramentos, dão a medida da complexidade a
que se refere Kristeva.
49
No caminho sinuoso sobre a trajetória da Linguagem nos deparamos
com um cenário multifacetado, uma região pantanosa em que uma série
multiforme de tendências e correntes de pensamento se propôs a dar a ela, à
Linguagem, seu estatuto epistemológico, umas de modo mais abrangente,
outras com ambições mais específicas. Ainda segundo Kristeva:
Por fim, aquilo a que chamamos linguagem tem uma história
que se desenrola no tempo. Do ponto de vista desta diacronia,
a linguagem transforma-se durante as diferentes épocas, toma
diversas formas nos diferentes povos. Tomada como um
sistema, isto é, sincronicamente, tem regras precisas de
funcionamento, uma estrutura determinada e transformações
estruturais que obedecem a leis escritas. (Id. Ibid.: 20).
Nesse terreno amplificado de exploração, podemos sublinhar, de modo
descontínuo, alguns esforços conceituais que se dedicaram aos estudos da
linguagem. Destaco reflexões do arco histórico que traçou uma fisionomia para
a história do termo.
Segundo Kristeva, o homem primitivo tinha uma relação mágica ou
mítica com a linguagem, a concebia como uma substância e uma força material,
pois falar era integrar o universo. A língua era vista como um elemento cósmico
e natural. Eleo separava o referente do signo, tampouco significante do
significado. (op. cit.: 86). O mundo grego faz o corte, a separação do que era
indistinto: a linguagem e o “real”.
Até o século XVIII, a linguagem era vista como um mero instrumento
para o pensamento representar as coisas. A Filosofia da Linguagem e a
Lingüística eram servas do racionalismo e do empirismo do século XVII, das
formas puras a priori da razão kantiana, da referência - decorrência da velha
epistemologia e da metafísica cartesiana (que entendia ser o
interior/sujeito/cogito fornecedor de representações do exterior/objeto/coisa).
Sob essa perspectiva, a linguagem só importava como retrato, re-presentação e
não como construção da realidade. Ela estava a serviço de um sujeito que pensa
50
pelas representações do mundo – perspectiva da concepção metafísica das
filosofias da consciência. Confundida com o logos, de iias na mente, cogito, a
Linguagem foi ignorada como instituição que inaugura as relações sociais.
Desde Platão, que concebeu o signo em três faces (estrutura triádica),
testemunhamos a consolidação de enfoques caudatários da visão de que as
palavras, a linguagem, são uma representação imperfeita da verdadeira
natureza das coisas. Na esteira de Platão muitos autores deixaram suas
contribuições.
Do extenso rol de autores e escolas, de um infinitamente acumulado, se
pusermos em destaque o trabalho dos estóicos, as considerações de Santo
Agostinho, a Gramática de Port-Royal, as observações de Locke e Hobbes, que
expressam o momento em que foram feitas tentativas de se pensar
autonomamente a linguagem do ponto de vista lingüístico ou filofico,
perceberemos que, de ponta a ponta, com nuances específicas, as reflexões daí
advindas em a linguagem como problema do conhecimento, peça-chave das
discussões do século XVIII.
Os empiristas Locke – que diz que o homem é equipado pela linguagem
– e Hobbes – que segue os princípios do nominalismo – divergem na prática
comum de análise e consideram que não há mente ou razão soberana, mas um
esforço das idéias e da linguagem para chegar ao conhecimento das coisas.
Apesar de Locke e Hobes terem logrado alguns avanços, permaneceram presos
a uma noção de correlação com uma realidade.
Com a virada lingüística, em fins do século XIX, a linguagem sai das
bordas e passa a ser tema central para o pensamento social contemporâneo: “o
nosso século é tanto o do átomo e o do cosmos como o da linguagem”.
(KRISTEVA, 1997: 7). De um elemento acantonado pelas concepções filosóficas da
consciência, ela passa a ser vista como estrutura articulada, independente de
um sujeito ou de uma vontade individual e subjetiva, não mais submetida à
função exclusiva da nomeação ou designação, quer dizer o signo não se limita a
51
estabelecer uma relação direta com a coisa nomeada. Temos, assim, no lugar de
uma análise das representações, a análise da linguagem.
No lugar de um sujeito que conhece e pensa pelas representações do
mundo, tem-se, com a virada lingüística, um sujeito que fala, constitdo nas
trocas lingüísticas. Esse novo marco das reflexões sobre a linguagem ganha
expressividade com os estudos de Ferdinand Saussure. O pensador genebrino
retira do heteróclito da língua o que pode ser pensado como sistema,
determinando a natureza de seu objeto de estudo. Criticando acidamente os
trabalhos que lhe antecederam, Saussure afirma que apesar dos estudos
comparados de gramática, uma constante nos trabalhos lingüísticos do século
XIX, abrirem um campo fecundo de exploração, eles não chegaram a estabelecer
um método para si próprios. (cf. SAUSSURE, 1996: 32).
Saussure estabeleceu leis e diretrizes que puderam orientar o
pensamento lingüístico. Conceitos fundamentais como, sincronia e diacronia,
significante e significado, signo e sistema, língua e fala, paradigma e sintagma, foram
um dos legados do mestre genebrino para o traçado de uma proposta
metodológica que adensou vários campos de pesquisa, como a antropologia, a
comunicação, a psicanálise e a semiótica. Com o Curso de lingüística geral, os
estudos simbólicos passam a ter um campo de referência.
Foi a partir de Saussure que equacionamos o antigo dilema da
linguagem: se era inata ou apreendida. Kristeva e Lévi-Strauss colaboram com a
questão. Para Kristeva, as origens da linguagem vêm perseguindo as
especulações humanas - desde os mitos até as mais elaboradas especulações
filosóficas. A busca pela língua original mobilizou um conjunto de
investigações que, para Kristeva, não resultam producentes. Segundo ela: “Por
mais interessantes que possam parecer todos esses dados, revelam-nos apenas o
processo através do qual uma língua já constituída é apreendida pelos sujeitos de
uma determinada sociedade”. (1997: 62).[grifos da autora].
52
Nesse já constituído, é impossível, segundo Kristeva, pensar em uma
pré-história, em estágios da linguagem. A linguagem “já nasce” pronta, ou
como diz Sapir, desde o “princípio a linguagem está formalmente completa e
desde que há homem há linguagem como sistema completo com todas as
funções que tem atualmente” (Id. Ibid.: 64).
Ao definir uma origem simbólica da sociedade, Lévi-Strauss - acusado de
se preocupar mais com as regras da sociedade do que com o seu
comportamento - considera que:
Independentemente do momento e das circunstâncias do seu
aparecimento, a linguagem só pôde nascer subitamente. As
coisas não começaram a significar progressivamente. Na
seqüência de uma transformação cujo estudo não releva das
ciências sociais, mas sim da biologia e da fisiologia, efetuou-se
uma passagem de um estádio em que nada tinha sentido para
outro em que tudo possuía um sentido. (2002: 35).
Do caos ao cosmos, ou fiat lux, como lembra Didier-Weill, a linguagem se
instala a um só tempo. Para Lévi-Strauss o que se instaurou lentamente foi a
tomada de consciência de que “isso significa”, ou seja, o universo significou
muito antes de se começar a saber que ele significa. (LÉVI-STRAUSS, 2003: 42).
Segundo ele, “tudo se passou como se a humanidade tivesse adquirido de uma
só vez um imenso domínio e seu plano detalhado, mas tivesse passado milênios
a aprender quais símbolos determinados do plano representavam os diferentes
aspectos do domínio”. (Id. Ibid.: 42).
A mudança de perspectiva radical que Saussure promove ao alçar a
linguagem a objeto autônomo de investigação, suscitando a visada de novas
dimensões para os estudos lingüísticos, faz dele o homem dos fundamentos. Sabe-
se claramente das lacunas que a teoria saussureana deixou em aberto: a questão
do sujeito, a relação com o mundo, opico da significação e da referência. O
que faz dele o homem dos fundamentos não foi ter construído uma teoria
completa e/ou perfeita, mas a busca de domínio autônomo que não é filosófico
53
(no sentido que Platão e Aristóteles viam a filosofia), não era caudatário do
pensamento cartesiano no século XVI, em que predomina o cognitivismo
(ligado à estrutura do pensamento).
Para Benveniste, não existe um só lingüista que não lhe deva algo, uma
teoria geral que não mencione o seu nome. A semiótica, a psicanálise e a
antropologia, para mencionar apenas algumas disciplinas, são tributárias da
instituição social que é a língua. No momento mesmo de sua emergência, elas
pedem para a lingüística lhes fornecer o material teórico de que necessitam,
alargando o escopo analítico da própria linguagem, tentando recobrir as
dívidas das quais falávamos anteriormente.
Lacan asseverou que: “um dia percebi que era difícil não entrar na
lingüística a partir do momento em que o inconsciente estava descoberto” (op.
cit.: 25) (...). Por que é que damos tanta ênfase à fuão do significante? Porque
é o fundamento da dimeno do simbólico, o qual só o discurso analítico nos
permite isolar como tal”. (Id. Ibid.). E ainda mais:As trilhas do inconsciente
mudam totalmente a fuão do sujeito como existente. O sujeito não é aquele
que pensa. O sujeito é, propriamente, aquele que engajamos, não, como
dizemos a ele para encantá-lo, a dizer tudo – não se pode dizer tudo – mas a
dizer besteiras, isso é tudo”. (Id. Ibid.:33).
Entre o sujeito faltante e o sujeito falante-desejante deve haver
certamente alguma coisa comum. E essa coisa mora na linguagem. A
antropologia, com a noção de símbolo, também solicita auxílio à lingüística.
Essas disciplinas por vezes recorrem ao mesmo vocabulário de base e parecem
partilhar vários conceitos fundamentais.
Lingüística, antropologia, psicanálise e semiótica indicam a matéria-
prima com a qual poderemos constituir o solo pátrio da comunicação,
demarcado nas fronteiras das ciências da linguagem. O campo das ciências da
linguagem (lingüística, semtica, psicanálise, antropologia, lógica) oferece-se
como o lugar de articulação das teorias necessárias para o estudo da
54
comunicação e têm como suposto que as mídias são as articuladoras do
artefazimento da contemporaneidade, porque prestam-se, como disse no início,
para construir vínculos, estabelecer liames. Por baixo dessas questões jaz a
linguagem.
Aquela noção de emissor versus receptor enquanto dois elementos do
pólo do processo da comunicação é, como já dissemos, frágil para sustentar os
pressupostos da pesquisa. Se levarmos em conta que o fazer específico do (tele)
jornalismo e de outros programas mobiliza sujeitos (enunciadores e
coenunciadores), o percurso do trabalho segue uma trilha que procura, ainda
que palidamente, averiguar a posição e o lugar desses sujeitos na enunciação a
partir dos vestígios de sentidos deixados nos enunciados.
Sob esse ponto de vista, me apoio nos indicativos das ciências da
linguagem – campo organizado historicamente no século XX. Articulando áreas
como a lingüística, a psicanálise e antropologia, as ciências da linguagem
comem um quadro referencial capaz de perceber o discurso em suasrias
possibilidades a partir de múltiplos olhares. Acredito que o escopo dessa área
de investigação na sua clivagem com o simbólico oferece indicativos com os
quais poderei delimitar e demarcar o objeto de análise.
Greimas sintetiza o campo de confluência das ciências da linguagem:
“(...) foi a extensão destes pontos de vista para além dos limites da lingüística
propriamente dita e a constituição um pouco desordenada de novas disciplinas
que justificaram a introdução da expressão ciências da linguagem que as
engloba todas”. (1995: 118). Na mesma sintonia Gomes diz que:
Por Ciências da Linguagem entendemos as reflexões que
marcaram nosso século: da convergência de diversos segmentos
do saber ao questionamento de suas próprias instalões pela
explorão e implicão do que diz respeito ao âmbito
simbólico (2000: 9).
Ressalte-se que o caráter interdisciplinar que caracteriza também as
ciências da linguagem não se constitui em entrave que impossibilita a execução
55
de trabalhos nessa área. Apesar das preocupações atuais sobre as fronteiras
incertas e dos enfoques metodológicos, as ciências da linguagem gravitam em
torno das questões de linguagem, conforme o próprio nome tautologicamente
comprova, o que credencia os estudos da mídia e, em particular, os relativos à
televisão, a participarem dessa linha de pesquisa sem complicações de ordem
disciplinar. De acordo com Kristeva:
Estudar a linguagem, captar a multiplicidade dos seus aspectos
e funções, é construir uma ciência e uma teoria estratificadoras
cujos diferentes ramos abrangem os diferentes aspectos da
linguagem para poderem num tempo de síntese, fornecer um
saber sempre mais preciso do funcionamento significante do
homem (op. cit.: 19).
As pistas de Kristeva são esclarecedoras: de um lugar abrangente com
campos estratificados, é possível trabalhar especificidades discursivas (onde
incluo os programas televisivos), já que elas estão desde sempre interligadas.
Nesse sentido, “tomar o fazer jornalístico implicado na questão da linguagem”
(GOMES, 2000: 9) é situá-lo nesse vasto território. Há um consenso de que esse
território tem disciplinas (antropologia [etnologia], psicanálise e
lingüística/semtica) e conceitos analíticos (signo, significante e significado,
referente) que possibilitam a sua delimitação e aplicabilidade.
Não arriscarei repertoriar de forma pormenorizada as contribuições
dessas disciplinas, mas posso assinalar alguns itens que compõem esse temário,
à luz do que já foi discutido:
Antropologia (Etnologia): a contribuição dos estudos antropológicos se
dá, principalmente, pela lógica de Marcel Mauss, interpretada por Lévi-
Strauss. Se Kristeva diz que “não há sociedade sem linguagem tal como
não há sociedade sem comunicação” (1999: 18), a troca definida nos
estudos comparativos de Mauss é fundamental para se pensar a
comunicação, pois “tudo o que se produz como linguagem tem lugar na
troca social para ser comunicado” (Id. Ibid.). Analisando as sociedades
56
primitivas, ele garante que a troca em si é um fato social total porque o
que importa não são as coisas trocadas, mas a própria troca ela supõe
ritos, cortesias, festins, serviços, danças, mulheres, crianças, regras de
interesses que determinam que as ofertas recebidas sejam,
obrigatoriamente, devolvidas. Entender a realidade social como
comunicação implica em perceber o movimento das trocas, pois esse
intercâmbio acena para o próprio sistema social: nesse movimento
alguns prinpios coordenam as relações por meio de um acordo prévio
embutido naquilo que é ofertado. Comunicação e troca são termos
dependentes e indissociáveis. “O que caracteriza a ordem simbólica é o
processo de troca sob o termo substituão: troca de um real pelas
palavras que delineiam a realidade, troca de bens pelos valores
correspondentes a ele consignados, troca como fenômeno primitivo”.
(GOMES, op.cit.: 30).
Psicanálise: dela, as contribuições vêm de vários flancos. Da célebre
afirmação lacaniana que diz: “o inconsciente é estruturado como
linguagem” até outras como “a linguagem com sua estrutura preexiste à
entrada que nela faz cada sujeito...”, os estudos psicanalíticosem sob
suspeita aquela noção de sujeito do enunciado como dono absoluto do
seu discurso. O esquema emissor – mensagem – receptor posto como um
processo de comunicação que se efetiva a partir de um sujeito consciente
de suas investidas, senhor das suas ações e que tem de usar a
comunicação para determinado fim, (seja sob a ótica do emissor ou do
receptor) cai por terra. Ainda segundo Lacan, como vimos, “cada
realidade se funda e se define por um discurso” daí por que não há, para
ele, realidade pré-discursiva. Os discursos das mídias estariam então, sob
a administração dos seus produtores até determinados limites. Sempre
vai existir algo que escapa, impossível de ser devidamente analisado;
57
Lingüística/Semiótica: entendida a partir de uma visão não-ortodoxa,
mas levando em contra as apropriações e reapropriações que a cncia
lingüística pós-Saussure vem sofrendo, aproxima-se de tópicos como
signo, símbolo, referente, estrutura, lexia, apontando que a língua tem sua
ordem própria, mas só é relativamente autônoma.
Perguntariam alguns: - mas, é essa a proposta para sairmos dos
embaraços teóricos e metodológicos da comunicação? Logo essas referências
que escorregam no estruturalismo de que há muito nos divorciamos? Diriam
outros: – este é, realmente, um terreno no qual é difícil avançar, pois ele
favorece a todas as derrapagens e todas as confusões. Jameson (1972) criticou a
determinação do sujeito pela linguagem, argumentando que tal determinação
nos enclausuraria em uma prisão da qual o como escapar. O homem,
escravo do pensamento, não é senhor de seu pensamento, completa Jameson.
Reajo prontamente a essas contra-argumentações: quando pensamos na
noção de sistema, por exemplo, a quem somos devedores? Quando falamos em
signo a quem nos referimos mesmo que longinquamente? Quando falamos em
discurso qual o lastro histórico que se desenha? Interromper o fluxo conceitual
do estruturalismo apenas acusando-o pelas suas fragilidades é, na maior parte
das vezes, recusar-se desde o início a compreender as suas possibilidades.
Pensar na linguagem como antecedente o é condenar o homem a um
servilismo, mas apontar a estrutura que lhe dá estatuto (a dimensão imaginária,
como veremos, está aí, para lhe garantir uma certa autonomia,). Gomes vem ao
nosso aulio:
(...) Hoje tal rubrica [a do estruturalismo] é constantemente
renegada. Ora, renegá-la é tão somente retirar o
reconhecimento de uma dívida, da presença de um legado do
qual fizeram e ainda fazem uso, sob formas variadas, os
grandes pensadores do século precedente e da nossa
contemporaneidade. (Id. Ibid.: 27).
58
O que fizestes com a palavra que a ti foi dada? Eis a questão. Devemos
saber nos relacionar com nossas heranças, quando elas nos deixam patrimônio
em condições de usufruí-lo: “trata-se de ‘escolher sua herança’, segundo seus
próprios termos: nem aceitar tudo, nem fazer tábula rasa.” (DERRIDA &
ROUDINESCO, 2004: 9).
O trabalho não procura fazer uma análise psicanalítica, etnográfica ou
lingüística dos programas televisivos. Ele não se reduz ao objeto da lingüística,
nem se filia aos estudos psicanalíticos e nem se deixa absorver pela
antropologia; ao contrário, ele interroga essas áreas e a elas se vincula em sua
confluência discursiva. Lingüística, antropologia, psicanálise e semiótica têm
tarefa conjunta da qual podemos tirar proveito. Isso tem uma óbvia e
assustadora relevância para o estudo da comunicação.
Movimentar-se nas “fronteiras” da comunicação a partir da televisão
implica em se associar a algumas idéias-estrela das disciplinas acima, fazendo
escolhas e recortes (considerar a televisão como máquina tecnológica que
constrói discursos e ao fazê-lo estabelece vínculos relativamente duradouros),
levando em conta alguns parâmetros (o discurso sendo não o resultado de um
sujeito consciente, sempre entram em cena outros quesitos que não são de
domínio do enunciador), valendo-se de determinadas bases metodológicas (a
análise será alicerçada de base narrativa e discursiva, operando com a estrutura
e a estruturação dos textos – verbais e imagéticos).
Nesse sentido, dirigir o nosso olhar à leitura dos programas de TV é
operacionalizar, sempre, no campo do dito que implica um não-dito. Um não-dito
que para a linguagem é nuclear, onde questões como efeito de realidade,
verdade e objetividade são sempre postas, tentando eliminar os processos de
negociação da notícia e de outros relatos enquanto discursos. O peso dessa
relação se reflete na tentativa diária do jornalismo de agenciar as suas
narrativas de tal modo que sejam particularizadas e legitimadas a partir de uma
dada organização de enunciados considerados “verdadeiros” e “reais”. Os
59
profissionais da comunicação, especialmente jornalistas, aprendemos a ver a
linguagem como a serva das significações (provisórias), mas ela não o é. Se o
escritor foi designado como o profissional da insegurança, podemos, da mesma
maneira, assim definir os profissionais da mídia, articuladores de textos, visto
que o que se produz, a despeito da intenção programática dos veículos de
comunicação, é também resultado do que nos ultrapassa e engloba. Como disse
Lispector: “no momento em que tento falar não só não exprimo o que sinto
como o que sinto se transforma lentamente no que eu digo”. (2002: 32).
Construída essa moldura, na qual podemos inserir os estudos de
comunicação, como definir quais são os temas da alçada do campo da
comunicação? Segundo Sodré, a palavra comunicação recobre sim um largo
espectro de ações, mas está relacionado a três campos semânticos, sendo
portanto delimitável: veiculação, vinculação e cognição. (op. cit.: 221):
a) veiculação: antropotécnicas eticistas ou práticas de
natureza empresarial (privada ou estatal), voltadas para a
relação ou o contato entre os sujeitos sociais por meio das
tecnologias da informação, como imprensa escrita, rádio,
televisão, publicidade etc. trata-se, portanto, do que se tem
chamado de midiatizão. Os dispostivos de veiculão
(mídia) são de natureza basicamente societal. Em torno deles é
que se tem articulado preferencialmente a maior parte dos
estudos ou análises de Comunicação;
b) vinculação: práticas estrangeiras de promão ou
manutenção do vínculo social, empreendidas por ações
comunitaristas ou coletivas, animação cultural, atividade
sindical, diálogos etc. (...) a vinculão pauta-se por formas
diversas de reciprocidade comunicacional (afetiva e dialógica)
entre os indivíduos. (...);
c) cognição: práticas teóricas relativas à posição de
observão e sistematização das práticas de veiculão das
estratégias e vinculação. Aqui, a Comunicação emerge não
como uma disciplina no sentido rigoroso do termo, mas, como
uma maneira de pôr em perspectiva o saber tradicional sobre a
sociedade, portanto, como um constructum hipertextual
(interface de saberes oriundos de diversos campos científicos) a
partir de posições interpretativas. A “ciência” da comunicação
impõe-se, a exemplo da filosofia concebida por Wittgenstein,
como uma atividade crítica, só que voltada para a
60
sociabilidade, a eticidade e as práticas de socialização pela
cultura, uma espécie de filosofia pública. (Id. Ibid.: 235).
Esses três campos oferecem um horizonte de intervenção e análise para o
pesquisador do campo da comunicação, onde poderá construir um solo firme
para atuação na sociedade midiatizada. Sodré inspira-se nas três dimenes
delineadas por Aristóteles no que diz respeito à vida humana em sociedade – o
bios theoretikos (a vida contemplativa), o bios politikos (a vida política) e o bios
apolaustikos (a vida dos sentidos, do prazer) –, e defende, para a sociedade
contemporânea, a emergência de uma nova dimensão: o bios midiático. Nessa
dimensão, nos dizem as discussões pós-modernas, “o espaço é flutuante, sem
fixação nem referência, disponibilidade pura, adaptação à aceleração das
combinações, à fluidez de nossos sistemas. Este novo Eu, o do “fim da
vontade”, corresponde a “indivíduos” cada vez mais aleatórios”. (LIPOVESTSKY,
1983: 65).
Esse Eu que (se) vincula e que se tornou flutuante, segundo a afirmação
de Lipovetsky, está sempre relacionado ao humano que lhe dá o fundamento
primeiro. Donde o chamado para a Linguagem como ponto de partida para os
estudos da mídia. Com essas indicações, o caminho trilhado neste trabalho
procura se instalar nas articulações dos programas televisivos, destacando o
processo de construção de sentidos assentado no ficcional e no real; processo
que é revestido de questões que constituem e desafiam o humano enquanto um
ser de linguagem. Descrevo abreviadamente, a seguir, algumas categorias que
derivam desse primado e que de certa forma balizam as análises que faremos
dos programas.
61
A) REAL, SIMLICO E IMAGINÁRIO (RSI)
CONSIDERAR O DISCURSO COMO A DIMENSÃO QUE produz laços sociais,
exigiu que pensasse a linguagem como instituinte das relações, e pensar o
sujeito da comunicação implica em pensarmos a instituição do humano, pois é
por meio deste que aquele surge. As três dimenes Real, Simbólico e Imaginário
são basilares para a sustentação desta seqüência (linguagem discurso,
humano sujeito laços sociais comunicação (mediatizada). O
conjunto dessas três ordens forma o borromeano, a figura proposta por
Lacan:
A que essas três instâncias corresponderiam?
14
A instância simbólica, ligada à função da linguagem e, particularmente à
do significante, é constituinte para o sujeito, é ela que nos informa que o homem
é um ser de linguagem, que nos instala e a todos inaugura (cada um que nasce
inaugura consigo a humanidade inteira, porque é o simbólico que nos funda); é
ela que a um só tempo constitui o humano: falante/social. Dela, somos resultado
porque nos afasta inapelavelmente da ordem natural, onde estão todos os
outros animais. O simbólico é o que liga e orienta as incidências imaginárias no
14
Não podemos tratar essas instâncias como cronologicamente determinadas, visto que são
mutuamente constitutivas, embora possa se dar mais ênfase nesta ou naquela, como fez o
próprio Lacan: até 1970, o psicanalista conferiu um lugar dominante ao simbólico, seguindo a
ordem S.I.R. (Simbólico, Imaginário, Real). A partir de então, ele passou a conferir predomínio
ao real, o que implica conseqüências teóricas decorrentes de cada uma dessas posições, sendo
agora instalada a ordem R.S.I. (Real, Simbólico, Imaginário), baseada na primazia do real,
entendido como o impossível de ser simbolizado.
não
senso
sentido
Real
Simbólico
Ima
inário
62
dizer: o sujeito com suas crenças, suas identificações, valores e desconhecimento
de si pprio. É do domínio da cadeia significante, lugar do discurso.
A instância imaginária
15
é onde habita a ideologia. No imaginário, o que o
determina é a significação e tudo o que é da ordem das representações que
elaboramos para pensar o mundo como “ele é”. Segundo Lacan, é o lugar do eu,
com seus efeitos de ilusão e engodo, que se crer o que não é, em sua
precariedade, num contínuo processo de identificações, identificações parciais.
A dimensão imagiria é crucial para os estudos da comunicação, pois é nela
que se encarnam os embates, os conflitos, os impasses entre os sujeitos nela
implicados. Representações que necessitam da linguagem para se materializar.
É o imaginário tecnológico, para usar a expressão de Felinto (2003), que impera
nas mediações sociais contemporâneas.
A dimensão do real é o campo do sem-sentido, onde todos os sentidos
sucumbem, nenhuma definição é possível, a não ser de defini-lo como o
estritamente irrepresentável, o que resta ou resiste a ser, na medida em que ele
o pode ser completamente simbolizado (nem na fala e nem na escrita) e, por
isso mesmo, não cessa de não se escrever, produzindo efeitos sobre o simbólico
e o imaginário. Ele resiste, em absoluto, à nomeação. Esse real rumina, insinua-
se, até se insurgir, vez por outra, de forma altissonante. Pêcheux afirmou que
não encontramos o real, mas nos deparamos com ele, ele se revela no que
escapa à língua, naquilo que lhe faz furto. Nele, a língua não chega. Um
exemplo pueril: A AIDS antes de assim ser nomeada já existia, aterrorizando a
humanidade na década de 70, sem uma palavra para nom-la. Nesse
15
O imaginário foi perscrutado por teóricos de campos diversos, alguns com rotas
absolutamente distintas, sem dispositivos comuns de análise. A análise de Cornelius
Castoriadis em A instituição imaginária da sociedade é uma das mais divulgadas. Para o filósofo e
psicanalista que, diga-se de passagem, se contrapunha aos princípios lacanianos, o imaginário é
fundante do pensamento, instituinte do sentido, deixa espo para a indeterminão do sujeito
e da sociedade, vista como instituições de diversas formas socio-históricas, instituintes do
sujeito e do seu coletivo. É nessa medida, do imaginário fundante, que ele lhe atribui a definição
de imaginário radical. (cf. C
ASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade. São
Paulo: Paz e Terra, 1995.
63
momento, ela é algo do mundo, mas quando passa a ser nomeada, descrita,
inserida no universo simbólico, ela passa a ser coisa da linguagem, portanto do
humano.
Esse breviário nos encaminha para o próximo conjunto reflexivo – sobre
realidade e ficção – visto que ascendemos à palavra por meio do simbólico e a
partir dele atribmos sentidos à vida. Como o real é aquele que resiste a
nomeação, criamos efeitos de realidade, o que corrobora a expressão lacaniana
de que não há realidade pré-discursiva, e, em sendo realidade, ela é tecida com
os fios do discurso que cria laços sociais. A trajetória seguinte debruça-se sobre
os percursos de sentido dos dois termos.
64
2
FICÇÃO E REALIDADE:
AS FORMAS NARRATIVAS DA TELEVISÃO
65
2.1 O SENTIDO RADICAL DA FICÇÃO
A ficção consiste não em fazer ver o invisível, mas em fazer
ver até que ponto é invisível a invisibilidade do visível
.
Michel Foucault
NESSA CONSTITUIÇÃO DO HUMANO, NA REDE SIMBÓLICA EM QUE ele é
tecido, nossas narrações são ficções porquanto produzidas pelos discursos. A
frase célebre de Anderson (1989), “as nações são narrações, comunidades
imaginadas", construídas, alcança com precisão esta idéia. As narrativas sobre
o mundo não dizem o mundo em si, mas sobre formas de percebê-lo e contá-lo,
portanto, de criá-lo. Eis o trabalho da ficção.
Desse ponto de vista, um universo de possibilidades se abre para
pensarmos sobre os estatutos da ficção e da realidade. Uma das providências a
tomar diz respeito à verificação da discussão amplificada sobre o tema, tecida
em vários terrenos. Qual o lastro semântico que sustenta as noções de ficção e
realidade como vetores inteiramente diferentes? Pelos conceitos descritos a
seguir, podemos testemunhar que à realidade e à ficção são atribuídas
características que as põem em posições diametralmente opostas. Essa oposição
acabou por privilegiar a realidade enquanto expressão “pura” da verdade em
detrimento da ficção, vista como imaginação pura e simples, descolada da
verdade, do real. As diferenças entre os gêneros televisivos, sob o viés do
verdadeiro e do falso, movimentam-se, dessa forma, na esteira de uma tradição
trica que interditou o ficcional enquanto uma das formas legítimas de
expressão da realidade.
Os estudos de Luis Costa Lima subsidiam esse ponto da discussão. Em O
controle do imaginário, ele demonstra como "um verdadeiro veto ao ficcional, um
controle do imaginário, decorrente do racionalismo, pôde ser assistido de
meados do século XVIII, atravessando os mais variados discursos, até mesmo
os artísticos". (1983: 34). Para ele, o advento da razão contribuiu para a
66
repressão do campo de ficção, considerando que apenas dos discursos teológico
e filosófico emana a verdade. A poesia e outros registros associados à arte
foram relegados a uma posição subalterna, porque ordenados pelo discurso do
“fingimento”, da “mentira”, do “irreal”.
Esses marcadores de diferença compõem um espectro em que se pode
mirar um conjunto de reflexões que nos guia em nosso trajeto, visto que
propugnar aproximação ou diluição de fronteiras entre ficção e realidade
requer uma atenção aos desdobramentos dos termos ao longo da história. As
palavras surgem e podem mudar de sentido segundo as posições sustentadas
por aqueles que as empregam e pelas condições sócio-históricas que lhes dão
suporte. Que sentidos portam ficção e realidade e quais mudanças vêm
sofrendo? Em que momento a concepção corrente se institui?
Na busca de parâmetros que subsidiem as questões aqui levantadas,
arrolo alguns conceitos do significativo patrimônio de estudos e pesquisas que
alcançou os vários aspectos dessa discussão. Preocupa-me verificar o espaço
ocupado pela realidade e pela ficção em algumas áreas, deslocá-las para outras
situações e, assim, perceber como elas incidem na produção televisiva.
2.2 REAL, REALISMO, FICÇÃO E REALIDADE
Daquilo que é real não se pode dar nenhuma explicação clara,
a não ser por meio de algo de fictício
Jeremy Bentham
Pelo caráter multifário e protéico inerente aos dois termos, a trajetória,
com feição de recapitulação proviria, será circunscrita a algumas áreas na
tentativa de fixar idéias e delimitar terrenos. É lapidar a afirmação de Dubois
sobre a abrangência dos vocábulos, porquanto, segundo ele, “toda reflexão
sobre um meio qualquer de expressão deve se colocar a questão fundamental
da relação específica existente entre o referente externo e a mensagem
67
produzida por esse meio. Trata-se da questão dos modos de representação do
real ou, se quisermos, da questão do realismo”. (1993: 25).
As pistas históricas, com informações oriundas de vários flancos,
descortinam os pilares que cristalizaram os entendimentos usuais sobre ficção e
realidade/realismo à luz dessa questão de que nos fala Dubois. Reportemo-nos
a eles.
Realismo - de acordo com a doutrina medieval, o realismo diz respeito à
realidade dos universais,
16
as idéias ou conceitos gerais, partindo do
entendimento que possuem uma natureza autônoma, desligada dos objetos
particulares e concretos, e preexistente à conscncia. A filosofia moderna
considera que se trata da precedência do mundo objetivo sobre a cognição
humana, esta encarregada de fornecer significado ou compreeno a uma
realidade aunoma e previamente existente. Segundo Trinta, “corresponde a
uma existência autônoma dos objetos em relação a um sujeito capaz de percebê-
los e pensá-los. Entende a exterioridade do mundo físico como dada, como
“algo que se situa ante a um cogito e a ele se oferece”. (2005: 2).
Trinta classifica o realismo em quatro tipos: realismo do senso comum, que
“se apõe à crença de que, na realidade, coisas e objetos correspondem
exatamente a formas de cognição humana que delas tentem dar alguma conta”;
neo-realismo intencional, que considera “coisas e objetos de per se, desvelados em
sua imediata superfície de contato, como algo que se situa ante um cogito e a ele
se oferece”, realismo crítico, que parte do entendimento de que “coisas e objetos
pareçam vir ‘duplicados’, apresentará ao cogito, em seus movimentos de
apreensão inteligível, somente um correlato ou umaplica da coisa ou do
objeto externos – e jamais tal objeto”; e realismo representativo, caudatário da
idéia de que “uma atividade cognitiva se vai exercer sobre uma representação
mental correlativa à coisa existente ou ao objeto externo”. (Id. Ibid.: 2).
16
Na tradição do platonismo, são entidades com realidade ontológica independente da mente
que os pensa, representam a verdadeira realidade.
68
Das observações acima, interessa-nos apontar um aspecto reiterado: a
existência de um mundo real, preexistente, precedente, já dado, pronto e
acabado sobre o qual deveríamos intervir, interferir. Ainda segundo Trinta:
realidade é designativo do que se toma por real. Este real
abrange o mundo e seus fatos, bem como tudo aquilo que
decorre de uma ação humana: objetos, paisagens urbanas,
situações sociais. A representação estética que se pretenda fiel
à realidade, será declarada realista; bem sustida, esta fidelidade
significará realismo. [grifos do autor] (Id. Ibid.: 3).
Essa noção foi, digamos assim, a base de discussão sobre os meios de
expressão e seu referente, acolhida por diversas áreas do conhecimento, ora de
maneira pacífica, ora com embates efervescentes. A título de ilustrão, a
exploração em torno do realismo/real se dá em quatro eixos nos quais essa
temática foi delineada com acuidade: literatura, pintura, teatro e cinema. Os
picos apresentam, do ponto de vista da forma, alguns desequilíbrios. Alguns
o desenvolvidos mais longamente, outros nem tanto. Ao cinema, por
exemplo, dedico mais espaço pela colaboração que vem dando para se pensar e
analisar a TV.
Literatura – do ponto de vista literário, o realismo, uma corrente marcadamente
francesa do fim do século XIX, de 1850, corresponde à descrição minuciosa e
objetiva da realidade ordinária e contínua de fatos e personagens, contrária às
concepções românticas da arte. Esta última preconizava a objetividade na
mimetização da realidade e a necessidade de o artista não idealizar o real, mas
apenas, provido de certo rigor científico, observá-lo com isenção e agudeza,
procurando fazer artisticamente um retrato fiel do que observa na sociedade.
Em consonância com a filosofia moderna, o realismo literário buscaria a
representação de um real precedente. O que está em causa é falar do mundo
prosaico como ele se apresenta, como ele é.
17
17
Quando fiz pesquisa no mestrado sobre o jornalismo policial, um dado que me chamou
atenção diz respeito aos aspectos mais sórdidos do cotidiano social, estes, considerados realistas
69
Como toda sucessão de tendências, em que a antecedente sempre
permanece, ainda que seja como sobra, na passagem do romantismo para o
realismo conciliam-se aspectos das duas escolas. O escritor e dramaturgo
francês Honoré de Balzac, autor do conjunto de romances Comédia Humana, é
um dos emblemas dessa conciliação. Stendhal, autor de O vermelho e o negro,
também está situado nesse momento de transição.
No entanto, no que diz respeito à construção de uma obra
autenticamente realista somos tributários de Gustave Flaubert. É ele quem tece
o “discurso fundador” dessa escola com o romance Madame Bovary. A ele
alinham-se outros autores, como Fiódor Dostoiévski, cuja obra-prima é Os
irmãos Karamazov; o português Eça de Queirós, com Os Maias; o russo Leon
Tolsi, autor de Anna Karenina e Guerra e Paz; os ingleses Charles Dickens,
autor de Oliver Twist, e Thomas Hardy, de Judas, o Obscuro.
À abordagem objetiva da realidade acrescenta-se o interesse por temas
sociais – elementos que marcam uma reação ao subjetivismo do romantismo.
Manifestado na prosa, posto que a poesia no final do século XIX estava ligada
ao parnasianismo, o realismo é acolhido pelo romance – a sua principal forma
de expressão. De recurso estético ou de entretenimento, torna-se um
instrumento privilegiado de crítica a instituições, como a Igreja Católica, e à
hipocrisia burguesa. Soma-se a esses temas, a escravidão, os preconceitos raciais
e a sexualidade, tratados com repertório lingüístico “claro e objetivo”.
Esses caracteres do realismo tiveram desdobramentos de ordem
eminentemente política. A ex-União Soviética foi um dos berços desses
desdobramentos. Neste país instaurou-se a tradição de que o realismo é um
todo de representão da realidade, e que, a esse modo, deveria “usar” a arte
e a literatura para atender aos anseios do povo e contribuir com o ideário da
e/ou verdadeiros. A ppria designação jornalismo-verdade para os programas policiais, onde o
trabalho de edição é pouco apurado, apresenta-se como uma pista para questionarmos o papel
da verdade e do real.
70
sociedade comunista, denunciando e combatendo os resquícios, os dejetos das
relações capitalistas na sociedade (inclusive as formas de arte consideradas
"decadentes"). Seria decorrente dessa “arte engajada” o surgimento de um novo
homem e de uma nova sociedade, que destacava o papel de protagonista do
trabalhador na produção artística, alçado ao estatuto de verdadeiro herói
moderno.
No Brasil, o realismo também ganha estatura de escola e congrega
diversos escritores. O marco é a publicação de Memórias póstumas de Bs Cubas,
de Machado de Assis, o maior escritor do século XIX. É dele também o Quase
ministro, outro relato realista. Pode-se, ainda, vincular a essa escola escritores
ligados ao regionalismo. Entre eles, destacam-se Manoel de Oliveira Paiva,
autor de Dona Guidinha do Poço, e Domingos Olímpio, de Luzia-Homem. Autores
ligados ao romantismo, também flertaram com o realismo. Nesse rol estão Jo
de Alencar, com O demônio familiar, e Joaquim Manuel de Macedo, com Luxo e
vaidade. Se quisermos robustecer a lista, cabem nomes como Artur de Azevedo,
criador de codias e operetas como A capital federal e O dote, Quintino
Bocaiúva e França Júnior.
Artes Plásticas Na pintura, o realismo se opôs ao romantismo e precedeu o
impressionismo. A tendência se expressa, sobretudo, na pintura. As obras
privilegiam cenas cotidianas de grupos sociais menos favorecidos. O tipo de
composição e o uso das cores criam telas pesadas e tristes.
O expoente é o francês Gustave Courbet, que considerava a beleza o
lugar privilegiado da verdade. Suas pinturas provocaram perplexidades no
blico e na crítica, ainda ambientados com a fantasia rontica. São marcantes
suas telas Os quebradores de pedra, que mostra operários, e Enterro em Ornans,
que retrata o enterro de um homem comum. Hono Daumier, Jean-François
Millet e Édouard Manet, ligado ao naturalismo e, mais tarde, ao
impressionismo, são também expressões importantes. A obra de Manet
71
associada ao realismo é a tela Olympia, que exibe uma mulher nua “encarando”
o espectador.
No Brasil, o realismo burguês, nascido na França, é a vertente que tem
eco junto aos artistas da pintura. Em vez de trabalhadores, o que predomina na
pintura é o cotidiano da burguesia. Belmiro de Almeida, autor de Arrufos - obra
que retrata a discussão de um casal - e Almeida Júnior, autor de O Descanso do
modelo, são uma das principais referências. Posteriormente, Almeida Júnior
aproxima-se de um realismo comprometido com as classes populares, como em
Caipira picando fumo.
Teatro – a tendência para espelhar os problemas do cotidiano está presente
tamm nos palcos. O herói rontico é substituído por personagens comuns
do dia-a-dia. O primeiro grande dramaturgo realista é o francês Alexandre
Dumas Filho, autor da primeira pa realista, A dama das camélias (1852), um
“retrato” da prostituição.
Cinema – Entre as teorias que compõem o tripé do edifício trico do cinema,
o realismo – cujos representantes são André Bazin e Siegfried Kracauer – está
na base de sua sustentação juntamente com a tradição formativa (Hugo
Munsterberg; Rudolf Arnheim; Sergei Eisenstein; Bela Balázs, expoente da
tendência formalista), e a teoria cinematográfica francesa contemporânea (Jean
Mitry; Christian Metz e a semiologia do cinema; Amédée Ayfrem e Henri
Angel, representantes do enfoque fenomenológico). Esta é, esquematicamente, a
avenida sobre a qual as teorias do cinema desfilaram.
Desde Lumière, o tópico do realismo se impõe no cinema, o que
demonstra a forte vinculação entre imagem e realidade já esboçada por outros
articios imagéticos. Por certo, o acervo audiovisual se firmou como o modo de
expressão pelo qual a realidade seria refletida de modo honesto, porque
cristalino. A fotografia, o cinema e a televisão legitimaram-se com a suposta
72
transparência
18
da imagem, e estes dois últimos, em particular, com a imagem
em movimento: o espectador pode assistir, como testemunha e sem mediação
alguma, a qualquer acontecimento que se produza no planeta.
Primeiro a fotografia, posteriormente o cinema. Com Daguerre e Lumière
atinge-se um desejo antigo do homem que se perdeu nas brumas do tempo: que
é o de reproduzir a realidade, de lograr a realização de uma perfeita ilusão do
mundo perceptivo. As várias especulações sobre o poder da imagem gravitam
em torno desse princípio: seja na Pré-História, na Antiguidade, no século XIX
ou nos dias atuais, é a capacidade de a imagem traduzir algo do mundo “real”
que está em causa. Essa faculdade da imagem foi mais bem abalizada quando,
durante a exibição da primeira película de cinema, os espectadores ficaram
apavorados com a locomotiva que ameaçava ultrapassar o espaço da tela. O
assombro dos assistentes revela um poder específico do material audiovisual:
produzir efeitos de realidade.
A fotografia e o cinema, pela sua gênese automática, testemunhariam a
existência das coisas do mundo (Kristeva já advertira que as coisas do mundo
não são conhecidas, apreendidas, apenas temos acesso às coisas da linguagem).
A esse respeito, escreveu Bazin: "Sejam quais forem as objeções de nosso
espírito crítico, somos obrigados a crer na existência do objeto representado,
literalmente re-presentado, quer dizer, tornado presente no tempo e no espaço."
Para ele, "(...) a matéria-prima do cinema não é a própria realidade, mas o
desenho deixado pela realidade no celulóide. O cinema, diante disto, assume a
aparência do mundo tornando-se, nas palavras de Bazin, "assíntota da
realidade", quer dizer, o cinema realista assenta e tangencia no real.
18
O termo foi empregado como categoria por Rosseau, mas nem por isso, segundo Starobinki,
deixou de ser uma das principais armadilhas de sua formulação teórica. A absoluta
transparência – adverte Starobinki – é o estado mediante o qual nada se vê; nem as sombras. A
fertilidade do pensamento rousseauniano residiria exatamente na opacidade do que ele julgava
transparente, a transparência da vida comum. Cf. S
TAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques. Rousseau: la
transparence et l’obstacle. Paris: Gallimard, 1971.
73
Com efeito, a relação com o real está posta para o cinema desde a
exibão da primeira película. Godard, um dos cineastas que podem ser
catalogados dentro da categoria realista, assim se referiu a Lumière: “O que
interessava a Méliès era o ordinário no extraordinário, e a Lumière o
extraordinário no ordinário. Louis Lumière era descendente de Flaubert e
também de Stendhal, cujo espelho passeou ao largo dos caminhos”. (in
Aumont, 2004). Para Godard, Lumière não era inventor de um instrumento
capaz de reproduzir a realidade, e sim “o último pintor impressionista”, “um
contemporâneo de Proust”. Lumière deixa de ser um inventor, um técnico, e
passa a ser um artista, criador de elementos extraordinários: os efeitos de
realidade. Para descobrir em qual terreno essa associação é possível, Aumont
cotejou a afirmação de Godard com as ferramentas analíticas da pintura.
Descartando as obviedades das justificativas apressadas (a filiação burguesa do
primeiro e do segundo, a transposição, influências, filiações, co-naturalidade),
ele encontrou mais diferenças do que semelhanças entre Lumière e os pintores
impressionistas. Malograda a tentativa pela chave pictórica, o autor insiste em
ver coerência na afirmação de Godard. As deduções a que ele chega são
resumidas na profusão dos efeitos de realidade que ambos, cinema e pintura
impressionista, provocam:
Fala-se sempre da famosa reação dos espectadores de A
chegada de um trem à estação, de seu pavor, de sua fuga
desvairada: como lenda, essa história é perfeita
(impressionante e exemplar); mas não passa de uma lenda,
cujo vestígio real não encontramos em parte alguma. O que
encontramos, em compensação, e extasiadas, alucinadas sobre
outros efeitos, menos macos, menos propícios à lenda, efeitos
evanescentes, mas obstinados, sempre ali. (...). Ora, foi, de
modo um pouco mais sutil, por efeitos de realidade que eles
foram tocados. Insisto sobre a verdadeira força alucinatória
desses efeitos: um vê, por exemplo, as barras de ferro
“incandescerem” (em Ferradores), outro vê as cenas
reproduzidas “com as cores da vida”(...). Manifestamente, são
esses efeitos que prevalecem. (Id. Ibid.: 31).
74
Outra particularidade apontada por Aumont diz respeito aos aspectos
quantitativos e qualitativos dos efeitos de realidade no cinema, ou seja, “o que
encanta o espectador é também o fato de lhe mostrarem um número tão grande
de figurantes a um só tempo e, sobretudo, de maneira não repetitiva”. (Id. Ibid:
33). Se o que impressiona na pintura é a minúcia do detalhe, a impecabilidade
[“o que causa a admiração do século XIX por esses quadros aos quais não falta
sequer um botão de polaina?”] (Id. Ibid.: 33). A qualidade é outro traço
importante na vista de Lumière: as coisas e objetos tornam-se palpáveis,
infinitamente presentes.
Além dos efeitos de realidade, a construção do espaço também é outro
recurso que serve para autenticar o realismo no cinema. Lumière subverteu o
sistema perspectivo herdado do Renascimento: a atenção do observador, seu
olhar, não se dirige da borda do quadro até o ponto de fuga, e sim o contrio.
Assim, o cineasta institui um novo espaço que ultrapassa os limites da tela, o
espaço da filmagem, que é o espaço ficcional, situado entre outros dois espaços:
o do filmado e aquele ocupado por quem filma. Antes de Lumière, o pintor
Diogo Velásquez vela e desvela esses espaços – o do quadro e o fora do quadro
– com a tela As damas de companhia, mais conhecido como Las meninas.
Lumière consolida, assim, um espaço ficcional que se estende além da
própria imagem. E essa é a imagem do cinema, uma imagem "imperfeita"; sua
presença impõe igualmente uma ausência, ela oculta mostrando, se quisermos
utilizar a expressão de Pierre Bourdieu.
Com esses aspectos salientados a partir do trabalho de Lumière,
podemos depreender que os efeitos de realidade coexistem com efeitos de ficção,
estes relacionados ao espaço virtual, não visível. Dessa forma, é lícito afirmar
que o cinema não opera sobre a absoluta visibilidade, sobre a evidência da
imagem, pois concorrem elementos de várias ordens (técnicos, subjetivos etc.)
que postergam e impedem essa visada. O princípio realista com pretensões de
dizer/mostrar toda a verdade, esbarra numa impossibilidade. Talvez seja por
75
isso que Ismail Xavier considera que “há quem tome o cinema como lugar de
revelação, de acesso a uma verdade por outros meios inatingível. Há quem
assuma tal poder revelatório como uma simulação de acesso à verdade, engano
que não resulta de acidente, mas de uma estratégia”. (2004: 32).
Representação da realidade e busca de um ideal de verdade são deveres
que dão ofício ao cinema realista. Cumpre dizer que o ideal de verdade visado
pelo cinema não guarda relações com o que é visado pela televisão. A televisão
ostenta o ideal de visibilidade e transparência.
Malgrado o realismo cinematográfico não aderir totalmente ao regime da
visibilidade, o qual supõe um hipotético acesso ao mundo graças ao poder da
imagem e da transmissão ao vivo (como insinuam os programas
telejornalísticos), ele está alinhado à produção de TV no que se refere às
características formais: ambos produzem efeitos de realidade, ambos apóiam-se na
aposta de um real suposto, ainda que seja para dele zombar.
A visibilidade televisiva sue a transparência do mundo, “ coloca o
espectador na situação de ‘testemunho’, como se a simples presença do sujeito
ante um acontecimento determinado bastasse para compreendê-lo e
pretendesse a instauração de uma confiança absoluta na tecnologia”. (A
UMONT,
2005).
André Bazin e Kracauer sugerem, direta ou indiretamente, algumas
proposões que alargam as considerações sobre o projeto de Lumière. Bazin,
por exemplo, entendia que antes de pensar o realismo sob o ponto de vista do
conteúdo social, via de acesso principalmente do neo-realismo italiano,
invocava a necessidade de se levar em conta os critérios formais e estéticos.
Para ele, na passagem do realismo para o neo-realismo ocorre uma mudança
substancial de foco do espectador: no realismo predominava uma situação
sensório-motora (ação), no neo-realismo reinava uma situação ótica e sonora,
investida pelos sentidos. É preciso, segundo Deleuze, que não somente o
espectador, mas também os protagonistas invistam nos meios e nos objetos pelo
76
olhar, que vejam e ouçam as coisas e as pessoas, para que a ação ou a paixão
nasça, irrompendo numa vida cotidiana preexistente. Segundo ele:
O real [no neo-realismo] não era mais representado ou
reproduzido, mas “visado”. Em vez de representar um real já
decifrado, o neo-realismo visava um real, sempre ambíguo, a
ser decifrado; por isso o plano-seqüência tendia a substituir a
montagem das representações. (2005: 32).
Ao invés de imagem-movimento, o neo-realismo inventa a imagem-
fato. A subjetividade era o que propiciava uma interpretação (por exemplo, por
meio do enquadramento) da realidade. De acordo com as proposões
bazinianas, a semelhaa entre o universo filmado e o mundo real, produzida
pelo mecanismo da câmara cinematográfica, outorga credibilidade a esse
espaço virtual, distinguindo-se este da realidade filmada, sem atraiçoá-la ainda
que se apoiando nela.
Malgrado a imagem (fotográfica, cinematográfica ou videográfica)
desvelar uma realidade preexistente capturada pela câmara, manifesta também
a presença de um pensamento, de uma subjetividade. Do ponto de vista técnico,
essa subjetividade também já vem marcada em Lumière, que se manifesta por
meio do enquadramento e a instituição de um campo e um fora de campo.
Segundo Xavier: “Toda leitura de imagem é produção de um ponto de vista: o
do sujeito observador, não o da “objetividade” da imagem. Portanto, o processo
de simulação não é o da imagem em si, mas o da sua relação com o sujeito”.
Para Stanley Cavell, o cinemanão nos dá a ver um ‘outro mundo’, o que
faz é facultar, a todos nós, visões de nosso próprio mundo, o qual, por alguns
momentos, ele nos convida a deixar” (2005: 5). O jornalista e crítico de cinema
Sergio Rizzo partilha da mesma concepção de Cavell. Para ele:
o cinema adquire maior relevância social quando parte de
situações que os espectadores conhecem muito bem, por
vivência direta ou indireta, e acrescenta a elas não só a visão de
contexto que permite compreendê-las um pouco melhor, mas
também um olhar sobre a realidade capaz de revelar nuances
77
que muitas vezes escapam à percepção cotidiana, já
acostumada com o que é preciso revelar outra vez. (2006: 17).
O discurso televisivo, especialmente nas retransmissões diretas, pretende
ocultar a mediação própria do veículo: o representado é percebido de modo
imediato, como se o espectador fosse testemunha do acontecimento. Em vez da
“verdade da representação”, o espectador é posto diante da "verdade" do
representado. Desse modo, o espectador não tem acesso ao mundo por meio da
experiência ou do conhecimento, mas por intermédio dessas representações que
aparecem como verdadeiras. Como pensar, então, a ficção?
2.3 ITENS PARA COMPOR O ROTEIRO: A INCLUSÃO DA FICÇÃO
Esse escorço lança luz para a demarcação de um campo de estudo, para
um roteiro de trabalho, visto que dá as coordenadas que permitem começar a
mapear os modos pelos quais ficção e realidade estão postas na TV. De um
extremo a outro, seja na literatura, no teatro, na pintura e, especialmente, no
cinema o que está em tela é a capacidade da linguagem de representar o
mundo. Supõe-se uma fidedignidade em tal representação, o que faz dela, da
linguagem, um instrumento para reproduzir o mundo "como ele é" ou deveria
ser.
A tese, orientada por um conjunto de problemas decorrentes desse
postulado, recusa a exterioridade dos fatos e das coisas. É ocioso falar de fatos
independentes, atomizados da corrente do simbólico. Ao pensar as narrativas
televisivas como uma forma de ficção, independente dos gêneros sob os quais
estão agrupadas, torna-se imperativo supor e evocar uma outra noção de
linguagem, admitindo o seu caráter criador, de instituinte das relações sociais.
Ficção e realidade têm a mesma base discursiva, como disse Kristeva, daí
porque ao analista pouco importar se a fala do analisando seja ficcional ou
calcada em dados de realidade. Não se tem mais porque acatar como crível a
78
concepção segundo a qual a linguagem é representação de uma sociabilidade já
esboçada.
À medida que em me distancio dessa noção, procuro apoio nas
contribuições que tomam a linguagem – à medida que são tomadas por ela –
como peça-chave. Segundo Flusser, para ser, a realidade precisa parecer, precisa
ser trabalhada no tecido discursivo. Desse modo, o entendimento de realidade
que atravessa o trabalho é que ela não preexiste à linguagem, mas é criada pelo
discurso. Aqui já temos uma orientão extraída do campo psicanalítico. Para
Lacan:
Não há nenhuma realidade pré-discursiva. Cada realidade se
funda e se define por um discurso (...). Não há nenhuma
realidade pré-discursiva, pela simples razão de que o que faz
coletividade, e que chamei de os homens, as mulheres e as
crianças, isto não quer dizer nada como realidade pré-
discursiva. Os homens, as mulheres e as criaas não são mais
do que significantes. (1985: 45-46).
Freitas elabora conceito congruente com o de Lacan. Segundo ela, não é a
História que funda o discurso, mas o contrário:
A realidade é o discurso. Inclui-se aí tudo, menos um: esse
menos um, aquilo que falta, é o que chamamos de real. De
onde a diferença entre o real e a realidade: o real está na
Linguagem como faltante e a realidade está na linguagem (e
o há outro lugar) como articulação discursiva, como
discurso. Mas os discursos e, portanto, as realidades que
fundam e definem, não são quaisquer: são articulações
(relões) determinadas, estruturam o mundo histórico-social e
são por eles estruturadas. Além disso,o passíveis de
transformações e têm funções. (F
REITAS, 1997: 2).
Sob esse ponto de vista, a readmissão da ficção, enquanto marca
estrutural dos relatos televisivos, mostra-se um procedimento capital. Segundo
as definições correntes, ficção quer dizer ato ou efeito de fingir; construção,
voluntária ou involuntária, da imaginação; criação imaginária fantasiosa,
fantástica; quimera. Relato ou narrativa com intenção objetiva, mas que resulta
de uma interpretação subjetiva de um acontecimento, fenômeno, fato
79
etc. Grande falácia; mentira, farsa, fraude. Do ponto de vista literário, está
ligada à prosa (conto, novela, romance), construída a partir de elementos
imaginários calcados no real e/ou de elementos da realidade, inseridos em
contexto imaginário.
O platonismo foi a base para essas concepções, endereçadas inicialmente
ao campo artístico. Para Platão, a imitação (poética) é uma distorção da
realidade suprema, das idéias eternas, visto que são as “apancias de um
mundo de aparências”, distante da verdade. Sob esse viés, a arte seria
prejudicial para a República, visto que só é capaz de construir simulacros de
simulacros. É com Aristóteles que é fixado o conceito de arte como mimese,
imitação de uma supra-realidade.
O cerne da subvalorização da ficção remonta ao início da teorização da
arte ocidental, um passo fundamental para que os abismos entre literatura e
história, arte e real fossem cavados. Aristóteles construiu paradigmas antitéticos
que foram decisivos para as configurações opostas entre literatura, história e
arte. Para o filósofo, a poesia encerra mais filosofia, elevação e universalidade,
por falar de verdades possíveis ou desejáveis. Por seu turno, a história trataria
de verdades particulares, acontecidas, não universais:
(...)o diferem o historiador e o poeta por escreverem verso e
prosa (...), diferem, sim, em que diz um as coisas que
sucederam, e outro as que poderiam suceder. Por isso a poesia
é algo de mais filofico e mais sério do que a hisria, pois
refere aquela principalmente o universal, e esta o particular.
Por referir-se ao universal entendo eu atribuir a um indivíduo
de determinada natureza pensamentos e ações que, por liame
de necessidade e verossimilhança, convém a tal natureza; e ao
universal, assim entendido, visa a poesia, ainda que dê nomes
às suas personagens. Outra não é a finalidade da poesia,
embora dê nomes particulares aos indivíduos; o particular é o
que Alcibíades fez ou que lhe aconteceu. (1989: 11).
O advento do racionalismo fez com que essa oposição ganhasse
contornos mais espessos. Segundo Trinta:
80
Poesia, arte e ficção seriam progressivamente desqualificadas
como modos do conhecimento da realidade, passando a
habitar um terreno quase etéreo: lugar de fantasia para o
artista ou de metafísica para o intelectual. Do outro lado
habitariam as ciências dos homens sensatos e progressistas,
com suas leis e seus postulados de objetividade, racionalidade
ou referencialidade cumprindo funções utilitárias. (op. cit.: 13).
Estas atribuições foram decisivas para que o divórcio entre ficção e
verdade/realidade, arte e a ciência se estabelecesse. Segundo Trinta, “as noções
de história desde o século XIX, que pretenderam a cientificidade da disciplina,
ou as manifestações do realismo e do naturalismo na literatura do mesmo
período, tiveram como fundamento essa distinção”. (2005: 4).
Na trilha da concepção aristotélica, a literatura exprimiria o verossímil (a
impressão de verdade, não necessariamente falsa, que se inclui no espaço
ficcional), enquanto a história pretenderia o verdadeiro (no sentido da
representação do acontecimento particular):
Desse modo, as teorias instituídas no século XIX conseguiram
assegurar até algumas décadas doculo XX a noção de que
literatura e históriao campos distintos, indicando que,
enquanto um ficcionaliza o real, o outro o estabelece. Baseada
nessa visão, a história autodenominou-se a única possibilidade
de registro da realidade do passado, não reconhecendo essa
capacidade na literatura. (Id. Ibid.: 14).
É praticamente impossível pensar esses pares em que tais questões
estão abrigadas, sem nos deslocarmos para a literatura e a história e olhar o
desenho que se insinuou sobre o temário. Invariavelmente, essas discussões têm
como eixos a construção da narrativa e a busca da verdade.
O filósofo frans Paul Ricoeur considera que toda a História escrita,
incluindo a chamada História “estrutural” associada a Braudel,
necessariamente molda-se como um tipo de narrativa. (1995: 22). Lyotard ao
pensar o traço essencial da pós-modernidade, descreveu algumas interpretações
da história, especialmente a dos marxistas, como “grandes narrativas”. (1979:
56). Lacan, na mesma sintonia, disse que o marxismo é um ancio, um
81
evangelho: “é a anunciação de que a história instaura uma outra dimensão de
discurso, e abre a possibilidade de subverter completamente a função do
discurso como tal e, falando propriamente do discurso filosófico, na medida em
que sobre ele repousa uma concepção do mundo”. (1985: 44).
Esse debate convidou historiadores e literatos a refletirem sobre os
elementos distintivos das narrativas que empreendiam. Hayden White, um dos
expoentes da aproximação entre literatura e história, acusou o historiador de
negligenciar as reflexões literárias de sua própria época e de não computar o
caráter de descontinuidade entre os acontecimentos no mundo exterior e sua
forma de representação articulada por intermédio da narrativa. (WHITE, 2001:
27-50).
Muitos historiadores acreditam que o seu trabalho difere radicalmente
do romancista, visto se ocuparem dos acontecimentos “reais”, enquanto é da
alçada do romancista os eventos “imaginados”. Ao fim e ao cabo, a história – o
mundo real ao longo de sua evolução no tempo imprime um sentido à leitura
de mundo do mesmo modo que o poeta ou o romancista. Não importa se o
mundo é concebido como “real” ou apenas “imaginado”; a maneira de dar-lhe
sentido é a mesma.
É, fundamentalmente, sobre a maneira de dar sentido ao mundo, de
nomeá-lo, de transfor-lo em fatos de linguagem que as interseções entre
literatura e história ganham força. Eco, ao se referir ao texto de ficção, em Seis
passeios pelo bosque da ficção, questiona até que ponto aquele difere da verdade
histórica? O que acontece quando o leitor mistura os papéis e considera como
reais personagens fictícias ou vice-versa? (1994: 123). Apoiando-se em obras
ficcionais e reais, o autor aborda os vários aspectos da leitura, alargando
conceitualmente os tópicos da ficção e da realidade. (Id. Ibid).
Eco também pode ser citado em referência a outros estudos, entre eles A
obra aberta. Neste livro, o autor assegura que toda a narrativa é ambígua, espécie
de cristal, refratando diretamente a luz de cada olhar de intérprete, de cada
82
perspectiva, constitda bem além do controle possível que possamos ter sobre
nossa imaginação literária. Aqui ele deixa nítida a concepção de interpretação.
(1997: 94). Em Interpretação e superinterpretação ele afirma categoricamente que:
a única leitura confiável de um texto é uma leitura equivocada,
que a existência de um texto só é dada pela cadeia de respostas
que evoca e, que, como Todorov sugeriu maliciosamente, um
texto é apenas um piquenique onde o autor entra com as
palavras e os leitores com o sentido. (E
CO, 1993: 28).
Burke, em A escrita da história, discute os métodos de explicação
histórica propostos pelo paradigma da nova história. Observando o retorno da
forma narrativa na historiografia, discute os desafios que esse retorno levanta.
(1992, passim.).
Essa orientação metodológica toma como possível e necessária a
aproximação da literatura à história e forja a abertura da história, para além de
considerá-la como rígida forma cientifica, pois enquanto narrativa compartilha
com a ficção dos mesmos métodos, como a seleção de fatos, personagens e na
construção e/ou reconstrução dos eventos.
De fato, as demarcações entre uma e outra se embaralham e as
indagações de Eco (1994) formuladas anteriormente devem ser levadas em
conta na abertura da rígida fronteira que insiste em separá-las. As diferenças
entre literatura e históriao podem ser fundadas no par de rigorosa oposição
entre ficção e realidade, entre verdadeiro e falso.
A fortiori, esse argumento toma vulto quando se evoca o fato de que, nas
várias etapas da história humana, a ficção tem valido para práticas
consideradas subversivas, quando se credenciam os textos literários para
falarem dos dramas, das conquistas humanas e das condições reais de
existência em que ganham sentidos, ou seja, quando ele está no lugar “da
realidade”. Tornam-se novas formas de abordagem dos pprios femenos
tidos como históricos. Verdade e imaginação são os compromissos do
historiador e do escritor, respectivamente, segundo a tradição teórica:
83
A questão é que, desde Aristóteles, história e ficção se
avizinham, mas os compromissos de uma e outra são distintos.
Da ficção, se espera o uso sistemático da imaginação, e, no caso
do romance, em geral um compromisso com a verossimilhança;
da história, se pretende a verdade. Não chegaremos a ela, mas
podemos pleitear uma verdade possível, a que a documentação
e os dados conhecidos permitem. Verdade consensual, dirão
alguns; linha do horizonte, dirão outros. (P
INTO, mimeo, s/d.).
A fragilidade dessa afirmação é que a verdade, como veremos, é
construída sobre a forma de ficção. A fábula, considerada por Bakhtin um
gênero primário em princípio, é vista como invenção; mas se prestarmos
atenção à sua estrutura, veremos que ela constrói a verdade, pois tem um
caráter instrutivo; imitando as ações humanas, toda fábula tem uma moral.
Segundo Foucault:
A fábula, no verdadeiro sentido da palavra, é o que merece ser
dito. Durante muito tempo, na sociedade ocidental, a vida de
todos os dias pôde ter acesso ao discurso quando atravessada
e transfigurada pelo fabuloso, era preciso que ela fosse retirada
para fora de si própria pelo heroísmo, a façanha, as aventuras, a
providência e a graça, eventualmente a perversidade; era preciso
que fosse marcada por um toque impossível. (1992: 124).
Em seu encantamento, em seu papel de tirar a vida do lugar comum, do
vulgar, a fábula permite que nós organizemos a realidade e a interpretemos,
como lembra Chauí (2001: 138). Em muitas ocasiões da história, a fábula serviu
para denunciar desigualdades e injustiças sociais, lançar críticas audazes,
recomendar modos de bem viver, sem abrir mão da magia da palavra. É o
ficcional construindo parâmetros de realidade. Para Foucault, a fábula e a ficção
são componentes de todos os tipos de relatos, sendo a primeira tudo que é
contado e a segunda, os diversos regimes através dos quais o relato se organiza.
Assim, como separar ficção e realidade tendo como linha divisória os critérios
de verdade?
84
A tentativa aqui é, realçadas algumas questões que demonstram as bases
da separação entre ficção e realidade e a conseqüente desqualificação da
primeira, insistir no caráter discursivo do mundo instituído na rede simbólica,
portanto ficcional, que, igualmente, nos dá estatuto.
Reportando-nos ao sentido etimológico do termo, as observações que
levanto parecem ganhar consistência: o ato de criar está vinculado ao barro, o
material utilizado para a criação do homem, segundo a narrativa bíblica. Na
blia, em latim, o verbo usado para se dizer que Deus criou o homem é o verbo
fingo/fingere (tocar com a mão, modelar na argila), criar, dar vida, fingir. Assim,
podemos dizer que modelamos palavras, criamos realidades. Nesse sentido, as
mídias são atos de criação da realidade, e vice-versa. O trabalho da televisão
consiste nesse procedimento: tem o estatuto de constructo, de artifício. A esse
modo, podemos dizer que realidade e ficção estão irreversivelmente ligadas,
estão ambas condenadas à criação de efeitos de real: “a realidade aqui, em
medida largamente desconhecida, é apenas o nome eloqüente ou persuasivo
que há para os efeitos complexos, mas de validade datada das criações”.
(PÉCORA, 2001: 16).
As espécies televisivas, sob esse prisma, reclamam investigações que
rompam com a estreiteza do esquema classificatório dos gêneros, calcado no
par de oposições ficção e realidade, informação e entretenimento. O
telejornalismo deve ser tirado da redoma da verdade que o isola dos outros
programas considerados ficcionais. Como, então, pensar o telejornalismo, uma
vez que o inserimos do mesmo lado dos programas de entretenimento e ficção?
De que maneira ele pode ser analisado levando em conta que as narrativas
cotidianas da TV indicam pólos entre os quais há uma constante passagem na
zona da ficção e da realidade?
Aproxima-nos, assim, do objeto da pesquisa: a televisão. Retomaremos
os debates sobre ela, para, então, discutir como se tece nela a trama da ficção e
da realidade.
85
PARTE II
CERCANDO O OBJETO
86
3
TELEVISÃO, UM DIÁLOGO COM O OBJETO
87
3.1 AFINAL, O QUE É TELEVISÃO?
A TELEVIO, A MÁQUINA MAIS EXPRESSIVA DE FABULAÇÃO já inventada até o
momento, constitui-se em um agrupamento de relatos que se sucedem
diariamente, em um grande cerio narrativo onde se inscrevem as
possibilidades de homogeneização das expectativas dispersas no tecido social.
Com uma grade de programação que se repete diuturnamente, a TV parece
confirmar o seu papel de, a cada dia, oferecer o novo que sempre retorna (esse
retorno pode se dar em diversas dimensões e aspectos: tanto pode ser a
continuidade do novellus
19
discursivo dos programas [a telenovela espelha bem
essa situação] quanto pode ser o ressurgimento de programas e formatos de
tempos imemoriais, seja da própria TV ou de outros veículos). Essa repetição e
redundância, traço essencial dos enunciados televisivos, tornam explícito que
algo insiste nos relatos, porque fora da cadeia discursiva. Sob o núcleo das
coisas que se repetem está algo que sempre falta, o que nos impele à procura
da palavra plena, total, depositando esperanças nas narrativas cotidianas,
postulantes a cumprir a promessa de superar esse fracasso.
Ao repetir, os programas televisivos dão margem para o novo/outro. O
caráter transformador da repetição assinalada por Gilles Deleuze nos dá a
medida dessa operão: “o eterno retorno não pode significar o retorno do
idêntico, pois supõe, ao contrário, um mundo (o da vontade de potência) em
que todas as identidades prévias são abolidas e dissolvidas. Voltar é ser, mas
apenas o ser do devir”. (1968: 59).
Deleuze dirige, assim, uma crítica à idéia de representação, uma vez que
é caudatária da tradição ocidental filofica. Na contracorrente do pensamento
19
Do latim, novellus quer dizer novo, recente. Originou o termo novela, narrativa breve, maior
do que um conto e menor do que um romance. A novela tem suas raízes na Idade Média como
um relato das aventuras de um herói mais ou menos individualizado, e diferencia-se do caráter
épico da canção de gesta que a antecede
88
que privilegia o idêntico, Deleuze considera que a repetição não supõe o
retorno do mesmo, mas comporta, per si, um aspecto subversivo, transgressor:
Se a repetição é possível, é contra a lei moral, assim como
contra a lei da natureza. (...) A repetição pertence ao humor e à
ironia; é por natureza transgressão, exceção que manifesta
sempre uma singularidade contra os particulares submetidos à
lei, um universal contra as generalidades que fazem lei; (Id.
Ibid.: 12).
A situação do fort-da (o para lá e para cá do carretel jogado pela criança
na ausência da mãe), esboçada por Freud, também é emblemática para
pensarmos no espírito renovador da repetão. Segundo ele, a ausência da mãe
provoca uma situação faltante, para ambos, mãe e filho. O jogo que tem como
suposto o retorno do carretel ou da mãe, não retorna com o “mesmo”, trata-se
de uma completude imaginária, nunca existida e, portanto, impossível de ser
devolvida. A repetição seria a procura de um pleno suposto, jamais
encontrado. Uma vez que não se devolve o mesmo, o que emerge dessa
situação é outra coisa. A essa operação Lacan nomeia de disco-corrente, pois o
que gira está destinado, por seu enunciado mesmo, a evocar o retorno. Ainda
segundo ele:
(...) disco-corrente, discorrente, disco tamm fora de campo,
fora do jogo de qualquer discurso, apenas disco portanto – ele
gira, ele corre, ele gira muito exatamente para nada. O disco
se acha exatamente no campo a partir do qual todos os
discursos se especificam e onde todos se enlaçam, onde cada
um deles é capaz, inteiramente também capaz, de enunciar
tanto quanto outro, mas, por zelo do que chamamos, por razão
muito justa, de dencia, o faz, meu Deus, o menos possível.
(1985: 46).
Assim considerados, os enunciados de TV podem ser vistos como
construções imaginárias que vão sendo tecidas ad infinitum numa cadeia
aparentemente ininterrupta em que tentamos satisfazer nossas demandas e o
89
impossível desejo. As narrativas,
20
como tentativas, são sempre deficitárias,
incompletas, posto que falam do inatingível, de uma parte inacessível que todos
nós carregamos. O esforço “é tentar significar esse inacessível, tentativa sempre
fracassada, mas constantemente retomada numa circularidade narrativa que
cria um discurso de paradoxo, em que osentido erra o exprimível dos
significantes e o inexprimível do significado”. (BRAGA, 2005: 4).
No entanto, o (tele)jornalismo, no seu prodigioso papel de converter o
mundo em fatos imediatamente acessíveis ao cotidiano planetário, insiste em
pautar o “real pleno”, em estruturar o mundo de objetos como se ele já
estivesse “pronto” e organizado, em representá-lo. As diminutas observações
que extraímos dos teóricos acima já são suficientes para elidirmos a palavra
representação do empreendimento televisivo, visto que ela é impossível de ser
visada nesses termos. Com Wittgenstein encontramos amparo para tal
iniciativa. Ele prefere o termo apresentação de mundo à representação porque:
Ao invés de “representabilidade” pode-se dizer aqui também:
apresentabilidade em um determinado meio da apresentação.
E de uma tal apresentação, todavia, pode um caminho seguro
conduzir para um outro emprego. Por outro lado, uma
representação pode nos importunar e não servir para nada.
(apud G
OMES, 2001: 36).
Se nos permitirmos algumas reflexões do campo das ciências da
linguagem, veremos que aquilo a que nomeamos de “real” televisivo é uma
fundação e organização da realidade por meio de discursos e não simplesmente
uma entidade dada sobre a qual interferimos com odigo lingüístico
20
Segundo Paul Ricoeur, o que distingue um mero fato físico de uma ação humana é que esta
segunda possui um caráter prototípico que a distingue estruturalmente de meros eventos na
medida em que se põe em jogo uma rede conceitual consistindo nos seguintes aspectos: metas,
motivos, agentes, circunstâncias contextuais, interação com outros, existência significativa e
responsabilidade. Esses aspectos caracterizam a ação humana como envolvida com a
moralidade, pois estas formam a rede conceitual de ação. Entretanto as possibilidades do
ordenamento do mundo dependem, sobretudo, dos dispositivos sintetizantes imaginativos que
estão circundados por estruturas narrativas que nós herdamos de nossa tradição. A deliberação
moral, segundo esse ponto de vista, é uma exploração narrativa das possibilidades de ação
construtiva em uma circunstância presente. Narrar é dar estatuto ao humano.
90
disponível. O trabalho dos produtores de TV, especificamente do
telejornalismo, não será o de representar o real, mas de instituir e ser instituído
numa realidade discursiva:
O real encontra um sistema de representações que a só um
tempo o patenteia e o disfarça (...) a isto chamamos de realidade.
A realidade, portanto, é, de regra, representação parcial, viceja
dentro de relações bem precisas; porém, dentro de cada
conjunto de relações de um dado campo, parece dar conta do
real inteiro, possui uma aspiração à unicidade e à
universalidade. A realidade não é tão-somente um pré-dado,
constitui-se na medida da própria constituição do sujeito e ao
mesmo tempo em que torna possível esta constituição. (Id. Ibid.)
