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VICTOR MIRANDA MACEDO RODRIGUES
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UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA
UBERLÂNDIA – MG
2008
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VICTOR MIRANDA MACEDO RODRIGUES
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DISSERTAÇÃO apresentada ao Programa de Pós-
Graduação em História da Universidade Federal de
Uberlândia, como exigência parcial para obtenção
do título de Mestre em História.
Orientadora: Prof.ª Dr.ª Rosangela Patriota
Ramos
UBERLÂNDIA – MG
2008
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
R696f
Rodrigues, Victor Miranda Macedo, 1983-
Fernando Peixoto como crítico teatral na imprensa alternativa :
jornais Opinião (1973-1975) e Movimento (1975-1979) / Victor
Miranda Macedo Rodrigues. - 2008.
259 f.
Orientadora : Rosangela Patriota Ramos.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Uberlândia,
Programa de Pós-Graduação em História.
Inclui bibliografia.
1. História e teatro - Teses. 2. Peixoto, Fernando, 1937- - Crítica
e interpretação – Teses. 3. Teatro brasileiro – História e crítica – Teses.
I.Ramos, Rosangela Patriota. II. Universidade Federal de Uberlândia.
Programa de Pós-Graduação em História. III. Título.
CDU: 930.2:792
Elaborada pelo Sistema de Bibliotecas da UFU / Setor de Catalogação e Classificação
mg- 08/08
VICTOR MIRANDA MACEDO RODRIGUES
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Prof.ª Dr.ª Rosangela Patriota Ramos – Orientadora
Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Prof.ª Dr.ª Teresa Malatian
Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP)
Prof. Dr. Pedro Spinola Pereira Caldas
Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
Para meus pais Aparecido e
Oneida. Meu irmão Danilo. Onde
posso me encontrar.
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Durante a trajetória de pesquisa e de escrita de um trabalho, não são poucas as
mãos e as mentes que nos vêm ajudar. Por mais solitário que pareça, percebemos o quanto
precisamos de apoio, de força, de estímulo e de compreensão. Há sempre alguém para nos
dizer para onde ir, por onde passar e onde parar. Companheiros de caminhada.
Professora Rosangela Patriota, pela orientação sempre precisa, franca e honesta,
que muito contribuiu para a compreensão de meu próprio trabalho, de seus limites e de
suas possibilidades. Pela sua integridade pessoal e profissional que não hesita diante dos
desafios. Pela paciência e pela consideração que teve tido comigo desde os tempos de
graduação, pelo estímulo intelectual absoluto e sincero que me fez ser o que sou hoje,
como historiador.
Professor Alcides Freire Ramos e professor Pedro Spinola Pereira Caldas, pelas
considerações na banca de qualificação, fundamentais para o aprimoramento e
fortalecimento teórico-metodológico das questões que ainda estavam por definir. Espero
ter assimilado as suas orientações da melhor maneira possível.
Professora Teresa Malatian, como integrante da banca de defesa, pela leitura e
pelas observações que fez em relação a meu trabalho, estimulando novos caminhos a serem
seguidos adiante.
Professores do Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal
de Uberlândia, em especial à professora Dilma Andrade de Paula, Vera Lúcia Puga e Maria
Clara Thomaz Machado, pelo debate sempre profícuo nas disciplinas do curso, onde
tivemos a chance de confrontar as idéias e de seguir adiante.
Gisele Crosara Andraus, pela companhia que você foi, absoluta e integral, que me
auxiliou em todas as partes deste trabalho. Pela sua inteligência, praticidade e generosidade
constantes.
Talitta Tatiane Martins Freitas pela força fundamental e constante no momento
mais crítico da finalização deste trabalho.
Meus colegas da pós-graduação que, mesmo à distância, sempre buscaram estar
por perto: Gilmar Alexandre da Silva, Fabiana de Paula Guerra e Sérgio Daniel Nasser.
Meu pai, Aparecido de Macedo Rodrigues, no meu caminho de volta ao lar, pela
paciência, pelo apoio, pelo sentimento de amor constante. E, em especial à minha mãe,
Oneida Aparecida de Miranda, pela sua disponibilidade e pela sua contribuição para a
correção do texto final. Fundamental é o seu carinho e a sua atenção para que eu siga
adiante.
Os meus amigos do NEHAC, Maria Abadia Cardoso e Christian Alves Martins
pelo carinho sempre sincero e por nunca terem deixado a chama de nossa amizade apagar.
O meu amigo Mauro, meus tios Waldermir e Zilda e meu primo Gabriel que
sempre me receberam de braços abertos.
Deus, essencial.
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Resumo-----------------------------------------------------------------------------------------
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Abstract----------------------------------------------------------------------------------------
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Introdução-------------------------------------------------------------------------------------
01
Capítulo I:
Tempos urgentes e a experiência da oposição na “imprensa alternativa”: jornais
Opinião(1973-1975) e Movimento (1975-1979)-------------------------------------------------------
10
1.1 – Oposição e engajamento na década de 1970: sobre possibilidades e ações--------------
11
1.2 A “grande imprensa” e a “imprensa alternativa”: entre espaços de aceitação e de
contestação-----------------------------------------------------------------------------------------------
15
1.3 Os “jornais revolucionários”: as relações e os conflitos entre o poder e a imprensa
“oposicionista” e “alternativa” no Brasil-------------------------------------------------------------
26
1.4 – “Esquerda”, “esquerdas”, “alternativa”, “imprensa”----------------------------------------
41
1.5 – Sobre a “inspiração gramsciana” no cotidiano da “imprensa alternativa”----------------
46
1.6 – Opinião: um jornal “inteligente, aberto e democrático”------------------------------------
55
1.7 – Movimento: um jornal em benefício da “coletividade”-------------------------------------
59
Capítulo II:
Fernando Peixoto e sua concepção sobre o cenário teatral brasileiro nas páginas do
jornal Opinião (1973-1975)------------------------------------------------------------------------------
60
2.1 – Jornal Opinião e o caderno “Tendências e Cultura”-----------------------------------------
61
2.2 – Fernando Peixoto, Bertolt Brecht e Bernard Dort: “a única certeza é a dúvida”--------
64
2.3 – Fernando Peixoto e o advento da cena “alternativa”: “a saída, onde está a saída?”-----
69
2.4 – Por um novo teatro brasileiro: a luta contra a “ineficácia”, a “inutilidade” e a
“repetição”-----------------------------------------------------------------------------------------------
84
2.5 – As fronteiras e os dilemas na busca por um teatro “nacional e popular”-----------------
98
2.6 Fernando Peixoto, o crítico, e a reflexão sobre o trabalho de Fernando Peixoto, o
diretor-----------------------------------------------------------------------------------------------------
103
2.7 O crítico e a reflexão sobre a crítica teatral: “sensibilidade e astúcia para vencer
algumas armadilhas”------------------------------------------------------------------------------------
108
Capítulo III:
Tensão e tempos de crise na crítica teatral de Fernando Peixoto no jornal Movimento
(1975-1979)--------------------------------------------------------------------------------------------------
126
3.1 – Jornal Movimento: a continuidade de um projeto crítico na “imprensa alternativa”----
127
3.2 A irresponsabilidade, a mentira e a mistificação: a sobrevivência do teatro brasileiro
por um milagre------------------------------------------------------------------------------------------
128
3.3 – O ator: “um trabalhador enfeitado com lantejoulas coloridas”-----------------------------
139
3.4 Fernando Peixoto e sua crítica ao teatro brasileiro: “[...] pensar o problema a partir
de dados novos, concretos”----------------------------------------------------------------------------
146
3.5 – O dilema dos “clássicos” e a reflexão sobre os caminhos do teatro no Brasil-----------
163
3.6 – Fernando Peixoto e a função do encenador no teatro brasileiro no final dos anos 1970
176
3.7 – Para além do “popular”: a defesa de um teatro “nacional-popular”-----------------------
189
Conclusão--------------------------------------------------------------------------------------
216
Referencial Bibliográfico-------------------------------------------------------------------
264
Anexos------------------------------------------------------------------------------------------
238
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RODRIGUES, Victor Miranda Macedo. Fernando Peixoto como crítico teatral na
imprensa alternativa: jornais Opinião (1973-1975) e Movimento (1975-1979).
2008. 258
f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História do
Instituto de História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2008.
O presente trabalho tem como objetivo analisar a trajetória do ator e diretor brasileiro Fernando
Peixoto, como crítico teatral, na imprensa alternativa, especificamente, em dois periódicos: no
Opinião, entre 1973 e 1975, e no Movimento, entre 1975 e 1979. Buscamos entender o caráter
diferenciado da “imprensa alternativa” durante o período do regime militar brasileiro, a
heterogeneidade de sua proposta, a sua relação com os setores de oposição do país e o significado
político de fazer parte deste segmento jornalístico. As críticas de Peixoto, em ambos os jornais, são
importantes documentos para apreendermos os embates que ocorriam no teatro brasileiro: as
tendências artísticas em disputa, as novas formas de expressão e de resistência sob o signo da
censura e, principalmente, o significado do engajamento do crítico por um teatro politicamente
responsável, transformador e consciente de seu papel na luta pelas aspirações “nacionais e
populares”.
Palavras-Chave:
Imprensa Alternativa; Teatro brasileiro/Crítica teatral; Fernando Peixoto
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RODRIGUES, Victor Miranda Macedo. Fernando Peixoto como crítico teatral na
imprensa alternativa: jornais Opinião (1973-1975) e Movimento (1975-1979).
2008. 258
f. Dissertação (Mestrado em História Social) – Programa de Pós-Graduação em História do
Instituto de História, Universidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2008.
The present work has as objective to analyze the trajectory of the actor and Brazilian
director Fernando Peixoto, as teatral critic, in the “alternative press”, specifically, in two
periodic ones: Opinião, between 1973 and 1975, and Movimento, between 1975 and 1979.
We search to understand the character differentiated of the “alternative press” during the
period of the Brazilian military regimen, the heterogeneity of its proposal, its relation with
the sectors of opposition of the country and the meaning politician to be part of this
journalistic segment. The critical ones of Peixoto, in both the periodicals, are important
documents to apprehend strike them that they occurred in the Brazilian theater: the artistic
trends in dispute, the new forms of expression and resistance under the sign of the
censorship and, mainly, the meaning of the enrollment of the critic for a politically
responsible, transforming and conscientious theater of its function in the fight for “national
and popular” aspirations.
Keywords:
The Alternative press; Brazilian theater/Critical teatral; Fernando Peixoto
Pertence às mais notáveis particularidades do espírito humano,
[...] ao lado de tanto egoísmo no indivíduo, a ausência geral de
inveja de cada presente em face do seu futuro”,
diz Lotze. Essa reflexão
leva a reconhecer que a imagem da felicidade que cultivamos está
inteiramente tingida pelo tempo a que, uma vez por todas, nos
remeteu o decurso de nossa existência.
Felicidade que poderia despertar
inveja em nós existe tão-somente no ar que respiramos, com os
homens com quem teríamos podido conversar, com as mulheres
que poderiam ter-se dado a nós. Em outras palavras, na
representação da felicidade vibra conjuntamente, inalienável, a
(representação) da redenção. Com a representação do passado, que
a História toma por sua causa, passa-se o mesmo.
O passado leva consigo um índice
secreto pelo qual ele é remetido à redenção. Não nos afaga, pois,
levemente um sopro de ar que envolveu os que nos precederam?
Não ressoa nas vozes a que damos ouvido um eco das que estão,
agora, caladas? E as mulheres que cortejamos não têm irmãs que
jamais conheceram? Se assim é, um encontro secreta está então
marcado entre as gerações passadas e a nossa. Então fomos
esperados sobre a terra. Então nos foi dada, assim como a
cada geração que nos procedeu, uma fraca força messiânica, à qual
o passado tem pretensão. Essa pretensão não pode ser
descartada sem custo. O materialista histórico sabe disso.
Walter Benjamin – Sobre o conceito de história
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Introdução
IntroduçãoIntrodução
Introdução
2
O historiador inglês Edward Palmer Thompson, ao tratar da trajetória conturbada
e conflituosa dos poetas românticos ingleses, Wordsworth, Coleridge e Thelwall no final
do século XVIII e início do XIX, em relação aos valores revolucionários franceses que
ressoavam por todo o mundo ocidental, apresenta duas situações paradoxais que estes
artistas acabaram vivendo como conseqüência de suas escolhas e trajetórias pessoais, a do
desencanto e a da apostasia
O tema desta palestra é a apostasia e desencanto. uma diferença entre
os dois. Meu ponto de vista é o seguinte: o impulso criativo surgiu do
cerne desse conflito. uma tensão entre uma aspiração ilimitada por
liberdade, razão, égalité, perfectibilidade – e uma realidade peculiarmente
agressiva e incorrigível. O impulso criativo pode ser sentido durante todo
o tempo em que persiste essa tensão, mas quando a tensão diminui o
impulso criativo também falha. Não há nada no desencanto que seja
hostil à arte, mas quando se nega ativamente a aspiração, estamos à
beira da apostasia e a apostasia é um fracasso moral e um fracasso
imaginativo. Em literatos isso freqüentemente se apresenta com uma
disposição especial para autodepuração de aspectos imorais, seja no sr.
Southey, seja no sr. Auden. É um fracasso imaginativo porque envolve
esquecer ou manipular de modo inadequado a autenticidade da
experiência: uma mutilação do próprio ser existencial anterior do
escritor.
1
Ao tratar destes poetas ingleses, Thompson se preocupou em demonstrar a
“atmosfera” social e política na qual estavam inseridos, ao mesmo tempo em que suas
inspirações e criações artísticas advinham da “tensão” viva e explosiva entre o
engajamento deles numa determinada causa “revolucionária” e a realidade contrária e
resistente às suas aspirações. A figura destes homens que nos é apresentada afasta-se do
heroísmo altruísta, de coerência infinita. Muito menos os aponta como culpados pela
derrota da causa que acreditavam por causa das experiências de “desencanto” ou de
“apostasia” que viveram. Efetivamente, o que de original nas análises de Thompson é
justamente buscar as razões para tais sentimentos, que não partiam simplesmente de uma
opção individual e isolada, não se limitavam às causas externas e mecânicas como a
perseguição e a dificuldade de propagarem suas idéias. A passagem do engajamento para o
questionamento e o abandono dos ideais não é uma atitude direta e imediata. São avanços e
recuos, afirmativos e negativos, certezas e dúvidas. Depende não apenas do tempo em que
estas experiências estão inseridas, mas também do local onde estão sendo colocadas em
questão, das pessoas envolvidas neste contexto. Aproximar-se destes jogos de forças,
1
THOMPSON, Edward Palmer. Desencanto ou apostasia? In: ______. Os Românticos. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2002, p. 56-57.
Introdução
IntroduçãoIntrodução
Introdução
3
confusos, paradoxais e contraditórios é, sem dúvida, perceber que o passado, quando se
apresenta ao presente por meio da história, não é uma seqüência uniforme e linear de
acontecimentos, sentimentos e razões, com um final feliz ou melancólico. Estes são por
demais poderosos e, simplesmente, nos fazem esquecer os momentos onde tudo ainda
estava no campo da possibilidade, tanto a vitória como a derrota.
Podemos ir além e percebermos que o “desencanto” e a “apostasia” são
possíveis de serem compreendidos e melhores situados pelo fato de estarem ligados à
poderosa experiência do “engajamento”. Na realidade, o “engajamento” em relação a
determinados valores dentro da luta e do conflito político, ao contrário do que possa
parecer, também carrega seus lapsos de vida e de hesitação, e que não tem
necessariamente um fim.
Estas nossas preocupações iniciais advêm justamente quando concentramos as
nossas preocupações em relação a Fernando Peixoto. Ele foi uma das figuras mais atuantes
da cena teatral brasileira desde o final da década de 1950, quando iniciou a carreira
artística em sua cidade natal, Porto Alegre. Indo para São Paulo na década seguinte, fez
parte como ator e diretor de dois grupos teatrais representativos daquele momento, o Arena
e o Oficina. Na década de 1970, optou por um trabalho mais independente como diretor,
atuando em diversas companhias como no Studio São Pedro e na Othon Bastos Produções
Artísticas, tendo mais opções e possibilidades de escolha. No mesmo período também
atuou no cinema e na televisão, onde pôde aumentar as suas possibilidades de ão e de
trabalho, sempre buscando contribuir para o debate, a resistência e a luta contra a ditadura
militar no Brasil que estava em vigor desde 1964. É interessante nos atentarmos a um
depoimento de Peixoto, do ano de 2002, relembrando a sua trajetória artística nestes
diferentes momentos, em que ele demonstra sua preocupação em relação ao que estava
acontecendo nos palcos brasileiros:
Enfim, resumindo: essa trajetória toda, de 1970 a 1980, foi sempre uma
tentativa de provocar reflexões na platéia, de fazer com que o público
tivesse uma capacidade de reencontrar a si mesmo, de rediscutir os
problemas do seu cotidiano, aquilo que ele às vezes nem percebe, e
repensar certos valores, procurando sempre uma postura dialética, no
sentido de provocar esse diálogo vivo entre o espetáculo e o espectador;
para que a platéia saísse de lá grávida de valores novos, de dúvidas novas,
para que pudesse enfrentar e, quem sabe, transformar e melhorar a
sociedade.
2
2
GARCIA, Silvana. (Org.). Odisséia do Teatro Brasileiro. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002,
p. 89.
Introdução
IntroduçãoIntrodução
Introdução
4
O que temos acima é uma demonstração das idéias e dos valores que Fernando
Peixoto, vinte anos após o fim do período mencionado, busca salientar como essenciais e
constantes em seus trabalhos teatrais naquela conjuntura. Efetivamente não podemos
deixar de mencionar que ele se tornou um dos principais difusores e estudiosos da obra, do
teatro e do pensamento do dramaturgo alemão Bertolt Brecht em nosso país, sendo para ele
uma referência essencial em suas diversas atividades. Além disso, fazia parte, desde a
juventude, dos quadros do PCB (Partido Comunista Brasileiro) que, obviamente, tinha um
peso considerável nos anos do regime militar devido às suas ações de oposição e de
reivindicações pelo retorno das liberdades democráticas.
3
O que nos instiga é justamente a
possibilidade de examinarmos de maneira mais próxima e detalhada o que há por trás deste
“engajamento”, desta aparente certeza existente nas ações suas como artista, que tinha
como preocupação efetivar um diálogo fecundo e dialético entre palco e platéia, na busca
pela transformação do homem e da sociedade.
Dos “espaços” que estavam abertos para Peixoto no Brasil na década de 1970, o
palco foi um dos que ele teve para expressar os seus valores, o seu descontentamento e
suas intenções como artista e como intelectual. Mas ele também esteve em outros
“espaços” que foram amplamente utilizados pelos setores oposicionistas e engajados da
sociedade em nosso país. No caso específico de Peixoto, seu trabalho como crítico teatral
nos “jornais alternativos” Opinião e Movimento entre os anos de 1973 e 1979 constatamos
mais um lado de seu “engajamento”, ligado ainda ao palco, mas de uma outra perspectiva:
a de alguém que assiste determinados espetáculos, acompanha o trabalho dos atores e dos
diretores, critica o que como entrave para os seus objetivos e que reconhece o valor
daquilo que vai de acordo com as suas perspectivas. Obviamente as sua opção, aquela que
considerava necessária e verdadeira (como a que cita em 2002) não foi a única. Do mesmo
modo que ele atacou, ele recebeu a contrapartida daqueles que estavam em outros campos
em disputa. Na realidade, podemos afirmar que o “engajamento” só é possível num
determinado momento onde existem outras opções e, que estas opções, sejam divergentes
tanto em suas origens como em seus fins. Por isso, a necessidade de uma defesa
3
Para dados e referências mais aprofundados sobre a trajetória de Fernando Peixoto no teatro, no cinema e
na televisa: PATRIOTA, Rosangela; RAMOS, Alcides Freire. Fernando Peixoto: um artista engajado na
luta contra a ditadura militar (1964-1985). Revista FênixRevista de História e de Estudos Culturais, v.
3, ano 3, n. 4, p. 1-34, Out-Nov-Dez 2006. Disponível em: <<
www.revistafenix.pro.br>>. Acesso em: 27
mar. 2008.
Introdução
IntroduçãoIntrodução
Introdução
5
intransigente de determinados pontos de vista. Todos sabem que isto é fundamental para
que não sejam simplesmente eliminados e esquecidos.
O pensador italiano Antonio Gramsci, ao pensar sobre as diferentes correntes
artísticas existentes num determinado momento histórico, aponta justamente sobre a
dificuldade de estabelecermos certezas e considerações em relação ao que ainda viria,
assim como um juízo hierárquico para definir as manifestações mais importantes de um
período:
Um determinado momento histórico-social jamais é homogêneo; ao
contrário, é rico de contradições. Ele adquire “personalidade”, é um
“momento” do desenvolvimento, graças ao fato de que, nele, uma certa
atividade fundamental da vida predomina sobre as outras, representa uma
“linha de frente” histórica. Mas isto pressupõe uma hierarquia, um
contraste, uma luta. Deveria representar o momento em questão quem
representasse esta atividade predominante, esta “linha de frente”
histórica; mas como julgar os que representam as outras atividades, os
outros elementos? Será que estes também não são “representativos”? E
não é “representativo” do “momento” também quem expressa seus
elementos “reacionários” e anacrônicos? Ou será que deve ser
considerado representativo quem expressa todas as forças e elementos em
contradição e em luta, isto é, quem representa as contradições da
totalidade histórico-social?
4
Mesmo Gramsci não respondendo diretamente as questões que faz sobre como
avaliar objetivamente o que é ou não representativo um determinado momento, ele traz um
dado importantíssimo para a análise do tempo histórico: a de que ele jamais é
“homogêneo”, mas que em seu interior temos disputas em questão e que é bastante
complexo, sendo necessário determinarmos com exatidão o valor de cada um. O
pensamento e as críticas de Peixoto podem ser analisados sob um viés similar. Suas críticas
em Opinião e em Movimento não foram concebidas para expressarem a totalidade de uma
época. Podemos dizer, que nem mesmo a totalidade do pensamento do crítico, que não se
limitou apenas a publicar seus artigos nos dois jornais durante um período de pouco mais
de seis anos. Mas, o próprio fato dele estar dentro de um jornal específico, como
observamos em nosso trabalho, significava uma série de compromissos intelectuais e
políticos subseqüentes, sendo possível o destaque e a compreensão de uma série de razões
e comprometimentos.
Neste caso, as críticas vão, pouco a pouco, iluminando sobre certos temas que
eram fundamentais naquela conjuntura como, por exemplo, a função social e política do
4
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 65. v. 6.
Introdução
IntroduçãoIntrodução
Introdução
6
teatro na sociedade brasileira, a importância da crítica teatral e a questão do “nacional-
popular”, sendo que boa parte do setor teatral interessava-se por tais definições. Mas, ainda
que estas críticas fossem colocadas numa determinada linha de tempo lógica, é importante
dizer que elas não seguiam nenhum planejamento prévio. Fernando Peixoto, no decorrer de
seu trabalho nos jornais, foi estabelecendo uma série de temas que iam sendo trabalhados
aleatoriamente, no sentido de que seu trabalho como crítico visava muito mais responder
imediatamente o que ele via como relevante no espaço de uma semana, quinze dias,
pensando na freqüência da publicação dos jornais. Devemos levar em consideração, ainda,
o caráter “descartável” que estes periódicos significavam para o público leitor em geral. As
críticas não traziam de maneira completa respostas ou conceitos definidos. Na maioria das
vezes tratavam de autores e espetáculos isolados, de situações específicas. Na realidade, o
trabalho de compreender o “engajamento” de Peixoto, no final da década de 1970 por meio
de seus textos, passa exatamente por um processo de montagem a partir de diferentes
“peças” que fomos reunindo e organizando, tentando estabelecer os pontos de contatos que
melhor contribuíssem para especificarmos os diferentes embates e dilemas que ele foi
vivendo no decorrer destes anos.
A organização do nosso trabalho obedeceu a seguinte ordem: no primeiro
capítulo, intitulado Tempos urgentes, a experiência da “imprensa alternativa”: jornais
Opinião e Movimento, buscamos demonstrar o que significava justamente estar dentro
destes jornais, apontando os aspetos diferenciais da questão econômico-financeira, a sua
originalidade em relação à “grande imprensa”, a questão de seu funcionamento interno e
das relações desta “imprensa alternativa” com os grupos de oposição ao regime militar
brasileiro. Além disso, um aprofundamento na história da trajetória dos dois jornais e da
ligação quase fraternal entre ambos, buscando delimitar tanto suas origens como o papel
que buscavam exercer naquela conjuntura específica, onde ter problemas com a “censura”
começava a ser uma parte “integrante” e até mesmo importante para a “personalidade”
destes periódicos. Efetivamente, nosso trabalho buscou como referências os debates sobre
o papel da imprensa brasileira demonstrar as diferentes visões em torno de conceitos
comuns, como no caso da “imprensa alternativa”. Neste sentido autores como Maria
Aparecida Aquino, Bernardo Kucinski, Raimundo Rodrigues Pereira, Beatriz Kushnir Ana
Paula Nascimento Araújo, Heloísa de Faria Cruz, Maria Luiza Tucci Carneiro e Boris
Kossoy.
Introdução
IntroduçãoIntrodução
Introdução
7
No segundo capítulo, O debate de Fernando Peixoto e sua concepção sobre o
cenário teatral brasileiro em meados da década de 1970 nas páginas do jornal Opinião,
buscamos demonstrar algumas referências fundamentais e que foram constantes no
trabalho crítico de Fernando Peixoto, como a influência de Bertolt Brecht e do crítico
francês Bernard Dort. Acompanhamos a discussão exaustiva que ele faz em torno da “cena
teatral alternativa” que começava a ganhar força naquele momento e que também foi um
dos temas mais candentes que sua geração, instigando uma série de artistas e intelectuais
na discussão dos limites e da relevância destas manifestações no cenário teatral brasileiro,
na questão do engajamento e das aspirações coletivas da sociedade. Ao mesmo tempo, o
crítico não economiza as suas críticas para demonstrar o estágio de apatia e de repetição
existente nos espetáculos apresentados no Brasil, principalmente em sua resistência aos
“clássicos” como Nelson Rodrigues e o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), a falta de
criatividade e de ousadia decorrentes de uma série de limitações que foram impostas
historicamente e que eram urgentes de serem eliminadas. Além disso, o tratamento
cuidadoso, mas ao mesmo tempo crítico em relação às possibilidades do “teatro popular”,
principalmente quando levamos em conta a preocupação de Peixoto em tornar o teatro
numa atividade que tenha amplitude e capacidade de transformação social. Faz parte de
nossa análise as críticas de Fernando Peixoto em relação ao seu próprio trabalho como
diretor, que são bastante valiosas ao delimitarmos os seus referenciais políticos e estéticos,
a chave para compreendermos as outras críticas feitas durante a sua estada dentro do
Opinião e, posteriormente, no Movimento. Finalmente, a importância e a função da crítica
teatral naquele momento. Percebemos que para Peixoto, a sua atividade como crítico
ultrapassava a simples descrição do que era visto em cima do palco. Ele tinha uma
pretensão maior e bem mais atuante em relação à sociedade em geral.
Em nosso terceiro capítulo, A tensão e os tempos de crise na crítica teatral de
Fernando Peixoto no jornal Movimento, se temos alguns temas gerais semelhantes aos do
segundo capítulo, como a crítica ao cenário teatral brasileiro em geral e, também, aos
“clássicos” que continuavam travando todo um movimento teatral ligado a expressões mais
conseqüentes, populares e engajadas, o que temos, na verdade, são novos enfoques que
Peixoto buscou ressaltar e até mesmo aprofundar neste novo jornal. Além disso, notamos
uma visão bem mais crítica e sombria em seus textos sobre a situação e a sobrevivência do
teatro brasileiro, visto por ele como “irresponsável”, “mentiroso” e “mistificador”. Uma
outra preocupação diz respeito à profissão de ator num momento em que o teatro perdia
Introdução
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8
paulatinamente as suas preocupações políticas e artísticas e passava a ser mais uma
empresa preocupada em obter público e lucro da maneira mais rápida possível de como
este profissional deveria agir no sentido de direcionar os seus esforços em prol de uma
resistência a estas formas de mercatinlização da arte no país. Mais uma vez, temos a crítica
aos espetáculos que Peixoto assiste nestes anos e, efetivamente, demonstra cada vez mais o
nível de discussão que ele tentava estabelecer com a cena teatral brasileira, se
aproximando do final da década de 1970. Se no Opinião, temos a questão da crítica como
uma preocupação mais pulsante, no Movimento temos um debate mais aprofundado sobre a
função do encenador, das novas atribuições e status que vão adquirindo, da
responsabilidade em relação ao que é colocado sobre o palco. Por fim, uma continuação do
debate sobre a participação das “classes populares” no teatro brasileiro, no sentido da
utilização do conceito de “nacional-popular” como uma saída urgente e necessária para a
superação das barreiras nas quais o teatro brasileiro se via envolvido.
Para conseguirmos estabelecer uma reflexão mais conseqüente em relação aos
vários temas presentes nas críticas de Fernando Peixoto, tivemos que recorrer à uma série
de críticas, depoimentos e entrevistas de personalidades essenciais da história do teatro
brasileiro como Décio de Almeida Prado, Anatol Rosenfeld, Yan Michalsky, Oduvaldo
Viana Filho, Paulo Pontes, Augusto Boal, José Celso Martinez Corrêa, Gianfrancesco
Guarnieri, Chico Buarque, Hermilo Borba Filho, Nelson Rodrigues, Procópio Ferreira,
Amir Haddad, Carlos Henrique Escobar, Maria Helena Küner e Pedro Bloch.
Ao refletirmos especificamente sobre a questão do “engajamento político”, tanto
jornalístico como artístico, pontos fundamentais para compreendermos a figura de
Fernando Peixoto naquela conjuntura, Bertold Brecht, Bernard Dort, Antonio Gramsci,
Eric Bentley, Terry Eagleton, Walter Benjamin, E. P. Thompson e Carlos Alberto
Vesentini têm um peso preponderante em nosso trabalho por nos inspirarem numa
determinada construção de história que passa distante das generalizações e das
homogeinizações.
Obrigam-nos a buscar sempre uma perspectiva crítica em relação à função
transformadora do teatro na sociedade, assim como os impasses que o mesmo ainda não
conseguiu superar e muitas vezes se ilude acreditando que pode revolucionar o mundo
dentro de uma sala de espetáculos. Demonstra a importância dos intelectuais na
organização da cultura e da ligação orgânica dos intelectuais com as classes populares
como condição sine qua non para uma comunicação efetiva entre artistas e público.
Introdução
IntroduçãoIntrodução
Introdução
9
Problematizam sobre o real valor do “engajamento político” em nosso tempo, ao mesmo
tempo em que nos auxiliam no entendimento das várias formas como esse “engajamento”
se expressou e buscou justificar-se. Refletem sobre os impasses, os riscos e os recuos das
opções políticas na história, sobre o peso e o impacto sentimental que causam naqueles que
entram numa batalha onde qualquer resultado é possível. Estimulam a análise sobre a luta
que ocorre pela interpretação do próprio passado e salientam a responsabilidade crucial do
historiador em todo este processo de aceitação e negação daquilo que normalmente é
oferecido como “fato”, principalmente quando compreendemos que o passado não é uma
simples seqüência de acontecimentos interligados mecanicamente.
As críticas de Fernando Peixoto sobre o teatro brasileiro nos jornais Opinião e
Movimento na década de 1970 são documentos valiosíssimos por serem expressões
“quentes”, “vivas” e “imediatas” das aflições, combates, vitórias e derrotas de uma
determinada concepção teatral. Na realidade, se existe algo fundamental, que está presente
em cada página de jornal e que desde já podemos mencionar, é o registro da “experiência”.
Benjamin nos alertava sobre o tempo passado, onde “cada segundo era a porta estreita
pela qual podia passar o Messias”. E esta noção é fundamental para a construção do
discurso histórico que busca apreender a urgência da espera deste segundo. O
“engajamento” de Peixoto em torno de uma determinada concepção teatral e política,
naquele momento, representava exatamente um momento onde suas idéias tinham uma
ressonância considerável e ainda estavam no campo da possibilidade, como projetos que
podiam ser colocados em prática. Notamos que sua permanência e resistência nestes
valores exigiram dele reflexões conseqüentes no sentido de se situar e, especialmente, não
se iludir com as vitórias esparsas. Elas eram poucas e restritas demais quando ele pensava
em tudo aquilo que o teatro brasileiro poderia ser. Seria pretensão excessiva por parte de
Peixoto, que colocava em seus textos as “tarefas” a serem feitas pela classe teatral? Que
não hesitava em criticar os “clássicos” e que exigia a “consciência de classe” por parte dos
artistas brasileiros? Sem dúvida, em alguns momentos, este “engajamento” vai parecer
carregado de um sentimento de superioridade por parte do crítico. Mas, também, vamos
perceber que a luta que se travou dentro do teatro brasileiro naquele breve período era
pulsante e intensa. Não havia como escapar ou tornar-se neutro numa atmosfera tão densa
de conflitos, sentidos e experiências.
Esse jornal seria parte de um
gigantesco fole de uma forja que
atiçasse cada fagulha da luta de
classes e da indignação popular,
para daí fazer surgir um grande
incêndio. LÊNIN, Vladimir Ilich.
Vladimir Ilich Lênin – Que Fazer?
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Capítulo I
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11
1.1 OPOSIÇÃO E ENGAJAMENTO NA DÉCADA DE 1970: SOBRE
POSSIBILIDADES E AÇÕES
No jornal Opinião do dia 25 de março de 1977, Luiz Costa Lima, em um texto
intitulado “Jornalismo cultural e imprensa nanica”, fez as seguintes observações sobre as
particularidades do que se convencionou chamar de “imprensa alternativa”, sobre seus
temas, seu funcionamento, seu método e sua linguagem:
Não nos enganemos: não somos menos repressivos por falarmos de
assuntos contrários ao que declara o manual de boas maneiras da
repressão instituída. Através deste conflito de assuntos, cria-se, no
máximo, uma superfície temática antagônica. No fundo, entretanto, ela se
alimenta de e estimula uma mesma sintaxe: a sintaxe do imperativo
peremptório.
5
Na continuidade do texto, Lima procura abalar os pilares que sustentavam esta
imprensa que tinha como uma de suas principais premissas ser o oposto da chamada
“grande imprensa”. Ao questionar as certezas e as verdades sobre a forma de produção
deste segmento jornalístico “alternativo”, ele faz uma crítica severa aos modos de como até
então ele tinha se perpetuado e sobrevivido, não se livrando de contradições e de traços
tipicamente autoritários. Mesmo referindo-se às escolhas, aos engajamentos, às lutas que
travaram na década de 1970, em pleno regime militar, em meio à censura e repressão, faz o
seguinte alerta em seu artigo:
As conseqüências disso não poderiam ser mais graves: é assim que se
criam condições perpetuadoras de um sistema repressivo que tenderá a
permanecer mesmo que desapareçam as instituições políticas que o
fizeram circular. Para essa situação contribui, por outro lado, a própria
idéia, assegurada pelos manuais de comunicação, que se tem da
linguagem jornalística: meio neutro de divulgação, mediação entre o real
e o anônimo público dos não especialistas. Tomar a linguagem da
imprensa como meio de divulgação e não como uma forma, ainda que
incipiente de produção e de difusão do saber ao redator uma
confortável boa consciência e, aos donos do jornal, uma evidente
vantagem: seu produto é mais facilmente colocável, porque facilmente
digerível.
6
O texto continua apontando os dilemas da “imprensa alternativa”. Ser o oposto do
existente e do hegemônico não seria o bastante para afirmar a existência de algo “novo” e,
principalmente, “revolucionário”. Este raciocínio parte do pressuposto de que o signo
5
LIMA, Luiz Costa. Jornalismo cultural e imprensa nanica. Jornal Opinião, 04/02/1977, p. 24.
6
Ibid.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
12
definidor dessa mudança se concentraria na “linguagem” utilizada por esses meios de
comunicação, na alteração de seus mitos, de seus clichês e de suas formas habituais de
expressão.
Nesta citação, ao chamar a atenção para o “imperativo peremptório” como forma
de expressão da imprensa em geral, uma constatação de que o autoritarismo seria uma
marca constante na sociedade e que, os “projetos alternativos”, não apenas jornalísticos,
mas, também, políticos, não estavam livres deste estigma. Daí a necessidade, caso
houvesse o real interesse, de uma auto-reflexão por parte da “imprensa alternativa” em
relação ao seu papel diante da conjuntura em que estava inserida: uma mudança profunda
na forma de dizer e de se expressar. A urgência de uma tomada de posição clara, mas
acima de tudo, democrática, capaz de ampliar as perspectivas e percepções, reconhecer e
assimilar as diferentes formas de lutas que existiam naquela realidade histórica. Questionar
os valores existentes, mexer com as verdades e os velhos hábitos. Uma forma de
comunicação nova que ultrapassasse, segundo o autor, a simples “superfície temática
antagônica”.
Lima ainda questiona as idéias de “neutralidade” e “isenção”, extremamente caras
à imprensa em geral. Pelo fato de permitirem uma sensação de bem-estar ético e moral,
estas “atitudes” são constantemente propaladas nos editoriais dos jornais. Porém, cabe aqui
alguns questionamentos iniciais: a escolha da “realidade” que vai ser publicada ou não, já
demonstra algum tipo de juízo de valor, graus de importância e de relevância. A linguagem
em sua expressão carrega intenções, valores e preconceitos, ou seja, determina e contribui
de maneira considerável a maneira de ler e de compreender o que foi lido. Não é gratuita a
mensagem que Luiz Costa Lima deixa no final de seu texto, onde busca alertar a imprensa
para a quebra de “antigas” formas:
Parece-me assim que, para ser eficiente, o jornalismo cultural necessita
tanto pôr em questão a dicotomia jornal-universidade, entendidos
normalmente como os espaços de difusão e da especulação. Enquanto, ao
contrário, a preocupação com a linguagem parecer uma herança
acadêmica, coisa de gramáticos e formalistas, estaremos dando condições
para que se perpetuem os esquemas autoritários, quer em sua forma
“liberal”, quer em sua forma “asiática”. O primeiro defende seus lucros,
dando ao mercado o que ele mais facilmente pode digerir. O segundo
defende seus privilégios, ensinando ao mercado o que ele deve querer.
Para o êxito de ambos, entretanto, uma mesma condição se impõe: que se
extirpe a função interrogativa. Pois interrogar é a primeira maneira de
contrariar o estabelecido.
7
7
LIMA, Luiz Costa. Jornalismo cultural e imprensa nanica. Jornal Opinião, 04/02/1977, p. 24.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
13
A capacidade de questionar o habitual, o cotidiano, o tradicional. O que temos
com a discussão acima é uma espécie de síntese de todo um debate que ocorria, não apenas
no campo jornalístico, mas nos diversos níveis da sociedade, principalmente em relação à
quebra do autoritarismo nas suas mais diferentes esferas. Em nosso país, golpe perpetrado
pelos militares em 1964, juntamente com todo o aparato repressivo e autoritário, em
especial o AI-5 em 1968,
8
contribuiu para a exacerbação deste clima opressivo. Este visou
eliminar qualquer oposição ao regime utilizando-se da força e do poder, também político.
Obrigou as “esquerdas” a uma série de definições quanto à forma e os meios de continuar
exercendo o seu papel nos estreitos limites de estipulados.
Os anos de 1970 no Brasil são emblemáticos para as esquerdas” pelo fato de
ocorrer o desmembramento e o surgimento de novas perspectivas políticas, novos
caminhos e novas lutas que vão se fazendo possíveis e relevantes num cenário que, de
qualquer maneira, avistava uma possibilidade de abertura. Ana Paula Nascimento Araújo
em A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970
faz a seguinte análise de todo esse momento da história do país:
Estudar os anos 1970 no Brasil é voltar-se para um quadro de grande
pujança, marcado pela vivência cotidiana de um confronto político que se
dava em diferentes níveis: dentro do regime militar, conflito entre uma
“linha dura e os adeptos de uma “distensão lenta e gradual”; na
sociedade, uma disputa por todos os espaços possíveis, da mídia às ruas.
Grandes campanhas, como a luta pela anistia ou contra a carestia, que
mobilizavam o que havia de organizado na sociedade (movimento
estudantil, a Igreja progressista, movimentos sindicais estes bem fortes
na época, principalmente os sindicatos de trabalhadores assalariados de
classe média, como bancários, professores, jornalistas, arquitetos etc.).
Lutas políticas que pressionavam contra os limites da legalidade. Além
disso, fervilhava uma produção política e teórica não apenas nas
universidades, mas também nos movimentos organizados. Some-se a isso
8
“Os poderes atribuídos ao executivo pelo Ato Institucional 5 podem ser assim resumidos: 1) poder de
fechar o Congresso Nacional e as assembléias estaduais e municipais; 2) direito de cassar os mandatos
eleitorais de membros dos poderes Legislativo e Executivo nos níveis federal/estadual e municipal; 3)
direito de suspender por dez anos os direitos políticos dos cidadãos, e reinstituição do ‘Estatuto dos
Cassados’; 4) direito de demitir, remover, aposentar o pôr em disponibilidade funcionários das
burocracias federal, estadual e municipal; 5) direito de demitir ou remover juízes, e suspensão das
garantias ao Judiciário de vitaliciedade, inamovibilidade e estabilidade; 6) poder de decretar estado de
sítio sem qualquer dos impedimentos fixados na Constituição de 1967; 7) direito de confiscar bens como
punição por corrupção; 8) suspensão da garantia de hábeas corpus em todos os casos de crimes contra a
Segurança Nacional; 9) julgamento de crimes políticos por tribunais militares; 10) direito de legislar por
decreto e baixar outros atos institucionais ou complementares; e finalmente 11) proibição de apreciação
pelo Judiciário de recursos impetrados por pessoas acusados em nome do Ato Institucional 5. Os réus
julgados por tribunais militares não teriam direito a recursos. Todas as disposições do ato permaneceriam
em vigência até que o Presidente da República assinasse decreto específico para revoga-lo”. ALVES,
Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984, p. 131.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
14
uma influência de idéias e práticas políticas inovadoras que vinham do
cenário internacional. Junto com elas, surgiam movimentos de novo tipo,
os chamados “movimentos de diferença”. Era esse o pano de fundo da
década de 1970 no Brasil.
9
A busca de formas alternativas de contestação e de resistência ao regime ditatorial
por diversos setores da sociedade era uma saída diante do cenário de repressão
institucional que estava em vigor na década de 70 e que se estendeu até meados da década
seguinte. O bipartidarismo entre o ARENA, ligado ao governo militar, e o MDB, único
meio político e legal de se fazer oposição, é significativo ao demonstrar o grau de
homogeneização político-institucional que a ditadura pretendeu impor sobre o país. Neste
contexto, mesmo com os riscos advindos da repressão, as ações cotidianas ganhavam uma
nova conotação. Os movimentos sindicais se reorganizavam desatrelados da máquina
governamental, pretendendo maior autonomia no estabelecimento das reivindicações.
Manifestações e ações populares contra o arrocho salarial, a inflação e a carestia
impuseram uma nova pauta de discussões e de necessidades da população em geral. A
Igreja Católica e seus quadros ligados à Teologia da Libertação estimularam a criação das
CEB’s (Comunidades Eclesiais de Base) que buscavam conciliar a com a ão política
na busca de uma sociedade mais fraterna e igualitária.
Os “setores médios” engajados politicamente também se viram envolvidos com
todo esse momento. O texto “Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição de classe
média ao regime militar” de Maria Hermínia Tavares de Almeida e Luiz Weis busca
elucidar as diversas formas de comportamento, táticas e atitudes destes setores da
sociedade que, dentro de seus limites e opções, buscavam fazer a sua parte:
Nesse ambiente, fazer oposição podia significar uma infinidade de coisas.
De fato, as formas de participação e o grau de envolvimento na atividade
de resistência variavam desde ações espontâneas e ocasionais de
solidariedade a um perseguido pela repressão até o engajamento em
tempo integral na militância clandestina dos grupos armados. Entre esses
dois extremos, ser de oposição incluía assinar manifestos, participar de
assembléias e de manifestações públicas, dar conferências, escrever
artigos, criar músicas, romances, filmes ou peças de teatro; emprestar a
casa para reuniões políticas, guardar ou distribuir panfletos de
organizações ilegais, abrigar um militante de passagem; fazer chegar à
imprensa denúncias de tortura, participar de centros acadêmicos ou
associações profissionais, e assim por diante.
10
9
ARAÚJO, Ana Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 15.
10
ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de; WEIS, Luiz. Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição
de classe média ao regime militar. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. (Org.). História da vida privada no
Brasilcontrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 327-328. v. 4.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
15
As considerações feitas por Almeida e Weis revelam, dentro de um espectro
muito amplo, uma variedade de atitudes que se caracterizavam, naquele momento, por ser
de “oposição”. A luta armada, situada no ponto radical alcançado pela “esquerda”, até as
ações ocasionais e esporádicas, ligadas a uma “causa justa”, são os limites apontados pelos
autores dentre as rias possibilidades de “engajamento político”. A intenção desta parcela
da população era, de alguma maneira, modificar a situação brasileira, seja por meio da
ação, seja por meio da reflexão, contribuir para o estabelecimento de uma nova ordem mais
justa e, principalmente, democrática. No campo destes setores oposicionistas, a imprensa
tornava-se, apesar da censura constante que vetava textos inteiros, uma saída bastante
utilizada para a difusão de idéias e conceitos, para a discussão de temas e notícias que
tinham a necessidade de serem lidos, discutidos e colocados em questão.
Efetivamente, com o advento do regime militar, como qualquer campo da
sociedade, a imprensa também fez a sua escolha. De um lado, tínhamos jornais e
jornalistas, partes de poderosos grupos de comunicações e que, tanto por questões de
sobrevivência, como por questões ideológicas e de valores, evitavam o confronto direto
com o regime militar sabendo do perigo e dos riscos, se adequavam aos limites impostos
pelos governos ditatoriais. Havia em seus quadros jornalistas “domesticados” que
mantinham uma postura segura dentro destes limites. Do outro, iniciativas eram gestadas
naquele momento por um grupo heterogêneo e amplo, advindo de diversos setores da
sociedade, numa tentativa de fazer frente e oposição àquela situação: a “imprensa
alternativa”.
1.2 A GRANDE IMPRENSA E A IMPRENSA ALTERNATIVA”: ENTRE
ESPAÇOS DE ACEITAÇÃO E DE CONTESTAÇÃO
Antes de nos determos sobre o significado do termo e da particularidade da
“imprensa alternativa” no Brasil na década de 1970, convém salientar o papel essencial que
a imprensa, de maneira ampla e influente, exerce em nossa sociedade em geral, não apenas
como meio de informação mas, como afirma o pensador italiano Antonio Gramsci em seus
escritos sobre jornalismo, uma função educativo-formativa. Esta possibilidade de ação não
passou despercebida, como veremos posteriormente, pelos setores que travavam as
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
16
disputas políticas dentro do país; por isso a relevância de tal aprofundamento. Inserido
dentro de uma vasta estrutura ideológica, o jornal exerce um papel consistente e real dentro
da sociedade:
A imprensa é a parte mais dinâmica desta estrutura ideológica, mas não a
única: tudo o que influi ou pode influir sobre a opinião pública, direta ou
indiretamente, faz parte dessa estrutura. Dela fazem parte: as bibliotecas,
as escolas, os círculos e os clubes de variado tipo, até a arquitetura, a
disposição e o nome das ruas. [...] Um tal estudo, feito com seriedade,
teria uma certa importância: além de dar um modelo histórico vivo de
uma tal estrutura, formaria o hábito de um cálculo mais cuidadoso e exato
das forças ativas na sociedade.
11
O pensador italiano, ao refletir sobre as forças ativas na sociedade” uma
importância considerável aos elementos culturais e educativos. Sua constatação parte
principalmente do momento em que ele redige estas análises. Efetivamente, ao pensar na
luta política contra o fascismo italiano nas décadas de 1920 e 1930,
12
Gramsci compreende
que esta forma de poder não se efetiva e se mantém por uma simples questão político-
partidária. Como um pensador marxista, que não almejava apenas uma resistência ao
regime de governo instaurado naquele momento por Benito Mussolini (também analisado
como uma reação conservadora contra as forças sociais e políticas das quais ele fazia
parte), mas sim a própria tomada e a instauração de um novo poder, percebe a necessidade
de se preocupar com outros “campos de luta”. Estes se localizam nos mais diferentes
aspectos da vida e do cotidiano da população em geral, sendo por isso justificada a sua
atenção nos aspectos menos “óbvios”. Essa mudança, ou melhor dizendo, diversificação de
foco, alerta-nos e chama-nos a atenção para a necessidade de uma análise das estruturas
ideológicas, no caso o jornalismo, no sentido de que este exerce uma força influente e
decisiva na opinião pública, na manutenção ou na oposição de determinado poder.
implícita a compreensão de que nada é isento ou neutro diante da realidade. Pelo contrário,
11
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do rcere. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 78-79.
v. 2.
12
Em 15 de março de 1924. no jornal Ordine Nuovo, Gramsci elabora o seguinte perfil do lides fascista
Benito Mussolini: “Temos na Itália, o regime fascista, temos a testa do fascismo Benito Mussolini, temos
uma ideologia oficial na qual o chefe é divinizado, é declarado infalível, é preconizado organizador e
inspirador de um Sacro Império Romano renascido. Vemos publicadas nos jornais, diariamente, dezenas e
centenas de telegramas de homenagem das grandes tribos locais ao chefe. Vemos as fotografias: a
máscara mais endurecida de um rosto que vimos nos comícios socialistas. Conhecemos aquele rosto,
conhecemos aquele girar de olhos nas órbitas que no passado devia, com a sua mecânica feroz, aterrorizar
a burguesia e hoje o proletariado. Conhecemos aquele punho sempre fechado para ameaçar. Conhecemos
todo este mecanismo, todo este arsenal e compreendemos que ele possa impressionar e mover as regiões
precordiais da juventude das escolas burguesas; ele é realmente impressionante também visto de perto”.
FIORI, Giuseppe. A Vida de Antonio Gramsci. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979, p. 240.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
17
tudo passa por construções e escolhas racionais e extremamente cuidadosas na definição do
lugar em que um determinado grupo social opta em ocupar, principalmente da relação que
terão com este poder instituído.
Mas antes de simplesmente defender uma luta fragmentada e difusa, Antonio
Gramsci, afirma sobre a necessidade de uma orientação específica no direcionamento dos
embates. Salienta a importância da confluência e da unidade dos fins e, principalmente, dos
meios a serem utilizados para alcançar os objetivos de seu “grupo social”. Neste caso,
torna-se essencial, buscarmos ainda em Gramsci, o conceito de “intelectual”, que teria um
papel fundamental neste processo.
Sendo um dos conceitos mais discutidos e difundidos do autor, ele parte de uma
premissa básica de que todos, relativamente, são “intelectuais”, porém apenas alguns
exercem esta função dentro da sociedade. Seja pelos limites culturais e políticos, seja pelas
dificuldades inerentes da própria função, obstáculos consideráveis das “classes
subalternas” em organizarem a sua própria “cultura”, ou seja, aquela que represente suas
aspirações e concepções de mundo. De certa forma, esta “cultura” acaba se tornando
fragmentada e, principalmente, estancada por aqueles que, tradicionalmente, estão no
poder. Neste sentido, a formação de um grupo “intelectual” advindos da massa e capazes
de alterar este quadro “conservador” é uma das preocupações fundamentais de Gramsci em
seus escritos. Remete-nos diretamente para a necessidade de criação de intelectuais
advindos das “classes subalternas”, num primeiro momento, e posteriormente, para a
capacidade deste ser reconhecida, ser aceita e influente dentro da sociedade como um todo:
Por isso, seria possível dizer que todos os homens são intelectuais, mas
nem todos os homens têm na sociedade a função de intelectuais (assim, o
fato de que alguém possa, em determinado momento, fritar dois ovos ou
costurar um rasgão no paletó não significa que todos sejam cozinheiros
ou alfaiates). Forma-se assim, historicamente, categorias especializadas
para o exercício da função intelectual; formam-se em conexão com todos
os grupos sociais, mas sobretudo em conexão com os grupos sociais mais
importantes, e sofrem elaborações mais amplas e complexas em ligação
com o grupo social dominante. Uma das características mais marcantes
de todo grupo que se desenvolve no sentido do domínio é sua luta pela
assimilação e pela conquista ideológica’ dos intelectuais tradicionais,
assimilação e conquista que são tão mais rápidas e eficazes quanto mais o
grupo em questão for capaz de elaborar simultaneamente seus próprios
intelectuais.
13
13
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do rcere. 3 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 18-19.
v. 2.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
18
A imprensa, por seu papel na sociedade, pode ser tratada neste viés, sendo mais
um dos locais específicos desta luta “intelectual” e “política”. Mas, como dito
anteriormente, não podemos esquecer da sua ligação com os diferentes grupos sociais. Este
pode ser o primeiro ponto que podemos levantar sobre o tipo de imprensa que vai se
efetivar na cada de 1970 no Brasil e vai ser chamada de “imprensa alternativa”
contrapondo-se à chamada “grande imprensa”. Podemos afirmar que a “grande imprensa”
é relacionada aos tradicionais grupos editoriais que por razões de sobrevivência comercial
e política (a publicidade em suas páginas era, na maioria das vezes, o sustentáculo
principal), mantinha uma postura sempre cuidadosa e normalmente diplomática com o
poder político. Em grande parte, representava os interesses dos setores “liberais” e
“conservadores” da sociedade, sendo, por isso bastante resistente ao embate direto e
incisivo contra os militares no poder desde 1964. De qualquer maneira, o governo militar
impunha uma linha política-econômica pautada na “Doutrina de Segurança Nacional e
Desenvolvimento” que correspondia bem aos seus interesses.
14
A “grande imprensa”
também passou por sérias dificuldades em relação à censura, mas sua capacidade de
sustentação financeira e sua possibilidade de negociação eram mais favoráveis à
continuidade de seu papel. no caso da “imprensa alternativa” o que temos é um quadro
diferenciado no que diz respeito aos grupos que estavam por trás destas iniciativas. Em
primeiro lugar, grupos intelectuais que percebiam a possibilidade de fugir do controle
ostensivo e cauteloso existente na “grande imprensa”, podendo exercer com maior
autonomia um trabalho mais crítico e original. Grupos das mais diferentes matizes: desde
“liberais-democratas”, contrários aos rumos do regime militar brasileiro, desde quadros do
PCB, passando por representantes de diversos movimentos da sociedade que começavam a
ganhar expressão política naquele momento como sindicalistas, negros, homossexuais,
feministas, entre outros. A “imprensa alternativa”, com sua tentativa de independência dos
contratos publicitários ao ter como sustentação financeira as assinaturas e as vendas em
bancas de jornais, permitia uma escolha e um direcionamento mais específico de suas
reportagens. Por isso mesmo advieram as dificuldades tanto em relação à sobrevivência
econômica, como em relação à perseguição constante da censura. Neste ponto, as disputas
jornalísticas entre “grande imprensa” x “imprensa alternativa”, que se efetuavam de
maneira gradativa e constante na década de 1970 são emblemáticas por trazerem em suas
14
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984, p.
33-48.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
19
páginas concepções jornalísticas e políticas. O jornal tornava-se, de fato, um elemento
essencial a ser utilizado na produção e transmissão de informações e de idéias, fazendo
parte de uma luta que não estava limitada nas páginas destes veículos de comunicação, mas
que estava presente em toda a sociedade, em todas as instâncias, em todos os lugares.
A “imprensa alternativa” torna-se, diante deste quadro de disputa, uma opção
diferenciada, tanto para quem nela escreve como para quem a lê. A problematização do
termo que caracteriza esse campo da atividade jornalística é imprescindível para
apreendermos as diferentes maneiras de como ela se apresentou, os seus significados,
impactos e contradições, principalmente se levarmos em conta as complexas e múltiplas
formas de ão política e de engajamento daqueles anos. Por caber dentro do conceito as
mais diferentes formas jornalísticas, a expressão “imprensa alternativa” adquire uma série
de significados, cada um buscando referendar um certo ponto de vista ao vislumbrar uma
série de iniciativas no campo da imprensa na década de 1970.
De maneira detalhada e com a experiência de ter participado ativamente da
“imprensa alternativa” da época, Bernardo Kucinski em seu livro Jornalistas e
revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa
15
faz um inventário das diversas
iniciativas que surgiram na década de 1970 no país como os jornais O Pasquim, Bondinho,
Ex, Versus, Coorjornal, Repórter, Opinião, Movimento e Em Tempo. Com uma visão
detalhada e, por isso mesmo heterogênea, transparece uma visão menos idealizada e mais
realista do funcionamento destes jornais. Mostra a vitalidade destas iniciativas no interesse
de ultrapassarem os limites impostos pelo poder e pela grande imprensa” e, ao mesmo
tempo, suas fragilidades no confronto contra o regime militar na conquista por novos
leitores e pelas disputas internas dentro das redações. Porém, logo no início de sua obra ele
faz a seguinte consideração sobre o significado desta opção “alternativa” de fazer jornal, ao
contrário da “grande imprensa”:
Em contraste com a complacência da grande imprensa para com a
ditadura militar, os jornais alternativos cobravam com veemência a
restauração da democracia e do respeito aos direitos humanos e faziam a
crítica ao modelo econômico. Inclusive de seu aparente sucesso, durante
o chamado “milagre econômico”, de 1968 a 1973. Destoavam, assim, do
discurso triunfalista do governo ecoado pela grande imprensa, gerando
todo um discurso alternativo. Opunham-se por princípio ao discurso
oficial.
16
15
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. 2. ed. (rev. e
ampl.) São Paulo: Edusp, 2003.
16
Ibid., p.14.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
20
Por mais que sua visão no decorrer de sua obra não seja complacente com este
setor da imprensa, Kucinski, inicialmente, trabalha com a diferenciação temática e com a
atitude mais precisa e incisiva dos jornais “alternativos” nas cobranças e nas exigências em
relação ao governo instaurado. Fazia parte de um grupo dissonante que trazia uma “outra
realidade” para as páginas dos jornais, sendo alternativos por essa razão.
Conseqüentemente, temos o oposto, a “grande imprensa” atrelada aos interesses do regime
militar e que pouco fazia em prol de uma discussão mais aprofundada e crítica dos
acontecimentos e da realidade brasileira. Neste sentido, o impacto e a forma de expressão
de ambas estão ligados a opções que foram feitas de maneira consciente, demarcando
assim um campo de luta.
Maria Aparecida de Aquino em Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968-
1978) difere em seu trabalho pelo fato de enfocar a ão da censura governamental e a
resistência dos jornalistas do Estado de São Paulo, um jornal ligado à “grande imprensa” e
do jornal Movimento, relacionado à “imprensa alternativa”. A autora faz uma importante
análise das relações sempre contraditórias destas publicações com o poder e demonstra, ao
mesmo tempo, as várias formas encontradas pelos jornalistas para conseguirem exercer a
sua profissão num momento delicado e tenso por qual o país passava. A definição tanto de
“grande imprensa” como de “imprensa alternativa”, é essencial em seu trabalho e ela
também faz uma análise importante ao delimitar os campos de ação e formas de
funcionamento destas duas opções. Sobre a primeira ela afirma:
Qualifica-se de grande imprensa e aqui o termo aparece por oposição a
uma imprensa de menor porte os órgãos de divulgação cuja veiculação
pode ser diária, semanal ou mesmo que atuem em outra periodicidade,
mas cuja dimensão, em termos empresariais, atinja uma estrutura que
implique na dependência de um alto finaciamento publicitário para a sua
sobrevivência. À grande imprensa, como aliás, de modo geral, à toda
imprensa convencional de conotação liberal (de pequeno, de médio e de
grande porte) está no tamanho do empreendimento e na divulgação que
possui. A grande imprensa conta com esquemas de distribuição nacional
e mesmo, às vezes, com uma veiculação que abrange algumas praças
internacionalmente.
17
Nesta perspectiva, a autora aponta não apenas uma questão de opção política, mas
amplia o significado da “grande imprensa” ligada e dependente financeiramente às verbas
17
AQUINO, Maria Aparecido de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968/1978) o exercício
cotidiano da dominação e da resistência O Estado de São Paulo e Movimento. São Paulo: EDUSC, 1999,
p. 17; p. 37.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
21
publicitárias e com um sistema empresarial de distribuição que consegue abarcar boa parte
do mercado, tanto interno como externo. Esta estrutura, por sua sobrevivência estar ligada
a determinados setores econômicos, acaba tendo uma tendência liberal e conservadora,
temerosa em correr riscos que implicariam em sua falência. Justifica-se, em grande parte,
sua submissão e sua aceitação das ordens impostas pelo governo militar como resultado e
opção destas empresas editoriais.
Ao tratar do conceito de “imprensa alternativa”, Aquino busca as seguintes
peculiaridades, utilizando como exemplos típicos os dois jornais que são centrais em nosso
trabalho, o Opinião e o Movimento:
A imprensa alternativa é uma opção na medida em que ocupa, de variadas
formas, o espaço deixado pelo tipo de imprensa que segue o modelo
convencional. Pode ser organizada em termos empresariais (como, por
exemplo, o semanário Opinião, de propriedade do empresário e deputado
Fernando Gasparian) ou como propriedade coletiva de um grupo de
jornalistas e representantes de grupos sociais diferenciados (o caso pico
foi o de M, constituído como uma sociedade anônima, com o capital
bancado por uma grande quantidade de acionistas). A alternativa não se
pretende neutra, assumindo-se a serviço da defesa de interesses de grupos
como, por exemplo, partidos, sindicatos, associações, minorias raciais e
sexuais, e mesmo entidades religiosas. Faz um jornalismo engajado,
orientado a não separar a informação da opinião. Sua sustentação
financeira advém basicamente da venda em bancas ou de assinaturas
(caso de Opinião e M), de seus associados (imprensa sindical e de
associações), dos filiados (como na partidária) e de fiéis (como na
religiosa). Como alternativa à imprensa convencional, de uma maneira
geral, seu esquema de produção de informações busca recuperar a figura
do jornalista/repórter que constrói pela pesquisa a matéria a ser veiculada,
tentando fugir da homogeinização da informação que ocorre nas
empresas dos países economicamente mais poderosos ou dos grandes
grupos jornalísticos nacionais.
18
Novamente, para classificar o tipo de imprensa ela utiliza como parâmetro a sua
sustentação financeira. Mesmo que o jornal Opinião tivesse uma certa familiaridade com o
funcionamento dos grandes jornais, os restantes, em sua maioria, eram vendidos por meio
de assinaturas e em bancas, advindo daí a sua principal receita. A organização coletiva do
trabalho é também somada ao aspecto que caracteriza a “imprensa alternativa”, decorrendo
daí, toda uma idéia democrática de debate e de reflexão que este tipo de funcionamento
possibilitava. Mas, outro ponto é salientado e é essencial em nossa reflexão: o engajamento
em prol de determinadas causas, de determinados grupos, que utilizavam os “jornais
18
AQUINO, Maria Aparecido de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968/1978) o exercício
cotidiano da dominação e da resistência O Estado de São Paulo e Movimento. São Paulo: EDUSC, 1999,
p. 122-123.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
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22
alternativos” como meio de expressão e de debate. De partidos, normalmente de
“esquerda”, que estavam na ilegalidade e que com a abertura política reiniciam um
trabalho de divulgação de idéias, às minorias que vêem na criação de “alternativos” um
caminho aberto para a defesa e divulgação de suas causas, assim como de sindicatos e de
grupos religiosos. Aqui, o discurso da neutralidade não será o dominante. O uso conjugado
de informação mais opinião exige do repórter/jornalista/colunista uma postura mais atuante
e conseqüente diante dos acontecimentos e fatos, sendo impossível se esconder por trás dos
mesmos.
Novamente, há nas considerações de Aquino (que neste ponto se assemelham com
a de Kucinski) sobre a diferenciação entre as “imprensas” deste período no que diz respeito
às notícias publicadas. A autora, no decorrer de sua obra, sempre chama a atenção para este
fato que indicava, por parte de jornalistas e editores “alternativos”, uma postura de
desmistificar toda a idéia de desenvolvimento, progresso e harmonia social propalados pelo
regime militar. Novamente, a idéia da não-neutralidade é desmontada a partir da escolha de
uma notícia que seria publicada ou não, assim como o teor crítico da mesma.
Buscando também uma definição própria para o termo “imprensa alternativa”,
mais preocupada em traçar uma linha contínua entre as iniciativas deste segmento nos anos
70 com outras que iniciavam-se na cada de 1980, principalmente aquelas ligadas aos
movimentos populares (sindicatos, associações de bairros, comunidades eclesiais de base)
e com a abertura política, Regina Festa no seu texto “Movimentos sociais, comunicação
popular e alternativa” aponta para a seguinte perspectiva:
O termo imprensa alternativa é de domínio comum da sociedade
brasileira e identifica um tipo de jornal tablóide ou revista, de oposição,
dos anos 70, cuja venda era feita em bancas ou de mão em mão. Eram
publicações de caráter cultural, político e expressavam interesses da
média burguesia, dos trabalhadores e da pequena burguesia. Eram
espaços nos quais grupos de oposição ou frentes políticas emitiam uma
corajosa condenação ao regime político.
19
Mais uma vez o aspecto da sustentação financeira é ressaltado: a questão de estes
jornais necessitarem de um montante de vendas e de assinaturas para se manterem, caso
contrário, correriam o risco de terem sérias dificuldades, que os contratos publicitários
eram insuficientes e limitados. Outro aspecto colocado é a postura oposicionista que
19
FESTA, Regina. Movimentos sociais, comunicação popular e alternativa. In: FESTA, Regina; SILVA,
Carlos Eduardo Lins da. (Orgs.). Comunicação popular e alternativa no Brasil. São Paulo: Paulinas,
1986, p. 16.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
23
permeia estas iniciativas. Sem dúvidas, este segmento era uma escolha utilizada para a
publicação de temas (culturais e políticos) e de idéias que normalmente não cabiam, por
uma série de restrições e temores, nos grandes jornais.
Mas o que chama a atenção para a análise de Festa, é a ligação que ela faz entre o
conteúdo da “imprensa alternativa” com determinados segmentos da sociedade, no caso, a
pequena e média burguesia juntamente com os trabalhadores. Partes destes setores sociais
viam nos “jornais alternativos” a possibilidade de assumirem uma postura crítica e
condenatória ao regime militar, sendo, na opinião da autora, uma espécie de canal aberto
que ultrapassava os limites da imprensa brasileira.
Raimundo Rodrigues Pereira, com passagens pela revistas Veja, Senhor,
Realidade e Isto É, também um dos mais destacados jornalistas da “imprensa alternativa”,
sendo editor-chefe dos jornais Opinião e Movimento, num texto intitulado “Vive a
imprensa alternativa. Viva a imprensa alternativa!...”, publicado no ano de 1986, faz uma
longa análise sobre os pontos que caracterizariam a “imprensa alternativa”. Buscando, de
certa maneira, desmontar alguns mitos em torno da conceituação do termo, ele afirma que
ela sobreviveu e que continuaria tendo um papel vital para a permanência da crítica e da
contestação. Assim, o autor elabora sua reflexão em quatro pontos:
a imprensa alternativa que surgiu nos últimos anos no Brasil não foi
um mecanismo de correção da outra imprensa, nem só existiu para
que esta se corrigisse. Enquanto a grande imprensa brasileira tomava
o rumo de monopolização impulsionada pelo grande capital nacional
e internacional e, a despeito de divergências de setores seus com o
regime político, o apoiava, a imprensa alternativa foi expressão da
média burguesia, dos trabalhadores e da pequena burguesia,
defendeu interesses nacionais e populares, portanto, condenava o
regime;
a grande imprensa tradicional não retornou e nem retornará, com a
liberalização, a um papel normal de dar voz a todos os interesses e
promover mudanças, que é, cada vez mais, expressão de interesses
de grupos monopolistas que cada vez menos têm condições de
apresentar aos leitores um apanhado completo, organizado e
educativo dos acontecimentos correntes; logo, os jornalistas dentro
dessa imprensa serão, cada vez mais, pessoas fadadas a verem sua
criatividade, o seu espírito crítico, seu temperamento coisificado e
alugados;
a imprensa partidária popular e proletária que se tenta firmar no país
hoje, não só é a herdeira das lutas travadas por uma imprensa
alternativa formada por várias correntes de opinião unidas algum
tempo atrás, como ela é uma das grandes esperanças de que a luta
contra o regime militar que se vem travando praticamente duas
décadas não se transforme num acerto entre os grandes capitalistas e
fazendeiros nacionais e internacionais. Isto porque a imprensa
alternativa anterior, dirigida pelos médios empresários e pela pequena
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
24
burguesia, não conseguiu resistir às duras condições impostas pelas
forças mais reacionárias no poder, que souberam combinar o terror
político com a repressão ditatorial, a pressão econômica e as
manobras institucionais, às quais só se pode resistir com elevado grau
de organização e espírito de sacrifício;
a imprensa alternativa não prosperou nos anos do fechamento
político, “como fogo-fátuo da noite do autoritarismo”; além de ter
sido violentamente atingida pelos atos de repressão mais violenta
como a censura prévia, até 1978 e o terror político contra as bancas
de jornais de 78 a 81 especialmente foi com a abertura que a
imprensa alternativa prosperou, que multiplicou o número e a tiragem
dos jornais populares e abriu o espaço para o salto qualitativo que
representam os jornais partidários, a despeito do enfraquecimento e
mesmo o desaparecimento dos principais jornais populares de
frente.
20
O primeiro ponto abordado por Pereira diz respeito ao caminho diferenciado e
distinto que percorreu a “imprensa alternativa”. Em suma, ela nada deve à grande
imprensa”, não surge e nem vem tomar um lugar deixado por esta. Esta concepção parte do
princípio de uma independência desta imprensa, considerada como expressão dos
interesses “nacionais-populares” dos setores da média e pequena burguesia juntamente
com os trabalhadores, ao contrário da grande imprensa” com seu caráter
“internacionalista” e “entreguista”.
A segunda observação é uma constatação de certos limites existentes em relação à
“grande imprensa” que jamais cumpriu e jamais cumpriria um papel muito diferente do
que vinha fazendo até então. Pelo fato de estar ligada a grupos empresariais, com uma
necessidade crescente de capital, ela sempre manteria um determinado padrão para agradar
a todos aqueles que a financiavam. Nestes jornais, a crítica e uma visão diferenciada dos
fatos são praticamente impossíveis por alterarem uma ordem no campo da transmissão da
informação. Nota-se, quando o autor faz um alerta aos jornalistas sobre os riscos que
correm de verem seu trabalho “coisificado” e “alugado”, a existência de uma postura
contrária, também, ao próprio funcionamento organizacional. Em sua opinião, como
empresas, este segmento da imprensa exige uma série de acomodações por parte de seus
funcionários que obedecem e cumprem regras. Neste ambiente seria impossível qualquer
ousadia sem o risco de ser punido.
Após estas observações, o autor no terceiro item considera a imprensa popular e
operária, que vinha iniciando um papel específico de oposição no período pós abertura
20
PEREIRA, Raimundo Rodrigues. Vive a imprensa alternativa. Viva a imprensa alternativa!... In: FESTA,
Regina; SILVA, Carlos Eduardo Lins da. (Orgs.). Comunicação popular e alternativa no Brasil. São
Paulo: Paulinas, 1986, p. 55-56.
Capítulo I
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25
política, como herdeira da “imprensa alternativa” da década de 1970. Contudo, a diferença
destes “herdeiros” para os seus “antepassados” seria no campo da convicção política na
depuração de seus quadros e na capacidade de resistência. Ao levantar a questão do fim
dos “jornais alternativos”, relacionados com a censura, “à pressão econômica” e às
“manobras institucionais”, estes acabam não permanecendo em seu intento inicial. Ainda
que Pereira não ataque diretamente, percebe-se uma crítica velada aos diretores destes
jornais que, por pertencerem à “classe burguesa” da sociedade, cederiam mais facilmente
às chantagens, não tendo mais nenhum interesse em continuar o trabalho de oposição.
Concluindo sua análise, o autor constata que a “imprensa alternativa” não havia
desaparecido com o momento da abertura política no país, mas que continuava na década
de 1980 cumprindo um papel semelhante e com “avanços qualitativos”. Cabe salientar que
Raimundo Rodrigues Pereira, participante ativo deste momento na elaboração de “jornais
alternativos”, tenta justificar esta sua visão pelo fato dela ser, no fim das contas, uma
continuidade mais específica de uma luta política. Não podemos esquecer que a luta
política dentro da década de 1970, principalmente com a derrota dos setores mais radicais
da luta de esquerda, com a repressão violenta do estado, vão se amparar na batalha pelo
retorno das liberdades democráticas.
21
Já no período de abertura, estes diversos grupos que
existiam amortecidos nestas frentes amplas de oposição, vislumbravam a chance de
colocarem seus pontos de vista de modo mais incisivo, com aspirações hegemônicas e
convincentes à maioria da população. Nesta perspectiva situam tanto as análises de Festa
como a de Pereira.
Efetivamente, todos os autores acima mencionados nos apresentam determinados
aspectos relevantes que diferenciariam a “imprensa alternativa” da grande imprensa”. Os
dois primeiros, Kucinski e Aquino, buscaram localizar aquelas manifestações como frutos
expressivos e importantes de um determinado período político-social brasileiro, a década
21
É emblemático um documento do PCB intitulado “Resolução Política (novembro de 1978) sobre a
necessidade da democracia e da luta no campo político em contraponto à um tendência “foquista” e
“armada”. Este debate existente dentre das “esquerdas”, especialmente no duelo entre o PCB e o PC do B
serão melhor aprofundados no II e III capítulos: “A construção de uma democracia de massas, porém, não
é apenas a erradicação desse passado autoritário do qual o atual regime militar-fascista representa a
culminação. É também, e sobretudo, a base para um crescente aprofundamento da democracia – entendida
como um todo político, econômico e social com a permanente incorporação de novos grupos e camada
sociais na vida política do país. Esta incorporação, ao fortalecer o bloco democrático e favorecer a
hegemonia da classe operária em seu interior, cria condições mais favoráveis para se avançar rumo ao
socialismo sem guerra civil nem insurreição armada, possibilidade que mais interessa à classe operária e
aos comunistas”. RESOLUÇÃO POLÍTICA (novembro de 1978). In: CARONE, Edgar. O P.C.B. (1964-
1982). São Paulo: DIFEL, 1982, p. 195.
Capítulo I
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Capítulo I
26
de 1970. Um, trabalhando a questão da diversificação temática e dos grupos que faziam
parte destes jornais; a outra salientando a forma de funcionamento e, principalmente, a
negação de uma pretensa “neutralidade”, havendo por isso a marca constante do
“engajamento” nas mais diversas causas. Festa e Pereira, ao concentrarem suas atenções na
ligação destes jornais com determinadas “classes sociais”, enfatizam uma continuidade
existente entre estas manifestações nos anos de 1970 e as existentes nos anos de 1980. Ao
contrário dos dois anteriores, esta continuidade não se limitava apenas ao caráter
“alternativo” e engajado”, mas ganhava no aspecto qualitativo e na diversidade de
iniciativas que encontravam um terreno mais livre e por isso menos restrito no período pós-
abertura.
Todos, de certa forma, acabam nos apresentando um conceito de “imprensa
alternativa” mais fluido e heterogêneo do que algo estático e solidificado. E esta concepção
é extremamente importante pelo fato de nos obrigar uma leitura mais aprofundada das
especificidades existentes em cada jornal, no caso do Opinião e do Movimento, onde
Fernando Peixoto exerceu um trabalho sistemático como crítico teatral na segunda metade
da década de 1970. Compreender estas iniciativas no que diz respeito às suas pretensões
neste quadro da imprensa brasileira é, também, compreender a concepção do que é ser
oposição naquele momento da história.
1.3 OS JORNAIS REVOLUCIONÁRIOS”: AS RELAÇÕES E OS CONFLITOS
ENTRE O PODER E A IMPRENSA OPOSICIONISTA E ALTERNATIVA NO
BRASIL
Efetivamente há um interesse e uma preocupação dos governos, principalmente os
de estirpe autoritária, em vigiar e controlar a imprensa, principalmente aquela que trás em
suas páginas críticas e projetos que destoem das linhas gerais pregadas pelos mesmos. Pelo
fato de nosso trabalho se concentrar na “imprensa alternativa” brasileira na década de
1970, que tinha aspectos diferenciados em seu funcionamento, nas temáticas e nas idéias
apresentadas, a censura imposta pelo governo militar a estes meios de comunicação muito
revelam sobre as distinções e as conseqüências das várias posições tomadas nos diferentes
momentos da história brasileira. Ao mesmo tempo, o tipo e a força da repressão imposto
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
27
quanto ao que pode ser ou não publicado, são indicações pertinentes na busca de um
significado real e concreto do que era permitido e aceito em relação à atividade
jornalística, principalmente a de oposição.
Ao se concentrarem nas várias formas que os governos se importaram e buscaram
direcionar o que estava sendo veiculado nos jornais, Maria Luiza Tucci Carneiro, ao fazer
um levantamento juntamente com Boris Kossoy dos diversos jornais confiscado pelo
Deops durante o governo de Getúlio Vargas na década de 1930, faz a seguinte observação
ao analisar a imprensa brasileira desde o século XIX:
O jornal assim como a literatura, a fotografia, a música, o teatro, a
caricatura e o rádio sempre se apresentou como alternativa eficaz de
propaganda política. Adotado por todos os segmentos sociais desde a
primeira década do século XIX, o jornal se apresenta como um dos mais
importantes registros da memória política do país. Alguns deles
inscreveram-se numa tradição de imprensa liberal e revolucionária;
outros emergiram como tipicamente anti-lusitanos, nacionalistas ao
extremo e, até mesmo, anticlericais. A partir das primeiras décadas do
século XX surgiram jornais expressivos dos movimentos negro,
anarquista, operário, sindicalista, comunista e antifascista. Estes por
suas características contestatórias sempre encontraram barreiras para
circular; o que não era tão comum com relação aos periódicos
expressivos do pensamento da extrema direita que raramente viveram
uma edição proibida. Quando isto aconteceu, a repressão não se fez tão
radical.
22
Novamente vem à tona a importância da imprensa como elemento educador e
propagador de tendências, idéias e ações na sociedade. Os confrontos entre governos e
imprensa não é novidade e nem exceção na história brasileira. A utilização dela, seja pela
“situação” como pela “oposição”, demonstra o poder de atrair em sua órbita determinadas
tendências e, a partir disto, transformá-la num instrumento ao gosto daqueles que a
constituem e a lêem. Como salientado na citação acima, os grupos e seus jornais com
características contestatórias, de oposição, por razões óbvias, sempre enfrentaram mais
obstáculos para a circulação de suas idéias do que aqueles que mantinham-se conformados
e, porque não, coerentes com suas idéias de adequação às diretrizes do poder.
Na busca das origens destes conflitos no país, Carneiro faz um interessante
paralelo. Ao demonstrar os “inimigos” perseguidos pela censura, ela consegue diferenciar
em duas fases o teor autoritário dos regimes que utilizaram deste instrumento, na maioria
das vezes legalizada e institucionalizada, para manterem suas estruturas ideológicas:
22
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Imprensa irreverente, tipos subversivos. In: CARNEIRO, Maria Luiza
Tucci; KOSSOY, Boris. (Orgs.). A Imprensa confiscada pelo Deops: 1924-1954. São Paulo: Ateliê
Editorial; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Arquivo do Estado, 2003, p. 20.
Capítulo I
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28
fase (1808 – 1924): quando o confisco dos jornais esteve sob a
responsabilidade da Intendência da Polícia do Rio de Janeiro. Nesta fase
detectamos a gênese do jornalismo político militante, inicialmente porta-
voz de propostas reformistas republicanas e que, nas últimas décadas do
século XIX, somou forças com outros segmentos defensores da revolução
social. A partir de 1907, com a promulgação de duas leis de expulsão o
Decreto 1641, de 7 de janeiro de 1907 e o Decreto 4247, de 6 de
janeiro de 1921, o Estado instrumentalizou-se de forma a inibir a ação
dos militantes estrangeiros em território nacional, ato que atingiu
inúmeros editores, jornalistas e tipógrafos envolvidos com o movimento
operário, anarquista e antifascista.
2ª fase (1924-1983): quando, a polícia de São Paulo foi reorganizada pela
Lei 2.034, de 30 de dezembro de 1924, criando e subordinando a
Delegacia de Ordem Polícia e Social ao Gabinete de Investigações e
Capturas. Sob o olhar e ação vigilante do DEOPS ficou, dentre outros
segmentos da resistência, o periodismo dito ‘revolucionário’. O auge do
confisco aos periódicos ditos de esquerda ocorreu durante as ditaduras de
Getúlio Vargas (1930-1945) e Militar (1964-1978).
23
Existiram constantes tentativas dos governos na história brasileira, principalmente
de calarem ou pelo menos silenciarem temporariamente os discursos dissonantes. Esta
censura na maioria das vezes vinha acompanhada de justificativas que a referendavam e
que lhe davam subsídios para ela entrar em ação. Este detalhe é vital para compreendermos
que nesta discussão os pontos de vista opostos são colocados frente a frente. Se por um
lado, temos um governo que pelas mais variadas razões declara-se como defensor de uma
determinada ordem social, moral e econômica e que, por isso, detém o modo de como tudo
deve funcionar, de outro, temos grupos, na maioria das vezes não contemplados e
desamparados por esse governo, que buscam em suas organizações e manifestações
artísticas, jornalísticas, etc, uma alternativa que supere o estabelecido.
Ao apontar a “2ª fase” desta repressão aos periódicos, a autora levanta dois
momentos de extrema rigidez por parte dos governos: as ditaduras de Getúlio Vargas nas
décadas de 1930-1940 e do regime militar de 1964-1984. Ambas guardam algumas
semelhanças no quesito da perseguição: suas forças repressivas se concentraram
especialmente nos periódicos “revolucionários” e de “esquerda”.
Apesar destas duas nomenclaturas, revolucionários” e “esquerda” serem
utilizadas de maneira generalizante e de forma incriminatória pelos governos autoritários,
elas significam uma série de manifestações, idéias e atitudes que devem ser historicamente
analisadas. Não apenas dentro de uma linha do tempo, diacrônica, mas nas diferentes
23
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Imprensa irreverente, tipos subversivos. In: CARNEIRO, Maria Luiza
Tucci; KOSSOY, Boris. (Orgs.). A Imprensa confiscada pelo Deops: 1924-1954. São Paulo: Ateliê
Editorial; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Arquivo do Estado, 2003, p. 21.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
29
situações, locais e sujeitos que se utilizam destes termos, sendo interessante notarmos
como adquirem diferentes valores e sentidos dentro de uma mesma conjuntura.
Ao tratar especificamente dos jornais confiscados pelo DEOPS (Departamento
Estadual de Ordem Política e Social) na ditadura Vargas, Carneiro nos apresenta alguns
possíveis significados que estes termos assumiam no período, especialmente pelo aspecto
físico e externo os periódicos censurados. Os temas e os assuntos tratados nestes jornais
também oferecem uma percepção sobre o que era considerado “revolucionário”,
“subversivo”, de “esquerda”, etc.:
Vozes desconexas bradavam por seus direitos. O confisco dos jornais
avaliados como subversivos se fazia com base em certos elementos
lingüísticos presentes, na maioria das vezes, nos enunciados da primeira
página. Ao invadir a residência de um intelectual ou uma tipografia, o
olhar do investigador procurava por livros, fotografias, boletins e jornais
nacionais e internacionais que evidenciassem uma proposta
revolucionária. Ao ‘ler’ os documentos panfletários produzidos pelos
grupos revolucionários, as autoridades policiais procuravam por indícios
que lhes permitissem interpretar a postura desviante do suspeito. Aliás, é
no formato, composição, papel e conteúdo político que se faz a diferença
entre o jornalismo empresarial e o jornalismo revolucionário. O projeto
gráfico de um jornal clandestino, por exemplo, trazia elementos que
poderiam atestar uma proposta revolucionária: o nome do jornal, órgão a
que representava, epígrafes, vinhetas, logotipos, manchetes e conteúdo
das matérias, fotografias e ilustrações.
24
Esta diferenciação física apontada pela autora é de extrema importância. Ao
colocar entre aspas o ato de leitura do censor, indica uma peculiaridade existente nestes
jornais oposicionistas: a presença e a permanência de determinados aspectos culturais,
principalmente lingüísticos, por parte dos imigrantes que estavam por trás destes jornais.
Ou seja, o censor, antes mesmo de apreender os discursos presentes, coisa que muitas
vezes não conseguia fazer pelo fato de ignorar a língua em que o jornal era publicado,
buscava elementos externos e mais imediatos. Até a qualidade do papel era um
demonstrativo das intenções “subversivas”. Além disso, os “revolucionários”
apresentavam diferenças consideráveis na exposição das notícias, assim como na
organização dos textos e das imagens.
Paralelamente, os conteúdos das matérias eram pontos-chave na avaliação por
parte da censura. Estando atenta a isso, procurava a proposta “revolucionária”. Este termo,
na perspectiva do poder estabelecido (que por ironia se nomeava “revolucionário”) era
24
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Imprensa irreverente, tipos subversivos. In: CARNEIRO, Maria Luiza
Tucci; KOSSOY, Boris. (Orgs.). A Imprensa confiscada pelo Deops: 1924-1954. São Paulo: Ateliê
Editorial; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Arquivo do Estado, 2003, p. 41.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
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30
considerado de maneira negativa, tendo o seu conteúdo preenchido por uma série de
estigmas e perigos que suscitavam temor e receio em boa parte da população.
Por outro lado, esta “imprensa revolucionária” buscava em sua argumentação,
justificar suas atitudes e pontos de vista perante seus leitores. Temos, de maneira inversa,
um discurso que o governo como inimigo a ser questionado e derrubado. uma
construção, também negativa, em torno do significado e das ações deste último. A
imprensa, portanto, utilizada por grupos com interesses diversos e discordantes na
construção efetiva de campos de luta:
A estratégia de se criar fantasmas coletivos fazia parte tanto da
propaganda articulada pelos grupos de direita como da esquerda. Por um
lado, o Estado lançava mão de imagens anticomunistas para ‘construir’ a
idéia de ‘perigo vermelho internacional’, por outro, os comunistas e os
anarquistas criticavam a postura fascista do governo representado através
de seus instrumentos repressivos (leis, exército, polícia).
25
Na mesma linha e retomando ao tema da repressão sobre os “jornais alternativos”
na década de 1970, a censura no período do regime militar criou e encontrou suas
justificativas morais e jurídicas visando controlar a produção jornalística. A preocupação
com o “perigo vermelho internacional”, o comunismo, o espectro que o rondou apenas
na Europa, mas representou uma ameaça ao capitalismo industrial e financeiro no século
XX também em terras latino-americanas, foi escolhido como um dos principais inimigos a
serem combatidos. A censura nos mais variados campos da produção artística e cultural,
nesta conjuntura, acaba sendo uma importante arma no combate às idéias “esquerdizantes”.