A esse trabalho, Barthes chama de efeito de real, aquele mesmo realizado
pelo cinema. Analisando um conto de Flaubert, Un couer simple, este pensador
afirma que a minúcia, o realce de detalhes no conto de um elemento sem
aparente função na história ou no seu cenário, como a descrição de um
barômetro, constitui o fundamento da verossimilhança, onde se atinge a
plenitude do referente, autentica-se o real; há uma suposição de que o relato
trata daquilo que se passou realmente. O real concreto torna-se a justificativa
suficiente do dizer. É o realismo se impondo pelas enunciações creditadas pelo
referente. (cf. B
ARTHES, 2004: 35).
Se em Aristóteles o efeito de real é o efeito do verossímil, efeito de uma
aparência do real, para Barthes a realidade é um efeito do real. O conceito de
efeito de real instaurado por Barthes possibilita que a noção de representação
fidedigna de um real, pedra de toque dos estudos filosóficos clássicos, seja
repensada na sua impossibilidade.
Ainda caminhando com Barthes, em seu questionamento sobre o poder
de representação da literatura, reproduzimos o seguinte excerto:
Desde os tempos antigos até as tentativas da vanguarda, a
Literatura se afaina na representação de alguma coisa. O quê?
Direi brutalmente: o real. O real não é representável, e é
porque os homens querem constantemente representá-lo por
palavras que há uma história da literatura. (B
ARTHES, 1978: 22).
91
Mutatis mutandis, não é forçoso afirmar que o discurso do jornalismo é
articulado tal como as narrativas literárias e ficcionais. Do mesmo modo que o
realismo literio, conforme mostra Barthes em suas alises de contos, a
televisão, com seus programas jornalísticos, procura incessantemente a
representação desse real, considera-o narrável, aposta no referente como
atestação de verdade, amarra-se aoss do fato, do ocorrido, do referente. Mas
o referente é traiçoeiro. Onde se acredita que ele poderia ter uma existência
autônoma da linguagem, ele já surge como produto dela. Segundo Lacan, o
arbitrio na relação do significante com o significado se dá porque:
Os efeitos do significado têm o ar de nada terem a ver com o que
os causa. Isto que dizer que as referências, as coisas que o
significante serve para aproximar, restam justamente
aproximativas - macroscópicas por exemplo. (1985: 30).
A televisão deixa, no caminho de seu trabalho diário, rastros de que esse
real não está lá. Toda uma mobilização de instrumentos e estratégias, pprios
do fazer (tele)visivo, procura apresentar o que não está pré-dado como
estivesse socialmente organizado. Essas estratégias podem ser notadas, entre
outros aspectos, nas observações abaixo:
A medião desses instrumentos opera pelo apagamento de
fatos e colocação de um real como apreensível e descritível
diretamente, constituindo, então, um efeito de real. Esse efeito
torna o “real” não mais que um significado formulado,
arbitrado por trás da aparência tomada como inquestionável
do referente. Fazem parte dele os índices, significantes que
delineiam o caráter de uma personagem, sua identidade,
atmosfera e estado de espírito; os informantes, que são
significantes que servem para situar no espaço e no tempo; a
catálise, que é a função cronológica pela qual se operam a
distensão e a compressão temporal presentes no tempo da
narrativa. A “ilusão referencial”, atrelada à suposição de um
real auto-suficiente e passado por completo, sem mediação
simbólica, é um dos fatores que permitem o verossímil e a
credibilidade jornalística, por mais maquiados que eles sejam.
Os recortes e escolhas dão margem à fugacidade na abordagem
dos temas por parte do jornalismo. (G
OMES, 2002: 34).
92
Ancorada na imagem, a televisão ampara-se na suposta supremacia do
referente para que ele, como num efeito mágico, apague algo que é fundante do
veículo: criar, organizar e construir fatos ao mesmo tempo em que funda a si
próprio. Tornou-se lugar-comum a afirmação de que a mídia transpõe um fato à
categoria de acontecimento. Insistentemente, o vculo procura minimizar esse
papel, circunscrevendo-se no campo da mediação, o que não parece ser a
melhor solução, pois mediar possui uma intenção grandiloqüente, que é a de
articular a realidade por meio de discursos, e tecer o social:
Mesmo que a maior potencialidade da televisão seja a sua
possibilidade de realização de transmissão direta, em tempo
real, está sempre presente, em qualquer um dos produtos
televisivos, seu cater de mediatizão. Afinal, os textos-
programa não são o real. (...). A alteração de cores, a mudaa
de dimensões, a ausência de cheiro, de temperatura
constituem-se numa redução muito grande dos atributos do
mundo representado, pois, a rigor, somente os traços sonoros e
visuais são imitados, e tais tros, assim selecionados e
transpostos, pouco representam em relação à riqueza do
mundo material: são figuras, não objetos do mundo. Nessa
perspectiva, está-se frente a uma construção de discursos; não
mais ao real, mas a uma realidade discursiva. (B
RAGA, 2003: 54).
Perspectivados de maneira diferente, outros enfoques procuraram pensar
o par real-ficção na TV. Slavoj Zizek, apoiado em aportes psicanalíticos (real,
semblante), utiliza também o termo efeito de real para se referir ao veículo. A
princípio, para ele, a paixão pós-moderna pelo semblante termina numa volta
violenta à paixão pelo Real:
A verdadeira paixão do século XX por penetrar a Coisa Real
(em última instância, o Vazio destrutivo) através de uma teia
de semblantes que constitui a nossa realidade culminou assim
na emoção do Real como o “efeito” último, buscado nos efeitos
especiais digitais, nos reality shows da TV e na pornografia
amadora, até chegar aos snuff movies. Esses filmes, que
oferecem a verdade nua e crua, são talvez a verdade última da
Realidade Virtual. (Z
IZEK: 26).
93
A coisa real que a televisão oferece significa, na verdade, evitar se
confrontar com o real que sempre escapa ao encontro marcado. Zizek nos
mostra, com os exemplos dos filmes norte-americanos, que este real é encenado,
evocado, teatralizado, mas sempre é evitado. Assim, ele diz:
Deve-se então rejeitar a “paixão pelo Real” em si?
Definitivamente não, pois, uma vez adotada essa postura, a
única atitude que resta é a da recusa de chegar até o fim, de
“manter as aparências”. O problema com a “paixão pelo Real”
do século XX não é o fato de ela ser uma paixão pelo Real, mas
sim o fato de ser uma paixão falsa em que a implacável busca do
Real que há por trás das aparências é o estratagema definitivo
para evitar o confronto com ele. (Id. Ibid.: 39).
Essa falsa paixão pelo real parece se aplicar à tarefa televisiva de ser um
veículo de transparência plena. Ao mostrar imagens diversas, ela oculta o seu
sítio, a arena onde está localizada. Distinguindo a Paleo e a Neo TV, Umberto
Eco faz correlação de características que, a partir da noção de representação,
mostram a TV como outra coisa que não um meio de representação,
fragilizando o ideal de transparência que ela ostenta. Na Paleo TV havia intento
de ocultar o aparato técnico com o intuito de gerar a impreso de realidade,
enquanto a Neo procura essa impressão justamente pela exposição do artifício,
com a presença de microfone, grua e câmera. O que prevalece é a encenação, ou
seja, situações preparadas desde o início, como debates, por exemplo. (ECO,
1983: 98).
O apelo à realidade, ao real, ostensivamente presente, principalmente,
nas matérias é uma tentativa imaginária de apagamento do trabalho simbólico,
com a imagem jogando papel importante. A supremacia do fato, do que
aconteceu, do dado preexistente, foi, desigual e diferentemente, aceita pelas
chamadas teorias da comunicação:
Todo recurso mais ou menos pomposo ao Fato pode ser
também considerado como o sintoma de uma desavença do
sujeito com o simbólico; reclamar agressivamente em favor do
Fato unicamente, reclamar o triunfo do referente, é mutilar o
94
real de seu suplemento simbólico, é um ato de censura contra o
significante que desloca o fato, é recusar a outra cena, a do
inconsciente. (B
ARTHES, 1977: 44).
r em relevo essa outra cena, a do inconsciente, como lembra Barthes,
nos fez deslocar as reflexões teóricas aqui empreendidas para outro sítio, pois
as teorias da comunicação, como lembra Gomes, evitam pensar a
“incompletude orginária, a falta que marca o real como impossível (...).
Contemplá-la assim é justamente o que evitamos, pois significa colocar em
suspensão a maioria de nossos confortáveis fundamentos, de outra forma tão
bem justificados”. (2001: 44). E, nas fronteiras da televisão, o Fato tem a imagem
como prova inconteste de sua plena autonomia. “É verdade, eu vi os trens se
chocando, passou na televisão”. Ela, a imagem, é a testemunha mor do que se
passa no mundo. Tal princípio torna-se ainda mais pungente com a instância da
imagem ao vivo, traço peculiar da TV frente a outros dispositivos visuais.
3.2 IMAGEM
21
(AO VIVO): MARCA REGISTRADA DA TV
No mundo de hoje, em que o bombardeio visual
tende a ofuscar mais e mais os limites entre o real e
a fião, é extremamente oportuna a reflexão sobre o
espetáculo das imagens e seu papel na veiculação de
mensagens invisíveis, que entram pelos olhos e
alcançam o cérebro sem ser notadas.
Adauto Novaes
Infografia, píxel, não-linearidade, imagem digitilizada, tecnoimagens,
imagem eletrônica, holografia, sintetizadores, fractais, imagens-máquina.
22
21
A divisão clássica nos diz que existem dois domínios da imagem. O primeiro é o domínio das
imagens como representações visuais: desenhos, pinturas, gravuras, fotografias, e as imagens
cinematográficas, televisivas, holo e infográficas. O segundo diz respeito ao domínio imaterial
das imagens: nele, as imagens aparecem como visões, fantasias, imaginões, esquemas,
modelos ou, em geral, como representações mentais. Santaella e Nöth elaboram reflexões a
respeito dos dois domínios. Cf. S
ANTAELLA, Lucia & NÖTH, Winfried. Imagem: cognição,
semiótica, mídia. 4ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2005.
22
Termo que titula a coletânea organizada por PARENTE, And. Imagem-máquina: a era da
tecnologia do virtual. Rio de janeiro: Editora 34, 1993.
95
Essas atribuições (adjetivações) conferem à imagem uma identidade mutante,
colocando-a em posição de destaque na sociedade contemporânea, em que a
superabundância de dispositivos visuais torna o mundo legível porque vivel
(cf. BUCCI, 2002). Desde o nascer ao pôr do sol as imagens nos solicitam; como
se costuma dizer, antes tínhamos que “sair” para contemplar as chamadas
imagens naturais (sair para ver as estrelas, apreciar objetos da natureza), hoje
não, são elas, as imagens, que chegam até a nós de maneira excurciante, somos
assaltados por vários tipos de dispositivos imagéticos, o que faz com que o uso
do termo (imagem) implique em algumas delimitações. De acordo com Machado
“a cada novo dia, multiplicam-se em progressão geométrica as telas de vídeo ao
nosso redor: são televisores comuns recebendo a programação que está no ar,
ou reproduzindo fitas pré-gravadas em circuito fechado” (1996: 45). Em seu
mais novo livro, Tela legal (2007), Lipovestsky afirma que vivemos rodeados por
telas:utilitárias ou lúdicas, as telas nos acompanham em todos os atos da vida
e mesmo antes do nascimento: a ecografia pré-natal. (SOLÉ, FOLHA DE SÃO
PAULO, 23 de dezembro de 2007).
Mas, obviamente, para além das utilizações nos sistemas midiáticos e
telemáticos dos nossos dias, a imagem compõe um lastro histórico que marca a
própria história da humanidade (antes dela, som
23
figurava como meio de
expressão), ela funda um modo próprio de representação, com todas as reservas
que temos com o termo. Afrescos, pinturas, gravuras, e, mais recentemente,
fotografia, filmes, vídeo e imagens de síntese compõem um patrimônio
imagético em que
O espectro é largo, mas normalmente tomamos como referência primeira
as cavernas onde eram desenhados animais e objeto por meio de petrogramas e
petroglifos. A despeito de ter surgido antes da Gaxia de Gutenberg, o campo
23
Alguns estudiosos afirmam que asica e canto podem ter surgido meio milhão de anos
antes da fala.
96
de reflexão sobre a imagem só veio a se consolidar no século XX, asseguram
Santaella e Nöth.
O dispositivo maquínico provoca a constrão de um campo atinente às
reflexões sobre a imagem, ainda sem fisionomia própria. Reivindica-se um
campo epistemológico denominado cultura visual , onde, de acordo com Josep
Domènech (2000), confluiriam antigos saberes até então genéricos e dispersos.
Os reordenamentos e redimensionamentos da sociedade o intenso fluxo de
informações apressaram a emerncia de uma gestão da imagem que possa
confluir arte, ciência e tecnologia. A presença de novas e velhas tecnologias
possibilita que a imagem componha uma outra ordem epistemológica, graças às
imbricações da sociedade tecnoimagética que dão a ela uma função nuclear.
Nitidamente transmudada pela técnica, a dimensão imagética não é apenas
mais um elemento que dinamiza a prática social, ele é o elemento que possibilita
o movimento do mundo nos moldes que se nos apresenta.
É certo que esse mundo vem sendo gestado em tempos bem anteriores ao
nosso. Já no Quatrocento, as máquinas do visual são construídas para conceber
e fabricar imagens dos pintores/engenheiros. As construções ópticas do
Renascimento (as portinholas de Albrecht Dürer, a tavoletta de Filippo
Brunelleschi, a variedade de câmara escura [camara obscura]), com o modelo
perspectivista monocular sobre o qual estavam assentadas marcam uma época.
Os eixos maquinismo-humanismo, semelhança-dessemelhança e materialidade-
imaterialidade despontam com a dimensão maquínica da imagem, que passa a
organizar a cena do mundo para o olhar.
Figura 1. Tavolett
a
de Brunelleschi Figura 2. Câmara obscura, Athanase
Kircher, 1646
97
O processo de feitura de imagens via máquinas já é, para o homem do
Quatrocento, o coroamento de um exercício ancestral. A primeira imagem que
o homem faz de si próprio é aquela em que ele foi atacado por um bisonte
ferido, na Gruta de Lascaux.
A cena mostra um bisonte com o ventre
rasgado, os intestinos expostos, deixando ver que
acabara de ferir ou matar um homem. Segundo
prinpios freudianos, o homem primitivo
demarcou nas primeiras imagens a questão do
nero: a distinção do homem e da mulher.
Um dos conceitos mais antigos e difundidos de imagem é o de Platão que
diz:chamo de imagens em primeiro lugar as sombras, depois os reflexos que
vemos nas águas ou na superfície de corpos opacos, polidos e brilhantes e todas
as representações do gênero. (apud JOLY, 1994: 13). Régis Debray nos informa
que a veiculação de imagens vinculou-se, inicialmente, com a magia e a religião,
com a morte e a vida, tornando-se ponto-chave da questão religiosa. Utilizando
as terminologias simulacrum, espectro, imago e figura, Debray situa a imagem
(seja esculpida ou pintada) como mediadora entre os vivos e os mortos, os seres
humanos e os deuses, entre uma comunidade e uma cosmologia. (1997: 14). A
propósito, já diria Bachelard, “a morte é, antes de tudo, uma imagem e
permanece uma imagem”. (apud DEBRAY: 27). E vai ser a partir de observações
Fi
g
ura 3. Tavoletta 2 Fi
g
ura 4. Tavolleta 3
98
funerárias que Debray situa a gênese da imagem. O relato das características de
sepulturas e túmulos é bastante sugestivo:
Sepulturas do Aurignaciano de ocra sobre ossos – 30.000.
Composições radiantes de Lascaux: um homem de barriga para
cima, com cabeça de pássaro, um bisão ferido, cavalos fugindo
debaixo das flechas – 15.000. Insistente retorno, com duração
milenar, do simbolismo conjugado da fecundidade e da morte:
a azagaia-pênis em face da ferida-vulva. Cadáveres pintalgados
da idade do bronze, congelados no solo de Altaí, crânios com
órbitas. Ornadas de hermatita – 5.000. Mastabas menfitas e
hipogeus do Alto Egito com seus sarcófagos dotados de
grandes olhos pintados (...). Túmulos reais de Micenas com suas
máscaras funerárias em ouro... (Id. Ibid.)
Na trilha da história, verificamos que a imagem esteve presente no
mundo egípcio por meio da arte, envolvida também com problemas religiosos.
No mundo grego, o homem pela primeira vez expressa as suas emoções
servindo-se da arte, da pintura em cerâmica, da escultura e dos afrescos nos
túmulos. No Império Romano, a imagem gera uma idéia universal do homem e
procura expressar a realidade, sobretudo, nos afrescos dos grandes pintores e
escultores. Na Idade Média, ela atua como elemento relevante, é um meio de
expressão capital para a idolatria católica, e vai se expandindo até atingir, bem
mais recentemente, um dos seus grandes marcos: a invenção da fotografia e do
cinema.
Para Debray, esse foi um processo longo, que “durante milênios, as
imagens levaram os homens a entrar em um sistema de correspondências
simbólicas na ordem cósmica e na ordem social, muito antes que a escrita linear
viesse compor as sensações e as cabeças”. (1994: 54). Neste contexto, continua
ele, a imagem, na sua evolução histórica, começou a pensar fora de nós. Depois
ela passou a pensar em nós, comandada pela linguagem que lhe é própria.
Hoje, com o processo de industrialização, parece que a imagem pensa em nosso
lugar, decide conosco e estabelece vínculos mediadores fortes.
99
A inserção da imagem, gerida pela supremacia da máquina, vem
causando mal-estar e inquietações, posto que ela contribui fortemente para os
reiterados questionamentos sobre o estatuto do humano e parece pôr em xeque
a sua própria identidade. O fardo do imperativo tecnológico
24
foi sentido por
diversos tricos. (Baudrillard nomeia as imagens tecnológicas de “diabólicas,
perversas, pornográficas” [1997: 32]).
A cultura das dias
25
se faz numa sobreposição de imagens que, apesar
de se diferenciar da produção feita em tempos remotos, herda, de certa forma,
algumas concepções que acompanharam a gênese e desenvolvimento do
dispositivo imagético. O delicado tema da representão e do duplo é
reatualizado sob ricos e variados enfoques. Pode-se inferir que as noções de
objetividade e neutralidade legitimadas, aparentemente, pela construção de
imagens no espaço jornalístico são caudatárias desses vetores. A matéria do real
e seu duplo vêm despertando inquietações, críticas severas, intervenções
laudatórias, porque traz embutida a pretensão de réplica, de imitação, artifício,
ainda muito utilizado no jornalismo, mesmo com a consagração de técnicas de
edição que alteram o processo inicial das imagens. Não podemos negligenciar o
fato de que o processo atual de produção do discurso imatico vem sofrendo
metamorfoses operadas pela tecnologia e por ela continuamente (re)inventado.
Sobre isso adverte Santaella:
Nessa mesma medida, a ilha de edição é recurso imprescindível
para a montagem da multiplicidade de fragmentos da imagem
videográfica. Quanto mais essa imagem foi se sofisticando, no
24
A conflncia entre arte, ciência e tecnologia sentiu o impacto dessas mudanças. Se é
indiscutível tal associação, resta alguns acertos no que diz respeito ao modos de como fa-la.
Os burburinhos conceituais, as demarcações equivocadas, atributos impróprios, provocam uma
certa confusão nesses campos quando vistos a partir de uma unicidade. Em relação a isso,
Machado diz que “existe, sem dúvida, muito de fetiche na atual relação do homem com as
máquinas (...) muitos trabalhos que circulam atualmente exibindo o tulo de vídeo-arte,
computer art ou computer music podem, muitas vezes, não passar daquilo que se costuma
chamar, no âmbito industrial de demo tape, ou seja, um inventário de possibilidades da
máquina, para efeito de demonstração de suas virtudes”. (cf. M
ACHADO, 1996: 13-14).
25
Evoco aqui termo que deu origem ao livro de SANTAELLA, Lucia. Cultura das mídias. São Paulo:
Experimento, 1995.
100
entanto, quanto mais recursos de formação, e mesmo de criação
eletrônica da imagem foram se juntando aos recursos de
captação da imagem, mas foram também se sofisticando as ilhas
de edição para permitir a convivência, se não pacífica, pelo
menos democrática, das imagens de gêneses diversas. E isto a
o ponto de estarmos hoje chegando ao ponto da mais
formidável reviravolta na face mimética da história das imagens
técnicas. (1997: 182).
Apesar de as novas tecnologias transmutarem a natureza das imagens
fazendo cair por terra ou, ao menos, tornando frágil o imperativo mimético, o
jornalismo ainda as produz procurando torná-las correlata do seu referente. A
disposição, às vezes, excessiva de fotos e outros recursos visuais e gráficos nos
jornais impressos e a supervalorização das imagens ao vivo na televisão,
deixam ver a inscrição do jornalismo no campo da referência, da testemunha
autorizada, registrando fragmentos do “real”. Segundo Wittgenstein:
“representação significaria um ato substitutivo, incluso no ‘re’, que nos remete a
uma rememoração, enquanto apresentação nos fala do mundo colocado pelo
ato de significá-lo”. (apud GOMES: 2001, 36). Freitas, na esteira de Deleuze, vai
priorizar a repetição, levando em conta que a base que sustenta o ideal de
representação constitui uma visão de linguagem utilitarista,uma bipartição
no princípio da representação entre mundo/linguagem pois “se as coisas são
como as coisas são” (FREITAS: 1999:11) parte-se do entendimento de que “na
presença da coisa representada nos asseguramos, como consciência, que o que
vemos nas imagens nada mais é do que representação e que existe além, atrás, o
representado, o real”. (Id. Ibid.: 11).
Fazendo associações ente representação e ilusão, Aumont diz que “a
ilusão não é a finalidade da imagem, mas esta a tem de certo modo como
horizonte virtual, senão forçosamente desejável” (op. cit.: 103). As
considerações de Gomes, Santaella e Freitas estão no mesmo diapasão das de
Aumont; trazem embutido o seguinte questionamento: até que ponto a
representação pode ser considerada correlata do que diz representar? De
101
partida, o referido autor assegura que a noção de representação está carregada
de vários estratos de significação que foram acumuladas ao longo da história de
tal modo que resulta difícil atribuir-lhe um sentido único, universal e eterno.
Ainda segundo Aumont, existem em várias áreas (representação teatral,
fotogfica, pictória) difereas consideveis tanto emvel de status como de
intenção.
Nesse sentido, Aumont classifica a representação como arbitrária (porque
na instituição de um substituto há muito de arbitrário que se baseia na
existência de convenções socializadas) e motivada, ressaltando que embora
andem juntos, representação, ilusão e realismo são termos distintos. Assim ele
esclarece:
A representação é o fenômeno mais geral, o que permite ao
espectador “ver por delegação” uma realidade ausente, que lhe
é oferecida sob a forma de um substituto. A ilusão é um
fenômeno perceptivo e psicológico, o qual, às vezes, em
determinadas condições psicológicas e culturais bem definidas,
é provocado pela representação. O realismo, enfim, é um
conjunto de regras sociais, com vistas a gerir a relação entre a
representação e o real de modo satisfatório para a sociedade
que formula essas regras. Mais que tudo, é fundamental
lembra-se de que realismo e ilusão não podem ser implicados
mutuamente de maneira automática (Id. Ibid.: 103).
Os efeitos de real e de realidade martelados nesta tese retornam pela
janela. O efeito de realidade designa o efeito produzido no espectador pelo
conjunto de índices de analogia em uma imagem representativa. Já o efeito de
real designa o fato de que na base de um efeito de realidade suposto
suficientemente forte, o espectador induz um ‘julgamento de existência’ sobre
as figuras da representação e atribui-lhes um referente no real. (cf. A
UMONT,
1994: 111). Tanto o efeito de real quanto o de realidade fazem com que o
espectador acredite na realidade do mundo representado/apresentado na
imagem.
102
Esse efeito faz das máquinas de imagem (technè) mediadoras
privilegiadas entre o Sujeito e o Real. Se as máquinas do Renascimento são
máquinas de visão simples, cuja distância entre o Sujeito e o Real é
relativamente pequena (vide a tavoletta de Brunelleschi), “quina pvia,
autorizando em seguida plenamente o contato físico do desenhista com a
materialidade da Imagem” (AUMONT, 2004: 38), as máquinas contemporâneas,
cuja origem está na imagem fotográfica, não mais se limitarão a captar,
prefigurar ou organizar a visão, elas não se destinam a pré-ver o mundo, mas a
inscrevê-lo: “o gesto humano passa a ser um gesto mais de condução da
quina do que de figuração direta” (Id. Ibid.: 38).
A aura que revestia a produção das imagens se esboroa,
irreversivelmente, com a fotografia. Mas, o advento do dispositivo fotográfico
atendeu, por outro lado, o desejo humano de “representação” da realidade com
altos índices de perfeição, aplaudida por muitos. A fotografia se adequa ao
surgimento de uma sociedade que começa a se habituar com o visual, como
veremos adiante. O cinema, numa escala hierárquica, alcançou um outro
patamar: o da imagem móvel.
Se existem duas coisas que o cinema conseguiu inventar – a imagem em
movimento e a montagem (“as folhas se movem!”, gritam os espectadores do
filme dos irmãos Lumière)
26
– pode-se dizer que a televisão conseguiu
consolidar a imagem ao vivo (tese defendida também por Bucci), consolidando,
em definitivo, a sociedade oculocêntrica. Para Bucci:
a fisionomia da nossa era, tenha a nossa era a fisionomia que
tiver (e ela pode ser muitas, tem a textura, a consistência, a
natureza – e, ao mesmo tempo, a fugacidade, a transitoriedade, a
imaterializada – de uma cena instantânea que reluz dentro dos
limites de um monitor de vídeo. (2002: 29).
26
A imagem em movimento começou engatinhando com o plano-seqüência fixo, mas logo
depois evolui para o pprio movimento da câmera durante a tomada. Tratava-se da descoberta
do travelling, matéria-prima do cinema. O cinema não apenas mostra o movimento, mas
também passa a encarná-lo, é sua consciência moral.
103
A presentificação dos fatos do mundo trouxe várias conseqüências para
as nossas formas de apreensão desse mundo, entre elas, sobressai-se, com vivo
destaque, as noções de tempo e de espaço, sobre as quais não me deterei aqui.
Tentarei apenas apontar que essa dimensão do ao vivo (cobertura diuturna do
Big Brother Brasil, as coberturas ao vivo do Jornal Nacional) está em sintonia com
o princípio de fascinação das imagens (ser fascinado, lembra Novaes [2005], é o
mulo da distração, é estar desatento ao mundo como ele é). A televisão é a
principal agente de produção de imagens em excesso, de um fluxo inexorável
de que jorra nos lares, transferindo a platéia da cultura do rádio, centrada na
palavra, para a cultura iconogfica, sem dela recuar. Ela é o elo sobre o qual
vamos criando nossos frágeis e fugazes vínculos com o o que vemos, o que nos
olha.
3.3 O OLHO DA TV: O LUGAR DA PESQUISA
Antes de mais nada, a televisão é cotidiana e familiar. Para muitos,
ela é o princípio organizador do tempo, todo dia, toda semana, todo
ano. Como os primeiros campanários católicos, ela pontua as horas do
dia. Como toda liturgia, anuncia os ofícios da semana. Como toda
religião, molda-se sobre o ritmo sazonal do ano. Por essa razão, ela
introduz em cada lar rostos que vão ficando cada vez mais familiares
à medida que os esperamos com hora marcada e que podemos ter a
sensação de tê-los escolhido – se necessário, mudando de canal a todo
momento. A casa se povoa assim de deuses lares, de pequenas
divindades domésticas, amáveis de humor sempre igual,
tranqüilizadoras.(...).
Marc Augé
A comparação de Marc Aunos fornece dicas para refletirmos sobre a
questão. Cotidianizando os relatos, “desprovincianizando” o mundo, o “olho
eletrônico” demonstrou muito rapidamente capacidade para se instalar em
vários lugares, os mais recônditos, de se espraiar no tecido social, de absorver e
104
homogeneizar as expectativas dispersas. Os programas nos envolvem, nos
encantam e nos aterrorizam, como ressaltou Freitas.
27
Com alguns deles temos
uma relão de amor e ódio.
Muito já se disse que ela, a TV, nos confere as identidades fluidas que
nos habitam, constrói os consensos efêmeros com os quais construímos o
sentido para a vida de todos os dias, é o “espelho social” que reflete a sociedade
que a produz e é produzida por ela, é um agente socializador. Merleau-Ponty
aludiu à figura do pintor como uma espécie de espelho do mundo,
28
atribuição
que é feita hoje à TV: “janela da alma, espelho do mundo”.
A telerrealidade e telepresença instituídas pela televisão são tributárias
dessas noções. A telerrealidade organiza os fatos e ações humanas por/através do
vídeo, “é a sensação de que o mundo está quase presente ali diante dos olhos”.
(SODRÉ, 1987: 37). A presença física/temporal/espacial é redimensionada. O
distanciamento torna-se uma marca das interações com o meio eletrônico,
propondo reordenamentos em visões clássicas nas quais a comunicação só
poderia ser exercida por sujeitos in praesentia.
O mundo de imagens, processado pelos meios eletrônicos, forjou a
construção de novos/outros estatutos que redefinem o código social. Calvino,
em Seis propostas para o próximo milênio, diz que temos a “transformação do
mundo em imagens, multiplicando-o numa fantasmagoria de jogos de espelhos,
imagens que são destituídas da necessidade interna que deveria caracterizar
toda imagem, como forma e significado, como força de impor-se à atenção,
como riqueza de significados possíveis.”
27
Ao analisar alguns programas populares de TV, a partir dos pressupostos da mitologia do
escandaloso, Freitas vai dizer que a recepção desses programas oscila entre a adesão e a repulsa.
Essas considerações foram feitas na disciplina Mídia e mitologia do escandaloso, ministrada por ela
em 2001 na Escola de Comunicações e Artes da USP.
28
Cf. MERLEAU-PONTY, Maurice. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2004.
105
Assim como Calvino, repetimos à exaustão que vivemos imersos num
mundo repleto de imagens, a tal ponto de cunharmos a expressão civilização da
imagem para o nosso século.
No entanto, para Aumont, tal atribuição precisa ser reconsiderada. Para
ele, a despeito da “multiplicação aparentemente infinita da imagem, de sua
intensa circulação, de sua pregnância ideológica, em suma, de sua influência”
(1995: 31), é necessário ter cautela ao se definir o século XX (e XXI) como o
século da imagem. Para ele, o nosso século continua sendo o século da linguagem,
pois “essa multiplicação das imagens, no fundo, é apenas um epifenômeno se
comparada à outra alteração que, produzida ao longo dos séculos, afetou o
próprio status da imagem” (Id. Ibid.: 314). Aumont enfatiza que a verdadeira
revolução das imagens (se chegou a acontecer) “está distante, atrás de nós, na
época em que, ao reduzirem-se progressivamente a mero registro – por mais
expressivo que fosse – das aparências, perderam a força transcendente que
haviam possuído”. (Id. Ibid: 314). O que há, na visão do autor, é uma
multiplicação de imagens em infinitas possibilidades.
Essa multiplicão exponencial de imagens tem na televisão um suporte
importante, pois ela se converteu no único território social partilhado em
grande escala. Ela habita o imaginário de todos e recobre os acontecimentos
diversos que nos informam sobre nós, como indivíduos e coletividade, que nos
marcam perpetuamente.
Damo-nos conta dessa conversão quando recordamos determinados
acontecimentos: o choque dos aviões em 11 de setembro de 2001, o seqüestro do
ônibus da linha 174 no Rio de Janeiro (2000), a cobertura das guerras do Golfo
(1991) e do Iraque (2004), o flagrante do assassinato de uma pessoa por um juiz
em um supermercado no estado do Ceará (2004). Eventos que,
indubitavelmente, mostraram a potência televisiva.
Pelo que foi (o primeiro meio de comunicação eletrônico que aglutinou
rias matrizes discursivas), pelo que é (um veículo que constrói e demarca a
106
cena pública, com significativa presea nos lares brasileiros) pelo que poderá ser
(a TV digital anuncia um outro patamar de interão com o meio; a transmissão
via computador fará com que tenhamos maior ingerência sobre a
programação), a televisão tem sido fonte inesgotável para as pesquisas de
comunicação e de outras áreas afins. Desde os anos 50, não cessam de ser
produzidos vertiginosamente estudos empenhados em avaliar o veículo, a
partir de várias perspectivas, escolas e disciplinas. Mesmo com as chamadas
novas tecnologias (NTs) a televisão continua nos desafiando. As perplexidades,
os descontentamentos, os deslumbramentos, os ataques, as defesas, as
apologias, o tom catastrófico em que gravitam muitas dessas pesquisas nos
fazem notar que a importância da TV extrapola o âmbito de ser um meio
eletrônico sincrético. Para além disso, o veículo foi considerado um divisor de
águas na constelação dos meios de comunicação, a despeito de outras mídias
que o sucederam.
A TV é vista como a grande protagonista das mudanças no cenário da
comunicação, a vedete que alterou significativamente as nossas formas de ser e
de estar no mundo. A chamada “revolução da comunicação” – processo que
teve início com a imprensa de Gutenberg, mas que se tornou agudo na década
de 1950 – foi tributária da consolidação do dispositivo televisivo no mundo.
Não é à toa que alguns estudiosos assinalam que a TV constitui-se como o
grande meio do século XX. Flagramos algumas passagens que falam a respeito:
Costuma-se dizer que a televisão é o meio hegemônico por
excelência da segunda metade do século XX e, de fato, teorias
inteiras sobre o modo de funcionamento das sociedades
contemporâneas têm sido construídas com base na inserção
desse meio nos sistemas políticos ou econômicos e na
molduragem que ele produz nas formações sociais ou nos
modos de subjetivão. (M
ACHADO, 2000: 15-16).
A televisão, ao lado do computador, talvez seja a mais
importante invenção doculo XX e provavelmente do próximo
século. Facilmente definível, enquanto veículo eletrônico, com
107
características técnicas muito específicas, a TV não é tão
nitidamente conceituável, se pensarmos em seus papéis, seu
alcance, e sobretudo nos efeitos que possa exercer sobre os
indivíduos com que interage, pois a TV traz em seu bojo
contradões, imprecisões e causa grande inquietude. (R
OCCO,
2001: 241).
Na segunda metade doculo XX, a televisão redefiniu, em
escala planetária, as formas como se organizam a comunicação
e os vínculos sociais nas mais diferentes culturas. Sua presença
no cotidiano de grande parte da população mundial produziu
não apenas novos modos de sociabilidade como também uma
série de efeitos sobre a subjetividade. (K
EHL, 2001: 133).
Os marcos que a televisão fincou no século XX, e que reverberam até
hoje, constituem um ponto de desenlace para o trabalho, pois considero que a
TV é o grande meio deste século porque fascina, e fascina porque nos captura e
nos intercepta pela tela, a sua principal virtude. Tópico que irei explora linhas
adiante.
Palmilhando a trilha dos argumentos que justificam a centralidade do
veículo, ts deles podem ser recortados do vasto território por me parecerem
essenciais: 1) a TV confirmou a hegemonia do audiovisual, ensaiada com a
pintura e o cinema, que nos fala das transformações vividas pela humanidade
com relação à expressão, às formas de construir a realidade; 2) o veículo
favoreceu a coexistência de vários dialetos, a superposição de mensagens, ao
mesmo tempo em que é deles resultado. As maneiras de fazer e dizer da
televisão organizam também a sua construção. Uma das particularidades da TV
é a sua “composição”, decalcada das materialidades discursivas diversas, com a
imagem orquestrando a cena da enunciação.
Até a instauração do audiovisual, as formas de comunicação
caminharam do gesto à palavra, dos suportes da mídia primária (corpo) aos
suportes de mídia secundária (impressos), que aumentaram a possibilidade de
comunicação a distância. A mídia terciária, onde a televisão está situada,
108
extingue definitivamente os limites espaciais. Para Castellls, os grandes
momentos dessa história podem ser sintetizados da seguinte maneira:
3.000 anos de evolução na tradição oral e na comunicação não-
letrada;
ao redor do ano 7.000 a. C., ocorreu na Grécia uma grande
invenção: o alfabeto (...) A sociedade atingiu um novo estado
mental, “a mente alfabética”, que levou à transformação
qualitativa da comunicação humana; a invenção e
disseminão da imprensa e a fabricão de papel (...). No
Ocidente, a imprensa promoveu a infra-estrutura mental para
a comunicação cumulativa, baseada no conhecimento (...); a
cultura audiovisual aparece no século XX, primeiramente
com o cinema e o rádio, depois com a televisão, suplantando
a influência da comunicação escrita nas almas e nos corações
das pessoas (...). A integração de vários modos de
comunicação em uma rede interativa. Ou, em outras palavras,
a formação de um supertexto e uma metalinguagem que, pela
primeira vez na história, integram num mesmo sistema as
modalidades escrita, oral e audiovisual da comunicação. (2003:
45). [grifos meus].
A II Guerra Mundial foi um marcador histórico que redefiniu o papel das
mídias,
29
e 3) a TV tornou-se o eixo de funcionamento da comunicação. Ela
provocou redimensionamentos nos meios eletnicos e impressos já existentes,
como o rádio e a imprensa. O primeiro deixou de ser central, mas tornou-se
mais flexível. Os jornais e revistas se especializaram, com a pretensão de
explorar as informações transmitidas pela TV.
Malgrado esses esclarecimentos, alguns questionamentos e/ou
desconfianças não param de nos interpelar. Como disse Drummond de
Andrade, no poema Áporo, “um inseto cava/ cava sem alarme/ perfurando a
terra/ sem achar escape”. E continuo cavando, pois creio que a coexistência de
várias linguagens e a readequão de mídias como o rádio e os jornais
impressos, provocadas pela dinâmica televisiva, é o pano de fundo de uma
questão fundante. Poderíamos, assim, nos lançar à procura de diferentes
motivos além dos já repertoriados? De que modo os novos ares da comunicação
29
Segundo o Oxford English Dictionary a expressão mídia começou a ser utilizada em 1920.
109
foram soprados pela TV? Como ela se tornou apanágio de outra forma de
estabelecer relações?
Soma-se às respostas anteriores um argumento técnico, que é a adoção
do modelo broadcasting, para muitos uma conquista importante. De acordo com
Vilches:
La clave social de las tendencias que le habían llevado a la
definición de broadcasting eran por entonces muy
pronunciadas. Hubo significativamente altas inversiones en el
hogar y las distancias entre estes hogares y los centros de
decisión politica y productiva de la sociedad llegaron a ser
muy grandes. Las broadcasting, como suced con la radio,
tuvieron un inevitable modelo: los transmisores centrales y los
aparatos domésticos. (V
ILCHES, 1999: 19).
As explicações são infindáveis, mas, até onde consegui ir quando da
pesquisa bibliográfica, parece que algo estrutural da TV escapa dos imeros
estudos que foram desenvolvidas a partir de diversos lados. Da mesma maneira
que a comunicação padece de ser pensada no seu aspecto constitutivo, como
vimos no bloco anterior, a TV também sofre com explorações assintóticas, que
nunca tocam o seu cerne. Sinto-me, assim, autorizada a dizer que os estudos
abrigam algumas deficiências, estão em dívida com a televisão em sua
especificidade. Ao que tudo indica, as teorias fazem atalho, apanham a
experiência televisiva no meio do caminho. Não estou, assim, argüindo as
teorias de inúteis, mas propondo abertura de horizontes. Se o discurso da
ciência é sempre construído a partir de reminiscências, de uma anterioridade
faltante, me atenho naquilo que sempre sobra quando o assunto é televisão, que
é inescrutável no cânone das pesquisas acadêmicas.
A mim me parece que no vasto campo de vários tentáculos tecnológicos
(cinema, rádio, jornais impressos, internet etc.) o que garante a centralidade da
televisão é o fato de ela favorecer o ver/olhar/ser olhado a distância. Somos da era
do tele-ver, quase tudo que acontece ao nosso redor, o sentido das coisas e da
vida, se processa frente ao vídeo (internet, sistemas de vigilância). Essa
110
presença marcante da tela nos nossos afazeres e práticas rotineiras torna
possíveis considerações as mais variadas, entre elas a de que o homo sapiens se
converteu, na contemporaneidade, em homo videns.
30
Se é possível fazer-se tais
considerações, é porque vivemos imersos no mundo das imagens pontuadas
pelos dispositivos do ver e do olhar. É como um grande Olho que a televisão se
aloja em nossos lares e nos oportuniza, em seu ritual cotidiano,
representações/apresentações do mundo e de nós mesmos nos foto-grafando,
donde a frase que se consagrou: o livro nós escaneamos, a televisão, ela nos
escaneia. Oportunamente, pode-se objetar que não só a televisão suscita esse
ver/olhar à distância, mas todas as máquinas de imagens – da pintura parietal à
infografia. Insisto que a televisão é o principal emblema desse amálgama pela
sua capilaridade e extensão. Ela capta o espírito do tempo, pois, como lembra
Quinet, a produção do olhar em nossa sociedade atual é privilegiada, porque
vivemos o
cúmulo da sociedade escópica”, “onde não há só o império do
vídeo e da tele-visão e o imperativo do ‘ser visto’, mas também
a utilização da tecnologia científica para fazer existir o olhar,
colocando na prática uma razão paranóica, em que todos se
sentem vigiados, pois na verdade essa possibilidade está
permanentemente presente. Produção do a-mais-de-olhar na
sua versão de mal-estar da civilização. (2004: 8).
O imperativo da fama, da celebridade e da transparência, o empuxo ao
vídeo (televisão, cinema, deo), o controle policialesco, a produção incessante
de artefatos para vigiar o outro são vistos pelo autor como a representação do
mal-estar na civilização, deflagrada com os objetos a-mais-de-olhar e a-mais-de-
voz. A partir de perspectivas adversas, Adorno, Horkheimer e Benjamin
disseram que o olho representava a forma da sensibilidade moderna, ao passo
que o ouvido, a arcaica.
30
Embora a expressão seja do livro de Giovanni Sartori, ressalto que não me alinho às teses que
ele levanta. A partir de uma visão negativista, o autor engrossa o coro das posições contrárias
ao papel da TV e considera que o meio faz desaparecer a capacidade de conceber idéias claras e
distintas. Cf. S
ARTORI, Giovanni. Homo videns. São Paulo: Edusc, 2001.
111
Como posso abrigar tais considerações no guarda-chuva dos estudos
existentes? O modo de pensar as dias, reflexão dos andamentos precedentes,
requer a tarefa preliminar de revolvermos o campo teórico da comunicação. A
um outro modo de pensar a comunicação corresponde um outro modo de
pensar a TV. Olhando retrospectivamente, dá para notar que as investigações
trilharam caminhos diferentes para chegar ao mesmo destino. A teoria da
agulha hipodérmica, da bala mágica, até os chamados estudos culturais e de
recepção, muito em voga na década 1990, são os principais eixos que balizaram
a produção teórica, os marcos conceituais perpetuamente em voga quando o
assunto é pesquisa televisiva. A maioria das fichas apostadas pelos estudos
televisivos escoa por esse ralo, deságua no leito do mesmo rio. Com freqüência,
as pesquisas enveredam pelos caminhos teóricos consolidados. Como o inseto
de Drummond, o próximo bloco irá tentar cavar outras possibilidades,
esburacar territórios aparentemente impermeáveis.
3.4 TELEVISÃO, ESSA DESCONHECIDA
Tomo emprestado o nome do livro de Júlia Kristeva, Le langage, cet
inconnu,
31
para titular esse bloco. A princípio, o título pode causar embaraços,
pois parece desautorizar os estudos existentes, vincular-se a uma retórica da
tabula rasa, da ruptura. Longe disso, o título procura realçar a forma significante
da televisão, renunciada pelas teorias usuais. Na busca de pares para essas
articulações, encontro afinidade em Machado. Também para ele, mesmo sendo
o meio hegemônico do século XX, a televisão permanece desconhecida, uma vez
que faltam estudos que “analisem a forma significante dos programas”; no mais
das vezes, ela é percebida “vista pura e simplesmente como mercantilização
generalizada da cultura”. (2001: 10).
31
Curiosamente, o livro foi traduzido para o português como História da Linguagem.
112
Cumpre dizer que a despeito de ser um meio que nos convida
incessantemente a compreendê-la, Vilches lembra que nos seus primeiros anos
de vida a TV era apenas um sistema que enviava e recebia sinais. Resultou de
uma investigação científica e tecnológica da era eletrônica; a sua genealogia está
na junção do telégrafo e do telefone. Desde 1884 foi ensaiada com o telescópio
elétrico de Paul Nipkow.
O alcance, objetivo, natureza, normas e regulação do veículo não eram de
conhecimento nem mesmo de seus construtores. A televisão foi instalada a
partir da década de 1930, mas produzida em massa após 1945, tendo como
momento decisivo de expansão o final da Segunda Guerra Mundial. Nasce
como um serviço público em 1936 na Europa e, em 1939, nos Estados Unidos.
David Sarnoff, presidente da RCA, diretamente da feira de Nova York,
prenunciou que a TV iria ser tão popular quanto o rádio. Foi ridicularizado pela
afirmação. Oficialmente, John Logie Baird é tido como o pai da televisão.
Através do protótipo de câmera que ele mesmo inventara, John transmitiu
imagens de seu laboratório para uma platéia composta de cientistas em
fevereiro de 1926.
De veículo que nasce de forma “descomprometida”, sem se vincular a
uma necessidade concreta, a TV torna-se decisiva para a formação da opinião
blica. A auncia de funções próprias acelera a preocupação do poder
político e econômico, antes mesmo de o vculo ser objeto de preocupação das
pesquisas acadêmicas.
O alcance e a preponderância do veículo foram os motivos pelos quais o
Estado, institutos acadêmicos e de pesquisa de opinião passaram a vê-la com
especial atenção. Mesmo deixando para trás um amplo campo de estudos,
podemos tangenciar as principais tendências que se delinearam a partir daí.
Embalada pelas teorias sociológicas, a década de 1950 é vista como a fase
da teoria dos efeitos, fortemente marcada pelo estudo das intencionalidades e
do poder ilimitado dos produtores de mensagens televisivas.uma crença
113
pia de que as mensagens exercem significativa influência sobre o
comportamento das pessoas. Nos anos 60, a preocupação se volta para a
discussão das mediações/usos e gratificações. Foi um período em que houve
uma relativização do poder exercido pelos meios audiovisuais. A psicologia foi
disciplina central para os postulados dessa teoria, que tinha como princípio o
voluntarismo dos indivíduos: as pessoas tendem a rejeitar o que lhes produz
incômodo. Os anos 70 estiveram sob a égide da análise da mensagem: o objeto
de estudo desloca-se dos produtores e dos públicos para a mensagem. A análise
estrutural é a base metodológica de investigação desses estudos. Nos anos 80,
emergem as preocupações com os públicos em suas especificidades: os estudos
começam a se interessar pelas diversas possibilidades de compreender as
mensagens televisivas. A relão entre os textos televisivos e os sujeitos é marca
desses estudos. Nos anos 90, entra em cena a intrincada relação das lógicas
culturais do consumo com as lógicas comerciais da produção. Pesquisadores
como Canclini, Orozco e Martín-Barbero procuraram observar os modos pelos
quais essa articulação se dá.
Resumidamente, Machado categoriza as observações em torno da
produção televisiva em duas linhagens teóricas: adorniana e mcluhaniana; os
que se filiam na primeira linhagem concebem a TV como congenitamente má,
ao passo que os da segunda linhagem a consideram como congenitamente boa.
Dois grupos de escritores vocalizam essas vertentes opostas: o livro
Televisão (2001), de Pierre Bourdieu, e Homo videns (2002), de Giovanni Sartori,
podem ser catalogados na linhagem adorniana, ou pessimista; os estudos de
Fuenzalida e Rey, podem ser ajustados à linhagem mcluhiana, ou otimista.
Para os teóricos da primeira vertente a televisão é o pior mal que a civilização
conseguiu reproduzir, ela afeta o pensar, ameaça o senso ctico, reduz a
intelectualidade, é corrosiva do pensamento e da reflexão. A rigor, reavivam-se
as antigas acusações. Não raro encontramos nos fichários de bibliotecas
pesquisas contemporâneas que têm como perspectiva tendências presas a
114
aspectos macroestruturais, alçadas em vertentes de cunho mercadológico ou em
discursos de escolta que apontam para os efeitos negativos do meio para a
sociedade.
Vilches vê com cautela e ponderações as cticas e análises que observam
a TV a partir dos prejuízos culturais, do processo de alienação e dos efeitos
danosos que ela possui junto aoblico infanto-juvenil e outros segmentos. Ao
invés de avaliar negativamente a televisão, ele questiona se ela não seria uma
nova forma de cultura contemporânea. (Id. Ibid. 23). Uma pista para seguirmos.
Distanciando-se das duas tendências (adorniana e mcluhiana), Machado
salienta que elaso conseguem contribuir o suficiente para uma alise
pormenorizada do dispositivo televisivo porque partem de um mesmo
princípio: “de uma estrutura abstrata, modelo genérico de prodão e recepção,
sem conseqüências significativas no nível dos programas e, pior ainda, sem
nenhuma brecha para a ocorrência da diversidade e da contradição no âmbito
da prática efetiva”. (Id. Ibid.: 18). Para ele, é necessário que a análise do aparato
televisivo se avizinhe dos gêneros que produz, ou seja, é necessário que o
analista parta daquilo que “efetivamente viu na televisão, do conjunto de
experiências que ele conhece, da sua ‘cultura’ audiovisual”.
De acordo com Machado, não há nada de errado nessas abordagens:
a não ser o fato decisivo de que elas mobilizam todo um
arsenal de recursos analíticos, mas deixam de lado o
importante, que é o exame efetivo do que a televisão
concretamente produziu nestes últimos cinqüenta anos - os
programas - e, sobretudo, o exame detalhado daquilo que,
dentro da imensa massa indiferenciada de material
audiovisual se distinguiu, permaneceu e permanecerá como
uma referência importante dentro da cultura do nosso tempo.
(M
ACHADO, 2000: 36).
As análises macroscópicas, segundo o autor, deixam de fora o
"específico" da televisão, pois aspectos como controle, gerenciamento,
115
financiamento, não são particulares à TV, eles acompanham e fazem parte da
arquitetura dos meios de comunicação.
Além de sair do lugar dos ataques e defesas, o posicionamento de
Machado mostra-se producente. Para ele o contexto, a base tecnológica e a estrutura
externa – aspectos da produção de TV em demasia observados – só têm sentido
se analisados junto às imagens e aos sons, componentes do discurso televisual.
Passados vários anos de exaustivos trabalhos e estudos, surge, assim, uma nova
maneira de pensar a televisão, pois é hora depromover uma mirada
retrospectiva e tentar redescobrir essa arte negligenciada”. (2000: 21).
Na esteira de Machado, outros tons diferentes de voz se fazem ouvir.
Cruzam-se os esfoos de vários pesquisadores na tentativa de redesenhar o
quadro teórico da pesquisa televisiva. O trabalho de Lúcia Santaella, Cultura das
mídias, é um exercício dessas novas possibilidades, ainda que não seja dedicado
exclusivamente ao veículo. Segundo a pesquisadora, a televisão é a mais híbrida
de todas as mídias, possui uma complexidade semtica engendrada pela
convivência mútua de várias linguagens. Essa complexidade faz com que
análises de mão única sejam fragilizadas. A TV, para Santaella, é o sintoma de
outra ordem discursiva, pois o sincretismo que lhe é próprio fez com que ela
capitaneasse a chamada cultura das mídias.
De nossa parte, o esforço traduz-se na tentativa de conceber a TV como
um lugar, o lugar do Olhar que nos interpela, nos atrai e nos fascina. Bucci
considera que “a televisão não mostra lugares, não traz lugares de longe para
muito perto – a televisão é um lugar em si”. (2003: 32). Ao invés de pensá-la
como janela da alma, espelho do mundo, ela está sendo vista como um quadro
que nos arrasta e nos intercepta através da tela.
Este é o lugar de interseção entre televisão, ficção, realidade e gêneros. Nas
inúmeras discussões sobre a mediação televisiva, o olhar não comparece como
um eixo estruturante do laço que nos mantém atados à tela. Estamos
116
considerando que a cena dos programas se organiza em função do olhar. A TV
brasileira tem muito a nos ensinar nesse expediente.
3.5 TELEVISÃO NO BRASIL: O PERCURSO DO OLHAR
Como a televisão brasileira, considerada um dispositivo de mediação por
excelência, pode evidenciar a marca de um lugar, o lugar soberano do olhar?
Existem regras que permitem evidenciar onde ele se inscreve, onde os discursos
televisivos só podem ser vistos como sombra do não-declarado – tomando de
empréstimo a expressão de Derrida em A escritura e a diferença –, que nos
captura inexoravelmente.
Desde a primeira transmissão televisiva pela TV “Tupi-Difusora”, no dia
18 de setembro de 1950, o hábito de depor nossos olhares frente à tela foi,
liturgicamente, mantido. No final da década de 1960 e início dos anos 70
aderimos completamente ao vídeo; é nesse período que ele se consolida,
marcando um ritmo rápido de desenvolvimento progressivo. Segundo Bucci:
Embora nascida na noite de 18 de setembro de 1950, quando
foi ao ar a primeira transmissão ao vivo da TV Tupi, em São
Paulo, a televisão brasileira só assumiu sua missão de integrar
a nacionalidade a partir dos primeiros anos da década de 70 -
missão que foi decorrência do projeto desenhado para o Ps
pelos militares, que usurparam o poder político entre 1964 e
1985. (O período anterior a 1965 pode ser tratado como uma
pré-história da televisão brasileira). (B
UCCI, www.mc.gov.br.
Último acesso: 3 de agosto de 2006).
Tal integração, uma estratégia do regime militar, como frisa Bucci,
tornou-se marca indelével da implantação e desenvolvimento da TV no Brasil.
O papel relevante que se outorgou à TV pode ser percebido no invariável
paralelo que se faz entre os países europeus e os latino-americanos. É hábito
afirmar-se que ao passo que na Europa foi a imprensa o grande símbolo de
integração nacional, no Brasil foram o rádio e a TV que possibilitaram o projeto
de identidade nacional. De acordo com a passagem abaixo:
117
Sem grande dificuldade, pode-se sugerir que a construção das
identidades nacionais na Europa guardou íntima relação com a
conformação das línguas e literaturas de determinadas nações.
Como desconhecer a importância de Cervantes para Portugal,
de Goethe para a Alemanha, de Shakespeare para a Inglaterra,
de Dante para a Itália, de Balzac para a França (...)? Sem
dúvida a literatura tem importante papel para forjar as
identidades nacionais, em especial nos países em que a língua
escrita se tornou um patrimônio dos cidadãos. (R
UBIM &
R
UBIM, 2004: 26).
No rastro das considerações acima, infere-se que no Brasil nem a
literatura, nem o cinema tiveram proemincia na tarefa de constrão da
identidade nacional. Ainda segundo esses estudos, a importância do rádio e da
televisão na vida nacional está relacionada com um modo muito peculiar do
desenvolvimento do projeto de desenvolvimento e modernização levado a cabo
nos países latino-americanos. Os meios eletrônicos conformam uma época de
produção de bens simlicos, de industrialização tardia. Serão eles os
catalisadores dos anseios e demandas de uma estrutura em que o capitalismo
foi
introduzido antes da constituição da ordem social
competitiva, onde o espírito modernizador implanta uma
democracia restrita que não estende o direito de cidadania de
toda a população e por fim utiliza a transformação capitalista
para reforçar seus interesses estamentais. (O
RTIZ, 1988: 17).
Os chamados estudos latino-americanos se ocuparam em avaliar a TV a
partir dessa visada. Para Martín-Barbero esse descompasso torna claros os
desconcertos e os pesadelos que configuram o mal-estar na modernidade. A
experiência moderna tardia da América Latina, ainda segundo o autor, conferiu
um espaço desproporcional à televisão, mas que é, contudo, "proporcional à
auncia de espaços políticos de expressão e negociação dos conflitos e a não-
representão, no discurso da cultura oficial, da complexidade e diversidade
dos mundos de vida e dos modos de sentir das pessoas”.(Martin-Barbero, 2000:
39). Quando a rua expulsa, a televisão acolhe.
118
Em outra ordem de consideração, Bucci afiança que a TV demarca o
espaço público brasileiro. Amparado nos supostos habermasianos, ele diz:
o espaço público no Brasil começa e termina nos limites postos
pela televisão. Ele se estende de trás para diante: começa lá
onde chegam a luz dos holofotes e as objetivas das câmeras;
depois prossegue, assim de marcha à ré, passa por nós e nos
ultrapassa, terminando às nossas costas, onde se desmancha a
luminescência que sai dos televisores. O resto é escuridão. O
que é invisível para as objetivas da TV não faz parte do espaço
público brasileiro. O queo é iluminado pelo jorro
multicolorido dos monitores aindao foi integrado a ele.
(B
UCCI, 1997: 12).
Essas observações nos fazem notar a potência televisiva à brasileira. Ela é
o laço social, a grande máquina de produção dos discursos (imagéticos e
verbais) que nos mantém inapelavelmente fixados aos programas. É o veículo
de comunicação de maior alcance no país e o meio de informação e
entretenimento mais utilizado pelos brasileiros. As informações estatísticas m
aquilatar a magnitude da teledifusão.
Existem no país quase 54 milhões de aparelhos em 38 milhões de
domicílios. Somos o segundo país das Américas em número de televisores.
Temos mais aparelhos do que a soma do número de aparelhos de TV dos
terceiro, quarto e quinto colocados (México, Canadá e Argentina). O Brasil
concentra 15% de todos os aparelhos das Américas, 60% da América do Sul e
80% do Mercosul.
O crescimento é exponencial: no ano de sua implantação, a TV chegou ao
mero 100, quatro anos depois, em 1954, este número passou para 120 mil
unidades. Na década de 70, foram mais de 6 milhões de unidades.
119
Em 2004, 87,4% das residências tinham geladeira; 17,1%, freezer; e 34,5%,
máquina de lavar roupa. A televisão existia em 90,3% dos domicílios, e o rádio,
em 87,8%, enquanto o microcomputador estava em 16,3% das moradias.
Número de domicílios que possuíam ou não televisão no Brasil
Total de domicílios com
televisão
Cores
preto e
branco
Total de domicílios sem
televisão
Total de domicílios que não
declararam
40 459 995 2 318 815 4 763 575 16 274
HABITAÇÃO
2001(1) 2002(1) 2003(1) 2004(2)
Domicílios particulares
permanentes 46 903 225 48 036 173 49 712 307 51 752 528
Situação do domicílio (%)
Urbana 85,2 85,6 85,7 84,6
Rural 14,8 14,4 14,3 15,4
Existência de alguns bens
duráveis (%)
Fogão 97,6 97,7 97,6 97,5
120
Filtro d'água 52,7 53,1 52,6 51,3
Geladeira 85,1 86,7 87,3 87,4
Freezer 18,8 18,5 17,7 17,1
Máquina de lavar roupa 33,7 34 34,5 34,5
Rádio 88 87,9 87,8 87,8
Televisão 89,1 90 90,1 90,3
FONTE: IBGE, PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios.
(1) Os resultados de 2001 a 2003 foram retabulados com base nas projeções de população revistas
em 2004.
(2) Os resultados de 2004 agregam, pela primeira vez, as informações da área rural de Rondônia,
Acre, Amazonas, Roraima, Pará e Amapá.
Dados do Instituto Marplan Brasil do primeiro trimestre de 2002
mostram que 98% da população acima de 10 anos assistem à TV pelo menos
uma vez por semana.
O Brasil possa 269 emissoras geradoras e 2.591 retransmissoras em
atividade até maio de 2000, de acordo com a Anatel. A Rede Globo, a maior
emissora do Brasil, cobre quase a totalidade dos municípios brasileiros. Seu
sinal chega a 99,77% dos domicílios com aparelhos de TV do país; o SBT vem
em seguida, atingindo 97,58% dos lares. A Bandeirantes abrange 60,36% dos
municípios, a Record 42,38%, a Rede TV 29,85% e a CNT 6,10%. As grandes
redes comerciais de televisão detêm 82,5% da audiência em São Paulo e 90,4%
no Rio de Janeiro, de acordo com pesquisa do Ibope realizada no primeiro
trimestre de 2004. O percentual restante é dividido entre as emissoras
educativas, como a TV Cultura, de São Paulo, e a TVE, do Rio de Janeiro, e as
segmentadas, como a MTV e a Rede Mulher.
O público feminino é o que mais assiste à TV (53%). A televisão chega a
todas as camadas sociais: 8% dos telespectadores pertencem à classe A; 29%, à
classe B; 37%, à classe C; 23%, à classe D, e 3% à classe E. A maior parte está na
faixa de 20 a 29 anos (22%); seguida pela de 30 a 39 anos (21%), segundo a
Marplan Brasil.
121
Em termos publicitários, as emissoras de TV detêm a maior fatia da
verba destinada a anúncios nos meios de comunicação: 55,5% dos 2,9 bilhões de
dólares gastos no primeiro trimestre de 2000, conforme o Projeto Inter-Meios,
da Editora Meio & Mensagem.
A foa dos números mostra a capilaridade da TV a que fiz referência no
início. Os argumentos em contrio são indefensáveis. Pela sua abrangência e
exteno, o Olhar da televisão captura um variegado de programas que
compõem um cenário multifacetado. Os relatos televisivos falam do pitoresco
ao grotesco, do contínuo e do ordirio, do cotidiano e do acidental, do
presente e do passado, temas que são tecidos pelos discursos. Na trama
narrativa da TV, tudo é criação, ficção, uma grande estrutura que circula em
torno de um fluxo contínuo e homogêneo, ambientado na cultura mosaico,
como disse Abraham Moles (1974). Independente do canal, o telespectador está
exposto ao mesmo tipo de conteúdos, num mesmo macrogênero televisivo, daí
porque reivindico uma abertura das supostas fronteiras entre os gêneros.
122
4
GÊNEROS TELEVISIVOS: ARTICULAÇÃO DOS
ENUNCIADOS IMAGÉTICOS E VERBAIS
123
4.1 PREPARANDO O SUPORTE (DE ANÁLISE)
ANTES DE AVANÇAR PARA A DESCRIÇÃO e análise dos programas
selecionados, um capítulo específico sobre gêneros se interpõe. É um tópico
intermediário que pretende ir à procura de alguns elementos
problematizadores dos caminhos ainda a serem palmilhados. Como já assinalei,
esta tese parte da premissa de que a captura pelo olhar é o que possibilita a
mediação televisiva, orientando-se pelo preceito de que realidade e ficção estão
amalgamadas, não existem fronteiras intransponíveis capazes de impor
distâncias telescópicas entre essas duas categorias, visto que os parâmetros
entre elas se esfumam. Essa é a primeira vertente da hipótese do trabalho.
Insistir nessa premissa faz com que demonstre como os gêneros atuam em um
espaço que não tolera demarcações rígidas, porque difícil delimitar o perímetro
de seu território, os mapas de seu habitar.
A programação televisiva contemponea é pontilhada de exemplos que
ilustram essa situação. Um dos mais vistosos foi a novela “Páginas da Vida”,
32
exibida pela Rede Globo no ano de 2006, em que depoimentos davida como
ela é” se aninhavam à narrativa ficcional. Caso nos apoiemos em alguns
critérios estabelecidos pela classificação usual dos gêneros televisivos,
constataremos que esta situação anfíbia nos coloca frente a um impasse
32
Páginas da Vida, integrante do núcleo Jayme Monjardim, foi escrita por Manoel Carlos e Fausto
Galvão com colaboração e pesquisa de Maria Carolina, Leandra Pires, Juliana Peres, Ângela
Chaves e Daisy Chaves, dirigida por Jayme Monjardim, Fabrício Mamberti, Teresa Lampreia,
Fred Mayrink e Luciano Sabino. Estreou em 10 de julho de 2006, no horário das 21h,
substituindo Belíssima, de Sílvio de Abreu. Foi exibida até o dia 2 de março de 2007. Com 203
capítulos, Páginas da Vida obteve audiência significativa: 48 pontos de média, o que representa
68% de share, superando Bessima, com 44 de média, o que representa 68% de share; América,
com 45 de média, 64% de share; Senhora do Destino, com 46 de média, 69% de share e Celebridade,
42 de média, 63% de share. [Share deriva de market share, cuja tradução literal do inglês significa
quota de mercado ou fatia de mercado. A expressão pode ser ainda traduzida como
participação no mercado e designa a fatia de mercado detida por uma organização].
124
suntuoso. Em que gênero enquadrar “Páginas da Vida”? Será que o sucesso de
audiência do folhetim foi decorrente desse casamento (ficção e realidade)?
Tentar responder a essas e a outras perguntas exige o esforço de ir além
das soluções dadas pelos gestores do mercado de TV. Convém deixar
resolutamente de lado a bipolaridade ficção e realidade, instituída a partir de
uma fratura irreparável, pois deixa largas margens de indeterminação para os
objetivos do trabalho. Gostaria de relacionar, resumida e provisoriamente, os
documentários com essa questão (tratarei disso mais especificamente nas
análises). Normalmente, os documentários, sejam televisivos ou
cinematográficos, são perscrutados sob a lente de um certo purismo; eles são
sistematicamente submetidos ao escrutínio de pesquisadores com a finalidade
de examinarem até que ponto conseguem mostrar evidências
33
sem mediações.
Essa perspectiva de análise é sancionada por uma lógica conceitual que diz que
o documentário deve colher os fatos da realidade sem interferências terceiras.
Tal lógica criou tradição na produção cinematográfica, chegando a
instituir diferenças entre o modus operandi frans e o americano. O cinema
direto, de origem norte-americana, e o cinema verité, de origem francesa, para
assinalar comodamente o essencial, correspondem, respectivamente, ao que foi
chamado de fly-on-the-wall (mosca na parede) e fly-on-the-soup (mosca na sopa).
Ou seja, o primeiro oculta o processo de produção e o segundo exibe, sem
constrangimentos, os cineastas na tela.
34
A imagem sem interfencia, imediata,
33
Ônibus 174 (2002), documentário do diretor José Padilha sobre o seqüestro de um ônibus no
Rio de Janeiro, pode ser utilizado como exemplo. O filme foi considerado um misto entre
jornalismo e documentário. O filme cobriu o incidente, que aconteceu em 12 de junho de 2000,
filmado e transmitido ao vivo por quatro horas, paralisando o país. No filme, a história do
seqüestro é contada paralelamente à história de vida do seqüestrador, intercalando imagens da
ocorrência policial feitas pela televisão.
34
O documentário engajado faz parte da história desse gênero. Alguns deles podem ser
destacados: Three songs of Lenin; documentário realizado por Dziga Vertov em 1934, na antiga
União Soviética, mostra três diretores com diferentes abordagens sobre a vida do país,
construindo um retrato apaixonante denin. Housing Problems: documentário realizado por
Arthur Elton e Edgard Anstey em 1935, no Reino Unido, que tentava chamar a atenção para os
problemas dos programas habitacionais.
125
– o padrão “mosquinha na parede” – foi avaliada por muitos produtores como
o procedimento que mais se aproximava do ideal, porque mais pximo da
realidade.
Os ativistas fervorosos em prol do cinema direto apóiam-se também nos
modos de uso da câmera para reforçar as intenções de autenticidade. Ela seria o
instrumento neutro para capturar tudo o que se passa ao redor, uma herança do
trabalho dos cinegrafistas militares que cobriram a Segunda Guerra Mundial.
Pelas próprias condições de produção, a cobertura da Guerra fez da imagem
tremida sinônimo de uma filmagem, de uma tomada real, não ensaiada, não
mediada. A busca predestinada por um documentário “auntico”,
“verdadeiro, inspirou-se, em grande medida, nos princípios de neutralidade
jornalística – herança que irei discutir no capítulo das análises.
O conceito surio de John Grierson vem desestabilizar as esperanças na
produção de documentários como se fossem apenas transmissores de uma
realidade já constituída. Para ele, documentário é “o tratamento criativo da
realidade”, o que acrescenta outras perspectivas para se pensar o estatuto de
autenticidade deste relato imagético.
No Brasil, a tradição de conceber documentários como se fossem apenas
transcrição do real também foi seguida com devoção. A nossa escola
documentarista busca dramaticidade, tem como suposto o entendimento de que
o cinema tem a nobre missão de educar, de revelar o país aos próprios
brasileiros. Roquete Pinto e Humberto Mauro, pioneiros de uma área hoje
muito em voga – educação para comunicação (sintetizada como
educomunicação) – semearam o ideal que foi acentuado pelo Cinema Novo de
Glauber Rocha e seus pares.
A verdade. Nada mais que a verdade. É ela que está por trás dos
empenhos em fazer da técnica apenas um veículo de transmissão da realidade.
126
O festival “É tudo verdade”,
35
promovido anualmente pelo Serviço Social do
Comércio (Sesc), exibiu, em março de 2007, Manufacturing Dissent - Uncovering
Michael Moore (Fabricando Polêmica - Desmascarando Michael Moore), dos
diretores canadenses, Debbie Melnyk e Ruck Caine. O documentário procurou
demonstrar como Michael Moore
36
manipula os seus filmes, submetendo-os a
um processo de edição embalada por convicções políticas, recortada pelo olhar
do cineasta e pelo lugar de onde olha. Os diretores procuram obstinadamente
acusar Moore de deturpação:
Quando começamos este projeto, esperávamos fazer um
documentário que celebrasse Michael Moore”, diz Melnyk.
“Mas descobrimos certos fatos sobre os documentários dele
que desconhecíamos. Acabamos desapontados e desiludidos.
(FOLHA DE SÃO PAULO, março de 2007).
Na tentativa de provar que Moore é um ficcionista diletante, os diretores
questionam os métodos do cineasta e apontam as distorções, as tentativas de
aproximação da verdade para convencer o público. Segundo os diretores de
“Fabricando polêmica”:
(...) Mas há uma restrição: deve se tratar da verdade ou de uma
tentativa de relatá-la. Você não deve fazer com que os fatos se
encaixem na sua história. Deve sair em busca dos fatos e, a
partir daí, definir a sua história. (F
OLHA DE SÃO PAULO, março
de 2007).
A busca dos fatos, como se estivessem fora da ordem discursiva, é o que
orienta as críticas de Melnyk e Caine sobre os métodos de Michael Moore. Ora,
rigorosamente, nenhum filme se passa sem que a manipulação esteja presente.
Aprendemos com os teóricos da montagem que ela “é parte estruturante da
35
É Tudo Verdade é o principal evento dedicado exclusivamente à cultura do documentário
na América Latina. Sua 12ª edição aconteceu entre 22 de março e 1º de abril de 2007 em São
Paulo e no Rio de Janeiro. Uma seleção itinerante visitou Brasília (de três a 15 de abril),
Campinas (de nove a 15 de abril) e Porto Alegre (23 a 29 de abril).
36
O cineasta ficou mundialmente conhecido por causa das críticas ácidas ao presidente
americano, George Walker Bush, e ao americanismo. Fazem parte de sua filmografia: “Tiros em
Columbine”, “Fahrenheit 9/11”, etc.
127
narrativa fílmica”, como disse Eduardo Leone,
37
um dos montadores mais
importantes do Brasil. O russo Sergei Enseinstein foi um dos pioneiros em
montar o filme peça a peça.
o estou advogando em favor do cineasta americano Michael Moore,
tampouco insinuando que vale tudo no processo de coleta e produção de
imagens, mas apontando para o fato de que a exorcização do editado, do
montado, na manufatura de documentários é um empenho que revela a crença
na busca e transmissão da verdade sem interferências próprias da construção
fílmica (dos produtores à técnica). Essa insistência em mostrar tão-somente o
que aconteceu chega a orientar os princípios deontológicos dos cineastas, posto
que traz implícita uma questão de ordem ética, como a que foi enunciada por
Eduardo Coutinho:que direito tenho eu de editar fragmentos de uma vida real
para reordená-la na forma de uma história exemplar?” (2005: 108). Tal
questionamento tornou-se a pedra angular da produção documentarista e o seu
desdobramento imediato (o real e o construído) influencia, de certa forma, na
classificação dos gêneros do cinema e da TV. No congestionado universo
audiovisual, os programas jornalísticos encontram sua morada no espaço em
que a verdade, o previamente acontecido, é ao mesmo tempo a matéria-prima e
a finalidade de sua construção. Sob esse prisma, as diferenças entre os gêneros
adviriam, fundamentalmente, do real e do irreal – distinção que sugere lugares
demarcados para a acomodação das espécies televisivas.
Para afastar inevitáveis vozes discordantes que podem nos acusar de
levar muito a sério a classificação dos gêneros televisivos, algumas ressalvas se
fazem necessárias: sabemos que, tanto no universo teórico quanto no
profissional, embora os gêneros possuam traços que os particularizam no
conjunto dos programas, eles não encerram categorias restritivas e imutáveis;
37
O professor Eduardo Leone, falecido em 2000, foi um dos mais importantes pesquisadores na
área de montagem. Era profissional da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São
Paulo (USP).
128
ao contrário, são elásticos, se interceptam e se recombinam à revelia da própria
produção, dilatam-se, esticam, incorporam outros traços e elementos,
metamorfoseiam-se – como veremos em um item deste capítulo. Assim, a
princípio, os gêneros não são camisas-de-força que engessam os programas
televisivos. Os empréstimos e cruzamentos entre eles parecem até se intensificar
cada vez mais: programas de variedades incorporam traços de telejornais;
telejornais inspiram-se no folhetim; policiais integram programas de auditório;
documentários, montados com edição de videoclipe, avizinham-se da
entrevista.
Acresce que, tanto do ponto de vista conceitual quanto da rotina
operacional da produção televisiva, ficção e realidade são categorias que servem
para divisar a natureza dos programas, são as responsáveis por atribuir
identidade genética às espécies do veículo e acomodá-las nesse ou naquele
horio, nesse ou naquele núcleo de prodão. Penso, ao contrário, que ao ins
de serem categorias pelas quais se consegue determinar as diferenças entre os
programas, ficção e realidade nos informam de uma mesma base discursiva, nos
dizem que os programas são parte do mesmo tronco, não são ramos distintos
desse tronco. As particularidades e diferenças encontram-se alhures, conforme
demonstrarei no capítulo alusivo às analises.
Outra objeção que poderia ser levantada contra os nossos argumentos
concerne às motivações que levam às classificações dos gêneros; costuma-se
dizer que são embaladas pelagica do mercado, que definem e são definidas
pelo perfil da programação, pelo horário de exibição, pelo marketing e que,
portanto, apegar-se ao receituário dos esquemas classificatórios traduz-se em
um trabalho pouco producente, pois, essencialmente, as classificações são
apenas convenções. Mas as convenções, em sendo da ordem do imaginário,
orientam um modo de produção televisiva (técnica, alcance etc.), sua
estabilidade e variação (66% da nossa prodão televisiva é nacional; o público
129
prefere produções baseadas em gêneros consagrados; os gêneros que integram
a categoria entretenimento somam 64,6%).
São dessas preferências e ajustes que aparentemente se medem os gostos
e tendências do público, que se delineiem os perfis sempre em mutação das
programações dos canais de TV. O que faz com que alguns gêneros sumam
porque – diz-se – tornaram-se saturados, a exemplo do westerns americanos, ou
sejam reassimilados e se perpetuem, a exemplo dos programas de auditório
brasileiros? A justificativa para o declínio dos westerns americanos reside no
fato de que tornaram-se um formato extemporâneo para a sociedade da década
de 1970 – época em que declinouvisto que a figura do caui e a forma
arcaica de mostrar conflitos e situações dramáticas poderiam ser mais bem
exploradas em cenas urbanas e contemporâneas. Depois de um estrondoso
sucesso de mais de 20 anos, os westerns foram substituídos por séries de
detetives, incursões paramilitares e investigações da CIA. Para Aronchi:
o sucesso de um programa de TV vem do formato. Um
programa bem planejado, que consegue aplicar os elementos
cnicos e de produção de maneira criativa, conquista a
audiência e os patrocinadores. A criação, a produção, a
gravação e a implantação de programas exigem da equipe de
TV o conhecimento das técnicas que devem ser aplicadas a
cada gênero. Essas técnicas são aprimoradas continuamente e
moldam o principal elemento de atração: o formato do
programa. (2005: 5).
Ao modo de um grilo falante, indago: mas o que “determina” o formato?
Nutro uma forte desconfiança de que, previamente ao formato, o aparelho de
base televisual considerado à parte da programação fornece alguns elementos
que concorrem para o almejado sucesso dos programas. No artigo Telejornal e
seu espectador, Robert Stam sustenta a idéia de que o espectador se identifica
com “um conjunto mais amplo de câmeras e olhares”. Inspirando-se nos
estudos de Christian Metz, Jean-Louis Baudry e Jean-Louis Comolli sobre o
prazer que o cinema oferece, Stam toma a identificação como chave de análise
do sucesso televisivo, particularmente do telejornal. Para ele:
130
A identificação primária, portanto, não é com os
acontecimentos ou personagens descritos na tela, mas antes
com o ato de percepção que torna possíveis essas identificações
secundárias, um ato que é ao mesmo tempo canalizado e
construído pelo olhar prévio da câmera e pelo projetor, que a
representa, proporcionando ao espectador a ubiqüidade
ilusória do sujeito que tudo vê. (S
TAM, 1985: 75).
Ficção e realidade: as tramas da produção televisiva guarda algumas
semelhanças com as considerações de Stam. A adesão do público estaria, assim,
estritamente ligada a um processo de identificação do qual os formatos,
moldados pela diferença entre real e irreal, seriam apenas a ponta do iceberg.
Esta perspectiva, se seguida com certa radicalidade,
38
poderá nos revelar
questões mais desafiadoras, suscetíveis de fornecerem um fio condutor para
explorar a mediação, tópico que funda o campo de estudo das mídias. Falo
nesses termos porque nos debates sobre a comunicação midiática, advindos de
várias extrações trico-metodológicas, a mediação representa uma
incomparável pedra de toque. Teóricos e pesquisadores da área passaram a
vida lustrando esta questão.
O âmbito temático que estou encalçando nesse capítulo procurará
discutir: 1) o papel da TV como dispositivo,
39
que o dispositivo prepara o
conteúdo e vice-versa; 2) a transversalidade dos gêneros na história; e 3) o lugar
dos gêneros nos enunciados televisivos. Esse tripé, um pequeno inventário
sobre as tipologias narrativas, visa a fornecer subsídios para as análises dos
programas, assunto para o capítulo subseqüente.
38
Remeto-me à acepção etimogica do termo.
39
A expressão dispositivo assume conotações específicas no universo lingüístico. Para Noam
Chomsky, por exemplo, diz respeito a um órgão mental hipotético cuja função específica é a
aquisição da primeira língua, daí também ser conhecido como language acquisition device. Na
década de 1960, Chomsky começou a desenvolver sua hipótese do inatismo, segundo a qual
nascemos sabendo como são as línguas humanas.
131
4.2 O DISPOSITIVO TELEVISUAL
UMA VEZ QUE JÁ TRATEI DA TV NO CAPÍTULO ANTERIOR, esse item dirige o
seu foco, tout court, para o papel do veículo na produção dos enunciados, de
neros e formatos. Em termos gerais, dispositivo é o lugar material ou
imaterial no qual se inscrevem os textos, uma matriz, porque geradora de
sentidos, que impõe sua forma a eles. Assim, os programas televisivos o se
constituem apenas como relatos prontos e acabados que se oferecem à
transmissão, mas provêm da própria da TV. A técnica, aqui, não é vista como
uma serva do conteúdo, pois para além de pensar a televisão como um
recipiente em que os programas serão formatados de acordo com as
expectativas do telespectador, faz-se necessário levar em conta
antecipadamente que (...) “a tela não é o espaço em branco no qual se inscrevem
as palavras, a sonoridade musical, as imagens. Ao contrário, é um espaço
simbolizado, isto é, submetido à injunção do simbólico (...). (FREITAS, 1999: 13).
Burgelin também diz que “(...) os problemas socioculturais não se põem no
vazio, mas num certo meio caracterizado por um estado da técnica, e, mais
precisamente, dos media”. (1981: 11). Pode-se extrair em Maingueneau
considerações que se aproximam das de Freitas e Burgelin, como a que
transcrevo abaixo:
tomar a palavra significa, em graus variados, assumir um risco;
a cenografia não é simplesmente um quadro, um cenário, como
se o discurso aparecesse inesperadamente no interior de um
espaço já construído e independente dele: é a enunciação que,
ao se desenvolver, esforça-se para constituir progressivamente
o seu próprio dispositivo de fala”. (2001: 87).
A relação entre forma e conteúdo não seria hierárquica e dissociativa,
conforme deixam entrever os fragmentos acima, mas de influência recíproca.
Além da via de mão dupla entre essas duas instâncias, a técnica (forma) teria
vida própria, designando um modo próprio de conformação da chamada
sociedade tecnológica, avaliada por muitos como a grande responsável pelas
132
mudaas monumentais no modus vivendi contemporâneo. Com a ascensão da
técnica, somos exortados por Lyotard (2001) a não mais acreditar nas
metanarrativas; Lipovestsky diz que a era do vazio, essa em que vivemos, é a
era da comunicação como forma de contato, expressão de desejos, emancipação
do jugo utilitário, preponderância da forma (cf. 2005: 7). A máxima formulada
por Mcluhan, “o meio é a mensagem” parece chegar ao paroxismo nos dias
correntes. Muniz Sodré, em Estratégias sensíveis, afirma que o sentido na forma
compõe:
uma forma de codificação hegemônica, que intervém
culturalmente na vida social, dentro de um novo mundo
sensível criado pela reprodução imaterial das coisas, pelo
divórcio entre forma e matéria. Liberadas as pessoas e as coisas
de seu peso ou de sua gravidade substancial, tornadas imagens
que ensejam uma aproximação fantasmática, a cultura passa a
definir-se mais por signos de envolvimento sensorial do que
pelo apelo ao racionalismo da representão tradicional, que
representa a linearidade da escrita. (2006: 19).
Decididamente, pensar forma (dispositivo técnico) e conteúdo segundo o
dualismo aristotélico soa como triste eloqüência, pois os “meios transmissores
impõem-se como instâncias repletas de sentido.
Todo esse debate, como é óbvio, não se origina com a ascensão das
mídias no século XX. As discussões, hoje bizantinas, sobre forma e conteúdo
rondaram o campo da arte e da literatura (mais fortemente com o poema),
avaliadas a partir de uma suposta assimetria entre elas (“bom conteúdo” e “má
forma” e vice-versa). Alguns movimentos artísticos, com viés estritamente
político, foram prisioneiros dessa dissociação. Para o neo-realismo, o conteúdo
(mensagem política) deveria prevalecer sobre a forma (a qualidade estética).
Tal oposão tem como suposto o entendimento de que a forma seria a
expressão externa do conteúdo da obra. Esse é o fundamento que medula a
concepção retórica do texto: as idéias (res) seriam representadas pelas palavras
(verba), segundo a extração platônica e neo-platônica. O conteúdo se firmaria,
133
desse modo, aunomo em relação à forma, responsável por transmiti-lo com
eloqüência. Instala-se aí uma versão arcaica da representação.
Como esta tese não se filia ao representacionismo – assentado no par
original-cópia, advindo do conceito metasico de mímesis como imitação de um
objeto – meio de transmissão (televisão) e conteúdo (programas) são vistos
como instâncias indissoluvelmente interligadas, posto que o primeiro não teria
a função de apenas transmitir o conteúdo já finalizado. O conteúdo plasma-se
na forma. (Temos aí um argumento razoavelmente forte contra a noção de
representação da mídia, particularmente da televio, vculo que procura na
imagem um suporte de representação fidedigna. Discussão que será mais
detalhada no item sobre imagem).
O pré-romantismo no século XVIII e a valorização do trabalho do autor
como um trabalho do "gênio" fez com que a concepção tradicional perdesse
lego. A forma passa a ser liberada de sua função estrita de apenas veicular
conteúdos. Kant, em Crítica do juízo, sentenciou que "nas belas artes o essencial
está na forma". Mallarmé valoriza o aspecto formal e a desconstrução do
elemento semântico ao revolucionar a forma da escritura. A folha de papel com
seu branco e a escritura enquanto tipografia, caligrafia e desenho passam a ser
essenciais na composição do poeta. A proeminência do aspecto formal não
ficará isenta de desdobramentos: o dado material da arte e da literatura figura, a
partir de então, como um dispositivo importante em sua própria dimeno. A
arte abstrata, a poesia concreta, o culto ao nonsense, o experimentalismo das
vanguardas no século XX, jogaram papel importante para a expressão saturada
da materialidade, que experimentamos hoje com os dispositivos midiáticos.
Assim, mesmo que minhas considerações não se revistam da mesma
contundência da sentença inolvivel de Mcluhan (até porque reduzir a
mensagem ao meio nos faria enveredar por um labirinto de confusões),o se
tem como negar a importância da técnica nela mesma, o que a torna uma
instância vital para se pensar a mediação televisiva a partir do olhar.
134
Ponho em relevo uma tradição de pesquisa que vem sendo orquestrada
sob a mesma batuta: o protagonismo do dispositivo técnico na cena do
enunciado. Maingueneau encabeça a lista dos que pensam o médium como uma
dimensão essencial das formações discursivas contemporâneas. Para o autor, o
suporte não é mero acesrio,é necessário reservar um lugar importante ao
modo de manifestação material dos discursos, ao seu suporte bem como ao seu
modo de difusão: enunciados orais, no papel, radiofônicos, na tela do
computador”. (2001: 71).
O valor dado ao meio por Maingueneau reside no fato de que ante a
proliferação de vários dispositivos tecnológicos, as maneiras de dizer se
transformam radicalmente, modificando o conjunto da fala de um discurso.
Ademais, o autor considera que o meio foi preterido por alguns estudos que
sobrepuseram o conteúdo ao seu suporte, reminiscência de um dualismo
aristotélico. Martín-Barbero, teórico da vertente dos estudos culturais e de
comunicação na América Latina, pode ser colocado do mesmo lado daqueles
que se alinham a essa concepção. No afã de ultrapassar os meios, ou seja, na
tentativa de superar os estudos que cederam à tentação da imanência do
dispositivo técnico, o autor se ocupa quase exclusivamente das práticas
cotidianas e culturais, as mediações. Martín-Barbero realçou o processo de
mediação, minimizando os meios:
o termo conteúdo remete à metáfora de uma caixa ou de um
escrínio nos quais um objeto está, de fato, “contido”. Para esses
analistas, a própria língua era apenas um envelope do sentido,
do qual era necessário extrair as “categorias”, assim como se
separa a amêndoa do caroço. (...). À primeira vista, a
embalagem e o objeto podem ser separados sem que o objeto
perca sua identidade; entretanto, um perfume continuaria a ser
um perfume sem seu frasco? O presente permanece um
presente sem as fitas e as graças que os envolvem? A prece é
prece sem seu gestual? (M
OUILLAUD, 1996: 29).
Depreendemos, então, que o suporte joga papel fundamental na
emergência e na estabilização de um gênero: o aparecimento do microfone
135
modificou profundamente o dispositivo do sermão, o telefone modificou a
definição da conversação, a epopéia é inseparável da recitação oral etc, como
lembrou Maingueneau. Para ele, as discussões e intrigas de casais em talkshows
e não mais em espaços domiciliares ou em consultórios psicológicoso a
medida de como os meios técnicos reorientam os modos de expressão. Embora
atento à importância do dispositivo, Maingueneau não se deixa seduzir por
uma certa supremacia da técnica, advertindo que “é necessário também
considerar o conjunto do discurso que organiza a fala”. (Id. Ibid.: 73).
Thompson é outro pesquisador que reserva parte de suas pesquisas ao
tema. Ele afirma que o meio “é o substrato material de uma forma simbólica,
isto é, os componentes materiais com os quais e em virtude dos quais uma
forma simbólica é produzida e transmitida”. (2000: 22). Assim como
Maingueneau, Thompson considera que as formas de interação (comunicação
face a face, via sistemas eletrônicos) variam significativamente, moduladas de
acordo com os meios técnicos de transmissão que as produzem. De acordo com a
passagem abaixo:
O sentido está gravado em uma tabuleta (suméria) ou sobre
uma folha de chumbo como em um monumento de Jochen
Gerz, inscrito e raspado sobre um palimpsesto de um
pergaminho, escrito ou rasurado sobre uma folha de papel que,
com a imprensa, vai-se redobrar sobre si mesma e juntar-se em
cadernos no dispositivo do códex. Um suporte que não tem
apenas uma matéria (ou uma não-matéria, como os cristais de
uma tela), mas um formato. (M
OUILLAUD: 1996: 30-31). [Grifo
meu].
O formato é um item caro à TV. Nos estudos da comunicação, é um
termo que está vinculado a duas mídias: a televisão e o rádio. Para a
pragmática, o formato concerne à telenovela, ao talk show, à minissérie.
Consagrou-se na cultura letrada como manifestação de gênero, com o qual é
confundido ou em relação ao qual se procura compreender por uma
classificação. Para Machado:
136
o formato não configura diretamente umnero, mas o design
de gêneros – a mais elaborada forma de alcançar a semiose da
comunicação. (...)”. Isso quer dizer que o gênero discursivo é da
ordem da língua (tipos relativamente estáveis de enunciado,
Bakhtin), ao passo que o formato é da ordem das linguagens
modelizadas pelos códigos culturais tecnológicos. (2006: 3) [Grifo
meu].
Se os dispositivos são geradores de narrativas, se comandam sua duração
(a duração de uma canção ou de um filme é um a priori de sua produção) e
extensão (um romance se inscreve entre um número mínimo e máximo de
páginas que, evidentemente, variaram ao longo da história), como o formato
televisivo engendra os relatos que nele estão contidos e o contém? Como os
relatos podem ser diferenciados no conjunto heterogêneo do veículo?
Telejornais, telenovelas, talk shows, reality shows. Que textos são esses? O que os
aproxima e os distancia?
Sabe-se, obviamente, que a televisão e o cinema, para elencar os suportes
fundados na imagem e no som, são mídias que têm de atender às exigências do
tempo, que é, invariavelmente, exíguo. Sob esse ponto de vista, a padronização
e fixação dos enunciados televisuais em categorias é um empreendimento
necessário, pois possibilita que os programas sejam formatados em
modalidades relativamente estáveis, capazes de favorecer a “decodificação”. Há
uma rede emaranhada que constitui a produção e a recepção, o que demanda a
criação de sistemas de orientações, expectativas e convenções que circulam
entre a indústria, os sujeitos espectadores e o texto. Como disse Todorov,
“gêneros são classes de textos que constroem horizontes de expectativa para os
leitores e modelos de escritura para os autores” e, complementarmente,
Bakhtin: “Cada gênero em cada campo da comunicação discursiva tem a sua
concepção típica de destinatário que o determina como gênero”. (2003: 301).
Se, entretanto, é inequívoca a necessidade de os programas serem
enquadrados em categorias pvias, se é “absolutamente indispensável a
137
instituição de formatos para acomodarem e filtrarem a variabilidade infinita
dos enunciados imagéticos”, como disse Machado, não menos essencial é ter-se
no horizonte que as linhas divisórias que classificam o acervo audiovisual
acabam por instituir, na classificação, demarcações que resultam ilurias.
Esse debate nos convida a escandir os conceitos de gênero, posto que a
conjunção entre as noções de gêneros e sua aplicabilidade na comunicação
projeta retrospectivamente sua luz sobre todo o trajeto anterior do itinerário do
termo. Embora a volta para aquém do tema imponha uma breve estadia nos
estudos gregos, sabemos que as discussões inaugurais pouco influenciam
diretamente na definição de formatos e gêneros televisivos. Todorov já
advertira que falar de gêneros na contemporaneidade parece fora de moda. No
entanto, a ingerência que tais discussões exercem atualmente é sobre a
necessidade de classificar os enunciados televisivos para acomodá-los em
esferas predeterminadas. Assim, gênero informativo, gênero de entretenimento,
de ficção, são terminologias que se movimentam na esteira das definições
clássicas do termo, com readaptações e roupagens modeladas de acordo com as
medidas de cada tempo histórico.
O item a seguir é uma sintética evocação do passado dos gêneros. O
trânsito nos bastidores da história pretende capturar alguns flashs dessa
trajetória, extraindo do poço inesgotável do legado do termo, algumas
informações históricas, visto que “o gênero vive do presente, mas recorda-se do
seu passado, seu começo”. (MACHADO, 1996: 247). Procuro fornecer um painel
relativamente pluralista sobre o termo, com seu mosaico de teorias e reflexões,
oriundo de várias origens e épocas. Os textos advêm, portanto, de muitos
lugares (discursivos), de diversos canteiros teóricos, falando várias línguas.
138
4.3 GÊNEROS: O TECIDO DOS PROGRAMAS TELEVISIVOS
PRELIMINARMENTE, OBSERVE-SE estes conceitos:
A palavra gênero é originária do latim genus/generis
(família/espécie), e se diferencia etimologicamente das palavras
gene e genética (do grego génesis: geração, criação). Conceito
geral que engloba todas as propriedades comuns que
caracterizam um dado grupo ou classe de seres ou de objetos.
(M
ACHADO, 2001: 45).
Conjunto de seres ou objetos que possuem a mesma origem ou
que se acham ligados pela similitude de uma ou mais
particularidades. Derivação: por extensão de sentido. Tipo,
classe, espécie, estilo. (D
ICIONÁRIO AURÉLIO, 2005).
Categoria taxonômica que agrupa espécies relacionadas
filogeneticamente, distinguíveis das outras por diferenças
marcantes, e que é a principal subdivisão das famílias.
Cada uma das categorias em que são classificadas as obras
artísticas, segundo o estilo e a técnica. (Id. Ibid.).
Em teoria literária, cada uma das divisões que englobam obras
literárias de características similares. Inicialmente tripartite e já
objeto de estudo de Platão e Aristeles, é com o Romantismo
que os estudos sobre os gêneros alcançam maior divulgação,
sendo também divididos em três: lírico, épico e dratico; no
entanto, o problema da classificação dos gêneros permanece com
o aparecimento, por exemplo, da narrativa, atualmente
considerada como um gênero proveniente, segundo alguns, do
desenvolvimento do gênero épico. (T
RASK, 2004: 122).
Categoria das línguas que distingue classes de palavras a partir
de contrastes como masculino/ feminino/ neutro, animado/
inanimado, contável/ não contável etc.; nas línguas, a
distribuição das palavras nessas classes pode coincidir em parte
com uma distinção semântica, como, por exemplo, a distião de
sexos, pela qual a classe de palavras designando machos é
gramaticalmente masculina, e a classe de palavras designando
fêmeas é gramaticalmente feminina (p.ex.: cavalo e égua); mas as
palavras podem também entrar numa ou noutra classe
gramatical por critérios convencionais. (Id. Ibid.: 122).
Conjunto de espécies que apresentam um certo número de
caracteres comuns convencionalmente estabelecidos. (A
RONCHI,
2005: 41).
139
Esse breve percurso lexicográfico contorna, com traços mais ou menos
precisos, o perfil que dá fisionomia às discussões sobre gêneros em qualquer
domínio da atividade humana. Expressões como agrupamento, semelhança,
divisão, classificação, distinção, dão substrato à maioria dos conceitos que fornece
identidade ao termo. Sob essa perspectiva, é possível acatar a orientação
conceitual que diz que os programas de TV compõem um conjunto de espécies
que apresentam certomero de caracteres comuns (entendido aqui como som
e imagem).
De acordo com Saussure, o problema da linguagem não é outro senão o
de suas transformações (TODOROV, 1980), o que serve, extensivamente, ao
problema dos gêneros. A cada momento histórico, acumulam-se modos
possíveis de comunicação, que trazem implícitos a língua, o discurso e as
estruturas sociais. Um dos papéis de maior proeminência atribuídos ao gênero é
que este se propõe determinar a “escolha efetuada por uma sociedade entre
todas as codificações possíveis do discurso”. (Id. Ibid.: 22). Para Maingueneau,
gêneros são dispositivos de comunicação sócio-historicamente definidos: “os
fatos diversos, o editorial, a consulta médica, o interrogatório policial (...). Na
concepção tradicional consideravam-se os gêneros como espécies de quadros
nos quais se fazia deslizar um ‘conteúdo’ independente deles”. (2001: 74).
Sem querer recuar conceitos anacronicamente, podemos dizer que as
reflees sobreneros filiam-se à classificação aristotélica da poesia. Embora
não se possa dizer, ainda hoje, que se tenha uma visão suficientemente clara
sobre o que caracteriza os vários textos que perpassam a atividade linguageira,
é segura a afirmação de que o texto foi visto, desde tempos imemoriais, como
uma forma identificável (seja no registro oral ou escrito). Senão vejamos.
Nos três últimos séculos da era pré-cristã, a discussão já era bastante
acirrada entre os gregos. Os antigos retóricos tinham como preocupação central
o desenvolvimento da capacidade de argumentar e, para isso, como
140
componente de técnicas dialéticas, desenvolveram uma descrição de partes
convencionais do discurso.
Se, como diz Barthes, “descrever um acontecimento implica que este
tenha sido escrito” (2004: 191), o escrito sobre os gêneros perfaz um arco que
vai, resumidamente, da Antigüidade, passando pela crítica literária, pela
lingüística, questões de estilo, língua, até chegar aos discursos dadia
(cinema, televisão, rádio, jornal impresso), também chamados discursos da
atualidade.
À guisa de lembrete, a classificação aristotélica teve como base
metodológica as obras da voz. Para o filósofo grego, a lírica correspondia à
poesia de primeira voz, a épica à de segunda voz e o drama, à de terceira voz.
Platão, antecedendo Aristóteles, esboçou uma classificação binária, balizada por
juízos de valor: a epopéia e a tragédia concerniam, segundo ele, ao gênerorio;
a comédia e a sátira estariam vinculadas ao gênero burlesco. Em A República,
Platão modifica sua classificação binária e passa a postular uma categorização
triádica, forjada pelas relações entre realidade e ficção. Dessa
modificação/incorporação resulta o seguinte esquema: a tragédia e a comédia
estariam assentadas no gênero mimético ou dramático; o ditirambo, o nomo e a
poesia lírica pertenceriam ao gênero expositivo ou narrativo; a epopéia
pertenceria ao misto. Foi a classificação triádica de Platão que ofereceu
elementos para a Poética de Aristóteles.
Maingueneau e Charadeau recordam que essa classificação atendia ao
tipo de atividade discursiva que se acreditava haver na Antigüidade: o fazer
dos poetas, da Grécia pré-arcaica. Os poetas eram mediadores entre os deuses e
os humanos, exerciam as funções de celebrar os heróis, de interpretar os
enigmas dos deuses. É o tipo de atividade discursiva típica da Grécia clássica
caracterizada como o ambiente propício para gerir a vida da cidade e os
conflitos comerciais. A fala pública era o principal instrumento de deliberação e
de persuasão jurídica e política.
141
Grosso modo, esses são os conceitos diretores que orientam as pesquisas
sobre os gêneros. Elas serviram em grande medida ao trabalho literário, pois a
despeito de o estudo do tema ter se constituído no campo da Poética e da
Retórica, foi com as investigações literárias que ganhou expressiva
empregabilidade.
Dos gêneros delineados na Antigüidade, uma mostra contável, a tradição
literária vai fazer redimensionamentos apoiada em critériosrios. A prosa e a
poesia são os dois grandes gêneros que permitem selecionar e classificar os
diferentes textos literários. Os critérios, segundo Maingueneau e Charadeau,
são ao mesmo tempo de composição, de forma e de conteúdo – o que suscita as
derivações poesia, teatro, romance, ensaio. Nas ramificações desses gêneros
estão o soneto, a ode, a balada, o madrigal, a estância etc. para a poesia; o épico,
o elegíaco etc. para a narrativa; a tragédia, o drama, a comédia etc. para o texto.
(2004: 248).
Esses critérios remetiam aos modos de se conceber a realidade, definidos
por meio de textos ou manifestos. Tinham por função fundar Escolas e
corresponderam a períodos históricos específicos: os gêneros romântico,
realista, naturalista, surrealista etc. Cumpriam também o papel de organizarem
a estrutura dos textos: o fantástico, a autobiografia, o romance histórico etc.
Do esquema e das classificações instituídos por Platão e Aristóteles até os
dias atuais, cultivou-se um terreno fecundo em que surgiram concordâncias,
acréscimos e divergências com o modelo hierárquico proposto pelos filósofos
gregos. Um ponto de inflexão importante no século XX se dá com os estudos de
Mikhail Bakhtin
40
– autor que renovou o painel teórico sobre os gêneros, a
40
Bakhtin é referência obrigatória nas discussões sobre enunciado, enunciação, discurso, fala.
Gênero é um conceito central para os estudos semticos russos, sobretudo depois que Mikhail
Bakhtin o tornou chave da poética histórica à luz do dialogismo, onde não é classe nem cabe nos
limites da poética aristotélica. Segundo Bakhtin, gênero define as infinitas possibilidades de uso
da linguagem na produção de mensagens no tempo e no espaço das culturas. A necessidade de
entender as formas comunicativas de um mundo prosaico levou Bakhtin à formulação dos
142
então presos à herança grega. Com Bakhtin, rompe-se a tradição dos estudos
dos gêneros assentada na mediação do retório/literário com o público, e passa-
se a concebê-los como eventos discursivos. Antes de Bakhtin, os gêneros
retóricos já haviam sido duramente criticados por autores como Victor Hugo.
Os valores burgueses consolidaram o romance, o que fez com que a antiga
classificação de gêneros caducasse. Todorov também colabora para oxigenar a
reflexão. Para ele, os gêneros do discurso deveriam se analisados à luz de suas
condições históricas, levando-se em conta, pelo menos, quatro níveis essenciais:
semântico, sintático, pragmático e verbal.
No lastro desses estudos, muitas pesquisas surgiram. Gênero passou a
ser senha para explicação de vários problemas. As ciências cognitivas, a partir
de 1940, passaram a encará-lo como uma ferramenta indispensável no
processamento da linguagem e na organização da memória. van Dijk
desenvolveu o conceito de superestrutura textual para compreender a
estruturação da mente a partir dos estudos dos gêneros. Adair Bonini,
pesquisador da área de psicolingüística e neurolingüística, atualiza os estudos
de van Dijk e assinala, no caso brasileiro, como o discurso jornalístico contribui
para se fazer algumas conexões a respeito.
A aparente profusão de gêneros forjada com a tradição literária torna-
se ainda mais vertiginosa em semiótica, na análise do discurso e análise textual,
nas ciências cognitivas – departamentos que assumem posicionamentos
claramente heterogêneos. A heterogeneidade dos pontos de vista aponta para
uma miríade terminológica: gêneros do discurso, gêneros de textos, tipos de
textos, são algumas expressões que servem para nomear o mesmo objeto.
Em que medida essas discussões lançam luz para os chamados gêneros
da contemporaneidade, nos quais os discursos televisivos estão inseridos?
gêneros discursivos que, ao se reportarem às esferas de usos da linguagem através de um
processo combinatório, aciona o mecanismo semiótico da modelização.
143
Como fazer a mediação entre as iias seminais sobre gêneros e os
desdobramentos que eles assumiram na contemporaneidade, forjados com a
infinidade de suportes de transmissão? Como os estudos na área da
comunicação ligam-se às diretrizes cardeais que foram apresentadas no quadro
conceitual acima?
4.4 OS ANTECEDENTES DOS GÊNEROS TELEVISIVOS
UM PONTO DE PARTIDA PARA SE TENTAR responder a esses questionamentos
no âmbito do nosso objeto de estudo pode ser localizado na definição bakhtiana
que diz que as várias tipologias discursivas se aparentam, herdando uma das
outras características que se tornam, na incorporação, outra coisa. Os gêneros
nunca surgiriam, sob esse ponto de vista, num grau zero, mas num veio
histórico, dentro de atividades preexistentes, sempre renovando-se, pois não
são cristalizações formais no tempo. Encontramos aí um primeiro princípio
para levarmos adiante a idéia de que os enunciados televisivos
(costumeiramente chamados de gêneros) são resultado da confluência de
matrizes discursivas diversas, o que faz com que as fronteiras dos enunciados
constituintes dos programas sejam maculadas. No universo da comunicação
midiática, mormente no da comunicação televisiva, onde as arborescências do
gênero vivem e reinam, encontramos fórmulas que se nascem da fusão explícita
de dois ou mais gêneros (o docudrama e o infotaitnemant são claros exemplos).
Como disse Bakhtin, “os gêneros vêm de outros gêneros: por inversão,
por deslocamento, por combinação”. (2003: 269). Para ele, os gêneros podem ser
vistos como combinações de formas discursivas, formas de acabamento de um
todo. O teórico russo não os concebe de forma hierárquica, mas como um
fenômeno de pluralidade, um tecido de redes discursivas. Sem vinculação
mecânica com o tempo presente, os gêneros, para Bakhtin, são de uma riqueza e
diversidade inesgotáveis, acentuadamente heterogêneos, o que dificulta a sua
análise “em um plano único de estudo”. Ao modo das abelhas no processo de
144
polinização, ao arrastarem formas discursivas dos seus supostos “lugares de
origem”, os textos inauguram infinitamente outras formas de se inscreverem
socialmente.
Num esforço de se distanciar da classificação aristotélica, que se ocupou
dos gêneros poéticos, Bakhtin prioriza a prosa – por ser plurestilística e aberta –
a sofrer contaminações as mais diversas e não se deixa convencer pela idéia de
fixidez, hierarquia e purismo que orientou A poética de Aristóteles. A concepção
ampla de gêneros sustentada por esse autor pode ser observada na passagem
abaixo:
Os enunciados e seus tipos, isto é, os gêneros discursivos, são
correias de transmissão entre a história da sociedade e a
história da linguagem. Nenhum fenômeno novo (fonético,
léxico, gramatical) pode integrar o sistema da língua sem ter
percorrido um complexo e longo caminho de experimentação e
elaboração de gêneros e estilos. (Id. Ib.: 268).
Se levarmos em conta a consideração taxativa de Bakhtin, tudo que é
discursivo recobre e é recoberto pela experimentação dos gêneros: “nele se
cruzam, convergem e divergem diferentes pontos de vista, visões de mundo,
correntes”. (Id. Ibid. 300). “A combinatória composicional está cada vez mais
distante da linearidade e cada vez mais próxima dos espaços textuais
múltiplos”. Para equacionar esse algama em termos analíticos, Bakhtin
classifica os gêneros em pririos (comunicação ordinária, oral e escrita) e
secundários (formas discursivas mais complexas: literatura, documentos oficiais
empresariais, jurídicos, filmes, publicidade, música, relatos científicos;
jornalismo
41
[oral e escrito]), formas da comunicação mediada pelo computador
[e-mail, chats, lista de discussão) posto que são infinitos os enunciados que
construímos no dia a dia, resultantes dos infinitos e dinâmicos deslocamentos e
transformações das formas discursivas. Essa é a grande contribuição dos
41
Na recente abordagem semiótica das mídias, os gêneros discursivos têm o poder de definição
da própria mídia como sistema de signos na cultura.
145
semioticistas russos que têm em Bakhtin o seu principal representante. As
noções denero como uso diagico da linguagem e de modelização como
princípio dialógico processador da semiose entre diferentes sistemas da cultura
foram a espinha dorsal da investigação desses pesquisadores. Os chamados
sistemas modelizantes são, para eles, sistemas sensíveis a interações, abertos ao
diálogo e prontos para migrarem de uma região a outra.
Dirigindo-nos aos teóricos do texto, encontramos subsídios para
prosseguirmos em nossa caminhada: Julia Kristeva, Roland Barthes, Halliday,
Umberto Eco nos oferecem argumentos que robustecem tais pressupostos.
Segundo Kristeva, o texto "é uma permutação de textos, uma intertextualidade:
no espaço de um texto, vários enunciados, vindos de outros textos, cruzam-se e
neutralizam-se". (2005: 32).
A intertextualidade se faz com os fios que trançam o tecido,
terminologia empregada por Barthes para texto. Pluralidade, dialogismo,
polifonia de vozes no discurso são as marcas que vincam os textos desses
teóricos. Levando em conta esse princípio, podemos dizer que do ponto de vista
das matrizes da linguagem, os produtos culturais são sempre resultado de uma
cadeia antecedente, eles são, por definição, composições heterogêneas. Lévi-
Strauss já alertara que a cultura é resultado de uma mixórdia. A afirmão de
Mcluhan é esclarecedora:
A fala é a primeira explicitação de um primeiro sistema de
misturas. Depois da fala, outras tecnologias, ou meios
tradutórios, se desenvolveram: a escrita, a tipografia, o
telégrafo, os meios de comunicação e os circuitos eletrônicos.
(1971: 251).
Segundo Machado, “o gênero é modelizado pelas codificações de
diferentes mídias tornando-se manifestação da dialogia que permite a migração
de formas e a transferência entre formatos”. (op. cit.: 32). O que é a comunicação
internacional senão a comunicação sobre a comunicação? O potencial dialógico
146
enunciativo - cada vez mais fundado na citação - mostra que a tendência cada
vez mais presente nas mídias é a prática de ser discurso dentro do discurso,
mídia dentro de mídia. Tudo isso tem a ver com a relação ou o efeito de uma
mídia sobre a outra, o modo de tradução, o modo como as pessoas se
relacionam com os meios e evidente a ecologia da comunicação.
As afirmações de Machado põem em evincia que os cruzamentos se
exercem de forma dupla: 1) tanto do ponto de vista da configuração técnica dos
meios (a televisão resulta da combinação do suporte cinematográfico e
impresso) quanto do ponto de vista da produção de relatos. Jornal impresso,
rádio, TV, Internet alimentam-se cotidianamente da mesma seiva, edificam-se
sobre a mesma base, fazem-se inteiramente na mesma órbita: a narrativa.
Lúcia Santaella afirma categoricamente que as mídias possuem um
caráter intermídia: “acoplamento de vários códigos ou linguagens”. (1996: 45).
O jornal impresso, segundo ela:
(...) compõe-se da interação e simultaneidade da linguagem
verbal escrita, da linguagem fotográfica e da linguagem
gráfica, evidente esta na variação do tamanho e posição dos
tipos gráficos no espaço da página como aspecto substantivo
da mensagem. Curioso observar como a sofisticação crescente
do uso da linguagem dos tipos no jornal consegue, sob esse
ângulo, transformar o caráter verbal da palavra escrita que
passa a adquirir características de linguagem plástica, nas
verdadeiras arquiteturas gráfico-imagéticas que a mensagem
jornalística vai criando. (Id. Ibid.: 46).
Por se fazer com base em várias matrizes, a televisão seria para a autora
uma síntese bem acabada do caráter intermídia, pois se “institui como uma
mídia das mídias, isto é, tem um caráter antropofágico” (Id. Ibid.: 47). Assim,
ela continua:
Para exemplificar a diversidade funcional e a pluralidade de
dimensões internas a cada mídia, nada melhor do que a
televio, visto que esta se constitui em uma espécie de mídia
altamente absorvente que pode trazer para dentro de si
qualquer mídia e qualquer outra forma de cultura: do cinema
ao jornal, do teatro aos espetáculos musicais, do desenho
147
animado ao circo, dos concertos de música erudita às mesas-
redondas de discussão política, das entrevistas às novelas.
Quando se faz referência à televisão como se ela fosse um
veículo homogêneo, quando se fazem críticas aos efeitos
negativos que ela provoca nos receptores, sem levar em conta
essa sua diversidade constitutiva, não se pode saber até que
ponto essas críticas são inteiramentelidas, uma vez que
aquilo que M. Egbon nos revela acerca das mídias em geral
parece acentuadamente verdadeiro quando se trata de TV”.
(1996: 4).
O trânsito entre gêneros e a fuo entre as mídias podem ser verificados
ao se analisar de forma mais detida a configuração dos meios de comunicação e
dos relatos que lhes dão suporte. O repertório de um agregado, aparentemente
heterogêneo demais, sugere a iia de um diálogo no tempo.
O palimpsesto pode ser associado ao hipertexto – a correia de
transmissão da contemporaneidade. Expressão latina, o palimpsesto significa
raspado novamente. Converteu-se no material de escrita, principalmente o
pergaminho, usado, em razão de sua escassez ou alto preço, duas ou três vezes,
mediante raspagem do texto anterior. Manuscrito sob cujo texto se descobre
(em alguns casos a olho desarmado, mas na maioria das vezes recorrendo a
técnicas especiais, a princípio por processo qmico, que arruinava o material, e
depois por meio da fotografia, com o emprego de raios infravermelhos, raios
ultravioletas ou luz fluorescente) a escrita ou escritas anteriores: "Inutilizei um
caderno de papel almaço, e o primeiro rascunho, à força de rasuras, emendas, ...
chamadas, interversões, acabou por ser para mim próprio o mais impenetrável
palimpsesto." (RIBEIRO, Lápides partidas, p.120). O desejo da igreja de "converter"
antigos escritos pagãos, sobrepondo a eles a palavra de Deus, pode ter
orientado a difusão dos palimpsestos.
Comparativamente, o hipertexto é um sistema para a visualização de
informão cujos documentos contém referências internas para outros
documentos (chamadas de hiperlinks ou, simplesmente, links), e para a fácil
publicação, atualização e pesquisa de informação. O hipertexto mais conhecido
148
atualmente é a world wide web, o texto em formato de cruzamentos. O hipertexto
permite saltos de um assunto a outro ou de uma página para outra por meio de
links.
As telenovelas são também um exemplo bem acabado de fusões e
heranças. Herdeiras das novelas de rádio que, por sua vez, se espelharam nas
histórias em capítulos e revistas do século XIX, o seriado televisivo configura-se
como uma mistura de gêneros clássicos. O folhetim estava intimamente ligado à
fião. Era distribuído em fragmentos e ocupava os rodapés das primeiras
páginas dos jornais.
42
Nessa seção eram publicadas críticas literárias, anedotas,
crônicas, romances, receitas de cozinha etc. O gênero possuía uma característica
precisa: ocupar o espaço vazio do jornal para o entretenimento, com histórias
que continuavam no dia seguinte. Foi a forma criativa e revolucioria, mas,
sobretudo comercial, encontrada na época, para jogar fatias de ficção nos jornais
diários. Eugene Sue, com Os mistérios de Paris, povoou largamente as páginas
dos jornais.
42
Na década de 1840, os ancios do Jornal do Comércio divulgaram, com regularidade, a venda
de romances, em sua maioria estrangeiros, indicando que o gênero era um dos mais apreciados
pelo público leitor brasileiro. O apreço do público pela leitura de prosa ficcional vinha, no
nimo, do século anterior, em que se iniciou a história de ascensão do romance no país, a qual
teve nacada de 1840 um período bastante representativo.
Fi
g
ura 5. Ima
g
em de
p
alim
p
sesto Figura 6. Imagem de hipertexto
149
Retrocedendo um pouco mais, veremos que o termo novella foi
adquirindo vários significados ao longo da história. Na Idade Média portava
sentido de enredo, narrativa enovelada, trançada. A paternidade do gênero
novella coube às canções populares cantadas por trovadores que desenvolviam
uma narrativa e confundiam o fantástico com o verdadeiro. No período do
Romantismo, a palavra novella obteve o sentido literio atual, significando
novo, aventuras entrelaçadas. O escritor e romancista Èmile de Girardin deu
início, em 1830, na França, ao folhetim em forma de ficção.
Das canções populares cantadas por trovadores, passando pelos folhetins
franceses até chegar à telenovela, presencia-se uma solidariedade entre os
meios.
Em História social da mídia, obra em que faz um rastreamento histórico
sobre a evolução histórica dos meios de comunicação e das formas narrativas,
Burke mostra como eventos remotos se projetam sobre a mídia moderna. As
histórias em quadrinhos (HQs) do século XX, segundo ele, são inspiradas na
disposição visual dos balões com falas das publicações do
século XIX, que remetem a um formato ainda mais antigo, os
textos em forma de rolo que saíam das bocas das virgens. O
quadro O milagre de São Marcos, onde ele mergulha de cabeça
do céu para resgatar um cristão cativo, pode ser associado ao
Super-Homem das revistas. (2001: 13).
As imagens mostradas por Burke têm uma virtude tão pedagógica que
decidimos por reproduzi-las abaixo:
Figura 7. Milagre de São Marcos Fi
g
ura 8. Su
p
erman
150
No teto da Capela Sistina, as pinturas de Michelangelo prenunciam a
realidade virtual.
As figuras confirmam o adágio de Lavoisierna natureza nada se perde,
nada se cria, tudo se transforma, subvertido parana natureza nada se cria,
tudo se copia”. Mas a cópia não é apenas imitação grosseira, tampouco
fidedigna. As narrativas começam sempre pelo meio, o que significa dizer que a
largada inicial já foi dada antes mesmo dela existir. No plano simbólico, do qual
estamos condenados a participar, as nossas produções sempre resultam de um a
priori, de uma anterioridade inegável, que não é apenas cronológica.
Retomamos as observações de Deleuze e Derrida, esboçadas no primeiro
capítulo: todo ato é uma iteração e não uma reiteração, e a elas acrescentamos a
de Lyotard: “todo pensar é um re-pensar e não existe apresentação da qual se
possa dizer é uma estréia. O aparecimento disto reitera aquilo. Não que reitere a
mesma coisa ou repita a mesma cena”. (2000: 22).
Em termos amplos, tal condição, a de as coisas serem resultado daquilo
que as antecede, puxa o tapete de nossas certezas, que alimentam o ideário de
que somos senhores absolutos de nossa produção.
Não hesitarei em pulverizar os meus argumentos na literatura. Muitos
estudiosos se debruçaram, com certo desconforto, sobre as possibilidades
infinitas dos intercâmbios e trocas entre as obras e seus respectivos autores. T. S.
Fi
g
ura 9. Teto da Ca
p
ela Sistina
151
Eliot, Harold Bloom e Jorge Luis Borges formularam questões fundamentais
para se pensar a repetição e combinações dos gêneros no espaço da letra.
Em Tradição e talento individual (1919), Eliot discute a relação dos poetas
com a tradição, considerando que esta é um problema que envolve, em
primeiro lugar, o senso histórico, fundamental para a compreeno da
literatura:
the historical sense involves a perception, not only of the
pastness of the past, but of its presence; the historical sense
compels a man to write not merely with his own generation in
his bones, but with a feeling that the whole of the literature of
Europe from Homer and whitin it the whole of the literature of
his own country has a simultaneous existence and composes a
simultaneous order. (1989: 14).
Esse senso histórico, diz Eliot, é que faz um escritor tradicional, senso de
intemporalidade e de temporalidade juntos. Ao mesmo tempo faz um escritor
consciente de seu lugar no tempo, de sua contemporaneidade:
No poet, not artist of any art, has his complete meaning alone.
His significance, his appreciation is the appreciation of his
relation to the dead poets and artists. You cannot value him
alone; you most set him, for contrast and comparison, among
the dead. I mean this is a principle of aesthetic, not merely
historical, criticism. The necessity that he shall conform, that he
shall cohere, is not onesided; what happens when a new work
of art is created is something that happens simultaneously to
all the works of art which preceded it. (Id. Ibid.:15).
Eliot assinala que todo poeta quando escreve está em dívida com seus
antecessores, no sentido de que não está livre da cultura que lhe antecede.
Podemos depreender que o poeta se inscreve numa tradição, seja em coerência
com ela, seja em contradição a ela. As vanguardas artísticas do início do século
XX propuseram uma outra maneira de fazer arte, no entanto, toda essa arte
surge de um diálogo ctico com relação à produção anterior. No caso do
152
modernismo brasileiro, a paródia foi uma forma de rejeição da tradição, mas ao
mesmo tempo de sua incorporação.
Às preocupações de Eliot, somam-se as de Jorge Luis Borges em Kafka y
sus precursores. Borges acrescenta argumentos à lista apresentada por Eliot, e diz
que um artista não acompanha apenas uma tradição, mas pode também criar
uma tradição atrás de si. Ele elabora a tese de que a literatura produzida antes
de Kafka é reorganizada, criando uma influência “para trás”.
Para tanto, Borges busca na tradição tais precursores onde se encontram
ressoncias de Kafka. Da literatura à filosofia, Borges mostra que depois de
lermos um escritor que não conhecíamos antes, modificamos nossa leitura
daqueles que já conhecíamos. Borges seleciona diversos textos, entre eles de
Aristóteles e Kierkegaard, passando pelos contos de León Bloy e poemas de
Browning e Dunsany:
Si no me equivoco, las heterogéneas piezas que he enumerado se
parecem a Kafka; si no me equivoco, no todas se parecen entre si. Este
último hecho es el más significativo. Em cada uno de esos textos está
la idiosincrasia de Kafka, en grado mayor o menor, pero si Kafka no
hubiera escrito, no la percibiríamos; vale decir, no existiría. El poema
Fears and scruples de Robert Browning profetiza la obra de Kafka, pero
nuestra lectura de Kafka afina y desvía sensiblemente nuestra lectura
del poema. Browning no lo leía como ahora nosotros lo leemos.
(2000:109).
Borges retoma o texto paradigtico de Eliot, ratificando a inflncia
que a tradição exerce sobre os poetas que vão surgindo. Mas Borges fala de uma
tradição criada no sentido anti-horário, ou seja, somente porque Kafka escreve
sua obra é que podemos perceber o surgimento de um significado nas obras
anteriores, significado este que não existia e que só passou a existir porque
Kafka o escreveu. É como se Kafka reescrevesse a tradição, introduzindo nela
elementos que não possuía.
En el vocabulario crítico, la palabra precursor es indispensable, pero
habría que tratar de purificarla de toda connotación de polémica o de
rivalidad. El hecho es que cada escritor crea a sus precursores. Su
153
labor modifica nuestra concepcion del passado, como há de modificar
el futuro. En esta correlación nada importa la identidad o la
pluralidad de los hombres. El primer Kafka es menos precursor del
kafka de los mitos sombríos y de las instituiciones atroces... (Id. Ibid.:
109).
O texto de Borges coloca definitivamente um problema para a crítica e a
teoria literária, que é a relação entre os poetas de todos os tempos. Borges
percebe que o critério cronológico não é definidor da influência, ou da herança,
mas que os poetas modificam a literatura e criam uma tradição do presente
para o passado, ressignificam o passado e podem ser modificados com poetas
do futuro. Talvez estes críticos – Eliot e Borges - estivessem querendo escrever
uma teoria da leitura, em que todos os campos seriam alterados pela
conformação histórica de cada época.
Harold Bloom, em A angústia da influência: uma teoria da poesia, apóia-se
nos aportes psicanalíticos para dizer que essa influência é sempre carregada de
angústia. O cerne da tese de Bloom pode ser observado na passagem abaixo:
A influência poética quando envolve dois poetas autênticos,
fortes procede sempre por uma desleitura do poeta anterior,
um ato de correção criativa que é, na verdade, e
necessariamente uma interpretação distorcida. A história das
influências poéticas produtivas, que é a história da tradição
central da poesia do Ocidente a partir da Renascença, é uma
história da angústia e da caricatura autoprotetora, da
distorção, do revisionismo voluntarioso e perverso, sem o que
a poesia moderna, como tal, não poderia existir. (1989: 62).
Ao elaborar uma teoria da poesia, em que os conceitos são rigorosamente
desenvolvidos, Bloom afirma a impossibilidade do original e a criação sempre
sob o signo da influência. Por causa desse evento, os poetas estão condenados a
viver o sentimento da angústia e a experimentar o peso da tradição. Artaud,
que extingue a palavra de seu teatro, nem assim se livrou da angústia. Ela
estava lá, em cada gesto.
154
Artaud, insano, carregou a angústia da influência até uma
região onde a influência e seu movimento contrário, a
desapropriação, não podem mais ser distinguidos. Se os poetas
retardatários quiserem evitar o caminho de Artaud, precisam
estar conscientes de que os poetas mortos não consentirão
nunca em fazer espaço para os outros. Mas é ainda mais
importante que os novos poetas possuam uma sabedoria mais
rica. Os precursores nos inundam, e nossa imaginação pode
afogar entre eles, mas a vida imaginativa não é possível se a
inundação for completamente evitada. (Id. Ibid.: 197).
E, com efeito, a inundação não pode ser completamente evitada. A
relação das formas culturais (textos, narrativas) de tempos remotos com as da
contemporaneidade não seria de mera dependência ou imitação, mas de um
continuum sempre em marcha porque tem a ver com as formas socialmente
instituídas de darmos sentido à vida.
Temos uma tendência quase invencível para atribuir ao tempo presente,
à modernidade, o papel de ser o principal responvel pela bricolagem e pelo
remix. Muitas tintas estão sendo gastas para dizer que estamos sob o signo das
readaptações, onde as formas discursivas, os gêneros, são um decalque dos
traços oriundos de várias matrizes. Testemunhamos debates febris em torno da
hibridização, da mestiçagem,
43
cuja tonalidade narrativa é modelada pela
afirmação de que a globalização, a mundialização é a grande facilitadora das
aproximações, dos intercâmbios, das trocas e das misturas. Reitera-se com
estridência que o espaço das cidades seria a arena privilegiada para que os
fluxos se intensifiquem ainda mais.
Apesar da preponderância das formas “híbridas” na atualidade,
responsável por instituir a cultura das mídias, temos presente, conforme os
exemplos anteriores ilustram, que tal característica não é especificidade dos
tempos correntes, apenas neles ganha maior densidade. Segundo Machado:
A idéia de que as mídias configuram, idiossincraticamente, o
modo da comunicação contemporânea, a ponto de não
43
Categorias-chave nos estudos de pesquisadores latino-americanos, como Nestor Garcia
Canclini e Jésus Martín-Barbero.
155
reconhecer nelas o menor vestígio de outras modalidades
interativas de formas comunicacionais encadeadas
historicamente, desautorizando até mesmo algumas delas,
resulta da festejada noção de que a chamada “sociedade da
informação” foi inaugurada pelos meios tecnológicos de
comunicação de massas. Contudo, considerando o contexto
amplo da cultura, nem a sociedade da informão nem a
cultura das mídias se encerram, tão-somente, na presentidade
histórica. Para evitar o absolutismo de conceões como essas é
que recorro à abordagem que entende a dialogia das formas
culturais como motor da história. (2003: 15).
O alerta de Machado serve para extrair do momento atual a
exclusividade no papel de configuração das narrativas entrelaçadas. Segundo
Baitello, “nada pode ser pensado sem suas raízes (e seus efeitos). Muito menos
em comunicação e técnica. (...) Sobretudo, foge ao lugar comum de uma
conceão linear que enxerga no contemporâneo o ápice da complexidade, e no
arcaico o vale das simploriedades”. (2007: 14).
Daí porque Zielinski, em Arqueologia da mídia, escava o tempo profundo
dos meios técnicos de comunicação, tomando como parâmetro a metodologia
das ciências arqueológicas.
44
Para ele, é preciso trazer à superfície “camadas e
camadas de história que se depuseram sobre outros importantes e fundadores
eventos remotos que influenciam a mídia contemporânea” (2006: 13). “Em
expedição” na história dos meios técnicos, o pesquisador alemão prossegue
dizendo:
A deposição de camadas e camadas de detritos, entulhos, é o que
nos obriga hoje a nos debruçarmos sobre as ciências
arqueológicas, sobre o passado (o passado recusado, jogado
fora”) e sobre o lixo soterrado, como material valioso para a
compreensão do presente. (Id. Ibid.: 13).
44
Zielinski apóia-se nas asserções de Vilém Flusser, partidário da idéia de que entre as ciências
arqueológicas estão a Ecologia, a Psicanálise, a Etimologia, a Mitologia etc, porque são ciências
que cuidam de resgatar o passado descartado, desobstruindo o acesso para uma relação
saudável com as origens, esvaziando um pouco a inflada ubris do presente. (cf. 2006: 7).
156
Zielinski procura se afastar da idéia do progresso técnico inexorável,
quase natural, como ele lembra, que pinta um horizonte promissor,onde tudo
que já existiu está subjugado à noção de tecnologia como um poder para ‘banir
o medo’ e como ‘força motora universal’” (Id. Ibid.: 19). A genealogia da
telemática (do tubo de comunicação de metal da Antigüidade ao telefone; do
telégrafo d’água de Enéas ao Integrated Sevice Digital Network etc.) é refém
dessa suposição.
As misturas e cruzamentos entre meios técnicos e seus relatos não
seriam, sob esse viés, apenas um aprimoramento das idéias primitivas
esboçadas em um tempo longínquo arcaicas, mas uma coexistência de formas
técnicas e discursivas, onde a história não seria apenas promessa de
continuidade e celebração da incessante marcha do progresso em nome da
humanidade. É preciso, segundo Zielinski, mudarmos a ênfase das pesquisas
históricas sobre a comunicação, que normalmente procuram o velho no novo, e
partirmos para a busca do novo no velho.
Assim, ao aceder à idéia de que os relatos contemporâneos são o
continuum de matrizes discursivas anteriores, considero que o suporte
taxiconômico dos gêneros televisivos, subdividido exponencialmente em
categorias diversas, como veremos mais adiante, deve levar em conta que são as
narrativas, colhidas de vários registros (do ficcional, do fantástico, do real
para usar, por enquanto, a terminologia costumeira), que cimentam a grade da
programação televisiva.
Na sua vocação para narrar, a TV é daltônica, ela não distingue o
ficcional do real. Tudo nela é absorvido para estabelecer vínculos indissociáveis
com o telespectador. O conjunto de materialidades (sonora, audiovisual, escrita)
forma uma ambiência em que esses códigos se misturam indistintamente, como
num procedimento de alquimia. No seu processo de gestação secular, como
vimos no capítulo anterior, a TV herda do cinema modos de produção e
exibição; ele, o cinema, que é, igualmente, um veículo que sintetiza o amálgama
157
de códigos que compõe as formas de transmissão da contemporaneidade.
Sergei Einsenstein foi um dos primeiros pesquisadores a destacar esse traço; o
expoente da montagem observou que o meio absorve códigos pictóricos e recria
as regras do teatro Kabuki.
45
Segundo Einsenstein, o cinema é uma linguagem-
síntese que abarca pintura, fotografia, teatro, som, música e linguagem verbal
oral e gestual.
Jacques Aumont em O olho interminável: cinema e pintura (2005) avalia o
papel que o cinema ocupa ao lado da pintura na história da representação, do
visível. A combinação entre ambos não é, para o autor, de descendência, mas de
lugares de representação. Ele considera que o legado cultural que se acumula
no campo das artes visuais deve ter algo a dizer para quem pretende discutir o
filme. Além da pista metodogica que podemos obter da consideração de
Aumont, tendo a acreditar que a TV pode ser vista como um desses lugares de
“representação” da modernidade, dando mais brilho aos nossos desejos, por
meio de sua narrativa planetarizada e localizada, que recobre, a um só tempo, o
mundo e o nosso bairro, que dá visibilidade à privacidade do astro/estrela,
como também às investidas de pessoas comuns confinadas em uma casa espiã.
No entanto, os estudos sobre televisão parecem tão sovinas em sugestões
capazes de nos conduzir a pensá-la como uma grande máquina de contar
estórias alusivas a cada um e ao mundo, que satisfaz provisoriamente nossas
demandas intermiveis. Preferimos, do ponto de vista dos enunciados
televisivos, imputar-lhes identidades como uma maneira de encontrar a chave
de explicação para o inabalável sucesso televisivo; contentamo-nos em
classificá-los amiúde, em destinar esse ou aquele programa para esse ou aquele
gênero; outorgar-lhes papéis demasiadamente específicos (o programa de
auditório entretém, o telejornalismo informa, o documentário ensina... assim se
45
O Kabuki é a tradicional forma de teatro japonesa que se originou no período do Edo, no
começo do século XVII. A palavra “Kabuki” é resultado da junção de três ideogramas chineses;
“ka”, “bu” e “ki”, que significam respectivamente cantar, dançar e representar. Foi criado por
Okumi, uma dançarina.
158
diz!). Mas, justiça seja feita. Não só a televisão está infensa a classificações e
medições. Temos, como lembrou Sodré,
uma inclinação histórica para a medição universal das coisas,
dentre as quais o próprio planeta. As evidências aparecem no
comércio com o controle minucioso de receita e despesa pela
contabilidade, em substituição à meria do comerciante; na
música, com a representação gráfica dos sons, que altera os
caminhos da composição e do canto; na pintura, com a
precisão geotrica da perspectiva; no tempo, com a
cronometria rígida dos relógios; no espaço, com o
ordenamento técnico dos mapas e dos instrumentos de
navegação. (2006: 32).
À vocação pantométrica do Ocidente (C
ROSBY apud SODRÉ), medição
universal e controle territorial do planeta, acrescento a vocação de classificar.
Categorizamos, dividimos por departamentos, ordenamos por categorias,
procedimento caudatário da lógica aristotélica. Guiamo-nos por um protocolo
de leitura que nos informa sobre o devido lugar das coisas. Quando isso não
acontece, parece que estamos fora de esquadro.
A propósito, o filme “Sin City”, exibido nos principais cinemas
brasileiros no final do primeiro semestre de 2005, pode ilustrar esse aparente
descompasso. Uma adaptação da revista em quadrinhos de Frank Miller, o
filme mantém praticamente a mesma estrutura da revista a tal ponto de sofrer o
questionamento se é, de fato, cinema.
Misturando assassinato, prostituição, traição, estupro, castração,
mutilação, decapitação, “Sin city” articula modos de produção cinematográfica
que além dos quadrinhos, a base de sua criação, aludem aos filmes-noir da
década de 40, expressionismo alemão, novelas policiais americanas, cultura
trash e pulp fiction (narrativas entrelaçadas que se desenrolam no espaço
de um dia e são construídas em episódios que se encontram em um
momento determinado da trama).
O remix revela o traço essencial dos quadrinhos de Frank Miller. A
perfeição técnica de “Sin city” despertou um sem-número de comentários. Para
159
os defensores do filme, trata-se de uma revolução cinematográfica, da
reinvenção do filme-noir. Já para os detratores, o filme exacerba no recurso
técnico, sem mostrar-se capaz de exibir as possibilidades de renovação dos
gêneros de que se apropria.
Termos como assemblage, apropriação, readymade, remix, sampleagem e
ecologia midiática marcaram as discussões em torno de “Sin city”. As
discussões provocadas pelo filme nos reenviam para a noção de gênero, pois
suem que existem características ou materialidades próprias a determinadas
mídias e discursos em conformidade com o esquema classificatório que
utilizamos para avaliá-los. A passagem abaixo apóia a questão:
(...) Filmes, programas ou livros são tipicamente percebidos
como “pertencentes” a um gênero particular – western, terror
ou musical, em cinema;rie policial, comédia ou novela, em
telenovela. Esse reconhecimento tem por finalidade que o
espectador/leitor/crítico oriente suas reações para o que está,
de acordo com as expectativas geradas pelo fato de distinguir o
gênero no começo. Você não julga um western por ele não ser
o bastante musical, e também não avalia um musical por não
apresentar suficientemente cenas de horror. Se você ri durante
uma série policial ou estremece diante de uma cena de
perseguição de carro em uma comédia, das duas, uma:ou o
programa está jogando deliberadamente com as expectativas
de gênero ou você o está decodificando aberrantemente.
(S
ULLIVAN, Hartley et al, 2001: 116) [grifos do autor].
Quer me parecer que as críticas em torno de “Sin city” se instalam nessa
concepção do decodificado de maneira aberrante. Sob esse ponto de vista, os
neros parecem se prestar para etiquetar as produções culturais, malgrado a
sua elasticidade, tornando-as reconhecíveis num quadro comum de refencias.
Eles contêm e controlam a polissemia, procuram escrever para o público a gama
de prazeres que se esperam, padronizam os repertórios dispersos. O que
justifica, como disse, a permanência de programas consagrados. Normalmente,
a produção televisiva prefere repaginar o que já foi por demais testado ou
combinar dois ou mais formatos de sucesso. Remakes e reedições estão aí para
160
confirmar essa tendência. A programação televisiva é prenhe de exemplos:
Zorra Total, Domingão do Faustão, Show do Milhão, novas versões para novelas de
sucesso (Anjo Mau, Selva de Pedra) são programas feitos com refugos de
experiências anteriores.
Os relatos televisivos se fazem e refazem com o reenvio e remessa,
empréstimos e auto-referências permanentes, de um programa para outro,
dentro de um mesmo programa, dentro de um mesmo gênero (O programa
“Mais Você”, da Rede Globo, a princípio considerado de variedades, mescla
jornalismo, e entretenimento, sem demarcação de fronteiras entre ficção e
realidade). Uma reportagem da Revista da Folha, de 2001, reproduzida na
página seguinte, confirma essa regra.
Contrário a essa regra, o apresentador Fausto da Silva, em entrevista à
Folha de São Paulo, diz peremptoriamente que o “maior erro [da TV] é não
mexer em time que está ganhando e que falta criatividade à TV. (8 de julho de
2007). Sobre os programas de auditório, um formato perpetuamente em voga na
grade de programação televisiva, ele diz:
Esse programa é um supermercado. O gênero é auditório, mas
ele já reuniu tanta gente diferente e de nível. Jorge Amado, Tom
Jobim e Paulo Freire assistiam. Você atinge as classes A, B e C,
mas também as D e E. (...). Domingo é um dia que tem
concorrência, e a gente está acostumado porque sempre foi
assim. Esse tipo de programa é um desafio: ele tem que agradar
a todo mundo, não é segmentado. A gente também tem que ser
didático. (Folha de São Paulo, 8 de julho de 2007).
R
EPORTAGEM DA
F
OLHA DE
S
ÃO
P
AULO
(2001)
161
162
A tensão entre o novo e o velho, o conhecido e o desconhecido é uma
questão nevrálgica na TV. Premida pelos indicadores de audiência, a
programação televisiva procura inovar sem, com isso, quebrar o contrato com o
telespectador, que é de cumprir a promessa de satisfazê-lo cotidianamente. A
Rede Globo, emissora escolhida para análise, realiza anualmente em agosto
encontro de núcleos de produção para apresentação de novas propostas. As
idéias eleitas são submetidas a um teste, veiculadas como especiais de fim de
ano da emissora com o fito de se saber até que ponto conseguiram cumprir a
promessa dentro de um contrato estabelecido. Insisto nos dois termos - contrato
e promessa
46
- porque, a meu ver, servem para delinear as estratégias da
programão televisiva.
Os termos estão inscritos em tradições teóricas de envergadura. Herdeira
da noção de contrato de leitura, introduzida e desenvolvida por Eliseo Véron, a
concepção de contrato de comunicação, segundo Jost, nasce do "duplo processo
de semiotização do mundo", de Paul Ricoeur (1983). Demoremo-nos um pouco
sobre essa questão.
Para Charaudeau, contrato de comunicação diz respeito ao: "(...) o
conjunto das condições nas quais se realiza qualquer ato de comunicação
(qualquer que seja sua forma, oral ou escrita, monolocutiva ou interlocutiva). O
que permite aos parceiros de uma troca linguageira reconhecerem um ao outro
com os tros identitários que os definem como sujeitos desse ato (identidade),
reconhecerem o objetivo do ato que os sobredetermina (finalidade),
entenderem-se sobre o que constitui o objeto temático da troca (propósito) e
46
Respectivamente, são categorias exploradas no ambiente francês por Patrick Charadeau e
François Jost. A questão chave para os dois autores pode ser resumida nos conceitos seguintes:
o contrato de comunicão sugere que o interlocutor (leitor, ouvinte, telespectador, usuário,
participante) aceita e "assina" as condições da situação comunicativa, reconhecendo finalidades
(visées), identidade, o domínio do saber, dispositivo e modo de enunciação; enquanto a
promessa implica apenas o produtor do ato comunicativo, deixando o interlocutor livre em
reconhecimentos e interpretações. (2005: 32).
163
considerarem a relevância das coerções materiais que determinam esse ato
(circunstâncias). (...)" (2004: 132).
A dimensão do contrato de comunicação considera que os participantes
do ato comunicativo devem se entender sobre os nomes e convenções que
permitem se produzir uma certa intercompreensão. Ja a noção de promessa não
aceita o engajamento do interlocutor subentendido no contrato. "Contrairement
au contrat, qui engage toutes les parties qui le signent, la promesse est un acte
unilatéral qui n'engage que celui qui promet: "C'est un énoncé qui fait ce qu'il
dit: dire "je promets", c'est faire une promesse" (Ricoeur). On dit aussi que la
promesse n'engage que celui qui la croit. (...)" (JOST: 1999: 20)
Para Jost, cada gênero discursivo seria uma promessa, ja que o gênero é o
que permite, segundo a lógica das estratégias de programação televisiva,
identificar o que queremos; o gênero permite agir sobre o telespectador (Jost
dedica-se mais especificamente à televisão). Pelo caminho oposto, então, se a
promessa é de informar, então se trataria de gênero informativo.
Essas questões descortinam uma suposta crença e reconhecimento. Na
pista dessas discuses pulsantes, arrisco a dizer que a crença não leva em conta
a dimensão institucional da TV (suas grades de programação, a definição de
formatos), enquanto o reconhecimento, ao mesmo tempo em que não implica
necessariamente o interlocutor, requer um conhecimento prévio,
institucionalizado. Quem "reconhece" distingue entre outros. Quem "crê"
estabelece uma convicção em determinado momento, sem que tenha
conhecimento prévio do que se trata. O que me faz insistir na premissa de que
neros não são o principal atrativo para o sucesso dos programas. A reflexão
sobre o estatuto e função dos gêneros precisa ser redirecionada para outros
campos.
164
4.5 GÊNEROS TELEVISIVOS: OS PROGRAMAS EM TELA
ENCONTRAMOS NAS CONSIDERAÇÕES ACIMA alguns pontos decisivos dos
quais extraímos a reflexão sobre gêneros televisivos. Saio persuadida de que
devem-se abrir brechas em uma nuvem de pensamento ainda demasiada densa
e tentar dissipar a ilusão de que fião e realidade habitam mundos
absolutamente diferentes.
Como demonstrei, a irreversibilidade das trocas e migrações que
entretecem os textos é uma prova de que, se as fronteiras que separam os
relatos existem, são vacilantes, se as identidades a partir do par ficção-realidade
são flutuantes. Com a televisão, esse princípio viceja. Todo o fluxo de
programas é herdeiro de matrizes discursivas que por serem discursivas são
fictícias. É fabricação, criação. Assim, as classificações corriqueiras,
“arrumadinhas”, que orientam a produção televisiva só podem surgir como
obra do imaginário. Segundo Duarte:
Dizer de um programa que ele é informativo ou de
entretenimento é praticamente nada informar sobre ele.
Designá-lo indistintamente como entrevista, reportagem ou
documentário é, muitas vezes, lançar mão de critérios
diferentes para referir um mesmo tipo de produto. O que
pensar então da oposição realidade/ficção? (2003: 1-2).
Mesmo insuficientes para determinarem as difereas entre programas,
são essas variações (entretenimento, ficção) que nos “informam” sobre as
distinções entre as narrativas televisivas. Para ser acaciana, destaco o esquema
classificatório mais usual:
1. Gênero Informativo
2. Gênero ficcional
3. Gênero lúdico
Estas três categorias estão, tradicionalmente, assim subdivididas:
165
1. Gênero Informativo:
1-1.Telejornal
1-2. Reportagem
1-3. Debate
1-4. Documentário
2. Gênero Lúdico
2-1.Talk show
2-2. Concurso
2-3. Reality show
2-4. Transmissão desportiva
2-5. Video-clip
3. Gênero Ficcional- Modo da ficção
3-1. Filme de ficção
3-2. Série e telenovela
3-3. Sitcom
3-4. Publicidade
Es
p
ortes
Transmissão Jornalístico
Informa
ç
ão
Noticiários Entrevistas Reli
g
iosoEducativo Análises
e Comentários
166
A tabela tende a se expandir, segundo os critérios utilizados por
pesquisadores, pela rotina televisiva e pela complexificação técnica entre os
formatos. A mistura está patente no nome de alguns gêneros:
docudrama: “reconstrução e dramatização dos acontecimentos reais,
interpretados pelos seus próprios protagonistas reais” (González
Requena, 1988: 96);
Variedades
Culinária
Jo
g
os
Música
V
a
r
ie
d
a
d
e
s
Realit
y
Sho
w
Interesse Geral
Documentário
Entretenimento
Filmes Telefilmes
Fic
ç
ão
Série Telenovela
Comédia Drama
Humor Desenhos
167
docutainment: (entretenimento documentário) programas de estilo de
Animal Hospital, com estrutura de novela de fatos reais e destinada ao
blico feminino. Na Inglaterra, devido ao sucesso desse programa,
surgiram os clones “Vets in Practice”. (Veterinários em Exercício).
“Animals in Uniform (Animais de uniforme) e Pet Rescue (Resgate de
Mascotes (Ellis, 2000: 32).
Docusoap: denominação utilizada pela PBS para designar a série de
quatro capítulos The 1900 house, onde uma família contemporânea viaja
vicariamente no tempo. O objetivo era mostrar as mudanças radicais
ocorridas na vida cotidiana (http:// www.pbs);
Infotainment (info-entretenimento), um coquetel de informação e
entretenimneto de assuntos pesados e pouco importantes, banais,
escandalosos ou macabros, de argumentação e de narração, de tragédias
sociais comunicadas em ritmo sincopado (de swing) ou de clipe,
narradas como filmes de ação; é uma especialidade jornalística de
conteúdo estritamente editorial (matérias jornalísticas), voltada à
informação e ao entretenimento, que englobam temas como: arquitetura,
artes, beleza, casa e decoração, celebridades e personalidades, chistes e
charges, cinema, comportamento, consumo, crendices, cultura,
curiosidades, espetáculos, eventos, esportes, gastronomia, jogos e
diversões, moda, música, previsão do tempo.
Dramedy:nero emergente, que combina elementos semânticos de um
(o drama) – como temas sérios, iluminação texturizada, locações
múltiplas interiores e exteriores – com a sintaxe de outro (comédia) – a
estrutura em quatro atos, práticas meta-textuais, repetições e réplicas
agudas.
O making of, ou back stage que têm a ver com a necessidade de mostrar os
bastidores, a cozinha de uma produção, seja ela cinematográfica, televisiva, de
168
deo-clipe, publicitária, documentária são considerados gêneros novos. Os
limites entre ambos são ambíguos.
Com o jornalismo, procedimento semelhante foi adotado por
pesquisadores que almejaram realçar a “nítida distinção” (sic) entre o universo
real (jornalismo) e o ficcional (literatura/lazer), apontada por Groth. As listas
abaixo flagram o esforço de pesquisadores como Beltrão, Melo, Chaparro.
Beltrão Melo
a) jornalismo informativo
1. notícia
2. reportagem
3. história de interesse
humano
4. Informação pela imagem
b) jornalismo interpretativo
5. reportagem em
profundidade
c) jornalismo opinativo
6. editorial
7. artigo
8. crônica
9. opinião ilustrada
10. opinião do leitor
a) jornalismo informativo
1. nota
2. notícia
3. reportagem
4. entrevista
b) jornalismo opinativo
5. editorial
6. comentário
7. artigo
8. resenha
9. coluna
10. crônica
11. caricatura
12. carta
Gênero COMENTÁRIO Gênero RELATO
Espécies
Argumentativas
Espécies
Gráfico-
Artísticas
Espécies Narrativas Espécies
Práticas
Artigo
Crônica
Cartas
Coluna
Caricatura
Charge
Reportagem
Notícia
Entrevista
Coluna
Roteiros
Indicadores
Agendamentos
Previsão de
tempo
Cartas-
consulta
Orientações
úteis
169
(1) INTERPESSOAL
GRUPAL
Bibliográfica (livros e assemelhados)
Cinematográfica
Fonográfica
Televisiva
Videográfica
Cibernética
Radiográfica
Informativo nota; notícia;
reportagem;
entrevista.
Interpretativo análise; perfil;
enqte;
cronologia.
Opinativo editorial;
comentário;
artigo;
resenha; coluna;
caricatura;
carta; crônica.
Diversional história de
interesse
humano
história colorida
Jornalismo
Utilitário
chamadas;
indicador;
cotação; roteiro;
obituário.
Comercial avulsos;
classificados
encartes; calhau
Institucional empresarial;
governamental;
comunitária;
corporativa;
social; funerária.
Ideológica política;
religiosa;
ineditorial
Propaganda
Legal
edital;
balancetes; atas;
avisos.
Formal apostilas; testes. Educação
Informal
receitas
MASSIVA
Periodística
(jornal e
revista)
Entretenime
nto
Ficção
HQs; contos;
mini-contos;
novelas; poesia
170
Passatempos
palavras
cruzadas;
charadas;
horóscopo.
Jogos dama; xadrez.
Conjunto Modalidade Categoria Gênero Formato
Gêneros informativos nota; notícia; reportagem;
entrevistas; títulos; chamadas.
Gêneros opinativos
(totalmente subjetivos, com
opiniões de colaboradores e
editores)
editorial; comentário;
artigo; resenha; coluna;
carta; crônica.
Gêneros utilitários ou
prestadores de serviços
roteiro; obituário; indicador;
cotação; campanhas;
educacional (testes e apostilas);
ombudsman.
JORNALISMO
Gêneros ilustrativos
ou visuais
gráficos; tabelas;
quadros demonstrativos;
ilustrações; caricatura;
fotografia.
PROPAGANDA comercial; institucional; legal.
ENTRETENIMENT
O
passatempos; jogos; HQ;
folhetins; palavras cruzadas;
contos;
poesia; charadas; horóscopo;
dama; xadrez; novelas.
***
Ao propor a diluição de fronteiras entre ficção e realidade exige-se do
esquema acima alguns rearranjos. Como pensar a cobertura jornalística em
programas considerados ficcionais? E na publicidade quando inserida
acintosamente no meio de programas? E as novelas, que cada vez mais vêm
tematizando assuntos em voga na sociedade? Por que ficção e realidade são as
chaves que enclausuram o “real”, o “verdadeiro” nas trincheiras do continente
informativo (jornalístico)? De acordo com Bucci,
os programas de ficção cada vez mais buscam sustentar-se em
argumentos de realidade (tanto que, no Brasil, a telenovela é
tanto mais presente quanto mais consegue propor uma síntese
do imaginário nacional); quanto aos programas de
171
telejornalismo, estes precisam se adequar a uma narrativa mais
ou menos melodramática (o andamento dos telejornais busca
capturar o telespectador pelo desejo e pela emoção). Ou seja,
ficção e realidade se invertem na (estética da) nova ordem. (2004:
41).
A tradição jornalística é tão apegada a esse ideal, que quando se aventa
a possibilidade de se tratar os relatos como se fossem ficção (leia-se, fabricação)
acionam-se os setores autorizados para tanto, nomeadamente os que se
moldam, digamos, segundo os critérios da literatura. O new journalism,
47
corrente propagada pelo jornalista Truman Capote e iniciada por Trotsky, é o
projeto estilístico que permite conceses. O gesto fundador de Capote foi a
construção do perfil do ator Marlon Brando, publicado em 1956 na revista New
Yorker. O título do perfil do astro foi O duque em seus domínios. Capote já tinha
feito algumas incursões no mundo literário com o romance Other voices, other
rooms.
A propósito, jornalismo e literatura sempre tiveram vasos comunicantes.
Aliás, o embrião do jornalismo encontra-se na literatura. Segundo os relatos
sobre o tema, crônicas, artigos, relatos de viagens e outros registros foram
explorados por escritores como Charles Dickens, Ernest Hemingway, que
cobriu a Guerra Civil espanhola e a Segunda Guerra Mundial, Euclides da
Cunha, que cobriu a guerra de Canudos para o jornal “O Estado de São Paulo”;
a cobertura rendeu, anos mais tarde, a publicação de Os sertões. Na lista
incluem-se, ainda, Mario Vargas Llosa, Gabriel García Márquez e Norman
Mailer. (cf. www.igutenberg.org/newjorna.html. Último acesso em 5 de agosto
de 2006).