Convém salientar que esta definição de “esquerda” pouco diz sobre a diversidade temática,
estética e política existente neste setor jornalístico. Porém, “didaticamente” ela servia para
enquadrar de maneira generalizante qualquer enfoque diferenciado do que era considerado
o “correto”. Desta maneira, ela recairá com grande intensidade sobre a “imprensa
alternativa” promovendo desfalques, prejuízos e tensões entre as pessoas envolvidas nesta
atividade.
26
25
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Imprensa irreverente, tipos subversivos. In: CARNEIRO, Maria Luiza
Tucci; KOSSOY, Boris. (Orgs.). A Imprensa confiscada pelo Deops: 1924-1954. São Paulo: Ateliê
Editorial; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Arquivo do Estado, 2003, p. 41.
26
“O controle da imprensa, do rádio e da televisão tem sido extremamente importante na lógica global do
Estado de Segurança Nacional. Uma das necessidades essenciais de um Estado repressivo é limitar o
fluxo de informações à disposição da população, ocultar abusos de poder e impor um silêncio que não
limite a oposição como aumente o sentimento de isolamento e medo necessário ao impacto de uma
estratégia de governo pelo terror. Desse modo, a censura tem sido amplamente utilizada para manter
vastos setores da população desinformados e, portanto, incapazes de participar politicamente de maneiras
efetivas. A censura tem sido feita de duas formas, no Brasil: a censura a priori, pela qual a rede policial do
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
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31
Movimento, símbolo e modelo de “jornal alternativo” para Aquino, a censura
imposta desde o início de suas atividades gerou uma série de negociações, avanços e
recuos, que os jornalistas deste periódico tiveram que fazer para conseguirem um mínimo
de liberdade jornalística. Este processo é relevante em nossa análise por salientar duas
noções: a que diz respeito às características desta imprensa, e, principalmente, por
demonstrar o que desejavam por em debate e que, por circunstâncias maiores, viam-se
impedidos.
Assim são descritos os processos e relações entre censores e censurados, no caso
de o “Movimento”:
Em relação à imprensa alternativa, diversos foram os órgãos de
divulgação submetidos à censura prévia, de modo que o boom alternativo
deste momento histórico acaba por se confundir com a própria
periodização censória. O M entretanto apresenta um interesse especial,
pois o programa que o embasa e sua concepção de imprensa permitem a
um tempo estabelecer os limites de sua resistência (forjou-se na luta
contra o que o Estado autoritário brasileiro pós-64 representava
essencialmente, tendo nascido censurado) e indicar o significado de
uma imprensa de fato alternativa abrangência da cobertura dos fatos,
jornalismo engajado e montagem de uma estrutura interna de co-gestão
administrativa e funcional. Além disso, é interessante atentar para o que a
memória construiu em relação à imprensa alternativa. Ela vinculou
umbilicalmente este tipo de jornalismo à censura, justificando o término
de sua fase áurea com base na hipótese da inexistência de motivações
para a sua continuidade, a partir da extinção da repressão. A
sobrevivência do M além dos limites da atuação censória transformou-se
em importante forma de aquilatar a relação imprensa alternativa x censura
e a reação do Estado autoritário à sua manutenção.
27
Percebemos a existência de uma relação extrema, conflituosa e impositiva. Como
a própria autora afirma, a existência da “imprensa alternativa” ficou vitalmente ligada à
repressão. Esta percepção, causada principalmente pelo que ela denomina de “memória”,
permite uma determinada visão sobre a produção interna destes jornais. Estar sob o signo
da repressão passa a ser uma parte intrínseca do funcionamento destes jornais. Um
repressor, que ao mesmo tempo contribui (ainda que por linhas tornas e por frases
apagadas) para definir a essência tramada dentro deles.
Aparato Repressivo transmite ordens diretamente aos órgãos de informação, proibindo a publicação ou
transmissão de certos assuntos, fatos ou opiniões, e a censura a posteriori, que envolve a proibição de
venda de jornais e revistas ou a transmissão de programas gravados na televisão ou no rádio”. ALVES,
Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984, p. 212.
27
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968/1978) o exercício
cotidiano da dominação e da resistência O Estado de São Paulo e Movimento. São Paulo: EDUSC, 1999,
p. 23.
Capítulo I
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32
A sobrevivência posterior do jornal Movimento até o ano de 1981, na opinião de
Aquino, serviu para destruir a idéia da ligação umbilical com a censura. Esta percepção
pode ser completada pela visão de Pereira, analisada anteriormente, que nos meados da
década de 1980 partia para a opinião de que esta busca pelo “alternativo” não havia
terminado com o fim do regime, mas continuava, se diversificava e tinha dado um salto
qualitativo. De certa forma, ambos os autores tentam demonstrar não apenas uma postura
alternativa, mas, principalmente independente por parte destes jornais que tinham
capacidade e autonomia organizativa, estrutural e pessoal de continuarem exercendo um
papel de crítica e de luta por transformações na sociedade brasileira.
De toda maneira, dentro do regime militar, algumas concessões por parte dos
jornais eram básicas para se verem livre do jugo desta censura, ainda que isso não fosse
garantia plena de que teriam sossego para que os jornalistas exercessem o seu ofício de
acordo com os seus interesses. Como afirmam Almeida e Weis, algumas premissas eram
necessárias para que tivessem uma autonomia maior dentro dos limites impostos:
Para a negociação ser ao menos admissível, o órgão ou a empresa
jornalística tinha de dar evidências prévias de boa-fé, demonstrações
cabais de não estar aliada aos inimigos do regime. O que excluía
liminarmente a imprensa alternativa sob censura, obrigada ainda por cima
a mandar os originais à Polícia Federal em Brasília, para tornar inviável
sua operação industrial e matá-la de inanição. O semanário Opinião foi
produzido sob censura prévia desde seu oitavo número, em janeiro de
1973, até deixar de ser publicado, em abril de 1977. Movimento sofreu
censura prévia durante 153 semanas, a contar do número de estréia, em
julho de 1975. Nesses quase 3 anos, segundo os editores do jornal, foram
proibidas, na íntegra, 3093 matérias.
28
A censura com seus parâmetros avaliativos, de toda maneira, tinha o poder de
vetar e alterar qualquer matéria que apresentasse algum tipo de discordância. Esta
interferência, a tentativa de alterar os sentidos e os direcionamentos, além de desvirtuar a
intenção inicial destes “alternativos”, tinha outros objetivos: o estrangulamento
econômico
29
, a censura prévia e a apreensão, muitas vezes ocorridas, de jornais
28
ALMEIDA, Maria Hermínia Tavares de; WEIS, Luiz. Carro-zero e pau-de-arara: o cotidiano da oposição
de classe média ao regime militar. In: SCHWARCZ, Lilia Moritz. (Org.). História da vida privada no
Brasilcontrastes da intimidade contemporânea. São Paulo: Cia. das Letras, 1998, p. 354-356. v. 4.
29
“A exigência de entrega de originais, na quarta-feira, a um semanário posto à venda na segunda-feira da
semana seguinte e que encerrava sua edição aos sábados, evidentemente torna impossível a feitura de um
jornal com atualidade. Opinião é um semanário político, que se submete às leis e às determinações das
autoridades, por que seu objetivo é sair e não criar dificuldades à sua própria existência. Se persistirem as
exigências mencionadas, acabará sua resistência econômica, exaurida no aumento de despesas
extraordinárias e sacrificada na diminuição e perda de leitores, desinteressados pela redução de páginas e
qualidade de matéria desatualizada e sem motivação”. SILVA, Hélio; MACHADO, José; CARBONE,
Capítulo I
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Capítulo I
33
impressos ou em bancas
30
, a pressão ideológica, a necessidade do uso por parte dos
jornalistas de subterfúgios, de uma linguagem mais diplomática e cuidadosa (não no
campo da responsabilidade com o que estava sendo publicado ou não, mas pelo receio de
que pudesse chamar a atenção dos olhares dos censores)
31
; e o afastamento do público
leitor, que paulatinamente perde o interesse por estes periódicos na medida em que não
conseguem atingir integralmente o grau desejado de contestação, de crítica e de oposição.
32
Porém, não podemos considerar a censura como a única causadora do fim de
vários “jornais alternativos” da época. Principalmente ao tratarmos dos jornais Opinião e
Movimento temos que considerar, além desta influência externa, a questão do
funcionamento interno destes jornais, o comportamento e as atitudes de editores e
jornalistas. Sem dúvidas, oferecem-nos elementos extras para compreendermos os diversos
fatores envolvidos em suas dissoluções.
As ações censórias incomodavam em suas atividades dentro das redações e eram,
de qualquer maneira, entraves para um mínimo de organização necessária na elaboração de
um jornal. Por mais contraditório que seja a censura agia e se apresentava de diferentes
formas. Em alguns momentos ela era clara e objetiva, em outros não tinha uma linha
coerente e coesa sobre o que censurar e que atitudes ter em relação ao material vetado. Um
ponto que também deve ser colocado são as diferentes formas de negociação entre
jornalistas e censores numa maneira de chegarem a acordos em busca de um “negócio” que
fosse bom para todos.
Antonio. Relatório da Associação Brasileira de Imprensa. In: MACHADO, José Antonio Pinheiro.
Opinião X Censura Momentos da luta de um jornal pela liberdade. Porto Alegre: L&PM Editores,
1978, p. 144.
30
“Minha mulher e o Deputado Chico Pinto, foram à Polícia Federal me procurar, acompanhados de alguns
amigos nossos. Tentaram ver se, pelo menos, nos localizavam. Quando chegaram à Polícia Federal na rua
Sete de Setembro, onde estávamos detidos, receberam a informação que não havia ninguém preso. Foram
ao DOPS da Política Federal, que ficava perto da Praça XI, e também disseram que não havia ninguém
preso. Minha mulher viu inclusive o caminhão que carregava os jornais apreendidos: ela perguntou pelo
caminhão, apontou os exemplares de Opinião. Os policiais responderam que não era nada, ‘era lixo’”.
MACHADO, 1978, op. cit., p. 30.
31
“As páginas dos jornais e mesmo as notícias que não são divulgadas, que somos um povo que se está
habituando a ler nas entrelinhas, estão cheias de violações dos direitos humanos e se mancham com o
sangue daqueles que colocam suas vidas a serviço da dignidade humana e da manutenção, a qualquer
preço, dos elementos que compõe esta dignidade” “Projeto de Lei Nº 1370 de 1973”. Ibid., p. 75.
32
“Tais proibições, aliadas ao conturbador comportamento da censura federal, m causado inúmeros
prejuízos diretos e indiretos ao jornal. As edições apreendidas provocaram um prejuízo de
aproximadamente 50 mil cruzeiros. Contudo, os prejuízos indiretos parecem mais significativos. Devido à
natural queda da qualidade do jornal, é provável uma interrupção no seu crescente aumento de vendas,
sendo até admissível um declínio”. Ibid., p. 143.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
34
Para melhor esclarecer estas questões, um trecho da carta de Fernando Gasparian,
proprietário do jornal Opinião, enviada para a ABI (Associação Brasileira de Imprensa) no
dia 03 de fevereiro em 1975 numa forma de protesto contra as ações que seu
empreendimento vinha sofrendo com a censura, é exemplar. Ao apresentar seus
argumentos contrários a essa forma de repressão, demonstra as maneiras díspares de suas
ações e de seus procedimentos:
Para apreciar as mudanças havidas nesse panorama, especialmente nos
últimos meses desse primeiro ano do governo Geisel, poderíamos, nos
arriscando à temerária tarefa de ordenar os sombrios desígnios da
censura, dividi-la em dois tipos: a) uma censura caótica, aparentemente
sem sentido algum, atingindo qualquer manifestação que contivesse
críticas, mesmo por analogia, tanto a aspectos secundários do regime
vigente como a aspectos do que parecia ser um esdrúxulo padrão de
pensamento cultural, econômico e político dos órgãos de repressão; b)
uma censura previsível, que impedia tanto uma posição de crítica aberta
a certos atos do governo no campo econômico, político e cultural, como
quaisquer críticas aos mecanismos estruturais de funcionamento do
regime, o AI-5, o decreto 477, a política salarial, a política de
favorecimento ao capital estrangeiro, a institucionalização do
autoritarismo militar, e evidentemente, a censura, as torturas e outros atos
de arbítrio.
33
Gasparian ao denunciar a existência de uma “censura caótica” e de uma censura
previsível”, aponta para uma situação mais complexa e difícil para a manutenção e para a
sobrevivência desta imprensa. Se era árdua a tarefa de elaboração da pauta dos temas e
das notícias, trabalhar dentro dos limites impostos para não serem incomodados, ainda que
testando os limites na busca de fazer valer a vontade do jornal, quando esta censura fugia
da “normalidade” causava mais confusão e transtornos. São exemplares as situações
ocorridas nos “jornais alternativos” que viam censuradas matérias que tinham sido
publicadas na “grande imprensa”.
34
Por mais paradoxal que seja, a idéia de não saber os
limites possíveis sobre o que publicar, ficando muitas vezes ao sabor das vontades e,
33
MACHADO, José Antonio Pinheiro. Opinião X Censura Momentos da luta de um jornal pela
liberdade. Porto Alegre: L&PM Editores, 1978, p. 135.
34
“A censura prévia ao jornal Opinião sempre teve um caráter discriminatório. Inúmeras matérias proibidas
tinham sido amplamente divulgadas pela imprensa brasileira. Outras foram editadas pelo jornal Le
Monde, com quem Opinião mantém convênios e ainda outras correspondem a assuntos culturais, como
é o caso de um longo estudo sobre Freud, publicado no New York Review of Books, com trechos
absurdamente cortados, e uma séria de entrevistas com cineastas brasileiros. Um dos anúncios de
Opinião promovendo a venda de livros também sofreu censura. Foi proibida a publicidade de livros de
Celso Furtado. E na última edição, todas as matérias de “Tendências e Cultura” foram vetadas”. SILVA,
Hélio; MACHADO, José; CARBONE, Antonio. Relatório da Associação Brasileira de Imprensa. In:
Ibid., p. 143.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
35
obviamente, de perseguições particulares, a “censura previsível”, por mais grotesca que
fosse, tinha mais lógica e permitia aos jornalistas vislumbrar algumas brechas neste meio.
Em seu livro Estado e Oposição no Brasil (1964-1984), Maria Helena Moreira
Alves, demonstra o grau de organização por parte dos militares na criação de um Estado
autoritário e repressivo, ao mesmo tempo em que apresenta as reações e as oposições por
parte da sociedade civil. Em relação à resistência, analisa o papel da imprensa brasileira em
geral durante todo o período, principalmente após a promulgação do AI-5 em 1968, onde
tem que enfrentar o seguinte dilema:
Com a promulgação do Ato Institucional 5, a imprensa foi sufocada
pela censura prévia e severas formas de controle. Sua reação assumiu
duas formas: o surgimento de inúmeros semanários ou tablóides
alternativos de oposição, criticando mais livremente as políticas
econômica e repressiva do governo; e a lenta articulação de campanhas
simbólicas de resistência à própria censura. A imprensa alternativa, com
investimentos muito menores, podia assumir uma posição mais agressiva
de oposição. A censura a pequenos jornais de oposição, como o
semanário Opinião, era por vezes particularmente severa, mas esta
mesma severidade estimulava a resistência e a organização, para a
conquista da liberdade de expressão. A campanha simbólica consistia na
publicação indireta ou disfarçada de informações, para leitura nas
entrelinhas, e, de forma direta, na veiculação de comprovações da
censura. Diversas técnicas eram utilizadas por jornais e revistas para
mostrar ao público a severidade da censura prévia e o número de linhas
ou artigos cortados de suas páginas pelos censores. Em alguns, um espaço
em branco deixava claro que houvera veto. Outros publicavam um
quadrilátero negro com uma apelo à leitura e ao apoio à revista ou jornal.
Uma das campanhas simbólicas mais imaginosas foi a do grande e
respeitado jornal conservador O Estado de São Paulo, que estampava
poemas, receitas culinárias ou fotografias de animais enjaulados no lugar
dos trechos cortados pelos censores.
35
Mesmo generalizando a resistência da imprensa brasileira ao regime militar como
se fosse algo encampado por todos os órgãos de informação, Alves salienta a
particularidade do momento após o AI-5, ou seja, propiciou uma nova perspectiva de ação
dentro do jornalismo, onde se tornava cada vez mais urgente uma tomada de posição. A
própria “imprensa alternativa” é citada no texto como uma radicalização típica daquela
situação política, correndo os riscos, pagando um alto preço, mas que teve o mérito de
estimular uma prática de resistência que acabou se espalhando pelas diversas vertentes do
jornalismo em nosso país. A ação da censura sobre os meios de comunicação é algo
35
ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e Oposição no Brasil (1964-1984). Petrópolis: Vozes, 1984, p.
216-217.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
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36
relevante em suas observações, é um desafio a ser superado que ganha ares de criatividade
e de ousadia, ainda que veladas.
Porém, ao tratarmos sobre a organização desta censura à imprensa que se efetuou
no país nos “anos de chumbo” o livro de Beatriz Kushnir, Cães de Guarda Jornalistas e
censores, do AI 5 à constituição de 1988, faz uma análise provocativa sobre as formas
como jornalistas e censores se relacionaram durante os 20 anos da história recente do país
por meio de acordos, colaboração e ajuda mútua, alterando um pouco a visão homogênea
de Alves. Ela aprofunda no quadro político – jurídico – institucional do AI – 5 que
referendou a censura como dispositivo legal no exercício do poder. A figura do censor,
suas razões e suas perspectivas naquela conjuntura, também ganham peso em seu livro. É
instigante a forma como ela apresenta os resultados de sua pesquisa:
[...] Esta pesquisa, no entanto, o se debruçou sobre a resistência. Não
negligencia a sua existência, mas buscou focar um outro lado da
problemática, sem, espero, desejar generalizar que todos colaboraram.
Apenas quis mostrar que nem todos combateram.
[...] A vontade foi examinar para desmistificar tanto a noção
generalizante de que os jornalistas argüiram o arbítrio como também a
percepção de que o censor é, antes de tudo, um bilontra. É importante
enfatizar, por conseguinte, que não se quis delatar, denunciar pura e
simplesmente, mas “fazer conhecer” uma outra faceta da narrativa
histórica contemporânea que oculta personalidades menos “nobres”.
36
Demonstrar que nem todos combateram. Sem vidas, o trabalho lança um novo
olhar sobre esta instituição do regime militar. Ao invés da resistência, da crítica e da
oposição a este dispositivo, ela mostra a aceitação, o enquadramento e o funcionamento
dentro dos limites esperados, diluindo as idéias preponderantes, na maioria das vezes
heróicas, sobre o jornalismo que era feito naquele período. Também é feita uma
constatação que visa destruir uma idéia bastante comum na época de que o censor era
alguém que não tinha capacidade, metas ou referências para exercer o seu trabalho. Por
mais que parecesse “caótica” e “aleatória”, como percebida muitas vezes por editores e
jornalistas, esta censura se efetuava dentro de uma organização planejada, dentro de
padrões e regras que regiam as formas de controle. Era um mecanismo importante e
bastante utilizado pelos governos, até aqueles considerados democráticos:
Nesse sentido, o importante a destacar nessa gama de decretos e leis por
todo o período republicano era a busca por um lugar para a censura. Esse
entulho não foi menosprezado pelo período autoritário, que procurou, em
36
KUSHNIR, Beatriz. es de Guarda – Jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo:
Boitempo, 2004, p. 27.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
37
vários níveis de atuação, forjar uma legalidade. Para tal, também instituiu
mecanismos que possibilitassem sua atuação, revestindo-a de um manto
legal. Toda a crise se instalou por ocasião do processo de passagem do
autoritarismo à democracia. Naquele instante, tanto a censura como os
censores tornaram-se uma pecha, como muitos deles declaram nas
entrevistas.
37
Pelo fato de não ser uma criação nova nas práticas políticas republicanas do país,
a autora demonstra uma série de manifestações favoráveis por determinados setores da
população brasileira à utilização deste controle coercitivo. de se lembrar que a censura
tem em seus objetivos gerais manter uma vigilância na observação dos “valores morais” e
também dos “bons costumes”. A partir desta concepção vaga de “moral” e de “bons
costumes” surgem as diversas leituras subseqüentes da “ameaça comunista” que o golpe de
64 procurou alardear. Na realidade, a manutenção do poder e da linha política é algo muito
valioso para correr o risco da crítica e da oposição. Daí advém toda uma preparação
institucional para criar e aperfeiçoar o aparelho da censura que era, até bem pouco tempo
atrás, uma situação envolta de uma aparente normalidade e com uma função específica,
aceita e regulamentada na grade de funcionamento do Estado brasileiro. A abertura de
concurso público para tal função até meados da década de 1970 confirma a importância e a
organização institucional dada à atividade, sendo um importante dado a ser levado em
conta na percepção do que foi feito naquele momento.
Também partindo desta visão contraditória e múltipla, Aquino apresenta três
impressões generalistas que se têm sobre as relações entre a “imprensa” e o poder após o
movimento armado de 64, sobre a forma como o Estado por meio de seus aparelhos
repressivos se manifestavam, principalmente em relação à censura.
38
Uma primeira diz
respeito à postura unilinear, distante, fria e anônima, onde o ato de proibir era apenas mais
uma atividade burocrática. A segunda apresenta um estado único, coerente, linear e sem
contradições internas e, por isso mesmo, sempre implacável em suas ações. E a terceira,
trabalha com a visão de uma “imprensa indivisível” na luta contra a repressão, que soube
de maneira heróica romper com os limites impostos. Na realidade, quando Kushnir e
Aquino apontam em suas reflexões os aspectos menos mecânicos da relação entre estes
dois campos em disputa, de certa forma valorizam as ações reais de resistência, mesmo
37
KUSHNIR, Beatriz. es de Guarda – Jornalistas e censores do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo:
Boitempo, 2004, p.130.
38
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968/1978) o exercício
cotidiano da dominação e da resistência O Estado de São Paulo e Movimento. São Paulo: EDUSC, 1999,
p. 21.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
38
aquelas que muitas vezes passavam despercebidas, ao mesmo em tempo que criticam uma
visão heróica e homogeinizante em relação à atitude dos jornalistas naquele momento.
Sobre esta tentativa de romper com as instâncias de poder, a busca de trazer a
crítica e a transformação impressa nas páginas de jornais é algo que tem raízes profundas
no jornalismo brasileiro. Ao buscarmos estas referências históricas, anteriores à “imprensa
revolucionária”, anarquista e comunista do período do Estado Novo, temos mais
informações a respeito do papel da imprensa, principalmente daquela que busca uma
“alternativa” concreta na resolução dos dilemas e das contradições no tempo em existiram.
Sem cometer um anacronismo forçado ao chamar a atenção para uma série de
periódicos que desde o século XIX promoveram substanciais mudanças na forma de
publicar e de fazer jornalismo, vemos aspectos semelhantes com a “imprensa alternativa”
da década de 1970. Efetivamente, cada manifestação jornalística teve sua particularidade e
seu desafio dentro de sua época específica. O funcionamento interno, a concepção e a
maneira de fazer jornalismo por parte de seus realizadores, as idéias propagadas e
defendidas por cada um, a recepção que tiveram diante do público e do impacto dentro da
sociedade devem ser colocadas em seus devidos lugares. Quando nos lembramos das falas
de Pereira e de Aquino, ambos tentando mostrar que os “jornais alternativos” fazem parte
de um processo que não surgiu por razões imediatas, mas que tinham história e que tiveram
continuidade após o momento em que se achavam obrigatoriamente “necessários”, retornar
à algumas iniciativas jornalísticas são extremamente instigantes.
Ao caracterizar uma imprensa que surgia no final do século XIX em São Paulo,
Heloísa de Faria Cruz, em São Paulo em papel e tinta periodismo e vida urbana 1890-
1915, faz a seguinte caracterização para uma nova maneira de fazer jornalismo, tanto no
aspecto formal, tanto na importância social dos mesmos:
Embora típicas, as folhas e revistas domingueiras não são os únicos
veículos inovadores da imprensa periódica na época. Ampliando o
espectro social da cultura letrada, a pequena imprensa passa também a
dar voz a personagens e espaços que até então eram raros ou mesmo
exteriores aos círculos das elites e da cultura letrada na cidade. Através da
e na imprensa de imigrantes, nas pequenas folhas e jornais de bairros e,
principalmente, na rica imprensa operária do período, categorias de
publicações que freqüentemente se mesclavam, a hegemonia das elites
letradas foi surpreendida e desafiada por interesses, projetos e concepções
de novos sujeitos sociais. Nessas outras folhas, os conflitos e tensões
engendrados pelas novas condições da luta social na cidade ganham
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
39
maior definição e nitidez. Nessas publicações, os desafios e perspectivas
de luta das classes populares tornam-se visíveis.
39
Exercendo um papel social considerável e influente na representação de discursos
e de vozes que não tinham outro meio de expressão, a não ser por meio destes pequenos
jornais, eles atingiam horizontes mais distantes. A partir do momento que estes setores
populares surpreendiam certo poder hegemônico, que tinha seus canais de comunicação e
que, em outro momento, se viam ameaçados, os conflitos e as tensões sociais ganhavam
novos elementos a serem inseridos no processo de resistência e de propaganda.
A visibilidade que estes jornais proporcionavam às lutas dos diferentes segmentos
sociais do período é um dos méritos a serem creditados a essas iniciativas. Como canal de
expressão, a elaboração de jornais tornava-se obrigatória para qualquer grupo que
desejasse colocar suas idéias em debate. A possibilidade de ampliar questões que, de outra
maneira, ficariam restritas a grupos numericamente limitados, era uma aspiração que
perpassou por todos aqueles que utilizaram os diferentes meios de comunicação. No caso
específico, esta imprensa no final do culo XIX trazia à tona uma quantidade expressiva
de grupos que, caso não dispusessem de tais meios, dificilmente incomodariam o poder
vigente. Denúncias, pedidos de providência, defesa de idéias, debates, convocações para
reuniões e greves, descrições de situações vividas, anúncios comerciais, piadas e charges
são algumas dentre as várias maneiras de como diversos segmentos da população
exerceram, por meio dos jornais, a possibilidade de ampliarem o seu raio de ação.
Levando em conta estas funções específicas deste segmento jornalístico, Maria
Luíza Tucci Carneiro ao reunir os jornais apreendidos pelo DEOPS entre as décadas de
1920 e 1950, especialmente no Estado Novo, vai denominá-lo de “jornalismo político”.
Desta maneira salienta a importância dos mesmos acima de questões cotidianas, e percebe
neles, principalmente os analisados dentro de um conjunto quantitativo e qualitativo, uma
aspiração maior, em busca de transformações mais profundas e decisivas na sociedade.
Reconhece também o papel de mobilização e de confronto com a justiça brasileira, ligada,
mantida e fortemente influenciada pelos governos ditatoriais. O ato de discutir e denunciar
os constantes desrespeitos aos direitos humanos foi uma pertinente e necessária bandeira
de luta levantada naquele período do “Estado Novo”:
Em texto e imagem, o jornalismo político denunciou as injustiças da
justiça brasileira dedicada, em vários momentos a calar a voz dos
39
CRUZ, Heloísa de Faria. o Paulo em papel e tinta periodismo e vida urbana 1890-1915. São
Paulo: EDUC; FAPESP; Arquivo do Estado de São Paulo; Imprensa Oficial SP, 2000, p. 117.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
40
rebeldes. Abriu espaço as escritores anônimos rompendo com os
preconceitos de cor, gênero, classe e religião. Mobilizou numa frente
única em prol dos direitos humanos estudantes, operários, intelectuais,
artistas plásticos, músicos, caricaturistas e editores, dentre outros.
Denunciou a podridão das prisões brasileiras, a inadimplência das
autoridades policiais, a desobediência às leis trabalhistas, a expulsão de
estrangeiros e a censura oficial.
40
A “imprensa alternativa” da década de 1970 exerceu um papel considerável como
porta–voz de todo um segmento crítico e contrário ao regime militar imposto desde 1964.
Nas suas páginas também temos uma gama variada de aspirações, tendências e idéias de
grupos que vislumbravam nos jornais uma forma de exercer o seu papel como oposição,
ampliando e demarcando o seu projeto político, social e cultural.
No decorrer de seu trabalho, Kucinski, ao analisar as diferentes iniciativas da
imprensa alternativa do país (especificamente as que surgiram no período do final dos anos
60 até o final da década seguinte como os jornais Pasquim, Bondinho, Versus, Coojornal,
Repórter, Opinião, Movimento e Em Tempo) deixa transparecer as diferentes perspectivas,
opiniões e relações em que cada um tinha com o momento em questão.
A imprensa alternativa surgiu da articulação de duas forças igualmente
compulsivas: o desejo das esquerdas de protagonizar as transformações
que propunham e a busca, por jornalistas e intelectuais, de espaços
alternativos à grande imprensa e à universidade. É a dupla oposição ao
sistema representado pelo regime militar e às limitações à produção
intelectual-jornalística sob o autoritarismo que se encontra o nexo dessa
articulação entre jornalistas, intelectuais e ativistas políticos.
Compartilhavam, em grande parte, um mesmo imaginário social, ou seja,
um mesmo conjunto de crenças, significados e desejos, alguns
conscientes e até expressos na forma de uma ideologia, outros ocultos, na
forma de um inconsciente coletivo. À medida que se modificava o
imaginário social e com ele o tipo de articulação entre jornalistas,
intelectuais e ativistas políticos, instituíam-se novas modalidades de
jornais alternativos.
41
Especificando a maneira como estes canais de comunicação se diferenciaram
entre si, o autor percebe uma espécie de “sentimento geral” que possibilitava a criação de
tais jornais. De um lado, temos uma “esquerda” repreendida e esfacelada das mais diversas
maneiras que buscava explicações para a sua derrota e que, ao mesmo tempo, via como
uma opção imediata de resistência a participação nos periódicos alternativos. De outro,
40
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Imprensa irreverente, tipos subversivos. In: CARNEIRO, Maria Luiza
Tucci; KOSSOY, Boris. (Orgs.). A Imprensa confiscada pelo Deops: 1924-1954. São Paulo: Ateliê
Editorial; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Arquivo do Estado, 2003, p. 19.
41
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. 2. ed. (rev. e
ampl.) São Paulo: Edusp, 2003, p.16.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
41
temos grupos intelectuais de variadas matizes que, diante do recesso democrático e da
supressão da liberdade de expressão, percebiam a necessidade de defenderem seus ideais
em canais que tinham, pelo menos no campo do discurso (a prática, é uma outra história,
como veremos adiante) uma roupagem mais aberta e capaz de receber vozes descontentes.
Na união destes interesses coletivos e partidários, juntamente com os particulares,
transparece a tentativa de promover mudanças, que interessariam a ambos os grupos, ainda
que não tivessem objetivos tão semelhantes.
1.4 “ESQUERDA”, ESQUERDAS”, ALTERNATIVA”, IMPRENSA
Ao tratar o termo “esquerda” no plural “esquerdas” Kucinski demonstra as
diferentes formas de como o “jornalismo alternativo” se materializou, assim como as
“tendências oposicionistas” que os nortearam, sejam elas no campo do comportamento e
de afirmação como os jornais Brasil Mulher e Nós Mulheres (feministas), Lampião
d’Esquina (gay), sejam na luta por direitos de setores da sociedade marginalizados e na
situação dos trabalhadores brasileiros, Repórter e Beijo. Nesta mesma linha, a coexistência
de jornais profundamente envolvidos com os movimentos de contracultura como o
surrealista Flôr do Mal às tentativas de reagrupação de uma frente oposicionista ao regime
militar por meio do Opinião e do Movimento.
Da mesma maneira, Ana Paula Nascimento Araújo em A utopia fragmentada,
busca aprofundar as diferenças entre os termos “imprensa alternativa”, “esquerda” e
“esquerda alternativa”, problematizando o significado de cada uma e as distâncias entre
elas. Isto surge devido à necessidade de dar o devido valor aos diferentes tipos de jornais
dentro da chamada “imprensa alternativa”. Se num primeiro momento de nosso texto, ao
analisarmos algumas opiniões de Pereira e de Festa, houve a existência de uma linha
comum que ligaria estes “jornais alternativos”, principalmente em relação ao papel que
exerceram e continuavam a exercer nos anos 80, o reconhecimento da fragmentação nas
perspectivas de Kucinski, Aquino e de Araújo é, sem dúvida, uma maneira de questionar
algumas visões generalizantes. Sem anularem a primeira perspectiva, uma tentativa de
mostrar as variadas formas como cada grupo político-social exerceu a prática jornalística
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
42
em suas peculiaridades. Ao mesmo tempo, são importantes espaços onde ficaram expostas
as diferenças desta “esquerda” que, num momento inicial, pretendia-se totalizante:
A imprensa alternativa era uma alternativa à imprensa oficial, à chamada
“grande imprensa”, que na época não assumia uma postura claramente de
oposição ao regime. a esquerda alternativa, [...], pretendia ser uma
alternativa à esquerda tradicional, mais especificamente ao PCB.
Portanto, as duas expressões não são sinônimas.
42
A “imprensa alternativa”, desse modo, além da questão de ser alternativa à
imprensa oficial, pode ser considerada como um conjunto de jornais e periódicos
sustentados, geridos e publicados por dois setores políticos distintos: a “esquerda”
43
e a
“esquerda alternativa”.
44
Cada uma, dentro de seus pressupostos, concebia seus jornais.
Estes, não eram apenas veículos de informações e de idéias dos grupos, eram espaços de
discussão e de afirmação e de resistência. Como veremos posteriormente, participar destas
iniciativas requeria por parte de seus sujeitos uma determinada visão de mundo, uma
atitude específica e diferenciada diante a situação brasileira.
45
42
ARAÚJO, Ana Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 131.
43
A histórica disputa e cisão dentro da esquerda brasileira, entre o PCB e o PC do B no final da década de
1950 demonstrava a o grau de diferenças, discussões e discordâncias entre estes grupos: [...] o partido
foi relativamente pouco estudado, havendo pequeno mero de trabalhos acadêmicos especificamente a
seu respeito. O mais comum é encontrar a história do PC do B vista a partir da trajetória do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) e associada a ela. Seja pela comparação, seja pela oposição, a história do
primeiro aparece constantemente vinculada à do segundo, ficando, de certa forma, ofuscada. Certamente
contribuiu para isso o fato de o PC do B ter surgido de uma cisão no interior do PCB, sendo que neste
ficou a maior parte dos militantes. Além disso, a divisão não impediu que o partido de Luís Carlos Prestes
se mantivesse como força hegemônica entre as esquerdas no período que antecedeu o golpe militar de
1964. Já o PC do B, com muita dificuldade, tentava estruturar-se orgânica e ideologicamente para
diferenciar-se de sua matriz e aparecer como um alternativa viável entre as esquerdas. Entretanto, o fato
de não ter ocupado, na primeira metade dos anos 60m um lugar destacado na política nacional não deve
servir de empecilho para que sua história seja resgatada. Afinal, o PC do B acabou por protagonizar, nos
anos seguintes, eventos importantes na história da esquerda brasileira e, como afirma a tradição marxista-
leniista da qual fazem parte os dois partidos, se a história é a prova dos nove da política, o PC do B
mostrou ter maior capacidade de manutenção de sua estrutura partidária diante das crises internas e das
mudanças no país”. SALES, Jean Rodrigues. Partido Comunista do Brasil Definições ideológicas e
trajetória política. In: RIDENTI, Marcelo; Daniel Aarão Reis. (Org.). História do Marxismo no Brasil.
Partidos e movimentos após os anos 1960. Campinas: Editora da Unicamp, 2007, p. 63.
44
“As décadas de 1970-80 encerram, [...], a história do confronto entre duas concepções políticas que
operam com categorias distintas: totalidade versus fragmentação; luta geral versus lutas específicas;
sujeito universal versus sujeitos específicos; universalidade versus particularidade; indentidade versus
alteridade. No Brasil, este confronto pode ser estudado e analisado através da “imprensa alternativa”:
jornais feministas, imprensa negra, imprensa gay, publicações ligadas à causa indígena e jornais
vinculados à organizações de esquerda”. Ibid., p. 113.
45
“Na década de 1970, principalmente a partir de 1974, os pontos que determinavam os diferentes
alinhamentos entre partidos e organizações de esquerda eram outros embora alguns persistissem com
novas roupagens. Na verdade, podemos classificar de três formas os pontos em torno dos quais a esquerda
se dividia e se agrupava: a) uma questão estratégica: “reforma e revolução” (que era uma derivação da
crítica à concepção das etapas); b) uma questão tática: a luta pelas liberdades democráticas; c) uma
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
43
Quando Araújo enumera as diferentes linhas em que se apresentaram os “jornais
alternativos”, já transparece a existência de várias lutas, direitos e reivindicações. O
reconhecimento e o mapeamento do lugar que ocupavam as rias iniciativas jornalísticas
do período são relevantes por indicar pressupostos que nos auxiliam na análise dos temas e
dos debates presentes nos vários segmentos sociais de então:
A imprensa alternativa congregava jornais de vários tipos: a) jornais de
esquerda (que se vinculavam tanto a jornalistas de oposição quanto aos
partidos e organizações políticas clandestinas); b) revistas de
contracultura (que reuniam intelectuais e artistas “alternativos” ou
“malditos” os que produziam fora do esquema comercial); e c)
publicações de movimentos sociais (englobando nesse campo o
movimento estudantil, os movimentos de bairro e, principalmente, um
tipo específico de imprensa alternativa aquela vinculada a grupos e
movimentos de minorias políticas, como a imprensa feminista, a chamada
“imprensa negra”, os jornais de grupos homossexuais organizados, as
publicações indígenas etc.).
46
Ainda que a pré-definição destes aspectos formais e políticos dos jornais ofereça
riscos, por nos sugerir uma interpretação forçada e muitas vezes superficial, ela pode ser
instigante por muitas vezes ir de encontro com a documentação analisada. Nas divisões
feitas por Araújo pautando-se nos agentes que produziam estes materiais e de seus
respectivos grupos; percebe-se que esta oposição era em relação tanto ao status quo como
entre elas mesmas. Neste ponto é essencial delimitarmos as perspectivas de lutas que se
apresentavam às “oposições”. Lado a lado, nesta “imprensa alternativa” da década de
1970, tivemos grupos de “esquerda”, diferentes em relação a seus objetivos, mas cujos
jornais tinham e, comum, segundo a autora,
[...] uma visão tradicional da ação política que considerava que esses
movimentos dividiam a oposição, introduzindo perturbadoras questões
subjetivas e excessivamente específicas. A única forma de tais
movimentos serem úteis à luta mais geral da oposição era mobilizar seus
contingentes nas grandes campanhas políticas gerais, como a luta pela
anistia ou contra a carestia. De modo geral, essa era a posição do PCB, do
PC do B e do MR-8.
47
questão de filosofia política: como encarar e se relacionar com os movimentos específicos, a
fragmentação e a valorização da subjetividade”. SALES, Jean Rodrigues. Partido Comunista do Brasil
Definições ideológicas e trajetória política. In: RIDENTI, Marcelo; Daniel Aarão Reis. (Org.). História
do Marxismo no Brasil. Partidos e movimentos após os anos 1960. Campinas: Editora da Unicamp,
2007, p. 120.
46
ARAÚJO, Ana Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 21
47
Ibid., p. 128.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
44
De outro, temos a “esquerda alternativa”, ainda que tributária do grupo acima
descrito, partiu para uma tentativa de reformulação e adequação do Marxismo para a
realidade em que vivia. Amparados em autores
48
que buscavam essa comunicação e
atualização desta doutrina política e ao mesmo tempo críticos severos às diretrizes
totalitárias da aplicação da mesma na URSS, em sua prática cotidiana amparavam-se
outras experiências:
[...] enfatizavam a especificidade de suas questões e temiam a relação
com partidos e organizações de esquerda. Para eles, o contato com a
esquerda organizada poderia levar à diluição ou a uma relação utilitária
de seu potencial de mobilização. Não se recusavam a participar de
atividades comuns mas achavam necessário resguardar sua autonomia e
preocupavam-se com a invasão de seus espaços (como congressos, atos
públicos, revistas e jornais) pela esquerda organizada (principalmente
pela esquerda mais tradicional; dentro dela. O MR-8 lhes despertava
maior temor).
49
Devemos ficar bastante atentos a esse conflito interno dentro das “esquerdas”.
50
Os jornais, formados normalmente por grupos de pessoas que partilhavam de maneira
48
“Os grupos e organizações dissidentes dos anos 1960 eram críticos em relação aos partidos comunistas e
socialistas. Acusavam-nos de imobilismo, reformismo, cautela excessiva, burocratização, stalinismo etc.
Mas ainda se mantinham dentro dos paradigmas gerais do marxismo. Buscavam inspiração em outras
fontes: Trotski, Rosa Luxemburgo, Gramsci, Mao. Eram críticos de Stalin, do comunismo soviético e, até
mesmo, da tradição leninista. Mas procuravam suas referências dentro da cultura marxista. Por isso
mesmo, tais grupos e organizações se auto-intitulavam “Nova Esquerda” (tomando emprestado a
expressão dos Estados Unidos e da Inglaterra). Novas esquerdas que tiveram trajetórias e destinos
diferentes. Entre o esforço teórico de renovação do marxismo empreendido pelo grupo de intelectuais e
historiadores ingleses fundadores da New Left Review e as inúmeras organizações armadas do Brasil,
havia em comum a cultura marxista”. ARAÚJO, Ana Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as
novas esquerdas no Brasil e no mundo na década de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 99.
“[...] as principais características das novas esquerdas em todo o mundo ocidental: a valorização do
cotidiano, do indivíduo, das relações pessoais, a valorização dos sentimentos e das emoções”. Ibid., p.
43.
49
Ibid., p. 128.
50
As visões tanto dos grupos moderados da “esquerda tradicional” como a dos revolucionários em relação à
esquerda alternativa são paradoxais e exemplares da disputa existente naquele momento em nosso país:
“* Uma visão tradicional da ação política que considerava que esses movimentos dividiam a oposição,
introduzindo perturbadoras questões subjetivas e excessivamente específicas. A única forma de tais
movimentos serem úteis à luta mais geral da oposição era mobilizar seus contingentes nas grandes
campanhas políticas gerais, como a luta pela anistia ou contra a carestia. De modo geral, essa era a
posição do PCB, do PC do B e do MR-8.
* Uma visão menos tradicional da luta política, sensível à questão da diferença e que procurava se
relacionar com a especificidade desses movimentos, esforçando-se para não “aparelhá-los”. Mas também
procurando trazê-los para o campo da luta mais geral contra o regime militar e por uma sociedade
socialista. Era essa, por exemplo, a posição da APML e do MEP.
* A visão de muitos militantes desses movimentos, que enfatizavam a especificidade de suas questões e
temiam a relação com partidos e organizações de esquerda. Para eles, o contato com a esquerda
organizada poderia levar à diluição ou a uma relação utilitária de seu potencial de mobilização. Não se
recusavam a participar de atividades comuns mas achavam necessário resguardar sua autonomia e
preocupavam-se com a invasão de seus espaços (como congressos, atos públicos, revistas e jornais) pela
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
45
muito próxima de um mesmo conjunto de valores e de idéias, tiveram em seus textos a
materialização explícita de tais enfrentamentos.
Ainda que existissem tentativas de diálogos e de aproximação, o clima entre
ambos era de desconfiança, principalmente quando se referiam a determinadas práticas que
não condiziam exatamente com os padrões estabelecidos por cada grupo em específico.
Por mais paradoxal que seja a idéia num primeiro instante, esta fidelidade
ideológica foi em muitos casos (as experiências dos jornais Opinião e Movimento são
exemplares neste sentido) a razão da ruína destes jornais, mesmo estes não sendo jornais
nomeadamente “partidários”. Ou seja, ao invés de continuarem com uma proposta
“apartidária”, muitos acabavam servindo secretamente como um “braço impresso” de
diferentes tendências da “esquerda”, principalmente a “tradicional”. Ao destacar as razões
para o fim destes, temos o impulso lógico de colocarmos a culpa na repressão imposta pelo
regime militar. Com certeza, estar sob vigilância constante, “desde o nascimento” (situação
inimaginável nos dias de hoje), numa área como a imprensa onde a rapidez, a novidade, a
polêmica e a dinamicidade são necessárias, produziu transtornos incontornáveis para a
continuidade e para a sobrevivência dos projetos, em especial na questão econômica.
Aquino faz uma defesa que segue nesta direção:
Dessa forma, do mesmo modo como a imprensa alternativa floresceu nos
duros anos do regime militar, é esse mesmo regime o responsável direto
pela sua extinção. Embora não se possa estabelecer uma relação tão direta
no que tange à formação de conglomerados jornalísticos, os governos
militares têm sua parcela de responsabilidade nesse processo. [...] Abriu-
se o caminho para a padronização e oligopolização na imprensa.
51
Porém, por estes jornais terem sido ambientes restritos ao defenderem
determinadas opções com o máximo de definição e coerência ideológica por parte de seus
colaboradores, as discordâncias (que normalmente não se resolviam com debates e
discussões) acabavam gerando um clima de insegurança e incompatibilidade dentro das
redações. Se esta característica pode ser apontada como negativa, ou seja, como algo que
se voltou contra eles mesmos, tentaremos demonstrar que o sectarismo não existia
simplesmente por capricho e vaidade. Dentro destes jornais passou a existir uma lógica
esquerda organizada (principalmente pela esquerda mais tradicional; dentro dela. O MR-8 lhes despertava
maior temor)”. Ibid.
51
AQUINO, Maria Aparecido de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968/1978) o exercício
cotidiano da dominação e da resitência O Estado de São Paulo e Movimento. São Paulo: EDUSC, 1999,
p. 17.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
46
que, de certa maneira, acabava desembocando nestes radicalismos que, no fim das contas,
enfraqueceu consideravelmente estas iniciativas.
1.5 SOBRE A INSPIRAÇÃO GRAMSCIANA NO COTIDIANO DA IMPRENSA
ALTERNATIVA
Na citação a seguir, Kucinski aponta um traço característico existente nos “jornais
alternativos”, especialmente nos considerados de “esquerda”, que ele chama de “inspiração
gramsciana”. Efetivamente, este modelo citado pelo autor acaba sendo paradoxal pelo fato
de ter significado força e coerência, mas, ao mesmo tempo, foi razão de profundas
contradições internas:
As estruturas de poder da imprensa alternativa explicitavam propósitos
democráticos e participativos. Mas, invariavelmente, sucumbiam ante os
métodos dos partidos clandestinos na sua luta pela conquista da
hegemonia dos jornais. Seguiam-se os “rachas” e a formação de
estruturas mais sofisticadas, igualmente impotentes frente às novas
divergências. Havia entre as concepções vigentes uma forte inspiração
gramsciana, entendendo os jornais como entidades autônomas, com o
principal propósito de contribuir pra a formação de uma consciência
crítica nacional.
52
A “inspiração gramsciana” é um dos pontos-chaves, segundo Kucinski, para se
compreender o funcionamento dos “jornais alternativos” além dos propósitos democráticos
e participativos. As trajetórias dos jornais Opinião e Movimento, além do combate contra o
regime militar, foram marcadas pela existência de “grupos políticos” dentro de suas
redações, com ligações externas com partidos e movimentos de “esquerda” que tentavam
impor linhas editoriais que satisfizessem seus interesses, causando uma rie de problemas
de direcionamento e de coordenação editorial. Porém, antes de simplesmente apontarmos
estes “problemas” como um contra-senso neste sistema diferenciado de expressão
jornalística, convém aprofundarmos um pouco mais no significado do termo, sobre sua
especificidade e suas implicações.
52
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. 2. ed. (rev. e
ampl.) São Paulo: Edusp, 2003, p. 19.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
47
O termo utilizado nos remete para uma série de anotações feitas por Antonio
Gramsci na prisão entre os anos de 1934 e 1935 reunidas sob o título “Jornalismo”.
53
Os
textos são orientações e reflexões específicas que o autor faz para a formação e o modelo
de trabalho de um jornal que, antes de ser “informativo”, no sentido mais restrito do termo,
estaria inserido dentro de uma luta política bastante específica. Acima de tudo,
representaria uma determinada visão de mundo impressa em suas páginas. O que temos em
suas análises é um jornal como parte integrante de um processo organizado e coerente, que
buscava objetivos políticos e partidários (no caso o Partido Comunista Italiano) limitados e
que visava educar e organizar intelectualmente a “classe revolucionária” no processo de
tomada do poder. Levando em consideração as nossas reflexões prévias sobre a
importância dos jornais e de suas ligações com determinados grupos sociais-econômicos,
nada mais justificado que esta “classe” e seus “intelectuais” se utilizassem destes meios de
comunicação para expressão de suas “concepções de mundo”:
O tipo de jornalismo considerado nestas notas é o que poderia ser
chamado de “integral” [...], isto é, o jornalismo que não somente pretende
satisfazer todas as necessidades (de uma certa categoria) de seu público,
mas pretende também criar e desenvolver estas necessidades e,
conseqüentemente, em certo sentido, gerar seu público e ampliar
progressivamente sua área. Se se examinam todas as formas existentes de
jornalismo e de atividade publicístico-editorial em geral, vê-se que cada
uma delas pressupõe outras forças a integrar ou às quais coordenar-se
“mecanicamente”.
54
Amparado nesta perspectiva de utilização do jornal como um elemento que
satisfaria as necessidades de seu público e que, progressivamente, criaria e desenvolveria
as suas necessidades, pressupõe uma iniciativa diferenciada. Cumpriria uma função
educativa, concentrando em suas páginas um conjunto de forças visando compensar a
dificuldade de acesso de boa parte da “classe trabalhadora” à informação e à reflexão
crítica. Gramsci deixa claro o aspecto original de sua proposta comparada com as
iniciativas jornalísticas em geral que, segundo sua opinião, não consideravam as
“deficiências” na formação do leitor. Esta é uma primeira crítica que ele faz sobre o papel
exercido pelos grandes jornais até então: elitistas, “mecanicistas” e destinados a uma
pequena parcela de leitores (pelo menos até o limite daqueles que podiam adquiri-lo).
53
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 193-251. v.
2.
54
Ibid., p. 197.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
48
Algo deve ser ressaltado: na concepção de Gramsci, o jornal seria um dos meios
utilizados dentro os vários possíveis para a luta política. Esta sua preocupação em
sistematizar uma proposta jornalística parte da idéia pragmática de que dentro da luta
política, o “partido”, a principal instituição de organização das massas, deve ter uma
coerência ideológica rigorosa e coesa. Qualquer movimento contrário ou de oposição às
premissas da organização partidária é visto como elemento desarticulador, que
enfraqueceria as bases para a continuidade do processo de confronto com as outras forças
político-ideológicas. Para cumprir sua tarefa “educativa”, o jornal deveria ter,
conseqüentemente, este mesmo alinhamento dentro de seu corpo editorial.
55
Esta necessária “educação” pelo jornal parte do argumento da necessidade da
“elaboração de uma consciência crítica” em relação aos seus leitores. Novamente, o
pensador marxista italiano sabe das dificuldades deste processo. Metodologicamente, ele
compreende as restrições da “classe trabalhadora” no acesso a determinados meios de
comunicação, principalmente a escrita. Chamando a atenção para a realidade concreta que
deve ser observada na elaboração deste instrumento ideológico e de classe, Gramsci aponta
o trabalho na seguinte direção:
O trabalho educativo-formativo desenvolvido por um centro homogêneo
de cultura, a elaboração de uma consciência crítica (por ele promovida e
favorecida) sobre uma base histórica que contenha as premissas concretas
para tal elaboração, este trabalho não pode limitar-se à simples
enunciação teórica de princípios “claros” de método: esta seria uma mera
ação própria de “filósofos” do século XVIII. O trabalho necessário é
complexo e deve ser articulado e graduado: deve haver dedução e
indução combinadas, a lógica forma e a dialética, identificação e
distinção, demonstração positiva e destruição do velho. Mas não de modo
abstrato, e sim concreto, com base no real e na experiência efetiva.
56
Nota-se na citação acima o sentido negativo que Gramsci vê nas práticas idealistas
e “iluministas” de educação. Pelo fato das idéias e dos princípios destes surgirem “do ar”,
sem uma base real e concreta, acabam desarticulados e distanciados da realidade, não
55
nin em seu “Plano de um jornal político para toda a Rússia”, na polêmica contra o jornal Rabótcheie
Dielo sobre os caminhos que deveriam tomar a revolução, busca justificar o papel ativo da imprensa na
organização das massas revolucionárias: [...] Infelizmente, para educar pessoas para formar organizações
políticas fortes não outro meio senão um jornal para toda a Rússia. [...] Por outro lado, as massas
jamais aprenderão a conduzir a luta política enquanto não ajudarmos a formar dirigentes para essa luta,
tanto entre os operários instruídos como entre os intelectuais. Ora, tais dirigentes apenas podem ser
educados iniciando-se na apreciação cotidiana e metódica de todos os aspectos de nossa vida política, de
todas as tentativas de protesto e de luta das diferentes classes e por diferentes motivos”. LÊNIN,
Vladimir Ilich. Que fazer? As Questões Palpitantes do Nosso Movimento. São Paulo: Hucitec, 1978, p.
125.
56
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 206. v. 2.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
49
resolvendo, portanto, nenhuma das contradições existentes na sociedade. Ainda assim,
alerta sobre a complexidade da práxis que se contrapõe a este estado intelectual passivo.
Este segundo ponto é outra premissa que perpassa por toda a sua obra: a tentativa de
“elevar” a discussão do Marxismo sem cair nos extremos preguiçosos e nos inócuos
lugares comuns.
As técnicas reflexivas que ele apresenta são, de toda maneira, uma tentativa de
preparar intelectualmente as massas. Convicto de que as mudanças apenas ocorrem de
maneira profunda e substancial caso alterem radicalmente os modos de pensar e de agir.
De nada adianta as transformações se estas são amparadas e executadas por uma massa
preparada “mecanicamente” e “inconsciente”. Este deslocamento do “senso comum” para
o “bom senso”, conceitos caros do pensamento gramsciano, é também responsabilidade da
atividade jornalística como instituição cultural e de transmissão de uma certa concepção de
mundo. A imprensa faz parte de um processo que tende à expansão, ao alcance de um
número maior de leitores possíveis. Além disso, uma atividade responsável politicamente
pela interligação e organicidade de um grupo social, ao mesmo tempo, ampliando e
aprofundando o debate em busca do fortalecimento das bases. É uma postura que visa dar
ao jornal um valor mais específico e ativo num processo real que se altera dialeticamente.
Demonstra as possibilidades dos jornais contribuírem para a transformação da realidade
em questão, especialmente na questão da ampliação da ética, da política, e da moral de um
grupo, no caso o proletariado, condição sine qua non para o processo revolucionário
57
. Este
último ponto não se resume numa tomada de poder, militarmente entendida, súbita e
isolada, sem antes não ter ocorrido uma preparação ampla e total por parte daqueles que
estão à frente deste processo. A simples subida de um determinado grupo ao poder, não
significa, para Antonio Gramsci, a permanência e o direito de exercê-lo. Sempre existe a
necessidade de um consenso que o ampare e que o fortaleça.
57
“[...] Mas uma associação normal concebe-se a si mesma como ligada por milhões de fios a um
determinado agrupamento social e, através dele, a toda a humanidade. Portanto, esta associação não se
considera como algo definitivo e enrijecido, mas como tendente a ampliar-se a todo um agrupamento
social, que é também considerado como tendente a unificar toda a humanidade. Todas estas relações
emprestam caráter (tendencialmente) universal à ética de um grupo, que deve ser concebida como capaz
de tornar-se norma de conduta de toda a humanidade. A política é concebida como um processo que
desembocará na moral, isto é, como tendente a desembocar numa forma de convivência na qual a política
e, conseqüentemente, a moral serão ambas superadas”. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 231. v. 2.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
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50
Na elaboração deste consenso a importante participação dos jornais, o que ele
também denomina de “escola de adultos”.
58
Daí o porquê de se conhecer, racionalmente e
funcionalmente, o público a quem se dirige para a construção de um edifício cultural
completo, autárquico”.
59
A delimitação de objetivos e de premissas são instrumentos vitais
que devem estar bem claros para aqueles que fazem parte do jornal. Por mais que estejam
ligados de maneira sólida a um “partido”, este jornal exerce uma função mais fluida e
imediata, no “calor da hora” diante as situações presentes e cotidianas.
A idéia central, neste caso, é a capacidade do jornal, das pessoas que dele fazem
parte, em conjunto reconhecerem de maneira profunda, constante e dialética a realidade em
constante processo de transformação. Ao invés da solidez, a fluidez dinâmica de apreensão
das necessidades que são formadas dentro de uma conjuntura específica
60
. Porém, e aqui
começamos a pensar de maneira mais próxima os “jornais alternativos”, a prática efetiva
disso torna-se um grande difícil de ser desatado. Poderiam pensar mesmo na
impossibilidade efetiva de tal feito devido pelo fato de existir um alto grau de subjetividade
que surge com a situação, em que, dependendo da perspectiva encontraríamos uma gama
variada de interpretações. Mas também podemos pensar, e isso é que Gramsci tenta nos
levar a crer, é que a dificuldade de conceber tais operações é causada pela acomodação,
falta de vontade, de inteligência e de superação. Perpassa por toda a sua obra uma quase
obrigação por parte daqueles que precisam efetuar tais “ações”, a necessidade de uma
preparação quase sobre-humana, capaz de superar as dificuldades inerentes ao processo de
luta com uma incorruptibilidade realmente “revolucionária”. Um refletir constante sobre a
realidade, sem abrir mão do método e da disciplina, e uma “ação política” sempre
cirúrgica, eficiente e resistente.
Participar de tal atividade “intelectual” exigia do jornalista uma real afinidade,
coerência e adequação ideológica com o grupo de qual fazia parte. Sobre o funcionamento
58
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 229. v. 2.
59
Ibid., p. 197.
60
“[...] Por certo, durante a elaboração do “plano”, as premissas necessariamente se modificam, que, se é
verdade que uma certa finalidade pressupõe certas premissas, é também verdade que, durante a
elaboração real da atividade determinada, as premissas são necessariamente modificadas e transformadas,
e a consciência da finalidade ampliando-se e concretizando-se reage sobre as premissas “adequando-
as” cada vez mais. A existência objetiva das premissas permite pensar em certas finalidades, isto é, as
premissas dadas são tais em relação com certas finalidades imagináveis como concretas. Mas, se as
finalidades começam progressivamente a realizar-se, o fato mesmo desta realização, da efetividade
alcançada, modifica necessariamente as premissas iniciais, que porém não são mais... iniciais e,
conseqüentemente, modificam-se também as finalidades imagináveis, e assim por diante”. Ibid., p. 197-
198.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
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51
e a forma de trabalho apontados por Gramsci são interessantes e nos dão, pelo menos
teoricamente, o perfil exigido para alguém estar dentro de tais jornais:
Cada um destes tipos deveria ser caracterizado por uma orientação
intelectual muito unitária e não antológica, isto é, deveria ter uma redação
homogênea e disciplinada; portanto, poucos colaboradores “principais”
devem escrever o corpo essencial de cada número. A orientação
redacional deve ser fortemente organizada, de modo a produzir um
trabalho intelectualmente homogêneo, apesar da necessária variedade do
estilo e das personalidades literárias; a redação deve ter um estatuto
escrito, o qual, quando coubesse, impediria as improvisações, os
conflitos, as contradições (por exemplo, o conteúdo de cada número deve
ser aprovado pela maioria da redação antes de ser publicado.
61
Este é outro trecho essencial para compreender o conceito de “jornalismo” em
Gramsci. O que na citação é uma forma de organizar da maneira mais coesa e precisa a
redação do jornal. A importância de uma “orientação intelectual ‘muito’ unitária”, um
corpo editorial “homogêneo”, “disciplinado”, numericamente limitado, a necessidade de
uma produção textual, ainda que variada pelas particularidades estilísticas e literárias de
cada um (a única originalidade permitida), a obrigação de um estatuto para impedir
qualquer desvio no quadro geral previamente acertado e a aprovação da maioria para a
autorização da publicação de uma matéria cria uma organização que exige de seus
participantes, além do acima citado, uma postura rígida e vigilante. A improvisação, o
invencionismo, a falta de método são elementos a serem combatidos internamente. Esta
superioridade “orgânica” e “intelectual”, na concepção gramsciana, seria o canal para que
realmente conseguissem atingir o objetivo esperado.
Fica visível nas observações acima uma brecha sedutora para o autoritarismo
dentro das redações jornalísticas. Ainda que as exigências e as adequações sejam
amplamente discutidas por todos, o fechamento em determinadas premissas são
fundamentais para o grupo jornalístico em questão. Como dissemos anteriormente, existe
um fim a ser alcançado e que, por isso, devem ser utilizados todos os meios possíveis para
se alcançar este fim. Faz-se a necessidade de uma observação de tais determinações
autoritárias, ainda que brevemente, para melhor situar estas idéias dentro de uma
conjuntura maior.
62
61
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 201. v. 2.
62
Antonio Gramsci pensa de maneira prática uma forma efetiva de se fazer uma “revoluçãonos moldes
socialistas, numa Europa pré-II Guerra Mundial, em meio ao advento dos movimentos Nazista, na
Alemanha, e Fascista, na Itália. Este último, além de o ter colocado atrás das grades até a sua prematura
morte, efetivou uma caçada violenta contra os grupos de “esquerda” italianos. Sem justificar o
autoritarismo com o sinal invertido existente nas considerações do autor, deve-se salientar tais situações
Capítulo I
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52
Se existe um diferencial na obra de Antonio Gramsci escrita dentro do cárcere é
que suas análises são baseadas em elementos reais, atuais para o momento em que foram
concebidas e seus conceitos devem ser problematizados dentro de uma estratégia
específica de luta.
63
Uma outra questão assinalada é que, ao adentrarmos nos “jornais
alternativos” no Brasil na cada de 1970, obviamente, deve ser considerado o momento
político de repressão e de controle por qual o país passava. Por isso, a importância dos
grupos e dos intelectuais de “esquerda” se fazerem e vencerem dentro desta imprensa. O
grande problema, e neste ponto Kucinski não hesita em assinalar, é que tanto o jornal
Opinião como o Movimento não eram e não pretendiam ser jornais “partidários”. Pelo
contrário, representavam uma frente oposicionista bastante diversificada e plural contra o
regime militar brasileiro. Nesta concepção pluralista qualquer tentativa golpista” ou
“repressiva” armados por grupos “partidários” dentro destas publicações acabava sendo
mais um “entrave” que esta imprensa tinha que enfrentar.
Kucinski busca demonstrar o cotidiano destas iniciativas como imprevisíveis e
cheio de surpresas. Nas histórias que vai compondo sobre os jornais, nos bastidores da
produção, o autor nos passa uma visão menos idealizada e mais crua da realidade existente
nas redações. Rachas, “golpes”, autoritarismo, censura interna e demissões faziam parte do
jogo visando o controle e a manutenção de determinadas linhas de pensamento e prática
que norteariam esses jornais. Concentra-se nestas situações o que de mais “gramsciano”
no que diz respeito ao funcionamento de uma iniciativa editorial. Não há dúvidas da
necessidade do “grupo editorial” se manter coerente e firme na busca por determinados
objetivos e, caso necessário, tomar atitudes visando a continuidade unitária destes
objetivos. O dilema é que Gramsci não orienta que estes grupos façam isto nos jornais
alheios, principalmente naqueles que não têm como paradigma este tipo de opção. Fica
perceptível nas reflexões que o autor afirma sobre a necessidade de criação destas
iniciativas.
conjunturais por elas se mostrarem extremamente radicais. Exigia uma postura rigorosa e efetiva de todos
aqueles que desejavam superar o posto de “oposiçãopara tornar-se “situação”. Enfim, a necessidade da
luta exigia do combatente ultrapassar a força do inimigo que estava no poder. E neste sentido, a coesão
interna do grupo, era um dos primeiros objetivos para o resultado efetivo de tal empreitada: “[...] o
pode existir associação permanente, com capacidade de desenvolvimento, que não seja sustentada por
determinados princípios éticos, que a própria associação determina para seus componentes individuais, a
fim de obter a solidez interna e a homogeneidade necessárias para alcançar o objetivo”. GRAMSCI,
Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 231. v. 2.
63
“Na Itália, pela falta de partidos organizados e centralizados, não se pode prescindir dos jornais: são os
jornais, agrupados em série, que constituem os verdadeiros partidos”. Ibid., p. 218.
Capítulo I
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53
Nos casos levantados por Kuckinski surge um problema claro, uma disputa
desnecessária e um final melancólico. Demonstram a fragilidade que os jornais tiveram em
chegar a pontos pacíficos em torno das interpretações da conjuntura brasileira no espaço
reduzido das redações. Essa desarticulação é uma constante em todas as propostas descritas
por Kucinski. O caso dos jornais Opinião e Movimento são exemplares desta situação tensa
e insustentável:
O secretismo tornou-se traço cultural e, ao mesmo tempo, instrumento do
jogo pelo poder, em contradição direta com o contrato social explícito
dos jornais e seus mecanismos formais de democracia. Nem os membros
do conselho, nem o proprietário formal de Opinião sabiam dos contratos
do editor com o comitê central da AP e, depois, com o PC do B. Em
Movimento teceu-se uma teia complexa de relações secretas com várias
instâncias do PC do B, incluindo o recebimento regular de diretivas do
comitê central captadas pelas ondas curtas da Rádio Tirana. E o jornal era
conduzido politicamente não por seu editor ostensivo, e sim,
secretamente, pelo seguidor ilustre do PC do B, Duarte Pereira, que
redigia todos os seus editoriais os famosos Ensaios Populares -,
diretivas políticas e a maioria das pautas especiais, ainda que
freqüentemente divergisse das diretrizes do partido. Somente o editor
ostensivo conhecia todos esses vínculos. Tanto os ativistas ligados ao PC
do B, como os que a ele se opunham, identificavam erroneamente as
diretrizes políticas do jornal como tendo se originado no próprio comitê
central. Nesse teatro de absurdo, em que os personagens escondiam-se
atrás de máscaras, deu-se o grande “racha”: o confronto entre um
imaginário stalinista e outro trotskista, cada qual acreditando combater
um inimigo histórico. Cada qual revivendo, meio século depois, no
microcosmo de um jornal alternativo, os símbolos da luta entre a III e a
IV Internacional.
64
O “editor ostensivo” do Opinião e depois do Movimento citado de maneira
incisiva no texto acima é Raimundo Rodrigues Pereira. tivemos a oportunidade, num
momento anterior, de verificarmos as suas opiniões sobre alguns aspectos da “imprensa
alternativa”. Sem dúvidas, é uma figura importante dentro deste cenário “oposicionista”,
continuando até hoje numa vasta e prolífica carreira jornalística
65
. Pelo texto de Kucinski,
percebemos uma crítica às atitudes do mesmo, a falta de ética e de postura ao permitir
contatos “partidários” dentro de um jornal, no caso Movimento, em que faziam parte de
uma ampla frente de personalidades de oposição ao regime militar. A luta pelo retorno das
liberdades democráticas, neste sentido, seria muito mais urgente e importante para o jornal
64
KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários: nos tempos da imprensa alternativa. 2. ed. (rev. e
ampl.) São Paulo: Edusp, 2003, p. 20-21.
65
‘Atualmente, Raimundo Rodrigues Pereira exerce a função de Diretor Executivo da revista “Retrato do
Brasil”, que se autodenomina como “Um projeto de comunicação popular no Brasil”.
Capítulo I
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54
do que, propriamente, estes contatos e adequações que geraram o conflito entre
“trotskistas” X “stalinistas” e o fim do mesmo.
Quando Kucinski afirma que o “secretismo”, o jogo escuro e perverso dos
bastidores da política, sempre propenso a golpes e a traições, foi a grande causa da falência
destes “jornais alternativos”, ele defende a idéia que a capacidade de sobrevivência destes
jornais residia justamente pelo fato de serem democráticos. Neste sentido, estes jornais
tinham a intenção de serem abertos às diferentes opiniões e linhas de pensamento,
interessados em promover o debate da situação brasileira por diferentes perspectivas,
buscando apreender ao máximo as possibilidades intelectuais que estavam em jogo naquele
período. Por isso mesmo acabavam sendo críticos contundentes ao regime militar brasileiro
e de seu aparato repressivo e restritivo. Por isso mesmo dilemas acabaram surgindo: como
lidar com a “diferença” e a “oposição” dentro dos jornais? É possível abarcar,
democraticamente, todos os aspectos discrepantes das idéias dentro de um processo de luta
e de tomada do poder? Mais uma vez podemos acrescentar uma reflexão de Antonio
Gramsci sobre os desafios que este “corpo editorial” enfrentaria para manter-se coeso em
suas finalidades:
[...] A coletividade deve ser entendida como produto de uma elaboração
de vontade e pensamento coletivos, obtidos através do esforço individual
concreto, e não como resultado de um processo fatal estranho aos
indivíduos singulares: daí, portanto, a obrigação da disciplina interior, e
não apenas daquela exterior e mecânica. Se devem existir polêmicas e
cisões, é necessário não ter medo de enfrenta-las e supera-las: elas são
inevitáveis nestes processos de desenvolvimento e evita-las significa
somente adia-las para quando já forem perigosas ou mesmo catastróficas,
etc.
66
Por mais sombrio que pareça o final da citação, especialmente sobre o perigo de
adiar os “problemas” permitindo que eles se tornem “perigosos” e “catastróficos”, exigindo
a necessidade de eliminá-los, sabe se quando e como (provavelmente o mais rápido
possível), é algo que pertence a uma tática que visa o fortalecimento do grupo e que, de
certa forma, aconteceu tanto no Opinião como no Movimento. Na realidade, a “minoria” é
desconsiderada em prol de uma coletividade que se julga detentora da razão. Novamente,
os fins justificam os meios. Sem dúvida, o grau de complexidade que existe nessas
concepções políticas fizeram com que a “imprensa alternativa” carregasse um caráter
inconstante e sempre suscetível a vontades nem sempre democráticas de seus editores que
66
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 232. v. 2.
Capítulo I
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55
pertenciam às mais variadas correntes político-partidárias de “esquerda”. Aliado a isso, um
público cada vez mais restrito e por demais inconstante decorrente da fragilidade no
processo de criação e de manutenção destas iniciativas.
1.6 OPINIÃO: UM JORNAL INTELIGENTE, ABERTO E DEMOCRÁTICO
Ao detalharmos um pouco mais sobre a postura de Opinião e Movimento diante
do cenário brasileiro, especialmente quanto ao regime militar, percebemos algumas
distinções e características definidoras dos papéis exercidos por eles. Efetivamente, após
nossas reflexões em torno do conceito de “imprensa alternativa”, esta acaba surgindo como
uma das formas possíveis de se fazer oposição no país naquele momento.
O Opinião, criado no ano de 1972 pelo empresário Fernando Gasparian e
encerrado no ano de 1977, teve uma trajetória conturbada com a censura e, também, com o
seu editor-chefe, Raimundo Rodrigues Pereira. Apesar disso, foi durante aproximadamente
cinco anos um importante irradiador de idéias e de debates que ocorriam dentro da
oposição brasileira ao regime militar. Com partes e seções advindas de destacados jornais
estrangeiros como o Le Monde (França), The Independent (Inglaterra) e The New York
Rewiew of Books (EUA), expressava uma oposição democrática e intelectualizada. Araújo
faz uma caracterização interessante de tal experiência “alternativa”:
O Opinião apresentava uma face pluralista, politizada e, ao mesmo
tempo, sofisticada. Seu editor e muitos dos jornalistas que nele
trabalhavam eram polarizados pelo maoísmo de PC do B, na época,
clandestino. No entanto, o jornal nunca chegou a ser um órgão
doutrinário desse partido. Para driblar a censura prévia, que atingiu o
periódico desde o oitavo número, em 1972, Opinião muitas vezes
centrava sua edição em artigos de intelectuais nacionais e estrangeiros de
prestígio internacional ou na reprodução de matérias retiradas de grandes
revistas estrangeiras consagradas por um jornalismo crítico. Dessa forma,
a tônica do jornal terminou sendo exatamente esta: um jornalismo
intelectual, com artigos de autores de renome internacional e que se
destinava a um público também eminentemente intelectual.
67
Ao centrar-se e destinar-se numa intelectualidade presente no país e no exterior,
Opinião era uma espécie de reduto destas figuras que se viam sem meios de expressão na
67
ARAÚJO, Ana Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 24.
Capítulo I
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56
“grande imprensa” (normalmente temerosa e restrita quanto às críticas ao regime militar).
Como salientado acima, desde o oitavo número, o jornal viu-se obrigado a ter o seu
material analisado previamente antes da publicação por parte da censura, uma
conseqüência lógica ao optar por um caminho “alternativo”.
O editorial de sua última edição, a de número 230, no dia de abril de 1977,
temos, por parte de seus integrantes, um resumo do projeto e das dificuldades enfrentadas
pelos mesmos:
Sabíamos e o afirmamos, no editorial de nosso primeiro número, há
quatro anos e meio, que a independência de um jornal está intimamente
relacionada à sua independência financeira e ideológica. Por isso, não nos
filiamos a grupos de qualquer natureza, econômicos ou partidários,
financeiros ou ideológicos. Nossos compromissos sempre foram e
continuarão sendo com a defesa das liberdades democráticas, sem as
quais não há desenvolvimento político; com a defesa de uma melhor
distribuição de renda, sem a qual não há desenvolvimento social num país
de mais de 100 milhões de habitantes; com a defesa do nosso patrimônio
ecológico; com a defesa do nosso patrimônio ecológico, sem o qual não
melhoria de qualidade de vida; com a defesa da economia nacional,
sem a qual não pode haver Nação; com a defesa dos Direitos Humanos,
sem os quais não sujeitos, mas súditos, e, por isso mesmo, não pode
haver progresso. Estes são compromissos fundamentais e sem a prática
deles não pode haver democracia.
68
Independente. Este pode ser mais um termo possível de ser utilizado, ainda que
contraditório, na tentativa de caracterizar a “imprensa alternativa”. Efetivamente, esta
independência temática de Opinião, segundo seus idealizadores, advinha de uma
independência em relação aos contratos publicitários. Financeiramente, obrigava o jornal a
atingir certo patamar de vendas em bancas e em assinaturas que fosse capaz de mantê-lo
em sua “integridade” ímpar.
69
68
MACHADO, José Antonio Pinheiro. Opinião x Censura: momentos da luta de um jornal pela liberdade.
Porto Alegre: L&PM Editores, 1978, p. 13-14.
69
Carneiro apresenta algumas formas de como os chamados “jornais revolucionários” da década de 1930
conseguiam se manter economicamente: “Os exemplares dos jornais confiscados pela Polícia Política de
São Paulo entre 1924-1954 oferecem indícios que nos permitem traçar o perfil desta imprensa alternativa.
Precariedade e improviso delineavam a produção dos jornais cuja periodicidade ficava condicionada aos
avanços e recuos da repressão e a disponibilidade de recuos da repressão e a disponibilidade de recursos
para financiar a publicação. Costumava-se, amesmo, vender números de rifa e tômbola durante certos
eventos políticos, com o objetivos de angariar fundos para sustentar o jornal. Alguns periódicos mal
conseguiam ultrapassar o primeiro mero; outros como foi o caso de A Plebe vivenciaram longos
períodos de silêncio”. CARNEIRO, Maria Luiza Tucci. Imprensa irreverente, tipos subversivos. In:
CARNEIRO, Maria Luiza Tucci; KOSSOY, Boris. (Orgs.). A Imprensa confiscada pelo Deops: 1924-
1954. São Paulo: Ateliê Editorial; Imprensa Oficial do Estado de São Paulo; Arquivo do Estado, 2003, p.
34-35.
Capítulo I
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57
No momento seguinte do texto, deixa explícito o seu caráter nacionalista ao
apontar uma série de medidas para o desenvolvimento do país e para promover a
distribuição de renda. Há no editorial, uma defesa pela conservação e utilização racional do
“patrimônio nacional”, o conceito de “Nação” atrelado a um desenvolvimento da
“economia nacional”. E, por fim, na defesa das liberdades democráticas como pressuposto
para ao progresso. O próprio proprietário do jornal, Fernando Gasparian, traz uma
definição extremamente diferente sobre o seu jornal em relação à visão generalizada sobre
a “imprensa alternativa”, como obrigatoriamente engajada politicamente e contrária ao
regime militar:
OPINIÃO não é um jornal sensacionalista. Procuramos sempre a
objetividade e a isenção. Tanto assim que não recusamos nosso aplauso
ao governo quando medidas acertadas o justificavam. Qualquer um se
consideraria e teria toda razão para faze-lo desobrigado de louvar um
governo que sonega o direito de crítica e que se olha no espelho que
construiu para si próprio. Mas ao elogiarmos atos governamentais
acertados estávamos contribuindo, independentemente do governo, para o
processo de educação política necessária à prática democrática.
70
Chama-nos a atenção a forma como é apresentada pelo seu proprietário a proposta
de trabalho do jornal. A procura pela objetividade e pela isenção, a crítica pautada nestes
referenciais, assim como os “aplausos” dados ao governo quando este acertava, é bastante
original por contrapor-se a uma visão mais “radical” e “engajada” que temos dessas
manifestações jornalísticas. O elogio às ações governamentais quando positivas e a
preocupação com o “processo de educação política” visando uma sociedade democrática
choca-se com qualquer pretensão totalitarista e golpista em tal empreendimento por parte
de seus jornalistas. Ainda, ao tratar dessa opção do jornal, mais objetiva e honesta diante
dos acontecimentos dentro do regime militar brasileiro, eles fazem o seu voto de num
dos pilares que sustentaram durante todo o tempo de publicação – a democracia:
É com a democracia, com a democracia substantiva, pluralística, sem
adjetivos, que temos compromissos. Em nome destes, repudiamos os
radicalismos, de direita ou de esquerda. Ao primeiro pagamos o nosso
tributo, no atentado a bomba que sofremos na madrugada de 15 de
novembro e que até hoje não foi suficientemente investigado por quem
teria obrigação de faze-lo; ao segundo pagamos o preço da
incompreensão e até de calúnia contra nossas intenções.
71
70
MACHADO, José Antonio Pinheiro. Opinião X Censura Momentos da luta de um jornal pela
liberdade. Porto Alegre: L&PM Editores, 1978, p. 14.
71
Ibid.
Capítulo I
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58
Ao negar o radicalismo, tanto da “direita” como da “esquerda”, o jornal
referendava sua postura legalista e amparada na proteção dos direitos individuais do
cidadão. É interessante observar que este posicionamento gerou críticas de ambos os lados.
Especialmente da “esquerda” como conseqüência da “incompreensão” e da “calúnia” que o
semanário sofreu por manter sua intenção mais aberta e menos sectária no campo político.
Isto podemos identificar numa parte do texto de Raimundo Rodrigues Pereira, “Viva a
imprensa...”, em parte trabalhado neste capítulo, em que ele faz a seguinte avaliação
sobre o jornal Opinião:
De certo modo, o semanário Opinião, o mais famoso jornal alternativo da
fase do regime militar, que viveu de 1972 a 1977 – e pertencia ao
empresário nacional Fernando Gasparian, dono da falecida América
Fabril, ainda após o golpe uma das maiores empresas brasileiras –, pode
ter sido o canto de cisne dessa grande imprensa nacionalista. Por sinal, o
seu desaparecimento está ligado não apenas à censura, mas também à
crise surgida entre o empresário e a redação do seminário, que tinha
ajudado a construir o jornal na crença de uma participação coletiva na
direção do mesmo e que foi surpreendida com a demissão unilateral do
chefe da equipe de jornalistas, em 1975.
72
Na citação acima, Pereira aponta, como Kucinski, o fim do jornal Opinião, ou o
fato que o desencadeou, devido à uma cisão interna dentro do empreendimento. Mas ao
invés de caracterizar esta cisão como algo negativo, ele justifica tal atitude criticando o
proprietário do jornal, Fernando Gasparian, de não ter radicalizado a proposta
“alternativa”, tornando coletiva a participação dos jornalistas na direção do semanário,
como algo que tinha sido prometido(?) ou, pelo menos, esperado por parte de seus
integrantes. O fato, na sua concepção, surpreendeu os jornalistas e o obrigou após a sua
demissão, como veremos posteriormente, a partir para a formação de um novo jornal, o
Movimento.
Esta demissão vista pelo mesmo como “perseguição” por sua postura “política”, é
questionada por Kucinski numa citação feita anteriormente. Na opinião deste último, a
postura do editor era contrária aos “mecanismos formais de democracia” existentes no
jornal. Além disso, a surpresa não foi da demissão em si, mas pelo desconhecimento de
praticamente todos os membros do conselho e de Gasparian das ligações de Pereira com a
AP (Ação Popular) e com o PC do B (Partido Comunista do Brasil).
72
PEREIRA, Raimundo Rodrigues. Vive a imprensa alternativa. Viva a imprensa alternativa!... In: FESTA,
Regina; SILVA, Carlos Eduardo Lins da. (Orgs.). Comunicação popular e alternativa no Brasil. São
Paulo: Paulinas, 1986, p. 59.
Capítulo I
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59
No editorial da última edição de Opinião o que se é uma crítica severa ao
regime militar e à sua censura implacável que minou consideravelmente as forças e o
impacto do jornal. A postura de não tocar na questão da demissão e da saída de quadros
importantes de seu corpo editorial, pode ser ligada a uma forma do jornal se mostrar
“independente” da figura particular de um ou outro jornalista, ou seja, não se enfraqueceu
por razões internas, mas sim por questões conjunturais e econômicas. A visão que tenta
transmitir é que o jornal continuou ativo, mesmo sem determinadas figuras: as idéias e os
objetivos “democráticos” valiam mais do que as vontades individuais ou partidárias.
Distinguia-se por isso pela inteligência e pela honestidade em reconhecer esta sua
capacidade de dar o espaço àqueles que tivessem algo estimulante para um debate em torno
da realidade brasileira, como bem salienta Gasparian:
Acho que Opinião, realmente, significou uma renovação na imprensa
brasileira. Nossa preocupação foi fazer um jornal inteligente, aberto,
democrático. Não havia uma linha política pré-determinada, rígida. Quem
tivesse uma idéia inteligente a expor, era convidado a escrever. No jornal
se expressaram as mais diversas opiniões.
73
1.7 MOVIMENTO: UM JORNAL EM BENEFÍCIO DA COLETIVIDADE
Surgido após o racha no Opinião, o jornal-semanário Movimento tinha uma
proposta mais “alternativa”, na medida em que seu funcionamento partia dos conselhos
responsáveis pela produção do mesmo. Tendo como editor-chefe Raimundo Rodrigues
Pereira, entre 1975 e 1981, também sofreu com a censura, “nascendo censurado desde o
seu primeiro número”.
74
Esta perseguição advém de sua postura crítica ao regime militar,
73
MACHADO, José Antonio Pinheiro. Opinião X Censura Momentos da luta de um jornal pela
liberdade. Porto Alegre: L&PM Editores, 1978, p. 127.
74
“Em relação à imprensa alternativa, diversos foram os órgãos de divulgação submetidos à censura prévia,
de modo que o boom alternativo deste momento histórico acaba por se confundir com a própria
periodização censória. O M entretanto apresenta um interesse especial, pois o programa que o embasa e
sua concepção de imprensa permitem a um tempo estabelecer os limites de sua resistência (forjou-se
na luta contra o que o Estado autoritário brasileiro pós-64 representava essencialmente, tendo nascido
censurado) e indicar o significado de uma imprensa de fato alternativa abrangência da cobertura dos
fatos, jornalismo engajado e montagem de um estrutura interna de co-gestão administrativa e funcional.
Além disse, é interessante atentar para o que a memória construiu em relação à imprensa alternativa. Ela
vinculou umbilicalmente este tipo de jornalismo à censura, justificando o rmino de sua fase áurea com
base na hipótese da inexistência de motivações para a sua continuidade, a partir da extinção da repressão.
A sobrevivência do M além dos limites da atuação censória transformou-se em importante forma de
aquilatar a relação imprensa alternativa x censura e a reação do Estado autoritário à sua manutenção”.
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968/1978) o exercício
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
60
numa tentativa explícita de tornar-se um porta-voz exclusivo de uma oposição mais
engajada politicamente.
Logo no primeiro número, em seu editorial, fica explícita a pretensão de
Movimento ser um canal de comunicação mais amplo e popular, promovendo debates a
partir das denúncias em relação à situação da sociedade brasileira:
[...] por exemplo, por trabalhadores sindicalizados, falasse de temas que
pudessem interessar a esses trabalhadores e numa linguagem que pudesse
ser entendida por eles quando os artigos, de uma forma ou de outra,
chegassem até eles. Disso decorreu uma preocupação de Movimento em
descrever as condições de vida das massas, apresentar a cena brasileira, a
gente brasileira.
75
[...] apresentar, analisar e comentar os principais acontecimentos
políticos, econômicos e culturais da semana; descrever a cena brasileira,
as condições de vida da gente brasileira; acompanhar a luta dos cidadãos
brasileiros pelas liberdades democráticas, pela melhoria da qualidade de
vida da população; contra a exploração do país por interesses
estrangeiros; pela divulgação dos reais valores artísticos e culturais do
povo; pela defesa de nossos recursos naturais e por sua exploração
planejada em benefício da coletividade.
76
Nesta lista de intenções nota-se um jornal que, em sua criação, propõe-se na
defesa das liberdades democráticas, por um nacionalismo, não apenas econômico, mas
também cultural e, na parte final da citação, temos a proposta da exploração dos recursos
naturais “em benefício da coletividade”. Há a tentativa, desde a sua criação, de se fazer um
jornal popular. Esta preocupação de tornar-se um amplo meio de comunicação passaria por
uma tentativa, ainda que sugestiva, de elaboração de uma linguagem capaz de ser
compreendida amplamente pela população. Esta ampliação do espectro de leitores é, em
suma, o objetivo de qualquer manifestação jornalística que se pretendia, realmente, de
oposição e que necessitava para efetivar-se do apoio quantitativo e qualitativo da massa.
Ao tratar das questões abordadas pelo Movimento, Aquino, que o considera a
referência principal para analisar as possibilidades da “imprensa alternativa”, faz a seguinte
sistematização do teor das matérias e temas publicados:
1) A questão da democratização da informação, o jornalismo engajado, a
concepção não elitizada do que é publicado, sem neutralidade;
2) a exploração advinda do trabalho, preocupação com as massas, o
nacionalismo. Colaboradores como intérpretes das ansiedades.
cotidiano da dominação e da resistência. O Estado de São Paulo e Movimento. São Paulo: EDUSC, 1999,
p. 23.
75
PEREIRA. Nasce um jornal apud Ibid., p. 122-125.
76
Ibid.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
61
3) Ao jornal contribuindo para a mudança da sociedade, revolucionária ao
invés da “crença liberal” de opinião pública.
4) “concepção democrática” de convivência com antagonismo, M
formou-se como uma “frente progressista” que, dentre outras coisas,
pressupunha que o jornal pertencesse àqueles que o fizessem, sendo
dotado de mecanismos (conselho editorial e conselho de redação) que
garantissem a existência de uma democracia interna na redação.