Além de Capote, Tom Wolfe e Gay Talese figuram como representantes
do new journalism. Os dois foram contistas da revista “Esquire”. O excerto
47
No Brasil, teve seus dias de glória na revista Realidade e no Jornal da Tarde dos anos 60, e,
mais tarde, na imprensa alternativa, como a seção “Cena Brasileira” escrita com verniz literário
no semanário Movimento, pelo repórter Murilo Carvalho. Em Realidade, ficou antológica a
reportagem de José Carlos Marão sobre Conceição do Mato Dentro (MG), em maio de 1966.
172
abaixo nos ajuda a pensar a contraposição entre ficção e realidade no
jornalismo:
O novo jornalismo, embora possa ser lido como ficção, não é
ficção. É, ou deveria ser, tão verídico como a mais exata das
reportagens, buscando embora uma verdade mais ampla que a
possível através da mera compilação de fatos comprováveis.
Capote, que na vida real era mexeriqueiro e mentiroso, admitiu
que tomava certas liberdades com os fatos quando escrevia
suas reportagens. Os “novos jornalistas” juravam que
tomavam certas liberdades com a fião e respeitavam os fatos,
mas, como faziam algo como “reportagens psicológicas”,
ousavam até transcrever o “pensamento” das pessoas com
quem conversavam. Tento absorver todo o cenário, o diálogo, a
atmosfera, a tensão, o drama, o conflito e então escrevo tudo
do ponto de vista de quem estou focalizando, revelando
inclusive, sempre que possível, o que os indivíduos pensam no
momento que descrevo. (http://www.igutenberg.org). Último
acesso, 5 de agosto de 2006).
Na cultura-mosaico que é a televisão, como disse Moles, não considero
produtivo acomodar a análise do vculo à grade de programação, segundo a
definição clássica dos gêneros. Pode-se até, para efeito de investigação, pensar
num macrogênero (todos os enunciados televisivos resultantes do
entrelaçamento entre som, imagem e escrita). Menos produtivo ainda é
associar a dinâmica dos gêneros à mediação televisiva (é sobre o terreno da
ficção e da realidade que se desdobra a magra contribuição dos gêneros para
explicar a mediação).
Ainda resta dizer, ao final deste sobrevôo, considerando um ponto de
vista prospectivo, que somente a aceitação do caráter inequivocamente
discursivo da TV possibilita um significativo avanço em direção a temas
candentes que vêm ocupando espaço no debate em torno do veículo na
contemporaneidade. Levando em conta as questões que esse caráter antecipa,
indago: que realidade e verdade pretende mostrar a televisão? Que tipo de
prazer ela deseja proporcionar? Qual o conceito de informação que orienta a
classificação dos programas? Como os textos-programa cumprem sua promessa
173
e criam laços identitários? São essas indagações que ordenam as análises dos
programas escolhidos. Por essa via, acredito que terei possibilidade de realizar
mais cabalmente as aspirações do trabalho.
174
PARTE III
NO DOMÍNIO DAS ANÁLISES
175
5
NARRATIVAS TELEVISIVAS: MÉTODOS, PROCEDIMENTOS E
POSTURAS
176
5.1 PLOGO: O INÍCIO DE UM DIÁLOGO
“Primeiro encontre, depois procure”
COM A EPÍGRAFE ACIMA procuro esboçar o horizonte deste capítulo de
análise; ela indica com que espírito vou proceder, digamos assim, à “instância
prática” da tese, prefigurando o ambiente metodológico no qual a pesquisa se
move. O empreendimento não é ir à procura daquilo que está soterrado sob
camadas do indecifrável como meio de encontrar a chave explicativa do que faz
ficção e realidade vetores indistintos no espaço televisivo (advirto: ela já foi
encontrada). Tentarei verificar como alguns vestígios, parcialmente capturados
por meio da imagem, do som e da fala, nos permitem observar o papel dos
discursos televisivos, qual seja, de criadores e mantenedores de laços sociais a
partir da mediação pelo olhar, independente dos gêneros nos quais estão
abrigados.
O espaço da tela, emoldurado por frames em que brotam os discursos, é o
lugar onde tentarei apontar um fluxo narrativo que é, essencialmente, ficcional.
Na superfície luminosa, o olhar bate e ricocheteia liberando fagulhas do real
que respingam na tela, ofertando-nos parcelas de verdade.
Anunciar antecipadamente que já se encontrou a causa, os motivos que
suscitaram a produção desta tese pode soar ridiculamente exagerado, resultar
numa inata aporia, numa contradição insolúvel: se já se sabe os motivos pelos
quais o problema existe por que, então, levar a cabo a pesquisa? Confiança
epistemológica absoluta? Presunção acintosa da pesquisadora?
Desconsideração dos passos do fazer científico?
Muito pelo contrio, não almejo criar um abismo de incompreensão; o
que quero pôr em relevo é que a hipótese inicialmente delineada na confecção
do projeto de pesquisa foi orientada por uma certeza. Dizer certeza não é dizer
verdade absoluta, mas um meio dizer sobre ela. Se nos detivermos por alguns
177
instantes nas discussões sobre epistemologia e ciência, veremos que isso é
particularmente significativo. Gostaria de acentuar de forma mais
fundamentada essa questão para tentar situar, mais precisamente, o lugar de fala
de onde essa pesquisa emerge.
5.2 AS VIAS PROPOSTAS, OS CAMINHOS PERCORRIDOS
Normalmente, o método (caminho para ir em busca de algo) em que se
erige um projeto de pesquisa é determinado pela instância epistemológica que
molda as premissas do trabalho. Como o trabalho está sediado no campo das
ciências da linguagem, quais seriam os caminhos a serem seguidos? Como
estabelecer critérios para realizar a pesquisa? Quais as ferramentas que
podemos utilizar a serviço da investigação aqui deflagrada?
De Descartes às discussões ditas pós-modernas, tomando como
referência a ciência moderna, as tentativas de se descobrir as causas do mundo
que temos diante de nós foram abusivamente marcadas por um conjunto de
orientações e prescrições, muitas das quais foram transplantadas nos estudos da
comunicação, com o fito de conquistar “o lugar ao sol” no mundo científico. A
palavra objeto traz em sua raiz etimológica a tarefa de conhecer: as coisas
devem ser colocadas (jeto) à nossa frente (ob), o que nos permite vê-las, olhá-
las, tratá-las como decifráveis. Mas, não nos iludamos, causamos os efeitos que
desejamos. (Quais as causas do discurso televisivo?). Como diria Saussure, “o
ponto de vista cria o objeto”. O precedente estabelecido pelo lingüista
genebrino conferiu plausibilidade a um antecedente: já somos, per se, orientados
por uma crença. Gadamer também partilha do mesmo princípio de Saussure:
empenhado em liberar o conhecimento das amarras epistemogicas, o filósofo
da hermenêutica diz que compreensão implica sempre uma pré-compreensão
que é, por sua vez, pré-figurada pela tradição determinada na qual vive o
intérprete – e onde modela os seus juízos prévios.
178
Entre as críticas frontais à epistemologia moderna é suficiente, para a
reflexão sobre novos/outros operadores metodológicos no campo da
comunicação, aquela destinada à revisão do empreendimento fundacional, base
da ciência moderna cartesiana, segundo a qual “uma disciplina rigorosa precisa
verificar as crendenciais de todas as reivindicações de verdade. As descobertas
teriam de ser aprovadas no teste”. (TAYLOR, 1995: 14). Segundo Taylor, essas
críticas (de reconsiderar todo o esforço iniciado por Descartes) vem assumindo
foros de uma nova ortodoxia. Para ele, é necessário saber o que exatamente
superar da perspectiva epistemológica clássica. Uma das linhas-mestras que
constitui a crítica ao modelo cartesiano assenta-se nopico da representação.
Como se sabe, a ciência moderna fundamenta-se no princípio segundo o
qual o conhecimento deveria ser visto como a representação correta de uma
realidade independente, como a descrição interior da realidade exterior. Isso
tem uma forte vinculação com a concepção representacional e a nova ciência, de
cunho mecanicista. A mecanização do mundo solapou com a concepção
tradicional ou aristotélica, que era participacional: “quando chegamos a
conhecer algo, a mente (nous) forma unidade com o objeto do pensamento. Isso
naturalmente não quer dizer que estes se tornem materialmente a mesma coisa,
mas que mente e objeto são enformados pelo meio eidos. (Id. Ibid.: 15).
Descartes considera que a ciência ou o conhecimento verdadeiro não
consiste apenas numa congruência entre idéias da mente e realidade exterior. Se
o objeto de minhas especulações vier a coincidir com eventos reais do mundo,
isso não me dá conhecimento dele. A congruência deve advir de um método
confiável, gerando uma confiança bem fundada. A ciência requer certeza, e esta
só se pode basear na clareza inegável a que Descartes deu o nome de évidence. A
confiança que se encontra na base de toda essa operação é a de que a certeza é
algo que podemos gerar por nós mesmos, ao ordenar nossos pensamentos de
maneira correta. Essa confiança é de certo modo independente do resulto
positivo do argumento cartesiano em favor da existência de um Deus veraz, o
179
fiador de nossa ciência. O próprio fato da clareza ser reflexiva tende a
aprimorar nossa posição epistêmica, desde que se entenda o conhecimento em
termos representacionais. (cf. TAYLOR, op. cit.: 17).
Richard Rorty é crítico acerbo da linhagem representacional. No seu
clássico livro A filosofia e o espelho da natureza, ele argúi que as discussões sobre a
mente, o conhecimento e a filosofia têm sido dominadas, desde o século XVII,
pela idéia da representação. A mente é usualmente comparada a um espelho
que reflete a realidade; o conhecimento precisa lidar com esse reflexo. Opondo a
filosofia “edificante” de Dewey, Wittgenstein e Heidegger à filosofia
“sistemática” de Locke, Descartes, Kant, Russell e Husserl, o autor defende o
abandono da procura de corresponncias entre o pensamento (ou linguagem) e
o mundo, bem como da iia de uma filosofia centrada na teoria da
representação.
Tais críticas e relativizões nos liberam de uma ortodoxia metodológica,
que vê no ideal de representação, em estreita aliança com o empirismo, uma
via privilegiada para se alcançar o domínio da verdade, salvar as pesquisas do
mar revolto da incerteza (a comunicação é considerada uma ciência[sic]
empírica), libertá-las da “rígida dependência empírica aos fatos” (S
ODRÉ, op.
cit.: 239), nos dar a prova cabal para a comprovação de nossas hipóteses. O que
tais anotações têm a ver com esta tese?
A digressão torna-se necessária porque uma das conseqüências dessas
exposições respinga no modus operandi do trabalho, visto que não será
subserviente da empiria, ainda que dela se sirva: as análises não cumprirão,
rigorosamente, as etapas previstas para a pesquisa empírica, em que os dados
de amostragem, habitualmente vastos em termos numéricos, são dissecados
exaustivamente à luz de critérios pré-determinados estabelecidos pelas regras
de cientificidade. Explico-me: para as intenções da tese, não importa o
levantamento exaustivo de programas (já que os discursos se repetem), mas
assinalar as causas que provocam as narrativas televisivas diárias: “é pelas
180
conseqüências do dito que se julga o dizer. Mas o que se faz do dito resta
aberto”. (LACAN, 1985: 26).
Além das observações dos tricos acima referidos, as contraposições
advindas de vários flancos nos encorajaram na procura de outros modos e
possibilidades de atuar metodologicamente no campo da comunicação. Ao
puxarmos referências no terreno da pesquisa científica, somos amparados por
um exército combativo. Entre elas, destaco as observações argutas de Karl
Popper. Em Lógica da pesquisa científica (1972), Popper arrola algumas questões,
de acordo com ele, problemas cruciais para a pesquisa científica:
Um cientista, seja teórico ou experimental, formula enunciados
ou sistemas de enunciados e verifica-os um a um No campo das
ciências empíricas, para particularizar, ele formula hipóteses ou
sistemas de teorias, e submete-os a teste, confrontando-os com a
experiência, através de recursos de observação e
experimentação. (1972: 27).
Para o filósofo da ciência aí reside, nas etapas de teste e experiência, um
desafio espinhoso a ser superado pelos pesquisadores, pois as ditas cncias
empíricas caracterizam-se pelo fato de “empregarem os métodos indutivos
(uma inferência, caso ela conduza de enunciados singulares, também
denominados enunciados particulares), tais como descrições dos resultados de
observações ou experimentos, para enunciados universais, tais como hipóteses
ou teorias”. (Id. Ibid.: 73).
O autor contesta, com veemência, o fato de haver justificativa no inferir
enunciados universais de enunciados singulares, independentemente de qo
numerosos sejam estes; com efeito, qualquer conclusão colhida desse modo
sempre pode revelar-se falsa independentemente de quantos casos de cisnes
brancos possamos observar, isso não justifica a conclusão de que todos os cisnes
são brancos. Ele questiona ainda o fato de a validade ou a verdade de
enunciados universais serem pautadas na experiência:
181
Muitas pessoas acreditam, com efeito, que a verdade desses
enunciados universais é conhecida através da experiência;
contudo está claro que a descrição de uma experiência – de uma
observação ou do resultado de um experimento –pode ser
um enunciado singular e não um enunciado universal.
Para Popper, o mais sério problema que o método indutivo acarreta
concerne à falta de demarcação: “minha resposta a tal objeção é a de que a razão
principal de eu rejeitar a gica indutiva consiste, precisamente, em ela não
proporcionar conveniente sinal diferençador do caráter empírico, não-
metafísico, de um sistema teorético; em outras palavras, consiste em ela não
proporcionar adequado critério de demarcação”. (Id. Ibid.: 35).
5.3 UM ALERTA PARA A COMUNICAÇÃO
Em vista dessas advertências, assumo uma atitude de indisciplina, que
tem uma certa dosagem de um dos princípios de Feyerabend, autor de Contra o
método:
(...) a convicção de que o anarquismo, ainda que talvez não seja
a mais atraente filosofia política, é, com certeza, um excelente
remédio para a epistemologia e para a filosofia da ciência. (...).
A hisria está cheia de ‘acidentes e conjunturas e curiosas
justaposições de eventos’ e demonstra-nos a ‘complexidade da
mudança humana e o caráter imprevisível das conseqüências
últimas de qualquer ato ou decisão dos homens. Devemos
realmente acreditar que as regras ingênuas e simplórias que os
metodólogos tomam como guia são capazes de explicar tal
“labirinto de interações? (2007: 31-2).
A anarquia proposta por Feyerabend não significa, em nosso caso,
desprezo pela metodologia, mas sim um outro patamar de diálogo com a
herança do saber científico: “ou seja, no que diz respeito à ciência da
comunicação social é imperativo que se ouse romper com a metafísica
(aristotélica) dos fatos observáveis, onde a indução empirista – gerada pela
tradicional dicotomia entre teoria e observação – tem tentado aprisionar toda a
amplitude do real. Ousar romper, por exemplo, com formulações como a do
182
filósofo Teilhard de Chardin quando escrevia que “é mau para as ciências ter
mais idéias do que fatos”.
48
(SODRÉ, op. cit.: 241).
Algo nos desafia nessa afirmação de Sodré, provocando-nos a
desestabilizar modelos subservientes à quantificação excessiva dos fatos.
Proceder dessa forma exigirá, talvez, um rigor redobrado, como aquele descrito
por Bourdieu em O ofício do sociólogo, onde adverte que a relatividade do
conhecimento do sociólogo não justifica o total relaxamento, a demissão,
tampouco o laxismo. Trata-se de um rigor que, segundo ele, se alinha à aposta
de Pascal num Deus Escondido, de existência incerta e demonstração
improvável, mas que, apesar disso ou, melhor, por isso mesmo, requer uma
profissão de fé mais ousada e mais radical, nem sempre alcançada.
As justas advertências nos fazem pensar. Como poderemos sair dos
incômodos da supremacia da verificação minuciosa do mundo das coisas como
correspondente da verdade, se o conhecimento - visto como um significante -
não recobre o seu referente, mas apenas aparece como construção de seu objeto,
aproximativo, sem realização plena (daí nunca haver tempo para a última
palavra)? Como os estudos da comunicação poderão ser mais inventivos e
criativos, aderindo a operadores metodológicos menos estéreis? Existiriam rotas
de fuga capazes de nos conduzir para outras formas de investigação?
Palmilho algumas iniciativas que podem ser consideradas modelares. O
historiador Carlo Ginzburg aventurou-se na construção do paradigma de um
saber indicrio, um método de conhecimento vertebrado pelas minúcias, pelos
detalhes, mais do que pela dedução. A famosa frase “Deus está no particular
sintetiza o método de Ginzburg. Alberto Manguel, no romance O amante
detalhista, procede de maneira similar a Ginzburg: o homem apaixonado, um
pintor do início doculo XX, se compraz com os detalhes diminutos de sua
48
Eugênio Bucci apresenta “mais idéias do que fatos” em sua tese de doutorado, Televisão objeto:
a crítica e suas questões de método, o que engrandece as análises de TV: “é uma investigação
teórica, sem nada de pesquisa empírica ou estudo de caso. Ao cercar o objeto, em teoria, ela o
constrói”. (2002: 8).
183
amada, vistos de longe (frestas e fechaduras de porta) e constrói uma totalidade
da mulher a partir dos vestígios que ele consegue rastrear.
Ginzburg é, assim, adepto do modelo conjectural ou hipotético abdutivo,
onde os incios mínimos são reveladores de fenômenos mais gerais. Em
Ginzburg, Peirce, Morelli, Freud e Sherlock Homes encontramos uma
irmandade: semiótica, psicanálise, medicina e investigação policial edificam-se
sobre os indícios, os sintomas, não captados pela indução, tampouco pela
dedução:
o raciocínio sugerido por Peirce, a abdução, tem o mérito de
levar em conta a possibilidade de interferência de qualquer
lateralidade, e o fato de que sempre há algo que escapa ao regime
de controle, mesmo na observação. A abdução é a única operação
lógica que apresenta uma idéia nova, pois a indução nada faz
além de determinar um valor, e a dedução meramente
desenvolve as conseqüências necessárias de uma hipótese pura.
(G
OMES, 2001: 32).
É igualmente legítimo, e terapeuticamente mais salutar para o futuro da
metodologia da comunicação, adotar um espírito inventivo, traçar outras rotas
de alises. Como, então, depreender algumas idéias diretoras dessas
orientações? Pelas possibilidades que o campo das ciências da linguagem
oferece, a resposta tem extensão indefinida. No entanto, assinalo que é a
trajetória sinuosa dos significantes que nos interessa, concernente,
extensivamente, à própria trajetória do homem. Segundo Lacan:
O homem, porque é homem, é posto em presença de
problemas queo, como tais, problemas de significantes. O
significante, com efeito, é introduzido no real por sua própria
existência de significante, porque existem palavras que se
dizem, porque existem frases que se articulam e se encadeiam,
ligadas por um meio, uma cópula, da ordem do por que ou do
porque. (1985: 3).
As lições trazidas por algumas disciplinas como semiótica, psicanálise,
antropologia e lingüística - complexo disciplinar que propôs perceber indícios,
rastrear sintomas: para resolver “o enigma, deve-se encontrar as regularidades,
184
esta é a base do método indiciário, abdutivo, proposto por Pierce: o encontrar
regularidades só é possível na diacronia das repetições, na estrutura como
recorrência dessa falta” (GOMES, op. cit.: 33). São dessas repetições que irei me
ocupar grandemente nas análises dos programas televisivos; ao encontrar a
“fórmula” das repetições, arrisco achar alguns arranjos inéditos. Assim, me
aproximo do postulado indicrio, cujo fundamento baseia-se na idéia de que
vai haver sempre um resto de inapreensibilidade, sem cair no desassossego de
tentar dar respostas lineares às insolúveis questões que a TV reiteradamente
traz à tona. Onde os esforços da tradicional concepção racionalista vêem
precariedade, ameaça, fragilidade, podemos avistar foco de criação, motor. O
germe da incerteza contagia toda e qualquer investigação, sendo dela parte
constitutivo.
Uma atitude plausível é considerar que não podemos ter a pretensão de
“desvendar a universalidade do sentido” (Foucault, 1999: 20), o que
corresponde a dizer que não trabalharemos à procura da chave total dos
significados dos programas televisivos. Se assim o fizesse estaria caindo numa
fantástica armadilha, pois os signos vivem à procura de significados que
expiram, perdem a validade no momento em que são encontrados, eis a sua
tragédia, lembra Baumann. (2003). O significado é transitório, ele muda ao
sabor dos tempos (temos ramos e ramos de exemplos: os diagnósticos da ciência
médica que se alternam cada vez mais em velocidade galopante).
O processo de construção de sentidos é revestido por um jogo
imprevisível e instável em que entram em cena disputas, possibilidades,
combinações, exclusões. A fortiori, quando o sujeito absoluto, cartesiano,
proprietário de discursos dá lugar ao sujeito errante, dividido, fundado na e
pela linguagem, não temos como abandonar a idéia da existência de um
assujeitamento em que o discurso inscreve e aloja o sujeito na sua estrutura e
não o inverso; essa condição inexorável faz com que algo escape, fique sempre
de fora daquilo que é possível de apreensão e classificação. Uma ilustração
185
exemplar é a análise do clássico conto de Edgard Poe, A carta Roubada, no
Semirio 11, de Lacan.
Em um insistente jogo de procura pela carta, narrado pelo conto, o
psicanalista francês nos mostra que esse jogo permite observar que o
deslocamento do significante determina o sujeito em seus atos, em seu destino e
ninguém poderia escapar a essa lei. Para Lacan, o importante não é o sumiço da
carta, mas o lugar que os personagens ocupam determinado pelo significante. A
supremacia do significante, nos deixa um ensinamento fundamental: o homem
é habitado e transformado pelo significante, por mais que efetuemos uma
análise criteriosa, sempre ela será deficitária. Ou dito de outro modo, na letra de
Kristeva, ao falar nós somos falados.
5.4
PROTOCOLO DE LEITURA
Essa leitura só é possível porque, apesar das enunciações serem
evanescentes e fugidias no sentido de o nos mostrarem o conjunto das
formações que lhes deram origem, todo enunciado, conforme considera
Pêcheux, “é lingüisticamente descritível como uma série de pontos de deriva
possível oferecendo lugar à interpretação”. (1997: 53). Em nome desse
lingüisticamente descritível o protocolo de leitura
49
aqui adotado é entendido
como um procedimento de análise que não se pretende fechado,
50
mas que
resiste à tentação da letra no seu acolhimento interno como forma de análise. (A
concepção estruturalista stricto sensu sofreu com essa crença). Isto é, o contrato
de leitura entre a análise e os programas procura sustentar-se em elementos
49
Deve-se a expressão a Jacques Derrida. Para ele, necessitamos de protocolos de leitura, apesar
de nenhum deles o satisfazer até então. Utilizo o termo para fazer referência aos modos de
apreensão dos procedimentos metodogicos.
50
Debrando-nos sobre as categorias teóricas arroladas sobre a temática (o discurso e sua
possibilidade de análise) tal procedimento metodológico se justifica, pois nos daremos conta de
que elas perfazem um arco em que o discurso é tomado, inicialmente, como estrutura fechada,
passando por várias cobranças e reflexões, chegando a um ponto em que se rearticula com
outras propostas, tais como aquelas tributárias de sua vinculação com a História.
186
teóricos em converncia com a materialidade discursiva dos textos, na sua
possibilidade sociohistórica, na sua construção imagética, cenográfica e musical
tentando habitar o lugar em que a enunciação emerge nesses programas. Nesse
sentido, a base metodológica que aqui se toma como referência está alicerçada
em alguns pressupostos da semiótica narrativa e da teoria narrativa. Estarei me
movimentando sobre uma estruturação móvel do texto a partir de um certo
mero de disposições operatórias: observar o regimento interno das narrativas
televisivas, sem a ilusão de que ele encerra o seu próprio sentido, o que me faz
alargar tal procedimento para outras contribuições que fornecem pistas para a
execução do trabalho, a exemplo da análise textual, que é de não “reconstituir a
estrutura do texto, mas seguir-lhe a estruturação”. (BARTHES, 1977: 39).
Operar as análises sob a ótica dos significantes é tirar os estudos sobre a
mídia, e a nós, do cativeiro que nos aprisiona, visto que nos aproxima do
coração televisivo, daquilo que faz pulsar as narrativas tecidas diuturnamente
pelo veículo. Para fazer jus ao objeto de pesquisa, parto da técnica do zoom: a
largada se dada de uma tomada ampla da pergunta que ordena a produção
desta tese, sobre um espaço documental que a ultrapasse, mas sem dela desviar
os olhos e, assim que possível, fechar progressivamente o ângulo da objetiva
sobre ela. Jorge Luis Borges já teria dito que os grandes problemas já foram
pensados, de modo que a proeza do tempo é a de levar o ser humano a
incansavelmente recolocá-los sob novas e mais alargadas entonações.
Até o momento cultivo a idéia de que as análises sobre televisão
precisam conhecê-la por dentro, notá-la a partir de sua estrutura significante,
porquanto a TV se tornou o que se tornou por se ajustar como uma luva a uma
demanda contemporânea, como frisei no segundo capítulo: ela coroa um
projeto já definido com as máquinas de imagens mecânicas (fotografia e
cinema), indo mais longe que esses dois dispositivos imaticos, pois conseguiu
satisfazer, como um braço forte da indústria cultural, as mudanças que se
desenhavam na sociedade contemporânea, em que a busca de expressividade
187
em que tudo se quer ver estampado na superfície do mundo, na ênfase do
gesto, no trejeito do rosto, na eloqüência da voz. Tudo isso envolve uma
pedagogia, como lembra Xavier, “em que nosso olhar é convidado a apreender
formas mais imediatas de reconhecimento da virtude ou do pecado” (2003: 39).
Daí a procura de outros modos de investigação que sejam capazes de dar conta
dos processos mais profundos de sua realidade específica: a promoção de
vínculos, a instauração de laços sociais. Insistimos: as pesquisas
consuetudinárias estão, em sua maioria, atreladas a metodologias exógenas
(lógica do mercado e da economia, da psicologia do receptor, do poder do
emissor).
Recuperando as perguntas no final do capítulo anterior, desfiarei, como
uma criança, uma interminável sucessão de por quês (por que as vinhetas são
construídas desse ou daquele modo? Por que a voz dramática do(a)
apresentador(a) em determinadas situações? Por que Fátima Bernardes e
William Bonner, por vezes, parecem mais atores do que apresentadores?).
Tudo isso, podemos dizer a princípio, são platitudes. Mas, considero por ora
que não: as perguntas aparentemente ingênuas que as crianças fazem, com um
olhar espantado, revelam que elas, as crianças, vêem algo que o adulto cessou
de ver. Como relatado em várias obras, Pablo Picasso costumava adotar como
ssola, guia de sua pesquisa, o olhar que tinha sido dele aos dois anos. O olhar
do pintor implica em reencontrar uma inocência que autoriza, graças às
auncias de mediação pelo saber, a idéia de um frescor inaugural do espírito
livre dos preconceitos trazidos com o saber.
Como o adulto de olhar viciado, acostumamos-nos com a música de
abertura do Fantástico, parecemos não escutar os fundos musicais que
acompanham algumas reportagens/narrativas televisivas, tampouco ficamos
atentos aos recursos de imagens... Todos esses “modos de ser” da narrativa
televisiva fixam o hábito da assistência dos programas televisivos, nos tornam
espectadores, visitantes, alguns moradores permanentes, de um mundo que, ao
188
que tudo indica, tornou-se telegico, emoldurado pela tela. As perguntas
rotineiras visam suturar os buracos de um tecido de coisas, lançar um feixe de
luz que, aclarando algo, conserva sua origem na obscuridade. Antes de chegar
lá, um último desvio.
5.5 TATEAR, CAÇAR, CONJECTURAR: A DIFÍCIL BUSCA DA COMUNICAÇÃO
ESPERO TER DITO O SUFICIENTE ACIMA para justificar o caminho
metodológico da tese. No amplo painel das ciências empíricas, os estudos da
comunicação procuram seu lugar. As diversas teorias, de acordo com o que foi
explanado no primeiro capítulo, vislumbraram vários modos de pensar os
“fenômenos comunicacionais”, inflacionadas por um vasto receituário que
procura orientar pesquisadores em como analisar os produtos midiáticos. Não é
incomum se cair na tentação de fazer um buquê com todas as flores que se
encontra no jardim da pesquisa comunicacional, bordejando o campo.
Se as discussões sobre o estatuto teórico da comunicação provocam um
agigantamento do campo, como atesta Sodré (2001: 273), os procedimentos
metodológicos que dele decorrem igualmente são tema de perspectivas
controversas. As tentativas de criação de cânones metodológicos são
assombradas permanentemente por alguns fantasmas. Para fincar a
comunicação no universo das ciências humanas, pesquisadores vêm
agonisticamente tentando delinear um escopo metodológico que a ela seja
peculiar. Iniciada entre os anos 20 e 30, com o paradigma de Lasswell, a
metodologia da comunicação foi orientada por uma visão fragmentada e
parcelar do processo de comunicação (emissor, canal, mensagem e receptor) (cf.
Lopes, 2001).
A cada elemento desse processo uma especialização (estudos do emissor
foram vinculados à economia política; os estudos do canal, associados à análise
tecnológica; as análises da mensagem assentaram-se na lingüística; as
investigações sobre o receptor transferidas para os campos da sociologia, da
189
psicologia ou da antropologia). O emissor, o “todo poderoso”, corresponderia a
instituições, fundadas sob a lógica do mercado, manejadas por pessoas
especializadas; o receptor, grupo numeroso, heterogêneo e disperso (e
normalmente o mais frágil); o canal recobriria os recursos tecnológicos, a
mensagem concerne aos conteúdos simbólicos. Lopes traça uma linha do
tempo para os estudos comunicação, disposta da maneira abaixo:
1 Década de 50: implantação do mercado cultural: pesquisas funcionalistas
baseadas em métodos quantitativos de conteúdo (dos meios,
principalmente imprensa); de audiência (IBOPE e MARPLAN) e de
efeitos (sondagens de atitudes e motivações);
2 Década de 60: bases industriais do mercado cultural - Pesquisas
funcionalistas descritivas com base em métodos comparativos
(CIESPAL) e de estudos de comunidade (difusão de inovações), dentro
da linha de pesquisa de Comunicação e Desenvolvimento; Primeiros
estudos críticos sobre indústria cultural através da teoria da escola de
Frankfurt (temática da manipulação), com metodologias mais
qualitativas;
3 Década de 70: consolidação do mercado cultural – Pesquisas
funcionalistas descritivas sobre políticas de comunicação nacionais e
internacionais (Comunicação Política); pesquisas críticas sobre indústria
cultural com temáticas da manipulação, dependência e
transnacionalização, com metodologia sócio-semiológica;
4 Década de 80: expansão do mercado cultural – pesquisas funcionalistas
sobre aspectos sistêmicos da produção (técnico-profissionais) e da
circulação da comunicação. (linhas de pesquisa: comunicação nas
organizações, comunicação institucional, práticas profissionais); estudos
críticos de modelos teóricos e esforços para elaboração de uma teoria e
metodologia da comunicação latino-americana; pesquisas de forte
influência gramsciana com metodologias qualitativas; diversificação das
190
temáticas: recepção, comunicação e cultura popular, tecnologias de
comunicação, linguagens dos meios, comunicação e educação, ensino da
comunicação
5 Década de 90: globalização do mercado cultural – pesquisas sobre
tecnologias da comunicação e linguagem dos meios, revisitando teses
mcluhianas; modelos de pesquisa interdisciplinar e qualitativa,
principalmente em estudos de recepção, etnografia de audiência e de
fião televisiva; (Id. Ibid.: 45).
O esquema proposto por Lopes possui a virtude pedagógica de
inventariar as pesquisas desenvolvidas na área da comunicação ao longo dos
anos, mas algo fica claramente de fora na sua sistemática classificação. É
escusado dizer que as teorias não sucedem umas às outras em progressão
linear, ainda que não tenha sido essa a intenção da linha traçada por Lopes. Os
vestígios e reminiscências provocam a renovação do já estabelecido, do
pensado, sem fazer das teorias velhos automóveis jogados em depósito de
ferro-velho. Ao insistirmos em apontar que habitualmente os estudos da
comunicação, especificamente os de televisão, falam pouco de televisão
51
(se nos
for permitido o oxímoro), não queremos imprimir “sobretons evolucionistas
darwinianos”, como diz Stam (2003), instaurando competição de qual teoria
deverá prevalecer, mas operar mudanças de ênfase – motor da construção do
conhecimento.
51
A tese de Bucci é um bom exemplo de que falar sobre televisão não corresponde,
necessariamente, a uma vinculação direta aos seus programas. Quando afirmo que tais estudos
falam pouco do vculo, estou sinalizando para a fragilidade que eles apresentam em pensar as
queses sociais, políticas e econômicas a partir da própria TV e não o contrio.
191
5.6 NEM TANTO AO MAR, NEM TANTO A TERRA: QUAIS AS POSSIBILIDADES
METODOLÓGICAS DE SE ANALISAR A TELEVISÃO?
Em meio à espinhosa discussão sobre os rumos científicos e
metodológicos da comunicação, os estudos de televisão parecem ficar à deriva.
A heterogeneidade discursiva do material televisivo parece tornar ainda mais
embaraçosa uma tomada de posição metodológica que seja pacífica.
Inapelavelmente, um primeiro problema se ime: as inevitáveis queixas de
todo pesquisador do veículo repousam sobre a sobreposição de significantes,
traço que confere diferença substantiva à TV em relação a outros meios. Freitas
parte do entendimento de que pensar a televisão tem como contrapartida a
“forma própria dessa mídia, no qual se encavalam: sons, imagens, falas e
inscrições escritas”. (1999: 2). Na tentativa de oferecer modos de análise, ela
questiona: “como estabelecer sobre o princípio da determinação da função do
significante, uma hierarquia que permita a fixação de prioridades, frente à
sobreposição dessas materialidades distintas nas emissões televisivas?” (Id.
Ibid.: 2).
Em Arlindo Machado encontramos uma reclamação comum: “Enquanto
filmes e romances são unidades relativamente discretas, os programas de
televisão são objetos muito mais diversificados, quando não mais complexos e,
nesse sentido, mais difíceis de analisar”. (2007: 1).
Ora espelhando-se nos estudos sobre cinema no que tange à análise do
filme, ora anexando-se às pesquisas das mídias em geral, as investigações dos
programas televisivos ainda padecem com a falta de terririo próprio sobre o
qual o pesquisador possa encontrar sustentação, tateando em vários
departamentos disciplinares uma metodologia coerente. Muitas propostas
foram elaboradas com o objetivo de transpor esse imbróglio.
192
França, ao analisar os programas populares de TV,
52
pondera que a
análise do veículo avançou significativamente sob diversos aspectos. Para ela,
um dos mais importantes foi a superação da fase de saber “o que a televisão faz
à sociedade”, da concepção maniqueísta e totalizadora, abrindo caminho para
estudos que oscilam na análise do produto (mensagem ou forma discursiva) ou
da audiência (condições de recepção), atentos aos diferentes papéis que ela
desempenha. (cf. FRANÇA, 2005: 89). O progresso não isenta a autora de fazer
reconsiderações em torno dessa nova/outra perspectiva, porque segundo ela:
Alguns excessos, no entanto, foram cometidos nesse caminho:
uma linearidade ao inverso, um ênfase excessiva no receptor,
uma valorização indiscriminada dos usos, assim como uma
fragmentão da abordagem e uma sociologizão dos estudos
de recepção em detrimento da apreensão do processo e do
próprio enfoque comunicacional. (Id. Ibid.: 90).
Acedo às críticas formuladas por França, embora não caminhe com ela
em todo seu trajeto. Se é inegável que as pesquisas televisivas conseguiram se
livrar do espartilho que as asfixiava, igualmente verdadeiro é o fato de que elas
palmilharam “o caminho das mediões direcionado estritamente para o lugar
da recepção e para o contexto cultural – com freqüência desviando-se da
comunicação”. (Id. Ibid.: 93).
Desenha-se com esses avanços e mudanças de enfoque na
pesquisa televisiva, perspectivas que parecem gravitar nos
extremos. Pesquisadores da área, incansavelmente, procuram
um substrato metodogico que seja apropriado: onde buscar a
globalidade, a apreensão do processo, o confronto das partes? O
que é analisar uma relão, ou a dinâmica relacional que
reposiciona os elementos de um processo e confere a
singularidade daquela situação ou fenômeno? (Id. Ibid.: 92).
52
O artigo versa sobre uma pesquisa em andamento denominada Problemas metodológicos e
conceituais na análise de programas populares de TV. In.: C
APPARELLI, Sérgio, SOD, Muniz &
S
QUIRRA, Sebastião. A comunicação revisitada. Porto Alegre: Sulina, 2005.
193
A agonia foi sentida antes pelo primo-irmão da TV: o cinema. Raymond
Bellour propôs
53
uma espécie de sub-disciplina voltada a um estudo mais
aprofundado e mais rigoroso dos filmes enquanto entidades singulares, de
modo a superar a mera descrição ou a mera opinião sobre um trabalho
cinematográfico.
Para o autor, a maturidade que o cinema atingira na década de 70 o
tornou titular de uma proposta metodológica consistente, superando a práxis
da crítica de cinema, normalmente marcada pelo impressionismo. Ainda
segundo Bellour, a alise do filme poderia “se beneficiar das últimas
conquistas da semiótica, dos estudos culturais, da psicanálise ou das ciências
cognitivas para propor uma nova forma de abordar os filmes.” (2007: 14).
Machado inspira-se na proposta de Bellour, e afiança ser possível a busca de
“métodos mais precisos de análise de programas, que possibilitem resultados
mais densos em termos de compreensão da real capacidade da televisão
dialogar com o mundo em que está inserida. Por razões diversas relacionadas
com as estratégias das especialidades que buscam entendê-la, a televisão
produziu pouca reflexão analítica...” (Id. Ibid.).
O problema torna-se ainda mais embaraçoso caso retrocedamos para a
hipótese do trabalho, que considera que a televisão costuma extinguir os limites
entre os programas, ou inserir um programa dentro do outro, a ponto de tornar
difícil a distião entre um programa ‘continente’ e um programa ‘conteúdo’.
Raymond Williams recusa o conceito estático de programa, por considerar que
53
Wilson Gomes, professor da Faculdade de Comunicação Social (FACOM) da Universidade
Federal da Bahia (UFBA), empreendeu pesquisa sobre a construção de um aporte metodológico
para a análise de TV. Além de pesquisadores da área, as tentativas de construção de um
referencial teórico-metodológico para o estudo do veículo vêm despertando o interesse de
profissionais e pesquisadores de outros departamentos disciplinares, expressamente da
educação. O interesse mais geral é suscitado pelo fato de que num mundo marcado por uma
profusão de textos, como o nosso, o televisivo ocupa papel de destaque. Vivemos hoje, como
lembra Maingueneau, imersos em uma profusão de textos tão efêmeros quanto invasores, a
exemplo dos panfletos, jornais, cartazes, guias turísticos, malas-diretas de propaganda etc.
(2000: 11).
194
na televisão não existem unidades fechadas ou acabadas, que possam ser
analisadas separadamente do resto da programação. Para ele, mais do que de
programas, a TV se faz de fluxos, em que os limites entre um segmento e outro
não são mais considerados tão marcados com em outros meios.
Mesmo sofrendo críticas (Machado, por exemplo, considera que o
conceito de fluxo empastela toda a produção televisiva num caldo homogêneo e
amorfo), concordo com o conceito de fluxo instituído por Williams, porque
permite observar a televisão como um acervo de trabalhos audiovisuais, cujo
denominador comum é a prodigiosidade de narrar. As distinções, a meu ver,
inexistem nesse patamar, o que tentarei demonstrar no próximo capítulo.
195
6
PROGRAMAS TELEVISIVOS: FLUXO NARRATIVO NAS VIAS DA
FICÇÃO E DA REALIDADE
196
6.1 MATERIALIDADES DISCURSIVAS: VERBAL, IMAGÉTICA E SONORA
Todo o percurso anterior se impôs como forma de balizar as análises que
aqui serão empreendidas. O como analisar nos impeliu na trilha de um percurso
que justifica determinadas tomadas de posão no momento da faina analítica.
Concebemos as narrativas televisivas como um sistema de escritura, entendido
como o processo pelo qual a cena do enunciado é montada por meio da fala, da
imagem e das inscrições sonoras. Cena, encenação e montagem são expressões que
revelam a perspectiva adotada. Tal concepção não pretende pôr o processo
(profissional) de feitura dos relatos televisivos numa saia justa, reduzi-los a
simples engodo, rebaixá-los à brincadeira de criança, fazer troça dos empenhos
dos profissionais do texto e da imagem, mas vê-los como a trama urdida do
Imaginário que consti um quadro comum de referência, alicerce que sustenta a
estrutura do como “fazer televisão”. A propósito, o “como fazer” é cada vez
mais celebrado pela neotelevisão, por meio do making of, cuja aguda valorização
do “processo em andamento”, do roteiro, da exposição do bastidor, impacta
sobre as noções de tempo e espaço televisivos.
Como vimos insistindo, esse como “fazer televisão” liga-se
irremediavelmente aos modos contemporâneos de o homem se relacionar
orquestrados pela cena da imagem (assim como foi o melodrama no século
XVIII, o teatro no século XIX e, posteriormente, o cinema). Todo o esforço volta-
se, então, para demonstrar que a lógica de articulação da fala, da imagem e do
som compõe uma sintaxe que possui uma afinidade secreta com o estrondoso
sucesso televisivo, conquanto todas as mídias procedentes.
Estamos mais próximos da hipótese do trabalho, anunciada sob
inumeráveis formas ao longo dos capítulos. Como fazer as conjunções entre os
operadores (técnicos) de construção da narrativa televisiva com aquele que tem
sido o grande tema – o da mediação - que o veículo plantou nos estudos sobre
as mídias? Desde que a tela televisiva fincou raízes nos espaços domésticos, ao
que parece muito profundas, essa questão não cessa de nos interpelar. E ainda,
197
como sustentar as indiferenças entre o ficcional e o real televisivos? Esta última
pergunta não é inteiramente separada da primeira.
Estabeleci um protocolo de leitura que almeja visitar os bastidores da cena
televisiva, que, como todo bastidor, deixa escapar, no palco, certos modos de
composição da cena. Os vestígios e marcas poderão ser percebidos na superfície
da tela, iluminada por traços (de enunciação) que nos deixam amarrados ao que
jorra no écran.
Três balizas, formuladas em Barthes, orientam o nosso trajeto: elementos
da teoria (reflexão teórica já empreendida); domínios (propostas de análise
sinalizada pelo patrimônio trico); e análise (experimentação do método,
levando em conta os traços de enunciação: palavra, imagem, dispositivo sonoro,
cenografia). Desta feita, a análise se assenta sobre: o discurso verbal, o imagético
e o sonoro.
1) A LETRA, O DISCURSO (VERBAL)
Em virtude da tradição teórica já consolidada a respeito do tema, não
dispensarei a esse item explicações detalhadas. Anuncio, apenas, que nele me
ocuparei em apontar os vestígios dos textos, antes falas (observação dos
elementos dos textos e das suas marcas lingüísticas).
2) A IMAGEM, O (OUTRO) DISCURSO
Para além de recursos da fala procuro me apoiar nos recursos
visuais (em movimento e ao vivo) – elemento distintivo dos enunciados
televisivos. Se a imagem é uma mensagem visual composta de diversos tipos de
signos isso nos permite considerá-la como uma linguagem, como uma
ferramenta de expressão e comunicação, conforme considera Joly. (1997: 27).
Parafraseando Deleuze podemos formular as seguintes questões: “o que
para ver na imagem? O que impulsiona o desejo de ver mais, de ver atras?
(1992: 88). E formulando as minhas próprias indagações: Como a imagem
198
institui os programas aqui analisados? Como ela é produzida de tal sorte que
seja considerada soberana, como testemunha autorizada porque ocular dos
fatos captados pela lente? Uma vez que a imagem na qual estou lidando é a
imagem em movimento, qual a sua dinâmica de produção? Na esteira dessas
considerações questiono: o que representa/apresenta a imagem televisiva? Quais
os seus mecanismos de produção?
No que tange ao jornalismo, adianto que o seu labor constitui-se,
invariavelmente, como prática social que textualiza dada realidade, porque dela
empreende uma leitura de mundo, daí a necessidade de impor-se,
continuamente, como espelho do real.
Para Godard palavra e imagem são como cadeira e mesa: “se você quiser
sentar à mesa, precisa de ambas”. (1997: 114). Na esteira da citação de Godard
planejo articular texto e imagem produzidos pela televisão, realçando as
estratégias discursivas por eles adotadas, mesmo levando-se em conta que a
imagem assim como os textos alimentam-se a si mesmos, possuem
características próprias. Postular uma articulação entre imagem e texto não
resulta, portanto, numa relação de dependência, mas de completude (que não
se alinha com a frase equivocadauma imagem vale mais que mil palavras”) e
coexistência.
O princípio que norteia esse item é o de que a imagem é um texto, uma
narrativa que possuidigos próprios, leis e dinâmicas específicas, em suma,
uma ortografia. Uma orientação primordial é a que considera que “as imagens
mudam os textos, mas os textos por sua vez mudam as imagens”, resguardando
as devidas particularidades de cada matriz discursiva. A esse modo, serão
consideradas algumas funções, aparentemente, mecânicas como, planos de
enquadramentos, manipulação do zoom, profundidade do foco, estratégias de
proximidade e consentimento, posição do entrevistador e do entrevistado:
Análise do discurso visual: descrição dos dispositivos imagéticos,
processo de produção (narrador, zoom, profundidade de foco,
199
enquadramento, iluminação, edição etc.), contigüidade com o
dispositivo pictórico e fotográfico;
3) O SOM, (MAIS UM) DISCURSO
O som agrega-se a esses dois tópicos (fala e imagem) e acaba por
delinear a noção de cena que evocamos acima. Dispenso a ele explorações mais
extensas do que as que foram dedicadas aos itens precedentes pelo caráter
novidadeiro que o dispositivo sonoro ainda possui para a maioria das pesquisas
sobre TV. Ainda que seja explorado com certa parcinia, ocupando um papel
coadjuvante nos meios audiovisuais (pode-se dizer que o cinema avançou
significativamente nesse particular), parto do entendimento que o som exerce
uma função estrutural nas narrativas televisivas, como veremos a seguir.
Um lembrete: cabe o esclarecimento de que embora se esteja ciente de
que a fita sonora seja composta por três grupos (falas, ruídos,sicas), a
referência apenas à música e a outros tipos de ruídos enquanto elementos
sonoros se dá aqui estrategicamente. Se formos tomar o conceito de som
formulado por Wisnik que diz “o som é uma energia em forma de onda
produzida pela vibração dos objetos” (1989: 43) o conceito ganha amplitudes,
sendo capaz de recobrir outras modalidades sonoras que não apenas a musical.
Pela sua expertise, o cinema será o combustível para adentrarmos nas
discussões sobre o universo sonoro, pois foram os cineastas que teceram
discursos fundadores sobre a presença do som na veiculação de imagens. De
mero acompanhamento (a atmosfera cinematográfica era criada pelos solistas
do piano), passando pela fuão de abafar o barulho do projetor, o som é visto
em Enseinstein, no clássico Encouraçado Potemkin (1925), na sua integração
absoluta com a imagem, indo de encontro à criação da teoria do filme sonoro
que se insinuava à época. Na década de 1920 um marco desponta no horizonte:
o som passa a ser visto em sua expressão dramática, constituindo a sintaxe do
meio, composto pela experiência ótica e acústica. Os estudos sobre o cinema,
200
fundamentalmente focados na imagem, com invariáveis comparações à imagem
fotográfica e pictórica, passam a reclamar a presença do som como um dos
elementos que constituem a vértebra da estrutura dos filmes.
Embora a presença física do som tenha se dado em 1927, o cinema já o
demandava desde sua exibição inaugural. De um dispositivo que nasceu mudo,
ou melhor, silencioso, – como lembra Deleuze –, ou surdo, – como apontou
Michel Chion(1989) –, a “sétima arte” desde os seus primórdios pedia o falado.
Como se costuma lembrar, a primeira projeção pública, A chegada do trem, dos
irmãos Lumière, despertou a sensação de ritmo; os elementos visuais
reativaram a lembrança do som do trem, do ritmo de suas rodas. Mas, como
disse, apesar de sua presença imaginária na primeira exibição cinematográfica,
o som começou a integrar o universo cinematográfico como auxiliar de segunda
categoria. Ele era utilizado como uma forma de despertar a atenção do
espectador, já que o assistente não poderia se distrair com o ruído do projetor.
Era necessário criar um ambiente em que a atenção do assistente pudesse estar
focada na película e, ainda mais, que ele estivesse a par do que era exibido:
Geralmente, o “diretor” acompanhava a projeção dos filmes
com os seus comentários, explicando ao público, ao se ver um
cachorro, que se tratava de um cão, e ao ser um trem, que se
tratava de um “comboio ferroviário”. Não se projetavam ainda
textos e o comentário era indispensável. Um piano menico
cobria o ruído desagradável do projetor primitivo, ainda não
isolado num compartimento especial. Este período pioneiro
estendeu-se, na Europa, de 1896 até mais ou menos 1906-1907,
embora já em 1990 se contassem dois cinemas fixos na
Alemanha e um na América do Norte (Los Angeles), ao passo
que os novaiorquinos só em 1905 podiam gabar-se de possuir
um cinema que não fosse ambulante. (R
OSENFELD, 2002: 68).
Deleuze aponta, com maestria, que um desdobramento importante da
instauração do som no mundo cinematográfico se dá com a mudança de estilo:
antes o cinema tinha no discurso indireto a segunda função do olho (além da
imagem que era vista, o intertítulo era lido). O intertítulo compreendia os atos
201
de fala por excelência do veículo. Em sendo escriturais, os atos de fala
passavam para o estilo indireto (o intertítuloVou te matar” era lido sob a
forma “Ele diz que vai matá-lo”). Segundo o filósofo do cinema: “(...) a imagem
visual remete a uma natureza física inocente, a uma vida imediata que não
precisa de linguagem, enquanto o intertítulo ou o escrito manifesta a lei, o
proibido, a ordem transmitida que vem quebrar essa inocência, como em
Rosseau”. (op. cit.: 267-8).
Essa operação do cinema mudo relaciona-se, para Deleuze, com o par
História-Natureza porquanto a imagem normalmente é naturalizada, já que nos
o ser natural do homem na História ou na sociedade, enquanto o outro
elemento, o outro plano que se distingue tanto da História quanto da Natureza,
entra num ‘discurso’necessariamente escrito, isto é, lido, e posto em estilo
indireto. Por isso, o cinema tem de entrelaçar ao máximo a imagem vista e a
imagem lida. (Id. Ibid.: 268).
O cinema falado vem alterar significativamente os modos de apreensão
de filmes, pois o ato de fala não remete à segunda fuão do olho, já não é lido,
mas ouvido: “O falado, o sonoro deixam de ser componente da imagem visual:
são o visual e o sonoro que se tornam dois componentes aunomos de uma
imagem audiovisual, ou, mais ainda, duas imagens heautônomas. É o caso de
dizermos, com Blanchot: falar não é ver”. (Id. Ibid.: 307).
A questão antecipada por Eisenstein passa a ser o calcanhar de Aquiles
dos operadores de cinema: como fazer para que o som e a fala não sejam mera
redundância do que se vê? Este problema não negava que o sonoro e o falado
fossem um componente de imagem visual, ao contrário; era na qualidade de
componente específico que o som não devia ser redundante com o que era visto
no visual.
É na integralidade absoluta com a fala e a imagem, pregada por
Eisenstein, que o som também deverá ser observado no discurso televisivo.
Para além de acompanhante de segunda categoria, como nos prirdios do
202
cinema, ele será visto em sua função essencial, de repetição dos discursos sem
que dela nos apercebamos, de estruturação das narrativas. O discurso sonoro
não está num nível apenas acessório, ornamental em relação aos demais.
Timbre, intensidade, tons agudos, graves, melodia, harmonia, duração,
conferem aos discursos televisivos e, em especial, aos jornalísticos, sentidos
peculiares. A inscrição do som na TV indicia o suspense, a alegria, o horror, a
complacência de repórteres, apresentadores(as), entrevistados.
Em tempos de incontestável convergência midiática, da hipermídia, onde
a floresta de signos, para usar a expreso de Baudelaire, torna-se ainda mais
densa, essa discussão torna-se indispensável. Muitos pesquisadores vêm se
dedicando com afinco à integração das linguagens/dispositivos, a exemplo de
rgio Bairon. No livro Texturas sonoras, o autor explora as possíveis relações
entre as experimentões sonoras de Murray Schafer, Pierre Schaeffer e John
Cage, dentre outros, e a linguagem hipermidiática e apresenta a criação de
texturas sonoras desenvolvidas para a hipermídia A casa filosófica. Em ambos os
momentos investiga a relação entre arte e ciência, sobretudo por meio do
diálogo com os processos de criação sonora presentes em produções
hipermidiáticas. A ênfase é dada ao lugar que as expressividades
hipermidiáticas (em sua dimensão sonora) podem ocupar no meio acadêmico,
como uma legítima forma de reflexão conceitual, na mesma dimensão de
maturidade já alcaada pelas manifestações verbais (cf. BAIRON, 2005). Só se
pode falar de uma estética televisiva em sua impureza congênita, pois há uma
relação irredutível dos sentidos, vemos, lemos e ouvimos de um golpe só.
Apesar de seu significativo papel na formação das mídias sincréticas
existem várias resistências em se pensar som nos programas do veículo. Para
muitos estudiosos, a associação da imagem com a música é, na melhor das
hipóteses, impensável. Machado detecta três motivos como sustentadores dessa
rejeição: a) o primeiro deles seria a resistência em considerar qualquer tentativa
de representação das imagens em música; b) o segundo seria a não-aceitação de
203
um certo tipo de recepção musical, bastante generalizado entre ouvintes
‘leigos’ que consiste em traduzir mentalmente em imagens os estímulos sonoros
da música”. (2000: 154); c) o terceiro motivo estaria ligado ao não
reconhecimento que música e imagem agem complementando-se uma à outra.
Quem defende este último argumento acredita que a imagem é um elemento
meramente dispensável, ela não contribui em nada para a formação do discurso
musical e, mais grave, ela seria uma ameaça à peça musical visto que o processo
de decupagem do recurso imatico compromete a originalidade do recurso
sonoro. As contestações e resistências dos chamados puristas se enfraquecem
quando registramos em tempos anteriores o uso da música para outros fins que
não somente o de apreciação sonora.
Machado fragiliza tais argumentos frente à relativa incipncia da peça
musical em sua autonomia. Só no século XVI, mais precisamente com a
colaboração de Beethoven, que se percebe a emergência da música como
elemento que basta a si mesmo, dissociada de palavras, gestos,
acompanhamento visual (cenários e cenografia). Antes disso, a peça musical
esteve intrinsecamente ligada ao “plano instrumental ou ao entretenimento da
corte e ainda ao acompanhamento litúrgico”. (Id. Ibid. 155). Nem mesmo os
contemporâneos como Mozart e Haydn, continua Machado, conseguiram
elaborar sinfonias como um código compreensível em si mesmo: a própria idéia
de se escutar uma obra em silêncio, com uma concentração comparável à da
reflexão ou da leitura, causaria espanto às platéias de 250 anos atrás.
(NESTROVSKI, 1996).
O processo de desenvolvimento da indústria fonográfica provocou
profundas alterações nesse panorama dando à música, em definitivo, um
caráter autônomo. O disco e odio possibilitaram que outras intervenções
pudessem ser eliminadas e a música apreciada na sua especificidade sonora.
Embora a música possua um estatuto próprio, ela assume tonalidades
específicas que herda da narrativa de ficção a habilidade para lidar com o
204
sonoro (o cinema e as radionovelas deram o seu quino de contribuição para
tal possibilidade). O que o telespectador escuta, além das narrações dos
repórteres, apresentadores e entrevistados? De que forma a audição é
empregada para fixar hábitos (como o de sentarmos religiosamente em frente à
TV quando a música do Jornal Nacional nos invoca?
Considerando a orientação técnica de que o telespectador não ouve o
som de diversas fontes, mas a representação sonora desses sons, arrisco dizer
que tal representão sonora aciona as habilidades do telespectador de acordo
com a pré-disposição sensorial de cada um, pois a TV apela para o som que
reveste os discursos – elementos significantes que são apreendidos pelo
assistente na confluência do ver/olhar e do ouvir concomitante. Se o ouvir
sue, aparentemente, uma “recepção passiva” já que “quando ouvimos algo e
queremos dar uma resposta devemos utilizar outros caminhos de comunicação:
falar, escrever ou gesticular” (SALINAS, 1994: 7), como os sons ecoam nos
ouvidos dos telespectadores que se põem diariamente a ver e ouvir os
programas televisivos? Algumas classificações do ato de ouvir nos fornecem
pistas sobre a função do som:
1 Atenção auditiva: é a capacidade de os telespectadores darem respostas a
qualquer estímulo sonoro, já que todos os sons provocam um feedback;
2 Figura/fundo auditiva: refere-se à seleção de um estímulo sonoro numa
gama de sons apresentados. Os pontos altos da narração dos programas
são ritmados com sons que carregam em intensidade e timbre elevados;
3 Discriminação auditiva: diz respeito à capacidade de perceber difereas
e semelhanças entre os sons emitidos;
4 Memória auditiva: consiste no armazenamento do material sonoro. As
possíveis lembranças que os telespectadores têm de programas
televisivos quando escutam alguma música ou elemento sonoroo,
obviamente, explicadas por essa chave;
5 Análise auditiva: separa as informações sonoras recebidas. O vídeo-
205
ouvinte tem a capacidade de saber quando a notícia se refere a
determinado tema a partir do diapasão sonoro;
6 Síntese auditiva: reúne os fragmentos auditivos com vistas à composição
de uma informação sonora;
7 Seqüenciação auditiva: concerne à lembrança do repertório sonoro a
partir da ordem seqüencial em que é apresentado. Os programas
televisivos possuem uma ordenação discursiva que é hierarquizada com
e pelos elementos sonoros.
Aparici demonstra que a presença do som no universo audiovisual é
estimulada por várias expectativas e intenções: “(...) como fator de ambientação
de uma época, de uma localização específica etc.; como elemento de
caracterização de personagens e seqüências; como fixador do ritmo interno da
narração; como definição psicológica de seências – humorísticas, tristes,
épicas etc. -; como narração do tempo do relato; como antecedente ou rubrica de
situações; como sutura, encadeamento e transição; como elemento protagonista
por si mesmo, em primeiro plano, quando a ação assim o requer”. (apud
S
ALINAS, 1994: 131). Tal categorização se evidencia em algumas inseões do
som nos programas analisados:
1 Fundo musical suave: situações amenas, suaves ou desfechos de
seqüestros, ações de solidariedade, assaltos em que a vítima sai
incólume, campanhas beneficentes;
2 Fundo musical elevado: situação tensa, notícia pesada, fim trágico da
narrativa;
3 Oscilação no fundo musical: passagem do apresentador para a
reportagem;
4 Som ambiente (barulho de carro, falas sobrepostas): impressão de
realismo (muito utilizado nas coberturas ao vivo).
206
Uma vez que tais variações são ancoradas nas vinhetas (carimbo sonoro),
nos fundos musicais e em outras variações de ruídos, o telespectador, por mais
desavisado que seja envolve-se, inapelavelmente, na narrativa. O vídeo-ouvinte
da TV participa da trama das histórias narradas a partir dessas estratégias de
enunciação sem o sabê-lo. Daí a função siderante do som, que marca a
repetição: mais do que um complemento, um reforço, não apenas no plano da
utilidade e da eficácia, mas, ao elemento sincrônico, sempre lá marcando a
repetição. (FREITAS, op. cit: 23). No sistema de escrituras ao qual fizemos alusão,
“parece-nos, então, correto propor que a intervenção concomitante de menções
escritas, das falas, da música, de imagens na tela vai no sentido de acumulação
da estrutura.” (Id. Ibid.: 24).
A inscrição desses significantes não é aleatória, tampouco anárquica. Há
uma ordenação, um modo de organização das cenas: “digamos que, sendo um
espaço pelo qual as coisas passam grafadas submetidas a uma grafia, é um
espaço no qual se presentificam as regras de uma orto-grafia. Isto é, há normas
que indicam o certo e o errado, o permitido e o proibido, o aceitável e o
inaceitável.” (Id. Ibid: 24).
Como dimensionar o alcance dessas regras? De que modo elas fornecem
a matéria-prima da narrativa televisiva? Como apreender a sua lógica e
funcionamento, a partir das marcas ou pistas que elas deixam espalhadas no
discurso? Como bem disse Novaes:
Vemos uma imagem, ouvimos uma voz, mas geralmente
ignoramos a sua constituição. Ora, o sentido de um programa
de televisão não é independente de sua gênese: o poder mágico
da aparição e a sucessão fácil e esperada das imagens não
permitem ao telespectador imaginar que a produção televisiva
é pensada com rigor, que vai desde a posição da câmera, o
corte, a domesticação da linguagem verbal com a redão
drástica do universo vocabular até as normas de
comportamento do jornalista. (1991: 10).
207
6.2 PROGRAMAS TELEVISIVOS: DICURSOS E VESTÍGIOS
Esquematicamente, as análises serão divididas em blocos de programas, a
partir de um eixo comum que nos permitiu apontar algumas similaridades
entre eles. Esta escolha se firma em alguns fatores: O agrupamento não se
espelha na classificação oficial das emissoras, mas sim em uma suposta
afinidade de temas ou de modos de funcionamento, por mim assim avaliada.
Dessa forma, temos:
a) Fantástico e Mais Vo – o dueto se justifica porque ambos se ancoram no
tema da variedade; o primeiro inclina-se para o mundo jornalístico e o segundo
para o universo feminino, culinário. Os dois reportam-se a assuntos
excessivamente variados, tangenciando, sob a rota classificatória dos
programas, vários gêneros (jornalístico, humorístico, entretenimento);
b) Linha Direta e Big Brother Brasil – junção aparentemente inlita, abriguei
os dois programas no mesmo guarda-chuva por apresentarem, ao fim e ao cabo,
semelhanças em seus modos de produção: ambos pautam-se num discurso
persecutório em que a lógica do ver e punir são o motor dos discursos. O
primeiro vigia e pune para a promoção da ordem e justiça sociais, o segundo
para bonificar o vencedor do concurso do confinamento;
c) Jornal Nacional e Jornal Hoje – ambos são classicamente jornalísticos,
exercem o papel de informar os seus telespectadores sobre os principais fatos
acontecidos no país e no mundo. Tornou-se hábito os dois jornais apresentarem
séries, que supostamente tratem de assuntos de interesse nacional (sobre
trânsito, rodovias, a vida dos brasileiros no estrangeiro, a vida de pessoas que
sobreviveram depois de anos a fio de espera por um transplante de órgão e por
vai).
Todos os programas fazem parte da grade de programação da Rede
Globo de Televisão. A escolha pela emissora, como há de se supor, foi motivada
por ela ainda ser a maior rede de televisão brasileira e principalmente também
por ter criado (com base em experiências do rádio e de outros meios) e
208
consolidado um modo de fazer televisão. Tudo ou quase tudo que temos como
regra convencional das técnicas televisivas foi amplamente difundida pela
emissora: novelas brasileiras (consideradas um produto genuinamente
nacional), grade de programação sanduíche (novela-jornal-novela), técnicas de
reportagem e de filmagem. Voltemo-nos a ela.
6.2.1 UM EXCURSO PELA REDE GLOBO DE TELEVISÃO
Falar da Rede Globo de Televisão é sempre um desafio. É um desafio não
apenas pelo seu gigantismo, embora ela venha gradativamente se apequenando
em virtude dos altos e baixos de audiência nesses últimos anos (como veremos
a seguir), mas, fundamentalmente, pela fartura de análises que a emissora vem
suscitando desde sua criação, em 1967.
As críticas, positivas ou negativas, se exacerbam a partir de vários
ângulos e perspectivas, tendências teóricas e métodos de análise. A emissora
desperta amores e ódios, admiração e repulsa: “Rede Bobo”, “máquina de
alienação”, “deusa ferida”, “vênus prateada”, são alguns dos atributos que a ela
são endereçados: “A Globo é como a lua. Possui uma face brilhante. Essa que
invade nossas casas noite e dia e que gera fascínio e admiração. Mas possui uma
outra face, obscura, que pouca gente conhece. E é justamente aí que mora o
perigo”. (INTERVOZES, 2007: 1).
Sobre a emissora, avolumam-se vertiginosamente análises de jaez
político e econômico. Como lembra Hambúrguer: “o fato de a televisão
brasileira aparecer como exemplo de teses e pesquisas (...) aumenta o interesse
da discussão, reforçando a idéia de que sua especificidade convida à reflexão
teórica” (2005: 26). Acedo à idéia de que adotar a Rede Globo como paradigma
de discussão sobre TV no Brasil é um empreendimento teoricamente sugestivo,
pois como vimos nos debates travados no segundo capítulo, concernente à
televisão e ao seu papel na construção da identidade nacional, a emissora é um
vetor importante no cerio político e social, pois conseguiu afivelar e unir
209
horizontes díspares e dispersos. É escusado dizer que a história da Globo
imbrica-se com alguns capítulos da história do país, histórias, da TV e do país,
ávidas por revelar algo mais. Pom, previno o leitor: o relato que segue tem
mais semelhança com a paráfrase do que com a paródia, já que a paródia está
do lado do novo, do diferente, do surpreendente e a paráfrase, do lado do
idêntico, do semelhante; a paródia é contestadora; a paráfrase é conservadora.
Na paráfrase o sujeito da enunciação abre mão de sua voz para deixar falar a
voz do outro, é um discurso sem voz, pois se fala o que o outro já disse. Na
paródia, busca-se a fala recalcada do outro. Como já tratei dessas questões na
segunda parte desta tese, não consagrarei a essa história mais do que um espaço
limitado, relativo, essencialmente, às dimenes obrigatórias que nos informam
sobre o alcance e o sucesso fulgurante da Rede Globo. Esse item afigura-se tão-
somente como uma, digamos assim, descrição do lugar de proveniência dos
programas a serem analisados. Retomemos, sob largos traços, partes dessa
narrativa.
Para abreviar, principio relatando que a história da TV tem as suas
primeiras sementes lançadas em julho de 1957, quando o então presidente da
República, Juscelino Kubitschek, aprovou a concessão de TV para a Rádio
Globo e, em 30 de dezembro do mesmo ano, o Conselho Nacional de
Telecomunicações publicou decreto concedendo o canal 4 do Rio de Janeiro à
TV Globo Ltda. Em 1965, a emissora é inaugurada e deflagra-se, a partir daí,
uma ruidosa história de sucesso. No ano seguinte, em 1966, a Globo foi
instalada em São Paulo com a aquisição do canal 5 que, desde 1952, funcionava
como a TV Paulista, de propriedade das Organizações Victor Costa,
demonstrando fôlego para abranger, num lapso de tempo relativamente curto,
o território nacional. Em 5 de fevereiro de 1968, foi inaugurada a terceira
emissora, em Belo Horizonte, e as retransmissoras de Juiz de Fora e de
Conselheiro Lafaiete, am de um link de microondas que ligava Rio de Janeiro
a São Paulo. As primeiras emissoras afiliadas à Rede Globo foram a TV
210
Triângulo (TV Integração Uberlândia) e a TV Gaúcha (RBS TV Porto Alegre), em
1967.
O acordo conhecido como Time-Life, firmado em 1967, dá à emissora um
status expressivo, onde o poder do capital demonstra sua importância para o
desenvolvimento do modelo de comunicação adotado no país. Embora
considerado ilegal, porque possibilitava que uma empresa estrangeira tivesse
ingerência em uma empresa nacional de comunicações, o acordo foi firmado,
pois previa apenas colaboração tecnogica e financeira.
O discurso fundador a respeito do avanço mercadológico da Globo foi
elaborado pelo grupo Diários Associados, controlado por Assis Chateaubriand,
que era dono da TV Tupi, a mais antiga emissora de TV da América Latina.
Com o acordo, a emissora conseguiu aportar recursos da ordem de seis milhões
de dólares, ao passo que a melhor emissora do grupo Tupi tinha sido montada
com apenas trezentos mil dólares. Esse recurso astronômico para a época, foi
decisivo para a criação da futura rede de televisão. É em 1969, ano em que o
homem pisa na lua, que a TV Globo inaugura uma rede de emissoras afiliadas
por todo o país. O Jornal Nacional (JN), primeiro telejornal em rede nacional, foi
o programa que marcou a escala nacional da emissora, como veremos mais
adiante.
Na década de 70, com o apoio incondicional do regime militar, a
emissora aumenta sua escala de crescimento. A região Centro-Oeste é o foco de
expansão: em 21 de abril de 1971 foi ao ar a TV Globo Brasília (canal 10),
apresentando a partida Vasco contra Flamengo – ao vivo direto do Rio de
Janeiro – e o programa Som Livre Exportação. A emissora chega também em
Goiânia, Anápolis, Cristalina, Luziânia e outros municípios de Goiás. Em
seguida, a região Nordeste passa a ser igualmente explorada.
Em 1972, foi inaugurada a TV Globo Recife. Também naquele ano a
Globo participou do pool de emissoras que efetuou a primeira transmissão
nacional e oficial em cores, via Embratel, para todo o país, junto com as
211
concorrentes Rede Tupi, Rede Record e Rede Bandeirantes. Em 31 de março de
1972, (dia da inauguração do sistema de televisão em cores no Brasil), exibiu o
especial Meu Primeiro Baile, o primeiro programa da televisão brasileira
inteiramente gravado em cores. Ainda em 1972 estreou o Globo Repórter. No ano
seguinte, foi ao ar o programa Fantástico, tamm líder de audncia, um dos
programas aqui analisados, que em 28 de abril de 1974, passou a ser
transmitido em cores. Em 1977, toda a programação global passa a ser em cores.
Em 1982, a emissora implanta a transmissão via satélite.
A década de 1970 é o momento em que a Globo começa a construir o que
seria chamado de "padrão globo de qualidade", dominando, com a estratégia, o
famoso horário nobre (preenchido com duas novelas, encaixadas por um
telejornal curto e sintético, mais uma novela (a das oito) e depois linha de shows,
filmes ou documentários e reportagens. Esse menu é oferecido sempre com
regularidade de horário e programação. Tal padrão, até hoje utilizado pela
Globo fielmente, concerne à "grade fixa", tanto na vertical (seqüência dos
programas no dia), quanto na horizontal (respeito à seqüência ao longo dos dias
da semana), orquestrada por Walter Clark e José Bonifácio de Oliveira
Sobrinho, o Boni, em 1960, quando eram responsáveis pela programação da
extinta TV Excelsior.
54
A definição do padrão de qualidade seria decisiva para a conquista da
liderança de audiência, pois, no final da década de 1970, as duas grandes redes,
Record e Tupi, estavam se deteriorando por falta de recursos e estratégia,
restando apenas a Globo como alternativa.
54
Grande parte das "inovações" na grade de programação e na forma de produção dos
programas foi obtida graças à contratação de profissionais oriundos da TV Excelsior, cuja
concessão fora cassada pelo Governo Militar em 1970, e que já operava com muitos dos
parâmetros utilizados pela Rede Globo para criar seu "padrão globo de qualidade".
212
Inelutavelmente, a carreira solo da Globo está ameaçada. Ela já não reina
absoluta, não ocupa mais a posição hegemônica que a caracterizou nas décadas
de 70 e 80, embora continue no topo da liderança da audiência.
Em A deusa ferida, Sílvia Helena Simões Borelli e Gabriel Priolli
apresentam uma lista de motivos que levaram a Globo a cair nas médias de
audiência. É na década de 1990 que novos ventos sopram sobre o mercado de
TV aberta (segmentação, canais de UHF, surgimento das TVs pagas), abalando
o monopólio consolidado da Rede desde a década de 1960. A inveão do
prime-time - entrelaçamento entre ficcionalidade e telejornalismo - criou um
genuíno modelo empresarial de telecomunicações e conquistou um público fiel.
No auge das décadas de 70 e 80, a rede dominou o horário nobre e reinou quase
absoluta nos registros de audncia.
A partir do final da década de 1990, os números do Ibope global
mostram que a “vênus platinada” vêm caindo consideravelmente. Não obstante
à inegável crise, a emissora continua sendo a preferida dos brasileiros. Até hoje
nenhuma emissora ultrapassou a liderança daquela que é considerada por
muitos uma paixão nacional.
54%
18%
17%
0%
10%
20%
30%
40%
50%
60%
Globo SBT Record
A queda de audiência da Globo é pontual e localizada. Ocasionalmente,
ela perde pontos no Ibope para a segunda ou terceira colocada. A Record é a
emissora que mais a vem ameando. Segundo dados do Ibope, quando da
exibão darie Pedra do Reino, que foi imediatamente tirada do ar, a Globo
213
ficou em terceiro lugar no Ibope, com 12 pontos de média, placar jamais visto
na emissora entre 22h30 e 23h30 desde que a metodologia de medição de
audiência funciona como nos moldes atuais. A Record, com 16 de média,
ocupou a liderança, com parte da novela "Vidas Opostas" e do reality show
"cada-um-por-si", vulgo "O Aprendiz". O SBT ficou na vice-liderança com o
filme "Lara Croft", alcançando 13 pontos.
6.2.2 GRADE DE PROGRAMAÇÃO DA REDE GLOBO E SEUS RESPECTIVOS
GÊNEROS
Elenco a seguir a grade de programação da emissora organizada
segundo gêneros. A lista é longa, fastidiosamente enfadonha, rasa do ponto de
vista da definição dos programas (para se ter uma idéia, o Fantástico é posto na
lista dos jornalísticos, de entretenimento, show, variedades....). Insisti em
reproduzi-la porque ela revela as dificuldades dos programas corresponderem
a algumas questões da análise. Os programas analisados estão em destaque na
astronômica lista.
214
neros
1 Auditório
2 Culinário
3 Educativo
4 Entrevista
5 Esporte
6 Feminino
7 Filme
8 Humorístico
9 Infantil
10 Jornalismo
10.1 Telejornalismo Nacional
11 Novela
12 Reality show
13 Reportagem
14 Rural
15 Saúde
16 Série
17 Show
18 Turismo
19 TV Globo Internacional
20 Variedades
21 Outros
22 Especiais
23 Especiais "Extintos"
24 Eventos
25 Extintos
26 Ligações externas
Feminino/Culinário Auditório
Mais Vo Altas Horas
Caldeirão do Huck
Domingão do Faustão
Vídeo Game
215
Entrevista
Estrelas
Ação
Programa do Jô
Altas Horas
Infantil
Sítio do Picapau Amarelo (1977-Presente)
Sonic X (2003-Presente)
Turma da nica (1982-2007)
TV Colosso (1993-1996)
TV Globinho (2000-Presente)
TV Xuxa (2005-Presente)
Humorístico
A Grande Família (1972-1975)
Escolinha do Professor Raimundo (1990-2001)
Casseta & Planeta - Urgente! (1992-presente)
Sai de Baixo (1996-2002)
A Turma do Didi (1998-Presente)
Zorra Total (1999-presente)
A Grande Família (2001-presente)
A Diarista (2004-2006)
Sob Nova Direção (2004-2007)
Minha Nada Mole Vida (2006-presente)
Toma Lá Dá Cá (2007-presente)
Novelas
Atuais novelas:
Coração de Estudante (Vale a Pena Ver de Novo)
Malhação
Desejo Proibido
Sete Pecados
Duas caras
Atualmente sem minisséries
216
Reality show
Reportagem
Big Brother Brasil
Fama
No Limite
Central da Periferia
Globo Repórter
Linha Direta
Pequenas Empresas, Grandes Negócios
Fantástico
Jornalismo
Telejornalismo Nacional
Programa Dia de exibição Horário Âncoras
Fantástico Domingo 20h30 Pedro Bial e Gria Maria
Bom Dia
Brasil
Segunda a sexta 07h15
Renato Machado e Renata
Vasconcellos
Jornal Hoje
Segunda a
sábado
13h15
Evaristo Costa e Sandra
Annenberg
Jornal
Nacional
Segunda a
sábado
20h15
Fátima Bernardes e Wi lliam
Bonner
Jornal da
Globo
Segunda a sexta 23h30
Christiane Pelajo e William
Waack
Globo
Repórter
Sexta 22h00 Sérgio Chapelin
217
Série Show
24 Horas
Antônia
American Dad!
Angel
Caindo na Real
Carga Pesada
Malhação
Karen Sisco
Lei & Ordem
Lost
Uma Família da Pesada
Os Simpsons
Prison Break: Em Busca da Verdade
Esquadrao Resgate
Estrelas
Fantástico
Vídeo Show
Turismo Variedades
Programas locais:
Espaço Vanguarda (São Paulo)
Na Carona (Bahia)
Rota do Sol (São Paulo)
Viagens pela Amazônia (Acre,
Amapá, Amazonas, Rondônia e
Roraima)
Meu Paraná(Paraná)
TV Globo Internacional
Planeta Brasil
(Américas/Europa/Ásia/África/Oceania)
Programas locais:
Terra e Mar (Alagoas)
Outros
Santa Missa
Salto para o Futuro (veiculação
obrigatória, produzido pela TV Escola)
Programas locais:
Santa Missa com Padre Marcelo Rossi
(Sao Paulo)
A extensa tabela classificatória nos fornece dicas essenciais sobre o papel
dos gêneros na TV. Eles possuem, sim, uma função determinada na oferta
televisiva, mas não a de promover, em primeira instância, a mediação: eles
servem para acenar com a promessa do veículo de ser um grande balcão em
que o telespectador poderá usufruir de tudo um pouco, pois “propõe um tipo
de relação com o mundo, coloca à disposição um certo nível de realidade e
modo de ser, mobiliza crenças, expectativas e saberes que condicionam os
gostos e prazeres do telespectador”. (DUARTE, 2003: 7). O contrato que
estabelece com o tele-ouvinte se efetiva por meio de estratégias que visam
218
responder aos nossos desejos mais imediatos (Você quer emoção? Nós temos, o
programa X, Y ou Z lhe atende prontamente. Quer seriedade e realidade? Nós
também temos, o jornal A, B ou C é o melhor da TV brasileira, e assim por
diante). No campo da taxinomia, “dizer de um programa que ele é informativo
ou de entretenimento é praticamente nada informar sobre ele. Designá-lo
indistintamente como entrevista, reportagem ou documentário é, muitas vezes,
lançar mão de critérios diferentes para referir um mesmo tipo de produto. O
que pensar então da oposão realidade/ficção?” (Id. Ibid.: 8).
Mas as promessas se renovam, daí a proliferação infindável de formatos,
gêneros e programas, eternamente apresentados como novos. Promessas que
nunca são cumpridas porque a falta, o real, está lá, sempre de prontidão,
impedindo que nossos desejos enfim se realizem. No entanto, a Globo – assim
como todas as emissoras – insiste, recheia a sua programação diária com uma
infinidade de relatos, faz a publicidade de seus produtos, se empenha em
garantir todos os atributos que deverão estar contidos nos seus programas, já
antecipadamente divulgados nos anúncios - estratégia forte de captação de
audiência. Os gêneros parecem encobrir, dessa forma, uma deficiência, pois ao
dizerem que tudo têm, revelam que pouco têm. Daí a continuidade dos relatos.
219
6.3 A CENA DO ENUNCIADO DOS PROGRAMAS
6.3.1
FANTÁSTICO, O SHOW DA VIDA, E MAIS VOCÊ: TUDO PELA
INFORMAÇÃO E PELO ENTRETENIMENTO
A importância de um texto não é a sua
significação, o que quer dizer, mas o que faz e faz
fazer.
Jean-Fraois Lyotard
FANTÁSTICO: O SHOW DA VIDA EM CENA
Cid Moreira, Sergio Chapellin, Leilane Neubarth, Valeria
Monteiro, William Bonner, Léo Batista, Fátima Bernardes,
Sandra Annenberg, Celso Freitas, Gria Maria, Patrícia
Poeta e Pedro Bial... Fatalmente essa galeria de nomes, assim disposta, nos
remete ao Fantástico, programa de variedades, jornalístico, show (????),
veiculado aos domingos desde 1973.
No formato de revista eletnica foi criado pelo jornalista Walter Clark,
em 5 de agosto. Os atuais apresentadores são Pedro Bial, Glória Maria,
55
Zeca
Camargo, Renata Ceribelli e Tadeu Schmidt (esporte). A locução das matérias é
feita por Cid Moreira e Berto Filho. Nas décadas de 1970 e 80, Cid Moreira e
Sérgio Chapelin apresentavam o Fantástico, além do Jornal Nacional. Atualmente,
o programa é reprisado pelo canal Globo News na madrugada de domingo
para segunda, às 00h05. A revista eletrônica tem uma história robusta: em 2002
atingiu o mero de 1500 programas e, em 2003, produziu quatro boxes com
toda a história dos seus 30 anos de exibição.
Entre os quadros famosos do Fantástico, destacaram-se: a Zebrinha da
loteria, que anunciava o resultado da loteria esportiva com um personagem
inusitado: uma zebrinha criada e desenhada pelo cartunista Borjalo, que movia
55
Glória Maria foi substituída pela jornalista Patrícia Poeta. A permanência do nome dela aqui
se dá porque quando analisamos o programa, ela ainda era apresentadora do Fantástico.
220
seus olhos e boca para anunciar um a um os resultados dos 13 jogos da loteria
esportiva. Outro quadro que ficou gravado na meria dos brasileiros foi a
“Garota do Fantástico”, que exibia uma modelo por semana, eleita a garota do
programa. Chico Anysio também foi presea cativa no dominical, com vários
quadros, entre eles o malandro Azambuja e Cia e sessões variadas de piadas.
“Copas de Mel”, apresentado por Denise Fraga em 2002, contava a história de
Mel, uma mulher que gostava de futebol e viajou clandestinamente em navio
para ir ver a seleção jogar no México. Em 2006 foi produzida uma continuação,
que ocorria simultaneamente com a Copa da Alemanha. “Retrato Falado” foi
outro quadro apresentado por Denise Fraga onde ela interpreta as "confues"
vividas pelos telespectadores que escrevem cartas contando os seus “causos”.
“Homem Objeto” emplacou com os atores Lúcio Mauro Filho, Bruno Garcia,
Lázaro Ramos e Wagner Moura; abordava a relação entre homens e mulheres,
vivenciada por quatro amigos e suas experiências. No ar em 2003, foi o embrião
da série Sexo Frágil, exibida em 2004 às sextas. “Profissão Repórter” é um
quadro em que o repórter Caco Barcellos e uma equipe de jovens estudantes
repórteres vão às ruas para mostrar diferentes ângulos do mesmo fato, da
mesma notícia. “Minha Periferia” era apresentado por Regina Casé e tinha por
função mostrar a cultura na periferia; atualmente a atriz-repórter comanda o
quadro sobre periferias e mercados do mundo.
Tempo, o dono da vida, mostrava o que ocorre com o organismo humano
ao longo dos anos e as possibilidades de se chegar, com saúde e disposição, à
terceira idade. Em Poeira das estrelas, de onde viemos?Como foi que o mundo
começou? o físico e astrônomo Marcelo Gleiser, com seu discurso competente,
procurava apresentar as respostas e soluções da ciência para tais
questionamentos; Fantástico 30 anos atrás, o quadro reexibiu as notícias do
Fantástico no ano de 1977.
Como se nota, o programa vem, ao longo de seus 36 anos, sofrendo
significativas metamorfoses. Filho letimo das inovações tecnológicas dos
221
últimos tempos, o programa nasceu com a vocação de ser plural, de cobrir
temas e fatos tão díspares quanto interessantes, com maior devoção ao
jornalismo.
Sempre veiculado aos domingos, o Fantástico chamou para si a
responsabilidade de ser o programa que passa em “revista” os principais
acontecimentos da semana (veia declaradamente jornalística) sem franzir o
cenho: a leveza, a descontração, o glamour e a exuberância (da abertura aos
apresentadores) são traços essenciais que conferem fisionomia à revista
eletrônica (veia do entretenimento). Em um programa, vários programas.
Em um gênero (expressemos-nos assim por enquanto) uma infinidade de tantos
outros gêneros. A exemplo das bonequinhas russas, cada bloco do Fantástico
traz embutida uma variedade de formatos televisivos (adivinhação,
pegadinhas, documentário etc.). Com tanto mais razão, ele se mostra ao nosso
trabalho como um poço inesgotável de exploração. Ousemos uma incursão pelo
programa.
O Fantástico estrutura-se segundo a lógica de uma revista (rótulo que não
é sem razão), mesclando um variegado de informações e acontecimentos. Um
dos programas mais longos da Globo, a revista eletrônica faz malabarismos
para atrair a atenção do público e mantê-lo sintonizado; o “show da vida”
ocupa 2h50 do precioso domingo dos brasileiros, nas derradeiras horas de
descanso que nos restam antes de enfrentarmos a enfadonha segunda-feira. De
documento, fatos, personalidades, pessoas ordinárias (em algumas ocasiões)
foram alçados a monumento: a morte de Ayrton Senna, as viagens do Papa João
Paulo II, o adeus a Lady Di, a tragédia do grupo musical Mamonas Assassinas,
a eleição de Lula em 2002, a agonia e morte de Tancredo Neves, tornaram-se
(mega)eventos tecidos discursivamente com os fios do dramatismo, da comoção
nacional, do glamour e da hiper-realidade.
Geralmente dividido em sete blocos cada bloco dura em média 18 a 20
minutos – o Fantástico tem tudo e um pouco mais: informação (talhada à moda
222
do jornalismo diário e do chamado jornalismo investigativo), desconcertantes
pegadinhas, enquetes, “reconstituição” de fatos históricos remotos (quadro que
se converteu na principal atração [sic] do programa, apresentação de CDs
recém-lançados de artistas brasileiros e estrangeiros, descrição, num misto de
trabalho etnográfico e jornalístico, dos comércios das periferias do mundo...
Esquematicamente, os blocos do Fantástico podem assim ser catalogados:
Primeiro bloco: procura fisgar a atenção do telespectador com informações e
notícias ligeiras (enquetes, pegadinhas, personalidades [atrizes, cantores] são o
mote de abertura). O lúdico e o entretenimento dão o tom desse bloco,
transmitido em ritmo apressado. Depois dessas fugazes apresentações, o bloco
costuma apresentar reportagens de espectro nacional alusivas à semana ou
ainda sobre aquelas que recrudesceram (a famosa cozinha jornalística);
Segundo bloco: normalmente reservado para a “principal atrão”, é o bloco
que apresenta os quadros mais longos. “É muito história”, uma ficcionalização
de fatos “reais” que sucederam em passado remoto, encontra abrigo nesse
bloco. Tempos atrás, o Fantástico anunciava exaustivamente ao longo da semana
a sua principal atração, normalmente uma reportagem que tinha assento no
factual jornalístico, portanto, em assuntos de um passado muito próximo,
alusivos à cena social e política brasileira. A mudança de foco para a
teatralização de temas fora da seara factual sinaliza para que direção foi movido
o pêndulo do programa.
O icio do segundo bloco, assim como o do primeiro, é marcado por
informações leves, notas informativas. O quadro “É muito história” ocupa
preciosos 14 minutos;
Terceiro bloco: reservado aos serviços de utilidade pública. Todos os esforços
de produção são voltados para o exercício da fuão pedagógica do programa.
O tema da saúde é recorrentemente solicitado, curiosidades científicas vez por
outra reaparecem, dicas de emprego são bem-vindas. Um giro (jornalístico) pelo
223
mundo é feito nessa seção: fatos marcantes, em forma de nota, são narrados
habitualmente em off;
Quarto bloco: leveza e descontração são marcas do quadro “Central da
Periferia” (misto de reportagem e documentário), apresentado pela atriz-
repórter Regina Casé. Esse bloco é o mais, digamos assim, jornalístico; possui
em média cinco a seis reportagens (o programa que analisei possui cinco);
Quinto bloco: a atmosfera jornalística permanece nesse bloco, só que desta feita
com o quadro “Profissão Repórter”. À proporção que as ditas matérias leves
vão diminuindo, surgem as charges para emprestar seu tom caricato e cômico
ao bloco;
Sexto bloco: é o esportivo. Futebol, fórmula 1, voleibol, basquetebol... são
comentados por Tadeu Schmidt, apresentador destacado especialmente para o
bloco (apresentação e narração). O apresentador motiva o telespectador a
escolher o gol mais bonito do domingo (a interação se dá por e-mail);
Sétimo bloco: o programa começa a anunciar o seu fim. É hora de apressar a
narrativa. Ainda uma reportagem se insurge. O retorno do esporte apresenta o
resultado da enquete (o gol mais bonito). O programa insiste em não acabar: os
apresentadores comunicam que o telespectador poderá desfrutar mais ainda do
programa na internet (review das reportagens). Notícias culturais (música,
teatro, dança) encerram o programa. Num tom “infelizmente estamos indo
embora”, os apresentadores se despedem, desejando a todos uma semana
“fantástica”.
224
AUDIÊNCIA DO FANTÁSTICO NA GRADE DE PROGRAMAÇÃO DA GLOBO
7
7,6 7,7
10,4
10,2
10,9
11,3
14,5
16,1
17,8
26,7
23,6
0
5
10
15
20
25
30
m
i
s
s
a
a
p
a
u
l
i
s
t
a
e
m
p
&
n
e
g
g
l
o
b
o
r
u
r
a
l
a
u
t
o
e
s
p
o
r
t
e
e
e
s
p
e
t
a
c
d
i
d
i
t
e
m
m
a
x
i
m
a
g
l
o
b
o
n
o
t
f
a
u
s
t
ã
o
f
u
t
e
b
o
l
f
a
n
t
á
s
t
i
c
o
missa
apaulista
emp&neg
globorural
autoesporte
eespetac
didi
temmaxima
globonot
faustão
futebol
fantástico
AUDIÊNCIA DOS PRINCIPAIS QUADROS DO PROGRAMA
20,8
24 23,8
25,4
24,2
0
5
10
15
20
25
30
C
e
n
t
r
a
l
P
e
r
i
f
P
t
e
r
r
a
É
m
u
i
t
a
h
i
s
t
ó
r
i
a
E
t
i
q
u
e
t
a
u
r
b
a
n
a
V
a
l
o
r
a
m
a
n
h
ã
CentralPerif
Pterra
Émuitahistória
Etiquetaurbana
Valoramanhã
225
MAIS VOCÊ: O MUNDO MÁGICO AO NOSSO ALCANCE
Mais Você é um programa instalado declaradamente
entre fronteiras: feminino, culinária e de variedades são
etiquetas que servem para classificar o matutino. É
apresentado por Ana Maria Braga e pelo papagaio de
fantoche "Louro Jo", controlado por Tom Veiga. Gravado no estúdio 3 da
Rede Globo de São Paulo (a Globo i transferir o programa para o Rio de
Janeiro no ano de 2008), destina-se, preferencialmente, para o público feminino.
Entre os temas nucleares estão: culinária, arte e música. Mais Você não se pretende
igual a outros femininos ou congêneres, ele procura abordar assuntos que
extrapolam o menu da culinária. As estratégias são múltiplas para romper o
cerco do tradicional programa feminino: procura dar destaque jornalístico a
temas candentes ou de importância geral, dar voz à comunidade, conscientizar
o público assistente sobre a importância da conquista de qualidade de vida e
ainda faz entrevistas com profissionais da emissora (jornalistas, artistas e
demais funcionários). Ana Maria Braga consagrou-se com a sua forma sui
generis de aprovar os pratos feitos em seu programa: os bons resultados são
comemorados com apresentadora escondendo-se sob uma mesa, onde saboreia
as delícias produzidas.
Mais Você estreou em 18 de outubro de 1999, no horário das 13h40. Os
primeiros programas renderam ibope acima dos 20 pontos. Passado um mês, a
audiência de Mais Você caiu vertiginosamente, atingindo 12 pontos de média. O
programa foi para as manhãs, às 8h05, apresentando melhoras significativas em
sua performance de audiência.
Com médias de oito pontos e share de 35%, em mercado nacional, o Mais
Você atinge quase 5 milhões de telespectadores em todo o Brasil.
226
AUDIÊNCIA DO MAIS VOCÊ NA GRADE DE PROGRAMAÇÃO DA GLOBO
9
8
7
8
11
13
15 15
21
16
17
27
29
31
37
45
0
5
10
15
20
25
30
35
40
45
50
BD Brasil
Mais Voce
Globo Nocia
TV Xuxa
SPTV
Gesporte
JH
Vshow
Novela2
Starde
Gnotícia
Emagia
SPTV
7pecados
JN
Duascaras
BD Brasil
Mais Voce
Globo
Nocia
TV Xuxa
SPTV
Gesporte
JH
Vshow
Novela2
Starde
Gnotícia
Emagia
SPTV
7pecados
JN
Duascaras
227
ALGUMAS NARRATIVAS DO FANTÁSTICO E DO MAIS VOCÊ
O que o Fantástico e o Mais Você podem nos dizer a respeito das
fronteiras, nada pacíficas, da instituição (ou extinção) das margens
extraordinariamente estreitas que separam ficção e realidade, que movem-se ao
sabor de escaramuças intermináveis? Os dois programas oferecem pistas que
são formidavelmente instrutivas para se pensar sobre a questão.
O Fantástico, um programa que nasceu com pendor jornalístico apela
cada vez mais para o entretenimento e ficção. O Mais Você, um programa de
variedades, advindo do universo da culinária e da beleza, procura fincar rzes
no jornalismo. Essa aparente contradição está a serviço da (conquista)
audiência, regida pelo valor do a-mais-do-olhar. Senão vejamos.
a)
AS ESTRATÉGIAS DE ENUNCIAÇÃO
56
Comecemos pelas aberturas de ambos os
programas. Fantástico e Mais Você emolduram-se
segundo o quadro comum de referência que
comanda o modo de apresentação dos
programas televisivos, cumprem uma função
dentro de regras preestabelecidas (a função da
abertura tem uma função), fixam modos de
exibão institucionalizados com os quais concordamos. Escandimos alguns
traços:
É Fantástico e Mais Você são as frases de abertura que anunciam o início
dos programas, produzindo um efeito que se assemelha ao corte da faixa de
uma caixa de presente. São expressões adjetivadas que cumprem o papel de
içar o telespectador a um mundo maravilhoso, no show da vida, ou de
supervalorizá-lo (Mais Você). A escalada dos dois programas é montada de
56
Essas estratégias não foram igualmente aplicadas a todos os programas analisados.
Figura 12. Apresentação Fantástico
228
modo a capturar a atenção pela via do prazeroso, do supostamente mais
atrativo. Nos dois, a abertura assume coloração festiva (No Mais Você,
tradicionalmente, Ana Maria Braga costuma iniciar com pequenos relatos de
auto-ajuda e poesia).
b) AS ESTRATÉGIAS SONORAS
Se existem diversas formas de se contar uma história (e a televisão tem
um modo próprio de contar as suas), como o som tece em sua trama bem
urdida as narrativas cotidianas ou semanais?
Da abertura até o encerramento dos programas uma pletora de sons é
emitida (fundo musical, vinhetas, sonoplastia), da qual sequer nos damos conta,
mas que está lá, competindo para chamar nossa atenção, repetindo o que não
foi apreendido, plasmando a narratividade, reforçando o papel da TV como
máquina de contar histórias. Segundo Freitas:
Merece refleo a presença da música como antecedente,
acompanhante e seguindo-se a todos os jornais televisivos.
Quer seja uma frase musical que se repete (as vinhetas), quer
seja apenas um sinal sonoro, é significativo que nenhuma
transmissão de notícias não seja envolvida pelo envelope
sonoro e passada em silêncio, a não ser em raros momentos em
que o silêncio se dramatize justamente pela ausência da
sonoridade musical.(1999: 32).
Já que estamos comprometidos com a idéia segundo a qual a música não
é apenas um acessório, um complemento, mas estruturante da narrativa,
marcando a repetição, é necessário dar-lhe na análise a autonomia que lhe é
própria.
Nas aberturas de Fantástico e do Mais Você, como nas de todos os outros,
uma das funções da música é preponderante: fixar o hábito, ter anuência do
telespectador a partir de sua memória auditiva. Trata-se do carimbo sonoro do
programa, onde estão sediadas as vinhetas musicais: a música de abertura é
responsável pela expectativa, pela cortina que se descerra, pelo que vem a
229
seguir. Sendo assim, um preâmbulo, ou poderia ser também a overture operística
(Id. Ibid.: 35). Como toda ópera tem um prólogo que a marca, os programas têm
uma abertura que produz efeito semelhante.
Ainda apoiada nos teóricos do cinema, podemos salientar que “tudo o
que é barulhento, brilhante e insólito atrai a atenção voluntária.
Automaticamente, a mente se volta para o local da explosão, lemos os anúncios
luminosos que piscam”. (MUNSTENBERG, 1999: 42). Os programas nos atraem,
em primeira medida, pela invocação musical. Ouvir é um estado passivo e de
contemplação em que somos atraídos pelas notas musicais:
Desse modo, o convite para tomar assento frente à tela, convite
que se sabe aceito, a resposta é sim, provém da introdução
musical. Do sinal conhecido, mas sempre acompanhado de
premonições na antecipação de surpresas e revelações. (Freitas,
1999: 32).
O Fantástico primava por uma abertura espetáculo, onde a música era
executada em sua integralidade (porquanto as imagens eram verdadeiros
videoclipes). Atualmente, apenas um trecho é executado. No programa Mais
Você, a música tema de abertura é instrumental e indicia todo o fundo
imagético: Ana Maria Braga, tal como uma fada, vai dando abertura para os
elementos na tela.
c) A CENA DA IMAGEM: A ORTOGRAFIA DO VISUAL
Quem não se lembra das apresentações apoteóticas do Fantástico? Durante
seus 36 anos de existência, o programa levou ao ar uma coleção de aberturas tão
fantásticas quanto apelativas. Mudavam constantemente, mas tinham em
comum a exibição de um espetáculo da dança. No final da década de 80 a daa
foi mesclada com elementos de computação gráfica e ao final dos anos 90 foi
suprimida.
As vinhetas de abertura, muitas delas feitas pelo designer austríaco Hans
Donner, marcaram indelevelmente o programa. Entre as mais famosas está a de
230
1983, na qual bailarinos aparecem dançando sobre uma plataforma fatiada de
uma pirâmide tridimensional que era dividida paulatinamente.
57
Pensadas em separado, as aberturas do Fantástico são repletas de
sentidos. A abertura com Isadora Ribeiro, que emergia do fundo da água, foi
um marco. Em 1995, elas deixam de existir para dar lugar às vinhetas.
Bailarinos, danças, rostos pintados foram substituídos por poeira quente, larvas,
fogo - elementos que tornaram-se os ingredientes da composição gráfica do
nome Fantástico. Desde então foram produzidas sete vinhetas.
Essa abertura provocou muitas reações em virtude da transmutação corporal dos bailarinos: pés
tortos, braços convertidos em barras de ferros, e assim por diante. A invenção despertou
polêmicas de natureza religiosa/mística: as pessoas escreviam para o programa dizendo que
Donner estava mexendo com figuras milenares e poderia morrer por causa disso. Na época da
gravão muitos bailarinos se machucaram e outros abandonaram o projeto. Somente em em
1984 ele conseguiu fazer a abertura integralmente.
Figuras 13 e 14. Aberturas Fantástico
Figura 15. Abertura Fantástico
231
Na abertura, os apresentadores caminham de
pé, a imagem panorâmica vai se afunilando
para o plano médio. Ao fundo, à esquerda
do cenário, aparece grafada a logomarca do
programa, à direita, nomes dos quadros que
o integram: “Esporte”,E agora, doutor?”,
“Central da periferia”.
A vestimenta dos apresentadores está, normalmente, em harmonia. Os
terninhos e roupas mais austeras, comuns ao guarda-roupa feminino dos
jornais diários, dão lugar a vestimentas mais glamourosas (vestidos brilhosos,
decotes ousados).
Mais Você, por ter menos tempo do que o Fantástico, tem uma abertura
fixa, com poucas variações ao longo de sua história. O papel da apresentadora é
importante na composição da cena inaugural: por onde passa circunscreve um
coração que compõe o M de Mais Você.
F
ANTÁSTICO - QUADRO “É MUITA HISTÓRIA
Um espetáculo que parou o recife, num dia de domingo, mais de três
séculos atrás, é o ponto de partida para o capítulo de hoje de "É muita
história".
Como na semana passada, quando contamos o episódio do grito do
Ipiranga, todas as informações apresentadas em nossa série são
rigorosamente históricas, comprovadas por documentos e fontes
primárias. É tudo verdade. Mesmo porque seria difícil um
ficcionista inventar um personagem como o Conde Maurício de
Nassau - que fez um boi voar.
A história do boi voador não é lenda. Aconteceu mesmo. É fato.
São poucos dos relatos, mas tem-se a data: 28 de fevereiro de 1644.
Um domingo, como hoje. Foi um acontecimento extraordirio, num
momento histórico extraordinário.
Madrugada de 15 de fevereiro de 1630, 77 navios holandeses disparam
170 canhões, num ataque bárbaro que varreu Olinda do mapa. O
massacre consolidou a dominação holandesa, numa área que ia do
Maranhão a Sergipe. Só 24 anos depois, os portugueses conseguiram
Fi
g
ura 16. A
p
resenta
ç
ão
232
retomar o controle de sua colônia. Mais que memórias de guerra, no
imaginário popular, a grande conquista holandesa foi mesmo fazer um
boi voar.
Mais de 350 anos depois, a série “É muita história”, vai tentar
reconstituir a façanha do boi voador, no mesmo lugar em que ela
ocorreu, nas ruas do Recife, na época Cidade Maurícia. Aconteceu em
plena ocupação holandesa, protagonizada por um personagem
excêntrico: Conde João Maucio de Nassau, nascido na Alemanha,
recém-chegado da Holanda.
É no Recife que o rio Capibaribe se reúne ao rio Beberibe, para juntos,
quem sabe, formarem o Oceano Atlântico. À nossa frente temos a
segunda ponte do nosso passeio: a ponte Maurício de Nassau, a
primeira ponte do Brasil, a chamada Ponte do Recife. Neste trecho a
gente aproveita para falar o período holandês. No século XVII tivemos
24 anos de domínio holandês.
“Sete deles sobre o meu comando, não por acaso, os melhores, sem
falsa modéstia”, diz Eduardo Bueno, interpretando Mauricio de
Nassau.
Nada em Nassau era modesto. Muito pelo contrário. Seus efeitos são
lembrados de forma grandiosa e apaixonada. De fato, ele tinha idéias
avançadas para sua época. Era humanista, mas sabia ser pragmático.
Em seu primeiro relatório enviado à Amsterdã, não mediu palavras:
“Sem tais escravos não é possível fazer coisa nenhuma no Brasil. Se
alguém sentir-se agravado com isso, será um escrúpulo inútil”. E esse
era um humanista da época.
Nunca antes na história deste país houve o administrador tão
brilhante, tão admirável. Ele convocou a primeira Assembléia
Legislativa de todo o continente, decretou a liberdade de culto, abriu os
portos, construiu o teatro, construiu escolas. Foi ele que inventou a
ecologia. Talvez hoje vocês não estivessem comendo caju se ele não
tivesse decretado que era proibido derrubar cajueiros. Foi um homem
de visão. Um homem luminoso. Um príncipe renascentista em terras
tropicais.
Nassau seria um príncipe se o Brasil holandês tivesse sido um reino.
Mas não era. Era um negócio, um empreendimento comercial, com
sede em Amsterdã. A Companhia das Índias Ocidentais era uma
empresa privada, de capital aberto, comandada por precursores do
capitalismo. O chamado “Conselho dos 19”. Eles queriam explorar as
riquezas do novo mundo, principalmente o açúcar brasileiro.
É óbvio que ele não foi perfeito, nem infalível. Um dos defeitos dele é
que ele era um perdulário. Ele era um gastador. Antes de ir para o
Brasil, na cidade onde morava, Haia, ele mandou construir uma
mansão na área mais nobre da cidade, a famosa Mauritshuis, em
holandês, Casa de Maurício.
Como era de seu estilo, não economizou na obra. Ou seja, Nassau
endividou-se seriamente e por isso teve que enveredar na aventura do
233
Brasil holandês. Quer dizer, Nassau veio para o novo mundo pra
pagar as contas penduradas no velho.
“Um belo país que não tem igual sob o céu”. Esta foi a primeira fase
que Maurício de Nassau disse ao pisar em solo brasileiro. Amor à
primeira vista.
Foi uma visão do paraíso. Nassau chegou aqui com 33 anos. Ele vem
acompanhado por uma comitiva de cientistas, de artistas e
intelectuais, prontos pra produzir.
Nassau fez a primeira documentação das terras brasileiras. Os
portugueses achavam que era importante não documentar o que estava
aqui pra não despertar a cobiça. Mas Nassau trouxe essa equipe de
artistas e documentou toda a paisagem. Os animais, as frutas. É o
primeiro retrato de gala do Brasil.
Além de tudo, ele drenou os pântanos, transformando-os em jardins à
moda holandesa. E fez mais. Construiu não um, mas dois palácios na
cidade. E essa mania de construir palácios mais uma vez traiu Nassau.
Em volta dos dois palácios que construiu, o de Boa Vista e o de
Friburgo, também fez um jardim botânico, um zoológico e ainda
ergueu um observatório astronômico.
Mas não parou aí e as dívidas cresceram mais ainda quando ele
resolveu construir a primeira ponte das Américas.
Na verdade, a primeira ponte das Américas não existe mais. Foi feita
em madeira e media 318 metros de comprimento. Um prodígio para
engenharia do Século XII.
Essa ponte condenou as relações de Nassau com seus patrões da
Companhia das Índias Ocidentais. O preço do açúcar na Europa tinha
despencado, a companhia estava perdendo rios de dinheiro e vem
Nassau falar em ponte?
Lá de Amsterdã mandaram avisar: não vamos pagar essa conta.
endividado na Europa no Brasil, Nassau teve a idéia: repassar a conta
ao consumidor. Quem quisesse atravessar a ponte no dia de
inauguração teria que pagar 2 florins. Ou seja, ele criou também o
primeiro pedágio das Américas.
Nassau precisava de um pretexto para trazer as pessoas do Recife
Velho para a cidade Maurícia. É assim que nasceu o espetáculo do
século no Brasil.
“Cruze a ponte e veja o boi voando”, diz Eduardo Bueno.
E depois de visto o grande concurso de gente que ali se ajuntou, o
mandou meter dentro de um aposento, e dali tiraram o outro couro de
boi, cheio de palha. E o fizeram vir voando por umas cordas por um
engenho.
E a gente rude ficou admirada, tanta gente passou de uma parte para
outra parte, que naquela tarde rendeu a ponte 1.800 florins. Nobre que
é nobre vive de dívida. Do Brasil, Nassau levou a malária. Aqui
deixou saudades e uma história. Pode acreditar. No Recife, um
aristocrata pop convenceu um boi a voar.
234
Domingo que vem: Ele deu vida pelo sonho Brasil. “Se dez vidas eu
tivesse, dez vidas eu daria”, disse Tiradentes, o mártir da
Inconfidência Mineira. (16 de setembro de 2007).
ENTREVISTA COM O REPÓRTER LUIZ FERNANDO SILVA PINTO -
MAIS VOCÊ
Link com Alexandre Garcia em Brasília (a respeito da cassação de
Renan Calheiros) [explicação detalhada [a reportagem é longa] de
como se dará o processo de votação].
[imagens de Renan Calheiros]
Visita do jornalista Luiz Fernando Silva Pinto, correspondente de
Washington.
Entrevista com Luis Fernando Silva Pinto - Como é que se fala do
Brasil lá, nessa questão do senado?
Eu acho que não se fala muito por uma questão não do Brasil, mas os
EUA curiosamente com o Brasil em relação a América Latina se olham
muito e talvez por uma questão de origem olham muito pra Inglaterra
e Europa etc., e olham muito pouco pro mundo. A não ser que seja o
mundo tópico do momento: Vietnã nos anos 60, o Iraque e o
Afeganistão hoje em dia. Mas os EUA não têm falta de ponto de
referência em relação, à curiosidades políticas de outros países porque
os EUA afinal de contas onde os escândalos políticos são, para usar a
expressão que Alexandre Garcia gosta, amiúde. (rsrs geral).
Isso pra eles é fichinha, o que está acontecendo no Brasil? Isso não
preocupa?
Luis: preocupa sim, mas não no nível popular. As pessoas não tão
muito interessadas com o que está acontecendo no Brasil ou se tem
crise política interna na Itália.
AM: Têm americanas que não sabem onde fica o Brasil.
LF: têm americanos que não sabem onde é o Texas. Porém há um nível
muito sofisticado dentro da vida pública americana, por exemplo, o
departamento de Estado, do mundo econômico de Wall Street, o que
acontece no Brasil é acompanhado com muita atenção pelo, o que está
acontecendo hoje no senado, no Brasil o Brazilian Desk, do
Departamento de Estado está acompanhando com atenção nas
redações, nas discussões internacionais, no Wall Street está sendo
acompanhado com muita atenção. Eh, embora o que acontece nas
bolsas em relação nas bolsas brasileiras em relação aos eua seja
acompanhado com mais atenção. O Brasil não é um tópico de
interesse, o Brasil é uma realidade dentro da economia globalizada que
não é ignorado.
AG: Luis Fernando, diz que o caso Renan tem alguns ingredientes que
os americanos já estão acostumados
LF: vários, vamos lá [rsrs]?
235
AG: a questão de lobista, de amante...
LG: veja, o convívio entre o dinheiro e o poder, ou especificamente,
quanto é fácil comprar o poder e o que vem de volta... Nos EUA é uma
ciência bem conhecida, porque provavelmente já passou por todas as
fases que nós estamos passando, que outros países estão passando e já
chega a um nível de sofisticação e você tem umas espécies de estágios
intermediários, então você tem umas associações políticas de influência
ao candidato e você pode dar, por exemplo, dinheiro a uma campanha
se esse dinheiro se não for para um candidato específico, mas para uma
causa. (...).Em Roma antiga, os senadores tinham clientes.
AM: nossa! fomos para Roma antiga.
AM: Alexandre, sei que você tem um dia nervoso por conta da
votação. Eu queria te dar um presente, queria entregar um café da
manhã especial. Um ótimo trabalho pra você.
'AM: LF continua com a gente.... anúncio de outros quadros. [além de
entrevistado, LF é jurado]. (10 de setembro de 2007)
a) AS ESTRATÉGIAS DE ENUNCIAÇÃO
A encenação, no sentido literal, é a tônica da principal atração do
Fantástico. O quadro “É muita história” reconstitui fatos marcantes de tempos
remotos do cenário nacional e os recome nos moldes teatrais, recheados de
informação jornalística. Apresentado pelo historiador Eduardo Bueno e pelo
jornalista Pedro Bial, o quadro é exaustivamente anunciado no bloco que lhe
precede. Em uma série de nove capítulos, a cada domingo Bueno e Bial
reconstituem um fragmento da história do Brasil por meio de dramaturgia
improvisada e conversas informais. Resulta curiosa a insistência dos
apresentadores em abrigarem as informações na floresta da verdade, do factual:
“todas as informações apresentadas em nossa série são verídicas,
rigorosamente históricas, comprovadas por documentos e fontes primárias. É
tudo verdade! Mesmo porque seria dicil o ficcionista inventar um
personagem como o conde Maurício de Nassau, que fez um boi voar.” A
ficção (ou realidade?) nega a si própria. Grosseiramente falando, é o parece,
mas não é. Podemos ler no subtexto desta ressalva a mensagem de que
ficcionais são apenas os meios de se contar a história, mas ela não o é. Se a
ressalva se impõe é porque a história narrada pode claramente se confundir
236
com histórias criadas (mas, concordemos: narração é criação). A lógica da
evidência, sustentada na imagem, é fragilizada.
até para fazer padia com o célebre quadro do belga
René Magrite, cuja frase Ceci n´est pás une pipe (isso não é
um cachimbo).
Não é arriscado afirmar que a fama do quadro reside exatamente na sua
aparente contradição absoluta. Nesse caso, ovelho adágio “uma imagem vale
mais que cem mil palavras” revela a sua insustentabilidade. A imagem
soberana malogra em sua tentativa de mostrar o que se quer mostrar, e a
palavra, ao contrário do que se aprende nos cursos de jornalismo, (o princípio de
revezamento considera que uma está em relação de complementaridade com a
outra, consiste em dizer o que a imagem dificilmente pode mostrar), não é um
apêndice daquilo que a imagem não teve suficiência de exibir (como nas
clássicas legendas). Em Isso não é um cachimbo, Magrite contradiz a imagem pela
palavra, uma negando à outra, consagrando “uma paradoxal afirmação da
negação do que parece patente, a saber, a condição daquilo que, a priori, é o que
aparenta ser, porém apenas porque assim se mostra.” (FOUCAULT, 2002: 45).
A des-referencialização operada por Magrite atinge o coração da
representação, como vimos no primeiro capítulo, pois demonstra a recusa das
palavras em cumprirem sua tradicional função -, que é de representar -, a
libertação das letras do seu papel habitual de porta-significação, a resistência
contra a sua essência instrumental reduzida a nome das coisas. Magrite
ironiza com as palavras e as coisas.
58
Acidentalmente, Pedro Bial o faz
igualmente (com as imagens fictícias ele brada: isso não é ficção!). Todo o
aparato montado, com apoio em fontes históricas e jornalísticas, é insuficiente
para autenticar o “real” do quadro. O termo ironia é utilizado em sua força
expressiva: segundo [a ironia] é inteiramente uma coisa e, ao mesmo tempo,
58
A propósito, Magrite se inspirou no livro de Foucault, As palavras e as coisas. Rio de Janeiro:
Vozes, 1997.
237
inteiramente outra, ela é o ponto de indiferença entre o real e o ideal. O
programa se compromete em dissipar a perturbadora incerteza do
telespectador no que diz respeito à relação entre as imagens e seus possíveis
significados (acontecimento, fato, histórias criadas). Ficção e Realidade parecem
indiscerníveis. Se existem diversos fios condutores que podem nos conduzir a
mostrar as frágeis fronteiras entre ficção e realidade, um desses fios, com
lego para nos encaminhar para reflexões pantanosas, pode ser extraído do
uso de recursos ficcionais para montar a cena do enunciado.
Assim, em “É muita história”, dramaturgia e história se auxiliam
mutuamente na construção da trama, as duas voltadas para a transmissão da
verdade, para a construção dos efeitos de realidade, daquilo que muitas vezes
foi soterrado pela narrativa histórica oficial - uma meta inarrevel do quadro.
Donde a insistência do apresentador em esclarecer que as histórias não são
colhidas pura e simplesmente de uma mente engenhosa. Pedro Bial reitera: “a
história do boi voador não é lenda. Aconteceu mesmo, é fato. São poucos os
relatos, mas sabe-se até a data: 28 de fevereiro de 1644, um domingo como
hoje”. Com a insistência, Pedro Bial denega.
O drama, antes um elemento fundante do teatro, passa a ser traço
essencial do jornalismo do Fantástico. Segundo Marfuz,
a presença do drama na construção do acontecimento
jornalístico é uma das marcas emblemáticas do discurso
informativo contemporâneo. O telejornalismo brasileiro o
foge à regra ao tratar a notícia, em muitos casos, como se fosse
uma história extraída de uma peça de teatro, utilizando-se para
isto de estratégias dramáticas bem-sucedidas, entre as quais se
destaca, por sua importância e recorrência, a composição da
personagem. (2006: 99).
Para o autor, é cada vez mais freqüente tomar por empréstimo elementos
de outra linguagem para transformar a personalidade da notícia em personagem
de um drama. Foi o teatro grego que nos deu a definição de personagem,
identificada inicialmente com persona (máscara, papel que o ator assume na
238
interpretação do drama no palco). Se o teatro moderno expulsou pela porta a
tradição aristotélica (a tradição dramatúrgica da chamada “peça bem-feita”), a
narrativa televisiva a convida a entrar pela janela: o apoio na estrutura do
drama tem em vista o efeito de identificação. É preciso que o telespectador se
envolva plena e subjetivamente com o narrado:
o drama é uma forma artística extremamente persuasiva e
envolvente, pois imitando a ação por meio da linguagem faz
com que a linguagem desapareça, transformada em ação,
chegando com isso a quase substituir a realidade aos olhos do
leitor-espectador” (...). através do drama, procura-se obter, ao
máximo, o ‘efeito de realidade’ em cena. (Id. Ibid.: 100).
Do ponto de vista da enunciação, é possível afirmar que a dramaturgia
do acontecimento apóia-se num conjunto de convenções dramáticas que se
entrelaçam irremediavelmente para construir o discurso: a dramaturgia traz a
possibilidade de combinar elementos dramáticos para tecer um texto, regida
por determinadas convenções. Acatando esse preceito, é seguro dizer, então,
que as principais estratégias dramáticas (texto, enredo, personagens, cenário,
platéia, palco do acontecimento, estrutura dramática etc.) são reconhecidas no
quadro “É muita história”: o historiador ator faz papel de Maurício de Nassau,
o texto dele é previamente decorado, o enredo é produzido, o cenário
(construído e real) é enquadrado, a platéia (grupo de turistas holandeses a
bordo de um catamarã) – todos esses procedimentos selam, em definitivo, o
papel do drama.
A estrutura narrativa do “É muita história” baseia-se num enredo,
entendido segundo a concepção de Mesquita: “constituir um enredo é começar
um jogo, derivado da relação entre dois jogadores: o narrador e o leitor”. Uma
história pode desencadear uma infinidade de enredos. Aquilo que se mostra
(história) e como se mostra (enredo), do ponto de vista da dramaturgia, e o
acontecimento e o enunciado, do ponto de vista do jornalismo, têm como
prerrogativa a tensão e a surpresa. Pedro Bial é excessivamente técnico, lê as
239
fontes históricas, recorre às testemunhas documentadas, fonte principal da
reportagem. Eco afirma:
Em suma, já estamos agora diante de programas em que
informação e ficção se trançam de modo indissolúvel e não é
relevante quanto o público possa distinguir entre notícias
“verdadeiras” e inveões fictícias. Mesmo admitindo-se que
tenha condições de operar essa distinção, ela perde valor em
relação às estratégias que esses programas realizam para
sustentar a autenticidade do ato de enunciação. (E
CO, 1984:
188).
Diferentemente do Fantástico, o programa Mais Você, de Ana Maria
Braga, procura oferecer ao telespectador informações com assento no mundo
jornalístico logo nos primeiros blocos. O programa feminino ou de variedades
– podemos optar pelas duas classificações – é iniciado de forma mais densa e
informativa. O factual, o ocorrido, ocupa os primeiros lugares na fileira das
matérias para a exibição. Em programa de 11 de setembro de 2007, o principal
tema foram os seis anos do atentado terrorista nos Estados Unidos. Quando
necessário, Mais Você faz links com o departamento de jornalismo da Globo,
para obter maior credibilidade. No dia do julgamento do caso Renan Calheiros,
em 12 de setembro de 2007, o programa contou com a participação de
Alexandre Garcia, direto de Brasília que, com seu discurso competente,
explicou, minuciosamente, como seria o julgamento do senador. Nesse mesmo
programa, Luis Fernando Guimarães, rerter internacional, triangulou o
espaço com Alexandre Garcia e concedeu entrevista sobre relações
internacionais e política local. Em seus primeiros blocos, Mais Você parece um
telejornal. Eco assinala esse embaralhamento:
Por fim, para confundir ulteriormente as idéias, veio o
programa de auditório, onde um animador, por horas e horas,
fala, faz ouvir música, introduz um seriado e depois um
documentário, um debate e até notícias. A essa altura, mesmo
o espectador superdesenvolvido acaba confundindo os
gêneros. Suspeita que o bombardeio de Beirute não passa de
um show e que o público de jovens que aplaude Peppe Grillo
na sala é composto por seres humanos. (1984:182 ).
240
b) AS ESTRATÉGIAS SONORAS
Além de carimbo sonoro, de anunciar o que já se sabe (as vinhetas), o
dispositivo sonoro exerce uma outra função, magistralmente vantajosa, na
construção da narrativa, que é, segundo Didier-Weill, a função siderante: “se a
sica me surpreende, ou me põe em estado de expectativa, é porque se passa
algo para o qual eu não estou preparado (...) uma articulação é produzida entre
um receptor que, em mim, recebeu o apelo endereçado pela música e a aparição
de um emissor que se endereça à música para dirigir a ela o seu apelo”. (2001:
210). As perguntas que seguem são provocadoras: “quando escuto música, por
que fico encantado por ela?" a resposta é elucidativa: “porque se passa alguma
coisa para a qual não estou preparado: enquanto que, quando estou numa
relação de palavra, a experiência me ensina que não recebo a palavra do
interlocutor a não ser através de uma deliberação interna que me pede para
decidir sobre a mensagem ouvida (direi “sim” ou direi “não” a ela?), quando
escuto soar a música, descubro, a cada vez, com espanto, que não posso deixar
de lhe dizer “sim”.
Podemos verificar esse aspecto da surpresa, do inesperado, em alguns
filmes já clássicos, notadamente os de suspense. Os passos, os ruídos que nos
enredam numa teia de possibilidades, quase sempre aterradoras (vide alguns
filmes de Alfred Hithcook), constituem-se, em muitos casos, no núcleo
discursivo da trama. Igualmente ilustrativos são os plantões dos jornais: as
notícias importantes de última hora são antecedidas por carimbo sonoro, que
passou a representar prenúncio de notícia ruim (morte de presidente, seqüestro
de personalidade importante). Embora as vinhetas dos plantões jornalísticos já
antecipem, de certa forma, que se trata de uma informação de extrema
importância, normalmente com pêndulo voltado para o universo trágico, o
telespectador fica à deriva até o momento de revelação da notícia.
Nas duas reportagens analisadas, a do Fantástico e a do Mais Você, o
recurso sonoro não abdica dessa função. Na reportagem sobre o “Boi voador”
241
toda a fita musical é composta com vistas a dar vazão ao fluxo narrativo, mas,
sobretudo, para marcar a repetição: em suas variações de sentido, o som
desempenha papel primordial (quando a matéria almeja apelar para o drama, a
fita sonora tem timbre, melodia e freqüência mais pesados; em situações em que
escorrega para a comédia, música bufão - estratégias herdadas inequivocamente
do teatro e cinema):
A ópera era um espetáculo muito popular e, em sua época, até
que massivo. Juntava música e drama, e, no entender de
Wagner, essa seria a forma perfeita de teatro (se remontarmos
aos primórdios gregos, veremos que o teatro nasce com a
música, e o canto ocupava um papel de destaque na tragédia
com os coros, algo também incorporado na ópera). Essa forma
perfeita de teatro possuía, na música, uma privilegiada
parceria, já que era ela quem ajudava a construir a curva
dramática do espetáculo. Dentro dessa tradição, o cinema, a
nova arte do século XX, aproveitou-se dessa união entre
música e teatro e passou a usá-la em seus filmes como
comentários dramáticos para o fluxo de suas narrativas.
(L
EONE, 2006: 177).
A partir das considerações de Leone é plausível apontarmos também a
TV como herdeira das estratégias teatrais. O fluxo das narrativas televisivas é
organizado segundo as oscilações em que o telespectador é envolvido na trama
de modo a dizer o sim, que aponta Didier-Weill, sem sa-lo. Em “O Boi
Voador”, a abertura do quadro é composta por uma música encomendada
estritamente para o quadro; no transcorrer da narrativa evoca-se discursos
sonoros tonalizados pela performance do repórter e do ator (o historiador
Eduardo Bueno). No Mais Você, igualmente, a variedade sonora segue o preceito
segundo o qual o telespectador precisa ser envolvido e capturado por meio de
recursos narrativos. Sonoplastia e fundo musical ordenam o jogo de sentido.
c) A CENA DA IMAGEM: A ORTOGRAFIA DO VISUAL
“Se qualquer imagem pode ser lida, ou se pelo menos podemos criar
uma leitura para as imagens, é porque elas têm uma história para contar”,
242
conforme sugere MANGUEL. (2001: 21). Já que partimos da noção de escritura, os
programas são vistos como uma escrita que se escreve com a câmera, o que está
em estreita relação com a idéia de uma (orto)grafia do visual, uma tele-grafia. É
a noção da câmera-caneta de Metz: uma caneta nunca escreveu senão o que se
escreve com ela. O próprio movimento da câmera já produz um efeito de
sentido, constitui, invariavelmente, a marca de um olhar. Assim,o se pode
desconsiderar que há todo um aparato formal aquém da própria imagem
(expresso no bastidor da cena, como sublinhamos), por si uma
potencialidade de sentidos. Conforme anota Machado:
Ora, se é verdade que as câmeras dialogam com informações
luminosas que derivam do mundo visível, também é verdade
que há nelas uma força formadora muito mais que
reprodutora. As câmeras são aparelhos que constroem as suas
próprias configurações simbólicas, de outra forma bem
diferenciada dos seres e objetos que povoam o mundo... ao
invés de exprimir passivamente a presença pura e simples das
coisas, as câmeras constroem representações, como de resto
ocorre em qualquer sistema simbólico. (M
ACHADO, 1984: 11).
A existência de uma moldura (frames), mesmo que mínima, identifica um
discurso. A câmera não é neutra, ela está a serviço dedigos
convencionalmente estabelecidos. O trabalho do cinegrafista não é apenas um
registro técnico do real, ele joga papel importante para (re)projetar o acontecido:
aprendemos com os cineastas que mostrar apenas o rosto, a parte superior do
corpo (plano americano), o corpo inteiro ou todo o cenário (grande angular)
constituem traços de operações enunciativas, definem a narrativa; a
profundidade de foco, igualmente, pode sugerir traços de operações de
enunciação. O olho da câmera esquadrinha o mundo, um mundo já recortado,
diga-se de passagem, e define o que olhamos ao sermos vistos.
Fantástico e Mais Você fazem uso de vários planos de enquadramento em
uma só matéria. A panorâmica, excessivamente utilizada nos dois programas,
está em sintonia com o ideal de organização e visibilidade do que está em nosso
243
entorno e alhures de forma totalizante. Herdeira da prática do pintor ambulante
do século XVIII e do viajante ferroviário do século XIX, a panorâmica expõe a
capacidade de lançar um olhar móvel e organizado sobre o mundo. Originário
tecnicamente da pintura, panorama, criado por Robert Barker no final do século
XVIII, vem de duas raízes gregas que significam onividência: trata-se de
açambarcar com o olhar uma vasta zona. “Ponto comum essencial a todas as
variedades de panoramas, e que a etimologia minta ou não, o sufixo – rama
continua a exprimir o gigantismo um tanto pretensioso. (AUMONT, 2006: 54)
(não nos esqueçamos, o panoptikon é contemponeo à inveão do panorama).
Tanto no Fantástico quanto no Mais Você o mundo em sua totalidade é,
aparentemente, enquadrado, ofertado em sua abranncia e plenitude. Isso tem,
precisamente, seu sentido no trecho que se segue:
Olho móvel, corpo imóvel: está tudo aí, e é por aí que o trem
substitui o espectador “ecológico” da pintura de paisagem, o
simples andarilho que descobre o mundo que o rodeia, por
esse ser estranho, enfermo a ponto de ser comparado com os
escravos acorrentados da caverna platônica –, mas, ao mesmo
tempo, dotado de ubiqüidade e de onividência, que é o
espectador de cinema. (2004: 54).[grifos meus].
O espectador de TV tamm é dotado de ubiqüidade e onividência,
como assegurado no item sobre imagem. Olhando quem vê, Mais Você e
Fantástico fornecem à assistência uma imersividade total – função primordial do
panorama – no universo filmado. Na reportagem de “O Boi Voador”, imagens
panorâmicas de mapas, localização da cidade de Recife do alto, tomadas de
pessoas na rua, são capturadas em 360º graus. Assim como o panorama clássico,
o panorama da câmara televisiva procura trazer o espectador para o centro da
ação “representada”. Nós somos tele-guiados para/pelo centro da tela.
244
Ao abarcar o mundo com a imagem total,
Fantástico e Mais Você nos inebriam e
trapaceiam. É o trompe o´eil (literalmente,
engana o olho) eletrônico. Técnica artística
que, com truques de perspectiva, cria uma
ilusão óptica, mostrando objetos ou formas
que não existem realmente. Embora a o
trompe-l’oeil seja associada ao período barroco,
a técnica já era familiar aos gregos e romanos,
que a empregavam em murais, como os de
Pompéia. O aperfeiçoamento técnico
alcaado no Renascimento faz do trompe-l’oeil
um artifício largamente utilizado, explorando-
se os limites entre imagem e realidade. (cf.
ZAMORA, 2005: 4).
Na reportagem sobre “O Boi Voador”, recursos muitos semelhantes ao
trompe-l’oeil são postos em marcha. O céu expandido, um boi (ilusório) voando
sobre ele, projeção de pontes sobre o rio Capeberibe (recursos de computador),
Maurício de Nassau “em carne e osso”, documentos históricos flutuando sobre
a cidade de Recife, são parte de uma montagem que “engana o olho”. No Mais
Você, a humanização do papagaio Louro José, embora não diga respeito à
ilusão espacial, pode ser explicada pela chave do trompe-l’oeil. Passamos a
acreditar que o papagaio é gente.
Figura 17. A condição human
a
,
René
Magritte, exemplo de trompe-l´oeil
Figura 18. Trompe-l´oeil
Figura 19. Trompe-l´oeil eletrônico.
Simulação de sobrevôo de boi.
Figura 20. Ana Maria e seu papagio
humanizado
245
O cinema foi acusado de sofrer da síndrome de Ícaro em níveis
variáveis: “ver o mundo a partir de um outro lugar (sobretudo do alto) e
decifrá-lo como um espaço ainda virgem.” (AUMONT, 2004: 185). O programa
Mais Você faz, diariamente, tomadas do heliptero para mostrar a aurora do
dia em São Paulo (temperatura, acidentes). Com a radiografia, a zona vasta
filmada, o programa orienta o telespectador que está prestes a sair de casa.
Como se está a notar, o ato de enunciação funda-se em recursos
ficcionais. A esse respeito, Eco assevera:
Com esta finalidade tais programas encenam o próprio ato da
enuncião, através de simulacros da enunciação, como
quando se mostram as telecâmeras que captam aquilo que
acontece. Uma complexa estratégia de ficções põe-se a serviço
de um efeito de verdade. (1984: 191).
Frente à tela vemos um mundo que se movimenta; somos, até então,
apenas testemunhas do espetáculo do mundo, uma conquista que foi possível
graças a mudanças significativas na história da imagem técnica. Ver imagens
veis numa posição de imobilidade (normalmente estamos sentados no so)
é conseqüência da evolução do panorama. Tudo isso está relacionado com as
profundas alterões ocorridas nos séculos XIX e XX, “com o surgimento de
novas formas de espetáculo que simulavam a mobilidade de um espectador que
se faz observador, ao surgimento da experiência visual no corpo de um
espectador autônomo, mas também a uma transformação radical no estatuto da
imagem, que se torna imersiva sensorial ou psicologicamente”. (PARENTE, 1999:
128). É especialmente útil marcarmos as diferenças entre o panorama europeu e
o americano; o primeiro consiste em uma imagem circular contemplada de uma
pequena plataforma central; o segundo, constituído por uma imagem plana que
se desenrola diante do espectador. O panorama americano foi batizado de
moving picture ou moving panorama. Ao invés de o espectador se mover, quem se
locomovia era a imagem, o que antecedia a produção das imagens
cinematográficas.
246
Ao mesmo tempo em que o telespectador televisivo, imóvel, é instado a
abraçar todo o espaço esquadrinhado pelas câmeras indiscretas dos programas,
ele, paradoxalmente, está aprisionado em um espaço finito, limitado, o quadro
televisivo, que o fixa, conforme discutiremos adiante. O panorama abre
horizontes, não devemos esquecer da origem do termo (horizein = limitar), que
nos diz que essa abertura se dá sobre um espaço limitado. Na sua propalada
genealogia da TV, Eco observa que a neotelevisão é janela aberta sobre um
mundo fechado, um mundo próprio, um mundo dela mesma, um mundo
enquadrado (op. cit.: 189); Erving Goffman considera que enquadramentos são
prinpios de organização que governam os acontecimentos e nosso
envolvimento neles, que “organizam um fragmento ou um corte arbitrário feito
no fluxo da atividade em curso do mundo cotidiano: a escolha de um
enquadramento (frame) não é inteiramente livre, pois depende do catálogo de
frames disponíveis num determinado momento sócio-histórico-cultural”, isto é,
depende do aspecto que o real assume para o jornalista, num determinado
momento, bem como da sua experiência, que lhe molda a percepção. Toda o
poder técnico do panorama é diminuído com essas observações.
A imagem em movimento começou engatinhando com o plano-
seqüência fixo (“as folhas se movem!”, gritam os espectadores do filme dos
irmãos Lumière), mas logo depois evolui para o próprio movimento damera
durante a tomada. Tratava-se da descoberta do travelling, matéria-prima do
cinema. O cinema não apenas mostra o movimento, mas também passa a fazer
dele um procedimento capital. De acordo com a passagem abaixo:
Como sabemos, o travelling, oplano-feito-viagem só é
considerado como a “alma do cinema” (sua consciência moral,
como diz Godard) por exprimir (ou imprimir) movimentos que
são os da vida, do olhar do homem sobre o mundo em que ele
se move: avançar, recuar, subir, descer, deslizar lateralmente,
escrutar, acompanhar. No fim do movimento demera (...)
sempre um olho em jogo, se não um corpo: um ponto de
ancoragem humano. (op. cit.: 185).
247
Os movimentos de câmera foram associados aos meios de transporte (o
trem, os trilhos do travelling, os carrinhos, os motores, as gruas, os braços
mecânicos, os helicópteros): “ o homem com a câmera é o passageiro corporal
de um veículo escópico cujo olhar respira com o mundo em que ele se move.
Um dos efeitos de prazer do movimento cinematográfico (a ‘e-moção’) vem
fundamentalmente daí. (Id. Ibid.: 186).
Além das imagens panorâmicas, Fantástico e Mais Você apóiam-se em
outros recursos imagéticos. Tomadas em primeiro plano (PP), primeiríssimo plano
(PPP) e o close up são bastante utilizadas em casos específicos. O movimento de
câmera se pretende correlato às conturbações e contratempos que ela capta.
Assuntos e fatos violentos, por exemplo, são construídos, do ponto de vista da
imagem, de forma caótica. No plano geral (PG), por exemplo, que costuma ser
utilizado para a transmissão de cenas de violência, de tumulto, a sensação de
movimento, criatividade e ação se faz presente. No plano americano (PA) que
possui as mesmas intenções do plano geral, os fatos são focalizados com certa
proximidade. O plano médio (PM) procura mostrar os entrevistados nas cenas
em que se desenvolvem tensões dramáticas, já apontando para algumas
peculiaridades. O primeiro plano, às vezes congelado, corta o entrevistado na
altura do busto e parece supervalorizar a expressão facial de quem fala,
sugerindo algumas qualificações.
Já o primeiríssimo plano (PPP) procura estreitar ainda mais as relações
repórter/entrevistado, repórter/telespectador, entrevistado/telespectador. Ele
enquadra apenas a cabeça do repórter, do apresentador, do entrevistado. O
close-up mostra apenas um detalhe do que está sendo filmado. Possui um forte
impacto visual e é, frequentemente, utilizado em cenas de ficção e na
publicidade. O noticiário recorre a esse enquadramento todas as vezes que
pretende apelar para minúcias fundamentais na trama narrativa (o Big Brother
Brasil) é pródigo em mostrar imagens em seus mínimos detalhes.
248
d) A CENOGRAFIA DA ENUNCIAÇÃO
Levando em conta que “todo discurso, por sua manifestação mesma,
pretende convencer instituindo a cena da enunciação que o legitima”
(MAINGUENEAU, 2001: 87), as estratégias aqui analisadas (de enunciação oral,
sonora e imagética) apontam as várias marcas que concorrem para tal
legitimação. Os analistas do discurso legaram um patrimônio relativamente
extenso sobre cena, cenografia, cenário no âmbito da fala e da escrita. É válido o
lembrete de que o termo cenografia no campo da Análise do Discurso possui
uma designação específica, constitui-se “na cena do enunciado em que o
discurso constrói uma representação de sua própria situação de enunciação”.
(MAINGUENEAU, 2001: 20).
Mas se prestarmos atenção ao fato de que não “é diretamente com o
quadronico que se confronta o telespectador, mas com uma cenografia” (Id.
Ibid: 87), outros elementos poderão surgir daí. Considerada como “a arte de
desenhar ou pintar segundo as regras de perspectiva”, a cenografia (os
cenários) dos programas televisivos desenham/inscrevem cada um no seu
espaço/lugar (repórter, apresentador, entrevistado, platéia), tentando adequar
as narrativas ao gênero ao qual dizem pertencer.
Os cenários de Fantástico e Mais Você, por exemplo, aparentam-se
espacialmente com os cenários de programas de auditório. No primeiro, o nome
do programa e dos seus quadros (o menu temático) são postos ao fundo, como
que tentando relembrar o telespectador do que ainda está por vir (as chamadas
para o bloco seguinte são insuficientes para anunciar todo o menu ainda a ser
oferecido pelo Fantástico). O espaço é amplo, parte dele parece aparentemente
inútil. Mas logo descobre-se o porquê do tamanho do estúdio: os
apresentadores se deslocam para lá e para cá (como atores no palco), com
performances que procuram designar o teor da notícia/acontecimento: anúncio
de temas dramáticos (o apresentador posta-se no centro da tela e a imagem
249
tende para o close-up, por exemplo). A presença de auditório só existe em alguns
quadros do Mais Você.
No programa Mais Você, mais que no Fantástico, há um amálgama de
elementos no cenário (um papagaio antropomorfizado, mesas de café para
convidados, arranjos de flores, cachorro “de verdade”, cozinha montada, sala
de estar, obras de arte,), alguns deles excessivamente cheios de acessórios. Tem-
se a impressão de que o telespectador em geral não se dará conta da presença
de todos esses ornamentos em cena. Por que, então, inseri-los? Para além da
decoração do ambiente, os ornamentos televisivos, compõem, efetivamente, a
cena, o ornamentoo é acidental, é essencial. A técnica da pintura, parergon,
que foi oposta ao ergon, vem ao nosso auxílio.
Se o ergon é o trabalho feito, o fato, a obra, como explica Derrida em A
verdade em pintura, o "parergon" surge contra, ao lado e acima do "ergon".
Segundo ele, parergon designa entrada, mas também objeto acessório, estranho,
secundário, suplemento, resto. Os parerga, como esclarece Derrida, foram
sempre vistos como acidentais, não podendo explicar os princípios ou
fundamentos da arte, o que tem como conseqüência direta a distância dos
filósofos em relação a sua importante função. Alguns pensadores, entretanto,
viram no parergon algo mais do que um simples ornamento. Kant se ocupou em
catalogar diversos deles: as vestes das estátuas, as colunas ornamentais em
volta de edifícios suntuosos e as molduras douradas destinadas a valorizar os
quadros pendurados nas paredes. A recusa que motivou o menosprezo do
parergon justifica-se pelo argumento segundo o qual:
toda a análise do jzo estético sue sempre que se possa
rigorosamente distinguir entre o intrínseco e o extrínseco,
devendo o juízo estético conduzir ao belo intrínseco, não
aos ornamentos nem aos aspectos secundários. (...). A
sedução pelas ornamentações é sentimento ímpio, da
ilusão condenável em nome da necessária distinção da
imagem e do real: a pintura. (DERRIDA,)
250
Normalmente, não concebemos os ornamentos - alguns postos de
maneira bastante discreta na tela televisiva - como artifícios que cumprem uma
função na cena do enunciado. O cachorro que passa “inadvertidamente” ao
fundo no programa Mais Vo, o quadro da parede que é filmado em tom de
acidente, a alça do jarro de flores, todos esses objetos acabam cercando a tela e
acomodando a cena. A borda da tela, a moldura, fixa a cena. Apoiamo-nos em
Freitas para tornar tais argumentos ainda mais elucidativos:
A função que seria a função da tela encerra a cena entre dois
limites, duas bordas, que seriam como dois presse-livres entre os
quais seria contida a cena. Porém, há objetos, há figuras que
rondam, ou enfeitam a cena: os ornamentos, ou conforme
Derrida, o parergon. Trata-se de um certo acompanhamento que
funciona como uma espécie de armação na qual se encaixaria a
cena para fixá-la, para constituí-la precisamente como cena,
facilitando a sua leitura e compreensão? Ou, ao contrário o
parergon tem como efeito dispersar a atenção, dirigindo-a não
mais ao que é dado a ver através dessa forma de “janela” que
deveria ser o quadro (ou a TV: a janela para o mundo) mas à
imaterialidade da moldura resplandecente na qual a “vista” se
enquadra? (F
REITAS, op. cit.: 3).
e) O LUGAR DA ENUNCIAÇÃO
Ressalte-se que no tópico anterior o que estava em causa era o espaço,
entendido na sua dimensão geográfica demarcada. Aqui, se pretende fazer
referência ao lugar entendido, simbolicamente, construído pelas estratégias de
enunciação. Com efeito, todos esses componentes acima descritos e analisados
perfazem, com suas próprias funções, a cena do enunciado construída a partir
de um lugar, o lugar da enunciação (ou lugar de fala). Em que lugar a
enunciação ganha sentido?
Autores como Bakhtin consideram que a enunciação se dá num espaço
de atuão e, portanto, não propõe simplesmente uma tomada de posão em
um espaço visto como neutro ou assumido como real, mas implica o modo de
ver a realidade na qual a posição é tomada. Em síntese, uma fala produz e é
produzida pelo lugar em que o sentido se institui. (cf. 1992: 320).
251
Existe uma lógica que estrutura a enunciação e funciona como
articuladora entre esta e a posição do sujeito em sua ambiência simbólica. Vista
a partir daí, a enunciação resulta de um caminho por onde o significante se
movimenta, em cujas sinuosidades o sujeito se instala provisoriamente.
Nesse “sujeito, estamos, inadiavelmente, incluídos. Porém, nas imagens
que a TV nos franqueia, há uma que falta: a imagem de cada um, a imagem do
telespectador. O nosso lugar na enunciação é, portanto, um lugar faltante. A
auncia e a falta instauradas encontram fundamento na função da tela:
A (tela), por ser tela, mostra e oculta designa algo que
intercepta; situa-se entre dois fenômenos, coisas ou objetos que
mantém separados entre si. Assim, a tela mascara uma
abertura. Doutra parte - tal é o paradoxo - a tela também é a
supercie onde aparecem as imagens dos objetos ou
acontecimentos. Seja qual for a diferença dos modos de
aparecer - projeção de filme no caso do cinema, varredura
eletrônica no caso da televisão (e do videocassete) - importa pôr
em evidência a ambigüidade dum termo que designa a um
tempo o que intercepta e o que revela. O que se mostra na tela
não se assemelha totalmente, em nossa consciência, ao
fenômeno puramente físico do reflexo. Mesmo na transmissão
direta, a emissão é objeto de elaboração e se presta à
interpretação. (B
ERGSON apud PROMM NETO, 2001: 7).
O excerto acima chama atenção para a dificuldade da tela em mostrar
tudo, pois ao mostrar ela oculta. Ressaltamos, no entanto, que ela oculta não
apenas por sua incapacidade de mostrar fielmente os objetos e as coisas, mas
porque ao fazê-lo impõe um véu. A máscara em que a tela se resguarda se
assemelha ao fundamento da máscara veneziana, um jogo de possibilidades das
formas identitárias. Ao entrar, através da tela da televisão, no mundo de
imagens, o sujeito é isolado, o que adia o desvelamento total do que está por
trás. De acordo com a passagem abaixo:
A telao desempenha o mesmo papel do espaço ótico
geometral, pois ela não é qualquer coisa que possa ser
atravessada pela luz na transmissibilidade em linha reta
suposta na perspectiva, ao contrio, ela é opaca: a luz
ricocheteia aí e reverbera em miríades de estilhaços, luzes e
252
sombras. A tela tem aí uma função muito próxima daquela
que é exercida pela máscara, indicando que há alguma coisa
atrás. Por essa função, a tela isola o sujeito, capturado pelo
olhar. (F
REITAS, op. cit.: 46).
Extraímos da função da tela uma pista capital para lidarmos com a
mediação na TV. A ocultação, própria da tela, nos amarra ao quadro televisivo à
procura da narrativa que dê conta de atender às nossas expectativas. Nesse
sentido, o acompanhamento diário de telejornais e de outras espécies televisivas
apazigua as vontades imediatas, mas deixa sempre de fora algo que se impõe,
no horizonte do possível, como a realização dos desejos: “o véu materializa, de
maneira tida, a relação de interposição que faz com que o que é visado esteja
além daquilo que se apresenta”. (FREITAS, 2000).
Os gêneros televisivos prometem, como frisei, a representação de várias
faces do mundo, mas só prometem, pois, “na verdade, como vimos, a função do
retorno, onde se inscreve a repetição, atende àquilo que não está
representado e é isso que prende o olhar”. (Id. Ibid.). Fantástico e Mais Você
anunciam, fastidiosamente, que na semana que vem ou no dia seguinte tem
mais, que se o telespectador continuar “ligado” ele terá a chave da significação
para seus anseios, problemas e angústias (não perca, no próximo bloco: saiba
como comprar sua casa própria, saiba do método inovador para combater o
colesterol, conheça a mais nova descoberta da cura de doença X ou Y). As
chamadas são um chamariz para que o telespectador caia na armadilha do
desvelamento do mundo, anunciado pelos apresentadores. Como lembra
Gomes, as chamadas anunciam que aquilo que será mencionado, os tópicos
sobre os quais recaem as notícias, são eles não só o aspecto relevante do quadro
social, mas extratos últimos deste quadro, que impelem a uma certa
obrigatoriedade em termos de atenção e informação” (2004: 58). Tais tópicos, ou
quadculos, segundo a autora, compõem o quadriculamento do espaço
público, do que é de interesse da comunidade e, portanto, está condicionado a
um olhar e a um debate constante por parte desta. “Estes tópicos anunciados
253
são a essência do jornalismo enquanto campo que reflete e respalda uma
divisão do campo social em pontos estratégicos de atuação.” (Id. Ibid.: 58),
pontos que suem “um saber sobre o nosso desejo”, como afirmou Kehl, com
uma oferta frenética de objetos para o desejo, uma produção de visibilidade de
fatos e acontecimentos.
A função da tela, o aprisionamento do sujeito, a repetição das narrativas,
o não recobrimento daquilo que foi exaustivamente anunciado, insistindo
sempre em revelar algo mais, nos remetem para as discussões sobre a
representação na TV, que, como vimos, são frágeis, mormente, se estiverem
alicerçadas nos pilares da ficção e realidade (o apresentador é obrigado a dizer
que determinada reportagem não é ficção. Como então discernir entre uma e
outra?).
Nesse particular, podemos fazer um paralelo com o clássico quadro As
meninas de Diogo Velásquez.
Considerado por Jacques Lacan como teogonia da pintura, o quadro de
Velásquez, também reconhecido como o pintor dos pintores, vem suscitando
reflees insolúveis sobre a presença da fantasia e do sujeito dividido de que
Figura 21. Las meninas, Diogo Velásquez
254
tratam as considerações freudiana e lacaniana, respectivamente, oferecendo
direcionamentos para se pensar na estrutura do quadro televisivo.
Em As meninas, o espectador é captado e arrastado para dentro do espaço
do quadro por um olhar que vem de fora. O cenário sobre o qual estão envoltas
as personagens é um jogo de luz, sombra e perspectiva, de tal modo que o
sujeito que “vê” está condenado a cair numa “armadilha”. Qual a armadilha?
Atentemos para a montagem do quadro.
Cenário visível do quadro
Cena 1: Mundo de luz, mundo solar: ao centro a infanta Margarida, ladeada
pelas damas (las meninas). Cortesãos, anões, um cão que parece dormir, de olhos
fechados, como se estivesse ali para fazer as vezes de um olhar que escapa a
todos os que, de olhos abertos, nada vêem;
Cena 2: Mundo de sombra: À esquerda, o pintor que vê, tendo numa mão o
pincel e na outra a paleta das cores, parece fixar-nos, como se fôssemos o
modelo da pintura, que vemos apenas o reverso: o quadro no quadro.
Cena 3: Mais ao fundo, numa mancha de luz, uma outra personagem,
como que indecisa, não se sabe se vai entrar ou sair: José Nieto, camarista da
rainha. O braço direito de Jo Nieto parece apontar para algo que se afigura
um quadro, mas que não é um quadro, é um espelho onde estão refletidas duas
personagens: o rei Filipe IV e a sua esposa Mariana.
Cena 4: é um espelho onde estão refletidas duas personagens: o rei Filipe
IV e a sua esposa.
O eixo ordenador – o rei e a rainha - está fora da cena pictórica, mas marca
a presença pela ausência. O vazio designado por essa ausência designa a
inscrição do sujeito barrado no quadro. O fato de estar elidido da representação,
não quer dizer que o Sujeito esteja ausente (ao contrário do que considerou
Foucault em As palavras e as coisas). O pintor enquanto sujeito, está dividido,
255
para além de seu auto-retrato, entre sujeito do ver e sujeito do olhar. O sujeito
não tem representação em si, ele é um significante para outro significante.
As regras a que o quadro está submetido nos indicam a existência de uma
cena invisível, onde o sujeito é atrdo pelo olhar que vem de fora.
Cenário invisível do quadro - antecedentes
No Seminário XIII, Lacan questiona sobre o papel do sujeito: O que seria
exatamente do sujeito, na sua posição clássica neste lugar necessitado pela
constituição do mundo objetivo? “Observem que a este sujeito puro, este sujeito
cujos teóricos da filosofia levaram até ao extremo a refencia unitária, a este
sujeito, eu digo, que não acreditamos nele completamente, e não é para menos.
Não se pode acreditar que para ele todo o mundo seja suspenso. E é bem no que
consiste a acusação de idealismo.” (Leçon XVI, 271).
A descrea nesse sujeito filosófico supõe também a descrença na
representação em sua forma clássica: “Antes de definir o que acontece com a
representação, a tela já nos anuncia no horizonte, a dimensão do que na
representação é o representante. Antes que o mundo se torne representação, seu
representante - eu entendo o representante da representação-, emerge.” (Id.
Ibid.).
Se a representação já é representada, como se instala o sujeito no
quadro? Qual o segredo que o quadro insiste em ocultar? De onde ele, o
segredo, se origina? Para onde olha o pintor? Para onde olham a infanta e as
outras personagens? O que esconde o quadro voltado do avesso?
A resposta que somos nós próprios o modelo do pintor não é suficiente,
pois o sujeito é capturado inexoravelmente por esse olhar que parece vir na sua
direção, captando-o. Esse olhar não se dirige ao telespectador mas ao lugar que
ele ocupa. Que lugar é esse? Está situado dentro ou fora do quadro?
Para Lacan, no mais íntimo do quadro o encontramos uma coisa em si,
mas um olhar. A carta viradauma carta que falta no baralho – está aí para
256
barrar cada um destes sujeitos, para cavar um buraco entre o olho daquele que
(que julga ver) e o olhar que lhe escapa. Com base nisso, Lacan advoga a
construção de um espaço, uma outra topologia para dar conta deste centro que é
ao mesmo tempo um excentro, deste interior que é também um exterior, deste
dentro que é um fora, deste íntimo/extimo. O quadro virado do avesso, o
quadro dentro do quadro, está aí para manter essa invisibilidade.