Entretanto, o fato desse objetivo de “frente” ser datado, preso a um
determinado momento histórico muito específico, ao lado de uma
paulatina definição, cada vez mais nítida de um projeto político,
contribuem para a inviabilização desse projeto.
77
Os quatro pontos abordados por Aquino sobre o Movimento são emblemáticos no
que diz respeito ao conceito de “imprensa alternativa”, ou pelo menos no que ela considera
essencial para compreender tais manifestações. O primeiro seria exatamente a questão do
engajamento. Claramente, esta opção do jornal lhe trouxe conseqüências de uma relação
complicada com a censura, mesmo considerando que a sua trajetória iniciou-se num
momento de abertura política no país. O segundo e terceiro se casam na medida em que
ambos coincidem na pretensão da “esquerda” de promover uma “revolução” nos moldes
socialistas no Brasil. As denúncias de exploração e das más condições de vida dos
trabalhadores, juntamente com a crítica ao discurso “liberal” que via o retorno da
democracia como o fim da luta. O jornal pretendia mobilizar além da questão democrática,
possibilitando assim novas aspirações e desejos por parte daqueles que o fazia. Por último,
a autora menciona a crise interna de Movimento, ao entrar em choque a idéia de “frente
progressista e democrática” versus uma maior definição e depuração dos objetivos
políticos do jornal, o que foi uma das causas do encerramento de suas atividades.
Ao contrário desse tipo de jornalismo que buscava uma gama variada de
opositores para fazerem parte de seus quadros, que teve seu ápice na metade final da
década de 1970, a autora reconhece uma mudança e uma necessidade de “fechamento” e
“aprimoramento” das questões e dos objetivos de cada grupo, de cada partido:
Como se pode observar, muitas e variadas foram as cisões internas em M.
Porém, além da discussão sobre o alcance efetivo que obteve a
democracia interna no semanário, interessa posicionar o fato de que o
projeto de abertura político e, dentro dele, o pluripartidarismo tornam a
imprensa alternativa de “frente”, tal como a frente oposicionista do MDB,
irremediavelmente datados, circunscritos àquele período histórico.
Apontam para a necessidade, naquele momento, da constituição de
jornais alternativos vinculados a partidos que, entretanto, sempre se
77
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968/1978) o exercício
cotidiano da dominação e da resistência O Estado de São Paulo e Movimento. São Paulo: EDUSC, 1999,
p. 191.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
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62
mantiveram em um patamar de público e de interesse despertado, muitas
vezes inferior àquele representado pela imprensa alternativa na sua fase
áurea.
78
De certa forma compreende-se que, a partir do momento do retorno das liberdades
democráticas no país, grupos, com projetos e planos políticos diferenciados, que antes se
agrupavam e se misturavam num amplo setor que podemos denominar de “oposição”,
agora tinham a possibilidade de se verem novamente livres para colocarem no debate e nos
jornais suas teses em torno do futuro do país.
O próprio editor da publicação, Raimundo Pereira em 1986, trata de diferenciar
Opinião de Movimento a partir das seguintes constatações, especialmente organizacionais e
de engajamento:
Desse processo de acomodação da imprensa burguesa de oposição e
nesse espaço propiciado pelo fim do terror político em 1975 e nos anos
seguintes é que surgem vários projetos de imprensa democrático-popular,
organizados a partir de correntes de opinião oposicionistas e sob controle
popular, sistematicamente de grupos da pequena burguesia. Movimento,
surgido dos jornalistas do Opinião, em 1975, é o projeto político mais
destacado; em torno dele unem-se cerca de 500 pessoas, 300 jornalistas,
organizados de formam efetivamente alternativa, com uma sociedade de
trabalhadores do jornal, um Conselho de Redação e um Conselho de
personalidades políticas. Une várias correntes de esquerda, majoritárias
nos órgãos de direção executiva, além de empresários nacionalistas em
pequeno número e personalidades democráticas liberais, nos conselhos
representativos.
79
O cenário descrito pelo autor realmente se destaca pela ampla presença de
personalidades envolvidas no projeto Movimento.
80
Uma frente formada pela união de
várias “correntes de esquerda majoritárias”, mais grupos de empresários, uma burguesia
(sempre vista com desconfiança e resistência) e democratas numa “imprensa democrático-
popular”. Até então, uma importante abertura para a “oposição” exercer o seu papel numa
78
AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, Imprensa, Estado Autoritário (1968/1978) o exercício
cotidiano da dominação e da resistência O Estado de São Paulo e Movimento. São Paulo: EDUSC, 1999,
p. 199.
79
PEREIRA, Raimundo Rodrigues. Vive a imprensa alternativa. Viva a imprensa alternativa!... In: FESTA,
Regina; SILVA, Carlos Eduardo Lins da. (Orgs.). Comunicação popular e alternativa no Brasil. São
Paulo: Paulinas, 1986, p. 64.
80
Para se ter um exemplo o “Conselho Editorial” e de “Redação” de Movimento no final de 1975 era
formado pelos seguintes nomes: (editorial) Alencar Furtado, André Foster, Audálio Dantas, Chico
Buarque de Holanda, Edgar da Mata Machado, Fernando Henrique Cardoso, Hermilo Borba Filho e
Orlando Villas-Boas; (redação) Aguinaldo Silva, A. C. Ferreira, Bernardo Kucinscki, Elifas Andreato,
Fernando Peixoto, Francisco de Oliveira, Francisco Pinto, J. C. Bernardet, Marcos Gomes, Maurício
Azedo, R. R. Pereira, Teodomiro Braga, Sérgio Buarque de Gusmão, Juca Martins, Flávio de Carvalho e
Flávio Aguiar.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
63
tentativa de retorno à normalidade civil. Na tentativa de romper com qualquer outra forma
de imprensa da época, especialmente com Opinião, Pereira continua em seu texto
referendando esta diferenciação a partir dos seguintes tópicos:
[...] imediatamente antes da abertura, a imprensa popular avançava
através de frentes políticas. Enquanto o Opinião fizera a denúncia do
modelo de desenvolvimento dependente e reproduzira o Le Monde, e os
colunistas liberais do The New York Review of Books, por exemplo, a
receita que à época era a única possível pela imprensa legal para o
público tanto o operário comunista como a dona-de-casa católica
progressista ou o burguês–liberal Movimento, por exemplo, fez sob
diversas formas e mesmo sob censura feroz a campanha da Constituinte,
da Anistia e do Movimento contra a alta do custo de vida, que
desembocou num manifesto de protesto com 1 milhão de assinaturas.
81
a intenção por parte de seu antigo editor-chefe destacar o seu lugar como
jornalista na “imprensa alternativa”. Enquanto um tratava de questões que estavam dentro
do padrão aceitável pela censura e, além disso, se detinha a questões “distanciadas” da
realidade brasileira, principalmente ao reproduzir “jornais liberais” estrangeiros,
Movimento buscava expandir o seu público tratando de temas imediatos e com ampla
participação da população como o protesto contra o aumento do custo de vida. Ou seja,
buscava uma diferenciação profunda no trato de suas questões nacionais e em seu
funcionamento, na relação entre aqueles que estavam na produção do semanário e aqueles
que o liam.
82
Numa outra linha de raciocínio ao avaliar a experiência de Movimento, Araújo,
assim como Kucinski aponta causas menos idealizadas para explicar a crise que ocorreu no
jornal. Ela, de certa forma, a situação com um olhar crítico, pois este tipo de atitudes
como um entrave muito grande para a busca de uma discussão mais efetiva e menos
sectária das questões políticas:
A agudização da crise política dentro do jornal terminou por provocar
uma grande cisão, em abril de 1977, quando jornalistas independentes e
militantes de vários grupos políticos se retiraram. Movimento veio então a
81
PEREIRA, Raimundo Rodrigues. Vive a imprensa alternativa. Viva a imprensa alternativa!... In: FESTA,
Regina; SILVA, Carlos Eduardo Lins da. (Orgs.). Comunicação popular e alternativa no Brasil. São
Paulo: Paulinas, 1986, p. 64.
82
Festa segue na mesma linha de pensamento ao mostrar o caráter mais “popular” do jornal Movimento em
relação aos seus congêneres: “O Movimento, por exemplo, foi dos alternativos o jornal que levantou a
bandeira da Constituinte, que denunciou o capital estrangeiro, noticiou as Comissões Parlamentares de
Inquérito sobre as multinacionais, os cartéis, denunciou as aventuras da indústria farmacêutica, os
escândalos da Jari, o caso Sharp, a vocação pecuária da Volkswagen, a história da compra da Light e em
79 denunciou: “Na prática, o Brasil está nas mãos do FMI” (edição 281). Além disso, cobriu
amplamente o movimento operário, camponês e popular através de reportagens, relatos, depoimentos,
discussões, etc”. FESTA, Regina. Movimentos sociais, comunicação popular e alternativa. In: Ibid., p. 17.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
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64
ser, efetivamente, um jornal que expressava os pontos de vista do PC do
B. Mas transformar-se no jornal de um partido não resolveu o problema
das crises e divergências internas. Movimento passou a expressar a luta
interna do PC do B acirrada, na época pelo processo de avaliação da
guerrilha do Araguaia. A total subordinação de Movimento às questões
políticas internas do PC do B terminou por inviabilizar o jornal. Em
1981, uma convenção nacional de trabalhadores do jornal aprovou a
proposta de seu editor, Raimundo Pereira, de fechamento da publicação.
83
Por outro lado, a crítica de ambos os autores revelam que, de alguma forma, os
autores de tais “golpes” (ainda que o nome de Raimundo Rodrigues Pereira seja
considerado como o maior responsável por tais situações) tinham uma concepção a la
Gramsci na forma de tratarem as dissidências e as discordâncias. Obviamente, quando
tratamos a questão nestes termos não afirmamos que o utilizaram como uma cartilha
fielmente a ser seguida. A realidade cotidiana (temos a possibilidade de apreendê-la nos
mínimos detalhes?) apresentou-se de uma maneira bem menos “vitoriosa”, gloriosa” e
“racional” como a teoria pretendia alcançar. Falha da teoria? Ineficiência do jornal? Ou
ambos equívocos?
Sem pretender responder tais perspectivas, o que nós afirmamos é que existia uma
tentativa de fazer prevalecer opiniões e pontos de vistas que, para o bem e para o mal,
diluíam-se entre a ação política e a vaidade individual. Os debates e as cisões dentro da
própria “esquerda” materializava-se e criava aproximações num primeiro momento
distinções e rachas (no momento em que puderam fazer-se como alternativas) numa
realidade democrática.
Num momento muito próximo a estes momentos definidores, o próprio Pereira
apresenta uma opinião que viria confirmar a necessidade de uma “imprensa partidária”,
mais antenada com as possibilidades de luta política que se configuravam na abertura:
A imprensa alternativa, a imprensa popular, a de partidos populares tem
de assumir um compromisso básico essencial com seus leitores, de
apoiar-se na realidade objetiva, na vida concreta que os leitores têm
diante de si e que pretendem compreender para poder libertar-se. A
realidade objetiva é, e o pode deixar de ser, o ponto de partida. Se ela
não está de acordo com os nossos gostos, pressupostos e programa, é
claro que devemos pugnar por transformá-la. Mas, o primeiro passo para
que isso seja possível é conhece-la profundamente. O conjunto de crenças
e opiniões iniciais que temos deve ser utilizado para pesquisar e divulgar
o que é novo, determinar os seus aspectos positivos e negativos. Omitir os
aspectos relevantes ou descrever uma realidade desfavorável com
83
ARAÚJO, Ana Paula Nascimento. A utopia fragmentada: as novas esquerdas no Brasil e no mundo na
década de 1970. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2000, p. 26.
Capítulo I
Capítulo ICapítulo I
Capítulo I
65
palavras bonitas não facilita, antes dificulta o trabalho de transformá-la a
nosso favor.
84
O conhecimento efetivo da realidade, numa demonstração bem estruturada de um
raciocínio dialético, seria o ponto de partida para uma imprensa compromissada e
habilmente capaz de exercer o seu papel, bastante semelhante às idéias gramscianas de
jornalismo, em especial na parte em que utiliza-se do existente para a produção de algo
novo. Neste momento, para o jornalista, a imprensa popular não pode se efetivar sem um
rumo político preciso, sem militantes numerosos, abnegados, disciplinados e combativos,
que se disponham a sacrificar-se pelos objetivos populares.
85
O texto que nos serve de introdução ao nosso capítulo, de Luiz Costa Lima, é parte
desta discussão sobre os projetos e rumos do “jornalismo alternativo” brasileiro.
Demonstra preocupação e necessidade de fazer valer uma outra perspectiva que viesse de
encontro com os anseios de muitos que viam estas “alternativas” tão repressoras como
qualquer “grande” empreendimento da área. Fazia-se valer de uma opinião que tinha sua
razão de ser: como enfrentar o “imperativo peremptório”?
Com certeza as idéias da necessidade do “imperativo peremptório” sempre
prevaleceram entre algumas mentes que estavam dentro dos jornais Opinião e Movimento.
Tiveram suas conseqüências que foram importantes tanto para formar, estruturar, como
para desmembrar e dividir. Ainda que estes atos fossem justificados dentro de uma
doutrina política específica, notamos que a aceitação dos mesmos não era um “ponto
comum”. O que temos são interpretações e explicações que buscam maquiar ou destacar as
contradições entre princípios e atitudes. Nestas oposições dentro do jornal temos a figura
de Fernando Peixoto. Sua participação em ambos os jornais, Opinião e Movimento, não era
aleatória e nem inconsistente, por isso mesmo possível de ser localizada e definida em seus
diversos papéis. Vale lembrar que, no primeiro, exercia a função de editor da parte sobre
Teatro. No segundo, além disso, era parte do Conselho Editorial, ou seja, participava
organicamente do processo cotidiano de elaboração de ambos. Reconhecer, por meio de
suas críticas, especialmente teatrais, o seu posicionamento e suas propostas diante da
cultura do país, é uma forma entender o universo conflituoso e contraditório da “imprensa
alternativa”. Este é o nosso objetivo na segunda parte do trabalho.
84
PEREIRA, Raimundo Rodrigues. Vive a imprensa alternativa. Viva a imprensa alternativa!... In: FESTA,
Regina; SILVA, Carlos Eduardo Lins da. (Orgs.). Comunicação popular e alternativa no Brasil. São
Paulo: Paulinas, 1986, p. 75.
85
Ibid., p. 75.
Se, em virtude das lutas, de
advertências, no aqui e no agora,
o colocamos no outrora – imagem
a repetir-se, a ameaçar-nos com a
catástrofe, com o semelhante, tal e
qual – o deslocamento lembra e
afirma que a catástrofe não é
aquele passado, aquela imagem
nele situada. O horror coexiste
conosco, visível à nossa volta. Ele
nos cerca, nos envolve. Não está
no foi e sim no é, agora.
Carlos Alberto Vesentini – A teia do Fato
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2.1 JORNAL OPINIÃO E O CADERNO “TENDÊNCIAS E CULTURA
A opção de um profissional em trabalhar dentro do que denominamos de
“imprensa alternativa” na década de 1970, sob o regime militar e sob censura sistemática
significava uma postura diferenciada e compromissada com determinados valores e
questões. Esta postura correspondia a um determinado alinhamento com o jornal em que
estava trabalhando e, principalmente, com os setores da sociedade a quem se dirigia este
veículo de comunicação. Fernando Peixoto, nesta conjuntura específica, desenvolveu um
trabalho sistemático como crítico teatral dos jornais Opinião e Movimento.
Apesar de sua atuação como ator e como diretor no teatro brasileiro,
86
desde o
final da década de 1950 até os dias de hoje, ser costumeiramente a sua faceta mais
reconhecida e analisada por uma série de trabalhos,
87
esta sua experiência na “imprensa
alternativa” possibilita-nos uma análise diferenciada de sua trajetória profissional. Nestes
jornais, ele está do outro lado do palco, como espectador. Desta maneira, sua função o
permitiu discutir, apontar, comentar e questionar, a produção teatral nacional e estrangeira
daquele período. Além disso, em seus textos, percebemos a existência de um projeto para o
teatro no país, advindos de seu conhecimento do cotidiano desta atividade e de seu
repertório intelectual.
86
Participações como diretor: Matar (1959), Pedro Mico (1961), O Cimento (1964), Canto Livre de Nara
(1965), O Poder Negro (1968), Don Juan (1970), A Semana (1972), Frei Caneca (1972), Tambores da
Noite, (1972), O Processo de Joana d’Arc (1972), Frank V (1973), Um Grito Parado no Ar (1973),
Calabar (1973), Caminho de Volta (1974), A Torre em Concurso (1974), Arena Conta Zumbi (1976),
Ponto de Partida (1976), Mortos sem Sepultura (1977), Coiteiros (1977), Terror e Miséria no III Reich
(1979), Calabar, o Elogio da Traição (1980), Se os tubarões fossem homens (1981), Murro em Ponta de
Faca (1990), Ardente Paciência (1990), A Farsa da Esposa Perfeita (1993), Maria Quitéria (1993),
Parvacci (2000), Vidas Calientes (2001).
Como ator, ainda em Porto Alegre participa de uma série de espetáculos montados no Curso de Arte
Dramática na Universidade Federal do Rio Grande do Sul, tendo como orientação o diretor, teórico,
cenógrafo e autor Ruggero Jacobbi. Após sua mudança para São Paulo em 1963, faz parte do grupo do
Teatro Oficina, onde faz parte do elenco de peças como: Pequenos Burgueses (1964), O Rei da Vela
(1967) Galileu Galilei (1968), Na Selva das Cidades (1969). No início da década de 1970, excursiona
com o Teatro de Arena pelos EUA e América Latina com encenações de Arena Conta Zumbi (1970) e
Arena Conta Bolívar (1970).
87
Rodrigo de Freitas Costa (UFU), no ano de 2006, defendeu a dissertação de Mestrado intitulada Tempo
de resistência democrática: os tambores de Bertolt Brecht ecoando na cena teatral brasileira sob o
olhar de Fernando Peixoto, onde trabalha com a encenação da peça Tambores da Noite, de 1972. No
ano de 2007 tivemos a defesa dos seguintes trabalhos: Maria de Abadia Cardoso (UFU), Tempos
sombrios, ecos de liberdade a palavra de Jean-Paul Sartre sob as imagens de Fernando Peixoto: no
palco, Mortos sem Sepultura; Ludmila de Freitas (UFU), Momentos da década de 1970 na
dramaturgia de Gianfrancesco Guarnieri: o caso Vladimir Herzog (1975) (re)significado em “Ponto
de Partida” e Christian Alves Martins (UFU) Diálogos entre passado e presente: Calabar O Elogio
da Traição (1973) de Chico Buarque e Ruy Guerra.
Capítulo II
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No jornal Opinião, Fernando Peixoto inicia o seu trabalho como colunista em
março de 1973 com dois textos sobre o espetáculo que ele mesmo dirigiu: Frank V de
Friedrich Dürrenmatt. Em julho de 1974 tornou-se o responsável pelos assuntos
relacionados ao teatro na parte intitulada “Tendências e Cultura”. Este “caderno” tinha
entre os seus responsáveis nomes como Sérgio Augusto e Jean-Claude Bernadet (cinema),
Tárik de Souza e Ana Maria Bahiana (música), Ronaldo Brito (arte e literatura) e João
Lizardo (xadrez). O editor do período era Júlio César Montenegro, anteriormente
correspondente em Brasília.
Na dissertação de mestrado intitulada Cultura em Opinião As páginas de
“Tendências e Cultura” (1972-1977), Eduard Marquart faz um levantamento extensivo
dos artigos, dos colunistas e dos editores, além da forma e do funcionamento daquela parte
do jornal específica do qual fazia parte Fernando Peixoto. Centrando-se principalmente nas
características gerais da luta no campo cultural verificada naquelas páginas, ligada aos
conflitos internos do jornal, ele faz a seguinte divisão temporal daquele “caderno”:
Para termos uma noção panorâmica, a primeira fase, então, abarca o
período de outubro de 1972 a junho de 1974 (n. 0 ao n. 83); esse período
corresponde ao que poderíamos pensar como a definição das atividades
de TeC: segue-se à risca a proposta de noticiar os “acontecimentos
culturais”, numa tarefa de monitoração, daí a presença massiva de
reportagens e resenhas, ou seja, tipos de texto que comentam ou relatam a
assistência de um show, espetáculo teatral, filme, ou a leitura de um livro
— sendo que estes são sempre objetos culturais “novos”.
A segunda fase, que concerne ao breve espaço de junho de 1974 a janeiro
de 1975 (n. 84 ao n. 116), é marcada pelo desaparecimento temporário da
rubrica “Tendências e Cultura”, sem qualquer nota por parte do jornal.
Em contrapartida, o material que normalmente aparecia sob a rubrica
triparte-se nas seções Assuntos” (entrevistas e/ou textos de maior
fôlego), “Comentário” (resenhas) e “Movimento” (notícias, informes).
Pode-se entender essa mudança como um esforço no sentido se retirar a
cultura do lugar especial que lhe fora dedicado até então. Essa mudança,
aliás, cria um problema metodológico para a minha pesquisa: se antes
tínhamos limites relativamente bem definidos sobre o que viria a ser a
cultura em Opinião, ou seja, o material abrigado pela editoria, definir o
que venha a ser “cultura” agora passa a ser pura atribuição. Já não
interessa ao jornal estabelecer o que é cultura ou não, ela está na ordem
do dia, entre os demais fatos. Ou seja que, nessa nova ordem das coisas,
discutir a leitura de um livro, comentar um filme, saber o posicionamento
de determinado intelectual (leia-se escritor, cineasta, artista et alii) tem
tanta importância quanto se discutir os rumos da economia e da política.
A cultura, pode-se dizer, perpassaria todas essas esferas ou, numa
formulação mais arrojada, seríamos dispensados da própria noção de
cultura como algo distinto (relacionado apenas às “belas artes”, “belas
letras”) das demais atividades intelectuais e sociais. O conceito de cultura
se diluiria, e teríamos apenas acontecimentos. Em última análise: não
Capítulo II
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mais haveria nem tendências nem cultura, apenas “Assuntos”. Mas esse
projeto falha.
A terceira e última fase, localizada entre janeiro de 1975 e abril de 1977
(n. 117 ao n. 231), sinaliza o retorno da rubrica TeC, e contém o
momento mais crítico (leia-se tenso) da editoria. Essa tensão se deve à
ascensão e revigoramento do texto ensaístico, que se tornará um espaço
possível para a problematização dos modos de representação e fabricação
de cultura, seus comos. Trata-se de uma espécie de surto de TeC: nesse
período ocorre um duro debate acerca da função do jornalismo cultural.
Com exceção dessa última fase, que julgo ser a mais instigante, não farei
uma análise detalhada desses três momentos.
88
Fernando Peixoto finaliza o seu trabalho efetivo no jornal em abril de 1975.
89
Em
pouco mais de dois anos de trabalho no Opinião, Peixoto escreve quarenta e seis críticas no
total, sob a assinatura de “Fernando Peixoto”, “F.P.” ou com o pseudônimo de “Andrea
Sarti”,
90
numa tentativa de escapar do “lápis vermelho” da censura.
91
Ao seguirmos a
“cronologia” acima podemos observar que ele participa dos três momentos do jornal. Pelo
enfoque dado ao autor da dissertação, ele busca salientar o “caderno” “Tendências e
Cultura” no destaque que este têm como seção independente ou não dentro do corpo do
jornal, buscando apreender a partir daí os movimentos internos da redação do Opinião
assim como a busca do que ele chama de “jornalismo cultural”.
92
Na realidade, ao
88
MARQUARDT, Eduard. Cultura em Opinião As páginas de “Tendências e Cultura” (1972-1977).
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Literatura da Universidade Federal de Santa
Catarina, sob orientação da Prof.ª Dr.ª Maria Lucia de Barros Camargo, para obtenção do título Mestre
em Literatura, 2003. Disponível em: <<http://www.cce.ufsc.br/~nelic/Dissert_Eduard/Part1/tendencias_
e_cultura.htm>>.
89
Ainda, no dia 08/04/1977 Fernando Peixoto publica uma análise sobre a situação do teatro brasileiro
intitulado “A recusa da inércia”.
90
Andrea Sarti é o famoso e querido discípulo de Galileu na peça “Gallileu Galilei” de autoria do
dramaturgo alemão Bertolt Brecht. Peça esta que foi encenada em 1968 pelo teatro Oficina de São Paulo
e que Fernando Peixoto, dentre os vários personagens que faz na peça, faz o papel de Andrea Sarti moço.
91
Pelos “mapas” apresentados por Marquardt em sua dissertação notamos uma diferença no levantamento
do número de artigos de Fernando Peixoto no Opinião. Em primeiro lugar ele distingue os “autores”
“Fernando Peixoto” e “Andrea Sarti”, como se fossem dois colunistas diferentes, não levando em conta a
utilização deste pseudônimo. Em segundo lugar, mesmo somados os textos dos dois autores em sua
contagem, 24 do primeiro e 10 do segundo, temos o total de 34, 12 a menos do que conseguimos localizar
no arquivos da Biblioteca do Senado de Brasília (DF).
92
Sobre o conceito de “jornalismo cultural” que Nesquardt buscou reconhecer dentro de “Tendências e
Cultura”: “Nesse movimento estabelecido pela velocidade com que informação e cidade têm de se
relacionar, e que por conseqüência requer, através do jornalismo, um discurso que se adapte a essa mesma
velocidade, a versão segregadora de cultura (cultura-valor) é que requer a necessidade de cultura-
mercadoria. A cultura, nesse procedimento, aparece como refém da informação, convindo veicular
somente discursos objetivos, claros. No jornalismo cultural, tratar de cultura objetivamente significa fazer
de uma editoria de cultura press release dos “acontecimentos culturais”, ou seja, convertendo-a em parte
do processo de circulação das coisas da cultura, a linha de montagem do fenômeno cultural para nos
valermos da crítica de Ronaldo Brito. O que se pode aventar, em todo caso, é que se reconhecemos em
TeC a versão cultura-valor como predominante, ou seja, a cultura como um componente emancipador do
Capítulo II
Capítulo IICapítulo II
Capítulo II
64
reconhecer a cultura e a arte como expressões sociais que contribuíram para a
“emancipação do sujeito”, nos remetem a uma concepção elevada das mesmas, um papel
específico desta parte do jornal em criticar e expor pontos de vistas combativos e contra a
“mercantilização” da arte. Peixoto imprime a sua marca neste sentido em relação ao teatro
brasileiro no final dos anos 70. Mas, antes de simplesmente ser um crítico retilíneo e
uniforme, percebemos que os dilemas apresentados em suas críticas são bem mais
complexos, demonstrações de certeza e incertezas que se ligavam de maneira viva e direta
com a atividade teatral brasileira daquele momento.
2.2 FERNANDO PEIXOTO, BERTOLT BRECHT E BERNARD DORT: A ÚNICA
CERTEZA É A DÚVIDA
Um primeiro ponto nos chama a atenção na análise deste material: a influência
e a importância do dramaturgo, poeta e diretor teatral alemão Bertolt Brecht. É interessante
começarmos com um trecho de uma crítica onde Peixoto utiliza referenciais brechtianos
para analisar algumas encenações que ocorriam no ano de 1973 e ligadas, principalmente,
ao movimento da chamada “contracultura”:
93
sujeito, a tônica esquerdista tenta de alguma forma opor essa cultura-valor à lógica da cultura-mercadoria.
Para tentar exemplificar, não são poucos os textos que se opõem ao modo como os mercados editorial e
fonográfico passam a definir o valor ou seja, o valor se define por uma questão de mercado; textos
sobre o aumento do consumo da literatura best-seller; ou ainda textos que tratam do empobrecimento das
obras e conteúdos veiculados pela televisão”. MARQUARDT, Eduard. Cultura em Opinião As
páginas de “Tendências e Cultura” (1972-1977). Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação
em Literatura da Universidade Federal de Santa Catarina, sob orientação da Profª Drª Maria Lucia de
Barros Camargo, para obtenção do título Mestre em Literatura, 2003. Disponível em:
<<http://www.cce.ufsc.br/~nelic/Dissert_Eduard/Part1/tendencias_e_cultura.htm>>.
93
“[...] Mais ou menos a partir de 1967, o movimento de contracultura, que estava tendo em todos os países
do Ocidente importantes desdobramentos teatrais, contestando virtualmente todas as convenções
tradicionais através de experimentação ousada de novas gramáticas de escrita cênica e de novos
relacionamentos entre público e espetáculo, começou a atingir a cena brasileira. Reforçado pelo tempero
do tropicalismo, este movimento encontraria entre nós condições sob certos aspectos particularmente
favoráveis. Uma geração excepcionalmente criativa de jovens encenadores e cenógrafos estava
alcançando a maturidade, pronta a esposar uma causa na qual se pudesse engajar. Ora, no mundo inteiro a
revolução cênica da segunda metade da década de 60 foi obra, antes de mais nada, justamente de diretores
e cenógrafos capazes de reformular o espaço nico e a sua utilização, e neste sentido o nosso teatro
estava particularmente capacitado a dar ao movimento internacional, como de fato acabou dando, uma
contribuição significativa. Por outro lado, uma ampla faixa da juventude, recém-impedida de qualquer
participação política, e ansiosa por encontrar uma válvula de escape para o seu natural impulso de
contestação, acharia um caminho gratificante em manifestações que, embora basicamente apolíticas,
constituíam um questionamento radical do código de valores e da visão do mundo que a geração anterior
lhe havia legado. Finalmente, estes espetáculos, justamente por não assumirem uma posição explícita em
Capítulo II
Capítulo IICapítulo II
Capítulo II
65
Resta saber até que ponto esses espetáculos se afastam da análise da
realidade nacional e terminam numa contemplação passiva, abstrata e
anti-histórica, individualista e inútil, demitindo o teatro de sua
responsabilidade social. Cumpre mesmo verificar até que ponto o teatro
tem o dever, preconizado neste século, sobretudo pelas formulações
fundamentais de Brecht, de assumir seu papel na transformação do
homem e da sociedade.
94
Efetivamente, por mais que a citação acima demonstre uma atitude de
questionamento, de dúvida, sem afirmar categoricamente a respeito do caráter “passivo” ou
não dos espetáculos analisados, ao utilizar o dramaturgo alemão como contraponto, deixa
clara a sua concepção de teatro como instrumento responsável pela “transformação do
homem e da sociedade”. Opinião extremamente importante para a compreensão de Peixoto
como artista e crítico teatral.
A postura engajada e compromissada com a sociedade, naquele momento, não
significava uma opção aleatória, significava um teatro diferenciado em diversos níveis.
Neste sentido, podemos mencionar que Fernando Peixoto, foi e ainda é um dos principais
difusores da dramaturgia e das idéias de Bertolt Brecht
95
no país. No decorrer de seu
trabalho como crítico no Opinião ele expõe uma série de razões que justificariam a
importância de Brecht,“talvez o maior dramaturgo dos tempos modernos”
96
no teatro
brasileiro da década de 1970. A combinação de qualidades do dramaturgo e encenador
alemão que ele aponta como o “cinismo dialético”,
97
o humor,
98
a “lucidez”, a
“agressividade e força criativa”,
99
a “inteligência e sensibilidade da vida social, artística e
política de seu tempo”,
100
o “contraste e o choque, a incerteza e as opções, a
relação à realidade política imediata, pareciam reunir razoáveis condições de passar pelo crivo de uma
censura preocupada com a caça às bruxas políticas de um teatro, a seu ver, aliado à mentalidade
subversiva”. MICHALSKI, Yan. O palco amordaçado. Rio de Janeiro: Avenir Editora, 1979, p. 14-15.
94
PEIXOTO, Fernando. Teatro brasileiro, experiências. A saída, onde está a saída? Jornal Opinião,
17/12/1973, p. 20.
95
De autoria de Fernando Peixoto sobre o diretor e dramaturgo alemão Bertolt Brecht: Brecht: vida e obra
(1968), Brecht: uma introdução ao teatro dialético (1981), Ópera e Encenação (1986), Brecht no Brasil
(org.) (1986). Juntamente com Wolfgang Bader, foi o coordenador geral da publicação das Obras
Completas de Brecht em 1986.
96
PEIXOTO, Fernando. O “diário de trabalho” de Brecht. Jornal Opinião, 22/04/1974, p. 17.
97
Id. A ópera de um banco privado. Jornal Opinião, 19/03/1973, p. 19.
98
Id. O “diário de trabalho” de Brecht. Jornal Opinião, 22/04/1974, p. 17.
99
Id. O que mantém um teatro vivo. Jornal Opinião, 22/04/1974, p. 17.
100
Id. O “diário de trabalho” de Brecht. Jornal Opinião, 22/04/1974, p. 17.
Capítulo II
Capítulo IICapítulo II
Capítulo II
66
responsabilidade individual e a amarga experiência”,
101
o uso de “teoremas”,
102
da
parábola e da linguagem épica
103
são bastante elucidativas para percebermos a amplitude e
a importância deste pensamento para Peixoto.
A crítica ao espetáculo O que mantém um homem vivo? (elaborado a partir de
colagens de textos de Bertolt Brecht, encenado por Renato Borghi e Esther Góes no Rio de
Janeiro em 1974) demonstra o modo de trabalho e de análise de Peixoto. Dentre os vários
aspectos positivos levantados, principalmente em relação à atitude reflexiva que a peça
propõe, um que diz respeito à necessidade de estar sempre em busca, num processo
constante de reflexão:
Assim como Brecht mantém o pensamento vivo, a reflexão viva, a crítica
viva. O que mantém um homem vivo? mantém espectadores e atores
vivos. Num momento de perplexidade, o espetáculo mantém o teatro
vivo. E mais que vivo, de pé, com sua dignidade, coragem. Com toda a
convicção e o estímulo que Brecht nos lança, com sua provocação
permanente, quando afirma que, de todas as certezas, a única certeza é a
dúvida.
104
A dúvida significa a necessidade de respostas. Neste sentido o caminho em busca
de respostas é dialético, com idas e vindas, erros e acertos. Torna-se necessária à atividade
teatral inserir-se num processo constante, acima de tudo vivo, leitmotiv para a continuidade
de trabalho que visasse um fim específico.
105
Em outra crítica, ao comentar sobre os diários
de trabalho de Brecht, Peixoto reitera esta dimensão de constante transformação e procura
afirmar que “[...] seu pensamento foi sempre ágil, contraditório e resultado de
contradições. Nunca dogmático. Sempre em constante movimento. Sua obra recusa a
metafísica e existe em função do tempo”.
106
Neste ponto, ao tratar de Brecht, de suas questões e de suas propostas teatrais, nos
remetemos a uma rie de textos escritos pelo crítico teatral francês Bernard Dort entre os
anos de 1959 e 1970. Estes foram traduzidos e selecionados por Fernando Peixoto e
101
PEIXOTO, Fernando. . O “diário de trabalho” de Brecht. Jornal Opinião, 22/04/1974, p. 17.
102
Id. Um teorema do jovem Brecht. Jornal Opinião, 27/09/1974, p. 23.
103
Id. A imprecação dos saltimbancos portugueses. Jornal Opinião, 25/10/1974, p. 21.
104
Id. O que mantém um teatro vivo. Jornal Opinião, 22/04/1974, p. 17.
105
“Primeiro espetáculo: uma declaração de princípios coerente O Que Mantém Um Homem Vivo? Já o
título é uma interrogação (existe melhor atitude para o teatro brasileiro hoje?) mas também uma
afirmação, um programa. Primeiro autor: Brecht. O oposto de Gracias Señor: a retomada de posição
frente ao teatro brasileiro, a favor da transformação, da crítica, da juventude, da polêmica. Da arte não
como um fim em si mesma. Mas como atitude reflexiva”. Ibid.
106
Id. O “diário de trabalho” de Brecht. Jornal Opinião, 22/04/1974, p. 17.
Capítulo II
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Capítulo II
67
lançado pela Editora Perspectiva em 1977 com o título “O Teatro e sua Realidade”.
107
Sem
dúvidas, o livro apresenta um quadro extremamente vivo e dinâmico da cena teatral
ocidental desde o final do século XIX até meados do século XX, com o autor analisando
uma série de pensadores, autores, dramaturgos, críticos e diretores como: Shakespeare,
Émile Zola, Stanislávski, Goldoni, Pirandello, Ionesco, Genet, Adamov, John Arden. Mas,
Brecht ganha espaço privilegiado na obra, sendo também para Dort a base e a referência
para a proposta de um teatro diferenciado e renovador naquele instante histórico.
No texto de Dort, “Uma propedêutica da realidade”, percebe certa similaridade
com o que Peixoto acredita ser a função do teatro e, especialmente, sobre o ponto em que o
pensamento de Brecht se diferencia e avança em busca de soluções e propostas para a arte
em geral:
[...] Sua dramaturgia nos propõe uma crítica histórica da vida cotidiana e
da ideologia vivida. Brecht descreve o comportamento, a linguagem
cotidiana e privada, um pouco a maneira dos naturalistas. Mas não se
detém : coloca este comportamento e esta linguagem numa perspectiva
histórica. Conclama-nos, homens da sociedade de hoje, a decifrá-los,a
compreendê-los, referenciando-nos com nossa própria situação. Ou seja,
a situação de homens resolvidos a transformar o mundo. Seu teatro é o
lugar de uma tomada de consciência política: conflitos, contradições,
alienações nele aparecem como maneiras erradas de viver a história. A
não-comunicação entre os indivíduos não é um destino: é um fato social,
portanto, modificável.
108
Nas linhas acima percebemos o ponto de convergência inicial do crítico francês
com Fernando Peixoto – sobre a importância de um teatro que tenha como objetivo
promover a tomada de consciência política e, a partir daí, a compreensão e a transformação
da realidade. Mas, ainda que a dramaturgia brechtiana seja considerada capaz de efetivar
tal ação, a importância da forma que ganha em cima do palco é vital, o havendo como
dissociar o texto da cena onde ele está sendo representado e interpretado.
109
Em outro texto
107
DORT, Bernard. O teatro e sua realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977.
108
Id. Uma propedêutica da realidade. Ibid., p. 20.
109
Como deixa explícito em suas considerações sobre o espetáculo A grande imprecação diante das
muralhas da cidade de Tankred Dorst, Peixoto deixa claro sobre as possibilidades formais de um
espetáculo a partir das orientações brechtianas: “Em sua encenação de A Grande Imprecação os
Bonecreiros utilizam o que o texto de Dorst possui de formalmente brechtiano, para pesquisar uma
linguagem épica. A encenação de Mário Barradas é um exemplo de assimilação dos ensinamentos de
Brecht e de Manfred Wekwerth: a parábola é dividida em momentos, após um minucioso trabalho
dramatúrgico; os momentos são expostos didaticamente no espetáculo, separados uns dos outros por
cortes na ação, com os personagens mantidos estáticos em cena; para cada momento é pesquisado um
significado visual e sobretudo gestual”. PEIXOTO, Fernando. A imprecação dos saltimbancos
portugueses. Jornal Opinião, 25/10/1974, p. 21-22.
Capítulo II
Capítulo IICapítulo II
Capítulo II
68
do crítico francês, “A prática do Berliner Ensemble”, onde analisa o trabalho da companhia
teatral alemã fundada em 1949 por Brecht e sua esposa Helene Weigel, temos uma amostra
do significado e do impacto das propostas do dramaturgo e encenador alemão na questão
cênica. Segundo o crítico a magia e a razão se coadunavam em espetáculos coesos e,
principalmente, responsáveis por uma transformação profunda e conseqüente:
Daí a impressão de clareza, de inteligibilidade, propiciada por todos os
espetáculos do Berliner Ensemble. Nada é deixado ao acaso da efusão ou
da intuição. E se existe uma magia do espetáculo, ela se destina a não
cegar, mas a compreender e a nos fazer compreender. O espetáculo é uma
leitura.
110
Convém prestarmos bastante atenção nas análises de Dort sobre o texto e o teatro
brechtiano e, obviamente, sobre a importância destes para a cena teatral como um todo. Ao
descrevê-los, ele salienta uma outra característica extremamente importante para
acompanharmos e compreendermos o pensamento de Peixoto em suas críticas no jornal
Opinião: a capacidade dos espetáculos em não “cegarem” os seus espectadores, mas de
exigirem destes uma “leitura” da realidade. Além de o teatro servir como instrumento para
a tomada de consciência e para efetivar uma certa leitura de mundo, em outra crítica de
Dort, “Um realismo épico”, este ganha mais uma função nesta sociedade: a de ser poesia e
o “lugar do conhecimento”:
Pode-se então falar de poesia, no sentido mais amplo do termo. O teatro,
para Brecht, torna-se o próprio lugar do conhecimento: é mais que o
instrumento de uma tomada de consciência, é a imagem de um trabalho
alegre, de um parto coletivo. O teatro grego não celebrava, sobre as
ruínas das antigas fatalidades, a consagração de uma cidade livre,
libertada e reconciliada?
111
Consciência, leitura, poesia e conhecimento. O questionamento final da citação é
a própria essência do teatro grego para Dort: um teatro vigoroso, intimamente ligado com a
celebração da liberdade após as lutas e as fatalidades. Mas, pelo fato de fazer parte de um
mundo vivo e ainda em luta, tem a necessidade de ser dinâmico e consciente dos desafios a
serem superados. Ao fazer parte da coletividade contraditória e dividida, tem como papel
uma ação emancipadora visando uma futura reconciliação entre estes “falsos opostos”.
Os dois pontos assinalados anteriormente por Fernando Peixoto, um teatro que
recuse a metafísica e que exista em função do tempo onde está inserido, são essenciais para
110
DORT, Bernard. A prática do Berliner Ensemble. In: ______. O teatro e sua realidade. São Paulo:
Perspectiva, 1977, p. 300.
111
Ibid., p. 298.
Capítulo II
Capítulo IICapítulo II
Capítulo II
69
compreendermos as opiniões e as propostas que ele fará no decorrer de seu trabalho como
crítico e, que claramente, se aproxima muito dos textos de Bernard Dort. A criação de um
teatro socialmente responsável e ligado à transformação do homem e de sua realidade é
algo constantemente citado, sendo a sua principal preocupação. Isto fica bem claro em
vários textos. Não devemos esquecer que a busca por este tipo de teatro passava,
necessariamente, por uma série de debates e discussões em torno de como ele se tornaria
real no Brasil, nos anos de 1970, sob o regime militar. Se havia algo que o incomodava, em
primeiro lugar, e o fazia refletir seriamente naquela época, era sobre a “nova cena teatral”
que surgia no país e que ia de encontro diretamente com suas opiniões e seus valores.
Também pregava mudanças e transformações, era radical, polêmica e questionadora. Mas,
para Peixoto, parecia passiva, abstrata e individualista. As divergências existiam e as
críticas no jornal Opinião nos ajudam a compreender as distâncias e as discordâncias entre
o crítico e esta tendência teatral.
2.3 Fernando Peixoto e o advento da cena “alternativa”: “a saída, onde
está a saída?”
Na “reportagem-informação” publicada no final do ano de 1973: “Teatro
brasileiro, experiências. A saída, onde está a saída?”,
112
Fernando Peixoto iniciava assim a
provocadora descrição sobre uma nova cena teatral que entrava em voga no país:
No Rio de Janeiro, principalmente, existem atualmente grupos teatrais
que realizam um trabalho solitário, lobos da estepe fechados em salas
pequenas, com apresentações para 10, 12 ou apenas para um espectador.
Às vezes, parece que um certo masoquismo, provocado pela ausência de
um público maior, a esses trabalhos quase anônimos a certeza de estar
trilhando um caminho – por mais discutível que seja – certo e justo.
113
Desde o título de sua reflexão, uma pergunta sobre onde está a saída para o teatro,
a crítica é explícita. Um espetáculo que se mantinha com um número reduzido de
espectadores, por mais que para esses grupos representasse algo significativo de que
112
PEIXOTO, Fernando. Teatro brasileiro, experiências. A saída, onde está a saída? Jornal Opinião,
17/12/1973, p. 20.
113
Ibid, p. 19.
Capítulo II
Capítulo IICapítulo II
Capítulo II
70
estavam no caminho certo, era uma grave contradição a ser enfrentada pelo teatro em geral
e necessitava de uma maior compreensão.
Sem dúvidas, ele tem a percepção de que estas manifestações não são aleatórias e
que não surgiram independentes e dissociadas da própria conjuntura. Elas têm fundamento
real e surgem num momento específico da sociedade brasileira. Numa tentativa de
entendê-las a fundo, Fernando Peixoto faz uma espécie de descrição particularizada das
razões e dos sentidos destes grupos que buscavam uma outra forma de fazer teatro no país.
Para isto, assiste espetáculos como Drácula de Bram Stoker sob a direção de Miguel
Oniga, Dysangelium e Dos Mistérios, encenados pelo Centro de Pesquisa Ex-Teatro
(Teatlab) sob a direção de Airton Kerenski, Os Construtores de Império encenado pelo
“Teatro Macário”, As Loucuras do Dr. Qorpo Santo, dirigido por José Luiz Ligiéro Coelho
e encenado pelo “Teatro Mágico” e As Incelenças de Luiz Marinho, dirigido por Luiz
Mendonça no Teatro de Arena da Guanabara. Indo além das encenações, busca também
investigar a origem e as justificativas dos grupos e de seus criadores que colocaram estes
espetáculos em cena. Há ainda uma descrição sobre o funcionamento de um curso de teatro
ministrado por Pedro Jorge, intitulado “Teatro Laboratório”, do grupo capitaneado por
Rubens Corrêa que se transferiu para a área rural e do grupo “A Comunidade” fundado por
Amir Haddad e Paulo Affonso Grisoli.
Ainda que fosse um espectador atento e aberto às novas experiências, não
significava que ele aceitava de maneira irrestrita todo um movimento teatral que estava em
cena naquele momento. Peixoto tem Brecht e Dort como referências críticas,
principalmente ao chamar a atenção para o papel social e transformador do espetáculo
teatral, não apenas no nível interno, mas principalmente em relação à realidade concreta e
objetiva. É emblemático o advento de uma cena teatral que podemos chamá-la de
“alternativa”. Ela não era uma opção vazia e inocente, significava para o crítico algo a ser
questionado e discutido. Como bem salientado no capítulo anterior, por Araújo, não
podemos ligar, necessariamente, os termos “imprensa alternativa” com a “esquerda
alternativa” e, como veremos, com o chamado “teatro alternativo”.
Ao analisar primeiramente o “Teatro Laboratório” de Pedro Jorge, Peixoto não
deixa de ironizar em relação à “aula/encenação” que assistiu. Coloca em dúvida o
experimentalismo do grupo em questão, já mostrando, ainda que de maneira velada, o seu
descontentamento com alguns aspectos da cena teatral que, em termos gerais, questionava
a certeza, a inteligência e a razão do “homem moderno”:
Capítulo II
Capítulo IICapítulo II
Capítulo II
71
Não interessa, entretanto, julgar o espetáculo, na medida em que se
propõe a ser uma aula aberta ao público. Uma observação, entretanto,
pode ser feita: além de trabalhar em emoções descontroladas, os alunos,
em geral, se entregam a um transe hipnótico: quando perguntei a eles, no
final [...], se depois de tantas repetições do mesmo tema não chegavam a,
consciente ou inconscientemente, fixar algumas soluções cênicas ou
chaves emocionais, um deles me respondeu que é impossível repetir duas
vezes o mesmo trabalho e que, de qualquer forma, ele era absolutamente
incapaz de lembrar o que tinha feito durante o exercício.
114
Apesar de Fernando Peixoto tentar não exercer o seu papel de “crítico” pelo fato
de ter assistido uma “aula”, ao conversar com os alunos ele não deixa de interpretar as
respostas dos mesmos como sinais da irracionalidade do exercício, principalmente quando
ele constata que estes não lembravam de mais nada do que fizeram antes. Este “transe
hipnótico” limitado à apresentação, sem conseqüência e sem continuidade, com certeza,
não era o ideal, em seu julgamento.
Sobre outro espetáculo, Drácula, dirigido por Miguel Oniga, ele aponta os
aspectos problemáticos da encenação, questionando, na primeira linha, o trabalho de
“desconstrução” (aqui mais parecido com destruição) do texto de Bram Stoker feito pelo
diretor:
[...] Do romance de Stoker restam alguns personagens e algumas
situações, cenicamente resolvidas em termos de corpo, convulsões, gritos,
panos brancos e pretos, correrias. A proposta tem seu sentido, mas a
realização peca pela repetição de recursos, pela exploração limitada de
algumas idéias fortes. Oniga não define uma posição crítica ou mesmo
sensorial em relação ao vampirismo. Drácula é o corpo de tanga branca, o
ator que espera, ajoelhado, a entrada dos espectadores na sala, segundo a
moda grotowskiana. Mas não interessa aqui, como no caso anterior, uma
crítica do espetáculo: ainda que seja necessário observar que a tentativa
de sondar o indivíduo e seus demônios, ou o olhar novo no tema, dos
mais fascinantes da mitologia literária, é limitado pela superficialidade e
provavelmente pela inexperiência dos realizadores.
115
Repetições, limitações, ausência de um posicionamento crítico, superficialidade e
inexperiência. Não são poucos os problemas apontados por Peixoto nesta encenação. Por
mais que o espetáculo pretenda desvendar alguns mistérios da existência humana, tudo se
resolve na exacerbação do irracional, do corpo em seus aspectos mais primários em
detrimento da razão. Em sua descrição, ao apontar algumas características “segundo a
moda grotowskiana” existentes na interpretação, ele cita pela primeira vez em suas críticas
114
PEIXOTO, Fernando. Teatro brasileiro, experiências. A saída, onde está a saída? Jornal Opinião,
17/12/1973, p. 20.
115
Ibid.
Capítulo II
Capítulo IICapítulo II
Capítulo II
72
uma concepção de teatro bastante polêmica e muito influente daquele momento: as
propostas do encenador polonês Jerzy Grotowski. Como veremos no decorrer do nosso
texto, ele será mais vezes citado, às vezes como problema, outras vezes como solução.
É interessante e elucidativo, em termos de comparação, transcrevermos aqui um
trecho de uma crítica do ano de 1974, onde Peixoto elogia o trabalho da atriz Fernanda
Alves que faz parte do elenco do espetáculo A grande imprecação diante das muralhas da
cidade:
116
[...] esta lição de encenação brechtiana é aprofundada graças a uma
interpretação extraordinária de Fernanda Alves, mostrando cada instante
e cada elemento de seu personagem com inteligência e lucidez: uma
interpretação controlada entre a emoção e o raciocínio, realizada com
segurança e convicção.
117
Se compararmos as formas de trabalho e de encenação dos atores do “Teatro
Laboratório” e do espetáculo Drácula descritas aentão, com as da atriz citada acima, a
diferença é notória. De um lado, temos os aspectos sensoriais e irracionais do ser humano
sendo transpostos para o palco. De outro, temos o controle intencional da “emoção” e do
“raciocínio”. Sem dúvidas, o crítico é favorável à segunda proposta e com ressalvas a
primeira. deixa claro a existência de diferenças entre uma perspectiva e outra e de seu
posicionamento. Porém, antes de simplesmente cairmos numa concepção dual e
irreconciliável entre as duas representações, podemos retomar o crítico francês Bernard
Dort que também via com bastante desconfiança e dúvida os aspectos diferenciados da
cena teatral “alternativa”, mas que tentou harmonizar estes diferentes “modos de
encenação”. Como bom defensor da causa, ele aponta as características que o ator
brechtiano deveria ter em seu trabalho, sendo o mais completo possível:
Uma das indisposições mais vivamente ressentidas na vida teatral atual
nasce da inadequação da formação do ator às novas tarefas que deveriam
ser as suas. E a espécie de frenesi com que muitos jovens se lançam na
expressão corporal ou na imitação do Living Theatre é um sinal deste
mal-estar. Acrescentemos ainda que a oposição radical que alguns
estabelecem entre um pretenso ator brechtiano, que seria apenas
intelectual, e um ator segundo o Living, que seria apenas físico, faz
confundir as coisas: se existe oposição, ela se situa no nível do
116
“A atual encenação da Grande Imprecação é de Os Bonecreiros, um grupo português. Em Portugal,
bonecreiro é uma espécie de saltimbanco. O grupo foi fundado em Lisboa em outubro de 1971. Dedica-se
sobretudo a espetáculos populares (neste sentido A Grande Imprecação é uma exceção), representando
em praças públicas, nas ruas e no interior de Portugal. Antes da derrubada do salazarismo o grupo não era
bem visto pelas autoridades[...]”. PEIXOTO, Fernando. A imprecação dos saltimbancos portugueses.
Jornal Opinião, 25/10/1974, p. 21.
117
Ibid., p. 22
Capítulo II
Capítulo IICapítulo II
Capítulo II
73
significado de uma empresa como o Berliner Ensemble e a de um grupo
(ou de uma tribo) como o Living Theater. Não ao nível das técnicas dos
intérpretes, pois o ator brechtiano deve ser igualmente “físico” e
representar com seu corpo tanto quanto o ator do Living.
118
Dort, assim como Peixoto, demonstra a sua aversão à primazia “física” sobre o
trabalho do ator, sendo necessário certo equilíbrio que o preparasse para enfrentar os vários
desafios e papéis de sua profissão. De certa forma, ambos acabam tentando mostrar que a
concepção brechtiana de teatro tinha, da mesma forma, um caráter extremamente vivo e
emocional.
119
O diferencial é que não se deixava levar inconscientemente e sem razão,
principalmente porque tinha um objetivo a ser alcançado. Esta seria a grande inspiração.
120
Na continuidade da “reportagem-informação”, Fernando Peixoto faz os seguintes
questionamentos sobre o real impacto destas encenações, mais voltadas para o indivíduo e,
como ele mesmo afirma, irracional:
Pessoalmente a pesquisa de um indivíduo isolado do contexto sócio–
econômico em que vive me parece uma postura inútil e freqüentemente
mentirosa como processo de conhecimento da verdade. Mas na medida
em que essa análise é realizada, até onde possui utilidade e sentido? São
inúmeras interrogações que somente a verificação isenta de preconceitos
pode dar respostas válidas. Propostas de teatro ou antiteatro somente
118
DORT, Bernard. O teatro e sua realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p. 400.
119
Peixoto em 1986, busca demonstrar as razões do “racionalismo brechtiano”, principalmente ligado à luta
contra o lado “irracional” do regime nazista alemão: “[...] nos últimos anos de Weimar a dramaturgia
assumiu uma postura decididamente racionalista, na medida em que o fascismo insistia no fator
emocional. Mas comenta que foi justamente a forma mais racional de seu teatro, as peças didáticas, que
provocou sempre as reações mais emocionais. Brecht insiste que a emoção tem sempre um fundamento
de classe bastante determinado: se manifesta de maneira específica, vinculada a uma época. Não é
intemporal nem universal. É um erro do teatro tradicional separar a razão do sentimento, eliminando a
primeira: diante da menor tentativa de introduzir um elemento racional na prática teatral, os adeptos do
teatro convencional começam a gritar, erroneamente, que se pretende eliminar os sentimentos e as
emoções. Mas naqueles anos, o teatro ganhou um crítico vigilante e profundamente interessado na nova
dramaturgia: o policial. Isto na medida em que esta nova dramaturgia se mostrou capaz de desvendar a
verdade aos espectadores”. PEIXOTO, Fernando. O teatro de Brecht aqui hoje. In: BADER, Wolfgang.
Brecht no Brasil – Experiências e Influências. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 30.
120
No “Dicionário do teatro brasileiro”, no verbete intitulado “Teatro Experimental”, Edelço Mostaço
demonstra resumidamente o papel do ator e do público na vertente teatral brechtiana: Na outra vertente,
ligada à função e às condições atribuídas ao público, está o propósito de reconduzi-lo à participação. Duas
alternativas galvanizam, aqui, uma multiplicidade de intentos, sendo uma delas mais explicitamente
conduzida por Bertolt Brecht que, valendo-se da contextualização sociológica, quer recriar em cena as
várias dimensões dos fenômenos sociais, inserindo suas personagens nos limites entre essas dimensões,
assim exacerbando tanto sua objetividade quanto sua subjetividade. O ator desse teatro deverá, para dar
conta dessas múltiplas dimensões abarcadas, entrar num permanente jogo consigo mesmo, alternando-se
entre “sero personagem e exibir uma consciência supraficcional. A platéia é requisitada, desse modo, a
igualmente desdobrar-se entre as considerações de seu imaginário e aquelas de suas reais condições de
existência, através de uma dialética que objetiva a desalienação, processo em que a atividade sociopolítica
é contraposta à passividade da recepção emocional”. MOSTAÇO, Edelço. Teatro experimental. In:
GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela Alves de. (Orgs.). Dicionário do teatro
brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva / Sesc São Paulo, 2006, p. 140.
Capítulo II
Capítulo IICapítulo II
Capítulo II
74
adquirem significado quando estudadas a partir de uma prática efetiva.
Aqui o que nos interessa, sobretudo, é a divulgação de parte desse esforço
dos mais jovens, utilizando inclusive, no nível da informação, suas
próprias declarações de princípios.
121
Novamente, os termos utilizados nesta citação para descrever e avaliar estes
espetáculos são provocadores e contundentes. Fernando Peixoto denomina as “posturas”
como inúteis e mentirosas, adjetivos que causariam bastante controvérsia.
122
Porém, no
momento seguinte, “brechtianamente”, ele dá valor à “dúvida” em contraponto à “certeza”.
Concordando ou não, estas manifestações não existiam por elas mesmas. Eram esforços
organizados e, além de tudo, justificados dentro de uma lógica própria. Falar de “isenção
de preconceitos” por parte do crítico talvez seja mais uma saída retórica utilizada por ele
do que realmente uma solução para justificar o seu trabalho. Efetivamente ele se posiciona
a todo instante e seu juízo de valor está presente desde a escolha dos espetáculos, até às
construções de suas frases, os adjetivos que utiliza, a forma como os apresenta.
Mas, ainda sim, o crítico em seu desejo de nos “informar”, aponta e analisa os
referenciais teóricos e práticos utilizados pelos artistas que estavam empenhados no
“novo” fazer teatral. Aqui, ele tem mais cautela, mas mesmo assim a “dúvida” não deixa
de estar presente em suas abordagens. Ao elogiar o espetáculo Dysangelium de Airton
Kerenski, ele cita novamente o nome do encenador polonês Gerzy Grotowski:
A seqüência da mesa de operações é dos momentos mais altos do teatro
brasileiro moderno. Nada é gratuito, mas sim resultado de uma
elaboração meticulosa. A utilização não somente do corpo mas também
do som e da palavra adquire um sentido poético difícil de dimensionar. A
condição humana se revela ao público com uma intensidade fascinante:
quando os atores falam textos, conseguem uma dimensão poética e lógica
difícil de ser atingida. É possível que o espectador não penetre no sentido
121
PEIXOTO, Fernando. Teatro brasileiro, experiências. A saída, onde está a saída? Jornal Opinião,
17/12/1973, p. 20.
122
As observações de Mariângela Alves de Lima já nos uma certa noção da controvérsia em torno do
valor e do significado deste tipo de encenação: “Uma vez que a representação é o resultado da
interferência de cada participante no processo criativo o espectador deve saber que está em contato, no
mesmo espetáculo, com diferentes expressões individuais. Como contraponto ao ator perfeito, ao ator-
Stradivarius, a cena apresenta o ator “visceral” que deve ir muito além do mero instrumento. Esse não é o
ator que transmite uma emoção, mas aquele que vivencia a emoção em cena. Mesmo que esse ator não
tenha disponibilidade para cultivar-se, as possíveis arestas podem ser compensadas com uma outra
exigência que o ator faz a si mesmo. E que implica necessariamente num tremendo desgaste emocional e
físico, em cordas vocais arrebentadas e numa avaliação da qualidade do espetáculo não pela comunicação
racional que estabelece com o público, mas pelo trânsito das emoções que cruzam o espaço entre o palco
e platéia. Ressalve-se o fato de que esse turbilhão de paixões não tem a menor intenção de minimizar o
conhecimento que a arte proporciona, mas sim altera a veiculação desse conhecimento na ordem da
percepção do espectador”. LIMA, Mariângela Alves de. Quem faz o Teatro. In: ARRABAL, José; LIMA,
Mariângela Alves de; PACHECO, Tânia. Anos 70 Teatro. Rio de Janeiro: Europa Emp. Graf. e Edit.,
1979-1980, p. 61-62.
Capítulo II
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75
das imagens oferecidas, mas percebe-as (perceber, para Grotowski, é uma
forma de compreender a partir de símbolos) com admirável vigor.
123
Como dizemos anteriormente, por mais que Peixoto mantivesse uma postura
nítida e crítica em relação aos espetáculos, particularmente no que ele cita acima,
reconhece numa cena específica o que ele chama de um “dos momentos mais altos do
teatro brasileiro moderno”. Isto não é pouca coisa, principalmente quando percebemos toda
a construção negativa que ele faz deste tipo de encenação. Mas, ao contrário de Drácula de
Miguel Oniga, onde os referenciais “grotowskianos” são utilizados mais como “moda” do
que como estudo aprofundado, no Dysangelium o crítico destaca a elaboração meticulosa
dos preceitos, onde tudo adquire um significado mais profundo, algo que não era notado
por ele até então.
124
Peixoto, nesta tentativa de aprofundar ainda mais o seu conhecimentos sobre as
manifestações teatrais acima citadas, também denominadas de “underground” e
“marginais”,
125
parte para a discussão dos artigos de Luiz Carlos Maciel reunidos no livro
Nova Consciência Jornalismo Contracultural (1970-1972),
126
chegando à seguinte
constatação:
Em busca de alternativas para o homem contemporâneo está intimamente
relacionada com certa prática do teatro jovem de hoje: explorar o espaço
externo do cosmos e perder a alma ou tentar conquistar essa alma e
explorar seu fundo escuro e desconhecido, buscando o espaço interno da
própria mente, pesquisa do tempo provisório e mortal de cada um,
apreensão do homem no interior de sua subjetividade. Esse tipo de
proposta (exista ou não nos que fazem teatro a consciência integral de sua
formulação) ilumina uma tendência do teatro experimental de hoje (não
somente no Brasil). Sua exposição, feitos os devidos descontos, está
implícita nas categorias estéticas articuladas por Jerzy Grotowski, papa
mais ou menos oculto de quase todos os espetáculos a que assistimos.
127
123
PEIXOTO, Fernando. Teatro brasileiro, experiências. A saída, onde está a saída? Jornal Opinião,
17/12/1973, p. 21
124
“Ao contrário de outros encenadores jovens que vivem as incertezas de uma experimentação
desencontrada, Kerenski tem uma profunda segurança de seu trabalho e dos objetivos aos quais se propõe.
É um homem inteligente, sensível, que esteve dois meses com Grotowski e realizou experiências teatrais
fora do Brasil, antes de organizar seu grupo”. Ibid., p. 20.
125
“Seria possível a eclosão de um teatro em termo de underground? É uma interrogação a ser verificada.
Nesse sentido, assistir a alguns espetáculos “marginais” (com tudo que a palavra possui de indefinido)
atualmente em cartaz no Rio e, ao mesmo tempo, ler os artigos de Maciel reunidos no livro Nova
Consciência podem constituir uma singular tentativa de compreensão do problema”. Ibid., p. 19-20.
126
MACIEL, Luiz Carlos. Nova Consciência Jornalismo Contracultural (1970 1972). São Paulo:
Eldorado, 1973.
127
PEIXOTO, Fernando. Teatro brasileiro, experiências. A saída, onde está a saída? Jornal Opinião,
17/12/1973, p. 20.
Capítulo II
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76
A importância da subjetividade e a compreensão do “homem” e de seu “interior”,
subjetivo e desconhecido, são os aspectos mais destacados e mais justificáveis nos
espetáculos que Peixoto denomina de “experimentais”. Ao utilizar tal nomenclatura ele nos
remete a uma série de correntes artísticas que tiveram no início do século XX o seu
surgimento e que foram essenciais para a compreensão dos desafios que teatro ocidental
enfrentou,
128
chegando até à vertente do “teatro espontâneo” do russo Nicolas Evreinoff,
que exerceria uma influência considerável nos rumos do teatro a partir dos anos 60, como
salientado por Edelço Mostaço no Dicionário do Teatro Brasileiro no verbete “Teatro
Experimental”:
Naquilo que concerne ao intérprete, esta proposta vai repercutir mais
intensamente nos anos de 1960 junto a dois poloneses: Jerzy Grotóvski
que, através do método da auto-penetração, ambiciona um ator-santo cujo
ofício aproxima-o de um oficiante místico, radical ultrapassagem do
estágio de verismo psicológico de matriz stanislavskiana; e Tadeuz
Kantor, que anuncia nos seus espetáculos o desaparecimento do ator. São
ambas experiências ligadas à noção mais ampla de laboratório – um
espaço teatral de pesquisa incessante-, no qual o processo de criação
encontra-se colocado acima dos resultados e o espectador é nele admitido
sob certas condições.
129
Peixoto reconhece a influência e o poder das formulações de Jerzy Grotowski, que
ele denomina de “papa mais ou menos oculto”, nas encenações que assistiu. A partir deste
reconhecimento e desta constatação, ele parte para o seguinte questionamento: como e de
que forma Grotowski estava sendo assimilado pelos encenadores brasileiros? Qual a
importância de sua influência para o teatro naquele momento por qual o país passava?
Assim são direcionados os seus ataques sobre as idéias que então vigoravam:
Mas até que ponto essa nova consciência do teatro brasileiro tem raízes
numa compreensão límpida e criativa de Grotowski? Até que ponto tudo
não passa de uma fuga da realidade? De uma covarde omissão? Até que
ponto esse mergulho desenfreado nas insondáveis camadas irracionais do
ser humano não passa de um fascinante capítulo da própria racionalidade
128
No verbete “Teatro Experimental” escrito por Edelço Mostaço no “Dicionário do Teatro Brasileiro”, ele
apresenta três diferentes “linhas”. A primeira ligada ao francês Antonin Artaud e seu “teatro da
crueldade”, que pretendia “pela via da exacerbação dos sentidos, fazer um retorno à sua condição
coletiva, da comunidade anterior à estamentada partição burguesa”. A outra, tem no alemão Bertold
Brecht que “valendo-se da contextualização sociológica, quer recriar em cena as várias dimensões dos
fenômenos sociais, inserindo suas personagens nos limites entre essas dimensões, assim exacerbando
tanto sua objetividade quanto sua subjetividade”. MOSTAÇO, Edelço. Teatro Experimental. In:
GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela Alves de. (Orgs.). Dicionário do teatro
brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva / Sesc São Paulo, 2006, p. 139-141.
129
MOSTAÇO, Edelço. Teatro Experimental. In: GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA,
Mariângela Alves de. (Orgs.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo:
Perspectiva / Sesc São Paulo, 2006, p. 139-140.
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do homem? Por que tudo isso acontece no mundo hoje e encontra
entusiasmo e entrega também no Brasil de hoje? Até que ponto esse
teatro não constitui “um saudável arejamento de nossos hábitos mentais e
de nossas características de pensamento”? Ou, ao contrário, não passa de
uma atitude elitista, alienada e mistificadora, fuga de um confronto com
os problemas efetivos do homem e da sociedade?
130
Novamente, ele incorpora em sua crítica a “dúvida brechtiana” ao levantar as
possibilidades e os caminhos que o teatro brasileiro estava seguindo e escolhendo como o
viável para a sua sobrevivência. Ainda sim, não deixa de questionar o aspecto “niilista”, de
fuga da realidade, o aspecto irracional, elitista, alienado e mistificador. Não podemos
esquecer, e sempre é bom reafirmar, que a posição de Fernando Peixoto, pessoalmente, é
contrária a esta vertente em vários aspectos. O projeto teatral que ele acredita como válido
passa por outras questões e por outros paradigmas. pelo fato de questionar a razão do
relativo sucesso que estas propostas têm no Brasil, um país de tradições culturais
singulares e com diferentes necessidades, demonstra certo descompasso entre o teatro e
a realidade em que está inserido. Mais provocador, questiona a própria leitura destes
artistas sobre Grotowski. A utilização dele não seria apenas mais uma forma de fugir,
covardemente, do enfrentamento real que se impunha na relação entre arte e sociedade?
Na crítica “Grotowski: teatro ou terapia”, publicada em julho de 1974, Fernando
Peixoto tenta em seu estilo polêmico e contestador compreender de maneira “límpida” e
realista as formulações do encenador polonês. Nesta crítica busca mostrar um pensador
menos “vazio” (se apenas levasse em consideração suas propostas a partir do que assistiu
nos espetáculos brasileiros) e mais “conseqüente”. Acaba nos apresentando uma imagem
diferente de Grotowski:
São também muitas as lendas existentes em torno do encenador polonês,
na verdade ele não é um profeta, nem nunca pretendeu pregar sua
religião, nem propor dogmas e regras de trabalho – é um encenador
asceta e meticuloso, com extraordinário e rigoroso sentido da escritura
teatral, que pesquisa, numa figuração não realista, uma forma efetiva e
profunda de conhecimento do homem.
131
No trecho acima, o reconhecimento mais amplo da obra, das orientações e da
importância do polonês dentro da conjuntura teatral daquele momento. Porém, Peixoto
busca apresentar esta tendência sem o exagero e o fanatismo comum a muitos de seus
seguidores. Em sua opinião, por mais que a encenação “grotowskiana” não se pautasse
130
PEIXOTO, Fernando. Teatro brasileiro, experiências. A saída, onde está a saída? Jornal Opinião,
17/12/1973, p. 20
131
Id. Grotowski: teatro ou terapia? Jornal Opinião, 15/07/1974, p. 13.
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78
pela figuração “realista”, ela também não era solta no ar, vazia, impulsiva e irracional.
132
Ela exigia um cuidado e uma consciência muito grande em relação aos objetivos a serem
alcançados. Além disso, em outro momento da crítica, ele chama a atenção pelo fato de
muitos brasileiros ainda terem um conhecimento restrito e ultrapassado em relação às
experiências teatrais, da utilização de noções superadas pelo próprio Grotowksi em seus
trabalhos mais atuais.
133
Porém as confusões em torno do significado das encenações coordenadas por
Jerzy Grotowski em seu grupo, o “Living Theatre”, assim como as elaboradas por outros
empreendimentos empenhados nesta mesma perspectiva teatral nos EUA como o “Open” e
o “The Performance Group”, não deixam de existir:
Na verdade, representação e tentativa de salvação pessoal se confundem
em muitos dos mais polêmicos espetáculos produzidos pelos grupos
acima mencionados (sobretudo o “Living”, o “Open”, e também o “The
Performance Group” de New York, em seus trabalhos mais recentes). A
própria insistência na instituição da vida comunitária, como condição e
princípio básico para o trabalho [...], deixou inúmeras vezes os críticos
em dúvida: o objetivo destes grupos é fazer espetáculos novos ou
encontrar, de forma ingênua e neo-romântica, uma nova forma de vida
social?; ou em que medida ambas as propostas, na prática que realizam,
efetivamente, coexistem? Até onde este individualismo institucionaliza a
fuga e a omissão?
134
Aqui é levantada uma outra questão bastante controversa em relação a estes
grupos: a alternativa e a opção de viverem em comunidade, sendo isto uma condição
essencial para o trabalho. Tema brevemente explorado na “reportagem-informação”
“Teatro brasileiro, experiências. A saída, onde está a saída?”, ao dar o exemplo de Rubens
Corrêa e de um grupo de atores que haviam se transferido para uma área rural, a atitude
acaba sendo igualmente questionada, seja pelo viés do “neo-romantismo”, seja pela fuga,
simples e direta que esta atitude significava.
132
“[...] É contemporâneo para sondar em profundidade a lógica do comportamento e do pensamento, chegar
às camadas mais reprimidas, ao motor secreto, o sistema de signos da representação deve apelar
diretamente à experiência de hoje (dá uma importância especial à forma, como cristalização de signos
exatos: para Grotowski o princípio da expressividade do ator reside em permanente combinação de
espontaneidade e disciplina). Assim, cada encenação de um clássico é uma meditação sobre o presente”.
PEIXOTO, Fernando. Teatro brasileiro, experiências. A saída, onde está a saída? Jornal Opinião,
17/12/1973, p. 20.
133
“[...] Aliás, o terrível é que grande parte dos brasileiros conhece Grotowski através da leitura de seus
primeiros artigos e entrevistas, material em certo sentido, velho e superado pelo próprio Grotowski em
suas realizações mais recentes”. Ibid.
134
Id. Grotowski: teatro ou terapia? Jornal Opinião, 15/07/1974, p. 13.
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De maneira didática e elucidativa ao apresentar seus próprios referenciais,
Fernando Peixoto põe em xeque algumas características das “novas formas teatrais”,
apontando alguns elementos diferenciais e contraditórios que deveriam ser postos em
debate antes de serem simplesmente aceitos e utilizados pelos encenadores e diretores
brasileiros:
O problema é complexo. Ardorosamente assumido pelos que defendem
uma postura ontológica e metafísica para o teatro, Grotowski surge
paradoxalmente num país socialista, a Polônia, e trabalhando
subvencionado pelo governo e com absoluta liberdade de pesquisa. Por
outro lado não tem sentido condenar ou sacralizar os ensinamentos e a
prática de Grotowski sem uma compreensão do contexto em que a mesma
se origina. Sua utilidade para outras culturas pode, evidentemente, ser
colocada em questão: é indiscutível que a tarefa social do teatro latino
americano, é estética e humanamente válido e necessário para nossa
sociedade, por exemplo, não pode se resumir numa pesquisa de
comunhão do ator com o espectador que procure absolutamente isolar o
acontecimento teatral de sua realidade sócio-econômica.
135
Neste ponto, a crítica é clara ao demonstrar que a conjuntura e o ambiente de
criação vivenciados por Grotowski são muito diferentes do mundo latino-americano.
Compreender as suas particularidades serve como base e medida para avaliar o seu real
valor num outro tempo e, principalmente, num outro lugar. Por mais que sejam válidas e
úteis as diretrizes em torno de “uma postura ontológica e metafísica” para o teatro, isto não
é o bastante para a realidade brasileira, com todos os seus problemas nos diversos âmbitos
da sociedade. O teatro tem como papel algo que vai além e, principalmente, não ficar
isolado das estruturas.
136
Algo nos chama a atenção ao lermos este fragmento: ao apontar como paradoxal o
fato da teoria “grotowskiana” surgir dentro de um país socialista. Significava que Peixoto
acreditava que nestas condições especiais surgiria algo mais “compromissado com a
transformação da realidade” e não uma fuga “baseada” na “irracionalidade”? Será o teatro
uma “superestrutura” ligada de maneira orgânica e fechada à “estrutura” de sua
135
PEIXOTO, Fernando. Grotowski: teatro ou terapia? Jornal Opinião, 15/07/1974, p. 13.
136
Na década de 1980, o diretor e ator Amir Hadad questiona a interpretação dos críticos quando estes
afirmavam sobre a influência de Grotowski em seu trabalho, afirmando que determinadas formas e
técnicas advinham muito mais de um desespero pessoal por qual estava passando: “[...] Acho que a
vanguarda é caudatária do sistema. Falavam que meu teatro sofria influência de Grotoviski, não era nada,
era desespero. Eu contorcia o meu corpo porque não sabia botar os meus sentimentos. Eu contorcia a
minha expressão porque eu não sabia botar o meu prazer no jogo. No governo Médici, eu me contorci
demais, porque era horrível. Por momentos se confundiu com a vanguarda, que chamavam de expressão
corporal, liberação de afeto, não era, era prisão de afeto”. HADDAD, Amir. A censura faz parte do
cotidiano. In: KHÉDE, Sonia Salomão. Censores de pincenê e gravata: dois momentos da censura
teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri, 1981, p. 163.
Capítulo II
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concepção? Caso fosse assim, não seria mesmo algo contraditório termos no Brasil, um
país com sérios problemas econômicos, sociais e sob um regime militar, um teatro
individualista e restrito, “grupos teatrais que realizam um trabalho solitário, lobos da estepe
fechados em salas pequenas, com apresentações para 10, 12 ou apenas para um
espectador”?
137
Não é apenas ele que levanta estas questões colocando em xeque a real dimensão
e significado daquele tipo de teatro que estava sendo feito no país. Um exemplo
emblemático de um homem de teatro que se preocupou com o advento do
“experimentalismo” foi Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, que também buscou em seus
trabalhos e em suas discussões demonstrar os limites e os perigos da nova cena “radical”.
Mesmo não tendo certezas absolutas, ele não abriu mão de seus referenciais. Pelo
contrário, buscou demonstrar o seu posicionamento e as razões de sua contrariedade. No
livro “Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo”, Rosangela Patriota apresenta
os conflitos que o dramaturgo enfrentou nos anos 60 e 70:
Embora sua dramaturgia contivesse as marcas da dúvida e da sensação de
impotência diante das situações vivenciadas, o autor, estrategicamente,
não as tornou públicas. Ao contrário, procurou responder às contestações
feitos pelo jornalista Luiz Carlos Maciel, nas mais diferentes
oportunidades. Alertou para a necessidade de a “classe teatral” se “unir”
para continuar existindo cultural e socialmente. Tornava-se uma opção
política e profissional, de sua parte, conquistar espaços significativos no
mercado de bens culturais. Para tanto, a produção artística deveria ser
feita com base em temas e propostas estéticas que possibilitassem a
identificação do público com este trabalho. A partir deste
encaminhamento, pôs em dúvida as “experiências de vanguarda”, pelo
fato de elas limitarem a esfera de ação político-social de suas
proposições. No entanto, a “resistência democrática” deveria dar
respostas em vários níveis. Entre eles, era preciso criticar a opção política
que localizava na “luta armada” a única atitude eficaz contra o
recrudescimento dos governos militares.
138
É interessante perfil de Vianinha apresentado por Patriota. Demonstra o grau de
complexidade desta disputa. Por um lado, o dramaturgo colocava em suas peças dilemas
sobre o melhor caminho a ser seguido pelo teatro e pela sociedade brasileira naquele
instante. Por outro, “publicamente”, não os tornava públicos. Optou por um caminho que o
permitisse ganhar terreno nos mais diversos campos de difusão cultural e, principalmente,
137
PEIXOTO, Fernando. Teatro brasileiro, experiências. A saída, onde está a saída? Jornal Opinião,
17/12/1973, p. 19.
138
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999,
p. 152-153.
Capítulo II
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tentar aglutinar as diferentes concepções de arte e de política numa frente oposicionista
contra a ditadura militar.
139
Mas, de um ponto ele não abria mão: a questão do contato e da
ampliação numérica e qualitativa do público que assistia teatro no Brasil. Estas
experiências “vanguardistas”, na maioria das vezes, assustavam e impeliam os
espectadores, causando estranheza em relação ao que estava sendo feito, principalmente
quando isto se tornava radical e cada vez mais hermético.
140
Bernard Dort também fazia semelhante alerta ao afirmar categoricamente que
estes grupos: “Esvaziam o político muito mais do que o questionam. O teatro-choque é um
teatro de auto-satisfação”.
141
Discordava da proposição “teatro é vida”, muitas vezes
propalada pelos artistas ligados à estas tendências e, mais uma vez, utilizando o
pensamento brechtiano, assegurando que o dramaturgo alemão “[...] manteve e mesmo
aprofundou esta distinção: teatro não é vida; o teatro apenas reproduz, representa a vida,
não se confunde com ela”.
142
Por fim, o crítico francês estabelecia o seguinte entendimento
sobre o papel do teatro: “O teatro é essencialmente mediação – mediação com vistas a uma
ativação ao espectador”.
143
Em seu livro “A Ideologia da Estéticao crítico literário inglês Terry Eagleton
faz, também, uma espécie de balanço das pretensões e das tentativas de “destruição”
(quase sempre infundadas) no campo da cultura em geral, da tendência posteriormente
139
Em seu emblemático texto de 1968, “Um pouco de pessedismo não faz mal a ninguém”, Vianinha
apontava a necessidade de um frente de resistência no teatro brasileiro, procurando aplacar um pouco as
divergências deste setor artístico e prol de um ideal comum: “Não estamos querendo dizer com isso que,
de agora em diante, a classe teatral deve viver num mar de rosas. Claro, as posições estéticas devem ser
afirmadas, aprofundadas, defendidas, mantidas na sua independência; porém reconhecendo, proclamando,
defendendo, precisando das conquistas estéticas alcançadas no outro setor. A luta pela vanguarda não é
uma corrida. Me parece que vanguarda é ser expressão de todos que, de uma ou outra maneira, almejam
determinadas e decisivas conquistas a cada determinado momento. A noção de luta entre um teatro de
“esquerda”, um teatro “esteticista” e um teatro “comercial”, no Brasil de hoje, com o homem de teatro
esmagado, quase impotente e revoltado, é absurda”. VIANNA FILHO, Oduvaldo. Um pouco de
pessedismo não faz mal a ninguém. In: PEIXOTO, Fernando. (Org.). Vianinha Teatro, televisão e
política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 124.
140
No mesmo texto, Vianinha ao defender um teatro profissional, questiona as críticas oriundas dos grupos
“experimentais” e “alternativos”: Ninguém aqui está formulando posição contrária à experimentação. “O
que não podemos é tomar a posição de fazer do teatro brasileiro um imenso laboratório, desligado de suas
condições comerciais, de seus atrativos para o público. Como se fosse melhor não existir o que já existe,
para não começar do começo. O teatro brasileiro não é um agrupamento neurótico cuja saída é uma
imensa psicanálise de grupo, um mea culpa gera e orfeônico; é um teatro profissional que cumpre
profissionalmente a indescritível tarefa de montar de 80 a 100 espetáculos por ano no Rio e em São Paulo
sem auxílio praticamente nenhum”. Ibid., p. 124-125.
141
DORT, Bernard. O teatro e sua realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977, p. 399.
142
Ibid., p. 326.
143
Ibid.
Capítulo II
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82
denominada de “pós-moderna”. Apesar do impacto e das polêmicas, Eagleton apresenta as
fragilidades destas ao apresentar a seguinte análise que faz no início da década de 1990:
O pós-modernismo tem sido audacioso no questionamento das
concepções tradicionais de verdade, e seu ceticismo frente às pretensões
de uma verdade absoluta e monológica tem produzido efeitos radicais
genuínos. Ao mesmo tempo, essa corrente tem mostrado uma tendência
crônica a caricaturar as noções de verdade produzidas por seus
adversários, criando alvos de palha de conhecimento transcendentalmente
desinteressado para ter o prazer de destruí-los ritualmente. Uma das
armadilhas ideológicas poderosas do humanismo liberal tem sido a de
assegurar uma relação supostamente intrínseca entre a verdade e o
desinteresse, e é importante que os radicais a critiquem. A não ser que
tenhamos interesses de algum tipo, não teríamos por que nos importar em
descobrir qualquer coisa. Mas é simples demais imaginar que todas as
ideologias dominantes operem necessariamente com conceitos de verdade
absolutos e auto-idênticos, que um toque de textualidade, de
desconstrução ou ironia auto-reflexiva possa desmontar. Uma oposição
assim simplista ignora a complexidade própria dessas ideologias, que são
bastante capazes, de vez em quando, de incluir a ironia e a auto-reflexão
entre suas armas.
144
Podemos pensar sobre estas questões em relação às próprias opiniões que Peixoto
apresentava no jornal Opinião. As suas críticas advêm da tentativa de demonstrar as
conseqüências que aquele tipo de cena poderia representar para o teatro brasileiro em geral,
ligado à conscientização e, a partir daí, à transformação da sociedade por meio de homens
“conscientes”. Ao pensar “brechtianamente” a desconstrução que esta cena “alternativa” e
“experimental” tentava imprimir no panorama teatral brasileiro, esta acabava parecendo
infundada e superficial.
145
As críticas escritas por ele são expressões deste seu embate:
simultaneamente demonstra o valor de suas propostas e de suas idéias, aprofundando-as na
medida do possível da maneira mais coerente possível e, ao mesmo tempo, aponta as falhas
e as contradições de seus rivais.
De toda maneira, na continuidade da discussão sobre os paradigmas
“grotowskianos”, Peixoto reconhece a contemporaneidade e a validade desta aproximação
144
EAGLETON, Terry. A ideologia da estética. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1993, p. 273.
145
Numa debate com a participação de Fernando Peixoto, Chico Buarque e Paulo Pontes sobre os alcances e
os limites da encenação de Gota D’Água (de autoria dos dois últimos) na perspectiva “nacional-popular”
há a seguinte colocação de Paulo Pontes sobre a necessidade de superar esta “cena alternativa”: “[...] Mas
para quem está marginalizado do progresso, da civilização, do bem estar, mesmo a razão mais estreita é
de profunda eficácia para se aprender onde está. O povo precisa da razão como uma lâmina. Qualquer
teatro popular tem de ser um teatro fundado na possibilidade de se aprender o mundo com clareza. [...] É
preciso ter fé na linguagem organizada, na sua possibilidade de compreender o mundo. O quadro é
complexo e não é mais com dois e dois são quatro que você compreende as coisas. Mas ao invés de negar
a razão precisa é descobrir uma razão mais complexa, uma linguagem mais rica”. PEIXOTO, Fernando.
Subúrbio e poesia. Jornal Movimento, 02/02/1976, [s/p].
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83
das “camadas mais reprimidas” do indivíduo, em seus aspectos mais incongruentes,
secretas e ligadas ao tempo presente. Mas, a sua aplicabilidade numa realidade como a
brasileira passa por uma necessidade de re-apropriação. Ao contrário da simples
transposição, deslocada, sem crítica e sem reflexão, Peixoto, por meio da “dialética”,
aponta uma possibilidade de como conduzir este processo:
Mas um trabalho de Grotowski no Brasil pode ter um significado cultural
de extrema importância, desde que seja cautelosa e “antropofagicamente”
digerido. Mesmo que ele nos venha falar num “teatro pobre”, resultado de
sua opção de linguagem estética, quando nós teremos que lhe falar de um
“teatro pobre”, resultado de uma verdade sócio–cultural inseparável de
nosso cotidiano de vida e produção artística. Precisamos de um teatro de
comunicação histórica e de reflexão crítica, mas não razão para não
aproveitar um confronto polêmico com uma proposta de comunhão
visivelmente marcada por uma posição próxima do místico. E ainda que
seja quase impossível separar o significado do intenso treinamento físico
do corpo e da voz do ator, proposto por Grotowski, de seu irrecusável
significado ideológico, também neste sentido é possível aproveitar sua
estadia entre nós para um enriquecimento mais consistente de nossos
próprios e incertos caminhos de cultura.
146
Ao utilizar o termo “antropofagicamente”, Peixoto remete diretamente à
“antropofagia oswaldiana” da “Geração de 22”.
147
Basicamente, seria o apreender em sua
totalidade o “elemento externo” à nossa realidade, no caso a experiência “grotowskiana”,
para num momento posterior utilizar dela apenas o necessário, o interessante e o possível.
Não como negar as diferenças básicas que existem entre um “teatro pobre” como opção
e um “teatro pobre” como situação, como bem salienta. Por isso, existem elementos que
devem ser “devorados” e “digeridos”, mas sem prejuízo ao compromisso com a realidade.
Neste caso, obrigatoriamente deveria se enfrentar a questão da preparação integral do ator
e a do aprofundamento de sua realidade. De toda maneira, esta forma de encenação
assinalava uma possibilidade de um maior conhecimento do homem contemporâneo.
Tarefa essa que Peixoto tinha uma preocupação especial.
146
PEIXOTO, Fernando. Grotowski: teatro ou terapia? Jornal Opinão, 15/07/1974, p. 13.
147
[...] A síntese antiilusionista deságua numa estética popular na qual as categorias do bom e maus gosto,
do impuro e do puro desaparecem, descartando-se as preocupações psicológicas, resultando numa visão
política do homem brasileiro e na recriação poética da realidade em que vive. Nessa realidade, os
componentes não se harmonizam, mas, ao contrário, conservam suas características básicas, travando-se
um diálogo que se torna altamente produtivo. Assim, quando nossos índios devoraram (literalmente) o
Bispo Dom Pero Fernandes Sardinha, teriam dado o primeiro passo para essa festa anárquica e
debochada”. FRAGA, Eudinyr. Teatro e Antropofagia. In: GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto;
LIMA, Mariângela Alves de. (Orgs). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São
Paulo: Perspectiva / Sesc São Paulo, 2006, p. 33.
Capítulo II
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84
2.4 POR UM NOVO TEATRO BRASILEIRO: A LUTA CONTRA A INEFICÁCIA”,
A INUTILIDADE E A REPETIÇÃO
Dois espetáculos apresentados no Brasil chamaram a atenção de Fernando Peixoto
no ano de 1974: a encenação de Yerma (Federico García Lorca), pela companhia de “Nuria
Espert”, sob direção de Victor Garcia, e encenação de A Gaivota (Anton Tchecov), sob
produção do Teatro Municipal do Rio de Janeiro e dirigido por Jorge Lavelli. Ambos os
diretores, argentinos e radicados na França, tiveram seus trabalhos analisados nas seguintes
críticas publicadas no jornal Opinião: “A ‘Yerma’ de Victor Garcia” (18/03/1974), “O
ventre de ‘Yerma’ e o vôo da ‘Gaivota’ (29/04/1974) e “Duas gaivotas” (31/01/1975).
Mesmo apresentando certas diferenças entre as encenações, as impressões de
Peixoto, de maneira geral, são bastante positivas. Em sua análise ele deixa explícito os
pontos que considera essenciais para um bom espetáculo:
[...] São dois espetáculos totalmente distintos, enquanto estilo e
linguagem e opção nica Mas revelam um ponto em comum: em ambos
os casos o espetáculo resulta de uma reflexão pessoal sobre o texto, nasce
de uma interpretação, certamente discutível, de um universo social e
ideológico. E tudo se traduz, no palco, em termos cênicos. Sem dúvida o
espetáculo de Lavelli é mais orgânico, possui uma elaboração gestual
mais complexa e fascinante, e penetra no texto com mais profundidade
[...], enquanto Garcia limita-se na criação de um universo poético, que
não revela as dimensões do poema trágico de Lorca, mas apreende
unicamente o clima sensual e obsessivo do texto.
148
Ao ressaltar a reflexão complexa e aprofundada de Garcia e Lavelli ao colocarem
os textos em cena, há uma valorização, por parte do crítico, do que podemos chamar de
“conseqüência cênica”, o oposto da gratuidade e do irracionalismo percebido em muitos
espetáculos no país naquele período. Não deixa de ser reveladora as ressalvas que faz sobre
Yerma pelo fato do diretor, Victor Garcia, limitar-se “clima sensual e obsessivo do texto”,
perdendo assim a chance de explorar outras dimensões que o texto oferecia. Mas
demonstra em sua análise o que estes diretores têm em comum:
Nem Garcia nem Lavelli estão preocupados com a realização de um
teatro fundamentado em motivação psicológicas: mas se o problema nem
se coloca para o primeiro, para o segundo a análise psicológica está
transformada e teatralmente pesquisada não hesita em colocar um filho
148
PEIXOTO, Fernando. O ventre de “Yerma” e o vôo da “Gaivota”. Jornal Opinião, 29/04/1974, p. 24.
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85
falando sobre a mãe enquanto assume a posição fetal, assim como não
hesita em fazer o jovem escritor, incapaz de exprimir um universo mais
amplo, incapaz de libertar-se de sua mediocridade, falar enquanto a
volta sobre si mesmo, com os braços presos ao corpo, aprisionado e
impotente, como um animal ferido.
149
A constatação de que ambos não se preocupam apenas e exclusivamente com as
“motivações psicológicas” é algo digno de nota e de apreciação. Quando existe a
preocupação em abordá-las, como no caso de Lavelli, Peixoto nos descreve algumas partes
do espetáculo e do trabalho dos atores que consegue expressar cenicamente a proposta do
diretor neste sentido. Ainda completa com a seguinte afirmação:
[...] Lavelli é um encenador exato, que constrói sua linguagem racional
com precisão e minúcias. Conseguiu de atores pouco habituados a este
tipo de trabalho (o gesto pesa mais, e exprime mais, que a “inspiração” ou
a emoção) um resultado espantoso. Neste sentido, aliás, A Gaivota é um
acontecimento no teatro nacional.
150
Não podemos desconsiderar a opinião acima. Ao colocar A Gaivota como um dos
pontos altos da cena teatral do ano de 1974, Peixoto nos faz perceber a capacidade de
Lavelli em utilizar de maneira criativa e consciente o material, tanto textual como cênico,
não descartando as “novas tendências” que eram uma realidade visível. Explica-se,
assim, a competência de conseguir articulá-las e construir um espetáculo tocante e
inovador.
Na realidade, ao abordarmos com mais atenção as críticas de Fernando Peixoto,
percebemos que ele luta em duas frentes. Como vimos, até então, de um lado ele tenta
compreender, mesmo com ressalvas e desconfiança, a cena “experimental” que surge no
país ligada ao movimento da “contracultura”. De outro, e aqui ele também não economiza
seu poder de fogo, busca desmistificar e contestar o “tradicional”, o “clássico” do teatro
brasileiro. As críticas escritas por ele em relação à dramaturgia de Nelson Rodrigues são
exemplares pela sua postura hostil, justificando sua controvérsia a tudo que soe velho e
conservador, impedindo a continuidade do processo de transformação do teatro brasileiro.
São valiosas pelo conteúdo e pelo teor de seus comentários.
Numa crítica publicada no Opinião no dia 08 de abril de 1974, “Nelson
Rodrigues. O maior poeta dramático do Brasil?”, o título é uma forma direta de
questionamento e de provocação. Peixoto versa sobre o mais recente texto lançado pelo
149
PEIXOTO, Fernando. O ventre de “Yerma” e o vôo da “Gaivota”. Jornal Opinião, 29/04/1974, p. 24.
150
Ibid.
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86
dramaturgo após quase dez anos sem produzir textos para o teatro. Sem dúvida, é um
acontecimento considerável pelo próprio respeito e autoridade que o seu autor, Nelson
Rodrigues, havia alcançado no panorama teatral brasileiro desde a década de 1940, com
a encenação de um de seus textos mais emblemáticos, Vestido de Noiva.
151
A nova peça
intitulada Anti-Nelson Rodrigues é assim descrita por Fernando Peixoto:
O Anti-Nélson Rodrigues é uma fotonovela que repete os chavões
provocativos e irreverentes que o próprio Nélson criou e cultivou em
peças anteriores. É uma inútil tentativa de redescobrir a fórmula do êxito
através do escândalo. Uma estrutura teatral franciscana, uma trama
esquemática que, para utilizar uma expressão do próprio Nélson, tem a
profundidade de um rio que uma formiguinha pode atravessar com a água
na canela. Nada resta do impacto poético e teatral revelado na linguagem
inesperada de suas primeiras tragédias. Nada do vigor metafísico mais
efetivo de um expressionismo surpreendente no panorama literário
brasileiro dos anos 40.
152
Sem dúvidas não é uma crítica elogiosa sobre o trabalho do consagrado
dramaturgo em questão. Ao denominar a peça como uma “fotonovela”, Peixoto critica a
pobreza, a superficialidade e a gratuidade do espetáculo. Um texto repleto de elementos
utilizados em experiências anteriores e que, efetivamente, não tinham mais o impacto e o
vigor que tiveram em seus momentos originais (um mérito que a crítica não deixa de
reconhecer).
153
Ainda, a falta do chamado “cinismo dialético”, a ausência de formas, de
temas instigantes e reveladores sobre o próprio presente são algumas das falhas apontadas.
Mas não são apenas esses os pontos negativos levantados do texto em questão. Na mesma
crítica há, além disso, uma porção de argumentos por parte do crítico na tentativa de
desnudar esta obra:
[...] Diante de seus personagens Nélson se compraz com o prazer
mórbido de desnudar a violência e o pecado de cada um. O Anti-Nelson
151
Vestido de Noiva é uma das peças melhor estudadas do teatro brasileiro. Principalmente quanto ao
aspecto formal. A originalidade de seu ponto de partida (o delírio de uma moribunda), a invenção dos três
planos em que se desenvolve (o da realidade, o da memória e o da alucinação), as possíveis influências do
rádio e do cinema na sua forma incomum, o estonteante malabarismo do autor que jamais se perde nesse
aparente caos, tudo isso foi acentuado, dito e redito pela crítica nacional, que se manifestou sobre a
peça com um entusiasmo e uma abundância que não lhe conhecíamos”. PRADO, Décio de Almeida.
Vestido de Noiva. In: ______. Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo: Perspectiva,
2001, p. 03.
152
PEIXOTO, Fernando. Nélson Rodrigues. O maior poeta dramático do Brasil? Jornal Opinião,
08/04/1974, p. 21.
153
“Nélson Rodrigues começou assim sua carreira teatral, sacudindo os alicerces do vazio e ligando seu
nome ao processo de desenvolvimento cultural do teatro brasileiro. Vestido de Noiva (1943) parecia um
casamento indissolúvel. Neste sentido Nélson precedeu o aparecimento do grupo paulista Teatro
Brasileiro de Comédia (TBC) que correspondia à implantação de um vel cultural superior no teatro
nacional”. Ibid.
Capítulo II
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Capítulo II
87
Rodrigues, neste vel, é a amostragem de um mundo não transformável,
onde vivem animais sórdidos, incapazes de amor, agentes e vítimas do
mal, ridiculamente nostálgicos de uma pureza total. É verdade que
respiram numa sociedade determinada pelo dinheiro. Mas o que os
dilacera, mais que tudo, é o pecado oculto de cada um, sua natureza
metafísica inata.
154
Em sua opinião, a obra de Nelson Rodrigues não valeria mais como “um quadro
expressivo da sociedade ou do ser humano”. Neste sentido, a concepção de “mundo não
transformável” do dramaturgo e sua crença na “natureza metafísica inata” da humanidade
são dois aspectos extremamente problemáticos para Peixoto, que tem de uma visão
diametralmente oposta. Podemos acrescentar mais uma questão posta pelo crítico que
reitera a sua oposição à obra de Rodrigues. Ao citar um depoimento que este deu para um
jornal, Peixoto se admira e fica estupefato frente à visão do dramaturgo sobre o teatro
brasileiro das décadas de 60 e 70: “[...] o teatro brasileiro cretinizado por Marx e Brecht,
passou a ser uma promessa eternamente adiada. Queixou-se, com nostalgia, do tempo em
que os jovens faziam teatro pelo teatro, arte pela arte”.
155
Por mais que a crítica em relação aos “seguidores” de Marx e Brecht seja de
maneira generalizada na fala de Rodrigues, obviamente Fernando Peixoto, por ser um
brechtiano declarado e ligado ao PCB, a sente de maneira peculiar e não o perdoa por isso.
A resposta que a essa opinião não é apenas no nível individual, mas de toda uma
geração política e teatral que estava em ebulição naquele momento e da qual ele fazia
parte. O trecho seguinte é polêmico e discutível, mas tinha sua lógica e correspondência
nesta disputa teatral:
O teatro brasileiro, dramaturgia e espetáculo, evoluiu nos últimos anos,
voltando-se para um confronto direto com a vida real. Tornou-se em seus
melhores momentos, um instrumento de conhecimento do real, de
sondagem das contradições objetivas da sociedade. Foi um processo que
aconteceu sem Nelson Rodrigues, ou mesmo contra ele.
156
na afirmação acima a constatação do distanciamento e da ruptura ocorridos no
final da década de 1950 no teatro brasileiro. Nelson Rodrigues era o passado que de
maneira “reacionária” atacava o presente com concepções anacrônicas e infundadas,
consideradas superficiais e anacrônicas. Querendo ou não, Rodrigues era um clássico,
154
PEIXOTO, Fernado. Nélson Rodrigues. O maior poeta dramático do Brasil? Jornal Opinião,
08/04/1974, p. 21.
155
Ibid.
156
Ibid.
Capítulo II
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Capítulo II
88
mas era o dramaturgo que simplesmente havia passado as últimas duas décadas numa
“torre de marfim” e, por isso mesmo, perdeu o seu valor, como afirma Peixoto, no
processo “evolutivo” ocorrido naqueles anos.
Não há como negar a postura diferenciada de Peixoto diante os críticos em relação
a Nelson Rodrigues. Não em suas críticas o habitual respeito que estamos acostumados
a perceber ao tratar-se do dramaturgo em questão.
157
De toda forma ele reconhece o
impacto que teve os seus primeiros trabalhos, principalmente na questão da linguagem
utilizada e da estética expressionista”, mas é pragmático ao situar a sua importância no
decorrer da segunda metade do século XX. Uma coisa era o tipo de espetáculo realizado
em 1943, numa era anterior ao Teatro Brasileiro de Comédia. Outra coisa, na opinião do
crítico, era a fórmula ser repetida 30 anos depois e querer que fosse algo surpreendente e
que trouxesse alguma contribuição coerente e transformadora.
O crítico Sábato Magaldi, em um texto de 1992, explica de maneira peculiar a
unanimidade artística que Nelson Rodrigues desfrutou durante o período do regime militar
e após a sua morte em 1980:
Sofremos ainda hoje as conseqüências da ditadura militar, sobretudo do
Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, e da insatisfatória
política de cultura dos vários governos. A censura e mais tarde a falta de
verbas dificultaram a montagem dos autores brasileiros. Muitos nomes,
desestimulados pelas circunstâncias desfavoráveis, recolheram-se ao
silêncio. Nesse panorama, pela solidez de sua obra, que não assustava
aos bem-pensantes, Nelson Rodrigues passaria a reinar, quase solitário. A
década de 80 consagrou-o, nos mais diversos quadrantes, e todos os
meses ao menos uma peça de sua autoria freqüenta o cartaz.
158
157
É extremamente interessante uma crítica escrita no ano de 1953 por Décio de Almeida Prado sobre a peça
A Falecida de Nelson Rodrigues. Nela, percebemos que esta unanimidade crítica e artística estava longe
de ser compartilhada por todos os críticos, principalmente entre os contemporâneos do dramaturgo. De
certo modo, podemos até mesmo perceber uma similaridade com as críticas de Fernando Peixoto no que
diz respeito à repetição de temas e a pretensa vontade de chocar o público com coisas relativamente
banais: “A peça deseja chocar-nos por sua audácia, mas causa-nos antes a impressão de ingenuidade de
quem acaba de saber como as crianças nascem e corre a proclamar aos quatro ventos a sua indignada
descoberta, como um desafio à hipocrisia. Haverá em Nelson Rodrigues, cuidadosamente oculto, um
fundo de puritanismo ferido, um desconsolo adolescente perante a crueza da realidade, que necessita
desabafar dizendo em voz alta o que os outros não dizem? Se não, porque essa revolta, esse ar de triunfo,
ao revelar fatos que ninguém desconhece e que não m, efetivamente, a menor importância? A quem
estará desejando punir com a descrição das supostas fraquezas e mazelas humanas? O caso é que ele,
julgando-se o indivíduo mais livre de preconceitos, é, na verdade, o mais preso, o mais tolhido, ligado que
está à necessidade de se afirmar, estética e moralmente, pela oposição, contando o valor de uma obra de
arte pelo grau de mal-estar que provoca nos outros”. PRADO, Décio de Almeida. A Falecida. In: ______.
Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 11.
158
MAGALDI, Sábato. A peça que a vida prega. In: ______. Moderna Dramaturgia Brasileira. São Paulo:
Perspectiva, 1998, p. 40.
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Querendo ou não, a reflexão de Magaldi acaba se encontrando com a de Peixoto
justamente ao afirmar que a dramaturgia rodrigueana em seu início, assustadora e
transgressora para os padrões teatrais brasileiros, estava bem acomodada e aceita pela
crítica e pelo público. Conseqüentemente, não exercia mais nenhuma função
“revolucionária” ou “inovadora”, era um clássico que se repetia; este era o grande perigo.
Além disso, o fato de sua hegemonia e consagração nos palcos ocorrer durante o período
do regime militar e na década de 1980 era emblemático: significava a distância de
Rodrigues em relação às lutas que determinados setores do teatro travavam, onde foram
censurados, perseguidos e muitas vezes obrigados a alterarem os seus caminhos artísticos.
A luta artística e política do crítico contra uma cena “individualista” e
“irracional”, e, de outro lado, contra um teatro “clássico”, “fossilizado” e “conservador”,
não é gratuita. Obviamente, ao demonstrar as contradições e os limites destas
manifestações, a partir de seus pontos de vista e de seus referenciais, pressupõe sua
preocupação em defender e estimular uma outra frente de trabalho artístico que ele buscava
alimentar e fazer crescer: a perspectiva “nacional-popular” ligada aos setores de oposição à
ditadura militar denominados de “resistência democrática”.
Não é uma tarefa simples apreender o real significado, o impacto e a conseqüência
desta opção artística na segunda metade da década de 1970. A questão vai além da censura
e da perseguição por parte dos militares e dos “setores conservadores” da sociedade civil a
esta modalidade do fazer teatral. Como percebemos, este confronto ocorria dentro da
“classe teatral”. Diretores, atores, críticos e dramaturgos, sejam em espetáculos, sejam nas
páginas dos “cadernos de cultura dos jornais, “alternativos” ou da “grande imprensa”,
colocavam à prova os seus valores e seus pressupostos buscando interferir ativamente
nestas discussões sobre os rumos da arte brasileira.
Fernando Peixoto estava inserido neste redemoinho de idéias e de concepções de
mundo. Em suas críticas percebemos todo um processo de luta para a construção de uma
manifestação teatral que assumisse de maneira integral o seu papel na transformação do
homem e, conseqüentemente, da sociedade. Neste momento, surgem alguns desafios
cruciais para estes artistas: como fazer um teatro que chegue ao “povo”? Que seja
“sentido”, compreendido” e “feito” por ele? E que, principalmente, o “transforme” de
maneira consciente e crítica?
No jornal Opinião, Fernando Peixoto faz considerações relevantes na análise e na
definição desta forma popular de fazer teatro. A figura do dramaturgo e do escritor Ariano
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Suassuna é extremamente emblemática no cenário teatral brasileiro, especialmente pelo
“caráter popular” existente em seus trabalhos e por isso mesmo o interesse particular do
crítico em analisar a sua obra. O impacto da encenação do Auto da Compadecida no Rio de
Janeiro no ano de 1957 é assim descrita por Peixoto, rememorando o fato:
Lembro a noite de estréia: uma platéia perplexa, a grande maioria
fascinada pelo que parecia ser o nascimento de um verdadeiro teatro
popular nacional, uma minoria até revoltada diante do vigor e da aparente
falta de respeito de uma poética popular que vigorosamente destruía a
ilusão de criar um teatro brasileiro a partir da colonizada aculturação de
textos estrangeiros.
159
O impacto advindo das qualidades formais e dramáticas presentes no texto e, sem
dúvidas, de seu sucesso tanto no Brasil como no exterior, acabou por fixar um “parâmetro
inalienável no teatro nacional”.
160
O potencial existente nesta forma de escrever e de fazer
teatro criou uma expectativa muito grande em relação às próximas peças do autor. A
própria definição de Peixoto sobre a obra de Suassuna demonstra bem o trabalho
aprofundado de pesquisa e de reflexão do dramaturgo que o permitiu chegar a uma ntese
consciente, coerente e habilmente elaborada:
O teatro de Suassuna se debate entre o realismo e a imaginação, entre a
verdade social e a verdade religiosa. E procura ser uma síntese entre a
assimilação crítica de uma cultura clássica, sobretudo a comédia greco-
latina e os clássicos do teatro espanhol e português, e uma cultura popular
brasileira autêntica, o romanceiro nordestino.
161
Do mesmo modo, Magaldi, dez anos antes da crítica de Peixoto, em relação ao
espetáculo A Pena e a Lei fazia uma reflexão sobre a obra de Ariano Suassuna destacando
o encontro entre o erudito e o popular, o tradicional com o que há de mais novo:
A Pena e a Lei é uma súmula do teatro. Síntese de fontes populares e de
exigente inspiração erudita, Commedia dell’Arte e auto sacramental,
sátira de costumes e arguta mensagem teológica, divertimento nordestino
e proposição de alcance genérico, herança de valores tradicionais e saída
para uma vigorosa dramaturgia coletiva, história concreta e vôo para
regiões abstratas, mamulengo e metafísica, a peça inscreve-se, sem favor,
na vanguarda incontestável do palco moderno. Honra seu autor e a
inventividade da literatura dramática brasileira.
162
159
PEIXOTO, Fernando. Fábulas Nordestinas. Jornal Opinião, 11/03/1974, p. 19.
160
Ibid.
161
Ibid.
162
MAGALDI, Sábato. A Pena e a Lei: Auto da Esperança. In: ______. Moderna Dramaturgia Brasileira.
São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 75.
Capítulo II
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91
Aqui não uma distância muito grande entre as análises dos dois críticos sobre
Ariano Suassuna, mesmo tratando de peças e de tempos diferentes. Ambos apontam para a
riqueza e para a inventividade existentes em sua obra. Se Magaldi acredita estar diante de
uma peça de “vanguarda”, Peixoto, mais reservado, a possibilidade de uma
comunicação mais dinâmica e expressiva entre palco e platéia, além da capacidade nata de
alcançar efetivamente a sensibilidade das “classes populares”. Mantendo a sua forma
crítica diferenciada, indo contra o óbvio e o “clássico”, Peixoto aponta os limites da obra
de Suassuna ao analisar outra peça sua, neste caso, O Casamento Suspeitoso:
Como se autodefine, através de um personagem, no final de O Casamento
Suspeitoso, Suassuna é um moralista incorrigível. E seu teatro traduz uma
visão religiosa, católica, mas nem por isso isenta de indagação e crítica a
uma estrutura social fechada. Condenar comportamentos “eternos” e
“universais” do homem, sem identificá-los com uma situação histórica
determinada, é o objetivo e a limitada conclusão de sua apreensão da
realidade. O que não invalida, mas diminui o vigor popular e polêmico de
suas obras.
163
O trecho acima nos remete à crítica que Peixoto faz ao que ele chama de “mundo
não transformável” que transparece nos textos de Ariano Suassuna. Ao apontar nos textos
do dramaturgo e escritor paraibano a existência de personagens com características
“eternas” e “universais”, descolados da história e do mundo de qual fazem parte, ele
acabava questionando mais um “clássico” do teatro brasileiro. A análise do homem em seu
tempo é um viés, na construção da obra artística, constantemente assinalado por Peixoto
como necessário e urgente. A superação do “campo vazio da metafísica” (metafísica aqui
compreendida como constância e homogeneidade nas ações e na vida dos homens,
independentemente do lugar e do tempo em que vivem) permite uma nova concepção de
mundo, livre de qualquer “ilusionismo”, de “falso moralismo” e, principalmente, aberto
para a possibilidade de transformar o homem e o mundo onde vivemos. A ausência destas
idéias nas obras de Suassuna tinha conseqüências consideráveis e simultaneamente
desfavoráveis; era mais um entrave para a real emancipação das “classes populares” a
partir do momento em que permaneciam com uma determinada visão de mundo,
cristalizada, sem crítica e sem contestação.
Ao tratarmos mais uma vez da “reportagem-informação” “Teatro brasileiro,
experiências. A saída, onde está a saída?”, na qual Fernando Peixoto descreve e analisa
uma série de manifestações teatrais do período, principalmente ligadas ao
163
PEIXOTO, Fernando. Fábulas Nordestinas. Jornal Opinião, 11/03/1974, p. 19.
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“experimentalismo” e à “vanguarda”, é interessante a relação do último diretor analisado
nesta crítica, o pernambucano Luiz Mendonça, com Ariano Suassuna.
Não é por acaso que o espetáculo dirigido por Mendonça, As Incelenças, baseado
em duas peças do dramaturgo, também pernambucano, Luiz Marinho, intituladas A
Incelença e A Afilhada de N. S. da Conceição, fecha a “reportagem-informação”.
Percebemos que Peixoto tenta demonstrar outra possibilidade artística, mais voltada à
realidade brasileira no sentido de buscar inspiração e elementos para a produção de um
“teatro vinculado às raízes populares”:
164
[...] são textos simples, diretos, que captam o linguajar e a vida do povo,
suas crenças, seus mitos, fantasias, danças, rezas. O espetáculo é ágil,
vivo, mas às vezes desarticulado. Nem sempre é possível saber onde está
o centro da ação. Falta clareza de encenação ou de disciplina dos
intérpretes? Mas Mendonça consegue captar a sensibilidade popular de
forma quase direta. Seu espetáculo é o depoimento de quem acredita no
povo, em sua simplicidade. Realiza um teatro vinculado às suas
experiências anteriores e procura manter viva a chama do teatro
popular.
165
As críticas negativas de Peixoto em relação ao espetáculo parecem ofuscadas
frente às qualidades reconhecidas por ele. A simplicidade, o caráter direto da apresentação
e a utilização de elementos do cotidiano popular são os grandes méritos do dramaturgo e
do encenador. Ao colocar como o valor do espetáculo a capacidade de apreensão da
“sensibilidade” e da “simplicidade” popular, percebemos uma concepção quase ideal deste
tipo de teatro, que no caso, seria detentor de uma “pureza” e uma “sinceridade”
impossíveis de serem repetidas ou de serem transpostas em outra situação.
Mas este debate em torno deste tipo de teatro não se encerra apenas no
reconhecimento do caráter “popular” destas encenações. Uma edição especial do Opinião
do dia 29 de julho de 1974, contendo um entrevista concedida à Luiz Werneck Vianna pelo
dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, antes de seu falecimento, e uma resenha crítica de
Peixoto sobre o livro “Teatro del Oprimido y Otras Poéticas Políticas” de Augusto Boal,
ainda lançado apenas na Argentina, são importantes referências para a compreensão da
concepção e do projeto de Fernando Peixoto sobre a produção teatral brasileira daquele
momento.
164
PEIXOTO, Fernando. Teatro brasileiro, experiências. A saída, onde está a saída? Jornal Opinião,
17/12/1973, p. 21.
165
Ibid.
Capítulo II
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93
Mesmo escrevendo apenas o prefácio da entrevista,
166
Peixoto faz um pequeno
histórico da trajetória artística de Vianinha em vários momentos da recente história do
teatro brasileiro. Ressalta o seu trabalho do Teatro de Arena no final dos anos 50 na
superação de um teatro “europeizante” do TBC, a sua contribuição como um dos artistas
mais combativos do Centro Popular de Cultura e a importância de alguns textos seus como
Corpo a Corpo (1971) e Rasga Coração (1974), onde o crítico afirma que este último
estrearia no teatro carioca no mês de outubro.
167
Se um tema constante na entrevista concedida por Vianinha é o impacto da
“vanguarda” na cena teatral do país, ligadas principalmente ao “experimentalismo” e às
formas “alternativas” de expressão, anteriormente analisadas por Peixoto no Opinião em
seu texto “Teatro Brasileiro, experiências...”. Vianinha salienta a questão do
“empobrecimento” e da atitude “escapista” existente nestes espetáculos. Mas, sabe das
dificuldades de simplesmente negar esta “nova” possibilidade artística que surgia nos
palcos. Sua resposta diante deste desafio é um exemplo das várias possibilidades em
relação ao dilema de incorporar ou não estas posturas:
Julgo que o momento atual requer a absorção de novas formas, muitas
delas propostas pela vanguarda. Segundo imagino, em arte é necessário
aproveitar todos os recursos no que têm de bom. Não posso descartar, em
nome da luta pela afirmação cultural e pelo descobrimento da consciência
social brasileira, qualquer contribuição, venha de onde vier. Para isso,
166
Fernando Peixoto, ao comentar sobre a entrevista de Vianinha para o Opinião, revela também as
condições da publicação da mesma e sobre a necessidade de usar o pseudônimo “Andrea Sarti”: “Que na
verdade começou em 16 de julho de 1974, quando eu estava de cama, inventando recursos para suportar a
monotonia de uma hepatite, e a televisão interrompeu sua programação para dar a notícia: Vianinha
estava morto. Acompanhei o enterro pelo vídeo. Escrevi uma matéria rápida (nem guardei cópia),
imediatamente enviada para o semanário Opnião. Acabou sendo publicada drasticamente reduzida.
Restou apenas uma “nota de abertura”, quase o registro de falecimento, porque o Opinião ganhou,
inesperadamente, uma matéria infinitamente mais valiosa: uma entrevista, realizada poucos meses antes
de Vianinha viajar para os Estados Unidos em sua última esperança de vencer o câncer (na ocasião, ele
assinalou a ironia histórica: caberia aos americanos a hipótese de salvá-lo...). A entrevista foi feita por
Luís Werneck Vianna e acabou sendo editada como se tivesse sido feita por nós dois (na época, eu era
obrigado, para não ter tudo que escrevesse sumariamente vetado pela censura à imprensa, a assinar
‘Andréa Sarti’)”. PEIXOTO, Fernando. Cinco encontros com Vianninha. In: ______. Vianinha Teatro,
televisão e política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 11.
167
A peça, imediatamente censurada, foi encenada apenas cinco anos depois em 1979. Sobre o processo de
publicação e encenação de Rasga Coração, Patriota faz uma interessante análise sobre os caminhos que
percorreu e sobre as expectativas da classe teatral em geral em torno da liberação da mesma: “Para além
das qualidades do texto e do arbítrio do qual fora vítima, no que se refere a seu autor, estava-se perante
alguém que havia consolidado uma obra que se tornara pública e que poderia servir a interpretações
particulares, que a sua morte prematura não comprometeria o seu passado a partir de ações futuras. Em
outros termos, Vianinha não poderia externar a sua opinião sobre a redemocratização, e a condução do
processo em 1979. Contudo, ele se constituiu em sujeito social por sua obra e por sua trajetória,
carregadas de significados, de ações e intenções, que foram resgatadas, atualizadas e reinterpretadas”.
PATRIOTA, Rosangela. A crítica de um teatro crítico. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 93.
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torna-se necessário instrumentalizar o teatro com meios eficazes para dar
conta do complexo contraditório do real o que implica numa poética
ainda por elaborar, mas que não dispensará o passado recente e mesmo
remoto. [...] Os artistas participantes, podemos reivindicar estar e ter
estado sempre na vanguarda. Acredito que além da vanguarda formal,
que transfigura o estético em mundo real, persiste uma outra, na qual me
incluo, que intensifica a autonomia da arte extremamente para ligá-la
profundamente à realidade.
168
A resposta de Vianinha é emblemática ao nos remetermos para as colocações que
Fernando Peixoto fazia nas páginas do jornal Opinião, onde ele demonstra a possibilidade
de análise em relação às contribuições desta “nova” geração. Além disso, a parte onde o
dramaturgo afirma ser parte de uma “vanguarda” é uma das afirmações mais simbólicas.
Ele busca valorizar a própria ação que exercia dentro do teatro brasileiro na década de
1970.
169
Mas ao contrário da “outra” vanguarda, a ruptura com o passado não se dava de
maneira gratuita, pelo simples prazer de contrariar, de ser diferente. O teatro é uma arte,
acima de tudo, histórica, não tinha como descartar toda uma tradição que ainda poderia ser
útil à “nova” geração. A “vanguarda”, para Vianna, também estava em buscar uma arte
responsável, coletiva e “engajada” pela transformação do homem e da sociedade, em
participar ativamente do presente histórico e em superar as contradições existentes na
realidade.
170
168
PEIXOTO, Fernando. Oduvaldo Viana Filho (1936 – 1974). Jornal Opinião, 29/07/1974, p. 14.
169
“Vianinha proclamou, mais de uma vez, a sua recusa da vanguarda, para ele sinônimo de arte importada e
passível de crítica por fechar-se em formalismo. Entende-se que essa posição fosse menos a de um
intelectual estreito que a de um militante engajado em nunca perder de vista o conteúdo ideológico.
Porque, como se sabe, vanguarda e vanguarda, e no teatro Maiakóvski e Brecht, entre outros,
representaram a vanguarda formal e política. Vianinha, por algumas declarações e atitudes como a da
recusa de assistir no Stúdio São Pedro à excelente montagem de sua peça A Longa Noite de Cristal, que
teria traído o realismo em benefício de uma discutível postura vanguardista -, poderia confundir-se, para
observadores superficiais, com um mero acadêmico, sem criatividade própria. Basta ver a liberdade
formal utilizada em Papa Highirte para concluir que ele foi um dramaturgo moderno, sensível aos mais
avançados meios expressivos de seu tempo”. MAGALDI, Sábato. Papa Highirte. In: ______. Moderna
Dramaturgia Brasileira. São Paulo: Perspectiva, 1998, p. 171.
170
No texto “A ação dramática como categoria estética”, Vianinha demonstra sua contrariedade em relação
ao “experimentalismo”: “O teatro brasileiro de alguns anos para inverteu essas tendências. Perdeu sua
aspiração de participar na criação e fixação de um novo projeto. Preferiu mergulhar na oceanidade, no
mundo desagrupado, atomizado no mundo sem saída, sem necessidades estruturais de reorganização
no mundo da libertação interior da pressão real, a terra da individuação. Um teatro que promove uma
verdade interiorizada. Aparentemente, estão neste teatro de hoje as representações vigorosas de um
projeto novo indicadores exigentes de novos comportamentos, relacionamentos, aferições etc.
Afirmamos que não existe novo projeto porque no momento em que eu deixo à impulsividade, ao
instinto, à verdade interiorizada imanente em cada um de nós o encontro de um novo mundo, no momento
em que cindo o homem em consciente e inconsciente – nada mais estou fazendo que pedir que a
sociedade deixe-se tomar exatamente pelo mundo da a-historicidade, pelas representações mais
profundamente arraigadas de insociabilidade. Estou permitindo as representações de libertação as mais
subcutâneas possíveis, que virão à tona como espelho da história tal como ela é e não tal como ser
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Com uma postura sempre combativa e, muitas vezes polêmica, Vianinha não se
furtava de “cobrar dos diretores a encenação correta’ dos textos, divergir, publicamente,
de interpretações diferenciadas de seus trabalho, e, sobretudo, reafirmar a primazia da
interpretação do dramaturgo sobre a do diretor”.
171
Além desta fidelidade que exigia como
dramaturgo em sua comunicação com o público,
172
a defesa do chamado “Teatro de
Autor”, Rosangela Patriota, acrescenta mais um tópico que diz respeito à preocupação dele
em resgatar por meio do teatro as “[...] experiências de camadas populares da sociedade
brasileira, tanto urbanas quanto rurais”.
173
Por fim, apresenta a marca de sua trajetória nos
textos e nos palcos brasileiros:
No horizonte destas perspectivas, Vianinha protagonizou embates em
prol de um teatro brasileiro, que deveria apresentar-se como resposta a
uma concepção “alienada” de teatro. Esta “alienação” teatral deve ser
interpretada como sinônimo de encenação de autores estrangeiros pelo
TBC. Para tanto, conclamou artistas e críticos a se engajarem no projeto
de construção de um “teatro nacional”. Buscou estabelecer um coletivo
em suas proposições e, nesse sentido, parece que foi atendido, tanto mais
que os críticos teatrais conclamaram o público a prestigiar o Arena e a
sua proposta de trabalho, construída em torno da busca de uma nova
dramaturgia e de um novo teatro.
174
Seguindo a trajetória de Vianinha apresentada acima, sobre a luta para a formação
de um “teatro nacional” ligado às aspirações “coletivas” e “populares”, a iniciativa do
“Teatro de Arena” (que, como dito anteriormente, Vianinha fez parte ativamente) é uma
das mais conseqüentes do período. As orientações do diretor, ator e teórico do teatro
Augusto Boal, fundador e um dos principais diretores desta proposta, são referenciais.
humano já pode projetá-la. As representações não são produzidas pelo tenaz estudo das condições de luta,
pela pertinácia e pela astúcia, não exigem o prazer e a dor do autodomínio”. VIANNA FILHO, Oduvaldo.
A ação dramática como categoria estética. PEIXOTO, Fernando. (Org.). Vianinha Teatro, televisão e
política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 138-139.
171
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999,
p. 85.
172
Vianinha não economiza as críticas em relação à encenação de Celso Nunes no ano de 1970 de “A longa
noite de Cristal”, principalmente em seu aspecto “irracional”: “[...] A tendência da encenação para o
espetáculo de invenção, para o ritual, não me abalariam, se não houvesse nesta tendência um irrefreável
apelo ao voluntarismo, que é a morte do rigor e da assiduidade na luta pela transformação da realidade.
Há um novo teatro que aparece à procura da comunicação infraverbal, sensorial. A palavra gasta,
inutilizada pela massa de meios de comunicação. O pensamento lógico-utilitário reflete o
empobrecimento das forças criativas do homem e as reprime. Daí então um teatro imaginativo, não
contínuo, não lógico-conceitual, mas denso em informações e apreendimentos inconscientes,
subjacentes”. VIANNA FILHO, Oduvaldo. Análise de uma divergência (uma entrevista). In: PEIXOTO,
1983, op. cit., p. 132.
173
Ibid., p. 86.
174
Ibid., p. 85.
Capítulo II
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96
Nelas a demonstração lógica e prática de um fazer teatral organicamente ligado ao
tempo, às pessoas e ao lugar, preocupado com o homem, seus conflitos e seus dilemas.
Fernando Peixoto percebe no pensamento e na prática de Boal uma saída
consciente e bem fundamentada que poderia contrapor-se tanto às correntes
“vanguardistas” como às “tradicionais”. Exigiria dos contendores uma reflexão mais
concreta sobre os problemas e sobre as possibilidades do teatro brasileiro naquele
momento histórico. O trecho a seguir demonstra este conflito. Novamente, uma crítica
aberta e direcionada, sem rodeios e metáforas:
[...] seu livro e seu pensamento podem ser discutidos em muitos pontos
(muitas vezes é necessário errar para depois acertar). Mas constituem um
estímulo fascinante para quem compreende que o teatro brasileiro atual,
salvo raríssimas e quase desconhecidas experiências isoladas, não passa
de uma atividade inócua e ineficaz. Ou entregue a códigos inúteis.
Sobretudo porque repousa em caminhos trilhados, recusando a
pesquisa e a revisão de conceitos, preferindo a omissão e a acomodação,
insistindo numa linguagem gasta, num método de análise que não
consegue senão constituir-se no veículo de divulgação de idéias velhas,
problemas menores. Seus pontos de partida e de chegada já são
conhecidos. E se mantém cada vez mais distante do povo.
175
Sem afirmar a infalibilidade das propostas de Boal para o teatro, é óbvio que elas
são preferíveis à “inocuidade”, a “ineficácia”, a “inutilidade” e a “repetição” existente em
muitos espetáculos até então. Novamente, a crítica tanto ao “experimentalismo” como ao
“conservadorismo” existente nos palcos do país. Peixoto, então, busca aproximar esta arte
do que ele chama de “povo”, objetivo final de uma arte que se diz transformadora. Além
disso, a irracionalidade individual e abstrata não conseguia, em sua opinião, responder à
angústia e à necessidade real da população pelo fato de utilizar códigos restritos,
excessivamente abstratos e sem repercussão com a realidade vivida por grande parte da
população brasileira.
A resposta reside numa outra concepção de mundo e esta, para Peixoto, se encaixa
mais em seus valores e em seus limites como artista e crítico. Por isso mesmo a sua
descrição entusiasmada e idealizada das propostas de Augusto Boal em relação às
conseqüências e às transformações que a produção de uma arte consciente e engajada
poderia causar:
Para Boal o teatro deve constituir num ensaio para a libertação, arma de
descolonização. Ele afirma que o espectador é menos que um homem. E
que é preciso humanizá-lo e restituir-lhe a capacidade de ação, em toda
175
PEIXOTO, Fernando. Boal y los oprimidos. Jornal Opinião, 11/04/1975, p. 23.
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97
sua plenitude. Deve vir a ser um sujeito, não um simples objeto inerte
diante de um espetáculo fechado em si mesmo, que traz em si sua
verdade absoluta e definitiva. O espectador deve tornar-se um ator. Em
igualdade de condições com os intérpretes, que também devem tornar-se
espectadores. O espectador do teatro popular que ele propõe e procura
realizar deverá deixar de ser uma vítima passiva das imagens acabadas
que lhe são impostas pelo teatro institucionalizado.
176
Não são casuais e nem irrelevantes as expectativas e as possibilidades descritas
acima. um peso muito grande em cada termo utilizado por Peixoto para demonstrar o
poder da arte, especialmente de uma arte que tenha objetivos claros e que se esforça para
alcançá-los. Há, no fazer teatral de Boal, a tentativa de emancipação do espectador, do
passivo para o ativo, do que assiste imobilizado e do que entra em cena.
177
O contrário
também ocorre a partir do momento que os atores se tornam espectadores e buscam
apreender os anseios de todos. Convém assinalar que estes anseios não são rompantes
fechados e subjetivos: eles tratam das necessidades reais, políticas, econômicas e culturais.
Rompe a barreira imaginária que separa artista e público. Resumindo, todos contribuem
para o espetáculo. Por isso mesmo, tão expressivo e tão revelador dos desafios que o teatro
brasileiro, na opinião de Peixoto, necessitava enfrentar.
176
PEIXOTO, Fernando. Boal y los oprimidos. Jornal Opinião, 11/04/1975, p. 23.
177
“No início dos anos de 1970, Augusto Boal, de acordo com a ótica estabelecida em seu Teatro do
Oprimido, propõe uma classificação conceitual para teatro popular, opondo-o não mais ao erudito, mas
sim ao não-popular, dividindo-o em três grandes grupos: 1) Teatro do povo e para o povo (de
propaganda; didático; cultural); 2) Teatro de perspectiva popular, mas para outro destinatário (de
conteúdo implícito; de conteúdo explícito); 3) Teatro de perspectiva antipopular, cujo destinatário é o
povo (de caráter antipopular explícito; de caráter antipopular implícito). Enquadram-se na primeira
categoria os espetáculos produzidos pelo povo e apresentados em feiras, ruas, praças públicas, sindicatos
etc., objetivando, ou estimular uma greve, propor um programa de reivindicações, auxiliar um candidato à
eleição etc., através de uma cena que se desenvolve numa estrutura simples e num estilo direto
(propaganda), ou abordar temas mais genéricos, mais de forma crítica, valendo-se de variadas técnicas de
encenação (didático), ou ainda levar à comunidade um teatro mais sugestivo que direto, utilizando, para
tanto, uma cena apoiada em ampla temática, universal ou nacional, disposta cenicamente de forma a
contemplar a fruição estética por parte do público (cultural). Boal ressalta a importância da segunda
categoria, uma vez que ela, atendendo à visão popular, a propaga, explícita ou implicitamente, para outros
agrupamentos sociais; para o mesmo autor, somente estas duas categorias merecem ser chamadas de
popular, uma vez a terceira, além de evitar temas importantes para a sociedade e sugerir, explícita ou
implicitamente, a manutenção dos valores sociais, econômicos e políticos, reduzem os conflitos ao
universo da personagem, neutralizando uma possível reação coletiva. A distinção entre teatro popular e o
não-popular, é, portanto, para Augusto Boal, mais de natureza ideológica do que estética”. GARCIA,
Silvana. Teatro político. In: GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela Alves de,
(Orgs.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva / Sesc São
Paulo, 2006, p. 248.
Capítulo II
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2.5 AS FRONTEIRAS E OS DILEMAS NA BUSCA POR UM TEATRO NACIONAL E
POPULAR
A crítica do dia 03 de junho de 1974, onde é analisado o espetáculo Viva o
Cordão Encarnado, de Luiz Marinho e dirigido por Luiz Mendonça (os mesmos
responsáveis por As Incelenças), é extremamente interessante pelo fato de Peixoto
perceber, mesmo não tendo respostas imediatas, as potencialidades e as dificuldades a
serem enfrentadas pelos artistas que optavam por um teatro ligado ao que ele chama de
“nacional e popular”:
O significado e a viabilidade de um teatro nacional e popular é um tema
que está voltando a ser discutido. Inúmeras tentativas estão sendo
realizadas mesmo em centros dominados pela produção do teatro
comercial, como São Paulo e Rio. A expressão “teatro popular” implica
uma série de problemas bastante complexos. Numa análise rigorosa seria
necessário comar pela definição do conceito de povo.
178
Percebemos a existência de um complexo e disputado cenário teatral naquele
momento no país. O teatro “nacional-popular”, concebido pelo crítico como necessário e
fundamental para a transformação social, tinha mais um “inimigo” para se contrapor: o
teatro “comercial”. Além disso, mais um problema se apresentava que era a necessidade da
conceituação de “povo”, condição imprescindível para iniciar um trabalho artístico que
tivesse uma amplitude maior e mais coerente.
Mas, mesmo entre os grupos e os produtores deste tipo de teatro que Peixoto
denomina de “popular”, não existia um consenso, uma clareza conceitual e prática que os
unissem. Mantendo o seu estilo implacável de análise, ele faz questão de ressaltar as
“confusões” e os “erros”, assim como as “conseqüências” advindas desta falta de
unicidade:
Entre os que fazem teatro, as posições diante do teatro popular são várias:
muitos confundem teatro popular até mesmo com as habituais temporadas
populares, realizadas no fim de carreira de praticamente todos os
espetáculos produzidos em S. Paulo e Rio. Não passam entretanto de
liquidação de mercadoria: é o público habitual de teatro que estaciona os
seus carros diante dos teatros e assiste a espetáculos a 5 ou 10 cruzeiros.
Para muitos a comédia é em si uma espécie de teatro popular, assim como
para outros o simples fato de mostrar o povo em cena implica em definir
o espetáculo como popular. Por mais absurdo que pareça, estas posições
existem.
179
178
PEIXOTO, Fernando. A vitalidade do “Cordão Encarnado”. Jornal Opinião, 03/06/1974, p. 19
179
Ibid.
Capítulo II
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99
Mesmo demonstrando o que “não é”, podemos delinear algumas referências
que Peixoto tem ao tratar desta forma teatral. Para começar, teatro “popular” não queria
dizer teatro com ingressos mais baratos. Essa atitude, que à primeira vista parecia bastante
razoável, pecava pelo primarismo, pois não alterava de maneira significativa a questão do
acesso. A questão de ir ou não a um espetáculo não se limita apenas no aspecto
“financeiro-econômico”, ela passa por outros fatores como o costume, o interesse, a
distância, o hábito, o gosto, entre outros. Fazer “comédias” também não era uma saída
muito inteligente. Pelo contrário, demonstrava para Peixoto um profundo desconhecimento
da própria realidade vivida pelas pessoas. Elas não vão a uma peça apenas para rir, por
mais que isso seja uma boa razão a ser considerada. Também colocar o “povo” em cena,
simplesmente, não resolveria a contradição. O “povo”, neste caso, não é o “ator” e,
principalmente, não é o “público”. Esta tentativa não passaria de uma “ilusão”, pois o real
conhecimento deste “universo popular” continuaria desconhecido e distante.
180
Por outro
lado, outras opiniões existentes e assinaladas por ele acabam sendo mais paradoxais e,
como as outras, não resolvem o problema em questão e atestam de maneira clara a
acomodação e o desinteresse de certos setores do teatro brasileiro:
Para outros, o teatro popular é uma tarefa impossível, uma aspiração fora
dos alcances do realizável. Alguns alegam certos motivos de ordem
técnica para a realização de um teatro para o povo, outros alegam razões
históricas: o teatro popular pode ser feito pelo povo e existirá na
medida em que o povo tenha em suas mãos os meios de produção de
espetáculos.
181
180
Maria Hele Küner, em 1975, tecia uma série de considerações em relação ao distanciamento da classe
teatral com o “povo” naquele período: “É exatamente por ignorar ou menosprezar o que nela de
específico e compartimentado (ou seja, o caráter de classe das criações culturais) que a linguagem atual só
excepcionalmente tem conseguido traduzir as aspirações, necessidades, valores, a forma de percepção e
visão de mundo, a experiência, enfim, que os trabalhadores e o povo em geral têm da própria condição.
Especificidade que não se atinge ou substitui por uma simplificação ou barateamento de esquemas do
grupo “superior”, pela busca de adequar às regras e modelos ou mesmo aos critérios estéticos populares
conteúdos simplificados ou esquematizados de uma outra forma de pensamento e visão. Fazer de uma
arte um leito de Procusto não justifica uma mutilação que muitas vezes vai amputa-la no que ela tem de
mais essencial: a capacidade de descobrir e aprofundar num grupo humano a consciência que seus
membros m de si mesmos; reconhecer em si e em sua realidade as possibilidades de inovação e os
meios de afirmar criativamente sua presença; de unificar, em uma síntese que se possa tornar fecunda,
suas aspirações, necessidades, interesses, valores, pela superação de uma percepção estreita e imediatista
e abertura a relações humanas e sociais mais amplas; e de extrair dessa síntese unificadora de perspectivas
e ampliadora de visão as forças que lhe permitam ultrapassar os obstáculos que o impedem de chegar à
realização, com todo, de um projeto humano comum”. HNER, Maria Helena. Teatro popular: uma
experiência. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1975, p. 67.
181
PEIXOTO, Fernando. A vitalidade do “Cordão Encarnado”. Jornal Opinião, 03/06/1974, p. 19
Capítulo II
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100
Se nas proposições citadas no trecho anterior temos, pelo menos, uma vontade
(ainda que limitada em seus vários aspectos) de resolver a questão, nesta temos argumentos
que impediriam qualquer tentativa de fazer um teatro, inicialmente, “popular”. Mesmo não
discorrendo sobre as justificativas “técnicas”, os entraves “históricos” são exemplares para
Peixoto demonstrar dialeticamente que, caso não se faça as primeiras tentativas de tornar o
teatro uma arte mais acessível e compreendida numa escala maior, é impossível fazer com
que esse povo “tenha em suas mãos” os meios para produzir seus próprios espetáculos.
Neste processo de emancipação, como já pudemos perceber em suas críticas, o teatro teria
um papel fundamental. Ele não seria apenas o fim, mas, principalmente, o meio.
182
No trecho seguinte, continuando na mesma questão, Peixoto reconhece e aponta
quem é o “público” que assiste teatro no Brasil. Esta constatação indica, em seu ponto de
vista, a dificuldade de se fazer uma cena “nacional-popular”:
As contradições são muitas: alguns continuam a experimentar a pesquisa
do teatro popular no coração de centros urbanos, mostrando a um público
burguês um tipo de espetáculo que poderia travar diálogo efetivo com
uma platéia efetivamente popular. Em tudo isso, uma coisa é certa: para
muitos o teatro popular é o próprio significado do teatro. Ou seja, sem
buscá-lo não existe sentido em pesquisar uma cultura nacional. Um
espetáculo como Viva o Cordão Encarnado!, texto de Luiz Marinho
encenado por Luiz Mendonça, atualmente em cartaz no Rio, parece
efetivamente demonstrar que somente a partir de uma visão popular da
realidade nasce no palco a alegria e a vitalidade teatral.
183
O raciocínio acima tem sua lógica. Qual o significado de fazer um teatro
embasado na “cultura popular” se quem vai assisti-lo não é o “povo”, e sim o público
“burguês”? Tal reflexão não é de forma alguma gratuita e tem sentido ao percebermos as
dificuldades levantadas pelo próprio crítico no tratamento da questão, onde possibilidades
e impossibilidades acabam se confundindo e se contrapondo, impedindo um caminho
dinâmico e transformador.
Sem resposta imediata, Peixoto aponta o mérito do espetáculo de Marinho e de
Mendonça pelo fato deles buscarem nas manifestações populares, no caso da peça os
“pastoris nordestinos”, a essência de seus trabalhos. A diferença destes residiria, também,
182
Numa outra crítica posterior, Peixoto volta a criticar as “popularizações” dos espetáculos: “Uma série de
indagações podem ser colocadas: porque somente em dezembro? (um paternalista prêmio de festas aos
menos favorecidos?) Por que não tentar levar os espetáculos nos próprios subúrbios que uma cultura
popular efetiva poderá nascer dos problemas concretos da comunidade à qual se dirige?”. Id. Uma
política para o teatro. Jornal Opinião, 02/09/1974, p. 20.
183
Id. A vitalidade do “Cordão Encarnado”. Jornal Opinião, 03/06/1974, p. 19
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101
na maneira como são postos em cena, de maneira sincera, coerente e sem qualquer vestígio
de artificialidade:
184
[...] viva o Cordão Encarnado!, neste sentido, é um espetáculo de
extrema importância: não para tomar contacto com uma das fontes
mais autênticas de um possível caminho para a existência de um teatro
popular verdadeiro, descondicionado de outras influências culturais,
como pelo que representa em si um momento de vitalidade, alegria,
humor, realizado com senso de teatralidade.
185
A crítica em relação ao espetáculo é positiva. Mesmo demonstrando a contradição
enfrentada por esse tipo de teatro em relação ao público “burguês” que o assiste, ele acaba
sendo um “possível caminho” para um teatro popular “verdadeiro”, isento de influências
estranhas que não fariam parte de sua essência. Ao superar o problema das “fontes” a
serem utilizadas na elaboração de tais peças, o que era um desafio aos artistas que se
interessavam por tal perspectiva teatral, o caminho trilhado poderia ser considerado
como um grande avanço naquela situação.
Mas se há uma intenção nestas reflexões de Peixoto é a de incentivar e provocar
um movimento em prol de algo que vai além do aspecto puramente “popular”. Querendo
ou não, algo a mais deveria ser incorporado. Que não tivesse limites regionais e específicos
de uma cultura fragmentada e local, mas que tivesse força e amplitude capaz de suscitar
nas “classes populares” uma consciência ampla, unitária e transformadora. No caso, o
chamado “teatro nacional-popular” seria um ponto a ser perseguido. Para isso, as melhores
forças intelectuais e artísticas deveriam estar concentradas para executarem tal tarefa.
Peixoto estabelecia a terceira frente de sua luta no jornal Opinião.
Esta vertente teatral “nacional-popular” tem sua razão de ser especialmente
quando pensamos nas conseqüências que o golpe de 64 e a instituição do AI-5 em 1968
acarretaram na arte brasileira em geral. Ao lado da opção por esta tendência, havia, por
parte de artistas, intelectuais e críticos, um sentimento de que era necessário encontrar um
184
Uma das maiores preocupações Antonio Gramsci era justamente bsucar uma comunicação efetiva dos
“intelectuais” com o “povo”. Neste processo, deve-se prestar atenção para a cultura popular como
integrante fundamental no processo de elaboração e para o advento de uma “nova literatura”: [...] A
premissa da nova literatura não pode deixar de ser histórico-política, popular: deve ter como objetivo
elaborar o que existe, não importa se de modo polêmico ou de outro modo; o que importa é que
aprofunde suas raízes no húmus da cultura popular tal como ela é, com seus gostos, suas tendências, etc.,
com seu mundo moral e intelectual, ainda que atrasado e convencional. GRAMSCI, Antonio. Cadernos
do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 264. v. 6.
185
Ibid., p. 19.
Capítulo II
Capítulo IICapítulo II
Capítulo II
102
meio capaz de questionar toda a situação que o país estava passando.
186
Neste ponto, para
Fernando Peixoto, um consenso em relação a dois espetáculos ocorridos na década de
1970 e que foram considerados exemplares tanto na questão temática, como no sucesso
que obtiveram em suas apresentações frente à crítica e ao público: Gota D’Água, de Paulo
Pontes e Chico Buarque de Holanda (1975) e O Último Carro, de João das Neves
(1976).
187
O crítico ainda acrescenta, além dos dois, Ponto de Partida
188
de Gianfrancesco
Guarnieri.
Contudo, Fernando Peixoto não via com bons olhos a situação do teatro brasileiro
em geral. Querendo ou não, ele sabia que existia um longo e difícil caminho a ser
percorrido para se chegar a uma situação favorável com o advento e com a consolidação de
uma cena teatral “nacional-popular” ampla e que fosse capaz de combater as outras
“tendências” que estavam em disputa naquele momento. Com suas críticas tentava
compreender e impulsionar uma forma de fazer um teatro que se relacionasse ativamente
com o tempo presente, responsável por uma transformação social e política, de resistência
à ditadura, que tivesse a participação popular não apenas como público, mas como
criadores, com temas e formas que tivessem sentido e significado para amplas camadas da
população brasileira. As manifestações pontuais que buscavam cumprir esse papel eram
importantes, mas estavam longe de ter uma influência hegemônica. No capítulo seguinte,
ao trabalharmos com as críticas de Peixoto no jornal Movimento sobre os problemas do
186
“Com o AI-5 e o acirramento do autoritarismo e da repressão, a partir de 1968, a possibilidade de
realização de trabalhos coletivos nos moldes anteriores, assemelhados aos do CPC ou do Arena, tornou-se
cada vez mais remota. Embora o período posterior ao AI-5 tenha correspondido a uma fase de maior
amadurecimento da geração revelada no final dos anos 50, a censura se encarregou de banir dos palcos a
maior parte da produção dramatúrgica de esquerda. A idéia de uma representação artística capaz de
identificar a nação ao povo, essa nova fase, passou a se fazer dentro de trabalhos individuais de
dramaturgos cujos parâmetros de criação haviam sido forjados na fase anterior ao golpe”. BETTI, Maria
Silva. Teatro Nacional e Popular. In: GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela Alves
de. (Orgs.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva / Sesc
São Paulo, 2006, p. 195.
187
Sobre a relação dessas peças com o “nacional-popular”: “Igualmente dignas de nota, dentro desse mesmo
período, são duas outras peças de enorme repercussão: Gota D’Água, de Paulo Pontes e Chico Buarque
de Holanda (1975) e O Último Carro, de João das Neves (1976), cujo enredo se desenvolvia inteiramente
no interior de um trem do subúrbio. Gota D’Água apresentou uma particularidade no que diz respeito à
sua autoria: foi escrita a partir do texto teledramatúrgico de Medéia, que Vianinha havia recriado três anos
antes, para o programa Caso Especial, da Rede Globo de Televisão, com base na tragédia clássica. O
trabalho, que a morte prematura de Vianna não permitiu transpor para o teatro, havia sido fruto de seu
crescente interesse na tragédia como expressão de questões sociais e políticas, figuradas no enredo através
da transposição das personagens e do conflito para os morros e as favelas cariocas da época
contemporânea”. Ibid., p. 196.
188
Espetáculo dirigido por Fernando Peixoto no ano de 1976 e produzido pela Othon Bastos Produções
Artísticas e Documenta Produções Artísticas. Cenografia e figurinos de Gianni Ratto. No elenco,
Gianfrancesco Guarnieri, Martha Overbeck, Othon Bastos, Sérgio Ricardo e Sônia Loureiro.
Capítulo II
Capítulo IICapítulo II
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103
teatro brasileiro, teremos a oportunidade de aprofundarmos um pouco mais na questão do
“nacional-popular”.
2.6 FERNANDO PEIXOTO, O CRÍTICO, E A REFLEXÃO SOBRE O TRABALHO DE
FERNANDO PEIXOTO, O DIRETOR
Durante o período em que Peixoto atuou sistematicamente no jornal Opinião, ele,
como crítico, menciona três trabalhos seus como diretor. O primeiro é Frank V
189
de
Friedrich Dürrenmatt em julho de 1973, brevemente aludido no início do capítulo, o
segundo A Torre em Concurso
190
de Joaquim Manuel de Macedo, numa crítica intitulada
“A Torre em Concurso: No Império, pela República” do dia 20 de maio de 1974, e o
espetáculo, Caminho de Volta
191
de Consuelo de Castro, “No túmulo das agências de
publicidade” do dia 25 de outubro de 1974.
Estas três críticas em especial são interessantes por demonstrarem Fernando
Peixoto, crítico, refletindo sobre o trabalho de Fernando Peixoto, diretor. Sem dúvidas, são
análises que apresentam justificativas em relação às suas escolhas e ao método que utilizou
no trabalho de levar um texto à cena. Ainda, evidencia o sentido de seu trabalho num
momento conflituoso em que ele tenta prosseguir com o seu projeto artístico, apresentando
um encenador/crítico com idéias e que trilhou um caminho em busca daquilo que
considerava necessário.
Especificamente ao trabalhar os dois primeiros espetáculos, há uma tentativa
explícita de demonstrar a importância e a opção de encenar tais textos, tanto pelo aspecto
temático como pela biografia dos dramaturgos.
Ao escrever sobre Frank V, por exemplo, Peixoto busca elencar algumas razões
que justifiquem sua encenação. No caso, a análise que faz sobre o dramaturgo suíço
Dürrenmatt, é uma espécie de ligação entre passado/presente e como um texto escrito no
189
Espetáculo dirigido por Fernando Peixoto no ano de 1973 e produzido pelo Theatro São Pedro.
Cenografia e figurinos de Gianni Ratto. No elenco, Beatriz Segall, Esther Góes, Sérgio Mamberti e
Umberto Magnani.
190
A direção do espetáculo foi dividida entre Fernando Peixoto e Osmar Rodrigues Cruz Foi produzido por
Carlos Miranda e Orlando Miranda, com música de Sidney Miller. No elenco figurava Ankito e Oscarito.
191
Espetáculo com cenografia de Gianni Ratto. No elenco, Othon Bastos, Martha Overbeck, Antonio
Fagundes e Armando Bógus. Produzido pela Othon Basto/Martha Overbeck Produções Artísticas.
Capítulo II
Capítulo IICapítulo II
Capítulo II
104
início do século XX, em outro país, em outra realidade, pode, com as devidas adaptações,
ser encenado no Brasil dos anos 70:
[...] Aliás hoje cada vez mais os personagens trágicos se tornam micos.
E cada vez mais o bobo da corte se torna um personagem trágico.
Dürrenmatt se coloca como descendente de Aristófanes, que foi o
primeiro a realizar a comédia da sociedade, atacando as bases do Estado
grego. Para ele os princípios básicos do teatro ocidental deveriam nascer
das postulações práticas de Aristófanes e da “comédia ática antiga”, não
dos três trágicos gregos, Ésquilo Sófocles Eurípedes, como acontece.
Ele reivindica o sarcasmo e o grotesco afirmando que somente diante
deles é que os poderosos de nossos dias chegam a tremer.
192
Torna-se evidente a sua preocupação em trabalhar textos de autores que tenham
um espírito dissonante, combativo e que o permita questionar e demonstrar as contradições
existentes em seu tempo. A peça acima trata do funcionamento de um banco e de seus
“banqueiros-gangsteres”;
193
é uma crítica explícita ao sistema capitalista em sua lógica e
em seu funcionamento. A “comédia” aqui, para Peixoto, ganha um outro aspecto mais
profundo e válido ao ligar Dürrenmatt com os comediógrafos gregos. O “sarcasmo” e o
“grotesco” como elementos não apenas para o riso puro e simples, mas como arma contra
os “poderosos”, independentemente do lugar e do tempo onde estão.
194
Demonstrando ainda este seu raciocínio na escolha dos textos, ao analisar
Caminho de Volta de Consuelo de Castro, uma peça que se passa inteiramente dentro de
uma agência de publicidade em crise, retratando funcionário e patrão dentro deste
ambiente frio e perverso, ele faz o seguinte comentário:
192
PEIXOTO, Fernando. Um protestante que protesta. Jornal Opinião, 19/03/1973, p. 19.
193
Id. A ópera de um banco privado. Jornal Opinião, 19/03/1973, p. 19.
194
Num depoimento feito por Peixoto sobre sua trajetória artística no teatro brasileiro, ele faz as seguintes
observações sobre o espetáculo: “[...] Frank V, do Dürrenmatt, tradução de Carlos Queirós Teles e de
Tereza Linhares. Resumindo, o espetáculo é a história de um banco em crise. Os banqueiros, a estrutura
econômica toda é um gangsterismo violento, com assassinatos e todos os tipos de violência que se pode
imaginar, e no final o governo assume esses gastos todos, estatiza o banco e tudo volta... É uma
comédia... Curioso, estando aqui diante do Sérgio de Carvalho, que está montando exatamente esse tema
e optou pela comédia. O Dürrenmatt diz uma frase que eu reproduzo num artigo que está no programa,
assim: “No momento atual acabou a tragédia. Nós temos de usar a comédia. É a comédia que vai revelar o
trágico. É a comédia que vai mostrar a tragédia da sociedade”. GARCIA, Silvana. (Org.). Odisséia do
Teatro Brasileiro. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002, p. 85.
No mesmo depoimento, Fernando Peixoto destaca a crítica positiva de Bernard Dort em relação ao
espetáculo, especialmente sobre o trabalho de direção: “Eu tive uma crítica extraordinária de um dos
maiores críticos do teatro francês e do mundo, Bernard Dort, que veio a São Paulo e assistiu ao
espetáculo, e disse que tinha vários problemas com o texto, justamente o mico do espetáculo, mas que
achou a direção de uma exatidão que o surpreendeu. Porque realmente nós procuramos fazer um
espetáculo bastante mico, sim, muito divertido, mas mantendo um relacionamento de diálogo
permanente, brechtiano. Era uma forma de analisar a realidade capitalista e a realidade socialista em
1973”. Ibid., p. 85-86.
Capítulo II
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105
Na atual dramaturgia brasileira, em que predominam os textos que
omitem um confronto crítico com a realidade social, Caminho de Volta
de Consuelo de Castro é uma das raras exceções. Escrita em 1973, a peça
desnuda implacavelmente o mundo das agências de publicidade, o túmulo
onde o homem enterra a sua potência intelectual, colocando-se a serviço
da mentira e da criação de falsos valores e falsas necessidades. É também
uma reflexão sobre a alienação do homem no trabalho: trabalho que não é
satisfação, mas simples meio de satisfazer necessidades externas a ele.
Exercido dessa forma, inverte a relação fundamental: enquanto ser
consciente, o homem faz de sua atividade vital, de sua “essência”, apenas
um meio para a sua “existência”.
195
A apresentação de suas razões é interessante, pois demonstra duas preocupações
de Peixoto: a primeira, a crítica ao capitalismo como um sistema que inverte a relação do
homem com o seu trabalho. A segunda diz respeito a uma crítica que faz à dramaturgia
brasileira do período: a falta de textos corajosos que tocassem nos problemas sociais de
nosso país. Sem dúvidas, tal afirmação generalizante pode ser entendida como radical e
superficial. Porém, ao pensarmos nela inserida num momento de luta e de contestação que
o crítico fazia questão de ressaltar, seja em seu estilo de escrita, como nas opções que fez
ao eleger determinados aspectos em suas análises, ela pode ser compreendida mais como
provocação do que como uma constatação real e objetiva.
196
Num texto publicado no mês de setembro de 1974, sobre os problemas a serem
enfrentados pelo SNT (Serviço Nacional de Teatro), os recuos e avanços de um documento
redigido pelo mesmo intitulado “Plano de Ação Cultural”, Peixoto faz uma afirmação
semelhante ao tratar da dramaturgia brasileira:
um ponto discutível no item dramaturgia: o documento afirma que os
autores nacionais encontram cada vez menor acesso junto aos produtores,
sentindo a “contundente” concorrência dos autores estrangeiros. Em certo
195
PEIXOTO, Fernando. No túmulo das agências de publicidade. Jornal Opinião, 25/10/1974, p. 22.
196
Fernando Peixoto não economiza suas críticas sobre o texto de Consuelo de Castro. Numa carta ao
cenógrafo Joel de Carvalho, publicada posteriormente no livro Teatro em pedaços ele demonstra seu
descontentamento principalmente em relação à estrutura do texto: “Esta idéia: o espetáculo é espetáculo,
me leva a querer (o caso desta peça agora é um pouco complicado) um cenário obviamente fragmentado,
apenas o útil, e este útil realista em fragmentos, mas permanentemente teatral, o diabo da peça (você,
lendo, deve ter percebido de cara) é que a estrutura da mesma é velha, século passado, causa e efeito, tudo
fechadinho no aquário do palco, etc. Não é fácil romper com isso, pois é da essência da estrutura e brigar
com estruturas assim geralmente a gente perde, a não ser que o material fosse excepcional para ser
reescrito cenicamente, o que não é o caso. [...]: daí a idéia [...] para abrir a porra do texto, situá-lo dentro
de uma verdade histórica mais real”. Id. A carta que Joel não recebeu. In: ______. Teatro em Pedaços.
São Paulo: Hucitec, 1979, p. 187-189.
Sobre Caminho de Volta (1974) de Consuelo de Castro e a crítica em torno da publicidade, do “Milagre
Econômico” e dos posicionamentos dos setores médios no Brasil na década de 1970 ver: RODRIGUES,
Victor Miranda Macedo. Caminho de Volta (1974) de Consuelo de Castro: os setores médios em
tempos de crise. 2006. Monografia (Bacharelado em História) – Instituto de História, Universidade
Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2006.
Capítulo II
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106
nível, apesar dos problemas da concorrência, a situação atual parece
demonstrar que o acesso aos produtores não é mais um problema central
(salvo em casos específicos, a maioria está convencida da eficácia do
autor nacional). O fundamental é a qualidade da dramaturgia brasileira de
hoje, que é lamentável, em vista de dados concretos: a temática está
limitada, a discussão da realidade cerceada.
197
O problema do teatro brasileiro não se reduzia apenas à questão cênica. A
produção dramatúrgica também passava por desafios que exigiam uma reflexão mais
aprofundada. Fugindo do senso comum, ele afirma a necessidade da classe teatral brasileira
de enfrentar os problemas sem ficar colocando a culpa na concorrência dos textos
estrangeiros. O que ele chama de dados concretos, condicionadores desta produção
limitada, significava um desafio a ser superado. A censura seria um dos principais pontos a
serem vencidos.
Ao refletir sobre o seu próprio trabalho como encenador da peça A Torre em
Concurso, um texto escrito em 1863 por Joaquim Manuel de Macedo, Peixoto demonstra
mais uma vez as suas preocupações sobre a função do teatro diante a sociedade brasileira.
Porém, sabe das limitações artísticas e financeiras que são impostas a ele, como diretor.
Quase se justificando, ele faz a seguinte observação:
O teatro brasileiro não tem à sua disposição uma tradição crítica. Um
encenador que procura um texto do século passado precisa partir do zero
e experimentar a crítica histórica no ato de fazer o espetáculo. Não
confronta sua visão com interpretações críticas existentes. E as condições
de produção, dentro dos esquemas vigentes, implicam em limites de
tempo, determinados por responsabilidades econômicas: a estrutura do
texto não é experimentada em suas possíveis alternativas. O justo seria
pesquisar cada ação, cada movimento, cada fala, cada detalhe, cada gesto.
Diante dessa impossibilidade, o espetáculo resulta apenas a reflexão
crítica de uma primeira aproximação do texto.
198
Abrindo o jogo para o leitor, Peixoto tenta escapar do misticismo envolto na
produção teatral. Não há nada de genial ou romântico. Pelo contrário, um trabalho que
tenta vencer alguns desafios históricos, como no caso apontado por ele - da falta de uma
tradição crítica que o permitisse compreender o texto em seus vários momentos,
principalmente no momento de sua criação. Mesmo assim, ele busca mostrar o espetáculo
como algo refletido, elaborado, pesquisado. Esta valorização que faz é uma forma de
chamar a atenção para a sua prática teatral, que tem um fim, um objetivo. Na seqüência de
197
PEIXOTO, Fernando. Uma política para o teatro. Jornal Opinião, 02/09/1974, p. 20.
198
Id. “A Torre em Concurso”. No Império, pela República. Jornal Opinião, 20/05/1974, p. 19.
Capítulo II
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107
seu texto, ele aponta uma série de fatores que devem ser levantados no processo de
encenação como a organização e a sistematização concreta e realista do trabalho:
Resta, portanto, arriscar uma proposta cênica. Apanhar como um
documento histórico, com seus valores implícitos, suas contradições mais
nítidas, suas limitações ou aberturas. E procurar, numa prática marcada
pela pressa em estrear, aferir sua contribuição ao pensamento dramático,
definir suas linhas gerais, acentuar seus pontos positivos ou negativos,
aceitos como circunstanciais e históricos. E resta, nesta tentativa de
reflexão sobre um momento histórico particular, uma das tarefas mais
fascinantes que se impõe a um teatro que se propõe a ser uma atividade
crítica responsável, esboçar uma solução cênica imediata, resultado de
um confrontação entre a realidade de um século com a realidade de outro
século. Este confronto é evidente, não está isento de falhas graves. Mas é
a proposta cênica possível.
199
A solução que encontra no desafio de encenar um texto do século XIX é
exemplar. Ao invés de tentar fazer uma “reconstituição histórica” da peça, buscando com
exatidão figurinos, cenários e falas, respeitando solenemente o texto e, principalmente, o
autor, ele propõe uma “encenação crítica”, que corresponda ao momento em que ela está
sendo encenada. A busca da “arte pela arte” não tem para Peixoto nenhuma utilidade
prática. Partindo do princípio de que o texto é um documento histórico, seria inútil
simplesmente apresentá-lo de maneira estanque e estática, limitá-lo a um exercício de
erudição. Cabe ao diretor reconhecer e perceber as possíveis brechas para o confronto com
o tempo presente. Neste sentido, nada é gratuito e a pesquisa aprofundada serve como
instrumento para enriquecer ainda mais os seus aspectos positivos.
Como pudemos perceber, Fernando Peixoto busca, pelo menos em seus textos,
não conceder àquilo que não se encaixa em seus valores. Discute abertamente e sem
subterfúgios os problemas que percebe no meio teatral. Não perdoa o “velho” que não
reconhece o “novo” e nem o “novo” que não reflete sobre a realidade em que está inserido.
Reconhece as dificuldades e os limites de seu trabalho, mas é consciente da necessidade de
fazê-lo, por uma simples questão: alguém deve continuar este caminho que foi aberto no
teatro brasileiro. As respostas e as soluções não vêm de imediato, mas é um trabalho
coletivo, dialético e sempre responsável.
199
PEIXOTO, Fernando. “A Torre em Concurso”. No Império, pela República. Jornal Opinião,
20/05/1974, p. 19.
Capítulo II
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2.7 O CRÍTICO E A REFLEXÃO SOBRE A CRÍTICA TEATRAL: SENSIBILIDADE
E ASTÚCIA PARA VENCER ALGUMAS ARMADILHAS
Suas análises sobre o trabalho dos críticos ligados à cena teatral brasileira são,
também, demonstrações explícitas de seus objetivos e de sua concepção sobre a atividade
como um todo, feito de diversas partes que são essenciais para alcançarem um fim
determinado. Ao tecer algumas reflexões no início de 1974 sobre o crítico Anatol
Rosenfeld,
200
que havia falecido no ano anterior, ao mesmo tempo em que Peixoto tece
elogios a este, ele não oculta o seu descontentamento em relação à crítica teatral brasileira
em geral, da qual ele mesmo fazia parte. Sem furtar-se da discussão, demonstra as
incongruências e os impasses que viviam, citando nomes e figuras emblemáticas do meio
artístico:
Anatol foi talvez o ensaísta e crítico mais penetrante que o moderno
teatro moderno enfrentou. A análise crítica dos críticos é ainda um
capítulo vazio. De 1950 até hoje tivemos, é verdade, uma contribuição
indiscutível, mesmo em seus aspectos discutíveis, dos trabalhos
jornalísticos de intelectuais honestos como Décio de Almeida Prado,
Sábato Magaldi ou Yan Michalski. Mas Anatol foi, sem dúvida, o crítico
mais sensível, a inteligência mais aberta e polêmica, mais vigorosa e
impiedosa, mais combativa que o teatro brasileiro, compreendido como
uma prática incerta e caótica, experimental e confusa, teve que enfrentar.
O seu julgamento nunca foi gratuito ou dogmático. Rosenfeld manteve
em sua atividade intelectual uma posição crítica corajosa, ousada,
combativa, estética e politicamente consciente e coerente.
201
Mesmo reconhecendo a “honestidade” de nomes clássicos da crítica teatral
brasileira, ele caracteriza como “discutível” o trabalho feito por eles. Ainda que não
forneça as considerações necessárias para justificar tal adjetivo, no momento em que trata
de Rosenfeld, ele demonstra os valores que admira e que como útil para aquela
atividade. Diante de uma realidade teatral “incerta”, “caótica”, “experimental” e “confusa”,
a necessidade de uma análise que vise, não apenas destruir, mas abrir novas
possibilidades a partir de uma visão concreta dos problemas, sem condescendência ou
“protecionismos nacionalistas” e “primários” em prol do teatro brasileiro.
200
Intelectual alemão (1912-1973) que veio para o Brasil ainda na década de 30. Exerceu a função de crítico
teatral nos principais jornais do país e lecionou na área das artes cênicas em várias instituições como a
EAD e a ECA em São Paulo, sendo uma das maiores influências de Fernando Peixoto.
201
PEIXOTO, Fernando. Anatol Rosenfeld e o teatro alemão. Jornal Opinião, 04/02/1974, p. 16.
Capítulo II
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109
Por fim, Peixoto salienta, a partir do trabalho de Rosenfeld, as suas convicções
sobre a importância da atividade crítica como parte integrante de uma “totalidade” teatral.
Desta maneira, ao elogiar, deixa clara a função e a forma que ele deseja conferir ao seu
próprio trabalho como crítico:
[...] Sempre que se detinha na reflexão crítica de um espetáculo (ou de
uma proposta de trabalho), Anatol exercia sua atividade com firmeza,
defendendo, com argumentos objetivos, valores concretos e solidamente
fundamentados, situando a produção artística em seu contexto histórico-
político, analisando suas contradições e conseqüências, nunca encarando
um espetáculo ou um texto teatral como um fenômeno isolado, mas, ao
contrário, procurando relacioná-lo com outras manifestações dos difíceis
caminhos de um processo sócio-cultural colonizado e em formação.
202
Efetivamente, inspirado também em Rosenfeld, Peixoto buscou em seu trabalho
definir um teatro brasileiro, mesmo com todas as suas contradições e seus limites, que
dialogasse diretamente com a conjuntura em que estava imerso. Tendo em vista esta
característica, suas críticas tornavam-se instrumentos de uma luta artística que, ao eleger
diretores, dramaturgos, espetáculos e críticos como referenciais, demonstrava,
conseqüentemente, a sua perspectiva de trabalho naquele momento em especial. Além
disso, demonstrava nos textos por meio de seus raciocínios, de suas questões e de suas
experiências, os próprios pontos de vista.
203
Os adjetivos que utiliza para caracterizar Rosenfeld ajudam-nos a compreender a
busca constante pela objetividade e pela análise contextualizada que sempre fazia em
relação aos espetáculos, sem titubear ou evitar os confrontos. Um exemplo típico da
abordagem crítica de Rosenfeld em relação ao teatro brasileiro está num texto intitulado
202
PEIXOTO, Fernando. Anatol Rosenfeld e o teatro alemão. Jornal Opinião, 04/02/1974, p. 16.
203
O crítico norte-americano Eric Bentley, num de seus textos mais polêmicos onde questiona a validade do
“teatro político” aponta para algumas coisas, menos nobres e intelectuais, que podem influenciar o
trabalho do crítico: “É verdade que os críticos teatrais têm levado as suas demonstrações de psicologia de
massas a videntes excessos, no intuito de defenderem os seus pontos de vista antiintelectuais; mas o teatro
é um fenômeno social, ainda que de uma maneira que os críticos raramente mencionam. Por exemplo,
quem quer gozar uma sensação artística sòzinho, um livro. Quem vai ao teatro quer gozar um prazer
artístico em companhia de outras pessoas não tanto em companhia dos estranhos sentados em outras
filas, mas dos amigos que vieram junto com êle. O teatro não é necessariamente um ponto de encontro.
Não existe um limite máximo do número de espectadores, mas eu diria que o limite mínimo é dois. Para
saborear o prazer teatral é preciso saber fazê-lo em companhia de pelo menos outra pessoa. Mesmo o
crítico, que faz questão de assistir ao espetáculo num estado de desligamento do conjunto da platéia,
costuma ser fortemente influenciado pela sua mulher não pelas suas opiniões, é claro (pois êle é um
sujeito astuto, cauteloso, sempre precavido), mas com certeza pelos seus sorrisos, suas expressões
fisionômicas e seus suspiros de ‘essa não!’ etc. Essa influência é igualmente forte quando se exerce no
sentido contrário; ou seja, o crítico que detesta a sua mulher inverte os julgamentos que êle julga ela tenha
feito”. BENTLEY, Eric. Os prós e contras do teatro político. In: ______. O Teatro Engajado. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 1969, p. 114.
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110
“Irracionalismo Epidêmico”. Provavelmente esta crítica agradou muito a Peixoto pelo fato
de tratar sarcasticamente a “cena alternativa” que se estabelecia no início da década de
1970:
O mingau verbal acima compõe-se de trechos da entrevista de um jovem
que cultiva o kaos. É verdade, os trechos citados são “descontínuos”, mas
isso não faz a mínima diferença. Deve até agradar ao citado, já que
investe, embora de modo contínuo, contra a desprezível continuidade
linear. Esse tipo de entrevista – gênero papo-legal – é um sarro, te diverte
paca. Certos periódicos, alguns de mérito, se dedicam assiduamente a
essa modalidade, trazendo muita informação para quem está por fora.
Mas nem sempre discriminam suficientemente. Tornam-se, por vezes,
veículos dos disparates de caras que curtem, numa transa violenta, uma
originalidade que, de tão curtida, acaba totalmente uniforme. Não há nada
mais indiferente que o “diferente”. Incrível como esses individualistas
antilineares se massificam na linearidade tipográfica e como sua suposta
espontaneidade vira clichê no “jargão do espontaneísmo”, hoje artigo de
supermercado. Com que rapidez a investida anticoisificada se coisifica,
pô. Já Weisengrund-Adorno, ao analisar o “jargão da autenticidade” de
Heidegger, verificou tratar-se de um sistema (não falou ainda, ou não
mais, de “estrutura”) que usa como princípio de organização e
desorganização.
204
Na citação acima, notamos a referência que Rosenfeld faz aos periódicos que
tinham como objetivo a propagação destas idéias que, em sua visão, eram contraditórias
em si mesmas, sendo mais fruto de um esvaziamento no campo das idéias, onde a
“espontaneidade” tornava-se mais um “discurso estabelecido”, por isso não havendo nada
de original neste sentido. A sua contrariedade com a “cena alternativa” advém justamente
de uma irracionalidade e desorganização que a seu ver era gratuita, simplista e inócua. A
linguagem utilizada na crítica, com gírias e “clichês” discursivos dos “individualistas
antilineares”, faz aumentar a sensação de ironia e até mesmo desprezo por esta
concepção teatral. Não deixa de ser um ponto bastante próximo do que Peixoto, pouco
tempo depois, buscava demonstrar, assim como em outra crítica, “Individualismo e
Coletivismo”, onde ele apresenta resumidamente a sua concepção de teatro:
Embora pouco dado ao otimismo, não vejo o futuro de uma forma tão
sinistra e apocalíptica como as utopias negativas o pintam. Não vejo,
tampouco, o indivíduo e o coletivo como alternativas que se excluam.
Somente as soluções verdadeiras em favor do coletivo podem resultar em
benefício verdadeiro para o indivíduo. Isso exige organização e
racionalidade no uso das ciências (entre elas, as ciências política e
econômica) e da técnica. Racionalidade, obviamente, não significa a
manipulação dessas disciplinas em função de fins irracionais, mas de fins
204
ROSENFELD, Anatol. Irracionalismo Epidêmico. In: ______. Prismas do Teatro. São Paulo/Campinas:
Perspectiva/Editora da Universidade de Campinas, 1993, p. 208.
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111
racionais, isto é, de valores éticos e sociais, de fins, portanto, que
favorecem o ente humano, tanto em nível individual como coletivo. A
razão, no sentido descrito, se realmente empenhada, não pode senão atuar
em favor do homem, que é o portador da razão. Essa razão o homem
desenvolve, como ser social que é, no seio do coletivo. De outro lado,
o indivíduo possui consciência, ou seja, a capacidade de optar, criticar,
criar. Indivíduo e coletivo se complementam, o que significa que tanto o
individualismo como o coletivismo, enquanto valorizações unilaterais do
indivíduo ou do coletivo, devem ser considerados excessos.
205
Pelo exposto, o que temos é uma profunda consciência da função do teatro na
sociedade contemporânea no sentido de aglutinar em suas preocupações a técnica, a
“política” e a “ética”. Buscar compreender o “indivíduo” como ser social e “coletivo”.
Rosenfeld desfere um golpe direto contra o que denomina de “irracionalismo” e de
“individualismo”, mas também ao “coletivismo”, pois ao se considerarem excludentes
acabam se isolando num radicalismo inócuo e que não promove nenhum avanço na
compreensão do homem em seu meio.
206
Fernando Peixoto, como analisamos
anterirmente em seus textos, buscava o equilíbrio (principalmente quando tentava
compreender determinadas manifestações). Sabia que o seu papel estava ligado à uma
postura mais incisiva e que exigia dele um senso crítico que buscasse destituir a “cena
alternativa” de uma validade social mais profunda.
Mesmo saindo do Opinião no ano de 1975, Fernando Peixoto, dois anos depois,
escreve para o jornal um artigo intitulado “A recusa da inércia”. Em suas críticas
analisadas até então percebemos uma luta constante no sentido de construir uma cena
teatral brasileira “nacional-popular”, compromissada com a emancipação das classes
populares e ligada naquele momento à chamada resistência democrática”.
207
Esta foi uma
205
ROSENFELD, Anatol. Individualismo e Coletivismo. In: ______. Prismas do Teatro. São
Paulo/Campinas: Perspectiva/Editora da Universidade de Campinas, 1993, p. 216-217.
206
Conclusão semelhante nos apresenta Bernard Dort: “[...] O objeto da atividade teatral é cada vez menos o
de trazer o mundo para o palco, dar deste mundo uma imagem perfeita e acabada, dizer sua verdade aos
espectadores. Tende muito mais a colocar os espectadores no estado de poderem eles mesmos
descobrirem esta verdade fora do teatro. E a levá-los, pelo teatro, a ter um domínio sobre o mundo. Desta
forma o teatro nos propõe uma propedêutica da realidade. Nele o real é apresentado (não importa sob que
forma) não como um dado universal e imutável, mas como uma tarefa a ser realizada, como uma
antiphisys”. DORT, Bernard. Uma propedêutica da realidade. In: ______. O teatro e sua realidade. São
Paulo: Perspectiva, 1977, p. 34.