É em relação essa carta virada que o sujeito lança o desafio: mostra! (fais
voir!), permanecendo, dessa forma, numa qualidade (impotência) fundamental,
isto é, num não poder ou não conseguir ver onde é suposto existir alguma coisa
para ver. Pom, talvez haja aqui uma armadilha. Para Lacan, um quadro
voltando ao quadro - é uma armadilha para o olhar.
Só que, além disso, se há um quadro voltado dentro do quadro é para
mostrar que o visível pode faltar no seu lugar, isto é, pode tornar-se invisível no
ponto mesmo em que se mostra. Quer isto dizer que aquilo que vemos, na frente
do quadro, não tem um estatuto de representação, de algo que estaria ali para
reproduzir a coisa mesma, mas de representante, isto é, da mera diferença, entre o
visível e o invisível, ou seja, entre um significante (a frente do quadro) e outro
significante (o seu reverso).
A representação estaria, assim, relacionada à significação, enquanto que
o "representante da representão" é de domínio daquilo que atribui
significação. “O quadro dentro de quadro" é pintado por Velásquez na
conjunção de duas perspectivas, as quais são impossíveis num só espaço. Com
As Meninas, é a habilidade de Velásquez em construir uma impossível junção de
perspectivas que mantém o espectador em suspense. Se o quadro consegue
manter o espectador em suspense, o que ele esconde?
Transpondo essas observações para as nossas análises, destronamos o
estatuto da representação, peça-chave no sentido das mídias e, em especial da
televisão. Lacan nos ensina, com o quadro de Velásquez, que não existe segredo
por desvelar, alguma coisa a mais para ver que está escondida. Assim é, para
257
ele, a natureza do inconsciente, pois não diz respeito a algo que esteja submerso
nas profundezas, mas antes a um corte, a uma palpitação, a uma esquize entre o
olho e o olhar. Do lugar onde olho, sou olhado. Talvez seja por isso que Lacan
defenda a idéia de que é preciso dar uma segunda volta em torno do quadro (a
volta da pulsão), não para acrescentar-lhe outras interpretações, mas para se
dizer menos sobre o quadro.
A tela televisiva, estruturada tal como um quadro, parece provocar os
mesmos efeitos. Como uma armadilha, o espaço televisivo se constitui em um
Olhar que captura os sujeitos (telespectadores) e os arrasta para dentro do
quadro que cada um se torna. Segundo a passagem abaixo:
Está aí a função que se encontra no mais íntimo da instituição
do sujeito no campo do visível: o que me determina
primordialmente no visível é o olhar que está de fora. É pelo
olhar que entro na luz, e é pelo olhar que eu recebo o seu
efeito. Então, o olhar é o instrumento por onde a luz se
encarna, e pelo qual eu sou foto-grafado. (F
REITAS, 1996).
Para Freitas, no que diz respeito ao véu, ao ocultamento, existem três
elementos em jogo: o sujeito, o objeto e o além. Para ela, o além, aquilo que se
pede para ser dado a ver, mas que a partir do momento em que se ergue ou,
“sobre ele se pinta alguma coisa” (Id. Ibid.). Enquanto faltante, o além se
constitui como o suporte da relação, ainda que não seja o ponto que liga ao
desejo.
Nessa impossibilidade de representar, tópicos como ficção e realidade se
embaralham, pois não existe, na lógica que ordena os enunciados tanto do
Fantástico quanto do Mais Você, um elemento distintivo da representação do
real e do ficcional. Para Augé, todos os casos de ficcionalização do real, dos
quais a televisão é um instrumento essencial, ligam-se, antes de mais nada, à
extrema abundância de imagens e à abstração do olhar que a precede.
Caminhando com Freitas, posso assegurar que não se trata de afirmar
que o telejornalismo seja mentiroso, mas de apontar-lhe uma estrutura de
258
ficção, visto que os relatos cotidianos resultam das construções imaginárias, o
que sinaliza para os ts registros: real, simbólico e imagirio. O mundo
socialmente organizado que a televisão nos mostra são os modos de
representação institucional sobre a qual s concordamos que edificam as
nossas construções sobre o buraco da nossa verdade, o real. (Freitas, 1996).
***
GOLS DO FANTÁSTICO: UM ENCONTRO COM O REAL
COBERTURA ESPORTIVA 16 DE SETEMBRO DE 2007
Zeca Camargo: Tadeu Schmidt está chegando com o melhor do
esporte.
Glória Maria: é um final de semana de clássicos do campeonato.
E aí, Tadeu, o domingo foi especial?
Tadeu Schmidt: clássico é sempre empolgante. Agora, o pessoal
de Minas Gerais exagerou. O duelo entre Cruzeiro e o Atlético
Mineiro foi demais. Sete gols. Quando você acha que descobriu o
nome do jogo parece outro destaque.
(As imagens dos jogos são mostradas, abusivamente, em
mera lenta).
a) ESTRATÉGIAS DE ENUNCIAÇÃO
Um dos quadros mais antigos do programa, os “Gols do Fantástico”
passou por um sem-número de reformulações. Inserimo-lo nas análises, em
divórcio com Mais Você, por nos apontar alguns aspectos que lançam luz para
a tese, principalmente no que diz respeito ao dispositivo imagético.
Inicialmente, o Fantástico exibia as notícias esportivas após o
encerramento do programa principal, um quadro mostrava os gols da rodada
dos campeonatos de futebol pelo Brasil e pelo mundo. A narração era de Léo
Batista. As emissoras de televisão do Brasil costumavam exibir no domingo à
259
noite o videoteipe dos jogos na íntegra. Com a apresentação dos gols dos
principais jogos, o videoteipe dominical chegaria ao fim em pouco tempo. Mais
tarde começou a ser apresentado o Gol do Fantástico, aquele mais bonito de
todos os apresentados no quadro.
O quadro faz aliança com outro tópico marcante, o da velocidade, que
parece dar mais brilho às peças do colar real-simbólico-imaginário. Ao capturar o
real por meio do registro da imagem do aqui e do agora, por meio da cobertura
dos jogos pelo país afora, ele se mostra como indício de algo que insiste. Como
disse, a TV instaura a imagem ao vivo como seu traço essencial: “imagens, não
obstante, em permanência. O estar-ao-vivo não se esgota com o esgotamento do
fato a que se refere, mas tem a propriedade de poder expandi-lo. A imagem que
perdura no ar faz perdurar o acontecimento num estado de acontecendo, um
estado elástico. O ´ao vivo´ se refere ao fato e à sua simultaneidade com sua
própria cobertura, ou seja, com a sua representação e o seu registro pela
imagem eletrônica”. (BUCCI, op. cit.: 29).
b) A CENA DA IMAGEM: A ORTOGRAFIA DO VISUAL
Se a imagem ao vivo “veicula” uma realidade que se estende
indefinidamente, e instaura, com essa operação, o telespaço público, conforme
demonstra Bucci, é sempre uma reordenação que o suposto flagrante do real
traz à luz, pois ela se incumbe de “abraçar a totalidade do ‘agora’ por sobre a
totalidade do espaço. Trata de investigar por que ela não se apaga, não se
desliga, não pisca” (Id. Ibid.: 30).
Imagem ao vivo está intimamente ligada à velocidade de um presente
que nunca acaba, que por sua vez está umbilicalmente vinculada ao espo.
Como vimos, Virilio já apontara, com um tom de decepção, que a velocidade
nos tempos atuais não é apenas instância de tempo, mas ordenadora do mundo.
Não cabe mais pensar no tempo e no espaço absolutos de Newton: “o tempo
o é mais inteiro, mas indefinidamente fracionado em quantos instantes,
260
instantaneidades, quanto permitem as técnicas de comunicação e de
telecomunicação”(...). A instantaneidade substitui as durações longas, os
séculos dos séculos. A noite dos tempos cede lugar ao nascer do dia do instante
presente. (SILVA, 1999: 5).
Tudo isso atinge em cheio o que vimos chamando de
telepresença/telerrealidade. A telerrealidade é instituída pelo espaço televisivo,
produtora de um tempo intensivo que aprofunda o infinitamente pequeno da
duração, de um tempo microscópico. Essa velocidade que parece desintegrar o
tempo da luz, nos convence, como sue Bucci, que ela não se apaga, se desliga
e pisca.
Mas ela se apaga, se desliga e pisca; contraditoriamente, o apagamento é
uma ação inexorável do tempo veloz, do aqui e do agora televisivo, do
acontecendo e vendo (a explosão das torres gêmeas nos EUA, os gestos
obscenos do assessor da Presidência da República, as imagens do avião
explodindo próximo ao aeroporto de Congonhas... [Os exemplos podem, aliás,
se multiplicar à vontade]). Como, então, manter esse presente acontecendo?
Como deixá-lo aparentemente ligado? De que forma presentificar o que já está
nas brumas do tempo? Como o jogo de futebol pode se tornar um paradigma
para essa questão?
O jogo demeras das partidas de futebol é revelador da atualização de
um real e de um presente que já se foram sem sê-los. Cinema, vídeo e TV
possuem formas pprias de lidar com a velocidade das imagens. Na TV, o
congelamento ou o retorno desse real, capturado no aqui e agora é o slow
motion. Nas coberturas esportivas o ponto alto, o clímax, digamos assim, da
narrativa está nos gols, especialmente os mais esplendorosos. O quadro “Gols
do Fantástico” exacerba o real e congela o factício. O replay é a operação-mor que
vem eternizar o presente mágico, ele cumpre a função de fazer “ver”, “rever” e
“reviver” o acontecimento sob diversos ângulos e perspectivas, “estende o
261
instante com o luxo ‘palpável’ do segundo-que-dura-horas”. (Aumont, 2004:
208). Ainda segundo esse autor:
O slow motion é insistente e cíclico, freqüentemente pegajoso, às
vezes mágico. Aqui, ele preenche os tempos mortos, serve de
inserto depois de momentos de intensidade extrema da
imagem ao vivo (o gol, a queda, o esforço, o drama). Ali, ele
marca o efeito de gozo na pulsão escópica. Questão de carga e
descarga. A câmera lenta repetitiva é o fort-da do presente
televisivo: ao mesmo tempo, ela desdramatiza sua
representação na ordem do simbólico. (Id. Ibid.: 208).
c) O LUGAR DA ENUNCIAÇÃO
Cá estamos de volta com o tema da repetição. Esse tempo presente, esse
tempo televisivo que parece não ter fim, na verdade ele o tem. A repetição
cumpre exemplarmente o seu papel ao nos fazer crer que ele é um continuum:
ela fixa uma situão e, nessa fixão, mostra ocultando o sintomao
percebido. Mas a sua fuão, a da repetição, pára por aí. Ao tentar rememorar
os gols marcantes do domingo, com concursos em que o telespectador escolhe o
melhor da noite, o Fantástico fracassa na tentativa de fazer com que o tempo
presente se reatualize nas mesmas condições de sua primeira aparição, ele
repete um encontro desencontrado com uma idealidade imaginada, é motivado
por um real inatingível que, no entanto, sempre coloca os objetos nos trilhos,
nos trilhos da repetição. (GOMES, op. cit: 72). A ficção do aqui e agora é quem
comanda a cena.
***
Fechando esse parênteses, voltemos ao dueto Fantástico e Mais Você. Não
é prematuro vaticinar que Fantástico e Mais Você são inquietantemente
semelhantes, estão em conivência inextinguível. Nos dois televisivos, agrupam-
se ramos de fatos que se distinguem apenas pelo horário de exibição. A
reportagem sobre “O boi voador” e o “a entrevista com o repórter global” estão
incluídos numa mesma equação.
262
Para dar mais uma volta no parafuso, vejamos o que os outros
programas têm a mostrar.
6.3.2 LINHA DIRETA E BIG BROTHER BRASIL: VIGILÂNCIA, PUNIÇÃO E
BONIFICAÇÃO
LINHA DIRETA: JUSTIÇA VICÁRIA
Linha Direta é exibido semanalmente, desde 1999, pela Rede Globo, todas
as quintas feiras, às 21h45, e apresentado pelo jornalista Domingos Meirelles
(Marcelo Rezende e Hélio Costa compõem o time de apresentadores das
edições anteriores). O programa é um remake de Linha Direta dos anos 90. Nesta
versão, diferente da atual, eram reconstituídos crimes de expressivo
reconhecimento público, como o "Caso Pedrinho".
Anica do programa é a reconstituição de crimes, misturando
dramaturgia e jornalismo policial na tentativa de denunciar criminosos, a
maioria foragida da justiça, encontrar desaparecidos e dar visibilidade a casos
não solucionados.
Considerado um docudrama, Linha Direta conserva em sua natureza
docudrama a mistura dos “gêneros”. Grosso modo, definido como resultado da
fusão entre a narrativa de ficção e o documentário, o docudrama ganha a cada
dia mais espaço na prodão televisiva, principalmente na americana e
britânica. Sucintamente, alguns autores o denominam de ficção da realidade e a
realidade da ficção.
59
Os antecedentes do docudrama estão na produção cinematográfica. Tom
Hoffer e Richard Nelson lembram que:
59
No Brasil, além de Linha Direta, o extinto quadro Retrato Falado do Fantástico, exibido pela
mesma emissora, foi considerado docudrama.
263
A idéia de forjar eventos para a câmera é tão antiga quanto os
filmes. Já em 1898 Atualidades da guerra hispano-americana
costumavam forjar batalhas quando os câmeras não podiam
fotografar o acontecimento real. Nestes primeiros noticiários,
fraudar o público não era a primeira inteão do cineasta, ainda
que esta prática incentivaria maiores manipulações no futuro.
Nesta época, entretanto, o docudrama ainda estava na contenda
com um simples deslumbramento e não era reconhecido como
um meio de jornalismo. (1999: 65).
A rigor, se tentarmos enquadrar Linha Direta na grade de programação
da TV, veremos, assim como no Fantástico, a imponderabilidade do programa.
Com um caráter multifacetado, ele transita, com folga, em vários gêneros. Bucci
comenta o embaralhamento: “você mal sabe dizer onde termina o documentário
e onde começa a dramatização. Onde termina o mistério e onde começam as
suposições. Onde termina a matança e onde começa a justiça”. (2004: 118).
Linha Direta gozou do status de fenômeno de audiência da Rede Globo,
chegou a obter a liderança nos primeiros meses de exibição, perdendo apenas
para o Jornal Nacional e para a novela das “oito. A média inicial de audiência
de Linha Direta chegou a 38 pontos no Ibope – índice que parece justificar a
inclusão de programas desse jaez na programação da emissora. Linha Direta
funciona como justiça vicária, investigando, e às vezes, solucionando casos,
alguns, aparentemente insolúveis. Milton Abirached, ex-diretor do docudrama,
garante: “temos um grande compromisso com o civismo, a ética, a cidadania. O
programa tem um papel social na medida em que estimula a população a
participar de casos insolúveis”. (REVISTA DA FOLHA, abril/2000: 13). Foi
oficialmente anunciado no site do programa em 2 de fevereiro que ele sairá do
ar.
60
60
Eis o comunicado da emissora: “A respeito das manifestações de entidades ligadas aos
Direitos Humanos pela continuidade do programa Linha Direta – por seu reconhecido interesse
público –, informamos que a TV Globo passou a adotar o sistema de temporadas. Mesmo com
êxito e importância comprovados, os programas têm sua exibição suspensa, passando por uma
reavaliação para nova exibição futura”. (www.globo.com.br
. Último acesso 25 de janeiro de
2008).
264
O programa faz uma simulação dos fatos, sendo que se houver mais de
uma versão, ambas são apresentadas. Normalmente há apresentação de dois
casos e, ao final, pode ocorrer o relato sobre a eficácia do programa:
normalmente, notícia de algum foragido que foi preso graças à ajuda do
programa, que fornece telefone ou e-mail e garante o anonimato do
denunciante. Desde sua estréia, Linha Direta, por meio de denúncias animas,
colaborou para a prisão de mais de 400 foragidos da justiça. As simulações são
feitas por atores profissionais, quase sempre desconhecidos. A última quinta-
feira do mês é reservada às edições especiais, que podem ser de dois tipos:
Linha Direta - Justiça: apresentão da história e do desfecho de crimes
históricos, como o caso da Fera de Macabu, Irmãos Naves, Doca Street, o roubo
da Ta Jules Rimet, Chico Picadinho, Os Crimes da Rua do Arvoredo, Zuzu
Angel, Massacre da Candelária, O Bandido da Luz Vermelha, O Inndio do
Gran Circus Norte-Americano, Césio-137: o pesadelo de Goiânia etc. Alguns
dos episódios estão disponíveis em DVD, como "As Cartas de Chico Xavier".
Linha Direta - Mistério: apresentação de casos que desafiam a compreensão
humana e não podem ser explicados pela ciência, como a da maldição do
Edifício Joelma, Operação Prato etc.
265
GRÁFICO 5- AUDIÊNCIA DO LINHA DIRETA NA GRADE DE PROGRAMAÇÃO
DA
GLOBO
9
6
8
12 12
13
14
18
15
24
25
26
28
30
35
32
21
14
0
5
10
15
20
25
30
35
B
o
m
DB
r
a
s
i
l
M
a
i
s
V
o
c
ê
T
V
X
u
x
a
S
P
T
V
G
e
s
p
o
r
t
e
J
H
V
s
h
o
w
N
o
v
e
l
a
S
t
a
r
d
e
M
a
l
h
a
ç
ã
o
E
m
a
g
i
a
S
P
T
V
7
P
e
c
a
d
o
s
J
N
Du
a
s
C
a
r
a
s
G
fa
m
i
l
i
a
L
i
n
h
a
D
i
r
e
ta
J
G
BomDBrasil
MaisVocê
TV Xuxa
SPTV
Gesporte
JH
Vshow
Novela
Starde
Malhão
Emagia
SPTV
7Pecados
JN
DuasCaras
Gfamilia
LinhaDireta
JG
fonte: Pesquisa TV Globo/01
BIG BROTHER BRASIL: ESPIONAGEM E BONIFICAÇÃO
Big Brother Brasil (BBB) é a versão brasileira do reality show
Big Brother holandês (1999), cuja primeira edição foi
veiculada em janeiro de 2002. O nome é uma clara alusão à
novela de George Orwell, “1984”, no qual o Grande Irmão
(Big Brother) é o líder que tudo vê da distópica Oceania.
O BBB consiste em pôr em confinamento um número de participantes
(14, em média) em uma casa cenográfica, sem conexão com o mundo exterior,
onde sistemas de câmeras ligadas 24 horas por dia os vigiam ininterruptamente
(o assinante da TV paga pode assistir o que acontece na casa sem cortes). Ao
contrário do similar que o precedeu, Casa dos Artistas, do SBT, cujo objetivo era
aprisionar artistas, BBB procura dar visibilidade a pessoas anônimas. Tudo no
programa passa pela cena do olhar e da visibilidade: o processo de seleção
inclui o envio de material em vídeo que é selecionado e analisado pela
produção do programa. Uma vez na casa, os participantes são submetidos
266
sistematicamente a um escrutínio visual. Iniciado o jogo, feitas as apresentações
iniciais, faz-se uma prova na qual o vencedor passa a ser o líder da semana. Daí
em diante, a cada semana é realizada uma nova prova para a seleção de um
novo líder (é possível a um concorrente assumir a liderança por mais de uma
vez). O líder é imunizado e tem a obrigação de indicar em aberto um
participante que irá ao paredão. Os outros concorrentes, um a um, indicam o
segundo candidato ao paredão no confessionário (cabine isolada dos outros
participantes). Os telespectadores escolhem o eliminado por telefone e pela
internet. O procedimento é repetido todas as semanas até o fim do programa.
Essas regras foram traçadas pela Endemol Produkties, uma espécie de
Mcdonalds holandês para a produção de reality shows em todo o mundo, o que
vem consolidando os chamados programas glocais (Big Brother é distribuído
para redes de televisão em todo o mundo, que o refazem segundo critérios
próprios).
Semanalmente, um competidor é eliminado por votação popular,
restando apenas o grande vencedor, que é bonificado com um milhão de reais
(valor estimado a partir da quinta edição. Inicialmente, o prêmio para o
vencedor era de quinhentos mil reais). Prêmios menores são dados para o
segundo e terceiro colocados, bem como prêmios de participação para cada um
dos competidores que não tiver desistido. Outros prêmios (geralmente não em
dinheiro) oferecidos por patrocinadores são disputados esporadicamente ao
longo do programa.
Big Brother Brasil tem história, memória. Até o presente momento
foram realizadas sete edições do reality show. No seu primeiro ano, em 2002,
duas edições foram ao ar (em janeiro e julho). Estima-se que sejam realizadas
edições até pelo menos 2010, dependendo da prorrogação do contrato com a
Endemol, originalmente até 2008.
Os reality shows se consagraram por mostrarem, de forma simulada, uma
realidade.Os elementos comuns que caracterizam o reality show são os
267
personagens e suas histórias supostamente tomadas da vida cotidiana. O
protagonista, normalmente, apresenta-se como um cidadão médio, gente
comum que está disposta a atuar como uma estrela das telas, a fazer pública sua
vida privada. O sujeito anônimo da grande massa se converte numa "estrela" –
dado que uma das funções dos meios de comunicação é outorgar status.
Um reality show inclui procedimentos semelhantes aos noticiários:
notícias sobre determinados fatos, documentos, conexões ao vivo, avanços de
agenda, reportagens e, em alguns casos, enviados especiais ou correspondentes
no estrangeiro.
AUDIÊNCIA DO BIG BROTHER BRASIL
O reality show global é um fenômeno de audiência. Pacotes de pay-per-
view são oferecidos pela televisão por assinatura e pela internet,
proporcionando uma cobertura de 24 horas das câmeras da casa. A audiência
do programa mantém-se alta desde sua primeira edição, o que se deve em
grande parte às inserções (spots) ao longo da programação da Rede Globo,
especialmente no horário nobre; a ação de marketing é complementada por
matérias de capa em jornais dirigidos às classes C e D, em revistas de fofocas e
na divulgação dos “brothers” e “sisters” em revistas de fotos eróticas, conforme
previsto em contrato.
ALGUMAS NARRATIVAS DO LINHA DIRETA E DO BIG BROTHER BRASIL
a) AS ESTRATÉGIAS DE ENUNCIAÇÃO
Linha Direta e Big Brother Brasil partilham de estratégias de enunciação
que se avizinham. Falando da realidade, Linha Direta parece um filme trash.
Flagrando o cotidiano “real” de anônimos, Big Brother Brasil ficcionaliza a vida.
O primeiro pune para manter a ordem social ao “auxiliar” a justiça, o segundo
268
para dinamizar as regras do jogo que, ao fim e ao cabo, bonificará o vencedor
da casa. Ambos amparam-se no dispositivo do olhar/ver (o Linha Direta apela
aos telespectadores para denunciarem bandidos caso os tenham vistos e o BBB
convida-nos a eliminar um confinado por semana). Ambos mantêm-se atados
ao telespectador pela chave do enigma (quem será o pximo a ir para o
paredão? ou, será que o procurado foi encontrado pela polícia?). o
questionamento de Buitoni é oportuno: será que o jornalismo também não
busca culpados?(...) (1986: 17). Os dois programas solicitam a anuência do
televoyeur.
b) ESTRATÉGIAS SONORAS
A perseguição policial encenada na abertura do Linha Direta é
ambientada sonoramente por uma sugestiva sirene policial, o que já desenha o
lugar de fala do programa. Perseguição, tumulto, turbulência e, finalmente,
captura dão o tom da especificidade do docudrama. Música instrumental
acelerada indicia toda a atmosfera da investigação, do medo, da correria. Na
abertura do Big Brother um olho, o olho que tudo vê e persegue, galeria de fotos
dos participantes, marcada pela música-tema Vida Real, do grupo RPM,
demonstram a marca registrada do programa. A música do Big Brother é
sugestiva para o jogo que ele é, tem um viés darwinista e religioso. (“se vo
soubesse até onde vai a sua fé, você poderia ir até o final”). Com a música, o
participante é convocado a resistir, a enfrentar as adversidades e merecer a
fama. (o sol nasce para todos, basta você saber conquistar o seu lugar, a música
diz, sub-repticiamente).
269
c)
A CENA DA IMAGEM: A ORTOGRAFIA DO VISUAL
Linha Direta prima pela obscuridade da imagem. A apresentação de
alguns elementos na abertura do programa evidencia o eixo condutor que lhe
dá suporte: martelo da justiça, selas, patrulha policial, indicam a cobertura
imatica do programa. A dinâmica do mundo da violência e criminalidade,
aparentemente açambarcada pelo noticiário, traduz-se na sobreposição do
amálgama imagético. Trabalho de imagem: aproximação da lente sobre o
apresentador, que pronuncia a “chamada” olhando para a câmera/para o
telespectador, com enquadramento afunilando do plano médio para o primeiro
plano.
LINHA DIRETA - O CASO MÔNICA GRANUZZO
O ano é 1985. A ditadura militar acabava. O Rock in Rio, grandioso
festival internacional de música – o primeiro no gênero no País –
acabara de acontecer. Mas este período, de grandes transformações e
conquistas, foi pano de fundo de uma tragédia que chocou a sociedade
carioca: no dia 16 de junho, a estudante Mônica Granuzzo Lopes
Pereira, 14 anos, despencou de um apartamento no sétimo andar de
um edifício de classe média no bairro da Lagoa, zona sul do Rio de
Janeiro, e morreu. As circunstâncias da morte de Mônica até hoje são
obscuras. O que realmente aconteceu naquela noite? Mônica caiu ou
foi jogada do apartamento enquanto fugia de uma tentativa de
estupro? A história dela foi a repetição de outro caso rumoroso
ocorrido no final da década de 50 no Rio de Janeiro: o caso da
estudante Aída Cury, violentada por três rapazes e atirada de um
prédio em Copacabana. No Caso Mônica, os envolvidos também foram
três: o modelo fotográfico e lutador de Jiu-jitsu Ricardo Peixoto
Figura 22. Exposição dos confinados
na casa
Figura 23. Divulgação de foto
deMônica Granuzzo
270
Sampaio, 22 anos; Alfredo Patti do Amaral e Renato Orlando Costa,
ambos com 19 anos. Os três eram jovens de classe média e
freqüentavam as principais danceterias da cidade e a praia de Ipanema.
Nenhum deles tinha passagem pela polícia. No dia anterior, Mônica
conheceu Renato na saída da danceteria “Mamão com Açúcar” e ficou
encantada por ele. Os dois moravam próximos e combinaram de sair
no mesmo dia para comer uma pizza. Ricardo morava sozinho em um
apartamento que pertencia a um tio e levou Mônica até ao local com a
desculpa de que iria pegar um casaco. Para atrair a jovem sem muita
resistência, Ricardo mentiu, dizendo que morava com os pais. Mônica
não voltou mais para casa e o corpo dela foi encontrado no dia seguinte
enrolado em um cobertor e jogado em uma ribanceira. A polícia
encontrou marcas de sangue no apartamento de Ricardo e no
playground do prédio. Neste ponto começou um mistério que continua
até hoje: o que realmente aconteceu dentro do apartamento? Ricardo
contou que Mônica correu para a varanda do apartamento e se atirou.
Mas a versão dele foi desmascarada por um laudo da perícia que
informava que Mônica tinha sido espancada antes de morrer. A versão
do Ministério Público era de que Mônica foi espancada e depois
atirada da varanda por Ricardo, Alfredo e Renato. Mas uma terceira
versão foi a que prevaleceu: Ricardo tentou agarrar Mônica, mas ela
resistiu. A jovem então foi espancada. Desesperada, Mônica tentou
pular para a varanda do apartamento vizinho, mas não conseguiu e
caiu no playground. Sem saber o que fazer, Ricardo pediu ajuda para
os amigos Alfredo e Renato, que estavam em uma festa junina.
Ricardo foi julgado pelo assassinato de Mônica e condenado a 20 anos
de prisão. Alfredo e Renato foram condenados a um ano e cinco meses
de prisão por ocultação de cadáver, mas como eram réus primários,
cumpriram a pena em liberdade. Em 16 de maio de 1992, Alfredo
sofreu uma parada cardíaca e morreu aos 26 anos. Renato se tornou
executivo de uma multinacional. Ricardo cumpriu um terço da pena –
oito anos e três meses – e depois ganhou o direito de ficar em liberdade
condicional. Hoje, ele dá aulas de educação física e continua a
freqüentar a praia de Ipanema. O que aconteceu naquela noite entre
Ricardo e Mônica permanece um mistério. (25 de outubro de 2007).
a) AS ESTRATÉGIAS DE ENUNCIAÇÃO
O “caso” relatado, segundo as regras da encenação, é a tônica doLinha
Direta Justiça”. Nessa modalidade do programa, casos policiais que marcaram o
país são ressuscitados dos arquivos policiais e da memória nacional. Na edição
271
que analisamos, o Linha Direta reconstituiu o caso “Mônica Granuzzo”.
61
O que
foi dito sobre o quadro “É muita história”, do Fantástico, vale extensivamente
para o Linha Direta: toda uma mobilização de recursos da dramaturgia é
operada a serviço da construção do relato. Uma vez que o real falta no seu
lugar, o fato, geralmente longínquo dos acontecimentos cotidianos, é
representado por aquilo que o denuncia como faltante. O factual retorna na
forma de performance teatral: atores são contratados, textos são produzidos e
decorados, histórias são reconstruídas sob a pena de roteiristas. Todo o
procedimento comum da novela impera na produção do Linha Direta.
O principal mecanismo de construção lingüística do programa é a
utilização de anáforas
62
(técnica que, para explicar ou simplesmente noticiar
determinado acontecimento, se reporta a fatos ou referências passados). A
anáfora é um artifício bastante utilizado por jornais impressos e televisivos para
dar maior credibilidade a uma notícia; esse flash-back é uma estratégia que tenta
fazer com que o telespectador tenha acesso a fontes confiáveis, já que a não-
presentificação do evento esboroa o princípio de confirmação, obtida por meio
de imagens reais do que está sendo noticiado/relatado. Assim como no
Fantástico, Linha Direta reza também na cartilha do jornalismo. Para manter a
credibilidade, precisa do relato de outrem, precisa apresentar os vestígios de
uma realidade que deixou de constituir as ações cotidianas, tecidas no presente.
Assim, “cai o pano do teatro, o ato se encerra. Há o corte para antepor o
comentário’, (XAVIER, 2003: 16), pois os depoimentos das pessoas envolvidas
nos casos relembrados (familiares, policiais, delegados, advogados, vizinhos,
amigos) importam mais do que o desenlace da cena melodramática. A ficção
precisa dar passagem para o factual sob pena de o docudrama perder a sua veia
61
O crime aconteceu em 1985 e chocou o país, teve larga cobertura da imprensa. Mônica
Granuzzo, uma adolescente de 14 anos, foi agredida por Ricardo Peixoto Sampaio, 22 anos em
seu apartamento e, na tentativa de fuga pela janela, caiu do 18º andar. Na manhã seguinte, seu
corpo foi encontrado perto da Vista Chinesa, na Zona Norte do Rio.
62
A rigor, a anáfora significa repetição de uma ou mais palavras no começo de dois ou mais
versos, orações subordinadas ou sucessivas, para efeitos rericos ou poéticos.
272
jornalística, portanto, verídica. Na articulação entre a cena e o comentário, este
tem prevalência sobre aquele.
Existe uma autorização tácita por parte de policiais para que
informações dessa natureza sejam veiculadas. Marcos Sá Correia, no artigo
“Apanhado em flagrante” publicado pela revista Veja, lembra que a conivência
policial para que sejam publicadas fotos e imagens de supostos malfeitores tem
o fundamento de que são instrumentos indispensáveis à elucidação ou à
prevenção de delitos. Contrapondo-se a esse tipo de procedimento, ele adverte:
...Há países onde a imprensa, nessas circunstâncias, não teria
sequer o direito de publicar o nome do suspeito. Mas no Brasil
alguns policiais e jornalistas acham que suspeito, réu ou
condenado é tudo ou mais ou menos a mesma coisa. E, se além
de preso, ainda por cima ele incidir nas agravantes de ser preto
e pobre, tem de emprestar a cabeça para os fotógrafos. Nem que
seja à força... (v. 30: 18).
No Big Brother Brasil há poucas falas, poucos enunciados orais (por isso
não reproduzi trechos das falas do programa). Tudo o que é dito é dito, em sua
maioria, por meio de gestos em que a palavra, aqui sim, serve apenas como
complemento. Há, dessa forma, uma solicitação da linguagem fática, nos termos
em que foi pensada por Jakobson, onde:
predomina a dimensão comunicacional do puro contato com o
interlocutor, a linguagem mais próxima ao indicial. A expreso
fática é com respeito ao diálogo humano o que ajeitar o cabelo
de modo distraído é com respeito a uma delicada carícia. Essa
copiosa fala fática no BB está mais próxima de um rastro ou um
sintoma afetivo do que de um símbolo informativo. (A
NDACHT,
2003: 154).
b) AS ESTRATÉGIAS SONORAS
Como as reportagens do Linha Direta Justiça são montadas tal como uma
novela, o dispositivo sonoro é construído de acordo com a tradição daquele
formato. No “caso Mônica Granuzzo” uma fita sonora foi construída
273
especificamente para a reportagem: música de abertura, música para os
personagens, música de fundo. Ao final da narrativa, como nas fichas técnicas
de filmes e de novelas, o programa relaciona a lista de atores (elenco), trilha
sonora (o que torna mais evidente a sua montagem segundo a lógica fílmica) e
outros recursos até então circunscritos às peças de ficção.
Na referida reportagem-novela, as músicas, sempre relacionadas ao
sonho da adolescente assassinada, às suas possibilidades futuras, dão o tom de
dramaticidade, sempre carregado de muita emoção (a intenção, como sabemos
é comover o público assistente). A trilha é cuidadosamente escolhida, ela
carrega mensagens que devem ser entendidas pelo telespectador (nesse caso, as
sicas em inglês foram traduzidas no vídeo).
No BBB, igualmente, um espectro musical é responsável por garantir a
dinâmica da casa. Uma das marcas sonoras é o apito eletrônico utilizado para
abafar os palavrões que, inadvertidamente, os participantes deixam escapar em
seus diálogos repetitivos com os colegas. A censura revela o acidente, o deslize,
a blasfêmia.
C) A CENA DA IMAGEM: A ORTOGRAFIA DO VISUAL
A frase Somos seres olhados no espetáculo do mundo de Merleau-Ponty
expressa habilmente o labor imagético de ambos os programas. Se a qualidade
de ver não é exclusiva dos sujeitos, a câmara também nos olha e, mais do que
isso, nos identifica. Uma vez olhados e capturados por ela, passamos a ser,
igualmente, qualificados e partícipes do mundo do crime, no caso do Linha
Direta, e do mundo das celebridades e do glamour, no caso do Big Brother. O
noticiado/espiado passa a ser visto, na maioria das vezes, sem complacência.
Olho contra olho, olhar contra olhar” (P
IGNATARI, 2000: 487) dinamizam a
relação da câmera/apresentador/noticiado (criminoso/aspirante à celebridade)
versus telespectador/criminoso/aspirante à celebridade. O olhar e o ver são
elementos fundamentais na estrutura que organiza a cena desses programas.
274
Uma estratégia imagética que merece destaque é a manipulação da luz
no Linha Direta. O programa opera com recursos em que a luz oscila entre a
claridade e a escuridão, em consonância com a situação de suspense, de enigma
que ele quer solucionar.o é despropositado aproximar o romance de
enigma/romance policial
63
da estrutura narrativa de Linha Direta: Em ambos os
casos “o ponto de partida é sempre uma situação intrigante, que atua como
desencadeante da narrativa e a busca da elucidação, o explicar o enigma, o
transformar o enigma em um não enigma é o motor que impulsiona e mantém a
narrativa”. (REIMÃO, 1992: 38).
O detetive policial dos romances e da vida real pode ser entrevisto na
pessoa do apresentador (Domingos Meirelles fala em tom de segredo, ritma sua
fala com um ar de suspense, insinua situação de insegurança). Além do espaço,
Linha Direta investe na luz-objeto, que se articulam simultaneamente. Uma
imagem com pouca luz contribui, então, para aferrolhar a questão: o ambiente
taciturno, sombrio nos envolve nesse universo enigmático, esfíngico,
reclamando a presença da luz como amparo para o desvendamento dos crimes
(a luz clareia a caverna platônica). As principais três funções da luz nos
auxiliam nesse quesito.
Segundo Aumont, a luz no filme desempenha três funções: a) simbólica,
cujo papel é ligar a presença da luz na imagem a um sentido (as pinturas
divinas são magistralmente ilustrativas dessa função); b) dramática, ligada à
organização do espaço, mais precisamente à estruturação desse espaço como
cênico. Para ele, “os meios de ação da luz o aí quase inumeráveis, e não há
razão para não inventar novos continuamente. Ela pode, banhando o conjunto
da cena, indicar sua profundidade, salientar e mesmo definir o lugar das
figuras. Nas cenas irreais das Anunciações, a sombra do anjo e da Virgem são,
63
O início do século XX foi um momento propício para que a narrativa policial se manifestasse
com maior vigor: “os dramas individuais, os casos raros e inexplicáveis”, num contexto de
urbanização intensa das cidades, fizeram com que os jornais populares investissem bastante
nesse tipo de relato. (Costa, 1992: 44).
275
no mais das vezes, a única indicação de sua corporeidade, sua única inscrição
em um espaço dramático” (op. cit.: 174); e c) atmosférica, uma derivação da
função simbólica, procura delimitar regiões diversamente significantes da
imagem. A função atmosférica é, para o autor, a mais banal. Todos os meios
maciços de reprodução e de representação se apoderaram dele, à porfia. (Id.
Ibid.: 174). É sobre essa função que se desloca toda a reflexão de cineastas e
técnicos da imagem. O atmosferismo foi um dos empréstimos mais evidentes
que os dispositivos eletrônicos tomaram da pintura, dos quais o Linha Direta é
um exemplo ilustrativo. O enigma normalmente é principiado por uma situação
caótica, onde a quase escuridão impera:
toda luz parte de um ponto onde tem mais brilho e se dispersa
em uma direção até perder toda a sua força. Ela pode ir em
linha reta, contornar, se curvar, se refletir e perfurar: ela pode
ser concentrada ou dispersa, atiçada ou apagada. Onde ela já
não está, estão as trevas, e onde ela começa se encontra seu
foco. O trajeto dos raios desse foco central para a frente das
trevas é a dramática aventura da luz”. (Id. Ibid.: 174).
À proporção que o caso vai sendo desvendado, a luz vai,
gradativamente, banhando toda a tela. Claro-escuro significam:
Em primeiro lugar, é o escuro em torno da imagem que,
literalmente, a torna visível: em pleno dia, ela empalidece e se
apaga, ela se altera de modo ainda mais radical do que a tela
pintada sob uma luz crua. Mas profundamente, é o escuro que
materializa a parte de sombra e de mistério da sessão: é ele que
faz com que os fantasmas existam sobre a tela. A aura da obra
fílmica é noturna: nada mais aqui da ostentão luminosa do
quadro (moldura) dourada. (A
UMONT, op. cit.: 32).
No Big Brother Brasil, ao contrário, há um excesso de luz. Tudo é
esquadrinhado, filmado (até o vaso sanitário que possui uma cabine [as
imagens captadas desse ambiente privado em seu sentido literal não são, para
nossa sorte, veiculadas]). Não existe enigma a ser desvendado, tudo encontra-se
na superfície da tela (bundas, rostos, braços, pernas), ao gosto do freguês. Essa
276
proximidade e transparência são viáveis, imageticamente, graças a um outro
recurso: o close-up.
No reality show não é mais a oscilação da luz que marca o jogo cênico das
imagens, mas o mecanismo de aproximação. Ver de perto, observar detalhes,
atentar para as minúcias. No BBB a vida de arraias miúdas, convidadas a
transcender o mundo ordinário, desfilam frente a nossos olhos de maneira
quase obscena (uso o termo em seu sentido literal: fora de cena, sem nada que
lhe represente ou mascare). O close-up recurso que foi um marco para a cena
cinematográfica, porque trouxe à tona “uma terna atitude humana na
contemplação das coisas ocultas, uma solicitude delicada, uma gentil inclinação
sobre as intimidades da vida em miniatura, uma calorosa sensibilidade”
(BALÁZS, 1972: 93) – é o mecanismo prevalecente na organização das cenas.
Lembramos da dimensão poética que tricos como Balázs tentavam dar ao
plano de enquadramento, visto em seu cater demasiadamente humano, visto
que tinha uma força reveladora do “jogo polifônico dos traços”, o impacto das
sucessivas emoções sob a face:
o podemos usar lágrimas de glicerina em um close-up. O que
causa uma impressão tão profunda não é uma lágrima grande e
oleosa escorrendo sobre o rosto – o que toca é ver o olhar
tornando-se embaçado, a umidade acumulando-se no canto do
olho – umidade que, nesse momento, nem sequer se trata ainda
de uma lágrima. Isso é tocante, justamente por não poder ser
fabricado. (Id. Ibid.: 77).
O minimalismo, o detalhe, tornaram-se expressivos na construção de
sentidos, porque nos revelam a face mais íntima, recôndita, é uma espécie de
janela da alma. No BBB, porém, não é a dimensão poética que se insinua, mas a
profundeza do superficial, as intimidades, as frivolidades, as conversas e
debates de foro íntimo, é o detalhe indiscreto da peça íntima do(a) participante.
O corpo passa a ser um índice importante. Andacht defende a tese de que a
mediação com oblico se dá com o index-appeal, como eles se dão a ver, se
277
mostram. Recursos que aclama a certo vouyerismo. Com as estrelas e divas, era
necessário o sex-appeal, com as celebridades, é o index-appeal que vigora.
A cena televisiva do BBB instaura outras regiões para além daquelas
convencionalmente traçadas no espaço social (a frente e os bastidores da
interão cotidiana). Segundo Meyrowitz, o efeito-televisão introduziu, na
ordem de interação, a região do meio (middle region) ou de acesso lateral, nem
formal, nem totalmente informal. Pode-se dizer que o Big Brother aí atua, pois a
“livre expressão” (os participantes falam quase tudo o que querem) de quem
aparece, sempre, a pouca distância das câmeras, baseia-se na facilidade ou
naturalidade visível. A região do meio não é totalmente bastidor, mas também
não é completamente a cena previamente ensaiada, com roteiro de palavras e
ações já estabelecido; ela faz surgir a zona antefrontal (forefront) e a posterior
profunda (deep backstage), reservadas ao cerimonial-verbal e aos atos de máxima
intimidade, respectivamente. É por isso que Big Brother parece, aos olhos de
quem assiste às encenações,o voluntariamente natural. Andacht faz um
paralelo entre a performance dos “brothers” e a do político que usa a TV:
a comunicação é efetivada por proximidade corporal. Isso vale
tanto para a dúzia de adultos jovens e desconhecidos, sem
outro talento que o a disposição para viver sob vigilância
durante alguns meses, quanto para um experiente político.
Ambos falam, embora não seja a aptidão retórica que os faça
triunfar nesse meio, e, sim, a felicidade de alcançar o gesto justo
no momento oportuno. (2003: 153).
Esse lugar intermediário desconcerta também com as noções de ao vivo e
gravado: no ao vivo televisivo, não o ao vivo “real”, mas o potencial, não
regio para a preparação da performance almejada (no BBB tudo es em cena,
no aqui e agora). Todo ensaio é uma apresentação. Os olhares se fixam sobre a
capacidade que os participantes da casa têm de encenarem a si próprios com o
verniz do flagrante incontorvel. A fascinação do olhar passa, entre outras
variáveis, pela revelação de trejeitos pessoais, desejos, modos de ser, que eram
278
de domínio do terreno privado, partilhados por poucos olhos. O autêntico, o
natural (expressões dos ambientes domésticos ou com pessoas mais próximas)
vem reforçar a principal característica dos reality shows.
64
Tudo ver, tudo prever,
tudo saber. Panotismo e vigilância. Onividência e desejo de potência.
Os dois programas repetem cenas ad infinitum antes de instituir o
tribunal (no BBB os participanteso ao paredão, no Linha Direta as lentes do
programa e a denúncia do público enquadram os foragidos). No dia de votão
da casa, o BBB reprisa desbragadamente as peripécias do(a) participante que
está no paredão. É feita uma retrospectiva sobre a trajetória do(a)
emparedado(a) na casa, o seu perfil, os flagrantes mais inusitados. No Linha
Direta, antes de exortar a população a denunciar foragidos, o programa reprisa
fastidiosamente a vida da vítima, o seu perfil, as suas virtudes, a dor familiar.
Para votar, o telespectador precisa de dados pró e contra.
Tornou-se comum na TV programas que contam com a participação do
blico, o que parece garantir o exercio da interatividade (com a asceno do
computador em nossas vidas, a TV voltou a realçar recorrentemente a interação
com o público). Na lógica do voyeurismo
65
e do exibicionismo, a interação é
indispensável, prioritariamente, por meio de ligações telefônicas.
Fenômeno mundial, as ligações telefônicas tornaram-se um dos recursos
que conferem maior ou menor audiência aos programas televisivos. Na guerra
pela conquista dos olhos dos telespectadores, o apelo ao “fale conosco”, “ligue
64
O documentário Edifício Máster, segundo Coutinho, procurou lançar um embate com um
outro tipo de produção midiática, os reality shows, cuja regra é expor a intimidade como valor de
troca. Os moradores do Master, pertencentes aos setores médios da população, trouxeram um
outro tipo de dificuldade para a equipe, que se deparou com pessoas reais (como sempre, o
problema da ética no documentário) desejosas de alardear aspectos da vida pessoal para
escapar da solidão e ganhar celebridade. Para Coutinho, o desafio que se colocava no desafio
era: como furar a lógica tão atual de que só valemos quando nossa casa é devassada por uma
câmera, como romper com a regra tácita que diz que o que se tem e se exibe dá a medida do que
se é?
65
Maria Rita Khel não considera que os reality shows sejam voyeuristas, pois, para ela, “o prazer
do voyeur consiste em captar o corpo do outro em sua dimensão obscena – do que deveria estar
fora de cena – em busca da realização imaginária de outra cena, montagem inconsciente que
regula um gozo dito perverso”. (op. cit.: 173)
279
pra gente” tornou-se estratégia fundamental para amealhar maior número de
telespectadores. Linha Direta e Big Brother solicitam a participação do público
(“vote para tirar os emparedados da casa”,vote para decidir quem vai ao
paredão”, “vote para escolher que roupas os participantes irão vestir essa
semana”,ligue para denunciar”,ligue, se vo sabe do paradeiro desta
criança”, “ligue, caso você tenha visto este foragido”). Essa solicitação evita o
atemorizante zapping e provoca o que muitos estudiosos chamam de zapping
interno. A população é transformada em um grande focus group, e paga por isso.
(a ligação para o BBB chegar a custar R$ 2,00). A encenação da interatividade
cotidiana alimenta o feedback. Muitos autores, oportunamente, assinalam as
diferenças entre interatividade e feedback. Para eles, a interatividade acontece no
aqui e agora, com emissor e receptor partilhando os mesmos espaços. A rigor, a
TV não promove a interatividade, mas sim o feedback.
O efeito perlaborativo, característica dos reality shows, resulta do feedback
dos telespectadores: “segundo esse processo o material recebido não é
processado num produto terminado, mas é continuamente problematizado até
que este se apaga”. (ELLIS, 1996: 48).
d) A CENOGRAFIA DA ENUNCIAÇÃO
Se a cenografia é um processo pelo qual, “por sua própria maneira de
desdobrar seus conteúdos, deve legitimar a situação de enunciação que a torna
possível” (MAINGUENEAU, 1999: 21), a apresentação de alguns elementos na
abertura do Linha Direta e do Big Brother evidencia a linha editorial dos
programas e legitima a situação de enunciação: Esse pano de fundo configura o
espaço sobre o qual esse programa se movimenta e em que constrói a sua
narrativa dando a ver cenas de violência, de desordem, de infração.
Resgatando, aqui, a tese de Derrida sobre o parérgon, considero que a
sobreposição de elementos no programa fixa na tela, assim como nos noticiários
analisados acima, o ponto ordenador responsável pela superação da
280
criminalidade e da desordem extirpando, de uma vez por todas, criminosos e
desordeiros.
No Big Brother Brasil, o corpo parece ser o principal elemento cenográfico.
Em épocas passadas um indicador da procedência das pessoas, o corpo
portava marcas físicas que sinalizavam para o crime por elas cometidos,
conforme lembra Foucault (1977). No Big Brother a marca corporal é indício de
jovialidade e beleza (segundo alguns critérios estéticos). Segundo Goffman: “a
informação social transmitida por qualquer símbolo particular pode
simplesmente confirmar aquilo que outros signos nos dizem sobre o indivíduo,
completando a imagem que temos dele de forma redundante e segura”. (1975:
53).
e) O LUGAR DA ENUNCIAÇÃO
Big Brother Brasil faz jus à sua natureza, a de um jogo. Quem não respeita
as regras desse jogo é desclassificado. O jogo é, como a literatura
(nomeadamente nos romances, nas pabolas, nas fábulas), um espelho
ficcional, vive de um fingimento (- Agora eu sou…, - Agora eu faço de…). Mas
um fingimento assumido como realidade, por meio de um pactocito entre os
jogadores, (no caso do programa, entre moradores da casa, apresentador, uma
espécie de animador, e telespectadores). O jogo, segundo Ferrean et. al., é
propedêutico da literatura, fazendo depois parte dela, e estabelecendo com ela
incontáveis laços:
O esforço desinteressado tem um nome: chama-se jogo. “Pôr
em jogo,Estar em jogo,Jouer, to play, jogar, representar,
tocar, interpretar, exercitar”. É neste vasto sentido que ele se
confunde com a linguagem e com a maior parte das atividades
humanas, e muito especialmente com as funções da educão.
Não é por acaso que Wittgenstein escolhe o conceito de jogo
para analisar as lacunas de toda e qualquer definição.
(W
ITTGENSTEIN, 1987: 227-236). É nesse domínio que
inscrevemos algumas estratégias do ensino no role playing game,
o jogo de representação. Nas diversas áreas e disciplinas
escolares, representar (imitar, mimetizar, dramatizar)
281
transforma o conhecimento teórico em narrativas ficcionais,
vividas como se fizessem parte da nossa vida, acabando assim
por fazer parte dela. A fábula, a parábola, a alegoria são a
corporização, a materialização de ideias abstratas: possuem o
condão de nos tocar, de nos tornar literalmente sensíveis,
apreendendo o sentimento através dos sentidos, e os sentidos
através do sentimento. É esse o vculo do exemplo, do mito ou
da ficção, como Aristóteles tinha repetidamente sublinhado,
quer do ponto de vista da Retórica, quer do ponto de vista da
Poética literária. “Todo o jogo se move no domínio da ficção,
isto é, ao mesmo tempo da invenção e da deslocação em relação
à realidade ordinária”. (P
ORCHER, 1979: 20).
O programa segue as regras de um jogo, pom um jogo que, como
lembra Kehl, não se pauta pela inoncia, pelo faz de conta, mas pela
concorncia desleal, calcada na lei do mais forte sobre o mais fraco,
despertando sentimentos vis e abjetos entre os participantes. (cf. 2003: 166). A
autora faz uma análise do programa No Limite, irmão mais velho do BBB,
aludindo também à Casa dos Artistas e ao próprio Big Brother Brasil. Khel
demonstra que esses programas são a ponta do iceberg de nossa época, uma
época marcada pela diluição da dimensão pública (retomemos a frase de
Martin-Barbero: quando a rua expulsa, a televisão acolhe), restando, então, as
nossas próprias fantasias como objeto de interesse.
Como cavalos de corrida, fazemos nossas apostas nos confinados,
esboçamos simpatia ou antipatia por um ou por outro. A visibilidade move
todas as ações e reações da casa. A internet é também outro termômetro que
mede o desejo por ser visto/lido: os ciberdiários, alguns blogs, excessivamente
pessoais, põem em cena o eu ordinário, comum, que assume lugar central no
mundo da visibilidade e da transpancia.
Com BBB, supõe-se que a tela da TV poderá não só ser visitada, mas
habitada por todos que almejarem. A televisão, berço legítimo das estrelas, dos
afamados, dos ricos, também adere aos apelos do cidadão de querer ser visto. A
visibilidade como condição sine qua non da existência para os simples mortais
282
foi posta por John Adams, em 1851: “a consciência do pobre é clara; e no
entanto ele tem vergonha... ele sente fora do alcance do olhar do outro, tateando
no escuro... A humanidade não lhe presta a menor atenção. Vagueia sem ser
visto. No meio da multidão, no mercado..., está no escuro como se estivesse
num sótão ou num porão. Nada lhe reprovam, simplesmente não o vêem..”
(apud QUINET, 2004: 118).
A revista americana batizou esse fenômeno de “era da primeira pessoa”.
O fascínio pela vida privada, pelos bastidores da vida cotidiana
supervalorizado em tempos virtuais (as homepages inseriram definitivamente o
eu na mídia) apela para relatos e experiências individuais. De acordo com o
escritor inglês Martin Amnis, esses relatos têm dois atrativos irresistíveis: o da
autenticidade e o de ser algo democrático, em que a vida de um cidadão
comum pode se revelar interessante”. (cf. VEJA, 2000: 110).
Embora não seja necessariamente os pobres que brilham na tela do Big
Brother (eles estão presentes em maior número no Linha Direta),
66
a assertiva de
Adams pode ser estendida aos animos em geral. Essa receita do sucesso
televisivo parece encontrar amparo no fundamento segundo o qual mais do que
a “ficção, a realidade nua e crua é muito mais espetacular” (apud Q
UINET, op.
cit.: 285).
Visibilidade em excesso, protagonismo de pobres mortais, transparência
exacerbada, tudo isso nos faz presos a um roteiro que tem na vida alheia o
grande impulso para a assistência televisiva. Uma das conseqüências palpáveis
66
Certamente, são os pobres o alvo principal do olhar do Linha Direta. É cada vez crescente o
mero de programas dessa natureza: as emissoras de televisão estão investindo
significativamente na briga por audiência, onde são esses os programas os alavancadores dos
meros. No limite (Rede Globo), Me leva Brasil (quadro que integrou o Fantástico), Raul Gil
(Rede Record), foram considerados programas da linha “o povo da TV. Pensados para cativar
os telespectadores, programas dessa natureza mostram-se como fenômenos no vídeo. De
acordo com a revista Veja, o fato de vários programas brasileiros na linha “o povo na TV” serem
réplicas de modelos americanos pode levar à impressão de que se trata de mais uma imitação
dos colonizados.
283
desse imperativo é o esvaziamento da discussão de temas ligados à coisa
blica. Ainda segundo Kehl:
A vida que gira em torno da tela da televisão, tanto do lado de
cá quanto do lado de lá, é a vida que perdeu esta dimensão
pública. Os espaços onde os homens se encontram e as idéias
circulam, espaços da criatividade política e da intervenção de
novos discursos e de novos sentidos para a existência, foram
quase totalmente privatizados na sociedade do espetáculo, que
é a versão pós-moderna da sociedade de massas. A vida
privatizada é pobre e insignificante. Sua espetacularização no
cenário da Casa dos Artistas é tão mesquinha quanto a
convivência silenciosa na sala onde se reúnem os
telespectadores. (op. cit.: 169).
Essa mudança de perspectiva tem a ver com o a-mais-do-olhar, em que
tudo ou quase tudo converge para o espetáculo no qual as pessoas tornam-se
protagonistas de suas próprias vidas, “são todos regidos pelo valor inventado
na sociedade escópica, valor (altíssimo) que tenta medir o a-mais-do-olhar: o
índice de audiência” (QUINET, op. cit.: 283). Linha Direta e, principalmente, o Big
Brother Brasil surgem para majorar esse valor; eles são postos como alternativa
para conquistar o telespectador (a Globo costuma dizer, em tom de lamúria,
que Big Brother só foi inserido em sua programação porque a Casa dos Artistas,
do SBT, converteu-se, previamente ao BBB, no maior sucesso da TV em 2001).
Os reality shows apresentam fácil acesso para o cumprimento dessa demanda;
eles se consolidam no Brasil com o programa No Limite (2000), inspirado em
Survivor. Em 2001, foi criado o programa Casa dos Artistas, femeno notável de
audiência. Ameaçada pelo sucesso do reality show da principal concorrente, a
Globo investe muitas de suas fichas no Big Brother Brasil em 2002, como
relatado.
A tendência não é apenas localizada, ela é global. Um sem-número de
reality shows vem sendo produzido pela televio brasileira. Eles compõem um
espectro com tipos específicos: O Aprendiz ou O Desafiante (2005) levam aos seus
participantes desafios que eles poderiam encontrar em suas profissões ou em
284
suas próprias vidas. Nesse tipo, está o Esquadrão da Moda, em que cada episódio
apresenta uma "vítima" da moda e propõe reformar o seu guarda-roupa;
Survivor (ou No Limite): um grupo heterogêneo de pessoas é levado a um lugar
remoto sem serviços elementares, no qual deverão procurar seu sustento e
deverão competir para obter produtos básicos; Big Brother: um grupo
heterogêneo de jovens de ambos os sexos devem conviver durante certo tempo
numa casa, formando alianças e tramando intrigas para não ser expulsos pelo
voto dos espectadores. Entre a variedade de reality show da natureza de Big
Brother, está a Surreal Life, produzido pelo canal musical Vh1 ou The Real
World; Academia Artística: um grupo de aspirantes a artistas, sejam cantores
atores etc., é selecionado para habitar uma escola de arte fechada, onde recebem
lições e são eliminados em função de sua habilidade julgada por juízes ou pelo
voto dos espectadores. Marcos importantes nesta tendência são os programas X
Fator, American Idol, Ídolos e Operação Triunfo (de tendência musical) emitido
pela TVE e do qual se produziram programas clônicos em países como México,
Colômbia, Venezuela, Brasil, Chile e Argentina; Solteiro: um homem ou mulher
solteiro, usualmente rico ou famoso, deverá eleger entre um grupo de
pretendentes. Nesta classe de emissões, costuma ser o solteiro quem decide
quem prossegue na competição. The Bachelor é um exemplo que aí se enquadra;
Busca por Emprego: um grupo de participantes se submete às regras ditadas por
um empresário com o objetivo de obter emprego para trabalhar numa de suas
empresas. O programa típico desta nova tendência é O Aprendiz (The
Apprentice), programa da rede televisiva NBC e conduzido pelo empresário
estadounidense Donald Trump. Na América Latina se produziram duas
versões: uma brasileira conduzida pelo empresário Roberto Justus para a 'Rede
Record e outra na Combia, pelo Canal Caracol, com o empresário turístico de
origem francesa, Jean-Claude Bessudo.:
O imperativo do espetáculo comandado na sociedade escópica
na televio gerou também os programas como o Programa do
Ratinho e Linha Direta, onde se transforma literalmente a vida
285
trágica em filme para o gozo do espectador amplificado pela
“realidade” das cenas. Os programas de auditório e os talk
shows têm o seu sucesso devido a essa transformação contínua
da vida privada (do entrevistado) em público, o que permite
que o espectador-voyeur satisfaça sua curiosidade, que conheça
a intimidade das celebridades e que lhe abra a possibilidade
(remotíssima, na verdade) de ele um dia participar do
programa. Isso sem contar com todo o apelo pornogfico
utilizado cada vez mais nesses programas. Televisão ou tele-
exibicionismo? Não há mais diferença, como evidenciam os
programas “Casa dos Artistas“ e Big Brother Brasil. (Q
UINET,
2004: 285).
Como disse, os discursos vigilante e persecutório são a marca dos dois
programas. A “sociedade escópica (...) faz com que cada homem queira fazer
de seu próximo um ator e um espectador de um espetáculo obsceno e feroz à
altura do supereu que vigia e pune” (Id. Ibid.: 286).
Em Linha Direta, o supereu vigia e pune, é implacável. Bucci qualifica o
programa como uma “estratégia policial para arrebanhar colaboradores”, e
considera, ainda que colateralmente, que o programa guarda traços do
totalitarismo (já que todos viram agentes do poder). Costuma-se dizer que a
“justiça é cega”, mas ela nunca fecha completamente os olhos, lembra Quinet,
onde o olhar da vigilância da lei e a voz da instância crítica constroem
pametros de punição .
Aqui é inevitável a discussão de Foucault: para ele, a nossa sociedade é
menos dos espetáculos do que a da vigilância (cf. 1977: 178). Ambos os
programas, atendem à lógica do panóptico, em que o olhar do Outro faz a lei.
O panóptico é um mecanismo clássico do exercício do poder e controle,
pensado pelo jurista britânico Jeremy Bentham, no final do século XVIII. Ele era
originalmente um projeto de prisão modelar, em que os prisioneiros estariam
sempre vigiados pelo encarregado da vigincia, situado numa torre central. O
efeito da contra luz, resultado da arquitetura das celas, fazia com que todos os
prisioneiros se sentissem constantemente visíveis àquele que os vigiasse. Do
286
princípio da masmorra (trancar, privar de luz e esconder) só se conserva a
primeira. Os detentos poderiam ser vistos, mas não poderiam ver. Isso incide
sobre o efeito mais importante do panóptico: fazer com que os detentos se
sentissem vigiados, mesmo quando não houvesse um vigia na torre central e
mesmo quando eles não estivessem sendo diretamente observados. (cf.
FOUCAULT, 1977: 166).
O poder, com a figura arquitetônica do panóptico, não seria mais
exercido por intermédio de uma pessoa ou instituição, a máquina panóptica
faria a vez do institucional. O panóptico desindividualiza o poder, livra-o do
artrio do inspetor, do xerife, do chefe, transformando-o numa máquina
anônima. Sofistica as relações de disciplina
67
, que substitui a relação de
soberania.
Na esteira das considerações feitas sobre o panóptico, Machado (1996)
mapeia as máquinas de vigiar da atualidade (câmeras em quase todos os lugares
– aeroportos, estações de metrô, sistemas internos de TV) e indaga: o que são os
modernos sistemas de vigilância senão a atualização do panóptico?
Como o próprio autor assevera, os sistemas eletrônicos de vigilância
multiplicaram-se vertiginosamente na sociedade moderna, ocupando quase
todos os espaços públicos. É como uma máquina de vigiar que o Linha Direta e o
Big Brother Brasil se mostram.
67
Foucault insiste que a disciplina não pode ser confundida com uma instituição nem com um
aparelho; ela é um tipo de poder que compara um conjunto de instrumentos, de técnicas, de
procedimentos, de níveis de aplicação, de alvos, ela é uma tecnologia. (cf. 1977).
287
6.3.3 JORNAL NACIONAL E JORNAL HOJE: O MELODRAMA NARRATIVO
J
ORNAL NACIONAL: O OLHAR DO BRASIL
O Jornal Nacional (JN) foi o primeiro telejornal brasileiro a ser
transmitido em rede nacional e ao vivo, em 1969. O programa acenou para a
nova era da TV brasileira, tornando-se o emblema da integração nacional,
obedecendo a regras que garantiram o sucesso global (como o prime-time, a
programação sanduíche (novela-jornal-novela). Na década de 1970, o telejornal
inclui em sua cobertura, notícias esportivas e internacionais, instituindo-se,
assim, como a “verdadeira” voz do Brasil. O suporte técnico foi fundamental: a
Globo apostou no novo sistema de microondas da Embratel e fez o primeiro
programa simultaneamente transmitido para várias cidades brasileiras.
Desde 2000, o horário de início do JN mantém-se estável às 20h15min. Da
estréia até o fim da década de 1970 o início era entre 19h45min e 19h50min,
mudando nos anos 80 para 20h, e para 20h10min no fim dos anos 90. A
mudança de horário do telejornal se deve, segundo a emissora, à mudança de
rotina das pessoas, em especial nas grandes cidades, que gastam mais tempo
para voltar para casa.
Ao longo de mais de 35 anos, vários apresentadores já passaram pelo
Jornal Nacional. Hilton Gomes e Cid Moreira comandaram a primeira edição do
JN, em 1º de setembro de 1969. Sérgio Chapelin substituiu Hilton Gomes,
formando com Cid Moreira a dupla que mais tempo apresentou o telejornal.
Apenas na primeira fase, foram 11 anos consecutivos no ar.
Em 1983, Chapelin desligou-se da TV Globo e foi substituído por Celso
Freitas. Voltando para emissora no ano seguinte, Chapelin somente voltaria a
apresentar o JN em 1989, permanecendo na bancada com Cid Moreira até 1996.
Evandro Carlos de Andrade, à época diretor de jornalismo da emissora,
promoveu uma grande mudança no telejornal: William Bonner e Lilian Witte
Fibe assumem a bancada como parte do projeto de substituir locutores por
jornalistas na apresentação dos telejornais da Globo. Fátima Bernardes assume
288
o posto de Lílian Witte Fibe em 1998, fazendo dupla com seu marido, William
Bonner, até hoje. No total, o JN teve sete apresentadores: Cid Moreira
(1969/1996), Hilton Gomes (1969/1972), Sérgio Chapelin (1972/1983 e 1989/1996),
Celso Freitas (1983/1989), William Bonner (desde 1996), Lilian Witte Fibe
(1996/1998), Fátima Bernardes (desde 1998). Apresentadores eventuais já
passaram pelo programa, entre eles, Heron Domigues, Berto Filho, Carlos
Campbell, Marcos Hummel, Eliakim Araújo, Gilberto Barros, Fernando
Vanucci, Carlos Nascimento, Ana Paula Padrão, Carlos Tramontina. Participam
atualmente do rodízio de apresentadores aos sábados e durante as férias de
William Bonner e Fátima Bernardes: Sandra Annenberg, Heraldo Pereira,
Alexandre Garcia, Márcio Gomes, Renata Vasconcellos, Renato Machado,
William Waack, Chico Pinheiro, Carla Vilhena.
A vigilância em torno do telejornal confirma a força que ele contém. No
expediente comunicação e política, os holofotes de pesquisadores não diminuem
de intensidade. Mas, a atenção não foi sem razão. Uma das principais vozes do
país, o JN é um importante agenciador de temas candentes, mormente os
ligados a importantes capítulos políticos. Alguns episódios podem ser
rememorados. Em 1982, durante a cobertura das eleições para o governo do
estado do Rio de Janeiro, o telejornal foi acusado de participar de uma tentativa
de fraude nas eleições. Era a primeira eleição direta para governador as a
instauração do regime militar e o pleito envolvia também a escolha de
senadores, deputados estaduais e federais, prefeitos e vereadores. O TSE
decidiu, naquele ano, informatizar pela primeira vez a fase final da apuração.
A emissora reproduzia os números de O Globo. O jornal vinha divulgando
lentamente os dados, pois acompanhava detalhadamente a apuração dos pleitos
proporcionais.
Em 1984, o Jornal Nacional foi acusado de omitir informações sobre a
campanha das Diretas Já, porque deu a notícia do grande comício na Praça da Sé
em São Paulo, no dia 25 de janeiro na mesma matéria em que noticiou as
289
comemorações do aniversário da cidade. Em 1989, a polêmica ficou por conta
da edição do debate presidencial apresentado pelo telejornal dias antes das
eleições. A emissora foi acusada de ter favorecido o candidato Fernando Collor
de Mello que disputava o segundo turno do pleito eleitoral com Luiz Inácio
Lula da Silva (mais tarde, em 2004, foi lançado o livro Jornal Nacional: a notícia
faz história, que, ao invés de esclarecer os motivos que levaram a Rede Globo a
manipular o noticiário nestes em outros casos, atribuiu a causa a pequenos
enganos ou confusões).
Na década de 1990, a TV Globo apresentou furos de reportagem, como a
violência policial na Favela Naval em Diadema, a entrevista com Paulo César
Farias, quando se encontrava foragido, a apuração de casos de fraudes na
previdência social com a prisão de Jorgina de Freitas, o escândalo dos
precatórios, entre outros, consolidando a confiança da audiência.
Entre os programas que vem perdendo sistematicamente alguns pontos
do Ibope, o JN também sofre a queda, mas ainda é um dos assistidos da
emissora. O ano passado confirmou uma tendência já observada em 2004: o
Ibope (cada ponto de ibope equivale a 52,3 mil domicílios na Grande SP) do
Jornal Nacional vem caindo sistematicamente. E a queda em 2005 foi uma das
mais significativas dos últimos anos: em 2004, o JN teve média anual de 40
pontos. Em 2005 essa média caiu para 36. Em 2006, a média foi de 31,1. No
segundo semestre de 2004, as audiências mensais do JN foram: 42 (julho), 41
(agosto), 37 (setembro), 39 (outubro), 39 (novembro) e 36 (dezembro).
Nos últimos meses de 2007, o Ibope do JN vem caindo por conta da
fórmula de sanduíche. Se as novelas das 7h e das 9h emplacam, a tendência é
um maior número de telespectadores (os que já assistiram a das 7h e esperam
assistir a das 9h). O Jornal Nacional, exibido entre as novelas das 7h e das 9h,
acabou refém de Sete Pecados e Duas Caras. Como a espera para a novela de
Aguinaldo Silva é menor, o telejornal não se beneficia com os picos das duas
novelas.
290
JORNAL HOJE: LEVEZA E DESCONTRAÇÃO
O Jornal Hoje (JH) é o segundo telejornal da grade nacional a ser
exibido pela Rede Globo no início das tardes de segunda-feira a sábado.
Diferencia-se do Jornal Nacional por ter uma programação menos focada em
política e mais voltada para em eventos culturais, receitas culinárias etc. É
apresentado atualmente por Sandra Annenberg e Evaristo Costa. No JH a
leveza é a tônica que pretende atrair o público predominante desse horário
(donas de casa, estudantes).
JH estreou em 21 de abril de 1971, quase dois anos após a estréia do
Jornal Nacional, substituindo o programa Show da Cidade. No começo, era exibido
apenas no estado do Rio de Janeiro e comandado poro Batista e Luiz Jatobá.
Como a proposta da Rede Globo era lançar uma revista diária feminina, com
reportagens sobre artes, espetáculos e entrevistas, o JH foi o escolhido, em
virtude do sucesso alcançado, para atender a essa demanda em rede nacional. O
telejornal era dividido em editorias e, com o mesmo cenário, contava com
apresentadores no Rio de Janeiro, São Paulo e Brasília. O último bloco trazia as
notícias locais exibidas pelas emissoras afiliadas, como a TV Ribeirão (hoje
EPTV). Entre os apresentadores que passaram pela bancada do JH estão:
Marília Gabriela, Léo Batista (1971), Luis Jatobá, Lígia Maria, Sônia Maria
(jornalista), Berto Filho, Scarlet Moon, Marisa Raja Gabaglia, Paula Saldanha,
Márcia Mendes, Leda Nagle (1975 - 1989), Leila Cordeiro (1989), Nelson Motta
(Comentarista), Pedro Bial, Valéria Monteiro (1991 - 1992), Augusto Xavier
(1991 - 1992), Marcos Hummel (1978 - 1993), Márcia Peltier (1989 - 1992),
William Bonner (1993 - 1996), Cristina Ranzolin (1993 - 1996), Cristina Franco
(Comentarista), Fátima Bernardes (1996 - 1997), Mônica Waldvogel (1997 -
1998), Renata Capucci (1996 - 1998), Sandra Annenberg (1998 - 1999)/(desde
2003), Cláudia Cruz (1992), Carla Vilhena (2001 - 2002), Carlos Nascimento
291
(1999 - 2004), Evaristo Costa (desde 2004). Apresentadores eventuais: Zileide
Silva (substituta), Rosana Jatobá, Fabiana Scaranzi (substituta), Flávia Freire,
Mariana Godoy (substituta).
a) A CENOGRAFIA DA ENUNCIAÇÃO
68
Os dois jornais constituem o núcleo, declaradamente, jornalístico da
grade de programação Global. Como apontar neles uma marca de
ficcionalidade? De que maneira Jornal Nacional e Jornal Hoje, ambos
amparados no acontecimento e munidos de recursos que atestam o “real” na
tela televisiva, podem nos fornecer elementos que apontem para o ficcional?
Onde encontrá-los? Resposta imediata: um pouco em todo o lugar. Adotemos o
mesmo procedimento utilizado nos programas anteriores.
A abertura de ambos os programas é pontuada por uma vinheta em que
grafismos ordenam o âmbito temático do jornalismo (globo, iniciais dos
telejornais) nos circunscrevem à identidade visual (textual) dos programas. Ao
completar 35 anos, o Jornal Nacional sofreu uma completa reformulação visual.
Uma grua passou a mostrar as atividades da redação, passando em seguida,
lentamente, para a bancada. Neste movimento entra em cena uma série de sete
painéis de 12 metros de largura colocados no teto que, no final, forma um
grande planisfério estilizado, com o Brasil no centro. O telejornal abandonou o
tradicional estúdio para ser apresentado de dentro da redação. O novo cerio
já anuncia um trabalho de sentido: pretendeu modificar a concepção de
transmissão das notícias.
68
Uma vez que as estratégias de enunciação do Jornal Nacional e do Jornal Hoje se assemelham as
do Fantástico e Mais Vo, muito que foi dito sobre a questão do olhar e das imagens nesses
programas se adequam aqueles. Ressaltarei aqui apenas o que se mostra como específico dos
dois telejornais.
292
Neste novo cenário, a bancada dos apresentadores foi transferida para
um mezanino, construído em uma das extremidades da redação. Quando a
câmera se posiciona na altura dos olhos dos jornalistas (o famoso stand-up),
durante a apresentação das notícias, a redação não é vista. Para mostrar a
redação, a câmera eleva-se, expondo os outros profissionais envolvidos na
produção do programa. Esdio e redação firmam uma relão próxima.
O cenário do telejornal nos anos 70 e início dos anos 80 seguia o padrão
da emissora para todos os telejornais (Jornal Hoje, Jornal Nacional e Jornal
Internacional): fundo azul e o logotipo do jornal, simbolizado por uma letra, ao
lado da primeira versão do logotipo da emissora, criado por Hans Donner. Em
1981, o cenário ganhou traços modernos e diferentes, assim como havia
acontecido no Jornal Nacional, em 1979. O logotipo do jornal passou a ser a letra
"H", deixando de mostrar o símbolo da emissora. Esse cenário foi revitalizado
no início dos anos 90, assim como a abertura. Em 1994, com apresentação de
William Bonner, foi criado um novo cenário, muito colorido, que parecia se
mover ao longo do telejornal.
Em 1999, o “Hoje” passou a ser apresentado ao vivo dos estúdios da TV
Globo em São Paulo e o cenário mudou mais uma vez, ganhando tons em
laranja. No segundo semestre de 2001, a maior mudança: o telejornal passou a
ser apresentado ao vivo da nova redação da emissora em São Paulo. Uma mesa
quadrada foi inserida, além de um logotipo em 3D.
No início de 2002, aconteceu uma das mudanças mais rápidas da história
do telejornalismo da Rede Globo: a mesa quadrada foi trocada por uma
Figura 24. Bancada do JH
Fi
g
ura 25. Bancada do
J
N
293
bancada em forma de globo terrestre e, na abertura, várias formas mostravam
fotos de personalidades em evidência. O logo tinha um globo terrestre que
compunha o H.
Essas fotos eram trocadas de acordo com a importância dos
acontecimentos. Em 2004, quando Evaristo Costa assumiu a apresentação do
telejornal ao lado de Sandra Annenberg, a abertura mudou novamente. Um "H"
estilizado, com um globo terrestre no meio, surgia na tela. A abertura era veloz
e não agradou os telespectadores. Apesar disso, ficou dois anos no ar.
Em 21 de abril de 2006, quando completou 35 anos, o telejornal ganhou
nova abertura, mais moderna, com duração de em torno 9 segundos: televisão
de plasma, inúmeros monitores e computadores passaram a compor a lista de
acessórios do cenário. Em ambos os jornais foi preciso:
Uma cenografia nova em que a imagem funciona como
superfície, sem profundidade simulada, sem trapaças nem
saídas. Parede, folha de papel, tela, quadro-negro, sempre um
espelho. Espelho em que o espectador captaria seu próprio olhar
como o de um intruso, como um olhar a mais. A questão central
desta cenografia já não é tanto “o que há a ver atrás”? quando
“posso manter o olhar naquilo que de todo modo vejo, e que se
desenrola em único plano? (A
UMONT, op. cit.: 213).