207
Rosangela Patriota faz um levantamento de uma série ações que buscavam escapar da repressão que,
juntamente com a pluralidade de manifestações, era a prova de um certo ideal comum contrário ao regime
militar:“Não dúvidas: a ausência de participação e de canais para expressão eram relativizadas nas
artes, e, esse sentido, a proposta de redemocratização passou também pelo campo estético.
Significativamente, apesar do autoritarismo das relações políticas e sociais, no universo do engajamento
artístico a pluralidade fez-se presente, pois concomitantemente ao trabalho de Oduvaldo Vianna Filho
houve o Teatro Oficina, em São Paulo, o Teatro Ipanema, no Rio de Janeiro, dramaturgos como Vicente
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frente que se caracterizou pela luta contra a ditadura militar dentro dos limites e das
possibilidades de contestação, mas sempre com o objetivo de rompê-los. Porém, temos
neste texto uma análise diferenciada do que ele havia feito até então.
Ao selecionar e analisar três espetáculos que estavam em cartaz no ano de 1977,
Gota D’Água de Chico Buarque e Paulo Pontes, O Último Carro de João das Neves e
Ponto de Partida de Gianfrancesco Guarnieri, ele revela uma outra situação vivida pelo
teatro brasileiro, especialmente aquele que buscava um confronto crítico com a realidade:
[...] Produções realizadas em diferentes condições, três diferentes
propostas de dramaturgia (respectivamente, a reelaboração de uma
tragédia clássica, o estudo quase naturalista do comportamento dos
homens, e a parábola como instrumento para a revelação da verdade), três
diferentes propostas de encenação. Mas sem dúvida, neste instante em
que o testemunho do esforço pela difícil resistência de uma cultura crítica
assinala-se tanto no nível da prática como no nível da discussão teórica,
são três espetáculos unidos por uma idêntica capacidade de lançar idéias e
debater com a platéia uma série de problemas que pareciam afastados do
palco brasileiro. À partir de seus específicos pontos de partida, os três,
mergulham na força potencial da linguagem nica e com uma
generosidade não isenta de eventual fragilidade, mas irrelevante diante do
vigor que possuem, se situam como centro de reflexão, contribuindo para
a necessária ampliação qualitativa do debate ideológico, na procura do
restabelecimento das liberdades democráticas.
208
no texto acima o reconhecimento, por parte do crítico, das dificuldades
encontradas até então na continuidade desta cena teatral. Mesmo seguindo caminhos
diferentes, as três peças são momentos que provam o vigor e o potencial desta opção
artística, que por mais que tivesse “afastada dos palcos” e não tivesse o reconhecimento
que ele julgava necessário, ainda não se via derrotada.
209
Pelo contrário (e entra a outra
Pereira, Leilah Assumpção, Isabel Câmara, Consuelo de Castro, Nélson Rodrigues, além da vinda do
Living Theatre ao Brasil, bem como espetáculos que se ancoravam nas experiências teatrais do Teatro
Brasileiro de Comédia, isso sem arrolar os grupos de teatro independentes. / De forma curiosa pode-se
dizes, apesar de referenciais históricos, estéticos e ideológicos totalmente diferenciados, estes nomes
todos podiam ser arrolados no campo da oposição, que foi múltipla e apresentou um horizonte de
preocupações, contribuindo, assim, para a formação de segmentos sociais extremamente críticos”.
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999,
p. 17.
208
PEIXOTO, Fernando. A recusa da inércia. Jornal Opinião, 08/04/1977, p. 16.
209
Por mais que Fernando Peixoto apresentasse tais espetáculos como indispensáveis naquele cenário teatral
brasileiro, esta opinião não foi unânime, como veremos no próximo capítulo. Na mesma crítica, Peixoto
demonstra este aspecto em relação à estes espetáculos: “No nível do pronunciamento da imprensa,
nenhum dos três espetáculos chegou a provocar, por insuficiência dos críticos (ou por censura dos
jornais), uma discussão mais conseqüente. O elogio e o adjetivo serviram, sem dúvida para promover o
êxito, mas a análise ideológica, a problematização crítica, a capacidade de estudá-los enquanto propostas,
foram raramente assumidas. Pouco antes de falecer, Paulo Pontes, vivamente preocupado com o
significado da atividade cultural em nosso instante histórico, lamentava que Gota D’Água não tivesse
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113
diferença), se a dois anos antes, a censura no teatro era implacável em suas ações,
proibindo espetáculos e vetando autores, especialmente aqueles ligados a uma prática
resistente e contrária à ditadura militar (como os autores acima citados, por exemplo),
havia agora novos elementos a serem discutidos: o restabelecimento das liberdades
democráticas. E isso não era pouca coisa. Significava, em termos gerais, a possibilidade de
toda uma geração colocar em cena aquilo que bem entendesse, sem preocupações com o
“lápis vermelho” dos censores. Peças que pudessem efetivar aquilo que Peixoto sempre
afirmou como necessário em suas críticas, como a questão da responsabilidade dos artistas
e da transformação social.
A possibilidade de “ampliação qualitativa do debate ideológico”, representada de
certa forma pelos espetáculos acima citados, era uma saída possível para a “crise” existente
no teatro brasileiro. O cenário descrito por Peixoto não era animador e necessitava,
urgentemente, de uma solução:
Reduzido aos estreitos e imponderáveis limites do permitido, enfrentando
uma censura que além de existir, ainda oscila segundo a subjetividade de
quem a executa, o teatro que se realiza hoje no País, especialmente em
nível profissional, sobrevive entre a escolha da mistificação e da mentira,
como caminho para não ser perturbado, buscando unicamente o lucro e
transformando o espectador num passivo receptáculo de idéias pré-
estabelecidas e imutáveis, portanto domesticadoras e anestesiantes, ou
então, assumindo os riscos mas também a responsabilidade social, opta
pelo esforço de, numa situação historicamente circunstancial mas
adversa, tentar problematizar o blico, através de espetáculos que,
enraizados na consciência nacional-popular, confrontem a realidade de
forma crítica, provocando o diálogo e a reflexão transformadora do
público. O primeiro naturalmente é sem espinhos, enquanto que o
segundo, apesar do estímulo do desafio, para os que sabem que a verdade
é concreta e que existirão sempre maneiras de colocá-la na cena desde
que a esperança de emancipação cultural e libertação social não seja
sufocada pelo desânimo ou pela apatia, implica em sensibilidade e astúcia
para vencer algumas armadilhas.
210
Não é a primeira vez que ele questionava o que estava sendo feito no teatro
brasileiro naqueles anos, empregando os termos “mistificação” e “mentira”. Por mais que a
censura fosse um entrave a ser considerado neste momento, ela não era a única
determinante para a “crise”. Na realidade, percebemos que sua preocupação não se resumia
apenas à censura, mas sim à capacidade dos dramaturgos e dos diretores em romperem o
provocado, sobretudo na imprensa, o tipo de debate ideológico que o texto sem dúvida alguma suscita”.
Ibid.
210
PEIXOTO, Fernando. A recusa da inércia. Jornal Opinião, 08/04/1977, p. 16.
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cerco com inteligência e responsabilidade. Novamente, temos aqui o crítico chamando a
atenção para a responsabilidade dos próprios artistas em buscarem soluções para os
desafios atuais. O “teatro comercial” é aqui citado e criticado tanto pelos motivos de sua
existência como pelas conseqüências daquele momento de “distensão”. A sua preocupação
com o público era visível e, ao citar o termo “nacional-popular”, ele sabia exatamente
aonde queria chegar. O último trecho da citação acima é uma demonstração sincera de
Fernando Peixoto em relação ao poder da atividade teatral como prática cultural e política.
Efetivamente, não podemos buscar respostas imediatas nas críticas de Peixoto.
Ainda que tenha exercido uma atividade sistemática, o que temos é um conjunto de
opiniões, questionamentos e análises que visavam alcançar uma prática teatral
diferenciada. Mesmo sendo, na maioria das vezes, respostas imediatas, quase que
instantâneas em relação ao cotidiano teatral brasileiro, elas são capazes de nos demonstrar
uma série de elementos que faziam parte do debate intelectual de alguns setores da
sociedade brasileira.
Trabalhar com as críticas de Fernando Peixoto passa por uma outra questão de
extrema importância que é a de refletir sobre o teor, a relevância e a necessidade do seu
comprometimento com a causa que sempre defendia. Em primeiro lugar, percebemos que
ele não estava sozinho (quando observamos suas críticas em relação ao teatro brasileiro) e
pelo fato de ter um espaço dentro da “imprensa alternativa” significa que as suas idéias não
estavam fora de lugar. Por mais que não tenhamos a exata noção de como eram recebidas,
elas eram escritas, publicadas e, possivelmente, lidas. O crítico também não estava isolado
numa “torre de marfim”, fazia parte de um determinado grupo e segmento artístico-teatral
em que acreditava em determinados projetos e atuava em várias frentes: no palco, na TV,
no cinema e nas páginas dos jornais.
Fica claro o “espírito” existente nas críticas de Peixoto: em primeiro lugar, o
espaço que ele ocupava nas páginas do Opinião não era para fazer publicidade ou elogios
gratuitos a parceiros ou colegas de profissão. De fato, o que temos é uma rigorosa e severa
descrição do cenário teatral brasileiro, um confronto direto com aquilo que ele não
concordava e um alerta constante sobre a necessidade de um trabalho engajado, consciente
e coerente com os anseios da população.
211
Assim, sua crítica não era descompromissada e
211
“A quem se dirige o Teatro Engajado? Não a todo o mundo. Êle tem inimigos; e os homens que admiram
os inimigos, ou se sentem de alguma maneira solidários com eles, podem desligar-se e ir embora. Os
inimigos não podem constituir um bom público. E os aliados? Pode-se sustentar a tese de que eles não
precisam ser catequizados. Mas a propaganda pode preencher as finalidades do ritual, uma das quais é
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limitada às páginas de jornal. Ela almejava interferir diretamente naquilo se fazia nos
palcos, na prática. Neste ponto, o trabalho dele no semanário acaba nos remetendo à do
crítico francês Bernard Dort.
No texto “Uma propedêutica da realidade”, também publicada no livro “Teatro e
sua realidade”, Dort afirma sobre a necessidade de fazer os espectadores [...] descobrirem
esta verdade fora do teatro e levá-los, pelo teatro, a ter um domínio sobre o mundo. Desta
forma, o teatro nos propõe uma propedêutica da realidade”,
212
ele deixa claro o que ele
entende como papel daqueles que estão ligados à atividade teatral, defendendo uma crítica
mais ampla e baseada na realidade circundante:
Por conseguinte, a noção de criação e a noção de obra dramática devem
ser submetidas a uma revisão. Mudou o centro de gravidade da atividade
teatral: ele não mais reside no palco nem unicamente na obra; situa-se de
certa forma na intersecção do palco e da platéia ou, melhor ainda, na
junção do teatro e do mundo. Impõe-se uma concepção do trabalho de
dramaturgia. Ou mais exatamente, o que deve ser questionado é o
trabalho teatral e não apenas o trabalho de dramaturgia. É verdade que
este continua a ser o trabalho de um escritor, mas não mais pertence
exclusivamente a ele. Deve ser tomado como responsabilidade por outro:
a peça é escrita para se transformar em representação.A obra teatral não é
elaborada somente no silêncio e na solidão do gabinete de trabalho, mas
também no próprio teatro, com a colaboração do autor, do “dramaturgo”,
do diretor e dos atores. Talvez seja nesta direção que devamos procurar
aquilo em que pensamos sempre que usamos a expressão “teatro total”
(desta vez será “total” não em razão da fusão dos meios de expressão
cênica, mas por resultar de uma elaboração coletiva). Uma obra teatral
deste tipo não poderia tampouco permanecer fechada, encerrada
ciosamente em suas próprias significações. Ela existe pelo que significa
para um público dado, num local e num momento precisos. Ao mesmo
tempo, é infinitamente modificável: é rica de outros sentidos, de outras
respostas e, sobretudo, de outras possíveis perguntas.
213
Há, na citação de Dort, uma alteração no enfoque que comumente é dado pelo
crítico teatral. Ao invés de se limitar apenas ao momento da representação de uma peça,
fortalecer as pessoas dentro das convicções que possuem e prepará-las para novas lutas. Mas acredito que
a platéia ideal para o Teatro Engajado não é nenhum dos campos militantes, e sim a massa humana que
está no meio, e que pode ter uma vaga simpatia para com a causa apregoada no palco, mas que se
encontra numa atitude um tanto entorpecida e apática. Os integrantes dessa massa podem concordar, mas
não estão realmente engajados; e a missão do Teatro Engajado não consiste em se pronunciar a favor do
Engajamento, mas em levar as pessoas a se engajarem. Creio que a maioria de todos nós pertence a êsse
tipo de público, e que o Teatro Engajado pode contar. por conseguinte, com uma freguesia
suficientemente ampla”. BENTLEY, Eric. O teatro engajado. In: ______. O Teatro Engajado. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 1969, p. 175.
212
DORT, Bernard. Uma propedêutica da realidade. In: ______. O teatro e sua realidade. São Paulo:
Perspectiva, 1977, p. 34.
213
Ibid., p. 35.
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existe a necessidade de direcionar o seu olhar para a zona de contato existente entre o palco
e a platéia. Da mesma forma, não se resume à dramaturgia, mas ao trabalho coletivo, onde
todos os envolvidos, técnicos, artistas e críticos, têm uma responsabilidade vital para que o
espetáculo seja colocado em cena e tenha os seus objetivos alcançados. Deixa entendido
que a encenação de um texto nunca se repete, mas que é posta à prova a cada momento em
que é levado ao palco. É um processo de avanços e recuos, uma dialética constante que
oferece respostas, mas sempre suscita perguntas.
Em outra reflexão intitulada “As duas críticas”, ao apresentar as funções clássicas
normalmente relegadas à crítica teatral: “[...] policiamento estético, constatação e,
sobretudo, publicidade”,
214
ele faz um apanhado histórico desta atividade na França nos
séculos XIX e XX. Também, de modo mais direto, Dort chama a atenção para o caráter
interno e externo que deve ser levado em conta numa representação teatral:
Critérios internos não são sufi1cientes para definir a atividade teatral. Ela
é também função de critérios externos. Fazer teatro é dirigir-se sempre a
alguém, mais exatamente a um grupo ou a uma coletividade, numa
situação política e social precisa. Também neste terreno houve uma
evolução considerável. Por um lado o público ao mesmo tempo cresceu e
se diferenciou: hoje não mais existe um único público aquele público
burguês em nome do qual falava a crítica do século XIX mas, sim,
vários públicos.
215
Mais uma vez as reflexões de Peixoto e Dort entram em confluência ao afirmarem
sobre a necessária relação do teatro com o público. Relembrando as críticas do primeiro, ao
assistir espetáculos em salas pequenas e com um público numericamente limitado, o que
temos é uma confirmação e justificação de suas ressalvas, a defesa de um teatro voltado
para uma “coletividade”, não para a “individualidade”. Daí tornar-se imperativa a reflexão
sobre a conjuntura política e social. A existência de “públicos” obriga-os a estarem atentos
às novas necessidades e às novas exigências que são feitas. Sem esta compreensão a arte
ficaria cada vez mais restrita e, em conseqüência de seu isolamento, resultaria a sua própria
morte.
Segundo a opinião de Dort a crítica teatral o é inútil. Ao que ele chama de
“crítica de consumo”, substituída pela publicidade direta e simples, deveria se contrapor
com um novo modo de análise, que conseguisse em sua essência abarcar vários aspectos e
significados. A sobrevivência desta função dependeria desta mudança:
214
DORT, Bernard. As duas críticas. In: ______. O teatro e sua realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p.
53.
215
Ibid., p. 55.
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Ela será ao mesmo tempo crítica do fato teatral como fato estético e
crítica das condições sociais e políticas da atividade teatral. Vamos
defini-la de um lado como crítica semiológica da representação teatral e
de outro lado como crítica sociológica da atividade teatral. Neste caso o
crítico se encontraria numa posição nova em relação ao teatro. Estaria
igualmente dentro e fora. É possível encontrar uma aproximação desta
função naquilo que os alemães chama de “dramaturgo”. Sem dúvida
podemos ter dúvidas sobre o trabalho de alguns “dramaturgos” nos dias
de hoje. Mas a exigência de um verdadeiro trabalho dramatúrgico se faz
sentir cada vez mais. E que é este trabalho dramatúrgico senão uma
reflexão crítica sobre a passagem do fato literário ao fato teatral? Uma
espécie de crítica antecipada. Aqui o vínculo entre uma nova definição da
crítica e do aparecimento da encenação moderna aparece com clareza.
216
O “novo crítico” que é sugerido nos textos de Dort é, no aspecto semiológico e
sociológico, o que Fernando Peixoto tentou ser e foi em diversos aspectos? Sem dúvida, a
experiência simultânea de Peixoto como diretor é algo a ser considerado ao lermos as suas
reflexões. Ele tem uma percepção cênica diferenciada por conhecer o “caminho das
pedras” para se chegar até a situação almejada. Suas análises não se resumem a
espetáculos, atores e diretores. Elas se estendem aos dramaturgos, ao público e
principalmente à situação estética e política do teatro brasileiro na segunda metade dos
anos de 1970. Um bom exemplo disso são suas reflexões sobre a cena teatral “alternativa”.
Ele não se prende às questões sensoriais e imediatas. Busca meditar sobre uma série de
razões e resultados que aqueles tipos de manifestações causariam naquele determinado
momento no país. Do mesmo modo quando questiona o “clássico” Nelson Rodrigues: uma
coisa é um espetáculo ser bem feito e bem produzido, outra é verificar se toda esta
produção tem alguma utilidade e valor naquilo que basicamente interessa: a transformação
política e social. Ao colocar em evidência o “teatro nacional-popular”, com suas pretensões
artísticas e políticas, entendemos a sua própria função como crítico. Não há como a crítica
dissociar o espetáculo do público que o assiste, todos os três estão organicamente ligados,
sendo um necessário para a sobrevivência do outro.
O próprio Bertolt Brecht é transcrito e citado em outra reflexão de Dort no sentido
de demonstrar a necessidade tanto de um novo fazer teatral como de uma nova forma de
fazer crítica.
[...] Brecht recusa tanto uma crítica das formas como uma crítica dos
conteúdos: a nova crítica, que reclama, terá de “estudar as representações
que os artistas se fazem do mundo, a ação dos homens, etc. [...] e quais
são as falsificações da verdade que resultam da utilização de certas
216
DORT, Bernard. As duas críticas. In: ______. O teatro e sua realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p.
57.
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formas estéticas (antigas). Deve ser materialista e deduzir uma forma de
arte de seu objetivo prático.
217
“Forma” ligada ao “objetivo”, “materialismo” e busca da “verdade” sobre os
homens e sobre suas ações no mundo. Em boa parte destas premissas Fernando Peixoto
procura ancorar a sua atividade crítica. Aqui, novamente, compreendemos um pouco mais
o universo crítico que ele vai criando nas páginas do jornal e as exigências em torno de um
teatro que tenha responsabilidade com aquilo que faz, sem mentiras ou qualquer tipo de
mistificações. Portanto, as críticas não são de forma alguma neutras, imparciais ou
inocentes. O que transparece é a figura de um intelectual ligado a determinado grupo social
e político, dentro de um jornal “alternativo”, com certa honestidade e coerência com um
conjunto de idéias e de reflexões que nos permite localizá-lo em dado campo de disputa
repleto de lados e de possíveis situações.
Pelo fato do trabalho do crítico não ser inocente e, muito menos, neutro, faz com
que Rosangela Patriota, ao analisar a dramaturgia de Vianinha e especialmente as críticas
em torno do texto Rasga Coração (1974), chegue a um determinado impasse sobre como
trabalhar com estas reflexões. Como são documentos históricos, valiosos e imprescindíveis
para a apreensão de elementos de um espetáculo, acabam se tornando mais poderosos que
os próprios objetos aos quais eles estão se referindo:
Nesse sentido, pode-se dizer que, na maioria das vezes, o trabalho do
crítico indica os “temas” e os “lugares” em que a História do Teatro deve
ser pensada. Ela realiza, além disso, uma seleção estabelecendo o que
deve figurar para a posteridade ou não. Talvez este seja o grande impasse
para o historiador que se propõe a pensar as produções artísticas como
documentos de pesquisa, sem que com isso ele aniquile o trabalho do
crítico [...].
218
Ao resolver o impasse ela se remete à trajetória e às próprias reflexões do
dramaturgo. Além disso, faz um mergulho profundo ao texto dramático, construindo assim
um olhar original e bastante consciente da ligação do documento com o tempo em que ele
é criado. Como alertado acima, o crítico em seu trabalho faz uma escolha de determinados
espetáculos, escritores, atores e diretores que acabam, após um período de insistência, de
repetição e de convencimento ganhando adjetivos, qualidades e defeitos que muitas vezes
são dissociados da realidade, perdendo o seu caráter “crítico”.
217
DORT, Bernard. As duas críticas. In: ______. O teatro e sua realidade. São Paulo: Perspectiva,
1977, p. 340.
218
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999,
p. 89.
Capítulo II
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Como percebemos, o crítico não tem um compromisso imprescindível com a
história que será escrita posteriormente. Apesar da consciência de seu poder, no sentido de
selecionar e, conseqüentemente, ocultar determinadas manifestações, o seu objetivo é mais
imediato e direto. Fernando Peixoto tem um interesse focado em questionar aquilo que
com desconfiança e desaprovação naquele determinado momento de luta. Se nesta queda
de braço sua idéia vai ganhar ou perder, é algo impossível de ele saber. O que existe é a
convicção de estar agindo de acordo com seus paradigmas. Além disso, o que influencia o
seu trabalho é a possibilidade de ir além das páginas, propor algo que seja posto em prática
e que tenha um resultado maior.
219
Não podemos esquecer a preocupação de Peixoto em fazer valer as suas opiniões
e querer, a seu modo, corrigir a cena teatral do país. O crítico Décio de Almeida Prado, na
introdução de uma coletânea de seus textos, expõe aspectos que são inerentes ao seu
próprio trabalho. Nesse caso, há por trás da crítica uma função educadora, como ele
mesmo salienta ao relembrar o seu empenho pela profissionalização do teatro brasileiro
desde o início da década de 1940:
Daí o tom algo didático, algo expositivo, de muitas crônicas,
principalmente das primeiras, quando o nosso teatro estava longe de
possuir a maturidade estética atual: em vez de criticar, expliquei uma
peça, situei um autor, servindo de intérprete junto ao público, ganhando
em alcance social, em ação sobre o meio, o que porventura perdi, sem o
menor remorso, em pureza estética. Em tais casos o que predominou,
creio, foi o desejo de servir ao teatro da melhor maneira possível. Pelo
mesmo motivo, se nunca procurei, também nunca fugi ao dogmatismo.
Embora tenha uma noção muito clara da relatividade de todos os juízos
estéticos, aceitando e acatando os alheios com o maior prazer, não vejo
como se possa fazer obra de crítica, como se possa dizer isto é bom ou
isto é mau, sem um mínimo de crenças, que serão talvez erradas mas são
as nossas, sem um mínimo de idéias em que se acredita e que se deseja
compartilhar com os outros. O dogmatismo, como no caso do magistério,
pode não estar na índole do indivíduo mas está na função exercida. Quem
219
O crítico norte-americano Eric Bentley, no prefácio de 1967 de O teatro engajado, onde reúne uma série
de críticas suas, escritas entre os anos de 1950 e 1960, faz uma interessante observação sobre as
expectativas do público em relação à crítica e aos limites da mesma: “A nossa cultura, e muito
especialmente a sua parte acadêmica, muito valor àquilo que resiste ao tempo, e tende a respeitar o
crítico pelo dom que êle possa ter de transcender o momento em que escreve. Assim sendo, a simples
incapacidade de alguém dar respostas às perguntas condicionadas pelo momento em que escreve chega a
ser considerada como um importante mérito: homens impotentes podem sempre se elogiados pela sua
castidade. É claro que existem boas e más maneiras de se responder às perguntas que o momento atual
coloca diante de nós, e deveríamos ser gratos aos escritores cujas respostas nos pareçam duradouras: Deus
sabe que êsses escritores não são numerosos”. BENTLEY, Eric. O Teatro Engajado. Rio de Janeiro: J.
Zahar, 1969, p. 17.
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ensina, ensina alguma coisa. Quem critica, critica em nome de alguma
coisa.
220
Mesmo tratando de um momento diferenciado e importante da história da crítica
no Brasil, Prado faz confissões pessoais e elucidativas sobre o teor histórico de sua
atividade, sempre ligada às necessidades do presente. Esta ligação intrínseca justificaria o
seu didatismo e até mesmo o excesso de compreensão e conivência em relação aos
espetáculos. Um crítico abnegado, que abre mão de determinados enfoques e discussões
por compreender os limites tanto do teatro como o do público brasileiro. Mas esta visão
construída em relação à própria atividade é logo superada ao afirmar sobre a relação
“incestuosa” entre crítica e dogmatismo. Mas, sem a escolha e sem a defesa de um ponto
de vista, a crítica perderia a própria função dentro do cenário artístico. Mesmo sem ter a
“verdade duradoura” como muitos gostariam que tivesse, ela apresenta uma “escolha” que
tenta ser justificada racionalmente.
221
Determinar a função da crítica é, portanto, algo necessário quando pensamos em
sua existência e em sua relevância no debate cultural, principalmente no período final do
regime militar em que Peixoto está vivendo e trabalhando dentro da imprensa alternativa.
O crítico Eric Bentley traz uma análise bastante interessante sobre a função crítica na
sociedade, que serve de contraponto inicial ao valor habitualmente dispensado à ela:
O crítico é somente um juiz. Um juiz não ajuda ninguém a cometer o
crime, nem tampouco a se abster de cometê-lo. Sua sentença tardia
demais para influenciar diretamente os atos em questão tem um valor
(se é que o tem) não para o réu, mas para a sociedade em que está em
liberdade. Insinuei, anteriormente, que o crítico teatral não deve ser
modesto a ponto de afirmar que êle é o “homem da rua”. (Aliás, entre a
sua poltrona na platéia e a sua cadeira na redação êle só conhece o
interior de um táxi.) Insisto, agora, em que êle não deve, tampouco,
pleitear para si o direito de influenciar os autores. Se, excepcionalmente,
êle chega a exercer êsse tipo de influência, e se ela é salutar tanto melhor;
êle está realizando um trabalho acima e além da sua obrigação. Mas o que
220
PRADO, Décio de Almeida. Introdução. In: ______. Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno. São
Paulo: Perspectiva, 2001, p. XXI.
221
O crítico Eric Bentley no texto “Que é o teatrode 1956 aponta a grande motivação do crítico em sem
trabalho – “o amor ao alvo”: “Mas antes que isso possa ser feito, precisamos examinar os nossos
preconceitos. Se tantas das minhas críticas, como também de outras pessoas, referem-se ao fato de
determinados artistas não terem atingido o alvo, é evidente que temos refletido sôbre o que seria êsse
alvo. Na realidade, crítica destrutiva se justifica como decorrência do amor pelo alvo não-atingido, da
mesma forma que os elogios m a sua justificativa no amor pelo alvo atingido. Mesmo se o nosso
objetivos reside apenas em criticar o crítico, precisamos saber qual é o alvo do seu amor, e, mais
precisamente, o que esse objeto tem de especial para justificar tal amor”. BENTLEY, Eric. Que é o
Teatro? In: ______. O Teatro Engajado. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1969, p. 54.
Capítulo II
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121
êle faz de modo regular e imperativo se limita a contribuir para criar o
clima de opinião dentro do qual os autores vivem.
222
Sem dúvidas as observações acima demonstram, por um lado, uma visão bastante
cética do trabalho do crítico. O seu trabalho é em cima de algo que foi feito, um espetáculo
que já foi encenado. Não tem como “influenciar” neste sentido. Mas por outro lado,
Bentley reconhece a importância da crítica pelo viés da “liberdade de opinião” e pela
manutenção de um debate constante entre as obras artísticas e suas condições de produção.
De certa forma, se pensarmos neste papel dentro da sociedade brasileira no final dos anos
de 1970, isto não é pouca coisa. Além disso, não podemos esquecer que Fernando Peixoto,
além de crítico, era naquele momento diretor teatral. Ou seja, não se limitava a ter uma
visão restrita do espetáculo teatral.
Gramsci também exerceu durante algum tempo a função de crítico teatral na Itália
entre os anos de 1910 e 1920.
223
Com base em sua experiência e preocupado com os rumos
da cultura em seu país durante o período fascista, mesmo preso, ele salienta em seus
cadernos do cárcere o papel da “crítica cultural” como integrante necessária em uma
sociedade em vias de transformação. Ao analisar o trabalho do crítico literário do italiano
Francesco De Sanctis no século XIX, reconhece certos aspectos que são essenciais para
este tipo de atividade, principalmente se pensarmos na função que a mesma tem no
processo de luta e de transformação de uma determinada realidade:
[...] neste tipo devem se fundir a luta por uma nova cultura, isto é, por um
novo humanismo, a crítica dos costumes, dos sentimentos e das
concepções de mundo, com a crítica estética ou puramente artística, e isso
com fervor apaixonado, ainda que na forma do sarcasmo.
224
Os textos gramscianos sobre o papel da crítica e da arte nas sociedades em geral,
pelo próprio histórico de luta empreendido por ele no início do século XX, sempre se
referem à responsabilidade social por parte de artistas e de intelectuais. No início do trecho
acima, percebemos o teor revolucionário existente no trabalho cotidiano de vários setores
da população, principalmente daqueles que se propõem a tais papéis. Mas as características
finais são as que mais chamam a nossa atenção: o pensador italiano deixa claro que, num
momento de luta e de oposição, existe a necessidade do “fervor apaixonado” e do
222
BENTLEY, Eric. O teatro norte-americano (1944-1954). In: ______. O Teatro Engajado. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 1969, p. 26-27.
223
Em relação às críticas de Gramsci publicadas no jornal italiano Avanti entre 1916 e 1920: GRAMSCI,
Antonio. Literatura e Vida Nacional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978, p. 191-265.
224
Id. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 66. v. 6.
Capítulo II
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122
“sarcasmo” para que surta efeito todas as ações no campo da cultura. Pode-se acrescentar
aqui mais uma questão à respeito do trabalho do crítico e, em especial de Fernando
Peixoto. O caráter sempre polêmico e incisivo de seus textos (concordemos ou não com
suas opiniões) não pode estar ligado ao fervor advindo do combate ocorrido naquele
momento, nas páginas dos jornais?
Por outro lado, ao afastar o trabalho crítico de uma imediatez acalorada, Gramsci,
em outro momento, aponta três características fundamentais no exercício desta função: a
sinceridade, a espontaneidade e a disciplina. Ainda que num primeiro momento pareçam
inconciliáveis (especialmente os dois últimos)
225
ele demonstra ser possível tal esforço,
caso tenha um objetivo a ser alcançado e que tais termos estejam situados numa conjuntura
específica:
A sinceridade (ou espontaneidade) é sempre um mérito de um valor? É
um mérito e um valor se disciplinada. Sinceridade (ou espontaneidade)
significa máximo de individualismo, mas também no sentido de
idiossincrasia (originalidade, neste caso, é igual a idiotismo). O indivíduo
é original historicamente quando o máximo de relevo e de vida à
“socialidade”, sem a qual ele seria um “idiota” (no sentido etimológico,
mas que não se afasta do sentido vulgar e comum). [...] um
conformismo “racional”, isto é, correspondente à necessidade, ao mínimo
esforço para obter um resultado útil; e a disciplina deste conformismo
deve ser exaltada e promovida, deve ser transformada em
“espontaneidade” ou “sinceridade”. [...] É demasiadamente fácil ser
original fazendo o contrário do que todos fazem; é uma coisa
mecânica.
226
O trecho acima deixa no ar algumas questões problemáticas ao pensarmos na
figura do intelectual e de sua pretensa liberdade em questionar tudo o que vê. Em primeiro
lugar, fica claro que o intelectual tem uma ligação óbvia com determinados setores da
sociedade e que, por isso mesmo, ele tem determinados compromissos e limites em sua
ação. Não é a primeira vez que isso aparece em seus escritos.
227
Após isso, num jogo de
225
Gramsci, num momento posterior de seu texto, define da seguinte maneira o que ele entende como
“verdadeiro conformismo”: “[...] O problema é este: qual é o “verdadeiro conformismo”, isto é, qual é a
conduta “racional” mais útil, mais livre, na medida em que obedece à “necessidade”? Ou seja: qual é a
“necessidade”? Cada um é levado a fazer de si o arquétipo da “moda”, da “socialidade”, e a apresentar-se
como “exemplar”. Portanto, a socialidade, o conformismo é resultado de uma luta cultural (e não apenas
cultural), é um dado “objetivo” ou universal, do mesmo modo como não pode deixar de ser objetiva e
universal a “necessidade” sobre a qual se eleva o edifício da liberdade. Liberdade e arbítrio, etc.”.
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 249. v. 6.
226
Ibid., p. 248.
227
“Todo grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da produção
econômica, cria para si, ao mesmo tempo, organicamente, uma ou mais camadas de intelectuais que lhe
dão homogeneidade e consciência da própria função, não apenas no campo econômico, mas também no
social e político [...]”. Id. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2004, p. 15. v. 2.
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123
palavras aparentemente antagônico, Gramsci chama a atenção para a necessidade da
“sinceridade” ser “disciplinada”. Ao pisar num terreno pantanoso (fica implícita a
necessidade de uma “coerção”
228
que limite determinados aspectos que não correspondam
à necessidade da luta), ele busca sair desta situação ao demonstrar a necessidade de
organização racional, principalmente no “calor da emoção”, para não perder o foco. Existe
a necessidade de resultados rápidos, não sendo o momento para reflexões sem rumo,
contraditórias em si mesmas. Gramsci pensa especificamente em sua luta no Partido
Comunista Italiano e no jornal L’Ordine Nuovo”, que fundou e onde foi um opositor
ferrenho do regime fascista e de Benito Mussolini.
De certa forma, mais uma vez podemos pensar na atividade crítica exercida por
Fernando Peixoto. As exigências que fazia em relação ao trabalho dos colegas, a busca de
um teatro socialmente útil e capaz de exercer um papel transformador na sociedade são
exemplos de como o crítico, em sua função, exige um determinado conformismo e
disciplina em relação ao seu objeto analisado, no caso, o teatro brasileiro. Não podemos
nos esquecer que Peixoto, sempre que podia, fazia uma crítica incisiva em relação aos
espetáculos “experimentais”, que reuniam uma quantidade ínfima de espectadores e não
tinha nenhuma ligação orgânica com a realidade social brasileira. Na realidade, como para
Gramsci, ele não via nenhuma originalidade naqueles grupos ao fazer o “contrário”.
Original seria algo que teria relevância, seria diferente e, além de tudo, capaz de comunicar
efetivamente com as massas, não mero exercícios “idiotas”, isolados em si mesmos.
229
228
Para Gramsci a “coerção” é um termo presente em qualquer situação social, conscientemente ou
inconscientemente: “A coerção social! Quanto se deblatera contra esta coerção, sem pensar que se trata de
uma palavra! A coerção, a orientação, o plano são simplesmente um terreno de seleção dos artistas, nada
mais; e que são selecionados para finalidades práticas, isto é, num campo onde a vontade e a coerção são
perfeitamente justificáveis. Caberia examinar se a coerção não terá sempre existido! Se é exercida
inconscientemente pelo ambiente e pelos indivíduos, e não por um poder central ou por uma força
centralizadora, deixa por isso de ser coerção? Trata-se sempre, no fundo, de “racionalismo” contra o
arbítrio individual. Então, a questão não diz respeito à coerção, mas ao fato de se tratar de racionalismo
autêntico, de real funcionalidade, ou de um ato de arbítrio: eis tudo. A coerção é tal para quem não a
aceita, não para quem a aceita: se a coerção se desenvolve segundo o desenvolvimento das forças sociais
não é coerção, mas “revelação de verdade cultural obtida com um método acelerado”. GRAMSCI,
Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 250. v. 6.
229
“Os ‘lugares comuns’ pelo avesso. Para muitos, ser ‘original’ significa apenas inverter os lugares-comuns
dominantes numa certa época: para muitos, este exercício é o máximo da elegância e do esnobismo
intelectual e moral. Mas o lugar-comum invertido permanece sempre um lugar-comum, uma banalidade.
O lugar-comum invertido talvez seja ainda mais banal do que o simples lugar-comum. O bohémien é mais
filisteu do que o comerciante interiorano. Daquele sentimento de tédio que advém da freqüência de
certos círculos que se acreditam de exceção, que se apresentam como uma aristocracia distanciada da vida
ordinária. O democrata é maçante, mas muito mais o é o autoproclamado reacionário que exalto o
carrasco e, quem sabe, as fogueiras”. Id. Cadernos do Cárcere. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2007, p. 141. v. 4.
Capítulo II
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124
A luta pela transformação teatral efetivada por Peixoto tinha objetivos claros e,
por uma questão de análise, tinha um momento certo para ser posta em prática: a busca por
um “teatro nacional-popular” no final da década de 1970. Por isso afirmava em suas
reflexões a necessidade do teatro brasileiro modificar-se para sobreviver. Em relação à sua
postura como crítico, ele sabia que naquele momento, sob um regime militar que utilizava
da censura como meio de cercear as idéias oposicionistas, havia uma necessidade de
aprofundar o máximo possível nos aspectos da cultura brasileira.
230
Estes conhecimentos
seriam imprescindíveis para que sua crítica tivesse fundamentos convincentes e capazes de
demolir o “velho” e o pretensamente “novo”.
Neste sentido, as reflexões de Gramsci acenam para a capacidade do crítico em
reconhecer que não é todo dia que se produz uma obra-prima e, também, que a arte nem
sempre caminha para o rumo que necessariamente acredita-se que ela vá tomar. Assim
como as de Bentley apontam para uma manutenção de um nível de discussão em torno de
questões artísticas e políticas dentro da sociedade. Por isso mesmo, a necessidade de ter
uma amplitude maior e mais realista do momento em que está lidando. Mesmo tratando de
obras literárias, o fragmento a seguir, cabe bem quando pensamos no ímpeto e na ousadia
existente tanto nas críticas de Peixoto no jornal Opinião (analisadas neste capítulo) como
nas críticas do Movimento, que vêm a seguir:
[...] Precisamente por isto, a atividade crítica normal não pode deixar de
ter um caráter preponderantemente “cultural” e ser uma crítica de
“tendências”, a não ser que se torne um contínuo massacre.
E, neste caso, como escolher a obra a massacrar, o escritor a demonstrar
como alheio à arte? Este parece ser um problema negligenciável, mas, ao
contrário, se refletirmos do ponto de vista da organização moderna da
vida cultural, é um problema fundamental. Uma atividade crítica que
fosse permanentemente negativa, feita de demolições, de demonstrações
de que se trata de “não-poesia” em vez de “poesia”, tornar-se-ia
aborrecida e revoltante: a “escolha” pareceria uma perseguição ao
indivíduo ou poderia ser considerada “casual” e, portanto, irrelevante.
Parece certo que a atividade crítica deva ter sempre um aspecto positivo,
no sentido de que deva ressaltar, na obra examinada, um valor positivo, o
qual, se pode não ser artístico, pode ser cultural; e, neste caso, não
230
“[...] Apresentam-se casos extremos: o de quem acha que jamais houve algo de novo sob o sol e que o
mundo inteiro é como a aldeia, mesmo na esfera das idéias; e o de quem, ao contrário, encontra
“originalidade” a todo momento e considera original qualquer ruminação por causa da saliva nova. O
fundamento de toda atividade crítica, portanto, deve se basear na capacidade de descobrir a distinção e as
diferenças por baixo de toda superficial e parente uniformidade e semelhança, bem como a unidade
essencial por baixo de todo aparente e superficial contraste e diferenciação”. GRAMSCI, Antonio.
Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 69-70. v. 6.
Capítulo II
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125
contará tanto o livro singular, salvo casos excepcionais, mas sim os
conjuntos de obras classificados segundo a tendência cultural.
231
Se, como crítico, Peixoto tem a possibilidade de escolher quem serão
“massacrados”, ele, ao mesmo tempo, tem a opção de eleger aqueles que serão
“preservados” e “elogiados” em seus textos publicados. Obviamente, a destruição pura e
simples perderia o sentido e seria, possivelmente, desacreditada. É necessário ir além,
reconhecer os avanços, mesmos aqueles feitos em terrenos nada favoráveis. Transparece
aqui uma última característica que gostaríamos de salientar, que é o risco que correu ao
fazer opções claras e sinceras em relação ao teatro brasileiro naquela segunda metade da
década de 1970. Ao questionar, num de seus primeiros textos, a saída para o impasse em
que a classe teatral estava inserida, ele construiu gradativamente a sua resposta nos textos
subseqüentes: “teatro nacional-popular”. Isto significou uma tomada de posição num
ambiente repleto de caminhos, como já pudemos perceber.
Peixoto continuava desempenhando a sua função como crítico teatral no jornal
Movimento. Ele, por princípios, permanecia dentro da “imprensa alternativa”. Esta, ainda,
era uma saída viável para vários intelectuais que tinham um posicionamento diferenciado
em relação à situação vivida pela sociedade brasileira. Ele, como crítico, continuava na luta
com suas armas Começava a visualizar novos desafios que surgiam no cenário teatral
brasileiro. Na parte a seguir, tentaremos perceber, a partir de suas críticas neste jornal, a
sua atitude diante destes desafios, a sua persistência na busca de um teatro socialmente
responsável e a sua decisão diante da realidade que a cada dia se mostrava desalentadora e
atroz.
231
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 106. v. 6.
Escrever críticas de teatro é pior
do que pisar em ovos: é pisar em
corpos vivos e fazê-los
sangrar.[...] Às vêzes tenho a
sensação de que o exercício da
crítica teatral é a arte de fazer
inimigos e de não influenciar
pessoas.
Eric Bentley – O teatro engajado
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3.1 JORNAL MOVIMENTO: A CONTINUIDADE DE UM PROJETO CRÍTICO NA
IMPRENSA ALTERNATIVA
Fernando Peixoto acompanha o grupo de jornalistas, capitaneados por Raimundo
Rodrigues Pereira, que saem do Opinião no início de 1975 e decidem fundar um novo
periódico, o semanário Movimento. Neste, foi um dos editores assistentes da seção cultural,
juntamente com Flávio Aguiar (editor), José Miguel Wisnik, Jean Claude Bernadet e Maria
Rita Kehl. Foi o responsável pelas críticas e análises teatrais e, fez parte, também, do
“Conselho de Redação”,
232
exercendo uma função mais ampla dentro do jornal.
Ao reunirmos suas críticas que vão do ano de 1975 ao ano de 1979 (sessenta e
sete artigos no total) temos um vasto e abrangente material, textos que faziam parte de
discussões e de disputas em torno de visões e interpretações sobre a arte e o teatro que se
produzia no país. Havia uma vontade constante por parte do autor de colocar seus pontos
de vista de maneira franca e direta, provocando a dúvida, a polêmica e, conseqüentemente,
o debate.
Mesmo não sendo uma preocupação apenas em seus textos no jornal Movimento,
ele acaba analisando com mais profundidade o que ele chama de “teatro comercial”, que
dentro do complexo panorama teatral daquele momento era considerado um entrave a
determinados direcionamentos que ele acreditava serem necessários para a consolidação de
uma cena “nacional-popular”. Efetivamente, teremos neste novo jornal uma séria de temas
e de discussões trabalhados anteriormente no Opinião, como a influência de Brecht, a
crítica aos clássicos e à tradição teatral brasileira representada principalmente por Nelson
Rodrigues, pelo TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) e em relação a Procópio Ferreira.
Mas estes questionamentos vão paulatinamente ganhando contornos diferenciados, sendo
aprofundados e redefinidos na tentativa de responder ativamente aos desafios do presente.
Em Movimento a questão do “nacional-popular” é bem mais defendida e debatida, assim
como o papel do ator e do encenador neste processo de resistência.
232
Dele faziam parte os seguintes nomes: Aguinaldo Silva, A. C. Ferreira, Bernardo Kucinski, Elifas
Andreato, Francisco de Oliveira, Francisco Pinto, J. C. Bernadet, Marcos Gomes, Maurício Azedo, R. R.
Pereira, Teodomiro Braga, Sérgio Buarque, Juca Martins, Flávio de Carvalho, Flávio Aguiar.
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3.2 A IRRESPONSABILIDADE, A MENTIRA E A MISTIFICAÇÃO: A
SOBREVIVÊNCIA DO TEATRO BRASILEIRO POR UM MILAGRE
No início do ano de 1976, Peixoto chega a uma intrincada constatação sobre o
teatro brasileiro. Numa crítica ele afirma que o teatro sobrevive graças a um “milagre”.
Ainda que ele utilize um termo religioso para expressar a sua opinião, ele não concede
nenhum poder sobrenatural as razões desta sobrevivência. Pelo contrário, ele não abre mão
de descrever os fatores reais e concretos que ajudariam a compreender esta situação:
O processo de desenvolvimento do teatro brasileiro está
fundamentalmente apoiado na prática cega e no risco inevitável. Não
existe uma reflexão teórica conseqüente. E isto não apenas no nível da
discussão crítica, do estudo de tendências ou posturas que se definem no
plano ideológico, da análise articulada como crítica da linguagem ou
aproximação do que seria a manifestação estética. O espetáculo como
mercadoria, o produto como planificação, a sondagem de mercado, o
conhecimento da composição do público real ou potencial, estes e outros
fatores indispensáveis para uma ação coerente e responsável (inclusive
para a produção da cultura) são inteiramente desconhecidos. Hoje o teatro
no país continua sobrevivendo por milagre. Mas seria justo mergulhar na
estrutura deste milagre para desmistificar seus elementos e conhecer a
verdade dos problemas. E das vitórias parciais e quase acidentais.
233
Ao levantar tais “temas” para análise, ele indica um caminho para superar estas
contradições. Há, em certo sentido, uma crítica em torno do desconhecimento, da
ignorância e da despreocupação por parte de seus companheiros de profissão. Um dos
primeiros pontos que surge é a necessidade de um exame mais detalhado das diversas
forças ideológicas, políticas e estéticas que agiam sobre o teatro, ou seja, uma consciência
profunda dos significados de espetáculos, que, efetivamente, não eram soltos no ar. O
conhecimento do público “real” e, principalmente, o “potencial”, também entra em suas
preocupações por serem informações relevantes no trabalho de ampliação quantitativa e
qualitativa do mesmo. E, por fim, analisar as conseqüências de produzir e fazer teatro,
engajado e politicamente responsável dentro de uma sociedade de mercado, sendo o
próprio espetáculo uma mercadoria a ser consumida. Como superar estas condições, estes
limites, estas contradições?
Os entraves percebidos por Peixoto são muitos e as respostas não são dadas
imediatamente. Em 1977, pouco mais de um ano após a crítica anterior, o problema do
233
PEIXOTO, Fernando. Os mistérios do milagre. Jornal Movimento, 16/02/1976, p. 16.
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“teatro comercial” faz parte das preocupações do crítico e ele busca uma maneira de
contrapô-lo. Aqui se inicia uma polêmica em torno do significado e do valor desse tipo
de teatro, principalmente em relação ao espaço limitado de ação e do impacto perante a
popularização do mesmo. Sua análise busca detalhar a função de uma figura que se torna
indispensável para o funcionamento do teatro brasileiro: o “empresário”. É interessante o
esclarecimento que faz de determinados pontos desta situação:
[...] O que poderia ser discutido, entretanto, seria o significado em relação
ao espetáculo, de ser empresário, em diferentes períodos. O que existe
hoje de novo, em certo sentido, é o fato de que, até poucos anos atrás,
nem sempre era certo ou fácil esquematizar as relações de produção, no
setor do teatro profissional, numa simples e mecânica divisão que
colocasse, como simplesmente opostos, patrão e empregados. O que
evidentemente não implica em imaginar que a contradição não existisse.
Mas ela assumia características inesperadas, muitas vezes bastante
complexas. Desafiando uma constatação superficial ou imediata. Na
análise histórica do papel nem sempre antagônico que assumiram estes
dois pólos de uma contradição irrecusável, certamente encontraremos
resposta para as diferentes fases da história recente do teatro brasileiro
profissional. Assim como uma explicação mais nítida para a situação
atual.
234
Mesmo não sendo nova a distinção que ele apresenta entre “patrão” e
“empregados”, ela se expressava no final da década de 1970 de uma maneira diferenciada,
com interesses nitidamente antagônicos.
235
A separação, símbolo desse profissionalismo, é
vista de maneira negativa pelo crítico pelo fato de que o objetivo de um lado não é mais,
necessariamente, o objetivo do outro. As relações se tornam exclusivamente
“profissionais” e pautadas por questões financeiras, perdendo assim todo um conjunto de
elementos que poderiam enriquecer e complementar a atividade teatral. Na realidade, o
problema apontado por Peixoto não é a figura do “empresário” em si, que sempre existiu
no esquema teatral, tendo uma função útil e necessária para o seu funcionamento. O
234
PEIXOTO, Fernando. O produtor e o produto. Jornal Movimento, 09/05/1977, p. 16.
235
O crítico Yan Michalski apresenta um quadro fragmentado do teatro brasileiro na década de 1970 que
acaba tendo que se amparar na figura do “empresário” para a sua continuidade: “[...] Já as companhias de
teatro ligadas a um esquema empresarial basicamente os diferentes “filhotes” do TBC desintegraram-
se, enquanto companhias estáveis, bem antes de 1971. O que sobrará, de agora em diante, será
basicamente apenas o sistema de produção avulsa: o detentor do capital que pode ser um produtor
profissional, mas na maioria das vezes é um ator ou diretor consagrado que assume também a
responsabilidade financeira do empreendimento contrata a equipe para um espetáculo específico que
pretende montar; terminada a carreira da peça, cada um vai cuidar de sua vida e procurar novos
compromissos profissionais. É evidente que estas características da produção terão repercussões sobre os
aspectos artísticos da vida teatral, da mesma forma como, aentão, a existência de grupos permanentes
cujos integrantes se haviam escolhido em nome de uma definida afinidade, determinara as linhas mestras
dos resultados artísticos do seu trabalho”. MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de
resistência. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985, p. 48.
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problema refere-se aos “novos” empresários que vinham dando uma outra orientação,
enfoque e objetivos para o que era feito naquele momento.
A “nostalgia” em relação à antiga forma de produção percebida na próxima
citação advém mais do processo que estava em desenvolvimento e que foi bruscamente
impedido de prosseguir, do que de uma situação estabilizada propriamente dita. A
interrupção de um movimento pela substituição de outro, totalmente diferente, é algo que
causa apreensão e dúvida. O que se nota é quase uma perda de sentido, mais profundo e
conseqüente da atividade teatral feita a partir deste momento, com estas preocupações:
Pois nos últimos anos, sem dúvida, o empresário vem sendo mais
facilmente reconhecido como sendo aquele que, finalmente define uma
postura ideológica na produção teatral. Não porque somente agora ele
objetivamente tenha esta posição. Mas porque somente agora está se
fortalecendo e crescendo um novo tipo de empresário, desvinculado de
qualquer tipo de responsabilidade ou compromisso com o significado
sócio–cultural da produção. [...] Um empresário, portanto, que assume,
em suas últimas conseqüências, o papel de investir capital, passando a
atuar, no mercado da produção artística, como um capitalista interessado
unicamente no acúmulo de capital e no aumento de seu lucro. O que,
evidentemente, implica em tratar o público como “cliente”. Considerá–lo
como um receptáculo anestesiado e passivo de idéias que domesticam ou
suprimem sua capacidade de ser sujeito de seu pensamento. Sufocar,
assim, qualquer tentativa de fazer da expressão artística um processo vivo
de diálogo e reflexão, debate e discussão, perplexidade e dúvida,
descoberta e conhecimento. Neste caso, problematizar seria um pecado
inadmissível.
236
Os termos utilizados pelo crítico ao caracterizar o “novo” empresário e a maneira
como este trata tanto o espetáculo como o público vai de encontro diretamente com toda a
sua concepção artística, que pôde ser percebida no decorrer do nosso trabalho. Este
“empresário” que tem o lucro econômico como objetivo final acaba por perder parte de sua
função dentro da “cultura”, como alguém que provoca, instiga e, principalmente, arrisca.
Passa a ser um agente do mercado, oferecendo algo fácil, testado e aprovado
anteriormente, sem romper e sem buscar nada que destoe de um gosto comum e
tradicionalmente aceito.
Sem dúvidas, a maneira como é descrito o tratamento “comercial” dado à
atividade artística gera um desconforto à primeira vista. O público, nesta perspectiva,
também é tratado indistintamente, apenas como alguém que compra um ingresso e que
consome um produto. Desaparece qualquer intenção que busque dar um novo significado à
236
MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985, p.
17.
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arte teatral. É óbvio que não podemos esquecer que uma peça, seja qual for o seu objetivo
final, sempre precisou de um suporte financeiro não apenas para a sobrevivência do
espetáculo, mas para a sobrevivência dos artistas e das pessoas envolvidas com o mesmo.
O cerne da questão levantada por Peixoto está em eleger prioritariamente a questão
econômica, como a única considerável ao escolher e colocar um texto em cena.
Não obstante, Fernando Peixoto demonstra a necessidade dos grupos e das
companhias teatrais brasileiras, que buscam fazer um teatro diferenciado e socialmente
responsável, de estarem preparados para enfrentar tal situação sem perderem a razão de
seus projetos:
A situação, entretanto, o chega a ser totalmente trágica. É, sobretudo,
nova. Isto porque alguns produtores, mais lúcidos, são diferentes dos
outros. Não teria sentido colocar todos os gatos no mesmo saco. E
também alguns atores conscientemente resistem, produzindo, não sem
dificuldades, seus próprios espetáculos. Aprenderam, inclusive, a
fortalecer as suas pequenas empresas, para torná-las mais resistentes a
uma disputa de mercado que se torna, sem dúvida, mais feroz. Sem isso,
suas propostas ideológicas, de oposição ao sistema, seriam neutralizadas.
Esta passagem, verificável na prática do teatro profissional brasileiro de
hoje, de um estágio econômico deficiente e pobre para uma fase
profissional superior, sem dúvida é um fato irretorquível.
237
Fazer voltar a “roda da história” não é a pretensão de Peixoto. Ele reconhece a
passagem de uma determinada situação para outra e que, por causa disso, novos elementos
surgem e são incorporados. Por isso, a ênfase que ele à “lucidez” e à capacidade de
“resistência” por parte de alguns produtores. Estes artistas e suas produções tornam-se
imprescindíveis no processo de continuidade, de pesquisa e de embates. São, em última
análise, os que salvam o teatro brasileiro de se tornar uma “tragédia completa”.
Esta opinião de Peixoto sobre a necessidade de mudanças na cena teatral brasileira
não difere muito do crítico francês Bernard Dort. No texto “Teatro político: uma revolta
copernicana” ele se refere novamente às reflexões brechtianas. Estas seriam
importantíssimas ao apontar formas diversas de enfrentar a crise de um teatro cada vez
mais distante e descompromissado com as questões políticas e sociais. Apostando numa
profunda transformação de idéias e valores, ele faz a seguinte observação:
Certamente uma tal reforma no conjunto de teatro não pode ser realizado
do dia para a noite. É um empreendimento para longo prazo. Mas
acredito que ela esteja em vias de se realizar, entre as incertezas e as
provocações de todas espécie. Em todo caso, ela representa, para o teatro
atual – para todo teatro político de hoje – um caso de vida ou morte. Face
237
PEIXOTO, Fernando. O produtor e o produto. Jornal Movimento, 09/05/1977, p. 18.
Capítu
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132
às mudanças que se produzem na nossa vida social e face à multiplicação
dos meios de comunicação (que são também meios de interpretação e de
disfarce da vida social), ou o teatro se modifica e oferece aos homens a
possibilidade (artística, é óbvio) de colocarem em questão sua própria
existência cotidiana e as imagens que elas fazem do mundo, ou então
permanecerá e se tornará, cada vez mais, um simples meio de
divertimento: o local e a ocasião de um jogo sem conseqüência, um
destes estabelecimentos “culinários” de que Brecht escarnecia há cerca de
cincoenta anos. Agora não mais escapatória: os homens de teatro e os
espectadores conscientes o sentem. A questão de um novo teatro político
não é uma entre outras. É sobre ela que nosso teatro joga sua cartada
decisiva.
238
Nas previsões de Dort, o teatro como “diversão” (e porque não pensarmos, à
maneira de Peixoto, o “teatro empresarial”) não conseguiria abarcar todas as necessidades
de um público que, segundo ele, estava mais consciente, exigente e não hesitaria em
abandonar uma arte estática, imediatista e fragmentada. Além disso, um outro fator
concorrente é colocado nesta equação: as outras formas de “diversão” que se consolidavam
a partir da segunda metade do século XX como o cinema e a televisão. Eram mais baratas e
práticas tanto no acesso como na recepção. A opção por um “teatro político”, dinâmico e
humano, neste caso, não era mais uma no “cardápio das tendências artísticas”, seria a
própria arte, viva e transformada.
Não era a primeira vez que Fernando Peixoto reconhecia a importância de resistir
com um teatro politicamente engajado contra os valores mercadológicos que tomavam
conta do teatro brasileiro naquele momento. Num artigo escrito em fevereiro de 1977,
intitulado “A necessária resistência do teatro empresarial”, ele já chamava a atenção para o
valor de tal atitude no próprio título. No texto, ele continua apontando os dilemas a serem
superados:
É igualmente evidente que, dentro do fechado sistema atual, com o risco
sempre de ser por ele totalmente anestesiado ou absorvido, o teatro
profissional, impedido de ser livre como deveria ser, tem um campo de
ação limitado por precisas dificuldades econômicas. A bilheteria é um
risco sempre. Quando dela depende quase tudo, é evidente que o
inevitável risco assume proporções assustadoras, pois um fracasso pode
determinar a falência de uma empresa. Diante da bilheteria, cabe ao
empresário saber como agir, segundo seus projetos, que muitas vezes
estão em contradição com a tarefa de empresários, com certo equilíbrio:
nem tanto ao mar, nem tanto à terra. O que não significa que,
necessariamente, como o determinismo do raciocínio radical equaciona,
precise abdicar de sua possível dignidade, de sua utilidade específica
238
DORT, Bernard. Teatro político: uma revolta copernicana. In: ______. O teatro e sua realidade. São
Paulo: Perspectiva, 1977, p. 405.
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enquanto instrumento de cultura social ao lado das emergentes forças
populares.
239
no trecho final a razão pela qual se faz a exigência de um teatro digno e útil
socialmente: a “emergência das forças populares”. O teatro, aqui compreendido, faz parte
da mudança que o crítico percebe na realidade. Ele é razão e conseqüência, não se
desvinculando do movimento e das transformações. Outra vez, a questão da sustentação
financeira é posta em debate. O aspecto da bilheteria tem um peso muito grande em todo
esse processo e não pode ser desconsiderado, ainda mais se tratando de um teatro que se
dispõe a ser “nacional-popular”. Mas no trecho acima algo novo, em se tratando da
habitual intransigência de Peixoto percebido em boa parte de suas críticas, tanto no
Movimento como no Opinião: a preocupação do “empresário” em manter a sua
“dignidade”, sabendo medir e calcular as suas ações.
Mas essa postura “equilibrada” e a incorporação de elementos “comerciais” na
produção de espetáculos não seria uma concessão
240
visando apenas a sobrevivência que,
de toda maneira, continuaria precária e sempre subsistente? O raciocínio de Peixoto vai
além, faz parte de uma estratégia, algo inevitável que será superado:
Existe, sem dúvida, uma parte considerável do teatro empresarial que
mergulha decididamente na produção de um tipo de espetáculo que, de
forma irresponsável, assume a mentira e a mistificação. Mas existe
também, enquanto oposição nacional–popular, um outro tipo de teatro
empresarial que compreende suas contradições e limites, mas trabalha
assim mesmo, assumindo a perspectiva das classes populares. E cumpre
seu papel decisivo na elaboração de um teatro crítico e realista que
certamente, em condições melhores, terá que, somente então, negar
239
PEIXOTO, Fernando. A necessária resistência do teatro empresarial. Jornal Movimento, 23/02/1977, p.
15.
240
Em seu depoimento ao Serviço Nacional de Teatro no ano de 1976, Gianfrancesco Guarnieiri faz uma
interessante análise sobre o termo “concessão”, alterando a conotação radical do termo, mostrando a
possibilidade de estar inserido em seu próprio tempo, com todas as suas contradições, e consciente dos
limites de seu papel: “Em primeiro lugar, o termo concessão, para mim, tem outra conotação, entende? Eu
acho que a gente não concede nunca na medida em que você está conquistando outro tipo de negócio. Eu
não concedo se eu estiver escrevendo a lápis, simplesmente, porque eu tenho máquina. E estou
escrevendo a lápis porque eu quero. Então, não chamo de maneira nenhuma, a esse ato, de concessão.
Concessão, para mim, quer dizer quando falo a palavra concessão, eu estou me referindo a outra atitude.
É no sentido de conceder para o outro lado. Eu estou concedendo, se fizer uma pornochanchada, por
exemplo. Eu concedo se eu escreve o que eu não sou. Se eu for escrever um texto pra uma
pornochanchada, eu vou estar mostrando o que eu não sou, fazendo o que eu não gosto. Aí, sim, estou
concedendo. Se eu gostar de escrever aquilo, então, escrevo aquela pornochanchada, e não tem problema
nenhum. Porque eu concedo realmente é na medida em que eu faço aquilo que é oposto a mim, aquilo que
não . Então, a gente está desligando o autor do seu tempo. Porque a gente quer que este autor esteja
caminhando paralelamente a seu tempo, sem sofrer influência dele, da época em que vive, de tudo o
mais”. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria da Cultura. Serviço Nacional de Teatro.
Depoimentos V. Rio de Janeiro, 1981, p. 87.
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sistematicamente as precárias bases nas quais hoje, circunstancialmente,
se situa e se dimensiona.
241
A crítica a certo tipo de teatro “empresarial” continua, e os adjetivos utilizados
para qualificá-lo como mentira” e “mistificação” são exemplares por demonstrarem de
maneira franca a forma como Peixoto enxergava estas iniciativas. Por outro lado, ele
afirma que certas “concessões” são necessárias diante da situação complexa e desafiadora.
Mas, estas concessões teriam um prazo marcado para acabar, quando efetivamente
surgissem melhores condições de produção. Neste ponto, ao mencionar a possibilidade de
um “teatro empresarial” preocupado com sua função artística, cultural e política naquele
momento do país, ele tenta demonstrar a necessária continuidade da luta e da resistência,
sem ficar preso aos entraves econômicos e comerciais. Mas como manter um teatro
“autêntico” e “socialmente responsável” e, além de tudo “popular”, tendo como
sustentação financeira a bilheteria, algum patrocínio da iniciativa privada ou um
financiamento por meio do Estado? A questão é complexa e contraditória. O próprio
posicionamento de Peixoto e do tipo de teatro que defende foi, também, duramente
criticado naquele período pelo fato de não conseguir romper e aprofundar “radicalmente”
na busca por um teatro livre e autenticamente “nacional e popular”.
Neste ponto, é importante salientarmos uma experiência teatral significativa
daquele momento, do qual Fernando Peixoto fazia parte e defendia, denominada de
“Teatro de Resistência”. Ao colocarmos frente a frente esta forma de expressão com o
“teatro comercial”, fica evidente a distância entre as duas, e compreendemos a dificuldade
do crítico em ver com bons olhos a adequação da arte em ser apenas um produto
comercial, de venda rápida e de lucro fácil para os seus produtores:
O termo teatro de resistência refere-se a uma diversificada produção que,
durante os anos mais duros da ditadura militar instaurada em 1964,
procurou dar prosseguimentos a uma dramaturgia de motivação social, na
linha dos Seminários de Dramaturgia promovidos pelo Teatro de Arena
no final da década de 1950. A necessidade de mobilização diante da
realidade do país encontrou no teatro um lugar de aglutinação dos setores
mais politizados da sociedade, de afirmação de idéias proibidas e de
ponto de partida para ações de protesto contra a repressão. A censura que,
de 1965 a 1980, faz cortes, impede estréias, retira espetáculos de cartaz,
prende artistas, mantendo a atividade teatral sob permanente vigilância
policial, transforma a criação cênica e, em especial, a dramaturgia
241
BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria da Cultura. Serviço Nacional de Teatro.
Depoimentos V. Rio de Janeiro, 1981, p. 15.
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engajada em uma arte de cifrar conteúdos para metaforizar a denúncia
social.
242
O texto acima deixa explícita a noção de que este teatro teve variadas formas de
expressão, onde cada grupo, diretor, ator, crítico, dramaturgo, etc., tentava fazer a sua
parte, dando a sua contribuição para o debate e para a reflexão. Tinham aspirações em
comum como a luta pelo retorno das liberdades democráticas e a vontade de participar das
decisões sobre os rumos políticos do Brasil. A preocupação com um teatro “engajado”
politicamente, voltado para a denúncia e com um espírito opositor, mesmo com a censura,
com as dificuldades de expressão (a metáfora foi uma das ferramentas mais valiosas no
intuito de driblar a repressão),
243
falta de apoio e de um público incerto, para estes artistas
era uma questão moral, um compromisso inadiável, urgente e necessário.
Como dissemos anteriormente, os limites deste “teatro de resistência”, dentro do
circuito comercial eram constantemente lembrados por determinados críticos e artistas
daquele momento. As críticas apontam esta contradição desde o “Teatro de Arena”, uma
referência neste campo do engajamento político e que é interpretado do seguinte modo por
Edelço Mostaço:
[...] O longo caminho que vai da realização de Eles não usam black-tie
ao Teatro Jornal vem demonstrar que o projeto político do Arena, desde
os seus primórdios, poderia ser cumprido integralmente com a efetiva
assimilação do público popular à sua platéia regular. O Arena usou e
abusou da expressão povo e popular, mas enquanto permaneceu isolado
em seu teatro no centro da cidade a concreção de seu ideário permaneceu
vazia e mistificante, tergiversando a partir de estilos, fases, sistemas e
soluções estéticas sobre um público classe média (especialmente os
estudantes) que mistificando acreditou-se povo, e dentre a mitologia
reinando acreditou-se popular. O próprio Núcleo encontrou sua
verdadeira forma estética e política quando abandonou as fórmulas do
242
TROTA, Rosyane. Teatro de Resistência. In: GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA,
Mariângela Alves de. (Orgs.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo:
Perspectiva / Sesc São Paulo, 2006, p. 269.
243
A utilização da parábola em Ponto de Partida de Gianfrancesco Guarnieri em 1976 é constantemente
relembrado como um dos momentos mais paradigmáticos do teatro brasileiro do século XX: “E a
realidade brasileira mais ampla a de um país sufocado pelo medo e pela tirania foi pateticamente
sintetizada por Gianfrancesco Guarnieri numa das suas obras mais inspiradas e poéticas, Ponto de
partida, lançada em São Paulo. Indignado com o assassinato do jornalista Vladimir Herzog, que no ano
anterior chocou a consciência da nação, Guarnieri sabia que era cedo ainda para enfocar esse assunto
através de uma abordagem direta. Criou, então, uma aldeia vagamente medieval, na qual o poeta e
humanista local amanhece misteriosamente enforcado na praça e onde o inquérito que se segue põe a nu a
impiedosa e hipócrita mecânica que torna o crime impune. No ótimo espetáculo dirigido por Fernando
Peixoto, o próprio Guarnieri realizava, no papel de um simplório pastor de cabras que sabe das coisas,
mas sabe também o quanto é perigoso saber das coisas, o mais impressionante desempenho de sua
carreira de ator, ao lado de um também inspirado Othon Bastos”. MICHALSKI, Yan. O teatro sob
pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985, p. 68.
Capítu
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oprimido, passando à criação coletiva para a elaboração de seus
espetáculo A Epidemia e Os imigrantes.
244
A crítica de Mostaço em relação à trajetória do Arena é negativa no sentido de que
este grupo não superou e não aprofundou no seu trabalho artístico aquilo que normalmente
propalavam. Segundo o autor, a ilusão de estar fazendo um “teatro popular” não era apenas
equívoco de seus integrantes, mas também de seu público que advinha basicamente de
setores médios e intelectualizados da sociedade brasileira.
Um outro texto bastante crítico em relação a esse teatro é o de Mariângela Alves
de Lima. “Quem faz o Teatro”, publicado no livro “Anos 70 Teatro”. Ao contrário de
Peixoto, que buscou diferenciar a sua opção cênica com outras iniciativas “comerciais”, a
autora coloca ambos no mesmo nível de subordinação e, também, de concessão aos
ditames do mercado:
O período que vai de 74 a 78 é onde surge com maior nitidez a
contraposição de dois modos de produção teatral. De um lado a
empresa, juridicamente estabelecida e produzindo um teatro
perfeitamente assimilável aos objetivos do Estado. Essa empresa não
chega a ser uma companhia: para cada espetáculo organiza-se um elenco
sob a responsabilidade e supervisão muitas vezes estrita de um produtor.
pouco a falar sobre isso. Basta olhar os anúncios, a coleção de
“tijolinhos” dos jornais para obter uma imagem bastante precisa desse
tipo de teatro. Os esforços mais bem intencionados para transmitir uma
“mensagem através dessas obras estão suficientemente louvadas pela
crítica, enquanto as obras mais declaradamente omissas estão
suficientemente relegadas ao seu merecido esquecimento. O fato é que a
produção isolada, nos seus melhores momentos, não chega a constituir
um fator que abale ou modifique de alguma forma a linguagem
disponível do teatro. Muda o texto, mudam os atores, mas os grandes
espetáculos são mais ou menos aquela coisa que a gente já sabe o que é
antes de ter chegado lá.
245
Na realidade, o texto de Lima faz parte de uma corrente de pensamento crítico do
teatro brasileiro que naquela conjuntura via a formação de grupos estáveis, onde a
produção coletiva dentro de espaços alternativos e realmente populares seriam muito mais
relevantes do que o simples teor político e ideológico de um texto ou de uma determinada
244
MOSTAÇO, Edelço. Teatro e Política: Arena, Oficina e Opinião (uma interpretação da cultura de
esquerda). São Paulo: Proposta Editorial, 1982, p. 125-126 apud PATRIOTA, Rosangela. História,
memória e teatro. A historiografia do Teatro de Arena de São Paulo. In: MACHADO, Maria Clara
Tomaz; PATRIOTA, Rosangela (Orgs.). Política, cultura e movimentos sociais: contemporaneidades
historiográficas. Uberlândia: Universidade Federal de Uberlândia, 2001, p. 200.
245
LIMA, Mariângela Alves de. Quem faz o Teatro. In: ARRABAL, José; LIMA, Mariângela Alves de;
PACHECO, Tânia. Anos 70 – Teatro. Rio de Janeiro: Europa Emp. Graf. e Edit., 1979-1980, p. 57-58.
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encenação.
246
A falta de criatividade e de perspicácia por parte dos “artistas engajados” era
apontada como uma das principais causas da falência desta opção,
247
a mesma que Peixoto
considerava viva por um “milagre”. Pelo fato de estarem presos por uma censura constante
e por questões de sustentação financeira por meio da bilheteria, esta vertente do teatro
tinha todo o impacto de suas propostas absorvidas, amortecidas, sem continuidade e sem
superação.
em meados da década de 1990, em outro artigo sobre o teatro na década de
1970, Mariângela Alves de Lima descreve a forma de ação estética e artística do TUOV
(Teatro União – Olho Vivo) que, em sua opinião, seria a materialização do chamado
“teatro popular”:
Em 1969 surge o União e Olho Vivo (TUOV), tendo como ponto de
origem a Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. Sempre
como um grupo amador, o TUOV identifica-se como um grupo de
“conscientização”, para quem a discussão a partir do teatro interessa mais
que o próprio teatro. Tem uma organização itinerante extremamente ágil,
com equipamentos adaptados para o transporte, e cumpre, melhor do que
qualquer outro grupo, o objetivo de alargar as fronteiras do teatro em
direção a platéias cada vez mais distantes. Faz espetáculos em paróquias,
escolas, centros comunitários, clubes esportivos, circos e salas de
sindicatos. O tema constante dos seus espetáculos, como convém a um
grupo nascido sob as arcadas, é o da violação dos direitos civis. De 1973
a 1974 este trabalho torna-se especialmente arriscado graças à hegemonia
dos bolsões “sinceros, mas radicais” – para usar um expressão de Geisel -
, que controlam o aparelho repressor do governo militar.
Os dribles do União e Olho Vivo evidenciam a relativa liberdade que
esses grupos conseguem ao se movimentar em direção a seu público.
Enquanto a imprensa, as emissoras de televisão e rádio e as casas de
espetáculo estão sob rígido controle da censura, esse teatro itinerante
consegue pôr em pauta assuntos como o direito de greve, a necessidade
da livre negociação salarial, a violência policial e o imperialismo. O que
246
“Dentro desse panorama a formação de grupos não representa apenas uma alternativa, mas sim uma
postura antagônica cuja base envolve tanto uma nova forma de pensar a arte como uma nova forma de
organização social. A linguagem é o campo da experimentação, mas o fim é atingir, através desse
labirinto, novos conteúdos”. LIMA, Mariângela Alves de. Quem faz o Teatro. In: ARRABAL, José;
LIMA, Mariângela Alves de; PACHECO, Tânia. Anos 70 Teatro. Rio de Janeiro: Europa Emp. Graf. e
Edit., 1979-1980, p. 58.
“Deve haver uma obscura razão para esse movimento em direção ao círculo exterior das cidades. As
antenas são propriedade do artista e ele é que sabe como sintonizá-las. Mas uma coisa que até o governo
pode perceber é que, onde a arte está agora, se inicia um movimento provavelmente incontrolável de
pessoas confinadas ao largo não do espaço central da cidade como dos bens que a sociedade utiliza
discriminadamente. O teatro pelo menos já está acontecendo e não se parece em nada com o que
conhecemos até agora”. Ibid., p. 73.
247
“Neste sentido, porque é pouco maleável e não dispõe de caminhos alternativos, a empresa teatral foi
mais duramente atingida pelas interferências da censura na década de 70. Inventou menos do que poderia
ou desejaria porque não teve alguns recursos sacados do bolso do colete, ou seja, a vivacidade de
compreender que mesmo dentro do buraco pode-se discorrer sobre o buraco”. Ibid., p. 68.
Capítu
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138
não está no espetáculo emerge depois nas conversas com os
espectadores.
248
Pela descrição que a autora faz em torno desta iniciativa em particular parece
muito próxima de um teatro que havia conseguido superar os impasses do “teatro
empresarial”. Ao popularizar, não apenas o acesso aos espetáculos, mas a participação
concreta das comunidades em suas produções e a distância relativa dos olhos da censura
em razão da liberdade estrutural que estes grupos gozavam, pode parecer que conseguiram
encontrar a saída para todos os dilemas neste sentido. Se no final da década de 1970 Lima
questiona a validade das produções teatrais engajadas dentro do circuito comercial, ela
caba tendo que refletir também, quinze anos depois, sobre a falência e o desaparecimento
destes grupos.
249
Querendo ou não, a distância entre “artistas” e “povo” foi um dos maiores
problemas enfrentados por esta geração.
Neste sentido, dentro da linha que considerava mais efetiva e responsável, Peixoto
continuava com sua pesquisa, sua crítica e seu trabalho para superar tais contradições. Ao
aprofundar na necessidade de um teatro “verdadeiro”, que assumisse a “perspectiva das
classes populares” ele clama por um compromisso sério e objetivo. As diversas
“resistências” durante a ditadura deveriam se tornar constantes, mais consistentes e
coerentes para que não tivessem fim com o abrandamento das pressões políticas. Querendo
ou não, a luta pelo retorno da democracia seria apenas uma parte de algo muito maior e
abrangente. Por isso, reconhecer o teatro como “político” em sua essência, independente da
percepção e da opção daqueles que estão envolvidos com ele, seria uma forma de
demonstrar o beco sem saída em que se encontravam. Ou assumiam a responsabilidade
inescapável de sua profissão, ou estariam fadados a uma espiral de ilusão e falso
contentamento.
Num ensaio de Dort sobre o “teatro aristotélico” e de seu possível opositor, o
“teatro brechtiano”, ele completa a reflexão acima sobre a essência política da atividade
248
LIMA, Mariângela Alves de. Os grupos ideológicos e o teatro da década de 1970. In: NUÑEZ, Carlinda
Fragale Patê; et al. O teatro através da história. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil;
Entourage Produções Artísticas, 1994, p. 242-243.
249
“[...] Penso que desapareceram (a exceção é o TUOV) porque sua linguagem não expressava as novas
configurações do concreto. Por sua marca de origem, os grupos ideológicos trabalham para um público
popular. E este popular assumiu dimensões monstruosas, a da horda que sitia os grandes centros urbanos,
A militância socialista não a “conscientizou” a tempo. E o capitalismo periférico e dependente
marginalizou-a da vida econômica e política. No início da década de 1980 já estará mais do que claro que
quem fala a essa massa é a televisão, oferecendo-lhe uma sedativa combinação de informações distorcidas
e fantasias compensatórias. Diante disso o teatro é pouco”. Ibid., p. 247.
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teatral, apontando para um erro comum que seria a dissociação ou oposição entre uma e
outra:
Quando se fala em teatro político, pensa-se em teatro engajado, teatro
didático, tomada de posição. Creio que isso é colocar mal o problema, ou,
em todo caso, restringi-lo de maneira abusiva. É preciso não esquecer:
“político”, em sua acepção mais ampla, designa tudo “o que se relaciona
com os interesses públicos” e por teatro é preciso entender não apenas a
obra dramática e o seu conteúdo, mas também a peça tal como é
representada diante de um certo público e para um certo público a obra
em sua forma cênica. A partir daí, tudo muda: a interrogação não se
aplica mais unicamente às “mensagens” deste ou daquele autor
dramático, mas abrange todo o teatro no coração mesmo de seu
exercício.
250
Um teatro, em qualquer conjuntura, está ligado ao interesse público e do público.
Fica evidente que a encenação é o momento máximo da criação, onde um texto dramático
se expande e reverbera, adquire uma nova roupagem, cumprindo o seu papel num ambiente
coletivo e aberto à sua mensagem, à sua crítica não enquanto teoria, mas como prática.
Preocupar-se com a atividade teatral não apenas nos seus aspectos imediatos de luta, mas
superar este momento visando um outro onde as propostas iniciais possam ser
desenvolvidas, é outra característica marcante e que Peixoto, também, buscou salientar. As
reflexões seguintes sobre a profissão de ator são reveladoras em relação à sua visão de luta
e de seu compromisso. Deixam transparecer a concepção da política como algo inerente ao
“fazer teatral” nos diferentes espaços, para diferentes públicos, mas sempre conscientes.
3.3 O ATOR: UM TRABALHADOR ENFEITADO COM LANTEJOULAS
COLORIDAS
Além da questão econômica, para Fernando Peixoto o fenômeno do teatro
“empresarial”, acaba por interferir e modificar de maneira direta o próprio trabalho dos
atores. Como lado mais fraco da relação entre “patrão” e “empregado”, a situação destes
profissionais é também analisada de maneira detalhada nas críticas no jornal Movimento.
Uma afirmação constante presente em seus artigos diz respeito à necessidade dos
atores se conscientizarem que são “trabalhadores” e que “vendem” a sua força de trabalho
250
DORT, Bernard. A vocação política. In: ______. O teatro e sua realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977,
p. 365.
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dentro de um sistema econômico “explorador” e “excludente”. Por mais que isso hoje
pareça um discurso um tanto quanto datado, Peixoto considerava isso importantíssimo.
Seguindo algumas considerações de Bertolt Brecht, num texto de junho de 1976 intitulado
“Trabalhadores da ribalta”, o crítico chama a atenção para a seguinte situação:
Num texto sobre o significado da profissão de ator, Bertolt Brecht
dispensou, com inteligência, a distinção entre as diferentes motivações
que podem justificar o exercício da atividade por um ator ou atriz, para
colocar o problema em seu aspecto essencial: “Em primeiro lugar vou
falar da tua profissão, da indústria do espetáculo, da atividade que você
escolheu exercer, não importa porque razões, esperamos que elas sejam
as melhores. Na verdade é indiferente o que você pretende fazer nesta
profissão. O que você deve saber é o que farão de você.
251
Ao sintetizar o problema, “saber o que farão de você”, em relação à profissão do
ator naquela conjuntura, Peixoto enfatiza a responsabilidade dos atores em aceitarem ou
não as condições que lhes são impostas, cabendo a eles definirem o papel que assumiriam
na sociedade: resistirem ou se deixarem levar. Este alerta que o crítico faz não é gratuito e
tem uma razão bastante clara: a dificuldade que esses profissionais tinham em se
conscientizarem de sua situação como “classe”, como trabalhadores assalariados interferia
diretamente e negativamente no processo de luta e de união. O trecho a seguir é uma
descrição desse dilema vivido pelos artistas, que se viam confusos e divididos:
[...] os chamados “artistas” vivem um conflito básico, que vivenciam
muitas vêzes até mesmo de forma consciente ou inconscientemente
masoquista: são empregados assalariados mas se recusam a se
considerarem como tais. E estão presos a uma série de outros objetivos
que em suas vidas é fundamental em alguns a realização de algum
projeto cultural ou social em termos de cultura, em outros a realização
narcisista ou a desmedida busca da fama e do reconhecimento público.
Para atingirem estes dois últimos projetos, aceitam tudo. Ou quase
tudo.
252
Duas perspectivas de trabalho são apresentadas e, em cada uma, atitudes
diferentes sobre o significado do que é ser ator. Se temos uma ligada a um projeto cultural
amplo e coletivo, que visa contribuir na discussão e na construção de uma arte socialmente
responsável, temos outra visão, individualista e restrita, que visa apenas a fama e o
sucesso, independente dos meios utilizados para alcançar tal objetivo, lhes restando “[...]
um irreal espírito de inútil sacrifício ou a ânsia total de aparecer, brilhar, estrelar, etc”.
253
251
PEIXOTO, Fernando. Trabalhadores da ribalta. Jornal Movimento, 28/06/1976, p. 18.
252
Ibid.
253
Ibid.
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141
Para Peixoto, pior do que um artista não se considerar como um “trabalhador” é
um artista que busca apenas satisfazer a sua vaidade, não se importando, ou simplesmente,
esquecendo de todas as possibilidades existentes em sua profissão. A partir do momento
em que o ator não analisa estas questões ao exercer o seu ofício, ele torna-se um objeto
barato, aceitando “salários irrisórios”,
254
dificultando ainda mais o processo de luta da
classe teatral contra a “comercialização” e a “mercantilização” absoluta.
Um dos textos mais provocativos de Fernando Peixoto em relação à situação dos
atores e da necessidade de conscientização intitula-se “Tapando o sol com lantejoulas”,
publicado no mesmo período da crítica anterior. Novamente, utilizando-se do pensamento
de Brecht, ele reafirma que a profissão do ator é como outra qualquer, sem vantagens ou
privilégios. Em última instância pertencem à classe trabalhadora” e, como tal, deveriam
agir.
255
Ao utilizar-se deste raciocínio, ele abre o jogo de maneira franca, combatendo o
que considera como “ilusão”:
[...] Não existe promoção, mas sim, exploração. O curioso é que isto
acaba refletindo na carreira do ator (um objeto manipulado) ao menos em
dois níveis: a ilusão do êxito e suas conseqüências, e o aumento de cartas
dos telespectadores. O que acaba provocando aumento de salários, papéis
melhores, melhor situação diante dos empresários de televisão. E, em
caso de aproveitamento em teatro ou cinema, dose cavalar de coragem
para o referido “astro”, às vezes até ingenuamente, pedir melhores
condições de trabalho, ao menos em termos salariais (em relação aos
padrões vigentes). Assim, a via–láctea artística se amplia cada vez mais.
Tudo não passa, salvo raríssimas exceções, e isto vem desde Hollywood
(ainda o sonhado paraíso utópico deste mundo estreito), de produtos
artificialmente fabricados. Mas tudo isso funciona também como
narcótico ou entorpecente: o ator acaba esquecendo, deliberadamente ou
não sua condição essencial um trabalhador, como outro qualquer. Às
vezes até mesmo um mau trabalhador, mas enfeitado com lantejoulas
coloridas.
256
254
PEIXOTO, Fernando. Trabalhadores da ribalta. Jornal Movimento, 28/06/1976, p. 18.
255
“[...] O poeta e dramaturgo alemão insiste em que o ator é como um empregado qualquer, “como aquele,
por exemplo, que a gente chama para servir uma bebida num bar”. Os que participam da produção de
teatro, cinema ou televisão possuem esta consciência elementar? Ou estão definitivamente afogados pelo
“êxito pessoal” discutível? E em que medida agem segundo este conhecimento, quando o possuem?”.
PEIXOTO, Fernando. Tapando o sol com lantejoulas. Jornal Movimento, 26/07/1976, p. 18.
Em outro momento, no ano de 1977, Peixoto reitera esta concepção brechtiana do trabalho do ator e da
necessidade de conscientização na luta contra a exploração: “[...] Num texto sobre a profissão, Brecht
deixou de lado por um instante as razões e objetivos que levam alguém a se dedicar a esta atividade,
concentrando–se na análise do que será feito deste alguém: ‘você é pago (e empregado) segundo a quantia
que você devolve ao proprietário ou segundo uma reputação que ele pode reconverter em dinheiro. [...] É
bom que você saiba que você é um empregado como outro qualquer. Como aquele, por exemplo, que a
gente contrata para servir bebidas. Mas evidentemente isto não é tudo. Aquele que possui consciência de
ser submetido pode alguma coisa contra sua submissão’”. Id. O produtor e o produto. Jornal Movimento,
09/05/1977, p. 17.
256
Id. Tapando o sol com lantejoulas. Jornal Movimento, 26/07/1976, p. 18.
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Capítulo III
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A descrição acima é uma das críticas mais duras de Fernando Peixoto sobre a
situação dos atores dentro de um mercado de trabalho que visava apenas o “lucro”. O ator
como um trabalhador explorado, manipulado, enganado, iludido, entorpecido e que, por
razões banais como o aumento do número de cartas que receberia dos fãs e melhores
salários comparados com os de seus companheiros, se esqueceria de seu “papel” e de sua
situação.
Mais uma vez, o crítico tenta demonstrar, com exemplos e situações percebidas
por ele, o grau de “banalização” e de “exploração” sofrida pela profissão. Mais um
elemento entra neste cenário e exerce um poder de influência e de atração irresistível e
também negativo: a televisão:
[...] os teatros vendem diversão. E para alguns, não todos, tem sentido
inclusive uma frase que o teatro poderia roubar das capas dos discos:
“teatro é cultura”. O que o ator tem a oferecer em troca do salário que lhe
permite viver, ao produtor que o contrata? Certamente, seu trabalho. Que
acaba traduzido em mais ingressos vendidos. O ator realiza uma
interpretação de extremo valor, fazendo do espetáculo um êxito, ou,
mesmo se isto o acontecer, talvez consiga trazer público por sua
reputação, justa ou injusta, enquanto ator. Hoje no Brasil, por exemplo,
os produtores não dispensam a forçada inclusão no elenco de dois ou três
nomes famosos na televisão. Motivos óbvios: não se trata de
reconhecimento de talento, mas de reconhecimento de “celebridade”.
Esta colocação abre um novo problema: o “astro” de televisão traz
público ao teatro? É discutível, se examinarmos os exemplos disponíveis.
Salvo exceções, evidentemente. [...] Para começar, a condição de “astro”
é essencialmente falsa. uns poucos narcisistas se auto-iludem com a
ilusória aparência de um sucesso forjado. Se estudarmos o problema com
certo cuidado, algumas conclusões saltam aos olhos. Não é o trabalho de
um ator ou atriz na televisão que lhe confere a privilegiada condição de
“astro” ou “estrela”. O público, aliás, neste sentido, diariamente come
(melhor, engole) gato por lebre. O “status” nasce de revistas tipo
“Amiga”, “Capricho”, “Ilusão”. Revistas que vivem e sobrevivem graças
a uma operação das mais fáceis: promove-se determinado ator ou atriz e,
com apoio na mentira e na mistificação, vendem-se milhares de
exemplares.
257
Novos aspectos são questionados por Peixoto. Em primeiro lugar, o ato de discutir
se o teatro é “cultura” ou é “diversão” demonstra para ele a confusão e a ingenuidade dos
debates e das reflexões. Para ele, este dualismo que tentam colocar é falso e a simples
separação não resolve nenhum problema, pelo contrário, tende a perpetuar a “crise
existencial” em relação à função do teatro na sociedade. Separar “cultura” e “diversão” é
fazer com que o teatro perca a sua própria característica natural que o mantém vivo.
257
PEIXOTO, Fernando. Tapando o sol com lantejoulas. Jornal Movimento, 26/07/1976, p. 18.
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Também é colocado em cheque os parâmetros utilizados para avaliar a qualidade do
trabalho de um ator. Neste ponto, a crítica concentra-se no raciocínio dos produtores
teatrais em colocar no elenco “astros” que estão trabalhando na televisão, como se isso
fosse um atestado inconteste de sua qualidade. Na realidade, esta atitude é fruto da
necessidade imediata de chamar o público, vender ingressos e lucrar o máximo possível.
Se é uma boa peça ou não, isso acaba virando um mero detalhe. E por fim, uma crítica
visceral sobre o mercado editorial que visava a “criação” e glamourização” dos artistas,
completando este círculo vicioso em que os atores estavam inseridos e acabavam sendo
limitados e estereotipados.
Chamar a atenção para a necessidade dos atores terem “consciência de classe”, era
uma tentativa de agrupar esta classe em torno de objetivos comuns. Era, também, uma
forma de resistência e de luta para modificar uma determinada situação que, para o crítico,
era degradante e contraditória. Valorizar a profissão de ator e, conseqüentemente, salvar
teatro brasileiro da crise, era uma tarefa urgente a ser feita. No final do texto “Tapando o
sol com lantejoulas” Fernando Peixoto indica um movimento que ganhava força e
expressão na segunda metade da década de 70, o sindicato:
[...] Cabe somente aos atores acelerar esta marcha. Fazer do sindicato
algo mais que a prestação de serviços assistenciais elementares. Sem
quadros, enquanto número e quantidade, um sindicato não existe. Não
possui força ou representação efetiva junto aos patrões ou à Justiça do
Trabalho. O Ministro do Trabalho vem sempre mencionando o
movimento sindical como necessário ao atendimento (e mesmo
conciliação) entre as partes adversas que definem um contrato trabalhista.
Por que, neste sentido, não fortalecer o sindicato, atendendo ao apelo do
Ministro? Já dizia o velho D’Artagnan: “Um por todos e todos por
um”.
258
O modo como Peixoto concebe a profissão de ator distancia-se de romantismos e
de idealizações. É um trabalho concreto, com uma determinada função econômica e social
que necessita de mecanismos de união, de organização e de direcionamento para
garantirem os seus direitos e estes servirem como base de novas reivindicações. A “luta de
classes” se efetivaria a partir do momento em que tivessem condições concretas,
qualitativas e, principalmente, quantitativas. Em outro texto seu, ao relatar o processo de
regulamentação da profissão de ator que corria em Brasília, ele declara a existência de
inimigos concretos que sempre travavam qualquer iniciativa deste tipo. Novamente as
258
PEIXOTO, Fernando. Tapando o sol com lantejoulas. Jornal Movimento, 26/07/1976, p. 18.
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empresas de televisão
259
eram aquelas que menos tinham interesse na solução desses
problemas pelo fato de todos os encargos, principalmente os trabalhistas, ficarem sob a
responsabilidade das mesmas.
260
Salienta ainda a importância de um sindicato que tivesse
iniciativas diferenciadas, indo além das questões mais comuns e elementares, como a
ampliação do mercado de trabalho existente,,que sempre foi um desafio a ser resolvido, e a
função do ator no teatro na sociedade brasileira daquele momento.
Na luta contra a crise, alguns atores acabavam buscando alternativas que visassem
diminuir o impacto das transformações do mercado e da diminuição das oportunidades,
produzindo trabalhos mais conseqüentes e instigantes. Observemos a análise de Peixoto
sobre o posicionamento de Fernanda Montenegro e Fernando Torres à frente de uma
companhia teatral profissional. Ele menciona elementos que demonstram a difícil
sobrevivência de um teatro que buscasse ir além dos lucros da bilheteria:
Muitos produtores se entregaram abertamente à realização de
espetáculos desvinculados de qualquer compromisso com o significado
social e/ou cultural do teatro. Outros ainda recusam a acomodação ou a
abdicação de suas preocupações mais sólidas. E escolhem, assim, a
política da alternância no nível do repertório: um ou dois espetáculos para
faturar, depois um para arriscar o que foi ganho. Caminham em cima de
armadilhas, conhecendo, menos ou mais, os perigos e as tentações. É uma
forma de sobrevivência, dentro de um compromisso que julgam
inevitável. É verdade que também esta política de repertório é incerta:
muitas vezes os textos imaginados como sucessos garantidos resultam em
fracassos imponderáveis. E, menos vezes, um texto difícil acaba
despertando inusitado interesse no público.
261
259
PEIXOTO, Fernando. Ator existe? Jornal Movimento, 21/06/1976, p. 16.
260
Até mesmo a questão de reprise de novelas é analisada por Fernando Peixoto como uma forma de
exploração ao máximo promovida pelos canais de televisão do trabalho e da imagem do ator: “[...] Que
talvez possa se tornar uma fórmula a ser comercialmente explorada, a partir de agora, com extraordinárias
vantagens econômicas para a empresa, que ocupa o espaço apenas para faturar, nada dispendendo em
termos de produção. E reduzindo ainda mais o mercado de trabalho. E os intérpretes de Selva de Pedra?
Além do possível prazer (ou não) de reverem em suas casas um trabalho antigo, ganham o qcom o
“compacto” no vídeo? Nada”. Id. Tesouro escondido na selva de pedra. Jornal Movimento, 06/10/1975,
p. 26.
“Os problemas de proteção ao direito de intérprete se acentuaram quando os meios de divulgação e
exploração do trabalho artístico foram ampliando-se e diversificando-se. E os conflitos trabalhistas, neste
sentido, principalmente as injustiças flagrantes, estão na televisão. Esta diversificação, informa o
Sindicato do Rio, não veio ampliar o mercado de trabalho, mas restringi-lo “com a formação de redes e
conglomerados de empresas que, de posse de uma produção artística, passaram a explorá-la
comercialmente em todo território nacional e fora dele, durante anos seguidos, multiplicando a riqueza
empresarial, sem permitir, no entanto, aos artistas interessados, acesso à cobrança de seus direitos”.
Como? È fácil: o direito do intérprete legislado seria uma ameaça à política econômica das empresas. Mas
resta o poder coercitivo: quem assina um contrato (na Globo, por exemplo) cede seus direitos de
intérprete. É claro que alguém pode não concordar em ceder. A solução também é simples: fica sem
trabalho. E assim uma selva de pedra se transforma numa selva de ouro. Para a empresa é evidente. O ator
só recebe a pedra mesmo”. Ibid.
261
Id. Um ato de ousadia. Jornal Movimento, 03/05/1976, p. 18.
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Ao chamar a atenção para a estratégia de “alternância no nível do repertório”
adotada pela companhia, acaba nos remetendo às observações feitas por ele em relação à
postura “equilibrada” na produção de espetáculos que faz em 1977.
262
Mas, existe um
problema nesta estratégia: como saber o que o público quer assistir, o que define o sucesso
ou o fracasso de um empreendimento? A resposta para tal questão, com certeza, resolveria
o dilema no momento de escolher um texto a ser encenado, permitindo o planejamento e a
racionalização de todo o processo de produção. Evitar-se-ia prejuízos e possibilitaria uma
continuidade artística e política. Surpresas sempre ocorreriam, porém elas deveriam ser
evitadas o máximo possível e, para isso, a busca de dados e de estudos concretos em
relação ao público seria uma necessidade imperativa. Na continuidade de sua crítica,
Peixoto alerta para tal situação de insegurança e de improvisação que os produtores teatrais
são obrigados a passar:
Sobretudo hoje, a escolha de repertório é um momento de extremo
sofrimento para qualquer produtor que procure conferir a seu produto
algo de digno. Estamos sem possibilidades de colocar no palco uma
reflexão mais direta sobre o cotidiano de nossa existência,
impossibilitados de realizar um teatro que efetivamente provoque a
reflexão num nível mais agudo e transformador.
263
Na realidade, a crítica que ele faz em relação à dificuldade encontrada pelos
produtores em escolher e definir uma peça a ser encenada é, justamente, porque as
soluções encontradas, na grande maioria das vezes, sempre partem de improvisos. O fato
de não ter um conhecimento definido sobre o que escolher acaba tornando a atividade
teatral um empreendimento de alto risco. Os entraves para conseguir promover um teatro
262
Um depoimento de Peixoto no início da década de 1970 aponta para a necessidada subvenção estatal ao
teatro no Brasil, a exemplo de outros países no mundo como França e Alemanha: “Um argumento
geralmente utilizado é o de que não compete ao Estado fazer concorrência ao mercado mantido pela
iniciativa privada. Mas ninguém nega ao Estado a obrigação de produzir em áreas nas quais o capitalismo
privado não se aventura. É evidente que mesmo este é um tema polêmico: basta passar os olhos pelos
debates atualmente travados entre os que atacam ou defendem as empresas estatais. É um argumento
facilmente contestável: não teria sentido, é evidente, o Estado lançar-se na produção comercial; mas, sim,
mergulhar em campos de atuação que as empresas privadas cada vez mais recusam entre outros, a
vigência do teatro nacional clássico, as produções demasiado caras e por isso comercialmente inviáveis
do grande repertório internacional, o espetáculo de pesquisa ou experimental, etc. Ao contrário de entrar
no nível da concorrência, tratar-se-ia de preencher o dilacerado processo cultural brasileiro com um tipo
de produção, textos nacionais ou estrangeiros, que o empresário privado sistematicamente recusa pelo que
implicam em gastos ou riscos. Seria, inclusive, levantar os alicerces de um efetivo teatro nacional e
popular, a exemplo de outros países”. MICHALSKY, Yan; TROTTA, Rosyane. Teatro e Estado. As
Companhias Oficiais de Teatro no Brasil: história e polêmica. São Paulo/Rio de Janeiro: Hucitec /
Instituto Brasileiro de Arte e Cultura, 1992, p. 232.
263
PEIXOTO, Fernando. Um ato de ousadia. Jornal Movimento, 03/05/1976, p. 18.
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diferenciado e sobreviver economicamente dentro do circuito comercial não era algo
tranqüilo. Se por um lado tínhamos críticas em torno dessas tentativas, Peixoto se
esforçava para provar a viabilidade das mesmas. A sua “política” de alternância” não era
concessão e, tampouco, um fim ideal. Fazia parte de um processo gradual e consciente.
264
3.4 FERNANDO PEIXOTO E SUA CRÍTICA AO TEATRO BRASILEIRO: “[...]
PENSAR O PROBLEMA A PARTIR DE DADOS NOVOS, CONCRETOS
Retomando a crítica “Os mistérios do milagre” de fevereiro de 1976, encontramos
uma descrição nada positiva sobre o cenário teatral do país naquele instante:
Neste sentido é sempre curioso examinar entrevistas ou declarações de
homens de teatro (atores, encenadores, críticos, produtores) quando
procuram teorizar timidamente. Quase ninguém possui dados concretos
para falar, nem elementos para estruturar uma reflexão mais ampla. O que
mais existe é uma nítida confusão entre o subjetivo e o objetivo, o
primeiro sendo utilizado como alicerce para pensar o segundo. Quase
todos ficam presos a seus conhecimentos particulares e parciais,
possuindo como termo de comparação nada além de suas experiências
pessoais. E o conseguindo, a partir destas, ampliar as colocações. Esta
falta de perspectivas maiores conduz o apenas à generalizações
perigosas, como também à repetição incansável de erros graves. O
particular é tomado pelo todo, o acidental pela regra. E o comportamento
da produção teatral no mercado, seu relacionamento com o comprador,
seu vínculo com a cultura mais ampla produzida no país, são nuances que
escapam à compreensão.
265
264
Num depoimento prestado à Sônia Salomão Khéde, intitulado “Um intelectual censurado”, Carlos
Henrique Escobar não economiza o seu poder de fogo contra este teatro empresarial engajado, ironizando
a atuação de duas figuras emblemáticas do teatro brasileiro: Fernanda Montenegro e Paulo Autran: Esses
movimentos da esquerda que começam a pintar, devem organizar as suas áreas culturais, organizar os
sues teatros. É a única maneira de poder responder a isso. Fernanda Montenegro é maravilhosa e tal e
coisa, mas é uma quitandeira. Se se apresentar um texto para ela, a primeira leitura que faz é no sentido de
ser ou não comercial. Outro cara, o maio, do teatro, o Paulo Autran, pega o texto, querendo ver se a coisa
é narcisística, se serve para ele, se o texto pega um público de nível cultural barato. Quer dizer, todo eles
têm uma leitura atroz, empobrecedora da atividade cultural. Todos eles são estruturados para serem de
certa maneira antiarte. Isso faz o jogo do achatamento, do empobrecimento. Se você me perguntar agora,
quem não estaria fazendo essas coisas, eu ficaria parado. Existem algumas figuras tentando fazer teatro, o
quadro ainda não é visível e bem delineado. ESCOBAR, Carlos Henrique de. Um intelectual censurado.
In: KHÉDE, Sonia Salomão. Censores de pincenê e gravata: dois momentos da censura teatral no
Brasil. Rio de Janeiro: Codecri, 1981, p. 139.
265
PEIXOTO, Fernando. Os mistérios do milagre. Jornal Movimento, 16/02/1976, p. 16.
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Só um milagre explicaria a sobrevivência do teatro brasileiro a partir da análise de
Fernando Peixoto.
266
A sua crítica não perdoa nenhum segmento profissional ligado à
atividade quando afirma que quase ninguém consegue dar respostas e soluções satisfatórias
à crise vivida. A falta de dados e do que ele chama de “conhecimento científico”
267
da
situação acaba gerando erros lamentáveis como o “subjetivismo”, ou seja, o uso e o abuso
de impressões pessoais e desvinculadas de um processo maior. Além disso, a repetição de
erros relacionada com a ausência de alternativas e de um pensamento mais elaborado e
consistente da atividade teatral. Na continuidade de sua crítica, ele continua a disparar
contra o imobilismo, a inconseqüência da classe teatral e, principalmente, contra um certo
“voluntarismo”
268
existente no meio:
O conhecimento não científico de uma realidade fantasiada por um
impressionismo inconseqüente conduz inclusive à formulação de ações
inúteis ou desvinculadas das reais necessidades do movimento. Mesmo
quando os homens de teatro do país se debruçam sobre a chamada crise
do teatro, os disparates saltam. Examinar a situação do teatro no Brasil,
hoje, é pensar o problema a partir de dados novos, concretos.
269
Uma das iniciativas mais discutidas no sentido de “popularizar” o teatro brasileiro
foi a iniciativa das “kombis”. Estes veículos se deslocavam para diferentes locais da cidade
266
É interessante a reflexão do crítico Yan Michalski sobre o ano teatral de 1976, onde menciona Gota
D’Água, Último Carro, Muro de Arrimo e Ponto de partida como alguns dos espetáculos que se
destacaram naquele ano. Além disso a sua crítica é bem menos pessimista que a de Peixoto: “Mas, de
repente, uma série de iniciativas inteligentes, mesmo se em geral pouco empenhadas na renovação da
linguagem nica que até recentemente constituía a preocupação suprema, descobre o difícil caminho
para uma reflexão crítica sobre a atualidade nacional, superando as limitações criadas pela censura e
cristalizando um discurso bastante claro para ser entendido pelo público, apesar do ainda necessário
recurso da metáfora”. MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de
Janeiro: J. Zahar, 1985, p. 67.
267
Peixoto reitera a sua opinião sobre a necessidade de dados concretos e científicos para enfrentar a crise
teatral: “[...] Para meditar um pouco. É necessário, através de pesquisas mais científicas, encontrar dados
concretos para eliminar o subjetivismo ou o voluntarismo. a partir do conhecimento do real,
freqüentemente contrário ao que se imagina ou deseja, será possível encontrar um caminho de atuação
conseqüente”. PEIXOTO, Fernando. Debate Teatro Popular: O público das Kombis. Jornal
Movimento, 23/02/1976, p. 15.
268
No campo propriamente da ação política no Brasil, o Partido Comunista Brasileiro, por seu empenho na
luta pelo retorno da democracia, considerou a “luta armada”, engendrada por diversos grupos de esquerda
naquele momento, de “voluntarismo” e/ou também de “aventurismo”: Entre 1967 e 1969, parte das
esquerdas defende a tese de que a ditadura militar poderia ser derrubada à força, o que leva grupos
díspares, como a Ação Popular e o P.C. do B., a desenvolverem seus planos de guerrilha. Contra a tese
foquista, posta em prática por estas e outras correntes, os comunistas continuam a defender a idéia de uma
luta legal e ilegal junto às massas. O que é preciso é passar do aventurismo para ação contínua a favor de
maior consciência de organização. A tese vai-se confirmar com as eleições presidenciais de 1974, quando
todos os esforços partidários são canalizados a favor do partido da oposição, que é o MDB (Movimento
Democrático Brasileiro). CARONE, Edgar. Introdução. In: ______. O P.C.B. (1964-1982). São Paulo:
DIFEL, 1982, p. 05.
269
. PEIXOTO, Fernando. Os mistérios do milagre. Jornal Movimento, 16/02/1976, p. 16.
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e ofereciam ingressos mais baratos de espetáculos em fim de temporada. Ao mesmo
tempo, foi feita uma extensa pesquisa para mapear o perfil do público que adquiria estes
ingressos. Os resultados e a análise feita por Fernando Peixoto destes dados estão num
texto do dia 23 de fevereiro de 1976, intitulado “Debate Teatro Popular: O público das
Kombis”.
A questão do barateamento dos ingressos foi mencionada anteriormente num
artigo seu no jornal Opinião. Mas, aqui, ele aponta com mais detalhes a razão de
considerar tal atitude inútil, pueril e sem resultados práticos:
A certeza de que o teatro poderia ter um público mais numeroso e a
convicção de que entre os obstáculos que impedem a conquista dessa
platéia quantitativamente maior, o mais grave é o preço dos ingressos
(que sofre aumentos inevitáveis com a permanente subida do custo de
vida, encarecendo gastos de produção), muitos anos os empresários
organizam planos para o barateamento do consumo de seus produtos.
Recebem sempre o rótulo de “campanhas de popularização do teatro”. No
fundo todos sabem que, enquanto proposta de entrega do teatro ao
consumo das classes menos favorecidas da sociedade, a medida não tem
eficácia. E na busca de ampliação do público funciona apenas como
solução paliativa.
270
Fica evidente que ele não nega que a tentativa (paliativa) até consegue efetuar
maior visibilidade à atividade teatral brasileira, ainda que isso não resolva o problema
fundamental que é a “[...] entrega do teatro ao consumo das classes menos favorecidas”.
271
É curiosa e exemplar a história que ele conta de duas elegantes senhoras que aguardavam o
“barateamento” para mandar o “chofer” comprar os ingressos.
272
270
PEIXOTO, Fernando. Debate Teatro Popular: O público das Kombis. Jornal Movimento, 23/02/1976,
p. 15.
271
Efetivamente essa sua opinião não deixou de ser controversa para muitos críticos no sentido que apenas o
“consumo” do teatro pelas classes populares não atacava o problema maior da “produção”. Maria Helena
Küner, questiona justamente isso, a visão de um “público passivo” que não podia agir sobre o palco: “[...]
como pode uma arte pretender levar à consciência, se usar os próprios esquemas de massificação? Se a
arte hoje não mais se aceita como expressão de uma elite (falo de arte, não de tudo que ainda é
consumido sob esse rótulo) e se desdobra em experiências no sentido de maior abertura e participação, de
uma comunicação mais ampla e autêntica, como pode colocar como finalidade de seu trabalho agir sobre
o outro de modo a despertar sua reflexão e consciência de si, levá-lo a aprofundar suas experiências,
construir sua escala de valores, estimular sua criatividade, descobrir sua realidade, tornar-se sujeito
agente, se o trata como “espectador” ou ouvinte, recipiente passivo e oco, “massa” amorfa e maleável,
pronta a ceder à pressão, como o fazem os dedos ágeis dos manipuladores que a modelam para nela
imprimir a própria face?”. KÜHNER, Maria Helena. Teatro popular: uma experiência. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1975, p. 64.
272
“O que vem acontecendo, numa proposta que confronta apenas o aspecto de variação de preço de
ingresso, isolando–o de outros fatores determinantes (ainda que talvez com preço menor), são variações
nada sutis do que ouvi na porta de um teatro do Rio no dia em que a campanha foi lançada, uma elegante
senhora, na fila de uma bilheteria, com um folheto na mão, dizendo para outra: “é melhor hoje ir ao
cinema. Dentro de 15 dias é mais barato. Vamos escolher aqui o que queremos ver e mando meu chofer
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Mesmo reconhecendo não ter dados concretos para discordar da iniciativa das
“kombis”, ele menciona o impacto econômico negativo que estes “descontos” geravam. Na
maioria dos casos, os prejuízos acabavam desestimulando este tipo de ação, enfraquecendo
aqueles grupos mais fortes e simplesmente matando aqueles já debilitados:
Mas mesmo os que discordam da solução das “kombis” não possuem
dados concretos para contesta–la. Ou para se convencerem que estão
errados. Um aspecto é sempre repetido: as peças que fazem grande
sucesso são prejudicadas (a rentabilidade cai vertiginosamente com a
baixa dos preços) e as que vão mal continuam mal não possuem quase
atrativos para um público que, mesmo pagando dez cruzeiros, quer ver
êxitos. E para muitos empresários outro risco: começa a formar–se
um público que espera as semanas de “popularização” para ver o que lhe
interessa. O problema tem sua complexidade”.
273
Se não bastassem todos estes problemas, Fernando Peixoto levanta mais um que
pode ser adicionado à lista: o profundo desinteresse da grande maioria dos artistas em
acompanhar o que está sendo feito no teatro brasileiro em termos de espetáculos. O título
da crítica que trata desse tema é uma irônica indagação: “Auto–suficiência ou
desinteresse?”. O mote da crítica é a ausência quase total de público no II Festival
Internacional de Teatro que ocorreu no Rio de Janeiro em junho de 1976. Por mais que o
sucesso do evento tivesse sido prejudicado por problemas de divulgação e até mesmo por
causa das fortes chuvas, mencionados no texto, Peixoto não aceitava isso como
justificativa. O trecho abaixo demonstra a sua opinião sobre a necessidade da classe teatral
refletir sobre sua atitude, de fazer um “exame de consciência”:
Este desinteresse dos que fazem teatro no Brasil (ao menos no Rio) é um
ponto básico a ser pensado quando se reflete sobre o nível das produções
locais. [...] A produção de teatro, entretanto, navega no escuro e sem
vento. Isto para não ter que mais uma vez mencionar as imensas ondas
que ameaçam, a cada instante, colocar o navio a pique, fazendo naufragar
tudo de vez. Ou seja, nossos estímulos nascem e crescem aqui e talvez se
esgotem aqui, dentro de cercas. Um espetáculo estrangeiro (sobretudo um
festival), mesmo se não evidenciar um valor superior, sempre traz
elementos novos para uma reflexão. Ou seja, traz novos dados para a
compreensão da própria profissão e de seu exercício. Novos elementos
para o questionamento da linguagem para busca de novos recursos ou
solução de problemas. Mas a verdade da “classe teatral” ainda é, no país,
muito mais os bares à noite, as badalações e o parasitismo.
274
comprar os ingressos”. O chofer certamente não foi assistir aos espetáculos, pois deve ter ficado do lado
de fora, esperando o “povo” que estava vendo teatro...”. PEIXOTO, Fernando. Debate Teatro Popular:
O público das Kombis. Jornal Movimento, 23/02/1976, p. 15.
273
Ibid.
274
Id. Auto–suficiência ou desinteresse? Jornal Movimento, 07/06/1976, p. 18.
Capítu
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Fica claro que para Fernando Peixoto o trabalho artístico era uma coisa séria, a ser
estudado, debatido, aprofundado, distante de qualquer improviso ou brincadeira. Suas
posturas e seus pontos de vista existentes nas críticas nos passam a imagem de um
trabalhador incansável e rigoroso, um quase exemplo a ser seguido pelos seus colegas de
profissão. A crítica acima chama a atenção justamente por isso. Querendo ou não, ela nos
passa a impressão de uma classe teatral entregue às futilidades e diversões, enquanto ele,
Peixoto, com sol ou, principalmente, com chuva, estava lá buscando conhecer mais sobre o
teatro de outros países. Algumas vezes, percebemos uma pretensão excessiva por parte do
crítico que se julga capaz de dizer o que as pessoas devem ou não fazer, sendo ele o único
guardião da “verdade” e da “razão”. No trecho seguinte esta percepção fica mais evidente:
E assim, infelizmente, acontece o processo teatral nacional: enquanto a
“classe” ocupa as mesas da “Fiorentina” ou do “Luna Bar” no Rio, quatro
ou cinco atores estão junto com a ASA ou com o Sindicato nos encontros
com o diretor do Conselho Nacional de Direito Autoral no Ministério de
Educação tentando libertar a classe da exploração das grandes empresas
de televisão e dez ou doze outros (ou os mesmos), sem qualquer tipo de
deslumbramento colonizado, procuram observar de olhos abertos o teatro
que os grupos estrangeiros nos trouxeram.
275
Quase como um “censor”, ele impõe um “peso na consciência” da classe teatral
brasileira. Enquanto uns poucos lutam para “libertar a classe da exploração das grandes
empresas de televisão”, a grande maioria está nas mesas dos bares, não se importando (ou,
quem sabe, estavam tentando esquecer?) com os sérios problemas por quais passava o
teatro. Ele, neste caso, torna-se uma espécie de referência quase que solitária, mas ainda
certo e orgulhoso dos valores e das convicções que tinha.
Mesmo assim, a cada argumento que Peixoto trabalha em suas críticas,
principalmente em relação à sobrevivência de um “teatro engajado e compromissado
politicamente”, as dificuldades são cada vez mais evidentes. Atores seduzidos pelo sucesso
individual que a televisão oferece, a concorrência com outros espetáculos que apelam para
o óbvio e o repetitivo, a falta de dados concretos em relação ao público na escolha de um
repertório que possa ser encenado, o profundo desinteresse por parte dos artistas em
participarem e acompanharem o que acontece de novo no teatro brasileiro e, obviamente, a
censura por parte do regime militar que ainda exercia o seu poder de veto naqueles anos,
tema este menos explícito em suas críticas por razões óbvias.
276
275
PEIXOTO, Fernando. Auto–suficiência ou desinteresse? Jornal Movimento, 07/06/1976, p. 18.
276
Entrando na questão da censura sobre o trabalho do crítico e como isso alterou toda uma geração de
artistas e pensadores do teatro, Michalski fez um depoimento extremamente instigante e revelador de seu
Capítu
CapítuCapítu
Capítulo III
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151
As críticas de Fernando Peixoto em relação aos espetáculos que assistiu durante
estes anos, em que foi o responsável pela seção teatral do jornal Movimento, são
importantes documentos que nos apresentam um “homem de teatro” atento ao que estava
ocorrendo em seus mínimos detalhes. Ele tinha um objetivo: compreender, mas,
principalmente, questionar, levantar dúvidas e suscitar o debate entre diferentes
concepções artísticas. No seu trabalho, ele não se furtava de estar presente e abrir o jogo
em relação às suas opiniões. Do mesmo modo, não ficava imune à crítica em relação à sua
postura, principalmente quando se pensava em atitudes mais “radicais” do trabalho teatral.
Convém salientar aqui mais algumas questões em relação ao seu trabalho como
crítico. Como vimos no capítulo anterior, Peixoto considerava a sua atividade vital dentro
de um processo maior que dizia respeito à atividade teatral. Se por um lado, suas críticas
estavam direcionadas no intuito de compreender e de alterar os rumos das artes cênicas no
Brasil, comunicando-se abertamente com os responsáveis, ele se preocupava em justificar
para o público-leitor suas opções. Querendo ou não, como um “educador”, como o próprio
Décio de Almeida Prado se intitulava, ele se esforçava por fazer valer aquilo que dizia e
aquilo que acreditava. O próprio Bernard Dort não deixava de fazer referência a esta
característica necessária:
Mas o crítico pode ter ainda um outro papel: o de educar o público. Não
no sentido acadêmico da palavra, mas iniciando-o na linguagem teatral,
fazendo-o refletir em sua função: a função do público. Brecht gostava de
afirmar que existem pelo menos três artes no teatro: a arte do autor, a arte
do ator e a arte do espectador. O crítico pode ser aquele que ensinará ao
espectador a arte de ser espectador.
277
No trecho acima de Dort percebemos a “autoridade” com que Fernando Peixoto
buscava exercer em seu trabalho nos jornais. Sua irritação com os colegas, a denúncia que
trabalho: “Um outro plano menos direto, mas tão grave quanto o primeiro foi a censura que se exercia
sobre o meu trabalho de crítico, através da censura que era exercida sobre o teatro: não é sobre a imprensa
e sim sobre o teatro, ou seja, limitando muito drasticamente o tanto daquilo que me era dado a ver. Quer
dizer, o repertório, a própria linguagem dramatúrgica, a própria linguagem cênica, ou seja, eu deixei,
certamente durante estes dezessete anos de criticar muitos trabalhos potencialmente de maior interesse e
que teriam ampliado o ângulo do meu trabalho de crítico, caso tivesse chegado ao palco. Ainda
mencionaria um outro aspecto paralelo, lateral, que seria uma certa autocensura decorrente da evidente
preocupação em não vender o peixe para o inimigo. Ou seja, a gente sabe que determinados espetáculos
se empenhavam em driblar através de uma linguagem mais ou menos metafórica as intenções da censura,
então, denunciar isso, ou até mesmo interpretar muito explicitamente o sentido dessas metáforas, podia
corresponder a expor os artistas responsáveis por esses espetáculos a sanções graves”. MICHALSKI,
Yan. O palco amordaçado. In: KHÉDE, Sonia Salomão. Censores de pincenê e gravata: dois momentos
da censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri, 1981, p. 114-115.
277
DORT, Bernard. As duas críticas. In: ______. O teatro e sua realidade. São Paulo: Perspectiva, 1977, p.
57.
Capítu
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152
fez em relação ao descaso destes com a atividade teatral demonstra esta sua faceta mais
exigente. Do mesmo modo, quando criticava a atuação de certos empresários que não se
preocupavam com o tipo de espetáculo que estavam bancando, contanto que tivessem lucro
garantido. O tom de desaprovação e até mesmo a intransigência em alguns pontos de suas
argumentações podem, num primeiro momento, parecer professorais, pedantes e
autoritários. Logo uma questão nos vem à mente: quem é ele para dizer o que é certo e o
que é errado, o que é melhor e o que é pior para o teatro brasileiro? Por acaso, é ele o dono
da verdade e da certeza sobre os caminhos a serem seguidos nesta arte tão complexa? Ou
não será ele apenas o portador de uma proposta já ultrapassada, vencida e antiquada
perante os novos tempos, onde não cabia mais a sua visão?
Sabemos de suas opções e de suas nítidas influências, no caso Brecht, Dort e
Rosenfeld. Também temos consciência de que, antes de se julgar o dono da verdade
absoluta em relação ao teatro brasileiro, ele está defendendo uma determinada linha de
ação. Da mesma maneira que ataca, ele é também atacado e seus pontos de vista duramente
questionados por outros críticos e artistas daquele momento. Como se portar diante dessa
situação? Ele busca demonstrar a sua “alternativa” para um teatro engajado politicamente.
Neste sentido, a parcimônia e a moderação seriam o mesmo que anunciar a derrota, o fim
das perspectivas em questão. Efetivamente não era o momento para tal atitude.
O crítico literário inglês Terry Eagleton em seu livro A idéia de cultura apresenta
de maneira exemplar a figura do “intelectual engajado”, contrapondo à idéia do “homem
culto”. O último, representante da “inteligência”, o outro, “radical” e intransigente. Sem
dúvidas, as diferenças entre ambos apresentados pelo autor são bastante elucidativas e
demonstram o perigo e os limites de se fazer certas exigências “moderadas” e
“conciliadoras”, principalmente em determinados momentos de tensão e de
comprometimento integral a alguma causa:
Não é, na verdade, apenas a cultura que está aqui em questão, mas uma
seleção particular de valores culturais. Ser civilizado ou culto é ser
abençoado com sentimentos refinados, paixões temperadas, maneiras
agradáveis e uma mentalidade aberta. É portar-se razoável e
moderadamente, com uma sensibilidade inata para os interesses dos
outros, exercitar a autodisciplina e estar preparado para sacrificar os
próprios interesses egoístas pelo bem do todo. Por mais esplêndidas que
algumas dessas prescrições possam ser, certamente não são politicamente
inocentes. Ao contrário, o indivíduo culto parece-se suspeitosamente com
um liberal de tendências conservadoras. È como se os noticiaristas da
BBC fossem o paradigma da humanidade em geral. Esse indivíduo
civilizado certamente não se parece com um revolucionário político,
ainda que a revolução também faça parte da civilização. A palavra
Capítu
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“razoável” significa aqui algo como “aberto à persuasão” ou “disposto à
concessões”, como se toda convicção apaixonada fosse ipso facto
irracional. A cultura está do lado do sentimento em vez da paixão, o que
quer dizer do lado das classes médias de boas maneiras em vez do das
massas iradas. Dada a importância do equilíbrio, é difícil ver por que
alguém não seria solicitado a contrabalançar uma objeção ao racismo
com o seu oposto. Ser inequivocamente contrário ao racismo pareceria
ser distintamente não pluralista. Já que a moderação é sempre uma
virtude, um leve desagrado com relação à prostituição infantil pareceria
mais apropriado do que uma oposição veemente a ela. E que a ação
pareceria implicar um conjunto de escolhas razoavelmente definitivas,
essa versão da cultura é, inevitavelmente, mais contemplativa do que
engagé.
278
Eagleton põe em xeque a atitude aparentemente “neutra”, “compreensiva” e
“aberta” existente no “homem culto”, para demonstrar a existência, mas principalmente, a
necessidade de convicções políticas para que se possa partir para a ação. Tomar partido,
neste caso, não é ter uma atitude passional ou irracional (que curiosamente nos remete à
visão negativa de Peixoto sobre determinadas correntes artísticas “alternativas”), mas sim,
uma questão de princípios num momento de disputa e de decisão. É complexo
entendermos a intensa “razão” das “massas iradas”. Mas é justamente neste ponto (que
tememos e que desabonamos) que reside o início de um processo transformador.
Evidentemente temos do lado “conservador” uma defesa tão irada e intransigente como
qualquer uma. Antes de ser o dono da verdade, percebe-se que Peixoto é alguém que busca
defender um teatro socialmente responsável e conseqüente, ligado às classes populares.
Fazia parte de uma corrente artística que buscava, por meio da crítica e da discussão, levar
adiante um processo, ainda que incipiente, anteriormente iniciado. Abrir concessões era,
como observamos anteriormente, aceitar que nada mais podia ser feito, que o jogo já
estava perdido e que a única coisa a fazer era, civilizadamente, cumprimentar o vencedor e
conformar-se com a derrota.
Novamente Eagleton, em outra obra sua, Ideologia, demonstra que o estudo desta
categoria do conhecimento é de extrema importância para aqueles que se inquietam diante
de todo processo de acomodação que ocorre em determinados momentos das sociedades.
As dificuldades existentes em alterar uma ordem estabelecida é o mote para a
necessidade de se ter uma atitude sempre reflexiva, e principalmente, ativa:
Nenhum radical que examine friamente a tenacidade e a penetração das
ideologias dominantes pode sentir-se esperançoso quanto ao que seria
necessário para afrouxar seu domínio letal. Mas um lugar, acima de
278
EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. São Paulo: Editora UNESP, 2005, p. 32-33.
Capítu
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154
todos, em que tais formas de consciência podem ser transformadas, quase
literalmente, da noite para o dia, e esse é a luta política. Isso não é
carolice de esquerda, mas um fato empírico. Quando homens e mulheres,
engajados em formas locais, inteiramente modestas de resistência
política, vêem-se trazidos, pelo ímpeto interior de tais conflitos, para o
confronto direto com o poder do Estado, é possível que sua consciência
política seja definitiva e irreversivelmente alterada. Se uma teoria da
ideologia tem algum valor, este consiste em auxiliar no esclarecimento
dos processos pelos quais pode ser efetuada praticamente tal libertação
diante de crenças letais.
279
Lutar por um “teatro engajado” e “político”, que ultrapassasse as fronteiras da
ditadura militar, era necessário para Fernando Peixoto naquele momento. Por razões
estruturais, o “teatro de resistência”, por mais diversificado que fosse, parecia ter uma base
consistente e talentosa para levar adiante este projeto. Era uma questão de convencer o
setor artístico a continuar na luta por um processo de emancipação cultural e política das
“classes populares”, o entregando os pontos, pensando que todos os problemas
brasileiros acabariam com o fim do regime e da censura, ou se lançando de maneira
desesperada a ações isoladas e sem sustentação estrutural adequada.
De toda forma, Peixoto é um crítico rigoroso em seus referenciais e, como vimos,
severo em suas abordagens. Mas, como veremos a seguir, é alguém que se vê inserido num
processo em constante transformação. Por isso mesmo não hesita em voltar atrás em suas
opiniões, elogiar um espetáculo e discordar de seu final, criar uma expectativa em torno de
uma peça, para logo depois se decepcionar com o que viu. Antes de ser o dono da verdade,
o teor das críticas a seguir demonstra um intelectual sujeito a precipitações, erros de
avaliação e preocupação em manter uma linha coerente sobre aquilo que pensava e julgava
ser útil e necessário.
O espetáculo Los Palos, encenado em São Paulo pelo grupo espanhol La Cuadra
em 1975 é um espetáculo observado de perto por Peixoto. Tema de duas críticas, “A
Espanha chora e protesta” do dia 05 de agosto, e “Limite de um protesto” do dia 25 de
agosto, a peça, elaborada a partir de uma montagem de textos sobre a morte do poeta
Garcia Lorca, é analisada de maneiras distintas nos dois textos. No primeiro, de maneira
bastante positiva, o crítico faz as seguintes observações:
Los Palos é um vigoroso lamento com música, sapateados flamengos,
palavras e uma linguagem cênica poderosa: uma imensa grade que ao
tempo assume o significado de cruz carregada pelo grupo espanhol e
279
EAGLETON, Terry. Ideologia. Uma introdução. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista /
Editora Boitempo, 1997, p. 195.
Capítu
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155
troncos que o aprisionam. Trata-se de uma homenagem a Lorca, à partir
de uma reflexão poética sobre sua morte. E sem incluir textos escritos
pelo poeta, é feita com o material de sua linguagem: a poesia e a música.
Los Palos impressiona sobretudo pela entrega total de seus intérpretes,
pelo clima obsessivo que consegue criar e pelo rigor de sua linguagem
visual.
280
Vigoroso, utilizando-se da música e da dança, criando uma linguagem cênica
poderosa por meio da entrega total dos intérpretes, clima obsessivo e rigor na linguagem
visual. Poucas vezes nas críticas de Peixoto temos a reunião de tantos elogios em relação a
um espetáculo. O conjunto dos elementos acima mencionados, sem dúvidas, impressionou
o crítico que, como sabemos, buscava esta honestidade e força comunicativa nas peças que
assistia. Sem contar que o próprio tema da peça, a morte do poeta e dramaturgo espanhol
Lorca pelo regime ditatorial do general Franco na década de 30, na Espanha, cabia muito
bem como referência e crítica à própria realidade brasileira, sob a ditadura militar desde
1964. Porém, vinte dias depois, as suas opiniões mudam de tom. Desde o título do texto,
“Limite de um protesto”, já demonstra um Peixoto menos exaltado que faz as seguintes
ressalvas:
Diante de um espetáculo extremamente bem realizado, e que cumpre sua
proposta, como Los Palos, o que finalmente pode ser questionado é seu
significado como teatro político. Ou seja, o conteúdo político do lamento.
Justamente o que constrói a beleza visual e poética, todos os recursos de
linguagem cênica mobilizados para este instante de sofrimento, acabam
erguendo uma obra que não provoca o espectador no sentido de mobilizar
sua energia emocional e racional para a transformação. O lamento nos
atinge, mas ao mesmo tempo que nos comove, nos envolve com sua
beleza e sua força e nos deixa passivos, ainda que talvez fascinados. A
música nos apanha, mas não ouvimos as palavras. E a Espanha de hoje é
muito mais. Mas não sentido em culpar o espetáculo pelo que o
pretende nem talvez se propõe a refletir sobre a realidade e a examinar os
caminhos de sua transformação, são outras. Bem mais que a exposição da
dor, um teatro realista e crítico deve desvendar suas causas, suas
contradições e seu possível extermínio, e negar-se a anestesiar o
espectador.
281
Sua impressão inicial, onde ele ressalta a questão da beleza e da capacidade que o
espetáculo tinha de envolver o público, é logo abrandada quando ele pensa na
conseqüência do uso de tais elementos, mais especificamente, dos problemas que ele
percebe no “conteúdo político do lamento”. É peculiar o momento onde afirma que a
beleza, a força e a fascinante música utilizada na peça acabam gerando uma admiração
280
PEIXOTO, Fernando. A Espanha chora e protesta. Jornal Movimento, 04/08/1975, p. 20
281
Id. O limite de um protesto. Jornal Movimento, 25/08/1975, p. 21.
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inócua, sem ação e, principalmente, sem transformação. O teatro não é apenas emoção e
fruição da beleza, é, além de tudo, um ato racional. No final, se corrigindo, relembra as
funções de um espetáculo “realista e crítico”, que jamais poderia “anestesiar o espectador”,
ainda que ele mesmo tivesse se impressionado num primeiro momento.
O espetáculo Porandubas Populares de Carlos Queiroz Telles e encenado por
Mário Masetti em agosto de 1975 é, também, tema de uma crítica no jornal Movimento.
Fernando Peixoto com bastante entusiasmo a dramaturgia de Telles, tendo ele
anteriormente dirigido dois textos seus, A Semana (1972) e Frei Caneca (1972). Porém, a
encenação do espetáculo que ele assiste é apontada com muitas ressalvas.
O primeiro ponto levantado é o que ele chama de “defeito-qualidade”, quando o
diretor torna-se “timidamente fiel ao texto”.
282
Mais dois problemas cênicos são analisados
por Peixoto: a opção de alterar a estrutura da peça que acabou isolando as cenas, perdendo
a organicidade e a lógica original e, por fim a representação “inconsciente” e “imprecisa”,
principalmente por falta de conhecimentos técnicos dos atores, pautados na estética
“circense” que poderia, pelo seu caráter “popular”, ser melhor aproveitada. Além disso, o
final de dois espetáculos (A Semana e Porandubas) encenados por Masetti são
questionados do seguinte modo:
E a dúvida perdura: ambos espetáculos, finalizando de forma
“apoteótica” não correm o risco de terem suas melhores intenções
apagadas? A maneira de encerrar espetáculos e textos permanece, em
certo nível, um dos problemas fundamentais para serem pesquisados na
prática pelo teatro brasileiro que se preocupe em o fazer com que o
público deixe a sala de espetáculos sem levar para casa uma dúvida, uma
incerteza ou material para uma reflexão que não se esgote facilmente.
283
Novamente a crítica de Peixoto recai sobre a necessidade de um espetáculo que
tenha impacto sobre a platéia, não apenas no momento da encenação, mas principalmente
quando ela sai do teatro. A parte final de uma peça é essencial para que os objetivos sejam
alcançados. O formato “apoteótico” utilizado pelo diretor, ao invés de incomodar o público
e gerar questionamento e reflexão (condições essenciais em sua opinião), acaba por
inutilizar todo o trabalho do espetáculo.
Um outro momento interessante de suas críticas são dois textos que tratam do
espetáculo Shakespeare´s People, escrito a partir de um conjunto de sonetos e trechos de
quase vinte peças, interpretado por cinco atores ingleses. Dentre eles, uma das figuras mais
282
PEIXOTO, Fernando. São Paulo com açúcar e afeto. Jornal Movimento, 11/08/1975, p. 22
283
Ibid.
Capítu
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157
importantes do cenário teatral inglês, o ator Michael Redgrave. Dirigido por Alan
Strachtan, a apresentação ficou em cartaz durante dois dias, 04 e 05 de outubro de 1976 na
cidade de São Paulo e foi promovida pela “Sociedade Brasileira de Cultura Inglesa”.
O primeiro texto de Fernando Peixoto sobre esta encenação é do dia 04 de
outubro, no mesmo dia em que a peça seria apresentada. Com o título “Inglês prá brasileiro
ver”, notamos que havia uma grande expectativa em relação ao que seria apresentado.
Mesmo considerando o ator Michael Redgrave dentro do rol dos “tradicionais” e
“clássicos”, ele não vê, neste caso, nenhum problema por que seria uma oportunidade
única de assistir “[...] a extrema força de sua técnica, a capacidade extraordinária de dizer a
poesia shakespeareana com absoluta clareza e objetividade”.
284
Além disso, o ator inglês
era um “intelectual”, alguém preocupado com a sua profissão e extremamente racional em
suas reflexões.
285
O final do texto é positivo, carregado das melhores expectativas:
Redgrave pensa e seu pensamento certamente estará hoje e amanhã no
palco do Municipal de S. Paulo. Com a quase certeza de que não nos
confrontaremos com um recital acadêmico, mas com a possibilidade de
revisar Shakespeare através de uma lição de correção e talento.
Shakespeare’s People, mesmo sendo um espetáculo estrangeiro, poderá
se constituir num instante especialmente estimulante dentro de uma
inesperada temporada nacional de teatro que (o mesmo, aliás, acontece no
Rio, no momento), parece nitidamente trazer de volta a seriedade ao
palco.
286
Duas vontades foram expressas por Peixoto em relação ao espetáculo que seria
encenado à noite: que não fosse um “recital acadêmico” e que despertasse no teatro
brasileiro a “seriedade”. A primeira, representava a vontade de ver algo vivo, concreto e,
porque não, popular. A segunda, serviria como lição de profissionalismo e de
responsabilidade. Não havia como negar esta possibilidade visto que, como ele mesmo
menciona, eram dois “monstros sagrados” do teatro que estavam no palco: Shakespeare e
Redgrave.
Porém, uma semana depois, no dia 11 de outubro de 1976, numa crítica intitulada
“Duas certezas e um erro”, Peixoto descreve o espetáculo acima de forma totalmente
284
PEIXOTO, Fernando. Inglês prá brasileiro ver. Jornal Movimento, 04/10/1976, p. 19.
285
“Quem conhece os seus dois livros sobre teatro [...] Mask or Face e The Actor´s Ways and Means, sabe
que estará diante de um ator que sempre evidenciou, em sua carreira em teatro e cinema, uma constante
inquietação sobre o significado de sua profissão, não aceitando moda ou passivamente o êxito, mas
utilizando-o para pesquisar, em si mesmo e nos companheiros de trabalho, constantes indagações sobre o
que significa ser ator e quais as possibilidades de sondar uma técnica ou uma metodologia racional de
trabalho para uma atividade que, erradamente, tem sido configurada ao reino da inspiração abstrata”. Ibid.
286
Ibid.
Capítu
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158
contrária às suas expectativas iniciais. As duas certezas do título referiam-se a importância
do dramaturgo alemão Georg Büchner (ele faz uma crítica bastante positiva ao seu
principal texto, Woyzeck de 1837) e do inglês William Shakespeare. O erro dizia respeito
justamente ao espetáculo representado pelo grupo inglês:
[...] Na semana passada me referi à importância de vê–lo, sem esperar
mais que uma apurada realização tradicional. Mas Shakespeare está
morto em “Shakespeare’s People”. A vitalidade e o sangue ardente do
poeta popular estão castrados por uma monótona leitura que define
justamente os falsos valores impostos pela cultura burguesa inglesa: a
beleza dos versos, a música das palavras e das frases, a inteligência e o
humor, a complexidade dos sentimentos e emoções, acabam reduzidos a
um fim em si mesmos. Não são o instrumento de uma análise do homem
e da sociedade, nem mesmo traduzem a complexidade de um personagem
ou de uma ação dramática. Os atores colocam o texto no simples nível do
exercício ou virtuosismo vocal: tudo consiste em como dizer o texto, na
“elegância” do falar, independente do significado mais profundo do
mesmo, que nem é mesmo sonhando. A encenação não vai além de uma
superficial organização dos trechos selecionados. Cinco excelentes
intérpretes, sem dúvida. Mas o resultado é um sarau literário acadêmico e
desgastado.
287
Na crítica, Peixoto começa atacando os “falsos valores impostos pela cultura
burguesa inglesa”, as opções cênicas que empobreceram o caráter popular de
Shakeaspeare, transformando a apresentação numa simples demonstração de virtuosismo e
de “elegância” por parte dos atores. Ao transformar o espetáculo num “sarau literário
acadêmico”, perdeu-se a oportunidade de efetivar uma real análise, por meio dos textos e
da encenação, do homem e da sociedade. Não podemos nos esquecer que este é, para o
crítico, o grande objetivo do teatro, ter ressonância e vigor para efetivar transformações
profundas naqueles que o assistem. Neste sentido, a coerência e os parâmetros que utiliza
em suas análises é uma constante, sendo notável o seu esforço na continuidade de sua luta.
Na mesma crítica, ao tratar de Woyzeck (1837) do alemão Georg Büchner,
dirigido pelo espanhol José Luiz Gomez com o grupo madrileno Teatro de la Plaza,
Peixoto demonstra o direcionamento que ele considera positivo. Não obstante, o próprio
texto teatral é considerado por Peixoto como um dos grandes desafios da dramaturgia
mundial. A maneira como esta companhia enfrentou as dificuldades, com coragem e
qualidade, é algo que chama a atenção do crítico:
[...] Sua corajosa encenação evidencia uma maturidade espantosa,
justamente diante de um dos textos mais difíceis da dramaturgia
universal. “Woyzeckencontra uma tradução cênica exata, seus detalhes
287
PEIXOTO, Fernando. Duas certezas e um erro. Jornal Movimento, 11/10/1976, p. 16.
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e suas significações são expostos com extrema sensibilidade e lucidez. A
tragédia de um proletário esmagado por uma sociedade que o trata como
objeto e que se estrutura impiedosamente por cima de seu trabalho e de
sua sufocada e desesperada existência cotidiana, até conduzir personagem
e temática ao nível da tragédia, atinge dimensão gigantesca nas imagens
frias do espetáculo de Gomez. A precisão da encenação mostra as
conquistas mais recentes da linguagem cênica. O espetáculo espanhol,
construído sem dúvida com sangue alemão, transforma-se, para o
espectador, numa experiência fascinante de inteligência.
288
Além da descrição acima, ao mencionar a maturidade e a inteligência da
encenação, ele reconhece no espetáculo a marca do teatro alemão, especificamente a
influência do grupo brechtiano “Berliner Ensemble”, que entre outras características
decisivas, estariam “as mutações entre quadros realizadas com lentidão e num ritmo que
incentiva uma reflexão específica, a pesquisa de interpretações científicas pelo que
significam como registro de comportamentos sociais”.
289
Sem dúvidas, ao mencionar a
capacidade exata de transpor o texto para o palco, levando em conta a sensibilidade e, ao
mesmo tempo a lucidez, Peixoto reafirma algo significativo sobre o “teatro brechtiano”.
Demonstra que este está ligado às conquistas mais recentes no campo da encenação, não
sendo algo antigo e ultrapassado, mas algo em constante elaboração.
290
Ao fazer referência
sobre a “experiência fascinante de inteligência”, sentida pelo espectador ao assistir um
espetáculo nos moldes “brechtianos”, podemos acrescentar uma observação de Dort sobre
a magia dos espetáculos feitos pelo Berliner Ensemble, comparados a outros grupos
contemporâneos:
É nisto que o teatro brechtiano se separa do teatro tal como o praticamos
habitualmente. No Berliner Ensemble, longe de se desgastar de uma
representação que distrai ou que exalta, a atividade teatral é sobretudo um
ato de reflexão sobre a realidade, sobre nossa condição histórica. Brecht
288
PEIXOTO, Fernando. Duas certezas e um erro. Jornal Movimento, 11/10/1976, p. 16.
289
Ibid.
290
Fernando Peixoto, principal responsável pela publicação em 1986 de uma série de anotações e análises do
diretor alemão Manfred Wekwerth do Berliner Ensemble, apresenta o trabalho do grupo a partir dos
seguintes referenciais: “[...] Wekwerth ensina que a arte do encenador começa com sua capacidade de
provocação, que a reflexão crítica pode ser um prazer intenso, que um trabalho coletivo necessariamente
tem que fundamentar-se na discussão livre e democrática, que é imprescindível partir sempre do real e
nunca dos preconceitos ou das armadilhas do hábito e da tradição, que a criatividade é um processo
científico aberto ao constante debate, que a verdade é concreta e os dogmas representam a repetição da
mentira, que o humor é indispensável e a dialética marxista é o único caminho para desvendar a
complexidade de um texto e colocar na cena de forma divertida e instrutiva as relações que os homens
estabelecem entre si na sociedade, que somos mais produtivos brincando do que suando. E que depende
de nós, portanto, representar a verdade no palco; e a verdade no palco só será verdade se aparecer aliada à
sua irmão, a beleza”. PEIXOTO, Fernando. Encenação e dialética. In: WEKWERTH, Manfred. Diálogo
sobre a encenação: um manual de direção teatral. São Paulo: Hucitec, 1986, p. 10.
Capítu
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não deixou apenas uma obra e um método [...]: é uma prática e quase uma
moral do teatro que constituem seu ensinamento mais profundo.
291
Notamos que Dort também assinala a precisão existente nos espetáculos do
Berliner Ensemble, onde nada é gratuito, superficial ou excedente. Soma-se ainda a
possibilidade de reflexão sobre a realidade, que mais uma vez surge como a grande razão
de ser do teatro Peixoto, ao ressaltar em outro momento de seu texto a utilidade das
“interpretações científicas” como “registro de comportamentos sociais”, compreende a
atividade teatral imersa numa racionalidade capaz de demonstrar a própria verdade, útil e
concreta.
292
Neste ponto, compreendemos a sua resistência ao espetáculo dos espanhóis La
Cuadra e, também, a crítica em relação ao espetáculo O Duelo do dramaturgo português
Bernardo Santareno, encenado em São Paulo no ano de 1975 por Roberto Vignati. A
afirmação de que o diretor, ao acentuar as paixões, “[...] faz seus intérpretes passarem por
cima das palavras e das frases poéticas, trabalhando unicamente a chave da emoção: não
traz para a cena os conflitos sociais nem articula imagens vivas de uma representação
aberta”
293
é digna de nota. Ressalta aqui a importância e o respeito ao “texto” a ser
encenado, mantendo sempre a exatidão, a profundidade (impossível manter em meio à
gritos e sentimentos exaltados) e o conflito, elemento gerador de qualquer transformação
social.
Os elogios em relação às encenações do encenador espanhol Jose Luiz Gomes não
se limitam ao trabalho feito em Woyzeck. Peixoto novamente se entusiasma com outro
espetáculo seu, Mockinpott escrito pelo dramaturgo alemão Peter Weiss, encenado em São
291
DORT, Bernard. A prática do Berliner Ensemble. In: ______. O teatro e sua realidade. São Paulo:
Perspectiva, 1977, p. 307.
292
Nas reflexões de Peixoto sobre a importância de Brecht no Brasil, na década de 1980, salienta o papel
da “ciência do materialismo histórico” na interpretação e transformação da sociedade ao lado de um certo
equilíbrio com outras formas de encenação: “Hoje o teatro brasileiro, ou as diferentes e pluralistas formas
de produção teatral que existem no País, após anos de violenta censura policial e agressiva repressão ao
debate crítico, está empenhado numa retomada difícil e urgente: a busca da identidade nacional e popular,
o espetáculo realista e crítico. Numa redefinição de seu significado social e cultural. Numa batalha
inadiável pela libertação do colonialismo e da dependência cultural. Na permanente defesa das classes
trabalhadoras na tarefa histórica de construção de uma sociedade livre e democrática, popular e socialista.
Estamos conscientes de que o teatro é um instrumento poderoso para a reflexão crítica: uma manifestação
do homem em sua historicidade concreta, espaço de discussão de comportamentos e atitudes vinculados à
relações de produção. Certamente serão múltiplos e imprevisíveis os caminhos desta procura e os
contornos ou limites deste trabalho. Mas é evidente que Brecht é uma presença inquieta e provocativa.
Não um dogma sagrado, mas sim a necessidade de implantação da dúvida e da insatisfação: uma
instigação ao pensamento dialético”. PEIXOTO, Fernando. O teatro de Brecht aqui hoje. In: BADER,
Wolfgang. Brecht no Brasil – Experiências e Influências. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 25-26.
293
PEIXOTO, Fernando. Dois chicotes (o do patrão e o do servo). Jornal Movimento, 04/08/1975, p. 21
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Paulo em 1976, que estava anteriormente em cartaz em Porto Alegre. Mesmo
demonstrando a existência de certo “esquematismo” no texto, não deixa de apontar os
pontos positivos e interessantes, principalmente quando remete à influência de Bertolt
Brecht na encenação de Gomes. Ao mesmo tempo critica uma forma teatral bastante
discutida, especialmente no jornal Opinião, do teatro “irracional” e “abstrato”:
A construção dramática e rígida, como nos textos dramáticos de Brecht,
e, paradoxalmente, como no desnudamento formal do “teatro de
catequese”. Tudo obedece a um rigor matemático, quase cartesiano. Mas
o texto, escrito em versos (conservados na montagem brasileira) não se
preocupa com mergulhos de ordem psicológica ou em aprofundar
“estados d’alma”. Visa demonstrar uma trajetória. E atém-se a esta
proposta com disciplina espartana e jesuítica.
294
O texto encenado, ainda que com ressalvas, tem características que satisfazem
Peixoto em relação ao rigor e à disciplina, à opção em demonstrar uma trajetória,
distanciando-se de qualquer elemento psicológico e egoísta. A “disciplina espartana” e
“jesuítica” existente no texto, demonstrando a firmeza consciente de seu propósito, são
dois elogios do crítico que expressam com exatidão o que ele considera mais valioso. Pelo
fato de Gomez, o diretor da peça, ser influenciado fortemente pelo teatro alemão moderno,
a crítica salienta mais aspectos positivos, completando assim um cenário quase ideal e
absolutamente necessário naquele momento:
José Luiz Gomes conhece o teatro alemão moderno [...] e conhece a
capacidade de fazer poesia, simplicidade, ingenuidade e violência,
nasceram de terrenos aparentemente secos. Sua montagem tem
criatividade permanente porque ele se lança no sentimental e no poético
sem medo. E sem perder a lucidez de sua construção cênica.
295
A preocupação de Peixoto em acabar com “falsos” dualismos também está
presente nas duas citações acima. Convém relembrar o seu posicionamento crítico em
relação à distinção habitual entre teatro como “cultura” e teatro como “diversão”. Aqui, ele
segue o mesmo raciocínio e condena a distinção entre “razão” e “emoção” ao descrever os
aspectos racionais existentes em Mockinpott, ao salientar o trabalho lúcido e criativo do
diretor em se lançar no “sentimental e poético sem medo”. Sua “dialética materialista”,
mais uma vez, se faz presente quando pensa sobre os problemas do teatro e,
principalmente, na sua solução ao reunir as duas dimensões.
294
PEIXOTO, Fernando. De objeto a sujeito. Jornal Movimento, 05/04/1976, p. 17.
295
Ibid.
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162
Em uma crítica do ano de 1977 ao espetáculo Torre de Babel, do espanhol
Fernando Arrabal, dirigido por Luiz Carlos Ripper no Teatro Ruth Escobar em São Paulo,
Peixoto faz mais ressalvas em relação à utilização sem parâmetros e discernimento dos
aspectos sensoriais em detrimento dos racionais:
Sua concepção nasce antes de uma proposta, bastante rica e inventiva, de
utilização do espaço cênico, do que de uma leitura dialética e materialista.
O espetáculo, voltado para o espetacular, arrojado enquanto escrita
cênica, atinge momentos de extrema força, pelo impacto das imagens e
pela agilidade da cenografia, mas não assume uma postura ideológica
reveladora. Tudo se passa mais no nível do mais imediato e desmedido
recurso sensorial. E muito da matéria viva, fornecida pelo texto, ainda
que de forma confusa e caótica, se perde, como os atores e a palavra,
entre um efeito e outro. Sem dúvida a opção por uma linguagem de
efeitos, ainda que forte, não é suficiente para o complexo universo de
Arrabal. Onde o espetáculo justamente poderia corrigir, ele se omite,
desviando–se para outro nível. Certamente é um tipo de proposta que não
nasce do nada. A indefinição do texto, que para muitos se confunde com
abertura, favorece qualquer tipo de leitura. Sem dúvida a escolha de
Ripper é uma escolha possível. Até mesmo eficiente para o público ao
qual se destina.
296
Em alguns momentos, principalmente na parte inicial do trecho acima,
verificamos algumas semelhanças com as críticas que Peixoto fez, dois anos antes, em
relação a Los Palos, sobre o perceptível impacto visual e cênico. Porém, agora, ele não se
deixa levar pelas impressões iniciais e demonstra uma série de erros cometidos pelo
diretor. Um deles seria a falta de uma “postura ideológica reveladora”, fruto da confusão e
excesso de efeitos cênicos. Outro diz respeito ao “imediato e desmedido uso do recurso
sensorial” que não resolve, na prática, o “complexo universo de Arrabal”. Ao comentar
esta “complexidade”, o crítico ressalta que isto não significa que o diretor possa interpretar
o texto da maneira que bem entenda. E, muito menos, se esconder por detrás da
“indefinição” existente no texto como justificativa para não resolvê-lo da maneira mais
lógica. O encenador, em sua opinião, deve ter a capacidade de racionalizar e de
desmistificar o texto, apresentando assim uma encenação coesa, compreensível e racional.
No entanto, ele constata que a opção do diretor por uma estética pautada nos aspectos
“irracionais” é possível e um determinado público receptível a esta perspectiva. Esta
consideração final é bastante interessante pelo fato de demonstrar, mais uma vez, o duelo
que travava nas páginas dos jornais, sua constante preocupação com a existência desta
situação e do entusiasmo que existia ao redor dela.
296
PEIXOTO, Fernando. Mais Babel do que torre. Jornal Movimento, 16/05/1977, p. 19.
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163
Peixoto acha curiosa a parte final do espetáculo, onde a cortina reproduz um
tabuleiro de xadrez. Ele questiona se, ao utilizar a referência de um jogo extremamente
racional, não entraria em contradição com toda a utilização sensorial e irracional presente
na encenação, onde, segundo a sua opinião, tudo ficou ofuscado e confuso. Ele faz a
seguinte observação: “num tabuleiro o jogo teria sido mais nítido. Seria mais fácil
identificar as pedras e seus deslocamentos. E não teriam sido esquecidos os peões”.
297
Mais uma referência à necessidade de refletir sobre o problema do “nacional-popular”,
aprofundar nos problemas e nos dilemas de uma sociedade e de uma classe em luta e em
contradição, não apenas em relação à ditadura militar, mas à necessidade da continuidade
de um processo coletivo em prol de transformações mais profundas e radicais. O teatro,
ligado a estas aspirações, seria mais uma peça neste quebra-cabeça complexo e, até então,
indefinido.
3.5 O DILEMA DOS CLÁSSICOS E A REFLEXÃO SOBRE OS CAMINHOS DO
TEATRO NO BRASIL
A necessidade de refletir sobre um teatro que ultrapassasse a fronteira restrita de
uma oposição factual e limitada, e que tivesse como inspiração a sociedade brasileira sob
os seus mais diferentes prismas, o “nacional-popular” era um alerta constante nos textos de
Fernando Peixoto. Quando se referia a algumas manifestações do teatro brasileiro,
especialmente daqueles tratados como “clássicos” e, por isso mesmo, num estágio onde são
“intocáveis” e “incriticáveis”, ele questionava esta sacralização. Sem inibição e de maneira
direta questionava a função destes “clássicos”, demonstrando a distância e a total alienação
dos mesmos com a realidade brasileira no final dos anos 70.
Assim como no jornal Opinião, a sua crítica recai mais uma vez sobre a figura de
Nelson Rodrigues. Se antes concentrou a sua crítica aos textos em si, no início de 1976, em
“Quebra-cabeça e cabeça quebrada”, ele faz uma reflexão a encenação no Rio de Janeiro
de um dos mais conhecidos textos do dramaturgo, Vestido de Noiva, sob a direção do
também consagrado diretor polonês, naturalizado brasileiro, Zbigniev Ziembinsky.
297
PEIXOTO, Fernando. Mais Babel do que torre. Jornal Movimento, 16/05/1977, p. 19.
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A encenação de Vestido de Noiva em 1943 dirigida por Ziembinsky sempre foi
considerada como um marco inicial do teatro brasileiro moderno, tanto no nível cênico
como no textual. Desta maneira, criou-se uma lenda em torno deste espetáculo, envolvido
por uma aura crítica que o tornou inquestionável.
298
A intenção do diretor polonês em
1976, ao refazer o espetáculo da maneira mais fiel possível ao “original”, era uma
brecha para Peixoto levantar o problema da conseqüência e da importância de um
espetáculo nestes moldes no Brasil naquela conjuntura:
O que teria efetivamente acontecido em 1943? A versão atual não foi
realizada por Ziembinsky como revisão auto–crítica de um trabalho
anterior, nem foi proposta como atualização, enquanto trabalho de
encenação. A opção foi mais paradoxal: a reconstituição “histórica” de
um espetáculo montado trinta e dois anos antes. Neste nível o novo
Vestido se propõe como peça de museu. E lança uma dúvida: seus
realizadores acreditam no seu vigor enquanto expressão ainda nos dias de
hoje ou propõe um espetáculo que deverá ser assistido com a
sensibilidade e as referências culturais de 1943? Exigir do espectador a
segunda postura é negar todo o significado dinâmico e vivo do teatro
como ato público que começa, existe, e se esgota cada vez que é feito.
Inclusive porque um espetáculo concebido dessa forma encerra uma
contradição invencível (que um filme produzido há várias décadas e
assistido hoje, por exemplo, não possui): por mais que procure ser, não é
nem será aquilo que foi. Ziembinsky pode sem dúvida lembrar e voltar a
propor sua direção original. Mas é bem provável, e seria lamentável se
não fosse assim, que sua concepção de teatro hoje, trinta e dois anos
depois, seja outra.
299
A “reconstituição histórica” proposta por Ziembinsky gera uma série de
questionamentos por parte do crítico. Qual a utilidade de uma “peça de museu” naquela
conjuntura teatral brasileira? Um espetáculo de 32 anos atrás, encenado nos mesmos
moldes, teria sentido, seria compreendido e sentido pelo público? Ou exigir-se-ia do
público, na metade da década de 70, uma sensibilidade dos anos 40? Peixoto responde as
questões do seguinte modo: o teatro em sua totalidade é vivo e dinâmico, “por mais que
298
“[...] Com efeito, o texto trazia um sopro absolutamente novo para o nosso palco, com a sua linguagem
que parecia extraída viva do vocabulário cotidiano da pequena classe média carioca, contrastando com o
diálogo empostado e artificial que prevalecia até então na dramaturgia nacional; e com a sua visão
moderna da estrutura dramática, substituindo a tradicional narrativa linear por nervosos cortes inspirados
na técnica do cinema, e espalhando a ação por três planos organicamente interligados: o da realidade, o da
memória e o do delírio. Por sua vez, apoiada na moderna cenografia de Santa Rosa, a direção de
Ziembinski, polonês que chegara ao Rio dois anos antes, propunha um conceito de linguagem cênica
estilizada, a propósito da qual foram muito citadas as influências do expressionismo alemão, na qual
impressionava sobremaneira o, para a época, revolucionário emprego da iluminação, e que explodiu como
uma bomba no rançoso panorama da encenação brasileira da época”. MICHALSKI, Yan. O teatro sob
pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985, p. 10-11.
299
PEIXOTO, Fernando. Quebra–cabeça e cabeça quebrada. Jornal Movimento, 09/02/1976, p. 14.
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procure ser, não é nem será aquilo que foi”. A peça nestes moldes torna-se inútil no sentido
de reflexão e superação, sendo mais uma “curiosidade” (ainda que questionável pela
impossibilidade de tal efeito) de um momento histórico que passou. Portanto, uma “peça
de museu”. Além disso, por mais que o diretor se lembrasse dos caminhos que trilhou para
colocar o texto no palco, ele não seria impassível às suas próprias mudanças em relação ao
trabalho de direção.
Num momento seguinte da crítica, a análise recai sobre o “rigor estilístico” e a
“estética importada” utilizada na encenação, em 1943 e obviamente em 1976, que na
opinião de Peixoto, poderia ter sido substituída por uma postura “[...] mais espontânea,
mais realista, mais debochada”.
300
Se a encenação foi considerada como indiscutível para
época, não teria ela valorizado excessivamente o texto, que para o crítico era superficial e
esquemático? A partir de seus referenciais, Peixoto é implacável com Nelson Rodrigues e
Vestido de Noiva:
Valorizado e escondido por um elaborado e criativo trabalho de
encenação, o texto de Nelson Rodrigues, antes elogiado por Manuel
Bandeira e Carlos Drummond de Andrade, tornou–se, em certa medida,
também um mito. Mas fácil de ser desmistificado, pois pode ser depois
encontrado nas livrarias e lido. Apesar da agilidade do diálogo e da
habilidade de uma estrutura que alterna três planos (presente, memória e
imaginação a história é contada à partir do cérebro de uma mulher
acidentada que agoniza durante uma operação), sua fragilidade, assim
como a gratuidade de suas obsessões, é nítida: por trás do quebra–cabeça
de uma cabeça quebrada, resta pouco em termos de análise em
profundidade do homem e nada em termos de sua definição numa
estrutura social.
301
Respondendo às suas próprias indagações, o sucesso de Rodrigues como
dramaturgo, na análise feita por Peixoto, não reside em seu talento como dramaturgo, mas
num trabalho bem feito de direção por parte de Ziembinski, que acabou ocultando a
fragilidade e superficialidade do texto. Mas, como vimos na citação anterior, nem a
encenação passa incólume, sendo passível de reprovações. Mesmo sendo reconhecido e
mitificado por artistas do porte de Bandeira e Drummond, não existem razões para Peixoto
aceitar tais referências. Neste ponto, suas opiniões irredutíveis e desabonadoras acabam
nos surpreendendo quando as comparamos com algumas análises críticas sobre o texto e
sobre o espetáculo, especialmente uma intitulada “A peça que a vida prega”, de Sábato
Magaldi, em 1992:
300
PEIXOTO, Fernando. Quebra–cabeça e cabeça quebrada. Jornal Movimento, 09/02/1976, p. 14.
301
Ibid.
Capítu
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166
Hermilo Borba Filho, quase contemporâneo de Nelson, deixou-se marcar
pela sua personalidade. Os primeiros experimentos de Augusto Boal lhe
eram devedores, mesmo se o autor do Teatro do Oprimido enveredou
mais tarde por outras direções, em grande parte opostas às abertas por
Nelson. Jorge Andrade hesitava na forma de colocar, em A Moratória, os
episódios passados nos anos de 1929 e 1932 (sucessão temporal linear ou
uso do flashback?), e o levei a ler Vestido de Noiva, inspiradora da
técnica original de sugerir que uma cena do presente parecesse preparar
uma do passado. Oduvaldo Vianna Filho aproveitou inteligentemente a
liberdade nas mudanças de planos para conceber a arquitetura tanto de
Moço em Estado de Sítio como de Rasga Coração. Plínio Marcos nunca
escondeu que, desbravado o caminho por Nelson, tudo ficou mais fácil
para ele. Notam-se reminiscências de obras rodrigueanas em Muitos Anos
de Vida, de Alcione Araújo. Praticamente a nova geração inteira
aprendeu a fazer diálogo com Nelson Rodrigues.
302
Ainda, que na questão da qualidade dos diálogos, ambos entrem em acordo, o
restante da opinião de Magaldi traz uma nova perspectiva, praticamente contrária do que
vimos até então. O mais surpreendente é o levantamento que faz de alguns autores como
Hermilo Borba Filho, Augusto Boal, Vianinha e Plínio Marcos como influenciados
diretamente por Nelson Rodrigues, ainda que com ressalvas. Não podemos esquecer que os
três primeiros são dramaturgos bastante elogiados por Peixoto, tanto no Opinião como no
Movimento, por serem ligados a um teatro que se aproximava muito de seus valores
culturais e políticos. Ou seja, de um lado temos Magaldi demonstrando a amplitude e a
assimilação da herança “rodrigueana” por toda uma geração, e de outro, Peixoto afirmando
a pouca, ou quase nenhuma contribuição para o desenvolvimento do teatro nacional.
303
No capítulo anterior tivemos a oportunidade de demonstrar algumas questões
sobre a relação polêmica de Peixoto com a obra de Nelson Rodrigues, especialmente pelo
conservadorismo, reacionarismo e críticas em relação à Brecht feitas pelo último. Mas o
questionamento que o primeiro faz sobre a ausência de uma análise do homem dentro de
uma estrutura social é uma justificativa, como crítico, de suas análises sempre negativas. O
que não quer dizer que foi o único a questionar estes aspectos na obras de Rodrigues.
As críticas de Décio de Almeida Prado são instigantes para percebermos os
diferentes juízos críticos existente sobre uma mesma obra e autor. A primeira, do ano de
302
MAGALDI, Sábato. A peça que a vida prega. In: ______. Moderna Dramaturgia Brasileira. São Paulo:
Perspectiva, 1998, p. 39-40.
303
Mesmo publicada no Opinião,o trecho abaixo reforça a idéia que Fernando Peixoto tinha em relação à
Nelson Rodrigues, questionando a sua contribuição: “O teatro brasileiro, dramaturgia e espetáculo,
evoluiu nos últimos anos, voltando-se para um confronto direto com a vida real. Tornou-se em seus
melhores momentos, um instrumento de conhecimento do real, de sondagem das contradições objetivas
da sociedade. Foi um processo que aconteceu sem Nelson Rodrigues, ou mesmo contra ele”. PEIXOTO,
Fernando. Nélson Rodrigues. O maior poeta dramático do Brasil? Jornal Opinião, 08/04/1974, p. 21.
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1947, sobre Vestido de Noiva, por incrível que pareça, acaba nos ajudando a compreender
a opinião de Peixoto sobre o papel da encenação de 1943, em ocultar os defeitos inerentes
do texto, conseguir transformar a “vulgaridade” em algo “sublime”:
Em Vestido de Noiva, situações vulgares e desagradáveis, sem o deixar de
ser, ganham todavia nova profundidade e significação em virtude da
poesia que as invade. Tomemos em um único exemplo, o do velório, que
é bem característico. O diálogo, os sentimentos expressos pelas
personagens, não são apenas vulgares e convencionais: são, além do
mais, falsos, porque mascaram segundas intenções, menos nobres ainda.
Na vida real, a cena seria insignificante e lamentável. No palco,
transportada quase para o plano do bailado, chega a nos comover, tal a
força de seu pungente ridículo.
A beleza de Vestido de Noiva participa, portanto, até certo ponto, da
beleza mórbida de algumas poesias de Baudelaire e da beleza amarga das
caricaturas cruéis de Daumier. É um estudo do que de menos límpido
no coração do homem, esse amor ao pecado, ao remorso, à auto-punição,
que já assinalamos anteriormente.
304
Fica explícito na citação, o peso referente ao papel do encenador e dos atores em
engrandecer um texto que, em outros meios, poderia correr o risco de passar por “vulgar” e
“desagradável”, em alguns casos “insignificante” e “lamentável”. Talvez esteja aí um
pouco da visão que Peixoto tem quando afirma que os textos de Nelson Rodrigues
poderiam ser encontrados em qualquer livraria, lidos e podendo os seus problemas ser
conferidos por qualquer leitor. Mas em outra crítica do ano de 1953, Prado já apontava
algumas “falhas” existentes em algumas peças de Rodrigues, em especial A Falecida, que
são interessantes quando comparamos com as assinaladas por Peixoto 20 anos depois:
[...] é verdade que A Falecida não inventa nada. É verdade que os homens
têm ocasionalmente dores de barriga, que existem espinhas e mesmo
cânceres, que os cavalos nem sempre se comportam com limpeza nos
enterros de luxo. Mas o que isso prova? Todos esses elementos podem ser
aproveitados pela literatura, mas sob a condição de servirem a uma idéia
qualquer, não pelo simples e pueril prazer de dizer coisas proibidas, de
escandalizar o próximo. Assim destituídos de um sentido maior, limitados
a si mesmos, lançados no palco gratuitamente, fortuitamente, como
aparecem em A Falecida, que interesse apresentam?
305
Prado questiona a gratuidade existente numa série de elementos existentes nos
textos de Rodrigues que acabavam, em determinadas encenações, sendo motivo de
questionamento. A simples menção de fatos comuns, corriqueiros e biológicos da vida dos
homens no intuito de chocar não era uma grande novidade. Pelo contrário, demonstrava
304
PRADO, Décio de Almeida. Vestido de Noiva. In: ______. Apresentação do Teatro Brasileiro
Moderno. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 05-06.
305
Ibid., p. 11.
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falta de criatividade pelo uso irrefletido de tais situações. Mas a crítica não para por aqui.
Na continuidade, ele segue adiante chegando à seguinte conclusão:
A peça deseja chocar-nos por sua audácia, mas causa-nos antes a
impressão de ingenuidade de quem acaba de saber como as crianças
nascem e corre a proclamar aos quatro ventos a sua indignada descoberta,
como um desafio à hipocrisia. Haverá em Nelson Rodrigues,
cuidadosamente oculto, um fundo de puritanismo ferido, um desconsolo
adolescente perante a crueza da realidade, que necessita desabafar
dizendo em voz alta o que os outros não dizem? Se não, porque essa
revolta, esse ar de triunfo, ao revelar fatos que ninguém desconhece e que
não têm, efetivamente, a menor importância? A quem estará desejando
punir com a descrição das supostas fraquezas e mazelas humanas? O caso
é que ele, julgando-se o indivíduo mais livre de preconceitos, é, na
verdade, o mais preso, o mais tolhido, ligado que está à necessidade de se
afirmar, estética e moralmente, pela oposição, contando o valor de uma
obra de arte pelo grau de mal-estar que provoca nos outros.
306
As comparações que Prado faz nos leva a perceber certa infantilidade nos
elementos polêmicos e pretensamente inovadores nos textos de Rodrigues, não havendo
sentido utilizá-los indistintamente. Não para o crítico como explicar tal atitude sem se
remeter a um traço oculto de “puritanismo ferido” existente no dramaturgo, que surgia em
seus textos como velhas “novidades”. Se isso causava surpresa dentro de uma encenação
cuidadosa e inovadora, agora não surpreendia mais ninguém. O seu valor é questionado
pelo crítico no momento em que ele afirma que a essência de uma obra de arte estava além
e era bem mais complexa do que uma simples sensação de mal-estar que esta causaria em
determinados públicos. Uma peça teatral deveria almejar bem mais do que isso. O que o
difere tanto de Peixoto quando este exige uma leitura diferenciada da obra deste
dramaturgo com olhar menos sacralizante e reflete sobre o poder de uma encenação sobre
um texto.
Algo ainda chama a atenção de Peixoto ao refletir sobre a inserção de Nelson
Rodrigues na história do teatro brasileiro do século XX. A conseqüência da encenação de
Vestido de Noiva em 1943 para o teatro brasileiro e o impacto que gerou em toda aquela
geração que foi a responsável direta pelo surgimento do TBC (Teatro Brasileiro de
Comédia). Para ele, este tipo de teatro não foi uma “evolução” tão positiva como
habitualmente os críticos costumavam reconhecer. Pelo contrário, representou a “vitória”
de uma forma de fazer teatro que acabou impedindo o surgimento de outra ligada às
questões “populares”:
306
PRADO, Décio de Almeida. A Falecida. In: ______. Apresentação do Teatro Brasileiro Moderno, São
Paulo: Perspectiva, 2001, p. 11.
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[...] O Vestido de 43 não terá sido o marco da ascensão da burguesia no
teatro? Neste nível, o que terá significado para o desenvolvimento
posterior do teatro brasileiro? Os elemento que trouxe como implantação
de consciência de uma linguagem depois desenvolvidos no esteticismo
eclético–burguês do TBC, não teriam ao mesmo tempo esmagado fontes
estimulantes a partir das quais teria sido necessário edificar um teatro
brasileiro? Ou seja, suas desorganizadas e “não culturais” manifestações
nacionais e populares? Uma coisa é certa: o mito acabou. Deixou em seu
lugar, involuntariamente, a dúvida. O que resulta melhor. E mais útil.
307
Um movimento “clássico” do teatro brasileiro é, por Peixoto, analisado como a
ascensão da “burguesia” ao teatro que resultou, conseqüentemente, no esmagamento das
“forças populares” em sua emancipação cultural que, comparadas à estética importada do
TBC, pareciam primárias e sem expressão. Ainda que afirme que o “mito acabou” e que
restou a dúvida, as próprias perguntas que ele mesmo faz demonstram um raciocínio
negativo em relação ao resultado que isso ocasionou ao estancar o surgimento de um teatro
brasileiro, “nacional e popular”. Esta era mais uma culpa no currículo de Nelson Rodrigues
e que o colocava numa situação sempre crítica para Peixoto: o fato de ter contribuído para
o estabelecimento de uma “estética burguesa” no país com o advento posterior do TBC.
Com um enfoque similar, o crítico Yan Michalski analisa a história do Teatro
Brasileiro de Comédia e faz uma crítica ao mesmo, pelo fato de ter permanecido
“afastado” do Brasil, principalmente na década de 1950, em que foi um teatro voltado para
as elites econômicas do país. Porém, não deixa de salientar o seu papel dentro de um
processo de antítese em relação ao momento teatral anterior:
O que faltou a este teatro foi a capacidade de incorporar no seu trabalho a
consciência de que ele estava sendo realizado no Brasil. Muitas vezes
brilhantes na imitação de um padrão internacional de boa qualidade, todas
estas companhias viviam de costas para o seu país: nenhuma preocupação
com a realidade nacional, nenhum interesse pela dramaturgia nacional ou
pela busca de um estilo de encenação e de representação que pudesse ser
identificado como brasileiro, nenhum empenho em atrair ao teatro outras
camadas de espectadores do que as elites econômicas e culturais que
tradicionalmente o freqüentavam. E talvez as coisas nem pudessem, na
época, ser muito diferentes: incialmente tratava-se de romper, ainda que
traumaticamente, com os hábitos de ranço e acomodação que haviam
sido, na etapa anterior, característicos do teatro brasileiro; e quando esta
meta foi suficientemente alcançada para que uma atenção maior
pudesse, em tese, ser dedicada à expressão nacional, faltou matéria-prima
dramatúrgica de qualidade suficiente para sensibilizar o TBC (que só na
reta final de sua trajetória despertou para o assunto) e as empresas
congêneres.
308
307
PEIXOTO, Fernando. Quebra–cabeça e cabeça quebrada. Jornal Movimento, 09/02/1976, p. 14.
308
MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985, p.
12-13.
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Tânia Brandão também demonstra uma influência considerável do TBC no
panorama teatral brasileiro, em meados do século passado, pelo fato de ter sido uma
referência quase obrigatória para as companhias posteriores:
No entanto, parece impossível afirmar que as companhias de atores
tenham escapado do ovo de Colombo proposto por Adolfo Celi ao TBC:
o chamado “ecletismo pendular” do repertório, que consistia, mais ou
menos na alternância de textos de qualidades “opostas”, digamos, textos
de bilheteria compensando as perdas causadas por outros de puro valor
cultural, de retorno incerto de capital.
309
Como podemos perceber, as duas reflexões acima, a primeira de 1986 e a outra de
1994, tratam o TBC numa perspectiva analítica balanceada, onde os méritos e os dilemas
são postos como necessários e imprescindíveis para o próprio desenvolvimento teatral do
país. Obviamente, existem diferenças abissais entre os dois momentos mencionados acima
e aquele em que Peixoto construiu sua crítica no jornal Movimento. De certa forma, a de
Peixoto pode ser ligada a uma crítica escrita por Vianinha, possivelmente no ano de 1960
sobre o TBC:
[...] A cultura não existe como meio para a transformação social como
meio de investigação do homem existe para aguçar um instrumento já
dado, que precisa ser desenvolvido e preparado. O homem se sente bem
vendo coisas belas não moralizantes –abertas corajosas. Ao homem
bem vestido, o teatro e a realidade não têm nada que ver um com a outra
uma é concreta, dura, diária o outro se de vez em quando para o
lazer para as discussões acadêmicas para a satisfação pessoal de ter
teatro de desenvolver um teatro numa terra civilizada que precisa
dessa aparência para que o homem brasileiro não se sinta usurpado na
sua dignidade, na sua existência.
310
Notamos que ambos, Peixoto e Vianinha, na defesa de seus pressupostos críticos e
político, têm uma interpretação negativa ao se remeterem à companhia teatral paulista. Um
teatro para poucos e de pouco valor no processo de transformação social. Com certeza, as
décadas de 1960 e 1970 foram cruciais para o teatro brasileiro pelo fato desta preocupação
política e engajada, urgente e explícita ser um ponto de enfrentamento obrigatório para
aquela geração, negando-o ou aceitando-o. Em seu momento histórico, o crítico busca
responder e corresponder com sua época, assumindo perspectivas incisivas que poderiam
309
BRANDÃO, Tânia. As modernas companhias de atores. In: NUÑEZ, Carlinda Fragale Patê; et al. O
teatro através da história. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil; Entourage Produções
Artísticas, 1994, p. 224.