Os cenários e aberturas do JN e do JH, que mudam sucessivamente, se
querem transparentes. Neles, tudo acontece num único plano. Detalhamos
minuciosamente as estratégias cenográficas porque elas informam o espaço da
representação, brandindo um certo sentido de espaço que começa a ser
delineado no próprio estúdio. Esse espaço é o espaço do bastidor que constrói
os elementos sucessivos da narrativa telejornalística (a redação trabalhando,
computadores aparentemente ligados). A pintura foi considerada a arte do
tempo, e o cinema e a TV, do tempo e do espaço. Tanto no Jornal Nacional
quanto no Jornal Hoje a espacialidade inscreve o vestígio dos efeitos de real,
onde as narrativas não existem fora desse espaço em que a suposta
representação es em jogo.
294
JORNAL NACIONAL O CASO RONALDINHO
Um caso raro na medicina e um exemplo de superação. Você vai
conhecer agora a história de um menino de 3 anos e do amor de
seus pais.
O caso era gravíssimo: más formações genéticas comprometendo
respiração e digestão.
“O Ronaldinho teve mais de 30 paradas respiratórias”, conta
Vilma Freire, mãe do menino.
Chance de viver?
“Menos de 10%”, lembra a mãe.
Mesmo assim médicos e família fizeram um aposta.
“Nós lutamos contra a estatística. Nós sempre lutamos com a
esperança”, define a médica de Ronaldinho.
Cinco cirurgias, um ano e meio com respiração artificial e a
noção exata do risco.
“Eu tive o pé no chão. Eu tive uma fé inteligente, eu nunca
neguei a realidade”, afirma Vilma.
Mas havia algo de diferente na mãe que largou o emprego e se
mudou para o hospital para cuidar do filho doente.
“Essa mãe olhou para seu filho como se ele fosse um bebê
saudável e normal”, explica a médica.
Nunca, nenhuma mãe tinha agido assim com um filho tão
doente.
“Eu sempre olhei para o meu filho como uma criança perfeita”,
afirma ela.
Para Vilma, filho perfeito quer dizer outra coisa.
“Feliz, alegre, que tem amor no coração”, enumera.
Amor há de sobra. A mãe está no hospital todos os dias. Os pais
e os irmãos todos os finais de semana. E o garoto que nunca saiu
do hospital e só vê o mundo pela janela da UTI está perto de
operar um milagre.
Diante da surpreendente recuperação de Ronaldinho os médicos
garantem que ele vai poder ir para casa dentro de alguns meses.
A notícia foi um grande presente da festa de aniversário que o
hospital preparou para o garoto.
Cavalo de pau, afagos, vela de 3 anos, parabéns. Um menino
comum. A vitória da medicina.
“Eu sempre sonhei com isso. Sempre visualizei meu filho
fazendo 1 ano, 2 anos, rapaz. Ele tem uma história. Mas ele
vai continuar escrevendo mais e mais histórias, porque ele é um
grande menino agora, mas vai ser um grande homem”.
O aniversário de Ronaldinho foi no dia 15 de agosto. Mas a
irmã mais velha - Hadassa - estava com catapora e por isso, a
comemoração foi realizada hoje. Ronaldinho fazia questão da
presença dela na festa
. (1º de setembro de 2007).
295
JORNAL HOJE - COMÉRCIO NA INTERNET
por Karla Almeida
Mulheres adoram fazer compras... E agora o consumo
feminino está se estendendo à internet. Um estudo mostra
que aumentou o número de consumidoras virtuais no
primeiro semestre de 2007. Mas os homens ainda gastam
mais do que elas na rede mundial de computadores.
Fazer compras pela internet virou um hábito na vida de
Alessandra Meira. Na lista das preferências, os cosméticos
ocupam o primeiro lugar: cremes, perfumes e produtos para o
cabelo. Alessandra faz parte de uma estatística em crescimento,
a das consumidoras virtuais. “Numa loja você tem uma opção
restrita. E quando você vai na internet você tem um arsenal de
coisa para escolher”, diz.
Segundo uma pesquisa do Ibope, de janeiro a junho de 2007, a
participação das mulheres nas compras pela internet subiu para
45%. Foram 140 mil novas consumidoras. Mas são os homens
que ainda gastam mais no mundo virtual. Enquanto elas
consomem, em média, R$ 210,00 em cada acesso, eles gastam o
dobro, R$ 556,00.
O estudo mostrou também que, enquanto as mulheres procuram
produtos de menor valor, os homens preferem os mais caros,
como livros, eletro-eletrônicos e equipamentos tecnológicos. O
marido de Alessandra, Eduardo, comprova essa teoria. Somente
essa semana ele comprou pela internet R$ 1.500,00 em produtos
de informática. “Não tenho mais problema com fila, loja. Vo
chega na loja e aquele vendedor chato fica no seu pé:Quer
alguma coisa?’. Meu amigo, eu quero escolher. E na internet
você tem a liberdade de escolher sozinho, sem ninguém me
aperreando”, ri.
Somente no primeiro semestre de 2007, o comércio virtual
atraiu mais de oito milhões de consumidores e movimentou um
mercado de R$ 2,5 bilhões. Isso sem contar as vendas de
passagens aéreas e os leilões de carros pela internet. E de acordo
com os especialistas, o comércio pela rede mundial de
computadores tem fôlego para crescer ainda mais. “A compra
pela internet deve crescer bastante, baseada em dois fatores. Um
deles é a formação da geração de pessoas que já nasceram com a
internet e que têm como a primeira opção comprar pela internet,
e não no meio físico. E o segundo motivo é a baixa do dólar, que
torna o equipamento de informática mais barato e permite que a
296
classe ‘C’ entre na internet e comece a fazer as compras“, diz
Bruno Queiroz, especialista em comércio na internet.
O Brasil está em primeiro lugar no mundo entre os países cujos
moradores ficam mais tempo conectados à internet, quase um
dia inteiro por mês. Estamos à frente até dos EUA e Japão.
E para quem faz compras assim, não custa lembrar: verifique
sempre se é seguro por onde você navega. (30 de agosto de
2007).
a)
AS ESTRATÉGIAS DE ENUNCIAÇÃO
69
Os operadores de linguagem do Jornal Nacional e do Jornal Hoje têm que
se vincular à “leveza”, decididamente os informativos não podem abduzir os
telespectadores. O JN, mesmo com o papel de publicar informações sobre
política nacional/internacional e economia, deverá fazê-lo de modo a não
entendiar o telespectador. Mais do que isso: deverá oferecer informações em
que as pessoas se sintam cada vez menos obrigadas a pensar, porque se supõe
que o telespectador não está à procura de conhecimentos mais densos,
tampouco seja dotado de neurônios que o faça entender assuntos mais densos.
O “caso Ronaldinho” publicado pelo Jornal Nacional se aplica como uma luva ao
prinpio do programa. A matéria foi produzida segundo as regras do
melodrama (música de fundo, imagens em câmera lenta, exploração da
linguagem fática, close-up de sorrisos, afetos, rerter visivelmente
enternecido...). Na reportagem sobre Comércio na Internet, do Jornal Hoje,
aparentemente mais objetiva, há, igualmente, a marca da leveza e da
amenidade.
Uma reunião de pauta do JN assistida por professores da USP nos revela,
com força expressiva, o que está por trás dos empenhos da equipe de
69
Uma vez que as estratégias do Jornal Nacional e do Jornal Hoje se assemelham as do Fantástico e
do Mais Você, não farei discussões mais longas sobre alguns itens, como o olhar e a imagem.
Abordarei tão-somente questões que apontem para as particularidades dos dois telejornais.
297
“produção” do telejornal. O texto é relativamente longo para uma citão, mas
reproduzo-o em sua integralidade pela sua virtude pedagógica:
Perplexidade no ar. Um grupo de professores da USP está
reunido em torno da mesa onde o apresentador de tevê William
Bonner realiza a reunião de pauta matutina do Jornal Nacional,
na quarta-feira, 23 de novembro.
Alguns custam a acreditar no que vêem e ouvem. A escolha
dos principais assuntos a serem transmitidos para milhões de
pessoas em todo o Brasil, dali a algumas horas, é feita
superficialmente, quase sem discussão.
Os professores estão lá a convite da Rede Globo para conhecer
um pouco do funcionamento do Jornal Nacional e algumas das
instalações da empresa no Rio de Janeiro. São nove, de
diferentes faculdades e foram convidados por terem dado
palestras num curso de telejornalismo promovido pela emissora
juntamente com a Escola de Comunicações e Artes da USP.
Chegaram ao Rio no meio da manhã e do Santos Dumont uma
van os levou ao Jardim Botânico.
A conversa com o apresentador, que é também editor-chefe do
jornal, começa um pouco antes da reunião de pauta, ainda de
pé numa ante-sala bem suprida de doces, salgados, sucos e café.
E sua primeira informação viria a se tornar referência para
todas as conversas seguintes.
Depois de um simpático "bom-dia", Bonner informa sobre uma
pesquisa realizada pela Globo que identificou o perfil do
telespectador médio do Jornal Nacional. Constatou-se que ele
tem muita dificuldade para entender notícias complexas e
pouca familiaridade com siglas como BNDES, por exemplo. Na
redação, foi apelidado de Homer Simpson.
Trata-se do simpático, mas obtuso personagem dos Simpsons,
uma das séries estadunidenses de maior sucesso na televisão
em todo o mundo. Pai da família Simpson, Homer adora ficar
no sofá, comendo rosquinhas e bebendo cerveja. É preguoso e
tem o raciocínio lento.
A explicação inicial seria mais do que necessária. Daí para a
frente o nome mais citado pelo editor-chefe do Jornal Nacional é
o do senhor Simpson. "Essa o Homer não vai entender", diz
Bonner, com convicção, antes de rifar uma reportagem que,
segundo ele, o telespectador brasileirodio não
compreenderia.
Mal-estar entre alguns professores. Dada a linha condutora dos
trabalhos – atender ao Homer –, passa-se à reunião para
discutir a pauta do dia. Na cabeceira, o editor-chefe; nas
laterais, alguns jornalistas responsáveis por determinadas
298
editorias e pela produção do jornal; e na tela instalada numa
das paredes, imagens das redações de Nova York, Brasília, São
Paulo e Belo Horizonte, com os seus representantes. Outras
cidades também suprem o JN de notícias (Pequim, Porto
Alegre, Roma), mas elas não entram nessa conversa eletrônica.
E, num círculo maior, ainda ao redor da mesa, os professores
convidados. É a teleconferência diária, acompanhada de perto
pelos visitantes.
Todos recebem, por escrito, uma breve descrição dos temas
oferecidos pelas "praças" (cidades onde se produzem
reportagens para o jornal) que são analisados pelo editor-chefe.
Esse resumo é transmitido logo cedo para o Rio e depois, na
reunião, cada editor tenta explicar e defender as ofertas, mas
eles não vão muito além do que está no papel. Ninguém
contraria o chefe.
A primeira reportagem oferecida pela "praça" de Nova York
trata da venda de óleo para calefação a baixo custo feita por
uma empresa de petróleo da Venezuela para famílias pobres do
estado de Massachusetts. O resumo da "oferta" jornalística
informa que a empresa venezuelana, "que tem 14 mil postos de
gasolina nos Estados Unidos, separou 45 milhões de litros de
combustível" para serem "vendidos em parcerias com ONGs
locais a preços 40% mais baixos do que os praticados no
mercado americano". Uma notícia de impacto social e político.
O editor-chefe do Jornal Nacional apenas pergunta se os
jornalistas têm a posição do governo dos Estados Unidos antes
de, rapidamente, dizer que considera a notícia imprópria para o
jornal. E segue em frente.
Na seqüência, entre uma imitação do presidente Lula e da fala
de um argentino, passa a defender com grande empolgação
uma matéria oferecida pela "praça" de Belo Horizonte. Em
Contagem, um juiz estava determinando a soltura de presos
por falta de condições carcerárias.
A argumentação do editor-chefe é sobre o perigo de criminosos
voltarem às ruas. "Esse juiz é um louco", chega a dizer,
indignado. Nenhuma palavra sobre os motivos que levaram o
magistrado a tomar essa medida e, muito menos, sobre a
situação dos presídios no Brasil.
A defesa da matéria é em cima do medo, sentimento que se
espalha pelo País e rende preciosos pontos de audiência.
Sobre a greve dos peritos do INSS, que completava um mês -
matéria oferecida por São Paulo -, o comentário gira em torno
dos prejuízos causados ao órgão. "Quantos segurados já
poderiam ter voltado ao trabalho e, sem perícia, continuam
onerando o INSS", ouve-se. E sobre os grevistas? Nada.
De Brasília é oferecida uma reportagem sobre "a importância do
superávit fiscal para reduzir a dívida pública". Um dos
299
visitantes, o professor Gilson Schwartz, observou como a
argumentação da proponente obedecia aos cânones econômicos
ortodoxos e ressaltou a falta de visões alternativas no noticiário
global.
Encerrada a reunião segue-se um tour pelas áreas técnica e
jornalística, com a inevitável parada em torno da bancada onde
o editor-chefe senta-se diariamente ao lado da esposa para falar
ao Brasil. A visita inclui a passagem diante da tela do
computador em que os índices de audiência chegam em tempo
real. Líder eterna, a Globo pela manhã é assediada pelo Chaves
mexicano, transmitido pelo SBT. Pelo menos é o que dizem os
números do Ibope. E no almoço, antes da sobremesa, chega o
espelho do Jornal Nacional daquela noite (no jargão, espelho é a
previsão das reportagens a serem transmitidas, relacionadas
pela ordem de entrada e com a respectiva duração). Nenhuma
grande novidade. A matéria dos presos libertados pelo juiz de
Contagem abriria o jornal. E o óleo barato do Chávez
venezuelano foi para o limbo. Diante de saborosas tortas e antes
de seguirem para o Projac - o centro de prodões de novelas,
seriados e programas de auditório da Globo em Jacarepaguá -
os professores continuam ouvindo inúmeras referências ao
Homer. A mesa é comprida e em torno dela notam-se alguns
olhares constrangidos. (texto de um dos professores visitantes,
L
AURINDO LEAL FILHO, 2006).
O desconforto que as francas palavras de William Bonner provocaram
nos professores de jornalismo provém do aparente descompasso entre o papel
informativo (formativo) do jornalismo e a linha do telejornal, vocalizada pelo
seu apresentador: não é a importância da informação que conta, mas as escolhas
definidas, a priori, por um suposto gosto (e entendimento) do telespectador.
Tais escolhas viraram regra nos telejornais, principalmente nos globais. De
posse das pesquisas de opinião sobre as preferências do público – medidas
especialmente pelos índices de audiência – produtores e editores insistem: não
adianta apenas informar, é preciso apelar para recursos que tornem as notícias
mais agradáveis; recursos que, invariavelmente, são relacionados à imagem
espetacularizada, ao bombástico, com ingredientes da ficção. A forma
significante da TV colabora para que as estratégias de produção prosperem.
Bucci já advertira a isso nos seguintes termos:
300
(...) o telejornalismo se organiza como melodrama. Todos
sabemos que ao jornalismo, seja ele de revista, revista ou jornal,
não basta informar. Ele precisa chamar a atenção, precisa
surpreender, assustar. Os produtos jornasticoso produtos
culturais e, nessa condição, fazem o seu próprio espetáculo para
a platéia. Como se fossem produtos de puro entretenimento,
buscam um vínculo afetivo com freguês. (1997: 29).
Como lembra Xavier, “o regime da visualidade da mídia e o melodrama
têm se mostrado duas faces de uma mesma liberação ou perda de decoro, que é
ambígua em sua significação política” (2003: 99). Se o melodrama é a
quintessência do teatro, Xavier questiona por que sua experiência não haveria
de encontrar abrigo numa sociedade onde os dispositivos visuais dominam a
cena. (op. cit.: 99).
O melodrama teria o papel, no universo das mídias, de lugar ideal das
representações negociadas (em todos os sentidos do termo). Para Xavier, isso vale
para o telejornalismo, no qual preza-se, de um lado, o acesso à intimidade, “ao
pior”, e, de outro, neutraliza-se o efeito propriamente ctico quando a
superexposição do corpo ou do “caráter” é valorizada como revide a uma
orexia por imagens que, por isso mesmo, custam cada vez mais. As notícias,
sob esse ponto de vista, devem ser palatáveis.
As doses de entretenimento que foram injetadas no JN são
perpetuamente justificadas pelo declínio de audiência; o Jornal vem
despencando gradativamente nos índices do Ibope. De acordo com reportagem
da Revista “Veja”:
Pressionado pelas medições das empresas especializadas, que
registram um declínio em sua audiência, o Jornal Nacional es
escorregando para um tom popularesco. De três anos para cá,
o principal noticiário da televisão brasileira, programa
obrigatório de quem decide os destinos da nação e fonte de
informação de quem mora nas regiões mais distantes do país,
vem deixando em segundo plano notícias relevantes para
privilegiar reportagens lacrimosas, curiosidades do mundo
301
animal ou intermináveis inventários sobre a vida de
celebridades. (30 de setembro de 1998).
Vários acontecimentos dão a medida dessa tendência. Limito meus
comentários a dois casos-limites. Na reportagem cujo título é “O show de
variedades das 8”, “Veja” cita o acidente com o ator Danton Mello, do segundo
escalão da emissora, em Roraima, cuja cobertura ocupou 10 minutos e onze
segundos. No mesmo dia, a notícia a respeito dos cortes anunciados no
Orçamento da União, motivados pela grave crise internacional, mereceu apenas
um minuto e 24 segundos. Outro exemplo que se tornou clássico foi o
nascimento da filha de Xuxa, em 1998, que igualmente ganhou longuíssimos
dez minutos, uma eternidade. À declaração de moratória de noventa dias da
Rússia, em 17 de agosto do mesmo ano, dedicaram-se quarenta segundos.
Ainda segundo a Revista:
O Jornal Nacional ouve a opinião de populares na rua a respeito
de medidas complexas do governo no campo da economia, e
não se passa muito tempo sem que pessoas vítimas de alguma
desgraça sejam entrevistadas em seu noticiário até o ponto em
que começam a chorar. São invariavelmente pessoas humildes.
Agrima que escorre pelo rosto tornou-se aparentemente uma
meta do JN. Escorridas as primeiras, encerra-se a entrevista.
(V
EJA, 30 de setembro de 1998).
Como lembrou Vilches, a TV televisão serviu, basicamente, para
desvincular narração e espaçoblico, na era da expansão industrial. A CNN
instaurou um modelo de cobertura empenhado com a ritualização da emoção,
mediante a informação e a representação dramática dos fatos. A televisão
reordenou o espaço e o tempo da língua. (cf. 2003: 112).
A mudança de tom do jornal aumenta e afina o coro contestatório de
seus ex-apresentadores. A abundância de lágrimas, curiosidades médicas,
bichinhos a todo momento, incomodam o profissional com pretensões
jornalísticas mais arrojadas. Paulo Henrique Amorim, jornalista que já teve
302
assento na bancada do telejornal, ajuíza: "O JN virou um produto de
entretenimento, não tem mais nocias”. Lilian Witte Fibe também teria se
queixado de que o programa está ameno e suave; a reclamação da
apresentadora fez com que ela retornasse ao Jornal da Globo. (VEJA, 30 de
setembro de 1998).
Assim como nos outros programas analisados, informação e
entretenimento estão em conluio, são faces de uma mesma moeda, fornecem a
matéria-prima das notícias, às vezes com o primeiro prevalecendo sobre o
segundo. Armand e Michèle Mattelart destacaram: a função de distrair
claramente passou à frente das outras funções designadas para a televisão como
também das outras formas de seu uso social. A função hegemônica do
divertimento tende a marcar cada vez mais as outras. Na senda de Bucci: “o
telejornal, mais que o jornalismo impresso, tem de entreter. O tempo todo. Uma
nota entediante de 10 segundos é fatal. O telespectador foge. A cor é
obrigatória. O movimento é obrigatório. O retumbante é obrigatório. É por isso
que o principal critério da notícia é a imagem. Se há uma imagem impactante,
dificilmente o fato merecerá um bom tempo no telejornal.” (op. cit.: 29).
O Jornal Hoje também assim funciona, mas como ele já nasce nesse lugar,
o lugar onde o entretenimento é visado como meio e fim, sobre ele as cobranças
não são tão ferrenhas como no JN. Mas não será por isso que ele sairá incólume
do exame aqui feito. O JH é prenhe de exemplos de regimes de ficcionalidade.
Senão vejamos.
b) A
S ESTRATÉGIAS DE ENUNCIAÇÃO
Em ambos os telejornais, a performance dos apresentadores também
revela uma intromissão dos recursos ficcionais, o que requer uma atenção
especial do trabalho. No JH e no JN os jornalistas são alçados ao papel de
atores, encenam a cena do enunciado, fazem trejeitos de acordo com a notícia,
demonstram emoção, reprovam, aprovam com olhares, sorrisos e outras
303
expressões faciais. A identificação que o telespectador tem com os seus astros
falantes passa por uma série de procedimentos oriunda da representação
teatral.
No artigo O telejornal e seu espectador, Robert Stam (1985) tenta responder
à pergunta: por que o telejornal é agravel? Mesmo quando o noticiário nos
mostra catástrofes, num dia hipotético de péssimas informações, como índices
de inflação e desemprego em alta, epidemias, falta iminente de água, ele
conserva seu caráter prazenteiro. Mesmo quando já sabemos das notícias por
outras fontes de informação, não abdicamos do nosso compromisso diário de
sentarmos frente à TV. (1985: 75). A identificação pode ser, de acordo com
Stam, primária e secundária:
Não seria com os acontecimentos ou personagens descritos na
tela que o telespectador, em primeira medida, nos seduziria,
mas com o próprio ato de percepção que torna possíveis as
identificações secundárias, um ato que é ao mesmo tempo
canalizado e construído pelo olhar prévio da câmera e pelo
projetor, que a representa, proporcionando ao espectador a
ubiqüidade ilusória de sujeito que tudo vê. (Id. Ibid.: 75).
O aparelho televisivo oferece, em abundância, prazeres variados e
multiformes, em escala muito mais gigantesca do que os prazeres do cinema,
garante Stam. Eles estão ligados a um conjunto amplo de câmeras e olhares,
câmeras de vídeo de televisão que transmitem imagens e sons ao vivo (com os
apresentadores falando as notícias do estúdio ou os correspondentes
transmitindo do local via satélite).
O tempo aí também possui certo presgio, visto que integramos o tempo
literal de pessoas que estão em lugares longínquos. A TV nos proporciona o
apenas o dom da ubiqüidade, mas a ubiqüidade instantânea. O espectador de
uma transmissão ao vivo, geralmente, pode ver melhor do que os que estão
presentes na cena. O recurso de imagem nas coberturas ao vivo apóia-se: a
multi-imagem frontal (aquela em que se vê o apresentador num quadrante [no
304
estúdio], o repórter relatando o acontecimento in loco e o próprio
acontecimento, tornou-se banal nas estratégias dos dois telejornais).
Mas é o estrelato dos apresentadores que ocupa centralidade na tese de
Stam. Voltemos a ele. Como se sabe, um contingente relativamente compósito
integra a cena dos telejornais e se oferece ao telespectador como candidato a
identificação: “os apresentadores, os correspondentes, políticos e celebridades,
os personagens dos comerciais e as ‘pessoas comuns’ que aparecem no
noticiário”. (Id. Ibid. 76). No topo da hierarquia estão os âncoras:
o próprio termo tem uma conotação de solidez e seriedade: o
figuras simbólicas que hão de impedir que vaguemos à deriva
em um mar tempestuoso de significações. São autênticos heróis,
cujas palavras têm uma eficácia verdadeiramente divina: o
mero fato de designarem um acontecimento provoca uma
ilustração instantânea sob a forma de miniaturas animadas ou
de transmissão ao vivo. Tornou-se um lugar comum designá-
los como as Superestrelas das Notícias. (Id. Ibid.: 78).
Representando a si próprios, apresentadores dão sentido às notícias com
suas performances. Em tempos passados, a atuação desses profissionais era
minimalista, acatavam a padrões especiais de ênfase e inflexão, tinham postura
corporal empertigada, tudo combinando para manter um ar de neutralidade.
Hoje não. A intervenção dos apresentadores é notória, flagrante diante das
câmeras, que passam a captar cada vez mais a orquestração de sorrisos,
movimentos de sobrancelhas, variações de tonalidade e ênfase. De neutralidade
passam a adotar naturalidade. Nos dois programas, a intervenção dos
apresentadores via expressão facial é recorrente. Além da expressão, os
apresentadores falam e comentam o noticiado, reforçando o sentido proposto
(Sandra Annenberg e Evaristo Costa são campeões do comentário,
normalmente feito de forma amistosa):
O apresentador do telejornal é um outro ingrediente-chave. Ele
desenvolve com o telespectador um vínculo de familiaridade
como se fosse um ator, um astro. Vivemos num tempo em que
jornalistas da TV são celebridades, são símbolos sexuais. Enfim,
305
aqui, como no resto do mundo, o público sente desejo pelo
programa do telejornal. E todo mundo sabe. (B
UCCI, op. cit.: 29).
Jornal Hoje e Jornal Nacional colhem da fião outros procedimentos: é
preciso que as narrativas estruturem-se segundo as normas teleológicas da
narração. Histórias individuais (como da mãe zelosa que cuida do filho
Ronaldinho no hospital), minificções, o drama, a revelação dos personagens da
história (dos apresentadores ao homem ordinário da notícia), as macroficções
(séries semanais sobre trânsito, saúde, casa própria); o recurso do chromakey
(que se assemelha ao trompe-l’oeil) nos faz acreditar que a moça do tempo pareça
de fato estar sobre sobrevoando a Amazônia ou o litoral nordestino. Os efeitos de
realidade não param de trabalhar. Em tempos passados, apresentadores
amassavam os papéis no último minuto do jornal, hoje eles se põem a rabiscar
páginas e páginas que são postos sobre a bancada, teclam em computadores.
Sabe-se que a leitura das matérias ainda é feita no teleprompter. Ainda que as
folhas sirvam de anteparo, todo o procedimento de ris-las, pas-las para trás,
quer passar para o telespectador a idéia de que aqueles papéis de fato são lidos
e os computadores, acessados pelos apresentadores em plena exibição do
telejornal.
Os anúncios do JN e JH cumprem, igualmente, a receita do ficcional: as
atrações hermenêuticas (Barthes), fragmentos do fragmento estimulam o
interesse da assistência: “Veja no Jornal Nacional, ou Veja, agora, no Jornal
Nacional (ou no Hoje). A divulgação a conta-gotas das informações é um recurso
cssico que prende a atenção: queremos desvendar a história paulatinamente,
ansiamos por chegar ao clímax, nossa curiosidade é estimulada a cada anúncio,
o mistério, tal como nos suspenses policiais, precisa ser desvendado.
Tudo isso está construído num ambiente em que o apresentador fala e
mostra. Aumont lembra que a retórica televisiva, as posturas de enunciação da
palavra quase não evoluíram desde a invenção do televisor. Da primeira
306
emissão de variedades da BBC, em 1936, até nossos dias, encontramos sempre o
mesmo posicionamento frontal e um ou dois enunciadores.
Os apresentadores são o próprio homo loquens in visualizado: a televisão,
mais do que uma máquina de imagens é uma máquina de palavras. A literatura
sobre a origem do telejornalismo ensina que ele foi, em seus primeiros passos,
uma adequação do jornalismo impresso e do rádio à TV,
70
condensando as
principais características dos dois suportes: o apresentador apenas lia as
informações veiculadas na imprensa e as transmitia sem muitas alterações com
impostão de voz. O primeiro telejornal brasileiro foi Imagens do dia, veiculado
pela TV Tupi em 1950, cuja equipe era o redator e apresentador, Ruy Resende, e
os cinegrafistas, Jorge Kurjian, Paulo Salomão e Afonso Ribas. O noticiário era
composto por uma seqüência de filmes dos últimos acontecimentos locais,
produzidos precariamente com falhas sempre recorrentes.
71
Em janeiro de 1952,
a TV Tupi de o Paulo cria outro noticiário veiculado diariamente às 21h: o
Telenotícias Panair que prepara o terreno para o mais importante telejornal, o
Repórter Esso.
Visualizado, o locutor também se achata em uma encenação ritual quase
imutável: homem-tronco (enquadrado em plano americano), relativamente
estático (sentado e pouco móvel), em estreita frontalidade (o olhar-mera
colocado no prompter que desfila síncrono entre ele e nós), ele lê, comenta,
apresenta, graceja, anuncia, entrevista, interpela. As palavras, olhares, gestos e
70
O desenvolvimento tecnológico no setor de comunicações possibilitou que a televisão se
sofisticasse e, por tabela, que os seus produtos também. Da câmera de 16 milímetros e da
ausência de som direto, os telejornais tiram proveito e passam a criar, gradativamente,
parâmetros próprios, desvencilhando-se, aos poucos, da herança do jornal impresso e do rádio.
Assim, a existência de videoteipes e a necessidade de vinhetas, bem como cenários bem mais
elaborados deu ao jornalismo uma outra fisionomia. Mas não foi apenas o impulso tecnológico
que deu nova cara à televisão. A época foi um momento fecundo para a criatividade e expansão
intelectual, o que se refletiu na produção televisiva.
71
O telejornalismo vai achar identidade só na década de 1960, quando se transforma em um
show televisivo com parâmetros próprios, quais sejam: o modelo esportivo de noticiário, a lógica
da velocidade, a preferência do “ao vivo”, a substituição da verdade pela emoção, a
popularização e o expurgo da reflexão (M
ARCONDES FILHO, 2001: 80).
307
inscrições são dirigidas a quem? Fazendo comparações com o cinema, Aumont
nos lembra que os telejornais não têm contracampo, já que a fala é dirigida a
todos e a ninguém. O ausente ontológico é o espectador: o locutor pode muito
bem multiplicar os apelo ao contato, simular o “ao vivo”, imitar o face a face
(vide o boa noite, os cumprimentos com os repórteres), ele estará sempre
falando no vazio” (op. cit.: 211). Será que ele poderia ser visado nas imagens da
redação de JH e JN? A auncia se presentifica, em alguns casos, por meio do
retorno por telefone (muito comum em Mais Você, a claque no estúdio, o
jornalista mediador, o âncora ou o convidado porta-voz” etc.). A comunicação
suposta é a comunicação do diálogo, tão cara às intenções da própria
comunicação.
Para o que interessa ao trabalho demonstrar, Jornal Nacional e Jornal Hoje,
a princípio, são um flanco forte de ataque. Os dois programas abusam dos
recursos da ficção, constituem-se como narrativas enraizadas no melodrama.
Porém não são apenas os recursos de produção que nos levam a considerar que
as narrativas televisivas sejam ficcionais. Se assim pensasse estaria incorrendo
em uma incongruência, dissolvendo aqui a questão. Há uma questão de fundo,
aprendida e apreendida com as próprias análises. Sobre ela falaremos no item
que segue.
308
7 LIÇÕES DAS ALISES
As portas são inumeráveis, a saída é uma só, mas as
possibilidades de saída são tão numerosas quanto as
portas.
Franz Kafka
Bem, até aqui estávamos no plano da imanência, passemos agora para o
plano da transposição. A par de seus respectivos discursos e formas de
enunciação, os programas giram em torno de uma questão central, essencial: o
olhar. Eles a cercam a partir de pontos de vista diferentes, mas a tem como
suporte fundamental: a) no Fantástico e no Mais Vo o olhar é estimulado a ver
o mundo organizado pelos programas, com informação prêt-à-porter, onde
ficção e realidade, seguindo a lógica de enunciação dos programas, são
revezadas como tema de exploração (ora fala-se de fatos de domínio do
acontecimento, ora reporta-se a temas de domínio da criação). Vimos, ainda, como
os programas utilizam na manufatura das matérias recursos pertencentes ao
registro ficcional. O percurso do olhar é feito de maneira sinuosa, barrando a
possibilidade de vermos tudo. Diante das imagens há um olho que “me conduz
de bom grado ao seu lugar para eu enxergar mais... ou talvez menos. (XAVIER,
op. cit.: 57). No Linha Direta e no Big Brother Brasil o olhar não só é o anteparo
das narrativas que fluem na tela, mas seu objeto, meio e fim. Ele não está apenas
oculto, provocando a repetição dos enunciados, é tido como um objeto que
sobeja em uma sociedade que tudo quer ver (os dois programas acabam
sintetizando o mal-estar contemponeo de condensar a intensidade do gozo).
No Jornal Nacional e no Jornal Hoje a ficção impera sobre os modos de articulação
discursiva, instala-se, irrevogavelmente, na fábrica e produção das matérias,
sob pena de os noticiosos tornarem-se enfadonhos e perderem telespectadores.
Assim como no Fantástico e no Mais Você, o olhar nos dois telejornais orienta o
nosso percurso e nos faz teleouvintes à procura diária de narrativas que nunca
se completam. Nos três uma irmandade: a fascinação é exercida igualmente.
309
Estou encaminhando meus argumentos para as conclues desta tese: 1)
O olhar é quem nos mantém fixados na tela televisiva, constituída por uma
sintaxe que faz com que a televisão fabrique a si própria como um “objeto
bom”, assentado no prazer de olhar (escopofilia) e no prazer de ouvir (pulsão
invocante); 2) Esses dois prazeres, como veremos, estão ligados a um
imagirio que os incita freneticamente (na lógica do mercadoum
investimento excessivo nesses prazeres). Se as mudanças de convenção social
são da ordem do imaginário, passo a considerar, dessa forma, que o olhar
satisfaz a lógica do imaginário contemporâneo, onde a proeminência de
imagens orquestra a cena do mundo. Portanto, imaginário-olhar é o par que nos
permite verificar o projeto do modo de prodão existente que aposta quase
todas as fichas no dispositivo do ver, culminando como afirmou Guy Debord,
na sociedade do espetáculo. Discutamos um pouco sobre o olhar.
7.1
A CENA DO MUNDO (TELEVISIVO) SE ORGANIZA PELA FUNÇÃO DO
OLHAR
Todos os combatentes da minha idade eram parecidos. Parecidos
comigo. O olhar dos europeus brilhava – hoje sei o porquê e
como brilhava; de desejo, porque ele agia sobre os nossos
corpos antes que tivéssemos percebido. Mesmo se virássemos as
costas, os olhares de vocês atravessavam a nossa nuca.
Espontaneamente, fazíamos pose – heróica, portanto, sedutora.
Pernas, coxas, dorso, pescoço, em tudo havia charme – não que
quiséssemos seduzir alguém em particular, mas era a isto que o olhar
de vocês nos levava e respondíamos como vocês esperavam, porque
vocês nos haviam transformado em estrelas. Em monstros também.
Vocês nos chamavam de terroristas! Éramos estrelas terroristas.
[grifos meus].
Jean Genet (Um cativo apaixonado, 1986)
Se parto do entendimento de que não é a vertiginosa gama de gêneros
que determina e orienta a fixação dos telespectadores frente aos programas e
que – como disse Merleau-Ponty – é o olhar o nosso reitor, o provocador da
nossa fascinação, qual seria o lugar do olhar na contemporaneidade, visto que
310
ele é menos um franqueador de imagens, do que um agente que atua na
faculdade de estabelecer relações? O percurso trilhado até aqui nos recomenda
considerar mais de perto as formulações em torno dessa questão. O que
apresento agora são alguns possíveis endereços de resposta às inquietações
surgidas com as análises. Já que o tema é fruto de um solo vasto, apresento aqui
uma rapsódia de idéias sobre as principais coordenadas atinentes à função do
olhar.
A causa e o efeito do brilho nos olhos dos europeus, olhos que agiam,
como diz o texto de Genet, podem ser pensados nos limites da TV. A cena
criada por quem se deseja olhado nos permite observar que há uma voracidade
do olhar, virulento e agressivo. A desconcertante História do olho de Bataille nos
leva a perceber, por meio de uma composição metafórica, que o Olho passa por
variações, através de um certo número de objetos substitutivos, conservando
sempre seu aspecto voraz.
72
Voracidade que se pode perceber na “dimensão maquínica” (fotografia,
cinematógrafo, televisão/vídeo e imagem da informática) que produz e articula
os discursos contemporâneos. As inveões tecnológicas da modernidade
impactaram diretamente na construção do visível, modificaram a cultura e os
sujeitos, constituíram um universo visual congestionado. Como já se disse, o
apelo à transparência e à visibilidade, a tirania da vigilância eletrônica
(câmeras, imagens a partir de satélites, internet e redes virtuais),
reposicionaram várias questões alusivas à função do olhar na
contemporaneidade. E a TV é uma das principais colaboradoras nesse quesito.
A superoferta de imagens produzidas pela TV nos faz acreditar que o
mundo visível está ao alcance do controle remoto e, como lembra Xavier,
“amplia meu olhar e me coloca como sujeito que aparentemente ‘tudo percebe’,
recolhendo o que suas táticas de ilusão propõem como um mundo da verdade”.
(2003: 10). Essa é uma prerrogativa que nos conforta. No entanto, além das
72
Cf. BATAILLE, Georges. A história do olho. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.
311
cenas explícitas que nos são oferecidas pela tela, subjaz outra, a cena invisível,
que nos determina enquanto sujeitos que tudo vêem. Uma exploração em torno
da trajetória do olhar parece aconselhável.
Segundo Lacan,a função do olho pode levar quem procura esclarecê-la
a longínquas explorações. Desde quando, por exemplo, a função do órgão, e
logo de saída sua simples presença, apareceram na linhagem do vivo?” (1998:
90). É do conhecimento filosófico que se tem um painel de referências sobre o
olhar: a relão com o saber e o desejo, as distinções entre ver e olhar, os pontos de
interseção entre o inteligível e o sensível, foram alguns dos temas recorrentes nas
explorações filosóficas desde a Antigüidade.
Cotejando as concepções do olhar ao longo da história, Quinet diz que a
investigação da Antigüidade tem algo a nos ensinar sobre o olhar da
contemporaneidade, mas que foi apagado pela episteme da representão,
marca do classicismo. O que seria esse algo que a filosofia antiga tem a oferecer
e que foi apagado pela fenomenologia da percepção e pela óptica geometral?
Sumariamente, seriam o desejo, o visível e o gozo, retomados pela psicalise e
que lançam luz para as amarrações desta tese.
Para os gregos olhar e ver tinham uma relação com o conhecimento. Ver,
do latim vídere, significa tomar conhecimento. Segundo Chauí, estaria num grau
de superficialidade se comparado ao olhar, pois não prevê interão. Ver,
portanto, é manter-se à distância; é um desejo de conhecer, possuir, mas não de
apreender. (1993: 35).
O ver para os indo-europeus beirava o sagrado. Segundo Gaardet, eles
“tentavam ‘entender’ o desenrolar da história do mundo a partir de uma
observação filosófica, ou especulativa. (1995: 168). A palavra que estava
associada a uma noção de conhecimento e compreensão referia-se a vídeo, que
possuía correlatos (em sânscrito vidya, palavra idêntica à palavra grega idé, de
grande importância para a filosofia de Platão).
312
De modo geral, lembra Gaardet, a visão era o principal sentido para os
indo-europeus, sendo muito comum na cultura dessa civilização as
representações dos deuses e das passagens descritas nos mitos em quadros e em
esculturas. (Id. Ibid: 169).
Caminhando com Quinet, o que podemos depreender da filosofia antiga
é a noção de raio visual, “o fogo do olhar projetado pela alma para fora de seu
corpo”. De acordo com o autor:
A não de raio visual não é simétrica àquela do raio luminoso
descrito em nossa era pela física. O raio visual é ele mesmo
luminoso por causa do fogo do olhar, que torna visível o “ato
mesmo da visão, em oposição aos olhos extintos do cego”. (...)
Nossa vista irradia, e toda fonte luminosa é capaz de ver.
(2004: 20).
Segundo essa concepção, olhar e luz, raio visual e raio luminoso se
confundem. O desejo erótico, desejo do belo, desejo de saber são conjugados
pela mediação do olhar. Essa conjunção do visível e do desejo se divorcia com a
ascensão da ciência moderna. A ótica geometral e a fenomenologia da
percepção retiram do campo visual o desejo e o gozo. O desejo de saber para
Aristóteles visava um escópico da contemplação, finalidade que a ciência
também se encarregou de destituir. É sintomático o fato de que a atividade do
filósofo foi associada a théorein (contemplar, examinar, observar, meditar), a
femeno, que vem de phaino (fazer brilhar, fazer aparecer, mostrar), que
remete a phaós (luz, luz dos astros). A esse respeito, Lebrun indaga: “por que
tantos pensadores escolheram como modelo do ‘saber’ a visão, e não a audição
ou o olfato?”. (1993: 21).
Sobre o sensível, Merleau-Ponty considera que "o espetáculo do visível
pertence ao tocar nem mais nem menos do que as "qualidades tácteis. É preciso
que nos habituemos a pensar que todo o visível é moldado no sensível". (1999:
147). Para Giordano Bruno, a vista é o mais espiritual de todos os sentidos e por
isso, seguindo a tradição neoplatônica do Renascimento, ele acreditava num
313
olhar revelador em busca da ascensão ao Bem supremo e à Luz (apud NOVAES,
1993: 17).
Chauí, referindo-se à supremacia do olhar perante os demais sentidos
(olfato, audição, tato), elenca algumas frases costumeiras como amor à primeira
vista, perspectiva, mas é claro!, espetacular. Tais frases e expressões “deixam ver”
que “o olhar usurpa e é usurpado por todos os outros sentidos do
conhecimento” (1993: 39) a tal ponto de Bosi considerar que “uma teoria
completa do olhar (sua origem, sua atividade, seus limites, sua dialética) poderá
coincidir com uma teoria do conhecimento e com uma teoria da expressão.
(1993: 66).
Com a descoberta do fundamento físico e anatômico da visão por Kepler,
em 1604, o olho é despojado do seu papel de causa do saber e desejo e é
reduzido a um dispositivo ótico. Toda a aura de mistério e fascinação
sustentada pelo olhar sob a égide da filosofia antiga cede lugar à física da visão,
a um espaço matematicamente construído.
A paideia é substituída pelo método, o olho da razão é símbolo da certeza.
Os erros e enganos da visão passam a ser corrigidos pela Dióptrica, a fim de que
o filósofo erre o quanto menos em suas investigações. A palavra olhar tem sua
origem no latim, oclare, que não significa simplesmente vídeo = ver, mas tem
sua referência em uma outra palavra latina, perspectio, que significa olhar para
todas as partes, em todas as direções, olhar com atenção. Nesse sentido, a noção
de um ser onividente, aquele que tudo olha e organiza a cena do mundo, é
posta de forma ainda mais incisiva, no momento em que estava em voga o
Renascimento, com Descartes formulando a sua noção de sujeito. A lógica
geometral que provém da ciência moderna supõe que o ato de ver sugere uma
trajetória que vai do eu em direção ao mundo:
314
Essa soberania do olhar não mais pelo viés do encantamento, mas pelo
campo geometral, vai fazer com que a psicanálise aí opere também uma virada
ontológica. O cogito do olhar cartesiano parte do entendimento de que o
homem olha e organiza a cena do mundo, é um onividente universal.
Retomando alguns princípios da filosofia antiga, Freud (com a pulsão escópica)
e Lacan (com o objeto olhar) retomam a temática do olho não como fonte da
visão, mas do desejo, da libido. Esse ponto de vista subverte os postulados da
ciência moderna. Entre eles, destaco: “eu vejo de um ponto, mas em minha
existência sou olhado de toda parte” (...) “para começar, preciso insistir nisto –
no campo espico, o olhar está do lado de fora, sou olhado, quer dizer, sou
quadro”. (LACAN, 1998: 104).
Essas idéias-estrela irão sustentar algumas subversões: não somos, por
assim dizer, espectadores privilegiados dos fenômenos que nos rodeiam, ao
contrário, um olhar que vem de fora e que nos captura de forma inexovel.
É na esteira da fenomenologia de Merleau-Ponty que Jacques Lacan vai
postular uma preexistência do olhar, um dado a ver, tomando o olhar como um
objeto objeto a, objeto de instauração da falta, do desejo. Para Sartre o olhar
surpreende, pega de surpresa, porque muda todas as perspectivas de um
mundo que ele mesmo organiza. (Id. Ibid.: 69).
Assim, nos programas televisivos o telespectador também é visto, é
fotografado pelas imagens que os fascinam. O olhar parece expor o nosso
interior ao exterior e estabelece uma relação de troca com o “objeto” que olha
previamente. É nessa esfera que o olhar do indivíduo é capturado, apreendido
ob
j
eto
p
onto
g
eometral
imagem
Figura projetada por Jacques Lacan
315
pelo olhar da imagem. Eis o momento em que ocorre a mediação, pois é o
instante do brilho, é a fascinação. É o instantâneo fotográfico, onde alguma
coisa se realiza na imagem. O olhar, sendo analisado sob esse aspecto, passa a
ser alguma coisa que está entre o olhar invisível e o ver visível. O que implica
num percurso inverso entre esses dois atos:
Figura projetada por Lacan
Assim, olhar – mais do que um simples fitar com os olhos – significa ser
apoderado, entrar no mundo invisível que as imagens nos oferecem. A esse
respeito, Merleau-Ponty nos diz que "o olhar, envolve, apalpa, esposa as coisas
visíveis. Como se estivesse com elas numa relação de harmonia preestabelecida,
como se as soubesse antes de sabê-las, move-se à sua maneira, em seu estilo
sincopado e imperioso". (1999: 130). Foi o que permitiu Lacan afirmar que
somos teleguiados por esse olhar que vem de fora. Um trecho do livro O mundo
de Sofia ilustra essa façanha do olhar:
De repente aconteceu uma coisa estranha. Uma vez, e por um
segundo, Sofia viu claramente que a ma no espelho piscava
os dois olhos. Assustada, Sofia recuou. Se ela mesma estivesse
piscando os dois olhos, como poderia ter visto a outra moça
piscar também? E mais: parecia que a moça no espelho tinha
piscado para ela como se quisesse dizer: “Eu estou vendo você,
Sofia. Estou aqui, do outro lado. (G
AARDET, 1995: 112).
Trata-se de um olhar que projeta os indiduos a se identificarem com o
que está sendo visto ou mostrado, em que o telespectador também é visto, está
na qualidade de vitrine. A televisão captura o olhar do telespectador, já que a
olho quadro
objeto
luz ou olhar
tela
316
narrativa concebe a visão como meio de acesso ao mundo. Fonte de percepção
sensível, é o olhar que organiza a cena dos programas.
Segundo Lacan, o olhar surge quando o sujeito encontra-se ofuscado por
esse foco de luz, oriundo da tela refletora do Outro. Essa tela pode ser o
espelho, uma pessoa, ou qualquer coisa que possa desencadear esse brilho
capaz de despertar um altovel de deslumbramento. Para Nasio,
do mesmo modo que o inconsciente se atualiza nas falhas da
linguagem, ele também pode emergir através das falhas
promotoras pela visão e é, justamente, a esta falha reveladora do
sujeito inconsciente que se dá o nome de fascinação. Ela consiste
nesse brilho intenso capaz de convergir em si mesmo toda a luz,
deixando na penumbra as outras imagens e fazendo desaparecer
momentaneamente o mundo imaginário. (1999: 34).
Ainda para Nasio, “estar fascinado significa viver a experiência de se
confrontar com a imagem fálica, expondo-se como puro brilho. Uma vez que o
mundo é uma tela, é na tela do Outro que essa descoberta deve ser feita. É o
Outro que reflete as imagens” (Id. Ibid.). A fascinação constitui a experiência de
confronto com uma imagem portadora do gozo na forma mais pura. Lacan
designa por semblant essa imagem que encobre o gozo, ocultando-o ao mesmo
tempo em que o revela de forma luminosa. Já que o gozo não existe enquanto
tal, exatamente por isso não se revela. E não se revela porque a tela está lá,
desde sempre barrando, fazendo mediação. O olhar que nos antecede parece
comandar a cena.
Tomando emprestadas as considerações de Zizek sobre cinema, o texto
nos oferece alguns elementos para ajuizarmos sobre um olhar precedente:
(...) o cinema é a arte de tornar visível o invisível. Não são
assim, também, feitos os sonhos? Também para "exibir" o
inconsciente não criamos uma trama de imagens e palavras
quase inefáveis? Talvez não fosse equivocado dizer que o
cinema nos aproxima de nosso pprio desconhecimento, de
nossa própria divisão. Como os sonhos, o cinema vive de
associações, de condensações, de metáforas e metonímias. Não
seria, talvez, o cinema, como o sonho, um encadeamento de
317
imagens e emoções que tem como efeito um sujeito? Não são
dos estrangeiros sentimentos e imagens de nossos sonhos que
extraímos enigmas repletos de nuances? Onde os sonhos
poderiam se justapor à passividade que nos é imposta, a não
ser neste tempo e espaço impensável entre os sonhos e as
imagens de um filme?
A associação e o encadeamento de
imagens possuem, por si sós, um poder de encantamento
enigmático, deformado, cuja realidade é, às vezes, mais realista
do que a que vivemos. As nossas mais ocultas e veladas marcas,
nossos desejos mais inconfessáveis fervilham nas telas do cinema.
Muito bem, o cinema pode ser a tradução de nosso desejo mais
secretamente inconsciente. Podemos, no cinema, como nos sonhos, ser
"sonhados". É verdade que nos emocionamos, que acreditamos na
realidade de uma ficção, que refletimos de forma especular nossos
desejos nas imagens que nos são impostas. (1999: 32). [grifos meus].
Os mesmos efeitos provocados pela imagem de cinema o são também
pelas imagens da TV. A mediação exercida está, como disse Xavier, “entre o
aparato cinematográfico [no nosso caso, televisivo] e o olho natural, onde existe
uma série de elementos e operações comuns que favorecem uma identificação
do meu olhar com o da câmera, resultando daí um forte sentimento da presença
do mundo emoldurado na tela, simultâneo ao meu saber de sua ausência”.
(2003: 35). Essa identificação do meu olhar que é olhado está irremediavelmente
ligada ao meu íntimo, aos meus desejos inconfessos. A assistência diária aos
jornais, reality shows, docudrama tem como desculpa mais fácil a necessidade um
saber sobre um mundo recortado pela TV.
Xavier também assegura a existência de um olhar antecedente. Segundo
ele:
Discutir essa identificação e essa presença do mundo é,
primeiro lugar, acentuar as ações do aparato que constrói o
olhar do cinema. A imagem que recebo compõe um mundo
filtrado por um olhar exterior a mim, que me organiza uma
aparência das coisas, estabelecendo uma ponte mas também se
interpondo entre mim e o mundo. Trata-se de um olhar
anterior ao meu (...) aceito e valorizo o olhar mediador do
cinema porque as imagens que ele me oferece têm algo de
prodigioso (...) .(Id. Ibid.: 35-6).
318
Para o autor, o usufruto desse olhar privilegiado propicia a condão
prazerosa de ver o mundo e estar a salvo, “ocupar o centro sem assumir
encargos. A prinpio, estou presente, sem participar do mundo observado”.
(Id. Ibid.: 36). O olhar desempenha, dessa forma, funções estruturantes no
universo midiático, que derivam de sua entronização e potencializam a cultura
visual. Segundo Zizek,“o mundo das imagens e das ficções é, também, o
mundo das contingências. A realidade e a fantasia ( ), com as quais nos
iludimos e deixamos o cinema nos iludir, são importantíssimas. Mas não as
esgotam. A realidade e a fantasia são, como já dissemos, ficções, efeitos de uma
Ordem Simbólica que nos ultrapassa e do objeto que a descompleta.
A força didática dessas observações foi levada em conta para avaliar o
que está implicado na estrutura dos programas que tanto nos fascinam e
seduzem, não abdicando da idéia que eles são ficções com as quais almejamos
ver cumpridas as promessas de acesso a um “mundo real”, saturado pela
informação e pelo saber. As prioridades desse saber são definidas por aquilo
que sacia a fome que temos do mundo – expressão de Khel (2002). (Fome de
saber quem será o próximo eliminado no Big Brother Brasil, fome de saber se o
denunciado no Linha Direta foi encontrado e punido, e assim por diante).
O olhar assume, assim, posição central na constituição de um imaginário
que migrou para a tela. É ele o anfitrião que conduz seu hóspede para lhe
mostrar os objetos da casa, é ele a ponte privilegiada que provoca a mediação
televisiva. Novamente, nos voltemos à dimensão imaginária.
***
7.2 A EMERGÊNCIA DO IMAGINÁRIO TECNOLÓGICO
TENTO AQUI, EM LARGOS TRAÇOS, mostrar a realização de uma experiência
que cintila no horizonte do século XIX onde o olhar assume, em definitivo, o
lugar de protagonista. Seja qual for a perspectiva que adotamos para mirar a
paisagem deste século iremos captar, invariavelmente, um indisfarçável traço:
migrações, sofisticação tecnológica, transportes, luz a gás, um novo tempo
319
discursivo para as ciências, novos modos de apreensão subjetiva, alteração das
experiências individuais e materiais. A literatura descreve, com riqueza de
detalhes, o espírito do tempo; Baudelaire é o expoente que nos conduz à
aventura da modernidade neste período. Nas suas duas obras clássicas, Sobre
modernidade e Flores do mal estão a essência do modus vivendi do XIX. Pondo sob
suspeita a noção de progresso, muito em voga à época, Baudelaire exortou os
seus contemporâneos a pensarem a modernidade, orquestrada pelo
desenvolvimento tecnológico, como transitória, fugidia e contingente e a
apreenderem algo de eterno no presente, marcado por rápidas transformações.
Edgar Allan Poe, em O homem da multidão, aponta para um homem que é só
murmúrio, sem rosto definido. É nesse cenário descrito por Baudelaire e Poe
que se ocorrem transformações significativas onde o Olhar passa a orquestrar,
por meio de recursos tecnológicos, a cena humana.
Nicolau Sevcenko compara as principais mudanças tecnológicas dos
últimos tempos à dinâmica da montanha-russa, dividindo-as em três momentos
capitais, em acordo com os três movimentos do brinquedo. A primeira fase
estaria ligada à subida, à “ascensão contínua, metódica e persistente que, na
medida mesma em que nos eleva, assegura nossas expectativas mais otimistas,
nos enche de orgulho pela proemincia que atingimos e de menoscabo pelos
nossos semelhantes, que vão se apequenando na exata proporção em que nos
agigantamos”. (2001: 14). Para ele, essa fase compreende o período do século
XVI até meados do XIX, momento de incontestável desenvolvimento
tecnológico, onde transitam novos meios de transporte, onde os meios de
comunicação passam a ser conectores indispensáveis. A civilização européia
consegue se consolidar como o berço do saber, do poder e da acumulação de
riqueza. O lema “ordem e progresso” anima todo o sonho. A segunda fase, diz
Sevcenko, refere-se à queda vertiginosa da montanha, onde perdemos as
referências do espaço, das circunstâncias ao nosso entorno e do controle das
faculdades conscientes. Essa fase concerne à chamada Revolução Científico-
320
Tecnológica, ocorrida ao redor de 1870. É a fase da eletricidade, das primeiras
usinas hidro e termelétricas, dos derivados de petróleo (que deram origem aos
motores de combustão interna e aos veículos automotores), das novas técnicas
de prospecção mineral, dos altos-fornos, das fundições, das usinas siderúrgicas
e dos primeiros materiais plásticos, dos trens expressos e aviões, do telégrafo
com e sem fio, do rádio, dos gramofones, da fotografia e do cinema. Os parques
de diversão surgem também nesse período. A cultura do entretenimento tal
como experimentada atualmente é, igualmente, fruto dessa época. A terceira e
última fase, para Sevcenko, é a do loop, da síncope final e definitiva, da
aceleração precipitada, seria a etapa do tempo presente, assinalada por um
novo surto dramático de transformações, a Revolução da Microeletrônica: “ a
escala das mudanças desencadeadas a partir desse momento é de uma tal
magnitude que faz os dois momentos anteriores parecerem projeções em
câmera lenta”. (Id. Ibid.: 16).
Por que o amparo na descrição de Sevcenko? Porque extraímos desse
momento o sucesso fulgurante do Olhar, em sua feição tecnológica, como objeto
a-mais-do-olhar . É, na aurora da Revolução Científico-Tecnogica, que
novas dimensões do social e da subjetividade se ajustam às demandas forjadas
com a experiência maquínica. O olhar assume aí papel capital. Impactando
primeiramente sobre os potenciais produtivos do sistema econômico,
73
e, em
seguida, como num efeito dominó, sobre a estrutura da sociedade, as mudanças
galopantes ocasionadas pela Revolução do século XIX atingem nossos modos
de percepção e de estar no mundo: “alguns casos exemplares podem ajudar a
compreender como ocorre esse processo que envolve mudança tecnológica e
73
Essas incitaram o aumento da capacidade de produção e de consumo, multiplicando riquezas,
mercadorias e capitais; galvanizaram a criação de movimentos e partidos políticos de natureza
operária ou de partidos multiclassistas, de massa, voltados para a representação dos interesses
de amplas camadas identificadas pela sua condição de assalariadas ou dependentes da venda
de sua força de trabalho.
321
alteração da percepção e da sensibilidade, com efeitos diretos sobre a
imaginação”. (Id. Ibid.)
Cada vez mais dependentes de máquinas, passamos a ter outros
vínculos com o cotidiano ordinário que se transfigura em escala colossal. Aqui
já viceja uma questão subterrânea: nos espaços urbanos que se agigantam,
povoados por metrôs, bondes, motocicletas, somos medidos e mediados por
sistemas de fluxos, somos signatários das cláusulas que compõem o estatuto do
sujeito que finca raiz em novos modos de comunicação, onde não estão mais em
vigor, pelo menos do ponto de vista dos nculos sociais e da identidade, as
qualidades humanas, mas um modo de ostentar objetos simbólicos, modos de
falar, jeito de se comportar (a moda irrompe nesse momento). O visual e o
visível são a ponta de lance para essas novas relações:
A ampliação do papel da visão como fonte de orientação e
interpretação rápida dos fluxos e das criaturas, humanas e
mecânicas, pululando ao redorirão provocar uma profunda
mudança na sensibilidade e nas formas de percepção sensorial
das populações metropolitanas. A supervalorização do olhar,
logo acentuada e intensificada pela difusão das técnicas
publicitárias, incidiria sobretudo no refinamento da sua
capacidade de captar o movimento, em vez de se conectar,
como era obito tradicional, sobre objetos e contextos
estáticos. (Id. Ibid.: 80).
São francamente conhecidas as inúmeras divisões que foram feitas sobre
os estágios da comunicação, entre elas a de Mcluhan. Para ele, a sociedade
tradicional, a rural, funda-se na oralidade, construindo um ambiente acústico,
auditivo, marcada por rituais que acentuavam o presente, a simultaneidade e a
riqueza de cada instante. A imprensa chegou para mudar, em definitivo, a
matriz de linguagem que dava liga às sociedades tradicionais. O suporte visual,
em escala linear, cultivando valores abstratos, racionais, hierárquicos, projeção
para um futuro, torna-se característica primordial da era impressa, com o olhar
desempenhando papel importante. Mas é a Revolução Eletro-Eletnica que
confere à visão um outro patamar mais alargado:
322
O recente advento das técnicas eletro-eletrônicas reformulou
esse contexto ao atribuir um novo papel ao olhar, não mais
estático como aquele condicionado pela imprensa e pela
perspectiva linear do Renascimento, mas um olhar agora
onipotente e onipresente, dinâmico, versátil, intrusivo, capaz de
se desprender dos limites do tempo e do espaço, como aquele
da câmera de cinema. A esse olhar alucinado, os recursos
eletro-eletrônicos acrescentaram os potenciais do som
amplificado e distorcido, repondo ao conjunto os efeitos de
simultaneidade, de descontinuidade, da interatividade de
fragmentos autônomos, ademais da conectividade táctil de um
mundo invadido pelas multidões, pelos fluxos e pelas
mercadorias. (S
EVCENKO, op. cit.: 80).
É nesse momento que irrompe, segundo os teóricos da leitura, um novo
tipo de leitor, o leitor movente, fragmentado.
74
De acordo com Santaella, este
leitor nasce com o advento do jornal e das multidões; “é o leitor apressado de
linguagens efêmeras, híbridas, misturadas. Mistura que está no cerne do jornal,
primeiro grande rival do livro. A impressão mecânica aliada ao telégrafo e à
fotografia gerou esse ser híbrido, testemunha do cotidiano, fadado a durar o
tempo exato daquilo que noticia” (http://www.pucsp.br/pos/mostra/santaella.
Último acesso em 22 de janeiro de 2008).
74
Anterior ao leitor movente doculo XIX, predominava o leitor contemplativo, meditativo. Esse
primeiro tipo de leitor tem diante de si objetos e signos duráveis, imóveis, localizáveis,
manuseáveis: livros, pinturas, gravuras, mapas, partituras. É o mundo do papel e da tela. O
livro na estante, a imagem exposta, à altura das mãos e do olhar. Esse leitor não sofre, não é
acossado pelas urgências do tempo. Tendo na multimídia sua linguagem, e na hipermídia sua
estrutura, esses signos de todos os signos, estão disponíveis ao mais leve dos toques, num click
de um mouse. Nasce aí um outro tipo de leitor, revolucionariamente distinto dos anteriores.
Não mais um leitor que tropeça, esbarra em signos físicos, materiais, como era o caso do leitor
movente, mas um leitor que navega numa tela, programando leituras, num universo de signos
evanescentes, mas eternamente disponíveis, contanto que não se perca a rota que leva a eles.
Não mais um leitor que segue as seqüências de um texto, virando páginas, manuseando
volumes, percorrendo com seus passos a biblioteca, mas um leitor em estado de prontidão,
conectando-se entre nós e nexos, num roteiro multilinear, multi-seqüencial e labiríntico que ele
próprio ajudou a construir ao interagir com oss entre palavras, imagens documentão ,
músicas, vídeo etc.
323
Ainda segundo Santaella, com a sofisticação dos meios de reprodução,
tanto na escrita quanto na imagem, com a reprodução fotográfica, os espaços
urbanos são inflacionados de signos. O leitor do livro, leitor sem urgências, é
substitdo pelo leitor movente. Para a autora isso ganha ainda mais
intensidade com o advento da televisão: imagens, ruídos, sons, falas,
movimentos e ritmos na tela se confundem e se mesclam com situações vividas:
“Onde termina o real e onde começam os signos se nubla e mistura como se
misturam os próprios signos”:
A vitória da imagem é o resultado de uma ideologia
oculocêntrica do mundo, aquela que, já entre os bizantinos, fez
a vitória da iconofilia sobre a iconoclastia. Depois disso, inscrito
na história potica de Bizâncio, o desequilíbrio tornou-se cada
vez mais grave, e até afogou a palavra como meio de
comunicação. Uma tendência sustentada em nossos dias pela
tecnologia, que quer racionalizar tudo pela medida e pelo
controle visual, e que chegou a aprisionar o som, em toda a sua
riqueza e suas nuances. (B
AVCAR, 2005: 151).
Nesse mundo povoado por signos o mercado se impõe como o grande
agenciador do código visual. Guy Debord, em obra aqui já referida, aponta para
isso. Denunciando a mediação por imagens na sociedade contemporânea,
Debord (o espetáculo não é um conjunto de imagens, mas uma relação social
entre pessoas, mediatizada por imagens), aponta para a capilaridade virulenta
do espetáculo, porque capaz de recobrir o mundo, onde a mercadoria, converte
tudo em imagem; ela, a imagem, se infiltra insidiosamente nas nossas formas de
concepção do mundo e de nós mesmos:
O espetáculo é o momento em que a mercadoria ocupou
totalmente a vida social. Não apenas a relação com a
mercadoria é visível, mas não se consegue ver nada além dela: o
mundo que se vê é o seu mundo. A produção econômica
moderna espalha, extensa e intensivamente, sua ditadura. Nos
lugares menos industrializados, seu reino já está presente em
algumas mercadorias célebres e sob a forma de dominação
imperialista pelas zonas que lideram o desenvolvimento da
produtividade. (D
EBORD, op. cit.: 30-31).
324
Tendo o olhar como um dos seus tentáculos, por reunir os atributos para
a realização do espetáculo, o novo tempo inaugurado com o estatuto da
imagem eletrônica, delineia um campo de ação em que as experiências
individuais e sociais são resultado dos rearranjos de uma cultura visual
emergente. Na supremacia imagética, onde não é mais preciso corpos in
praesentia, a imagem ótica é utilizada para manipular fantasmas e desejos, com a
aparente vantagem de dispor de expressões fundamentais: audição e visão.
Houve um investimento maciço em canalizar todo o mecanismo social para o
mundo de imagens: “portanto, mais que mera divero ou entretenimento, o
que essa indústria fornece, ao custo de alguns trocados, são porções
rigorosamente quantificadas de fantasia, desejo e euforia, para criaturas cujas
condições de vida as tornam carentes e sequiosas delas”. (SEVCENKO, op. cit: 81).
Esse investimento ocorreu não por uma fragilidade do Olhar, não porque
ele seria capaz de aceder facilmente aos ditames do mercado, mas, antes, o
contrário, é no Olhar que está a fonte dos desejos e da fantasia de que o
mercado procura para se alimentar. É ele, repetindo Merleau-Ponty, o nosso
reitor. O que justifica porque ele se tornou um neovalor para o mercado. Ele
desencadeou novas formas de articulação e condensação dos desejos
individuais e coletivos:
a sofisticação das habilidades do olhar, embora decorresse de
um treinamento imposto pela própria realidade empida
mudança, acabava trazendo, por conseqüência, a possibilidade
de ampliar os horizontes da imaginação e de instigar as mentes
a vislumbrar modos mais complexos de interação com os novos
potenciais. (S
EVCENKO, 2001: 66).
Todas essas observações nos reenviam para as discussões sobre o natural
e o artificial, o real e o irreal. Herdeiros da concepção henicao nos
conformamos com os novos modos de vinculação, denunciamos a morte do
interlocutor, acusamos os padrões do mercado. Em absoluto, a queixa não é
325
indevida, ela é investida de razões elevadas que tentam preservar o humano,
mas o que é o humano nessa lógica?
O paroxismo a que esta situação chegou é abalizado no livro de Neal
Gabler, Vida, o filme: como o entretenimento conquistou a realidade. O autor
demonstra com fôlego histórico como o entretenimento tornou-se em indústria
na América e de lá se disseminou pelo mundo. Ele questiona quais seriam as
chances de a ficção continuar competindo com as histórias da vida real. O livro
é partidário da tese segundo a qual o entretenimento, principalmente por meio
do cinema, da televisão e das revistas de celebridades, superou e moldou a
realidade, convertendo o homo sapiens em homo scaenicus.
A conseqüência disso é que a ficção passa a dominar a vida real. Como o
rei Midas, a ficção narra as coisas do mundo, transformando-as em
entretenimento. Onde está o momento em que quase tudo é motivado pela
lógica do entretenimento dos moldes em que o vivenciamos hoje (como
indústria e não como umnero discursivo)? Esse momento é exatamente o
mesmo que Sevcenko descreve, gestado no crepúsculo do século XIX:
O advento das linguagens audiovisuais marcava a
possibilidade renovada para a civilização de massa simular a
dimensão primária do habitar, da comunicação oral cit et nunc,
do entretenimento face a face, do espetáculo ao vivo. O salto
tecnológico investia seus recursos num aumento progressivo
dos efeitos de realidade, em meios capazes de promover um
envolvimento dos sentidos mais amplo e profundo. As
legendas do cinema mudo se dissolviam na continuidade da
visão, deixando aparecer dessa mesma visibilidade o poder da
voz, os tons afetivos do diálogo, os ruídos de fundo da cena; a
orquestra que executava o acompanhamento musical do filme
desaparecia, traduzindo-se no prazer interior da trilha sonora,
na emotividade de um olhar musicalizado, de uma presença
sinestésica, extraordinariamente ilusória. (A
BRUZZESE, op. cit.:
64).
Gabler situa historicamente a escala do entretenimento também nessa
época: a disputa presidencial entre John Quincy Adams, um intelectual, e
Andrew Jackson, um rude herói militar, em 1828, foi um marco decisivo para
326
que o entretenimento prosperasse. A vitória de Jackson inaugurou uma nova
era, submergindo de uma vez a combalida aristocracia cultural americana.
Tablóides coloridos, romances e almanaques passaram a ser bens simbólicos
cuja circulação dava o tom do novo ambiente cultural do país. Jornais,
manchetes apelativas, fotos com dimenes cada vez mais alargadas: a cultura
popular passa a orientar a produção de bens simbólicos. Havia uma concepção
de que os americanos não eram infensos à alta cultura, eram desconhecedores
da “civilização superior”.
A ascensão da classe média, que aspirava à fidalguia, e a decadência da
aristocracia fazem da primeira a guardiã da cultura. Para a aristocracia da
cultura, os novos entretenimentos populares subvertiam negativamente as
formas de apreensão cultural: se antes eram gratificação passam a ser
edificação, se outrora transcendência, agora transigência e reação e não
contemplação, escape em vez de submissão às instruções morais. Uma das
fuões da cultura, que era a de promover o ekstasisdo grego, deixar que
saiamos de nós mesmos –, passa a ser inter tenere, do latim, puxar-nos para
dentro de nós mesmos (de nossas emoções e sentimentos). A arte, fundada na
invenção, dá lugar para o entretenimento, fundado na convenção. Em vez da
religião, era o entretenimento o mais novo ópio do povo.
A questão religiosa também é solicitada para justificar o florescimento do
entretenimento no solo americano: ao passo que na Europa a religião se opunha
veementemente ao entretenimento, ao divertimento, a tradição americana, ao
contrário, vai incentivar a liberação das paixões e das emoções. O
protestantismo evanlico americano era fortemente pessoal e não hierárquico,
vernáculo, expressivo e entusiástico. As sensações tinham de ser expressivas e
expressadas. Talvez é possível traçar um paralelo entre o que Sodré apresenta
em As estratégias sensíveis, aqui já mencionada, no que diz respeito à
prepondencia do sensorialismo, dos afetos, da estesia em sentido amplo.
327
Entretenimento e ficção passam a ser, dessa forma, o nexo prioritário que
dá liga às formas de transmissão da contemporaneidade. A televisão se tornará
o veículo privilegiado dessa experiência, porque fundada no visual (principal
produção da sociedade moderna) e divulgada em escala gigantesca. (As vitrines
alcançam o seu aspecto monumental nesse momento, pensadas
cuidadosamente para fornecer o máximo de estímulos visuais, a moda crescente
de máquinas fotográficas tipo caixote [p.56]). Segundo Gabler:
Numa espécie de testemunho da ascendência do olho, por volta
do final do século XIX Sahkespeare deixou de ser popular
porque, como resumiu o New York Times, era um anacronismo
oral numa sociedade que optava pelo visual. O que levou o
editor e crítico E. L. Godkin a concluir, pesaroso, que os Estados
Unidos tinham se tornado uma “cromocivilização”, na qual as
reproduções visuais expulsaram a cultura autêntica”. (Id. Ibid.:
57).
Significativo quinhão da crítica lançada contra esse novo cenário se
concentra no par escrita versus imagem, sob o crivo de um olhar que vê na
segunda uma ameaça ao intelecto, visto que a apreensão da imagem não
exigiria elaborações mentais mais consistentes. A cultura escrita, a que daria,
segundo críticos da envergadura de Neil Postman, uma estatura elevada à
civilização, pois só as palavras expressam idéias, (Mcluhan teria asseverado:
Printed Oriented Bastards) se vê ameaçada; mais que isso, se vê derrotada pelo
império das imagens. Tais críticas, como se testemunha, não chegaram a lugar
nenhum, não tiveram um futuro promissor, pois se sairmos da superfície e
emergirmos um pouco mais a fundo na discuso poderemos verificar, pelo
menos hoje, que a televisão se funda em matrizes de linguagem em que a
oposão escrita versus imagem não encontra sentido. Origiria da Babel
lingüística, com migrações dos suportes impresso, oral e imagético, a TV criou
uma língua própria, uma sintaxe peculiar. Embora toda a literatura devotada
ao tema tenha dado primazia à imagem (para Eco, as imagens não podem
competir com as vantagens operativas da linguagem verbal, porque isso
328
significaria que, para designar uma casa, teamos de filmá-la antes). Tal
tradição está solidamente amarrada a um argumento de fundo: a inadequação
das linguagens da imagem em falar a língua dos filósofos e dos mitos,
argumenta Eco (1993).
Apesar de não ser esse o cerne das críticas contemporâneas, o ataque à
emergência do visual, sob esse prisma, tem uma reserva de atualidade. Sartori é
um dos que ataca a televisão por essa via, considerando que o veículo é o
exemplo mais acabado do anti-raciocínio no século XX. Mais do que
empobrecimento ou esvaziamento dos valores e bens supremos do homem, a
televisão foi um emblema de uma cosmologia, nas palavras de Gabler, em que o
entretenimento era o governante: o que significa dizer que a nova consciência
não era uma função da televisão, nem mesmo das imagens, e sim do
entretenimento (op. cit.: 59):
Não importa o que ela mostre, ou de que ponto de vista,
escreveu Postmam, falando sobre a televisão, “a suposição
açambarcante é que ela está ali para nos divertir e dar prazer.
Transformada no meio primordial mediante o qual as pessoas
se apropriavam do mundo, a televisão disseminou uma
epistemologia na qual toda e qualquer informação, não obstante
a fonte, era forçada a se transformar em entretenimento; a era
da tipografia cedendo lugar à era da televisão e mudando nossa
forma de pensar.
(Id. Ibid. 58).
***
7.3 NARRATIVAS TELEVISIVAS: DESTINAÇÃO FINAL DA FICÇÃO E DO
ENTRETENIMENTO
Essa mudança nas formas de apreensão nos reenvia para o papel da TV
na contemporaneidade. Se a principal atividade no meio televisivo consiste em
ver, como se cumprem com as três promessas – entreter, informar e educar –
anunciadas pelo veículo na aurora de sua circulação? Para Vilches, das três
promessas anunciadas pela televisão a única que fracassou foi a de educar.
(2001: 170). Muitas expectativas foram criadas em torno do veículo quando de
329
sua implantação, mas a estrutura centralizada da televisão e o uso social a
levaram pela via do entretenimento, completa Vilches:por isso, a relação da
televisão com a sociedade constitui-se mediante a figura do espectador, não
mediante a figura de um usuário do conhecimento, por exemplo”. (Id. Ibid.:
170).
Espectador e platéia são coordenadas de uma mesma equação. A TV não
surge para atender a um usrio do conhecimento, mas para se relacionar com
a massa de pessoas que são sua audiência e a representar seus desejos e
aspirações sociais mais significativos. Donde a sua procura para agradar o
telespectador, para se fazer agravel (não cabe ao Jornal Nacional ser chato ou
enfadonho; o melodrama, como vimos, precisa marcar a estrutura das
narrativas). É imperioso que ela explore ao máximo suas características
prazenteiras (através dos procedimentos de ficção, através dos apresentadores
sorridentes, carismáticos e atraentes, por meio das histórias melodramáticas),
pois na gica do capital-informação o entretenimento é o mentor de nossas
aspirações,que encobre desejos e fantasias mais ocultos. O telejornalismo, como
vimos, deve atender a esse critério.
Todos os programas estariam, a esse modo, condenados a tecerem seus
discursos sob a égide do entretenimento e do ficcional. As análises sinalizaram
para isso, posto que a demarcação entre ficção e realidade no campo televisivo
soa como triste eloqüência, pois elas não apenas se cruzam, como se apóiam
mutuamente e, mais do que isso, se imbricam indistintamente. Já que as
fronteiras entre ficção e realidade não se sustentam sequer com a ameaça de
fraco assopro, o que conferiria particularidade aos relatos jornalísticos, onde
toda uma tradição nos ensina, e, normalmente, aderimos sem muitas
resistências, que as narrativas tecidas pelo jornalismo estão em sintonia fina
com o acontecido, com um dado prévio? Como vimos, a idéia de pensar o
jornalismo como ficção parece ferir de morte o estatuto sobre o qual ele se
sustenta.