310
VIANNA FILHO, Oduvaldo. O artista diante da realidade (um relatório). In: PEIXOTO, Fernando.
(Org.). Vianinha – Teatro, televisão e política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 76.
Capítu
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171
ser repensadas num momento posterior. Ao comentar sobre as opiniões de Vianinha sobre
o TBC, Fernando Peixoto, em 1983, acaba reconhecendo a intransigência sua e de seus
companheiros ao analisar aquela atividade cultural:
Este tipo de posicionamento, rotulando sem maior aprofundamento o
TBC como simples porta-voz de uma ideologia burguesa, marcou o
trabalho de nossa geração nesta época. Não que fosse o contrário, mas
caímos quase sempre, a partir de uma defesa de nossos projetos, em
análises que sistematicamente ignoravam o estudo das contradições
internas.
311
Uma outra figura “clássica” do teatro analisada nas críticas é o ator Procópio
Ferreira.
312
Num misto de admiração e relutância, Peixoto relata o trabalho mais recente do
ator que tinha 78 anos (59 dedicados ao teatro) e que estava fazendo uma turnê pela
periferia da cidade de São Paulo. Numa avaliação sobre o papel histórico de Procópio no
processo de consolidação das artes cênicas no país no século XX, o crítico não faz elogios
desmedidos e impensados. Pelo contrário, salienta as diferenças entre as gerações que
buscaram e que ainda buscavam no palco o espaço privilegiado de suas manifestações:
[...] sem dúvida um repertório que mistura tudo. O pior, o melhor e o
medíocre. Procópio interpreta Molière como interpreta Pedro Bloch. Não
pretendo insinuar que coloque ambos no mesmo plano de valor. Mas, no
palco, sua entrega é idêntica. Falta de discernimento crítico ou
consciência profissional extraordinária? Tudo leva a crer na segunda
hipótese. Pois para Procópio, o teatro é sobretudo o ato físico e concreto
de representar. Nisto é insuperável: estar no palco, iluminado, diante de
um público. E com uma missão: sucesso, através da capacidade de
agradar este público. Se ser ator é assumir este desafio, Procópio é um
vencedor.
313
Apesar do reconhecimento, talvez tardio do valor artístico e cultural de Procópio
Ferreira
314
e de suas quatrocentas e vinte duas peças encenadas, Peixoto não deixa de
311
PEIXOTO, Fernando. Quatro instantes do teatro no Brasil. In: PEIXOTO, Fernando. (Org.). Vianinha
Teatro, televisão e política. São Paulo: Brasiliense, 1983, p. 79-80.
312
Sobre o “Teatro de Ator”: “Essa denominação é empregada pelos historiadores do teatro brasileiro para
caracterizar um período de cerca de quarenta anos, entre 1910 e 1950, quando a atividade teatral girou em
torno de um artista dotado de carisma e poder financeiro como dono de uma companhia dramática.
Leopoldo Fróes, Procópio Ferreira, Jaime Costa, Dulcina de Moraes e Raul Roulien são os artistas mais
representativos desse “teatro do ator”, também chamado de “velho teatro” pelo crítico e historiador teatral
Décio de Almeida Prado, por não ter incorporado as inovações do teatro moderno, relativas à arte da
interpretação e da encenação”. FERNANES, Nanci. Teatro do ator. In: GUINSBURG, J.; FARIA, João
Roberto; LIMA, Mariângela Alves de. (Orgs.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e
conceitos. São Paulo: Perspectiva / Sesc São Paulo, 2006, p. 44-45.
313
PEIXOTO, Fernando. Procópio Ferreira na Periferia de o Paulo. Jornal Movimento, 01/03/1976, p.
17.
314
“[...] Quando comecei a ver teatro, formado através do fascínio pelo TBC, aprendi desde cedo a
considerar Procópio e tantos outros como atores menores, incultos, grosseiros, preocupados apenas em
Capítu
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172
apontar nele a coerência e a persistência artística e profissional de colocar em cena aquilo
que o público quer ver. Mas a atitude de encenar “o pior, o melhor e o medíocre” e as
características particulares daquele tipo de teatro, que tinha no ator a base de sustentação
de todo o grupo, acabou sendo “ultrapassado” na década de 1950.
315
Portanto, a própria
trajetória do ator Procópio Ferreira era um entrave ao pensar numa possível contribuição
que ele poderia dar naqueles anos 70:
Procópio hoje teria a humildade de ser orientado ou dirigido? Ou seja,
buscar um repertório dentro de seus valores, mais atual e mais rigoroso,
que lhe permitisse inclusive uma demonstração mais acabada de seu
vigor extraordinário como ator? Seria capaz de se deixar dirigir, fazer sua
interpretação nascer de um trabalho coletivo, ser apenas parte de uma
encenação?
316
Neste caso, para o crítico torna-se compreensível que Procópio e seu espetáculo
Esta noite choveu prata, de Pedro Bloch,
317
esteja fora dos grandes centros e que encontre
fazer rir, figuras que denegriam a imagem sagrada do templo noturno. O desaprendizado não foi rápido,
mas acabou chegando. E hoje um grande ator, talvez isolado e cansado, nos teatros de periferia de São
Paulo, 59 anos de coerência e dignidade”. PEIXOTO, Fernando. Procópio Ferreira na Periferia de São
Paulo. Jornal Movimento, 01/03/1976, p. 17..
315
“Até o fim dos anos 30 o nosso teatro estava, muito, mergulhado num profundo imobilismo. Sua vida
girava em torno de alguns astros e estrelas, dotados de fortes capacidades histriônicas e de grande
facilidade de comunicação com o público, mas desinteressados em experimentar quaisquer caminhos que
não tivessem sido amplamente testados e explorados. Um repertório desambicioso, constituído na sua
quase totalidade de comédias antiquadas e de revistas; espetáculos sem nenhum vestígio de concepção
diretorial a figura do diretor, no sentido moderno, praticamente não existia, sendo substituída pela
função do ensaiador, que cuidava apenas dos aspectos mecânicos do espetáculo – e realizados sem
nenhuma preocupação estética ou estilística; processo de ensaios sem qualquer margem para o
amadurecimento do trabalho (os lançamentos sucediam-se, às vezes, a intervalos de apenas uma semana);
o ponto, aceito como norma, isentando os atores da tarefa de decorar detalhadamente o texto; elencos
escolhidos e orientados com o cuidado de não ofuscar o brilho histriônico pessoal do protagonista-
empresário. Longe de assumir-se como uma força viva e atuante dentro da sociedade, o teatro contentava-
se com o papel de mero divertimento escapista, submisso às acomodadas exigências do público, que
preferia a repetição de uma redundante rotina a qualquer hipótese de um impulso inovador”.
MICHALSKI, Yan. O teatro sob pressão: uma frente de resistência. Rio de Janeiro: J. Zahar, 1985, p.
10.
316
PEIXOTO, Fernando. Procópio Ferreira na Periferia de o Paulo. Jornal Movimento, 01/03/1976, p.
17.
317
Pedro Bloch, numa crítica de cio de Almeida Prado sobre a peça Irene (1953), é caracterizado da
seguinte maneira: “[...] Pedro Bloch, embora não destituído de habilidade nem de senso teatral, é
primordialmente um autor de público, à cata de bilheteria, pronto a negociar com a vulgaridade sempre
que necessário”. E, na mesma crítica, afirma: “[...] o nosso maior técnico do lugar-comum, matéria que
manipular com inigualável maestria”. PRADO, Décio de Almeida. Irene. In: ______. Apresentação do
Teatro Brasileiro Moderno. São Paulo: Perspectiva, 2001, p. 68-69.
O depoimento de Pedro Bloch prestado ao Serviço Nacional de Teatro, no ano de 1975, mostra um
dramaturgo seguro em relação a seu sucesso nacional e internacional, analisando isto como um mérito
ímpar e inédito entre os dramaturgos brasileiros. Ao mesmo tempo transparece um autor consciente das
críticas que recebia. O trecho a seguir é brilhante neste sentido: “[...] Guimarães Rosa me propôs um dia
uma coisa altamente honrosa para mim: ‘Você quer escrever uma peça de teatro comigo?’ Eu digo: ‘Sou
besta, João? Se a peça for boa, é tua. Se for ruim, é do Pedro Bloch’”. BRASIL. Ministério da Educação e
Capítu
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na periferia um público que ainda possa satisfazer. De toda forma, tentar compreender a
figura deste ator e o tipo de teatro que ele representava não era o único dilema que Peixoto
apontava em seu texto. Mais uma vez, o TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) era tema de
suas reflexões e era questionado de maneira crítica em relação à sua função neste
desenvolvimento do teatro brasileiro.
318
Desta vez, sua afirmação reconhece alguns
avanços do grupo paulista, principalmente na superação daquele tipo de teatro que
Procópio fazia parte, mas, de outro lado, impedia o surgimento e consolidação de outras
manifestações:
[...] hoje mesmo os críticos mais impermeáveis à compreensão do
processo histórico, começam a entender que o tipo de teatro estetizante e
burguês, representado pelo Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) paulista
na década de 50 (sobretudo “simbolizado” no TBC) teve, é verdade, uma
série de fatores historicamente fundamentais e positivos, mas trouxe
também a sufocação de valores autênticos e populares de um tipo de
manifestação teatral espontânea que, existia com absoluta razão de ser
com a rude espessura de uma tradição cultural diferente da que seria
“instaurada”. [...] Entre os mil erros daquele teatro tipo pré–TBC haviam
dois bastante graves: a ânsia de agradar e a ausência de outros
compromissos, levavam os atores um comercialismo desenfreado, a um
repertório submisso, a formulas já testadas para agradar as platéias. Por
outro lado, o estrelismo se alternava com o narcisismo ao ponto de fazer
com que cada espetáculo fosse o instante de apogeu de um astro. Enfim,
todo o poder ao grande astro. E isto vicia. E foi também contra isso que
os meninos cultos da época se revoltaram, com justa razão neste ponto.
Daí o TBC ter nascido como “coletivo” (o que é óbvio, durou pouco,
transformando–se logo depois num saco de gatos).
319
As críticas em relação aos dois importantes movimentos teatrais brasileiros
demonstram um Peixoto franco e objetivo. Cada momento histórico teve o seu teatro
correspondente e, como qualquer outra manifestação, teve seu tempo e necessitou
transformar-se ou ser, simplesmente, destruído. A importância dada pelo crítico ao
processo histórico dialético permitia, de certa forma, que ele exigisse por parte da classe
artística” este constante repensar de sua prática e de suas idéias. Que não ficasse presa a
Cultura. Secretaria da Cultura. Serviço Nacional de Teatro. Depoimentos V. Rio de Janeiro, 1981, p. 73-
74.
318
“[...] Quando comecei a ver teatro, formado através do fascínio pelo TBC, aprendi desde cedo a
considerar Procópio e tantos outros como atores menores, incultos, grosseiros, preocupados apenas em
fazer rir, figuras que denegriam a imagem sagrada do templo noturno. O desaprendizado não foi rápido,
mas acabou chegando. E hoje um grande ator, talvez isolado e cansado, nos teatros de periferia de São
Paulo, 59 anos de coerência e dignidade”. PEIXOTO, Fernando. Procópio Ferreira na Periferia de São
Paulo. Jornal Movimento, 01/03/1976, p. 17.
319
PEIXOTO, Fernando. Procópio Ferreira na Periferia de o Paulo. Jornal Movimento, 01/03/1976, p.
17.
Capítu
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determinadas concepções e repetições, mas que tivesse a capacidade de renovar-se e de
acompanhar as exigências e as expectativas da sociedade. A franqueza e a objetividade
utilizadas faziam parte da lógica de seu pensamento. Além do mais, como foi dito
anteriormente, pelo fato destas manifestações terem sido hegemônicas, o “teatro de ator” e
o TBC, acabou por impedir o avanço e o surgimento de outras formas teatrais por questões
estruturais e estéticas. Talvez fosse o momento de superar esta fase na história do teatro
brasileiro.
Num texto do dia 08 de março de 1976, ao refletir sobre as experiências
cinematográficas de José Celso Martinez Corrêa, fundador do Teatro Oficina de São Paulo,
Peixoto demonstra uma visão processual da história do grupo ao refletir um pouco mais
sobre o passado recente do teatro brasileiro. Cabe lembrar que Peixoto, em 1963, se junta
ao grupo e se torna uma figura influente como ator e um dos diretores até o ano de 1971,
quando sai do grupo por uma série de divergências e inicia o seu trabalho como encenador
em diferentes companhias teatrais brasileiras.
320
No trecho abaixo ele busca demonstrar as
diferentes influências que este grupo sofreu e as conseqüências advindas destas opções,
questões pulsantes e que ele mesmo sentiu na pele. Mesmo crítico em relação à muitas
delas, ele reconhece a capacidade de transformação e de constante busca por respostas aos
desafios teatrais:
[...] mas a personalidade indomável de José Celso não se deixou, a não
ser em momentos episódicos, abalar. Prosseguindo numa linha de
trabalho discutível mas assumidas às últimas conseqüências, da qual os
demais, em diferentes instantes, discordaram, manteve sempre a
coerência de sua inquietação permanente e a coragem de revisar
impiedosamente os seus trabalhos passados mergulhando nos próximos.
Suas realizações mais seguras, hoje marcos do teatro brasileiro moderno,
continham sempre a destruição das experiências anteriores. E ao mesmo
tempo a força avassaladora de propostas novas. “Pequenos Burgueses”
incorporava e negava a imaturidade do trabalho antes realizado dentro
das propostas stanislavskianas. “Andorra” negava–o e caminhava em
direção ao teatro épico brechtiano. “Os Inimigos” negava o realismo
psicológico da primeira versão de “Pequenos Burgueses” e edificava a
320
Curiosamente o grupo Oficina é mencionado apenas em duas críticas e, mesmo assim, uma tratando de
cinema (que utilizamos na citação a seguir) e outra sobre o espetáculo “Pano de Bocade Fauzi Arap:
“[...] Fauzi Arap afirma que escreveu Pano de Boca depois de assistir Um Grito Parado no Ar. Diante da
peça de Guarnieri, sentiu-se excluído. E caiu agora no erro inverso: analisando as contradições do teatro
brasileiro nos últimos anos, há um personagem omitido, o próprio Guarnieri. Ambos os textos, apesar de
pontos de comum acordo, e de uma ampla generosidade que é comum aos dois, assumem posições
fundamentalmente distintas. Em Pano de Boca, duas colocações básicas me parecem equivocadas: para
Fauzi o inimigo esdentro de cada um. E, como conseqüência desta premissa a união que existiu antes
dos últimos dez anos, em grupos como o Arena e o Oficina, foi falsa. Este perigoso deslocamento
geográfico do inimigo é, no fundo, a origem de seu texto”. PEIXOTO, Fernando. Entre o pano e o grito.
Jornal Movimento, 25/08/1975, p. 20.
Capítu
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pesquisa de um realismo crítico e seletivo mais conseqüente
incorporando a lição brechtiana. “Galileu Galilei” trazia o germe da
recusa do próprio racionalismo científico brechtiano, experiência
radicalizada na montagem de “Na Selva das Cidades”, onde Grotowski
era digerido e ao mesmo tempo questionado. O mesmo na experiência
discutível, mas eloqüente, de “Gracias Señor”, onde o próprio teatro,
enquanto linguagem, era negado. A total entrega destes espetáculos,
principalmente dos últimos, onde o cego desespero da procura é
alimentado pela falta de perspectivas de trabalho e pelas dificuldades de
explicitação de uma postura crítica conseqüente, gerou seus grandes
momentos e erros.
321
O processo de trabalho do Oficina, a pesquisa, a capacidade de crítica e de
renovação é um ponto fundamental para compreender a própria realidade teatral brasileira
nos anos 60 e 70. Na apresentação de Peixoto, ele aponta três grandes correntes teatrais
que fizeram parte da trajetória da companhia: Stanislawski, Brecht e Grotowski, cada um
com suas características fundamentais, contraditórias e, no caso, concorrentes entre si.
Mas, observando com atenção a descrição da história sucinta do grupo, ele deixa explícita
sua opção entre as três: o do alemão Bertolt Brecht. A imaturidade da primeira fase do
grupo com a utilização do “realismo psicológico” é logo superada pelo “teatro épico”
brechtiano, responsável por um “realismo crítico e conseqüente” e pelo “racionalismo
científico”. Porém, em “Galileu Galilei”, ocorreu o início de uma nova fase com a
assimilação das premissas grotowskianas. Neste ponto, o crítico denomina de “discutível”
a negação que o grupo promove em relação à linguagem teatral
322
e, mesmo com toda a
visibilidade e polêmica geradas, foi responsável pelos grandes erros que acabaram por
obrigar o diretor José Celso Martinez a uma reformulação de tudo que havia feito até
321
PEIXOTO, Fernando. Um alfabeto novo. Jornal Movimento, 08/03/1976, p. 17.
322
“A proposta de José Celso Martinez Correa por uma transformação intensa na história do espetáculo, no
Brasil, é uma recusa radical das ideologias presentes no interior de todo um teatro progressista ainda
comprometido com as ilusões do modelo político de antes do golpe militar de 64. Denuncia a coloração
populista desse teatro. Por outro lado, não se satisfaz com a perspectiva de uma prática teatral que se volte
apenas para o agit-prop. Quer ir além disso, polemizando o papel do artista criador, a autonomia do
código nico frente às ideologias de dominação, discutindo o sentido de um teatro revolucionário e suas
relações com o público. Nos passos de um ideário emergente por volta de 1968, toda uma coloração
ainda que voluntarista e carente de um programa cultural melhor explicitado em suas táticas. Seu
raciocínio vai assim um tanto a reboque de certa intuição política e artística para a revolta. Isto de modo
algum desmerece o processo das iniciativas e as contribuições de Jo Celso à história do teatro, no
Brasil. Um teatro localizado no coração da classe média radical e de quem é cúmplice seu público
privilegiado de expressar desse modo a partida de seu nível de consciência mais avançado, nas
suas contrariedades com determinadas condições de produção e de existência do fenômeno cultural. E se
o marco da grande virada de José Celso tem essa coloração, por outro lado, expressa também toda uma
angústia por rupturas com tais limitações, na direção de uma mudança de seu caráter de classe.”
ARRABAL, José. Anos 70: momentos decisivos da arrancada. ARRABAL, José; LIMA, Mariângela
Alves de; PACHECO, Tânia. Anos 70 – Teatro. Rio de Janeiro: Europa Emp. Graf. e Edit., 1979-1980, p.
20.
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então. De certa forma o acirramento das divergências fez com que Peixoto deixasse o
grupo ainda no início da década de 1970.
323
Peixoto não hesita em explicitar a sua opção e não deixa de fazer a interpretação
das situações abordadas. No meio de toda a discussão, ele arma a sua crítica de elementos
brechtianos e, a partir deles, propõe uma reflexão plausível para a superação de um teatro
abstrato, irracional e descompromissado com os rumos tomados pela sociedade brasileira,
nem que seja criticando um movimento do qual ele mesmo fez parte, como o teatro
Oficina. Definitivamente, para ele nada é intocável e sagrado.
3.6 FERNANDO PEIXOTO E A FUNÇÃO DO ENCENADOR NO TEATRO
BRASILEIRO NO FINAL DOS ANOS 1970
No ano de 1977, Peixoto é o responsável pela encenação de Mortos Sem
Sepultura, obra de uma das figuras intelectuais mais influentes do século XX, o filósofo
francês Jean-Paul Sartre. A peça, que narra a trajetória e os conflitos vividos por um grupo
de prisioneiros franceses durante a ocupação alemã na II Guerra Mundial, tem uma série de
temas e questões que foram essenciais para que ele decidisse pelo texto, como a questão da
consciência política, da responsabilidade social e do sofrimento da tortura, assuntos que
tinham ressonância com o regime militar brasileiro.
Em setembro deste mesmo ano, Peixoto elabora uma longa crítica onde discute e,
principalmente, critica o “existencialismo sartreano”. Ao mesmo tempo analisa o texto
Mortos Sem Sepultura em todas as suas potencialidades e, de forma especial, salienta o seu
trabalho de tradução e de encenação. Logo no primeiro parágrafo de sua reflexão, ele
elogia a “auto-crítica” de Sartre ao chamar de “idiota” o termo “existencialismo”: “Uma
auto-crítica lúcida, porque reconhece, implicitamente, a falência de uma atitude que ao
combater, não supera os valores do que combate”.
324
Peixoto, na continuidade do texto,
323
“[...] Eu não conseguia mais dialogar com o Celso. que eu não queria brigar com ele, de jeito
nenhum. Foi sempre e continua sendo um grande amigo. Ficou claro, quando parei no meio da rua, que,
se eu continuasse no Oficina, ia dar briga, porque eu ia discordar de tudo. Ou, então, em vez de discordar,
teria que aceitar coisas com as quais não concordava. E também ia dar briga. O melhor era se separar.
Ítala tinha saído um pouco antes, durante o filme, logo depois ia sair o Renato, a Etti já tinha saído,
enfim... Uma separação de casal... Isso foi em 1970”. GARCIA, Silvana. (Org.). Odisséia do Teatro
Brasileiro. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002, p. 83.
324
PEIXOTO, Fernando. Os mortos sem sepultura. Jornal Movimento, 25/09/1977, p. 17.
Capítu
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permanece apontando todas as contradições deste pensamento filosófico tendo como base
o “marxismo dialético”. Questiona a possibilidade e a questão da “liberdade” frente a uma
“sociedade de classes” e pelo fato do “existencialismo” estar sempre preso a uma “moral”
abstrata, privilegiando sempre o “individualismo”, ao contrário do “coletivo social”.
Diferenças intelectuais a parte, é no trabalho de tradução e de encenação que
Peixoto demonstra como superou tais discordâncias, contraponto o “existencialismo” do
texto de Sartre com o “marxismo dialético” e com as concepções brechtianas que tanto
elogiava:
Este espetáculo parte do desafio: a partir do texto de Sartre, com uma
cenografia que inventa uma perspectiva inesperada, escrever uma
encenação certamente pessoal que nem sempre aceita integralmente o
texto e suas complexas colocações. Isto não implica em negar Sartre. Ao
contrário, significa aceitá–lo como instigação e debate. Significa tomá–lo
como ponto de partida para uma reflexão que não se limita aos postulados
do existencialismo. Pensar com ele, a partir dele.
325
Efetivamente, é nítida a distância que o diretor/crítico se posiciona em relação ao
texto de Mortos Sem Sepultura. As observações que faz em relação à sua própria
encenação partem de uma perspectiva pessoal, que não aceita o texto em sua totalidade e
de maneira irrestrita. Mas, utiliza-o como ponto de partida para a elaboração de uma crítica
que se expande em relação a outras “perspectivas” que a peça não alcançaria em seu
formato original. O processo anterior que Peixoto faz em traduzir o texto demonstra o
processo de “filtragem” que ele faz para alcançar os seus objetivos:
Traduzido literalmente, o texto foi depois modificado: não apenas para
ser engravidado de uma estrutura um pouco mais narrativa e mais teatral,
mas igualmente para ser parcialmente contestado em si mesmo, na
medida em que for sendo exposto.
326
Também, ao descrever as opções que teve e que utilizou ao encenar o texto,
Peixoto continua a demonstrar as suas diferenças e as suas atitudes para fazer um
espetáculo que estivesse de acordo com as suas premissas e com a realidade brasileira.
327
De toda maneira, sua atitude é cuidadosa ao abordar estas questões, mas não
condescendente ou ingênua, como podemos perceber no trecho abaixo:
325
PEIXOTO, Fernando. Os mortos sem sepultura. Jornal Movimento, 25/09/1977, p. 17.
326
Ibid.
327
“[...] E eu consegui, com Mortos sem sepultura, discutir a tortura, a violência dentro das prisões: a peça se
passa nas prisões durante o nazismo. Adaptei o texto, mexi muito, cortei muito, em função de uma coisa
clara: havia necessidade de discutir a tortura no Brasil. A violência dentro das celas e o que significava
tudo isso”. PEIXOTO, Fernando (depoimento) apud GARCIA, Silvana. (Org.). Odisséia do Teatro
Brasileiro. São Paulo: Editora SENAC São Paulo, 2002, p. 88.
Capítu
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Na peça, por nós traduzida em escrita cênica, interessou o confronto com
Sartre e com a realidade de hoje, Para melhor discutir a última, foi
necessário melhor discutir o primeiro. Neste nível, o espetáculo parte da
aceitação de que um homem está morto desde o instante em que deixa de
ser útil ao tempo em que vive, às necessárias transformações da
sociedade da qual faz parte. E que, sem trair, é preciso viver sem
eternizar as vitórias. Para um instante de incerta e necessária redefinição
de valores, como o nosso, Sartre é um aliado não dispensável: porque
muitas, inúmeras vezes, coloca a verdade, mesmo uma verdade que temos
a ingênua tentação de recusar também nós em defensiva, porque nos
coloca na parede, como outras inúmeras vezes esconde a verdade
objetiva, privilegiando um mundo carregado de condenável subjetivismo
fechado, as chamadas “crises existenciais”, mas justamente nestes
instantes nos obriga a revisar nossos conceitos e forjar respostas
conseqüentes. Mortos Sem Sepultura, em cena, é um convite ao debate
livre. Uma tarefa que o teatro brasileiro não pode deixar de assumir.
328
Suas opiniões continuam preocupadas com o papel e a responsabilidade do
homem no processo de transformação da sociedade em que vive. Diplomaticamente, ele
reconhece o momento peculiar da sua geração na “redefinição de valores”, aponta para o
principal mérito da obra de Sartre que é buscar a “verdade” e, mesmo em seu
“subjetivismo fechado”, obriga os seus opositores a buscarem respostas num nível elevado
de discussão. Sem dúvidas, pensando no resultado final de todo estes embates, quem
ganharia seria o teatro brasileiro, mais consciente e mais coerente em suas propostas e
formulações. Mas, justamente ao demonstrar a la Brecht todo o processo de trabalho para
colocar em cena Mortos sem Sepultura, ele acaba demonstrando uma outra faceta sua: a
que preocupava em delimitar e até mesmo alterar, de acordo com os seus objetivos, os
aspectos dos textos dramatúrgicos que dificultassem uma apreensão real das contradições
sociais e políticas do país.
329
328
PEIXOTO, Fernando. Os mortos sem sepultura. Jornal Movimento, 25/09/1977, p. 17.
329
Fernando Peixoto dirigiu o espetáculo Dom Juan de Moliére em 1970 tendo Gianfrancesco Guarnieri no
papel título. Além disso, ambos traduziram o texto para o português, sendo o trabalho que fizeram
bastante próximo do que Peixoto faria seis anos depois com Mortos sem sepultura de Sartre: “[...] É
evidente que nossa compreensão estava historicamente situada. Hoje a tradução seria outra. Em 1970
vivíamos um determinado tipo de problemas e nossas opções se faziam dentro de um quadro preciso.
Ainda que, naturalmente, discutível. Nosso método de trabalho foi o mais simples possível: Molière
falava, nós respondíamos. De igual para igual, Nos concentrávamos nas idéias, mais que nas palavras.
Estas seriam nossas. Sem complexos de superioridade ou inferioridade. Esta tradução o foi um fim em
si mesma: foi realizada para servir de ponto de partida para uma posterior adaptação, que seria encenada.
Foi uma etapa de trabalho. Com tudo que isto implica de provisório e circunstancial. Nesta tradução, sim,
seríamos radicais, alterando, cortando, reescrevendo, reduzindo. Assim, a tradução assume todas as
liberdades possíveis”. Id. Notas sobre ‘Dom Juan’ e crise no Oficina. In: ______. Teatro em Pedaços. 2.
ed. São Paulo: Hucitec, 1985, p. 129.
Capítu
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Capítulo III
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Tendo em vista que cumpria um papel social extremamente útil e relevante,
330
o
processo de trabalho transcrito acima nos remete a duas reflexões de Bernard Dort que
versam especificamente sobre o trabalho do encenador. Estas são relevantes por
apreendermos alguns aspectos cênicos que Peixoto privilegiava em suas funções, tanto a de
crítico como a de diretor. Em “Condição sociológica da encenação teatral”, Dort faz
considerações em torno do poder e do limite desta última função no teatro do século XX:
A encenação moderna não está, como se afirma com freqüência,
exclusivamente partilhada entre a fidelidade ao texto e o desejo de
autonomia. Está mais profundamente dividida entre a função de
comunicação histórica e social e a tentação de absolutismo do encenador.
Aspira a produzir um espetáculo aberto, cuja compreensão se baseie na
instituição de uma certa distância entre todos os seus elementos e ao
mesmo tempo sonha com um espetáculo fechado que, sob a autoridade do
encenador provoque a comunhão entre platéia e palco.
Esta contradição é essencial: não poderia ser resolvida em proveito de
uma ou outra de suas componentes fundamentais. Sem dúvida é ela que
faz da encenação moderna uma arte, mais que um conjunto de técnicas.
Pelo menos é ela que nos autoriza a estudar o teatro contemporâneo não
do ponto de vista dos textos dramáticos, ou do ponto de vista da evolução
dos processos cênicos, mas enquanto arte da representação teatral.
331
Quando revemos as descrições de Peixoto sobre as modificações que fez, desde o
processo de tradução, até à redação final do texto que foi levado em cena na peça de Sartre,
compreendemos que ele não estava preocupado com a exatidão em si e, tampouco, em
subverter toda a ordem do texto, exercendo o papel de um encenador iconoclasta, egoísta e
narcisista. Como bem salienta o texto de Dort, a grande angústia do diretor atual era em
relação à efetiva “comunicação histórica e social” de seu trabalho, buscando a
demonstração distanciada, mas ao mesmo tempo viva, atualizada e necessária de um
determinado conflito social que se fazia presente na sociedade. As críticas de Fernando
Peixoto demonstram essa postura contestatória como encenador. Ao voltar o seu olhar para
os trabalhos montados no Brasil na segunda metade da década de 1970, ele busca
330
“O papel social do encenador na sociedade brasileira, sobretudo entre as décadas de 1960 e 70, foi
exatamente político e de grande responsabilidade social. As encenações estiveram comprometidas com a
reação ao regime ditatorial (teatro de resistência). Fazendo o uso de metáforas, agindo diretamente, ou
através de um discurso subliminar, os encenadores não deixaram de destacar aspectos de brasilidade
empregando elementos de uma contracultura. Pode-se destacar o emblemático trabalho de encenadores
cujos processos criativos são distintos entre si, mas que mesmo assim não deixam de lado a afirmação de
um caráter nacionalista, reação natural após um período marcado pelo modelo eurocêntrico”. TORRES,
Walter Lima. Encenador. In: GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela Alves de.
(Orgs.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo / Perspectiva: Sesc São
Paulo, 2006, p. 126.
331
DORT, Bernard. Condição sociológica da atividade teatral. In: ______. O teatro e sua realidade. São
Paulo: Perspectiva, 1977, p. 99.
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compreender e defender esta comunicação sem subterfúgios ou qualquer tipo de alienação.
Por isso, a arte da representação estava em balancear os diferentes aspectos formadores de
um espetáculo, tendo superado os limites do texto.
Mas, será que após esta “filtragem” que Peixoto faz em relação à Mortos Sem
Sepultura ele realiza efetivamente um debate livre e sem restrições? Quais as
conseqüências de sua “tradução” no sentido de fechar o texto em determinados aspectos
que ele julgava necessário? Estas questões surgem pelo fato dele ser alguém extremamente
consciente de suas referências e que em suas críticas em relação ao teatro, percebemos até
então, não fazia muitas concessões em relação àquilo que ia contrário aos seus valores.
Faria o mesmo no caso da peça?
Prestemos atenção em outro texto de Dort, “A encenação, uma nova arte?”. Neste
uma afirmação que reitera os pontos abordados acima, quando o crítico francês aponta
como papel do encenador moderno “o próprio espetáculo, seu sentido e sua forma, é
questionado cada vez: antes de coordenar, o encenador escolhe, decide”.
332
Mais uma vez a
questão da comunicação é reiterada e mais um atributo é acrescentado neste processo: a
ausência da vaidade individual e a importância do trabalho coletivo:
No momento contentamo-nos em assinalar que se o encenador é sem
sombra de dúvida, um artista, trata-se de um artista cuja missão é antes
comunicar do que criar. Não apenas o encenador trabalha sobre dados já
existentes e em larga medida invariáveis, como o texto e os atores, mas
também se dirige a um público preciso e limitado: o público do seu
teatro. Isso sem levar em conta o fato de que, pelas próprias condições de
seu exercício, seu trabalho é mais coletivo do que estritamente
individual.
333
Novamente nos questionamos sobre alguns pontos ao lermos o trecho acima. Na
parte onde Dort reconhece que a comunicação é mais importante do que a criação cênica
devido aos dados invariáveis que o diretor é obrigado a seguir em relação ao texto, isto não
entra em contradição com aquilo que Peixoto faz, ao modificar o texto de Sartre para levá-
lo de maneira correta” para o palco? Se levarmos em conta a questão da comunicação,
talvez não seja tão surpreendente assim estas modificações. Devemos acrescentar que para
Dort as funções do encenador e a do crítico teatral são muito semelhantes, “o encenador
não agiria da mesma maneira que o crítico, que também cria sua obra a partir de outras
332
DORT, Bernard. A encenação, uma nova arte? In: ______. O teatro e sua realidade. São Paulo:
Perspectiva, 1977, p. 66.
333
Ibid., p. 68.
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obras e numa troca constante e imediata com seu público?
334
Fica explícita nesta
comparação que não uma escolha definitiva da mesma forma como não existe um
espetáculo imune a sugestões e a reelaborações, principalmente pelo caráter coletivo da
produção do mesmo. Neste caso, as modificações efetuadas em Mortos Sem Sepultura,
visando trazer à tona os seus elementos mais pulsantes e ligados à realidade nacional não é
uma atitude tão restrita e impositiva como pode parecer num primeiro momento. Nesta
perspectiva era algo útil e demonstrava a liberdade inerente ao trabalho deste diretor
autônomo, que, ao mesmo tempo, era crítico.
Se algo que é inquestionável para Fernando Peixoto é Bertolt Brecht. Em
nenhum momento, tanto no Opinião como no Movimento, ele põe em dúvida a importância
da obra e do pensamento do dramaturgo e diretor alemão. Seja ao vislumbrar uma
“dimensão brechtiana” num espetáculo de mágica chinesa
335
, seja ao discutir e definir o
papel do rádio
336
e da televisão
337
na sociedade ocidental. Para Peixoto, Brecht sempre está
lá dando respostas, oferecendo caminhos e propondo críticas.
334
DORT, Bernard. A encenação, uma nova arte? In: ______. O teatro e sua realidade. São Paulo:
Perspectiva, 1977, p. 68.
335
Esta comparação é feita numa resenha publicada no jornal Opinião de um livro do jornalista Cládio
Bojungo que fez uma viagem à China: “[...] Descobre uma dimensão brechtiana num espetáculo de
mágica: depois de realizar os seus truques, tirando gansos de um vaso ou fazendo crescer flores artificiais
com água saída de um lenço, o prestidigitador “revela o truque”. Não mais lugar para mistérios ou
metafísica: mesmo a acrobacia, o malabarismo ou a gica contribuem para despovoar o mundo de seus
pequenos demônios e em tudo os chineses encontram uma maneira de efetivar uma articulação didático–
política”. PEIXOTO, Fernando. Pela porta aberta da China. Jornal Opinião, 20/12/1974, p. 22.
336
“[...] o dramaturgo e o poeta alemão desmascara o significado político da utilização do rádio. Propõe sua
transformação de aparelho de distribuição em aparelho de comunicação: ou seja, deve não apenas emitir,
mas também receber. (Não apenas fazer o ouvinte escutar, mas também faze-lo falar). Assim ele defende
a utilização do rádio como instrumento para promover entrevistas com o povo e com os dirigentes
políticos, transmissão de sessões do Parlamento e transmissão dos grandes processos judiciários. Para que
os tribunais fossem obrigados a tomarem decisões diante do conjunto da população. Para que povo e
políticos finalmente dialogassem. E para que o trabalho destes últimos no exercício dos mandatos
conferidos pelo voto popular fossem vigiados atentamente”. Id. Do monólogo ao diálogo. Jornal
Movimento, 22/03/1976, p. 18.
337
“É oportuno mais que nunca meditar nas palavras que Brecht escreveu, nos anos 20, como advertência
aos intelectuais que continuavam ingênuos diante da engrenagem capitalista que comprava suas forças de
trabalho e criação: “convencidos de possuir o que realmente os possui, defendem uma engrenagem que
não mais controlam; um aparelho que não existe meio, como acreditam, a serviço dos criadores, mas que,
pelo contrário, voltou-se contra eles e portanto contra a sua própria criação (na medida em que isto
apresenta tendências específicas e novas, não conformes ou mesmo opostas à engrenagem). O trabalho
dos criadores não é mais que um trabalho de fornecedores e assiste-se ao nascimento de uma noção de
valor cujo fundamento é a capacidade da exploração comercial”. E a origem do vício é igualmente
apontada com lucidez pelo dramaturgo alemão: as engrenagens não pertencem à comunidade, os meios de
produção não são propriedade dos que produzem”. Id. A televisão segundo Brecht. Jornal Movimento,
20/10/1975, p. 22.
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Este seu fascínio e admiração por Bertolt Brecht é reiterado num texto em 1976
que lembra os 20 anos de sua morte. Se sempre percebemos em suas críticas, algumas
ressalvas e alguns “poréns”, sempre buscando apontar as contradições e os possíveis erros
de atores, diretores, dramaturgos e pensadores, o que temos nesta é uma longa descrição
das qualidades e dos desafios que Brecht enfrentou e, de certa forma, conseguiu superá-los
de maneira sempre inteligente, lúcida e racional. A história deste pensador e de seu
pensamento contada por Peixoto é um elogio sincero, positivo e declaradamente a favor de
suas idéias:
[...] Mas Brecht continua vivo. É um dos escritores fundamentais deste
século por ter revolucionado teoricamente e praticamente a dramaturgia e
o espetáculo teatral, alterando de forma irreversível a função e o sentido
social do teatro. Utilizando a arte, concebida como resultado de um
processo de criação coletiva, como uma arma de conscientização,
destinada sobretudo a ser divertimento, mas de uma qualidade específica:
quanto mais poético e artístico, mais momento de reflexão, verdade,
lucidez, espanto, perplexidade, crítica.
Por sua contribuição essencial ao pensamento estético materialista e
dialético (e também à sua ética). Sua concepção de um realismo crítico
polêmico, corajoso, novo, isento de preconceitos e fórmulas velhas,
isento da mistificação que hipnotiza e anestesia a consciência. Nunca
propondo soluções, mas sobretudo fornecendo os dados para que o
próprio público, agente da transformação, seja racionalmente conduzido a
compreender a verdade, que para Brecht, como para Hegel, é sempre
concreta.
Por ter sido um artista sensível a seu tempo, respondendo a cada
colocação do movimento histórico deste século, atravessando o exílio
sem nunca perder a esperança na vitória, as trevas e a repressão do
nazismo e do fascismo, realizando uma obra que permanece vigente em
nossos dias e que vale não apenas por si mesma, mas, também, pelo que
ensina e estimula como método de trabalho ou reflexão. Documento
vigoroso de um intelectual que exprimiu uma lúcida visão do mundo,
uma análise crítica dos instantes em que viveu e trabalhou, perseguido e
aplaudido, reproduzindo os mais cruciais paradoxos da história da
sociedade contemporânea. Obra extraordinária, enquanto poesia e
dramaturgia e enquanto reflexão teórica, que define um engajamento livre
e consciente, expressão de um intelectual que, num mundo em que
assumir a bondade pode ser perpetuar o mal, acreditou, até suas últimas
conseqüências, na necessidade de transformar com urgência.
338
Neste trecho vislumbramos claramente o conceito “brechtiano” de arte: a crítica
ao “dualismo”, a criação de uma estética “materialista e dialética”, a importância do
público, a lucidez de sua “reflexão teórica” e a necessidade de transformação prática por
338
PEIXOTO, Fernando. “Ele formulou projetos. Nós os aceitamos” Os vinte anos da morte de Brecht.
Jornal Movimento, 23/08/76, p. 17.
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meio do ato teatral.
339
Não como negar que a utilização de Brecht naquele momento da
história do país representava, sem dúvidas, uma saída possível para os impasses que o
teatro sofria diante de tanta hesitação e falta de perspectivas.
340
De certa forma, a
“necessidade de transformar com urgência” era também uma “necessidade” do país que
vivia sob um regime militar desde 1964. A “arte” não poderia se isentar desta função, o
teatro não poderia ficar restrito à gritos, contorções, misticismos e abstrações
individualistas. Muito menos, se acomodar no “esteticismo burguês” ou “tradicional”.
341
Deveria ser, antes de tudo, vinculado às “classes populares” e emergentes”, contribuindo
para o processo de mudança da ordem social, política e econômica.
342
Este ponto de vista em relação ao teatro ligado às “classes populares” pode ser
ainda melhor compreendido quando observamos o tratamento que Fernando Peixoto
339
De certa forma o “distanciamento” brechtiano indica este status atuante que o público alcançaria no
teatro. Assim Fernando Peixoto descreve esta técnica, já na década de 1980: “Brecht indica um novo
caminho: a técnica do distanciamento. Retirar de um personagem ou de um acontecimento o que possui
de conhecido, de evidente, de habitual, fazendo nascer em seu lugar o espanto, a surpresa, a curiosidade e
a dúvida. O distanciamento implica assim a “historicização” dos personagens e dos acontecimento, que
devem ser apresentados como históricos, portanto transitórios. Os homens que estão em cena não são
imutáveis, vítimas de seus destinos. O espectador pode reconhecer e ver, por trás de cada personagem ou
de cada situação, uma verdade e um processo histórico concreto: pode adotar uma atitude crítica
permanente, assim como o homem de nosso século adotou esta atitude diante da natureza. O teatro passa
a acolher o espectador enquanto homem que transforma o mundo. E com ele discute esta transformação
permanente. Brecht insiste: o problema é saber como o teatro pode ao mesmo tempo ser recreativo e
didático, como transformá-lo de feira de ilusões e de comércio de drogas em local de experiências novas,
como ajudar o homem a transformar o mundo. A solução brechtiana, ele mesmo afirma, é apenas um
caminho, que ele e tantos outros escolheram. E este caminho implica uma permanente atitude crítica para
com a realidade e para com o próprio caminho. Um único princípio permanente intalterado: o de sempre
subordinar todos os princípios à tarefa social que é necessário cumprir a partir de cada realização cênica”.
Id. O teatro de Brecht aqui hoje. In: BADER, Wolfgang. Brecht no Brasil Experiências e Influências.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 31-32.
340
No mesmo texto “O teatro de Brecht aqui hoje” Peixoto afirma: “[...] O projeto de Brecht foi, nos anos de
resistência, uma esperança de postura crítica. Hoje precisamos dele como instrumento de estímulo ao
trabalho transformador. Precisamos de Brecht com profundidade ainda maior, pois não temos mais o
direito de nos contentarmos com a superfície das questões a serem enfrentadas”. Ibid., p. 25-26.
341
Michalski não deixa de apontar alguns equívocos de certos encenadores ao montarem Brecht: “Os
momentos equivocados não podem ser propriamente atribuídos ao pobre Brecht, e sim a uma
interpretação ingenuamente rígida, ao pé da letra, e, portanto, em última análise, antibrechtiana, de alguns
aspectos das suas teorias de encenação. O distanciamento, todos nós o sabemos hoje, não pode ser, sob
pena de tornar-se insuportável, uma proposta de representação dogmática e estanque, desvinculada do
contexto mais amplo de uma encenação, e do contexto mais amplo ainda da tradição cultural de um país,
que repercute no temperamento interpretativo dos seus atores”. Yan Michalski (depoimento) apud
BADER, Wolfgang. Brecht no Brasil Experiências e Influências. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p.
226.
342
O próprio Dort faz uma descrição que ilustra bem o objetivo do teatro brechtiano neste sentido de
transformar aquele que o assiste: “[...] A representação brechtiana não tem conclusão: esta conclusão
deverá ser feita, mas não para intervir no palco nem na platéia, mas, sim, na vida real. Deverá ser tirada
pelo espectador, considerado como membro ativo da sociedade (revolucionador ou produtor)”. DORT,
Bernard. Elogio do Método Brechtiano. In: ______. O teatro e sua realidade. São Paulo: Perspectiva,
1977, p. 327.
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dispensa às formulações feitas pelo encenador e teórico brasileiro Augusto Boal. Desde o
Opinião, numa crítica elogiosa ao livro “Boal y los oprimidos”,
343
ele menciona a utilidade
e a contemporaneidade das idéias prescritas no livro. No lançamento deste livro no Brasil,
em 1975 (meses após o lançamento no mercado argentino), uma reafirmação desta
proposta como necessária ao teatro brasileiro. O trecho abaixo é da crítica “Teatro para
valer”, escrita por Peixoto para o Movimento no dia 17 de novembro de 1975. É quase uma
cópia idêntica da crítica por ele publicada no jornal Opinião em abril daquele ano, citada
no parágrafo anterior, especialmente nas linhas abaixo:
O teatro como ensaio para a libertação, arma de descolonização e
conscientização, tentativa de humanizar o homem, restituindo-lhe a
capacidade de ação em toda plenitude. Ou seja, o espectador não como
objeto passivo e inerte, diante de um palco que traz a mistificação ou que
pretende encarnar a verdade absoluta, a ser ministrada ao público como
num ritual religioso mágico. Em vez disso, o espectador transformado em
ator, no sentido mais amplo da palavra. Em igualdade de condições com
os intérpretes, que, por sua vez, devem ser transformados também em
espectadores. Sobretudo porque o tipo de reflexão que pode ser
estabelecido entre palco e platéia envolve homens situados num mesmo
contexto social, que vivem os mesmos problemas, buscam as mesmas
perspectivas, são vítimas das mesmas barreiras. Para Augusto Boal o
teatro institucionalizado propõe imagens acabadas e definitivas. Diante
delas o espectador está condenado a aceitar passivamente, sem condição
de modificá–las e quase sempre também sem condição de contestá–las.
344
O enfoque dado por Peixoto na leitura da obra continua apontando os mesmos
elementos da crítica do Opinião. Até mesmo a ligação entre Boal e o pedagogo Paulo
Freire é novamente mencionada no texto. Mas, o ato de chamar a atenção de um mesmo
livro nos dois jornais (fato não repetido em momento algum na análise de seus textos em
Opinião e Movimento) demonstra o valor que ele concedia ao texto e às formulações
presentes nele. Da mesma forma que Brecht e suas idéias são constantemente utilizadas
como base para analisar as mais diferentes manifestações culturais e artísticas, as
concepções teatrais de Boal são aqui descritas com o intuito de colocá-las em debate, em
discussão e em prática, como provocação em relação a tudo que estava sendo feito até
então.
Sem dúvidas, o fato de ambos serem constantemente citados por Peixoto, sempre
de maneira positiva, demonstra certas similitudes que permitem um diálogo mais ou menos
no mesmo nível de preocupações e de objetivos, principalmente no que diz respeito a
343
PEIXOTO, Fernando. Boal y los oprimidos. Jornal Opinião, 11/04/1975, p. 23.
344
Id. Teatro para valer. Jornal Movimento, 17/11/1975, p. 17.
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pretensão que ambos tinham em elaborar um teatro em prol da modificação social. Mas
estas questões em comum não demonstravam um encaixe perfeito entre os dois. Neste
caso, uma crítica de Magaldi escrita quase dez anos antes, em 1967, sobre a peça dirigida
por Boal e encenada pelo Arena, Arena Conta Tiradentes, enfrenta as diferenças e as zonas
de conflito entre estas concepções teatrais. Principalmente no que diz respeito à utilização,
por parte do diretor, da técnica de “afastamento” ou de “distanciamento brechtiano” em
textos que não foram elaborados levando em consideração este aspecto cênico:
[...] não nada que pareça mais velho, no palco, do que a aplicação do
“afastamento” brechtiano a uma peça qualquer, imaginada com outro
espírito, quando o desempenho tradicional poderia valorizá-la
sobremaneira.
345
Este conflito apresentado por Magaldi é simbólico por demonstrar o método
brechtiano passível de crítica, não apenas sendo a solução para todos os dilemas do teatro
moderno e, especialmente, do teatro brasileiro. uma separação nítida entre a absorção
mecânica e a avaliação crítica e até mesmo negativa de tais preceitos, principalmente
quando a racionalização excessiva impede o que ele chama de “indisciplina contagiante de
comicidade”, no caso referindo-se a outro espetáculo, Arena Conta Zumbi. O risco desta
assimilação de Brecht acabou gerando o que o crítico denominou negativamente de “jeito
de sempre do Arena”.
Na mesma crítica, Magaldi demonstra que o próprio Boal dava sinais de estar
atento a tal situação e que buscava alterar algumas técnicas, especialmente ao analisar o
reconhecido “Sistema Coringa”
346
, fortemente influenciado pelo “distanciamento
brechtiano”
347
:
345
MAGALDI, Sábato. Arena Conta Tiradentes. In: ______. Moderna Dramaturgia Brasileira. São Paulo:
Perspectiva, 1998, p. 129.
346
“[...] A essa autocrítica de uma forma de atuação vivencial e emotiva corresponde a formulação do
Sistema Coringa, uma técnica de distanciamento apoiada na teoria brechtiana. Variantes do Teatro do
Oprimido vão sendo formuladas por Boal de acordo com a constituição dos grupos que orienta e são, até
hoje, utilizadas por grupos e comunidades que recorrem ao teatro como meio de instrução e ferramenta de
atuação social. Em todos esses casos, o alvo do ator não é a interpretação da personagem de acordo com o
programa definido pelo dramaturgo e tampouco, a transubstanciação da personalidade em arte. É antes a
persona social que comanda as soluções criativas, e esta se define, por sua vez, na relação com a situação
de classe do público”. LIMA, Mariângela Alves de. Ator. In: GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto;
LIMA, Mariângela Alves de. (Orgs.). Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São
Paulo: Perspectiva / Sesc São Paulo, 2006, p. 44.
347
O próprio Boal descreve o grau de influência que Brecht exerceu na elaboração do “Sistema Coringa”:
“Então foi que começamos elaborando o Sistema Coringa, que tinha pelo menos dois mecanismos que
vinham de um influência brechtiana. Um mecanismo que era da não apropriação do personagem por um
só ator. Todos os atores faziam todos os personagens. Em alguns casos menos o protagonista. Isto é, cada
cena era representada por um ator diferente. Então isto permitia a nosso ver, naquela época, que o ator se
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Onde Boal não se satisfaz com a lição de Brecht é no exclusivismo deste,
que encerraria o perigo, na quebra permanente da ilusão, de afastar o
espectador, no sentido comum do verbo. Ainda nesse particular o
desejo de aproveitamento dos dados positivos do método stanislavskiano,
não para o preparo do ator, que passaria depois a distanciar-se da
personagem, mas para se exercerem simultaneamente as duas técnicas. A
função Curinga, da total abstração, com significado crítico, se contrapõe à
função protagônica, da personagem que procura reconquistar a empatia
do público, no caso Tiradentes. A síntese de estilos se completa com a
síntese dos dois métodos fundamentais do teatro moderno Stanislavski
e Brecht unidos com o propósito de se vivenciar uma experiência e ao
mesmo tempo comentá-la para o espectador.
348
Quando observamos as reflexões acima, verificamos a defesa por parte de
Magaldi em relação à junção do método do encenador russo Constantin Stanislavski com o
do alemão Bertolt Brecht levando em consideração a avaliação que faz da complexidade
do teatro naquela conjuntura em que, fechar-se numa proposta exclusiva significaria a
perda de elementos que estavam sendo incorporados na arte teatral. Esta comunhão
permitiria ao ator, no melhor dos dois mundos, vivenciar o personagem em toda sua
profundidade e complexidade, atraindo a empatia por parte do público, e oferecer a este
uma racionalidade e capacidade de reflexão crítica e distanciada.
Fernando Peixoto, ao demonstrar uma assimilação integral e profunda das
propostas de Brecht, destaca uma similaridade muito grande com o pensamento de Boal.
Peixoto percebe e compactua com os profundos significados políticos e estéticos de uma
lógica embasada em objetivos próximos ao que formulava em suas críticas. Mas, além
disso, demonstra a amplitude e o caráter “revolucionário” e, principalmente “popular” do
pensamento e da prática teatral de Augusto Boal, sendo isto algo extremamente valioso
quando pensamos nas preocupações do crítico transcritas nas páginas dos jornais.
Sem nos determos demasiadamente nas concepções de Boal sobre o teatro, ficam
claras as suas preocupações com o conceito de “teatro popular” no início dos anos 70, não
como algo “inferior” ou “mecânico”, mas como algo que tenha um valor intrínseco e que
emocionasse plenamente, verificasse todo o personagem e ao mesmo tempo o fato de que na cena
seguinte não era mais ele, era um outro, produziria um certo efeito de estranhamento. Este era um dos
mecanismos, essa não-identificação de ator e personagem. O segundo mecanismo era o mecanismo da
presença de um coringa que era uma espécie de um meneur de jeu, uma espécie de pessoa que maneja a
cena e que ao mesmo tempo é o exegeta do espetáculo que está sendo mostrado, isto é, mostrávamos a
peça e a exegese da peça através da personagem-função do “coringa”, que explicava, que retificava, que
apresentava alternativas. Isto foi uma influência brechtiana bastante séria no nosso trabalho e que criou
toda esta séria Arema conta...”. Augusto Boal (depoimento) apud BADER, Wolfgang. Brecht no Brasil
Experiências e Influências. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987, p. 252-253.
348
MAGALDI, Sábato. Arena Conta Tiradentes. In: ______. Moderna Dramaturgia Brasileira. São Paulo:
Perspectiva, 1998, p. 127.
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pode ser difundido para outras “classes”, ocasionando profundas modificações nos modos
de pensar e de agir de toda a sociedade. Ao aceitar o desafio na busca por este tipo de
teatro, sensível e vinculado à perspectiva popular, Boal acaba se destacando e sendo um
companheiro intelectual e artístico de Fernando Peixoto. Naquela conjuntura, onde esta
forma de teatro encontrava todas as dificuldades possíveis, desde a concorrência do “teatro
comercial”, passando pela censura, indo até aos ataques e protestos “simbólicos” oriundos
dos grupos “alternativos”, a tentativa de estabelecer um diálogo e uma atitude de
cooperação e de reconhecimento entre os diversos grupos intelectuais que tinham um ideal
em comum era uma postura absolutamente natural.
349
Desta forma compreendemos a atenção dispensada por Fernando Peixoto em
relação ao dramaturgo, diretor, crítico e, também, membro do conselho editorial de
Movimento, Hermilo Borba Filho. A forma como o descreve em duas críticas é a de um
grande homem que buscou em seu trabalho aprofundar nas tradições e manifestações
populares nordestinas, sendo que estas serviram de base para as suas produções cênicas e
literárias. Mesmo com as contradições advindas de seu nascimento, um filho de senhor de
engenho de Pernambuco, Hermilo promoveu uma verdadeira revolução na cena teatral em
seu estado. O texto de junho de 1976 aponta para a grande lição que ele deixava para as
gerações subseqüentes:
Transformando o movimento de teatro amador de Pernambuco não na
cópia desfigurada e falsa do que é produzido nos grandes centros
profissionais do país, nem no inútil exercício abstrato de procuras
individualistas ou pseudo–vanguardistas. Mas, sim, na concretização
cênica de valores verdadeiros de nossa cultura. Numa mesma luta pela
busca de uma identidade cultural transformadora. Em cada espetáculo do
nordeste que se empenhe num confronto crítico e conseqüente com a
realidade da região e do país, feita a partir dos valores e da necessidade
histórica do povo, voltado para a elaboração de uma cultura livre e
libertadora, Hermilo estará vivo.
350
349
Mais uma vez, Mariângela Alves de Lima, ao questionar o aspecto popular de uma série de projetos
teatrais da década de 1970, aponta para os “pés de barro” do Arena e de todos os grupos inspirados por
ele: “A partir do estímulo do Arena, e fortalecidos por circunstâncias históricas que exigiriam uma
explicação à parte, em vários pontos do país (Porto Alegre, Recife, Rio de Janeiro e Salvador) formam-se
outros grupos teatrais que, ao longo da década de 1960, esmiúçam nos seus espetáculos a herança
histórica do capitalismo. Fazem ainda mais: propõe a seus espectadores um movimento em direção ao
socialismo. Ao palpitar diretamente sobre o destino do seu público, o teatro assume parte da tarefa que até
então se reservava ao partido político, ao sindicato e ao ativismo clandestino. Por essa razão seu problema
teórico constante será o de manter em equilíbrio as duplas atribuições de fazer arte e faze história. Nesta
balança, diga-se de passagem, o prato da história tende a pesar um pouco mais”. LIMA, Mariângela Alves
de. Os grupos ideológicos e o teatro da década de 1970. In: NUÑEZ, Carlinda Fragale Patê; et al. O
teatro através da história. Rio de Janeiro: Centro Cultural Banco do Brasil; Entourage Produções
Artísticas, 1994, p. 235-236.
350
PEIXOTO, Fernando. Hermilo e o teatro vivo do Recife. Jornal Movimento, 14/06/1976, s/p.
Capítu
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O teatro “vanguardista” é mencionado e tem como contraponto um teatro vivo,
calcado nos valores “autênticos” e “verdadeiros” de nossa cultura. A pesquisa e o trabalho
de Hermilo representavam um legado importantíssimo que deveria inspirar um radicalismo
ainda maior, de não apenas representar o povo no palco, seus problemas, suas
contradições, mas o de, literalmente, colocar o povo em cena, algo até então difícil nos
grandes centros de ser praticamente efetivado com sucesso e continuidade.
Em 1977, num caderno especial sobre Hermilo Borba Filho, um ano após o seu
falecimento, Fernando Peixoto faz um depoimento intitulado “Teatro: Uma perspectiva
Nacional-Popular”, onde descreve a trajetória e analisa criticamente o trabalho deste
intelectual pernambucano. Novamente, retoma a questão de sua importância para abrir um
caminho possível de ser trilhado pelo teatro brasileiro, o “nacional-popular”. A admiração
por tal contribuição não é pelo simples fato de estar relacionado à “cultura popular”, mas
pela capacidade desta de antecipar o próprio “teatro brechtiano”,
351
demonstrando uma
sagacidade e enorme capacidade de transformação:
Seria oportuno e necessário reler o teatro de Hermilo. É inclusive um
escritor que chegou ao teatro épico não apenas como compreensão
intelectual, mas por íntegra vivência de homem de teatro, através da
descoberta, que ele proclama, de que as manifestações mais espontâneas
do teatro nordestino antecipam em muitos séculos o teatro anti–ilusionista
de Brecht, por exemplo, com origens que se localizam em formas
dramáticas populares como o teatro grego, a “comédia dell’arte” italiana,
o teatro elizabetano.
352
O teatro de Hermilo consolidaria ainda mais as opiniões tanto de Peixoto como a
de Boal em relação à profundidade e à inovação existente nas manifestações teatrais
populares. O próprio “distanciamento” brechtiano é percebido ao referir-se à capacidade
destas manifestações de estarem atentas na desmistificação e na demonstração do processo
de criação e de encenação
353
. Isto era um grande trunfo para o fortalecimento desta
351
Na citação a seguir, trecho de um depoimento de Hermilo Borba Filho ao Serviço Nacional de Teatro em
abril de 1977, o dramaturgo faz algumas considerações sobre um “método brechteano” instintivo e natural
nas encenações populares: “O TPN entrou nesta linha, numa linha anti-ilusionista, numa linha épica, um
pouco brechteana, mas muito mais dos espetáculos despojados, sem pano de boa, sem separação de palco
e platéia, com o intuito de praticar um teatro didático. Um teatro didático que corrigisse o espectador, na
medida em que o espectador quisesse ser corrigido. De qualquer maneira. Um espetáculo em que
desapareceria a célebre e terrível quarta parede dos palcos da cena italiana e o espectador pudesse
participar do jogo, quer dizer, do espetáculo”. BRASIL. Ministério da Educação e Cultura. Secretaria da
Cultura. Serviço Nacional de Teatro. Depoimentos V. Rio de Janeiro, 1981, p. 103.
352
PEIXOTO, Fernando. Teatro: Uma perspectiva Nacional–Popular. Jornal Movimento, 06/06/1977, p. 21
353
Sobre o teatro épico brechtiano e o seu caráter anti-ilusionista: “No início do século XX, no âmbito do
movimento expressionista alemão, os elementos narrativos volta a imiscuir-se na dramaturgia. Na mesma
Capítu
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perspectiva, ter em seu modo de expressão o germe de um “teatro político”, capaz de
conscientização. A potencialidade revolucionária existente nestas manifestações era algo
que não poderia ser desconsiderado naquele momento, final dos anos de 1970. Era uma
possibilidade que contribuía decisivamente em todo o processo de busca por uma cena
autenticamente nacional, ligada ao povo e aos seus desejos. Por mais que estivesse fora do
eixo profissional Rio-São Paulo, a comunicação e o intercâmbio entre ambos seria uma
importante tarefa a ser executada. Agora, mais uma etapa deveria ser vencida. Esta dizia a
respeito da capacidade dos setores artísticos de se empenharem, de se organizarem num
projeto amplo e hegemônico capaz de superar todas as barreiras e impedimentos existentes
até então.
3.7 PARA ALÉM DO POPULAR”: A DEFESA DE UM TEATRO NACIONAL-
POPULAR
Mesmo dois meses antes do espetáculo ser encenado em dezembro de 1975,
Fernando Peixoto via Gota D’Água de Chico Buarque e Paulo Pontes como um grande
acontecimento na consolidação de um determinado teatro brasileiro crítico, responsável e
popular. Movimento publicou com exclusividade um trecho da peça e, a apresentação de
Peixoto, demonstra a sua expectativa em relação ao seu significado e ao seu impacto:
[...] O texto conserva a rígida estrutura clássica, mas sem submissão:
reinventa a cada instante, sem nunca perder o elemento trágico do
original grego, mas engravidando–o de um conteúdo social vigoroso.
Análise penetrante do comportamento do homem brasileiro de nossos
dias, Gota D’Água vence uma das mais complexas propostas do teatro
contemporâneo: escrita em versos, sua poesia evidencia um
extraordinário domínio literário que coloca imediatamente o texto entre
os mais sensíveis da literatura dramática nacional. Mas o verso, para
Chico Buarque e Paulo Pontes, não é uma prisão ou um limite à
linguagem: eles encontram admirável fluência em diálogo de espantosa
vitalidade e fascinante apreensão da gíria e da fala do povo brasileiro.
354
Gota D’Água foi o texto e o espetáculo mais lembrado e elogiado por Peixoto em
suas críticas em Movimento. Além da análise acima, foi citado em mais três momentos,
Alemanha, Erwin Piscator, movido pelo compromisso histórico de transformação social, formulou a
teoria e uma nova prática do teatro épico, construindo espetáculos sobre diferentes planos históricos
intercalados por legendas, projeções cinematográficas e elementos antiilusionistas na cenografia e no
figurino. O épico voltou à cena teatral e o dramaturgo e diretor Bertolt Brecht encarregou-se de vincular
decisivamente a forma épica ao teatro político”. PATRIOTA, Rosangela. Teatro épico. In: GUINSBURG,
J.; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela Alves de. (Orgs.). Dicionário do teatro brasileiro: temas,
formas e conceitos. São Paulo / Perspectiva: Sesc São Paulo, 2006, p. 132.
354
PEIXOTO, Fernando. Gota D’Água. Jornal Movimento, 20/10/1975, p. 24.
Capítu
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190
sempre de maneira bastante positiva, sendo um verdadeiro marco da dramaturgia
“nacional-popular”. Autores conscientes e criativos, que ao utilizar o texto de uma tragédia
grega como base para uma “tragédia brasileira” ambientada num morro carioca
souberam incorporar um “conteúdo social vigoroso”. Ao mesmo tempo em que utilizaram
o “verso”, incorporaram elementos coloquiais da fala do “povo” na construção dos
diálogos. Deste modo foi refutado o dualismo entre o “populare o “erudito” ao levantar
esta última questão.
355
Na outra vez que Gota D’Água foi citado por Peixoto, numa reportagem
biográfica que ele escreveu sobre um de seus autores, o paraibano Paulo Pontes, que havia
falecido no dia 27 de dezembro de 1975, aos 36 anos de idade, o crítico aborda a luta do
dramaturgo até os últimos dias de vida na luta por um teatro “nacional-popular”, sendo ele
um verdadeiro exemplo de lucidez e coragem diante de todas as adversidades.
356
Além
disso, descreve a parceria de Vianinha e de Pontes na Rede Globo de Televisão onde juntos
escreveram o seriado A Grande Família e, no teatro, tentaram fazer uma adaptação de
Medéia (anteriormente realizada pelos mesmos na TV), mas que foi impedida pela morte
de Vianinha em 1974. Mesmo assim este projeto segue adiante com um novo parceiro,
Chico Buarque:
Deste esforço comum nasceu “Gota D’Água”, que hoje tem mais de 300
representações e já foi vista por cerca de 250 mil espectadores. Uma cifra
espantosa, que fascinava Paulo porque era a prova, na prática, de tudo
que ele defendia com paixão e confiança: existe um público imenso para
o teatro, desde que este abandone o subjetivismo e o elitismo,
aproximando–se da construção de uma cultura nacional–popular. Toda
sua obra como escritor e toda sua incansável participação como
intelectual consciente de suas responsabilidades, fiel a seus primeiros
compromissos, combativo e corajoso, coerente e lúcido, generoso e
inflexível, foi esta procura.
357
O fascínio de Pontes era o mesmo de Peixoto: 250 mil espectadores assistiram
Gota D’Água no ano de 1976. Era a prova que faltava para mostrar que existia um público
355
Uma das formas como Antonio Gramsci apresenta o seu conceito de “nacional-popular”: “[...] falar ao
povo como líder e como igual ao mesmo tempo, para fazer com que o povo participe da crítica de si
mesmo e de suas debilidades, mas sem perder a na própria força e no próprio futuro”. GRAMSCI,
Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 223. v. 6.
356
“[...] Paulo Pontes nunca temeu ser acusado de populista ou de mergulhar na superficialidade dos
problemas. Quando, em suas primeiras peças, procurou revitalizar a chamada comédia de costumes, viu o
significado da comédia de costumes como experiência próxima ao público popular, que passava a ser uma
forma de vanguarda [...]”. PEIXOTO, Fernando. Paulo Pontes (1940–1976). Jornal Movimento,
03/01/1977, [s/p].
357
Ibid.
Capítu
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expressivo para o teatro “nacional-popular”, autêntico, verdadeiro e compromissado com
as “classes populares”. Um espetáculo que serviria de referência, uma luz no fim do túnel
para todos aqueles que enveredassem por tal opção cênica distanciada do “elitismo” e do
“subjetivismo” apontados acima.
No dia 17 de janeiro de 1977, num balanço que Peixoto faz sobre a cena teatral do
ano que havia passado, ele cita novamente Gota D’Água. Reitera a sua opinião anterior em
que aponta o espetáculo como um estímulo fundamental na luta por um teatro conseqüente
e em contato direto com a realidade brasileira. Ainda que mencione mais três peças, Gota é
a primeira a ser enunciada:
É impossível, em considerações gerais, citar todos os espetáculos que de
alguma forma configuram esta perspectiva de renovação. Mas alguns são
expressivos pelo que traduzem e pelo que afirmam com eloqüência. Nos
dois centros de produção profissional, S. Paulo e Rio de Janeiro, a
realidade social de hoje, difícil mas transformável, encontrou ao menos
quatro surpreendentes instantes de reflexão em espetáculos diferentes
enquanto temática, estrutura de dramaturgia e posicionamento de
encenação, mas irmanados num esforço comum de encontrar frestas nas
aparentemente inquebrantáveis muralhas que impedem que as salas de
espetáculos se transformem em efetivos centros de debate: Gota
D’Água” de Paulo Pontes e Chico Buarque, O Último Carro” de João
das Neves, “Ponto de Partida” de Gianfrancesco Guarnieri e “Mumu, a
Vaca Metafísica” de Marcílio Morais.
358
Peixoto percebe o que chama de “renovação”, o momento em que o teatro ligado à
perspectiva “nacional-popular” estava mostrando ser capaz de fazer sucesso em relação ao
público sem abrir mão da qualidade e do compromisso com as “classes populares”. Estes
quatro espetáculos, incluindo Gota D’Água (uma gota “transformada em vital
inundação”, segundo a sua própria afirmação) estavam conseguindo romper as barreiras,
sendo momentos peculiares de debate e de reflexão crítica no final da década de 1970,
agindo nas “frestas”, rompendo o cerco da censura.
359
Mais uma vez Gota D’Água é citada. Desta vez no final de dezembro de 1977. Se
no início do ano havia uma certa esperança em relação à cena teatral brasileira e aos
358
PEIXOTO, Fernando. Em busca da realidade perdida. Jornal Movimento, 17/01/1977, p. 15.
359
“Sob a égide de um Estado autoritário, intensificou-se ma construção de uma estratégia que se tornou
conhecida como “linguagem de fresta”. Nesse processo, o trabalho de Fernando Peixoto, ao lado de tantos
outros criadores, como Oduvaldo Vianna Filho, Paulo Pontes, Chico Buarque de Hollanda, Antunes
Filho, Gianfrancesco Guarnieri, Flávio Rangel, Plínio Marcos, entre outros, alimentou significativamente
o fortalecimento de uma cultura de oposição, que se tornou um dos sustentáculos de movimentos em prol
da anistia, da redemocratização, das diretas-já etc.”. PATRIOTA, Rosangela. O fenômeno teatral como
objeto da pesquisa histórica: o Brasil da década de 1970 e as encenações de Fernando Peixoto. In:
MACHADO, Maria Clara; PATRIOTA, Rosangela. (Orgs.). Histórias e Historiografia: perspectivas
contemporâneas de investigação. Uberlândia: Editora da UFU, 2003, p. 63-64.
Capítu
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caminhos por quais ela trilhava, nesta crítica o próprio título deixa transparecer uma certa
desilusão: “Em aparente estado de graça”. Este melancólico panorama” é salvo por Gota
D’Água juntamente com Último Carro de João das Neves. Pode parecer pouco, mas para
Peixoto eles seriam estímulos para continuar no caminho aberto por eles:
Seria ainda necessário ressaltar que em S. Paulo estão ainda em cartaz
dois dos espetáculos mais expressivos lançados em 76, “Gota D’Água”
de Chico Buarque e Paulo Pontes e “O Último Carro” de João das Neves.
A permanência de ambos atesta, sem dúvida, que o teatro nacional–
popular e realista–crítico, que assumem e procuram desenvolver,
retomando caminhos que pareciam perdidos ou abandonados ou
inviáveis, não é apenas uma simples hipótese de trilha para o teatro
brasileiro: é uma certeza.
360
O ano de 1977 terminava problemático para um possível “renascimento do teatro
‘nacional-popular’”, mesmo que qualitativamente ainda houvesse fortes representantes em
cartaz. Mas, ao utilizar-se da expressão de “retomar caminhos que pareciam perdidos ou
abandonados ou inviáveis” para caracterizar a luta que estes espetáculos vinham travando,
Peixoto nos remete à sua própria luta escrita nos jornais Opinião e Movimento. Sem
dúvidas ele foi um defensor intransigente e sagaz deste fazer teatral num momento em que
os “novos” inimigos surgiam e provocavam uma verdadeira transformação na forma de ver
de produzir teatro no Brasil. Ver Gota D’Água e Último carro em cena era perceber, de
certa forma, que o seu trabalho como crítico tinha dado resultados positivos e concretos,
ele não estava errado e, principalmente, não estava sozinho.
Porém, a linha cênica e política que defendia estava longe de ser consensual e
plenamente aceita. Novamente, pelo fato destes espetáculos fazerem parte do circuito
comercial (a ênfase na bilheteria por parte de Peixoto ao remeter-se a Gota D’Água) eles
estavam fatalmente comprometidos e prejudicados por uma série de incômodos e limites.
Mariângela Alves de Lima, em “Anos 70 Teatro”, não deixa passar a chance de mostrar
os impasses daquela cena:
Mas o fato concreto é que a empresa teatral, que poderia ter trabalhado
outros temas, limitou-se a funcionar com as peças disponíveis, com
aquelas que escaparam às malhas da censura. Com uma economia
periclitante e textos inócuos, a empresa teatral fez ainda menos do que o
seu esquema de produção pode oferecer. Os bens herdados foram
subaproveitados, e como a ousadia não é o seu traço distintivo, o
panorama teatral foi marcado pela atuação dos grupos, ainda que os
sucessos ocasionais de uma outra produção empresarial reativassem
360
PEIXOTO, Fernando. Em aparente estado de graça. Jornal Movimento, 26/12/1977, p. 17.
Capítu
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momentaneamente o interesse dos produtores pela continuidade das
produções.
361
Lima é clara ao fazer o diagnóstico dos problemas em relação aos espetáculos
empresarias que pegavam textos esparsos que haviam escapado da censura, sendo
impossível qualquer tentativa de continuidade, ela cita como exemplo o espetáculo Gota
D’Água para demonstrar a deficiência de seu papel cultural e político:
Para se ter uma idéia da importância do processo de produção basta
lembrar que um texto tão importante como Gota d’água tem o mesmo
impacto, quando encenado, de uma comédia de costumes do Sr. João da
Silva. Ou seja, não tem impacto nenhum. O espetáculo fica muito tempo
em cartaz, é sucesso de bilheteria, mas sai de cena sem deixar atrás de si
um único herdeiro que possa aproveitar alguma idéia em outros
trabalhos.
362
Caso o teatro brasileiro continuasse no esquema empresarial de produção
poderíamos nivelar por baixo todo e qualquer espetáculo produzido no Brasil, mesmo os
textos mais interessantes, como Gota D’Água, que acabava perdendo o seu poder de
transformação. Num depoimento do diretor Carlos Henrique Escobar, no início da década
de 1980 intitulado “Um intelectual censurado”, ele vai além das críticas ao sistema de
produção do teatro brasileiro como Lima fizera anteriormente. Escobar questiona a própria
qualidade dos textos, nomeadamente Gota D’Água (Chico Buarque e Paulo Pontes), Rasga
Coração (Vianinha) e Último carro (João das Neves), justamente aqueles que Peixoto via
com mais entusiasmo:
[...] Quando se abre um teatro com a temática brasileira, com autor
brasileiro, procurando uma massa maior, se mexe na arquitetura do teatro,
tudo isso é formidável. Porém a direção que isso vai tomar, com tempo,
vai reter o próprio movimento e a própria riqueza da história do teatro
brasileiro. Esse movimento chegou rapidamente, está na década de 60, ou
antes; a partir do golpe de 64, ele vai ser um movimento empobrecedor.
Vou te dar um dado tentando enriquecer mais isso. É exatamente a partir
de 64 que a esquerda vai fragmentar. Ela vai fragmentar e vai tentar
quebrar a hegemonia da reforma no espaço da esquerda. A mesma coisa
vai acontecer com respeito às áreas de cultura. Vai-se tentar criticar o tipo
de oposição cultural que se fazia ao sistema. O que vai acontecer? O
teatro controlado pela reforma vai tentar esmagar qualquer tipo de
movimento que pintar. Tanto que a história do Teatro Oficina é um caso
particular, e seria uma coisa não incluída neste movimento. É uma coisa
heróica, é uma coisa que vai balançar, que vai ser a área onde se vai
pesquisar e vai-se tentar renovar a atividade teatral. Pois bem, eu acho
que esse controle, essa detenção desse movimento de renovação teatral
361
LIMA, Mariângela Alves de. Quem faz o Teatro. In: ARRABAL, José; LIMA, Mariângela Alves de;
PACHECO, Tânia. Anos 70 – Teatro. Rio de Janeiro: Europa Emp. Graf. e Edit., 1979-1980, p. 69.
362
Ibid., p. 58.
Capítu
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continua na mão dessa gente. Então, não quero viver as emoções da
censura como eles vivem, porque é uma farsa, porque eles negociaram
com a censura. Faturaram comercialmente a censura: negociaram com o
poder, porque o poder é a ditadura, para liberar durante a época.
Conseguiram liberar textos, enquanto os grupos isolados não puderam,
nessa época, tentar coisa nenhuma; na época de 60, 70, como hoje
também a situação permanece a mesma. Faço também minha crítica à
crítica, que não soube brigar com essa gente, e que até hoje continua
valorizando coisas ruins. Eu gostaria até de citar textos ruins, não para
enriquecer mas parar tornar mais significante isso. Gota d’água, por
exemplo, é um escândalo. é de uma pobreza atroz de texto, uma pobreza
atroz de espetáculo; no entanto, vai tentar fazer esse tipo de jogo. O
Rasga coração tem uma situação especial, eu considero um texto pobre, e
um texto politicamente equivocado, mas tem uma situação especial
dentro da vida do Vianinha, num dado momento; a gente sabe reconhecer
a situação heróica desse cara, a militância desse cara.
[...] O texto atroz e pobre, entretanto, recolheu todos os prêmios que o
país pôde dar. São Paulo e Rio de Janeiro, como no caso de O último
carro. Sai da frente: oito páginas de texto extremamente pobre, um
espetáculo naturalista que reproduziu a nível de colagem uma situação da
Central do Brasil, e, no entanto, de imenso sucesso na pequena burguesia.
Recolhendo todos os prêmios da crítica e do Serviço Nacional de Teatro.
É um escândalo, um rebaixamento de tudo. Não tem texto, não tem
espetáculo, a concepção é atroz, porque ela é primitiva no que diz
respeito à renovação da casa, do espetáculo, da montagem, de tudo. NO
entanto, o João das Neves surge como uma grande figura. Enquanto isso,
uma série de textos jovens que eu conheço que estão por aí, de grupos
que estão tentando fazer alguma coisa, ficam completamente à
margem.
363
Nesta citação longa e complexa, ao tratar especialmente de Gota D’Água e O
último carro, o diretor qualifica os textos como de uma “pobreza atroz”, sendo que apenas
em relação ao último ele justifique tal opinião, sendo que sobre o primeiro fica uma dúvida
sobre as razões de tal julgamento. Quando fala dos prêmios que O último carro conseguiu
em 1976 e o sucesso de público de Gota, ao invés destas situações indicarem um caminho
a ser trilhado, simbolizavam para Escobar o grau de adequação, comedimento e aceitação
do status quo.
364
Para ele não havia nada de “revolucionário” ou de “contestador” nestes
363
ESCOBAR, Carlos Henrique de. Um intelectual censurado. In: KHÉDE, Sonia Salomão. Censores de
pincenê e gravata: dois momentos da censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri, 1981, p. 135-
136.
364
O depoimento de Chico Buaque do início da década de 1980, falando sobre a sua relação com o mercado,
demonstra de maneira significativa as diferentes formas de expressão que cada um buscou justitificar em
relação à participação ou não dos processos de resistência:“Eu não sou totalmente independente do
sistema, na medida em que gravo disco para uma multinacional, eu dependo de uma série de elementos
que pertencem ao sistema, ao capitalismo; eu faço teatro e, evidentemente, não é para o povo o teatro
não ser faz para o povo. Agora dentro do que eu acredito é quase um exercício para continuar vivendo,
continuar atuando na medida do que posso. Não tenho ilusão de fazer dentro desse sistema um teatro
popular, isso eu já disse em várias entrevistas”. HOLANDA, Chico Buarque de. Fui obrigado a tomar
atitudes extra-artísticas em função da minha impossibilidade de trabalhar. In: Ibid., p. 184.
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textos. A estrutura de produção continuava e, mais uma vez, ele afirma em seu depoimento
algo controverso: a questão de vários grupos teatrais faturarem comercialmente com a
censura e negociarem com a mesma para conseguirem mais publicidade e,
conseqüentemente, mais público. A própria crítica teatral em geral participaria deste
esquema ao valorizar determinados espetáculos.
365
Em última análise, Fernando Peixoto
faria parte deste esquema denunciado por Escobar tanto como diretor quanto como crítico.
Mas seria a atitude de Peixoto diante da cena teatral brasileira tão mesquinha e
“comercial”?
Pelos seus textos jornalísticos, temos uma visão diferente e menos banalizada.
Ainda que Peixoto não seja um radical em suas propostas, ele buscou um certo equilíbrio,
“nem tanto ao mar, nem tanto à terra”, como condição de sobrevivência do teatro
brasileiro.
Ele tem razões para pensar assim. Sua ligação com o Partido Comunista Brasileiro
pode ser um dos pontos que justifique sua atitude. Em primeiro lugar, a contrariedade do
Partido em relação à “luta armada”.
366
E em segundo lugar, a participação do PCB na luta
pela democracia como definido no VI Congresso do PCB.
367
365
O dramaturgo Plínio Marcos fez uma observação na mesma linha sobre a negociação dos artistas com a
censura: “[...] Na verdade, o teatro nunca lutou contra a censura. O teatro lutou para liberalização de
algumas peças. Mas para o fim da censura eles não lutam, porque um teatro que é comprometido com o
governo não vai correr o risco de lutar contra um órgão do governo. Ele se limita a tentar liberar algumas
peças, mas nunca fazer um movimento maciço para tentar acabar com a censura no País. Isso, não. Ele,
todas as vezes que entra em diálogo com o governo, é para pedir apoio, porque o teatro brasileiro está
sempre falindo. eles está sempre em crise, isso porque não é uma tribuna livre, onde se possa discutir a
às últimas conseqüências o problema do homem; e a subvenção governamental, que é realmente
constrangedora; e as companhias todas precisam dessa subvenção”. MARCOS, Plínio. Moral e bons
costumes: censurar uma peça contrária à tortura. In: KHÉDE, Sonia Salomão. Censores de pincenê e
gravata: dois momentos da censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri, 1981, p. 189.
366
“Nesses primeiros anos do pós-64, o PCB vira-se obrigado a redefinir sua tática de frente única sob um
duplo influxo. Enquanto, por um lado, defendia a centralidade das liberdades democráticas, antes de tudo
intramuros, por outro ele também se faria presente numa espécie de segunda frente, recebendo influência
de uma esfera propriamente intelectual. Num tempo em que a crise do socialismo real se propagava para
dentro do próprio marxismo e evidenciava-se que este, como diria Bobbio, carecia de teoria política,
observava-se, nas esquerdas brasileiras, o que se poderia chamar de batalha pela reabilitação da política.
Necessária para resistir à ditadura, essa batalha tinha muito a ver com a discussão marxista a respeito das
teses estruturalistas sobre o papel do indivíduo na história, sobre o determinismo e as certezas gerais, por
esses temas passando o debate a respeito das possibilidades e limites dos tipos de ação imediata de
resistência à ditadura”. SEGATTO, Jo Antonio; SANTOS, Raimundo. A valorização da política na
trajetória pecebista dos anos 1950 a 1991. In: RIDENTI, Marcelo; REIS, Daniel Aarão. (Org.). História
do Marxismo no Brasil. Partidos e movimentos após os anos 1960. Campinas: Unicamp, 2007, p. 31.
“[...] Sabemos o quanto essa ação direta de pequenos grupos isolados das massas ajudaram a ditadura a
justificar as crescentes medidas de repressão policial e dificultaram aos comunistas sua ação
mobilizadora, organizadora e educativa junto às massas trabalhadoras. Além de facilitarem a destruição
física de quadros combativos, contribuíram para desencorajar a milhares de trabalhadores, deseducá-los e
levá-los à passividade, à expectativa, à espera de novos e maiores atos de heroísmo individual”.
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Sozinho não estava, mas era consciente das dificuldades enfrentadas por ele e por
outros na luta pela democracia e por um teatro ligado a esta aspiração. Na realidade, nas
críticas de Fernando Peixoto co-existiam momentos de esperança permeados por instantes
de desilusão. Retomando o texto “Os mistérios do milagre” de fevereiro de 1976, uma
constatação negativa sobre a atividade teatral brasileira:
Um aspecto básico para a compreensão da situação do teatro brasileiro
hoje, por exemplo, é o triunfo incontestável e retumbante do teatro
comercial. Texto nacional (copiando o estrangeiro) e estrangeiro cópias e
original estão presentes nos palcos. Vitória do espetáculo que diverte com
o preço de mentir e enganar, institucionalizando a mistificação e a
ilusão.
368
Há uma distinção clara entre os diferentes “teatros” atuantes no final da década de
70. Como vimos nas citações anteriores desta crítica em particular, o cenário não era um
dos mais animadores. No duelo entre as diferentes concepções, uma triunfava e criava
novos padrões e comprometimentos: o teatro “comercial”. Por outro lado, suas próprias
convicções eram atacadas por serem justamente comerciais”. Como nas vezes anteriores,
Peixoto não economiza as suas críticas. Mas, algumas questões surgem ao depararmos com
esta afirmação: porque este teatro absolutamente comercial triunfou? A culpa seria dos
artistas que se esqueceram de seu papel na sociedade brasileira? Uma oposição dividida e
isolada, com projetos e concepções diferentes da arte teatral? Ou os artistas se viram de tal
modo pressionados, cansados e desiludidos com aquela situação que não restava outra
alternativa senão aceitar qualquer tipo de trabalho?
Neste ponto, o pensador marxista italiano Antonio Gramsci permite e oferece
elementos importantes ao pensarmos justamente neste tipo de preocupações que Peixoto
tinha em relação à realidade brasileira: a elaboração de um teatro “nacional-popular” e a
participação e união dos “intelectuais” neste processo de luta. O advento de tal concepção
RESOLUÇÃO POLÍTICA do C.E. da Guanabara (março de 1970). In: CARONE, Edgar. O P.C.B.
(1964-1982). São Paulo: DIFEL, 1982, p. 104-105.
367
“O caráter prioritário da defesa das liberdades democráticas decorre da necessidade de que as amplas
massas intervenham na vida política e no processo revolucionário. A luta pelas liberdades, desde os
direitos de reunião, associação e manifestação, até a liberdade de imprensa e de organização dos partidos
políticos, liga-se à luta de massas em todos os seus níveis, das reivindicações mais elementares às
batalhas decisivas pelo poder. Cada vitória, pequena ou grande, ou mesmo derrota na luta pelas
liberdades, incorpora-se à experiência das massas. É a própria experiência de luta que levará as massas a
avançar em seus objetivos, formar e prestigiar suas organizações e seus líderes, intervir decisivamente nas
ações políticas, que conduzirão à derrota do regime ditatorial.” VI CONGRESSO do P.C.B. (dezembro de
1967). In: Ibid., p. 73.
368
PEIXOTO, Fernando. Os mistérios do milagre. Jornal Movimento, 16/02/1976, p. 16
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197
artística, como vimos até então, não era um processo fácil de ocorrer. Pelas críticas, vemos
Peixoto eufórico com algumas tentativas neste campo. Outras vezes, o percebemos
angustiado e até mesmo descrente diante de um cenário cada vez mais distante daquilo que
considerava ideal.
369
Uma das maiores preocupações de Gramsci era o fato da Itália, até o início do
século XX, não ter conseguido gerar uma cultura nacional ampla e popular. Até então, ao
fazer um apanhado histórico das diferentes manifestações artísticas italianas, ele percebe
um caráter sempre extremista: ou eram restritas a determinados grupos sociais ou
demasiadamente cosmopolitas (mas ainda sim não-populares), como seria o caso das obras
do “Renascimento”. Como conseqüência, por esta arte estar sempre limitada em sua
produção e em sua recepção, ocorreu um fenômeno complexo e negativo em sua opinião: a
separação entre os “intelectuais” e o “povo”. Isto não representava apenas o não-acesso a
determinados “objetos culturais”, simbolizava todo o atraso de uma nação e um entrave
para a consolidação de qualquer transformação mais profunda e radical. Portanto, uma de
suas maiores preocupações era superar este atraso, desmistificando e demonstrando o grau
de conservadorismo e idiotismo presente na cultura italiana de seu tempo. Ao mesmo
tempo, propunha uma reformulação profunda nos mais diversos campos ligados à cultura,
à educação e à política. Apenas assim poderia se efetivar, de maneira plena e,
principalmente, consciente o seu objetivo final.
A ansiedade de Peixoto (considerando também as de Dort), em torno de uma
comunicação efetiva e transformadora do teatro brasileiro com as “classes populares”, se
liga intimamente com as questões gramscianas. Como já vimos, o crítico considerava uma
série de fatores como positivos: as manifestações populares, principalmente as que estavam
369
Numa entrevista concedida ao jornal A Voz da Unidade, em novembro de 1980, Fernando Peixoto
apresenta um conceito do que ele compreendia como “nacional popular”. Nota-se que ele continua
preocupado com um contato “realista” e “crítico” com o público: “Tentando sintetizar, eu acho que a
forma de fazer uma contestação, essa oposição em teatro, ela dá certo se manter quatro elementos que
inevitavelmente temos que dizer separadamente, mas que são uma coisa só. Apenas não consigo dizer as
quatro palavras juntas ao mesmo tempo (risos), ou não acho uma palavra para reunir junto os quatro. É o
lado de confronto com a realidade, o realismo não como escola literária, mas o realismo como confronto
com a realidade. Um teatro que tenha como tema o real, que pegue a sociedade real e procure examinar o
comportamento dos homens dentro desta realidade. Por outro lado, mas junto evidentemente, não são
coisas separadas, que faça a análise desta realidade do ponto de vista crítico. As palavras começa a se
juntar e vira “realismo crítico” (risos)... É realismo, é crítico, eu acho que deve ser nacional e popular,
mas sem querer reduzir a coisa a um “realismo-crítico-nacional-popular”. Eu acho que são quatro coisas
que têm que estar juntas, formar uma unidade, eu penso que esta é a unidade da contenstação teatral, do
cultural. É um confronto crítico de uma realidade feito a partir de instrumentos e de uma consciência
nacional, e a partir de uma perspectiva popular. Essa coisa toda misturada acho que uma definição do
que eu gostaria que fosse o que fiz”. PEIXOTO, Fernando. Teatro em Movimento. 3. ed. São Paulo:
Hucitec, 1989, p. 71.
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fora do eixo Rio-São Paulo que demonstravam um vigor e uma criatividade inusitados,
tínhamos figuras empenhadas no meio teatral que se concentravam na resolução dos
impasses em torno das fontes e das formas de expressão de um teatro politicamente
engajado e, por fim, alguns espetáculos ligados à estas concepções, ainda que isolados e
numericamente inferiores, mantinham-se em cartaz com relativo sucesso, demonstrando a
possibilidade de continuar naquela direção. Todavia, Peixoto era consciente dos limites e
das dificuldades destas manifestações e acabava tendo muita dificuldade de vislumbrar um
cenário positivo, visto que o teatro passava por reformulações econômicas nos moldes de
produção e por um esvaziamento político nos textos dramatúrgicos e nas encenações, ainda
que existissem grupos que buscassem uma radicalização fora do eixo comercial. De todo
modo, o “povo”, a não ser em suas manifestações exclusivas, não participava de maneira
hegemônica do processo cultural brasileiro. Elucidar esta separação, mas ainda se ater nos
pontos onde ainda existiam contatos, se tornava necessário para que não acabasse de vez
com todo um movimento, ainda que frágil, mas que continuasse em seu processo.
Gramsci apresenta uma inquietação semelhante ao tratar da literatura italiana, e
nos apresenta algumas razões desta separação que se efetuava num determinado momento
histórico em seu país.
370
Guardadas as devidas diferenças de enfoque e de situação, suas
análises acabam lançando uma nova luz sobre as preocupações de Peixoto que eram
expressas em suas críticas teatrais:
[...] Inexiste atualmente este contato, ou seja, a literatura não é nacional
porque não é popular. Paradoxo da época atual. De resto, não uma
hierarquia no mundo literário, isto é, não existe uma personalidade
eminente que exerça uma hegemonia cultural. Questão de por quê e como
uma literatura é popular. A “beleza” não basta: é necessário um
determinado conteúdo intelectual e moral que seja a expressão elaborada
e completa das aspirações mais profundas de um determinado público,
isto é, da nação-povo numa certa fase de seu desenvolvimento histórico.
A literatura deve ser, ao mesmo tempo, elemento efetivo de civilização e
obra de arte; se não for assim, a literatura artística cederá lugar à
literatura de folhetim, que, a seu modo, é um elemento efetivo de cultura,
de uma cultura certamente degradada, mas vivamente sentida.
371
370
Numa entrevista no final da década de 1970, Peixoto afirma a importância do estudo de Gramsci para
melhjor compreender o conceito de “nacional-popular”: “Eu acho que no fundo não está desligado de
uma conceituação mais geral, digamos gramsciana. Gramsci, aliás, é uma referência política que hoje se
torna, para nós, cada vez mais imprescindível. É simplesmente trazer a coisa ao nível da produção teatral.
Quem quiser organizar um grupo de teatro político, hoje, deve pensar e repensar o que Gramsci escreveu
sobre jornalismo”. PEIXOTO, Fernando. Teatro em Movimento. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1989, p. 72.
371
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 39. v. 6.
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Um primeiro ponto que nos chama a atenção é a consideração que Gramsci faz
sobre a necessidade do termo “nacional” estar ligado ao “popular” são adjetivos,
complementares em relação à arte, não podem ser dissociados. O isolamento de um
representaria homogenização e elitismo, de outro, degradação e fragmentação. Fernando
Peixoto, não se distancia tanto destas considerações quando afirma a necessidade de estar
atento às manifestações populares do país pelo fato delas indicarem temas, formas e
preocupações destas classes, sendo um ponto inicial importante na elaboração de algo mais
amplo e transformador. Um segundo fator existente seria a confirmação do primeiro. A
“beleza” não bastaria se estivesse afastada do modo de “sentir” e de “viver” de toda uma
nação. Esta comunicação plena exercida pela arte, tanto no aspecto “estético” como no
“intelectual”, forneceria uma série de elementos de ligação e coesão no sentido nacional,
eliminando as rupturas e os abismos existentes entre os diferentes estratos da população.
Na superação destas dificuldades inerentes a este processo de aglutinação e
síntese, em outro momento de sua reflexão Gramsci aponta a necessidade de transformação
da chamada “arte popular” para uma forma diferente de expressão e de relevância, levando
em conta que “[...] quanto mais seu conteúdo moral, cultural e sentimental for aderente à
moralidade, à cultura, aos sentimentos nacionais, e não entendidos como algo estático, mas
como uma atividade em contínuo desenvolvimento”.
372
Esta sua observação não é gratuita
e aprofunda um pouco mais ao apontar a necessidade de um aprofundamento de tal
concepção artística com base num esforço de torna-la genuína, tanto para quem a produz,
como para quem a consome.
As críticas gramscianas sobre o caráter restrito e estático das manifestações
“populares”, principalmente quando aponta sua incapacidade de suscitar de maneira
coerente reflexões objetivas, inicialmente parecem um tanto preconceituosas e impositivas
pelo fato de tentar superar determinados estágios culturais em busca de outros que julga
superiores. Entretanto suas justificativas são bastante coerentes quando as aproximamos de
seu ideal revolucionário e de sua tentativa de socializar certos elementos de uma cultura até
então restritos e distanciados:
[...] Seria preciso estudar o folclore, ao contrário, como “concepção do
mundo e da vida”, em grande medida implícita, de determinados estratos
(determinados no tempo e no espaço) da sociedade, em contraposição
(também esta, na maioria dos casos, implícita, mecânica, objetiva) às
concepções do mundo “oficiais” (ou, em sentido mais amplo, das partes
372
Ibid., p. 194.
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cultas das sociedades historicamente determinadas) que se sucederam no
desenvolvimento histórico. (Daí a estreita relação entre folclore e “senso
comum”, que é o folclore filosófico.) Concepção do mundo não
elaborada e assistemática já que o povo (isto é, o conjunto das classes
subalternas e instrumentais de toda forma de sociedade que existiu até
agora) não pode, por definição, ter concepções elaboradas, sistemáticas e
politicamente organizadas e centralizadas em seu (ainda que
contraditório) desenvolvimento -, como também múltipla. E múltipla não
apenas no sentido de algo diversificado e justaposto, mas também no
sentido de algo estratificado, do mais grosseiro ao menos grosseiro, se é
que não se deve até mesmo falar de um aglomerado indigesto de
fragmentos de todas as concepções do mundo e da vida que se sucederam
na história, da maioria das quais, aliás, somente no folclore é que podem
ser encontrados os documentos mutilados e contaminados que
sobreviveram.
373
Na realidade, o termo “folclore” utilizado por Gramsci adquire um significado
negativo quando ele é contraposto com as chamadas “concepções de mundo oficiais” e,
principalmente, quando não altera o seu sentido e o seu significado. Porque serão
justamente destas idéias “contraditórias”, “grosseiras” e “indigestas” (ainda que históricas)
e de suas relações com as diferentes camadas da população
374
é que será possível elaborar
uma nova visão de história e de mundo? A compreensão de tais aspectos é, sem dúvidas,
uma das grandes contribuições do filósofo italiano para o pensamento marxista. Ao
entender que este conjunto “bizarro” de idéias, sentimentos e razões fazem parte da vida
destas pessoas, demonstrava que qualquer processo transformador e revolucionário
deveria, obrigatoriamente, levar em consideração tais aspectos, dialeticamente, sem cair no
erro fatal de tentar impor mecanicamente algo que não teria sentido nenhum para aqueles
que estão inseridos no processo.
373
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 133-134. v.
6.
374
“[...] Seria preciso estudar o folclore, ao contrário, como “concepção do mundo e da vida”, em grande
medida implícita, de determinados estratos (determinados no tempo e no espaço) da sociedade, em
contraposição (também esta, na maioria dos casos, implícita, mecânica, objetiva) às concepções do
mundo “oficiais” (ou, em sentido mais amplo, das partes cultas das sociedades historicamente
determinadas) que se sucederam no desenvolvimento histórico. (Daí a estreita relação entre folclore e
“senso comum”, que é o folclore filosófico.) Concepção do mundo não elaborada e assistemática já
que o povo (isto é, o conjunto das classes subalternas e instrumentais de toda forma de sociedade que
existiu até agora) não pode, por definição, ter concepções elaboradas, sistemáticas e politicamente
organizadas e centralizadas em seu (ainda que contraditório) desenvolvimento -, como também múltipla.
E múltipla não apenas no sentido de algo diversificado e justaposto, mas também no sentido de algo
estratificado, do mais grosseiro ao menos grosseiro, se é que não se deve até mesmo falar de um
aglomerado indigesto de fragmentos de todas as concepções do mundo e da vida que se sucederam na
história, da maioria das quais, aliás, somente no folclore é que podem ser encontrados os documentos
mutilados e contaminados que sobreviveram”. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 133-134. v. 6.
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Da mesma forma, ainda que Peixoto não se declarasse abertamente crítico em
relação às manifestações de cunho popular, ele também não se mostrava integralmente
satisfeito e não as considerava, em momento algum, como o ponto final do teatro
brasileiro. Pelo contrário, apontava para um tipo de teatro racional, realista e,
nomeadamente brechtiano. Como pudemos conferir, sua técnica exigia algo além da
simples espontaneidade e emoção, exigia uma profundidade e uma capacidade de
demonstração ímpar e extremamente conseqüente ao unir a razão com a emoção. A citação
abaixo retirada de uma entrevista de Peixoto é emblemática ao afirmar ser possível a
junção de Brecht e de Gramsci, principalmente quando percebe a necessidade dessa junção
para atingir os seus objetivos:
Serão tão distintos mesmo? Será que, eventualmente, não se completam,
em certos pontos? Não vejo contradição. Quando eu me refiro ao
nacional, por exemplo, eu falo da pesquisa e desenvolvimento da própria
linguagem teatral brasileira, sobretudo se ela começar a se desligar dessa
platéia de classe média que consome a fórmula desgastada. A forma
teatral brasileira é colonizada, é dependente, tem muito pouco das
verdadeiras raízes do espetáculo brasileiro. De um modo geral ela
mergulha em formas de fora, poucas vezes mergulha no que seria algo
ligado a uma forma nacional do espetáculo. Não se deve fazer Brecht
alemão, é preciso descobrir o que é Brecht no Brasil. Como apanhar a
proposta brechtiana e ligar isso ao sentimento nacional, à forma nacional?
Quais são os indícios que existem na cultura brasileira que permitam a
você fazer o que Brecht fez com a cultura alemã? Brecht foi nas feiras
medievais alemãs buscar uma forma de teatro. Não estou dizendo que a
gente vai transportar o bumba-meu-boi, para não ir mais longe, uma série
de elementos que podem ser recuperados. É preciso estudar Hermilo
Borba Filho. Não estou dizendo fazer folclore, pois folclore é, por
definição, coisa do passado. Não estou negando a forma estrangeira
também... Mas digo nacional como conceito ligado a uma libertação da
dependência cultural, nacional como afirmação de valores de libertação e
emancipação política e econômica.
375
O que temos acima pode ser relacionado com a própria construção gramsciana
sobre a necessidade de intelectuais que saibam e que conheçam o terreno onde estão
pisando. Até mesmo a concepção de “folclore” de Peixoto lembra bastante a visão crítica
do pensador italiano. Era urgente que os artistas se livrassem dos entraves “coloniais” e
partissem para algo que fosse sentido e compreendido. Ao refletir sobre o relativo sucesso
que os escritores russos faziam na Itália, Gramsci acaba demonstrando a falha dos
intelectuais e dos artistas em não conseguirem expressar, pelo fato de não serem e de não
se aproximarem do “povo”, os sentimentos “nacionais”. Este distanciamento tinha
375
PEIXOTO, Fernando. Teatro em Movimento. 3. ed. São Paulo: Hucitec, 1989, p. 72.
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conseqüências sérias pelo fato de não significar nada em termos de modificações
substanciais:
[...] Decerto, nada impede teoricamente que possa existir, inclusive hoje,
uma literatura popular artística; o exemplo mais evidente é o do êxito
“popular” dos grandes romancistas russos; mas não existe, de fato, nem
uma popularidade da literatura artística, nem uma produção local de
literatura “popular”, já que falta uma identidade de concepção de mundo
entre “escritores” e “povo”, ou seja, os sentimentos populares não são
vividos como próprios pelos escritores nem os escritores desempenham
uma função “educadora nacional”, isto é, não se propuseram e nem se
propõem o problema de elaborar os sentimentos populares após tê-los
revivido e deles se apropriado.
376
Novamente, sua reflexão considera possível e não-excludente o valor das
manifestações artísticas que conseguem alcançar sucesso de público. Além disso, exercem
uma função vital para Gramsci ao analisar as obras de arte: o caráter educativo, a
superação de um determinado estágio contraditório de desenvolvimento cultural para outro
mais orgânico e racional. Mas, pelo fato de serem escritores estrangeiros, demonstra a
fragilidade italiana neste campo. Por maiores que fossem estas obras e estes escritores, eles
não conseguiriam expressar de maneira completa e “nacional” as necessidades daquele
momento histórico específico em que as “classes populares” eram impelidas a buscarem
novas formas de expressão. Esta falta de identificação entre “escritores” e “povo” acaba
gerando uma série de manifestações inócuas no campo cultural, tendo mais elementos
desagregadores do que formativos de uma determinada consciência. Na continuidade de
sua reflexão, o pensador italiano apresenta mais uma série de conseqüências negativas
ligadas a este estágio complexo e contraditório da cultura italiana:
O que significa o fato de que o povo italiano preferencialmente os
escritores estrangeiros? Significa que ele sofre a hegemonia intelectual e
moral dos intelectuais estrangeiros, que se sente mais ligado aos
intelectuais estrangeiros do que aos “patrícios”, isto é, que não existe no
país um bloco nacional intelectual e moral, nem hierárquico nem (muito
menos) igualitário. Os intelectuais não saem do povo, ainda que
acidentalmente algum deles seja de origem popular; não se sentem
ligados ao povo parte retórica), não o conhecem e não sentem suas
necessidades, suas aspirações e seus sentimentos difusos; mas são, em
face do povo, algo destacado, solto no ar, ou seja, uma casta e não um
articulação (com funções orgânicas) do próprio povo. A questão deve ser
estendida a toda a cultura nacional-popular e não se restringir apenas à
literatura narrativa: o mesmo deve ser dito do teatro, da literatura
científica em geral (ciências naturais, história, etc.). [...] Tudo isso
significa que toda a “classe culta”, com sua atividade intelectual, está
separada do povo-nação, o porque o povo-nação não tenha
376
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 40. v. 6.
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demonstrado ou não demonstre se interessar por esta atividade em todos
os seus níveis, dos mais baixos (romances de folhetim) aos mais
elevados, como o atesta o fato de que procura os livros estrangeiros
adequados, mas sim porque o elemento intelectual nativo é mais
estrangeiro diante do povo-nação do que os próprios estrangeiros.
377
Não havia nada mais crítico para Gramsci do que um intelectual ser mais
“estrangeiro” dentro de sua própria casa do que um estrangeiro. Isto demonstrava o grau
máximo da dissociação existente entre os grupos “intelectuais” e as “classes populares”. O
desinteresse dos primeiros, satisfeitos dentro de suas “igrejinhas”, não era apenas uma
questão de esnobismo e elitismo, visto que estes nem do “povo” advinham e muito menos
se voltavam para ele. Era a expressão estrutural de uma sociedade que historicamente
nunca havia se preocupado com as condições mínimas para que determinadas classes
tivessem acesso a meios de produção e de recepção a tais manifestações. Como
conseqüência da ausência do “bloco nacional-popular” e da fragmentação dos diversos
setores responsáveis por esta ligação cultural, gerou um processo curioso de hegemonia
cultural estrangeira que passou a ser expressão e referência em relação aos sentimentos e as
necessidades do país.
Neste ponto, uma questão surge em relação às idéias contidas nas críticas de
Peixoto nos jornais Opinião e Movimento. Se existem, realmente (como no exemplo do
sucesso de Gota D’água, como na citação de Gramsci) “setores populares” ávidos para
participar ativamente do processo cultural brasileiro, indo além da separação histórica e, de
outro lado, artistas e intelectuais, no caso Fernando Peixoto, lutando para promover o
advento de um teatro “nacional-popular”, pautado na sensibilidade das “classes
trabalhadoras”, demonstrando as contradições e os dilemas da sociedade brasileira, qual a
razão de suas análises serem tão melancólicas diante da realidade que se apresentava no
final da década de 1970. Por qual razão esta determinada forma artística, tão responsável e
racional não conseguia vencer a batalha contra os teatros “comercial”, “burguês”,
“vanguardistas”, “alternativos” que em sua avaliação promoviam a “mistificação”, a
“mentira”, a “irracionalidade” e a “alienação” e, acima de tudo, estavam condenados
historicamente? Será que os intelectuais que estiveram engajados neste processo artístico
não estavam distanciados do povo, aquele mesmo que eles acreditavam colocar no palco e
educá-lo para tomar parte vital nas transformações de um futuro que estava por vir?
377
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 43. v. 6.
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A resposta da primeira pergunta fica explícita em todas as críticas publicadas nos
jornais que vimos até então. Fernando Peixoto foi um intelectual que buscou de todas as
maneiras demonstrar as várias dificuldades que o teatro brasileiro passava naquela
conjuntura. Por meio delas, fica claro perceber que a linha de pensamento e de ação que ele
defende não é a única. Várias outras se apresentavam para este duelo dentro da cultura
brasileira, sendo possível o triunfo de qualquer uma, visto que naquele momento os
caminhos ainda se mostravam abertos. Neste sentido, não é surpreendente que muita coisa
fosse aparecendo no meio deste processo: novos projetos com outras perspectivas,
radicalização na busca de formas cada vez mais irracionais e escapistas, outras radicais no
sentido de abandonarem o circuito comercial e partirem para outros espaços e formas de
produção, a abertura do mercado de trabalho na mídia televisiva, desilusões com a própria
“esquerda” ou o simples abandono de qualquer pretensão artística. O esvaziamento deste
projeto de um teatro “nacional-popular” pode ter ocorrido simplesmente pelo fato de outras
opções se mostrarem mais vivas e mais convincentes. Neste caso, pode ser enquadrado
como qualquer outro projeto em questão, nem melhor, nem pior, e que não conseguiu
medrar, assim como outras propostas que também acabaram sendo deixadas de lado. De
maneira direta, as críticas de Peixoto enfocam justamente este processo, que ele chama de
“crise”, mas que significou decisões cruciais e vitais para os rumos que a arte tomaria dali
para frente. A melancolia e o amargor de sua visão sobre o processo é plausível quando ele
suas pretensões serem descartadas e percebe que o teatro brasileiro, num momento
prestes de se ver livre da censura, não aproveitava a chance para seguir em frente com o
processo de conscientização, denúncia e transformação, mesmo dentro dos moldes
comerciais.
Em relação à segunda questão que surge em nosso trabalho, sobre a incapacidade
deste “teatro nacional-popular” oferecer elementos consistentes e populares para a sua
efetivação e continuidade, acaba se ligando com a terceira pergunta, sobre o
distanciamento dos intelectuais desta determinada corrente artística com o próprio “povo”.
Novamente, as reflexões de Gramsci demonstram a necessidade de qualquer movimento
artístico em fazer uma “auto-análise” crítica, severa e consciente com o intuito de
compreender, efetivamente, sem qualquer tipo de empolgação ou pretensão maior que a
situação, a sua inserção, sua importância, sua capacidade de comunicação e de
transformação diante da realidade. A descrição do processo do surgimento e da elaboração
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de uma “nova cultura demonstra ser muito mais do que a vontade e o esforço de
intelectuais isolados e distantes da realidade que se apresentava:
Parece evidente que, para ser exato, deve-se falar de luta por uma “nova
cultura” e não por uma “nova arte” (em sentido imediato). Talvez nem
sequer se possa dizer, para ser exato, que se luta por um novo conteúdo
da arte, que este não pode ser pensado abstratamente, separado da
forma. Lutar por uma nova arte significaria lutar para criar novos artistas
individuais, o que é absurdo, que é impossível criar artificialmente os
artistas. Deve-se falar de luta por uma nova cultura, isto é, por uma nova
vida moral, que não pode deixar de ser intimamente ligada a uma nova
intuição da vida, até que esta se torne um novo modo de sentir e de ver a
realidade e, conseqüentemente, mundo intimamente relacionado com os
“artistas possíveis” e com as “obras de arte possíveis”.
378
Uma coisa é acreditar fazer um teatro nos moldes do “nacional-popular”. Outra
coisa é fazer este tipo de teatro. Se ele realmente existe ou existiu na prática levando em
conta todas as suas significações e conseqüências é algo difícil de se afirmar. Talvez a
“teoria” estivesse muito distante da “prática” vivenciada e percebida por estes artistas
teatrais politicamente engajados no final dos anos 70, tanto do grupo de Peixoto como do
grupo de seus críticos. De certo modo, as transformações abordadas acima exigiam dos
partidários da “nova cultura”, uma profunda e ampla participação de vários setores da
população. Na realidade, o que temos acima não diz respeito apenas a questões estéticas ou
filosóficas de um determinado espetáculo, mas sim à luta pelo nascimento de uma “nova
vida”, de um “novo mundo”, de um “novo homem” com a possibilidade de ter a história
nas mãos e de fazer valer toda a luta de seus predecessores que se sacrificaram no passado.
Esta aspiração por um teatro ligado organicamente às “classes populares” acaba, nas
críticas de Peixoto, sendo muito mais fruto de uma vontade não saciada, do que uma
descrição segura e certa do que efetivamente se via em cena, principalmente quando vemos
que ele não concordava com quase nada que estava sendo feito no país. Sem dúvidas, não
devemos esquecer que ao escrever suas críticas, ele definia, dentro de um universo
praticamente infinito, aquilo que considerava importante e relevante para o seu público-
leitor-espectador. Provavelmente concordava com muita coisa, mas a sua preocupação
constante era em demonstrar os problemas, os defeitos e os limites de uma cena teatral com
a qual não comungava e que tinha razões de sobra para isso. Por isso as demonstrações
francas, sinceras e incisivas que fez durante todo o período analisado em nosso trabalho.
Era algo que ele ainda podia fazer dentro de um espaço específico, a “imprensa
378
GRAMSCI, Antonio. Cadernos do Cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002, p. 70. v. 6.
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alternativa” que também, como vimos na primeira parte de nosso trabalho, apresentou
sérias dificuldades na continuidade de seu papel.
Mas não há dúvidas do esforço por parte de Peixoto na luta por esta “nova
cultura”. Além de suas críticas buscarem sempre demonstrar o teatro inserido numa
conjuntura precária e de difícil compreensão, ele não abdicou de seus pontos de vista,
apesar de sempre colocá-los em xeque, permanecendo numa atitude dialética e, como ele
diz, “brechtiana” - a possibilidade de sempre duvidar. Fernando Peixoto não “santifica” e
nem “demoniza” a classe teatral em si. Ao mesmo tempo em que ele critica a atitude dos
artistas que ficavam nas mesas dos bares se divertindo enquanto uma minoria estava na
luta, defendendo e lutando pelos direitos, ele lembra de outros, pressionados pelas grandes
empresas de comunicação, que acabavam entrando no jogo, sem nenhuma proteção ou
regulamentação, iludidos por altos salários e pela quantidade de cartas que recebiam das
fãs. Ao mesmo tempo em que via a classe artística como culpada de toda apatia, ele não se
esquecia de toda a pressão que a mesma sofria inserida numa situação cada vez mais
exigente e excludente.
Consciente desta situação, no início de 77, mesmo acreditando na possível
reversão do quadro, ele delimita o alcance e a possibilidade destes artistas efetuarem um
teatro compromissado, autêntico e crítico. Compreende a dificuldade e a irracionalidade de
uma atitude extremista, sem cuidado e sem reflexão. Se haviam vitórias e sucessos como
Gota D’Água, O Último Carro e Ponto de Partida, por exemplo, eram em razão da
capacidade e da experiência de seus autores, produtores e diretores que sabiam até onde
podiam avançar. Caso contrário cairia no erro que ele aponta da seguinte maneira:
Mas o teatro existente é o teatro permitido. Julgar qualquer tipo de
produção fora desta perspectiva histórica concreta seria assumir uma
postura falsa, marcada pelo radicalismo e pelo voluntarismo. Alguns
caíram nesta armadilha. Isto, sobretudo, porque a crítica de teatro, apesar
do esforço de alguns, continua perplexa diante de cada espetáculo que
propõe valores concretos; não possui compreensão nem parâmetros para
uma avaliação justa da linguagem de um espetáculo, conseguindo na
melhor das hipóteses, esboçar uma abordagem que refere–se
exclusivamente ao texto literário utilizado pelo encenador.
379
“Nem tanto ao mar, nem tanto à terra”. Se algo que Peixoto reitera em seus
textos é esta atitude consciente da realidade, mas que,a o mesmo tempo, não abre mão de
seus valores originais. Ainda que ele fosse, nas críticas, radical ao analisar uma série de
379
PEIXOTO, Fernando. Em busca da realidade perdida. Jornal Movimento, 17/01/1977, p. 15.
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situações do teatro brasileiro, este radicalismo levado à cena seria inútil por duas razões
simples: a primeira, um público ainda incipiente e limitado. A outra, a censura, que não
permitia este tipo de espetáculo dentro dos limites comerciais. Portanto, qual a utilidade
disso? Nenhuma, analisada pelo viés de que uma peça só é uma “peça” a partir do
momento que é encenada e que conta com a presença do público. E por fim, o
“radicalismo” e o “voluntarismo” não escapariam do isolamento e da falta de condições
materiais para continuarem o seu trabalho.
A presença espontânea e regular do público nos espetáculos era um sinal de que as
vitórias isoladas podia ser uma realidade hegemônica e constante. Isso explica a sua
insistência, mesmo que bastante amortecida, em abordar repetidamente as tarefas que
um teatro coerente e conseqüente deveria efetuar. A repetição, um método pedagógico
“gramsciano”, era a demonstração de um espírito combativo que tentava da maneira mais
eficiente possível passar a sua mensagem:
Nos limites do possível, aparentemente alargados, algumas vitórias
parciais, (poucas), indicam, entre outras coisas, que existe um público
pronto para prestigiar e estimular todo o espetáculo que a partir de um
confronto crítico com a realidade discuta seus problemas específicos,
trazendo para a cena a análise do comportamento dos homens numa
determinada situação histórica, mergulhando nas raízes nacionais de
nossa cultura. E que através de uma constante procura de linguagem,
assuma uma perspectiva popular, propondo uma reflexão conseqüente.
Esta busca de emancipação cultural, a luta pela defesa da identidade
nacional cercada de inimigos por todos os lados, a retomada do povo e
dos problemas das classes subalternas como substantivo do discurso
teatral, marcaram 76 como um ano de batalhas incansáveis.
380
1976 foi um ano de lutas. Não apenas por um teatro crítico, mas que retomou os
problemas das “classes populares”, denominadas aqui, por Peixoto (não gratuitamente), de
“subalternas”. Além disso, a preocupação em torno de um projeto pela emancipação
cultural das massas. No final de seu texto, um chamado direto e claro para a continuação
deste processo, urgente e necessário: “Hoje, mais do que nunca, existe um trabalho teatral
exposto ao público. E existe uma tarefa de parcial libertação da cultura nacional, que ganha
sentido e significado. E que exige o debate, a troca de experiências e idéias. Tarefas para
77”.
381
Novamente, em dezembro de 1977, na crítica citada anteriormente intitulada
“Em aparente estado de graça”, Peixoto reconhece que por mais que existissem alguns
380
Ibid.
381
PEIXOTO, Fernando. Em busca da realidade perdida. Jornal Movimento, 17/01/1977, p. 15.
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208
espetáculos que estavam diretamente ligados ao “nacional-popular”, tudo estava muito
distante do ideal. Os números apresentados por ele são a prova de sua desolação. Continua
provocador e polêmico apontando aquilo que não concorda e vê com ressalvas:
O ano de 77 chega ao fim com o movimento teatral em aparente estado
de graça: 63 espetáculos em cartaz nos dois principais centros de
produção do país (34 em S. Paulo e 29 no Rio). Mas quantidade não
significa qualidade. Quatro ou cinco espetáculos em S. Paulo, e também
quatro ou cinco no Rio, traduzem alguma inquietação ou ao menos
vontade de tímida pesquisa de linguagem ou indireto confronto crítico
com a realidade, dentro dos limites estreitos e constrangedores do
permissível. Nada de especialmente significativo. Espetáculos que
surgiram e desapareceram durante os outros onze meses do ano apenas
reforçam, quando lembrados, este melancólico panorama.
382
Dentre os 63 espetáculos em cartaz no eixo Rio-São Paulo, ele afirma que no
máximo quatro ou cinco correspondiam a um teatro corajoso e engajado. Se refletirmos a
partir destes dados, temos a impressão que Fernando Peixoto, como crítico, ficou numa
situação próxima do isolamento. Pouca coisa que via o agradava e ficava cada vez mais
difícil continuar a própria batalha que travava dentro do teatro brasileiro. Deve ficar claro
que o “jornalismo” não era sua única profissão, tinha a possibilidade de utilizar de outros
meios para colocar “em cena” aquilo que acreditava e via como necessário. Mas, por outro
lado, as constatações “melancólicas” são ligadas diretamente às outras experiências fora
das redações dos jornais.
Nesta crítica, a única grande novidade (ainda que de maneira breve e discreta) que
ele via surgir na “nova geração” de artistas que despontavam naquele momento é o grupo
Asdrúbal Trouxe o Trombone. Ao retomar o que ele chama de vivacidade e de ironia, fez
com que ele acreditasse que, talvez, este poderia ser um caminho para o futuro. Sobre a
questão da presença do público nos espetáculos, ele demonstra a sua experiência não
deixando se enganar por “ilusões quantitativas”, que as próprias “kombis” não passavam
de paliativos e que não resolviam em absolutamente nada a crise profunda que parte do
teatro brasileiro passava:
Mas neste fim de 77, muitos teatros estão lotados. As bilheterias como o
teatro, respiram em tenda de oxigênio: a chamada Campanha de
Popularização do Teatro” do SNT, que na verdade só populariza mesmo a
“Kombi” (que vende os ingressos nas ruas), produto da Volkswagen do
Brasil, mantém a ilusão de vida. É verdade que prova também que
pagando apenas vinte e cinco cruzeiros, um quarto do preço normal do
ingresso, o público (não o povo) comparece em massa, ao menos aos
espetáculos que oferecem maior atração. Mas, em nível de estrutura
382
Id. Em aparente estado de graça. Jornal Movimento, 26/12/1977, p. 17.
Capítu
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financeira, a campanha ratifica o engano, mistifica uma situação falsa.
Em dezembro, se torna uma tradição, o moribundo respira. 77 fica
parecendo até que foi um mar de rosas. Não foi: o passou, em termos
de teatro, de um mar de escombros. Mas, apesar de tudo, maior presença
de público sempre é extremamente positivo.
383
Teatros lotados graças às campanhas de popularização. A presença do público,
não do “povo”. Para completar, uma quantidade ínfima de espetáculos conscientes e
preocupados em promover uma reflexão crítica e transformadora. Ao tratar da
inexpressividade existente na cena teatral brasileira ele refere-se aos próprios diretores que
sem perspectiva de uma participação mais crítica e polêmica, acabavam retornando aos
clássicos como Pirandello, Miller, Sartre, Beckett e Gorki. Ao colocar estes espetáculos em
cena, sempre havia a possibilidade de trazerem aspectos e leituras sob uma nova ótica,
ligada ao presente e ao momento em que viviam. Mas estes espetáculos significavam muito
mais, significavam a falta de opção e de textos, como Peixoto afirma em sua análise:
Um movimento teatral vivo e livre deveria ter lugar para este válido e
sempre necessário tipo de proposta. O terrível é que tudo se reduza a isso.
Em todos estes espetáculos, a repetição, extremamente cuidada, até
mesmo aperfeiçoada, de fórmulas experimentadas. Nada que
efetivamente ampliasse o debate ideológico, nada, ou quase nada, capaz
de provocar uma reflexão crítica mais conseqüente e transformadora.
Apesar da relativa qualidade, um teatro involuntariamente amortecido e
sem virilidade. Portas fechadas, as vítimas sobrevivem, apenas. Num
desgaste de energias sem dúvida irrecusável, mas também sem vida
limitado. É óbvio que foram esforços. E que não cabe, aos que produzem
e realizam espetáculos, a culpa desta relativa inutilidade. É o que tem
sido possível fazer, enquanto a abertura é um sonho.
384
Peixoto acaba fazendo uma auto-crítica em relação ao seu próprio trabalho quando
lembramos que ele mesmo encena Mortos Sem Sepultura de Sartre em 1977. Como vimos
num momento anterior, desde a tradução até a própria construção cênica, ele se esforça
para dar ao espetáculo um ar mais “vivo e “atual”. Da mesma forma que este tipo de
teatro representava o que era possível fazer, as suas críticas sempre buscavam apontar o
que poderia fazer mais ainda. Como assinalamos anteriormente, sobreviver, neste sentido,
poderia até ser considerado uma vitória, mas não deixava de ser um dos efeitos da derrota
(momentânea?) deste teatro “crítico”, “conseqüente” e “transformador”.
Rosangela Patriota, num determinado momento de seu livro sobre Vianinha e,
principalmente sobre o significado da encenação de Rasga Coração em 1979 faz uma
383
PEIXOTO, Fernando. Em aparente estado de graça. Jornal Movimento, 26/12/1977, p. 17.
384
Ibid.
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210
análise precisa e repleta de questões sobre o significado desta “desilusão” ocorrida em
vários setores artísticos engajados durante o período da ditadura militar:
Apesar de todas as ressalvas, pertinentes ou não, ao processo de
redemocratização, ocorrido em 1979, as liberdades constitucionais,
paulatinamente, voltaram a fazer parte da vivência cotidiana do cidadão
comum. Essa nova realidade produziu outros impasses: quais seriam as
novas bandeiras de luta e de que forma encaminhá-las? Na verdade, não
se pode esquecer que a dramaturgia da década de 70 foi profundamente
marcada por temas e autores que, direta ou indiretamente, dialogaram
com as discussões ocorridas no âmbito artístico, a partir de meados dos
anos 50 e durante toda a década de 60. Não se deve ignorar que nesse
universo estético e teórico surgiram dramaturgos, diretores, atores, atrizes
e críticos afinados com os diversos trabalhos desenvolvidos no período.
Eles foram considerados, no interior da história do teatro brasileiro, como
responsáveis por uma nova maneira de interpretar a realidade, bem como
faziam parte de um dos momentos de tentativa de “conscientização da
sociedade”. Este projeto, no entanto, foi derrotado no âmbito da luta
política, e a partir daí surgiram experiências qualificadas como “arte de
resistência”. Assim, em razão de questões conjunturais, foram produzidas
peças teatrais que exaltavam bandeiras como: “liberdade”, “participação”,
“denúncia” e “alternativas de combate à repressão”.
385
Os questionamentos da autora são de suma importância e têm um sentido
semelhante quando apreendemos os dilemas apresentados por Peixoto em suas críticas. A
questão sobre as “bandeiras de luta” que iam empunhar após a abertura política e como
encaminhá-las a ponto de continuarem em seu processo de aprimoramento de suas
qualidades e de seus objetivos. Estas manifestações engajadas politicamente não surgiram
por acaso na década de 1970, mas tinham uma história e uma trajetória de quase vinte
anos,
386
onde durante todo este período propiciou a consolidação de uma cena teatral
combativa e extremamente consciente de seu papel no processo de conscientização e
transformação da sociedade. Deixaram uma marca indelével na história do teatro
brasileiro, tiveram ressonância e sentido perante a crítica e ao público teatral brasileiro,
385
PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999,
p. 49.
386
“Responsável pela renovação da dramaturgia e da encenação no teatro brasileiro desse período, a linha
nacional e popular de criação no Arena teve como parâmetro inicial a peça Eles não usam Black-tie, de
Gianfrancesco Guarnieri, de 1958. A representação ali realizada do operário e da favela sugeria que o país
real, despido de idealizações e de estereótipos, podia efetivamente ser representado no palco com as
ferramentas estéticas do realismo dramático, e que isso se constituía no primeiro passo para uma crítica ao
quadro de miséria, de alienação e de exploração da força de trabalho no país”. BETTI, Maria Sílvia.
Nacional e Popular. In: GUINSBURG, J.; FARIA, João Roberto; LIMA, Mariângela Alves de. (Orgs.).
Dicionário do teatro brasileiro: temas, formas e conceitos. São Paulo: Perspectiva: Sesc São Paulo,
2006, p. 194.
Capítu
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211
apesar de não terem conseguido ampliar o mesmo no ponto em que acreditavam ser
possível.
O confronto com a idéia da “pós-modernidade” e a demonstração de sua
falibilidade, presente tanto nos palcos como nas idéias e nas discussões políticas,
demonstra o recrudescimento das aspirações revolucionárias pautadas na “luta de classes”.
O advento de uma nova forma de ver o mundo “fragmentado”, “instantâneo” e “particular”
são tiros certeiros à concepção pautada num processo homogêneo e unitário de
conscientização e de luta política. O inglês Terry Eagleton em seu livro “A idéia de
Cultura”, ao buscar as diferenças históricas dos significados de “civilizão” e “cultura”,
leva a discussão para o campo da arte, discutindo o confronto da arte “moderna” com a
“pós-moderna”, o que muito nos auxilia para apreendermos o embate entre as diferentes
visões artísticas do Brasil no final da década de 1970:
A história das conseqüências disso para as próprias artes na medida em
que se atribui a elas uma importante significação social de que,
realmente, são por demais frágeis e delicadas para sustentar,
desintegrando-se a partir de dentro ao serem forçadas a representar Deus
ou a felicidade ou a justiça política faz parte da narrativa do
modernismo. É o pós-modernismo que procura aliviar as artes dessa
opressiva ansiedade, instigando-as a esquecer todos esses ominosos
sonhos de profundidade, deixando-as assim livres para uma espécie
razoavelmente frívola de independência. Bem antes disso, entretanto, o
romantismo havia tentado o impossível ao buscar na cultura estética tanto
uma alternativa à política como o próprio paradigma de uma ordem
política transformada. Isso não era tão difícil como parece, visto que, se o
propósito toda da arte era a sua falta de propósito, então até mesmo o
mais extravagante esteta era também em certo sentido o mais dedicado
revolucionário, comprometido com uma idéia de valor como
autovalidação que constituía o próprio reverso da utilidade capitalista. A
arte podia agora modelar a boa vida não por meio de uma representação
desta, mas simplesmente sendo si mesma, pelo que mostrava e não pelo
que dizia, oferecendo o escândalo de sua própria existência inutilmente
autodeleitante como uma crítica silenciosa do valor de troca e da
racionalidade instrumental. Essa elevação da arte a serviço da
humanidade, porém, era inevitavelmente autodestrutiva, visto que
conferia ao artista romântico um status transcendente em desacordo com
a significação política desse artista, e visto que, na armadilha perigosa de
toda utopia, a imagem da boa vida veio gradualmente a representar sua
real inacessibilidade.
387
Para Eagleton, o ato de conferir certa significação e valor social (e,
conseqüentemente, político) para a arte é típico do pensamento “moderno”, que forjou
desde o final do século XIX, uma série de correntes estéticas e artistas compromissadas
387
EAGLETON, Terry. A idéia de cultura. São Paulo: UNESP, 2005, p. 29-30.
Capítu
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212
com a transformação dos homens em seu tempo. Contudo, estas atribuições eram frágeis e
complexas de serem levadas adiante, representavam um desafio grandioso e sempre
conflitivo em transpor para o campo artístico toda a complexidade e as contradições
sociais. Ao voltar-se ainda mais no tempo, no caso para o “romantismo” do século XIX, o
autor descreve uma série de radicalizações estéticas que atacavam diretamente a lógica de
uma sociedade capitalista em consolidação (a arte pela arte, a fuga do mundo, a crítica
silenciosa ao valor de troca). Porém, estas tentativas se mostraram limitadas pelo seu
caráter autodestrutivo e escapista. A imagem ideal de que faziam delas mesmas não
correspondia com a realidade concreta, que continuava a mesma em seu trottoir: dura,
severa e impassível à admoestações. O “pós-modernismo” é analisado por Eagleton de
maneira semelhante, pois ao retirar da arte este fardo de ser social e política, permite a ela
uma independência “frívola” e sem objetivos, um retorno da “arte pela arte”. Porém, esta
atitude (mesmo que não se julgue em tais termos, que é tão política como qualquer outra)
não consegue expandir-se numa direção mais objetiva e real. Acaba se isolando e
tornando-se cada vez mais misteriosa e isolada em seus manifestos e mistificada por
elucubrações teóricas.
Efetivamente este é um conflito pico presente nas críticas de Peixoto. Aqueles
espetáculos “irracionais”, “subjetivistas” e cada vez mais distanciados (no sentido
negativo) de preocupações políticas não eram apenas manifestações artísticas isoladas.
Faziam parte de uma concepção de mundo que surgia e que tinha implicações na definição
da política brasileira após a abertura. Se Peixoto estava certo ou não, é algo que não cabe a
nós afirmar visto que, passados quase trinta anos de sua última crítica publicada no jornal
Movimento, talvez tenhamos uma visão negativa demais da realidade brasileira atual. Num
depoimento que na revista “Cultura e Vozes” no ano de 2000, ele demonstra a
continuidade de sua crítica em relação à arte, especialmente ao teatro, das dificuldades em
encontrar bons textos para serem montados:
Na tentativa de comentar o que está acontecendo com a dramaturgia
brasileira utiliza-se, hoje, o termo crise. Eu não sei se a palavra exata
seria esta, porque ela é muito relativa. De qualquer modo, não se encontra
hoje uma dramaturgia que esteja tratando da realidade brasileira, de um
enfrentamento crítico, em relação ao cotidiano e à vida das pessoas.
Lógico que isso não deve ser generalizado, porque existem textos que
procuram dialogar com questões atuais, mas através de outros recursos,
às vezes até usando a apelação.
Não estou com coisas muito concretas na cabeça, mas veja: não sou, hoje,
um diretor de vanguarda, e não me encontro com a dramaturgia que está
sendo produzida. Por isso, me pergunto: será que a palavra de hoje seria
Capítu
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213
crise? Prefiro dizer que um desencontro, porque produção
dramática no Brasil, mas o que está sendo escrito não motiva a sua
colocação em cena. Por exemplo: acontece comigo e com a maioria dos
diretores de maior projeção hoje, de vanguarda, que o considerados a
novidade, o novo, o mais perturbador; estamos todos buscando o quê?
Textos clássicos. Por quê? Muitas vezes, parece-me que não estamos
encontrando textos escritos dentro da linguagem cênica que
desenvolvemos.
388
O desencontro entre dramaturgos e diretores, assinalado por Peixoto no ano de
2000, é parte de um processo que, sem dúvidas, surgiu num momento de crise. E esta crise
teve em suas críticas nas ginas de jornal uma expressão singular e extremamente
significativa. Ao demonstrar, vinte anos depois, a crença num teatro realmente responsável
e consciente de seu papel, transparece a possibilidade de ainda fazer algo diferente, apesar
do cenário não ser mais tão propício como se imaginava anteriormente. A sua fala aqui se
liga a um trecho extremamente significativo de Eagleton em Ideologia,
389
ao mostrar a
capacidade das pessoas se rebelarem contra o comum, o habitualmente aceito e o
aparentemente inexorável:
[...] A crítica da ideologia, portanto, supõe que ninguém jamais está
inteiramente iludido que aqueles que se encontram sob opressão
alimentam, mesmo assim, esperanças e desejos que só poderiam ser
realizados de maneira realista, pela transformação de suas condições
materiais. Se por um lado rejeita o ponto de vista externo da
racionalidade iluminista, por outro compartilha com o Iliminismo essa
confiança fundamental na natureza moderadamente racional dos seres
humanos. Alguém que fosse totalmente tima da ilusão ideológica
sequer seria capaz de reconhecer uma reivindicação emancipatória sobre
si; e é porque as pessoas não param de desejar, lutar e imaginar, mesmo
nas condições aparentemente mais desfavoráveis, que a prática da
emancipação política é uma possibilidade genuína. Não se trata de
afirmar que os indivíduos oprimidos secretamente acalentam alguma
alternativa pronta para a sua infelicidade; significa que, uma vez que se
tenham libertado das causas desse sofrimento, devem ser capazes de olhar
para trás, reescrever suas histórias de vida e reconhecer que aquilo de que
desfrutam agora é o que teriam desejado anteriormente, caso tivessem
podido estar conscientes disso. Uma prova de que ninguém é,
ideologicamente falando, um tolo completo, é o fato de que as pessoas
ditas inferiores devem realmente apreender a sê-lo. Não é suficiente para
uma mulher ou um colono serem definidos como uma forma de vida
inferior: é preciso ensinar-lhes ativamente essa definição, e alguns deles
revelam-se brilhantes bacharéis nesse processo. É surpreendente quão
388
PEIXOTO, Fernando. Teatro: Personagens do Teatro Brasileiro: Fernando Peixoto e Walderez de Barros.
Entrevista concedida à Alcides Freire Ramos. Cultura Vozes. Petrópolis: Vozes. n. 3, ano 94, v. 94,
2000, p. 176.
389
EAGLETON, Terry. Ideologia. Uma introdução. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista /
Boitempo, 1997.
Capítu
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214
hábeis, engenhosos e perspicazes podem ser os homens e mulheres em
provar para si mesmos que são incivilizados e burros. Em certo sentido, é
claro, essa “contradição performativa” é a causa do desânimo político;
nas circunstâncias adequadas, porém, trata-se de uma contradição que
pode levar uma ordem dominante à ruína.
390
O trecho acima demonstra que por mais que as possibilidades de emancipação e
transformação política estejam distantes de um ideal muitas vezes imaginado, Eagleton
afirma que isto não é algo “natural” e muito menos “eterno”. Da mesma forma que ocorreu
um longo e conflituoso processo de “aprendizagem” para que as pessoas conseguissem
chegar a tal ponto de apatia e desinteresse, existe a vontade de alterar a situação de vida,
ainda que os meios sejam “misteriosos” e “longínquos”. Há o desejo, a luta e a imaginação
e por isso mesmo a possibilidade real de alterar um determinado quadro. A abertura
política no final da década de 1970 era um processo que estava na proeminência de ser
iniciado e Fernando Peixoto sabia disso. Talvez isso aumentasse a sua angústia pelo fato de
que, justamente no momento em que poderiam encenar tudo que por anos ficou proibido, a
realidade e a preocupação da “classe teatral” era outra. A vontade não era mais a mesma e
outros caminhos, tão citados, criticados e combatidos por Peixoto desde Opinião, já eram
percorridos. De toda maneira, suas análises e suas concepções expostas nos textos eram ao
mesmo tempo um alerta e uma saída. Era inconcebível acreditar que todos os problemas, a
partir dali, seriam resolvidos. Por isso, a confiança de que sempre algo poderia ser feito
enquanto as contradições não estivessem resolvidas. Havia a possibilidade de ultrapassar
uma determinada situação, da mesma forma que aquela havia superada uma outra anterior.
Era tudo uma questão de continuidade, ainda que quase solitária, na defesa de seus valores.
A continuidade de seu papel como um “intelectual” engajado no final da década de 1970.
390
EAGLETON, Terry. Ideologia. Uma introdução. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista /
Boitempo, 1997, p. 13-14.
Como fazer, pois, para estudar a
história? Devemos nos limitar
aos fatos que são fecundos em
termos de conseqüências? Mas,
no momento em que tais fatos
nascem, como se faz para saber
sua fecundidade futura? A
questão é realmente insolúvel.
Antônio Gramsci
C
C
O
O
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C
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U
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Ã
O
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Conclusão
ConclusãoConclusão
Conclusão
216
Fernando Peixoto, ao optar participar da “imprensa alternativa” como crítico
teatral no final dos anos de 1970, tinha a consciência tanto dos limites como o de seu
campo de ação. Limites, por todas as dificuldades inerentes de fazer parte deste setor da
imprensa, às dificuldades econômicas por quais passavam decorrentes dos mecanismos que
o governo militar impunha, como a “censura prévia”, que acabava inviabilizando as
publicações. Isto era bastante prejudicial ao relembrarmos que os jornais Opinião e
Movimento, mesmo sendo considerados “alternativos”, não eram publicações
amadorísticas e “marginais”. Ambas tinham um respeitado e influente conselho editorial e
de redatores, dispunham de mecanismos de impressão e distribuição profissionais e tinham
objetivos comerciais e mercadológicos. Efetivamente, a pressão que ambos sofreram neste
campo já nos propicia uma visão inicial da força deste estado autoritário sobre estas
iniciativas a ponto de causar abalos constantes e consideráveis.
Outro ponto deve ser salientado e, de certa forma, é um dado relevante quando se
trata de entender os limites destas publicações em relação ao funcionamento interno das
mesmas. Havia neles toda uma disputa dos diversos grupos de “esquerda” dentro dos
próprios jornais que contribuíam ainda mais para uma situação conflituosa e tensa entre os
seus integrantes. Estar dentro destas iniciativas (e continuar tendo um trabalho sistemático
e coerente) representava enfrentar adversários internos e externos, exigindo um profundo
senso de responsabilidade e de adequação a estes fatores. Por mais que a “imprensa
alternativa” surja naquele momento como opção para aqueles jornalistas, artistas e
intelectuais que não tinham espaço na “grande imprensa”, não se pode considerar, por
causa dessa generalização, que este setor era algo genuinamente democrático e aberto a
contestações e discordâncias. Ainda que suas bandeiras de luta tivessem a “democracia”
como o grande objetivo, o que se tinha muitas vezes era uma nova relação de poder, ainda
mais restrita e não menos violenta, entre os colegas de redação. Os “rachas” constantes e
até mesmo “golpes” em busca do controle destas iniciativas eram coisas que faziam parte
daquele jogo, algo quase intrínseco em um espaço onde as opções políticas e ideológicas
não significavam apenas uma postura intelectual, mas de atitude e da própria concepção do
funcionamento e da função do jornal. De toda forma, a variedade de “jornais alternativos”
e dos diversos segmentos sociais “representados” por eles demonstrava o nível de
separação e de distanciamento das bandeiras de lutas e de contestação que existiam na
década de 1970.
Conclusão
ConclusãoConclusão
Conclusão
217
Este último ponto levantado, sobre a variedade de lutas que se instaura na
sociedade brasileira naquele momento, provavelmente, não impressionava Fernando
Peixoto. A fragmentação, o individualismo, a irracionalidade e o “voluntarismo” eram
coisas que ele combatia veementemente em seus artigos. A sua crítica não se concentrava
na luta em si que estes diversos grupos travavam no campo da imprensa, mas era em
relação à fragmentação de objetivos por parte dos setores mais amplos e de oposição da
sociedade brasileira. Principalmente naquele instante de transição, no final dos anos 70,
que apontava para a transição e para o retorno das liberdades democráticas. Ele acreditava
numa união mais orgânica e coerente destes diversos setores sociais em busca de uma
transformação radical, “nacional e popular”, capaz de aglutinar e de aplainar as
discrepâncias dos setores oposicionistas dos quais também fazia parte. Era necessária uma
centralidade de idéias que tivesse uma força capaz de se estender e de ultrapassar os
ditames imediatos da crise. Ao escolher Opinião e Movimento, estes jornais, de certa
forma, correspondiam à sua necessidade naquele momento em falar para um determinado
público, principalmente aquele de que fazia parte: uma “classe média intelectualizada” e
também de oposição que tinha, naqueles jornais, a possibilidade de entrarem em contato
com uma perspectiva mais ao gosto de seu espírito “contestador” e “crítico”. Obviamente,
a simples “consciência” da situação brasileira não era o bastante, era preciso ir além. Estes
jornais, ainda lembrando de seus limites, sabiam que apenas eles não eram o suficiente,
mas tentavam, a partir de suas orientações, fazer o seu papel. Além disso, Opinião e
Movimento tinham características que acabavam por restringir um pouco mais a sua
amplitude de leitores. Como mencionado anteriormente, boa parte de seu corpo e
conselho editorial era formado por importantes figuras acadêmicas, artísticas e políticas
daquele momento no Brasil. Adiciona ainda que parte destes periódicos eram
“completados” por jornais estrangeiros, o que “aumentava” mais o nível das discussões e
dos debates travados nos jornais que tinham análises de conjuntura da política e da
economia internacional. Efetivamente, ainda que as pretensões destes fossem analisar a
sociedade brasileira como um todo em suas dissonâncias e contradições, seus redatores
sabiam que a distância entre eles (os intelectuais) e o povo (seu objeto de preocupação e de
análise) era grande a ainda impossível de ser vencida. De toda forma, dentro do círculo ao
qual se dirigiam, eles eram peças importantes e correspondiam, na medida do possível, aos
anseios dos mesmos.
Conclusão
ConclusãoConclusão
Conclusão
218
Mas, tratando agora de seu campo de ação, nestes jornais se produziu uma série de
textos e de reflexões que foram essenciais naquele momento de repressão. Demonstravam
a existência e a resistência de um pensamento oposicionista, contestador e crítico em
relação à realidade brasileira. A censura prévia existente em ambos os jornais era um bom
indicativo do incômodo que seus textos e análises causavam nos militares e naqueles que
apoiavam o regime ditatorial. Ainda que com todos os percalços, tinham um papel a
cumprir e tinham conseguido abrir um espaço considerável no mercado editorial brasileiro,
de um jornalismo que não tinha a intenção de ser imparcial em suas reflexões e restringir-
se a noticiar fatos. Pelo contrário, buscavam demonstrar abertamente suas propostas e suas
idéias, questionando habilmente a pretensão fria e factual da “grande imprensa”. Neste
caso, a clara demonstração do direcionamento “político” de seus textos acabavam tendo
dois lados que se complementavam. Por um, limitavam, restringiam e afastavam os leitores
“apolíticos”, aqueles acostumados com um determinado jornalismo “neutro” e “indolor”.
Mas por outro, ganhavam pontos ao demonstrar de maneira honesta, sem jogos de
linguagem ou mensagens ocultas, o real motivo de sua publicação. De certa forma, os
organizadores destes jornais sabiam que, aqueles que os liam, liam e sabiam exatamente o
que estavam lendo. Não eram leitores desavisados ou simplesmente ávidos por
informações, eram leitores que buscavam uma discussão mais profunda dos temas e que
acreditavam em determinadas caminhos para solucionar os problemas que assolavam o
país.
Efetivamente, o tempo destas publicações não se estenderia anos 80 adentro.
Fosse por questões internas e econômicas, ou por razões de mudança na configuração e nas
crenças políticas de seus leitores. Como apresentamos no primeiro capítulo, eles acabavam
se definhando e perdendo a relação viva que tinham em relação aos acontecimentos e aos
seus objetivos. Porém, pelo simples fato de não terem se mantido durante muito tempo não
quer dizer que simplesmente que estavam errados. É um equívoco banal para um
historiador, que tem os fatos subseqüentes aos acontecimentos em suas mãos, querer
encontrar as razões para a falência destas iniciativas que eram, acima de tudo, frutos de
escolhas intelectuais.
Nos anos 80, os encaminhamentos políticos se alteraram consideravelmente,
partindo muito mais para a questão do retorno das eleições diretas, reforçando a
pluralidade partidária e a liberdade de expressão no campo da imprensa, das artes e da
cultura. Mesmo que estes aspectos sejam interessantes e serem citados no momento da
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219
luta, para muitos daqueles que faziam parte inicialmente do Opinião e depois, do
Movimento, eles acreditavam na possibilidade de uma radicalização do processo, a
possibilidade de uma reviravolta política e econômica pautadas no socialismo que ainda
era válido e possível. O que está em questão para nós, historiadores, antes de qualquer
julgamento no sentido do “certo” ou do “errado”, é reconhecer que determinadas questões,
posteriormente e apressadamente jogadas na “lata do lixo” da história como “derrotadas”,
ainda estavam em jogo naquele momento, buscando resistir de acordo com as suas forças
intelectuais e físicas até o momento quando partiriam para novas formas de expressão.
Da mesma forma, as críticas teatrais de Fernando Peixoto demonstravam a sua
escolha política e artística, sempre inseridas numa conjuntura mais ampla onde não eram as
únicas possíveis. No final de 1973, ele descrevia uma série de tendências no campo da
cultura que estavam em voga naquele momento e que entravam em conflito com suas
reflexões sobre a relação orgânica da arte com a sociedade. Pelo fato de ser um brechtiano,
ligado a um teatro que aspirava ser responsável socialmente e assumidamente focado na
questão da resistência e da luta política, não é de se estranhar as suas críticas duras e
severas ao entrar em contato com manifestações que tinham o centro das atenções o
“indivíduo” em seu universo pessoal e subjetivo, com suas neuroses e crises ligadas a uma
interioridade contraditória, repleta de fantasmas e de soluções consideradas “ilusórias”.
Este avanço da cena “alternativa” no país fez com que Peixoto, seguidas vezes, refletisse
sobre as razões para este tipo de manifestação estar surgindo num país onde os grandes
problemas, em sua opinião, não estavam centrados no “indivíduo” e sim no sistema social
e econômico que fazia os homens serem o que eram.
Na realidade, o advento desta nova tendência no campo das artes, não era um
acontecimento isolado. De fato, só podia ser compreendida, mesmo com dificuldade,
dentro de um mundo onde os valores e as tradições (filosóficas, políticas, ideológicas)
gestados ainda no século XIX, como no caso do “marxismo”, e postos em prática durante
vários momentos e em vários locais no século XX estavam sendo questionados pelo fato de
não terem conseguido, na prática, livrar o homem de uma situação tenebrosa, ainda
desigual e fortemente contraditória. Porém, dentro da própria perspectiva existente nas
críticas de Peixoto, o que temos é uma defesa lógica e consciente no sentido de
demonstrar, ainda, a validade e a atualidade destas preocupações num país miserável e
repleto de desigualdades como o Brasil. Havia também a defesa de um teatro que buscasse
trazer para o palco estas questões, e este foi um papel interessante e importante que ele
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220
exerceu naquele momento. Ao invés da resignação, o que tínhamos eram tentativas de forte
apelo racional, algumas vezes emocional, para que a classe artística brasileira se alertasse
quanto aos perigos de abraçar estas concepções “mistificadoras” e que, para ele, não
resolveria de forma alguma os dilemas que a sociedade enfrentava como um todo.
Desta forma, o teatro “nacional-popular” foi um dos pontos mais discutidos por
Peixoto em suas críticas, tanto em Opinião como em Movimento. A todo o instante,
percebemos a preocupação em não apenas ampliar o público que assiste aos espetáculos,
mas também colocar no palco seus dilemas e suas necessidades, contribuindo assim para
uma consolidação do teatro no Brasil que, em suas reflexões, passava por uma crise
preocupante. A razão de sua preocupação é que, de um lado, o teatro se enveredava numa
perspectiva isolada, irracional e inconseqüente. De outro, o teatro brasileiro, após a
superação do estágio do “teatro de ator” da primeira metade do século XX, via-se ainda
muito preso e limitado a uma “estética burguesa tradicional” a la TBC, que teve início
ainda nos anos de 1940. Este padrão de qualidade europeu, acabou sendo durante muitos
anos um entrave para o desenvolvimento de outras formas, mais populares e ligadas à uma
estética genuinamente nacional. De certa forma, as críticas demolidoras que faz em relação
aos “clássicos”, especialmente à figura de Nelson Rodrigues, é um dos momentos mais
significativos ao demonstrar uma franqueza e uma sinceridade raras, possíveis dentro
daquele momento de disputa e de contestação, onde todos os argumentos e ataques eram
válidos no intuito de fazer valer a sua visão de mundo. Elas se enquadram num momento
em que não é apenas ele, Peixoto, que trata os seus contemporâneos de maneira áspera e
ruidosa os outros lados agiam de maneira semelhante e buscavam fazer valer as suas
perspectivas.
Além disso, esta crise teatral tinha outra conseqüência bastante séria e
preocupante para Fernando Peixoto. A de transformar e limitar a atividade teatral em mais
uma atividade comercial, onde as preocupações estéticas, artísticas e políticas se tornariam
acessórias e dispensáveis, desde que um determinado espetáculo gerasse público e,
principalmente, o lucro esperado. Inicialmente, não problema algum de um espetáculo
fazer sucesso em relação ao público. Isto é a intenção e a pretensão de qualquer artista que
põe seu trabalho em cena. Acrescenta-se ainda que o sucesso significa uma comunicação
efetiva e uma similaridade de interesses entre o artista e o seu público. Mas o grande
problema vislumbrado pelo crítico acontece a partir do momento em que o artista, ao
descobrir a “fórmula do sucesso”, se acomoda neste limite e passa a repetir
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incessantemente aquilo que dá certo, não permitindo, nem a ele e nem ao público, superar e
experimentar novos caminhos, novas possibilidades e novas lutas. A figura e a função do
“empresário”, neste ponto de vista, é algo preocupante para Peixoto. Pelo fato deste cargo
concentrar funções comerciais e artísticas causaria uma discrepância e um medo grande de
ousar e de incentivar grupos e espetáculos que não corresponderiam, num primeiro
instante, aquilo que não fosse obviamente um “fenômeno” de bilheteria. Desta forma, as
iniciativas mais discrepantes e dissonantes acabavam sofrendo muito para conseguirem
fazer frente à uma estrutura limitadamente econômica. Neste caso, o apoio e o patrocínio
oficial não são descartados e acabavam sendo uma saída viável no sentido de proporcionar
aos artistas e ao público espetáculos originais e menos “comerciais”, visando não apenas a
diversão pura e imediata, mas um trabalho de conscientização e de educação.
A própria função do crítico é fundamental no processo acima descrito. Ao ampliar
a sua análise para além da encenação, tanto para as condições de produção e de trabalho
como para os dilemas do público, passando ainda pelas relações entre teatro e outras
formas de comunicação naquele momento, Peixoto demonstra que a arte teatral exige um
esforço bem maior do que aquele momento em cima do palco. Não é limitada a um
conjunto de artistas, mas se estende para os diversos setores sociais e políticos, sendo por
isso mesmo uma arte em constante transformação e ligada organicamente ao lugar e ao
tempo em que é produzida. O crítico, neste caso, não se limita ao “teatro”, mas aos
aspectos culturais e políticos da sociedade, não expressando apenas um juízo estético,
pessoal e limitado Consciente de seu papel tenta estabelecer uma comunicação entre
artistas e seus respectivos públicos; num movimento dialético, tendo um substrato político
e estético que ele defende, o crítico torna-se ainda um “educador”. As reflexões de Peixoto
nas páginas dos jornais Opinião e Movimento são instigantes quando pensamos nesta
faceta possível de seu trabalho. Muitas vezes transparece a figura de um “sentinela”,
sempre atento e pronto a apontar os erros e as deficiências de sua geração, não hesitando
em seus questionamentos sempre violentos e suas reflexões quase sempre negativas sobre
o cenário teatral brasileiro em geral. Em alguns momentos o que temos é um discurso que
nos apresenta um quadro desolador e moribundo. Efetivamente se estava assim para ele,
não quer dizer que estava assim para os outros, porém era emblemática a percepção que ele
tinha. Significava um distanciamento e uma incompatibilidade clara entre as diversas
formas do fazer teatral no final dos anos de 1970. Seus referenciais, sempre preocupados
com um trabalho sistemático e responsável em relação à função social e política do teatro
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permitiam que ele tivesse essa visão, negativa, mas ao mesmo tempo combativa. Como
uma “sentinela” de uma determinada causa em luta com outras concepções que
simultaneamente apresentam suas “armas”, o crítico compreende que não como ser
diplomático e conivente naquele momento em especial. No “espírito da época” não cabia o
meio termo, a paciência e a parcimônia. Este “não esperar acontecer” é algo que emerge
nos textos e é justificável quando nos remetemos a algo que não dizia respeito somente ao
sucesso de um espetáculo, mas da consolidação de uma determinada forma de fazer e
apresentar estes espetáculos, da transformação, da ampliação e da participação do público
que os assiste. Obviamente, ao escolher um lado para defender, mesmo este sofrendo mais
baixas que o esperado, o compromisso e a coerência são elementos que devem ser levados
em conta na construção destas críticas.
Estas críticas são documentos que carregam em suas linhas as lutas de um crítico
teatral no final dos anos 70 e, também, as possibilidades ainda abertas naquele instante
peculiar da história do teatro brasileiro. As propostas apontadas por Peixoto na questão da
efetivação de um teatro “nacional-popular”, ainda que dentro do circuito comercial,
demonstram que mesmo incipiente, havia artistas e público aberto para tais manifestações
e que dependia da confluência de interesses e de práticas que tivessem este objetivo final.
Várias críticas de Peixoto tentam demonstrar a existência de condições propícias para a
continuidade desta linha teatral. Estas condições apresentadas são significativas por serem
uma espécie de sinais que as coisas poderiam sair do modo como ele imaginava. Em
primeiro lugar, uma riqueza e uma quantidade grande de manifestações teatrais populares,
em várias regiões do país e com um alto nível de elaboração e de qualidade. Por mais que,
muitas vezes, apontasse os limites das mesmas quanto à capacidade destas em escaparem
de um caráter regionalista e limitado em seus anseios políticos, era um sinal positivo
quanto à receptividade do povo em relação à arte teatral. Em segundo, uma série de
pensadores, de reflexões e de espetáculos numa linha de trabalho ligado ao “nacional-
popular” garantiam a sustentação e a continuidade de uma “evolução” cada vez mais
consistente. De toda maneira, não iniciariam do zero e podiam contar com uma reflexão
sedimentada e bastante poderosa e influente em suas formulações. E, por último, na
opinião do crítico, da importância do teatro “nacional-popular” para a própria
sobrevivência do teatro brasileiro, que em suas análises se via cada vez mais distante,
restrito e deslocado em relação às necessidades do público. Para Peixoto, nada o
incomodava mais do que a falta de comunicação entre o artista e o público. Ia além na sua
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insatisfação quando constatava que este público, historicamente no Brasil, era limitado a
uma parcela pequena e privilegiada do país. A questão qualitativa deveria, em suas
análises, vir acompanhada da questão quantitativa, principalmente ao tratar de questões
políticas, de oposição e de luta. As ressalvas que faz em relação às tentativas de
“popularização” do teatro brasileiro, como por exemplo, o barateamento dos ingressos,
demonstrava que isso não resolveria o problema em relação ao acesso da população. Na
realidade, a escolha por assistir a uma peça teatral não passava simplesmente pela questão
econômica, mas pelo interesse pelo que está sendo apresentado. Isto não dependia de
preços mais acessíveis, mas sim de espetáculos que correspondessem às necessidades do
público. Como mencionamos, o seu trabalho como crítico apontava justamente para
partes do processo que não se limitava ao palco, mas que buscava empreender uma
compreensão e uma explicação racional e lógica diante daquilo que incomodava
determinados setores da classe teatral.
Também é impossível não estabelecer a ligação das críticas de Fernando Peixoto
na “imprensa alternativa” com o movimento da “resistência democrática”, na luta e no
questionamento dos caminhos políticos que se iniciaram em 1964 com o golpe militar e até
então, final dos anos 1970, estavam em vigor. Inicialmente elas fazem parte da luta por
uma arte livre, por um teatro independente e autônomo para seguir o seu desenvolvimento,
sem o risco de ser censurado ou impedido de expressar. Porém, por trás desta “intenção”
inicial havia, por parte de Peixoto, uma percepção política de que a luta não se fazia por
meio de arroubos individuais e não terminava simplesmente com o fim da ditadura militar.
Ao invés de um “teatro de ocasião”, limitado a críticas circunstanciais, havia a necessidade
de um teatro que ultrapassasse o limite do protesto e avançasse para o questionamento da
sociedade capitalista como um todo, dos modismos, do mercado e do que ele chamava de
“mentira” e de “ilusão”. Esta é outra razão para tamanha desilusão que ele tem em relação
à cena teatral brasileira, principalmente nos artigos do jornal Movimento, onde o crítico
percebe o enfraquecimento e o abandono das preocupações e dos projetos políticos e
estéticos preocupados em contribuir para a transformação e para a conscientização da
sociedade em geral. Neste ponto surge uma outra faceta em seus textos: a do “trabalhador
incansável”, que por todos os meios e formas buscava alertar os seus colegas profissionais
da urgência de levar a rio a atividade teatral no Brasil. Deixar de lado a improvisação, a
falta de compromisso e a acomodação. São exemplares os seus textos quando, utilizando-
se de Brecht, Peixoto afirma que os artistas são trabalhadores como outros quaisquer e que,
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por isso mesmo, como classe, deveriam agir dentro dessa lógica e não como uma minoria
privilegiada e culta, superior e livre dos dilemas e das contradições. Basicamente, os
artistas recebiam salários, tinham patrões, sofriam a pressão do mercado, vendiam a sua
mão-de-obra e o produto de seu trabalho, nada superior ou diferenciado da grande maioria
da população. Por mais que tivessem os seus rostos estampados em capas de revistas e
fossem perseguidos pelos fãs, isto tudo não passava de uma ilusão sinistra que dentro da
lógica do mercado e tinha um prazo certo para acabar. A televisão, uma força que se
tornava hegemônica ao atrair de maneira avassaladora estes artistas, tinha a sua parcela de
culpa em toda a crise das artes cênicas, principalmente por ser prioritariamente comercial
(e nada mais) e altamente rentável para aqueles que estavam inseridos em sua gica.
Acabava limitando o caminho de toda uma geração, desestimulando e enfraquecendo o
ímpeto cultural e político que muitos traziam em sua formação. O valor da “consciência de
classe” e de uma atitude coerente nesta direção, dentro deste processo de opções e de lutas,
seria uma das coisas mais valiosas para enfrentarem de maneira consistente os dilemas de
então. Mais uma vez, Peixoto apreende outros aspectos da atividade artística e coloca de
maneira central algo que para muitos críticos poderia passar despercebido. De fato, o
processo artístico para ele é bem mais complexo e, por isso mesmo, a necessidade de uma
observação mais ampla de todos os movimentos.
Como já dito anteriormente, é muito intricado apontar erros de análise e de
conjuntura por parte de toda uma geração que fez parte da história do teatro brasileiro
quando temos, pelo menos em parte, uma visão mais nítida do processo histórico que se
seguiu. Porém, simplesmente aceitar e acatar estas reflexões como verdade, heroísmo e
coragem (possíveis quando analisados a partir da perspectiva em que estavam inseridos) é,
por outro lado, permanecer numa zona inútil, repetitiva e narcisista. Quando nos
aproximamos das críticas de Peixoto sobre o teatro e a cultura brasileira no final dos anos
1970 e do teor das mesmas, entendemos que não há como localizar exatamente e de
maneira desapaixonada o bom e o mau no conflito político. O que nos é dado a perceber é
um duelo de convicções, uma luta pelo poder, por fazer valer uma determinada concepção
de mundo com pretensões hegemônicas e impositivas. Neste caso, o risco de serem aceitas
ou não estava nos planos, não sendo nenhuma surpresa o isolamento e o decréscimo do
impacto e da aceitação por parte da classe teatral nesta linha de ação. Podemos pensar,
então, que o teatro “nacional-popular”, tão citado e almejado não seria muito mais o
exemplo típico da histórica distância entre o “intelectual” e a “massa”? Não seria uma
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tentativa impositiva, mecânica e forçada de um determinado grupo que imaginava ter a
“história nas mãos” e, por isso mesmo, imaginava saber e conhecer as necessidades e as
aspirações do “povo brasileiro”? Não sofreriam de uma certeza “solitária”, onde acabavam
falando e sendo aceitos apenas pelo grupo do qual faziam parte, não se estendendo por
fragilidade e falta de compreensão dos próprios limites, sejam eles estruturais e,
principalmente, conceituais? Quando pensamos em todas as possibilidades existentes em
nosso próprio presente, sabemos que nem sempre seguimos aquilo que realmente
escolhemos e que, a cada instante, algo novo se apresenta, talvez mais simples, com menos
sacrifícios, privações e nem sempre aparentemente melhor. É humanamente impossível
viver de antemão algo que ainda não é. Para o historiador, a visão do passado e daqueles
que viveram é sempre acompanhada de um complexo sentimento de imaginar saber
aqui, o que não sabiam. Mas o “não-saber” não obriga o historiador a ter conivência,
aceitar e não questionar, como se nada soubesse, de tudo aquilo que no passado se falou, se
escreveu e se fez. Caso contrário o trabalho do historiador torna-se apenas um inventário
de boas intenções e ações de um grupo que foi vítima da “maldade”, da “mesquinhez” e da
“estupidez” do povo que não compreendeu o valor do que estava sendo dito e colocado nos
palcos. De toda forma, estes artistas tinham a consciência do dilema que enfrentavam
quando viam os seus anseios, por melhores que fossem, não serem considerados como os
mais viáveis naquele momento; serem, conseqüentemente, substituídos por outros.
Também tinham consciência que outros caminhos, por mais inconseqüentes, limitados e
“comerciais” que fossem, permitiam avanços dentro de seus limites. Isso foi algo
enfrentado por toda uma geração de artistas que tanto por escolhas pessoais, como
políticas, se viram em busca de novas alternativas. De todo modo, pode-se justificar que
este grupo não teve a chance e a amplitude de análise necessária para que suas idéias se
tornassem hegemônicas. Efetivamente, como vimos nas críticas de Peixoto, esse grupo não
tinha apenas um inimigo a enfrentar, mas uma série de desafios que acabaram por abafar
de maneira inquestionável o vigor e a potência existente em suas origens. Mas não
podemos deixar de salientar, e isto também é perceptível em seus textos, uma
intransigência e uma certeza de estar com a razão que acaba nos passando a imagem de
uma realidade que beirava a total decadência. O teatro brasileiro, no fim das contas, não
acabou. Dentro do processo, sempre fluido e impalpável, artistas continuaram e ainda
continuam a sua busca pela comunicação com o público, novas preocupações tomam conta
dos palcos. Na realidade, afirmar que foram derrotados é algo estúpido, pois a continuidade
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não significou o abandono total das questões levantadas pelas críticas, como se elas nunca
tivessem existido ou no máximo se limitassem a serem uma curiosidade histórica e, por
isso, objeto de estudo de um historiador qualquer. estão os dois lados em questão, que
ao mesmo tempo demonstra o brilhantismo desta geração e, ao mesmo tempo, os seus “pés
de barro”. A entrega de corpo e alma por uma causa política acaba, muitas vezes
aparecendo exagerada e intransigente, mas carrega em si a possibilidade de marcar não
apenas aquele momento em que foi e esteve presente, mas de continuar como uma força
irresistível durante o tempo em que ainda se espera por uma possível solução.
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17/12/1973.
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20/05/1974.
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______. Fábulas Nordestinas. Jornal Opinião, 11/03/1974.
______. Nélson Rodrigues. O maior poeta dramático do Brasil? Jornal Opinião,
08/04/1974.
______. O “diário de trabalho” de Brecht. Jornal Opinião, 22/04/1974.
______. O que mantém um teatro vivo. Jornal Opinião, 22/04/1974.
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______. A vitalidade do “Cordão Encarnado”. Jornal Opinião, 03/06/1974.
______. Grotowski: teatro ou terapia? Jornal Opinião, 15/07/1974.
______. Oduvaldo Viana Filho (1936 – 1974). Jornal Opinião, 29/07/1974.
______. Uma política para o teatro. Jornal Opinião, 02/09/1974.
______. Um teorema do jovem Brecht. Jornal Opinião, 27/09/1974.
______. A imprecação dos saltimbancos portugueses. Jornal Opinião, 25/10/1974.
______. No túmulo das agências de publicidade. Jornal Opinião, 25/10/1974.
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______. Dois chicotes (o do patrão e o do servo). Jornal Movimento, 04/08/1975.
______. São Paulo com açúcar e afeto. Jornal Movimento, 11/08/1975.
______. Entre o pano e o grito. Jornal Movimento, 25/08/1975.
______. O limite de um protesto. Jornal Movimento, 25/08/1975.
______. A televisão segundo Brecht. Jornal Movimento, 20/10/1975.
______. Gota D’Água. Jornal Movimento, 20/10/1975.
______. Teatro para valer. Jornal Movimento, 17/11/1975.
______. Subúrbio e poesia. Jornal Movimento, 02/02/1976.
______. Quebra–cabeça e cabeça quebrada. Jornal Movimento, 09/02/1976.
______. Os mistérios do milagre. Jornal Movimento, 16/02/1976.
______. Debate – Teatro Popular: O público das Kombis. Jornal Movimento, 23/02/1976.
______. Procópio Ferreira na Periferia de São Paulo. Jornal Movimento, 01/03/1976.
______. Um alfabeto novo. Jornal Movimento, 08/03/1976.
______. Do monólogo ao diálogo. Jornal Movimento, 22/03/1976.
______. De objeto a sujeito. Jornal Movimento, 05/04/1976.
______. Um ato de ousadia. Jornal Movimento, 03/05/1976.
______. Auto–suficiência ou desinteresse? Jornal Movimento, 07/06/1976.
______. Hermilo e o teatro vivo do Recife. Jornal Movimento, 14/06/1976.
______. Ator existe? Jornal Movimento, 21/06/1976.
______. Trabalhadores da ribalta. Jornal Movimento, 28/06/1976.
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______. Tapando o sol com lantejoulas. Jornal Movimento, 26/07/1976.
______. “Ele formulou projetos. Nós os aceitamos” Os vinte anos da morte de Brecht.
Jornal Movimento, 23/08/1976
______. Inglês prá brasileiro ver. Jornal Movimento, 04/10/1976.
______. Duas certezas e um erro. Jornal Movimento, 11/10/1976.
______. Paulo Pontes (1940–1976). Jornal Movimento, 03/01/1977.
______. A necessária resistência do teatro empresarial. Jornal Movimento, 23/02/1977.
______. O produtor e o produto. Jornal Movimento, 09/05/1977.
______. Mais Babel do que torre. Jornal Movimento, 16/05/1977.
______. Teatro: Uma perspectiva Nacional–Popular. Jornal Movimento, 06/06/1977.
______. Os mortos sem sepultura. Jornal Movimento, 25/09/1977.
______. Em aparente estado de graça. Jornal Movimento, 26/12/1977.
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1973
A ópera de um banco privado 2º sem/1973
Um protestante que protesta 2º sem/1973
Teatro brasileiro, experiências / A saída, onde está a
saída
17/12/1973
1974
Anatol Rosenfeld e o teatro alemão 04/02/1974
O que significa ser “artista” * 04/03/1974
Fábulas nordestinas* 11/03/1974
A “Yerma” de Victor Garcia* 18/03/1974
Nélson Rodrigues. O maior poeta dramático do
Brasil?*
08/04/1974
Kung Fu – Da TV para os livros* 08/04/1974
O que mantém um teatro vivo* 22/04/1974
O diário de trabalho de Brecht* 22/04/1974
O ventre de “Yerma” e o vôo da “Gaivota”* 29/04/1974
“A Torre em Concurso”. No Império, pela
República*
20/05/1974
Teatro em Portugal – A difícil sobrevivência* 20/05/1974
A vitalidade do “Cordão Encarnado”* 03/06/1974
Grotowski: teatro ou terapia?* 15/17/1974
Oduvaldo Viana Filho (1936 – 1974) 29/07/1974
Televisão: um caso realmente especial* 05/08/1974
A expansão da Embrafilme* 19/08/1974
MPB, capital São Paulo* 19/08/1974
“Margarida” aparece no exterior* 19/08/1974
Bienal de posters* 19/08/1974
O subtexto como texto* 19/08/1974
Revelando a “Margarida” 26/08/1974
Anexos
239
Uma política para o teatro* 02/09/1974
Pelo avesso de “Avatar”* 16/09/1974
Um teorema do jovem Brecht 27/09/1974
Suely e Rosa 11/10/1974
O relato de Vitorio Mussolini sobre Benito, seu pai 11/10/1974
A imprecação dos saltimbancos portugueses 25/10/1974
No túmulo das agências de publicidade 25/10/1974
Brecht condensado 01/11/1974
Fredi Kleeman (1927-1974) 08/11/1974
Dentro das catacumbas líricas 08/11/1974
A estrutura da obra de Glauber Rocha 15/11/1974
Antes de entrar no teatro 29/11/1974
Machado de Assis: precursor da literatura do
absurdo
13/12/1974
Pela porta aberta da China 20/12/1974
Sete reportagens 27/12/1974
1975
Duas gaivotas 31/01/1975
Os pés de barro do teatro 31/01/1975
Fingindo tirar a limpo o caso Stavinsky 07/02/1975
Quem tem medo de Ingmar Bergman? 14/02/1975
Um intelectual nos cárceres da Inquisição 28/02/1975
Boal y los oprimidos 11/04/1975
1977
A recusa da inércia 08/04/1977
*Artigos de Fernando Peixoto assinados sob o pseudônimo Andrea Sarti.
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1975
Dois chicotes (o do patrão e do servo) 04/08/1975
São Paulo com açúcar e afeto 11/08/1975
Um passo para a unidade 18/08/1975
Entre o pano e o grito 25/08/1975
O limite de um protesto 25/08/1975
Pescando pessoa humana 22/09/1975
Tesouro escondido na selva de pedra 06/10/1975
A televisão segundo Brecht 20/10/1975
Gota D’Água 20/10/1975
Chimarrão versus Marlboro 03/11/1975
As duas mortes de Pasolini 10/11/1975
Teatro para valer 17/11/1975
O ator dividido – Eugenio Kusnet (1898-1975) 01/12/0975
Memória curta 22/12/1975
1976
Inesperadas aventuras 12/01/1976
Quebra-cabeça e cabeça quebrada 09/02/1976
Os mistérios do milagre 16/02/1976
O público das Kombis 23/02/1976
Urubu com vertigem 01/03/1976
Procópio Ferreira na periferia de São Paulo 01/03/1976
Um alfabeto nvoo 08/03/1976
Voz a preço de banana 15/03/1976
Mais um grito parado no ar? 15/03/1976
Do monólogo ao diálogo 22/03/1976
De objeto a sujeito 05/04/1976
Memória de um “Grande Momento” 12/04/1976
Um ato de ousadia 03/05/1976
Anexos
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Anexos
241
Resumindo e omitindo 17/05/1976
Resumindo e omitindo 24/05/1976
Auto-suficiência ou desinteresse 07/06/1976
Hermilo e o teatro vivo do Recife 11/06/1976
Ator existe? 21/06/1976
Trabalhadores da ribalta 28/06/1976
Tapando o sol com lantejoulas 26/07/1976
O que os atores querem 16/08/1976
“Ele formulou projetos. Nós os aceitamos”. 23/08/1976
Depoimento de Antonio Pecci 20/09/1976
Quatro temas dos nossos dias 27/09/1976
À espera de mudanças 04/10/1976
Duas certezas e um erro 11/10/1976
Dentro do ventre do monstro 15/11/1976
Os caminhos da desonra 29/11/1976
O preço de todos nós 27/12/1976
1977
Paulo Pontes (1940-1976) 03/01/1977
Em busca da realidade perdida 17/01/1977
Em defesa do cinema brasileiro 31/01/1977
Mahagonny, uma ópera culinária 07/02/1977
Procurando caminho entre as armadilhas 28/02/1977
Uma bibliografia para 77 14/03/1977
Procópio Ferreira, sessenta anos de teatro 21/03/1977
O direito à própria imagem 04/04/1977
O produtor e o produto 09/05/1977
Independência e morte de um teatro uruguaio 16/05/1977
Mais Babel do que torre 16/05/1977
A necessária resistência do teatro empresarial 23/05/1977
Teatro: uma perspectiva Nacional-Popular 06/06/1977
A autópsia do cadáver do Classicismo 04/07/1977
O herói e o anti-herói: Bertolt Brecht 25/07/1977
Anexos
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242
Os mortos sem sepultura 25/09/1977
A luta nos bastidores ??/12/1977
Em aparente estado de graça 26/12/1977
1978
“Vim da terra vermelha, num pé de café nasci” 10/04/1978
Os limites de “Limite” 12/06/1978
Agora é que precisa ser artista 19/06/1978
1979
A descrição dos monstros 17/12/1979
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