330
A intenção não é jogar a criança junto com a água do banho. Sou
partidária da idéia de que no acervo de enunciados televisuais o jornalístico tem
sua marca registrada, possui singularidade face à multiplicidade de formatos,
ostenta uma identidade (ainda que suposta ou ideal). Porém, saio plenamente
convencida de que a diferença o está na natureza tampouco na forma do
relato, mas sim na atribuição que lhe é dada: a de eticamente firmar contratos
com o público, calcado no ideal de verdade e transparência dos seus relatos.
Numa sociedade em que o princípio da transparência, herdado da ideologia das
Luzes, tornou-se condição sine qua non para a construção da democracia, o
jornalismo torna-se termetro vital para medir os valores modernos das
sociedades. A especificidade do relato jornalístico é da ordem do, digamos,
“compromisso social”.
Como vimos nas análises, Mais Você, Big Brother Brasil, Fantástico, ou
qualquer outro programa televisivo não tem o dever de informar o público
(ainda que o façam), mas o Jornal Nacional e o Jornal Hoje precisam assumir tal
responsabilidade. Dilema semelhante é enfrentado pela história. Uma vez
apontadas as semelhanças que ela guarda com o discurso literário e ficcional,
estudiosos passaram a especular qual seria o seu objeto específico. A história,
disse Machado de Assis, é "volúvel, com caprichos de dama elegante". Pois há
algum tempo essa dama elegante vive um dilema: como se deixar levar a outros
caminhos sem perder o próprio? Será que, se a história aceitar seu lado volúvel
e renovar parcerias, o rumo não fica mais claro? Questionamento que estendo
para o jornalismo.
331
7.4 UM BREVE AJUSTE DE CONTAS COM O JORNALISMO
75
UMA ÚLTIMA SÉRIE DE OBSERVAÇÕES SOBRE O JORNALISMO nos trará de volta
ao nosso objetivo inicial. No que tange aos regimes de ficção e entretenimento,
que se faça justiça: não foi o telejornalismo o responsável por sua instauração,
mas com ele ganha mais brilho e força até tornar-se indispensável. Em Werneck
Sodré (1983) e Bahia (1990) encontramos relatos que versam sobre a presença de
assuntos considerados de entretenimento ou ficção na imprensa brasileira
desde 1812. O Correio Brasiliense e o Ensaios de Literatura foram os primeiros
jornais a publicarem as chamadas notícias leves, extratos de romances de
viagens, trechos de autores clássicos. A profissionalização do jornalismo no
século XIX faz com que esses temas fiquem circunscritos a editorias específicas.
Essa vocação do jornalismo corrobora a afirmativa de que ele sempre
teve os pés fincados no mundo do entretenimento, ainda que fosse apenas para
noticiá-lo. Como afirmamos, é o ato de fundação da atividade jornalística que
confere a ela a singularidade: filho legítimo de duas Revoluções, a Industrial e a
Francesa, o jornalismo se firma na sociedade como uma prática ligada aos ideais
de emancipação, transpancia e modernidade.
A modernidade econômica, que dilapidou o empreendedor burguês,
andou em paralelo com a modernidade política, formada com a ascensão das
democracias republicanas. O jornalismo aí encontra o seu caminho.
Sintetizando os ideais da modernidade (vontade de verdade, transpancia), a
atividade jornalística é a melhor expressão de uma sociedade sequiosa por
partilhar e tornar públicos os eventos:
Neste processo, a Revolução Francesa opera uma ruptura
dramática e contraditória, sendo preciso, aliás, distinguir seus
efeitos a curto e a longo prazo. No nível imediato, há a
desconfiança de que os “interesses privados”, ou particulares,
oferecem uma sombra propícia aos complôs e às traições. A
75
A fisionomia deste item é tributária, em larga medida, das colaborações franqueadas por
Eugenio Bucci durante o exame de qualificação. Para ele, era necessário que eu demarcasse que
a diferença do jornalismo na TV estava no seu horizonte ético-moral.
332
vida pública postula a transparência; ela pretende transformar
os ânimos e os costumes, criar um homem novo em sua
aparência, linguagem e sentimentos, dentro de um tempo e de
um espaço remodelados, através de uma pedagogia do signo e
do gesto que procede do exterior para o interior. (Id. Ibid.: 18).
Era o momento de desmoronamento do império do segredo, como disse
Marcondes Filho (2001) (antes de domínio da Igreja). As desigualdades sociais
nãoo mais justificadas pela chave do divino e do natural, o que favorecia a
servidão, e passam a ser vistas como domínio e exploração de homens sobre
outros homens. A ascensão da burguesia aspira à transparência, tudo deve ser
exposto, mostrado, denunciado. Livros, jornais e publicações em geral são a
principal moeda de circulação para a incipiente esferablica. É nessa
atmosfera que o jornalismo se autolegitima, cuja arma principal é um discurso
fundamentado em sua função prática e no valor ético-moral que essa função
traz implícita Sob a salvaguarda da função de “interesse público”, fundamental
para a existência das sociedades democráticas, o jornalismo deve se mostrar a
serviço do direito à informação, do pluralismo. Todos os outros valores
subjacentes ao jornalismo - tais como liberdade de opinião, liberdade de
imprensa e liberdade de expressão – estão ligados ao ideal de interesse público.
A informação passa a ser um valor irrecusável da democracia.
Para Marcondes Filho, o jornalismo passa por três fases distintas: a
primeira corresponde ao período de 1789 à metade do século XIX e é chamada
de fase da iluminação (lança luz sobre o obscurantismo, serve de esclarecimento
político e ideogico). É a época do jornalismo político-literário. Famos um
ponto de parada nessa questão.
Podemos dizer que essa é a época áurea, a época de ouro do jornalismo.
É nela que se desenha um novo cenário em que a atividade jornalística não será
apenas dele um acesrio, mas sua substância essencial. Referimo-nos ao
nascimento da esfera pública burguesa, cuja genealogia foi cotejada pelo
sociólogo Jürgen Habermas em sua obra clássica, A mudança estrutural da esfera
333
pública
76
. Habermas demonstra como emerge no século XVIII um novo conceito
de opinião pública, oposta à opinião da humanidade outrora reinante. A opino
blica que emergia difere da primeira porque: 1) a primeira é irrefletida; 2)
não mediada pela discussão e pela crítica; e 3) passivamente inculcada em cada
geração sucessiva. A opinião pública moderna se pretendia em contraste: 1)
produto da reflexão; 2) fruto da discussão; e 3) reflexo de um consenso
ativamente produzido. Na primeira havia a prevalência de uma opinião que era
transmitida de pais e pessoas mais velhas, a partir de experiências e atos sem
vínculos entre si. Uma diferença crucial entre ambas, é que na opiniãoblica
pessoas partilham da mesma visão num espaço de discussão comum. As suas
principais características seriam: raiz secular, caráter metatópico e status
extrapolítico.
Investindo contra o Estado aristocrático, a burguesia via no público a
condição primordial para a governabilidade. Nessa nova concepção, a decisão
política é legítima se refletir a vontade da esfera civil, a opinião pública. A
‘publicidade’, no sentido de exposição ao público, deve ser procedimento
ordinário do Estado. A imprensa é o palco onde a publicização ganha força
expressiva. Essa fase define o espírito do jornalismo.
A segunda fase é a do jornalismo enquanto atividade especializada,
iniciada no século XIX que se beneficia com as inovações tecnológicas
emergentes: “a transformação tecnológica irá exigir da empresa jornalística a
capacidade financeira de auto-sustentação, pesados pagamentos periódicos
para amortizar a modernização de suas máquinas” (Marcondes Filho, 2000: 13).
A imprensa como negócio delineia plenamente a sua fisionomia em 1875.
A terceira fase compreende ao momento de imposição dos monopólios,
de sobrevivência ante governos totalitários e guerras. A indústria publicitária
desponta como uma nova forma de comunicação, disputando, vantajosamente,
76
Um dos trabalhos lapidares de leitura da obra de Habermas encontra-se na tese de Eugenio
Bucci (2002).
334
com o jornalismo o papel de mediação. O jornalismo entra em colapso, anito,
desnorteado sobre o seu papel e função, cada vez mais distante do ideal de
emancipação e de fio narrativo da coisa pública semeado no século XVIII. É por
isso que vários pesquisadores consideram que ele é a melhor síntese do espírito
moderno, pois reflete muito bem a aventura da modernidade: a decadência, o
niilismo reinante, a decepção com as promessas de emancipação do século das
Luzes, a crise da cultura, o malogro do projeto ocidental, o processo universal
de desencanto, tudo isso afeta o coração da atividade jornalística. Sem os pilares
dos ideais modernos, berço de seu nascimento, ele igualmente rui.
Essa mudança de modelo implicou na reestruturação dos modos de
produção do material jornalístico e na alteração de seus princípios e
propriedades. Em vez de público, o jornalismo passa a atender às audncias
(de leitores, de telespectadores, de ouvintes).
Tais discussões podem ser visualizadas em Jornalismo Sitiado
77
– um ciclo
de palestras e debates publicados em mídia eletrônica (DVD), que se se fez
acompanhar por um livro. No material, reflees sobre o papel dadia e os
desafios enfrentados por ela no século XXI, a defesa da liberdade de expressão e
do direito à informação, a mediação do debate público, a influência das novas
tecnologias no fazer jornalístico, a liberdade de imprensa, o poder da notícia e a
ética são assuntos explorados. Os participantes do ciclo demonstram, com
apaixonada austeridade, como a imprensa está sendo sitiada por interesses dos
grandes conglomerados empresariais, pela publicidade, pela internet e pelo
entretenimento.
77
Sob curadoria dos jornalistas Eugênio Bucci, jornalista, professor dos Estudos Avançados da
USP, e Sidnei Basile, diretor secretário Editorial e de Relações Institucionais da Editora Abril. A
série Jornalismo Sitiado é um módulo do programa Balanço do Século XX - Paradigmas do
Século XXI, produzido pelo Espaço Cultural CPFL e exibido pela TV Cultura. Para ministrar as
seis diferentes palestras, foram convidados renomados profissionais e estudiosos, como Lúcio
Mesquita (BBC Brasil), o espanhol Mauro Tascón (jornal eletrônico El País), Ricardo Gandour
(Diário de S.Paulo) e Nelson Blecher (Revista Exame).
335
Mesmo combalido, o jornalismo mantém idealmente a sua identidade. É
ela que articula a ordem ético-discursiva da atividade jornalística, conferindo-
lhe legitimidade para construir seu relato com base no relato alheio. Para
Gomes:
O jornalismo tem, entre outras, uma origem panfletária que
conclama à ação política, que congrega em torno de ideais e
mobiliza em direção a lutas. Se ele conserva esta veia, ainda que
muitas vezes só insinuada pela posição ideológica das empresas
jornalísticas, ela se revela no que aparece como evidente marca
das últimas décadas: a visada da crítica, da denúncia, da
vigilância, do apelo à justiça que lhe é vital. (2003: 15).
***
7.5 A FICÇÃO NA CADEIA SIMBÓLICA
A discussão sobre ficção e realidade, com o telejornalismo agora na mira
das observações, poderia ter com as justificativas acima seu definitivo porto de
chegada. Pensando nos programas analisados, a diferença, concordamos, está
no compromisso social do jornalismo. Mas há algo mais. Ainda não dei o passo
seguinte, a meu ver, essencial, em direção ao caráter ficcional dos enunciados
televisivos.
O segredo a ser desvelado da época das Luzes, que impulsiona a
publicização como condição sine qua non de uma sociedade livre, liberal,
acompanham o fazer jornalístico, imputando a ele o dever de informar dentro
de parâmetros éticos e morais. Mesmo sitiado, ele não pode e não deve abrir
o deste dever, porque perde sua força e deixa de ter sentido em uma
sociedade em que as informações vêm de diferentes lados. É esse dever que dá
lego para continuar sendo o titular do dever à informação, em meio à miríade
de dispositivos de comunicação. Todo o receituário ético da profissão se assenta
no princípio de que é dever do jornalista informar a sociedade, como vimos
acima:
Apesar de toda essa nova reconfiguração da sociedade e do
próprio jornalismo, o discurso desse último permanece quase
que totalmente o mesmo daquele adotado há duzentos anos
336
atrás. Ainda hoje, o interesse público é o horizonte de
legitimação da prática jornalística, bem como a noção de ser ele
(o jornalismo) a única mediação confiável entre a esfera civil e o
Estado. (G
OMES, 2003: 6).
Essa confiabilidade de que fala Gomes é da ordem discursiva, o que nos
faz sentir o mesmo drama da lenda de Sísifo em seu trabalho infindável, pois
quando conseguimos dar ao jornalismo um código próprio, esse código se
mostra ficcional, porque faz apelo ao ideal de verdade, e a verdade tem
estrutura de ficção. Tudo volta ao ponto inicial de nossas indagações.
Como sabemos, a verdade é a matéria-prima do trabalho do profissional,
a verdade primeira, a alethéia ambicionada, pois é “só partir dela que se pode
falar da justa medida para nossos costumes e instituições. É por isso, por uma
vontade de verdade, que o jornalismo se faz crítico, e é por uma carência que
ele se faz um discurso fundado na referencialidade: sempre testemunhando sua
palavra, sempre apresentando provas, ou ao menos simulando apresentá-las.”
(GOMES, op. cit.: 15).
Referir – um ato de remetimento ao mundo – é a prova no jornalismo que
“o ocorrido aconteceu”, atestado por testemunhas que viram o acontecido (caso
resgatemos a primeira anedota com a qual iniciamos este trabalho, veremos que
a força do testemunho pouco tem serventia) mas, como já dissemos, esse
ocorrido se sucede na cadeia discursiva que dá sentido às nossas vidas. De um
lado, fatos, acontecimentos, de outro, o relato desses acontecimentos. E, desse
lado, o jornalismo se institui “como um fato dengua que organiza as
hierarquias sociais” (GOMES, 2000: 19), organiza um dado a ver, e, ao organizar,
institui-se como ficcional porque proveniente do imaginário, imerso no
simbólico. Não há um cordão mágico ligando fatos a seus respectivos relatos,
como se fossem entidades absolutamente autônomas; o fato é o relato, portanto,
tem uma estrutura ficcional. O mundo que a televisão nos mostra não é um
mundo preexistente à espera de representação, mas é um mundo constitdo
pela forma como designamos as coisas (relembremos Kristeva: as coisas do
337
mundo? As coisas do mundo eu não sei, só sei das coisas da linguagem). As
narrativas televisivas estruturam eo sentido ao mundo e o telejornalismo é o
exemplo mor dessa operação. Pensar o mundo como absolutamente exterior e
independente, pronto para ser captado pela razão que o representa como tal,
pura e simplesmente, é considerar a referência como relação direta das palavras
com o mundo. Valores de verdade e significações, elementos cruciais ao
(tele)jornalismo (que muitas vezes recorrem ao apelo metafísico da realidade),
tecem sua trama na rede imagiria, pois não há nada na linguagem destinado
preferencialmente a realizar a tarefa de dizer o mundo. Mas a televisão o diz.
Como o diz?
Colocando-nos de acordo com o princípio que sustenta esta tese, a da
constituição do homem na/pela linguagem, algo se mostra no estatuto ficcional
dos telejornais: o papel do jornalismo como articulador e distribuidor do saber,
não apenas como aquele que detém as prerrogativas para ser o relator legítimo
do cotidiano, heraa de sua identidade oitocentista, mas como um agente
indispensável em um mundo que ostenta a troca vertiginosa de informações
como antecipação da falta: não é que aos sujeitos está exatamente faltando algo,
no caso o saber, é que o saber, a informação, se produz com tal intensidade e de
lugares tão diversificados, que aos sujeitos, vai faltar sempre. (FREITAS, op. cit.:
68). Como sair de casa em dia chuvoso, a cobertura da queda da bolsa de
valores, as novas técnicas de emagrecimento, a guerra contra o Iraque, a
recessão americana, as mil e uma maneiras de alcançar a perfeição física, são
informações que compõem o arco do saber contemporâneo, partilhado por
milhares de pessoas. Não acedo à conceão de que informação seja diferente de
saber, pois na contemporaneidade a primeira se converteu na segunda. Para
Sodré:
Pode-se observar, aliás, que o jornalismo – em especial, o
jornalismo dito de “qualidade” – tem assumido
progressivamente o controle do discurso tradicionalmente
mantido pelas ciências do homem sobre a vida social em todos
338
os seus aspectos, ainda que o jornalista não legitime o seu texto
por uma “posão epistemológica”. A maior parte da mitologia
comunicacional contemporânea é jornalisticamente veiculada.
(2002: 241).
Sodré nos lembra que, de forma crescente, o jornalismo se apodera de
procedimentos e métodos, antes utilizados por disciplinas como a sociologia: a
farta utilização de mapas, infográficos, tabelas, estatísticas etc., e, em
reciprocidade, as pesquisas acadêmicas orientam-se segundo os critérios da
informação jornalística. (Id. Ibid.: 241).
A imediatez e a onipresença da televisão nos saciam ao nos oferecer,
imediatismo do acontecido, demonstrando, como lembra Vilches, que é possível
uma transparência universal
78
da realidade. Mas, para o autor é necessário que
essa transparência tenha, paradoxalmente, uma reserva de ficção, visto que é
necessário que entre a televisão e o telespectador exista algo para ser
compartilhado, e a informação, colhida do registro da realidade, faz perder toda
a foa da intimidade e da diferenciação: “a informão representa também
uma forma de fascismo cotidiano. O mito da informação total pode convertê-la
em totalitária (...). essa televisão, que salta as fronteiras com um menu
voyeurista da informação, carece da condição essencial da comunicação, de que
haja algo para compartilhar. E o primeiro nível dessa condição é a identidade”.
(2003: 114). As histórias que se narram nas séries de TV nacional ou nas
comédiaso certo, segundo o autor, porque deixam espaço para vínculos. O
exemplo da TV italiana que ilustramos no segundo capítulo pode ser explicado
por essa chave. Assim, o (tele) jornalismo e outros enunciados televisivos
veiculam informões, amparando-se em recursos oriundos de vários registros.
78
É escusado dizer que a TV não possui mais o monopólio sobre essa transparência universal da
realidade, pois dividindo com a Internet, principalmente, o papel de distribuidora da
informação audiovisual: suportes e plataformas na rede armazenam grandes quantidades de
informação sonora e visual e permitem ao usuário acesso direto e, inclusive o intercâmbio de
produção de textos em tempo real, pelos navegadores e plataformas interativas on-line.
339
Segundo Queré, o jornalismo é prática discursiva institucional que se
forma nos entremeios da ciência e da ficção:
A informação é uma ciência-ficção. Não no sentido habitual
dessa expressão, que designa as obras de imaginação científica
que descrevem um estado futuro do mundo. Mas no sentido
de que a ele é subjacente uma estrutura mista, que combina
dois elementos: ciência e ficção, constatação e simulação,
descrão de fatos e relato. (1982: 157).
À luz das considerações de Quéré, Mota considera que à prática
jornalística está suposto um discurso estruturado por uma pragmática
heterogênea. Segundo ela, essa heterogeneidade está assentada em três
aspectos:
(1) Usa a pragmática da ciência, ao admitir para si a tarefa de
produzir conhecimento (informação). Os critérios de
competência são atribuídos pela sociedade, que confere ao
jornalista-narrador uma “credencial”, para que seu relato seja
legitimado. Esse discurso - próprio das sociedades modernas e
pós-modernas - é legitimador também do Poder, pois descreve
o que o Poder vê e faz. (2) Usa também a pragmática da
narrativa - que acolhe uma variedade de enunciados (de saber) -
. Os critérios que definem a competência do narrador e a
autoridade deste para ocupar os “postos” narrativos são-lhe
conferidos pela pragmática do relato. Quem o profere e a
sociedade/instituão que o adotao, portanto,
autolegitimados. Trata-se de um saber geralmente atribuído às
sociedades tradicionais. (3) O jornal produz, hoje, ciência-ficção.
(M
OTA, 1999: 35).
Ao pensar no discurso jornastico dessa maneira, Mota palmilha as
observações de Lacan sobre o discurso, realçando uma questão fundamental: a
conjugação de lugares dos discursos, cujas articulações fundadas na linguagem
amarram e configuram os laços sociais, renovam e mantêm contratos. Trata-se
de laços porque possuem a função de anodamento, amarração, entre real,
simbólico e imaginário.
Tal articulação entre real, simbólico e imaginário é o que garante, segundo
Lacan, uma amarração entre o que de mais estranho no eu com o eu; uma
340
amarração que inclui no sujeito a sua verdade. O que interessa no sintoma é que
ele "representa o retorno da verdade como tal na falha de um saber". (LACAN,
1966: 234).
Assim como no sintoma, a verdade no discurso é velada, mas é ela que o
funda e o sustenta. Se o sintoma assume o lugar de sempre meio dizer a
verdade do ser do sujeito - já que não é possível dizê-la toda porque ela escapa
ao saber -, o discurso será sempre do semblante mesmo quando se colocar o
próprio saber no lugar da verdade, ou seja, o próprio saber é, como a verdade, da
ordem da ficção.
Tais considerações franqueadas por Lacan abriram inúmeras
possibilidades para lançarmos outros olhares sobre os estatutos da ficção e da
realidade na produção televisiva. Geralmente, nos movemos sobre os
programas com as fixações estabelecidas pela lógica da TV. É adequado, aqui,
utilizarmos o neologismo lacaniano "fixão" para dizer que a verdade é fixa e
nunca é plenamente recoberta (é residual). A narrativa de ficção refere-se à
verdade do sujeito, ainda que este não tenha consciência disso, daí os motivos
pelos quais Lacan afirma que a verdade tem uma estrutura de ficção. É na
ficção/fixação [=fixão] que existe a possibilidade de construir a verdade, e esta
só pode ser enunciada por meio de uma estrutura mítica.
Essas indicações fortalecem o princípio que ordenou a investigação da
tese e que podem ser observadas nas análises: a ficção é uma fábrica de
realidades na qual jornalismo se constitui como uma das importantes
engrenagens. A frase de cepa antropológica “o mito é mais importante que o
fato” parece convergir com as observações lacanianas. Há quem diga que é tão-
somente por meio da ficção que o homem pode criar realidades
verdadeiramente poderosas, que se podem tornar eternas. Essa afirmativa
ganha ainda mais potência quando nos reportamos às chamadas realidades
materiais construídas pelo homem ao longo do tempo e que foram substituídas
por tantas outras na cadeia infinita das descobertas: “Só a lenda pode salvá-las,
341
dando-lhes o poder que a matéria lhes rouba. É dever de qualquer criador
tentar criar ficções as mais reais possíveis. Tão assustadoramente reais que
mesmo o mais louco dos homens possa dizer: tudo o que não vivi, li.”.
(ANDRADE, 2003: 16).
Ao pensar na configuração do telejornalismo como uma das formas de
ficcionalidade, não estou dizendo que ele se despoja de seu caráter de
verdadeiro, mas destacando que é do discurso ficcional, do qual o
(tele)jornalismo é um dos signatários, que podemos depreender a verdade e o
saber, uma das tarefas dos jornais na contemporaneidade.
A despeito de essa reflexão ter argumentos razoáveis, a tradição teórica
da comunicação se esquiva de levá-la minimamente em conta. O verdadeiro, o
real e a realidade têm a ver com o (in)visível, segundo a lógica televisiva, com o
que as pessoas percebem e vêem/olham. Mas o que as pessoas percebem e
olham? “Previamente ao visto existe um dado a ver”, como vimos.
As imagens telejornalísticas são mostradas para fins de verificação, de
documento do que aconteceu, do que se passou no mundo. O documento
“significa que se o toma como um instrumento que comprova a existência
prévia de algo outro “ (L
IMA, 1986: 197), onde:
Esse algo comprovado pelo documento possui tal ordem de
existência que esta existência se repete, se refaz e se reatualiza
por efeito de sua prova. O documento então reapresentaria o
que teria plena existência antes dele e sem ele. Noutras
palavras, o documento seria uma espécie de meio neutro sem
propriedades ativas, que não interferiria em absoluto no
caráter do que prova ou testemunha”. (Id. Ibid.: 127).
É assim que as notícias do jornalismo, principalmente as televisivas, se
impõem. Freitas diz que essas crenças estão ligadas à boa rotina que sedimenta
as nossas certezas:
(...) O fluxo do discurso, que é o curso do significado, se
apresenta como a continuidade do conhecido, do vivido, do
concebido, do fluxo “normal das coisas”. E se cruzam em
342
virtude daquilo que anteriormente apontamos como o ponto de
capiton. (1999: 45).
Para ela, acreditamos viver em um mundo organizado no qual as coisas
o, existem. Assim, indaga: “ Deus, o Pai, o Estado, a História, o Conhecimento
não são ´organizadores ?” (Id. Ibid. 46). Esses organizadores, estáveis,
imutáveis, formam a consciência comum, segundo Freitas, e fazem com que “o
significado guarde sempre o mesmo sentido. Esse sentido é dado pelo
sentimento que temos de fazer parte do mundo, em cujo centro há o
‘organizador’, em torno do qual tudo gira”. (Id. Ibid.).
A operação de tais crenças é um atestado de que o imaginário cria as
ilusões necessárias, o que faz parecer, “assim, natural que o mundo se constitua
tendo como correlato o ser mesmo, configurado no eu que penso, no eu que
vejo, no eu que conho” (Id. Ibid.). Dessa forma, a autora adverte:
É assim que fabricamos nossas ficções. Todavia, é preciso
ressaltar que as ficções não são mentirosas, ao contrário, a
verdade propriamente dita tem a estrutura de uma ficção.
Isto significa que é do imagirio que se edificam as
nossas construções sobre o buraco da nossa verdade, o
real. Afirmação atestadora das três dimensões que
formam a topologia sobre a qual trabalhamos: o real, o
simbólico e o imaginário. (Id. Ibid.).
Freitas reconhece que levar em conta essas argumentações torna-se até
certo ponto um empreendimento difícil, pois na ficção o “significante não
trabalha por conta própria, mas se dedica o tempo todo a apagar os traços de
seus passos, a abrir-se, imediatamente, sobre a transparência de um significado,
de uma história que é na realidade fabricada por ele, mas que ele aparenta
apenas “ilustrar”, e nos transmitir posteriormente, como se ela tivesse existência
anterior”. (METZ, 1975: 29).
343
Assim, ela provoca: mas, perguntar-nos-iam, o narrado nos jornais
televisivos de fato não aconteceu? Não teve uma existência anterior, ou
simultânea, ao narrado?
Uma ponderação tão significativa quanto justa é que o acontecimento
provém da enunciação, é aí que é construído: na escolha forçada dos
enunciados que o constituem. (Id. Ibid.). Desse modo, o que aconteceu é o
verdadeiro, mas não é a verdade.
E o verdadeiro, na lógica televisiva, é marcado pela virtualização de
nossas vidas diárias (seja em situações-limite, como o Big Brother Brasil, seja em
situações ordinárias das notícias do telejornalismo, formatadas segundo a
estrutura do melodrama), onde o encontro com o real é sempre adiado. Como
lembra Zizek, às vezes esse real é visado, encenado, mas procuramos sempre
evitá-lo. O colapso do WTC é o paradigma dessa situação. A destruição das
torres no 11 de setembro foi primeiramente associada às imagens de ficção, aos
filmes hollywoodianos:
Quando ouvimos dizer que os ataques foram um choque
absolutamente inesperado, que o Impossível inimaginável
acabou acontecendo, deveríamos nos lembrar de outra
catástrofe definitiva do início do século XX, o naufrágio do
Titanic: também foi um choque, mas já se havia preparado para
ele um espo nas fantasias ideológicas, pois o Titanic era o
mbolo do poder da civilização industrial do século XIX.
(Z
IZEK, 2003: 30).
O fantasma da TV, como ainda sustenta Zizek, entrou, sem pedir licença,
em nossa realidade comezinha. Uma fantástica inversão foi efetivada: as
imagens das torres se desfazendo mostraram que não foi a realidade que
invadiu a tela (a ficção, as imagens cenográficas), mas o contrário, foram as
imagens cenográficas (já ensaiadas num sem-número de filmes) que invadiram
e, pior, destruíram a nossa realidade.
Zizek lembra ainda que o fato de os ataques de 11 de setembro terem,
antecipadamente, sido material das fantasias populares, expressas nos filmes
344
distribuídos em todo mundo, demonstra uma relão com a fantasia. Para os
pobres do planeta, criava-se um vínculo de identificação: todos queriam ser
americanos. Para os ricos abastados da América, operava-se a idealização de
um sonho em que seres mais poderosos poderiam destruir as suas vidas, mas o
fim da História, confirmava, invariavelmente, a supremacia americana.
É preciso identificar-se com a fantasia, atravessá-la. Uma lição da
psicanálise é que “não se deve tomar a realidade por ficção (a tradição clássica
dos gêneros o faz), mas ter a capacidade de perceber na ficção ocleo duro do
real”. (Id. Ibid.: 34). Os programas televisivos se nos apresentam como um
laboratório ficcional em que podemos entrever o real.
Jornal Nacional, Jornal Hoje, Linha Direta, Big Brother Brasil, Mais Você e
Fantástico nos ofereceram condições de perceber a parte da ficção na realidade
que eles, orgulhosamente, ostentam (por meio de imagens ao vivo, de
recuperação de fontes, da cobertura de confinados em uma casa, dos quadros
de utilidade pública etc.). Os programas transfuncionalizam – amparados na
fantasia – a realidade, por meio dos relatos que, retornando ao princípio desta
tese, são agradáveis. O não confronto com o real, a principal tarefa televisiva, é
feito de modo a atrair a atenção do telespectador que atravessa, diariamente,
suas fantasias, capturado pela voz e pelo olhar que vêm de fora. Como lembra
Gabler:
Enquanto a religião e a ideologia prevaleceram, não houve
grande necessidade de outros enredos. Mas como tanto a
religião quanto o dogma ideológico perderam forças com a
arremetida da vida moderna, o fardo de puxar a cortina de
fantasia coube à cultura popular, sobretudo ao cinema. Se a
vida era acabrunhante, sempre se podia esculpi-la numa
história como faziam os filmes”. (op. cit.: 226).
Se o enredo final sagrado para organizar e explicar o mundo, vocalizado
durante muito tempo pela religião, perde fôlego, são os enunciados televisivos
os principais puxadores da cortina das nossas idealizações. O que justifica, por
345
exemplo, o pendor do Jornal Nacional para o melodrama, a insistência das
emissoras na produção e veiculação de reality shows... William Bonner, editor-
chefe do programa, não abreo de esculpir a vida cotidiana com tintas
suaves, nos alimentando com doses suportáveis de realidade, de modo que
retornemos à assistência no dia seguinte e com ele estabeleça vínculos
duradouros. Pontos de audiência para Rede Globo, conforto para todos!
346
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
O melhor ainda não foi dito. O melhor está nas entrelinhas
Clarice Lispector
Chegou a hora de alinhavar este item com vistas à inclusão do que ficou
de fora, sabedora de que a tentativa de inclusão não cessará de produzir outras
exclusões. O simbólico é um circuito que não se fecha, o que quer dizer que
faltará sempre um significante que complete a cadeia. Algumas questões de
feição conclusiva foram antecipadas nas considerações subseqüentes à análise,
item imediatamente anterior a este. No entanto, mais algumas palavras insistem.
Retomando o curso das investigações aqui empreendidas, esta tese
procurou demonstrar que ficção e realidade são categorias indiscerníveis na
televisão, contrariando as teorias dos gêneros, que as vêem, salvo algumas
exceções, como se fossem “um líquido imiscível”, construídas para acomodar os
programas em ramificações infindáveis. Decididamente, o jogo ficcional
coloniza a realidade, provocando desconcertos em quem tenta estabelecer um
mapa investigativo a partir da classificação oficial dos gêneros.
Passei a considerar que as diferenças entre os enunciados televisivos não
giram em torno do real e do irreal, porquanto a TV produz uma narrativa-
mestra da qual derivam muitas outras. Tais narrativas encaixam-se com
facilidade num único paradigma, o paradigma ficcional, que nos proporciona a
chave de leitura dos textos televisivos produzidos na interseção de ts
materialidades: imagética, sonora e verbal. Mas, além da ficção enquanto recurso
narrativo (uso de elementos da dramaturgia, cenários feéricos imaginativos, por
exemplo) reivindiquei para este trabalho uma noção de ficção ainda mais
radical. Os programas têm uma estrutura ficcional não apenas porque se
amparam em recursos queo, marcadamente, imaginativos, mas porque
347
também as narrativas, os discursos e a construção da “verdade” como um todo
tem uma estrutura de fião. Constatei de imediato que a imensa variedade de
neros dificultava uma definição mais precisa e mais completa da natureza
dos programas. Questionava: como podem ser definidos os enunciados
televisivos, tout court, já que há, efetivamente, essa variedade indefinida que
impede o estabelecimento de relações precisas entre os programas televisivos e
entre estes e outros enunciados tecidos cotidianamente? Constatei, ainda, que
todos os programas comportam necessariamente uma dimensão ficcional e que
esta tem uma certa efetividade sobre o mundo. Os programas comportam, em
si, uma dimensão que não somente se presta a uma organização ficcional, mas
corresponde a uma tal organização.
Isto fez aflorar um outro aspecto que é nuclear para os estudos da
comunicação: produtores de TV e pesquisadores consideram que são os gêneros
os responsáveis pelo sucesso dos programas, portanto, pela mediação
televisiva. As minhas suspeitas, uma vez derrubadas as fronteiras frágeis que
separam programas de entretenimento dos informativos, fundamentaram-se no
fato de que os gêneros são débeis para fazer a mediação televisiva porque,
tentei demosntrar, os enunciados se fazem com empréstimos de outros
registros, apropriam-se de estratégias diversas de prodão. Assim, passei a
considerar que havia uma questão mais densa que garantiria a mediação, a
consolidação dos laços sociais: o olhar.
Para chegar até ele, se fez necessário pensar a televisão como forma
significante, constituída por materialidades discursivas que nos identificam ao
veículo. Procurei atuar, portanto, nas fronteiras do próprio aparelho televisual,
pois as várias correntes do pensamento comunicacional habituaram-se a
analisá-lo a partir de suas implicações sociais, econômicas, sociogicos,
políticas. Resolvi partir do pprio veículo não porque desconsidere tais
aspectos. Tais aspectos podem ser mais bem esclarecidos se a TV, em sua
estrutura significante, for preliminarmente decifrada como enigma.
348
Foi necessário estabelecer pelo menos três pontos de vista envolvidos na
busca por uma resposta:
1) o primeiro referiu-se ao lugar teórico onde o trabalho procurou asilo. Parti do
entendimento de que a tríade gêneros-olhar-mediação se assentava em um campo
de estudo em que o discurso, promotor de laços sociais, ocupava posição
central. Eis como o enigma da ficção coloca em questão toda a tradição do
pensamento comunicacional, todo “o pensamento herdado”, inteiramente
voltado para as determinões da técnica, ou dos produtores da técnica, mas
incapaz de pensar justamente o que permanece indeterminado no
funcionamento da técnica: a desconcertante presença da linguagem. As fendas
cavadas pela linguagem, decerto clareiras que descortinam um verdadeiro
programa de interrogações, nos inseriram numa rota em que as questões do
humano visadas na técnica podem nos conduzir a entender o código com o qual
estabelecemos vínculos.
Ao adotar um programa de interrogações, assumi como tarefa, sem
dúvida bastante incômoda, levar sempre para mais longe o tema da mediação
das verdades reconfortantes, das concessões oportunas, das conciliações
inevitáveis (expressas em afirmações peremptórias, como: “são os gêneros os
responsáveis pela mediação”, “os formatos da televisão estão desgastados”).
Em qual lugar, então, inserir a discussão sobre TV e mediação?
2) antes de apontar o lugar em que a mediação se efetiva, um segundo ponto de
vista levou-me a perturbar a tradição teórica dos gêneros. É uma teoria dos
gêneros, em sua excessiva crença na pureza dos programas, que alimenta o
modelo calcado na ficção e na realidade. Uma possibilidade de trabalhar nesse
terreno foi tirar o que cobre a utopia da teoria dos gêneros na TV, pois ela
não resiste a indagações mais consistentes;
3) Voltei a pensar no lugar da mediação televisiva: o lugar do Olhar. Esse
terceiro ponto de vista procurou apontar a estrutura da TV como uma forma
significante que atrai, fascina, que atende ao princípio do imaginário
349
tecnológico. Mais Você, Fantástico, Linha Direta, Big Brother Brasil, Jornal Nacional,
Jornal Hoje conseguem estabelecer vínculos com os seus telespectadores não
porque uns cumprem a função de entreter e outros de informar, mas porque
produzem narrativas que se afinam com a demanda contemporânea, da
sociedade que tudo (quer) ver e olhar, onde informações que interditam o real
alimentam nossas fantasias, fornece a liga entre o que eu vejo e o que me olha. A
TV se mantém como um veículo de grande expressão nacional porque consegue
se relacionar com o público, representando desejos e aspirações sociais mais
emblemáticos de uma época, “pois um cerne de espírito utópico também faz
parte de sua constante solicitude e de sua sedução”. (STAM, op. cit.: 87).
O (tele) jornalismo é o contexto em que a idéia de ficção mostra-se como
inadmissível. É no jornalismo que sucedem os tenazes desacordos diante de
uma realidade que está sempre nos ultrapassando e pedindo deveras um
posicionamento que convirja para alguma sorte de criação.
Recuperando a afirmação de Vilches, há sempre a necessidade de ficção
(no sentido de irreal) na TV porque ningm suportaria fatias sucessivas de
informação (no sentido de real). [Freud diria: ninguém suporta sucessivos dias
de felicidade]. Essa idéia está subjacente nas estratégias de produção de todos
os programas, inclusive os jornalísticos. Tudo isso está em consórcio com as
dimensões do Real, o Simbólico e o Imaginário. A dimensão imaginária da
televisão nos oferece um mundo – seja nos jornais, nos programas de
entretenimento, de auditório – em que somos exortados a nos mantermos
sintonizados com este ou aquele programa em nome do que dá prazer de
assistir. A TV deve ser, assim, um veículo de satisfação, que recobre o faltante (a
infinidade de gêneros é um indício dessa pretensão, orientada pela lógica
prazenteira).
Não quer isso dizer que a TV se tornou um grande circo, mas uma
máquina narrativa que tece relatos diversos, e as narrativas nos humanizam na
medida em que simbolizam. A imagem soberana nos fascina e nos seduz. No
350
triunfo do visual, tudo deve cintilar, as informações não podem ser “pesadas”,
os “fatos” devem ser relatados amistosamente. Mas, questionaríamos, o real
não está na TV? Sim, mas sempre sob a forma de ameaça. Quando o real
irrompe assustadoramente, o vculo precisa descobrir formas de inseri-lo na
cadeia simbólica a fim de construir uma narrativa que não deixe que a nossa
humanidade, que é tecida com os códigos contemporâneos, fique sob ameaça.
Segundo Didier-Weill: “o significante não detém somente o poder de
anular o sentido do código, como nos imprevistos, ele é também a pedra
angular que pode ser substituída pelo rebotalho, pela escória: no lugar onde o
real não teve acesso ao simlico jaz, prescrito, o significante pode voltar e
recuperar aquilo que, um dia, deixou cair”. (apud FREITAS, op. cit.: 64). E é esse
retorno do significante que nos deixa ver uma trajetória televisiva que é
vitoriosa. Por que o é?
A TV é “vitoriosa” porque estabelecenculos permanentemente
conosco. Somos eternos dependentes de suas narrativas. Precisamos saber o que
acontece no mundo por meio da tela, que não é janela para o mundo. Se, como
diz Zizek, “é impossível enfrentar o real cara a cara, pode-se tentar avaliar o
conjunto subjacente de regras não escritas” (op. cit.: 32), procurei verificar como
tais regras nos encaminham para questões que estão além do aparelho
televisual. Essa tarefa a que me lancei acabou encontrando pistas que
sinalizaram paras os labirintos em que se tece, se constrói ou se sacrifica a
emancipação humana, hoje mediada pela técnica, cujo centro são os
dispositivos visuais. A sociedade a-mais-do-olhar nos desafia a pensar na
intensidade do gozo, que parece condensada pelo olhar, pelo desejo de ver
(tudo) e ser visto. O que provoca o surgimento e a consolidação de programas
como os reality shows? Por que gostamos tanto de bisbilhotar a vida alheia? Por
que a narrativa novelística nos atrai tanto? A guerra de audiência, diriam os
mais apressados. Mas a audiência é construída em nome daquilo que se quer
assistir. Aqui não cabe acusar produtores (os clássicos emissores), tampouco
351
audiência (os clássicos receptores), mas tentar divisar a questão que move a
todos, produtores e audiência, portanto a sociedade: o desejo de ver e ver mais
e, no extremo, se oferecer como espetáculo.
A fixação das telas ao nosso redor é a prova de que somos olhados pelo
mundo, somos capturados por essa imagem que vem de fora e nos faz objeto. O
a-mais-do-olhar vem assumindo uma conotação assustadora (sintetizado nos
reality shows). Importa mais uma vez destacar o fato de que, no olhar ou na voz,
principais recursos da televisão, todo visível ou audível, vem de fora.
A mediação pelo olhar tipifica o mundo contemporâneo por meio da
sofisticação tecnológica que provoca uma alteração radical em nossa forma de
conceber o tempo, o espaço e as relações interpessoais. Os meios de
comunicação, principalmente aqueles cuja ordenação está no mundo das
imagens, plasmam esse novo momento, circunscrevendo um mundo virtual
que avança numa velocidade em que ficamos desconcertados, para dizer o
mínimo. O nosso sentimento é ambivalente: reagimos a isso com um misto de
hesitão e perplexidade.
As redes midiáticas traçam o novo mundo. As informações que circulam
no planeta são advindas, em grande parte, da TV, da Internet, do jornal
impresso e constituem o novo saber de nossos tempos. Repito: não importa se
tais informações advêm do Big Brother Brasil, do Jornal Nacional, do programa
evangélico ou do Ratinho Livre. São elas, indistintamente, que nos satisfazem,
nos orientam e nos mobilizam (retornamos para os programas por meio de
caras ligações, discutimos com amigos e famílias o último caso do Ratinho...).
A televisão se constitui como o significante que articula e distribui o
saber, este saber que é aquilo em nome do que o vculo agencia o seu discurso.
Significa que, lá adiante, há um Todo que teria a resposta para todas as
questões. Nessa dinâmica se opera uma passagem em que ela produz uma certa
categoria de ideal (os programas devem ser agradáveis, as imagens devem ser
352
impactantes, os formatos devem ser assim ou assado. As regras confirmam tal
categoria).
Partindo de uma situação paroquial (análises de alguns programas de
determinada emissora), não quis, como se costuma dizer ter razão, mas dar
razões, entre outras eventuais, que expliquem a mediação televisão. As
narrativas televisivas procuram nos conquistar, permitindo que pensemos num
percurso que vai do desejo do Outro ao desejo para o Outro. Ao pensarmos a
respeito, veremos que novas formas de ideais culturais estão sendo construídas,
o que exige a reflexão ética. A voz e o olhar da contemporaneidade, que é a voz
e o olhar da TV, atinge a todos em escala planetária, exigindo que a "ética do
bem-dizer" (que deve ser a ética do desejo e não do gozo) venha organizar as
bases para a construção de uma outra história. Se todo elo simbólico implica
um elo ético, a TV, em sua excessiva exploração do olhar, provoca em cada um
de nós a responsabilidade pela construção dessa outra história.
353
9 FONTES
BIBLIOGRÁFICAS
ABRUZZESE, Alberto. O esplendor da TV: origem e destino da linguagem
audiovisual. São Paulo: Studio Nobel, 2006 (Coleção Átopos: novos espaços de
comunicação).
ANDACHT, Fernando. Uma aproximação analítica do formato televisual do
reality show Big Brother. In.: Galáxia. Revista Transdisciplinar de Comunicação,
Semiótica, Cultura, nº 6, outubro. São Paulo: Educ; Brasília: CNPq, 2003.
ANDERSON, Benedict. Nação e consciência nacional. São Paulo: Ática, 1989.
ANDRADE, Carlos Drummond de. Obras poéticas. São Paulo: 1999
ANDREW, J. Dudley. As principais teorias do cinema: uma introdução. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
ARAÚJO, Inês. Do signo ao discurso. São Paulo: Parábola Editorial, 2004.
AUGÉ, Marc. A guerra dos sonhos. São Paulo: Papirus, 1998.
______________. Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade.
São Paulo: Papirus, 1994 (Col. Travessia do Século).
ARRIVÉ, Michel. Lingüística e psicanálise: Freud, Saussure, Hjelmslev, Lacan e os
outros. São Paulo: Edusp, 2001.
AUMONT, Jacques. A imagem. São Paulo: Papirus, 1995.
______________. O olho interminável: cinema e pintura. São Paulo: Cosac &
Naify, 2004.
AUSTIN, J.L. Quand dire, c’est fire. Paris: Éd. Du Seuil, 1970.
AUTHIER-REVUZ, J. Hétérogéneité montrée et hétérogéneité constitutive: éléments pour
une approche de láutre dans le discuours. DRLAV 26, p. 91-51, 1982.
BAIRON, Sérgio. Texturas sonoras: áudio na hipermídia. São Paulo: Hacker
Editores, 2005.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2003.
______________. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1997.
BARTHES, Roland. A aventura semiológica. Lisboa: Ed. du Seuil, 1985.
______________. Crítica e verdade. São Paulo: Perspectiva, 1984.
______________. O grão da voz. Lisboa: Edições 70, 1981.
______________. O rumor da língua. o Paulo: Martins Fontes, 2004.
BARROS, Diana & FIORIN, José Luiz. Dialogismo, polifonia e intertextualidade. São
Paulo: Edusp, 2003.
BATAILLE, Georges. A história do olho. São Paulo: Cosac & Naif, 2003.
BAUDRILLARD, Jean. A transparência do mal. São Paulo: Papirus, 1990.
B
AZIN, André. O cinema: ensaios. São Paulo: Brasiliense, 1991.
____________. Orson Welles. Paris: Ramsey, 1971.
B
ELLOUR, R. A dupla hélice. In.: PARENTE, André. Imagem-máquina: a era das
tecnologias do visual. Rio de Janeiro: Editora 34, 1993.
354
BELTRÃO, Luiz. A imprensa informativa. São Paulo: Folco Masucci, n/d
BENVENISTE, Émile. Problemas de lingüística geral I. São Paulo: Pontes, 1996.
______________. O homem na linguagem. Lisboa: Vega, 1980.
BERGER, Christa. Em torno do discurso jornalístico. In.: FAUSTO NETO, Antonio e
PINTO, Milton José. O indivíduo e as mídias. Rio de Janeiro: Diadorim/COMPÓS,
1996.
BLOOM, Harold. A angústia da influência. 2ª ed. Rio de Janeiro: Imago, 2002.
BORGES, Jorge Luís. Obras completas. São Paulo: Globo, 2000, vol. II.
______________. Otras inquisiciones. 4ª ed. Madri: Alianza, 19 81.
______________. Ficções. 3ª ed. Porto Alegre/ Rio de Janeiro: Globo, 1982.
BORGES, Rosane da Silva. Ficção e realidade: as tramas do (tele)jornalismo e de
outras produções televisivas. In: Cambiassu: Estudos em Comunicação. São Luís,
vol. XV, nº 1, pág. 33-49, jan.-dez./2005. (Modos de pensar a imagem televisiva).
BOSI, Alfredo. Fenomenologia do olhar. In.: NOVAES, Adauto (org.). O olhar. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988.
BOUGNOUX, Daniel. Introdução às ciências da comunicação. São Paulo: EDUSC,
1999.
BOURDIEU, Pierre. Sobre a televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. 1997.
______________. O poder simbólico. Lisboa: Difel, 1989.
BRAIT, Beth. Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005.
BRAUDEL, F. Escritos sobre a história. São Paulo: Perspectiva, 1978.
Buber, Martin. Do diálogo ao diálogo. São Paulo: Perspectiva, 2006.
BUCCI, Eugênio. Brasil em tempo de TV. São Paulo: Presença, 1997.
______________. O peixe morre pela boca. São Paulo: Scritta, 1993.
______________. Televisão objeto: a crítica e suas questões de método. 2002, 298f.
Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de Comunicações e
Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo.
______________. A TV aos 50: criticando a televio brasileira no seu
cinqüentenário. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2000.
BUCCI, Eugênio & KEHL, Maria Rita. Videologias. São Paulo: Boitempo, 2003.
(Coleção Estado de Sítio).
BUITONI, Dulcília H. S. Imprensa feminina. 2ª ed. São Paulo: Ática, 1990 (Série
Princípios).
______________. Documentário: espaço e sentidos. 1996. Livre-Docência – Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo.
______________. Mulher de papel: a representação feminina da mulher na imprensa
feminina brasileira. São Paulo: Loyola, 1981.
______________. Entre o consumo rápido e a permanência: jornalismo de arte e
cultura. In.: MARTINS, M. H. (org.). Outras leituras: literatura, televisão,
jornalismo de arte e cultura, linguagem inteligente. São Paulo: Itaú Cultural,
2000, vol. 1, p. 55-72.
355
BURKE, Peter & BRIGGS, Asa. Uma história social da mídia: de Gutenberg à
Internet. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 2004.
BURKE, Peter. Hibridismo cultural. Rio Grande do Sul: Unisinos (Coleção Aldus).
______________. "A história dos acontecimentos e o renascimento da narrativa".
In: BURKE, P. A escrita da história. Novas perspectivas. São Paulo: Unesp,1992.
Ricoeur, P. Tempo e narrativa. Vol. 1. Campinas: Papirus, 1994.
BURGELIN, Olivier. A comunicação social. Lisboa: Edições 70, 1970.
CALLIGARIs, Contardo. Cartas a um jovem terapeuta. São Paulo: Alegro, 2004.
CANIZAL, Eduardo Peñuela. A retórica e o seu papel na interpretação das
imagens. IN: BRAGA, José Luiz, PORTO,rgio Dayrell, et. al. A encenação dos
sentidos. Rio de Janeiro: Diadorim, 1996.
CAPPARELLI, Sérgio, SODRÉ, Muniz et. al. A comunicação revisitada – livro da XIII
Compós. Porto Alegre: 2005.
C
ASTORIADIS, Cornelius. A instituição imagiria da sociedade. São Paulo: Paz e
Terra, 1995.
C
ERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Rio de Janeiro: Vozes,
1994.
CHABROL, Claude (org.). Semiótica narrativa e textual. São Paulo: Cultrix/Edusp,
1977.
CHAPARRO, Manuel C. Pragmática do jornalismo: buscas práticas para uma teoria
da ação jornalística. São Paulo: Summus, 2007.
CHARADEAU, Patrick & MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de análise do
discurso. São Paulo: Contexto, 2004.
CHAUÍ, Marilena. Janela da alma, espelho do mundo. In.: NOVAIS, Adauto. O
olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
CHION, Michel. O roteiro de cinema. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1989.
CHNAIDERMAN, Miriam. O hiato convexo: literatura e psicanálise. São Paulo:
Brasiliense, 1989.
______________. Ensaios de psicanálise e semiótica. São Paulo: Escuta, 1989.
CHOMSKY, Noam. Novos horizontes no estudo da linguagem e da mente. São Paulo:
Unesp, 2005.
COELHO NETO, J. T. Semiótica, informação e comunicação. São Paulo: Perspectiva,
1980.
CASTORIADIS, Cornelius. A instituição imaginária da sociedade
CRAIG, Robert T. Communication theory as a field. In.: Communication Theory. A
journal of the International Communication Association: may 1999, nine two.
CRONTERA, Malena, FIGUEIREDO, Rosali et al. Jornalismo e realidade. São Paulo:
Mackenzie, 2004.
D
AMISCH, H. Le jugement de Pâris. Paris: Flammarion, 1992.
D
EBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997.
DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
DELEUZE, Gilles. Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992.
______________. Crítica e clínica. São Paulo: Editora 34, 1997.
356
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1.
São Paulo: Editora 34, 1997.
______________. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 2. São Paulo:
Editora 34, 1997.
DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 1995.
______________. Margens da filosofia. São Paulo: Papirus, 1991.
______________. A religião. Lisboa: Relógio D’ Água, 1997.
______________. A farmácia de Platão. 3ª ed. São Paulo: Iluminuras, 2005.
______________. Gramatologia. 2ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.
DERRIDA & ROUDINESCO, 2004:
DIDI-HUBERMAN, G. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: Editora 34, 1998 (Col.
Trans).
DIDIER-WEILL, Alain. Os três tempos da lei: o mandamento siderante, a injunção
do supereu e a invocação musical. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
DOMÈNECH, Joseph. Imagen y complejidad: la confluência del arte y la ciência. São
Paulo: ECA/USP, 2000.
DUBOIS, Philipe. O ato fotográfico. São Paulo: Papirus, 1987.
DUBY, Georges (org.). História da vida privada, 2: da Europa feudal à Renascença.
São Paulo: Companhia das Letras, 1990.
______________. Cinema, vídeo, Godard. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.
DUCROT, Oswald & TODOROV, Tzvetan. Dicionário enciclopédico das ciências da
linguagem. 3ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2001.
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. São Paulo: Perspectiva, 1987.
______________. Interpretação e superinterpretação. São Paulo: Martins
Fontes,1997.
______________. Viagem na irrealidade cotidiana. 8ª ed. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1984.
ECO, Umberto & SEBEOK, T. O signo de três. São Paulo: Perspectiva, 1987.
E
ISENSTEIN, Sergei. O sentido do filme. São Paulo: Jorge Zahar, 2002.
______________. A forma do filme. São Paulo: Jorge Zahar, 2002.
E
LIOT, T.S. Ensaios. São Paulo: Art, 1989.
FELINTO, Erick. Novas tecnologias, antigos mitos: apontamentos para uma
definição operatória de imaginário tecnológico. In.: Galáxia. Revista
Transdisciplinar de Comunicão, Semiótica, Cultura, 6, outubro. São Paulo:
Educ; Brasília: CNPq, 2003.
FIORIN, Luiz. Linguagem e ideologia. São Paulo: Ática, 1985 (Série Princípios).
______________. Semântica estrutural: o discurso fundador. In.: Oliveira, Ana
Claudia e LANDOWSKI, Eric (orgs.) Do intelivel ao sensível: em torno da obra de
Algirdas J. Greimas. São Paulo: EDUC, 1995.
FLAHAUT, François. A fala intermediária. Lisboa: Via Editora, 1978.
FOSTER, Hal. The return of the real. London/Massachussetts: The Mit Press, 2001.
FLUSSER, Vilém. Língua e realidade. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2004.
357
FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. 5ª ed. São Paulo: Loyola, 1999 (Série
Leituras Filosóficas).
______________. As palavras e as coisas. Rio de Janeiro: Vozes, 1997.
______________. Vigiar e punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1987.
______________. La trasfábula. In.: ______________. De lenguaje y literatura.
Barcela: Paidós ICE/UAB, 1996.
FRANÇA, Vera Veiga. O objeto da comunicação/a comunicação como objeto. In.:
HOHLFELDT, Antonio, MARTINO, L. C. et. al. Teorias da comunicação: conceitos,
escolas e tendências. Rio de Janeiro: Vozes, 2001.
______________. Problemas metodológicos e conceituais na análise de
programas populares de TV. In.: Capparelli, Sérgio, Sodré, Muniz et. al. A
comunicação revisitada – livro da XIII Compós. Porto Alegre: 2005.
FREITAS, Jeanne Marie M. de. Bemaldivida. São Paulo: Edusp, 1992.
______________. CNN e a globalização mediática: uma nova hegemonia ou a formação
de comunidades imaginárias? Relatório CNPq. São Paulo: ECA/USP, 1996-2000.
___________. Ciências da Linguagem: contribuição para o estudo dos mídia.
Revista Comunicação e Artes, São Paulo, 11-23, set-dez 1996.
FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Rio de Janeiro: Imago, 2001.
GAARDET, G. O mundo de Sofia. São Paulo: Companhia das Letras: 1991.
GABLER, Neal. Vida, o filme: como o entretenimento conquistou a realidade. São
Paulo: Companhia das Letras, 1999.
GENETTE, G. Fronteiras da narrativa. In: Barthes, Roland et. al. Análise estrutural
da narrativa. Rio de Janeiro: Petrópolis, 1971.
GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação deteriorada. Rio de Janeiro:
Vozes, 1975.
GOMES, Mayra Rodrigues. Jornalismo e ciências da linguagem. São Paulo:
Edusp/Hacker Editores, 2000.
______________. Repetição e diferença nas reflexões sobre comunicação. São Paulo,
Annablume, 2001.
______________. Um encontro marcado. São Paulo: 2001 (mimeo).
______________. Poder no jornalismo. São Paulo: Edusp, 2003.
______________. Jornalismo e filosofia da comunicação. São Paulo: Escritura,
2004. (Coleção Ensaios Transversais).
GOMES, Wilson. Jornalismo e esfera civil: o interesse público como princípio
moral do jornalismo. In: Peruzzo, Cicília (org.). Comunicação para a cidadania.
Salvador/São Paulo: Uneb/Intercom, 2003, p. 28-51.
______________. Metodologia da análise fílmica. Salvador: 2006 (mimeo).
GREIMAS, A. J. Novos desenvolvimentos nas ciências da linguagem. São Paulo:
EDUC, 1995.
HABERMAS, Jürgen. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1984.
358
HAMBÚRGUER, Esther. O Brasil antenado: a sociedade da novela. Rio de Janeiro:
Zahar Editor, 2005.
HOHLFELDT, Antonio, Martino, L. C. et. al. Teorias da comunicação: conceitos,
escolas e tendências. Rio de Janeiro: Vozes, 2001.
HUOT, Hervé. Do sujeito à imagem: uma história do olho em Freud. São Paulo:
Escuta. 1991.
JAKOBSON, Roman. Lingüística e comunicação. São Paulo: Cultrix, s/d.
JOLY, Martine. Introdução à análise da imagem. São Paulo: Papirus, 1986.
JAMESON, FREDERIC. O inconsciente político: narrativa como ato socialmente
simbólico São Paulo: Ática, 1992
KOSELLECK, R. Le futur passé: contribution à la sémantique des temps
historiques. Paris: EHESS, 1990.
KRISTEVA, Julia. A história da linguagem. Lisboa: Edições 70, 1980.
______________. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 2005. (Série
Debates).
LACAN, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
______________. Televisão. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1993.
______________. O seminário: os escritos técnicos de Freud (livro 1). Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2002.
______________. O seminário: o avesso da psicanálise (livro 17). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor, 1992.
______________. O seminário: mais, ainda (livro 20). Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editor, 1985.
LACOUTURE, Jean. "A história imediata" In: Le Goff, J. A história nova. São Paulo:
Martins Fontes, 1990.
LEBRUN, Gerárd. Sombra e luz em Platão. In.: NOVAES, Adauto (org.). O olhar.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
LEONE, Eduardo. Reflexões sobre a montagem cinematográfica. Minas Gerais:
UFMG, 2005.
LIMA, Luiz Costa. O controle do imaginário: razão e imaginário no Ocidente. São
Paulo: Brasiliense, 1984.
______________. Sociedade e discurso ficcional. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986.
______________. História, ficção e literatura. São Paulo: Companhia das Letras,
2006.
Lipovetsky, Gilles & . Tela Geral.
LISPECTOR, Clarice. Aprendendo a viver. Rio de Janeiro: Rocco, 2005.
LOPES, Maria Immacolata. Por um paradigma transdisciplinar para o campo da
comunicação. São Paulo: ECA/USP, 1998.
L
YOTARD, Jean-François. A condição pós-moderna.Rio de Janeiro: José Olimpo,
1979.
M
ACHADO, Arlindo. A televisão levada a sério. São Paulo: Ed. Senac, 2000.
______________. Máquinas de vigiar. In: Máquina e imaginário. São Paulo:
EDUSP, 1996.
359
______________. A ilusão especular. São Paulo: Brasiliense, 1984.
______________. Pré-cinemas e pós-cinemas. 3ª ed. São Paulo: Papirus, 2005.
MANGUEL, Albert. Lendo imagens. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
______________. O amante detalhista.
MANGUENEAU, Dominique. Termos-chave da análise do discurso. Belo Horizonte:
UFMG, 1998.
______________. Análise de textos de comunicação. São Paulo: Cortez, 2001.
MARCONDES FILHO, Ciro. A saga dos cães perdidos. São Paulo: Hacker Editores,
2000 (Coleção Comunicação).
MARTÍN-BARBERO, Jesus & REY, Germán. Os exercícios do ver. São Paulo: SENAC,
2001.
MARFUZ, Luiz. A dramatização da notícia (a construção do personagem de
Leonardo Pareja nos telejornais. In.: VALVERDE, Monclar. As formas do sentido.
Rio de Janeiro: DP&A, 2003.
MARTINO, Luiz. De qual comunicação estamos falando? In.: Hohlfeldt, Antonio,
MARTINO, L. C. et. al. Teorias da comunicação: conceitos, escolas e tendências. Rio
de Janeiro: Vozes, 2001.
Mattelart, Armand & Michèle. História das teorias da comunicação. São Paulo:
Loyola, 1999.
Mazzano, Luiz A. Som-imagem no cinema: a experiência alemã de Frtiz Lang.
São Paulo: Perspectiva, 2003.
Merleau-Ponty, Maurice. O visível e o invisível. São Paulo: Perspectiva, 1992.
______________. Signos. São Paulo: Martins Fontes, 1991.
______________. O olho e o espírito. São Paulo: Cosac & Naify, 2005.
______________. A prosa do mundo. São Paulo: Cosac & Naify, 2002.
MGE, Bernard. O pensamento comunicacional. Rio de Janeiro: Vozes, 2000.
MOLES, Abraham. Sociodinâmica da cultura. São Paulo: Perspectiva, 1974.
MOUILLAD, J. O jornal: da forma ao sentido. Brasília: Ed. UNB, 1996.
M
OURÃO, Maria D, Labaki, Amir (orgs.). O cinema do real.o Paulo:
Cosacnaify, 2005.
M
UNSTENBERG, Hugo. Trechos escolhidos. In.: XAVIER, Ismail (org.). A
experiência cinematográfica. São Paulo: Graal, 1999.
NASIO, J.-D. 5 lições sobre a teoria de Jacques Lacan. Rio de Janeiro: Joge Zahar,
2003.
NEIVA JÚNIOR, Eduardo. A imagem. São Paulo: Ática, 1994 (Série Princípios).
NETRÓVSKI, Arthur. Ironias da modernidade. São Paulo: Ática, 1996.
NORA, Pierre. "O retorno do fato". In: Le Goff, J. e Nora, Piere. História: novos
problemas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1979.
N
OVAES, Adauto (org.). De olhos vendados. In.: Novaes, Adauto (org.). O olhar.
São Paulo: Companhia das Letras, 1988.
______________. O olhar. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
______________. O desejo. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
360
______________. Rede imaginária: televisão e democracia. 2ª ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 1991.
______________. Muito além do espetáculo. São Paulo: Senac, 2005.
ORLANDI, Eni. Análise de discurso: prinpios e procedimentos. São Paulo: Pontes,
1999.
______________. Discurso e leitura. São Paulo: Cortez, 1988.
______________. Interpretação: autoria, leitura e efeitos do trabalho simbólico.
Rio de Janeiro: Vozes, 1996.
ORTIZ, Renato (org.). Pierre Bourdieu. São Paulo: Ática, 1983.
PARENTE, André. A arte do observador. In.: Revista Famecos. Porto Alegre, nº
11, dezembro 1999.
PÊCHEUX, Michel. O discurso: estrutura ou acontecimento. São Paulo: Pontes,
1997.
P
ÉCORA, Alcir. Máquina de gêneros. São Paulo: Edusp, 2001.
P
ORCHER, Louis. La escuela paralela. Buenos Aires: Kapelusz, 1979
PERROT, Michelle...[et al]. História da vida privada, 4: da Revolução Francesa à
Primeira Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
PFROMM NETO, Samuel. Telas que ensinam. 2ª ed. São Paulo: Alinea, 2001.
PICADO, José B. Os desafios metodológicos da leitura de imagens: um exame
crítico da semiologia visual. In.: Revista Nova Fronteira: estudos midiáticos, vol.
V, n° 1, junho de 2003. (Programa de Pós-Graduação em Ciências da
Comunicação).
POSSENTI, Sírio. Discurso, estilo e subjetividade. São Paulo: Martins Fontes, 1993
(Texto e linguagem).
PROPP, Vladimir. Morfologia do conto. Lisboa: Veja, 1983.
QUINET, Antonio. Um olhar a mais: ver e ser visto na psicanálise. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2004.
REIMÃO, Sandra. Em instantes: notas sobre a programação na TV brasileira. São
Paulo: 1995.
REZENDE, Guilherme Jorge de. Telejornalismo no Brasil. São Paulo: Summus,
2000.
RIBEIRO, Renato Janine. O afeto autoritário: televisão, ética e democracia.o
Paulo: Ateliê Editorial, 2004.
RICOEUR, Paul. Tempo e Narrativa. Tomo II. Campinas: Papirus, 1997.
RICOEUR, Paul. Percurso do reconhecimento. São Paulo: Loyola, 2006.
RINCÓN, Omar (org.). Televisão pública: do consumidor ao cidadão. São Paulo:
Fundação Ildes, 2002.
RIZZO, Sergio. Ayrton Senna: vitória. São Paulo: Melhoramentos, 2004.
R
OBIN, Regine. História e Lingüística. São Paulo: Cultrix, 1977.
R
OSENTHAL, Alan. Why docudrama? Fact-fiction on film and TV. EUA: 1999.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Ensaio sobre a origem das línguas. o Paulo: Unicamp,
2003.
SÁ, Olga de. Psicanálise e literatura: a interpretação. São Paulo, 2001 (mimeo).
361
SALINAS, Fernando de Jesús G. O som na telenovela: articulações, som e receptor.
1994, 170f. Tese (Doutorado em Ciências da Comunicação) – Escola de
Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo.
SANTAELLA,cia. Cultura das mídias.o Paulo: Experimento, 1992.
______________. Imagem: cognição, semiótica, mídia. São Paulo: Iluminuras, 1999.
______________. Matrizes da linguagem e pensamento: sonora, visual, verbal. São
Paulo: Iluminuras/FAPESP: 2001.
______________. Por uma epistemologia das imagens tecnológicas: seus modos
de apresentar, indicar e representar a realidade. In.: Araújo, Denize. Imagem
(ir)realidade: comunicação e cibernética. Porto Alegre: Sulina, 2006.
SANTAELLA, Lucia & NÖTH, Winfried. Imagem: cognição, semiótica, mídia. 4ª ed.
São Paulo: Iluminuras, 2005.
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 11ª ed. Porto:
Edições Afrontamento, 1999.
SARTORI, Giovanni. Homo videns: televisão e pós-pensamento. São Paulo: Edusc,
2001.
______________. Introdução a uma ciências-moderna. Rio de Janeiro: Graal,
1989.
SCHOLES, Robert. Protocolos de leitura. Lisboa: Edições 70, 1989.
SEARLE, J. R. Les actes de langage. Paris: Hermann, 1972.
SEVCENKO, Nicolau. A corrida para o século XXI: no loop da montanha-russa.o
Paulo: Companhia das Letras, 2001.
SIGNATES, Luiz. A sombra e o avesso da luz. 2001, 280f. Tese (Doutorado em
Comunicações e Artes) – Universidade de São Paulo, São Paulo.
SILVA, Tomaz Tadeu da. O que é afinal estudos culturais? Belo Horizonte:
Autêntica, 2000.
SILVA, Marconi. Imagem e verdade: jornalismo, linguagem e realidade.o Paulo:
Annablume, 2006.
Silva, Juremir. 1999
SOARES, Rosana de Lima. Imagens veladas: aids, imprensa e linguagem. São
Paulo: AnnaBlume, 2001.
______________. Jornalismo entre gêneros: ciência e ficção. São Paulo: 2001
(mimeo).
SODRÉ, Muniz. A comunicação do grotesco. 3ª ed. Rio de Janeiro: Vozes, 1972.
______________. O monopólio da fala: função e linguagem da televio no Brasil.
Rio de Janeiro: Vozes, 1999.
______________. Antropológica do espelho: uma teoria da comunicação linear e em
rede. Rio de Janeiro: Vozes, 2002.
______________. As estratégias sensíveis: afeto, mídia e política. Rio de Janeiro:
Vozes, 2006.
SOUZA, José Carlos Aronchi. Gêneros e formatos na televisão brasileira. São Paulo:
Summus, 2004.
______________. Televisão e psicanálise. São Paulo: Ática, 1986 (Série Princípios).
362
STAM, Robert. Introdução à teoria do cinema. São Paulo: Papirus, 2003.
______________. O telejornal e seu espectador. Novos Estudos, nº 13, outubro de
1985.
STAROBINSKI, Jean. Jean-Jacques. Rousseau: la transparence et l’obstacle. Paris:
Gallimard, 1971.
SUE, Eugene. Os mistérios de Paris. São Paulo: Paleta
SULLIVAN, Tim, HARTLEY, John et. al. Conceitos-chave em estudos de comunicação e
cultura. Piracicaba: UNIMEP, 2001
THOMPSON, John B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos meios
de comunicação de massa. Rio de Janeiro: Vozes, 995.
TRASK, R. L. Dicionário de linguagem e lingüística. São Paulo: Contexto, 2004.
TROTSKY, Leon. Questões do modo de vida. Lisboa: Edições Antídoto, 1979.
VANOYE, Francis & Goliot-Lété, Anne. Ensaio sobre a análise fílmica. 2ª ed. São
Paulo: Papirus, 1994.
V
ERON, Eliseo. A produção de sentido. São Paulo: Cultrix, 1980.
______________. A análise do “contrato de leitura”: um novo método para os estudos
de posicionamento dos suportes impressos. Paris: IREP, JUILLET-1985, PP. 203-229.
V
ILCHES, Lorenzo. La televisión: los efectos del bien y del mal. Barcelona: Paidós,
1993.
______________. Teoria de la imagen periodística. Barcelona: Paidós, 1987.
______________. La violencia de la televisión. In: La televisión: los efectos del bien y
del mal. Barcelona: Paidós, 1993.
______________. A migração digital. São Paulo/Rio de Janeiro: Loyola/Editora
PUC-RJ, 2003.
VOGEL, Daisi. A ficção do relato jornalístico. In: Caligrama. Revista de
Linguagem e Mídia. São Paulo: ECA, publicação eletrônica
(www.eca.usp.br/caligrama).
XAVIER, Ismael. O olhar e a cena. São Paulo: Cosac & Naify, 2003.
______________. A experiência do cinema. São Paulo: Graal, 1983.
WHITE, Hayden. Trópicos do discurso. São Paulo: Edusp, 2001. (Ensaios de
Cultura).
Williams, Raymond.
WINKIN, Yves. A nova comunicação: da teoria ao trabalho de campo. São Paulo:
Papirus, 1998.
WISNIK, José Miguel. O som e o sentido: uma outra história das músicas. São Paulo:
Companhia das Letras, 1989.
WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.
WOLF, Mauro. Teorias da comunicação. Portugal: Presença, 1993.
WOLTON, Dominique. Pensar a comunicação. Brasília: UnB, 2004.
ZAMORA, Lois P. Trompe l’ oeil tricks: Borges’ baroque illusionism. Houston: 2005
(mimeo).
363
ZIELINSKI, Siegried. Arqueologia da mídia: em busca do tempo remoto das técnicas
do ver e do ouvir. São Paulo: Annablume, 2006.
ZIZEK, Slavoj. Bem-vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo, 2003.
HEMEROGRÁFICAS
Caligrama. Revista de Linguagem e Mídia. São Paulo: ECA, publicação
eletrônica (www.eca.usp.br/caligrama).
CORRÊA, Marcos Sá. Apanhado em flagrante. Veja. Rio de Janeiro, v. 30, nº 9, p. 18,
mar./1997.
F
OLHA DE SÃO PAULO, 23 de dezembro de 2007.
______________. março de 2001.
______________. março de 2007.
G
ALÁXIA. Revista Transdisciplinar de Comunicação, Semiótica, Cultura, nº 6,
outubro 2003. São Paulo: Educ; Brasília: CNPq, 2003.
Novos Estudos, nº 13. São Paulo: outubro de 1985.
REVISTA FAMECOS. Porto Alegre, nº 11, dezembro 1999.
REVISTA NOVA FRONTEIRA: estudos midiáticos, vol. V, n° 1, junho de 2003.
(Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação).
SITIOGRAFIA
www.mc.gov.br
www.uol.com.br
www.uol.com.br/tropico
www.tudosobretv.com.br/
www.mre.gov.br/cdbrasil
www.ibope.com.br
www.anatel.gov.br
www.cmn.ie
www.fpa.org.br
www.ibge.org.br
www.projetointermeios.com.br
www.iba.org.za
www.eticanatv.com.br
http://www.igutenberg.org/newjorna.html
www.eca.usp.br/caligrama
364
REFERÊNCIAS EXTRAÍDAS DOS NOTICIÁRIOS ANALISADOS (DISCURSOS)
Big Brother Brasil. Rio de Janeiro: Globo: fevereiro 2007, 1 fita de vídeo (60 min.)
VHS, son., color.
Fantástico. Rio de Janeiro: Globo: agosto 2007, 2 fita de vídeo (120 min.) VHS,
son., color.
Fantástico. Rio de Janeiro: Globo: setembro 2007, 1 fita de vídeo (60 min.) VHS,
son., color.
Jornal Hoje. São Paulo: Globo: setembro 2007, 1 fita de vídeo (60 min.) VHS, son.,
color.
Jornal Nacional. Rio de Janeiro: Globo: agosto 2007, 1 fita de vídeo (60 min.) VHS,
son., color.
Jornal Nacional. Rio de Janeiro: Globo: setembro 2007, 1 fita de vídeo (60 min.)
VHS, son., color.
Linha Direta. Rio de Janeiro: Globo: agosto 2007, 1 fita de vídeo (60 min.) VHS,
son., color.
Linha Direta. Rio de Janeiro: Globo: setembro 2007, 1 fita de vídeo (60 min.)
VHS, son., color.
Mais Você. São Paulo: Globo: setembro 2007, 1 fita de vídeo (60 min.) VHS, son.,
color.
Livros Grátis
( http://www.livrosgratis.com.br )
Milhares de Livros para Download:
Baixar livros de Administração
Baixar livros de Agronomia
Baixar livros de Arquitetura
Baixar livros de Artes
Baixar livros de Astronomia
Baixar livros de Biologia Geral
Baixar livros de Ciência da Computação
Baixar livros de Ciência da Informação
Baixar livros de Ciência Política
Baixar livros de Ciências da Saúde
Baixar livros de Comunicação
Baixar livros do Conselho Nacional de Educação - CNE
Baixar livros de Defesa civil
Baixar livros de Direito
Baixar livros de Direitos humanos
Baixar livros de Economia
Baixar livros de Economia Doméstica
Baixar livros de Educação
Baixar livros de Educação - Trânsito
Baixar livros de Educação Física
Baixar livros de Engenharia Aeroespacial
Baixar livros de Farmácia
Baixar livros de Filosofia
Baixar livros de Física
Baixar livros de Geociências
Baixar livros de Geografia
Baixar livros de História
Baixar livros de Línguas
Baixar livros de Literatura
Baixar livros de Literatura de Cordel
Baixar livros de Literatura Infantil
Baixar livros de Matemática
Baixar livros de Medicina
Baixar livros de Medicina Veterinária
Baixar livros de Meio Ambiente
Baixar livros de Meteorologia
Baixar Monografias e TCC
Baixar livros Multidisciplinar
Baixar livros de Música
Baixar livros de Psicologia
Baixar livros de Química
Baixar livros de Saúde Coletiva
Baixar livros de Serviço Social
Baixar livros de Sociologia
Baixar livros de Teologia
Baixar livros de Trabalho
Baixar livros de Turismo